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Sobre a obra

“Você não escolhe fugir de uma coisa assim, Ari. Não pode engolir em seco
e se esforçar para que isso
passe. Sempre vai haver consequência.”

No mundo de A garota que não queria lembrar, as bruxas, conhecidas como


hekamistas, podem preparar

feitiços para ajudar quem está passando por dificuldades. Nessa mitologia
criada pela autora Maggie Lehrman, a magia tem consequências claras, mas
um tanto imprevisíveis. Um feitiço desenvolvido para melhorar o

desempenho em atividades físicas, por exemplo, pode prejudicar a parte


acadêmica. A vida, é claro, funciona de forma semelhante e é precisamente
nesse ponto que o livro – um misto de fantasia urbana e realismo

mágico – se aproxima da realidade de forma poética e fascinante.

A obra se vale da premissa de que quanto mais poderoso o feitiço, piores os


seus efeitos colaterais. Desse modo, ressalta sem moralismo que não há
atalho para superar as grandes dores da vida, não há solução

milagrosa sem consequências, às vezes muito piores do que a dor original.

Kyle Gilman

Sobre a autora
Maggie Lehrman é uma escritora e editora que mora no Brooklyn, Nova
York. Ela cresceu no subúrbio de Chicago e estudou Inglês em Harvard.
Durante a década em que trabalhou como editora de livros para

crianças, ela também conquistou o Master in Fine Arts em Writing for


Children and Young Adults da faculdade Vermont. A garota que não queria
lembrar é seu primeiro livro. Saiba mais em www.maggielehrman.com.

A garota que

não queria lembrar

Maggie Lehrman

Tradução de

Guilherme Miranda

Para Kyle

Sumário

Capa

Quarta capa

Sobre a obra

Sobre a autora

Folha de rosto

Dedicatória

Parte 1. As hekamistas

1. Ari - Cinco dias depois


2. Kay - Cinco meses antes

3. Markos - Um dia antes

Parte 2. Efeitos colaterais

4. Win

5. Ari

6. Markos

7. Kay

8. Ari

9. Win

10. Ari

11. Kay

12. Markos

13. Ari

14. Markos

15. Win

16. Kay

17. Ari

18. Markos

19. Win

20. Kay
21. Ari

22. Markos

23. Win

24. Markos

25. Ari

26. Kay

27. Markos

28. Ari

29. Kay

30. Markos

Parte 3. Os preços

31. Kay

32. Ari

33. Win

34. Kay

35. Markos

36. Ari

37. Kay

38. Markos

39. Win
40. Ari

41. Kay

42. Markos

43. Win

Parte 4. Todas as coisas

44. Ari

45. Markos

46. Kay

47. Ari

48. Markos

49. Kay

50. Markos

51. Ari

52. Markos

53. Kay

54. Ari

55. Win

56. Ari

57. Kay

58. Ari
59. Markos

60. Kay

61. Ari

62. Markos

63. Kay

64. Ari

Agradecimentos

Créditos
1. Ari

Cinco dias depois


Há uma hekamista que mora no conjunto de casas velhas atrás do colégio.
Muita gente comprou feitiços dela

ao longo dos anos – colas de prova, retoques de beleza e auras de boa sorte.
Mas eu não. O único feitiço que já usei, quase dez anos atrás, foi feito por
uma hekamista de Boston. Me lembro do seu consultório

esterilizado e da fatia de torrada seca que ela colocou num prato à minha
frente. Me lembro de chorar tanto que mal conseguia engolir a torrada.

Mas funcionou. Eu parei de chorar, e aqui estou.

A hekamista trabalha na cozinha da casa dela. As cortinas são vagabundas e


tem manchas de água no teto,

mas é arrumadinha. A própria hekamista usa um roupão esfarrapado. Ela


me oferece uma xícara de chá, e eu

aceito, embora saiba que não deveria aceitar nem bebida nem comida de
estranhos, muito menos de uma

hekamista. Mas seria grosseria recusar.

Meu pulso esquerdo dói. Dentro, embaixo do músculo e do osso. Uma dor
antiga. Meu efeito colateral.

Seguro o pulso com a outra mão embaixo da mesa.

– Feitiços de amor não funcionam, sabe? – diz a hekamista, mergulhando o


que parece um saquinho de chá

Lipton comum em duas canecas de cores fortes. – Quem quer que seja, ele
vai te beijar, dizer as palavras

certas, acreditar que é de verdade. Mas você não. O amor exige esforço. –
Ela sorri para mim, um sorriso

distraído, como se por um momento não soubesse direito quem eu sou ou


por que estou na sua cozinha, e eu
me concentro em seus dois dentes da frente para não olhá-la nos olhos nem
pensar em Win, amor e esforço. –

Claro que posso te vender um. Mas me isento de responsabilidade.

– Não estou aqui atrás de um feitiço de amor – digo.

Ela me entrega uma das canecas de chá e ergue a sobrancelha.

– Ah, pensei que estivesse. Besteira a minha. Então me conta: é uma


transformação para a festa de

formatura? Um cálculo para a prova de matemática?

Gosto do calor da caneca nas minhas mãos, me distrai da dor no punho e


acaba com os calafrios que

sobem pelo meu corpo todo. Eu podia mudar de ideia, inventar alguma
coisa. Dizer que quero ter sorte ou

autoconfiança. Suplicar por uma ajuda no vestibular. Pedir um presente para


Jess ou Diana, algo temporário e divertido. Mas já vim até aqui... estou tão
perto de acabar com isso. Só mais um pouco e nunca mais vou me sentir
assim.

Parece que as paredes estão se fechando em volta de mim, mesmo quando


estou ao ar livre. Como se o ar

estivesse mais rarefeito do que antes, como se a cada inspiração entrasse


menos oxigênio nos meus pulmões.

Quero chorar, mas, se eu começar, tenho medo do que possa acontecer.


Tenho medo da pessoa que poderei

me tornar.

A Diana sempre me encheu por eu não querer falar sobre meus sentimentos.
É verdade, mas isso não significava que eu não tivesse nenhum. Eu só não
queria deixar que eles aflorassem todos de uma vez, que me dominassem. E
agora não consigo mais me conter.

Assim como nove anos atrás, preciso disso.

Respiro fundo e seguro as lágrimas.

– Quero que você me faça esquecer meu namorado.

A hekamista bebe um gole do seu chá. Olha para mim. Não consigo nem
levar a caneca à boca.

– Para sempre – digo. – Nada dessas porcarias temporárias.

– Para sempre é mais caro. Digamos… cinco mil dólares.

– Concordo. Perfeito.

– Bom, se você tiver o dinheiro, posso fazer. Claro. Posso preparar agora
mesmo, na verdade. Você toma

antes de dormir e ficará livre rapidinho… para sempre.

– Obrigada. – O alívio é enorme, uma onda que quase me derruba. Nunca


mais ter de pensar em Win.

Ele nunca mais me buscaria na escola em sua caminhonete. Nunca mais me


olharia nos olhos na Festa de

Boas-Vindas, dizendo que me amava. Eu nunca mais o veria na primeira


fileira nas minhas apresentações,

sorrindo só para mim. Não haveria mais beijos, promessas e planos. Amor,
nunca mais.

Nunca mais teria uma noite como a da véspera na praia. Nunca mais ouviria
palavras raivosas. Nunca mais
acordaria com a ligação da mãe dele. Nunca mais faria longas caminhadas
voltando da praia com areia e algas no cabelo, o estômago revirado, os
olhos apertados e secos demais para conseguir chorar. Toda a dor dos

últimos cinco dias… extinta.

A mão da hekamista bate na mesa para chamar minha atenção.

– Mas isso tem um preço.

– Já falei que posso pagar – eu digo. O dinheiro está enfiado no bolso do


meu casaco, ainda dobrado no

envelope pardo em que o encontrei. Consigo senti-lo contra minhas


costelas. Exatamente cinco mil dólares.

Achei no fundo do meu guarda-roupa ontem, numa caixa de sapato meio


amassada, enquanto procurava algo

para usar que não me lembrasse de Win. Não sabia que o dinheiro estava lá
e não tenho certeza se é realmente meu, mas não sei quem mais o teria
colocado lá, e não consigo deixar de pensar que encontrá-lo foi um sinal,
uma confirmação de que comprar esse feitiço é a coisa certa a fazer.

– Não estou falando do dinheiro. O feitiço tem seu próprio preço. Um


feitiço de beleza pode matar alguns

neurônios. Mas para algo assim? – Ela me contempla, e tento agir como se
essa informação fosse novidade.

Não é. Ouvi todo o discurso de efeitos colaterais na primeira vez; a dor no


meu punho é prova disso. – A

maioria das pessoas sente pelo menos algumas dores depois de um feitiço
de memória. Pode afetar os

músculos, os nervos ou coisas do tipo. Não dá para prever com exatidão.


Não ter que sentir mais esse peso opressivo vai fazer tudo valer a pena, o
dinheiro, o efeito colateral.

Imagino como se fosse cair no sono e acordar no corpo de outra pessoa.


Vazia. Sem nada. Feliz. Livre.

– Ah! – a hekamista diz, batendo com o dedo na cabeça. – Era para ter
perguntado antes, que besteira a

minha. Você já tomou algum outro feitiço no passado?

– Não.

– Porque os feitiços múltiplos se confundem. Se misturam. Se embaralham.


Os efeitos colaterais não são

duplicados, são aumentados ex-po-nen-ci-al-men-te . – Ela estreita os


olhinhos pequenos para mim, fazendo-os sumir nas rugas do rosto. – Que
besteira a minha. Você me parece tão familiar!

– Juro que nunca tomei nenhum outro feitiço – digo rápido para não ser
pega na mentira. Eu minto muito mal. Se ela me pressionar, vou acabar
cedendo. Resisto à vontade de segurar o punho de novo e massagear o

lugar onde dói. Ele está fraco, como se me avisasse: “É isso que acontece
quando você toma feitiços”. Em

vez disso, olho fixamente para os meus pés. Dentro dos tênis, eles estão
vermelhos e doloridos. Perdi ou

estou prestes a perder a unha do outro dedão. Unhas perdidas: um orgulho


das dançarinas.

Se ela soubesse a verdade, recusaria fazer o feitiço para o meu próprio bem,
para evitar o agravamento dos efeitos colaterais. Mas eu consigo suportar
outros efeitos como o meu punho – é com isso que lido todo dia no balé.
Dor. Sofrimento.
Mas dor física e sofrimento físico. O que são alguns músculos machucados
em comparação com a dor de perder Win?

Se o meu corpo tem que pagar o preço, então que seja.

– Tudo bem, então – diz a hekamista.

Ela se levanta e se move pela pequena cozinha, abrindo e fechando os


armários e remexendo nas gavetas.

Joga os ingredientes numa panela amassada sobre o fogão.

– Que tal uma sopinha de macarrão com frango?

Enquanto ela trabalha, tiro o envelope velho de notas e o coloco em cima da


mesa, diante de mim, então

esfrego o punho dolorido discretamente. Ela olha de soslaio para o envelope


e acena com a cabeça.

– Você está no penúltimo ano? – pergunta, diante da panela. Quando a sopa


começa a borbulhar e soltar

faíscas, ela ergue a panela sobre o balcão, fazendo-a parar no ar. Pelo menos
é o que parece de onde estou vendo.

– Sim – respondo. – Quer dizer, tecnicamente estou no último, acho. As


aulas acabaram agora.

– Eu tenho uma filha. Ela é um pouco mais velha que você.

– Ah.

– Ela é especial, a minha filha. Sei que todos os pais pensam isso, mas é
verdade.

Exatamente quando acho que não consigo me sentir pior, sinto uma saudade
súbita da minha mãe. Também
é uma dor estranha, e normalmente consigo passar semanas sem reavivá-la
– a dor do punho é muito mais

persistente. A foto de um catálogo de presentes. Uma criança chorando na


praia. Famílias entrando juntas na sorveteria. E agora tenho inveja da filha
da hekamista.

Enquanto respiro fundo para engolir essa sensação, a luz do apartamento


fica mais fraca. O ar frio entra

pelas rachaduras das paredes e do piso. Meu punho pulsa junto com meu
coração. A hekamista, à beira do

fogão, de costas para mim, arregaça as mangas e faz um movimento rápido


com uma pedra na outra mão.

Não consigo ver o que está acontecendo com a panela de sopa.Ela está no
meio do processo.

– Você parece estar decidida. Isso é bom. Conheça a sua mente, conheça a
si mesma. Mas os jovens nem

sempre pensam direito nas coisas, e ninguém fala sobre o que o hekame faz.
Não como antigamente. Vocês

acham que é perigoso, agora. Se é ilegal virar hekamista, deve ser perigoso,
não é? Uma pena. Que bobagem, que bobagem! – O apartamento está quase
todo às escuras, com exceção da luz emitida pela panela atrás da

hekamista. Ela a observa. – Não é perigoso como vocês pensam. Mas os


feitiços de memória podem ser

delicados, especialmente quando você encontrar esse namorado de novo.


Andando pela rua, ele vai tentar

dizer oi, você não o conhecerá, ele vai ficar confuso ou bravo… ou
qualquer coisa assim.
– Isso não vai ser problema – eu digo. Respiro e tomo um gole do chá. Tem
gosto de Lipton, falta leite. No escuro e no frio, enquanto minha salvação
está sendo preparada, é fácil dizer as palavras mais difíceis do

mundo. – Ele morreu.

2. Kay

Cinco meses antes

Quando as pessoas pensam no cabo Cod, costumam imaginar praias e


calçadões, areia e sol, famílias e

amigos tomando sorvete e jogando vôlei. E, durante quatro ou cinco meses


por ano, é exatamente assim

mesmo. Os turistas enchem as cidades, os hotéis, os restaurantes e as praias,


o sol brilha e as ondas quebram no mar, e temos uma razão para viver.

Mas no meio de janeiro nada é assim. Os hotéis e pousadas se esvaziam.


Faz frio. A praia não é uma praia,

só uma pontinha de terra, e o oceano está sempre lá nos cercando. O cabo


Cod é uma ilha, sabe. Duas pontes nos deixam entrar e sair, contudo,
durante a maior parte do tempo, ficamos presos, sem ter para onde ir num
trecho estreito de terra que ninguém deveria ter descoberto, muito menos
habitado. Cheio de vento, plano,

marrom, amarelo e cinza, com o céu das mesmas cores que a terra.

No começo sombrio e triste de janeiro, eu, Diana e Ari estávamos


comemorando. Eu tinha roubado uma

garrafa de Grey Goose do estoque secreto da minha irmã, Mina, e


brindamos, tremendo por causa do vento.

A estrada estava coberta de neve semiderretida e folhas mortas.


Escorregamos e deslizamos sobre elas de
tênis, rindo e segurando-nos umas às outras.

– A Nova York! – Diana disse à Ari.

– Ao acampamento hípico! – Ari gritou de volta, embora elas estivessem


bem próximas.

– Ao verão! – Diana levantou a voz para que ela se equiparasse à de Ari.

– À liberdade!

– Viva! – falei. Não conseguia pensar em algo a que brindar, mas, se não
dissesse nada, não faria parte da comemoração.

E, na verdade, eu não estava comemorando nada pessoal. No entanto,


estava feliz de estar na rua com

Diana e Ari, feliz pelas duas. Logo depois que as aulas terminassem, elas
partiriam para o verão de seus

sonhos. Sua felicidade deveria ser suficiente para que eu comemorasse,


depois dos últimos anos.

– Você vai ser a rainha daquelas jóqueis metidas a besta – Ari disse. –
Talvez encontre um bom cavalariço

para seduzir.

Diana ficou vermelha e cobriu os olhos com as mãos.

– É mais provável que eu passe muito tempo com meu cavalo e que, no
meio do verão, descubra que

nenhum dos seres humanos sabe meu nome.

– Azar o deles.

Diana apontou a garrafa para Ari.


– Mas é você que vai ser a rainha. Vai acabar com todas aquelas meninas.

– A pistoleira do balé. Essa sou eu. – Ela pegou a garrafa de Diana, cravou
a ponta do pé no chão e girou, parando apoiada nele sem perder o
equilíbrio, ao mesmo tempo em que impulsionava o outro pé para trás, em

uma linha reta como a corda de um arco. Ela deu um gole sem cambalear.

– E se eu pintasse o cabelo? – Diana mostrou uma mecha de seus fios


longos e grossos, e olhou para eles

sob a pouca luz. – De alguma cor forte?

Eu ia concordar, mas Ari me interrompeu.

– Ah, não – Ari disse. Ela abaixou o pé e me passou a garrafa. – Você é


perfeita do jeito que é.

– Acho que sim – Diana disse, soltando o cabelo.

– Cadê o Win? – perguntei. Ari passava a maioria das noites com seu
namorado, Win Tillman. E era por isso

que Diana tinha começado a me ligar no último mês de setembro.

– Ele está doente em casa. O Markos está dando uma festa, mas eu queria
comemorar.

– Não dá para comemorar com o Markos? – Diana perguntou, como quem


não quer nada.

– Mas é mais divertido só a gente.

Diana não discordou. Ela era gamada por Markos Waters, o melhor amigo
de Win, mas Ari sempre dizia

que ele não era para namorar. Ari andava com ele e com Win quando não
estava com a gente, então acho que
ela devia saber melhor do que nós.

Ficamos em silêncio. O temido silêncio em que alguém poderia dizer “É


hora de ir para casa” ou “Já bebi

demais”. Não queria que a noite acabasse. Fazia só uns quatro meses que eu
era amiga de Diana e Ari, desde que eu e Diana sentamos juntas na aula de
inglês e começamos a sair nas noites que Ari passava com Win. Ari e Diana
eram inseparáveis havia anos, sussurrando durante a aula e cantando pneus
dos carros uma da outra, e eu sempre me perguntava como seria ter uma
amizade como aquela. Com uma pessoa que você escolhe, em

vez de já nascer com ela, como acontecia comigo e a minha irmã Mina.

Primeiro fiz amizade com Diana, mas logo depois fui chamada para sair
com Ari também, e viramos um

trio. Quatro meses de amizade. Seis meses do meu feitiço de beleza, que me
deu confiança para começar a

falar com Diana. E dois anos desde que Mina ficou melhor e me largou. Eu
conseguia lembrar todas as datas

importantes com exatidão.

Não queria que a noite acabasse, por isso me apressei em preencher o


silêncio.

– Olha, a casa da hekamista – eu disse, apontando mais para baixo na rua.

Diana e Ari se viraram para olhar para a casa. Parecia normal vista de fora,
talvez um pouco acabada. Na

época em que a gente estava no primário, alguém tinha inventado a história


de que havia um campo de força

em volta daquela casa que liquidaria ou amaldiçoaria quem chegasse perto


demais. Só anos depois todo mundo parou para pensar que não era assim
que o hekame funcionava. Precisava comer alguma coisa para ser
enfeitiçado. Então eles mudaram o desafio para comer a grama do jardim da
frente da casa da hekamista.

Quando fui lá para tomar meu feitiço de beleza seis meses antes, ainda dava
para ver os pedaços sem grama

no quintal, como se as novas gerações de crianças ainda estivessem se


desafiando a se aproximar dali.

– Como é lá dentro? – Diana perguntou.

– Diana! – Ari disse, como se a amiga tivesse acabado de dizer algo


ofensivo.

– Não tem problema – eu falei. – Todo mundo sabe que eu comprei um


feitiço. Na verdade, muita gente

compra, só que os resultados nem sempre são visíveis.

Ari esfregou o punho e eu me lembrei, tarde demais, dos pais dela, do


incêndio e de seu antigo feitiço.

Diana se aproximou de Ari como que para consolá-la, mas ela se afastou.
Eu nunca tinha visto Ari abraçar ou

tocar alguém além de Win.

– O feitiço foi colocado num burrito de micro-ondas – falei. Idiota. O


silêncio se abriu, e entrei nele sem pensar. – Achei muito estranho. Já ouviu
falar de alguma coisa muito estranha? Ari, onde estava seu feitiço?

Não, deixa para lá, não era o que eu queria… hum… Acho muito doido
todas as coisas pelas quais as pessoas

se enfeitiçam, porque eu só queria um pouco, hum, sabe? – Apontei para o


meu rosto e torci a ponta do

cabelo, que estava sempre macio. – A hekamista foi muito gentil, na


verdade. Não tentou me bajular nem me
dizer que eu não precisava disso. Achei legal da parte dela. Quando a gente
é feia, é feia, não é?

Às vezes, ao conversar, eu desejava ter comprado outros feitiços, não só o


de beleza. Para ter perspicácia, por exemplo. Ari falava tão rápido que nem
sempre conseguia acompanhá-la. Então, quando eu tentava seguir

o mesmo ritmo, acabava falando bobagem.

– Você não era feia – Diana disse.

– Ora, você não precisa dizer isso. – Dei uma risada cujo som foi soprado
pelo vento quase imediatamente.

– Ei – Ari falou. Sua expressão ficou firme e, por mais que ela fosse uns
quinze centímetros mais baixa, eu me encolhi. – Não fica assim. Você é
incrível. Todas nós somos, tá?

Diana riu.

– Eu sou tão incrível que quase não me aguento.

– Viu? A Diana entende. – Ari se virou para mim com uma expressão
decidida. – A questão, Kay, é que eu

sou incrível, e não sou amiga de pessoas que não sejam incríveis, logo, et
cetera. Dá pra você concordar?

Eu não fazia a menor ideia do que ela estava falando, mas, fosse o que
fosse, parecia incrível... parecia uma promessa... então concordei com a
cabeça e disse que sim.

Continuamos andando – três amigas até tarde na rua, celebrando nossa


pequena e deplorável ilha.

Pude imaginar os meses seguintes com tanta clareza que quase me fez
explodir. Eu tinha amigas que
gostavam de mim e que estariam lá para mim e me defenderiam – até de
mim mesma.

Tínhamos quase virado a esquina, afastando-nos da casa da hekamista,


quando o retrato do meu futuro me

veio à mente. Nós seríamos melhores amigas, o verão chegaria e elas me


abandonariam. Diana iria para o

acampamento hípico. Ari, para o Balé de Manhattan.

Enquanto isso, eu passaria o verão no cabo Cod. Com pessoas felizes


transbordando dos hotéis, pousadas,

praias e lojas.

Só que eu estaria sozinha.

Parei de andar.

Elas pararam um passo ou dois depois e se viraram para olhar para mim. O
rosto pequeno, aquilino e

dramático de Ari, e a pele macia, os olhos grandes e o longo cabelo louro-


escuro e farto de Diana. Elas eram naturalmente bonitas, nunca entenderiam
como era não ser. Mas eu as amava por não entenderem, por

insistirem que sua visão de mundo era a certa, apesar dos meus anos de
evidências do contrário.

– Tudo ok, Kay? – Ari perguntou, acotovelando Diana pela própria piada.

– Tudo – respondi. – Tudo bem. Na verdade, estou ótima e sou uma pessoa
incrível. Agora sei disso.

Tranquilas, elas continuaram andando. Olhei novamente para a casa da


hekamista e tomei uma decisão.
Quando o dia clareasse, eu voltaria lá. Bateria na porta dela e não teria
medo. Tiraria o dinheiro da carteira da minha mãe e pediria exatamente
aquilo de que precisava. E foi o que eu fiz. Quatro dias mais tarde, dei para
Ari e Diana um biscoito assado com o feitiço de amizade, e pude manter as
minhas melhores amigas.

Depois que elas sofressem o feitiço, não poderiam me abandonar. Na


mesma semana, o acampamento hípico fechou por causa de percevejos, e a
tia de Ari decidiu se mudar para Nova York só no começo de

agosto, antes do começo do curso da sobrinha.

Eu não queria mudá-las – não queria obrigá-las a sentir coisas que não
sentiam. O feitiço não era para criar algo do nada e inventar uma relação
nova. Eu poderia continuar a ser eu mesma, e elas poderiam continuar a ser
quem eram, só que o feitiço as empurraria para mim pelo menos uma vez a
cada três dias, e elas não

teriam como ficar a mais de oitenta quilômetros de distância, pois a sorte e


o acaso as trariam de volta como flores que crescem na direção do sol. A
hekamista chamava aquilo de amarração.

Elas seriam leais. Seriam constantes. Não me largariam para viajar pelo
mundo. Não teriam como me largar

– o feitiço as manteria por perto.

Meus feitiços funcionaram melhor do que eu poderia imaginar. Eu tinha


Diana, Ari e um rosto mais bonito,

e estava feliz. Desde que a vida delas desse um pouco errado, nós
estaríamos juntas.

3. Markos

Um dia antes

Da primeira vez que prestei atenção nela foi do jeito como a gente olha para
as meninas gostosas: pelo canto do olho, um relance de cabelo e olhos
escuros, uma vontade de virar a cabeça e olhar fixamente. Foi só

quando obedeci a essa vontade e olhei com atenção que a reconheci. A filha
da hekamista.

A velha hekamista vinha sempre à loja de ferragens da minha família, e às


vezes aquela menina ia junto,

atrás da mãe, olhando com desconfiança para todo mundo. Ela sempre
usava lápis preto carregado no olho e

um longo casaco preto, com muitos botões, que se movia em volta dos seus
quadris, e seu cabelo preto era

curto e bagunçado.

De onde estava, na primeira base, eu a vi andar atrás das arquibancadas. Ela


era gostosa, mas quem tinha

tempo e energia para correr atrás da filha de uma hekamista? Seria preciso
ficar de olhos bem abertos e

proteger sua comida o tempo todo. Além disso, havia umas cem outras que
não eram filhas de hekamista na

escola e com uma beleza que não era tão… complicada. Então,
definitivamente, posso dizer que esse não foi o motivo por que me
aproximei dela. Minhas razões eram puramente altruístas. Quer dizer,
quase.

Win saiu correndo depois do treino, quase sem acenar, quando gritei:

– Amanhã à noite! – Como melhor amigo dele, eu tinha suas noites de


sábado para mim, mesmo quando ele

estava com preguiça e não queria vir ou ficava mal quando vinha.

Ele andava péssimo nos últimos tempos, e, como melhor amigo dele, eu
sabia que era minha obrigação
animá-lo. Ari também estava se esforçando, e, normalmente, com a junção
dos nossos poderes,

conseguíamos tirá-lo de qualquer fossa. Win sempre tivera a tendência de se


afundar em períodos sombrios,

desde que éramos crianças, então eu sabia o segredo para deixá-lo melhor:
não dava para pedir que ele ficasse feliz. Era preciso fazer alguma coisa.

Felizmente, eu tinha quase mil dólares escondidos na carteira. Se não me


desfizesse daquela grana, minha

mãe sem dúvida a descobriria e arrancaria minha pele. Por isso, vendo Win
de cabeça baixa, em silêncio, e

depois com os pneus de sua caminhonete cantando ao sair do


estacionamento, eu soube exatamente como

queria gastar aquele dinheiro.

A filha da hekamista parecia estar indo embora também, então corri na


direção dela. Os outros caras

ficaram longe. Eles sabiam que era melhor não me interromper quando eu
falava a sós com uma garota.

– E aí? – cumprimentei.

Ela ergueu a sobrancelha para mim.

– Meu nome é Markos. O seu é...?

– Estou querendo saber o que você quer. – Ela não falou com raiva, mas eu
saquei. Ela era uma mulher de

negócios.

– Queria saber se você podia me ajudar.


– Ah, duvido. Você parece muito bem sozinho – ela disse. Depois se virou e
começou a atravessar o campo

de beisebol. Minha casa ficava na direção oposta, contudo, eu a segui


mesmo assim.

– Mas você é filha da hekamista.

– E daí?

– E daí que eu queria fazer um pedido.

Pus a mão em seu braço, e ela se contraiu como se tivesse doído e se


afastou. Em seguida, virou-se e me

encarou. Sua beleza era meio assustadora, como se a qualquer momento ela
pudesse se transformar num

dragão e soprar fogo na minha cara, mas de um jeito sensual. Tínhamos


passado pelo campo de beisebol e

pelo campo de futebol, e estávamos a alguns passos da desolada terra de


ninguém que fica entre a escola e a parte pobre e desagradável da cidade,
cheia de casinhas miseráveis de madeira. Ela me lembrava dos lugares em
que Win tinha morado a vida toda. Jardins mortos. Tinta descascada.
Janelas tortas. Sempre havia um

triciclo quebrado perto das portas dos fundos e uma mangueira enrolada na
garagem.

– Eu quero fazer uma festinha amanhã à noite – eu disse. – Eu, meu melhor
amigo e a namorada dele.

– Parece divertido.

– Quero que seja uma festa especial. – Tirei o dinheiro do bolso e os olhos
da filha da hekamista se
arregalaram. – Aposto que sua mãe pode me ajudar a torná-la extremamente
especial.

Ela mordiscou o canto do lábio inferior, esfregando o braço dolorido com a


outra mão.

– Você tem alguma coisa em mente?

Contei minha ideia, e ela assentiu distraidamente, sem tirar os olhos do


dinheiro.

– Então você fala para ela?

Seus olhos se voltaram para os meus e se apertaram.

– Você é o Markos Waters, certo? Das Ferragens Waters? Aquele que tem
um bando de irmãos?

– O próprio.

– Notei a semelhança da família.

Ela estava se referindo ao cabelo preto, aos olhos azuis e ao nariz aquilino.
Se nós quatro ficássemos um do lado do outro, pareceríamos com fotos de
um só tiradas em anos diferentes.

– Obrigado.

Ela sorriu e inclinou a cabeça para o lado.

– Não foi um elogio.

Sorri para ela, porque a conversa tinha saído do rumo e ela podia virar um
dragão a qualquer momento. Eu

gostava de uma boa paquera, como qualquer cara, mas tinha a impressão de
que ela não estava flertando
comigo e, na verdade, nem gostava de mim, o que era estranho. Eu era
incrível. Todo mundo sabia disso.

– Você consegue ser bem irritante, sabia?

– Espera, me deixa anotar isso no meu diário manchado de lágrimas.

– O que você estava fazendo no treino, aliás, se não estava à espera de


negócios?

– Não é da sua conta – ela respondeu, tirando o dinheiro da minha mão. –


Mas eu também sou uma

hekamista. Vou fazer o feitiço para você.

– Ah, merda! – eu disse. – Está bom.

Ela não se parecia com as hekamistas que eu imaginava. Não tinha a idade
daquelas velhas que a gente vê

defendendo os direitos das hekamistas na tevê, nem tinha a ver com as


hekamistas maldosas ou

incompreendidas dos filmes. Não era decrépita, enrugada, encarquilhada,


nem magrela e sem seios, ou maníaca pela natureza. Não era nem para
existir hekamistas jovens. Vinte anos atrás, um monte delas havia

tentado controlar o governo da França, e agora os supermercados e


restaurantes viviam sendo inspecionados, e em quase todos os lugares era
ilegal entrar num clã – as hekamistas que restavam estavam todas

enlouquecendo e definhando.

Então toda a vida dessa menina era ilegal.

Ela contou as notas devagar, sem erguer os olhos.

– Você não vai me denunciar, vai? – ela perguntou, tentando não demonstrar
preocupação.
– Ah, claro. Isso é um golpe. Meu irmão policial está ouvindo pela escuta,
louco para prender a hekamista

menor de idade que está tentando transformar o time de beisebol do colégio


em um bando de escravos

sexuais.

– Estou falando sério.

– Ora, eu nunca faria isso. Não sou puritano, não ligo para o que você faz.
Negócios são negócios.

A hekamista dobrou as notas no meio e as colocou num dos bolsos do


casaco. Aqueles olhos de quem

cuspia fogo se suavizaram.

– Você sabe alguma coisa sobre hekame?

– Não. – Eu sorri. – Você vai me ensinar?

– Vai sonhando.

– Então temos um trato?

Ela fez que sim, eu a cumprimentei com a mão e comecei a me afastar.

– É um prazer fazer negócios com você.

– Echo – ela disse. – É o meu nome.

– Echo. Vejo você amanhã.

Eu sabia que ela faria o que eu tinha pedido, e não só por causa do dinheiro.
Ela me parecia alguém que

cumpria com a palavra e só dizia a verdade.


Está certo que, na época, eu pensava muita besteira. Achava que o mundo
se curvaria aos meus pés se eu

precisasse. Quando imaginava alguma coisa, fazia. Quando queria alguma


coisa, pegava. Se a realidade não se alinhava com o que eu tinha em mente,
o problema era a realidade, não eu, e mais cedo ou mais tarde ela teria que
ceder às minhas exigências, assim como a filha da hekamista havia feito.

Eu não entendia nada. Sempre tivera sorte. O mundo não se curvava aos pés
de ninguém, nem mesmo aos

de Markos Waters.

Na noite seguinte, Win morreu.


4. Win

Minha lembrança favorita de Ari é de uma dança, o que não é surpresa


alguma. Não é de nenhuma das
apresentações dela, que eram bonitas e complicadas, como esculturas em
movimento, mas da Festa de Boas-

Vindas do penúltimo ano. Estávamos saindo fazia alguns meses, e eu


gostava dela – e muito –, mas a festa

mudou tudo.

A noite não tinha começado muito bem. O terno que minha mãe achara no
bazar e o buquê caseiro que

minha irmã Kara tinha feito para Ari com as rosas da vizinha faziam com
que eu me sentisse um impostor,

como um vigarista que conta mentiras para assumir a vida de outra pessoa.
Culpei essas coisas pela nuvem

negra que me seguiu até o ginásio, mas a verdade era que eu estava
embaixo dessa nuvem fazia dias – talvez semanas.

(Talvez a vida toda. Desde que me lembro, sinto um peso sobre mim.
Alguns dias, ele mal se nota na

balança; em outros, parece pesado como um saco de areia. Aquele dia


começou com um saco de areia.)

O fato de meu namoro com Ari parecer a maior farsa de todas não ajudava.
Ela era tão bonita, talentosa,

forte e blá-blá-blá. Foram essas coisas que me atraíram nela, mas, agora que
estávamos juntos, sua beleza, seu talento e sua força me distanciavam. Eu
era medíocre em todos os sentidos. Jogava como interbases no

beisebol (decentemente) e tocava trompete (mal). Tinha uma irmã e uma


mãe que eu amava, além de tirar

boas notas e ter amigos leais. Ari era excepcional. Ela era uma das melhores
bailarinas do país. Tinha superado um passado trágico. Era cheia de vida, a
parte do quadro em que o artista havia passado o dia inteiro antes de me
rabiscar às pressas no canto.

Na noite da festa, quando chegamos ao ginásio, Ari encontrou suas amigas


e foi dançar. Eu e Markos

ficamos num canto jogando as rapidinhas do Markos.

– Menina mais gostosa do ano? – Markos perguntou.

– Ari.

– Qual é? Fala sério.

– Estou falando sério. O que você quer dizer sobre minha namorada?

Ele revirou os olhos.

– Certo. Vou reformular. Menina mais gostosa com quem eu possa ficar?

– Serena Simonsen.

– Respondeu rápido, hein? Tem certeza de que não quer tentar?

– Cara, se liga. Você sabe que eu não faria isso.

Ele me saudou com a garrafa.

– O bom garoto de sempre.

Do outro lado do salão, vi Ari dançando, e deu para notar que ela estava se
esforçando muito para relaxar –

parar de contar as batidas, parar de prestar atenção nos rodopios. Ela queria
se misturar às pessoas normais.

O fato de eu a conhecer bem o bastante a ponto de saber o que ela estava


pensando me atingiu com uma
pontada no peito, e senti pena de Markos por achar que ser um “um bom
garoto” era algo ruim.

– Que tal a Kay Chapal? – eu disse, já que ela estava dançando perto de Ari.

Markos abanou a cabeça.

– Enfeitiçada demais.

– Metade das meninas daqui tomou um feitiço de retoque. Quem se


importa?

– A maioria delas era bonita antes. Você se lembra da antiga cara da


Kay…? – Ele retorceu o rosto numa

careta azeda.

– Você é um imbecil.

– Sou sincero. Não é culpa minha se as pessoas não gostam de ouvir a


verdade.

– Eu sugeriria a Diana, mas Ari mataria você.

– Além disso, exijo um mínimo de personalidade. – Ele riu e olhou o


relógio.

– Ah, não! – eu disse.

– Que foi? – Ele arregalou os olhos, fingindo-se de inocente.

– Por favor, me diz que você não está planejando alguma coisa.

Markos sorriu.

– Preciso fazer jus ao meu legado.

Faz anos que os irmãos mais velhos de Markos nos falam das pegadinhas da
Festa de Boas-Vindas. Brian
levou uma cabra de smoking como seu “par”, Dev prendeu na cesta de
basquete um projetor de laser que refletia xingamentos numa das paredes, e
Cal trocou todas as músicas do DJ pelo “ABC” dos Jackson 5.

– Mas eles não fizeram as deles no último ano?

Markos deu uma pancadinha do lado do nariz.

– O diretor vai me vigiar feito um falcão no último ano. O elemento-


surpresa faz toda a diferença.

Ele examinou a multidão atentamente; eu observei a dança, tentando ver o


que ele via. Todo mundo parecia

normal e feliz aos meus olhos. Todos se sentiam à vontade. Quando voltei a
olhar para Markos, ele havia

sumido. Pensei em tentar encontrá-lo, mas imaginei que isso estragaria a


surpresa, então respirei fundo e abri caminho para chegar até Ari. Ela gritou
“Win!” e pôs o braço junto ao meu, ainda dançando. Arrastei os pés para
trás e para a frente, tentando não pisar nos pés dela.

Ela estava com um vestido tomara que caia azul, mais longo atrás do que na
frente. Eu já tinha visto seus

ombros nus ligeiramente sardentos antes – em suas apresentações –, e


talvez por isso a imaginara sendo

erguida no alto, arqueando as costas e voando. Eu não podia fazer isso por
ela, então continuei arrastando os pés.

Quando começou a música lenta, ela me olhou e pôs as mãos nos meus
ombros. Eu coloquei as minhas na

cintura dela e balancei para trás e para a frente. O tecido azul de seu vestido
tinha o calor do seu corpo, mas cintilava tanto que achei que minhas mãos
poderiam escorregar. Tinha medo de apertá-la com muita força –
não porque achasse que iria machucá-la, afinal, eu sabia que ela era mais
forte do que eu, mas porque poderia demonstrar como eu queria abraçá-la, e
ela teria que se afastar, deixando claro que não me desejava tanto

quanto eu a ela. Nossa dança – nossa relação – se equilibrava numa


gangorra. Se eu colocasse peso demais,

cairia estrondosamente, e ela sairia voando.

– Sente a música no peito – Ari disse com um sotaque europeu, a voz dela
de “mestra do balé”. – O que a música te diz?

Prestei atenção.

– Ela diz: “Eu sou uma balada de boy-band com uma letra besta”.

Ari riu.

– Como se atreve? Estou pensando em tatuar essa letra na minha bunda.

– “Viro emo por você”?

– Na verdade é “desejo trêmulo por você”.

– Bom, claro que, saindo da sua boca, vira poesia.

Ela sorriu para mim – uma batida agradável no peito. Antes que eu perdesse
a coragem, me aproximei e a

beijei. Ela ainda estava sorrindo quando me afastei, e suas bochechas


pareciam mais vermelhas do que antes.

– Você é incrível, Win Tillman! – ela disse.

Era isso: eu estava prestes a dizer algo que deixaria claro como gostava
dela, e a gangorra desabaria. As

palavras enchiam meu peito, e eu não conseguia – ou não queria – evitar


que elas escapassem.
Algo molhado e espumante caiu do teto sobre meus olhos. Soltei Ari para
me limpar, e foi então que a

gritaria começou. Quando minha vista ficou limpa, pude ver Ari olhando
para cima na direção do teto escuro do ginásio, rindo. Grandes gotas
ensaboadas caíam das entradas de ar. Ao nosso redor, as meninas tentavam

proteger a maquiagem, e os caras escorregavam com seus sapatos pretos.

– Adorei, mas não entendi – Ari disse. – Cadê o Markos?

Peguei a mão dela e fomos deslizando até as portas do ginásio. Quase todo
mundo estava saindo aos gritos

para o estacionamento, então viramos na direção oposta, entrando na escola


escura. Numa bifurcação do

corredor, ao ouvirmos vozes, paramos.

No corredor à direita, um pouco além, Markos estava de costas para um


armário, com os braços cruzados

diante do peito. Um policial estava diante dele.

– … sorte que era eu e não outro designado para a escola. Foi muita
idiotice, Markos – o policial dizia, e, antes de chegarmos perto o bastante
para ver, percebi que era o irmão mais velho de Markos, Brian. Apertei o
passo nos últimos dez metros que nos separavam deles, com Ari logo atrás
de mim. Brian virou para nós. –

Win, volte para a festa.

– Qual é o problema? – perguntei.

– Markos colocou máquinas de fazer bolhas de sabão nas entradas de ar


quente.

– Não sei do que você está falando – Markos disse.


– Sério? Então, se eu olhar o inventário na loja, não vai ter um monte de
equipamentos faltando?

– Boa sorte na procura. – A loja de ferragens da família de Markos era


famosa pela desorganização,

certamente Markos contara com isso. Brian também tinha essa noção, e sua
testa se franziu ainda mais.

– Eu devia levar você para a delegacia, Markos. Seria bom para você
aprender uma lição.

– Qual é, Brian?! Mas e as peças que você e Dev pregaram?

Brian olhou feio.

– É diferente. Você inundou o ginásio.

– Inundei? Foram só umas bolhinhas.

– Não são bolhinhas depois de passarem pelo tubo de ar quente, seu idiota.
É só sabão.

– Você é muito hipócrita.

– E você é muito besta. Foi um prejuízo de milhares de dólares, e ninguém


entendeu o que era para ser.

Você não consegue nem planejar uma pegadinha direito.

Markos pestanejou. Eu dei um passo à frente por instinto – ninguém podia


machucar meu melhor amigo,

mas, antes que eu chegasse perto dele, Ari se interpôs entre Markos e o
irmão.

– Não foi o Markos – ela disse. – Ele ficou com a gente a noite toda.

Brian revirou os olhos.


– Ele estava aqui quando o encontrei, não com vocês.

– Ele acabou de sair, juro. Ele não teria tido tempo de montar tudo aquilo –
ela insistiu. – E não faz sentido, Brian… quer dizer, policial Waters. Vocês
sempre pregaram suas peças no último ano, não foi? Então por que Markos
pregaria uma agora?

Brian levou um segundo para assimilar essa lógica, depois se voltou para
Markos.

– É verdade? – Markos não olhou para nenhum de nós nos olhos, mas fez
que sim. – O que você estava

fazendo aqui, então?

Markos pigarreou e olhou de um lado para o outro do corredor. No breve


segundo em que nossos olhos se

cruzaram, ele piscou.

– Eu estava com uma menina. Ela provavelmente ficou assustada ao ver


você e foi embora. Muito obrigado

por isso, aliás.

Brian soltou um som aborrecido e se virou para Ari.

– Então você vai se responsabilizar por ele.

Ari plantou os pés com firmeza no chão e fitou seus olhos.

– Não foi o Markos, policial.

Brian se virou para mim. Markos e Ari também. Era minha vez de decidir o
que fazer.

Mas, entre mim e Markos, nunca se trata de uma decisão, na verdade. Eu


sempre o defendo, e ele sempre
me defende.

– Ari está falando a verdade.

Brian nos encarou por um momento, depois deu meia-volta e desceu o


corredor pisando duro.

Quando ele ficou fora de vista, Markos sorriu.

– Foi divertido.

Ari deu um soquinho no ombro dele.

– Seu idiota. Eu acabei de mentir para um policial.

– Ele queria acreditar. Assim eu não sou um fracasso completo. – Markos


bateu continência e se

desencostou do armário, ajeitando o paletó. – Tenham um fim de noite


fantástico, pombinhos.

– Aonde você vai? – perguntei.

– Ah, eu nunca minto pra minha família.

Atrás de nós, ouvi uma risadinha: Serena Simonsen acenou do batente de


uma sala de aula escura, e Markos

retribuiu o aceno. Ari revirou os olhos e, quando Markos passou por mim,
pôs a mão no meu ombro e se

aproximou.

– Ela é legal. Pode ficar com ela – ele sussurrou no meu ouvido, como se a
decisão de Ari ficar ou não

comigo fosse dele (ou mesmo minha).

Eu o segurei pelo braço antes que ele pudesse sair andando.


– Talvez ela não concorde. – “Talvez ela não me queira de verdade. Porque
sou um medíocre. Porque sou um impostor.”

– Você está me tirando? Ela está super a fim. Se liga e olha só pra ela.

Eu e Ari ficamos vendo Markos e Serena entrarem na sala vazia, depois


voltamos por onde tínhamos vindo.

No caminho, segui o conselho do Markos e olhei para ela. Não para a ideia
que eu tinha dela. Não para a Ari que usava sapatilhas e flutuava no palco.
Não para a menina cujos pais tinham morrido quando ela era

pequena. Para a garota que eu tinha diante de mim. Encostada em mim.


Retribuindo o meu olhar.

Assim que voltamos ao ginásio, entrelaçamos os braços. Continuava caindo


água com sabão das entradas

de ar do teto. O vestido de Ari era tão macio e o chão tão escorregadio que
eu precisava segurá-la com toda a firmeza, senão ela escaparia e nós dois
cairíamos no chão. Pus as mãos nas suas costas. Ela me abraçou com a
mesma firmeza – suas mãos se entrelaçaram no meu pescoço, enrolando
meu cabelo, e sua bochecha

encostou no meu queixo – dava para sentir seu coração batendo através do
tecido do terno de segunda mão.

Todos que haviam se irritado por causa das roupas e do cabelo arruinado
tinham saído fazia tempo, mas

bastante gente ficara. Alguém apagara as luzes, provavelmente por medo de


um curto-circuito, então estava

escuro no ginásio, exceto pela luz dos celulares das pessoas, que
iluminavam os vestidos cintilantes. Havia um cheiro de lavanderia no ar e,
como o DJ tinha parado minutos atrás, dava para ouvir as pessoas rindo,
levando tombos e tentando dançar ao som de uma caixinha acústica portátil
que alguém tinha conectado ao celular. Era só uma questão de tempo até
Brian ou alguma outra autoridade vir nos expulsar, por isso aproveitamos
aquele momento.

Ari relaxou contra mim. Todo o esforço se esvaiu de seu corpo. Nós nos
fundimos um ao outro.

– Você salvou a pele do Markos – eu lhe disse.

– Brian pegou pesado com ele.

– Eu nem sabia que você gostava dele. Do Markos.

Ela suspirou mais fundo em meus braços. Seu cabelo estava molhado e
alisado, metade da maquiagem tinha

escorrido de seu rosto e estava passando para a minha roupa e seu vestido
tinha ficado molhado e disforme.

Mas eu nunca a vira tão bonita no momento em que ela ergueu a cabeça um
pouquinho para sussurrar no meu

ouvido:

– Não tanto quanto eu gosto de você.

Sua pele ensaboada estava colada na minha. Seus braços me prendiam. Ela
tremeu de leve, talvez um

calafrio. Ela não era de pedra e mármore, não era perfeita e distante. Estava
ali, na minha frente, e me

escolhera.

– Eu te amo – eu disse.

Ela olhou para mim com um brilho nos olhos. Aliviado, notei que não
estava surpresa.

– Eu também te amo.
Balançamos para a frente e para trás. Dançando. No escuro molhado, nós
dois, juntos.

Essa é minha lembrança favorita de Ari, dentre outras mil e tantas


lembranças. É a que guardo na mão, o

talismã. Foi essa menina que eu amei.

5. Ari

Todo mundo ficava me dizendo que eu amava Win. Tia Jess, Diana. Até eu
mesma: teve o bilhete que

encontrei embaixo do travesseiro. Algumas vezes, pensei que voltaria a


sentir alguma coisa. Que um dia eu

acordaria e ficaria triste de novo. Como se o luto fosse um vírus e minha


vacina fosse apenas temporária.

O bilhete. Pelo menos eu tinha pensado em escrever o bilhete.

Acordei na manhã de sexta – a primeira sexta-feira de junho, logo depois


que as aulas acabaram – com o

pulso latejando, em parte por causa do velho efeito colateral e em parte


porque eu havia dormido com o braço embaixo do travesseiro, segurando
uma folha de papel na mão. Li o bilhete duas, três vezes. Tinha sido

arrancado de um caderno, e uma das margens estava rasgada. Reconheci a


letra – a minha – e, se eu me

concentrasse muito, conseguiria me lembrar de ter escrito aquelas palavras.


Mas era um tipo estranho de

lembrança, mais como assistir a um filme do que se recordar de algo


interno. Eu conseguia me lembrar de

mover a caneta pela página, só que não do que estava pensando enquanto
fazia aquilo.
Você tinha um namorado. Win Tillman. Você o amava. Por mais de um ano.
Ele morreu. É sofrimento

demais. Se esse feitiço funcionar, você não vai mais se lembrar dele.

Win. Win Tillman. Win, Win, Win…

Eu não conseguia ligar o nome à pessoa.

Também como se visse um filme, eu me lembrava de ter ido à casa da


hekamista atrás da escola e de pagar

por um feitiço com o dinheiro que havia encontrado no armário. Conseguia


me ver fazendo aquilo. Eu parecia estar muito triste. Mas, enfim, não
parecia uma lembrança de algo pelo que eu havia passado. A única coisa
que parecia real e verdadeira era o momento em que ela tinha me falado da
filha e em que eu havia me

lembrado da minha mãe. Esse trecho de conversa se abria em três


dimensões.

Não conseguia me lembrar de ninguém que se chamasse Win. Até onde eu


conseguia lembrar, nunca havia

tido namorado algum. Tinha ficado com meu parceiro de pas de deux no
Instituto de Verão no ano passado, mas havia sido algo superficial, nada
sério.

Eu devia estar muito triste. Me lembrava de querer chorar e de sentir como


se estivesse partindo ao meio.

Mas não lembrava por quê.

Eu não estava mais triste. Só confusa.

Então liguei para Diana. Ela atendeu na hora, com a voz estranhamente
baixa e séria.

– Como você está?


– Hã. Bem.

– Quer que eu passe aí?

– Não, não precisa.

– O funeral é amanhã.

– Hã? Ah, sim. Claro.

– Já sabe o que vai dizer?

– Eu… hã…

Diana pareceu não se importar com o fato de eu não conseguir encontrar o


que dizer.

– Todo dia, quando acordo, ainda não posso acreditar que ele tenha
morrido. Eu só… não acredito. Quer

dizer, a gente não precisa falar sobre isso, se você não quiser. Na verdade, é
melhor não falar. Desculpa ter entrado nesse assunto. Mas não quero que
você pense que estou ignorando. Porque estou pensando nisso.

Meu Deus! Eu não consigo nem… Não consigo nem acreditar.

Olho para o bilhete e depois pela janela, flexionando o punho


distraidamente. Ficou óbvio que eu não tinha contado para Diana que fizera
o feitiço. Será que eu deveria contar agora? O bilhete não dizia. Do jeito
que minha cabeça estava – cheia de começos e fins, buracos negros e pontas
soltas –, eu me sentia incapaz de

tomar uma decisão. Eu e Diana fazíamos tudo juntas, contávamos tudo uma
para a outra. Não?

Lá fora, o sol estava forte e a grama verde. Um dia bonito. Eu tinha aula de
balé dali a meia hora, e queria ir.

Pelo menos na aula eu não precisaria falar.


Eu poderia contar o que tinha feito depois para Diana.

– Também não – eu disse.

– Kay não para de me ligar. Quer fazer um ensopado para você.

– Que gentil da parte dela!

– É. Se quiser que eu vá aí, acho que ela pode me levar. – O carro de Diana
andava quebrando muito, o que

significava que ela vivia dependendo das caronas de Kay.

– Acho que não precisa.

– Por Deus, Ari. Não sei o que fazer.

– É. Eu também não.

– Não precisa fazer nada. Quer dizer, pode fazer o que quiser.

– Eu quero ir para a aula – eu disse.

Houve uma pausa do outro lado da linha.

– Você devia pegar leve por um tempo. Não se esforçar demais.

– Dançar balé é tudo o que eu realmente quero fazer agora.

Era sexta-feira. A última vez que eu me lembrava de ter dançado tinha sido
uma semana antes. Conseguia

me recordar da coreografia em que estávamos trabalhando, da música, de


todos os passos. Lembrava como

meu corpo se sentia. Era como… um único músculo. Meu braço, meu
tornozelo, meus quadris e minhas

pálpebras – unidos, rígidos e prontos.


Tudo ficaria bem se eu pudesse dançar.

Me despedi de Diana e coloquei as roupas de balé o mais rápido possível.


Na mesma hora, senti algo

estranho. Nada que eu conseguisse apontar, mas uma estranheza geral.


Imaginei que estava dolorida, no

entanto, nada doía de verdade, nada além do meu punho.

Uma sensação se abriu no meu estômago. Algo pior que o nervosismo, mas
não exatamente pânico. Não

ainda. Segurei o punho dolorido contra o peito, como que para protegê-lo.

Tia Jess pareceu surpresa quando desci a escada, prendendo o cabelo num
coque.

– Você vai? – ela disse.

Seus olhos estavam vermelhos. Toquei a pele em volta dos meus: inchada e
sensível. Eu também tinha

chorado.

Ela estava vestindo a mesma calça e a mesma camisa de manga curta de


sempre, mas pela primeira vez me

pareceu velha. Ela tinha só quinze anos a mais do que eu, porém a tristeza
ressaltava as rugas do seu rosto, e eu podia jurar que havia mais fios
brancos no seu cabelo do que da última vez que eu tinha olhado. Algum dia,
na lanchonete dela, a chamariam de tiazinha, e teriam razão.

– Pensei que a gente poderia conversar – ela disse. – Passar algum tempo
juntas. Tirei folga do trabalho.

– Não precisava. Obrigada.

– Claro que precisava. – Ela pareceu ofendida por eu agradecer.


Ficou claro que eu também não tinha contado a Jess que compraria o
feitiço. Ela achava que eu ainda

estava de luto, assim como ela. Eu precisava contar.

Minhas pernas começaram a tremer.

Depois.

Primeiro a dança. A dança, e depois eu contaria a verdade.

– Eu quero muito dançar – eu disse. – É tudo o que quero fazer agora.

Jess olhou fundo nos meus olhos, aquela encarada de quem não leva
desaforo para casa que costumava

acompanhar o bíceps flexionado para mostrar suas tatuagens, e então ela se


acalmou, murchou e assentiu.

– Volta para cá logo depois.

– Sim.

Dei um abraço nela, e ela me apertou com força. Na nossa minifamília de


duas pessoas, não éramos muito

de nos abraçar. Mas não foi só a minha falta de experiência que me


incomodou. Aquela sensação que eu havia tido no quarto – a estranheza, a
impressão de que tinha algo errado – desceu pelos meus braços, arrepiando
meus pelos.

– Eu te amo – ela disse.

– Eu também te amo – respondi, seguindo rápido para a porta. – Até mais.

O frio na barriga crescia cada vez mais.

As outras bailarinas me olharam fixamente quando entrei no vestiário.


– Meus pêsames – disse uma delas, depois todas as outras murmuram algo
parecido. Em seguida,

abaixaram os olhos para suas sapatilhas cor-de-rosa e tentaram não me


encarar.

Rowena, ex- prima ballerina do Royal Ballet e minha professora fazia nove
anos, me deu um abraço quando entrei (tão constrangedor e bem-
intencionado quanto o de Jess), mas não pareceu surpresa ao me ver. Talvez
ir ao balé tivesse sido a coisa certa a se fazer, afinal. Aquele era o meu
lugar, naquela sala de ensaio, com suas três paredes de espelhos e uma de
janelas. O antigo piano esperava no canto, como sempre, e, como sempre,

a sala cheirava a suor e talco.

Fechei os olhos e tentei me concentrar na dança, em preparar meu corpo


para o movimento. Mas minha

mente não se acalmava. Eu não conseguia pensar em nada em particular:


meus pensamentos vagavam numa

sala estéril, sem algo em que pousar, um lugar para descansar. Tentei sentir
os músculos e as articulações,

contudo só conseguia sentir aquela dor insistente e latejante no pulso.


Normalmente conseguia ignorá-la –

tinha anos de prática nisso –, mas não dessa vez.

Quando começamos a nos aquecer, minha respiração ficou superficial. Eu


ainda não sabia o que era, mas

havia algo errado.

A música do piano. Pronto. Ela estava vívida na minha cabeça: os mesmos


acordes, as mesmas melodias,

os mesmos movimentos de sempre. Ela se mostrava completa na minha


cabeça, elegante, precisa.
Comecei a me movimentar.

Primeira posição. Segunda. Quarta. Para a frente. Para a direita. Para a


esquerda. Para trás.

Mantive os olhos fechados e me concentrei nos passos.

Eu precisava relaxar. Mergulhar nos movimentos.

Em torno do oitavo compasso, senti uma pressão no punho dolorido – a


mão de Rowena – e abri os olhos.

– Fica de olho no espelho, por favor – Rowena disse.

Fiz que sim, mantendo o rosto estoico, embora este fosse o conselho que ela
dava quando alguém fazia

uma besteira tão grande a ponto de perder completamente a noção do


próprio corpo.

Eu me vi no espelho refazendo o aquecimento. Levei vários compassos para


me tocar, de tão acostumada

que estava a me ver da maneira como me movia normalmente. A imagem


mental suave precisou de tempo

para ser destruída e substituída pelo que eu encarava diante de mim: uma
mixórdia de cotovelos, joelhos aos trancos, braços estabanados, pulsos
desajustados. Quanto mais eu me forçava para alinhar o corpo, pior

ficava. Na verdade, para o meu cérebro, eu estava dançando perfeitamente


bem. Mas, em algum ponto entre minha mente e meu corpo, os sinais se
confundiam e se perdiam.

Quando o aquecimento acabou, não consegui me mover. As outras meninas


foram logo para a parte

seguinte da aula. Eu olhei para o meu reflexo no espelho.


Não. Aquela não era eu. Não podia ser. Eu estava destreinada. Ia voltar.
Precisava me esforçar mais.

Saímos da barra e nos alinhamos no chão para uma coreografia simples.


Rowena fazia pequenos gestos

com a mão e dizia o que queria (“Tombé, pirueta, relevé e estender, pas de
bourrée e balancé, balancé…”). Eu fazia a contagem, esperando a minha
vez.

Assim que atravessei o piso, soube que não estava apenas destreinada.

Soube por que tinha sido estranha a sensação de me vestir para o balé.

Soube que havia cometido um erro terrível.

Na minha cabeça, eu conseguia ver os passos, conseguia sentir como


funcionariam juntos. De olhos

fechados, era quase como sempre havia sido.

Mas, com os olhos abertos e uma parede de espelhos à minha frente, dava
para ver como meu corpo

realmente estava. Duro. Espasmódico. Sem suavidade, sem transições


graciosas. Todos os ângulos errados.

Braços rodando demais. Pernas curvadas. Se não fosse tão aterrorizante,


teria sido engraçado, como a cena de uma comédia romântica que mostrava
que a protagonista mentia grotescamente dizendo que sabia dançar.

Eu me concentrei e me esforcei mais. Mas o reflexo no espelho parecia tão


desconjuntado quanto antes. Eu

não conseguia fazer correções se não tinha como regular, não dava para
consertar o que, na minha cabeça,

parecia perfeito.
Quando me esforcei ainda mais, ignorando os sinais que meu corpo estava
dando e me baseando apenas no

espelho, dei um jeito de acertar uma das mãos no meu próprio rosto e perdi
o equilíbrio, caindo de cara no chão.

O baque do meu quadril no solo – isso eu senti. A humilhação – essas


sinapses estavam funcionando perfeitamente.

O piano parou. As outras meninas estavam olhando para mim, ainda caída
no chão, com os rostos cheios

de compaixão e também de repulsa. Quem cai no meio de uma coreografia


simples? Não eu. Eu ia para a

companhia jovem do Balé de Manhattan. Ia sair dali e deixar todo mundo


orgulhoso.

Eu não confiava em mim mesma para me levantar. Rowena surgiu ao meu


lado. Ela pegou meu cotovelo e

me ergueu até que eu ficasse em pé, fazendo parecer que só estava me


apoiando. No entanto, sem ela eu teria ficado no chão, debatendo-me como
uma tartaruga de costas.

No corredor, ela não me soltou nem quando sentei no banco. Seus dedos
eram como adagas na minha pele.

– Está tudo bem – eu disse. Mesmo assim, ela não me soltou. – Eu estou
bem.

Com cuidado, ela soltou meu braço.

– Você pode esperar o tempo que for preciso, Ariadne.

– Não quero esperar tempo nenhum.

Rowena abanou a cabeça.


– Às vezes, o corpo sabe mais do que a mente.

Aquilo soou como um daqueles provérbios de dança capazes de explicar


tudo, desde um quadril duro a um

colapso nervoso. Mesmo assim, achei que ela poderia ter razão. A pulsação
do punho dolorido parecia se

espalhar por todo o meu corpo, e eu quase não conseguia sentir mais nada.
Nem mesmo vergonha.

– Essa é uma daquelas coisas para as quais é impossível a gente se planejar


– ela disse. – Uma das tragédias da vida.

– Sim, mas… Nova York.

– Quando você vai?

– Primeiro de agosto.

– Dois meses. Tempo de sobra para se preparar.

– Eu e Jess… estamos planejando isso há anos. É a minha chance. Eu


preciso estar pronta.

– Então você vai estar – ela disse apenas. – E eu preciso voltar para a aula.
Fica aí e depois a gente

conversa mais, ok?

Fiz que sim, mas, logo que ela saiu do vestiário, eu me levantei e saí
correndo, estabanada, porta afora.

Meu corpo não parecia mais um só músculo, nem mesmo vinte músculos.
Parecia que eram milhares. As

partes de mim que não estavam funcionando não estavam destreinadas –


estavam completamente fora de
controle.

Eu tinha trocado a capacidade de dançar por um menino idiota. Um menino


com quem eu teria terminado de

qualquer jeito quando me mudasse para Nova York. Sabe-se lá como,


aquele menino tinha valido mais que

nove anos de esforço, cinco horas de ensaio por dia, apresentações,


competições e dor, tudo o que eu sempre sonhara ser, a única coisa em que
tinha sido boa em toda a minha vida. Para esquecer meu passado, eu tinha
apagado meu futuro.

Meu eu do dia anterior tinha sido uma estúpida egoísta e idiota.

6. Markos

Meus irmãos me levaram à igreja para o funeral de Win. Me sentaram num


banco. Me cercaram como se

fossem jogadores adversários fazendo marcação. Como o maldito serviço


secreto com seus ternos pretos. Eu

não me lembrava do funeral do meu pai, mas dava para ver que eles
estavam se lembrando, comparando,

trocando olhares tristes de quem conhece a dor do outro. Sua tragédia em


comum. O que os unia. Seu

clubinho idiota do qual eu nunca poderia fazer parte. Eles que se fodam.
Esse era o meu amigo. Esse era o dia de Win, não do nosso pai. Esse era o
meu sofrimento, não o deles.

Olhei fixamente para o teto. As vigas de madeira. A luz do sol. A faixa


branca enfiada num canto. Olhei para os meus pés. Sapatos pretos.
Cadarços pretos. Carpete cinza. Olhei para as minhas mãos. Cortadas.

Estilhaçadas. Sangrando em volta da meia dúzia de band-aids que minha


mãe tinha colado nelas até eu mandá-
la parar aos berros. Eu tinha destruído a velha casa da árvore do nosso
quintal na noite anterior. Com os

punhos cerrados, sem motivo nenhum.

Na frente do salão estava um caixão branco. Não precisei olhar para saber o
que havia dentro dele.

Ouvi o pastor limpar a garganta e percebi que, se ouvisse alguma palavra do


que aquele homem dizia –

aquele babaca metido a besta que nunca tinha conversado com Win, que só
o conhecia pelas fotos que

cobriam as naves da igreja e estampavam os programas do velório


depositados em todos os colos –, eu

começaria a gritar e não pararia nunca.

Passei por Cal, que não tentou me deter, e por minha mãe, que tentou me
pegar pelo braço, sem conseguir.

Saí correndo na direção oposta ao caixão até a saída, mas havia mais gente
entrando, ondas e ondas de gente, e lá fora estava ensolarado, quente e
insuportável, uma linda tarde de junho, as primeiras semanas do verão, que
maldito milagre de merda. Então me virei antes de chegar à última porta e
entrei num armário cheio de

panos e faixas. No escuro, me recostei num tecido até que só conseguisse


ver tudo preto, e conversei comigo mesmo:

Covarde.

Eu não estou com medo.

Então por que se esconder?

Não quero fazer parte dessa porcaria cafona.


Você está se escondendo. Não quer que ninguém te veja. Tadinho, pobre
Markos. Acha que ninguém notou

quando você saiu?

Estou pouco me lixando para o que eles pensam.

Até para os seus irmãos? Eles estão lá dentro, se perguntando qual é o seu
problema.

Eles não ligam para o Win.

Mas você liga. Para de ser covarde e vai lá.

Por quê?

É a sua obrigação. Você precisa ir.

Por que eu?

Porque você é um Waters. Engole essa.

Respirei fundo mais algumas vezes por entre o tecido e estava prestes a sair
quando a porta se abriu.

Estiquei a mão para fechar a maçaneta e quase dei de cara com Ari
Madrigal.

– Oi – eu disse.

Ela ficou olhando para mim. Seus olhos estavam vermelhos, mas sua
tristeza não me deixou com raiva

como a do resto do mundo. Ela era digna. Ela, assim como eu, tinha amado
Win o suficiente para ser digna

dessa dor.

– O que você está fazendo aqui? – ela perguntou.


Encolhi os ombros.

– Por que abriu a porta?

– Para fugir por um minuto.

– Pois é.

Ari olhou de um lado para o outro e soltou a porta.

– Desculpa te incomodar – ela disse.

– Espera! – Peguei seu braço. Ela olhou para minha mão e eu a soltei. –
Você vai… vai lá para casa depois?

– É, acho que sim.

– A gente devia conversar – eu disse.

Seus olhos se arregalaram, e ela engoliu em seco. Quase como se tivesse


medo.

Covarde.

– Não acho que seja uma boa ideia.

– Por que não?

– Eu… quero ficar sozinha.

Tive um lampejo da noite em que Win tinha morrido, a areia, a chuva e o


céu, como havia sido feliz e depois terrível. Então dei um salto, estendi os
braços e a abracei.

Ela não retribuiu o abraço. Seu corpo ficou tenso. Quando me afastei para
ver seu rosto, até seus dentes

estavam cerrados.
– Desculpa – eu disse, e a soltei.

Ela recuou e entrou na igreja arrastando os pés, junto com os últimos


retardatários. O pastor havia

começado seu discurso monótono, mas eu não conseguia ouvir as palavras


do lugar onde estava, na entrada.

Ari não era alguém que eu escolheria para ser amigo. Ela tinha vindo de
brinde com Win. No começo,

parecia só mais uma garota, mas, quando passamos tempo com as pessoas,
elas nos surpreendem – fazem

algo inesperado ou incomum que lhes dá profundidade. Ari tinha me feito


rir, e isso a tornava real.

Ela devia ser minha amiga mais próxima agora. Não minha melhor amiga –
não como Win. Só que ela era a

única pessoa que me conhecia de verdade.

Ela entrou na igreja, sentou e ouviu. Ela conhecia Win. Se ela conseguia, eu
também poderia conseguir.

Dei um passo para dentro da igreja.

Paletós pretos.

Cabeças abaixadas. Caixão branco.

Kara, a irmã de Win, sentada na primeira fileira, respirando como uma


criança pequena, tentando manter o

controle.

Dei um passo para trás, para a entrada. Depois outro e mais outro, até sair
correndo na direção do carro da minha mãe, no estacionamento. Eu não
tinha as chaves, então sentei no chão, com as costas apoiadas numa
das rodas, e tentei respirar.

Covarde.

Eu não era tão forte quanto Ari. Win sempre dizia que ela era durona, capaz
de suportar tudo, e acho que

ele tinha razão. Eu não conseguia. Nem mesmo pelo meu melhor amigo.

7. Kay

Sentei na fileira atrás das minhas melhores amigas perto da frente da igreja.
Ari mantinha o olhar vazio

enquanto as pessoas a abraçavam várias vezes, e Diana chorava demais para


conseguir falar com quem quer

que fosse. Fiquei por perto, esperando que alguém precisasse de mim.

Eu gostava de Win. Ele era quieto e doce e me cumprimentava no corredor


ou perguntava como iam as

coisas. Quando saíamos em grupo, o que era raro, ele me incluía nas
conversas. Nada excepcional, mas fazia diferença para mim.

Além disso, eu não teria nenhuma amiga se não fosse por ele. Se Ari não
vivesse ocupada com Win, Diana

nunca teria ficado sozinha o bastante para me ligar. Eu sempre fui grata por
isso.

Na última semana, a morte dele havia me assombrado, a ideia de que ele


tinha partido para nunca mais

voltar. As grandes asas negras do medo pairavam sobre mim. Eu não sentia
esse aperto no peito desde que

minha irmã, Mina, partira para sua turnê mundial, e não sentia falta disso.
Isso poderia ter acontecido com Mina durante tantos anos, quando ela
estava doente: o enorme pássaro preto poderia tê-la pegado em suas

asas e ela desapareceria. Eu tinha me imaginado muitas vezes no funeral de


Mina, tinha imaginado tão bem

que, quando sentei atrás de Diana e Ari na igreja para o funeral de Win, me
senti como se já tivesse estado lá antes.

Contudo, na verdade, esse era o primeiro funeral a que eu ia. Mina havia
melhorado e fora embora. Ela tinha acabado de voltar para passar o verão,
mas eu não conseguia mais olhar na cara dela.

Na fileira à minha frente, Diana colocou o braço em volta do ombro de Ari,


e senti uma pontada de ciúme.

Estendi o braço para pôr minha mão sobre a de Diana, mas Ari tirou o braço
de Diana, e então deixei minha

mão cair no colo. Ari não olhou para Diana, mas Diana a observava
atentamente por entre as lágrimas,

procurando alguma pista a fim de saber o que fazer e como ajudar. Eu


olhava as duas, pensando o mesmo.

O pastor falou, houve longos silêncios terríveis, e então Ari chegou ao topo
da escada que levava ao altar antes de dar meia-volta e se sentar sem dizer
uma palavra. Ela tropeçou no caminho e toda a igreja levou um susto. Ari,
cujos pés faziam com exatidão todas as coisas impossíveis que ela queria
que eles fizessem, quase havia caído. Tropeçou no caminho de volta ao
banco, com o cabelo na frente do rosto.

Um tio falou, ou talvez fosse um vizinho – eu estava começando a perder a


noção. Sons de choro surgiam

dos fundos e das laterais da igreja. O caixão ficava na frente, um retângulo


branco e reluzente. Senti as asas sombrias batendo mais perto de mim.
Queria que o caixão estivesse aberto para eu ter certeza de quem estava lá.
Eu não podia pensar na morte, ou esse pássaro gigante chegaria perto
demais, então pensei no que queria

dizer a Ari e Diana, em como a parte mais frágil, fraca e inútil de mim se
sentia. Coisas que nunca tinha

contado para elas, porque não se fala sobre coisas deprimentes como as
experiências de quase morte da irmã, o tempo passado no hospital todo dia
depois da aula, vendo-a definhar. Ninguém gosta de ter uma pessoa

chata dessas por perto. E eu queria que elas me quisessem por perto, não
apenas me aturassem porque meu

feitiço as obrigava a isso. Pelo menos o feitiço me dava a oportunidade. Eu


precisava tirar proveito dela.

Mas, enfim, eu era fraca.

Quando minha irmã Mina ficou doente, há quatro anos, fomos a uma
hekamista. Bom, primeiro fomos ao

médico, fizemos todos os exames, choramos, pedimos uma segunda


opinião, voltamos para o primeiro

médico, fizemos mais exames, começamos a quimioterapia – e depois


fomos à hekamista. Na época, Mina

insistia para que eu a acompanhasse quando tivesse consultas importantes.

– Katelyn tem idade suficiente. Ela tem o direito de ir – argumentava, mas


eu podia ver em seus olhos, de

tão próximas que éramos, que ela tinha medo de ir sozinha.

Então fui com ela no dia da consulta. Não era a hekamista da cidade, que
morava na vizinhança atrás do

colégio. Essa tinha sido muito bem recomendada como a melhor das
melhores – meu pai não teria aceitado
menos. Ela tinha um consultório de verdade perto de um hospital em
Boston. O dinheiro nunca fora problema

para os meus pais. Ou talvez fosse o único problema – a única coisa que
sabiam fazer quando a tragédia

chegara era gastar.

Tínhamos ouvido dizer que as hekamistas não conseguiam curar as pessoas,


mas também tínhamos ouvido

alguns boatos: que bastava encontrar a hekamista certa. Que os clãs davam
a seus membros uma longevidade

maior. Que as hekamistas haviam parado de curar as pessoas em retaliação


ao governo, por ele ter tornado

ilegal entrar para os clãs vinte anos antes. E Mina estava doente – talvez
morrendo, não sabíamos –, então precisávamos tentar.

– Nada disso é verdade – a hekamista disse. Seu rosto era tão cheio de rugas
que quase não se viam os

seus olhos. Ela usava um jaleco branco e falava em um tom seco de


repreensão. – Hekamistas trabalham

como consultoras espirituais. Atuamos em três áreas: tradicionalmente, o


corpo, o cérebro e a alma; ou o

físico, o mental e a aura, como prefiro chamar. Digamos que seu orçamento
tenha muito para a inteligência, mas nada alocado no departamento de
beleza. – Pude jurar que todos na sala olharam para mim, menos Mina.

– Nós reajustamos a forma como os recursos estão distribuídos a fim de que


parte do estoque cerebral seja

convertido em beleza. Quando alguém está tão doente quanto Mina, sinto
muito, minha querida, mas o custo
para as capacidades mentais dela poderiam ser catastróficos.

– Mas ela viveria? – minha mãe perguntou. Mina tinha herdado o cabelo
preto e macio, a pele morena e

suave e o nariz elegante de mamãe, mas não seu bom gosto para moda ou
seu hábito obsessivo de praticar

jardinagem. Eu tinha herdado a pele pálida, a tendência à acne e os olhos


miúdos do meu pai, e não sei mais o quê, pois ele passava a maior parte do
tempo em Boston, ganhando muito dinheiro para que minha mãe

pudesse praticar jardinagem em paz.

A hekamista abanou a cabeça.

– Ela viraria um vegetal.

Mina suspirou, e meus pais começaram a discutir entre si aos sussurros.

– Se houvesse uma chance, o médico teria nos falado – eu disse à Mina.

– E perdido todos os futuros negócios? – ela perguntou, passando a mão na


cabeça recém-raspada. Ela

ainda não tinha encontrado um chapéu que não lhe provocasse coceira.
Sussurrou para que a hekamista não a

ouvisse: – Odeio este lugar.

– Como assim? Não tem nada de mais.

– Você não se sente esquisita? É para cá que as pessoas vêm quando estão
desesperadas. – A hekamista

estava nos vigiando, e Mina sorriu para ela enquanto abaixava a voz ainda
mais. – Não conseguem viver

consigo mesmas.
– Muita gente compra feitiços.

– As pessoas fazem coisas extremas quando se odeiam.

– Eu odeio o câncer – eu disse. – Você odeia o câncer, não é?

– É como odiar a neve ou a cor vermelha.

Ela não explicou o que queria dizer com isso, mas tive muito tempo para
pensar a respeito, e acho que ela

quis dizer que o câncer era apenas uma coisa, como a neve, e que não fazia
sentido odiá-lo, porque ele não se importava conosco. Odiar o câncer não o
mudaria, só faria com que nos apegássemos ao ódio. Na hora, não

consegui pensar em uma resposta, e então nos levantamos, agradecemos à


hekamista pelo seu tempo e nos

dirigimos rapidamente para o carro, que estava no estacionamento do outro


lado da rua.

Pensei nessa conversa quando fui comprar meu feitiço de beleza três anos
depois. Mina não tinha falado

muito quando contei a ela o que iria fazer. Não foi nenhuma surpresa,
considerando que havia meio mundo

entre nós. Seu e-mail de resposta só tinha uma linha: “Estou sem tempo.
Boa sorte. Te amo”, como se estivesse mandando um telegrama e pagasse
por palavra, e não frequentando cafés que ofereciam serviço de

internet irregular em Uttar Pradesh. Ela poderia ter escrito mais, mas não se
importou. Ela tinha me

abandonado.

Voltei a pensar nessa conversa quando fiz o feitiço de amarração de


amizade. Enquanto esperava a
hekamista preparar o encantamento, numa pequena sala de estar
completamente diferente do consultório

esterilizado a que tínhamos ido por causa de Mina, me lembrei do que


minha irmã dissera. Todos os que já se sentaram nessa cadeira estavam
desesperados e se odiavam.

Pensei naquilo e, por mais que quisesse discordar de Mina, sabia que era
verdade. Eu estava desesperada e

me odiava. Tudo o que ela havia dito sobre os usuários de feitiços era
verdade.

A hekamista abriu uma caixa nova de biscoitos e colocou alguns no balcão.

– Chamamos esse tipo de feitiço de amarração – ela disse, mexendo nos


biscoitos como se fossem uma

pedra entalhada. – Você come um e dá o outro para cada uma das suas
amigas, e elas não vão mais poder te

largar.

– Quanto tempo vai durar?

– Boa pergunta. Muito, muito boa. Quanto você pode pagar?

– Tenho quatro mil dólares. – Eu tinha tirado o limite máximo diário da


minha poupança e esvaziado a

carteira da minha mãe por quatro dias seguidos. Ela nem tinha se tocado. A
pilha alta de notas amassadas

estava no meio da mesa, deslocada na casinha esquálida.

A hekamista parou de se mexer e se virou para me olhar.

– É o bastante para fazer um feitiço permanente.


– Para mim é o suficiente – eu disse.

– As pessoas crescem. As pessoas mudam. Você tem certeza?

– Certeza absoluta. – Empurrei a pilha de notas, fazendo o dinheiro se


esparramar na mesa. – Eu não vou

ficar sozinha.

A hekamista não disse nada e se voltou para o balcão. Depois me mostrou


um prato com quatro biscoitos.

Eu os cutuquei.

– Tem um a mais – eu disse.

Ela olhou para o prato, como se tentasse se concentrar e contar objetos em


movimento.

– Ah… estou vendo. Bom, guarda um com você. Nunca se sabe.

– Meu feitiço de beleza afetou meu cérebro – eu disse (e tinha um D em


química como prova disso) –, mas

de que departamento essa amarração vai roubar?

A hekamista hesitou por um segundo, e pensei que poderia não me contar


ou que talvez mentisse. Ela já

estava com o meu dinheiro – por que se importaria? Mas, quando


respondeu, parecia estar sendo sincera.

– As amarrações funcionam com localização e controle. Essa vai manter


seus entes queridos perto de você,

usando sorte, coincidência e acaso. Elas vão te ver a cada três dias, não vão
ficar a mais de oitenta
quilômetros de distância de você. Você pode descobrir que outras partes da
sua vida… se deslocam.

– O que isso quer dizer?

– A amarração continua amarrada. Outras coisas se desamarram.

– Que coisas? Como assim, se desamarram?

A hekamista encolheu os ombros. Ela não ia – ou não podia – explicar


mais.

Tentei não me preocupar com aquilo e pensei em tudo o que eu havia dado
a Mina – anos da minha vida,

todos os meus pensamentos, esperanças e desejos – e em como, depois de


se recuperar, ela me deixara para

trás imediatamente. O câncer não a havia levado como eu pensava que


faria, mas ela saiu completamente da

minha vida mesmo assim. E ela era minha irmã, dizia me amar. Se ela tinha
sido capaz disso, qualquer um

seria.

Comi meu biscoito em duas mordidas.

As pessoas que iam às hekamistas estavam desesperadas. Disso eu não


poderia discordar, Mina. Mas é fácil

não se odiar quando a gente é bonita e tem amigos. Não era culpa minha se
eu me odiava. Eu precisava ser

corrigida para poderem me amar – como a quimioterapia de Mina a


corrigira. Eu não via diferença entre a

quimioterapia e o biscoito. A quimioterapia era pior que o hekame para o


corpo. Então Mina se odiava quando passara pelo tratamento? Não. Ela
odiava o câncer, disso eu tenho certeza. E eu odiava minha cara e minha

solidão.

Para sorte nossa, isso tinha cura.

8. Ari

No funeral, não foi difícil demonstrar que eu estava abalada, como se


tivesse perdido algo importante.

Ninguém poderia perceber que meu luto era pela dança, e não por Win.

Se pudessem examinar o que meus olhos vermelhos e o rosto fechado


escondiam, teriam me visto saltando

e rodando em uníssono com o grupo, elegantemente romântica num pas de


deux, cintilando como uma

miragem num solo. Teriam me visto repetir mentalmente várias e várias


vezes a minha queda na sala,

humilhante, inexplicável. Teriam me visto catalogar todos os meus


músculos um a um, sabendo que não

conseguiria mais controlar nenhum deles como precisava.

Contudo, não podiam ler minha mente e então deixei que acreditassem que
eu estava triste por causa de

Win. Fingi.

Eu tinha planejado contar a verdade sobre o feitiço para Diana e Jess, mas
depois tinha ido para a aula e

caído. Quando cheguei em casa, Jess tirou os olhos do livro e perguntou


como havia sido.
– Bem – eu disse. Antigamente, as aulas eram dolorosas, alegres, exaustivas
ou monótonas, mas, no fundo,

nunca tinham ido além de “bem”.

Minha boca não conseguia formular as palavras para explicar que, na


verdade, eu não estava nada bem.

– Que bom! – Jess disse. Ela respirou profundamente, como se precisasse


ganhar forças. – Você tem aula

na quarta à tarde?

– Tenho aula de manhã e Sweet Shoppe à tarde. Por quê?

– Porque marquei uma consulta para você com uma terapeuta.

– Não – eu disse.

– Você está passando por um momento difícil.

– Não, não, a dança vai me ajudar. Você não devia ter gastado dinheiro com
isso. Vamos precisar dele em

Nova York.

Jess puxou os fios do tecido puído da parte de trás do sofá.

– Talvez você devesse pensar se é uma boa hora para se mudar.

– Claro que é uma boa hora. Primeiro de agosto. A data está marcada. O
Balé de Manhattan me escolheu.

Eles me convidaram. – Minha voz tremia, alta demais, e eu não conseguia


parar de falar. – Eles podem não me querer em outro ano. Aprendi tudo o
que posso com Rowena e preciso de treinamento profissional agora,

para não criar hábitos viciados, e você sabe que eles escalam a maioria da
companhia com base na turma
jovem, então posso conseguir um emprego de verdade lá no ano que vem.
Não quero esperar. Não posso ficar

parada definhando por mais um ano. Jess, por favor. Nós precisamos ir.
Precisamos.

Durante meu discurso, dei um passo em direção a Jess, que estava sentada
no nosso velho sofá de veludo.

Havia um abajur a meio metro de distância, quase fora do meu alcance, se


eu estivesse atenta. Mas claro que eu não estava: bati um dos braços nele ao
gesticular e tropecei na beirada do carpete. Jess se levantou e

colocou os braços em volta de mim, agarrando-me para que eu não caísse.


Me endireitei e me soltei.

– Nós vamos nos mudar, Ari. Vamos fazer o que for necessário. – Ela
entreabriu um sorriso. – Mas,

mesmo assim, você vai precisar ir à terapia.

– Eu não vou ter o que dizer.

– Tenho certeza de que vai pensar em alguma coisa. Fala sobre o balé, se
não quiser falar sobre o Win.

– A terapeuta não vai entender.

– Então explica. Não é bom guardar as coisas dentro da gente.

A verdade ficava mais distante a cada suspiro. Como eu poderia abrir a


boca agora e dizer “Eu fiz uma

coisa terrível”? Como eu poderia contar a ela sobre Win e os efeitos


colaterais, depois de defender tanto a ida para Nova York? Jess me amava e
entenderia, mas teria pena de mim. Ela, Diana e todos os outros. Eles

saberiam que eu não tivera força suficiente para lidar com uma tristezinha.
Saberiam que me importava mais com um menino qualquer do que com a
dança, o que era impossível. Eu não tinha ideia de quem era sem a

dança. Não sabia viver sem ela, porque nunca tinha vivido sem ela.

E não viveria. Isso não podia ser o fim – não podia ser para sempre. Eu
voltaria a dançar. Precisava voltar a dançar. Eu ia me mudar para Nova
York no dia primeiro de agosto, e isso era o mais importante – muito mais
importante do que um desconhecido chamado Win.

– Tudo bem – eu disse para Jess. Tudo bem, eu ia para a terapia. Tudo bem,
ia fingir.

Deixaria que acreditassem que eu me lembrava desse tal de Win Tillman.


Isso faria com que as pessoas se

sentissem melhor, não mudaria aquilo em que já acreditavam, e eu não teria


de explicar o inexplicável. E daria um jeito de voltar a dançar.

Comecei a levar a dança a sério logo depois da morte dos meus pais. Jess se
mudara de San Francisco para

cuidar de mim, terminando com a namorada por isso. Eu só tinha visto Jess
algumas vezes na vida, então ela era praticamente uma desconhecida de
luto pela irmã mais velha e pelo cunhado, chorando pelo fim do

namoro.

Na rua, aonde quer que eu fosse, tudo me fazia lembrar que eu era diferente
dos outros. Todos tinham pais.

Menos eu. Já era terrível quando alguém fazia um comentário casual sobre
a mãe ou o pai no recreio. Pior era quando uma pessoa obviamente sabia
sobre o que acontecera comigo e, por isso, evitava cuidadosamente

dizer “mãe”, “pai” ou mesmo “fogo”, o que, no fim das contas, significava
me evitar por completo.

Jess não me evitava, mas também não sabia o que fazer comigo. Ela me
levara à hekamista para apagar o
trauma com um feitiço, para que eu não tivesse mais pesadelos em que via a
casa cair com meus pais dentro.

Depois me deixava sozinha e eu ficava andando devagar pela casa nova,


tentando não me assustar a cada

rangido do assoalho. Para esconder todos os sons estranhos, ouvia muita


música no iPod, que, não sei como, tinha conseguido salvar da antiga casa –
o único objeto que resistira ao incêndio. Eu dormia com a janela

aberta mesmo no inverno, para o caso de precisar pular para fora no meio
da madrugada. Verificava o alarme contra roubo umas três ou quatro vezes
por noite.

Jess não sabia como as crianças agiam e não me conhecia antes daquilo, ela
não sabia que esse meu comportamento não era normal. (Além disso, nunca
notou que eu verificava o alarme contra roubo. Ela tinha

o sono pesado – o que me deixava ainda mais nervosa.) Alguma hora ela
teria percebido, ou eu teria começado a agir de maneira ainda mais
estranha. Em vez disso, mergulhei na dança.

Eu vinha fazendo aulas para iniciantes havia alguns anos, como todo
mundo. Mas, naquele ano, a aula se

transformou em outra coisa. Durante uma hora do meu tempo, eu não tinha
que ouvir barulhos estranhos.

Não importava quem eu era ou o que tinha acontecido comigo. Eu


conseguia me mover de um jeito lindo.

Desde o princípio, percebi que sabia controlar meu corpo melhor que as
outras meninas.

Quando disse a Jess que queria ir ao balé todo dia, ela não hesitou.
Concordou e acrescentou mais aulas ao calendário gigante que havia colado
na parede da cozinha. Ela me pegava na escola, me levava para o balé e
depois me buscava, sem nunca reclamar. E nós viramos uma família.
Foi assim que o balé me salvou. Não só porque eu e Jess éramos obrigadas
a interagir durante aquela hora

diária que passávamos no carro, mas também porque a dança em si –


quando se faz com todo o coração e

todo o ser, e quando o treinamento adentra seus ossos – transporta a pessoa.


Eu saía do meu corpo e entrava na música. Ela virou aquilo em que eu
imergia, o receptáculo dos meus sentimentos caóticos, instáveis e

prestes a explodir. Eu conseguia entrar no balé de maneira fluida, e ele me


transformou em alguém forte,

capaz e livre.

Eu me lembrava disso. Eu conseguia voar.

Sem a dança, voltava a ser uma sombra rastejando pela casa, estranha e
sozinha, um nada. Durante

semanas depois do funeral, assisti a vídeos de prime ballerine famosas na


internet, ou das filmagens que tia Jess fazia das minhas apresentações e
competições.

Eu reconhecia a sensação de fazer aqueles movimentos, me lembrava deles


como de uma música favorita,

mas, enquanto via, também sentia uma raiva explosiva e crescente que
começava na nuca, se espalhava pelo

rosto e descia pelos meus braços e pelas minhas costas.

O pior era que não havia de quem ter raiva. Eu mesma havia feito aquilo
comigo. A Ari de antes tinha tirado a única coisa que fazia sentido para
mim. A única coisa em que eu era boa. A única coisa que eu amava.

Examinei cuidadosamente as imagens que tinha daquela Ari. Depois das


minhas apresentações, tia Jess
continuava filmando enquanto eu saía para me encontrar com ela no
camarim. Então pude ver uma pessoa

exatamente igual a mim fazendo coisas das quais eu não tinha nenhuma
recordação. Porque lá, nos bastidores, estava Win.

Ele era a primeira pessoa que eu abraçava quando chegava, e


continuávamos de mãos dadas enquanto eu

aceitava os parabéns de Jess e das minhas amigas. Era bonito, de um jeito


meio amarrotado, com o cabelo

castanho-claro caindo ligeiramente sobre os olhos cinzentos, a camisa


amassada e os sapatos gastos.

No entanto, era um estranho. Eu nunca tinha visto Win falar ou se mexer na


vida real, não que eu

lembrasse, pelo menos. Nos vídeos, ele parecia quase tímido, embora talvez
fosse o contexto – ficava para

trás, sorria muito, mas me deixava interagir com meu público.

“Ari, o que você está vestindo? Vira e sorri para a câmera, querida!” – Jess
cantarolou e deu um zoom perto do meu rosto. Eu a afugentei e me recostei
no braço de Win para dar um beijo nele. “Gente, eu sei que sou

jovem e, posso não parecer, mas sou a figura materna aqui e estou bem na
sua frente.”

A antiga Ari ignorou Jess. Distraidamente, ficou na ponta dos pés e


sussurrou algo no ouvido de Win. Dei

um replay nesse momento umas doze vezes, na esperança de entender o que


estava dizendo, mas nunca

consegui.
“… materna aqui e estou bem na sua frente.” – Aproximação, beijo, ponta
dos pés, sussurro.

“… aqui e estou bem na sua frente.” – Beijo, ponta dos pés, sussurro.

“… estou bem na sua frente.” – Ponta dos pés, sussurro.

“… bem na sua frente.” – Sussurro.

Era um segredo eterno entre aqueles dois – que nunca mais voltariam a ser
dois. Mas eu não tinha como

sentir nostalgia, tristeza ou saudade. Como poderia sentir falta de um


momento precioso como aquele com

alguém que, até onde eu sabia, nunca havia conhecido?

Eu ficava revendo aquela cena principalmente para encontrar alguma pista


– algum vestígio – da razão pela

qual aquela menina me punia desse jeito, tirando a dança de mim e me


deixando sem nada.

E talvez ali, em algum lugar, houvesse um sinal de como me recuperar.

9. Win

Mais uma coisa sobre Ari. Só mais uma.

Quando ela foi convidada para a companhia jovem do Balé de Manhattan,


em janeiro do nosso penúltimo

ano, ela não conseguia parar de chorar.

Ninguém mais sabia disso. Nem Diana, nem Kay, nem sua tia Jess. Não
contei para Markos, nem para

Kara, nem para minha mãe.


Ficamos sentados no quarto dela enquanto sua tia estava no trabalho. Ela
deitou em posição fetal no canto

da cama, de costas para a parede. Me acomodei no lugar do travesseiro,


com a cabeça dela no meu colo.

– O… o… o… o que está a… a… acontecendo comigo? – ela perguntou,


tomando fôlego

desesperadamente quase a cada palavra.

– Você está triste – eu disse.

– N… n… n… n… n – ela disse, querendo dizer não. – Eu v… vou s… s…


ser uma… uma… uma prima

ballerina.

– Eu sei.

– Eu v… v… v… vou m… m… morar em Nova York, ter aulas c… c…


com monstros sagrados e… e…

e…

– Eu sei.

– Eu nunca ch… ch… choro.

– Eu sei que não. Você é Ari Madrigal.

Ela voltou a chorar e eu tirei seu cabelo da frente do rosto. Um cabelo


macio, umedecido pelas lágrimas.

Sua pele estava quente, e a respiração entrecortada chacoalhava seu corpo


inteiro.

– Se eu fosse você – eu disse, alto o bastante para ela me ouvir –, estaria


com medo. Medo de sair de casa, de ficar rodeado de desconhecidos. De
fazer besteira. Ou de não fazer besteira.

Ela soluçou, ainda chorando, mas deu para ver que estava me ouvindo.

– Só que felizmente eu não sou você. Você é que é. Não tem motivo para ter
medo. Eles escolheram você

porque viram o seu talento. A sua paixão. Terão a sorte de contar com você
lá.

– Mas eu estou c… c… com medo também.

Suspirei, soprando os cabelos secos em torno do seu pescoço.

– Que bom!

Ela parou de chorar, surpresa.

– Bom?

– Temos uma coisa em comum.

Ela ergueu a cabeça e se virou, sentando no meu colo com as pernas


dobradas em cima de um dos meus joelhos e a cabeça bem em cima da
minha clavícula. Agora dava para acariciar suas costas, e foi o que eu fiz.

– Você deve me achar uma idiota – ela disse entre soluços minúsculos.

– Eu nunca vou te achar idiota.

– Nunca?

– Nunca.

– E se eu me mudar e você me esquecer?

– Nunca.

– E se eu for para Nova York e começar a torcer pelos Yankees?


– Nem assim.

Ela me abraçou, com o queixo aninhado no meu pescoço.

– Então você nunca vai me deixar?

– Nunca.

– Você é meu então.

Virei a cabeça para dar um beijo nela. Salgado, quente.

– Sempre.

10. Ari

– Nós sempre vamos para a fogueira. – Diana abriu as portas do meu


guarda-roupa e ficou revirando as

coisas violentamente. – Sempre. Sem discussão. Vamos buscar Kay daqui a


dez minutos.

Girei na minha cadeira de escritório, desejando que Diana fosse embora


para eu poder voltar a ver meus

vídeos de dança. Fazia um mês que tinha tomado o feitiço de memória, as


semanas passavam arrastadas,

como se eu estivesse presa num quadro, com a expressão fixa. Ainda não
conseguia dançar. Faltava menos de

um mês para primeiro de agosto – o dia da nossa mudança, programada


meses antes. Jess tinha começado a

juntar caixas, que empilhou atrás das portas de todos os cômodos.

Mas Diana queria ir para a fogueira. O Dia da Independência dos Estados


Unidos – quatro de julho – só
existia para os turistas, então a família Waters usava o dia três para fazer
uma fogueira na praia para os amigos da família. Eu lembrava a maior parte
do dia da fogueira de dois anos atrás, mas o último era cheio de buracos. Eu
nem tinha considerado ir, até Diana invadir meu quarto.

– Eu sei que só faz um mês desde que Win… – Diana parou, depois passou
rápido para o próximo

raciocínio. – Só faz um mês, mas é muito importante para mim que você vá.
Quer dizer, não só para mim,

mas para todo mundo. Ver você lá… significa que vamos sobreviver, sabe?
– Ela abandonou meu guarda-

roupa, sentou na cama e abraçou os joelhos. – E acho que não só para nós,
mas para você também. Faz

semanas que você não sai, Ari.

– Eu vou para o trabalho. E para a aula. – Não era verdade: eu não ia para a
aula desde que havia caído, um dia depois de ter tomado o feitiço. Mentiras,
mentiras, mentiras.

– E aí vem direto para casa. Senta comigo e com Kay por quarenta e cinco
minutos, uma hora no máximo,

e depois a cara que você faz quando pode nos expulsar… Você fica aliviada.
– Diana abanou a cabeça. – Sinto sua falta.

– Desculpa.

– Não peça desculpa. Você está passando por um período difícil. Mas não
quero que pense que está

sozinha. – Ela deu de ombros, insegura. – Você sempre vai ter a mim.

– Eu sei.

– E a Kay também.
– Certo. Kay.

Diana levantou de um salto e vasculhou as camisetas, que jogou na minha


direção.

– Experimenta estas.

Abracei-as junto ao peito.

– Não sei se consigo ir, Diana.

– Vou fingir que não ouvi isso. Lá, lá, lá, lá... – Ela tapou os ouvidos até seu
olhar recair sobre o meu punho, vermelho de tanto que eu o havia beliscado.
Ela abaixou as mãos e ficou séria. – Ari, você… está tudo bem?

Eu estava ótima no sentido em que ela estava perguntando, e péssima em


outros aspectos que não poderia

contar.

– Então vamos ao cinema – eu disse. – Faz semanas que a gente não vai.

Diana abanou a cabeça, entreabrindo um sorriso.

– Faz mais de um ano que não vamos ao cinema.

– Ah, é? – Disfarcei minha confusão e tentei parecer triste. – Ah, certo,


desculpa, claro. Win…

– Vocês sempre ficavam estudando aos domingos.

– Certo. Enfim, vamos voltar a ir ao cinema.

Diana mordeu o lábio.

– Mas eu quero ir para a fogueira.

– Poxa, Diana. Por que você se importa tanto?


– Por que você não se importa nada? – Diana retrucou.

Porque eu não me lembrava de me importar. A fogueira era algo da antiga


Ari. Eu queria ficar sozinha.

Mas não podia dizer isso para Diana e, normalmente, não precisaria dizer.
Ela nunca tinha discutido assim

comigo antes. A Diana de que me lembrava costumava fazer o que eu


queria, nos tempos em que eu queria

fazer coisas. Quando ficamos amigas, no quarto ano, ela só me ligou seis
meses depois de começarmos a

frequentar a casa uma da outra. Ela chorava fácil e odiava conflitos.


Geralmente, eu precisava insistir para que ela expressasse sua opinião, para
ter certeza de que não estava passando por cima dela. Ela não era do tipo
que assumia o comando.

Essa Diana parecia diferente. Estava mais agressiva, e também tinha o


cabelo, que ela havia tingido de

vermelho-vivo uma ou duas semanas depois do funeral. Eu não entendia o


que acontecera. O cabelo já era

bastante estranho – ela nem tinha me consultado antes de pintá-lo, e uma


coisa tão importante parecia digna de uma discussão. Queria perguntar por
que ela o havia pintado, mas fiquei com medo de ser algo que já devesse
saber, e admitir que não sabia me obrigaria a confessar tudo o mais de que
não conseguia me lembrar.

– O seu cabelo – eu disse. – Vivo esquecendo e sempre me surpreendo.

Diana enrolou uma mecha ruiva nos dedos e puxou-a para a frente a fim de
examiná-la.

– Sabe o que é engraçado? Me acostumei na hora. Como se meu cabelo


sempre tivesse sido ruivo embaixo
daquele loiro sem graça.

– Está bonito.

– Para de tentar mudar de assunto. Por que você não quer ir?

– Eu estou… com medo de ver todo mundo – eu disse.

– Puxa, é a fogueira dos Waters, e todo mundo te adora! – ela disse,


acotovelando-me de leve. – Além do

mais, você precisa me fazer companhia, porque o Markos vai estar lá.

– Ah, Diana! – eu disse, com um resmungo.

– Que foi? – ela perguntou. – Não posso sonhar?

– Markos é ótimo, mas ele trata as meninas muito mal.

Diana riu.

– Você acabou de dizer que ele é ótimo! Como pode ser ótimo e mau ao
mesmo tempo?

– Contexto.

– Não se preocupa, ele provavelmente vai me ignorar, como fez das últimas
cem vezes. Mas você devia ir

para me dar apoio moral mesmo assim, não acha?

Eu não lembrava como ou por que tinha ficado amiga do Markos, porém
sabia que éramos próximos. Ele

era divertido e menos babaca do que parecia – mas nós não estávamos
namorando. Diana era fofa e reservada

demais. Se eles ficassem, ele a magoaria sem nem perceber. Ela precisava
de alguém sério e doce como ela.
– Não tem mais ninguém no mundo de quem você esteja a fim?

– Não, estou gamada no Markos para sempre. Isso significa que você vai?

Olhei para a parede, onde havia uma foto minha abraçada a Win. Ele estava
usando um uniforme de beisebol

e boné. Ela parecia feliz – quer dizer, eu parecia feliz. Se fosse para a
fogueira, teria que passar uma noite toda fingindo ser aquela garota,
evitando perguntas reveladoras e lembranças embriagantes, torcendo para
ninguém notar meus passos estabanados ou minha falta de memória. Isso
não me deixaria nem um pouco mais próxima

da dança.

Mas era isso ou mais uma noite de vídeos, autocensuras e perguntas sem
resposta. Mais uma noite com

Diana diferente. Na minha memória, éramos as mesmas de sempre. No


entanto, na dela, fazia um ano que não

íamos ao cinema. Ela não sentia necessidade de pedir minha opinião sobre o
cabelo. Tinha ficado amiga de

Kay para compensar minha ausência.

Eu só tinha mais algumas semanas até me mudar para Nova York – talvez
pudesse ir e fingir ser outra

pessoa, pelo bem dela.

– Está bem – disse.

Diana deu um gritinho de alegria, me abraçou e me vestiu, já eu abandonei


a segurança do meu quarto para

voltar a uma vida da qual não tinha nenhuma recordação.

11. Kay
Diana foi me buscar para irmos à fogueira. Ari já estava no banco da frente
do Impala da mãe de Diana. Eu as via regularmente nos últimos meses,
assim como a hekamista havia prometido em janeiro. Pelo menos uma

vez a cada três dias, o que quer que acontecesse, eu recebia uma ligação, ou
Diana precisava de uma carona ou então eu encontrava uma delas no
mercado. Às vezes, achava que o feitiço não teria como funcionar, e que
aquele seria o dia em que tudo viria abaixo, mas sempre, sem falta, ele
funcionava.

Eu ajudava o máximo possível. Ficava disponível em todos os horários e


todo dia. Passava no trabalho de

Ari e na casa de Diana e enviava mensagens e e-mails, fazendo o possível


para que me respondessem, para

que me convidassem. Sem o feitiço, talvez deixassem minhas ligações e e-


mails sem resposta. Talvez nunca

retornassem.

No entanto, elas sempre me ligavam de volta. Mesmo se nem sempre


tivessem o que dizer.

Eu estava ansiosa pela fogueira. Nunca tinha ido antes. Durante anos, nem
soubera que ela existia e então, quando Mina foi embora e comecei a
prestar atenção, fiquei com medo de ir sozinha. Talvez aparecer do nada
fosse contra as regras. Seria muito melhor ir com Ari e Diana, que eram
especialistas no evento. Até o dia da festa, eu não sabia se elas iriam, mas
nunca devia ter desconfiado do feitiço.

Por algum tempo, pensei que o fato de Ari ter perdido Win poderia nos
ajudar. Não num sentido horrível –

não estava feliz com a morte dele nem nada desse tipo. Não desejava aquilo
a ninguém. Mas tinha pensado que a morte dele amansaria Ari, faria com
que ela repensasse suas prioridades e relações, e nos deixaria mais
próximas. Sem dúvida, ela teria mais tempo para a gente.

No entanto, não foi isso que aconteceu. Pelo contrário, ela tinha ficado mais
dura desde a morte de Win.

Mais fria. Às vezes, sentia que ela nem estava presente e que a Ari que
víamos era uma substituta sua.

– Obrigada pela carona – agradeci. Elas não responderam. – Ari, muito


linda essa sua camiseta.

Ari se chacoalhou como estivesse acordando de um cochilo.

– Valeu.

– Então, vocês sabem o caminho? É sempre no mesmo lugar? Onde todo


mundo estaciona?

– Você jura que nunca foi? – Diana perguntou. – Onde estava com a cabeça
enfiada todo esse tempo?

Eu não soube dizer se ela estava brincando ou tirando sarro. Virei para Ari,
mas ela já estava olhando fixo pela janela, ausente de novo.

– Nem sei. Ah! – Tive dificuldade para pôr o cinto de segurança, que tinha
puxado minha camiseta até

quase dar a volta. Diana e Ari, como sempre, estavam lindas. – Gostei do
seu cabelo, Di.

Diana se virou no banco – pensei que fosse para agradecer o elogio.

– Diana – ela disse.

– Desculpa – respondi. – Gostei do seu cabelo, Diana.

Diana voltou a dirigir, e Ari ficou olhando pela janela. Essa era a hora em
que eu devia dizer alguma coisa fofa, inteligente ou engraçada. Elas dariam
risada e seríamos um trio. Devia haver palavras mágicas em algum lugar
para fazer isso acontecer. O feitiço tinha me dado a oportunidade de estar
no carro com elas. Agora, tudo de que eu precisava era aproveitar essa
oportunidade para tornar aquilo real.

Quando paramos no estacionamento da praia, Ari continuou no carro depois


que Diana desligou o motor.

– Tem certeza? – ela perguntou.

Diana fez que sim.

– Vai na frente. A gente te encontra lá.

Ari respirou fundo e começou a descer pela praia com cuidado. Diana
suspirou, recostou-se no banco e

ficou olhando para ela.

– Ela parece… desligada – eu disse.

– Pois é – Diana assentiu. – Pensei que sair faria bem a ela, mas agora não
tenho mais certeza.

– Ela vai ficar bem. Você está fazendo tudo o que pode.

Diana passou a mão no cabelo recém-pintado de vermelho-vivo.

– Vou dar um pouco de espaço para ela hoje. Não quero forçar demais.
Talvez você devesse fazer o

mesmo.

– Certo.

– E talvez um pouco de espaço para mim também.

– Ah… claro.

– A gente não precisa fazer tudo juntas.


– Claro que não.

Meu rosto deve ter transparecido a mágoa, porque Diana olhou para mim
pelo retrovisor.

– Você vai ficar bem. É só uma festa.

– Eu sei – respondi, e dei risada. Só uma festa. Como se eu soubesse o que


isso queria dizer.

Diana desceu do carro, aguardando que eu saísse para travar o alarme, só


que não esperou por mim para

descer pela praia em direção à fogueira.

– Encontro vocês depois – eu disse, mas ela já estava de costas, com o


longo cabelo ruivo balançando atrás de si. Odiei o som da minha voz, tão
desesperada, digna de pena. Odiei o modo como o cabelo de Diana

balançava tão naturalmente, enquanto o meu tinha precisado de um feitiço


para imitar o dela. Odiava até Ari por se afastar de nós de maneira tão
obstinada. Mas também eram essas as coisas que eu mais amava em

Diana e Ari. A naturalidade de Diana. Ela não se deixava afetar. A


obstinação de Ari. Ela tinha coragem. O

feitiço fazia com que elas fossem elas mesmas – essa era a sua melhor
qualidade. Ele não era intrusivo. No fundo, era até inofensivo.

Diana se misturou num grupo, e eu fiquei sozinha no canto. Já devia estar


acostumada com isso – afinal,

toda a minha vida antes das duas tinha sido assim –, mas nasci para estar
entre pessoas. Sozinha, eu não era nada.

Peguei um chope do barril, servido por um dos irmãos mais velhos de


Markos Waters, e fiquei observando
Diana e Ari do canto. Diana saiu andando com Markos. Uma menina punk
de casaco preto estava de olho em Ari. Mina também estava lá, usando uma
camisa masculina de brechó como vestido, falando com algumas

pessoas que tinham estudado com ela.

Quando ela me viu, atravessou o grupo para chegar até mim.

– Ei, Katelyn, como você…

– O que você está fazendo aqui?

Mina riu.

– Vim para a festa da fogueira. Assim como você.

– Mas você não vai ficar, vai?

– Por que não?

– Porque essa é a minha festa.

Ela olhou ao redor.

– Parece a festa de todo mundo.

– Você entendeu o que eu quis dizer.

– Na verdade, não. Qual é o seu problema, Katelyn?

– Meu nome é Kay.

– Ah, então prazer, Kay. Você viu minha irmã? Ela era uma menina tão
legal… Queria saber onde ela foi

parar…

– Ha-ha. Por favor, Mina. Me deixa em paz!


Pude ver o nó na sua garganta fina.

– Por quê?

– Porque por uma noite eu não quero ser a irmãzinha da Mina Charpal, está
bem?

Não dava para ver seus olhos no escuro. A luz do fogo se refletiu em seus
piercings quando ela assentiu.

– Tá.

Ela jogou o copo plástico no chão e me deu as costas. Imaginei que fosse
entrar em alguma roda de

conversa, mas acenou para um grupo de pessoas e depois começou a subir a


duna na direção do

estacionamento.

Bom, eu tinha pedido para ela me deixar em paz. Isso era bom.

Mina estava dando as costas para mim. Eu devia estar acostumada com
isso.

Enquanto eu a via ir embora, um menino tropeçou e trombou em mim, e


derrubei meu copo. Ele pediu

desculpas rápido, então olhou para o meu rosto. Precisei me conter para não
fazer careta, porque às vezes

esqueço que agora sou bonita.

– Meu nome é Cal! – ele praticamente gritou. – Cal Waters. Você está na
turma do Markos?

– Sim. Meu nome é Kay.

– A gente já se conhecia? Acho que eu devia me lembrar de você.


Olhei para Cal. Ele era bonito. Era um Waters. Isso significava alguma
coisa.

– Meu nome é Kay – repeti, como uma idiota.

– Oh- Kay – ele disse, rindo, e acendeu um cigarro com o isqueiro. – Não
acredito que não estou me

recordando de uma menina tão bonita como você.

Ele estava bêbado. Diana e Ari provavelmente me avisariam para sair de


perto dele. Ari tiraria sarro e Diana faria piadas no meu ouvido.

Mas Diana e Ari não estavam lá. Talvez eu precisasse fazer novos amigos.

Abri um sorriso agora impecável e toquei o braço de Cal como já tinha


visto outras meninas fazerem.

– Agora você pode lembrar – eu disse.

12. Markos

Win tinha morrido e todo mundo à minha volta havia sofrido uma
lobotomia ao mesmo tempo. Não, não era

bem isso. O que acontecera era o seguinte: Win tinha morrido, e eu me


tornara a única pessoa em toda a

cidade cuja lobotomia congênita se revertera espontaneamente. Conseguia


ver tudo que eles não conseguiam.

A morte de Win me abrira os olhos.

Ou talvez não tenha sido exatamente isso. Parece uma daquelas merdas que
os hippies falam. O que deve ter acontecido é isto: Win tinha morrido, e eu
era a única pessoa que se importava o bastante com isso para saber o
significado daquele inferno.
Win tinha morrido. Ora, eu conseguia dizer isso em voz alta. Ele tinha
morrido. Eu não tinha mais o meu

melhor amigo e nunca mais teria um amigo como ele. Só dá para ser melhor
amigo de alguém que você

conhece desde sempre, desde que se conhece por gente.

Minha mãe falava alto e me trazia comida. Meus irmãos me davam


soquinhos no braço e olhavam para o

nada. Até mesmo Ari – nós não estávamos nos evitando, mas não saíamos
nem conversávamos mais também,

desde o funeral, quando ela deixara claro que não estava interessada na
minha compaixão. Certo. Sem

problemas. Ari estava certa. Eu também me sentia mal quando olhava para
ela.

Era isso que a morte de Win significava: que o mundo era injusto. Os caras
errados se dão bem. Nada que

qualquer pessoa fizesse importava, porque, no fim das contas, todos


acabávamos do mesmo jeito. De que

adiantava amar, ser amado ou essa merda toda se a morte era tão
absolutamente eterna?

Fiquei perto do barril na festa da fogueira e observei todos rindo, todo


mundo que eu conhecia, todo mundo que eu e Win chamávamos de amigos.
Se eu perguntasse, eles diriam que estavam tristes pela morte de Win.

Mas, definitivamente, não pareciam tristes de onde eu os via.

Meus irmãos eram a vida da festa. Brian fazia vista grossa para os menores
que estavam bebendo. Dev
começava os jogos de futebol americano no escuro. Cal sorria e ia
cumprimentando grupo a grupo. Havia uma

galera em volta deles o tempo todo. Eles faziam todo mundo rir. Para eles,
não parecia esforço nenhum ser um Waters, ser aqueles que davam a festa,
que conheciam todo mundo, que não tinham nenhuma preocupação na

vida.

Brian foi o primeiro a vir falar comigo, largando um trio de meninas. Se ele
notou o olhar que lhe lancei –

uma encarada muito especial de quem diz “fica longe de mim, porra” –,
fingiu não ver.

– Maninho – ele disse, colocando o braço pesado em volta do meu pescoço.


– Na minha opinião

profissional, você não parece estar se divertindo loucamente.

– Talvez não esteja.

Ele continuou como se não tivesse ouvido.

– Na minha opinião profissional – repetiu –, você está emburrado.

– De que profissão você está falando? Policial?

– Ser um irmão mais velho é a minha profissão.

Tirei seu braço de cima de mim.

– Posso falar com seu gerente, então?

Ele franziu a testa, e isso obviamente o incomodava – os Waters não


franziam a testa em festas.

– Eu sei que você está chateado. Mas vai ficar tudo bem se você relaxar, tá?
E, se não estiver animado,
pode ir para casa quando quiser. Esquece a festa este ano. Eu te dou carona,
é só me avisar.

Expulso da minha própria festa pelos meus irmãos. De jeito nenhum.

Virei as costas para Brian e vi Diana North, a melhor amiga de Ari, olhando
para a fogueira. Ela tinha

pintado o cabelo de um vermelho ofuscante e estava usando uma camisa


aberta sobre a parte de cima de um

biquíni verde-limão. Ela sempre fora meio proibida para mim por causa de
Ari. E era quietinha e silenciosa, tímida a ponto de ser sem graça. Fazia
tudo que Ari mandava, e até então não tinha valido a pena irritar Ari para
flertar com ela. Olhei para seu cabelo ruivo e seu biquíni e pensei em Win,
em como tudo era inútil e impossível, e concluí: foda-se. Não tinha por que
perder tempo com alguém de quem eu realmente gostasse.

Alguém assim só me desapontaria. Eu poderia falar com Diana North e não


me importar com a forma como

aquilo acabaria ou começaria.

Esse pensamento devia ser horrível. Ari teria dito que eu estava sendo
canalha e levaria Diana embora. Mas Ari não estava por perto. Além disso,
por que eu teria que dar ouvidos a ela? Win estava morto. Ari não era mais
a voz irritante da minha consciência.

Deixei Brian conversando com um grupo de meninas que surgiu ao redor


dele e me aproximei de Diana. Ela

fingiu não me notar.

– Você está diferente – eu disse. Essa é uma daquelas frases que são
verdadeiras mas não comprometem

muito. Eu não gostava que usassem minhas palavras contra mim. Se eu


dissesse “você está bonita”, isso
poderia ser transformado em alguma bosta de nível nuclear.

Diana passou a mão no cabelo recém-tingido de vermelho, enrolando as


pontas nos dedos. Ela tinha um

cheiro gostoso – de xampu e loção bronzeadora, apesar de ser noite.

– Eu pintei o cabelo – ela disse. – Fazia séculos que queria fazer isso, mas
nunca fiz. Acho que tinha medo, por mais que pareça idiota ter medo de
uma cor de cabelo. Pensava que, se eu pintasse, não saberia mais

quem era, mas aconteceu exatamente o oposto. Eu me sinto… – Ela olhou


para mim como se tivesse

esquecido com quem estava falando ou como se tivesse ouvido as próprias


palavras saindo da boca de outra

pessoa. – Hum... enfim... Você está exatamente igual.

Isso definitivamente não era verdade, e não só fisicamente – eu tinha


perdido uns cinco quilos no último

mês –, mas num nível mais profundo também. Estava destruído por dentro,
como um brinquedo embrulhado

para presente que você chacoalha até quebrar, até que não sobre nada além
de pedaços de plástico rolando de um lado para o outro. Mesmo essa
fogueira de três de julho, que Brian fazia desde que eu tinha sete anos,

parecia diferente.

– Vamos dar uma volta – eu disse, o que, na linguagem da fogueira,


significava no mínimo uns amassos.

Diana ficou paralisada. – Vem – eu disse, pegando sua mão.

Fomos descendo pela praia sem conversar, passando por casais que se
beijavam deitados na areia ou em pé
no mar, com as ondas até os joelhos. Os que ficavam no mar eram sempre
os que estavam profundamente

apaixonados. Almas gêmeas jogando água umas nas outras e segurando os


calçados com as mãos.

Ari estava conversando com meu irmão Cal. Ela não me viu com Diana.
Estava curvada e parecia não estar

bem. Sua postura estava estranha. Acho que nunca a tinha visto assim antes.
Algum instinto automático me

fez especular o que haveria de errado com ela, até lembrar o que tinha de
errado com nós dois.

Mas ela não queria conversar. Tudo bem. Eu devia tentar ser mais como
Ari. Conseguir lidar com aquilo

sozinho.

– Acho que todo mundo sente falta do Win – Diana disse. Apontei para os
casais que estavam se divertindo,

e ela abanou a cabeça. – Acho que eles também, por dentro. À sua maneira.

– Eu sinto falta dele – admiti.

– Claro que sim.

– Não estou me debulhando em lágrimas, mas isso não significa que eu não
sinta falta dele.

– Você não precisa…

– Espera – eu disse.

Parei de andar e enfiei os calcanhares na areia. Diana parou também e olhou


para o meu rosto. Senti
vontade de ser cruel com ela. Cruel de verdade. Sua esperança e sua
sensibilidade eram visíveis e, se eu

quisesse, poderia pisar nela até fazê-la compreender o que o resto daquela
multidão lobotomizada não entendia: que tudo aquilo era em vão.

Talvez fosse esse o motivo por que a levei para o canto depois de passar
tantos anos ignorando-a. Talvez eu soubesse que podia fazer com que ela se
sentisse um lixo, como eu vinha me sentindo o tempo todo. Seria

fácil pra cacete. Tão fácil quanto tascar um beijo nela. Diana não tinha
nenhuma defesa. Eu podia agir feito um canalha – rir da cara dela, como
tenho certeza de que já havia rido antes – ou realizar seu sonho, dando-lhe
uma lembrança romântica que ela guardaria para sempre. Bom, não para
sempre, já que nada é eterno. Até o fim.

Me afundei na areia e Diana sentou ao meu lado. Se ela chegasse mais


perto, eu precisaria escolher – me

comportar como um canalha ou fazer seus sonhos virarem realidade –, mas


ela não se aproximou. Olhou para

o oceano escuro e ficou esperando.

Inspirei pelo nariz. Meu coração estava batendo como se eu tivesse subido a
duna correndo. Tentei me

acalmar, mas meu pânico só piorou. O chão balançou como se fosse me


jogar para fora do planeta.

– Logo mais a gente vai estar no último ano – eu disse. Era de longe a coisa
mais idiota que eu havia dito o dia todo e, se meus irmãos tivessem ouvido,
teriam rido da minha cara até ficarem com dor de barriga, mas

claro que Diana não tirou sarro de mim por isso. Ela parecia ter entendido
minha necessidade de conversa

fiada, porque não voltou a citar o nome de Win.


Nós conversamos. Sobre seu cabelo, seu gato, seu trabalho como babá, as
coisas de que ela gostava. Sobre

meus irmãos, a fogueira, o oceano, coisas que eu podia ver bem na minha
frente. Toda vez que ela se mexia

na areia, meu coração voltava a acelerar, mas em momento algum precisei


escolher que pessoa eu devia ser.

Eu não era responsável por nada nem por ninguém. Só fui eu mesmo.

13. Ari

A fogueira crepitava no meio da multidão. Era uma noite morna e, quanto


mais perto eu chegava do fogo,

mais quente ficava. Diana tinha escolhido uma jaqueta jeans, e eu estava
suando, mas não a tirei. Eu a apertei com mais força em volta dos ombros
para me proteger. Podia não ter nenhuma lembrança do dia em que

meus pais morreram, mas mesmo assim evitava o fogo.

A maioria das pessoas se desviava de mim. Tentei exalar um ar de


melancolia sofrida. Não sabia o que faria se um grupo grande me cercasse
dando-me os pêsames e sua comiseração, como no funeral. Não aguentava

mais mentir. Não era capaz disso e, se continuasse tentando, alguém


acabaria me arrancando a verdade.

Ela podia ter pensando nisso. A antiga Ari, quero dizer. Ela sabia que
haveria a festa da fogueira. Mas essa era mais uma coisa que ela não se
havia dado ao trabalho de considerar.

Eu odiava aquela menina.

Enfiei a ponta dos tênis na areia e observei Diana abrir caminho até o barril.
Eu tinha vindo a essa festa por causa dela, mas ela não parecia precisar de
mim. Talvez tivesse sido melhor ficar em casa praticando
exercícios de balé.

– Ari? – disse uma voz perto do meu ombro. Vi um cabelo castanho e um


sorriso ofuscante, por um

segundo pensei que fosse Markos. Fiquei tensa, pronta para começar a
mentir.

Contudo, quem estava na minha frente era um dos irmãos de Markos, Cal.

– Oi, Cal – eu disse, tentando relaxar os ombros sem conseguir.

– Quanto tempo! – ele disse. Cal estava com um cigarro apagado na boca e
brincava com um isqueiro

Zippo numa das mãos, abrindo-o e fechando-o, e depois acendendo-o com


um movimento do punho. A outra

mão segurava uma cerveja. – Como você está?

– Eu estou… bem.

– Ah, vá! Desembucha.

Tentei sorrir para ele. Cal era o mais simpático dos irmãos Waters. Brian era
um policial metido a sabichão, Dev usava o charme da família para se
comportar com vulgaridade e Markos... enfim, era Markos. Cal era

bonito como os outros, claro, mas era descoordenado demais para se dar
bem nos esportes, e seu jeito

bonzinho provavelmente significava que ele não tinha jeito para a coisa
também. Ele tinha passado por um

período porra-louca depois da morte do pai, mas isso parecia ter servido
para acabar com todo o seu estoque de rebeldia.

Contudo, mesmo que ele fosse o menor dos quatro males, não queria dizer
que fosse alguém a quem eu
estivesse disposta a me confessar.

– Estou isenta por morte de namorado. Posso responder a perguntas


invasivas com meias verdades.

Ele riu, e o cigarro caiu da sua boca.

– Que engraçado! Esqueci que você era engraçada.

– Bom… obrigada.

– Se algum dia precisar de alguém, me dá um toque.

Disfarcei o nó na garganta que se formara contra minha vontade.

– Obrigada.

Ele estendeu a mão que segurava o isqueiro fechado, hesitou e depois a


colocou sobre a minha, que estava

apoiada no cotovelo do outro braço. Meu pulso dolorido estava latejando,


mas eu não conseguia me mexer

para alongá-lo. Não sabia o que fazer.

Eu não era o tipo de pessoa que abraça os outros. No entanto, desde que
apagaram a minha memória, eu

tinha sido abraçada, beijada, acariciada, beliscada, sufocada e sofrera


diversas outras invasões de espaço.

Era isso que as pessoas faziam para expressar consolo. Elas se tocavam. Eu
não podia evitar. Não podia

pedir que me deixassem em paz. Elas faziam isso para que eu – a sofredora
– me sentisse melhor. Mas, como

não estava sofrendo – pelo menos não da maneira como elas pensavam –,
aturava os afagos e abraços para
que elas se sentissem melhor.

Prendi a respiração, tentei ignorar a dor no pulso e esperei que Cal tirasse a
mão de cima da minha. Sua

mão era quente, mas o isqueiro tinha a frieza do metal. Eu estava contando
até três quando uma menina parou ao meu lado e olhou feio para Cal até ele
abaixar a mão. Não a reconheci.

– Tchau – ela disse para ele, espantando-o.

Tive a impressão de que Cal ia dizer alguma coisa, mas acabou mudando de
ideia. Ele acenou para mim

com o copo plástico, só que o gesto foi tão estabanado que o derrubou,
depois tentou pegá-lo e não

conseguiu. Por fim, deu de ombros e saiu em busca de outro copo.

A menina se virou para mim. Ela tinha cabelo preto curto e estava usando
um casaco longo com fivelas

elaboradas e um par de coturnos, apesar da noite quente.

– Ari Madrigal – ela disse, fechando a cara. Torci para que a cara feia fosse
normal e não específica para mim.

– Isso foi meio grosseiro – eu disse.

Ela deu de ombros.

– Eu preciso falar com você. Ele não.

– Que dramático...

Olhei ao redor em busca de Diana. Não a vi perto do barril, e a luz da


fogueira não se estendia muito além dali. Talvez ela tivesse ido para o mar.
Ou talvez chegasse a qualquer momento para me resgatar. Cal Waters tinha
encontrado Kay. Ele acendeu um cigarro para ela e se aproximou como se
eles dividissem um segredo.

Kay e Cal – esse seria um casal inesperado. Tentei lembrar se Kay já tivera
um namorado antes, mas a menina parada à minha frente estalou os dedos
na minha cara.

– Nunca vou entender o que Win via em você – ela disse.

Então a cara feia não era normal.

– Espera, eu te conheço?

– Acho que não, mas eu conheço você.

Olhei para ela com mais atenção. Eu não a reconhecia – não seu rosto, pelo
menos. Mas havia algo nela que

me parecia familiar. Sua expressão era dura, mas me lembrava de… leveza.
De flutuar.

Que esquisito.

– Você me deve cinco mil dólares – ela disse, sem pestanejar.

Retribuí a encarada.

– O quê?

– A mãe de Win não encontrou o dinheiro, eu estava de olho. Ela já teria


gastado a essa altura, mas não está com ela. Ele deve ter deixado com você,
só que estava me devendo. Então você pode me pagar.

Minhas mãos tinham começado a tremer. Cinco mil dólares. Fora o preço
do meu feitiço para apagar Win.

Eu me lembrava de ter encontrado um envelope grosso cheio de notas no


fundo do meu armário, numa caixa
de sapatos, e me recordava de tê-lo deixado na mesa da cozinha da
hekamista. Detalhes em close, fragmentos de um filme que eu tinha visto e
do qual tinha esquecido a maior parte. Eu tinha dito a mim mesma que o

dinheiro era meu, uma sorte inesperada – deixado pelos meus pais, talvez,
como anjos da guarda. Destinado a mim.

Mas talvez fosse de Win. Eu não tinha como saber.

– Escuta, hã…

– Meu nome é Echo – ela retrucou. – Nós já nos conhecemos. Claro que
você não se lembra.

– Echo – eu disse. – Não sei do que você está falando. Não estou com
dinheiro nenhum do Win.

– Está sim. Ou pelo menos estava antes de gastar. Só fui perceber depois
que tive certeza de que não estava com a mãe de Win, mas é óbvio. Se você
não me pagar o que deve, vou contar para todo mundo que usou

um feitiço para apagar Win.

Parei de respirar.

Como ela sabia?

Quando meus pulmões voltaram a se encher de ar, consegui soltar um


resmungo frágil.

– Eu não apaguei Win.

Ela expirou pelo nariz, frustrada.

– Nem tente fazer esse joguinho porque você vai perder. Devolve meu
dinheiro ou todo mundo vai

descobrir.
Se essa menina realmente tinha ideia do que eu tinha feito, poderia contar
para todo mundo. E todos

saberiam que eu tinha mentido para eles. Descobririam que não sou capaz
de dançar e que tinha gastado tudo por causa daquele menino que todos
ainda amavam.

– Já disse – retruquei, tentando parecer confiante. – Não tenho dinheiro


nenhum e não fiz isso. Não apaguei o Win.

Ela deu um passo para trás e lambeu os lábios rachados.

– Tudo bem. Então prova. Quando eu conheci você, o que estávamos


fazendo?

– Não tenho que responder…

– É uma pergunta simples, não uma pegadinha. Responde.

Tentei lhe dar as costas, mas não consegui me virar na areia. Num instante
Echo estava lá, me bloqueando.

– Tenta. Chuta. Quando nos conhecemos?

Nada. Não havia nada para lembrar. Não dá para se concentrar e juntar as
memórias quando não há

memória alguma para juntar.

– A gente estava na praia – arrisquei. – Perto daqui.

– Bom palpite. Fazendo o quê?

– Passando o tempo. Só… passando o tempo.

Ela ergueu a mão e tocou a boca. Engoliu em seco.

– Boa tentativa.
– Não devo ter prestado muita atenção em você.

– Eu preciso daquele dinheiro, Ari.

– Você não tem como provar…

– Não sou eu quem precisa provar alguma coisa. – Ela apontou para as
pessoas que rodeavam a fogueira. –

Quer que eu chame alguém para ver se refresca sua memória?

A madeira estalou na fogueira. Um dos irmãos do Markos jogou mais


combustível nela. Se eu tivesse visto

Diana lá, talvez tivesse pensado numa saída. Numa forma de convencer
Echo de que eu era uma pessoa

completa, normal, que não podia ser chantageada. Talvez, se Diana


estivesse comigo, eu não tivesse desistido tão rápido.

Só que Echo estava certa, claro. Eu não me lembrava de Win.

– Desculpa – eu disse.

– O quê?

– Eu não tenho mais dinheiro nenhum. Foi tudo para o feitiço.

Ela pareceu ficar abalada por um momento e juntou as mãos.

– Não!

– Desculpa, mas eu não posso…

– Para de pedir desculpa! – Sua insegurança desapareceu, sendo substituída


por uma raiva que eu já

reconhecia. – Você consegue arranjar a grana. Se esforça um pouco. Se Win


conseguiu, você também
consegue. – Ela assentiu, como se isso fizesse todo o sentido. – Vou te dar
duas semanas, Ari. Cinco mil

dólares.

Assenti em resposta, porque não havia mais nada que eu pudesse fazer, e
Echo se afastou. Os sons da festa

pareciam ficar mais altos ao meu redor, enquanto as pessoas se divertiam,


levando sua vidinha rotineira.

A minha tinha acabado de ficar mais complicada. Tão complicada que


tentar ignorar o problema não o

resolveria.

Eu precisava sair dali. Daquela fogueira. Daquela ilha. O que eu estava


sentindo – culpa, medo, confusão e preocupação, somados ao
arrependimento sempre presente daquele feitiço maldito – começava a ficar
maior

do que essa festa, maior do que o cabo Cod.

Diana poderia me ajudar. Eu contaria a verdade para ela e resolveríamos


aquilo juntas. Não poderia ser

chantageada se eu mesma contasse a verdade para as pessoas.

Tentei não tropeçar na areia enquanto corria em busca da minha melhor


amiga.

14. Markos

Eu poderia ter continuado a conversa com Diana, evitando meus irmãos,


mas Ari veio e nos encontrou –

encontrou Diana, quero dizer. Ela não estava procurando por mim. Disse oi
e levou a amiga embora, e eu
sabia que não tinha direito de reclamar, então continuei sentado na areia.

– Vamos sair daqui – Ari disse, entrelaçando seu braço no de Diana. –


Vamos para Boston fazer tatuagens.

– Jura? – Diana disse.

– Não, tatuagens são caras. Vamos para Nova York dançar na fonte do
Lincoln Center.

Diana deu risada, como se tivessem tirado um peso dos seus ombros. Ela
olhou de soslaio para mim – com

arrependimento, talvez, ou desapontamento –, mas já estava subindo a duna


com Ari.

Não fiquei olhando enquanto ela ia embora.

Não havia nada de que se arrepender. Nós só tínhamos conversado.

Fiquei olhando para a multidão, que parecia ter vida própria, expandindo-se
e contraindo-se como um

coração. Então ouvi um grito. Antes de ter noção do que estava fazendo, me
levantei e corri na direção dela.

Diana tinha tropeçado, caído e batido o rosto com tanta força no canto de
um cooler que formou um

hematoma na hora, visível mesmo com a pouca luz da fogueira.

Ela começou a chorar. Ari estava parada ao lado dela, apenas olhando, em
choque.

Não sei como, mas meu braço envolveu o ombro de Diana, enrolando-se no
seu cabelo comprido, enquanto

eu ajoelhava ao lado dela na areia. Eu a reconfortei.


– Vai ficar tudo bem. Chhh... não está tão feio assim. Aquele babaca precisa
tirar as merdas dele do

caminho. Vou acabar com ele. Chhh, chhh... Está tudo bem.

Toquei-a não só para consolá-la, não só por desejar alguma coisa. Talvez
isso significasse que eu era o mais falso dos falsos da festa, daquela cidade,
do mundo: eu estava fingindo ser alguém que se importava.

15. Win

Nunca pensei que precisaria ir a uma hekamista. Tinha ouvido falar de


pessoas que compravam feitiços para

ter beleza, sorte ou inteligência, mas quem pedia alguma dessas coisas
precisava achar que não a tinha. Eu não era feio, nem burro, nem azarado.
Era Win Tillman. Interbases da equipe. Namorado da menina mais linda da

escola. Tirava boas notas. Tinha boa pele. Tudo de bom. Outras pessoas iam
às hekamistas. Eu não.

Quer dizer, Ari tinha feito um feitiço, claro, mas não tinha sido uma decisão
dela. Além disso, ela era jovem demais na época, e fazia tanto tempo que
não era a mesma coisa. (Que fique claro que eu também teria

tomado um feitiço para apagar a visão da minha casa pegando fogo com
meus pais dentro. Não é algo bom de

lembrar.)

De um lado, estavam os que tomavam feitiços: meio bobos, meio tristes. Do


outro, eu.

Mas então tudo começou a mudar. O mundo, ou a forma como eu o via.

No dia seguinte àquele em que Ari teve o ataque no quarto depois de ser
chamada para o Balé de Manhattan,
eu sofri um ataque de pânico e não consegui ir para a aula. Achei que estava
morrendo. Achei que havia

absorvido a tristeza de Ari – que, depois daquele dia, não derramou uma
lágrima. Tive certeza de que meu

coração ia explodir, mas imaginei que meu pânico passaria tão rápido
quanto o dela. Se não mais rápido ainda, porque o sofrimento não era meu.

Então tive outro ataque na aula de música, quando não consegui acertar
uma única nota. Depois, ao longo

das semanas seguintes, sofri ataques de pânico no carro, no banho e no chão


do quarto. No chão do quarto,

no chão do quarto, no chão do quarto, vezes sem conta. Passei a conhecer


muito bem o chão do meu quarto.

Bastava o toque do carpete áspero para eu começar a ficar sem ar.

Não conseguia dormir.

Três dias seguidos, fiquei na cama até as duas ou três da madrugada, e


minha mãe ligou para a escola para

dizer que eu estava doente, mas eu não estava doente. Eu estava chorando.
Chorava tanto que fiquei

desidratado e desmaiei. Minha mãe me levou para o pronto-socorro, só que,


quando cheguei lá, eu estava bem e parecia normal.

Sempre tive tendência a períodos depressivos, dias de introspecção, em que


eu pensava tanto nas coisas

que elas desmoronavam e se partiam. Markos me chamava de lesado, mas


sempre conseguia me animar.

Dessa vez era diferente.


Não havia nada de errado. Eu estava errado.

Pesquisei vários remédios na internet. Às vezes, quando o paciente é jovem,


os remédios têm o efeito

oposto – deixam a pessoa mais triste e aumentam a tendência suicida.


Também ouvi falar que eles

engordavam, e eu estava com medo de não ser eu mesmo nem por dentro
nem por fora. Então não conversei com minha mãe sobre a gravidade do
meu estado.

Contei para Ari. Claro que contei para Ari, contávamos tudo um para o
outro. Mas acho que não expliquei

tudo. Nunca disse: “Ando pensando em me matar”. Disse: “Ando pensando


na morte”, o que é completamente

diferente, porque todo mundo pensa na morte de vez em quando, só que


nem todo mundo se imagina

passando por ela, enforcando-se com um cinto ou cortando os pulsos na


banheira.

Não que eu pensasse nisso todo dia. Não. Na maioria dos dias eu estava
bem. Meu melhor amigo era o

Markos. Com Markos era mais fácil fingir, porque eu o conhecia desde
sempre e, com ele, tudo é um grande

show. A hora de Markos Waters. Eu só precisava comparecer e repetir


minhas falas.

Em todos os outros lugares eu me sentia mal. Era tudo muito difícil.


Respirar chegava a doer às vezes.

Minha mãe me levou a um alergista que ela não tinha como pagar, porque
não era coberto pelo convênio. Mas
não se tratava de alergia, nem do ambiente, nem de glúten. Estava tudo
dentro de mim. Minha mente não

ajudava. Eu não sentia que era maravilhoso ser Win Tillman.

No outono do meu penúltimo ano do ensino médio, aquela tal de Katelyn


tinha voltado das férias de verão

linda e, ao ver o seu feitiço bem-sucedido depois do início dos meus


ataques de pânico, comecei a considerar a possibilidade de ir a uma
hekamista. Eu mal tinha sobrevivido a uma semana em que parecia estar

afundando, e essa tal de Katelyn – Ari e Diana a chamavam de Kay quando


começaram a sair com ela – jogava

o novo cabelo brilhante para o lado e parecia bem. Perguntei para Ari o que
ela achava daquilo.

– Se isso a faz feliz... – Ari disse.

– Todo mundo deve fazer, se está sofrendo – Markos falou, mas eu entendo
a língua dele e o que ele quis

dizer foi: “Ela estava desesperada”.

Mas eu também estava desesperado.

Não tinham sobrado muitas hekamistas – elas estavam em extinção. Fazia


vinte anos que entrar para um clã

se tornara algo ilegal. Devia existir só umas dez mil nos Estados Unidos, e
só uma no cabo Cod, uma velhinha que estava lá desde sempre. Então foi
uma surpresa quando entrei na casa da hekamista perto da escola e a

única pessoa que encontrei tinha a minha idade.

A menina disse que seu nome era Echo, e eu gostei dela na hora. Não estou
falando num sentido romântico
– naqueles dias eu não conseguia nada nem com Ari, que eu amava –, mas
ela parecia ser uma boa pessoa. Na

mesa da cozinha havia uma maçã comida pela metade, ao lado de um monte
de cartas de baralho – eu tinha

interrompido um solitário jogo de paciência. Havia algo normal naquilo.


Algo humano.

Sentei do outro lado das cartas espalhadas. Echo sentou na minha frente.
Não sou muito de prestar atenção

nos lugares, mas dava para ver que aquela casa estava acabada e mal tinha
espaço para uma pessoa, que diria para uma família. O sofá separava a
cozinha da sala de estar, colocado de forma torta no espaço aberto. Notei
isso porque parecia que as pessoas tropeçavam nele o tempo todo. Eu estava
acostumado com espaços

pequenos e móveis que nem sempre cabiam neles. Estava acostumado com
casas baratas e carpetes velhos

com um cheiro um pouco estranho. Essas coisas faziam com que me


sentisse em casa.

– Cadê a hekamista? – eu disse, tentando pensar em outra coisa.

– Saiu – ela disse.

– Ah...

Uma pausa. Os segundos pingavam como uma goteira.

– Então você queria um feitiço. – Com a ponta dos dedos, Echo pegou o
miolo da maçã e o jogou no lixo. –

Qual é o seu problema?

Consegui sentir algo rachar e se quebrar no meu peito. Eu tinha certeza de


que estava prestes a começar a
chorar de novo.

– Eu estou… triste – respondi.

Ridículo. Uma palavra tão pequena e idiota que não chegava nem perto da
verdade. Ela me expulsaria aos

risos da casinha minúscula.

Mas ela não riu.

– Triste como?

– A ponto de estar aqui – eu disse.

Parecia uma piada, mas nem assim ela riu, o que me deu a sensação de estar
fazendo a coisa certa, e de que ela me ouvia como não faziam havia muito
tempo.

– Minha mãe pode preparar uma coisa capaz de apagar tudo isso pra você.

– Ótimo – eu disse. – Ótimo.

– Ou eu posso preparar pra você. – Ela ergueu os olhos cobertos de


maquiagem escura para mim. A

maquiagem deixava a parte branca dos seus olhos ainda mais branca. – E
podemos manter isso aqui entre nós.

Engoli em seco. Ela era jovem demais para ser uma hekamista, o que
significava que aquilo era ilegal. Se

alguém descobrisse, ela, sua mãe e todas as outras do seu clã iriam parar na
cadeia.

Mas que importava? Eu precisava de um feitiço.

– Tanto faz – eu disse.


Minha indiferença não pareceu deixá-la melhor. Ela franziu mais a testa,
como se eu não estivesse

entendendo algo.

– Minha mãe cobra cinco mil dólares por feitiços permanentes. – Eu não
tinha nem perto dessa quantia,

mas não havia pensado nisso. – Se quiser se sentir bem por um dia, uma
semana ou duas, bastarão algumas

centenas, já que você precisará voltar de tanto em tanto tempo para retocar
o feitiço, mas eu não vou fazer isso com você.

– Ótimo. Valeu – agradeci.

– Você tem cinco mil dólares? – ela perguntou, e eu meio que fiz que sim.

– Não tenho comigo, mas posso arranjar.

– Quero praticar um pouco antes de te entregar o feitiço, para ter certeza de


que vai ficar tudo bem.

– Tá.

– Vou precisar penetrar no seu cérebro, Win. Você vai ter que aceitar isso.

– Tá. Eu aceito.

A garota franziu a testa e cobriu as mãos com as mangas longas, cerrando


os punhos.

– Você nem me conhece...

Olhei para ela e para as cartas colocadas na mesa à sua frente. Olhei para o
sofá que sobressaía na sala,

depois olhei de volta para Echo. Por mais triste que eu estivesse, me
solidarizei com ela. Algo na forma como se portava, ou na profundidade do
seu olhar. Não era para ela existir. Como ia aos lugares? Como conhecia

pessoas? Por um instante parado no tempo, esqueci a minha própria


sensação de afogamento e senti como

seria viver naquela casa, viver a vida de Echo.

Seria solitário.

– Confio em você – eu disse.

Finalmente ela relaxou, adotando uma expressão de pura alegria – um


estranho contraste com o couro preto

e a maquiagem forte.

– Ótimo. Vou dar um jeito em você, Win Tillman. Você vai ficar novinho
em folha.

Em seguida, ela me pediu para descrever como eu me sentia, e tentei lhe


contar. Como o mundo parecia

mais sombrio do que antes. Como, quando Ari me beijava, eu não sentia
nada, ou sentia apenas um pânico

esmagador. Ela fez anotações, remexeu nos armários e me ouviu, e eu me


peguei sentindo-me… não feliz,

mas aliviado.

Contei para ela como fingia estar normal com Markos, falei da minha
desconfiança em relação aos remédios

e do meu medo de não ser forte o bastante para sobreviver a tudo aquilo.
– Você é – ela disse. E eu acreditei nela.

16. Kay

Acordei com areia na boca, a cabeça encostada numa jaqueta enrolada e as


pernas de Cal Waters enroladas

nas minhas. A luz estava cinza e enevoada, e o som das ondas que batiam
na costa parecia o de uma pessoa

vomitando. Não, aquilo era uma pessoa vomitando – a quinze metros dali,
de quatro na areia úmida. A fogueira tinha se apagado, transformando-se
em meia dúzia de brasas vermelhas sobre o carvão preto.

Saí de baixo de Cal e sacudi minha jaqueta. Ele acordou e esfregou os


olhos, enchendo-os ainda mais de

areia. Nada daquilo parecia romântico ou divertido como antes.

– Ei, então, tchau – eu disse.

– É, tá. – Ele se levantou e me estendeu a mão. Para apertar? Mantive a


minha nas costas e ele abaixou a

dele com um sorriso forçado. – Prazer em te conhecer, Kay.

– Idem.

Ele se aproximou mais rápido do que eu consegui desviar e me beijou, mas


tanto a minha boca quanto a

dele estavam com gosto pútrido de álcool, e notei – porque o susto foi
demais para fechar os olhos – que seus olhos também não estavam
fechados. Ele olhava fixo para mim enquanto nossas línguas secas e bocas
sujas

se apertavam umas contra as outras como pedaços de bacon cru.


Definitivamente, nada romântico.

Mas pelo menos ele lembrava meu nome. Pelo menos, o meu beijo não
tinha sido tão ruim a ponto de ele

não aguentar olhar para a minha cara. Dei tchau para ele, com os pés no
chão e meio dormindo de novo, e

subi pela praia até o estacionamento.

Um ano antes, quando ouvia as pessoas comentarem sobre o fim de uma


grande festa, sempre imaginava

uma cena cheia de luz e graça. Nunca teria pensado naquele bando de restos
humanos tristes e exaustos. Eu

precisava encontrar Ari e Diana e contar para elas o que havia acontecido,
talvez isso transformasse o fato em algo real e interessante. Talvez elas
tivessem sentido minha falta e tivessem histórias para compartilhar

também.

No estacionamento, vi o carro de Diana onde o havíamos deixado. Ari


estava sentada no banco do

motorista, com o olhar voltado fixamente para a frente.

– Você se divertiu? – ela perguntou quando abri a porta do carro. Diana


estava deitada no banco traseiro,

dormindo.

– Sim – respondi, e esperei que ela perguntasse mais para poder contar
sobre Cal.

Ela se virou para mim. Estava chorando e seu rosto normalmente duro
tremia.

– Aconteceu uma coisa – ela disse.


A história de Cal sumiu da minha cabeça. Nem no funeral ela tinha
chorado.

– Qual é o problema?

– Diana…

Como se Diana sentisse que estava entrando na história, ela se remexeu


enquanto dormia, virando a cabeça

para a frente do carro. Levei um susto. O lado esquerdo do rosto dela tinha
um grande hematoma, roxo, preto e sarapintado.

– O que aconteceu? – perguntei.

– Ela levou um tombo – Ari disse.

– Ai, meu Deus!

– Estávamos subindo a duna. Eu tive uma ideia… A gente ia para Boston


ou Nova York… só dirigindo.

– Vocês iam sem mim?

Ari teve a decência de exibir uma expressão culpada, embora houvesse um


pouco de raiva ali também.

– Foi coisa de momento.

– Como eu voltaria para casa?

– Você não parecia querer voltar para casa.

Então ela tinha me visto com Cal. Não era mais uma história divertida para
contar.

– Mesmo assim, eu teria ido com vocês – argumentei. – Vocês deviam me


chamar se fossem para algum
lugar.

– Desculpa, Kay. Foi só uma ideia besta. A gente teria te ligado da estrada.

– Ligar da estrada não é o bastante.

– Por que não?

– Porque somos amigas.

Ari tirou o cabelo da frente do rosto e secou as lágrimas de qualquer jeito.

– Não sei por que você está me enchendo tanto. A gente não foi a lugar
nenhum, foi? Estávamos subindo a

duna, a Diana caiu e ficamos aqui.

Pisquei devagar, tentando impedir que todos os músculos do meu rosto


saltassem. Elas haviam planejado ir

embora. Iriam sem me avisar. Eram quase duzentos quilômetros até Boston.
E quase quinhentos até Nova

York.

Mas, no fim, não tinham conseguido. Diana tinha se machucado e elas


acabaram tendo que ficar.

Ao contrário do acampamento hípico de Diana e da mudança de Ari para


Manhattan, a ideia de viajar para

Nova York ou Boston durante a noite tinha surgido de repente. Para mantê-
las na cidade, o feitiço havia

precisado agir rápido, a fim de garantir que não chegassem nem perto do
carro.

Podia ter sido um acidente, mas se encaixava perfeitamente. Afinal, o


feitiço agia por meio de
acontecimentos repentinos e coincidências. Elas queriam partir, mas não
haviam conseguido. Meu feitiço tinha feito aquilo. Meu feitiço tinha ferido
Diana.

– Por que vocês não foram para casa? – perguntei.

– Eu não queria assustar os pais da Diana.

– E ficamos esperando você – Diana disse.

Olhei para ela. Ela estava tocando a bochecha machucada com o dedo e
mexendo o maxilar em silêncio.

Não conseguia acreditar que o feitiço fosse tão forte.

– Vamos para casa – eu disse.

Diana concordou com a cabeça e Ari deu partida no carro.

Elas tinham tentado, mas não tinham conseguido ir sem mim. Era
exatamente o que eu queria.

Sim. Exatamente o que eu queria.

– Vai ficar tudo bem – eu disse para as duas. – Foi só um acidente.

Claro que não queria que Diana se machucasse, mas parte de mim ficou
contente pelo fato de a hekamista

ser tão boa no seu trabalho e de o feitiço funcionar tão bem, e por elas não
terem me deixado sozinha na praia.

Isso me dava a oportunidade de mostrar a elas quem eu era. Por que


deveriam gostar de mim. Por que

estávamos destinadas a ser amigas.

17. Ari
– Vou ficar bem – Diana disse. Estávamos sentadas no carro dela vendo
Kay subir os degraus que davam para

sua casa e depois acenar entusiasticamente da janela de vidro. – Para falar a


verdade, foi a melhor festa da fogueira da história.

Tive um calafrio ao me lembrar de Echo exigindo seu dinheiro e do grito de


Diana.

– Que bom que você pensa assim...

– Sim. Consegui falar com o Markos, e você parecia… melhor.

Esfreguei a têmpora. Agora parecia muito distante a ideia de fugir para


Nova York, contar para Diana a

verdade sobre Win e dizer que tudo ficaria bem. Não ficaria. Eu não poderia
lhe contar. O que eu imaginava que ela poderia fazer, arranjar cinco mil
dólares do nada?

Eu ganhava nove dólares por hora vendendo sorvetes na Sweet Shoppe,


vinte horas por semana. Para

juntar o dinheiro de Echo, teria que trabalhar por um ano, sem folga, e
provavelmente muito mais se

descontasse os impostos, a mensalidade da escola e o fato de a Sweet


Shoppe fechar de outubro até abril. Ou teria que usar o dinheiro reservado
para Nova York, que era o restinho do seguro de vida dos meus pais. Mas
eu não podia fazer isso, precisaria dele para viver enquanto dançasse na
companhia jovem.

Então eu precisava impedir que Echo contasse a verdade para as pessoas até
partirmos para Nova York. Só

que essa ideia era tão claramente impossível que me oprimia, como tentar
fazer plié vestindo uma calça de couro.

– Onde Kay ficou a noite toda? – Diana perguntou.


– Ela estava com o Cal Waters.

– Como? Conversando? – perguntou.

– Parecia mais que eles estavam flertando.

– Nossa! Jura? – Fiz que sim, e Diana apertou os olhos. – Você não vai
afastar Kay dele como vive fazendo

comigo e com Markos?

– Cal é o irmão legal.

Diana me lançou um olhar de raiva que deve ter feito o hematoma em seu
rosto doer, porque ele se

contraiu.

– Está bem, se isso faz você se sentir melhor, vou me lembrar de avisar Kay
para não se envolver com os

irmãos Waters.

Diana se remexeu no banco e levou a mão ao rosto, mas não encostou no


machucado. Ficou com a mão

próxima a ele, como se irradiasse calor. Dei ré para tirar o carro da entrada
de Kay e tomei o caminho de casa.

– Você se divertiu, Ari?

Eu havia sido chantageada e minha melhor amiga tinha quebrado a cara.

Me vi novamente subindo a duna várias e várias vezes, tropeçando várias e


várias vezes, não conseguia me

equilibrar. Na hora tinha sido engraçado. A areia deslizava e assumia uma


forma nova.
Será que eu estava segurando o braço de Diana quando ela caiu? Será que
eu a havia derrubado? Será que

eu a deixara tão desequilibrada quanto eu estava?

Ela ficaria melhor sem mim?

Abri um sorriso para Diana, embora parecesse haver alguma coisa errada
nele. Meus sorrisos tinham se

tornado tão desajeitados quanto o resto do meu corpo. Me esforcei mais, e


esse esforço fez minhas

bochechas, meus dentes e até a nuca doerem.

– Claro. Inesquecível.

***

Diana se despediu e prometeu me ligar mais tarde. Fui para o meu quarto e
fiz os exercícios como sempre,

ou seja, pessimamente.

A única forma de melhorar era continuar tentando. O meu plano era: seguir
praticando até conseguir

recuperar a graciosidade.

Depois daquela primeira tentativa no balé na sexta seguinte ao dia em que


eu tomara o feitiço, eu havia

tentado reverter os efeitos colaterais. Parecia óbvio. Tomar outro feitiço e


voltar a ser como antes. Quem quer que fosse aquele menino morto, era
impossível que ele valesse o fim da minha carreira.

Assim, fui direto daquela aula de dança desastrosa para a casa da


hekamista. Reconheci a mulher de meia-
idade que atendeu à porta, com aquele cabelo grisalho encaracolado e olhar
nebuloso.

– Eu conheço você – ela disse.

Pestanejei.

– Vim aqui ontem – respondi.

– Foi ontem? – Ela sorriu e fez um gesto com a mão, como se estivesse
espantando mariposas.

– Então – continuei. – Sobre aquele feitiço…

A hekamista se recostou no batente. Atrás dela, dava para ver a sala


entulhada e a cozinha miserável. Eu

sabia que havia estado ali no dia anterior, mas reconhecia o lugar de uma
forma distante, como se só tivesse visto fotos dele num livro.

– Espero que tenha funcionado – ela disse. – Sem reembolsos.

– O feitiço funcionou. Mas não consigo mais dançar.

– Você dança? Ah, que lindo!

– Parece que estou dançando como se meu cérebro estivesse falando para
eu me mover, para ser graciosa,

mas meu corpo se recusasse a ouvir. – Me remexi de um lado para o outro.


– Caí na sala hoje.

Ela deu de ombros.

– Alguns efeitos colaterais são esperados. Tenho certeza de ter mencionado


isso.

– Isso não é um “efeito colateral”. Não consigo fazer nada do que conseguia
fazer.
– Mas esqueceu seu namorado morto. Está se sentindo melhor.

– Acho que sim. Não lembro como me sentia antes.

– É verdade, é verdade. Os feitiços de memória são tão estranhos. Quando


funcionam, ninguém sabe por que os tomou. – Ela olhou para os dois lados
da rua, piscando. Passou pela minha cabeça que estava ficando louca. As
hekamistas enlouquecem quando o resto do seu clã morre. Eu tinha ouvido
falar sobre isso, mas

não sabia como era até então. A mulher encostou a bochecha no batente,
cobrindo um olho e deixando o outro se focar e desfocar lentamente. – Você
está descontente com os efeitos colaterais. Hum... já tomou outro

feitiço antes?

Eu queria gritar de frustração, mas, em vez disso, apertei o pulso esquerdo


inchado e o belisquei para

diminuir a dor.

– Sim. Tomei um quando tinha oito anos. Remoção permanente de trauma.

– Ah. Entendi. Você não comentou isso comigo ontem. – Ela continuou
com a cara amassada no batente,

ainda me olhando fixo. – Feitiço de trauma. Também é de memória.


Namorado morto. Sem lembrança. Dois

feitiços de memória permanentes. Triste, triste, triste você, hein?

Meu pulso latejou.

– Meus pais… morreram. Num incêndio. Eu vi a casa caindo. Parece que eu


tinha pesadelos.

– Um incêndio. Acidente?

Rangi os dentes e torci os dedos dos pés dentro dos sapatos.


– Alguém entrou na casa. Acendeu fogos de artifício na lareira.

Ela abriu a boca e se afastou do batente.

– Ah...

– Escuta, você precisa desfazer esse feitiço. Por favor. Eu vou para Nova
York em agosto para estudar balé e não consigo nem…

– Não – ela disse. – Essas lembranças se foram e não há meio de recuperá-


las.

– Ótimo. Dane-se. Não ligo para as memórias. Quero que meu corpo volte
ao normal. Você consegue

consertar isso?

Seu humor tinha mudado. Em vez de observar a rua, olhou para dentro da
casa e se afastou de mim. Com

medo.

– Uma hekamista pode arrumar você. Colocar mais um feitiço para rebater
o efeito colateral. Você ficaria

tão graciosa quanto uma gazela. Mas esse feitiço viria com sua própria série
de efeitos colaterais e você teria três feitiços permanentes… Isso é muito
ruim. Muito arriscado. Efeitos colaterais em cascata.

Mordi o lábio. As outras meninas tinham falado sobre feitiços no Instituto


de Verão no ano anterior. Diziam os boatos que uma das prime ballerine do
Balé de Manhattan tinha tomado um feitiço para se transformar numa
estrela, e que por isso era tão chata. E havia outra menina que não
conseguia dar uma pirueta dupla –

vivia perdendo o equilíbrio no fim –, até que então, um dia, fez catorze em
seguida com perfeição. Ela chorava toda manhã ao acordar porque não
conseguia lembrar onde estava, mas conseguia dançar. Soube que ela tinha
virado aprendiz no Balé de San Francisco.

Eu sempre havia achado esses feitiços egoístas – atalhos para a grandeza. A


prima ballerina e a menina das piruetas poderiam ter se esforçado, e talvez
conseguissem aquilo de que precisavam. Eu não conseguia nem

praticar. Parecia uma idiota. Os efeitos colaterais tinham me tornado inepta.


Necessitava de um feitiço para me fazer voltar ao normal, para ser eu
mesma de novo.

Mas será que seria eu mesma se não conseguisse nem me lembrar do meu
próprio nome?

– Eu, não – a hekamista disse, interrompendo meus pensamentos.

– Quê?

– Não esta hekamista aqui. Que bobagem, que bobagem a minha! Eu não
posso. Não posso.

– Por que não?

Ela começou a fechar a porta e pus a mão no batente para impedir.

Ela respirou fundo e pareceu se recompor.

– Você é uma menina doce. Disso eu sei. E você estava triste no outro dia
por causa do seu namorado que

morreu. Acho que você tomou a decisão certa.

Ninguém nunca teria me descrito como doce. E eu tinha certeza de que não
havia tomado a decisão certa.

– Não, de jeito nenhum… Por favor. Amo a dança mais do que tudo.

– Sim, agora. – Ela empurrou a porta com força contra a minha mão. –
Ontem você amava mais seu
namorado. Tente pensar que fez um favor a si mesma.

Com um último empurrão, a porta se fechou. Bati mais algumas vezes, mas
ela não voltou a sair.

Mesmo se eu decidisse correr o risco dos efeitos colaterais compostos, ela


não faria o feitiço, e era a única hekamista da cidade. Além disso, havia a
questão do pagamento – nunca apareceriam outros cinco mil dólares no
fundo do meu guarda-roupa. Ainda mais porque Echo me contara que Win é
que os tinha colocado lá.

Então eu precisava continuar praticando.

Na manhã seguinte à festa da fogueira, quatro de julho, me dobrei na altura


da cintura e tentei encostar a mão no chão. Antigamente, eu conseguia
encostar todo o torso contra as pernas e colocar os braços em volta delas,
para que minhas mãos tocassem meu rosto. Agora, as pontas dos meus
dedos mal alcançavam o

carpete. Fechei bem os olhos e me esforcei para não começar a chorar. Eu


tinha mais uma hora para ensaiar.

Estava presa dentro deste corpo que não colaborava. E Echo iria contar a
verdade sobre Win para todo

mundo que eu conhecia, a menos que eu desse um jeito de impedi-la.

18. Markos

No dia seguinte à festa da fogueira, acordei com ressaca, a cabeça latejando


e uma queimação no fundo do

estômago capaz de botar fogo no mundo. A certo ponto da festa, depois de


Diana se machucar e ir embora

com Ari para se recuperar, fiquei tão bêbado que me esqueci da morte de
Win. Me lembrava daquela sensação
de segurança, sabendo – mas sem me aprofundar nessa certeza – que meu
melhor amigo estava lá em algum

lugar e que a qualquer momento surgiria na multidão, jogaria minha bebida


na areia e me levaria para casa.

Claro que ele não apareceu, então continuei bebendo. Pior do que a ressaca
da bebida era a ressaca do

esquecimento. Eu estava pagando pela minha noite lobotomizada.

Antes de sair da cama, ouvi meus irmãos reunidos na cozinha. Minhas


costas doíam, mas desci a escada

como de costume, pronto para ser o Markos de sempre.

– Você está mal, hein? – Dev constatou ao me ver.

– Eca! – Cal ecoou.

– Ai, Markos! – disse minha mãe, e se apressou em me servir um suco de


laranja.

Brian se recostou na cadeira, com os braços cruzados diante do peito


fardado.

– Assim fica difícil não te prender, mano.

– Vai se ferrar. – Abri a porta do armário e fiquei olhando para as caixas de


cereal.

– Não vem com essa de mandar eu me ferrar. Se alguém na festa tivesse


chamado a polícia por sua causa,

eu estaria encrencado.

– Ninguém chamou, chamou?

Dev falou com a boca cheia de ovos mexidos.


– Se vai encher a cara, pelo menos seja um bêbado engraçado.

Cal deu risada.

– Você me chamou de bueiro cafona e egoísta onde desce o careca. O que é


um bueiro onde desce o

careca?

– É um bueiro para o seu careca, idiota! – Dev disse.

– Como uma boca de lobo? Para enfiar o pinto?

– Meninos… – nossa mãe murmurou, sentada na cadeira perto da janela.


Ela não ligava para o que a gente

dizia, mas às vezes achava necessário nos lembrar de que podia ouvir o que
estávamos falando.

– Enfim... – Brian disse. – Tenta se controlar um pouquinho da próxima


vez.

Fechei a porta do armário com força. Ninguém se assustou. Todos ficaram


me olhando – Brian, Dev, Cal e

minha mãe – como se não tivesse feito nada de mais.

Não importava o que eu fizesse. Sempre seria o mais novo, o caçula, o


problemático. Eles não me viam realmente quando olhavam para mim,
viam uma imagem do Markos. Eu podia bater portas, gritar e quebrar a

casa inteira que eles mal tirariam os olhos de suas tigelas de cereais.

– Vou sair – disse, e fui embora antes que alguém conseguisse me deter.

Liguei para Diana North. Como não tínhamos ficado, eu não precisava
esperar alguns dias. Não havia me
comportado como um canalha com ela, porque ela atendeu o telefone.
Depois me encontrou na loja de

rosquinhas, onde sentamos numa mesa ao sol. A luz era tão forte e quente –
já tinha passado do meio-dia e

minha cabeça estava doendo –, mas não sugeri que passássemos para uma
mesa na sombra. Eu merecia

aquela dor por ter esquecido Win na noite anterior.

Ela estava com um ar de boa moça, com aquele vestido e um colar, embora
seu longo cabelo farto ainda

fosse de um tom vermelho não encontrado na natureza, e o hematoma em


uma das faces parecesse estar

sensível e inflamado. Ela comeu a rosquinha com mordidas pequenas,


contraindo-se no momento em que

precisava morder com o lado direito, e me fitava com os olhos vermelhos


quando achava que eu não estava

olhando.

– Como está seu rosto?

Ela deu de ombros, o que a fez se contrair novamente.

– Não quebrei nada.

– Você pode dizer para as pessoas que se meteu numa briga.

Ela bufou.

– Sim. Todo mundo ia acreditar. Você se divertiu no resto da festa?

– Sim – eu disse. Não falei dos meus irmãos e não contei que tinha
esquecido que Win estava morto, mas
devia estar pensando em Win por causa do que saiu da minha boca em
seguida. – Win costumava passar em

casa para tomar café e comer donuts. No dia quatro de julho, quero dizer.

Diana tirou o cream cheese da rosquinha cuidadosamente.

– Ari costumava dormir em casa. Quer dizer, tecnicamente a gente dormiu


junto, porque apagamos no meu

carro. No carro da minha mãe.

– Como assim?

– Eu não queria ir para casa.

– Por que não?

Diana falou, olhando para a rosquinha:

– Minha mãe quase teve um ataque por conta do meu machucado. Eu sabia
que ia ser assim.

– Mas não foi culpa sua.

– Ela é superprotetora. Eu não queria ter que ouvir o sermão de sempre:


devia ter tomado mais cuidado, ter olhado aonde estava indo, não estar
correndo, não ter ido à festa.

– Que loucura! Manda sua mãe calar a boca.

Diana tirou os olhos da rosquinha, arregalando o olho não machucado.

– Nunca faria isso.

– Por que não?

– Você manda sua mãe calar a boca?


Pensei na minha mãe, que passara a maior parte da minha vida distraída.
Pela loja, por algum dos meus

irmãos, por uma série de desastres – doenças, machucados, problemas de


dinheiro. Mas, quando um dos

filhos tinha uma crise, ela era capaz de arrancar os olhos de qualquer um
por ele. Se eu voltasse para casa com a cara machucada, minha mãe me
jogaria um saco de ervilhas congeladas e perguntaria quem ela

processaria pelos danos.

– Minha mãe acha que nada é culpa nossa.

– Vocês são uns santinhos, né?

– Pois é.

– Minha mãe é legal. Sempre cuidou de mim… talvez até demais. Sempre
tentou me deixar segura e feliz.

Entre ela e Ari, às vezes parecia que elas estavam levando a vida por mim.
– Ela parou de falar e ficou

vermelha.

Pensei nos meus irmãos, em suas torrentes infinitas de conselhos e em sua


expectativa de que eu seria

exatamente como eles.

– Mas você não quer mais isso?

– Não – Diana disse, parecendo estar surpresa consigo mesma. – Não, não
quero. Na verdade… acho que

foi por causa do Win. Ari começou a passar tanto tempo com ele que… eu
fiquei sozinha.
Engoli meia rosquinha em três mordidas.

– Aliás, o que há de errado com a Ari?

Diana me encarou pelo canto do olho, como se eu estivesse montando uma


armadilha.

– Não sei. Ela não conversa mais comigo.

– Bom, ela não tem conversado comigo também.

– Jura? Mas vocês eram tão amigos!

Me remexi na cadeira de metal. Ela estava queimando a parte de trás dos


meus joelhos.

– Ela era namorada do Win.

– Nem vem! Vocês também eram amigos.

– Sim, mas o que isso significa agora? Vamos sentar juntos e falar dos
nossos sentimentos?

Diana pegou a rosquinha.

– Podia ser bom para vocês dois conversar sobre essa coisa toda.

– Não parece nem um pouco provável. Ari abrindo o coração? Qual é! Está
aí uma qualidade dela: não é

uma romântica grudenta. Graças a Deus! Se tivesse se mostrado carente


com Win, ele teria se mostrado

carente também, e seria insuportável. Ele era… – Joguei o resto da


rosquinha no prato. – Ele era legal pra cacete o tempo todo.

Diana não parecia estar assustada, mas eu me senti esquisito – como na


praia: com o coração acelerado, a
respiração vindo em engasgos estranhos. Me obriguei a inspirar e prender o
ar por cinco segundos antes de

voltar a abrir a boca.

– Você pensa no que acontece quando a gente morre? – perguntei.

– Sim.

– Não estou falando de paraíso, anjos ou seja lá o que for. Isso é bobagem.
Mas no fim de tudo. Como

nada importa depois disso. – “Como nada importa agora”, queria dizer, mas
sabia que isso provocaria aquela respiração esquisita e que ela não
entenderia o que eu estava falando.

– Penso em como meus pais ficariam tristes – Diana começou – e meus


priminhos e Ari. Ela já passou por

tanta coisa, com o incêndio e depois Win... Mas, sabe… – Ela parou de
repente, olhou para mim como se

estivesse se lembrando de quem eu era, depois continuou mais devagar: –


Não fico triste pensando nessas

coisas. É quase como se eu quisesse ver isso, porque assim saberia o que as
pessoas achavam de mim de verdade. Se gostavam mesmo de mim.

Eu deveria ter ficado bravo por causa de Win. Porque Win não pedira para
morrer e todos tínhamos

passado por essa tortura de verdade, não era nenhuma fantasia egoísta e
autocentrada. Mas não fiquei bravo.

E também não estava mais entrando em pânico.

– Que loucura! – eu disse, sorrindo. Diana mergulhou naquele sorriso como


se fosse a luz do sol e ela uma
droga de uma florzinha. Até o machucado da sua bochecha parecia ter
diminuído com a sua alegria.

Eu me senti bem. Pensei na noite anterior, quando não quis dar um beijo
nela, o que parecia uma idiotice

agora. Por que não? Ao observá-la sob a luz clara da manhã no pátio do
café, ao ver como sua felicidade

brilhava, cheguei à conclusão de que aquilo me fazia sentir bem, que não
havia mal algum em deixá-la mais

feliz. Nós dois estávamos ganhando com aquilo – e daí se não fosse a
mesma coisa para ambos?

Saímos do café e começamos a descer a rua em direção à praia. Havia


turistas por toda parte, era o auge da temporada, o maior feriado do ano no
cabo Cod. Passamos pela loja de ferragens da minha família e fiquei de
costas para as janelas. Não havia muitas chances de alguém ver algo através
do monte de tralhas da vitrine, mas não queria correr o risco de olhar nos
olhos dos meus irmãos ou da minha mãe.

– A Ari tem medo de entrar aí – Diana disse, apontando com a cabeça para
a loja.

– É só uma loja de ferragens.

– Sim, mas ela a odeia. Diz que as paredes se fecham em volta dela.

– Talvez seja eu o problema.

Ela me deu uma cotovelada de brincadeira. Nunca tinha pensado que a


Diana North quietinha, aquela que ria

das piadas de Ari e usava camisetas polo abotoadas até o pescoço, poderia
tirar onda comigo.

– Estou te falando – ela disse. – Se alguém pode conversar com ela, esse
alguém é você.
– Talvez – respondi, e sorri de novo.

A cara que ela fez foi tão perfeita – surpresa e contente – que dei risada, e
seu rosto começou a ficar

vermelho em volta do hematoma preto e azulado.

– Não estou rindo de você – expliquei. – Estou rindo porque…

Mas não sabia por que estava rindo. Porque eu estava vivo? Era essa a
grande piada?

Ou era engraçado – surpreendente – lembrar que eu assustava as pessoas ou


as deixava felizes ou algo do

tipo? Na minha casa, às vezes me sentia como uma tevê quebrada: os outros
olhavam para mim e depois

viravam a cara, porque eu era sempre o mesmo. Os mesmos erros, as


mesmas decepções. Nada do que eu

fizesse os deixava impressionados.

Com Diana era diferente. Tudo que eu fazia era novo, tudo importava. Ela
não esperava que eu fosse desse

ou daquele jeito, e minhas ações afetavam a forma como ela reagia.

Com ela, eu era capaz de causar impacto no mundo.

19. Win

Echo disse que precisava praticar o feitiço algumas vezes para ter certeza,
mas que me avisaria quando

estivesse pronto. Eu falei que arranjaria o dinheiro, e realmente pretendia


fazer isso logo, mas está aí uma coisa engraçada sobre a depressão: é difícil
pra cacete cumprir um plano.
Eu não tinha dinheiro. Minha mãe não tinha dinheiro. Minha irmã Kara
tinha onze anos – e não tinha

dinheiro. Ari tinha economias suficientes do seguro de vida dos pais dela
para começar a vida em Nova York, o que era uma daqueles diferenças
quase invisíveis mas enormes entre nós; embora ela pudesse ter me dado o
dinheiro, eu não podia pedir. Para começar, era o seguro de vida dos pais
dela. E ela e sua tia precisavam daquela grana. Eu não podia tirar Nova
York dela. O Win legal, o namorado honrado e o bom moço

definitivamente não faria uma coisa dessas. Pedir esse dinheiro significaria
admitir que eu não era o Win legal e bom moço. Além disso, se ela
soubesse o que eu estava fazendo, iria se culpar, e ver isso em seu rosto me

faria sentir ainda pior.

Eu a amava. Mas era como amar uma pessoa de trás de dois metros de vidro
à prova de balas. Ela estava

distante, sua voz abafada.

Assim, restava Markos. Markos não tinha dinheiro, e sua mãe vivia tendo
problemas para pagar os

fornecedores da loja de ferragens e cobrir a hipoteca, mas pelo menos ela


tinha a loja – as pessoas entravam ali todo dia e davam dinheiro para eles.
Só que eu não sabia como pedir.

Porque o feitiço estava a caminho, recuperei parte do apetite e até consegui


jogar algumas partidas de

beisebol sem fingir dor no joelho nem sentar no banco.

Pode parecer estranho que eu estivesse contando com o feitiço sem tentar
pensar numa forma de pagar por

ele. Não que estivesse planejando dar um calote em Echo ou coisa do tipo.
Eu queria pagar a dívida. É só
que… mais que isso, queria ficar bem. Queria sair do buraco.

Aquilo era muito parecido com um buraco. Ou mais com um poço, talvez:
escuro e claustrofóbico, nas

paredes as marcas de unhas que outros prisioneiros tinham deixado em suas


tentativas de fuga. Eu olhava para o alto e via uma fresta de luz, mas então
piscava e a escuridão me tragava de novo. Começava a pensar que

minha mãe não conseguia me dar atenção, que Kara ficaria irritada alguma
hora, que Ari não devia me amar e que Markos me via como uma
obrigação, e nem os culpava por nada disso, porque eu sabia que merecia
ser

tratado como lixo. Porque nunca tinha feito nada para tornar o mundo um
lugar melhor, não era um cidadão

de moral honrada e o fato de não conseguir aproveitar a vida como uma


pessoa normal devia significar que eu era um erro evolutivo que precisava
ser exterminado.

O mundo pertencia às pessoas felizes, às almas despreocupadas. Eu não


tinha inveja delas. Só queria sair do caminho.

Dentre as coisas que me haviam atraído em Ari no começo estava o fato de


ela não ser uma dessas almas despreocupadas. Isso foi antes de eu cair no
poço de verdade, quando ainda conseguia atravessar os dias,

mesmo os mais sombrios, através de falsidades. Nós sempre havíamos


estudado juntos, mas tenho a

impressão de que só fui prestar atenção nela pela primeira vez na aula de
trigonometria, que cursamos na

mesma classe no primeiro horário do antepenúltimo ano.

Ela sentava bem ereta, como se seu tronco acompanhasse a linha do cabelo
que descia por suas costas.
Esse tipo de postura poderia parecer esnobe para alguns, mas fazia tanto
tempo que eu estudava com ela que conhecia sua história. A tragédia dos
seus pais, mortos num incêndio, o fato de ela morar com a tia toda

tatuada, que trabalhava num café, e de ser bailarina – e uma boa bailarina.

Ela tinha sobrevivido a algo terrível. Eu não tinha pena dela por isso, essa
história aumentava meu respeito por Ari.

Comecei a conversar com ela antes e depois das aulas, e fomos ficando
amigos. Não sei dizer bem como.

Da forma como se vira amigo de alguém, ainda mais de uma menina: tudo
acontece com gestos, momentos,

olhares e piadas, então, antes que a gente perceba, está sempre perto do
armário dela de manhã ou na casa

dela depois da aula, e os planos para sexta-feira já estão pressupostos, assim


como os presentes de Natal, os dias ruins, as mágoas e as caronas de última
hora para a escola. Impossível de localizar ou reencenar. Nós ficamos
amigos por um ano e depois passamos a namorar. Simples assim.

Um dia, enquanto fazíamos a lição de casa na cozinha dela quase no fim do


segundo ano do colégio, pouco

antes de começarmos a namorar, eu estava me esforçando muito para pensar


em algo que não fosse beijá-la,

então perguntei se ela achava que o feitiço que havia comprado valera a
pena.

– Sim – Ari disse, sem hesitar. – Sabe quando as pessoas dizem: “Nem
consigo imaginar como deve ter

sido horrível”? Então, agora posso dizer o mesmo. Também não consigo
imaginar.
Por algum motivo, não queria deixar o assunto para lá, por mais que
soubesse que Ari havia dito

praticamente tudo o que queria dizer sobre o assunto. Ela esfregou o pulso
com o polegar, franzindo a testa, e olhou atentamente para o livro de
trigonometria.

– Quem você acha que foi?

– Um turista.

– Por quê?

– Encontraram resquícios de fogos de artifício na lareira. Sempre me fez


pensar em alguém de férias,

alguém que estava na cidade para se divertir. Acho que algum turista
chapado invadiu a casa, acendeu uns

fogos de artifício e acabou perdendo o controle da situação – ela disse em


um tom corriqueiro, como se

estivesse lendo uma reportagem.

– Então não foi de propósito.

Ela fez que não, abanando a cabeça devagar.

– Não consigo imaginar que alguém pudesse fazer aquilo de propósito.


Simplesmente… não consigo.

– Se você acha que foi um turista, como consegue olhar para a cara deles
agora?

– É meio difícil evitar.

– Eles pensam que são os donos de tudo. – Eles eram os donos de tudo, pelo
menos em comparação
comigo. Eles tinham o direito de tirar férias.

Um dia minha mãe me levara de carro com Kara para a ilha Block, quando
eu tinha onze anos. A ilha era

muito parecida com a nossa cidade: turistas por todo lado, praias, frutos do
mar. Ela comprou sorvete para a

gente. Ainda mais do que normalmente, achei que deveria estar me


divertindo e fiquei bravo comigo mesmo por não conseguir apreciar o
momento. Contudo, naquele dia, eu não era o único. Ninguém conseguia
manter

o sorriso no rosto.

Ari não tinha falado nada, e achei que tinha ido longe demais. Por fim, ela
abanou a cabeça.

– Não posso ter raiva de todos os turistas. Não conseguiria viver. Mas
também não tenho como evitar

sentir um pouco de ódio deles.

– E se pegassem o cara? Você se sentiria melhor?

– Não. – Ela suspirou com tanta força que soprou as folhas do caderno. –
Além disso, faz quase oito anos.

Ele já deve estar longe a essa altura. Duvido até que saiba que botou fogo
na casa. Não deve ter feito isso por maldade.

Senti meu coração apertar ao me dar conta do que ela estava dizendo. Ela
tinha abandonado a esperança.

Algo dentro de mim me avisou que aquele vazio se aproximava. Sentado ao


lado dela na mesa, cheguei a

sentir o quarto ficar menor, enquanto nós dois escorregávamos feito água
pelo ralo.
– Desculpa – eu disse. – Nem sei por que estou te perguntando essas coisas.

– Não tem problema – ela disse, e até chegou a sorrir um pouco. – Prefiro
que pergunte em vez de nunca

tocar no assunto, como se fosse alguma doença terrível. Estou bem agora.

– Certo – eu disse. – Claro que está.

– Tenho Jess, Diana e o balé… e tenho você também. – Ari disse essa
última parte rápido, como se

desconfiasse de que tinha ido longe demais, dizendo que eu era dela.

Mas ela não tinha ido longe demais. Eu me senti bem – ótimo até – por
estar na lista de coisas que a faziam viver, porque eu sentia o mesmo por ela
sem perceber: ela ocupava um espaço na minha vida que eu não sabia que
tinha até então. Foi nesse momento que decidi que não estava só pensando
em dar um beijo nela, mas que realmente daria. Acabei demorando para
realizar isso, mas a decisão nasceu naquela conversa.

– Eu estou bem – ela disse de novo, e me acotovelou de um jeito decidido.

Mas eu não acreditei. Ela não estava bem, e eu também não.

20. Kay

Nós não estávamos bem. Depois da festa da fogueira, se Ari ou Diana


ficassem um dia sem falar comigo, eu

começava a entrar em pânico – pensando no hematoma de Diana ou em


coisa pior. Aquele grande pássaro

sombrio pairava sobre mim diariamente, ameaçando descer e levar minhas


amigas embora. Eu ficava em alerta

constante para que ninguém se machucasse de novo.


Agora que eu sabia que elas tinham considerado deixar a cidade sem mim,
me convenci de que estavam

tentando me abandonar o tempo todo. Imaginei coisas cada vez piores


acontecendo com elas. Não era o

suficiente passarmos algum tempo juntas. Elas precisavam me querer por


perto de verdade, e não em algum futuro hipotético. Agora. Antes que
tivessem outras ideias brilhantes.

Mas algo havia se partido. Nós sentávamos na sorveteria onde Ari


trabalhava ou no café da tia da Ari e não conversávamos umas com as
outras.

O problema era que eu achava que Ari e Diana também não andavam
conversando muito entre si. Ari ficava

quieta e distante, mergulhada em seus pensamentos. Diana só sorria quando


achava que não estávamos

olhando e passava o resto do tempo tocando o hematoma e se contraindo.


Ninguém dizia nada. Não era

divertido.

Só que eu não parei de tentar.

– Você continua bonita – falei para Diana. – E está cicatrizando rápido.

Estávamos no porão da casa de Ari, o menos bem-acabado de todos os


nossos porões, sem uma janela alta

para deixar entrar o sol do verão. Ari estava deitada de costas atrás do sofá,
tentando estender a perna sobre a cabeça, e Diana olhava para o próprio
rosto na câmera do celular. Ela realmente continuava bonita. Tinha o cabelo
vermelho, a pele lisa e olhos grandes. Mas não me respondeu e não guardou
o aparelho.
Se havia uma coisa que eu tinha aprendido com a doença de Mina, era
como cuidar de uma pessoa doente.

Então vinha cuidando de Diana – trazendo revistas, doces e às vezes


falando sozinha, para que ela pudesse

descansar e se recuperar.

Ofereci um Tylenol e uma garrafa de água que tinha na bolsa pra ela. Ela
fez um sinal indicando que não

precisava de nada.

– Estou bem.

– Sabe, se eu tivesse me machucado assim, ficaria parecendo um zumbi.


Mas você é tão bonita que nem

aparece.

– Tá, tá – Diana disse, finalmente guardando o celular. – Já entendi.

– Eu só estava dizendo…

– E você já disse. Não preciso ouvir mais nada.

Do chão, Ari falou:

– Kay pode me dizer que sou bonita, se quiser.

– Você é linda. Sério.

Ari soltou um “ah ” agudo.

– Você fala isso para todo mundo. Está desvalorizando seus elogios.

– Estou falando sério! – As duas riram com mais sinceridade, até que o
rosto de Diana doeu e ela voltou a
apertar o machucado com o dedo, devagar e cuidadosamente.

– Ah, esqueci de comentar. Comprei ingressos para a gente ver Wicked em


Boston! – exclamei.

Nenhuma das duas respondeu.

– Fiz isso porque vocês comentaram que queriam ir para Boston na festa da
fogueira…

– Não era exatamente isso que a gente tinha em mente – Ari disse,
sentando-se e estalando as costas. – Mas valeu, Kay.

– E a gente vai, né? Quer dizer, meus pais compraram para nós e não sei se
dá para pedir reembolso…

Diana olhou para Ari, que deu de ombros.

– Não sei – Diana disse. – Ando meio ocupada.

– Ocupada com o quê?

Ela ignorou a pergunta.

– Mas talvez você queira chamar algum menino… como o Cal Waters…

– Para ver Wicked?

Ari abraçou uma perna perto da bochecha.

– Acho que é o jeito da Diana perguntar se você vai sair com o Cal de novo.

– Ah... – Não tinha pensado muito nele desde a fogueira. – Não sei se vai
rolar alguma coisa.

– Que bom! – Ari disse. – Quer dizer, ele é um Waters. Eu adoro o Markos,
mas sabe como eles são.

– Ele parecia bem simpático.


– Sim, exatamente – Ari disse. – No começo são simpáticos. Mas então
fazem você gostar deles e depois te

dão um fora. Não quero que você se encha de esperanças.

– Não tenho esperança nenhuma – disse, mas senti uma parte de mim
murchar e se contorcer diante do

conselho não solicitado de Ari. Será que eu tinha depositado esperanças em


Cal? Será que ele achava que eu estava doida por ele? Que ele tinha se
vangloriado diante dos irmãos dizendo que havia ficado comigo? Se eu não
quisesse sair com ele, isso faria de mim uma vadia?

Era isso que Ari estava tentando dizer ao fingir preocupação?

– Os irmãos Waters são namorados terríveis – ela continuou. – Já vi mais


que o suficiente para saber disso.

– Nunca disse que queria namorar com ele.

– Que bom!

Voltamos a ficar em silêncio. E, aos poucos, aquela maré interna foi


subindo, cheia de ódio. Não havia razão alguma para eu não sair com Cal.
O que havia de errado comigo para que Ari achasse que precisava me

avisar? Não acreditava que, porque ele era um Waters e eu era eu, não
houvesse chance alguma de dar certo.

Na verdade, eu sabia que havia uma chance. No bolso do meu casaco de


inverno tinha um biscoito de

chocolate meio amassado que podia provar para Ari e Diana que eu não era
só mais uma garota de quem Cal

havia se aproveitado. Elas estavam erradas em relação a mim, e eu só


precisava mostrar isso a elas.
No dia seguinte, embrulhei o biscoito em papel-celofane azul com um laço
verde e fui até a loja Ferragens Waters. Cal estava cuidando da caixa
registradora, então fiquei esperando enquanto um casal comprava

inseticida e babosa. Ele sorriu para os clientes mesmo quando eles passaram
a fuçar os inúmeros

compartimentos de suas pochetes em busca de troco. Sorriu para mim ao


me ver. Eu estava acostumada com

Ari, Diana e Mina, que quase não sorriam mais. A animação de Cal parecia
vir de outro mundo.

– Ei – ele disse. – É Kay, não é? Alguma novidade?

– Nada de mais – respondi. – Só estava passando e pensei em te dar um oi.

– Ah... Oi.

– Eu, hum… – Estendi o biscoito para ele, que ficou olhando como se
esperasse que o biscoito se

explicasse sozinho. – É um biscoito. De chocolate.

Seu sorriso diminuiu.

– Você… fez um biscoito para mim?

– Quê? Não! – Dei uma risada fingida e joguei o cabelo para o lado. – É um
feitiço de boa sorte. Dura um

dia. Minha avó me mandou. Mas minha hekamista disse que não posso
tomar mais feitiços, por causa dos

efeitos colaterais, e não queria desperdiçar, então, quando passei, sei lá…
pensei que você pudesse gostar.

Eu... hum… me diverti na festa da fogueira.


– Ah. Valeu – ele disse, e tirou o biscoito da minha mão. Acho que fez isso
mais para eu calar a boca do que porque realmente quisesse o doce.

Um homem entrou na fila atrás de mim com um monte de equipamentos


para pesca. O sorriso de Cal se

abriu novamente enquanto ele olhava por sobre meu ombro.

– Então, a gente se vê por aí – ele disse.

– É. Claro. A gente se vê.

– Obrigado pelo feitiço.

– De nada. – Não saí da fila. Ele ainda não tinha comido o biscoito, e eu
não podia correr o risco de ele

entregar para um de seus irmãos, um cliente ou qualquer outra pessoa. –


Você devia comer.

– Agora? Não devia guardar para um dia especial...?

– Não! – interrompi. – Não vale comer quando você sabe que precisa. É
mais divertido comer num dia

qualquer. Como hoje.

– Está bem. – Ele olhou para o pescador que suspirava atrás de mim,
inquieto. O sorriso de Cal não

esmoreceu: ele soltou o laço e enfiou o biscoito na boca. – Hummm. Valeu.

Peguei o celofane e as migalhas de sua mão antes que fossem comidas por
ratos e eu virasse a Flautista do

cabo Cod.

– Ótimo! Vou jogar no lixo para você. Tchau!


Antes mesmo que eu chegasse à porta, ele já tinha começado a conversar
sobre pesqueiros com o cliente

seguinte. E, por dois dias e meio, fiquei sem notícias suas.

Então, eu, Ari e Diana fomos ver Wicked em Boston. Nem pensei nos quase
duzentos quilômetros que

estávamos percorrendo, estava aliviada demais por elas terem aceitado ir no


fim das contas.

Durante o intervalo, enquanto Ari e Diana estavam em silêncio ao meu


lado, olhei o celular. Tinha uma

mensagem de Cal Waters.

Pensando em vc.

Merda. Eu o tinha deixado para trás. Longe demais.

Oiiii! O q vc está fazendo?

Esperava que minha resposta parecesse casual – o oposto do que eu sentia.

Dei o cano no trabalho e peguei a balsa pra Boston. A gente podia sair qdo
eu voltar.

Quando eu voltar. Ele não sabia que eu estava em Boston. O feitiço o tinha
atraído para cá

inconscientemente.

Por um segundo me esqueci da amarração e desfrutei a sensação de receber


uma mensagem de um cara

dizendo que queria sair comigo. Me animei. E as palavras cresceram e


brotaram dentro de mim.
Era só uma mensagem, eu sabia disso. Mas me fez lembrar de quando eu
havia começado a ficar amiga de

Diana e Ari, quando era natural e divertido fazer tudo juntas, e não
silencioso, estranho e desconcertante. Na época, toda vez que saíamos
juntas era uma nova aventura.

Cheia de possibilidades.

21. Ari

Uma semana e meia depois da festa da fogueira, faltando menos de três


para eu me mudar para Nova York no

primeiro dia de agosto, fui de carro à praia e caminhei até mais ou menos o
mesmo lugar onde Echo havia me encontrado.

Sentei na areia durante os noventa minutos de “aula”, que era onde Jess
pensava que eu estava. Fiquei

olhando os turistas e as gaivotas, tentando pensar numa forma de fazer Echo


me deixar em paz. Me obriguei a não me virar e olhar para o ponto onde
Diana tinha caído, imaginando o que aconteceria comigo se eu

continuasse sem tomar uma atitude.

1) Eu nunca venceria meus efeitos colaterais.

2) Echo contaria para todo mundo que eu tinha apagado a lembrança de


Win.

3) Eles ficariam furiosos/decepcionados/enojados.

4) Nunca mais poderia dançar.

5) Talvez nunca conseguisse sair do cabo Cod.

6) Se saísse, o Balé de Manhattan me expulsaria da companhia juvenil no


primeiro dia.
7) Se morresse aqui, não conquistaria nada nem iria a lugar algum.

Eu não podia compartilhar qualquer uma dessas preocupações com a dra.


Pitts, a terapeuta a que Jess me

obrigara a ir. Por isso, quando sentava para a nossa consulta, sempre a
desapontava. Não me abria. Não

compartilhava. Não demonstrava a tristeza adequada. Tentava acabar logo


com a sessão para poder voltar e

tentar dançar, mas precisava dizer algo a fim de passar o tempo.

– Não sou mais aquela menina – eu disse. Quanto mais vago e dramático,
mais fácil era mentir.

– Como assim?

Opa.

– Quero dizer… me sinto diferente. Eu era uma antes de Win morrer e


agora sou outra.

– Diferente como?

Às vezes eu achava que a dra. Pitts estava me fazendo um interrogatório.


Que ela desconfiava de que havia

algo de errado comigo.

– No balé, algumas meninas não conseguem se recuperar depois que


menstruam. Não é só uma questão de

terem seios e estarem mais altas. Elas ficam com medo. O cérebro delas não
deixa mais que elas saltem, ou

talvez passem a duvidar do próprio equilíbrio.

– Isso aconteceu com você?


– Não. – Revirei os olhos. – É uma metáfora.

– Como assim?

Pestanejei.

– Bom... Acho que algumas pessoas reagem a uma perda, a uma mudança
ou seja lá o que for perdendo o

controle e se entregando ao luto. E outras, como eu, mudam, mas não


completamente. – Isso tinha soado

bem.

– Então você não acha que perder alguém pode te modificar? – Ela bateu
com a caneta prateada elegante no

bloquinho. – O luto pela morte é uma coisa à qual só as pessoas fracas


sucumbem?

Dei de ombros.

A dra. Pitts se inclinou. Ela estava envolta em lenços, como uma múmia.
Nem sabia se ela era gorda ou

magra, porque sempre usava esses lenços, além de calças largas e botas cuja
altura não se podia adivinhar, em função de todos os tecidos que as
encobriam.

– O luto não é uma fraqueza, Ari. Não é algo que se possa reprimir ou
vencer. Sim, ele pode te mudar, mas

é isso que as pessoas fazem: mudam, crescem. Eu receio que você esteja em
negação.

Fiquei vermelha.

– Não estou em negação. Eu… sinto falta do Win.


– Mesmo?

– Sim, é claro! Não fico na cama o dia todo, mas isso não significa que não
esteja triste. Que tipo de

terapeuta é você, insistindo que eu fique tão triste quanto todas as pessoas
do mundo? Isso é doentio. Estou lidando com isso do meu jeito.

A dra. Pitts pareceu satisfeita por alguns segundos, o que me deixou ainda
mais furiosa.

– É bom ter raiva – a terapeuta disse, o que me deu vontade de jogar a mesa
de centro em cima dela e sair

batendo os pés. Se seu plano era me deixar com raiva, estava de parabéns. –
Me conte sobre seus pais.

– Não – retruquei antes de conseguir me conter.

– Por que não?

– Eles morreram há quase dez anos. Não é importante.

– Você perdeu os dois. Perdeu Win. É normal que sinta raiva.

– Estou com raiva de você, não porque as pessoas morrem!

Ela fez que sim, como se os outros vivessem dizendo ter raiva dela. Talvez
vivessem mesmo.

Me forcei a me recostar no sofá. Na minha cabeça, estava me movendo de


forma suave, e o movimento

sugeria que eu estava relaxada, à vontade, e não incomodada. Contudo,


sabia muito bem que, para a dra. Pitts, eu devia parecer tão desajeitada e
furiosa como no fundo sentia que estava.

Pensei nos meus novos vídeos. Toda manhã eu acordava, ligava a câmera,
colocava música para tocar e
arriscava uma sequência simples de passos: algo de uma apresentação, de
um teste do Instituto ou mesmo a

coreografia do coro feminino do musical do ano anterior. Me lembrava de


todos os passos perfeitamente. Na

minha cabeça, também dançava todos eles perfeitamente.

Eu me obrigava a repetir todos os movimentos, mesmo que tropeçasse e


caísse, mesmo que soubesse o

que a câmera mostraria. Uma caricatura do balé. Como uma daquelas


meninas que perdem a coragem depois

da puberdade, só que mil vezes pior, porque eu tinha coragem – só não


tinha controle.

Na dança, é preciso sentir a música para poder expressá-la. Antigamente, eu


era capaz de exprimir o amor,

o medo, a raiva, a alegria ou o que quer a obra pedisse. A canção trazia o


sentimento à tona, um processo

alquímico na minha cabeça transformava esse sentimento em passos e


movimentos e então, quando me viam dançar, as pessoas sentiam o mesmo.

Agora, eu podia pensar estar sentindo amor, medo, raiva, alegria ou outra
coisa, mas meu cérebro não

conseguia transformar esses sentimentos em expressões e gestos. Tinha


perdido a conexão.

Enquanto me ajeitava no sofá da dra. Pitts, me esforçava para manter o


rosto neutro, como se tivesse

resolvido me remexer no sofá dela sem que houvesse razão para isso.

Passou pela minha cabeça que, se não conseguisse impedir que Echo
falasse, não precisaria mais ir à
terapia, porque Echo contaria tudo, e a dra. Pitts não esperaria mais que eu
me sentisse deprimida e torturada por causa de Win. Seria bom. Mas seria a
única coisa positiva.

– De que adianta? – perguntei. Queria saber de que adiantava me fazer


sentir raiva, mas não foi isso que a dra. Pitts entendeu.

– Adianta porque sempre vai haver tristeza, decepções, tragédia. Adianta


porque você precisa aprender a

lidar com essas coisas, para elas não destruírem sua vida. Adianta para
esquecer o medo. Você se recusa a

falar sobre seus pais. Não me contou quase nada sobre Win. Mas eu passo
pelo ponto da estrada onde ele

bateu a caminhonete e há uma porção de bilhetes, placas, lembranças. Qual


é a diferença entre todas aquelas pessoas e você?

– Elas não o conheciam. Não de verdade.

– Mas você sim. Não quero que você deixe um ursinho de pelúcia em cima
do monte, mas que pense por

que todos eles resolveram homenagear Win daquela forma. Eles podiam
não ter feito nada na estrada, mas

não. Sentiram-se obrigadas a marcar o lugar.

Elas queriam se lembrar dele, claro. Era a esse ponto que ela queria chegar.
Por mais que ela me deixasse

maluca, às vezes eu saía do consultório convencida. Só que não era a


teimosia ou o medo que me impediam

de ser uma boa paciente, era a antiga Ari, ferrando com as coisas de novo.

De volta ao carro, depois da sessão, perguntei a mim mesma de que


adiantava tudo aquilo. A menos que eu
descobrisse outro monte de dinheiro surpresa, era tudo uma farsa. Todas as
mentiras, todas as saídas para o

“balé”, a cara triste ensaiada, as perguntas da dra. Pitts, tudo era inútil.

A antiga Ari havia roubado do seu falecido namorado e, agora, era eu quem
tinha de pagar. Era minha oferta ao memorial de Win à beira da estrada.
Não conseguia ficar de luto, então daria o dinheiro.

Dei partida no carro, mas, em vez de dirigir para a Sweet Shoppe, onde meu
turno começava ao meio-dia,

fui para as Ferragens Waters, para conversar com Markos.

22. Markos

Quarta-feira foi o primeiro dia em muito tempo em que não acordei com a
cara fechada. Não que de repente

houvesse passarinhos cantando, grama verde crescendo e o amor


transformando meu coração, nem nada

dessas merdas todas. Eu só me sentia… melhor. Pela primeira vez desde a


morte de Win. Como se, em vez de

estar enfiado num monte de lama, estivesse suspenso sem gravidade numa
substância mais agradável.

Respirar era mais fácil.

Desde a festa da fogueira, via Diana todos os dias. Nem me importava com
o fato de ela talvez achar que

eu estivesse apaixonado por ela. Diana nunca fez um comentário estranho a


esse respeito. Eu podia ligar para ela ou aparecer na sua casa, porque não
havia nada de errado nisso e porque era o que eu queria fazer.

Ainda não tinha tentado nada com ela, embora pensasse nisso às vezes.
Tinha vontade de me aproximar e
beijá-la no meio de uma frase ou de colocar a mão por baixo da sua
camiseta enquanto víamos tevê. Poderia

ter feito isso. Ela nunca me deu um sinal de que não gostaria. Mas o fato de
eu poder fazer mantinha a ideia guardada, pronta para que a colocasse em
prática se algum dia sentisse necessidade.

Ela não era como aquelas meninas que nos faziam olhar para elas e
esperavam que as desejássemos, e que

só nos davam ouvidos porque achavam que era o que queríamos. Diana
ouvia porque queria ouvir o que eu

tinha a dizer. Ela se deixava surpreender, em vez de receber todo momento


novo com desprezo.

Antigamente, eu a via apenas como a sombra de Ari. Diana sentava em


silêncio ao lado dela no almoço ou

sumia quando eu e Win íamos buscar Ari no local onde ficava seu armário.
Ela não era tão engraçada quanto

Ari, nem tão confiante, e isso fazia com que parecesse não ter nenhum
atrativo. Ao menos nada pelo que

valesse a pena correr atrás.

Mas agora Diana parecia diferente. Foi como ela disse: com Ari ocupada,
precisava fazer alguma coisa. Ser

alguém. Ela ainda não era especialmente engraçada ou confiante, em


comparação com Ari ou com outras

meninas. Mas descobri que havia muitas outras qualidades além dessas.
Como… compreensiva, acho que é a

palavra que as assistentes sociais usam. Não no sentido de “boazinha”, mas


de atenciosa, atenta. Não
lobotomizada.

Quando eu estava com ela, não precisava me controlar ou ficar calmo, nem
agir como um Waters. E, como

não havia expectativas para que eu ficasse feliz, conseguia me sentir bem de
verdade.

Assim, na quarta, estava me sentindo o melhor possível que uma pessoa não
lobotomizada podia se sentir –

não que minha família tenha notado; eles se reuniram em volta da mesa da
cozinha para o café da manhã,

como sempre, apesar de Brian e Dev nem morarem mais ali.

– Dá uma varridinha na oficina hoje, tá, Markos? – minha mãe pediu. Ela
estava com seu livro de

contabilidade e apagava algo furiosamente. Todos tínhamos tentado


convencê-la a passar as contas para o

computador, mas ela se mantinha fiel ao livro e não deixava que nenhum de
nós mexesse nele.

– Onde você estava, aliás?

– Dormindo no quarto.

Brian revirou os olhos e Dev jogou um pouco de cereal na minha cara.

– Estava fazendo alguma coisa no quarto, isso com certeza.

– Ah! O Markos está namorando – Cal disse. – Vi os dois andando juntos


perto da Junior ’s Auto.

– Uau, quem é ela? É gostosa? – Dev perguntou.


– Nada mal. O nome dela é Diana North. Tem um cabelo vermelho muito
louco.

– Fogosa – Dev disse.

– Está no ano dele, acho – Cal disse. – Amiga da Ari Madrigal.

Eles quase pararam ao ouvir o nome de Ari, o bastante para pensarem em


Win – Win e Ari, Ari e Win –, e

depois se apressaram em esconder o pensamento com mais falatório.

– Traz a menina aqui, Markos, quero conhecer – minha mãe disse.

– Não é bem assim.

Ela franziu a testa.

– Como é então?

– Está com vergonha da gente?

– Medo de que a gente roube sua namorada?

– Conselho de amigo – Brian disse, o que era praticamente um bordão seu.


– Trazendo ou não a menina,

não se meta em nada sério nessa idade. Você vai querer manter todas as
suas opções em aberto.

– Você é muito novo para alguma coisa séria, é isso que Brian quer dizer –
minha mãe falou, e Brian deu de ombros, meio que concordando.

– Mesmo assim, traz a menina para cá – Dev disse. – Quando o Markos der
um fora nela, talvez ela queira

sair comigo.
– Você não faz o tipo dela – eu disse, e Dev deu risada. – Além disso, nós
somos só amigos.

Toda a mesa virou para me encarar. Não devia ter falado nada. Seria melhor
que pensassem que estava

saindo com ela do que ficassem se perguntando: “Qual é o problema do


Markos agora?”. Pude ver que

estavam se preparando para fazer perguntas que eu não queria responder,


por isso me levantei antes que

abrissem a boca.

– Vou varrer a oficina.

Assim que saí, tive vontade de procurar Diana e falar mal deles. Pensei que
ela não entenderia e que não

gostaria de saber que andaram falando dela. Além disso, ela ficaria o dia
todo trabalhando como babá e tinha mais o que fazer, então deixei a ideia
para lá.

Em vez disso, tive uma conversa imaginária comigo mesmo, deixando a


mente vagar enquanto entrava na

cidade.

Odeio a minha família.

Não, você não odeia.

Odeio que eles pensem que me conhecem.

E eles não te conhecem?

Claro que não! Eles acham que sou exatamente igual a eles quando eram
mais novos. Como se eu fosse um deles mais jovem. Às vezes Dev até
esquece que eu não jogo polo aquático, saca? Porque ele jogava.
Eles amam você.

Sim. Desde que eu não os envergonhe.

O que os envergonharia?

Não ser um verdadeiro Waters.

O que isso quer dizer?

Não ser descolado. Ficar bêbado demais na festa da fogueira. A peça


fracassada que eu preguei na Festa de Boas-Vindas. Tudo que eu faço.

Que mais?

Diana. Não. Sei lá. Talvez. Ela não é o tipo com que eles estão
acostumados.

Você está subestimando-os.

Parei de andar. Me agachei. Coloquei as mãos nos joelhos. Tomei ar. Senti o
chão tremer sob meus pés. Um

quarteirão comum, casas de temporada dos dois lados, ninguém na rua


ainda, porque era cedo demais para os

turistas.

Na minha cabeça, por um segundo, eu não estava falando comigo mesmo.


Só conseguia ouvir Win.

Win amava meus irmãos. E eles o amavam também – não que falássemos
sobre Win desde sua morte. Não

que falássemos sobre qualquer coisa real, de verdade. Às vezes, os três e


nossa mãe conversavam sobre

nosso pai, mas eram sempre as mesmas histórias cuidadosamente


preservadas, das quais não tenho nenhuma
lembrança. No entanto, nós ignorávamos Win. Se eu tivesse morrido no
lugar dele, aposto que teriam o maior prazer de compartilhar histórias
minhas com Win o dia todo. Mas algo em mim os fazia calar a boca.

Quando consegui me mexer de novo, parei de pensar e corri pelo resto do


caminho até as Ferragens

Waters. Nos fundos da loja, havia uma oficina entulhada com todas as obras
de carpintaria e outras

ferramentas que todo homem pode querer. Na minha opinião, meu pai havia
aberto a loja de ferragens só para poder fazer essa oficina para si.

Passei pelas diversas prateleiras de tralhas e destranquei a portinha quase


escondida que havia ali. Dei uma varridinha rápida nela – minha mãe nunca
notaria a diferença – e decidi soldar um cano velho na forma de um
cachimbo, embora teoricamente eu não pudesse usar a solda sozinho. Eles
até a haviam trancado numa caixa

no canto, como se eu não soubesse exatamente onde guardavam a chave,


num gancho perto da porta. Me

concentrei em soldar e fiz outros cinco – sempre existe um mercado para


parafernália de drogas, desde que

Brian não descobrisse. As horas foram passando, até que eu vi Ari Madrigal
pelo circuito fechado de câmeras da loja.

Como o estabelecimento era um labirinto confuso e entulhado, havia a


chance de alguém sair com metade

dos artigos sem que nenhum de nós percebesse. Mas, em vez de limpar e
organizar a loja – porque Deus me

livre de que a família Waters tentasse fazer algo tão ambicioso –, instalamos
mais câmeras. Elas cobriam os diversos cantos e todos os corredores sem
saída. Um monitor de tela plana mostrava uma grade com imagens

de todos os ângulos.
Ari foi caminhando de corredor em corredor, às vezes em círculos, olhando
ao redor com uma cara digna

de pena. Eu sorri. Ela tinha ido lá inúmeras vezes, mas sempre se perdia.
Nunca me encontraria sem ajuda.

Liguei o interfone.

– Bem perto das lixas. – Ela levou um susto e tropeçou, mas virou à direita.
– A porta fica à esquerda do

mostruário de tintas.

Ari passou de uma tela a outra do monitor e, alguns segundos depois, surgiu
em pessoa na porta da oficina.

Eu devia estar mais bem-humorado do que tinha imaginado, porque fiquei


contente ao vê-la. Não me doeu

olhar para ela e ter me lembrado de Win, porque eu já estava pensando nele.
Em vez disso, foi como receber a visita de uma velha amiga que eu não via
há séculos.

O que era verdade, aliás. Talvez Diana estivesse certa e eu devesse ter
conversado com ela antes.

Ao pensar em Diana, porém, senti um frio na barriga. Ari devia estar ali por
causa de todo o tempo que eu

vinha passando com sua amiga. Ela havia mandado eu me afastar de Diana
de maneira enfática diversas vezes, mais do que conseguia enumerar, e eu
não queria entrar na mesma discussão de novo.

Por isso, não me apressei em desligar a solda e colocá-la de volta na caixa,


fechando e trancando a porta de arame. Depois, tirei a viseira e joguei o
último cachimbo no chão com os outros. Ela se assustou com o

barulho.
Me lembrei do que Diana tinha dito sobre Ari ter medo de entrar na loja.
Imaginei que só a própria Diana a levaria a fazer isso.

– Ari Madrigal – eu disse, ao sair. – Mas que porra você está fazendo aqui?

Ela olhou para a oficina, pousando o olhar nos cachimbos e na bagunça que
eu tinha feito. Seu cabelo

ultraliso, normalmente tão impecável, estava com pontas duplas e ela


segurava um dos punhos com a outra

mão, como se estivesse medindo o pulso. Continuava bonita daquele jeito


pequeno, delicado e dissimulado,

mas nunca entendi o que fazia Win ser tão louco por ela. Uma vez eu a
tinha visto levar o pé até a cabeça, então talvez fosse um fetiche por balé.

– Bom dia para você também, Markos – ela disse, com um sorriso.

– Por onde você andou?

– Ah, por aí. Sou muito requisitada.

– Ah, é?

– Pois é, e comecei a tricotar. Estou fazendo casinhas de cachorro para cães


sem-teto.

– Que bom ver que você está trabalhando pelos menos favorecidos...

– É uma organização de caridade importante. Eles fazem um trabalho vital


na área de cercados tricotados

para animais domésticos. – Ela ficou passando o peso do corpo de um


calcanhar para o outro. – Eu queria te ligar.

– Queria nada.

– Bom. Você podia ter me ligado.


– Para quê? Para você me recrutar para o tricô? – Ela deu de ombros. Eu
insisti. – Ou para a gente chorar

junto? Sei lá, você deixou bem claro no funeral que não queria conversar
sobre Win, mas, sabe, tricô parece ótimo, vai em frente e me inscreve para
as seis. – Bocejei, espreguiçando os braços para o alto. – Por que você está
aqui, Ari?

Ela endireitou os ombros, o que era estranho, porque normalmente não


precisava fazer isso. Eu me

preparei: “Fica longe de Diana. Para de mexer com a cabecinha dela. Qual é
o seu plano maligno?”. Mas não

havia nada que ela pudesse me obrigar a fazer. Eu estava pronto. Me


lembrei dos meus irmãos me

aconselhando no café da manhã: eles achavam que sabiam o que estava


acontecendo e tinham me dado

conselhos para que eu me controlasse. Mas não sabiam de nada, nem


tinham como saber.

– Preciso de cinco mil dólares emprestados – ela disse por fim.

Todo o ar saiu dos meus pulmões, mas, no segundo seguinte, eu estava de


volta, alerta.

– Ha-ha! – falei. – Esses cachorros precisam de muita lã, hein?

– Não estou brincando. Desculpa pedir isso para você, mas não sei quem
mais…

– Não sou um banco – declarei.

– Eu sei. Mas você tem seu bico com os cachimbos… e a loja…

– A loja é da minha mãe. Por que diabos você precisa de cinco mil dólares?
– Não posso te contar.

– Isso funcionou com Win, mas não vai funcionar com você.

Sua testa se franziu.

– O que você quer dizer com… ah. Foi com você que ele conseguiu. – Ela
esfregou os olhos com as

palmas das mãos. – Merda!

Claro que Ari sabia do dinheiro emprestado para Win. Eu achava que era o
único a quem ele havia contado,

mas foi idiotice da minha parte.

– Ele não te contou de onde veio o dinheiro?

Ela hesitou e então abanou a cabeça.

– Não.

Ótimo. Ele tinha me deixado completamente fora da história.

– Ele te contou para que era?

– Não.

Pelo menos não tinha contado isso para ela. Me sentiria um completo idiota
se ela soubesse e eu não.

– Que coincidência incrível, hein? Vocês dois me pedindo exatamente a


mesma quantia de dinheiro. – Chutei

o armário ao lado da bancada, a tampa caiu e se fechou. – Acho que sei o


que vocês dois pensam de mim.

Pensavam de mim.
– Por favor, Markos. Você sabe que eu não pediria se não fosse importante.

– E o que é tão importante?

Ela envolveu a mão no punho do outro braço e mordeu o lábio.

– Win deve cinco mil dólares para uma pessoa.

– Sim, e eu dei os cinco mil dólares para ele. Então já era.

– Ela não recebeu esse dinheiro.

– Por que não?

– Porque… eu gastei.

Soltei o ar dos pulmões.

– Não sabia que era dele – Ari disse. – Quer dizer, seu. Achei no meu
guarda-roupa. Ele deve ter escondido lá.

– Então devolve o que você comprou e dá o dinheiro para a pessoa.

Ari abanou a cabeça. Ela não iria dizer em que tinha gastado, isso dava para
ver. Deve ter pensado que eu

ficaria grato por ela ter me contado alguma coisa.

– Beleza, então – eu disse. – As dívidas do Win morreram com ele. Fala


para essa pessoa que você saiu

gastando loucamente, e ela que se foda.

– Não posso.

– Por que não?

– É uma longa história.


Tirei as lascas de metal da mesa e dei um passo na direção dela.

– Eu devia te dar cinco mil dólares… por quê? Você basicamente já roubou
cinco mil dólares de mim. E se

recusa a me dizer com que gastou. Se recusa a falar comigo. Onde você
esteve o verão todo?

Ela franziu a testa com uma expressão obstinada.

– Se Win pedisse, você teria emprestado na hora. Você emprestou na hora.


Aposto que não saiu brigando

com ele também.

– Você acha que nós dois somos tão amigos quanto eu e Win éramos?

Sua expressão continuava obstinada.

– Eu cuido de você. Você devia cuidar de mim.

– Win era meu melhor amigo. Não tem ninguém que eu trataria do mesmo
jeito e ninguém que eu vá tratar.

Nunca. Eu e você não saímos juntos há semanas. Você acha que eu devia
tratar você como tratava Win?

Porque ele te amava? Não mesmo. Na verdade, agora, nós nem somos
amigos. Sacou?

– Puxa, Markos…

– Não. Estou falando sério. Por que fingir? Nós não temos mais nada em
comum. Acho que nunca

tivemos. – Não era isso que eu queria dizer, e provavelmente nem era
verdade, mas não consegui me conter. –
Não gosto de você. Não gosto das suas piadas. Não sinto pena de você por
causa do seu passado trágico.

Não tem nada em você que eu ache interessante.

Ela deu a impressão de estar derrotada, mas não tão completamente quanto
eu queria que ficasse. Queria

um colapso completo. Que ela demonstrasse tanta tristeza quanto eu sentia.

– Você podia ter dito só não – ela falou.

– E eu não preciso te mostrar a saída – concluí, virando as costas para ela. –


Boa sorte para achar a porta.

Por Win eu roubaria. Por Win eu mataria. Ari não era Win.

Ela virou as costas, tropeçando ao sair pela porta da oficina. Na tela plana,
eu a vi virar e dar a volta pela loja várias vezes, sempre escolhendo o
caminho errado. Perdida.

Eu não a ajudei.

23. Win

Echo tinha aceitado me ajudar, mas praticar o feitiço levou tempo – meu e
dela. Ela me chamava para ir à sua casa e me sentar no sofá, perguntando
coisas sobre como eu me sentia e como queria me sentir, ou me

contava sobre o que tinha lido num dos livros da mãe sobre feitiços mentais
e o que eu poderia esperar sobre os efeitos colaterais.

Ela também me falava da sua mãe.

– Ela anda esquecendo as coisas. Perdendo pedaços de si mesma – Echo


disse. Pensei que se referia à

demência, mas era algo além disso: era o que acontecia quando as
hekamistas viviam mais do que o resto do
seu clã. A mãe dela só tinha a Echo. Um clã precisava ter pelo menos três
hekamistas para ficar estável, sendo que o ideal eram sete. – Quando ela
morrer, vou ficar completamente maluca – Echo afirmou.

– Você tem raiva dela por te obrigar a entrar para o clã?

– Ela não me obrigou a nada. Eu entrei quando a penúltima membra do clã


teve câncer. Eu queria entrar.

Não podia deixar minha mãe se despedaçar. – Ela abriu um sorriso com
seus lábios de batom vermelho. –

Além disso, ser uma hekamista tem muitas vantagens. Se eu não tivesse
entrado, não poderia ajudar você.

Numa dessas visitas, enquanto procurava em potes e panelas e me fazia


experimentar pedacinhos de

cheddar, parmesão, camembert e boursin, Echo me contou que tinha sido


expulsa da faculdade e demitida do seu emprego de garçonete, e que seus
apartamentos sempre se enchiam de ratos, e que os proprietários

desconfiados tinham cancelado os contratos, obrigando-a a voltar para casa.

– Parece até que minha mãe me fez uma amarração – disse, revirando os
olhos.

– O que é uma amarração?

– Um tipo de feitiço para me manter perto dela. Faria sentido: ela vive
preocupada comigo porque sou ilegal.

Tem medo de que eu seja descoberta e passe o resto da vida na cadeia.

– Você corre esse risco?

– Bom, sim. – Ela fez um gesto indicando que não era nada de mais. – Eu
iria para a cadeia, ela iria para a cadeia. Qualquer pessoa de um clã que
inicia uma hekamista nova pega prisão perpétua. É por isso que
preciso encontrar outro clã e convencer as hekamistas a nos aceitarem. Elas
vão precisar de um pouco de

persuasão, talvez até de suborno, porque é um risco muito grande aceitar


uma menor de idade. Mas eu

preciso fazer alguma coisa para salvar minha mãe. Para me salvar.

Eu me debrucei na mesa da cozinha, surpreso por estar interessado – que


não era uma palavra que eu usava

com muita frequência para me descrever naqueles dias.

– Então o feitiço de amarração mantém você perto dela?

– Se ela tivesse me dado um, sim, mas acho que não foi isso que aconteceu.

– Por que não?

– Amarrações são coisas de gente tosca – Echo bufou. – Prender espécimes


embaixo do vidro. Além disso,

as hekamistas não usam feitiços umas nas outras. Não é certo.

– Mas ela poderia…

Echo abanou a cabeça.

– Minha mãe me ama, mas sabe das coisas. Às vezes, má sorte não passa de
má sorte.

Cocei os braços e me perguntei se algum dia conseguiria acreditar que a má


sorte não era completamente

culpa minha. Se eu fosse Echo, preferiria acreditar que era uma amarração
que me mantinha longe do que eu

queria – qualquer coisa, menos “às vezes as coisas são assim mesmo”.
– No entanto, se fosse uma amarração, você poderia quebrá-la – eu disse.

– Até parece que dá.

O problema dos feitiços, como Echo me explicou, é que eles não podem ser
quebrados. No máximo, dá

para esperar que passem (quando são temporários) ou tentar colocar outra
camada de feitiço sobre eles

(quando são permanentes). É um pouco mais fácil tentar corrigir os efeitos


colaterais em vez do feitiço em si, mas até isso é complicado, porque a
pessoa vai acrescentar um feitiço em cima daquele que já tem e, a partir do
momento em que começa a duplicar e triplicar a magia, os efeitos colaterais
vão ficando malucos. Se o

objetivo é reverter o feitiço em si, e não o efeito colateral, isso vai se


tornando quase impossível. Às vezes, se a hekamista for muito boa, a lua
estiver na fase certa e você tiver levantado da cama com o pé direito, a

hekamista pode arranjar o feitiço ideal com os efeitos colaterais certos para
levar a pessoa quase de volta à direção original. Só que essa tentativa pode
ser perigosa. Um feitiço bem-feito se protege. Ele age no mundo para não
ser destruído, segundo Echo.

Uma semana depois, voltei para buscar meu feitiço.

Era estranho pensar que o sanduíche de queijo que eu segurava tinha


vontade própria, mas era isso que

Echo havia dito. “Ele vai agir no mundo para se proteger.” Ela tirou as
cascas do pão, cortou o sanduíche na diagonal e o colocou num saco
plástico para mim.

– O feitiço está no queijo – disse. Havia esperança em seu rosto, orgulho.


Talvez até um pouco de

acanhamento sob o monte de maquiagem. – Eu gosto de queijo.


Eu estava segurando nas mãos a solução de todos os meus problemas. No
entanto, aquilo parecia apenas

um sanduíche de queijo comum.

Poderia ingeri-lo naquela hora mesmo, engolir tudo de uma vez e resolver a
questão do dinheiro depois. Mas não podia fazer isso com Echo, que só
havia tentado ajudar e tinha seus próprios problemas – uma mãe

doente e sua futura loucura.

– Não tenho o dinheiro – eu disse. – Não ainda.

Seu orgulho se desvaneceu, sendo substituído por decepção. Ela sentou à


mesa da cozinha e tirou o cabelo

da testa com as duas mãos. Parecia não apenas triste, mas amedrontada. O
que era compreensível.

Eu me remexi, passando o sanduíche de uma mão para a outra.

– É melhor eu devolver?

Echo ergueu os olhos.

– Você vai arranjar o dinheiro, não é? Não vai me deixar na mão?

– Sim – eu disse. O que mais eu poderia falar?

– Leva o feitiço então. Melhora. Me paga quando tiver o dinheiro.

– Você confia em mim?

Ela olhou para mim sem firmeza com os olhos maquiados de preto.

– Fui eu que te fiz uma urucubaca cerebral irreversível. Você confia em


mim?
– Não tinha pensado dessa forma. – Olhei para o sanduíche. Um canto
estava pressionado, onde o polegar

de Echo segurava o pão. – Os seus feitiços costumam funcionar?

Echo não respondeu.

– Echo... Esse… esse não é o seu primeiro feitiço, é?

Ela continuou sem olhar para mim.

– Já lancei feitiços antes. Muitos. Minha mãe me ensinou alguns até


começar a ficar tão… perdida. Mas

ninguém nunca tomou.

– É por isso que o feitiço demorou tanto tempo?

– Só tomei um cuidado especial. Queria fazer do jeito certo.

Engoli saliva para aliviar a secura súbita da garganta.

– Se ninguém tomou, você não tem como saber se algum dos que praticou
funcionariam.

Ela se levantou e me olhou nos olhos, tomando coragem para argumentar.

– Vai funcionar, Win. Sua tristeza… vai sumir. Os efeitos colaterais vão ser
físicos, então talvez não consiga jogar beisebol por um tempinho, mas você
não vai se matar, então…

– Como sabe que eu jogo beisebol? – Eu não estava tentando acusá-la de


nada. Não queria pensar na relação

entre meu corpo e meu cérebro. Eu ficaria doido se me permitisse ponderar


sobre isso por muito tempo. (Eu

era bom no beisebol porque era ruim em ser feliz?) Mas um vermelho-vivo
subiu do pescoço de Echo para as
bochechas, fazendo-a corar.

– Pesquisa – ela murmurou, e naquele segundo eu soube que tinha ido a um


jogo, que tinha me assistido

sem que eu soubesse. Ela me observara e confiava em mim, além de corar


como uma, sei lá, uma menina.

Achei melhor não continuar nessa linha de pensamento.

Echo deve ter pensado o mesmo, porque se levantou e colocou a tábua e a


faca na pia, depois começou a

esfregá-las furiosamente, de costas para mim.

– Come antes de dormir – ela disse. – Vai fazer efeito de manhã.

Ergui o saco pela ponta e olhei para o sanduíche. Comum. Mas não, de
algum modo, aquele era um

sanduíche permanente.

– Por quanto tempo vai continuar bom?

Ela fechou a torneira e olhou para mim, não mais corada, só com a
curiosidade reservada de sempre.

– O tempo que precisar. O pão pode ficar velho, mas o queijo não vai
estragar.

– Valeu – agradeci.

– Você não vai comer agora?

Dei de ombros. Ela é que tinha achado necessário me assustar com histórias
de feitiços inquebráveis. Ela é que não tinha me contado até o último
minuto que era uma amadora inexperiente.

– É o meu cérebro. Quero ter certeza.


Echo secou as mãos no pano de prato e se pôs diante de mim. Pensei que
poderia me tocar, e todos os

meus pelos se arrepiaram.

Não me tocou, só ficou olhando para mim. Não gostei daquilo, mas não
conseguia desviar o olhar. Talvez

fosse uma coisa de hekamistas.

– Me promete uma coisa – ela disse.

– Eu vou arranjar o dinheiro.

– Não. Quer dizer, sim, me arranja o dinheiro, mas me promete o seguinte:


se chegar ao ponto em que você

tem de escolher entre comer esse sanduíche ou cortar os pulsos, você come
o sanduíche, tá?

Não havia ar suficiente na casa. Meus pulmões ardiam. Só consegui assentir


com a cabeça.

Ela acenou de volta e me acompanhou até a porta.

24. Markos

Claro que eu dei o dinheiro para Win. Eu teria feito qualquer coisa por ele.

Ele me pediu e eu sabia que a coisa era séria. Ele nunca pedia porra
nenhuma, e sua pobreza nunca fora

segredo para mim. Sua mãe fazia como as outras e pagava a dança de Kara,
irmã de Win, como se ela pudesse

competir com as demais meninas do mundo da dança, mas os equipamentos


de beisebol de Win eram usados,
os cereais eram os mais baratos, as casas em que morava não eram
exatamente sujas, mas sempre tinham um

certo cheiro incrustado. Ele se mudava com frequência e não explicava por
quê. Às vezes para lugares

melhores, outras para verdadeiros buracos. Eu não questionei por que ele
precisava do dinheiro.

E não perguntei para que precisava. Era dinheiro. Eu tinha, ou pelo menos
tinha como arranjar, ele não. Não era justo, mas a vida era assim. Por que eu
insistiria em saber de suas merdas pessoais, só porque estava na posição de
lhe fazer um favor? Eu confiava nele. Isso era suficiente.

O que não quer dizer que não tenha pensado no assunto, nem ficado
curioso. Sabia que ele estava

preocupado com alguma coisa. Ele vinha ignorando minhas mensagens por
dias e, às vezes, como na noite de

pôquer, ou no aquecimento antes de um jogo, ele sumia dentro de si mesmo,


desaparecia atrás dos olhos,

deixando uma casca de Win para trás.

Quando me permiti ponderar para que seria o dinheiro, pensei que fosse
para sua mãe ou para Kara – algum

lance sério. Imaginei que, quando a situação piorasse de verdade, todos


ficaríamos sabendo, mas que, por

enquanto, preferiam guardar segredo. Achava que eu era o único para quem
ele havia contado.

E continuei pensando assim até o dia em que Ari entrou na oficina pedindo
mais. Que belo babaca eu tinha

sido.
Ouvi um monte da minha mãe por causa do dinheiro que dera para Win,
então não foi exatamente fácil.

Apesar do seu antigo livro de contabilidade, ela nunca deixaria que tanto
dinheiro sumisse da loja sem notar.

Mas eu fui esperto. Não tirei do caixa da loja nem nada assim. A cada
quatro semanas, minha mãe deixava um envelope pardo na loja para a velha
hekamista vir pegar. Devia ter uns dez ou doze centímetros de grossura em
alguns meses. Notei pela primeira vez alguns anos atrás, quando estava
vigiando o monitor de segurança

na oficina. Minha mãe e a hekamista nunca conversavam, nem sequer


olhavam uma para a outra. Minha mãe

deixava o envelope na prateleira de ferramentas elétricas e, uma hora


depois, a hekamista passava para pegar.

Elas agiam como se fosse um grande segredo, como agentes secretas de


espionagem. Minha mãe devia

estar pagando para fazer as pessoas continuarem vindo à loja. Muitas


empresas com dificuldades faziam isso.

Ou talvez fosse um feitiço de proteção para manter Cal, Dev, Brian e eu em


segurança, coisa de mãe. Mas não importava. Eu sabia que o envelope
apareceria uma hora antes de a loja fechar, todo quarto domingo do mês.

Win me pediu o dinheiro na hora certa. Quando chegou o domingo, eu o


afanei antes que a hekamista pudesse pegá-lo.

Havia seis mil dólares nele, para minha surpresa. Não achava que os
feitiços fossem tão caros, mas, enfim, nunca havia encomendado um, então
não tinha como saber. Embolsei os mil a mais, por via das dúvidas, e dei o
resto para Win na escola no dia seguinte.

Alguns dias depois, minha mãe entrou no meu quarto.

– Cadê o dinheiro, Markos?


Dava para ver pela cara dela que não havia por que me fazer de bobo ou
botar a culpa num dos meus

irmãos. Ela estava tremendo de raiva, com todos os cachos grisalhos


trêmulos e o rosto vermelho manchado.

Só que tinha mais alguma coisa, algo que não consegui identificar.

– Já era – eu disse.

Ela me pegou pelo braço, cravando as unhas em mim, mas não pestanejei.

– Não estou de brincadeira. Você precisa me devolver agora.

Então me toquei. Minha mãe estava com medo.

– Por que isso é tão importante? Está com medo de mais alguns fios
brancos?

– Não é para mim, seu idiota. O seu irmão… – E daí ela parou.

– Meu irmão o quê?

– Você não faz ideia do que pode ter feito.

– Para quem é? Dev? Cal? Por quê? O que há de errado com eles?

Seu olhar se voltou para mim.

– Não tem nada de errado com ninguém – declarou. – Me dá o dinheiro,


Markos. Não estou de brincadeira.

Cruzei os braços e a encarei.

– Me fala para que é.

Ela pestanejou. Estava considerando me contar, fosse lá o que fosse. Eu não


fazia ideia e não me importava.
Era conveniente que ela não quisesse me contar, só isso. Mas, se me falasse,
seria um bônus. Não recusaria informação de graça.

Só que minha mãe não me contou. Algo em sua expressão se retorceu e ela
chegou a abrir um sorriso

maldoso. Foi até minha cômoda e abriu a gaveta do meio, onde guardo
alguns dos cachimbos que faço na loja

antes de distribuir para os compradores. Não tinha ideia de que ela sabia
sobre eles, então levei um segundo para encaixar tudo na minha cabeça.

– Hum… – foi tudo que eu disse antes de ela tirar um cachimbo com um
gesto exagerado.

– Você não consegue esconder nada de mim, Markos, eu sou sua mãe. – Ela
brandiu o cachimbo como um

bastão. – Você acha que não sei sobre isso? Eu sei de tudo. Sei com quem
você conversa, o que faz com as

pessoas. Sei quanto dinheiro tem na carteira. Sei quem são suas namoradas
e quem são os pais delas. Sei até que tipo de sites pornôs você visita.

– Mãe, por favor…

Ela apontou o cachimbo para a minha cabeça.

– Sei tudo sobre você, Markos. Você é meu filho. Se pensa que consegue
esconder o dinheiro…

– Então encontra. Se você sabe tudo sobre mim, me mostra onde está o
dinheiro. – Mantive o olhar fixo

nela e não no par de tênis velhos e fedidos no fundo da bolsa de ginástica


onde eu tinha enfiado o resto da grana. Ela continuou me encarando, sem se
mexer. Parecia estar esperando que eu revelasse o esconderijo.

– Você sabe que está de castigo – ela disse, finalmente.


– Até parece.

Seus olhos se encheram de lágrimas, tristeza ou frustração, não sei.

– Eu faria tudo pelos meus filhos. Fiz tudo o que pude. E não me arrependo.
– Não fazia ideia do que ela

estava falando, mas nem mesmo eu sou tão frio a ponto de não sentir nada
quando minha mãe chora. – Você

não sabe como é difícil… todo mês… mas vale a pena. Seu moleque
ingrato de merda!

– Ah, mãe…

– Nunca mais toque naquele dinheiro, Markos.

Assim que tive certeza de que ela havia saído de casa, tirei o restante da
grana do tênis, enfiei no bolso e prometi a mim mesmo que gastaria o mais
rápido possível. Então, quando vi a filha da hekamista perto do

treino de beisebol logo no dia seguinte, me pareceu obra do destino. Seria


um presente para nós, minha

surpresinha.

Minha mãe só voltou a falar comigo quando Win morreu, três dias depois.

25. Ari

Duas semanas antes do dia da mudança, uma sexta-feira no meio de julho,


Echo me achou no trabalho na

Sweet Shoppe, um ponto turístico na avenida principal, um quarteirão


abaixo da loja de ferragens da família de Markos.

O melhor da Sweet Shoppe era o frio, que entrava nos meus ossos e os
deixava dormentes. Depois que eu
entrava no ritmo, o tempo passava rápido. Abaixar, pegar, servir, estender.
Abaixar, pegar, servir, estender.

Não precisava pensar na tarefa nem em nada. Como no fato de Markos ter
se recusado a me dar cinco mil

dólares. Como no fato de eu ter ido mal em mais uma sessão de ensaio
naquela manhã e ter torcido o

tornozelo num balancé estabanado. Como no fato de Diana se comportar de


modo reservado e misterioso desde a festa da fogueira, apesar de dizer que
não estava acontecendo nada.

Echo chegou como uma nuvem negra, uma influência maligna à leveza da
vida dos turistas. Eu conseguia

sentir sua aproximação, embora mantivesse os olhos na vitrine de sorvetes.


Chocolate com nozes, amendoim,

chocolate com menta.

Uma unha pintada de preto bateu no vidro.

– Ah, oi – eu disse.

– Eu vim buscar. – Seu olhar era mais potente do que me lembrava, tão
inflamado que era capaz de derreter

o sorvete, mas, por algum motivo, tive aquela lembrança parcial de novo:
leveza, como plumas.

Com essa sensação inexplicável, foi mais fácil me fazer de durona.

– Não tenho.

– Já faz duas semanas – ela disse.

– Doze dias.
– Isso, discute comigo. Você deve estar louca para que todo mundo
descubra seu segredo.

– Não estou, mas também não tenho cinco mil dólares. Isso me deixa numa
situação meio complicada.

– Para mim, não parece nada complicada.

Apertei o cabo de metal da colher de sorvete e girei o punho. Ele estalou na


parte em que eu tinha caído e me machucado no dia anterior. “Curva”, disse
a mim mesma, então eu e Echo observamos meu punho se

dobrar noventa graus e meu cotovelo se recusar a dobrar. Aquilo não era
uma curva. Era uma rota sem saída.

Tentei chacoalhar o punho, mas acabei por batê-lo no torso. Podia jurar, por
meio segundo, que Echo iria

dizer algo compassivo.

– Escuta – ela disse finalmente, com a expressão mais suave do que antes. –
Eu vou te dar uma folga. Se

conseguir arranjar quatro mil, nós ficamos quites.

Pensei no dinheiro que havia juntado trabalhando na Sweet Shoppe e no


que havia embolsado ao deixar de comprar sapatilhas novas o tempo todo.
Ainda assim, não tinha nem um quarto daquilo.

– Posso conseguir te arranjar mil.

Echo mordeu o lábio e passou a mão direita pelo braço esquerdo. Por fim,
abanou a cabeça.

– Não dá. Preciso de pelo menos quatro para garantir, e já. – Ela murmurou
algo para si mesma que me

pareceu: “O tempo está acabando”.


– Você devia pegar meus mil e me deixar em paz. Quatro mil dólares
imaginários dá na mesma que cinco

mil dólares imaginários. Pode continuar pedindo cinco mil. Não vou ter
como pagar.

– O que você acha que vai acontecer? – ela perguntou, debruçando-se sobre
o balcão de vidro para poder

sussurrar. Havia uma fila se formando atrás dela, mas não tive coragem de
mandá-la embora, mesmo com

meu gerente me encarando atrás do caixa. – Eu fui ao funeral. Estava


lotado, mas vi você lá na frente com a mãe e a irmã dele, se fazendo de
triste. Fingindo que se importava. Todo mundo viu você. Todo mundo se

sentiu muito mal por você. Toda a cidade foi, ficou com pena da coitada da
Ari Madrigal. Pessoas que

realmente estavam de luto. Que estavam tristes de verdade, ainda estão


tristes e não sabem onde enfiar tanta tristeza. – Deu para notar que sua voz
tremia, apesar do sussurro. Ela piscou rápido e se debruçou mais. –

Como você acha que elas vão reagir quando contar que você estava
fingindo esse tempo todo? Que tomou um

feitiço para facilitar as coisas? Que nunca nem mereceu uma pessoa como
Win?

– Por favor… não – pedi. A súplica era tão em vão que fiquei tensa.

– Não cabe a mim. Já estou te dando uma folga.

– Estou tentando!

– As pessoas têm pena de você, mas todo mundo amava Win. Você pode
não se lembrar, mas eu me
lembro. Todo... mundo... amava... Win. Você está pronta para que todos
sintam ódio de você em vez de pena?

As pessoas da fila começaram a resmungar. Pelo canto do olho, dava para


ver meu gerente franzindo a

testa.

– Eu não tenho.

– Jura? Nenhum resto de dinheiro do seguro sobrando? Nada que sua tia
possa emprestar?

– Vamos nos mudar para Nova York daqui a duas semanas. Precisamos
desse dinheiro.

Seu rosto se contorceu.

– Claro. Nova York.

– Para dançar. Eu fui aceita na companhia juvenil do Balé de Manhattan. –


Eu ia para Nova York. Precisava

ir para Nova York. Não sabia por que estava me explicando para Echo, mas
fiquei me repetindo, tentando

parecer convincente. – Vou ser bailarina.

– Então vai. Vai embora – ela disse, como um desafio. – Não importa que
todo mundo saiba seu segredo se

você for, não é? Vai! – Não disse nada, e ela bateu no vidro mais uma vez
para enfatizar. – Só que, se ficar aqui, vai continuar me devendo. Você tem
mais uma semana.

Ela saiu e eu devia ter voltado direto para o “abaixar, pegar, servir,
estender”. A fila de clientes se aproximou e fez seus pedidos, esperando que
eu obedecesse. O gerente voltou para o caixa, contente agora que a nuvem
negra havia partido.
Mas não continuei trabalhando. Minha cabeça estava a mil, completamente
fora de ritmo. Deixei a colher

cair num pote de chocolate e saí atrás de Echo, sem nem me importar em
tirar o avental rosa de babados.

Eu a segui pelas lojas do centro, entrando na área residencial onde Markos e


Diana moravam, passando pelo colégio, pelos campos de esportes e direto
para a casa da velha hekamista. Echo destrancou a porta e entrou.

Ela morava lá também.

A filha da hekamista. Ela havia dito que tinha uma filha – eu me lembrava
de ela ter mencionado isso numa

das minhas únicas recordações do dia em que comprara o feitiço.

Sentei do outro lado da rua e fiquei olhando para a casa. Pessoas tristes e
confusas entravam e saíam, mas nada de Echo. Quando a porta se abria, eu
entrevia a hekamista.

Então, tinha sido assim que Echo soubera do meu feitiço. Talvez tudo
aquilo fosse algum tipo de golpe que

elas faziam juntas, uma quadrilha de mãe e filha, em que a hekamista fazia
os feitiços para as pessoas e depois a filha mandava que elas pagassem para
guardar segredo.

Em determinado momento, Echo saiu novamente da casa. Contudo, a


hekamista continuou atendendo à

porta, convidando as pessoas para entrar e levando-as até a porta para sair.
Talvez oferecendo uma xícara de chá.

Quando começou a escurecer, a hekamista abriu a porta para ninguém e


parou nos degraus de entrada,

olhando fixamente para mim.


Depois de trinta segundos de contato visual, começou a atravessar a rua,
decidida, observando-me o

caminho todo. Tentei levantar, mas perdi o equilíbrio. Meus pés


formigavam dolorosamente, fazendo-me

tropeçar.

– Achei mesmo que fosse você – ela disse.

– Sou eu.

– A dançarina de balé. Você voltou a dançar balé?

– Não. Ainda não consigo.

– Trocado. Perdido e ganhado. Preço pago – ela disse casualmente, com as


entonações de uma conversa

normal, mas sem sentido algum.

Respirei fundo.

– Eu sei o que está rolando entre você e Echo.

– Echo? – O rosto da hekamista lampejou num momento de surpresa


sincera, como se acordasse de um

sonho. – Vocês duas se conheceram?

– Ah, vá! Não me faça rir.

– Qual é a graça?

– Não tem graça nenhuma. Echo está me chantageando. Ela quer cinco mil
dólares ou vai contar para todo

mundo que esqueci Win.


Os olhos da hekamista se arregalaram. Ela estava com medo: ótimo.

Continuei, insistindo na minha vantagem.

– Eu já te paguei cinco mil dólares. Devia te denunciar para a polícia.

– A polícia? – O rosto da hekamista ficou alerta, como se fosse feito de


argila, cheia de rachaduras. – O

que você falaria para eles sobre Echo?

Franzi a testa.

– Que ela está me chantageando, claro. Que vocês duas estão. O que mais
eu diria?

– Ah... – A mãe de Echo suspirou e seu rosto relaxou. – Ah… Echo, minha
Echo… Os segredos são muito

poderosos.

– Eu sei.

– Porque, se você não tivesse guardado segredo sobre o feitiço, Echo não
teria como te pressionar pelo

dinheiro.

– Sim, eu entendi. – Comecei a sentir que a conversa tinha se desviado do


rumo. – Mas não tenho dinheiro

algum, então, se vocês não me deixarem em paz, vou chamar a polícia.

– Sim, claro. – Ela olhou para mim com um sorriso vago.

Não parecia haver mais nada a dizer. Apertei o pulso e me levantei. Meus
pés tinham adormecido.

– Está bem, então.


– Ari Madrigal – a hekamista disse quando comecei a ir embora. – Você não
vai dar nenhum dinheiro para

Echo? – continuou, como se estivesse pedindo. Mas isso não fazia sentido.

– Exato – falei, e continuei andando.

Meu cérebro dizia que eu deveria me sentir triunfante, tendo confrontado


minha inimiga e descoberto seu

truque. Só que a mãe de Echo não parecia uma inimiga e, se não fosse,
talvez Echo não fosse minha inimiga

também. Assim, tive a estranha e inexplicável sensação de que eu é que


tinha sido enganada.

26. Kay

– Kay! Você está acordada?

– Cal? Que horas são?

– Duas e trinta e oito. O que você está fazendo?

– Eu estava dormindo.

– Ah, sim. – Ele riu. – Desculpa. Estava pensando em você.

– Estava?

– Sim.

– O que você estava pensando?

Houve uma pausa do outro lado da linha. Prendi a respiração.

– Não sei direito. Só pensei: Kay Charpal. Daí liguei.

– Então… você queria me falar alguma coisa?


– Acho que não. As pessoas não ligam mais só por ligar, não é mesmo?

– Não às duas da manhã, pelo menos.

Cal riu de novo. Ele parecia extremamente alegre para as duas da manhã.

– Vou deixar você dormir. Boa noite, Kay.

Desliguei o celular e voltei a deitar no escuro. Eu dormia com uma coberta,


porque meus pais mantinham a

casa gelada mesmo no verão. Mina se rebelava, enfiava toalhas nas entradas
de ar e abria as janelas, mas eu gostava da sensação de temperatura amena
ao meu redor. Me enfiei embaixo da coberta, só que um lugar

dentro do meu peito continuava frio.

Esse telefonema era efeito do feitiço que empurrava Cal para mim. Nós
conversávamos regularmente agora.

Logo mais começaríamos a sair também. Ari e Diana veriam que eu não era
só mais uma para Cal. Ele

pensava em mim no meio da noite. Queria falar comigo. Exatamente o que


eu desejava.

Certo?

Desamarrado.

Essa era a palavra que a hekamista tinha usado para descrever meus efeitos
colaterais. Ela disse que parte de mim se deslocaria. Se desamarraria. Eu
não sabia o que significava desamarrar. Talvez ela também não

soubesse, senão teria explicado melhor.

Essa desamarração podia explicar o frio no meu peito, mais do que o ar-
condicionado. Tudo que eu mais
amava – Ari, Diana, até mesmo Mina, ter amigos próximos, compreensivos,
e tudo o mais que eles

significavam para mim – podia tirar como um casaco e pendurar num


gancho. Embaixo do casaco não havia

nada. As pessoas e coisas de que eu mais gostava pareciam distantes e


alheias. O casaco parecia bonito, mas estranho. Eu podia pegá-lo e vesti-lo,
mas ele continuava parecendo um objeto, e não parte de mim.

Desamarrado. Devia ser isso. Mas então, se não fossem meus efeitos
colaterais, por que eu não estava

feliz?

Cal continuou me ligando no meio da noite. Ele não dormia nunca, pelo
menos era o que parecia.

– A gente pode conversar amanhã, Cal?

– Mas daí vou passar as próximas cinco horas sozinho.

– Você podia ir dormir.

– Nem... Eu quase não durmo.

– Como assim, quase não dorme?

– Desde que tenho doze anos não durmo uma noite inteira.

Puxei o cobertor até a cabeça.

– Por quê?

Ele suspirou.

– Sei lá. Eu fecho os olhos como todo mundo. Estou cansado, ou pelo
menos acho que estou. E nada
acontece. Fico vendo o lado de dentro das minhas pálpebras. Isso acontece
com você?

– Não. Eu pego no sono na hora.

– Que sorte a sua...

– Menos quando você liga, claro.

– Desculpa. Não queria incomodar.

– Você não está incomodando – respondi. Pelo menos eu não me sentia


assim. Às vezes, era difícil saber a

diferença entre euforia e pavor. Será que essa era mais uma coisa que tinha
se desamarrado? – Quer sair

durante o dia?

Houve uma pausa.

– Por que não? – ele disse. – Passa na loja amanhã. Vamos fingir que somos
turistas e ir para o parque.

Ótimo. Eu, Cal e…

– Minhas amigas Ari e Diana também podem ir?

– Ari Madrigal? Ah, cara, que foda o que aconteceu com o Win! Claro que
ela pode.

Então marcamos. Era um encontro.

Ari e Diana se juntaram a nós nas Ferragens Waters. Elas pararam logo na
entrada, perto de uma prateleira

de produtos de limpeza, com caras idênticas de constrangimento.


Queria que elas viessem até o caixa, mas deu para ver que não estavam a
fim de entrar, então fui até elas.

Cal pulou por cima do balcão e quase conseguiu não cair, mas se
desequilibrou com o pulo e caiu de joelhos bem na frente de Diana e Ari.
Nós três avançamos por instinto, tentando impedi-lo de tombar – tarde
demais –

ou ajudá-lo a se levantar.

– Ai! – ele disse, sorrindo, e se levantou sem ajuda.

Diana sorriu de volta, enquanto Ari tornava a colocar a mão estendida


embaixo do cotovelo oposto, com

uma cara de quem achava a falta de coordenação dele uma afronta pessoal.

– Vamos logo? – ela perguntou.

– Meu Deus, Ari, parece até que você está com medo de me encontrar! –
Markos Waters disse, surgindo

do fundo da loja.

– Oi, Markos – Ari cumprimentou. Diana deu um passo na direção dele,


mas parou quando viu que Markos não estava olhando para ela.

Cal tentou dar um soquinho no braço do irmão, só que errou.

– Cara, vem com a gente para o parque.

Todos menos Cal pareceram horrorizados com a ideia. Eu sei que devia ter
apreciado sua generosidade e

inclusão, mas ter melhores amigos significava também aproveitar o fato de


ser parte de um clube exclusivo.

Ele estava estragando isso ao convidar outras pessoas.


– Você achou alguém para te emprestar aquele dinheiro? – Markos
perguntou para Ari.

Houve um momento de silêncio confuso e então todos falaram ao mesmo


tempo:

– Dinheiro?

– Não se preocupa.

– Que dinheiro?

– Vamos logo.

– Você pagou ou não?

– Talvez seja melhor conversar sobre isso outra hora.

– Vai ficar cheio se não formos logo…

– Espera, por que você precisa de dinheiro?

Ari ergueu a voz.

– Está tudo bem. Não preciso de dinheiro. Vamos logo.

Ela saiu da loja. Diana esperou um segundo, olhando para trás e para a
frente, entre a porta e Markos, mas então ele virou as costas e foi para o
fundo da loja sem dizer nada. Os ombros de Diana se afundaram e ela saiu
para a calçada atrás de Ari.

Cal pegou minha mão e me levou até a porta.

– Vamos lá! – exclamou.

Eu estaquei, e ele parou de andar.

– Você não achou isso estranho?


– O quê…? Markos?

– Sim, e Ari pedindo dinheiro para ele. Você sabia disso?

Cal deu de ombros.

– Todo mundo tem seus segredos.

– Mas ele é seu irmão.

– Não sou responsável pelos meus irmãos. Você sabe tudo que sua irmã faz?

Me lembrei de Mina na festa da fogueira, indo embora porque eu tinha dito


para ela cuidar da sua vida.

Talvez Cal estivesse certo e eu devesse esperar algumas surpresas ocultas,


mesmo que se tratasse de minhas melhores amigas. Mas isso não parecia
certo. Dava uma sensação vazia e decepcionante, como a de sua mão

segurando a minha, suada, apesar do ar-condicionado da loja.

Nós quatro fomos para o parque, montado num estacionamento no fim da


avenida principal. Cal não

pareceu se importar com o fato de Ari estar mal-humorada e rabugenta, nem


de Diana estar fechada e

distraída. Ele me comprou um hipopótamo de pelúcia depois de perder no


tiro ao alvo cinco vezes. Passou a

manhã toda conosco e não paquerou nenhuma outra menina.

Os turistas enchiam o parque com suas roupas de cores chamativas e rindo


alto. O estacionamento era envolto por barracas de jogos e lembrancinhas e,
no meio, havia outros jogos e brinquedos. Numa ponta tinha um fliperama
com várias máquinas antigas – Skee-Ball, pinball, máquina de pegar
bichinho de pelúcia –, e na outra, alto o bastante para que se visse o oceano,
ficava o Redemoinho, um brinquedo em forma de polvo que girava em
círculo, de um lado para o outro, para cima e para baixo. Esperamos na fila
para entrar nele. A

maioria dos maloqueiros e adolescentes que largavam a escola fazia bicos


de verão trabalhando ali. Cal

conhecia o cara que cuidava do brinquedo e prometeu que conseguiria fazer


a gente entrar sem ingressos.

Ele perguntou à Ari sobre a dança. Ela descreveu o programa no qual


entraria em Nova York, no outono, o

processo de testes e onde ela e Jess planejavam morar. Fiquei ao lado de


Diana.

– Você está bem? – perguntei.

– Estou ótima – ela disse.

– Porque lá na loja você parecia…

– Disse que estou ótima, Kay.

– O Markos consegue ser muito mala, sério.

– Só porque você arranjou um namorado Waters não significa que você


tenha virado especialista neles – ela

retrucou, depois se retraiu imediatamente. – Desculpa. Isso foi horrível.

– Tudo bem – eu disse. – Não sou especialista.

– Não está tudo bem. Eu não devia falar coisas assim. Você não devia me
deixar falar essas coisas.

Não retruquei: “Então é culpa minha quando você me diz essas coisas
cruéis?”. Fiquei quieta.
Chegou a nossa vez, então entramos nos carrinhos. Como eu estava do lado
de Diana, fomos no mesmo

carro, enquanto Cal e Ari foram no de trás.

– Às vezes tenho vontade de terminar o ensino médio logo para ir embora –


Diana disse. – Vai ser um ano

estranho.

– Eu vou ficar aqui.

– Estava pensando em talvez ir para um internato. Ficar sozinha por um


tempo.

Do carro de trás, pude ouvir Ari falando sobre o Balé de Manhattan:

– … vamos no dia primeiro de agosto, e já começamos a encaixotar…

– Uma menina que conheci no acampamento hípico frequenta uma escola


no Maine. Ou eu podia ir para

outro lugar onde seja completamente desconhecida.

– … quero aprender a usar o metrô também, para não ficar completamente


perdida no primeiro dia…

O Redemoinho começou a girar devagar. No começo nos movemos em um


grande círculo, mas, depois de

uma volta completa, nossos carros começaram a virar. A barra sobre meu
colo e o de Diana rangeu.

– Você quer me largar aqui – acusei.

– Ah, Kay, não é isso. Só quero ver como é ficar sozinha.

Girando duplamente, os carros subiram e desceram, enquanto o metal


continuava a ranger. Atrás de mim e
ao meu redor tudo girava, então ouvi um grito agudo de Ari.

– Diz que você não vai me largar – falei rápido. Podia jurar que a barra de
segurança estava se erguendo. Eu a segurei com firmeza, puxando-a para
baixo.

– Quê? – Diana gritou. Nosso carro tremeu e a barra de segurança


chacoalhou. Agarrei a mão de Diana.

Seria muito fácil um parafuso se soltar, o maconheiro que comandava os


controles começar a viajar, as molas

enferrujadas se quebrarem, a fiação se romper. Tinha levado Ari e Diana


para uma máquina capaz de causar muito mais dano do que o cooler da
praia com a cara de Diana.

– Você tem que dizer que não vai me largar! – gritei.

– Não tem como sair do carro, o brinquedo já tá ligado!

Não conseguia manter os olhos focados nela. O brinquedo era rápido


demais. Só podia ver seu cabelo

vermelho, o céu azul e as luzes brilhantes, além de ouvir os rangidos


terrivelmente altos do metal enquanto a máquina chegava à velocidade
máxima.

– Só diz! Diz que não vai me largar!

– Está bom, meu Deus! Não vou te largar.

Soltei sua mão e fechei os olhos. O brinquedo girava sem parar.

Naquele momento, não me senti desligada dos meus sentimentos por causa
da amarração. Estava com

medo demais.
Pode parecer estranho, mas tive a forte e clara impressão de que, se Diana e
Ari tivessem continuado a falar dos seus planos, o feitiço poderia ter
machucado as duas para mantê-las aqui comigo.

Depois que saímos do brinquedo, ninguém pareceu notar alguma mudança.


Observei Ari, Diana e Cal se

comportarem normalmente, sem perceberem como tinham estado perto de


algo terrível.

Uma coisa era o feitiço me dar doses regulares de Ari e Diana. Eu queria
proteger as duas. Me preocupava

com elas, e elas já haviam se preocupado comigo. Estaria ao lado delas para
o que quer que fosse. Mas Cal…

ele nunca quisera ficar perto de mim de verdade. O feitiço tinha dado mais
do que um empurrãozinho – ele o tinha jogado com tudo para cima de mim.

Essa ideia me fez tremer. Eu tinha salvado Diana e Ari no Redemoinho, e


sempre as salvaria, porque éramos

grandes amigas, mas com Cal era diferente. Quer dizer, por um lado, ele era
estabanado, seria fácil demais para o feitiço. Ele cairia um dia e se
machucaria feio, então seria culpa minha por não querer ficar com ele.

Mas mais importante que isso era que eu nem gostava tanto dele, e Ari e
Diana nem pareciam muito

impressionadas por eu ter conseguido “sair” com ele, qualquer que fosse o
significado disso. Tinha sido uma ideia impulsiva e idiota dar a amarração
para Cal. Agora a responsabilidade era minha.

No dia seguinte, quando ele ligou, às duas e meia, eu quase não disse nada.

Ele ficou divagando por algum tempo até finalmente notar que eu não
estava respondendo.

– Está tudo bem? – perguntou.


– Não – comecei a dizer, mas não podia lhe contar a verdade. Que ele
estava correndo um perigo misterioso

e constante por minha culpa. Que não estava no controle dos seus atos. Não
podia correr o risco de o feitiço atacar e lhe dar um castigo.

Eu precisava continuar atendendo ao telefone no meio da noite. Precisava ir


à loja de ferragens, vendo-o

derrubar prateleiras de inseticida e tropeçar nos rodos. Precisava fazer o que


ele achava que queria fazer. O

que o feitiço achava que eu queria fazer. O que nenhum de nós precisava ou
queria fazer.

27. Markos

Nunca precisei pedir desculpas a uma menina como tinha que fazer agora
para Diana. Não porque ela

estivesse brava comigo – não estava –, mas porque eu me sentia muito mal.

– Desculpa de novo. Não sei o que aconteceu comigo. Fui muito grosso.

Estávamos numa lanchonete, bebendo uma xícara após outra de café


aguado. Diana olhou para sua caneca,

com o cabelo caindo sobre as bochechas.

– Para, Markos. Foi um dia besta.

Eu queria estender o braço e pôr o cabelo dela atrás da orelha, mas, em vez
disso, apertei as mãos em volta da xícara, queimando-as.

– Devia ter ido ao parque com vocês. Ter agido como uma pessoa normal.

– Foi muito estranho. Seu irmão e Kay…


Depois perguntei para Cal se ele estava ficando com Kay. Ele disse que não.
Mas foi ao parque com ela,

como se não fosse nada de mais. Por que diabos eu não podia fazer o
mesmo?

– Maldita Ari e maldito dinheiro! – eu disse.

– Não bota a culpa na Ari. Ela está passando por muita coisa também.

– É isso que está acontecendo comigo? Estou passando por muita coisa?

Diana não respondeu, e seu silêncio valeu como resposta. Eu precisava pôr
a culpa em alguém por me

sentir mal, por ter agido mal, e lá estava Ari, “passando por muita coisa”.
Não tinha me comportado como um cretino sem motivo.

– Você acha que Ari arranjou em algum outro lugar? O dinheiro, quero
dizer.

– Duvido.

Fazia menos de uma semana que ela havia me pedido os cinco mil dólares e
contado que gastara o que eu

tinha dado a Win. Embora fosse vergonhoso admitir, isso ainda me


incomodava. Na verdade, seria

constrangedor admitir isso para qualquer pessoa, menos para Diana. Eu


poderia desabafar com ela o dia todo, que ela não se importaria.

– Me irrita que ela ache que pode me pedir algo assim depois de tanto
tempo. É como se pensasse que,

porque Win a amava, eu devo algo a ela.

– Alguma coisa deve estar rolando – Diana disse.


– Como assim? Vício em jogo? Um investimento imobiliário equivocado?

– Ela deve precisar de verdade, só isso. Talvez tenha a ver com Nova York.

– Você confia demais nela. Ela mal falou com você o verão todo.

Diana ergueu a sobrancelha.

– Você sabe por que eu e Ari ficamos amigas no começo? Ela me contou
alguns anos atrás. Fui a única aluna do quarto ano que não perguntou nada
sobre os pais dela, nunca, mas que continuou por perto. A última coisa que
ela queria era conversar, e eu sempre tive muito medo de falar sobre o
assunto, por isso somos

melhores amigas desde então.

– Você… não parece mais ter medo.

Diana me lançou um olhar penetrante. Prendi a respiração e me recostei no


banco. Relaxado. Com os

braços repousados na parte de trás da cadeira.

– Quer dizer – eu disse, e me esforcei para que minha voz não tremesse –,
até que não é ruim conversar

com você.

Não consegui me controlar e não olhar em seus olhos, então senti que caía
num grande poço sombrio, em

que sumia, mas era uma sensação boa.

– Obrigada – ela agradeceu, mas sua voz estava estranha e distante, como
um sonar embaixo da água,

silvando na escuridão. Lá estava eu. Lá estava ela.

Eu não consegui falar.


Desde a festa da fogueira, eu a via todos os dias e, mesmo assim, não
encostava nela. Chegou a um ponto

em que comecei a fingir para mim mesmo que não queria mais tocá-la. Às
vezes, quando estávamos juntos,

passava a olhar fixamente para ela – para qualquer parte do seu corpo,
como um dos ombros – e entrava

numa merda de estado de alienação completo, só pensando naquele ombro,


em como a pele dele devia ser

macia, nas suas duas sardas, e em como seu ombro era próximo do pescoço,
da boca e dos seios, em como

seria seu gosto ou o calafrio que ela sentiria se eu a beijasse do jeito certo.
Quer dizer, eu estava perdido.

Desmiolado. Desesperado.

Mas não fazia nada. Talvez o fato de não fazer nada só agravasse a situação.
Talvez fosse assim que os

caras tímidos ou que só falavam sobre videogame se sentiam – talvez


passassem tanto tempo na seca que, quando falavam com uma menina de
verdade, estavam sedentos para conseguir dizer algo.

Eu conseguia falar com ela – meu Deus, eu falava sem parar, como um
idiota. Contudo, quanto mais eu

falava, mais sentia que precisava lhe dar um beijo, e que, ao mesmo tempo,
nunca conseguiria fazer isso. No entanto, em vez de fazer algo a respeito –
beijá-la, como tinha quase certeza que queria, ou parar de falar com ela e
sair com outra menina, o que sabia que não queria –, continuava
telefonando, buscando-a em casa,

vendo tevê com ela e saindo para tomar um suco.

Eu estava sendo ridículo.


E… Está bem. Vou ser sincero, por mais que isso seja a coisa mais ridícula
que tenha acontecido até agora.

Não era bem verdade que eu não tinha tocado nela. Nada de sério havia
acontecido, mas, numa noite em que

estávamos no porão da minha casa vendo um filme, sentamos lado a lado


no sofá e – nem acredito que estou

contando isso, por favor, finja que não disse nada – ficamos de mãos dadas.

De mãos dadas. Eu segurei a mãozinha macia, perfeita, delicada e


quentinha pra cacete de Diana North.

Que droga!

Depois fomos para a lanchonete, porque eu sabia que, se ficasse sentado no


porão com a mão dela na

minha de novo, não conseguiria ver o filme nem deixar de me comportar


como um covarde fraco, então era

melhor ir para um lugar onde poderíamos conversar.

Diana sorriu ligeiramente para mim, de um jeito que causou frio na barriga,
porque, por incrível que pareça, o seu sorriso era a expressão mais bonita
que eu já tinha visto.

– Tirando Ari e o mistério do dinheiro, como foi seu dia?

– Meu dia... Meu dia foi de médio para bom. Um ruim requentado. – O que
ela queria saber era se eu estava

muito triste. Até que ponto eu sentia falta de Win. – Mas é foda. Quando os
dias não são um lixo completo, me sinto culpado. Como posso merecer me
sentir bem ajudando os fregueses, vendo tevê ou bebendo café

aqui?
– Você merece – ela disse. – De que adiantaria nunca mais se permitir ser
feliz de novo?

– De que adiantaria qualquer coisa? Por que aconteceriam coisas boas?

Ela mexeu sua água com o canudinho.

– Antigamente achava que havia uma quantidade fixa de coisas boas e ruins
para cada pessoa. Que elas

precisavam se equilibrar. Que a insuficiência renal do meu gato significava


que eu estava pagando por ter me divertido no fim de semana ou coisa
assim. Que ele estava doente não porque estava velho, mas porque… –

Ela olhou para mim, corou e voltou a olhar para baixo. – Porque passei
algum tempo com você.

– Nunca toquei no seu gato. – Eu precisava fazer uma piada ou derreteria no


chão e morreria, então ela

revirou os olhos, como deveria. – Mas você sabe que essa teoria é bobagem,
né?

– Sei lá. É mais ou menos o que as hekamistas fazem. Elas mudam o que
nos foi dado, só que sempre tem

um equilíbrio.

– Isso é diferente da vida real. Às vezes, as coisas são uma bosta e não
melhoram. Algumas pessoas nunca

têm preocupação alguma na vida… não existe isso de equilíbrio.

– Concordo. – Ela mordeu o canudinho e olhou para mim. – Mas você


devia ouvir a si mesmo. Não é

porque Win morreu que você não pode se divertir.


Bebi meu café. Não deixei que minhas mãos tremessem. Respirei
normalmente. Olhei ao redor – para

qualquer lugar, menos para Diana. Era estranho que antes eu não a achasse
bonita. Talvez visse apenas uma

fração dela, como se a olhasse através de um vidro sujo. Agora eu a achava


linda. E não acreditava no que ela dizia. Não merecia ser feliz.

A lanchonete estava cheia de gente que eu conhecia. Poderia ir para


qualquer uma das mesas e começar

uma conversa vazia que as pessoas teriam me incluído – não, elas teriam
adorado a minha companhia. Não

precisaríamos conversar sobre nada sério. Poderíamos criar piadas novas,


em vez de sentir falta das antigas.

Eu poderia chamar uma das meninas para sair. Seria fácil, sem sofrimento.
Não me importaria o bastante para ter medo de fazer qualquer coisa além de
ficar de mãos dadas.

Então por que eu ficava me torturando com Diana se não achava que
deveria viver em sofrimento?

Comecei a sentir que o salão estava abafado e tirei algum dinheiro do bolso.

– Preciso ir – disse.

– Jura? Mas a gente só está aqui há…

Eu já estava na porta, ignorando os gritos das pessoas que me


cumprimentavam de outras mesas e os de

Diana, chamando meu nome. No estacionamento, engoli o ar úmido da


noite como se estivesse me afogando,

e senti uma pressão na mão.


Era Diana. Ela tinha corrido atrás de mim e me segurava pela mão,
preocupada.

Continuei andando em direção ao carro, mas ela não me soltou e, quando


cheguei lá, estava me sentindo

tonto. Tonto demais para tirar as chaves do bolso. As luzes dos postes
piscavam, então fechei os olhos.

Diana ficou entre mim e o carro, me olhando, segurando minha mão. Eu


sentia o cheiro do seu cabelo e do

seu corpo através das camadas de roupas. Ela colocou a mão livre no bolso
da frente dos meus jeans para

pegar as chaves. Eu não estava respirando. Seu hálito movia as fibras da


minha camisa contra o meu peito.

Ela estava ali. Bem ali. Entre mim e o carro. Eu me sentia como uma
estátua – um homem preso em mármore,

com o sangue pulsando, sem forças para quebrar a pedra e me mover.

Puta merda!

Aquilo doía muito. A dor me mostrava que eu estava vivo.

A qualquer segundo ela viraria e abriria a porta do carro, e aquela dor


inacreditável passaria, mas eu não queria que passasse. Queria que doesse
assim para sempre.

Seu pulso latejava contra a minha mão. Eu me controlava para não beijá-la,
mas, mais do que desejava fazê-

lo, eu desejava aquela dor.

E então passou pela minha cabeça que, se eu me aproximasse, aquele tipo


de dor – do desejo – poderia
acabar, porém uma nova começaria. A dor, o arrependimento, o remorso e a
estupidez de destruir algo

maravilhoso.

E é nisto que eu sou bom: em destruir coisas.

Respirei fundo, ela também. Eu me aproximei para beijá-la, e ela me beijou


– então o estacionamento, o

carro, a lanchonete e Win, tudo desapareceu. Foi o momento terrível


perfeito, tudo que eu desejava havia

semanas e tudo que temia, o começo e o fim ao mesmo tempo.

Diana retribuiu o beijo, e eu percebi que ela sorria, e aquela dor que sentia
por ela não passava – ao

contrário, só crescia, crescia sem parar.

28. Ari

Diana entrou de repente no meu quarto, no fim do meu alongamento diário.


Estávamos no meio de julho. Eu já dispunha de pouco tempo e, dois meses
depois do feitiço, os exercícios ainda não tinham melhorado. Vesti um
bolero por cima da malha de balé e contive o pânico. Às vezes, se me
esforçava demais, chegava a vomitar de tanto estresse. Mas preferia os dias
em que passava mal àqueles em que desistia no meio e deitava no chão em
posição fetal, aos prantos.

Diana jogou a bolsa na cama de hóspedes e andou pelo quarto, examinando


todos os objetos, como se não

tivesse passado metade dos últimos dez anos ali. Sua energia vibrante não
era exatamente de felicidade, mas também não era de tristeza. Ela parecia
estar lidando com muitas emoções diferentes ao mesmo tempo, e eu

não sabia ao certo se ela ia rir, chorar ou gritar.


– Você está bem? – Diana perguntou. Ela olhou nos meus olhos, apertando
os seus como se estivesse

identificando algo no horizonte. – Nós não conversamos no parque. Como


você está?

Agarrei o pulso em chamas com a outra mão.

– Estou bem. Está tudo bem.

– Você não precisa estar bem.

Dei risada.

– Às vezes queria que todo mundo fosse menos sentimental, menos


atencioso, menos compreensivo.

– Eu consigo ser fria e calculista.

– Ah, é? Tenta.

Ela cruzou os braços diante do peito e ergueu a sobrancelha, franzindo a


testa, mas só conseguiu manter a

pose por alguns segundos antes de começar a rir e de se jogar de costas na


cama.

– Que foi? – perguntei.

Ela abraçou o próprio peito e ficou olhando para o teto.

– Você vai rir da minha cara.

– Nunca faria isso.

– Nesse caso faria, sim.

Belisquei a pele sensível da parte interna dos cotovelos. Aquela idiota da


velha Ari. Será que eu já tinha rido dela antes? No ano que eu passara com
Win, será que havia tirado sarro dela? Feito com que ela se sentisse mal em
relação a si mesma? Será que eu ficava tão diferente por causa daquele
namoradinho idiota a ponto de ela não depender mais de mim?

Eu tinha vontade de matar a velha Ari. Como ela ousava tratar minha
melhor amiga assim? Como ousava

fazer Diana pensar que não podia me contar alguma coisa?

– Tenta – eu disse.

Ela cobriu o rosto com as mãos e gemeu.

– Acho que você não acreditaria se eu contasse.

– Contasse o quê?

Ela respirou fundo e abriu um sorriso que tomou seu rosto todo.

– Acho que eu e Markos estamos apaixonados – ela disse.

Eu não ri. Não mexi um músculo, tamanha a minha surpresa.

– Fala alguma coisa! – Diana disse.

Engoli em seco.

– Isso é… nossa!

– Você não está acreditando em mim. – Seu sorriso se desfez.

– Me dá um segundo, Diana.

– Sempre acreditei quando você dizia que estava apaixonada pelo Win.

Achei que valia a pena arriscar um palpite.

– Ah, vá! Nunca me joguei na sua cama e declarei que estávamos


apaixonados.
Ela não parava de sorrir, então eu percebi que meu palpite estava certo. Às
vezes, a velha Ari não era tão misteriosa quanto eu pensava.

– Me conta o que aconteceu – eu disse.

– Nós temos passado muito tempo juntos desde a festa da fogueira e… –


Ela parou e olhou para mim,

fechando os lábios, fechando o sorriso enorme de vez. – Quer saber? Não.


Não vou desabafar com você

antes de algumas respostas. Markos me falou do dinheiro que ele deu para
Win, o dinheiro que você gastou. O

que você fez com ele? Por que precisa de mais? Você está com algum
problema?

Senti o quarto esfriar. Um músculo do meu pescoço se contraiu.

– Não posso te contar.

– Como assim, Ari? Entendo que você não conte para o Markos, mas não
pode deixar de me contar.

– Não quero que você se preocupe comigo.

– Ah, faça-me o favor. Cala essa boca! É minha obrigação me preocupar


com você. É para isso que

servem os amigos. Meu Deus, Ari! Seu namorado morreu. Você está
precisando de dinheiro, de muito

dinheiro. – Ela ficou remexendo a colcha. – Me conta. Deixa eu decidir se


preciso me preocupar ou não.

Uma vez, no sétimo ano, eu e Diana paramos para tomar sorvete no


caminho da escola para casa e depois
ficamos uma hora na praia. Quando finalmente chegamos à casa de Diana, a
sra. North gritou com a gente.

“Eu me preocupo o tempo todo em que você não está aqui”, ela dissera, e
aquilo parecia maluco, mas ao

mesmo tempo muito… carinhoso. Passei meses imitando a mãe dela


dizendo aquilo, e sempre dávamos risada,

só que, toda vez que dizia aquilo, sentia remorso, a tênue mas inegável
certeza de que eu zoava a sra. North porque tinha medo de que ninguém se
preocupasse comigo daquele jeito.

– Você confia em mim? – Diana perguntou.

– É uma coisa feia – eu disse.

Diana assentiu. Ela se debruçou com expectativa, pronta para compreender


e apoiar. Eu estava zonza, como

se tivesse rodopiado sem marcar meus giros.

Echo não havia falado comigo desde que eu tinha conversado com sua mãe,
a hekamista – talvez eu a

tivesse afugentado. Ou talvez ela voltasse para arruinar tudo. Não queria
viver com aquela ameaça pairando

sobre mim, uma extorsão que eu não tinha como pagar.

Estava confusa. Diana parecia flutuar cada vez para mais longe.

Diana e Markos estavam apaixonados. Eu nunca estivera apaixonada. Até


onde podia lembrar.

Diana amava Markos. Ele partiria o coração dela, aquele filho da mãe, mas
ela conseguiria o que sempre
quisera. Ela não tinha dado ouvidos aos meus conselhos – não precisava
mais de mim. Seu cabelo era

vermelho e ela tinha opiniões fortes – e fazia um ano que não íamos ao
cinema juntas, e havia sido obrigada a ficar amiga de Kay, e agora estava
pedindo para se preocupar comigo.

Talvez eu devesse deixá-la.

– Tomei um feitiço que apagou Win da minha memória – eu disse. As


palavras saíram com facilidade, leves,

da minha boca. – Para não ficar triste, acho. Não lembro nada dele.

Diana deu um tranco para trás como se eu tivesse batido nela. Depois
piscou rapidamente.

– O que você quer dizer com isso?

– Não me lembro do Win.

Ela levou uma mão à boca e ficou me encarando. Não conseguia imaginar o
que estava passando pela sua

cabeça. Medo?

– Então você passou o verão todo mentindo – ela disse.

Respirei fundo.

– É. Foi… mais fácil. Acho que… talvez… eu estivesse com vergonha. Não
sabia explicar por que tinha

feito aquilo, porque não me recordo do que fazia eu me sentir tão mal.
Achei que seria melhor fingir.

Diana se levantou e começou a andar de um lado para o outro pelo quarto.


– Você estava mentindo para a gente. Não estava sofrendo, só estava me
evitando.

– Não sabia mais o que fazer.

– Você poderia ter tentado contar a verdade.

– Estou contando agora…

– Estou falando de antes. – Ela voltou a andar, olhando para todos os cantos
do quarto, menos para mim. –

Antes de fazer isso. Depois que Win morreu. Você poderia ter me contado
que estava pensando nisso. Eu

poderia ter te ajudado. Ter conversado a respeito. Eu teria ajudado você a


fazer o que quisesse. Você… você não confiou em mim na época.

– Desculpa, Diana.

Ela abanou a cabeça, batendo o cabelo de um lado para outro.

– Você nunca me falava dos seus problemas. Só com a Jess ou com o Win.
Eu sempre fui a idiota da

Diana, com uma paixonite boba, a sua sombra fiel.

Uma dor aguda começou no fundo da minha garganta e subiu pelos meus
canais nasais até os olhos. Mas

eu não queria chorar. Pressionei o polegar e o indicador em volta do punho


esquerdo, mantendo a dor no

lugar.

– Não é verdade. Estou te contando agora. Não para Jess, nem para Kay,
nem para ninguém. É em você

que confio.
Diana parou, desviando os olhos dos meus.

– Então você gastou o dinheiro do Markos num feitiço.

– Sim. – Diana se recusava a olhar para mim. Não dava para adivinhar sua
expressão. – Win deve ter

escondido o dinheiro no meu guarda-roupa, mas eu não sabia de quem era.


Só depois descobri que era dele e

que ele tinha conseguido com Markos. O problema é que Win devia esse
dinheiro para uma pessoa. E ela me disse que, se eu não pagar a dívida de
Win, ela contará para todo mundo que eu não me lembro mais dele.

Diana se voltou para mim. Seus olhos brilhavam com intensidade.

– E você pagou para ela?

O ar vazou dos meus pulmões. Não me lembrava de ter visto Diana tão
brava.

– Não. Eu a segui… Talvez ela me deixe em paz por um tempo.

Como se desinflasse, Diana se afundou no chão ao lado do cama e sua raiva


se transformou em desespero.

– Ai, meu Deus! Como vou contar isso para o Markos?

– Você não precisa contar para ele.

Ela olhou para mim com os olhos arregalados e desapontados.

– Mas você mesma vai contar logo, não é? Antes que essa pessoa que está
fazendo a chantagem volte e

conte por você?

Não respondi. Saí da cadeira giratória e sentei no chão diante de Diana. Já


havíamos passado centenas de
horas nesse quarto. Mas dessa vez era diferente, como se antes estivéssemos
fingindo e só agora fosse de

verdade.

Diana não falou mais nada por um bom tempo. Em vez disso, recostou a
cabeça no colchão e ficou olhando

para o teto. Tentei seguir seu olhar, só que ela estava olhando para o vazio.

– Você pode não se lembrar de Win – ela disse finalmente –, mas devia
lembrar que você e Markos eram

amigos. Você pegava no pé dele, mas eram amigos. Acho que ele sente sua
falta agora. E não é justo mentir

para ele desse jeito.

Peguei a mão de Diana e a segurei, apesar da repugnância em seu olhar.

– Por favor, diz que você me perdoa, Di. Por favor.

Ela ficou olhando para a minha mão segurando a dela. Então, depois de um
longo momento, assentiu.

Também assenti.

– Vou contar para o Markos em breve. Prometo.

Contudo, se eu contasse para o Markos, teria que contar para todo mundo, e
a imagem que eu tinha – de

bailarina, namorada, boa pessoa – desapareceria, substituída por outra dessa


mentirosa, de coração ruim. Tão ruim que minha melhor amiga mal
conseguia falar comigo ou me olhar. Eu achava que, se contasse a verdade

para Diana, voltaríamos a ficar próximas, como sempre havíamos sido. No


entanto, vendo-me agora através
de seus olhos, imaginando aquela expressão no rosto de todos os outros…

Eu não sabia se conseguiria fazer aquilo.

29. Kay

Não sabia se conseguiria terminar com alguém. Passei tanto tempo da


minha vida tentando fazer as pessoas

ficarem ao meu lado que não conseguia nem imaginar como dizer para
alguém ir embora. Parecia impossível,

por mais que Cal não tivesse me escolhido no início. Então achei melhor ir
à hekamista e quebrar essa

amarração. Assim, nunca mais teria que falar nem me preocupar com ele.

Quando ouvi meus pais desligarem a tevê da sala, fui na ponta dos pés até o
hall de entrada da casa, onde minha mãe deixava a bolsa. Tirei a carteira de
couro de cobra e peguei o cartão de crédito preto. Se ela

olhasse para sua conta, o que nunca fazia, imaginaria que tinha comprado
mais fertilizante, terra ou coisa assim naquele mês.

Enfiei o cartão no bolso e estava pondo a carteira de volta quando Mina


surgiu atrás de mim.

– O que você está fazendo? – ela perguntou.

– Dinheiro para pizza – disse. – Ela não vai ligar.

– Você acabou de jantar.

– Para amanhã, né?

Mina ficou me olhando, desconfiada, mas me deixou ir.

***
A velha hekamista, que tinha feito a amarração, não estava em casa.

– Sua mãe está aí? – perguntei para a menina que atendeu à porta, embora
não houvesse muito espaço para

alguém se esconder naquele casebre.

– Está ocupada – ela disse.

– E quando vai estar livre?

A menina cruzou os braços diante do peito.

– Isso depende.

– Não aceito essa resposta. Sou uma cliente fiel.

– Ah, é? Você tem dinheiro?

– Claro – respondi.

A menina me olhou de cima a baixo, do meu cabelo ondulado perfeito,


passando pela minha bata até meus

chinelos verde-limão. Era uma roupa completamente normal, ainda mais se


comparada ao seu casaco preto

sujo de motoqueira e ao cabelo curto assimétrico. Não sabia o que ela


estava procurando, mas deve ter

encontrado.

– Se você tem dinheiro, posso ajudar – a menina disse. Diante do meu olhar
desconfiado, acrescentou, quase descontraidamente: – Também sou
hekamista.

Ergui a sobrancelha para ela. A menina parecia ter a idade da Mina, no


máximo.
– É?

Ela se recostou, batendo as unhas pintadas de preto no batente da porta.

– Entrei para o clã quando tinha treze anos – disse. – Quer ou não quer um
feitiço?

Eu a segui pela sala entulhada e sentei à mesa da cozinha. Ela ficou


remexendo no espaço para fazer chá.

Tirei o cartão preto do bolso da calça e o coloquei entre nós na mesa


lascada.

A menina olhou e soltou uma risada triste.

– O que exatamente você pretende que eu faça com isso? – Ela pegou o
cartão e o girou entre os dedos. –

Não acredito que te contei que era hekamista à toa. Isto aqui não é uma
lanchonete. Só aceitamos dinheiro

vivo, senhorita Lila Charpal.

– Meu nome é Kay – corrigi. Depois peguei o cartão da sua mão, cruzei os
braços diante do peito e fiz uma

careta. É a mesma que minha mãe faz para vendedoras e médicos quando
não recebe a resposta que quer.

Assim disfarcei minha vergonha. – Posso sacar o dinheiro.

– Não trabalho com carnê. Pelo menos não para você.

– Não sei o que é carnê, mas consigo te arranjar o dinheiro. Desde que você
realmente possa fazer o

serviço.

Ela sentou diante de mim com uma caneca de chá nas mãos.
– Do que você precisa?

Então falei sobre os meus feitiços: o de beleza, depois a amarração para


amizade, que eu tinha dado para

minhas duas melhores amigas e para um menino, e que não queria mais que
ele continuasse enfeitiçado.

A menina hekamista ouviu e continuou bebendo seu chá.

– Tem duas maneiras de fazer isso – disse quando terminei. Ela ainda não
tinha me falado seu nome, e eu é

que não ia perguntar. – A primeira é tomar um feitiço que cancele os efeitos


da amarração. Não uma reversão, porque você não vai voltar ao normal, é
mais como outra camada de feitiços sobre a que você já tem.

– Que tipo de camada?

– A amarração precisa saber quem você é para amarrar a algo. Por isso esse
feitiço deixa você meio que…

invisível. Não invisível de verdade. Só mais difícil de as pessoas notarem,


especialmente se elas não a

conhecem ou não ligam para você. E vai afetar todo mundo, não só seu
namorado.

Senti um calafrio. Parecia horrível e eu não poderia correr o risco de perder


Diana ou Ari. Não.

– Qual é o outro jeito?

– É um pouco mais difícil. Eu poderia preparar algo que você vai ter que
dar para ele comer. Um feitiço que realmente quebre o outro e o desconecte
de você.

– Para mim parece bom.


– É perigoso. Não tenho como ter certeza de que vai funcionar. Os feitiços
se protegem. Eles não querem

ser quebrados.

Aquilo soava como os avisos típicos da hekamista, que eu ouvira toda vez
que fora comprar feitiços.

– Eu sei.

A menina abriu um sorriso largo, mas não de alegria.

– Você não sabe que outros feitiços ele já tomou, não sabe que tipos de
reação podem acontecer. Além disso, se não for cuidadosa, o feitiço original
vai descontar em mim, daí é provável que eu seja pega, e eu e minha mãe
podemos ir para a cadeia até ficarmos loucas e morrermos.

Dei de ombros.

– Foi você que escolheu entrar para um clã.

Seus olhos faiscaram e ela piscou.

– Eu salvei a vida da minha mãe. Que diabos você fez?

– Só quis dizer que você sabia dos riscos quando entrou, né?

– Claro, sabia que era ilegal entrar e que todas seríamos condenadas à
prisão perpétua se fôssemos pegas.

Mas também sabia que o governo tinha tornado ilegal que minha mãe
envelhecesse em paz. Sabia que a coisa

“legal” a fazer seria ver minha mãe morrer aos pouquinhos, dia a dia. – Ela
se debruçou com os cotovelos na mesa, deixando o cabelo escuro cair sobre
os olhos. – Muita gente acha que a extinção das hekamistas é uma coisa
boa.

– Discordo – eu disse.
– Porque você tirou vantagem da nossa existência. Mas sabe o que significa
essa “extinção”? Ela não é

pacífica. As hekamistas não fecham os olhos uma a uma e partem desta


para melhor. Minha mãe e todas as

hekamistas da idade dela estão condenadas a uma morte horrível. Estão


morrendo sem saber quem são. Sem

reconhecer a própria família. Tudo porque as pessoas de repente ficaram


com medo de uma coisa que existe

desde que vivemos em sociedade.

Apertei as mãos embaixo da mesa. Toda aquela conversa sobre morte me


fez pensar em Mina e na sombra

que a seguia por toda parte. No entanto, eu não queria pensar em Mina.
Estava ali para me livrar de Cal.

– Só estou aqui por causa do feitiço.

Ela me abriu um sorriso de dentes muito brancos no rosto pálido.

– Todo mundo só quer um feitiço. Tão úteis, as hekamistas... O que vocês


vão fazer quando estivermos

todas mortas?

– Qual é o seu problema?

– Eu te disse. Você não estava ouvindo?

– Por que você está me contando tudo isso? Não tem nada que eu possa
fazer a respeito.

A hekamista deu de ombros.


– Você pode ter me pegado num dia ruim. Ou talvez eu esteja ficando louca
também.
Louca ou não, eu precisava dela.

– Escuta – eu disse, engolindo em seco –, não estou aqui para ficar rica,
nem para ferir alguém, nem para

fazer algo de mau. Não estou aqui porque me importo com você ou com a
sua situação. Não vou te denunciar

e prometo que vou pagar pelo seu trabalho. Só estou tentando fazer a coisa
certa. Duvido que Cal queira ficar preso no meu feitiço.

– Cal? – Echo se empertigou. – Não foi Cal Waters que você amarrou, foi?

– Foi sim. Por quê?

Ela se recostou no assento, franzindo a testa.

– Se você quiser tomar um feitiço para cancelar toda a amarração e


conseguir me trazer o dinheiro, vou ter o maior prazer em correr o risco,
mas da outra forma…

– Como assim? Por que não do outro jeito, quebrando o feitiço diretamente
em Cal?

Ela cutucou a ponta da unha preta descascada.

– Como eu falei. É arriscado demais.

– Pensei que você fosse uma guerreira hekamista fodona. Está com
medinho, é?

A hekamista se ajeitou na cadeira e me encarou, depois se levantou.

– Você vai ter que achar outra pessoa para fazer seu trabalho sujo – disse.

Deixei que ela me empurrasse até a porta, passando pela mesinha de centro
manchada e coberta de xícaras
de chá, pelas runas rabiscadas na parede e pelo sofá velho no meio da sala.

Senti que devia ter tentado mais, oferecido mais dinheiro ou dito algo
compreensivo, contudo, toda aquela

experiência tinha me deixado sem forças para lutar, assim como Mina
ficava fraca depois das consultas

médicas, mesmo que não tivessem feito nada além de conversar com ela.

– Ei – disse a hekamista, olhando desconfiada para a rua. – Você disse que


queria fazer a coisa certa. Toma o feitiço você mesma para se reequilibrar.
Deixa todo mundo livre.

Todos ficariam livres, mas como eu ficaria? Pior do que estava antes.
Sozinha. Invisível.

Não. Eu teria que continuar fazendo aquilo do jeito difícil.

30. Markos

Parecia um zumbido. Como se alguém tivesse passado uma corrente elétrica


pela minha pele e, se qualquer

pessoa me tocasse, seria jogada um quilômetro para trás. Às vezes, estava


no meu rosto. Às vezes, no meu

peito, nas minhas mãos. Às vezes, em outros lugares.

Diana.

Eu já tinha ficado com muitas meninas antes – não tantas quanto os meus
irmãos, como eles adoravam me

jogar na cara, mas umas tantas –, e às vezes elas se destacavam por algum
motivo sacana, ou eu ficava com a mesma menina mais de uma vez porque
era fácil, porque ela era gostosa ou porque era doidona. Mas nunca
tinha acordado na manhã seguinte, e na outra, e na outra, me sentindo
assim. Mais vivo.

Além disso, o zumbido não ia embora, embora eu passasse os dias na loja


de ferragens fazendo cópias de

chaves e mostrando para as pessoas onde ficavam as brocas. Nas horas de


pouco movimento – e de não tão

pouco movimento também –, nós trocávamos mensagens.

De qtos parafusos um homem precisa?!?!

Vc tá tentando me seduzir? :)

Ñ preciso te seduzir, vc já é minha

Ah, é? Tinha esquecido!

Eu ñ

Tá. Eu tb ñ

Preciso ajudar um cara aki com o motor de arranque dele

Parece divertido. Depois vc me liga?

Sdds

Sdds tb

Nojenta

Nojento é vc

Quando não estava fazendo isso – quando os clientes saíam e Diana


precisava trabalhar de babá –, eu falava sozinho. Quer dizer, não
exatamente sozinho. Era mais a voz de Win, que eu ouvia, me respondendo,
a mesma
que vinha ouvindo fazia semanas. Sabia que era loucura e que devia parar
com aquele faz de conta, mas era

mais fácil deixar a voz falar do que tentar calá-la.

Ela está brincando, mas está certa. Isso é nojento.

Por quê?

Eu sou o Markos Waters.

E daí?

E daí que estou me permitindo gamar nessa menina.

Ela é ótima.

Pois é.

Ela ouve. Ela entende.

Pois é.

E tem os beijos.

Pois é.

Pois é.

Mas não posso ser esse cara.

Por que não?

Não está no meu DNA.

Que desculpa mais esfarrapada, Markos! Se eu estivesse vivo, acabaria


com a sua raça.
Isso me fez lembrar de Ari e Win juntos. Quando éramos crianças, éramos
eu e Win, Win e eu. Na segunda

metade do ensino fundamental, comecei a sair com umas meninas, mas eu e


Win continuávamos juntos.

Então, no ensino médio, passamos a ser eu, Win e Ari. Ou melhor, eu


sozinho e, de vez em quando, com Win

e Ari. No começo, eu a achava irritante porque não a entendia direito: ela


não era uma menina qualquer, era alguém que mudava a essência de Win.
Não no mau sentido. Ele era mais sólido com ela, mais decidido, mais

firme. Ocupava mais espaço. Era as partes boas de si mesmo, só que mais.
Ari agia como um amplificador de

Win.

Depois que notei isso, deixei de ter problemas com ela. Passei a gostar dela.
Não como Win gostava, mas

como um mano. Ela era da hora.

Quanto a Win, me assustava que uma pessoa que eu conhecia tão bem –
melhor que meus irmãos até –

pudesse mudar só por estar com outra. “Nunca vou mudar”, eu pensava.
“Sei quem sou.”

Ha-ha.

Eu estava arrumando o mostruário de tintas quando a hekamista da minha


mãe parou ao meu lado. Meu

primeiro pensamento foi de que ela gritaria comigo por causa dos seis mil
dólares roubados, mas isso não

fazia sentido. Aquilo tinha acontecido meses antes e minha mãe devia ter
pagado para ela, não contado que eu tinha pegado o dinheiro. Então,
comecei a ficar realmente paranoico e achei que ela sabia que eu estava

pensando em Diana, Win e Ari, e que tinha algum tipo de conselho de velha
hekamista sábia para me dar sobre tudo aquilo.

– Markos Waters? – ela disse. Era uma senhora grande e parecia estar
chapada. Cheirava a galhos de

pinheiro e terra de floresta. Seus olhos grandes demais piscavam para se


focar.

Fiz que sim. Ela pegou uma das amostras de tinta e olhou para cima e para
baixo. Meio desejosa, meio

faminta, como se fosse um cardápio.

– Posso ajudar a senhora a encontrar alguma coisa? – perguntei.

Ela olhou para mim de cima a baixo, como se eu também fosse uma cor do
mostruário.

– Meus pêsames.

Certo. Ela era uma hekamista, mas, mesmo assim, podia fazer turismo de
luto. Schadenfreude. Funciona assim: as pessoas fingem sentir muito, só
que, na verdade, estão aliviadas e meio que fascinadas pela cara

daqueles que perderam alguém. “Como ele pode passar por isso e seguir em
frente?”, elas se perguntam. “Ele é completamente diferente de nós, agora.”

– Você era um bom amigo. – (Como ela sabia disso?) – Ele parecia o tipo
de pessoa de quem é bom se

lembrar. – (Como se eu tivesse escolha.) – É uma pena que nem todos os


amigos dele possam fazer a mesma

coisa. – (Espera aí… como é que é?)

– Do que a senhora está falando?


A hekamista cobriu a boca com uma das amostras de cores, mas dava para
ver um sorriso saindo de ambos

os lados.

– Ela não te contou. Claro que não... Que engraçada, que engraçada...
Aquela menina… a bailarina.

– O que Ari fez? – perguntei.

– Vou te contar. Tenha paciência. – Ela respirou fundo e mordeu a ponta da


amostra de tinta. – O que era

mesmo? Ah, sim. A bailarina esqueceu Win. Apagou o menino. Bobinha,


que bobinha, fez um feitiço para se

esquecer dele. – Tirou a amostra da boca, colocou-a de volta na prateleira e


deu um tapinha no meu braço.

Toda a eletricidade tinha sumido da minha pele.

Mal senti sua mão.

Então fiquei sozinho. Eu e as amostras de tinta. O sino da porta soou. O ar-


condicionado ficou mais forte.

Agarrei a prateleira de metal que estava na minha frente e a puxei. As


amostras de tinta caíram no chão.

Contornei-as e fui direto para a porta.

Meu celular apitou. Outra mensagem.

Apertei a tela com os dedos trêmulos. Achei o número de Diana. Ouvi os


toques. As pausas entre os toques

se estenderam por quarteirões.

Quando ela atendeu, havia crianças gritando ao fundo.


– Alô?

– Ari pagou uma hekamista para apagar Win. Ela não lembra nada dele.

Por um segundo, só ouvi os gritos das crianças. Acho que nenhum de nós
respirou. Então Diana soltou um

suspiro.

– Isso é horrível! Mas que bom que ela finalmente te contou!

– Como é que é? Ela não… o que você quer dizer com “ela finalmente me
contou”? – O sangue subiu para

a minha cabeça e eu me abaixei. O peso me fez cair de joelhos. – Ela te


contou. Você… você sabia.

– Alguns dias atrás. Não consegui acreditar. Fiquei com muita raiva,
Markos. Ela mentiu para mim…

– Você mentiu para mim. Mentiu na cara dura. Me mandou ligar para ela,
porra! – Agora eu já estava gritando, de joelhos no meio da calçada,
enquanto os turistas se abriam feito o mar para passar ao meu redor.

O ar à minha volta parecia estar carregado, venenoso.

– Eu queria te contar, mas a Ari prometeu…

– E você acreditou nela? Depois que ela contou o que fez, você acreditou
em alguma palavra do que aquela

garota disse?

– Markos, desculpa…

– Não me liga nunca mais. Essa vai ser a última vez que você vai ouvir
minha voz, sua cretina mentirosa!
Apertei o celular para desligá-lo. Havia uma ligação e várias mensagens.
Meu coração descia sangrando

pelos dedos e pingava na calçada. O cimento tapava meus pulmões.


Respirei com dificuldade.

Quando consegui controlar o tremor das mãos, desliguei o telefone.

Comecei a andar rumo à Sweet Shoppe, onde Ari trabalhava, mas parei no
meio. Sabia que, se visse a cara dela, algo terrível poderia acontecer. Uma
parte enorme de mim queria ferir aquela menina, deixá-la com um
hematoma, fazer com que ela sentisse algo, trazer de volta parte da dor que
ela havia jogado fora quando

apagara meu melhor amigo. Essa raiva me assustava. Outra parte de mim
achava que eu teria um colapso, o

que não serviria para nada.

Nada. Nada mesmo.

Havia tantas coisas que eu e Win fizemos juntos que, de alguma forma,
achava que não desapareceriam

porque Ari se lembrava delas. Mas eu era o único agora. Só eu me


recordava de Win. Toda essa merda, esse

lance de “superar”... Era o único que precisava passar por isso. Não podia
abandonar a dor agora, nunca

poderia superar. Não quando eu era o único que podia impedir que Win
fosse esquecido para sempre.

Num momento, estava parado na frente da loja de ferragens e, no instante


seguinte, estava em casa. Havia

uma menina sentada na entrada e, a princípio, pensei que fosse Diana e


quase saí correndo. Contudo, essa
menina tinha o cabelo escuro, e não ruivo como o de Diana, então, quando
cheguei mais perto, reconheci a

amiga de Diana e Ari que tomara o feitiço de beleza – Kay. Katelyn. Algo
assim. Estava pouco me lixando.

Ela estava com os braços tensos sobre os seios bem-feitos no instante em


que me viu, contudo, quando me

aproximei, ela relaxou. Tentei pensar em algo que pudesse dizer para
mandá-la embora logo, mas minha mente estava vazia. Quase dava para
ouvir o vento uivando em meus ouvidos. Ou será que era um rugido?

– Oi. Estava procurando o Cal – ela disse.

Parei a alguns metros dela. Ela estava entre mim e a porta. Mas não havia
nada dentro de casa que fosse

melhor do que ali fora.

– Você está bem? – Kay perguntou. – Não parece.

– Então acho que estou mal. – Enfiei as mãos nos bolsos para pararem de
tremer. Tudo parecia se colocar a

uma distância impossível. – Aposto que você também sabe, já que vocês
três são tão amigas e tal.

– Sei o quê?

– Que Ari tomou um feitiço para esquecer Win. Que ela só está se fazendo
de triste. Ela contou para

Diana… para você não?

Kay ficou boquiaberta, seu rosto bonito tão atormentado quanto o monstro
que me consumia por dentro.

– Ela estava mentindo para mim?


– Para todo mundo.

– Mas… eu sou a melhor amiga dela.

Dei risada e ela recuou como se eu tivesse cuspido na sua cara. A menina
não era uma pessoa ruim nem

tinha feito nada contra mim, mas eu precisava descontar parte daquela
sensação ruim, ou ela me faria desabar.

– Escuta, tenho que resolver um monte de merdas, e nenhuma delas inclui


falar com você, então por que

não vaza daqui?

Sua surpresa e sua mágoa desapareceram, e ela voltou a assumir a máscara


de menina bonita. Contudo,

dava para ver que ela não se encaixava bem, que a raiva e a dor saíam pelos
cantos e fendas, ameaçando

romper a máscara.

– Estou aqui para ver o Cal – ela disse.

– Por quê?

– Porque… somos amigos.

Dei outra risada.

– Como assim? Você acha que estão namorando ou coisa do tipo?

– Talvez a gente esteja.

– Até parece... Os Waters não namoram a sério. Você não sabia?

Ela deu um passo à frente. O mais perto que uma menina tinha chegado de
mim desde aquela noite no
estacionamento da lanchonete, desde Diana – só que ela não era Diana.
Essa menina tinha o cabelo preto

brilhante, o rosto e o corpo bonitos, mas eu não sentia nada por ela. Como
uma zona morta onde o celular não pega, ou uma parte gelada do mar.

– Você já se sentiu uma farsa patética? – perguntei. – Porque todo mundo


sabe que você se maquiou com

um monte de feitiços. Acha que ninguém se lembra de como você era


antes?

Ela ficou vermelha de raiva, humilhação ou seja lá o que fosse, o que


acabou melhorando sua aparência

falsificada. Senti um choque descer pela minha espinha também – não pela
beleza dela, mas pelo que eu era

capaz de fazer com alguém.

Eu tinha provocado aquilo.

– Você é que é uma farsa – ela disse. – Se esforçando demais para fingir que
não se importa.

Fiz uma careta.

– Como você é perspicaz...

– Você está se comportando como um cretino porque está com raiva da Ari.

– Estou com raiva da Ari, mas talvez não goste de você também.

– Você não estaria sendo tão filho da puta comigo se soubesse do que sou
capaz – falou.

Dei risada.

– Ó todo-poderosa, tenha piedade de mim!


– Cala essa sua boca! – ela gritou. Então, se aproximou e me deu um beijo.

Eu deveria ter ficado puto. Ter empurrado aquela menina para longe. Dito
que ela não ia provar nada me

beijando. Que continuaria sendo uma farsa, e que eu continuaria sentindo


ódio dela. Deveria retrucar com algo ainda mais cruel, para acabar com ela
para sempre.

Mas não tinha sobrado nada em mim para sentir raiva.

Enquanto sentia raiva, Ari não sentia nada.

Enquanto sofria, Ari não sentia nada.

Enquanto procurava formas de agravar a dor, Ari não sentia nada.

Enquanto ficava esperando que tudo fizesse sentido, Ari não sentia nada.

Nada nunca iria afetá-la do jeito como a morte de Win me destruía.

Agora eu não sentia nada. Ou talvez essa sensação fosse tudo, como o
branco é a combinação de todas as

cores.

– Por que você fez isso? – perguntei. Kay deu de ombros. Peguei o braço
dela, puxei-a para perto de mim e

a beijei com força. Ela retribuiu.

– Você vai se arrepender disso – ela disse, quando paramos para tomar
fôlego.

– Mal posso esperar – respondi.

Não me importava com ela – nem mesmo gostava dela –, o que significava
que o que estava acontecendo
não tinha o menor sentido. Mas eu não era Win, preso a uma única menina
para todo o sempre. Era apenas eu

mesmo, o lendário Markos Waters, um dos Waters desencanados, a alma da


festa, assim mergulhei no papel

com alívio. Era mais fácil do que me afogar.

Quando Kay foi embora algum tempo depois, mandei uma mensagem para
Ari dizendo que, se a visse de novo, a mataria. Depois bloqueei o número
de Diana e deletei todas as suas mensagens. Sentei na frente da

tevê com uma garrafa de Jack Daniel’s e me preparei para encher a cara, o
que era um método normal,

passageiro e livre de hekame para apagar uma memória dolorosa e


implacável.
P arte 3. Os preços

31. Kay
Fui embora da casa dos Waters me sentindo diferente. O mundo estava
diferente. A escuridão tinha quase

tomado o lugar da luz forte do meio-dia, mas o ar também tinha um cheiro


de outono e o céu pesava sobre

meus ombros.

E eu. Por dentro. Tinha ido ver como Cal estava, cumprir o meu dever para
com o feitiço. Em vez disso,

beijara o irmão dele.

Markos estava furioso. E maldoso. Eu havia dado um beijo nele para provar
que, no fundo, ele não me

achava uma farsa feia e mentirosa. Ou, pelo menos, a fim de atestar que ele
era tão ruim quanto eu, e que nós dois sabíamos disso.

No fim, acabei não provando nada para ele. Só provei a mim mesma que
tipo de pessoa eu era.

Uma pessoa má. Minhas melhores amigas me odiavam e escondiam


segredos de mim – por um bom

motivo, mesmo que elas não soubessem.

Esse também era o problema da minha “relação” com Cal. Eu concordava


com Markos, com Diana e Ari: o

meu lugar não era com alguém tão animado, sociável e popular como Cal.
Eu sabia exatamente como era por

dentro, alguém que não era digna de ser namorada de ninguém. Não. Eu
merecia ser xingada por Markos, ser

desrespeitada e depois deixada de lado. Esse era o meu verdadeiro eu.


Uma pessoa que precisava comprar um feitiço para manter as amigas por
perto.

Da casa do Markos, fui para a de Ari. Ela atendeu à porta usando a roupa de
balé – a malha e o bolero cinza

–, mas não parecia cansada nem suada. Me deixou entrar e sentamos no


sofá do seu porão por cinco minutos

sem dizer nada. Ela estava distraída, com o olhar vazio. Dava para ouvir sua
tia cantando fora do tom

enquanto andava pela cozinha no andar de cima.

– Kay, estou num dia meio ruim – Ari disse, depois de um tempo. – Será
que você pode vir em outra hora?

– O que é tão ruim?

– É só… ruim.

– Puxa, pode me falar.

– Acho melhor não.

– Por que não? – perguntei. Apoiei as costas no canto oposto do sofá e os


calcanhares no espaço entre os

dois assentos. – Está triste por causa do Win? Porque não é bom ficar
guardando tudo, Ari. Você devia falar mais dele. Deixar a gente te confortar.
Compartilhar algumas das suas boas lembranças.

Sua expressão ficou vazia, como uma casa de praia vaga no inverno.

– Então… você ficou sabendo.

– Sim, fiquei.

– Como?
– Markos me contou.

– Quando todo mundo começou a sair com o Markos sem mim?

Senti meu rosto esquentar.

– Como assim, todo mundo?

Ari pressionou as palmas das mãos nas olheiras escuras sob os olhos.

– Diana acha que eles estão namorando. Que estão apaixonados.

– Eles quem?

– Markos e Diana.

– Até parece... – eu disse. Ari deu de ombros.

– Ela nunca me contou nada!

– Sinto muito que não tenha sido atualizada.

Uma faísca de raiva por um momento me fez esquecer que tanto Ari quanto
Diana haviam mentido para

mim.

– Sabe, enquanto você estava lá com Win fazendo sabe-se lá o quê, Diana
confiava em mim. Porque você

tinha sumido.

– Isso eu já entendi.

– Ela ficava triste por isso. Porque você a trocara por um menino. Mas eu
estava lá quando ela precisava. –

Ari não disse nada. Puxou o bolero para cima dos ombros. – E sabe o que
mais? Depois de meses, ela parou
de ficar triste. Seguiu em frente. Ela não precisa mais de você.

Ari se contraiu, e meu lado perverso me fez sorrir.

– Aonde você quer chegar, Kay?

– A lugar nenhum. Só estou contando o que aconteceu.

– Bom, então já pode parar.

Abracei uma almofada contra o peito.

– Não sei se você sabe, mas você e Diana agem como se nem gostassem de
mim às vezes.

Ela olhou para o teto. Parte de mim torceu para que Ari negasse, mas ela
não estava nesse clima.

– É só que… você se esforça demais.

– Eu tento. Cuido da Diana. De vocês duas.

– Sim. Talvez a gente não queira que cuidem de nós.

– Bom, talvez eu não queira ser a coitadinha de quem vocês duas tiram
sarro o tempo todo.

As palavras saíram da minha boca antes que pudesse julgar se aquela era
uma boa ideia. Só que Ari não

pareceu ficar ofendida. Parecia… envergonhada? Mas eu tinha brigado com


ela. Aquilo não era nada legal da

minha parte.

Jess atingiu uma nota alta na cozinha, e nós nos encolhemos. Eu passara
todo o verão – e toda a primavera
também – me esforçando com Ari e Diana. Tentando fazer com que elas me
tratassem como uma amiga de

verdade.

No entanto, não precisava fazer nada. Não precisava cuidar de Diana depois
do acidente. Nem de elogios,

de atenção. Podia ser tão má quanto quisesse – ficar com o namoradinho de


Diana e dizer para Ari como

realmente me sentia – que elas, ainda assim, seriam obrigadas a ficar perto
de mim. Era isso que minha

amarração garantia. Eu tinha fisgado as duas.

A única razão para que eu me esforçasse era provar que, no íntimo, eu não
era tão ruim. Mas, por dentro, acabei apodrecendo de qualquer forma, então
esse esforço fora em vão.

– Eu tentava – repeti. – Pelo menos, não desisto como você.

Ela abanou a cabeça com os olhos fechados.

– Às vezes, desistir é o caminho mais inteligente.

– Certo. Esquecer Win realmente está te fazendo muito bem, não está?

Ela entreabriu um sorriso.

Voltei a relaxar no sofá. Minha vida estava uma bagunça, sim. Eu havia
beijado Markos e não tinha falado

com Cal – e, se algum deles saísse da linha, o feitiço os puxaria de volta,


violentamente se fosse necessário.

Contudo, Ari e eu havíamos tido nossa primeira interação sincera em


meses, e tudo porque eu tinha parado de me preocupar em ser uma boa
pessoa (porque não era), de me preocupar com o fato de Ari ser incrível
(porque ela não era) e simplesmente dissera o que pensava.

Ari tinha razão. Eu não precisava me esforçar demais. Bastava deixar o


feitiço fazer seu trabalho.

32. Ari

Kay estava certa em relação a uma coisa: eu não podia desistir tão fácil.
Depois que ela saiu, troquei de roupa e fui à casa de Echo e sua mãe. Não
conseguia dançar, Diana mal me tolerava, Markos me odiava e até Kay

tinha me tratado mal – em breve, toda a cidade me olharia como se eu


mesma tivesse virado o volante da

caminhonete de Win. Na porta da casa delas, me preparei, esperando que


alguém aparecesse para que eu

pudesse descontar minha fúria, com razão.

Quando Echo abriu a porta, ouvi um lamento. Era um grito constante e


penetrante de uma nota só.

O rosto de Echo se iluminou ao me ver, e ela fez sinal para que eu entrasse
antes de voltar correndo para a cozinha. Não sabia o que fazer, então entrei
pela porta da casa. A mãe de Echo estava agachada na frente do sofá, com o
rosto entre duas almofadas. Seu cabelo branco encaracolado era tudo que eu
conseguia ver da

sua cabeça. Um som constante e agudo saía dela. Eu não sabia como ela
estava respirando. Tirando o barulho, estava estranhamente imóvel, tensa
como se um único toque fosse disparar uma mola interna que faria o som, o
sofá e tudo por perto pegar fogo.

Fiquei de costas para a porta da entrada. Echo abriu os armários e procurou


dentro da geladeira. Tirou uma maçã e um instrumento que parecia um
disco de hóquei.

– O que está acontecendo com ela?


– Ela está morrendo.

Fiquei paralisada.

– Não é melhor ligar para um hospital?

– Não é esse tipo de morte. Me dá um minuto.

Echo colocou o disco na mesa da cozinha e a maçã em cima dele. A fruta


flutuou sobre o disco como se

estivesse magnetizada. A menina sentou na frente do artefato e encarou a


maçã, que virou devagar de um lado para o outro.

A pressão do ar aumentou como se estivéssemos num avião prestes a


pousar; meus ouvidos estalaram. O

ar ficou quente, quente demais, a ponto de minha camiseta grudar na pele.


Durante todo esse tempo, a mãe de Echo continuou soltando o mesmo grito
ininteligível.

– O que você está…?

– Fica quieta.

Meu olhar foi atraído pela maçã. Só depois percebi que toda a luz do
cômodo havia diminuído, exceto por

um foco de luz sobre o disco.

Echo entrou embaixo da luz. Até então, não tinha notado que ela não estava
usando o casaco de sempre, só

uma camiseta preta de manga longa. Ela arregaçou uma das mangas,
revelando uma série de cortes, do punho

até o ombro – alguns frescos, ainda não cicatrizados.


Echo pegou uma pedra dentada e escolheu um lugar. Eu devia correr até ali
e tirar a pedra da sua mão, mas

não consegui me mover. Quando ela se cortou, não gritou nem fez careta.
Tampouco fechou os olhos. Ficou

observando – assim como eu – enquanto o sangue do corte pingava no disco


de hóquei. Depois de alguns

momentos, toda a luz da sala ficou vermelha. Pensei ter visto um rosto
sobre a maçã, piscando malignamente, então Echo gritou. Eu também gritei,
fechando os olhos e cobrindo a cabeça com as mãos.

Quando voltei a abrir, havia silêncio na casa. Até a mãe de Echo tinha
parado de gritar. Ela estava em pé

diante da mesa da cozinha, mastigando a maçã. A menina se deixou cair,


com a cabeça perto do artefato que

lembrava um disco. Agora que a casa não parecia mais estar prestes a
explodir, me aproximei de Echo para

confirmar se ela estava respirando. Estava.

A mãe deu um tapinha no braço intacto da filha.

– Obrigada – ela disse, depois se deitou no sofá. A polpa da maçã estalou


quando seus dentes arrancaram

outro pedaço da fruta, ecoando pela casa. O braço de Echo continuava a


sangrar, formando uma poça

vermelha sob seu cabelo.

Echo era uma hekamista.

Ela não deveria existir.


Toda a raiva e recriminação que me pareciam tão justificadas ao longo do
caminho não faziam mais sentido

agora. Meu segredo tinha sido revelado. Não havia nada que Echo pudesse
fazer então.

Abri e fechei alguns armários até encontrar um pacote enorme de gaze,


além de uns lenços antissépticos.

Quando toquei a ferida com o lenço, Echo começou a despertar e piscou


duas vezes ao olhar para mim.

– Você trouxe o dinheiro? – disse com a voz baixa, olhando de soslaio para
a mãe.

Deixei o queixo cair por um momento antes de responder.

– Sério? Vim aqui para te dar um sermão… o Markos já sabe, o que


significa que logo mais todo mundo vai

saber. Achei que você havia ficado cansada de esperar e tinha contado para
ele.

Seus ombros se afundaram, ela se recostou na cadeira.

– Por que eu contaria para o Markos? Guardar segredo era minha única
vantagem.

– Bom, alguém contou para ele.

– Talvez ele tenha sacado que você estava mentindo.

– Mal falei com ele desde o funeral de Win. Ele não teve tempo de me testar
com um questionário sobre

Win.

Ela silvou como se eu a tivesse beliscado com força.


– Isso não é uma brincadeira, sabia? Não é porque você não se lembra que
uma pessoa deixou de morrer.

Segurei meu punho no ponto onde mais doía.

– Eu sei disso.

– Não, não sabe. Esse é o problema.

Ela limpou o sangue do corte. Era uma linha fina, apesar das pontas
dentadas da pedra, que ainda segurava

com firmeza na mão.

– Fui eu que contei para o Markos – disse a mãe de Echo do sofá.

Nós duas nos voltamos para ela.

– Mãe… por quê?

– Se você conseguisse o dinheiro, ia me abandonar – falou em voz baixa.


Seus olhos se fecharam. O

caroço da maçã repousava no seu peito. – Eu não podia deixar isso


acontecer. É perigoso demais para minha

Echo ficar lá fora no mundo… perigoso demais…

– Você contou para minha mãe? – Echo me perguntou.

– Hum... – eu disse. – Sim. Mas… não eram vocês duas que estavam me
chantageando? Juntas?

A garota abanou a cabeça devagar.

– Ela não quer que eu vá. Fica preocupada comigo. Merda.

Tentei mudar de assunto.


– Que tipo… quer dizer… enfim… o que exatamente há de errado com ela?

Enquanto começava a enrolar uma faixa em volta do braço, Echo inclinou a


cabeça para a mãe, que agora

parecia dormir no sofá.

– É isso que acontece quando perdemos nosso clã. Primeiro, a mente fica
desequilibrada, insegura. Depois

há um período de dor, súbito e devastador. Por fim, não conseguimos


comer, falar, nem… – Ela encolheu os

ombros. – Quanto mais feitiços a pessoa tenha praticado, mais rápido isso
acontece. É por isso que ainda

estou bem e ela já está na fase da dor. Ando fazendo alguns feitiços para
aliviar.

– Por que não faz um feitiço só para ela se curar?

Echo abanou a cabeça.

– Um que se voltasse a essa quantidade de dor a mataria. O melhor que


posso fazer é lhe dar uma anestesia

temporária. Conseguir um pouco mais de tempo.

– Mais tempo para quê?

– Para sair da cidade e convencer outras hekamistas a nos aceitarem em seu


clã. Para salvar a vida dela.

– Você não pode simplesmente mandar um e-mail para elas?

– Eu sou ilegal. Não devia existir. Se for pega, todo mundo do meu clã vai
para a cadeia. Preciso convencê-
las pessoalmente. Talvez até pagando um suborno. Para que você achava
que eu queria seu dinheiro?

– Ah... – Olhei para a mãe de Echo, que dormia no sofá. – Ah! Ela não quer
encontrar outro clã?

– Ela tem medo. De que eu seja pega, de que me levem embora. Medo de
que eu a deixe sozinha.

– Mas você vai deixá-la...

– Se estivermos vivas daqui a seis meses, ela vai estar num estado melhor
para entender por que precisei ir.

– Echo apontou para a sala pequena entulhada de móveis baratos. – As


pessoas pagam muito pelo que

fazemos, mas ela sempre escondeu o dinheiro, dizendo que não queria
chamar atenção esbanjando, então eu

nunca consegui encontrar. Nem tenho certeza se ela ainda sabe onde está,
agora que sua mente está se

esvaindo. Então eu mesma preciso ganhar essa grana.

Permanecemos sentadas em silêncio por mais alguns instantes. Fiquei


chocada ao pensar que Echo havia

passado todo aquele tempo ali desde que eu começara a frequentar a escola,
levando a vida numa casinha

minúscula, invisível para o resto de nós – exceto quando precisávamos dela


ou da sua mãe.

– Então você é uma hekamista – eu disse.

Echo fez que sim.

– E são sempre assim? Os feitiços, quero dizer.


– Mais ou menos. Comida, sangue, intenção. – Ela recitou essas palavras
feito um mantra, depois cortou

um pedaço do esparadrapo com os dentes e colou na gaze.

– E… dói? – perguntei.

– Pra caramba.

– Então por que você faz isso?

Ela me observou por entre o cabelo sujo de sangue.

– Não é só dor. Tem prazer também… o poder. Faço parte de algo maior
que eu. Algo bonito. Arrumo as

coisas, mantenho o equilíbrio. É sempre uma sensação boa. – Ela se


empertigou na cadeira, desenrolando a

manga da camiseta e cobrindo o curativo novo. – Além disso, a escolha é


minha. Eu posso escolher ajudar

minha mãe e fazê-la parar de sofrer.

– Você nunca se arrepende?

Por um segundo, ela pareceu querer me dar uma resposta rude, mas
reconsiderou.

– Tem momentos em que seria mais fácil… não ser uma hekamista.

Eu tinha visto hekamistas na tevê protestando contra as leis que proibiam


entrar para um clã, mas elas

nunca falavam sobre isso. Conversavam sobre a história, o equilíbrio


natural, o livre mercado e a grande

história pacífica do hekame. Nada de “comida, sangue, intenção”. Nada de


dor.
Echo se recostou na cadeira. O sangue pingava do seu cabelo e escorria
pelas bochechas. Eu lhe dei mais

algumas gazes e ela as torceu.

– Bom, agora que o segredo foi revelado, acho que não temos mais o que
conversar – ela disse.

– Sim. Boa sorte. – Comecei a caminhar em direção à porta, dando a volta


com cuidado pelo sofá e pela

hekamista mais velha que dormia nele.

– Ei! – Echo disse. Então mordeu o lábio inferior, hesitante. – Na noite em


que Win morreu, na noite em

que ele ia me pagar... Você realmente não se lembra de nada?

Fiquei olhando para ela, examinando todos os fios retorcidos de seu cabelo
e a fivela de seus coturnos.

Seus olhos eram castanho-claros, mais suaves que os ângulos duros de seu
rosto. Tive novamente aquela

sensação que não era exatamente uma lembrança, a sensação de flutuar na


luz e no ar.

– Você me parece um pouco familiar. Não sei o que isso significa, porém
tenho uma lembrança vaga de…

leveza.

Com isso, ela abriu um sorriso largo, tão largo que pareceu quebrar seu
rosto em dois, então começou a

chorar.

Eu poderia ter saído naquela hora, ter lhe dado as costas e ido embora.
Contudo, não havia nada para mim
lá fora além de vídeos de apresentações antigas e amigos que não
confiavam em mim. Por mais estranho que

pareça, Echo me lembrava Diana, ou pelo menos a antiga Diana, que


precisava que eu fosse a forte do grupo, a líder. Embora ela fosse uma
hekamista. Embora fosse eu quem soubesse um segredo sobre ela. Esse

segredo a tornava uma pessoa de verdade.

Voltei para a cozinha e sentei diante dela. Echo continuava chorando, as


lágrimas caíam pela ponta do seu

nariz, misturando-se com o sangue e pingando nas mangas pretas que


cobriam seus braços cruzados sobre a

mesa. Me perguntei se era assim que eu estaria se não tivesse tomado o


feitiço e permanecesse realmente de luto.

– Eu não estava apaixonada por ele nem nada – ela disse depois de algum
tempo.

– Ah... Tudo bem.

– Mas ele ouvia, confiava em mim. Fiquei quase completamente sozinha


por tanto tempo... Eu… sinto falta

dele – e limpou os olhos com a manga.

– Como ele era?

Echo olhou para a manga e para as unhas que agarravam a bainha.

– Ele jogava beisebol. Era sempre gentil com a irmã.

– Eu a conheci – falei. Me lembrava de uma menina miúda e pálida que me


abraçara com força no funeral.

Onde ela estaria agora? Será que a antiga Ari a teria procurado, teria
passado mais tempo com ela? Será que ela sentia minha falta?
Echo se levantou tão abruptamente que pensei que ela fosse desmaiar. No
entanto, mesmo assim, continuou

ereta, pegando os pratos e jogando-os na pia. Ela guardou o disco de hóquei


no armário, ao lado de uma pilha de fôrmas amassadas. As gazes sujas
foram para o lixo, e as limpas para o lugar de onde tinham vindo. Ela se
movia rápido demais naquela cozinha tão pequena.

– Win era um bom irmão – ela disse. – Não que eu tenha algo com que
comparar. Sou filha única, óbvio…

e nem sei como minha mãe conseguiu me ter, porque é difícil para as
hekamistas ter filhos. Há alguma coisa na vida compartilhada de um clã que
não combina com as necessidades de um bebê. É por isso que… na

época em que a lei permitia, as hekamistas costumavam entrar para os clãs


mais velhas. Elas esperavam até

que já tivessem filhos. – Echo parou no meio da cozinha, como houvesse se


espantado com as próprias

palavras.

Também fiquei espantada. Sem filhos. Nunca. Não queria um nesse


momento, e duvido que Echo também

quisesse, mas era um sentença vitalícia dura de aguentar.

– Mas você queria saber de Win – ela disse baixinho. – Não de mim. Eu
queria ter algo para te contar. Mas

o conheci por muito pouco tempo… Não tive a chance de…

Desejei não ter perguntado. Tinha sido um impulso idiota e egoísta da


minha parte, o mesmo que me levava

a examinar as fitas das minhas apresentações de dança, caçando provas


de… de quê? Os segredos, beijos e
olhares não significavam nada para mim. Estava tudo fora de contexto. Eu
procurava pistas sobre Win de

maneira fria, egoísta, enquanto as pessoas que o conheciam estavam


sofrendo.

– Win nunca chegou a tomar o feitiço que fiz para ele – ela disse. Então
olhou para a mãe, que dormia no

sofá, e depois voltou a se sentar à mesa, pousando o rosto nas mãos. – Acho
que, enfim, se ele tivesse

tomado… sei lá. Talvez não tivesse morrido.

– Então o dinheiro era para um feitiço? De quê? – Ela abanou a cabeça e


não quis responder. – Como o seu

feitiço teria impedido o acidente? – insisti.

Echo não disse nada. Outro segredo então… mais uma coisa que não sabia
sobre ele.

– Sinto muito pela sua perda – eu disse. Não sabia o que mais dizer. Ela
afundou a cabeça na mesa de novo

e pude ouvir sua respiração ofegante.

– Odeio admitir, mas… – Ela respirou fundo e falou, com a cabeça pousada
no tampo da mesa: – Entendo

por que você preferiu esquecer.

Apertei o punho com tanta força que o músculo doeu.

– Você provavelmente será a única pessoa que vai dizer isso.

– As pessoas não entendem nada.


– Aposto que me odiariam menos se soubessem que é provável que eu
nunca mais dance de novo.

Assim que falei, desejei retirar o que havia dito, pegar as palavras no ar e
enfiá-las de volta na minha boca grande e idiota. Me mudar para Nova York
era a única coisa que me restava.

No entanto, agora que todo mundo sabia que eu havia apagado Win, não
tinha mais por que fingir: fazia

semanas que eu não ia à aula. Mal conseguia estender os braços acima da


cabeça. Tinha perdido todas as

bolhas e calos que caracterizam as verdadeiras bailarinas, porque eu não era


mais uma verdadeira bailarina.

Não conseguia dançar.

– É muito ruim?

Empurrei a cadeira para trás e me levantei no meio da cozinha, fazendo o


quatro com as pernas, erguendo

um braço acima da cabeça e estendendo o outro diante de mim. Imaginei


uma pirueta. Já tinha feito milhares delas. É fácil. Respira fundo. Estende os
braços. Põe o peso no pé da frente. Deixa o impulso te levar durante o giro.
Mal tinha chegado ao meio antes de dar de cara com a geladeira.

Echo olhou para os meus joelhos, braços e torso, calculando.

– Um feitiço de força bruta para consertar tanta estabanação teria muitos


efeitos colaterais.

– Foi o que sua mãe me falou. Disse que eu teria ainda mais problemas por
causa dos efeitos dos meus

antigos feitiços também.

– Uma hekamista cuidadosa poderia dar um jeito nisso.


– Mas tem efeitos colaterais sobre efeitos colaterais. Não é?

Ela me examinou.

– É um risco, claro. No entanto, se feito do jeito certo, você ficaria meio


bagunçada, só que continuaria

sendo você mesma.

– E um feitiço permanente custa cinco mil dólares, certo?

Ela deu de ombros.

– Quando você for uma bailarina famosa, pode me pagar.

Meu coração saltou no peito, em um grande jeté estabanado.

– Como assim?

– Eu vou te ajudar. Se conseguir.

Agora meu coração pulava em círculos, dando uma pirueta sempre que
pousava. Girando, tonta, levantei

com dificuldade.

– Não tira sarro da minha cara, por favor. Sei que você deve me odiar…

– Não te odeio.

– … mas não zoa comigo, tá?

– Não estou te zoando. – Ela se levantou, limpando migalhas imaginárias da


mesa da cozinha. – Vou

considerar como um favor para Win.

Olhei ao redor do cômodo como se fosse encontrar alguém a quem contar a


novidade: tudo havia mudado.
Eu tinha vindo para brigar com Echo, pronta para culpá-la por tudo que
dera errado naquele verão. Eu tinha perdido a memória, a dança e meus
melhores amigos.

No entanto, agora eu tinha esperança de poder conseguir uma dessas coisas


de volta.

33. Win

Uma pessoa melhor, mais inteligente e com menos merda na cabeça


contaria para vocês que havia comido o

maldito sanduíche, pedido e pegado o dinheiro emprestado e depois vivido


feliz para sempre. No entanto,

como sou eu contando a história, sinto dizer que não foi isso o que
aconteceu. Enfim, vocês sabem o final: só tragédia.

Em primeiro lugar, não comi o sanduíche. Peguei um recipiente de plástico


com tampa e o coloquei dentro

dele, depois o escondi dentro da gaveta de cuecas. Todo dia, quando


conseguia sair da cama, olhava para ele enquanto me vestia. E todo dia
decidia que ainda não era a hora.

Talvez fosse o que Echo me fez prometer: que eu comeria antes de me


matar. Imaginava que, se não

estivesse pensando em me matar enquanto colocava a cueca, ainda não


precisava dele.

E comecei a pensar mais em como funcionava esse feitiço permanente. Se


eu comesse o sanduíche, estaria

mudando meu eu “verdadeiro” para sempre.

Alguma coisa na promessa que eu fizera para Echo se retorceu no meu


cérebro, e passei a entender que
comer o sanduíche seria o mesmo que me matar. Seria matar para sempre o
verdadeiro Win. Eu seria um

novo Win feliz – o Win que via nas fotos da escola que não me lembrava de
ter tirado, sorrindo e segurando a luva de beisebol, ou o Win que dançava
com Ari na escuridão cintilante da Festa de Boas-Vindas.

Além disso, ainda não tinha pagado Echo. Não parecia justo usar o feitiço
antes de pagar por ele.

Mesmo se não quisesse tomar, desejava pagar Echo, ajudar a ela e a sua
mãe, mesmo que do meu jeito

simples. Afinal, ela já tinha se esforçado. E assim, alguns dias depois que
Echo me deu o sanduíche, fiz minha primeira e única tentativa de pedir o
dinheiro para Ari.

Fui buscar Ari e Kara no estúdio de dança. Todas as outras pessoas que
buscavam as alunas eram mães de

meia-idade, então imaginei – ou talvez tenha visto, mas não podia confiar
nos meus próprios olhos – que elas me encaravam desconfiadas pelos
retrovisores. Comecei a tremer. Minhas mãos se agitavam no volante, meu

tronco tremia no banco e meus dentes rangiam. Sem dúvida elas ficariam
me encarando se eu tivesse saído da caminhonete correndo para o mar, que
era o que aquele tremor me mandava fazer, ou isso ou vomitar em

cima do painel e bater a cabeça contra o volante. Não conseguia me conter


– o carro estava tremendo e eu

estava da mesma forma dentro dele, tanto que só podíamos estar nos
desfazendo. Então, Kara abriu a porta e se sentou no banco de trás. Um
segundo depois Ari sentou no banco da frente e me deu um beijo que mal

senti. Dei partida na caminhonete.

Ari e Kara ficaram conversando entre si, o que me poupou por alguns
minutos. No entanto, percebi que Ari
me observava, olhando-me de soslaio quando parávamos nos faróis
vermelhos.

Ela era inteligente e notava coisas sobre mim, o que às vezes chegava a ser
assustador. “Você parecia bravo no almoço.” “Você riu muito naquele
programa, deve ter gostado.” “Com que você está preocupado?” Coisas

que nem eu tinha notado ainda. Com certeza ela percebera o tremor. Talvez
nem ficasse surpresa quando eu

pedisse o dinheiro, só se surpreenderia quando eu não contasse para que


precisava dele.

Deixamos Kara na casa de uma amiga. Ela mandou um beijinho para nós e
Ari respondeu mostrando a

língua. Às vezes eu ficava admirado com o modo como Ari se comportava


com Kara, tão livre e

despreocupada, rindo, brincando, mostrando a língua. Eu tinha que pensar


tudo em detalhes, até em como dar tchau para a minha irmã.

– O que você quer fazer?

Mantive os olhos na estrada, mas ela começava a ficar turva.

Ari estava muito feliz. A felicidade irradiava dela. Nem sabia o que estava
fazendo, o que era o mais

estranho de tudo. Ela simplesmente “existia”.

– O que você quiser – respondi.

Ela esticou os braços por sobre a cabeça, estendendo os cotovelos.

– Estou um lixo. Acho que devia tomar um banho antes de fazermos


alguma coisa.

– Está bem – eu disse, e fiz uma curva rumo à casa dela.


Ela abriu um sorriso largo para mim.

– Você esqueceu, não foi?

Se eu não estivesse pensando em como falar dos cinco mil dólares, teria
rachado a cuca para me lembrar

do que havia esquecido. Mas só consegui piscar, sem entender.

– É o nosso aniversário. De um ano.

– Ai, caramba! – esfreguei os olhos. Maio do ano passado parecia ter sido
mil anos antes. – Desculpa.

– Não precisa pedir desculpa. Você tem sorte de ter uma namorada legal que
não liga para essas coisas

bobas de aniversário.

– Tenho muita sorte mesmo.

Parei em outro farol e Ari me deu um beijo na bochecha. Eu acreditei


quando ela disse que não se

importava. Só que ela tinha lembrado. Se eu tivesse… o que teria feito? Isso
teria me deixado melhor? Ou a pressão de um dia importante pairando
sobre mim seria tão terrível quanto?

Eu não estaria planejando pedir aquela soma enorme de dinheiro, isso com
certeza.

A caminhonete tremeu de novo. De leve. Talvez fosse o vento, desta vez.

– Não posso sair hoje – eu disse, quebrando o silêncio. – Sou tão babaca...
Desculpa. Acho que estou

ficando com enxaqueca e… minha mãe vai trabalhar no turno da noite e


Kara…
– Sério? – Ari disse. Ela ainda não parecia desapontada, só surpresa. Mas o
desapontamento logo se faria

notar.

– E você sabe que hoje não é o nosso aniversário, né? – eu disse.

– É, sim.

– Não, não é. Você está contando da noite que a gente passou na casa do
Markos. Quando conversamos e

andamos pelo jardim? Tenho certeza de que já tinha passado da meia-noite


quando a gente se beijou.

Ela revirou os olhos.

– Estou falando sério. Amanhã estarei pronto. Vou estar me sentindo


melhor, a gente pode se divertir e vai ser nosso aniversário de verdade. Dá
azar comemorar no dia errado, sabia?

Paramos na entrada da casa dela. Ari colocou a mão no meu joelho. Poderia
ser o joelho de outra pessoa, até ele parecia distante.

– O aniversário não importa, Win. Você não precisa se sentir mal nem nada.
Nós estamos bem, tá?

– É só uma dor de cabeça – menti.

Ela estendeu a outra mão e tocou meu maxilar. Ficou me avaliando,


enquanto notei seu cabelo amarrado

num coque apertado, as sardas perto da orelha, as manchinhas marrom-


claras nos olhos castanho-escuros.

Notei todos os detalhes familiares, como sempre. Não entendia como podia
estar anestesiado para todo
mundo, incluindo para sua mão no meu queixo, como um fantasma, mas
ainda assim eu a amava e sabia que

não queria magoá-la.

Queria que aquela sensação de paralisia levasse o sentimento embora


também. Não estava me fazendo bem

algum.

Quando abri a boca para pedir o dinheiro para pagar Echo, ela me beijou.

Eu me lembrava de outros beijos. Na pista de dança da Festa de Boas-


Vindas. Deitados de conchinha no seu

quarto enquanto ela chorava. Não conseguia me lembrar da sensação, mas


me lembrava do que tinha de fazer.

E fiz isso até ela se afastar.

– Você tem razão – ela disse, sorrindo para mim. – Nosso aniversário é
amanhã. Claro.

Eu a levei até a porta, ela se virou para mim, colocando as duas mãos em
volta do meu pescoço. Eu me

abaixei para beijá-la de novo, tentando me concentrar nos nossos lábios,


mas não havia nenhum sentimento

ali. Eu tocava a sua cintura, sob seus seios, mais apertados do que
normalmente sob a malha de balé,

pressionava os lábios com força contra os dela e até pensei na primeira vez
em que a vira nua, alguns meses antes – normalmente, essa lembrança
apagava a sensação de paralisia.

Só que não havia nada. Nenhuma pontada. Nem mesmo quando ela
suspirou e abaixou a cabeça, permitindo
que eu sentisse o gosto da pele ligeiramente salgada de sua testa.

– Dor de cabeça? – ela perguntou.

– Só preciso descansar – respondi.

– Sério, Win. Você me contaria se tivesse alguma coisa errada?

Sentia sua preocupação como uma força física, mais do que conseguia
sentir seus lábios ou sua pele. O

problema dessa pergunta era que, mesmo se decidisse contar tudo para ela,
me abrir como um livro e

começar a arrancar as páginas, teria que admitir que, em muitos dias –


dezenas deles –, eu havia passado por períodos realmente sombrios e nunca
tinha lhe contado nada. Ela ficaria magoada por isso, ainda que agora

quisesse ajudar. Seria o mesmo que colocar meus sentimentos acima dos
dela. E eu queria poupar os de Ari.

Eu não podia estar tão mal se queria poupar os sentimentos dela. Se


conseguisse fazer isso, não precisava

do feitiço. Certo?

– Deviam trazer Nova York para mais perto – ela disse.

Demorei um segundo para me dar conta de que ela estava falando do ano
seguinte, da grande mudança dela

e de Jess para a cidade grande.

– Não é tão longe assim – falei.

– Parece longe. Parece outro planeta.

– Não é outra planeta. É só Nova York.


Ela fechou a cara e seus traços delicados endureceram.

– Que coisa idiota a dança! Devia ser possível dançar em qualquer lugar.

Me afastei para poder ver mais do que apenas seu rosto de perto. Procurei
sinais de que ela fosse começar a chorar de novo, como no dia em que tinha
entrado no Balé de Manhattan. Não sabia o que faria se ela

chorasse – poderia ter me arrasado por completo. Mas seus olhos estavam
claros, sua pele pálida, sem

nenhum rubor. Ela não havia ficado triste de novo depois daquele dia. Foi
como se aquilo nunca tivesse

acontecido.

– Vocês precisam ir para Nova York.

– Eu sei. Jess está contando com isso.

– Não, você precisa ir. Para dançar.

– Parece até que você quer se livrar de mim.

– Não. Não! É só que… você é muito boa no que faz. E pode dedicar a vida
toda a isso. – Dava para sentir

o pânico surgindo pelos cantos, vibrando no ar ao nosso redor.

Ela suspirou, desmerecendo o elogio.

– Todo mundo diz que namorar à distância é um saco.

O pânico tomou conta de mim, como se o carro estivesse tremendo mil


vezes mais.

– Você quer terminar?

– Claro que não! Pensei que você é que estava preocupado com isso…
– Terminar não me deixaria menos preocupado. Pelo contrário, seria
horrível. Nem consigo imaginar. –

Terminar significaria desistir. – Não, eu estou bem. Vou ficar bem. Você vai
ficar bem. Você vai dançar e eu vou… Está sendo um dia estranho. Estou
com a cabeça avoada. Amanhã vamos comemorar nosso

aniversário. E sei que o ano que vem será incrível. Eu irei para Nova York
para os dois dias de aniversário.

Estou muito feliz por você… Irei para lá todo fim de semana.

– Está bem, está bem – ela disse.

– Eu te amo – falei porque a amava e porque não sabia mais o que dizer
exceto isso, ainda que as palavras

soassem idiotas e sem substância, evaporando-se assim que saíram da


minha boca.

Ela abriu um sorriso engraçado.

– Dã... Também te amo.

Ela me deu um beijo na bochecha e eu virei a cabeça para lhe dar um beijo
de verdade, o mais real que

consegui.

Quando nos separamos, fui correndo para o carro, antes que tivesse a
chance de dizer ou fazer algo que

estragasse o que nos restava.

Nunca poderia pedir a Ari o dinheiro do feitiço. Nunca.

Continuei com aquele pânico capaz de fazer tremer o carro a noite toda,
sem parar, até a escuridão e o
silêncio das três da madrugada, vendo a luz do despertador contra a parede
do quarto. O pânico me consumiu até não sobrar quase nada de mim.

Mas eu ainda não estava mal a ponto de comer o sanduíche.

34. Kay

Era um alívio ser maldosa. Não precisava ser doce ou engraçada e sabia que
nunca ficaria sozinha. Aquele

manto pesado de sentimentos, preocupações e responsabilidades – poderia


tirá-lo e ficar sem ele. Não tinha medo do que estava por baixo. Me sentia
livre. Desamarrar tinha sido a melhor coisa que poderia ter me

acontecido.

Mesmo Mina, que não estava sob o feitiço, não importava. Afinal, ela já
havia me abandonado. Não devia

nada a ela.

Na segunda, fui com Mina para seu check-up anual no hospital. Subi no
carro por hábito, porque sempre ia com ela para as suas consultas, mas,
assim que pegamos a estrada, lembrei que não precisava fazer aquilo.

No trajeto pelas ruas de sempre, deu para ver que Mina achava que eu
decidira ir porque queria lhe dar

apoio, como sempre. Ela não disse nada, mas olhava para mim pelo canto
do olho nos semáforos e curvas à

direita. Pensava que eu era a mesma Katelyn que a tinha acompanhado em


tantas consultas no passado. A

Katelyn jovem e idiota que fazia tudo o que ela pedia, que só pensava em
animá-la e não tinha nenhum outro amigo ou interesse.

Entretanto, só porque não havia me furado toda nem raspado a cabeça como
ela não queria dizer que eu não
tinha mudado também. Eu era uma pessoa diferente agora.

Depois que entramos no velho estacionamento e paramos na nossa vaga


habitual, perto de uma cerca viva

disforme, Mina saiu e olhou para mim com expectativa.

– Pronta?

Me recostei na porta aberta do carro.

– Vai você – disse. – Te encontro aqui daqui a uma hora.

Se eu fosse a antiga Katelyn, a cara que Mina fez teria partido meu coração.
Surpresa, confusão, decepção, mágoa. As coisas ficaram tensas entre nós
durante todo o verão, mas nada que eu tivesse feito havia chegado perto de
causar aquele olhar.

Não me importava. Não precisava me importar.

– Por que você está agindo assim, Katelyn? – ela perguntou em voz baixa.

Fechei a porta do carro e olhei para ela.

– Como assim?

– Mal vi você o verão todo, você está sempre com as suas amigas e, quando
está comigo, faz questão de

dizer qualquer coisa terrível.

– Desculpa se o fato de eu ter amigos te incomoda tanto.

Ela passou a mão na cabeça raspada, então tentei imaginar seu cabelo
espetado em todas as direções em espinhos frustrados. Nem sabia como
seria o cabelo de Mina agora.

– Dane-se, estou atrasada. Faz o que você quiser.


Ela caminhou na direção da ala de oncologia. Esperei que desaparecesse
pelas portas duplas, sem olhar para trás, antes de dar a volta pelo prédio
rumo ao pronto-socorro.

Muitas pessoas que tinham passado pelas mesmas coisas que eu odiavam
hospitais porque os associavam a

morte, perda e desespero. No entanto, acho que, mesmo que Mina tivesse
morrido, o que, três anos antes,

achávamos inevitável, eu ainda assim gostaria do hospital.

Claro, havia sofrimento por todos os lados. Mas também era onde as
pessoas iam para ficar bem. Adorava

ouvir os bipes e entrever os armários de roupas de cama recém-guardadas.


Adorava as pranchetas especiais e as macas com mil alavancas diferentes.
Adorava as enfermeiras duronas, ocupadas demais para conversar

com você, e as boazinhas, mesmo quando dava para ver que estavam sendo
falsas.

E adorava os médicos. Os médicos! Eles dominavam o quarto quando


entravam. Todos olhavam para eles

em busca de respostas – e, a menos que fossem muito novos ou que o caso


fosse especialmente misterioso,

sabiam as respostas. Mesmo quando não havia esperanças, cabia a eles nos
comunicar isso. Emitiam receitas, diagnósticos. Usavam roupas melhores
que as de todos os outros e nos cumprimentavam com suas mãos

secas de tanto lavar. Eu os idolatrava. Ficava vendo o que faziam, olhava as


pranchetas quando saíam, tentava fazer Mina rir imitando-os.

Uma vez, entrei no quarto dela depois da aula, dei uma olhada na prancheta,
falei alguma coisa, Mina deu
risada… então, dez minutos depois, um médico de verdade entrou, olhou
para a prancheta e disse exatamente

o mesmo. Os olhos de Mina se arregalaram em seu rosto moreno e fino.

– Você vai ser médica quando crescer – ela disse.

– Até parece.

– Não, sério, Katelyn. Você tem que ser.

Não acreditei nela. Não ia tão bem na escola, e os médicos precisavam


estudar muito. Além disso, gostava

deles justamente porque eram muito diferentes de mim. Nunca seria capaz
de entrar num quarto e dominá-lo

como um médico fazia.

Mina havia deixado esse assunto para lá e nunca mais falara dele, o que
provava meu argumento: não era

para ser.

Contudo, me lembrava tanto dos meus anos imitando os médicos e fazendo


companhia para Mina que sabia

como me portar. Enquanto ela estava na consulta, passei o tempo tentando


diagnosticar todo mundo que

esperava por um quarto no pronto-socorro. Alguns resfriados, uma criança


com febre alta, um homem de

meia-idade com a pior queimadura de sol que já tinha visto. Uma mulher
segurando um pano de prato em volta da cabeça foi levada para dentro
quase imediatamente. O resto continuou esperando.

Quando me entediei, atravessei confiante as portas que davam para os


quartos dos pacientes. Sabia me
movimentar por ali e tinha certeza de que as pessoas não perguntariam
aonde eu estava indo se fingisse ter um destino. Já havia sido invisível
centenas de vezes por aqueles corredores.

Eles continuavam os mesmos. Andei com segurança pelos quartos cheios de


gemidos, por aqueles cheios

de gritos e ainda por aqueles em que o silêncio era aterrorizante. Também


passei pelos quartos onde meia

dúzia de familiares davam risadas altas e forçadas, por muitos quartos onde
só havia uma tevê no volume

máximo. Era tudo muito familiar, mas distante. Como andar num sonho.

Uma vez que não me dera ao trabalho de escolher um destino, meus pés me
levaram à oncologia pediátrica por força do hábito. Mina devia estar no
consultório do dr. Brown, então me dirigi à ala dos residentes.

Lá, meu passo confiante ficou mais lento. Algumas crianças estavam na
área de recreação vendo tevê ou

brincando com jogos de tabuleiro. Por costume, procurei rostos conhecidos,


mas é óbvio que não havia

nenhum ali. Fazia dois anos que não visitava aquele lugar; as crianças e
adolescentes de que me lembrava

deviam ter saído, a essa altura, como havia acontecido com Mina – ou então
morrido.

Uma criança parou na minha frente. Por causa da cabeça raspada, eu não
sabia dizer se era um menino ou

uma menina. Embora ele (ou ela?) parecesse ter uns dez anos, sabia que,
nesse lugar, ela (ou ele?) devia ser um pouco mais velha (ou velho?) que
isso. Era a minha idade quando tinha começado a ir lá com Mina.

– Você não devia estar aqui – a criança disse.


– Ah, é? Como você sabe disso?

– Você não parece estar doente.

– Como você sabe que não estou visitando alguém?

– Você está?

Dei de ombros.

– Como sabe que não sou uma médica superjovem e bonita?

Ela olhou para mim, incrédula. (Tinha concluído que era uma menina.)

– Cadê o seu jaleco?

– Não uso.

– Onde você fez medicina?

– Northwestern.

– Que tipo de câncer eu tenho?

Olhei para ela. Estava usando um pijama verde – calça comprida e mangas
longas. Não dava para ver

nenhuma cicatriz. Era quase impossível saber o que uma pessoa tinha só de
olhar para ela. Essa era uma das coisas mais assustadoras do câncer. A
pessoa podia estar andando feliz por aí e, por dentro dela, as células estarem
crescendo em mutação. Pensei de repente em Mina, sozinha no consultório
do dr. Brown, mais para

baixo no corredor, e senti uma leve pontada.

– Leucemia – eu disse, porque era um bom chute, considerando a


porcentagem.

– Boa tentativa. Hepatocarcinoma.


Nunca tinha ouvido falar disso antes, mas reconheci parte da palavra.

– Ah. No fígado – falei, e assenti com ar de médica.

A menina soltou uma gargalhada alta e curta. Algumas das crianças que
viam tevê olharam para nós.

– Gostei de você – ela disse. – Meu nome é Hana. Se te pegarem, pode


dizer que está me visitando.

O frio tomou conta de mim e eu dei um passo para trás. Era tudo familiar
demais. Já tinha estado ali antes, brincando com alguém que poderia ou não
ficar melhor.

– Você não gosta de mim. Nem me conhece!

A expressão dela se fechou. Notava isso com Mina também: sem cabelo, as
emoções viviam perto demais

da superfície.

– Não me olhe desse jeito esquisito.

– Desculpa – eu disse. – Boa sorte com seu hepatocarcinoma.

– Ei… aonde você está indo? Espera!

Não olhei para trás; ela não teria como me alcançar.

Meu coração batia contra as costelas no caminho de volta para o pronto-


socorro. Conversando com Hana,

voltara a assumir um papel antigo. Não queria mais ser aquela menina que
animava as pessoas quando elas

ficavam doentes. Que não tinha nada melhor para fazer além de visitas de
dia ou de noite. Cujo único objetivo na vida era apoiar os outros e ajudá-los
a se sentirem bem. Que era deixada para trás. Eu não era mais aquela
menina. Pelo menos, não precisava ser. Podia me afastar.
Contudo, assim que cheguei ao pronto-socorro, me dei conta de onde
estava.

Os paramédicos estavam trazendo um jovem de maca com uma tala na


perna. Tinha o cabelo escuro e, por

um segundo, pensei “Cal”, então “Diana” e “Ari”, e “aqui não, aqui não,
estou saindo, juro que estou saindo, estou saindo agora!”.

Foi como no Redemoinho, só que muito pior. Não seria nada difícil para o
feitiço fazer com que eles me

encontrassem num pronto-socorro.

Minhas unhas arranharam as palmas das minhas mãos, eu me esforcei para


não entrar em pânico. Mas

talvez o pânico fosse a reação adequada.

Corri na direção das portas automáticas, desviando-me dos doentes e de


seus amigos e familiares,

abandonando totalmente as regras de continuar invisível. Um grito veio da


recepção, porém não parei de

correr até chegar ao carro de Mina, na nossa vaga no estacionamento.

Ela estava me esperando.

– Onde você estava? – perguntou.

– No pronto-socorro – disse. Não conseguia pensar em outra coisa para


dizer. Meu coração batia com tanta

força que minha fronte latejava.

– Por quê?

– Não importa. A gente pode sair daqui agora? Por favor?


Mina ficou brincando com sua pulseira de couro cravejada.

– O doutor Brown falou que estou bem. Não há nenhum sinal do câncer. Se
é que você se importa com

isso.

– Ah... Que bom! Vamos.

Mina soltou uma risadinha triste e não olhou para mim enquanto ligava o
carro e saía do estacionamento.

A pressão no meu peito diminuiu. Conseguia respirar.

Cal, Diana e Ari não tinham aparecido no pronto-socorro. Talvez a


amarração tivesse um pouco de noção.

Talvez não fosse tão perigosa quanto eu pensava.

E eu não era mais a menina que esperava pacientemente na cadeira de


visitantes e imitava os médicos. Hana

se esqueceria de mim até o fim do dia. Mina não precisava de mim. Ela
estava bem.

Minha irmã parou no acostamento, examinando com atenção todos os


pontos cegos. Ela olhou nos meus

olhos.

– O que há de errado com você, Katelyn?

– Nada – eu disse, sorrindo pela primeira vez no dia todo. – Na verdade,


está tudo perfeito.

35. Markos

Acordei de ressaca e com um gosto azedo na boca. Por cinco dias seguidos.
Isso me lembrou do dia seguinte à morte de Win. Eu estava mal por causa
dos efeitos colaterais do feitiço, então bebi meia garrafa de vodca e derrubei
a casa da árvore do quintal dos fundos. Tive sorte de não quebrar o pescoço
enquanto chorava, bebia, arrancava tábuas podres dos galhos e rasgava a
pele das mãos, mas é

difícil dizer que se tem sorte com alguma coisa quando a coisa mais terrível
no mundo acontece.

Viu? Eu me lembro daquela última noite horrível. O álcool não apaga tudo.
Na manhã seguinte, as coisas

voltam a ficar claras como cristal.

Depois que a hekamista me falara do feitiço de memória de Ari e que eu


beijara Kay, parei de ir à loja de

ferragens. Parei de ir a qualquer lugar, na verdade, exceto da sala para a


cozinha e para o banheiro. Subir a escada que dava para o meu quarto já era
trabalho demais. Além disso, sempre havia mais um filme ruim

passando na tevê, mais alguém para matar num videogame ou mais cerveja
para roubar da geladeira.

Minha mãe tentou me convencer a fazer alguma coisa, só que ela era fácil
de ignorar. Me trazia um

hambúrguer, sentava no sofá ao meu lado ou gritava comigo da porta. Tanto


fazia.

– Te trouxe milho cozido – ela disse certa noite, ou dia, não sei direito.
Colocou um prato na mesa de

centro, ao lado dos meus pés descalços. – Você devia comer alguma coisa
além de salgadinhos.

Empurrei o prato com o calcanhar.

– Esse papel melancólico já está enchendo, Markos. Come.


– Não vou comer nada que você me trouxer.

Ela recuou.

– Por que não?

– E se você colocar um feitiço “para eu me sentir feliz” na manteiga?

Ela ficou branca. A sensação… não foi boa, mas satisfatória.

– Quando você me roubou aquele dinheiro – ela disse, e cada palavra estava
cheia de farpas –, eu te perdoei rápido demais. Disso eu me arrependo. Você
passou por muita coisa, mas não vamos falar sobre aquele

dinheiro, para que era nem para quem. Nunca.

– Dane-se. – Puxei o cobertor de lã fedido sobre a cabeça para bloquear o


resto do que ela tinha a dizer.

Depois meus irmãos caíram em cima de mim, do mais velho ao mais novo.
Brian entrou de farda e me deu

um sermão sobre “virar homem” e “superar”. Dev tentou fazer piadas,


falando que eu ia engordar de tanto

ficar sentado sem fazer nada, depois que eu era um babaca por não
enfrentar a vida, depois que era

improvável que minha cara feia me ajudasse a arranjar alguma menina


mesmo que eu conseguisse encontrar o

chuveiro – e depois parou, porque joguei uma pedra na parede do lado da


cabeça dele.

Quando finalmente foi a vez de Cal, já estava exausto. Nem lhe dei a
chance de tentar me convencer a sair da cadeira. Conhecendo Cal, sabia que
a tática dele seria sorrir e tropeçar em algo para me fazer dar risada.
Cal era assim – o mais tranquilo de nós quatro. Nunca guardava mágoa.
Não merecia meu mau humor.

Na verdade, quando éramos crianças, depois que nosso pai morrera, ele
tinha passado por um período que

me fazia morrer de medo – pulando do teto da garagem de skate, roubando


produtos da loja de ferragens, tentando impressionar os amigos de Brian e
Dev bebendo até vomitar – mas, quando entrou na adolescência,

amadureceu. Virou um verdadeiro irmão Waters, como o resto de nós.

E ele estava saindo com Kay. Tinha ido ao parque com ela. Ela achava que
eles estavam namorando –

bastava pensar nela para sentir ânsia de vômito, que disfarcei com meia lata
de cerveja.

Cal parecia estar tão mal quanto eu, com a pele fria e úmida, o olhar
desfocado. Ele ficou se remexendo no batente da sala.

– Me deixa em paz – disse.

Ele tossiu no braço, com um som úmido e trêmulo.

– O que você tem, meu?

– Resfriado – ele disse.

– Vai tirar um cochilo.

– Preciso conversar com você. Porque você está triste.

Joguei a lata no chão, derramando cerveja no carpete.

– Beijei sua namorada. Vai fazer alguma coisa a respeito?

Cal deu de ombros.


– Ela não é minha namorada. Faz uma semana que nem a vejo.

Odiava como era fácil para ele dizer isso. Como se fosse óbvio. Claro que
ela não era sua namorada. Claro

que ele não importava. Eu também não deveria me importar.

Mas querer não se importar é só mais uma forma de se importar.

– Me conta o que está acontecendo. A gente dá um jeito de resolver – Cal


disse, limpando o nariz no

moletom.

Talvez outro cara – Brian ou Dev – tivesse aceitado a oferta. Conversado.


Analisado o problema. Chorado.

Talvez tivesse se sentido melhor. Talvez isso tivesse ajudado um irmão


normal a se sentir menos sozinho.

Talvez eu também tivesse feito essas coisas se eles se dessem ao trabalho de


tentar conversar comigo em

qualquer momento dos últimos dois meses – e se eu não estivesse tão


determinado a viver naquele sofá, puto com o mundo.

Pensei no pânico da minha mãe quando eu mencionara o dinheiro do


feitiço. Ela realmente não queria que eu

falasse dele. Perfeito, então. Não sabia se o dinheiro e o feitiço eram para
Cal – ou para que serviria aquela magia. Mas era maldoso suficientemente
jogar isso na cara dele e ver se a carapuça servia. Atormentar Cal e irritar
minha mãe com uma cajadada só.

– Não deve ser só um resfriado – eu disse. – Aposto que a mãe finalmente


ficou sem grana e não comprou

seus feitiços este mês.


– Meus o quê?

– Seus feitiços, panaca. É domingo, não é? Então talvez você vá tomá-los


hoje. Todos os seis mil dólares de feitiços por mês. São para deixar você
mais esperto? Você devia aumentar a dose, então.

O rosto de Cal ficou confuso.

– Não tomo nenhum feitiço.

– Até parece... – eu disse, quase contente. – Todo mês a mãe paga por eles.
Já vi o dinheiro… já o roubei

uma vez, inclusive. Talvez sejam para que você deixe de ser tão fracassado.
Provavelmente, porque você

parece meio desesperado. Antes de me beijar, você devia ter ouvido o que
Kay falou sobre…

Ele voou pela sala e apertou o antebraço contra minha garganta, enquanto
preparava a outra mão para socar

minha cara. Não cresci com três irmãos mais velhos à toa. Relaxei o
pescoço – dói mais quando você tenta se preparar para o soco – e fiquei
esperando pelo som e pela dor.

Como não vieram, abri um olho e vi o rosto de Cal contorcido, enquanto


seu braço tremia com o esforço.

Ele resmungou. No entanto, não conseguia fazer o punho chegar até meu
rosto. Parecia até que,

involuntariamente, ele puxava o antebraço para trás, apoiado no meu


pescoço, por mais que o resto do corpo avançasse.

– Bom, isso responde a uma das perguntas – eu disse. Ergui as mãos e me


afastei. Cal tropeçou, porém não

voltou a me atacar.
Ele não conseguia.

Seu rosto ficou pálido. Era ele quem estava enfeitiçado. Palpite de sorte. Os
feitiços não deixavam que ele batesse em mim, nem em ninguém,
provavelmente. Ele me olhou perplexo, como se fosse eu quem tivesse

batido nele.

Queria poder contar para Diana.

Foi nesse momento – em que o choque me deixou fraco – que pensei no


nome dela. Sua imagem me veio à

mente e me lembrei da sensação de sentar na frente dela na lanchonete ou


ao seu lado no carro, então senti sua falta, ai, Deus, como senti! Sentia falta
de Win também, mas sentir saudades de um cara morto é

diferente, e não só porque eu não ficava com Win. Sentia uma saudade
estúpida e inútil de Win, porque parte de mim entendia a situação, que era o
fato de a morte ser permanente, de a vida ser finita e de os anjos não
existirem, etc., etc. Mas Diana... Sentia falta dela como se estivesse levando
vários socos repetidos no

estômago, porque ela estava lá fora em algum lugar, conversando com as


pessoas, mexendo no cabelo e, pior

de tudo, provavelmente se sentindo triste e destruída por algo que eu tinha


feito, porque eu cortara relações com ela completamente, além de ter
beijado Kay – e tinha feito tudo isso sabendo que não deveria.

Durante todo esse tempo, Cal continuou na sala. O coitado do Cal, que nem
sabia que estava tomando

tranquilizantes de cavalo, ou fosse lá o que fosse.

– Você está chorando? – perguntou. Não respondi, já que ele devia estar
vendo e que a pergunta tinha sido

feita para me provocar.


– Fiz uma coisa idiota – eu disse.

Quando ergui os olhos, pensei que Cal iria acenar com a cabeça, mas ele
estava olhando fixamente para as

próprias mãos, virando-as de um lado para o outro e cerrando os punhos.


Com a mão direita, beliscou a parte de dentro do outro punho, franzindo a
testa.

– Não se preocupe com o feitiço – falei. – Você não tem que dar uma surra
neste cretino aqui, porque já

estou me castigando o suficiente.

Cal abanou a cabeça.

– Não acredito que a mãe faria isso comigo.

– Ela disse que estava cuidando de você.

– Há quanto tempo?

– Alguns anos. Pelo menos.

Cal não se esforçou mais para tentar me animar. Ele saiu, e eu voltei a ficar
sozinho na sala.

Contudo, nunca mais conseguiria ficar sozinho, porque meu cérebro


continuava a mil.

Que saco.

Pois é.

Não, sério, que saco!

Não sair nunca da sala só vai piorar as coisas.

Mas eu gosto daqui. É seguro.


Seguro?

Sim, seguro. Protegido.

Hum. É?

36. Ari

Não sabia mais o que fazer, e fui trabalhar na Sweet Shoppe, como sempre.
Mas nem o trabalho automático

de servir as casquinhas, nem o frio me anestesiaram – só me fizeram tremer.

Quando Diana entrou, coloquei as mãos no vidro da vitrine e pensei no


feitiço prometido por Echo. Se ele

conseguisse me fazer dançar, eu poderia partir para Nova York como


planejado – dali a uma semana. Tudo

voltaria aos eixos. Eu conseguiria sobreviver mais uma semana se pudesse


dançar ao final dela.

– Recebi sua mensagem – ela disse.

– Obrigada por vir. Queria pedir desculpas… sei que Markos descobriu
sobre o feitiço. Não tive

oportunidade de contar para ele antes.

Ela deu de ombros.

– Você nunca contaria a verdade para ele. Só me falou que o faria para que
eu calasse a boca.

– Não é verdade.

– Tudo bem, Ari. Você tinha razão sobre o Markos. Nós não estávamos
apaixonados. Vamos deixar as
coisas como estavam antes.

Odiei o tom de voz dela, monótono e cauteloso. Odiava o fato de Markos


ter feito aquilo com Diana e,

principalmente, o fato de ter previsto que aconteceria exatamente assim.

– Quer um sorvete? – perguntei.

– Claro – ela disse. Diana teria concordado com tudo: uma casquinha, uma
tatuagem no rosto, pular da

ponte. Enchi um cone de sorvete de chocolate com nozes e entreguei para


ela.

Diana olhou para o sorvete, mas não tomou nem um pouco.

– Andei pensando muito desde que você me falou do feitiço. As coisas


estavam estranhas entre nós e eu

não sabia por quê.

– Tem sido difícil para mim… pensar no que dizer e no que não dizer.

Ela abanou a cabeça.

– Não é disso que estou falando. Acho que… tenho certeza de que as coisas
já estavam estranhas entre nós

antes de você tomar esse feitiço. Você não… eu precisava ligar para Kay.
Não podia mais confiar em você. E

sempre sentia que não fazia parte desse clubinho de vocês, Ari, Win e
Markos, para o qual eu não era

convidada. – Ela suspirou. – Uma parte ciumenta de mim achava que você
desejava o Markos para si e que

não queria concorrência.


– Diana, juro para você, nunca pensei no Markos dessa forma.

– Então por que não me chamava? Uma noite antes da morte de Win, vocês
saíram só os três. Como

sempre. Você nunca me incluía… e não só naquela noite. O tempo todo.

Apertei os olhos para tentar lembrar. Podia me ver passando muito tempo
com Markos, me divertindo: Markos me provocando, sendo expulso dos
restaurantes e das pistas de boliche, Markos cantando rocks

clássicos a plenos pulmões no banco de passageiros de uma caminhonete


dirigida por… um espaço em

branco.

Essas lembranças pareciam divertidas, mas eu as via quase de fora, sem um


monólogo interno. Elas

saltavam e tinham buracos, eram tão finas quanto papel.

– Não sei por que não te incluía, Diana. Não consigo lembrar.

Ela fez que sim.

– Imaginei. Se você ainda lembrasse, eu teria medo de perguntar. Não sei se


gostaria de saber a resposta.

– Eu era tão ruim assim?

– Você não era ruim. Você era você. Toma uma decisão e, depois que o faz,
é assim para sempre.

Não sabia dizer se era verdade, mas a decisão de tomar um feitiço para
apagar Win parecia se encaixar

naquela definição.

– Desculpa – eu disse.
Ela olhou para o sorvete e abanou a cabeça.

– Você nem sabe por que está pedindo desculpas.

Quando Jess chegou em casa do trabalho, eu estava deitada no chão da sala.


Tinha sentido um espasmo nas

costas durante um plié e essa era a única coisa que diminuía a dor. Mesmo
deitada, doía, mas pelo menos a dor não me travava nem me fazia tremer
feito uma boneca de pano. (A única coisa que me consolava era a

ideia de que o feitiço de Echo me salvaria. Precisava esperar por aquilo.)


Assim, só consegui ver os sapatos pretos de Jess e nada mais.

– Oi – eu disse.

Ela se ajoelhou no chão e me envolveu em seus braços, repousando a


cabeça no piso de carpete. Conseguia

sentir o cheiro de café nas suas roupas e do gel que mantinha seu cabelo
curto para trás.

– Ei… o que você está fazendo? – perguntei, tentando recuar.

– Sinto muito, Ari – ela disse, com a cara no carpete.

– Pelo quê?

– Você deve estar sofrendo demais.

Fechei os olhos.

– Você ficou sabendo.

– Fiquei.

– Quem contou?
– Uns meninos que estavam fofocando no café. Parece que ficaram sabendo
pelo Markos e por seus

irmãos. – Fiquei imaginando um grupo de colegas de classe, vários deles,


repassando a novidade com deleite.

Todos tinham me visto no funeral. Todos tinham uma opinião sobre a


pessoa horrível que eu era. – Depois fui ver Rowena. Ela me contou que
você não vai à aula desde o começo do verão.

– Ah, não, Jess…

– Eu devia ter ido semanas atrás. – Jess me soltou e sentou sobre os


calcanhares. – Devia ter prestado mais atenção. Percebido os sinais. Eu sou
uma idiota.

– Você não é idiota, Jess, qual é?

Ela abanou a cabeça.

– Era para eu cuidar de você.

– Você não pediu por isso.

– Quer dizer, então, que tudo bem se eu for péssima nisso? – Jess esfregou
os olhos com as mãos. Me

lembrei de como ela estava um dia depois de eu ter tomado o feitiço…


Tinha chorado e queria conversar. E eu fui dançar. Eu a havia afastado. – Às
vezes acho que, se sua mãe pudesse nos ver, teria escolhido outra

pessoa para esse trabalho.

Meu pulso latejava; prendi a respiração para fazer a dor passar.

– Não fala isso – disse, mas fiquei sem saber se ela tinha conseguido me
ouvir, por mais que estivesse

sentada perto de mim.


– Sempre acreditei demais no que está na superfície. Se uma coisa está
claramente errada, consigo dar um

jeito. Mas, se você parece bem, acho que está bem. Esse tipo de visão…
deve ser algum instinto maternal que eu não herdei. Katie tinha isso. – Katie
era minha mãe. Durante anos, quase não ouvira Jess dizer o nome dela.

– Ela sempre sabia o que todo mundo estava pensando. Mas meus genes são
diferentes.

– Se pareço bem, estou bem, Jess.

– É… até eu sei que isso não é verdade. – As rugas em torno dos olhos e da
boca de Jess estavam escuras,

como se alguém tivesse desenhado a tristeza nela com giz de cera. –


Marquei uma consulta para você com a

dra. Pitts e cancelei os caminhões de mudança.

Me ergui apoiada nos cotovelos.

– Você fez o quê?

– Você precisa conversar com alguém e acho que já provamos que não sou a
melhor pessoa para você abrir

o coração, então…

– Não essa parte. Nova York.

A cara que ela fez foi tão cheia de pena e culpa que mal consegui suportar.

– Não podemos ir para Nova York.

– Não, podemos sim. Você nem me perguntou.

– Você consegue dançar agora, Ari? Mostra para mim. – Não saí do chão.
Jess assentiu com a cabeça. –
Rowena disse que não vê você desde o dia do seu tombo na aula. Logo
depois que Win morreu.

Jess não estava brava comigo. Não gritou nem pareceu desapontada. Talvez
ela esperasse que eu

fracassasse. Que, de repente, deixasse de conseguir fazer a única coisa em


que já havia sido boa na vida. Me sentei direito e abracei os joelhos do
melhor jeito que pude.

– Vou conseguir dançar em breve.

Jess não disse nada, só ficou me olhando com aquela compaixão terrível,
abominável. Ela estendeu o braço

e tocou meu pulso dolorido. A dor latejava junto com as batidas do meu
coração.

– Desculpa ter feito isso com você – ela disse, acariciando meu pulso com o
polegar. – Seu primeiro feitiço.

Não tem problema sofrer às vezes. Ter lembranças tristes.

Tirei sua mão do meu pulso e me contraí com a dor que disparou até meu
cotovelo.

– Para com isso. Você fez a coisa certa.

Ela só abanou a cabeça.

– Talvez, se eu não tivesse feito isso, você não teria achado que precisava
esquecer de Win.

– Não é isso que importa. O que importa é Nova York. – Eu não concordava
com Jess que tudo fosse culpa dela, nem que deveria saber melhor das
coisas, nem nada daquelas baboseiras. O feitiço para esquecer Win

havia sido um erro enorme e terrível, mas um erro meu. Não dela. Seu erro
seria impedir nossa mudança. –
Nós precisamos ir para Nova York.

– A dra. Pitts está te esperando.

– Jess, não. Você está exagerando. Nós vamos para Nova York. Me fala que
nós vamos para Nova York.

– Primeiro vou levar você na dra. Pitts. Depois a gente conversa.

Não queria falar com ninguém – nem com ela, por mais estranha, triste e
errada que ela estivesse, e

definitivamente nem com a dra. Pitts. Contudo, fui com Jess até o carro
mesmo assim.

Ela não estava brava comigo, como Markos, nem desapontada, como
Diana. Então por que seu amor e sua

compaixão me pareciam um peso tão grande?

Depois que expliquei o que tinha feito, a dra. Pitts se recostou na cadeira,
olhando fixamente para a parede.

Não dissemos nada por um longo momento. E, no fim, fui eu que quebrei o
silêncio.

– Agora você entende por que todas as suas tentativas de me fazer ficar de
luto não funcionaram? Mas,

relaxa, pode ser uma coisa boa. Você não precisa se culpar por não ter me
curado. Não foi culpa sua.

Ela abanou a cabeça, e a compaixão em seu rosto parecia uma maquiagem


teatral. Não conseguia suportar

isso. Preferia quando me provocava até eu gritar com ela.

– Ari, nós não “curamos” pessoas na terapia.


– Estava brincando.

– Não, acho que não estava, não. Deve ter sido isso, esse tipo de atitude de
quem pensa que a dor pode ser curada que fez você ir à hekamista em vez
de enfrentar seus sentimentos.

– A dor pode ser curada. Aposto que a senhora toma analgésico, dra. Pitts.

– Você realmente acha que um feitiço que causa dano cerebral é a mesma
coisa que um analgésico?

Ignorei a parte do “dano cerebral”.

– Só estou dizendo que não acho que o problema seja acreditar ou não em
algo. É um fato. É só tomar um

comprimido para acabar com a dor de cabeça. Bastou tomar um feitiço para
acabar com o sofrimento. Não

sei se está certo, só sei que funcionou.

– Você chama não conseguir mais dançar de “funcionar”?

– Vou voltar a dançar. – Apoiei o punho dolorido no peito. O feitiço de


Echo. Ela havia me prometido. A

qualquer dia. Precisava ser paciente.

E, mesmo assim, a dra. Pitts exalava aquela nuvem perniciosa de falsa


compaixão. Era repugnante. Não sei

como ela conseguia não vomitar.

– Como? – perguntou.

– Eu só… vou.

Ela abanou a cabeça.


– Você não escolhe fugir de uma coisa assim, Ari. Não pode engolir em
seco e se esforçar para que isso

passe. Sempre vai haver consequência.

– Como ficar aqui com você.

Seu rosto cheio de pena se contorceu. Já que eu tinha de ficar naquele


consultório, decidi fazer dela uma inimiga. Os inimigos não tentam te
entender. Eles se afastam de você.

– Escuta, não sei o que Jess pretendia quando me obrigou a vir para cá. Sei
que essa história toda está

confusa. Vou pedir desculpas para Jess, Diana, Kay, até mesmo para
Markos e todo mundo, se você me

obrigar. Está bom assim?

A dra. Pitts continuou olhando para mim. Talvez eu devesse ter oferecido
pedir desculpas para ela também.

– Vamos falar sobre seus pais.

– Por quê?

– Porque eles também morreram.

– Não me lembro disso.

– Você não se lembra do incêndio. Mas ainda assim consegue sentir que o
mundo é arbitrário e perigoso.

– Como assim? Então você acha que, porque meus pais morreram num
acidente, tenho mais chances de

querer controlar minha vida do jeito que posso? Muito inteligente. Vou
pensar nisso na próxima vez em que
estiver olhando para o céu às três da madrugada me perguntando se o
paraíso existe.

– Você já notou que sempre usa o sarcasmo para mudar de assunto?

Dei de ombros.

– Se funciona...

A dra. Pitts abanou a cabeça.

– Não, não funciona. Um dia você vai estar sozinha consigo mesma e vai
ter que enfrentar a verdade.

– Que verdade?

– Que sofreu perdas. Que isso te modificou.

Engoli mais uma resposta sarcástica. Ela juntou as mãos e respirou fundo.

– Me diz, Ari. Por que você não consegue falar sobre seus pais?

– O que eu deveria falar?

– Qualquer coisa.

– Mas eu mal me lembro deles.

– Do que você se recorda?

Dava para encaixar todas as memórias que eu tinha dos meus pais em seis
compassos de música.

– Minha mãe tinha o cabelo liso e claro, como eu. Meu pai tinha um
cavanhaque.

– Certo.

– Nós ouvíamos muita música juntos.


Música no carro, na casa, no quintal. Clássica, rock alternativo, pop, trilhas
de musicais. Quando pensava nos meus pais, me lembrava deles cantando.

– Foi isso que levou você a dançar? A música?

– Talvez. – Eu me recordava do dia em que meu pai me dera meu primeiro


iPod, um dos antigos dele. Ele

tinha deixado um monte de músicas suas, mas eu resolvi colocar as minhas.


Vivia dormindo com os fones.

Não sabia se era verdade e não tinha para quem perguntar, no entanto
desconfiava de que fora por isso que

eu não havia ouvido o alarme de incêndio. Por isso o fogo já tinha tomado
conta de tudo quando meu pai me

levou para fora e depois voltou para buscar minha mãe.

Entretanto, como eu esquecera aquele dia, não tinha como ter certeza.

– Interessante. Tem mais alguma coisa que você lembra deles? – a dra. Pitts
perguntou.

– Sabe, tenho que discordar de você. Não acho isso interessante. É a única
coisa que recordo deles, mas não quer dizer que seja particularmente
importante. Nós costumávamos ouvir música. E daí?

– Você se sente culpada?

Minha boca ficou seca. Nunca falara dos fones para ela nem para ninguém,
jamais.

– Não. Culpada por quê?

– Porque você sobreviveu e eles não.

– Não tenho culpa. Para de tentar me encaixar num estereótipo de luto.


A dra. Pitts me ofereceu uma caixa de lenços de papel. Não estava
chorando, mas devia parecer prestes a

chorar. Seu gesto só me fez engolir em seco, respirar fundo e prender as


lágrimas, mais decidida do que

nunca a não me abrir.

– Não estou tentando te impor uma teoria, Ari – ela disse com a voz suave.
Mas eu não precisava da sua

suavidade. Não precisava da sua compaixão. – Estou te oferecendo outra


forma de encarar sua situação.

– Além daquela em que sou uma cretina fraca e ridícula que apagou o
namoradinho amado e depois mentiu

sobre o acontecido? Em vez disso, vamos botar a culpa na morte dos pais?

– Existe mais de uma forma de encarar tudo. Se você sabe por que se sente
assim, pode aprender a lidar

melhor com suas emoções.

– Mas não quero saber – deixei escapar sem pensar.

A dra. Pitts ficou em silêncio por um longo momento, deixando as palavras


pairarem no ar.

– O que você não quer saber, Ari?

– Nada. Só estava sendo do contra.

– O que você não quer saber?

– Não tem importância. Só saiu.

– Por favor, me conta. Você não quer saber…


– Não quero saber por que fiz aquilo! Por que apaguei Win. Não quero
saber nada disso.

A expressão serena da dra. Pitts mudou, e acho que ela estava sinceramente
curiosa quando perguntou:

– Por quê?

Porque eu tinha medo de que, se olhasse com atenção, descobriria que tinha
mudado de uma forma que não

podia controlar. A antiga Ari parecia ser uma pessoa diferente de mim.
Abandonando Diana, preferindo um

menino a tudo, inclusive à dança. Nem mesmo a mais antiga Ari – a


pequenininha, que tinha um iPod de

segunda mão e pais cantores – era eu, já que tinham tirado de mim a
lembrança do incêndio. No entanto, essas eram mudanças para as quais eu
tinha me planejado, que eu havia escolhido, por mais que já não
conseguisse entender o motivo de ter tomado essas decisões. Não queria
saber que outras mudanças aconteceram sem o

meu conhecimento ou a minha permissão.

Desejava ter uma série de reações previsíveis a um conjunto finito de


situações, ter certeza de que sempre tomaria as mesmas decisões de antes.
A ideia de mudar súbita e aleatoriamente me enchia de medo.

Sorri para a dra. Pitts, por mais que o sorriso me doesse.

– Porque é melhor ficar no escuro.

37. Kay

A luz do fim de verão lançava sombras sobre o deque. Diana estava deitada
em posição fetal num canto da
rede e Ari tinha puxado uma cadeira para perto dela. No gramado, os
irrigadores automáticos estalavam ao

atirarem arco-íris minúsculos contra o céu. Minha mãe estava em algum


lugar perto da beira do terreno com

sua roupa suja de jardinagem, que usava praticamente o tempo todo. Ela
permanecia lá fora até ficar escuro demais para ver. Meu pai, que passava a
maior parte das semanas em Boston, trabalhando como presidente de

uma empresa, brincava que o jardim era o terceiro filho da minha mãe, a
verdadeira ironia era que o jardim era o filho único dela.

Guardei o celular no bolso, com todas as mensagens de Cal. Não falava


com ele nem o via fazia mais de

três dias, porém recebia suas mensagens de texto e de voz, e supunha que
isso fosse o bastante, senão o

feitiço o teria lançado para perto de mim. Quanto mais tempo passava sem
vê-lo, menos queria fazê-lo, ainda mais porque suas mensagens tinham
começado a ficar extremamente esquisitas.

– Puxa! – eu disse. – Estamos no meio do verão. Vamos fazer alguma coisa.

Diana se balançava em silêncio na rede e Ari torceu o pescoço.

– Não estamos no clima – ela falou.

– Vocês são deprimentes – comentei. – Ari havia mentido sobre o feitiço e


Diana tinha um namorado

secreto. Agora nós sabemos do feitiço e Markos já era. E daí?

Ari ergueu um pouco a cabeça.

– Certo, Kay. O que você quer de nós?


– Que vocês saiam dessa! – eu disse. Diana suspirou mais fundo na rede e
Ari revirou os olhos. – Ari, uma

vez você me falou que você era incrível e que só tinha amigas incríveis
também.

– Acho que não falei nesses termos…

– Quero dizer que vocês ainda são Ari Madrigal e Diana North. Então
honrem seus nomes.

Elas não responderam, mas, antes que eu pudesse insistir para que se
levantassem e fizessem algo, a

campainha tocou seis vezes seguidas, como se alguém estivesse encostando


o peso do corpo nela. Deixei as

duas no deque e corri por dentro da casa para atender.

Cal estava nos degraus da entrada, com a pele cinzenta, as bochechas


descarnadas e o cabelo tão

engordurado que parecia piche.

– Ah, oi, Kay – ele falou ao me ver. Depois se deixou cair no degrau de
cima.

Fechei a porta atrás de mim e sentei à sua frente.

– O que aconteceu com você?

– Estou doente. Por onde você andou? Não respondeu a nenhuma das
minhas mensagens.

– Ah. – Talvez o feitiço precisasse que eu respondesse às mensagens. Ops. –


Foi mal.

– Não sei com quem mais falar. Parei de comer em casa, o que me deixou
doente e morrendo de fome, até
me tocar de que poderia simplesmente ir ao mercado e deixar a comida
trancada, mas não é esse o problema.

Ele falava normalmente, como se eu entendesse o que dizia, só que não


pude compreender nada. Olhei de

soslaio para a casa.

– Então qual é o problema?

– É a minha cabeça. E esse feitiço.

Respirei fundo e me levantei com dificuldade.

– Não sei do que você está falando.

Ele soltou uma risada que se transformou numa tosse áspera.

– Também não. Achei que só não conseguia bater no Markos, mas as coisas
estão se revirando na minha

cabeça, como tinta que descasca ou janelas sujas que se quebram. Eu não
sei separar a verdade da…

– Você tentou bater no Markos?

– Ele está deprimido. Acho que queria que eu batesse nele. Talvez eu
consiga agora. Ainda não tentei.

– De que feitiço você está falando?

– Não sei. Um feitiço. É isso que estou querendo dizer.

Fui andando para trás na direção da porta.

– Bom, também não sei. Mas você vai se sentir melhor agora, certo, Cal?
Mais tarde a gente se fala. Pode

me ligar no meio da noite, prometo que vou atender.


Ele abanou a cabeça.

– Está aí outra coisa. Tenho dormido a noite toda.

– Que bom!

– Não, não é nada bom. Sempre achei que tivesse insônia… – Ele sacudiu a
cabeça, quase com raiva,

cruzando os braços diante do peito. – Nem sei por que vim aqui. Não vou
mais te incomodar.

Eu o vi indo embora, cerrando os dentes enquanto ele descia os degraus,


esperando para ver quando

tropeçaria e levaria um tombo. Então, desamarrei a preocupação e a


pendurei com o resto de coisas. Elas não me serviam de nada. Só que Cal
não tropeçou. Saiu andando normalmente. Estava doente, mas ficaria bem

agora que tínhamos conversado.

No caminho de volta pela casa até o deque, ouvi risadas. Talvez meu
discurso tivesse funcionado, talvez Ari e Diana estivessem prontas para
deixar o passado para trás e voltar ao normal. No entanto, quando cheguei

mais perto, ouvi três vozes em vez de apenas duas. E reconheci a terceira.

– … descobri que era completamente diferente e assustador às vezes, cheio


de gente, desconhecido.

Também me senti solitária.

– Mas valeu a pena? – a voz de Ari.

– Ah, sim. É bom ficar sozinha. Você passa a se conhecer melhor.

Lágrimas brotaram no fundo dos meus olhos e levei a mão à boca. Mina
não sabia nada sobre ficar sozinha.
– Parece um clichê falar isso, mas acho que antes eu não entendia como o
mundo era grande. E antigo. Vi

fortalezas que existem há séculos. Montanhas que estão lá há eras. – Ela riu
um pouco. – Era meio

reconfortante estar em todos aqueles lugares com aquelas pessoas que não
ligavam para o fato de eu ter

estado doente e que não olhavam para mim como se eu fosse morrer a
qualquer momento.

– Sei como é – Ari disse. – Não que as pessoas achassem que eu fosse
morrer. Só que toda a minha vida…

todo mundo olhava para mim como alguém frágil. Como se fosse me
debulhar em lágrimas a qualquer

segundo. – Ela parou. – Exceto quando estou dançando.

– Não olho para você assim – Diana disse.

– E é por isso que eu te amo.

Sabia que deveria parar de ouvir e sair. O feitiço não me trazia amigas para
que Mina ficasse conversando

com elas. Contudo, me recostei numa das cadeiras da cozinha e prendi o


fôlego.

– Você já se debulhou em lágrimas algum dia? – Mina perguntou.

– Não! – Ari disse, com desprezo.

– Eu já chorei o bastante por nós duas – disse Diana.

– Chorar não é tão ruim quanto parece. Chorei na Índia por uma semana
inteira. Lá pelo terceiro ou quarto
mês, estava totalmente estressada com os trens, as estalagens esquisitas e
todo mundo olhando para mim

como se fosse obrigada a falar híndi. Também tinha saudade de casa. E me


sentia culpada por ficar nervosa, porque eu tinha conseguido, estava lá,
saudável, vivendo meu sonho. Daí que nem sempre era fácil, sabe?

Mas não dá para se manter calma, grata e zen durante todos os segundos do
dia. É completamente

impossível.

– Adoro ver vocês falando sobre “se permitir” chorar – Diana disse, e pude
notar o tom choroso da sua

voz. Parecia que falar sobre chorar era o suficiente para que suas lágrimas
começassem a cair. – Como se

houvesse um momento em que vocês dissessem: “Ah, estou muito triste,


mas acho que não vou chorar hoje,

não”.

– Diana! – Ari disse, então ouvi um ruído e uma gargalhada abafadas,


percebendo que Ari tinha se jogado

na rede com Diana. O céu estava completamente escuro agora. Eu tinha me


escondido por tempo demais, já

era para elas terem se perguntado onde eu estava. Mas não tinham feito
isso.

Joguei a cadeira para trás, que caiu estrondosamente no chão, e fui correndo
para o deque. Na rede,

deitadas uma para cada lado, Diana e Ari ergueram os olhos. Mina estava
sentada numa das cadeiras, as luzes da casa se refletiam no piercing da sua
sobrancelha. Comecei a falar antes que ela pudesse emitir outro som.
– Oi, gente, desculpa a demora. Ah, Mina, o que você está fazendo aqui?

– Só dando um oi.

– Ah, oi. Mas a gente estava meio ocupada.

– Não estava, não – Ari disse. – Mina, você voltou de vez ou só para passar
o verão?

Ela se recostou na cadeira para ficar mais confortável.

– Terminei meu primeiro ano na Universidade de Michigan. Já era para


estar no terceiro, mas a

quimioterapia me atrasou.

– Viajar pelo mundo também – adicionei, porém ninguém entendeu o meu


sarcasmo. Mina, que tinha

obrigação de compreender a mensagem, sorriu para mim.

– Não sabia que tinha um cronograma – ela disse, sem sacar absolutamente
nada pela milionésima vez.

Estava tentando dizer que não era só o câncer que podia tirar as pessoas de
perto de nós. Às vezes era a

bosta da Índia também. Mina havia melhorado e depois me abandonara. A


história acabava aí.

– Quem estava na porta? – ela perguntou.

– O Cal.

Todos os músculos do rosto de Diana pararam de se mover.

– Vocês ainda estão namorando?

– Você estava namorando o Cal Waters? – Mina perguntou.


– Não… quer dizer, sim, talvez, mas não estamos mais.

– Ai, meu deus, Katelyn, não acredito que não me contou.

– Não tem o que contar. – “Exceto que beijei o irmão dele, Diana…
desculpa por essa parte.”

– Então, o que ele queria? Você não acabou de terminar com o cara,
acabou? – Mina quis saber.

– Não, claro que não. – Todas olharam para mim, esperando mais detalhes.
No entanto, como eu poderia

explicar que ele estava doente e não sabia por quê, mas precisava me ver? –
Ele… ele disse que Markos tentou bater nele.

– Como é que é? Por quê? – Ari perguntou. Diana parecia querer derreter
pela rede e se desfazer no chão.

– Ele disse que o Markos estava deprimido. Pode ser que… que ele sinta
falta da Di. Seria uma coisa boa,

né? Como se importasse?

O rosto de Diana se enrugou e ela se virou para as cordas da rede.

– Cal veio dizer que Markos sente falta de Diana? – Ari perguntou.

– Hum… sim. – Sabia que isso não fazia sentido, mas não conseguia pensar
em nada que fizesse. – Ei,

então, escuta… vocês todas vão ao meu jantar de aniversário, né?

– Nossa, Kay! – Ari disse.

– Que foi?

– Que insensível você! – Ari apontou para Diana, que começara a chorar
em silêncio. Por um momento, me
senti péssima, uma pessoa horrível, porém pensei que o feitiço estava
funcionando perfeitamente, então não importava se estava sendo boa ou má,
e me senti melhor.

– Vou com certeza – Mina disse.

Revirei os olhos.

– Você não foi convidada.

– Claro que fui – Mina disse. – Você acabou de falar “vocês todas”. Eu sou
parte de “vocês todas”.

– Pois é – Ari disse, com um sorriso. – Ela faz parte de “vocês todas”.
Certo, Diana?

Diana secou os olhos e abriu um sorriso trêmulo para Mina.

– Ela está em “vocês todas”, assim como eu.

Respirei fundo. Os aniversários costumavam ser o nosso lance, meu e de


Mina. Nós comíamos bolo e

fazíamos a maquiagem uma da outra. Ela escrevia uma história que me


fazia rir e lia para mim, imitando todas as vozes. Mesmo quando estava
muito doente. Mesmo na vez em que me deu quatro histórias e falou que, se

não estivesse ali no ano seguinte, eu deveria ler uma por ano e fingir que ela
estava fazendo todas as vozes, pedindo desculpas por não ter tempo para
escrever mais porque estava muito cansada, então nós choramos e

dormimos na cama dela.

Se ela me escrevesse uma história neste ano – o que não faria, porque fazia
anos que não me escrevia nada

–, sairia correndo e gritando.


Mas não importava que Mina tivesse se enfiado nesse jantar, nem que
ficasse amiga de Ari e Diana, porque,

mais cedo ou mais tarde, ela iria embora – era isso que fazia. Não
importava que Cal estivesse meio doido, nem o fato de eu ter beijado o
amor da vida de Diana, ter mentido para ela e tê-la feito chorar, nem o fato
de não poder ficar em hospitais ou montanhas-russas. Nada disso
importava.

O feitiço estava funcionando, e nada mais tinha importância.

38. Markos

Sou o único dos filhos que não tem nenhuma lembrança do nosso pai.
Nenhuma. Nem mesmo de algo vago,

como ser erguido nos ombros de um gigante ou outro momento marcante e


comovente. Eu tinha dois anos e

meio quando ele morreu de ataque cardíaco. Cal tinha seis, Dev oito e Brian
dez.

Não estou pedindo piedade, lágrimas nem um abraço coletivo por causa
disso. É um fato: sou o mais novo.

Nunca tive pai.

No entanto, o que me ferrou não foi a parte de sentir falta de um pai que
nunca conheci. Com isso, não

tinha problema – ele parecia um cara ótimo, e teria sido bacana tê-lo
conhecido, mas consegui ficar

relativamente bem. A parte que realmente me pegava era que os três –


Brian, Dev e Cal – podiam ficar nesse clubinho juntos. O Clube Lembra
quando o Nosso Pai. Por exemplo: “Lembra quando nosso pai cozinhou

salsichas toda noite por uma semana?”. Ou: “Lembra quando nosso pai
construiu a casa da árvore no quintal
dos fundos?”. Até o segundo mais novo, Cal, que tinha seis anos quando
nosso pai morrera, se recordava do

Natal em que todo mundo ganhou Legos e fomos todos para a Legolândia.
Meus irmãos podiam juntar suas

lembranças, trocá-las entre si. Eles ajudavam uns aos outros a reforçarem as
recordações que já tinham. Mas eu não podia ajudar. Mesmo quando estava
presente nessas histórias, normalmente estava dormindo no colo

da mamãe ou chorando muito no pano de fundo.

Num certo sentido, parecia que estávamos em duas famílias diferentes: eles
três, que já haviam tido pai e

mãe, e eu, que sempre tivera só a mãe.

O que eu queria, mais do que um pai, era poder entrar nessa família, essa
que já havia tido pai e mãe.

Queria muito isso. Eu os via e tentava o tempo todo ser um deles. Os irmãos
Waters.

Fiquei muito bom em fingir ser assim. Confiante, engraçado, sedutor, mas
nunca sério. Notas relativamente

boas e uma mais ou menos de vez em quando. Escolher um esporte, jogar


em equipe. Não ficar bravo, triste,

impaciente nem eufórico. Manter a calma. Eles sabiam que eu era uma
fraude e enchiam meu saco por isso,

mas ninguém de fora conseguia ver que eu não era igual a eles.

O estranho – ou, sei lá, talvez nem fosse tão estranho assim se pararmos
para pensar – era que eu não tinha pensado no meu pai durante todo aquele
verão. Seria esperado que, ao ser confrontado com o espectro da
morte, do luto e dessa merda toda, eu tivesse reservado alguns minutos para
o meu pai. Afinal, ele fora minha primeira grande perda, porém, como
disse, não é uma perda tão grande assim quando não se tem nada para

lembrar.

Depois de descobrir que Ari apagara Win, comecei a pensar no meu miolo
mole de bebê, que mal conseguia

lidar com as tarefas de comer e cagar, quanto mais entender a morte de


alguém. Ari era como eu quando

bebê, balbuciante e esquecida. Ela não conseguia se lembrar de alguém que


deveria significar algo para ela, assim como eu não conseguia me recordar
do meu pai.

Eu e ela tínhamos formado nossa própria família: aqueles que amavam Win.
Eu finalmente era membro de

um clube exclusivo, algo que sempre quisera ter com meus irmãos. Só que,
depois, ela tinha ido lá e

expulsado a si mesma de propósito do grupo.

Agora eu entendia por que meus irmãos tinham fechado esse lado deles
para mim. Não era por egoísmo ou

maldade. Eles também queriam que eu pudesse fazer parte do clubinho,


para guardar melhor suas memórias

em comum. No entanto, ou a pessoa está no clube ou não está. Não tem


como fingir.

O pior é estar sozinho nele.

E quando ela apareceu na sala de casa, eu estava deitado no sofá, enrolado


numa manta vermelha de lã,
vendo uma mulher loira demonstrar um conjunto incrível de doze facas de
cerâmica mais fortes que aço, com

cem por cento de garantia, por apenas US$ 49,99. Ela desligou a tevê e
parou na minha frente, com a cara

fechada.

Parte de mim queria pular do sofá e estrangulá-la por esquecer Win, mas o
resto de mim estava exausto

demais para se mover.

– Que diabo você está fazendo aqui? – perguntei.

– Fiquei sabendo que você estava mal. Quis ver com meus próprios olhos.

– Como assim? Quem te disse?

Ari não respondeu. Eu a vi olhando por sobre o sofá, para as garrafas pela
metade de Gatorade e para o

meu rosto, que devia estar sujo e pálido, embora fizesse tempo que eu não
me olhasse no espelho.

– Por que você foi escroto com a Diana? – ela perguntou.

Engoli em seco. Por pior que estivesse, ela também parecia estar péssima,
com olheiras escuras embaixo

dos olhos e as mãos dobradas de um jeito estranho ao lado do corpo, não


leves e maleáveis como

antigamente.

– Ela achava que você estava sendo sincero – Ari disse. – Deve ter se
esforçado muito para convencê-la.

Por que se deu a esse trabalho?


– Cala a boca – eu disse. – Cala essa sua boca, Ari. O problema aqui não
sou eu e Diana. Você esqueceu o

Win. Você foi lá e o arrancou como se fosse um câncer. Mas você não ia
morrer por se lembrar dele. Ele não era um câncer. Ele… te amava. E você
não se importou.

– Acho que eu devia amar muito esse menino para fazer o que fiz.

– Quer merda ridícula essa que você disse!

Ela deu de ombros.

– Você tem razão – concordou. – A antiga Ari só fazia merda.

Meus olhos se fecharam, porém a escuridão não significava que ela fora
embora. Podia sentir sua presença

ali, respirando, e não sabia o que dizer, então ficamos parados em silêncio.

– Me fala por que você partiu o coração da Diana – ela disse.

Abri os olhos.

– Por que você se importa?

– Porque ela é minha amiga.

– Você é uma péssima amiga, pensei que já estivesse claro.

– E você está sendo mais babaca do que nunca. Por que fez isso? Foi só
para se sentir amado e especial por cinco minutos? Isso é desumano.

Me sentei direito no sofá, com o cobertor amontoado sobre os ombros.

– Esse sou eu, caso você não se lembre. Sou o cara que faz merda. Não levo
nada a sério. O que ela

esperava?
Ari me deu um chute na canela. Doeu, mas a sensação aguda me fez sentir
raiva e satisfação. Ela

cambaleou, como se o fato de me chutar a tivesse desequilibrado.

– Entendo que esteja bravo comigo – ela disse. – Caramba, eu estou brava
comigo mesma. Mas partir o

coração de Diana é um jeito idiota de se vingar.

Fiquei um tempão paralisado, então comecei a rir. Fazia semanas que eu


não ouvia nada tão engraçado.

Daí, por um breve momento, tive a impressão de que a Ari de quem eu era
amigo era a mesma que estava

ali na minha frente agora, e que a qualquer segundo ela também começaria
rir. Ela se sentaria e ficaríamos tirando sarro juntos dos programas da tevê.
Em seguida diria para os meus irmãos me deixarem em paz, e eu

a faria soltar refrigerante pelo nariz de tanto rir.

Só que Ari não riu. Ela não era aquela menina.

– Nem tudo é sobre você, sua psicopata – eu disse com muita calma,
considerando as circunstâncias. –

Mas por que você não me fala, só para eu saber, o que quer que eu faça? Por
que estas são as opções: deixo Diana em paz, que é exatamente o que estava
fazendo até você vir aqui. Ou peço desculpas, e não vejo por

que faria isso. Ela saberia que não é sincero e que você me obrigara.

Essas seriam as melhores alternativas que Ari poderia esperar, porém,


mesmo assim, pareceu desapontada.

– Queria que você fosse diferente – ela disse.

Bufei, mas não havia mais graça.


– Pois é, eu também. – Voltei a ligar a tevê.

– Markos… – ela começou, erguendo a voz para ser ouvida apesar do


comercial. Contudo, estava

estranhamente hesitante. – Por que você acha que fiz aquilo?

Porque você é uma vaca.

Porque nunca amou Win.

Porque foi fraca.

– Você se poupou – eu disse.

Ela abanou a cabeça, mas eu sabia que estava certo.

– Se você realmente amasse Win, ia querer as memórias e a dor. Você se


poupou de ser humana.

Não olhei para Ari. Segui o corte da faca na tela.

– O que você sabe sobre o amor? – ela perguntou.

Como não respondi, ela finalmente me deixou em paz.

No entanto, algo do que ela dissera se enfiou na minha cabeça, e não


consegui esquecer. Fez o comercial

parecer idiota, fez meu plano de ficar no sofá e nunca mais sair parecer
infantil.

Ari queria que eu fosse diferente. Bom, eu também. De verdade, diferente


até no nível do DNA. Queria ser

alguém que nunca tivesse conhecido. Alguém que nunca tivesse me


conhecido.
Subi a escada, tomei um banho e dormi na minha cama. Na manhã seguinte,
saí de casa antes que todo

mundo acordasse e me preparei para ir até a casa de Diana.

Ela vai bater a porta na minha cara.

Pensa positivo.

Ela vai jogar um abajur em cima de mim e depois vai bater a porta na
minha cara.

Ou talvez ela te ouça.

Ah, claro. Assim como falei para Ari: não faço o tipo que pede desculpas.
Diana sabe disso. Ela me

conhece.

E isso é ruim?

É. Porque eu estraguei tudo como sempre soube que faria desde a noite da
festa da fogueira. Só tinha duas opções: me manter longe ou destruir.
Escolhi a segunda.

Por que ir para lá, então?

Porque preciso.

Por quê?

Porque… vai que Diana me perdoa?

Mas você disse…

Se tem uma chance de ela me perdoar, preciso tentar.

E por que ela perdoaria?


Porque ela me conhece.

39. Win

Echo passou a me esperar depois do beisebol. Na verdade, ela assistia a


todos os nossos treinos, um pontinho preto atrás da linha da terceira base,
depois ficava perto da minha caminhonete. Se eu saía com Markos ou

com alguns dos outros caras, ela sumia. Mas, se ia sozinho, ela entrava pela
porta do passageiro e ficávamos conversando.

Echo não estava exatamente me pressionando pelo dinheiro. Mais que isso,
queria saber se eu tinha tomado

o feitiço – como eu sempre respondia que não, ela me perguntava como eu


estava.

Assim eu conversava com ela. Falava sobre meus dias sombrios e noites
insones, enquanto mentia para Ari

a fim de poupá-la de mais sofrimento, e não pedir o dinheiro de que


precisava, nem ver preocupação no rosto da minha mãe ou confusão no
rosto de Kara. Contava que queria o feitiço mais do que tudo, mas que o

problema era não conseguir querer nada direito, e que essa vontade fraca
não era o suficiente para me fazer tomá-lo de verdade. O fato de o feitiço
estar na minha gaveta de meias não o tornava mais acessível. Ari

estava bem na minha frente. Minha vida real estava logo ali. Nada vinha de
maneira fácil.

– Não posso obrigar você a tomar – Echo disse certa tarde. Ela estava
sentada no banco do passageiro,

com as costas apoiadas na porta e a cabeça de lado, encostada no apoio de


cabeça. – Mas queria que você

tomasse.
– Eu vou tomar. Vou tomar. – Tirei a jaqueta de couro e a joguei no banco
de trás. A caminhonete ficava

quente com duas pessoas lá dentro e o motor desligado. – Só que queria te


pagar antes.

Echo me observou tirando a jaqueta e tentou pressionar o corpo contra a


porta do carro, para ficar mais

longe de mim.

– Falei para não se preocupar com isso. Você vai descobrir um jeito de
conseguir o dinheiro mais rápido

depois que tomar o feitiço.

– Contudo, depois que você tiver o dinheiro, vai me deixar aqui para sair da
cidade e virar uma heroína – eu disse, tentando brincar. – Talvez não queira
te pagar porque gosto das nossas conversas.

Echo não deu risada. Seu pescoço e suas bochechas ficaram vermelhos e ela
olhou fixamente para o porta-

luvas.

Tentei não me mexer. Eu tinha dito algo terrível sem nem perceber.

– Desculpa – falei.

Ela não respondeu.

– Realmente gosto das nossas conversas – acrescentei. – Você é a única


pessoa com quem falo de verdade.

Com todos os outros, é muito difícil.

Ela continuou sem dizer nada, mas parou de olhar fixo para o porta-luvas e
se voltou para mim. Seus olhos eram tão claros, quentes e tristes que
precisei desviar o olhar.
– Que foi? – perguntei. – Por favor, me fala. Sou um babaca, eu sei. Fiz
você ficar brava.

– Não. É que… quero que você tome o feitiço. Que se sinta melhor. Mas…
não sei mais se quero que me

dê o dinheiro. Não mais.

– Ah! – eu disse.

Ela quis dizer que queria ficar na caminhonete comigo, perguntando como
eu me sentia. Queria ficar na

cidade, cancelar a viagem, e não procurar outros clãs e hekamistas para


salvar a mãe e a si mesma.

Por mim.

Ela estendeu o braço e pegou minha mão, que batia nervosamente contra o
volante. Sua pele estava fria.

Expirei, criando um vácuo no meu peito que me fez ter que inspirar logo em
seguida, profunda e

completamente, só que o ar tinha o cheiro de couro do casaco de Echo e da


lavanda do seu xampu. Ergui a

cabeça e me voltei para ela; ela estava logo ali. Se eu me movesse um


centímetro, daria um beijo nela.

Por um segundo, pensei que a beijaria. Senti a possibilidade me consumir,


um choque elétrico dos meus

olhos até os pés, todo o meu corpo subitamente ciente da proximidade


daquela menina e da realidade do seu

corpo encostado ao meu sob as camadas de roupa preta.


Então, minha mão soltou a dela de repente e recuei para me afastar. Respirei
pela boca para não sentir o

cheiro de couro e de lavanda de novo. Cobri os olhos com as palmas das


mãos a fim de retornar à dormência

e à escuridão. A parte de trás da minha cabeça acertou a janela com um


choque de dor que não era nada

comparado ao ódio que sentia de mim mesmo naquele momento.

Eu não a beijei. Mas não importava. Queria beijá-la, o que já era ruim o
suficiente.

– Desculpa – falei.

Sua respiração também estava ofegante. Era tudo o que se ouvia no carro,
além do meu coração batendo

forte contra o peito.

– Eu é que peço desculpa – disse.

– Não posso.

– Eu sei.

– Mas você… eu gosto de você…

– Não, não. Por favor, não fala isso.

– Sou grato por tudo o que fez por mim…

– Por favor, não fala isso. Sério, Win, não vamos conversar. Vamos ficar
quietos sem falar nada, você me

leva para casa e nenhum de nós comenta isso nunca mais. Está bem?
Concordei com a cabeça e dei partida no carro. Precisei abrir a janela
porque o ar lá fora tinha ficado mais fresco, enquanto as janelas do carro
estavam cobertas de vapor. Os segundos que passamos esperando que

elas desembaçassem foram os mais longos da história, cada um durando


pelo menos umas mil batidas no meu

peito.

Dei a volta pelos campos esportivos para deixá-la na sua casa, depois fui
para a minha. O tempo todo eu

tinha certeza de que agora tomaria o feitiço, que sem dúvida era uma pessoa
infeliz e terrível a ponto de

precisar tomá-lo – que não tinha nenhuma outra opção.

Em casa, tirei o sanduíche da gaveta e o fitei. Se comesse e funcionasse, no


dia seguinte eu voltaria ao

normal. Provavelmente continuaria me sentindo culpado, mas, pelo menos,


conseguiria beijar Ari e sentir seu

beijo de verdade, como senti a eletricidade do quase beijo em Echo.

Eu não merecia nenhuma das duas.

Pensei nisso. E voltei a guardar o feitiço.

40. Ari

Echo ligou assim que saí da casa do Markos. Eu vinha andando em círculos
pelo bairro dele, matando o

tempo antes do jantar de aniversário da Kay, revolvendo a imagem de Win


na mente. As poucas coisas que

sabia sobre ele, os pequenos indícios que havia reunido. Como Markos
sentia sua falta. Como tinha mudado
quando estávamos namorando. Juntas, as peças formavam o esboço de uma
pessoa, definida por seus efeitos

nas outras, mas não era um ser humano completo.

Markos disse que, se eu realmente amasse Win, iria querer lembrar. Pensei
nos meus pais. Talvez não os

amasse o suficiente. Talvez, se me importasse mais, teria mantido a


memória do incêndio e criado uma

cicatriz em volta dela. Assim, pelo menos, guardaria essa cicatriz para
demonstrar todo o meu sofrimento.

Passou pela minha cabeça que era dia primeiro de agosto.

Era para eu estar em Nova York, mas não conseguia provar para Jess que
podia dançar, então ela não

telefonara mais para a empresa de mudança depois do cancelamento.


Também tinha parado de colocar coisas

em caixas. Pratos e livros voltaram a aparecer nas prateleiras da noite para o


dia.

A voz de Echo surgiu radiante nos meus ouvidos. Um estranho contraste


com meus pensamentos sobre

Win e Nova York.

– Você pode passar aqui? – ela perguntou.

– Agora?

– Treinei algumas vezes e acho que estou pronta para fazer seu feitiço. – Ela
parecia animada, quase

contente, e eu também fiquei assim, mas não conseguia parar de pensar no


seu braço cheio de cortes e no
som do seu grito.

– Já chego aí – eu disse. Comecei a correr, em seguida diminuí a velocidade


para não tropeçar no meio da

rua.

Echo descreveu o que tinha planejado para o meu feitiço, as fases da lua e o
tipo sanguíneo, como tentaria limitar os efeitos colaterais dando-me
graciosidade apenas suficiente.

– E como eles serão?

– É um feitiço físico, que dá um efeito colateral psíquico. Graciosidade,


controle e potência… você pode

ficar mais emotiva do que de costume, talvez? É difícil dizer, ainda mais
porque é uma mistura.

Queria ficar animada com tudo o que ela estava dizendo, porém algo me
incomodava. Uma parte do esboço

de Win que eu não conseguia preencher. Finalmente, a interrompi.

– Me fala que tipo de feitiço você estava preparando para o Win.

Ela parou.

– Acho que ele não gostaria que eu contasse.

– Por que não? Foi um feitiço de amor? – Se Win tivesse me enfeitiçado


para que me apaixonasse por ele, explicaria o que eu tinha feito, mudando
completamente as minhas metas e a minha vida por ele.

– Não. Não tinha nada a ver com você.

Tentei não ficar desapontada.


– Mas ele te daria cinco mil dólares por isso… devia ser algo importante.
Caro assim, era para ser um

feitiço permanente, né? – Nenhuma resposta. – Eu sabia antes de me


esquecer dele? Ou era um segredo na

época?

– Você não sabia.

Então Win tinha seus segredos. Se a antiga Ari soubesse disso, ainda se
daria ao trabalho de esquecê-lo?

– Ari? Você está me ouvindo?

– Por que você demorou tanto tempo para me chantagear? – perguntei.

Houve uma pausa do outro lado do telefone.

– Como assim?

– Win morreu no fim de maio. Fiz meu feitiço uma semana depois. No
entanto, você só veio atrás de mim

na festa da fogueira, no dia três de julho.

Meus passos ficavam mais lentos conforme as pausas dela se alongavam.

– Não conseguia pensar em nada direito durante as primeiras semanas.

– Depois que Win morreu?

– Sim. Eu… Não foi fácil.

– Por que não?

Sua voz virou quase um sussurro.


– Do jeito como cresci… nunca tivera um amigo antes. Nunca contara para
alguém que era hekamista. Não

podia nem atender à porta quando minha mãe não estava em casa.

– Mas você recebeu Win.

– Comecei a ficar desesperada. Minha mãe estava se esvaindo. Precisava


ganhar um dinheiro que ela não

pudesse esconder nem destruir, então contei para ele. Não esperava que… –
Ela suspirou ao telefone. – Não

sabia como seria a sensação de contar para alguém. Alguém que sabia quem
eu era. Ele me conhecia. Com

minha mãe tão doente… ele era o único.

Parei de andar. Uma sensação amarga se revirou na minha barriga. Ela tinha
roubado meu luto, por mais que

eu tivesse abandonado todo o direito a ele.

– Quer saber? Não posso ir agora – eu disse. – Tenho que encontrar umas
amigas para o jantar.

– Ah. Está bom.

– Mas obrigada. Obrigada por fazer esse feitiço.

– Não é nada.

– Minha amiga está ansiosa por esse jantar, senão eu daria um bolo nela.
Juro.

– Não precisa se desculpar. Depois a gente se vê.

– Desculpa de verdade – disse mesmo assim, apesar de que, quanto mais eu


falasse, menos convincente
parecia. – Preciso buscar Diana, nós vamos encontrar Kay no restaurante. Já
devo estar atrasada, então…

– Espera – Echo me interrompeu. Seu tom de voz não estava mais vacilante,
ela tinha voltado ao normal. –

O nome da sua amiga é Kay?

– Sim. Kay Charpal.

– Uma indiana bonitinha? Ingênua? Um pouco carente?

– Exato. – Echo não respondeu. – Você a conhece?

Ela suspirou, soltando um longo sopro de ar.

– Sim, conheço. Você sofreu uma amarração.

41. Kay

O aniversário era meu, mas quem ganhou de presente a revelação sobre as


amarrações foram minhas amigas.

Era uma segunda-feira e tínhamos marcado de nos encontrar no restaurante


de lagostas do centro, onde os

clientes têm de usar um babador e compartilhar baldes de frutos do mar,


enquanto os garçons não param de

trazer batatas de acompanhamento. O lugar só abria no verão, quando era


possível conseguir frutos do mar

frescos e havia turistas suficientes para consumi-los. Era uma daquelas


noites calmas e secas, não quentes demais, em que a lua brilhava como um
farol através das janelas do restaurante. Eu havia sido a última das três a
fazer dezessete anos. Diana, inclusive, faria dezoito dali a dois meses, então
teríamos a mesma idade por um período curto. Tudo estava se alinhando.
Eu e Mina esperamos Ari e Diana por uma hora. Elas não mandaram
mensagem nem e-mail, nem

telefonaram. Pensei que talvez eu tivesse dito a hora errada a elas.


Finalmente, fizemos o pedido e mandei uma mensagem para as meninas.

– Elas podem ter ficado presas em algum lugar – Mina disse, tentando ser
gentil.

Fiquei irritada com a piedade dela. As meninas não haviam ficado presas
em lugar nenhum. Não tinham

como ficar. Mais cedo ou mais tarde, a amarração as traria para mim,
porque ela funcionava. Sempre

funcionava.

O primeiro a aparecer sequer tinha sido convidado.

Cal Waters estava parado na porta do restaurante, olhando pelo salão com
cara de bobo. Ele continuava

com a aparência terrível: mais magro, inquieto, suado. Fiz sinal para que
viesse – o que mais poderia fazer?

Ele ficaria ainda pior se eu o ignorasse. Quando chegou perto de nós,


sentimos o cheiro forte de tequila.

– Oi, Cal, sou Mina – ela disse, sorrindo e estendendo a mão. – Nós fizemos
álgebra juntos no oitavo ano,

lembra?

Ele olhou para a mão estendida, mas manteve a sua ao lado do corpo.

– O que você está fazendo aqui? – perguntei.

Ele abriu e fechou a boca, sem falar.


– Não sei. Eu meio que… vim parar aqui.

Atrás de Cal, pude ver a porta aberta, e Ari e Diana entrando por ela.
Levantei de um salto, empurrando o

bêbado do Cal de lado.

– Ari! Di!

Ari me lançou um olhar furioso. Puxou Diana pelo braço e a arrastou até
nossa mesa. Diana parecia estar

em choque.

– Ari Madrigal – Cal sussurrou, dando um passo para trás.

– Onde vocês estavam? – perguntei.

Ari me encarou.

– Deixa disso, Kay. Nós ficamos sabendo do feitiço.

– Vocês sabem? – Cal balbuciou. Ele ficara mais pálido sob a camada fina
de suor.

Ari mal olhou para ele, torcendo o nariz.

– Sim. Nós sabemos que Kay fez uma amarração para nós, e que não temos
como sair de perto dela. Nem

você, nem eu, nem Diana.

– Ah... – Cal disse, balançando devagar. – Isso não é nada bom.

– Do que você está falando, Ari? – Mina perguntou.

Ela explicou o que eu contara para a hekamista no dia em que pedira para
ela desfazer a parte de Cal do
feitiço.

– Nossa, valeu – Cal falou. – Mais feitiços.

Voltei a sentar à mesa e cruzei os braços diante do peito.

– E daí?

– Daí que eu quero ir para Nova York dançar. Diana quer poder sair da
cidade sem bater a cabeça. – Só que

Di estava olhando fixamente para a parede e não pareceu notar. Ari ficou
um pouco preocupada com ela, mas

depois se voltou para mim, com raiva. – Isso não está certo.

– O que você quer que eu faça a respeito?

– Quebra o feitiço. Deixa a gente ir.

– Quebrar um feitiço é quase impossível. Você não sabia disso? – perguntei.


Ari ficou vermelha e

pressionou o pulso contra a ponta da mesa. – Além do mais, não quero fazer
isso. Nós somos amigas.

– Não, não somos.

– Todas cometemos erros. Diana mentiu sobre estar com Markos. Você
mentiu sobre esquecer Win… e

nós te perdoamos. Então me perdoa e vamos seguir em frente.

Mina abanou a cabeça, incrédula.

– Não acredito que você fez isso.

– Por que você se importa, Mina? – eu disse alto demais. As pessoas


sentadas às mesas ao nosso redor se
viraram para olhar.

Ari se voltou para Mina.

– É melhor se cuidar, quem sabe ela não fez uma amarração para você
também. Se tentar viajar para a Índia

de novo, pode parar no hospital.

Mina deixou de respirar e ficou imóvel.

O garçom se aproximou da mesa com um bolinho cheio de velas, porém,


quando olhou para nós, ele

mesmo soprou-as e saiu devagar.

Todo mundo parecia esperar que eu dissesse alguma coisa, mas eu sabia que
tudo que falasse seria errado.

– Feliz aniversário para mim – disse.

– Tem outra coisa errada – Cal falou. O cheiro de álcool exalou por toda a
mesa. – Não você e sua

amarração. Outra coisa. Estou com muita fome. Você tem alguma coisa para
comer?

– Cala a boca, Cal – eu disse.

– Talvez não seja uma memória – ele falou para Ari, como se ela tivesse
feito uma pergunta. – Talvez não

seja. Posso ter alucinações, esquizofrenia. Não sei. – Ele olhou para nós
como se não nos visse, detendo o

olhar sobre mim. – Você deu uma amarração para o Markos também?

Senti um frio na barriga.


– Não, claro que não. Cal, por que você não vai embora?

Diana o pegou pela manga e se aproximou dele. Ele nem pareceu notar.

– Por que você perguntou se ela enfeitiçou Markos?

– Porque eles se beijaram. E agora Markos não sai mais de casa.

Diana e Ari olharam para ele, depois uma para a outra, então,
simultaneamente, para mim. Vi em seus olhos

todas as possibilidades de perdão e de compreensão se desfazerem. Por


mais remotas que fossem, saíram

voando como leves folhas de outono. Por baixo, não havia nada além de um
concreto frio e feio. Todo o

nervosismo que eu desamarrara tomou conta de mim, dificultando a minha


respiração.

– Não sei do que ele está falando – eu disse.

– Eles se beijaram – Cal insistiu, depois arrotou. – O Markos me contou.


Ele não mentiria para mim.

Mordi o canto da boca e desejei ter de volta um pouco de sagacidade para


saber o que dizer – e como –

para que elas entendessem e me perdoassem.

– Se for verdade, e não estou dizendo que é, mas se for, foi antes de eu
saber que a Diana estava com o

Markos. Se ela tivesse me contado que eles estavam juntos…

– Que diabo, Kay?!

– Ari, não! – Diana disse.


Ari a ignorou, falando mais alto a cada segundo.

– Você diz ser essa amiga perfeita que sempre nos apoia, mas, enquanto
isso, ficava nos enfeitiçando e

beijando o namorado da Diana… isso é doentio. Você é doente.

– Para, por favor – Diana pediu. As pessoas à nossa volta sussurravam para
os garçons, apontando na

nossa direção.

– Você sabe o que é amizade? Porque posso ter esquecido disso ao longo de
grande parte do ano passado,

mas sei o suficiente para não fazer uma coisa tão terrivelmente cruel contra
a amiga mais doce e leal que você jamais vai ter a sorte de ter…

– Cala a boca, Ari! – Diana disse. Seu rosto estava vermelho. Ela ainda
segurava a manga de Cal, como se

tivesse esquecido de soltá-la. – Para de me defender. Você não é nenhum


exemplo de amiga perfeita.

Ari ficou vermelha e se empertigou.

– Não sou tão ruim quanto ela – argumentou, apontando para mim.

– Mas pensa um pouco. Não importa o que a Kay fez. O Markos terminou
comigo porque eu menti sobre o

seu feitiço idiota.

Ari deu um passo para trás, sentando numa cadeira.

– Você acha que a culpa do que o Markos fez é minha?

Diana inspirou, trêmula.


– Você sempre vai ser minha melhor amiga, Ari. Mas às vezes não é boa
nisso. – Diana se virou para Cal e

o puxou pelo braço. – Vem. Vou chamar um táxi para você. – Ele se deixou
levar para fora do restaurante.

Desejei poder ir atrás deles. Durante a conversa, o lugar tinha ficado banal e
sem romantismo, com toalhas de mesa vagabundas e uma decoração
marinha cafona. Deveria ter escolhido outro lugar para comer. Um com

menos cara de praia, de verão. Um bistrô com toalhas brancas e música


clássica. Talvez nada disso tivesse

acontecido se eu tivesse feito outra escolha.

Ari e eu nos encaramos através da mesa.

– Tentei ser uma boa amiga – argumentei. Ari bufou, e eu continuei mais
rápido, para não deixar que ela

falasse por cima de mim. – Mesmo. Eu amo vocês. Venho tentando te


ajudar o verão todo. – Minha voz

vacilou, e me odiei por isso. Não precisava explicar nada para ela, só que
mesmo assim continuei: – Fiquei por perto. Mesmo quando vocês me
ignoravam ou tiravam sarro de mim, sabia que precisava estar próxima de

vocês. E talvez um dia tudo voltasse ao normal. Vocês gostariam de mim.


Seríamos amigas de verdade.

Aquilo era extremamente humilhante, como se eu tivesse queimado as


roupas, a pele e os músculos para

chegar à verdade. As lágrimas ardiam nos meus olhos, mais de raiva do que
de tristeza, porém eu as contive.

Ari abanou a cabeça.


– Diana está brava comigo, mas eu e ela vamos ficar bem. Você está se
iludindo se pensa que vai ser igual

com você.

Ai! Essa tinha doído.

Desamarrar. Pendurar bem longe.

Me levantei. Mina também se levantou, mas me recusei a olhar para ela, e


ela me deixou sair sozinha do

restaurante.

Deixei Ari e Mina ali, me odiando. Cal e Diana, à espera de um táxi na rua,
me odiando. Dane-se. Eu os

odiava também.

Só que, no fundo, não era verdade.

Todos esses sentimentos que eu desamarrara continuavam ali. Poderia


desamarrá-los, mas isso não os faria

desaparecer. Em algum lugar dentro de mim, sentia vergonha. Elas tinham


visto o meu pior lado, o mais

verdadeiro. Eu poderia fingir que para mim bastava mandar nelas e obrigá-
las a fazerem o que eu queria – irem ao meu jantar de aniversário ou
ficarem de mau humor no meu quintal, porém, o que eu realmente desejava

era que elas sentissem a minha falta. E isso eu não podia obrigá-las a sentir.

Em vez disso, eu as puni. Fiquei firme e não liguei para nenhuma delas
durante quatro dias.

Conhecendo os efeitos do feitiço, sabia que o que aconteceu em seguida foi


em parte, se não
completamente, culpa minha.

42. Markos

Era tão cedo que o calor ainda não estava forte, e os jornais eram entregues
por um homem de meia-idade

numa caminhonete. Não havia outros carros na rua e o silêncio tornava o


zumbido das cigarras ainda mais

sonoro. Quando cheguei à casa de Diana, sua mãe atendeu à porta de


avental e abriu um grande sorriso, como se tivesse ganhado um prêmio.
Diana não devia ter lhe contado o que eu fizera. Senti ódio dela por não
gritar comigo.

Em vez disso, ela chamou Diana e tentou bater papo, mas eu fechei o rosto
e olhei para um ponto atrás

dela, esperando sua filha aparecer.

Ela surgiu, afinal, usando uma regata e um short de pijama, com o cabelo
preso num rabo de cavalo. Olhou para mim – depois de mais de uma
semana – com o rosto sem expressão. Como se eu não fosse ninguém.

Sem raiva. Sem jogar um abajur na minha cara. Nada.

Por um segundo terrível, pensei que ela tivesse comprado um feitiço para
apagar suas lembranças de mim,

mas então ela pediu para a mãe:

– Podemos ficar um minutinho a sós? – Quando ela saiu, entrevi, por


pouco, um lampejo de dor antes que

voltasse a assumir a máscara inexpressiva.

– O que você quer, Markos? – perguntou.


– Desculpa – eu disse. – Desculpa. Fui um babaca… Nem acredito que fui
tão babaca… e preciso te pedir

desculpas.

– Você beijou a Kay.

– Foi um erro idiota.

– Você me xingou. Faz quase duas semanas que não fala comigo.

Ela listou meus crimes em voz baixa, o que foi muito pior do que se tivesse
gritado comigo.

– Desculpa, Diana.

Ela respirou fundo e se empertigou.

– Tudo bem. Eu te perdoo.

Minha boca deve ter se aberto e fechado umas dez vezes.

– Você… me perdoa?

– Sim. Valeu por vir aqui. Foi legal da sua parte. Tchau.

Ela começou a fechar a porta, mas coloquei a mão para impedir. Então
olhou para minha mão e depois para

mim. Eu me senti como uma lesma que tinha morrido e estava se


decompondo na entrada da sua casa.

– Então… espera um segundo. Quer dizer que podemos ser amigos de


novo?

– Acho que não.

– Mas você disse que me perdoou.


– Sim.

– Não parece ser um perdão sincero se você nunca mais quiser me ver de
novo.

Seus olhos se inflamaram.

– Você está aqui para me dar sermão sobre como perdoar alguém de
verdade? Quem é você para me

ensinar isso?

Eu não tinha capacidade mental para deduzir o que ela quisera dizer com
“quem é você para…”.

– Não estou aqui para te dar um sermão, não. Estou aqui para que você
possa gritar comigo por ferrar com

a sua vida.

Ela pareceu crescer uns dez centímetros, olhando nos meus olhos.

– Não se superestima, Markos. Eu vou superar.

– Você precisa me dar uma segunda chance!

– Por quê? – ela perguntou. Parecia a voz de Win soando na minha cabeça.

– Porque eu… – Parei, engoli em seco e me vi implorando, suplicando


como um fracassado ridículo. Mas

eu já tinha ido até ali. Precisava seguir em frente. Sem mentiras.


Honestamente.

Por mais que a honestidade fosse uma bosta.

– Porque eu sinto sua falta e não consigo parar de pensar em você e, na


verdade, preciso de você para
continuar vivendo, como se tivesse medo de quem vou me tornar sem sua
presença, porque esse cara... esse

cara que eu era... era horrível. – Ela abriu a boca como se fosse argumentar
e eu continuei falando, não

porque achasse que iria convencê-la, mas porque desejava adiar o


inevitável. – Na verdade, se eu for

completamente sincero, e estou sendo, ou pelo menos estou tentando ser,


realmente acho que é possível que

eu te ame, mas não sei direito, porque não sei nada sobre o amor. Estou
tentando entender o que Win diria, o que é uma causa perdida, só que ele
era um cara melhor do que eu, então acho que ele diria que isso é amor, sim,
e que deveria te falar isso, por isso estou falando. Eu te amo. Eu acho.

Me obriguei a olhar em seus olhos, e precisei parar de falar, porque ela


estava chorando. Aquilo me atingiu como uma bola de beisebol no peito: eu
a tinha feito chorar. Aquilo era culpa minha.

Não podia ser um bom sinal. Eu nunca havia confessado meu amor a
ninguém, mas duvidava que lágrimas

de angústia fossem a reação ideal.

– Por favor, me deixa em paz, Markos – ela disse. – Não posso ser
responsável por você se tornar uma

pessoa melhor. Por que você não pode simplesmente ser uma pessoa
melhor?

Dei um passo para trás, cambaleante. Senti um frio súbito e comecei a


tremer. Tentei respirar fundo, só que uma dor aguda no meu peito me fez
ofegar.

– Eu… eu te falei a verdade – afirmei.

– Obrigada por isso.


Ela fechou a porta.

Eu fiquei de joelhos no jardim da frente da casa dela.

Precisava me levantar, senão sua mãe sairia e daria de cara comigo.

Precisava me levantar para que Diana não olhasse pela janela e me visse de
joelhos.

Precisava me levantar para encontrar uma garrafa de uísque que me


ajudasse a esquecer o que tinha

acontecido.

Precisava me levantar.

Precisava.

43. Win

Depois do que aconteceu com Echo na minha caminhonete, sabia que tinha
que arranjar o dinheiro. Não podia

permitir que as coisas continuassem como estavam. Logo mais eu cometeria


um erro tão grande que nunca

seria capaz de voltar para onde queria estar.

No fim, não foi tão difícil assim. Estávamos jogando videogame na casa do
Markos. Nem pausei o jogo.

– Se eu estivesse precisando de dinheiro – comecei –, você teria como me


emprestar?

– Quanto?

Nenhum de nós tirou os olhos da tela. Markos metralhou alguns pedestres.

– Cinco mil.
Ele não disse nada na hora, então pensei que ele poderia rir. Nesse caso, eu
também teria que rir, depois

pagaria Echo com moedas que encontrasse embaixo de máquinas de


refrigerante ao longo dos próximos trinta

anos.

– Está bem – Markos disse. – Você realmente precisa?

– Sim.

– Então está bom.

Na segunda seguinte, ele me entregou o envelope entre o quarto e o quinto


períodos de aula. Coloquei no

meu armário e o senti palpitar como um coração vivo o dia todo.

Mas o que fiz em seguida? Fui para a casa da Echo e entreguei a ela na
hora? Finalmente senti que tinha o

direito de comer o sanduíche, que ficava mais velho a cada dia na minha
gaveta de meias? Fiz alguma coisa de útil?

Não.

Primeiro levei o dinheiro para casa, esvaziei as notas do envelope em cima


da cama e fiquei olhando

fixamente para a pilha, mais dinheiro do que eu já tinha visto na vida, tudo
num só lugar. Era muito mais do que tinha imaginado que seria. Uma pilha
enorme. Notas de vinte, principalmente, mas também algumas

amassadas de dez, cinco e um, além de uma de cem, que parecia ser falsa –
mas só porque uma nota de cem

dólares era uma daquelas coisas que só personagens ricos de filmes tinham
na carteira.
Cinco mil dólares poderiam pagar um aparelho para Kara. Poderiam
comprar um carro novo (usado) para

minha mãe a fim de substituir aquele que vivia morrendo nos cruzamentos.
Se eu colocasse na poupança, o

dinheiro aumentaria só de ficar depositado. Cinco mil dólares deixariam


minha mãe muito feliz, ou pelo menos aliviariam sua preocupação por
alguns dias ou semanas. Eu poderia ajudá-la de alguma forma, e não ser

apenas um fardo.

No entanto, em vez disso, estava planejando usá-lo para me sentir feliz.

Quanto egoísmo... Quanto desperdício...

Os mesmos cinco mil dólares poderiam ajudar Echo a sair da cidade,


encontrar outras hekamistas e

convencê-las a salvarem a vida da mãe dela. Salvarem a vida dela mesma


também. E a minha.

Então como eu deveria medir? Minha mãe e Kara contra Echo e sua mãe –
não parecia ser uma escolha

justa. Ou eu deveria ignorar tudo isso e simplesmente escolher a mim?

Enfiei o dinheiro de volta no envelope. Ouvi minha mãe chamar meu nome
na porta de entrada. Escondi o

pacote sob o cinto e coloquei a camisa por cima.

Se ela encontrasse o dinheiro comigo ou no meu quarto, iria querer saber


onde eu o havia arranjado.

Imaginaria alguma coisa horrível: drogas, roubo ou coisa pior. E se culparia


por ser uma péssima mãe. Ia

querer conversar sobre aquilo e me obrigar a dizer para que era.


No fim das contas, foi isso que me fez decidir. Como eu explicaria para ela
onde tinha arranjado aquela

bolada? Ela se sentiria tão humilhada se soubesse que eu pegara emprestado


com Markos que isso estragaria a minha sensação de felicidade de lhe dar
algo que tornaria sua vida mais fácil.

Naquela mesma noite, fui para a casa de Ari. Enquanto ela conversava com
sua tia, escondi o envelope no

fundo do guarda-roupa dela, numa caixa de sapato vazia meio amassada.


Sabia que sempre poderia tirar o

dinheiro da caixa se precisasse, sem o risco de que minha mãe o


encontrasse por acidente e começasse a

fazer perguntas. Guardá-lo com Ari, fora da minha casa, me fazia parecer
menos egoísta do que o fato de ter dado preferência a mim em vez de a
minha família. Quase conseguia não pensar no dinheiro.

Agora o fim estava próximo. A conclusão final. Eu tinha o dinheiro, o


feitiço, tinha Markos, Ari e Echo,

tudo a segundos de distância da resolução perfeita – o gol de placa para


terminar a partida em grande estilo.

Era a calmaria antes da tempestade.


P arte 4. Todas as coisas

44. Ari
Três dias depois do aniversário de Kay (e três depois daquele em que já era
para eu estar em Nova York), levei um tombo enquanto tentava fazer um
fouetté no quarto. Desde aquele jantar, não tinha falado com Diana nem
com Kay, e vinha evitando Jess e seu estoque subitamente infinito de
abraços bem-intencionados, já que ela havia me obrigado a ir à dra. Pitts.
Também não fora à casa de Echo, embora ela houvesse dito que estava

pronta para me fazer o feitiço – algo na nossa última conversa me


incomodara, não saber o que ela e Win

tramavam, não saber como reagir. Assim, na minha pequena bolha isolada,
tive tempo de sobra para temer que todo dedo machucado, todo passo em
falso e todo corte de papel fossem obra de algum feitiço maligno.

Quando levei o tombo, caí na cama, pressionando o colchão. Um diário que


estava preso entre a cama e o

colchão caiu no solo, um caderno que eu não reconhecia, num lugar que não
reconhecia, cheio de uma letra

que eu conhecia muito bem. Me virei onde tinha caído e sentei no chão para
ler.

Ao olhar para o diário, consegui me lembrar vagamente de colocá-lo


embaixo do colchão, daquela maneira

distante e remota como recordava grande parte do ano passado. Não


conseguia me lembrar de ter escrito nada no livro, mas ele estava cheio da
minha letra. Abri o caderno com a mesma curiosidade que me fazia assistir
aos vídeos de dança: talvez aquilo finalmente explicasse por que tinha feito
o que fiz.

Mas o diário não explicava. Não exatamente.

No começo do caderno, dava para notar que uma página fora arrancada –
onde eu escrevera o bilhete para
mim mesma na noite em que tomara o feitiço. Então, mais ou menos no
meio, algumas páginas estavam

escritas com letra firme.

Matei o balé para sair com Win. Nem foi de propósito – simplesmente me
esqueci de ir. Só fui lembrar

quando Rowena ligou para casa. Estou muito cansada da Rowena, dos
coques e da perfeição. Muito cansada.

Win diz que é um dom ser bom em algo como sou na dança. E que me
arrependeria se não fosse para Nova

York. Mas ele está sendo o Bom Namorado Win, e sei que vai sentir minha
falta. Ele anda muito estranho

ultimamente. Mais triste do que de costume. Estou preocupada. Ele não diz
o que é. E tenho minhas próprias preocupações também. Jess está muito
animada. Ela está se candidatando para dezenas de trabalhos. Falando

sobre Greenwich Village, o MoMa e os shows do Central Park. Ir para Nova


York é minha maneira de

recompensá-la pelos últimos nove anos. De tirá-la daqui. Não consigo


imaginar seis horas de viagem, tão

longe de Win. Esse era o meu sonho, mas agora parece um grande
desperdício.

Quando terminei de ler, percebi que estava sentada na ponta da cama,


apertando o pulso com tanta força

que minha mão tinha começado a ficar vermelha. A dor era como a de um
martelo batendo de maneira ritmada

num prego de metal. As palavras da antiga Ari me acertaram tão


intensamente que fiquei zonza.
Ela não amava a dança.

Eu não amava a dança.

Senti um frio descer por todo o meu corpo, como um balde de água gelada.

Imaginava que eu e ela tínhamos algumas coisas em comum. Ela tinha Win
e eu não, mas nós duas

tínhamos a dança. Algo tão importante que não era capaz de mudar. Certo?

A menos que houvesse algo na minha relação com Win que me fizesse não
querer dançar. Ou não precisar

dançar. Porque era assim que eu sempre pensava na dança antes, como uma
necessidade.

Jess achava que o feitiço tinha me salvado: aquele que tirara minha
lembrança do incêndio. Só que ela estava errada. A dança é que havia me
tirado do fundo do poço que era a morte dos meus pais. Sem ela, eu

continuaria lá embaixo, vagando cegamente em busca de uma saída.

Dei uma olhada no relógio. A aula avançada de balé terminaria logo mais.
Peguei o carro e dirigi até o

estúdio, depois abaixei a cabeça sob o volante e me escondi até todos as


alunas terem saído.

Rowena foi a última a deixar a sala, fechando a porta atrás de si e seguindo


para o único outro veículo que ainda restava no estacionamento.

Quase tropecei, tamanha era a minha pressa de sair do carro, estendendo as


pernas estabanadas. Ela não

pareceu surpresa ao me ver, mas, enfim, era sempre imperturbável.

– Ariadne... Que bom te ver! – Seus olhos passaram pelas minhas pernas e
braços, eu me tensionei e não
me movi para não me denunciar. (Tive um lampejo de lembrança de como
era a sensação de dançar, com

todas as partes do meu corpo em sincronia e sob controle; com esse


lampejo, veio a certeza súbita de que

nunca voltaria a me sentir daquele jeito novamente, mesmo que o feitiço de


Echo funcionasse.) – Você parece bem.

– Eu estou – assenti. – Você ficou sabendo… do meu feitiço de memória?

Ela fez que sim.

– Conversei com Jess. E com as meninas… há muita fofoca. Mas agora


entendo as suas dificuldades.

Efeitos colaterais, não é?

– Eu… Rowena, eu queria continuar dançando? Antes de Win morrer?

Rowena se recostou contra a porta do seu carro, cansada, mas ainda assim
formal, com as costas eretas,

elegante.

– Não – ela respondeu. – Acredito que não.

– Por causa do Win? – perguntei, com a boca contorcida de amargura.

– Não exatamente. Você nunca falou sobre isso direito. Mas você mudou. –
Ela sorriu. – Estou muito

acostumada com o fato de minhas alunas mudarem. Pode ser lindo ver
alguém descobrir que tipo de pessoa

vai ser.

– Mesmo se essa pessoa quiser parar de dançar?


– Sim. Tem muitas coisas que uma pessoa pode ser, tão importantes quanto
ser bailarina, se não mais. Os

objetivos mudam. As pessoas mudam. Você era tão talentosa como sempre
fora, e o Balé de Manhattan viu

isso no instituto no ano passado, só que, ao longo do ano, seus desejos


mudaram.

Uma onda de vergonha passou por mim.

– Eu desisti.

– O mundo de uma bailarina pode ser muito restrito. O seu expandiu. – Ela
olhou para os arbustos à distância em volta do estacionamento, como se
visse grandes florestas, montanhas e rios. – Depois que Win

faleceu e você voltou, fiquei feliz em te ver, claro, mas não foi nenhuma
surpresa o seu corpo não querer

obedecer. Eu havia entendido da forma errada, contudo aquilo fez sentido,


pelo menos para mim.

Dava para ver que Rowena considerava aquele o fim do seu discurso, mas
eu não podia deixá-la ir embora

enquanto lutava para que tudo fizesse sentido para mim.

– Então… por mais que eu queira dançar agora… se eu conhecer outro


menino daqui a seis meses,

provavelmente vou mudar de novo?

– Não sei – Rowena disse. – Talvez houvesse uma química única entre você
e Win. Mas eu diria que o

medo da mudança é o medo mais inútil que uma pessoa pode alimentar. As
mudanças vão acontecer, Ariadne.
Lesões. Amores. Mortes. Não existe um momento em que uma pessoa
esteja fixa. É assim, tudo muda.

Sempre muda.

Sabia que deveria lhe agradecer – se importar comigo, por me ensinar,


prestar atenção em mim –, porém,

se abrisse a boca, teria chorado, então voltei para o carro, acenando para
Rowena, desamparada. Ela retribuiu ao aceno.

Saí dirigindo do estacionamento do estúdio sabendo que aquela seria a


última vez.

45. Markos

Toda noite que passava sentado no quintal da frente da casa de Diana,


olhando para a janela do seu quarto no segundo andar, eu descia alguns
degraus para um nível cada vez mais baixo e perturbador. Mesmo assim,

continuava a fazer isso, noite após noite. Se meus irmãos soubessem me


trancariam no quarto para o meu

próprio bem, mas eu não aparecia mais para o café da manhã, assim não
precisava ouvi-los julgar como eu

deveria conduzir a minha vida.

Eu chegava ao quintal de Diana assim que escurecia e ficava lá até pegar no


sono. Normalmente, acordava

antes do amanhecer e ia andando para casa, passava o dia sonâmbulo e


depois fazia tudo de novo. A vigília

não tinha nenhum objetivo claro. Era simplesmente o que eu achava que
devia fazer.

Não achava que estava fazendo uma declaração. Que estava tentando provar
para Diana como a amava ou
coisa do tipo. Não havia esperança de que uma voz viesse sussurrar no seu
ouvido: “Está vendo aquele cara

passando as noites no seu quintal? Ele deve estar falando sério”. Não me
sentia mais sério do que no dia

anterior. Era relaxante, na verdade. O que talvez me faça parecer um


maluco.

Eu me sentava encostado num carvalho, comendo pacotes de salgadinho e


bebendo Gatorade. Na primeira

noite, a mãe de Diana saiu alguns minutos depois que me acomodei. Olhou
para o meu piquenique com

desgosto e então para mim com piedade. Receber a piedade de uma mãe –
os novos níveis de humilhação

chegavam a ser engraçados às vezes.

– Markos, querido? O que está acontecendo?

Considerei não responder, mas a casa era dela e não seria bom que ligasse
para a polícia por minha culpa.

Diana me contara como ela era superprotetora.

– Nada, não.

– Porque acho que a Diana não quer te ver.

– Eu sei. Foi por isso que não toquei a campainha.

– Então… você vai ficar aqui fora?

– Sim.

– Por quê?
“Porque senão corro o risco de nunca mais sair de casa.”

– Vai que ela muda de ideia?

A sra. North concordou.

– Bom, sim, e tomara que ela mude… mas talvez não seja melhor você
esperar que ela telefone? Na sua

casa?

– Prefiro esperar aqui.

Ela fez que sim de novo, depois tirou uma folha da árvore acima da sua
cabeça e a ficou revirando entre os dedos.

– É bonito ver sua dedicação, claro, é só que… parece esforço demais.

Me recostei na casca da árvore e fechei os olhos. Era quase como se ela


estivesse tentando me jogar uma

isca, só que eu estava sob tantas camadas de merda que não me


incomodaria com algo tão idiota.

– Pode fingir que não estou aqui. Não vou incomodar a senhora, a Diana,
nem o senhor North. Só vou ficar

sentado por um tempo.

Depois de um segundo, ela deu de ombros e voltou para a casa, deixando


cair a folha e tirando a sujeira das mãos, como se as lavasse em relação a
mim e aos problemas de Diana.

Ela deveria ter me expulsado.

Por quê?

Porque sou uma ameaça.


Então vai embora.

Mas eu não vou magoar a Diana de novo.

Como você sabe?

Sabendo.

As pessoas se magoam. É isso que elas fazem. Ninguém pode decidir que
não vai magoar alguém de novo.

Só que vou tentar não magoar. Isso já não conta?

É por isso que você está sentado aqui fora? Para provar alguma coisa?

Não. Só não consigo pensar em algo melhor para fazer.

Então… só resta ficar olhando para uma janela.

Pois é.

O que vai acontecer?

Ou ela vai sair e falar comigo…

Improvável.

Ou vou parar de querer ficar aqui. Vou me levantar e deixar de me importar.


Qualquer uma das duas está

bom para mim.

Na noite seguinte, encontrei um cobertor embaixo da árvore, deixado


provavelmente pela mãe de Diana. Ela

era a pessoa que mais cuidara de Diana durante toda a vida. Era um consolo
estranho pensar que essa mesma

pessoa estava cuidando de mim agora.


Embaixo da árvore, enrolado no cobertor, sem nada para fazer além de
pensar, parecia que eu só tinha maus

sinais e más lembranças para repassar e catalogar. Eram os erros que havia
cometido, como beijar Kay, ou as traições que tinha sofrido, como o feitiço
de Ari para esquecer Win, e a mentira de Diana sobre isso. Além disso,
havia as lembranças que eu pensava serem boas, mas que foram
corrompidas: todas as relacionadas a

Win, o que incluía quase minha vida inteira, dos cinco anos de idade em
diante, assim como as recordações

mais recentes com Diana, desde o estacionamento da lanchonete,


continuando para trás, até a festa da

fogueira. Todas estavam corrompidas, quentes demais para se tocar.

Tentei não pensar em nada. Meditar, acho que se pode dizer. No entanto,
minha mente se recusava a ficar

vazia. Não havia um quarto vago para onde fugir.

Só me restava falar sozinho e imaginar um futuro menos terrível do que


aquele ao qual eu estava destinado.

Me imaginei dormindo embaixo da árvore e acordando com Diana deitada


ao meu lado.

Me imaginei entrando na loja de ferragens e encontrando meus irmãos e


minha mãe faxinando o lugar,

organizando tudo em seções com etiquetas claras e corredores que não


davam em becos sem saída.

Me imaginei tendo um grupo diferente de irmãos, que me entendiam como


Win.

Me imaginei pegando no sono e acordando em maio, antes de tudo aquilo


acontecer, e devolvendo o
dinheiro que eu roubara da minha mãe, o que significaria que não teria
comprado nenhum feitiço da jovem

hekamista, não teria passado a última noite na praia e não teria funeral
algum para ir.

Nesse último cenário, nesse milagre de viagem no tempo, me imaginei


insistindo para que Ari levasse Diana

quando a gente saísse. Imaginei que, na época, não era quem sabia que era,
e teria dado uma chance a Diana em vez de estragar tudo com ela – sabe-se
lá como, todos estaríamos felizes.

Até parece.

No resto do tempo, só ficava sentado, olhando.

Na sexta-feira, a quarta noite que passei no quintal de Diana, meu celular


tocou assim que me sentei. Era

Brian. Recostei a cabeça num sulco da árvore e atendi.

– Que foi?

– Markos, onde você está?

– Eu saí.

Ele suspirou. Ouvi o som de telefones tocando e conversas ao fundo. Ele


devia estar no trabalho.

– Cal sumiu.

– O que você quer dizer?

– Quer dizer que não sabemos onde ele está, seu panaca.

– Ele deve voltar de manhã.


– Parece que ninguém o vê desde ontem, antes do jantar. Ele não abriu a
loja. A mãe está ficando louca.

Bati a cabeça contra o tronco da árvore: tum, tum, tum.

– Então o que você quer que eu faça?

– Ajuda o Dev a procurar. Ele está olhando pela praia. Eu saio daqui a uma
hora e encontro vocês.

– Vai você. Você é o policial – eu disse. Sabia que estava agindo como um
babaca, mas não queria deixar

meu posto.

– Desculpa – Brian disse, sem um pingo de sinceridade. – Estou


interrompendo alguma coisa? Está fazendo

uma cirurgia cardíaca? Se for isso, posso ligar depois.

– Se liga, Brian…

– A mãe contou que você está passando a noite toda fora e não fala com ela
quando volta. Ninguém disse

nada, mas talvez devêssemos ter falado. Isso não está legal, Markos. Está na
hora de crescer, porra. De ser um membro da família. Não é nada fofinho se
comportar como um bebê quando você já tem dezoito anos.

Bati a cabeça no tronco com força demais e me contraí.

– Eu tenho dezessete.

– Só faz isso, Markos. Para de ser tão egoísta e ajuda a encontrar seu irmão.
Depois você pode voltar a

fazer seja lá o que for que tinha planejado.


Olhei para a janela de Diana. A luz estava acesa. Se ela espiasse por entre
as cortinas, eu não iria. Se eu visse a sombra dela na parede, não iria. Se as
cortinas se movessem um centímetro sequer, não iria.

– Markos? Está me ouvindo?

Fiquei observando a janela na maior expectativa. Torcendo.

No entanto, a cortina não se mexeu, e não vi o rosto dela em momento


algum.

– Está bem – eu disse, e desliguei.

Tentei não olhar para a janela de Diana enquanto ia embora, mas não pude
deixar de imaginar que, pelo

canto do olho, tinha visto a cortina se contorcer. É óbvio que, quando parei
na entrada para a garagem e olhei para trás, não havia ninguém lá.

46. Kay

Quando não consegui mais me conter e tentei falar com Diana e Ari na
noite de sexta, Ari se recusou a falar comigo por mais de alguns segundos e
Diana nem atendeu o telefone. Deixei uma mensagem após outra, mas

ela não respondeu.

“Ei, é a Kay. Só estou ligando para… sabe? Vamos conversar.”

“Diana, é a Kay. Estava pensando em você. Me liga.”

“A gente não precisa sair. Você não precisa falar comigo. Só me manda uma
mensagem dizendo que está

tudo bem.”

“Eu de novo. Me liga.”

“Liga para mim.”


“Me liga quando receber esta mensagem.”

Ari não ajudou muito. Seu suspiro soou alto e claro pelo telefone.

– Não quero falar com você, Kay.

– Mas Diana…

– Ela também não deve estar querendo falar com você.

– Ela precisa falar. A cada três dias. E se ela tentou sair da cidade e alguma
coisa aconteceu com ela? E se ela se machucou e não conseguiu vir me ver?

– É mais provável que esteja puta com você – Ari disse. – Talvez você
devesse respeitar a decisão dela.

– Você não entende… ela não tem escolha.

Houve uma longa pausa do outro lado da linha. Eu podia notar o efeito das
minhas palavras – elas soavam

mal, mas nem por isso eram menos verdadeiras.

– Você falou com ela? – perguntei.

Houve outra pausa comedida, porém diferente.

– Não. As coisas andam… estranhas. Caso você não tenha notado.

– Então você não sabe – eu disse, quase aos berros. – Você não sabe se ela
está bem ou não! Não sabe e

não quer saber o que aconteceu com ela!

A voz de Ari ficou fria.

– Não é verdade.
– Então liga pra Diana. Por favor! Eu entendo que ela esteja me ignorando,
mas você ela vai atender…

– Não sou sua menina de recados.

– Mas só quero saber se ela está bem! Ari? Alô? Está me ouvindo?

Ela tinha desligado na minha cara.

Mina entrara enquanto eu conversava com Ari e ficara ali assistindo.


Estávamos na cozinha escura, em volta do balcão central de granito. Nossos
pais tinham saído para jantar, então havia quatro notas intocadas de vinte
dólares no balcão, que deveríamos usar para pedir comida. Típico exagero
dos dois.

– Que foi? – perguntei.

– Nada.

– Se quer gritar comigo, grita. Não fica aí parada me julgando.

– Talvez você devesse deixar as duas em paz.

Fiz sinal para ela me deixar quieta.

– Não posso.

– Parece que a Diana não quer falar com você.

– Ela precisa falar comigo.

– Deve ser difícil para ela. Nem eu quero falar direito com você, e olha que
você é minha irmã.

– Então não fala! – retruquei. – Para de fingir que se importa e me deixa em


paz.

– Eu me importo – ela disse.


– Até parece.

– Não acredito que você tenha dado esse feitiço para elas. No que você
estava pensando, Kay?

Apesar de tudo o que tinha acontecido e do fato de eu realmente não me


importar mais com o que ela

pensava, senti uma pontada no coração.

– Não é tão diferente do meu feitiço de beleza. Assim não preciso ficar
sozinha.

– Você tomou um feitiço de beleza?

Revirei os olhos. Ela só podia estar de brincadeira.

– Escrevi para você e te contei. É claro que você devia estar ocupada
demais para notar.

Ela abanou a cabeça.

– Você nunca me contou isso.

– Contei sim! Que foi, você acha que acordei linda da noite para o dia?

– Você sempre foi bonita – ela disse.

– Não seja idiota.

– Você é minha irmãzinha fofa. Todo mundo amaria você depois que a
conhecesse melhor.

– Você está prestando atenção? Não sou mais a Katelyn fofinha. Sou a vilã
da história. Eu magoo as

pessoas. Sou a destruidora de lares.


Mina descruzou os braços e contornou o balcão para chegar mais perto de
mim. Dei um passo para trás.

– Você não é a vilã da história.

– Jura? Se sou tão legal assim, por que você me abandonou?

Todo o ar sumiu da sala. Mina não disse nada.

– Você me usava enquanto estava doente – acusei. Minha voz saiu dura
como o pedaço de aço que cortava

a sobrancelha de Mina. – Eu era útil. Mas, agora que você está bem, quem
se importa com a idiota da Katelyn feiosa e sem amigos?

Mina apertou o braço esquerdo com a mão direita. Era onde ficava a
intravenosa. Antigamente, ele vivia tão dolorido que, sempre que ela o batia
por acidente em algum lugar, soltava um berro.

– Não foi isso que aconteceu – ela disse.

– Mentira. Foi sim. Você ficou melhor e mal conseguiu esperar para dar o
fora daqui. Para mudar completamente. – Sabia que deveria respirar para
me acalmar, mas já me sentia cheia de ar. Precisava soltar mais. – Então eu
também mudei. Mudei meu rosto. Encontrei amigas. Amigas que não me
abandonariam num

piscar de olhos, que não teriam como me abandonar.

Disquei o número de Diana de novo, murmurando baixo:

– Atende, atende. – Mina me deixou sozinha na cozinha e saiu pela porta


dos fundos da casa. Ela deu

partida no carro e foi embora antes que eu pudesse correr até a janela.
“Dane-se”, pensei, “vai embora.” Eu não precisava que ela me distraísse.

“Oi, Diana, é a Kay. Olha... estou… preocupada com você. Por favor, me
liga… tá?”
Tantas coisas poderiam ter acontecido. Um resfriado súbito, um passo em
falso. Deixar o gás ligado ou

derrubar o secador de cabelo no vaso. Diana poderia ter atravessado a rua


sem olhar ou ter entrado numa

briga com uma desconhecida sem saber por quê.

Tudo porque eu a tinha afastado de mim.

47. Ari

O celular de Diana caía direto na caixa postal. A sra. North atendeu o


telefone fixo.

– A senhora pode me dizer onde Diana está? – perguntei. Era sexta-feira,


logo depois do anoitecer, e eu

estava em pé na cozinha, olhando para a janela dos fundos, como se Diana


pudesse sair do quintal dos

vizinhos.

– Ah, Ari... Acho que ela não gostaria que eu te contasse.

– Mas a senhora sabe onde ela está?

– Ela precisa de um tempo. Você entende.

– Sra. North – insisti, tentando falar mais devagar, articulando bem as


palavras. – A senhora me conhece

desde pequenininha. Pode, por favor, me dizer aonde Diana foi?

Houve uma pausa do outro lado da linha.

– Acho que ela foi procurar o Markos.


– Markos? – perguntei. Quase ri de tanta surpresa, embora não fosse
engraçado. – Por que diabos ela faria

isso?

– Bom… acho que ela perdoou o menino.

Não. Diana não era tão idiota assim. Markos tinha beijado Kay e partido o
coração dela.

– É impossível.

– Markos tem se esforçado muito para merecer o perdão dela. Nem todo
mundo faria isso.

Senti uma leve repreensão na voz dela, embora seu tom se mantivesse
calmo.

– Nem todo mundo beijaria outra pessoa e cortaria todo o contato com ela
também.

Houve uma pausa e a voz da sra. North esfriou.

– Quer que eu fale com a sua tia?

– Eu estou bem – disse. – Obrigada por me contar sobre Markos.

– Conversa com a Diana amanhã. Tenho certeza de que vocês vão conseguir
se entender.

Joguei o telefone no balcão da cozinha. Da sala, Jess gritou:

– Está tudo bem aí?

Eu respondi:

– Sim, claro! – Falei em um tom tão falso que parecia uma idiota.
– Eu e sua mãe vivíamos brigando assim – Jess disse, entrando na cozinha.
– Ela era a irmã mais velha

descolada. Nunca queria que saíssemos juntas.

– Não foi isso que aconteceu comigo e com Diana – eu disse.

– Eu sei que não. Era você que costumava sair e deixar Diana sozinha em
casa. Agora parece que o jogo virou, não é mesmo? – Jess sorriu. – Quando
Katie teve você, passei a ser a descolada, paquerando todas as meninas,
ligando para ela no meio da noite. Foi tão diferente para mim que posso ter
esfregado um pouco na cara dela. Diana deve estar fazendo o mesmo.

A pergunta que eu queria fazer – “Por que você está escolhendo este exato
momento para começar a se

lembrar da minha falecida mãe, sendo que passamos os últimos nove anos
fingindo que ela nunca existiu?” –

foi substituída por uma completamente diferente:

– Jess, como Win me fez deixar Diana para lá e querer parar de dançar?

Jess pareceu surpresa por um minuto, como se tivesse se esquecido do meu


feitiço – ou talvez nem

soubesse das mudanças pelas quais a antiga Ari passara.

– Ninguém nunca fez você fazer nada, Ari.

Isso não respondia à minha pergunta.

Peguei o telefone e liguei para Markos.

48. Markos

Cal não estava na praia, na academia, nem em alguma das lojas da avenida
principal. Dev já tinha verificado a loja de ferragens e as casas dos amigos
de Cal. Ele fazia piadas enquanto entrávamos e saíamos de cafés,
bares e bancos, mas, quando escureceu e Brian se juntou a nós, paramos de
brincar. Ao olhar para eles, não dava para saber se estavam realmente
preocupados ou se só estavam fingindo.

Eu estava preocupado com Cal – claro. Não sou nenhum tipo de monstro.
Não tão preocupado a ponto de

pirar e começar a entregar panfletos no ponto de ônibus, mas ele era meu
irmão – o mais legal deles. Aquele que nossa mãe vinha enfeitiçando. Ele
estava doente na última vez em que o vira, dias antes, e minha teoria era de
que devia ter desmaiado em algum lugar.

Só que eu precisava ser idiota para não notar que eles nunca montaram
equipes de busca por mim enquanto

eu ia à casa de Diana. Eles me deixaram desaparecer. Isso diminuiu minha


preocupação, me fez me afastar

enquanto me puxavam de volta para a família.

Brian nos guiou pela cidade, por becos e ruas paralelas que eu nunca teria
pensado em explorar, mas que ele parecia conhecer muito bem. Mendigos
com sacos de papel, trombadinhas, pessoas visivelmente ferradas pelo

álcool, pelas drogas ou por feitiços. Havia toda uma segunda cidade obscura
por baixo daquela que eu

conhecia. Todo mundo sabia quem Brian era, ninguém tinha visto Cal.

Recebi a ligação de Ari enquanto checávamos o último bar imundo e


começamos a nos dirigir para a viatura

de Brian no fim do quarteirão. Deixei tocar até que fosse para a caixa
postal, então passou a tocar de novo.

Eu odiava Ari. Nunca mais queria falar com ela. Ela tinha ferrado com o
meu melhor amigo.

Só que meu melhor amigo a amava.


Ela que vá para o inferno.

Não fala assim.

Beleza, então. Me diz o que fazer.

Vê por que ela está ligando, pelo menos.

Mas ela é horrível.

Não é. Você sabe disso.

Mas eu ainda estou com raiva.

Pode ficar com raiva. Mas perdoa a Ari.

E se eu não conseguir?

Você consegue.

E se eu não quiser?

Cala a boca e faz a coisa certa, panaca.

– O que você quer? – perguntei.

– Você está na loja? – ela indagou. Sua voz parecia mais aguda do que de
costume.

– Não. Por quê?

– A bicicleta da Diana está aqui. Ela não atende o telefone. Mas a porta está
fechada, então não sei como ela entrou. Também não sei por que entraria se
não fosse para te encontrar.

Parei de andar, deixando Brian e Dev entrarem no carro sem mim.

– Diana não está em casa?


– Não, ela saiu para te procurar, pelo que a mãe dela disse.

Dava para notar pelo seu tom de voz que ela achava que me procurar era a
coisa mais idiota que Diana

poderia ter feito na vida. E, por um segundo, concordei com ela: o trato era
que Diana ficaria parada,

enquanto eu sentaria e esperaria por ela.

Só que eu tinha abandonado meu posto, por isso ela tinha abandonado o
dela também. Ela não entendia.

Será que achava que a minha presença no seu quintal era o mesmo que
procurar por mim?

Brian, então, apertou a buzina para eu entrar no carro, e entendi por que
estava indo à casa da Diana de uma forma como nunca entendera antes. Eu
não achava que ela me perdoaria, nem estava me penitenciando. Era

minha versão do GPS de Diana: enquanto eu soubesse do seu paradeiro, não


estaria completamente perdida

para mim. A verdade é que eu sabia onde estava: do lado dela.

Só que agora ela estava perdida. E eu também.

49. Kay

Não peguei no sono. Deitei na cama com o celular no peito, esperando que
Diana ligasse e me avisasse se

estava bem – desejando que ela se salvasse, se fosse capaz. Fiquei olhando
o quarto escurecer e as luzes dos carros que passavam iluminando o teto por
horas. Mesmo assim, ela não ligou. Me perguntei se a amarração

era capaz de matá-la por acidente na tentativa de mantê-la perto de mim.


É um instrumento inofensivo, me lembrei. Mantém as pessoas por perto e
nada além disso. Talvez não

fosse capaz de se regular em detalhes suficientes para parar de empurrar as


pessoas na minha direção antes que fosse tarde demais.

Depois da meia-noite, ouvi o carro de Mina estacionar. Alguns minutos a


seguir, ela entrou no meu quarto

na ponta dos pés e se sentou à beira da minha cama.

– Ela ligou? – perguntou.

Fiz que não.

– Também não tive sorte. Fui a todos os bares e lanchonetes num raio de
trinta quilômetros.

– Você saiu atrás dela?

– Dei uma olhada nas praias também, mas ninguém viu uma adolescente de
cabelo supervermelho.

– Por que você…

– Você estava preocupada. Quis ajudar.

Me virei de lado e deitei em posição fetal.

– Ela deve ter se machucado ou ter ficado presa em algum lugar. Não
consegue entrar em contato comigo.

Senão o feitiço funcionaria. Sempre funciona.

Mina pegou um tufo do cobertor.

– Eu não a conheço muito bem. Mas ela parece… uma menina normal.

– O que isso quer dizer?


– Você realmente achou que um feitiço era o único jeito de ficar amiga
dela?

Coloquei o celular sobre o coração, deixando que ele me esquentasse.

– Se minha própria irmã quis se afastar de mim, por que outras pessoas
ficariam?

– Katelyn... – Ela puxou meu cobertor e esperou até que eu olhasse nos seus
olhos antes de continuar. –

Quando tentei fugir?

– Assim que ficou melhor, você foi embora. Mochilando pelo mundo sem
mim. A gente vivia conversando

sobre viajar juntas, porém acho que era conversa de alguém à beira da
morte, e não uma promessa de

verdade.

– Você tinha aula.

– Você também. Mas você faltou. O plano todo mudou. Olha só para você.

Ela mordeu o piercing do lábio e se remexeu com sua camiseta cheia de


alfinetes.

– Quando descobrimos que o câncer estava em remissão… Sim, você tem


razão, de certa forma. Achei

que as regras tinham mudado para que eu pudesse viver. – Ela franziu a
testa, relembrando. – Precisava

aproveitar aquela chance. Pela primeira vez em anos, não estava morrendo.
Você não sabe…

– Não, eu entendo. Não sei como é difícil ficar doente e tudo mais. –
Respirei fundo e sussurrei: – Queria que você ficasse melhor, Mina. Era
tudo o que eu queria. Durante anos. A mãe e o pai passaram todo o tempo
deles com você, e eu também, porque te amava. – Tentei respirar de novo,
mas não consegui por causa do

catarro que escorria pelo meu nariz. – Não deveria ter esses sentimentos
egoístas. Mas tenho. É por isso que sou horrível, como te falei.

– Vou continuar sendo sua melhor amiga, por mais horrível que você seja.

Sabe quando alguém diz algo muito doce e sincero, e você sabe que é
verdade, que ela não tem razão para

mentir, contudo, em vez de ficar animada, fica se contorcendo, amargurada,


a ponto de aquilo ser

insuportável?

Mina fez isso. Eu deveria estar feliz porque minha irmã se dava ao trabalho
de ficar comigo – isso poderia ter apagado os dois últimos anos ou, pelo
menos, tê-los tornado um pouco menos terríveis.

No entanto, Diana estava lá fora em algum lugar, sofrendo, por minha


culpa. Isso sem mencionar Ari e Cal

– todos corriam perigo. Por algo que eu fizera com eles.

Acho que nem mesmo Mina iria querer ser minha amiga se eu fosse
responsável por Diana se ferir. Ou

morrer.

Ou talvez ela ficasse do meu lado, sempre compreensiva, sempre leal – mas
não queria ser alguém que ela

tivesse de perdoar a cada segundo, todos os dias. Queria ser melhor do que
isso. Ser digna. Alguém ao lado de quem ela tivesse orgulho de ficar para o
resto da nossa vida.
Meu telefone tocou. Era uma mensagem. Sabia que não era Diana, e sabia o
que iria fazer antes mesmo de

lê-la. Era Ari:

Vem p loja de ferragens AGORA.

Mina leu por sobre meu ombro.

– Preciso de uma carona – eu disse.

– Me deixa adivinhar…

Abanei a cabeça.

– Preciso passar num lugar antes.

Mina fez que sim e segurou minha mão.

Daria tudo certo. Eu consertaria o que a amarração se quebrara.

50. Markos

Deixei meus irmãos e fui correndo para a loja de ferragens, o que não foi
fácil depois de duas semanas à base de salgadinho e cerveja. Quando
cheguei lá, era oficialmente o meio da noite e a rua estava deserta, as lojas
todas escuras e fechadas. Dava para ouvir o mar batendo na areia a alguns
quarteirões dali. Ari se levantou de onde estava sentada, no batente da loja.
Ela tropeçou e quase caiu, recuperando o equilíbrio com uma mão no

“WA” do letreiro “WATERS” na porta de vidro.

Achei que ficaria furioso ao vê-la novamente, mas senti alívio. Por um
segundo, não tinha importância que

ela tivesse esquecido Win – ela se preocupava com Diana tanto quanto eu.
Já era alguma coisa.

– Você está um lixo – ela disse, com a voz embargada.


– Valeu. Não quer levar outro tombo?

– É bem provável que eu leve. Caio mais do que um maldito anjo hoje em
dia.

Tirei as chaves do bolso e fiz sinal para ela sair da frente da porta.

– Você acha mesmo que a Diana está aqui? – perguntei.

– Não custa dar uma olhada.

Com a ajuda de um tijolo, puxei a porta para cima.

– Dev passou neste ponto algumas horas atrás quando estávamos


procurando Cal e falou que a loja estava

vazia.

Ari piscou algumas vezes.

– Cal sumiu também?– Não consegui ver sua expressão no escuro. Ia


responder, mas ela estendeu o braço

e segurou o meu com força. – Está sentindo esse cheiro? – perguntou, e


logo em seguida notei: um cheiro

seco e forte de substâncias químicas vindo do interior da loja.

Nada bom.

– Diana! – gritei assim que passamos pela porta da loja. O cheiro estava
mais forte do lado de dentro e

havia alguma coisa no ar, algo que se prendia na garganta e nos fazia tossir
como se tivéssemos fumado uns cinquenta cigarros. – Diana, você está
aqui?

Ari se manteve na minha cola. Sabia que ela não gostava da loja e, pela
primeira vez, achei compreensível: o lugar parecia ameaçador no escuro da
noite, com os corredores irregulares se assombrando à nossa volta,

formas estranhas se materializando na escuridão e aquele cheiro de fumaça


no ar. Caminhamos o mais rápido

possível, de um lado para o outro dos corredores, chamando Diana.

– Então vocês não encontraram Cal? – Ari perguntou.

– Não. Não sei o que está acontecendo com ele. Descobri que a minha mãe
paga para uma velha hekamista

enfeitiçá-lo todo mês… faz anos que ela paga seis mil dólares mensalmente.

– Seis mil dólares! – Os olhos de Ari se arregalaram. – Nunca vi ninguém


pagar tanto por um feitiço permanente. E isso todo mês... Para quê?

Não tinha me tocado de que era tão caro. O único feitiço que comprara fora
aquele da última noite de Win.

– Ele não pode ferir ninguém. Não conseguiu me bater. Mas, se é tanto
dinheiro, talvez seja para outra coisa também.

– Hum... Que esquisito! Porque o feitiço da Kay…

Eu me contraí.

– Por favor, a gente pode não falar da Kay?

Ari ficou em silêncio, pensando, e chegamos ao fim de outro corredor


quando voltou a falar.

– Ei, posso te perguntar…? – ela suspirou, frustrada. Nunca a tinha ouvido


pedir permissão para fazer uma

pergunta antes, então me preparei para o que pudesse ser. – Você gosta
mesmo da Diana?

Mantive o olhar fixo à frente.


– Estou apaixonado por ela – respondi.

Ela não disse nada por mais alguns passos. Depois, tropeçou numa
mangueira de jardinagem solta e gritou.

– Desculpa – disse.

Uma tristeza pesada se abriu no meu peito e martelou meu coração.

– Quero dizer, por tudo. Desculpa mesmo.

– Sim, eu entendi.

Ela não estava perdoada. Não ainda. Mas agora era mais fácil ficar perto
dela. Se eu bloqueasse uma parte

do cérebro, poderia acreditar que eu e Ari éramos amigos de novo, como


antigamente. Se não olhasse para a

esquerda, poderia imaginar Win ao nosso lado, como um membro


silencioso do grupo.

Vimos um círculo de luz em torno da porta quase escondida da oficina. Ari


também viu e agarrou meu

braço.

– Diana? – gritei. – Você está aí atrás?

Abri a porta com a mão livre e ela queimou minha pele. A oficina estava
tão clara que precisei piscar

algumas vezes para enxergar. Não eram só as luzes fluorescentes, mas parte
das latas de lixo perto das

paredes estavam em chamas.

– Merda, precisamos sair daqui! – eu disse, recuando da porta. Não


demoraria muito tempo para o resto da
oficina pegar fogo, depois a loja toda: nós ficaríamos presos ali.

Atrás de mim, Ari inspirou fundo e me ultrapassou, correndo direto para a


oficina em chamas. Quase a

chamei de idiota, mas então percebi o que ela vira: Diana, atrás da grade
onde costumávamos deixar a solda.

Meu coração martelou contra as costelas, “não não não não não não não”, e
as prateleiras de madeira, as

ferramentas e o fogo se cerraram sobre mim.

Quando Diana nos avistou, ficou em pé e começou a chorar e falar ao


mesmo tempo. Só que não conseguia

ouvir nada do que ela estava dizendo por causa do barulho ensurdecedor.

Corri pela oficina, trôpego, agarrei a grade e a chacoalhei – na verdade, foi


meio que uma surpresa quando ela não se desfez nas minhas mãos. A
chave, a chave, a chave, a chave – eu sabia onde ela estava, num

gancho ao lado da porta da oficina. Precisava pegá-la a fim de abrir a grade


para que Diana…

Diana chorava. Ari pressionou as mãos pelos buracos da grade, tentando


encostar nela.

– Estava procurando você – Diana disse para mim. – Você não estava
embaixo da árvore. Saí para te

procurar.

Me lancei para a porta onde sabia que estaria a chave. As latas de refugo
queimavam, e pude ver onde a ponta de uma pilha de tábuas de madeira
começava a ficar preta e esfumaçada. Escorreguei em alguma coisa

no chão – tíner? Álcool? Os ladrilhos todos cintilavam –, alguém tinha


coberto o lugar com aquele líquido.
Na porta, tentei tirar a chave do gancho, mesmo vendo claramente que ela
não estava ali. Alguém a tinha

pegado.

Eu ficava repetindo “alguém” na minha cabeça, porém só havia uma pessoa


capaz de ter feito aquilo, de ter

entrado na loja de ferragens depois da inspeção de Dev, de saber onde a


chave estava, de ter trancado Diana lá dentro e botado fogo na oficina – por
mais que não conseguisse imaginar o porquê e não quisesse acreditar.

Havia um quadro com ferramentas penduradas à minha esquerda. O fogo


lambia a base do quadro, mas ele

ainda não estava em chamas. (Logo mais estaria. O lugar todo estaria. Com
Diana trancada na jaula.) Respirei fundo, tossindo com a fumaça, e tirei um
pé de cabra do quadro.

Ele estava incandescente e queimou minha mão. Eu gritei e o deixei cair,


depois usei a camiseta enrolada em volta da mão esquerda a fim de levá-lo
de volta até Diana.

Ela estava atrás da grade me observando, com lágrimas descendo pelo


rosto.

Ela não me odiava. Que bom!

Eu estava respirando rápido demais. Raspas de madeira, tíner e alguma


coisa como enxofre enchiam

minhas narinas. Não havia ar suficiente. Enfiei o pé de cabra no cadeado –


mas a ferramenta escapou da

minha mão e caiu com estrondo no chão. Me abaixei para pegá-la de novo –
mal conseguia tirar os olhos de

Diana por um segundo – quando Ari gritou e me virei.


Cal estava parado no batente da oficina. Ele segurava seu isqueiro prateado
numa mão e um frasco de tíner

na outra.

– Me dá a chave! – gritei. Era difícil ouvir minhas próprias palavras, e eu


achava que o problema não era só comigo. As chamas tinham ficado mais
barulhentas e o calor, mais intenso.

Cal começou a andar na nossa direção, então olhei para Diana.

– Está tudo bem, está tudo bem, vamos tirar você…

– Markos, não… você precisa dar o fora daqui…

– Não vou sair sem você.

Cal parou a alguns metros de distância e colocou a lata no chão. Ele não
disse nada. Não prestei muita

atenção no seu rosto – havia algo estranho em seus olhos –, e não me


permiti pensar em nada além de que ele tinha a chave.

– Rápido, rápido! A chave!

– Não estou mais sob o feitiço – Cal disse.

Diana inspirou, e me virei para olhar para ela. Assim, não vi Cal pegar o pé
de cabra que eu tinha deixado cair e erguê-lo para me atacar. Não vi nada
além dos olhos arregalados de Diana em pânico, antes de sentir dor e de o
mundo todo escurecer.

51. Ari

– Cal, não! – gritei, mas ele já tinha partido para cima do irmão. O pé de
cabra acertou a cabeça de Markos com toda a força e ele desmaiou. Cal
deixou a ferramenta cair e cobriu os olhos com as duas mãos. O corpo
de Markos estava imóvel no chão, então Diana se ajoelhou atrás da grade,
chamando-o baixinho. Focos de

incêndio lambiam as estantes de madeira e as paredes.

– Por que você fez isso? – perguntei.

– Porque não podia fazer antes – Cal disse, com as mãos no rosto. – E é por
culpa dele que consigo

lembrar. – Ele falou essas palavras como se tivessem um gosto ruim.

Meu coração parecia estranhamente leve, subindo pela garganta, e a oficina


balançava enquanto eu tentava

respirar normalmente, apesar da fumaça. Havia alguma coisa muito errada


com Cal. Só que o mais importante

era que eu precisava abrir a grade e tirar Diana e Markos dali antes que o
fogo se espalhasse.

– Cal… a chave… – eu disse, mantendo os olhos fixos no pé de cabra caso


ele viesse atrás de mim em

seguida.

Cal olhou para mim.

Seus olhos…

Ele era muito parecido com Markos, mas estava destroçado. Como se, atrás
do olhar, um animal

encurralado, e não uma pessoa, estivesse espiando.

Ele tentou respirar fundo, porém o ar ficou preso na sua garganta, e ele
engasgou.
– Sentia muita raiva – ele disse. Não dava nem para ver se sabia quem eu
era ou se entendia o que ele

próprio estava dizendo. – Raiva por causa do meu pai, de tudo… mas faz
nove anos que não sinto raiva. – Ele piscou, e o bicho selvagem que se
instalara dentro dele se remexeu, chegando ao seu rosto, com pura fúria e
cegueira. – Sabe o que é isso? Não sentir nenhuma emoção? Não ser capaz
de respirar, mas também não

conseguir se recordar de como é respirar. E agora eu consigo, só que é…


demais. Você entende?

Não tentei responder. Alguma coisa na parede chamou sua atenção – o


monitor de segurança, com suas

dezenas de ângulos da câmera pela loja. A maioria estava escura, só que a


vista da porta tinha iluminação

suficiente da rua para identificar duas pessoas entrando pela porta aberta.
Uma delas usava um casaco longo e tinha cabelo curto.

Cal emitiu um rugido, algo entre um grito e um choro, e saiu correndo da


oficina em chamas.

– Ari! – Diana disse. – O incêndio.

Entrei em ação, pegando um pano pesado debaixo de uma das máquinas e


usando-o para abafar o fogo –

das tábuas de madeira e das pilhas de refugo. As chamas ainda não tinham
se unido numa única fogueira.

Sentia frio até, mas imaginei que fosse por algum tipo de choque. O suor
gelava minha pele como cacos de gelo.

Levei um segundo para perceber que, enquanto corria de chama em chama,


Diana continuava dizendo meu

nome.
– Não… Ari... Não... – ela dizia. Estava ajoelhada atrás da grade, o mais
perto de Markos que conseguia

chegar, só que olhava para mim com a expressão mais triste que eu já tinha
visto.

– Não se preocupa – falei. – Nós vamos sair daqui. Echo chegou agora. Ela
vai nos encontrar. Está tudo

bem.

– Não, Ari. O incêndio. Não este incêndio.

– O incêndio? – O único outro incêndio em que eu conseguia pensar era


aquele que queimara minha casa

quando eu tinha oito anos. Diana nunca havia falado dele. Nós nunca
falávamos dele. Era coisa do passado.

– Vim aqui para tentar achar o Markos – Diana disse. – A porta estava
aberta, então entrei. Dava para sentir o cheiro de querosene, óleo ou seja lá
o que for… Vim até aqui atrás… Cal estava encharcando o lugar. Tentei
fazer com que ele parasse, ele ficou maluco. Me prendeu aqui.

Levei a mão ao peito, empurrando meu coração acelerado de volta à caixa


torácica. Queria poder arrancá-

lo.

– Por um momento, achei que fosse a amarração de Kay que o fazia agir
daquele jeito esquisito. Mas, se

fosse a amarração, ela teria nos levado a Kay, e ele estava nos mantendo
afastadas. Então achei que… o único jeito de interferir com uma amarração
é outro feitiço, não é? Ele devia ter outros feitiços.

– Sim – falei. – Markos contou que ele está tomando feitiços há anos.

Diana ficou quieta. Eu tentei pensar.


Os feitiços das hekamistas costumavam ser temporários, para fazer as
pessoas voltarem mês após mês.

Você paga um pouquinho regularmente, num fluxo constante. Markos tinha


me dito que a mãe dele vinha

pagando pelos feitiços de Cal havia anos – mas uma enorme pilha de
dinheiro mensalmente, não um

pouquinho.

Nove anos, Cal falara. Nove anos desde que ele sentira raiva pela última
vez.

Eu estava perto de entender algo maior que eu. Puxei o cabelo e apertei os
olhos.

Nove anos. Então ele tinha onze quando aquilo começara. Era apenas uma
criança. Tentei lembrar como ele

era na época. Quando tinha onze anos, eu tinha sete.

Ele devia ter entrado em algumas brigas na escola. Ter se metido em


confusões por causa das peças que

pregava. Grande coisa. Nada que fizesse por merecer um feitiço


antiviolência, nada que precisasse esquecer.

Não era como se tivesse matado alguém.

Levei a mão ao rosto.

O chão se abriu sob os meus pés, mas, se olhasse para baixo, não cairia.

Não.

– A chave – me ouvi dizer para Diana. – Preciso pegar a chave com…

Não consegui dizer o nome dele.


Um grande barril de restos de madeira continuava ardendo, porém o resto
só soltava fumaça. Eu podia sair

da oficina e encontrá-lo – descobrir se aquela terrível suspeita era


verdadeira.

Corri até a porta. No caminho, tropecei, caindo de joelhos no chão.

Nas aulas, antes de Rowena chegar, costumávamos tirar sarro das meninas
cheias de hematomas nos joelhos, nas canelas e nos quadris. As bailarinas
não podiam topar em mesas ou tropeçar em degraus. Às

vezes, ganhávamos machucados por certos movimentos ou por sermos


derrubadas num pas de deux, mas

não era a mesma coisa. Aquilo eram medalhas de honra. Havia uma
diferença entre hematomas comuns, sem

sentido e evitáveis, e cicatrizes de batalha.

Desde que eu tomara o feitiço de memória, tinha me tornado uma pessoa


comum coberta de hematomas.

Havia pensado que os hematomas eram um erro e que, se tudo voltasse a


dar certo, minha pele ficaria tão

suave e macia como a da bailarina que eu imaginava ser.

Mas não… agora aqueles machucados eram minhas cicatrizes de batalha.


Eu tinha feito por merecê-los.

Meu exterior combinava com meu interior, nada suave e macio.

Um segundo antes de me levantar, pensei que o melhor a fazer seria ficar


exatamente onde estava e esperar

que Echo nos encontrasse – outra pessoa poderia ser a heroína e salvar todo
mundo. Depois, no dia seguinte, se eu ainda estivesse viva, poderia ir a uma
hekamista com os últimos centavos das minhas economias da
sorveteria e do dinheiro do seguro de vida dos meus pais – todos os fundos
da mudança para Nova York – e

pedir para que ela arrancasse essa lembrança da minha mente. Cal Waters.
O crime terrível que ele cometera.

O segredo que sua mãe e a mãe de Echo mantiveram por anos. Markos
caído no chão. Diana sussurrando seu

nome sem parar. O cheiro de fogo, tíner e óleo. Aproveitaria até para apagar
Kay.

Eu não queria saber a verdade.

O único problema era que, se apagasse tudo, quem sabe em quem eu me


tornaria então e o que poderia

desejar?

Meus malditos feitiços. Eles me apagavam camada por camada. Tinham


arrancado a morte dos meus pais e

enchido esse espaço com o balé. Arrancado Win, e a necessidade de dançar


voltara com toda a força. Que

outros desejos profundos, mas já esquecidos, estavam sob eles?

Eu penetrava cada vez mais em meu interior, descartando desejos como


roupas velhas. No fim, devia haver

um ponto em que não quisesse nada.

Mas ainda não tinha chegado a esse ponto.

52. Markos

Enquanto estava apagado no chão da oficina, não sonhei. Mas também não
fiquei na mais completa escuridão.
Flutuei para dentro e para fora do meu corpo em ondas. Dentro – dor,
pânico. Fora – dormência, vazio.

Dentro e fora. Entre esses momentos, tomadas de fôlego e batidas


cardíacas, uma de cada vez, eu sabia onde estava e o que havia acontecido.

Sabia o que era o cheiro da oficina, de madeira, óleo e carvão, e que algo
crepitava ardentemente.

Sabia que estava numa fria. Que todos estávamos.

Sabia que Ari estava ferida e imóvel, mas também que ela iria se levantar
alguma hora e que continuaria em frente, porque ela nunca deixaria Diana e
eu presos ali à mercê do fogo.

Sabia que Ari era minha amiga.

Sabia o que Cal tinha feito.

Eu conhecia a história. O pai de Ari a tinha tirado da casa em chamas,


depois voltara para buscar a mãe

dela, que desmaiara por causa da fumaça. Então, a casa caíra em cima deles.
A pessoa que iniciara o incêndio não era um mendigo nem um ladrão, como
todos tínhamos imaginado, não era alguém aleatório e sem rosto.

A pessoa que havia feito aquilo era alguém que eu conhecia desde que
nasci. Um dos meus irmãos mais

velhos, que eu idolatrava. Um dos irmãos Waters, o que significava alguma


coisa.

Também sabia que não estava morto porque não via Win nem meu pai em
algum tipo de visão mística me

chamando para caminhar em direção à luz.

Eu precisava levantar.
Levanta, levanta, levanta, levanta!

Não consigo.

Para de ser tão infantil. Você sabe o que o seu irmão vai fazer agora?

Não.

Então o que você está fazendo para se preparar?

Estou deitado aqui. Esperando.

Puxa, parece um plano e tanto...

Não é escolha minha.

Mas e Diana?

O que tem ela?

Você vai ficar deitado enquanto ela precisa de você?

Diana.

Sim, Diana. Você é apaixonado por ela. Lembra?

Claro. Sim. Preciso levantar. Preciso salvar Diana.

Bom, você não consegue.

Ah, vai se foder. Eu preciso.

Algumas coisas simplesmente não são possíveis.

Ela precisa de mim! Preciso levantar!

Desculpa, Markos.

Naqueles momentos passageiros, a parte de mim que não estava lutando


contra o meu corpo inerte achou
que aquele era o fim, o pior que poderia acontecer. Cal tinha me
nocauteado. Agora alguém ia aparecer, levá-lo embora e cuidar de nós. Tive
quase certeza de que o que ele tinha feito no passado fora o pior de tudo;
que revelar aquilo tudo seria bom, afinal; que um dia superaríamos aquilo.

Eu estava errado.

53. Kay

Echo e eu entramos direto pela porta aberta da loja de ferragens. Mina ficou
esperando no carro, eu tinha

prometido que seria só um minuto.

Segui Echo pelos corredores escuros. Ela não teria conseguido me seguir.
Para uma hekamista, esse era o

significado de “equilibrar”, o que Echo tinha me dito que aconteceria


quando eu e Mina fomos à sua casa atrás do feitiço. Ela colocara uma
camada sobre a minha amarração, não para quebrá-la, mas para rebater seus

efeitos. Não havia nada onde a amarração pudesse se amarrar. Se alguém


realmente me amasse, se

conseguisse me olhar com atenção e reconhecesse o meu verdadeiro eu,


poderia me ver – não tinha

exatamente desaparecido –, mas, para todos os outros, tinha virado parte do


pano de fundo. Era invisível, só que não num sentido legal de super-heroína
– mais como um daqueles pesadelos em que gritamos e acenamos

e ninguém nos nota.

Pior do que isso era a sensação. Os efeitos colaterais desse novo feitiço.
Minha amarração tinha

desamarrado minhas preocupações e minha consciência ficara limpa.


Agora… como descrevê-la? Era um
aspirador que sugava as emoções. Toda vez que me aproximava de sentir
alguma coisa, o feitiço cravava os

dentes em mim – em todo o meu corpo. Eu sentia tudo.

Precisava ver Diana para ter certeza de que ela estava bem e que aquilo
tinha valido a pena. Echo insistira em vir junto. E, como eu ainda não
pagara a hekamista – eu só tinha os oitenta dólares do dinheiro que meus
pais tinham deixado para a pizza, e que Echo havia aceitado como caução –,
não estava em posição de discutir com ela. Depois que víssemos Diana com
nossos próprios olhos e Echo tivesse feito o que tinha vindo fazer, poderia ir
embora com Mina – Mina, que ainda conseguia me ver, Mina, que me
amava – e chorar para

sempre.

Na loja, ouvimos barulhos vindos dos fundos e sentimos o cheiro de fumaça


e álcool, mas não vimos Ari ou

Diana em lugar nenhum. Estava cada vez mais escuro – eu segurava o


celular como lanterna –, até que

chegamos a uma porta aberta perto de uma prateleira de amostras de tinta.

Na sala dos fundos, cheia de ferramentas pesadas e lascas de madeira, a


fumaça nos fez tossir, então levei um segundo para ver Markos caído no
chão e Diana ajoelhada atrás de uma grade ao lado dele. As paredes e

bancadas estavam meio queimadas, as chamas ainda se erguiam da borda de


um barril de metal com refugo.

Perto de onde estávamos à porta, Ari se encontrava em posição fetal no


chão, chorando.

– Ai, meu Deus! – eu disse.

Diana ergueu os olhos, que só passaram por mim, livres da amarração, e se


dirigiu a Echo.
– Ele está ferido… Cal bateu nele… e ele não acordou – ela falou.

Corri, escorregando no piso úmido, e medi o pulso de Markos. Seu


batimento estava fraco e irregular. Se tivesse aberto os olhos, eu tinha
certeza de que estariam dilatados e desfocados. Ele havia sofrido uma

concussão, para dizer o mínimo. Seu crânio parecia quase flácido onde
havia sido atingido, mas torci para que fosse por causa do hematoma. Não
saberia o que fazer se Cal tivesse quebrado seu crânio. Acho que isso

significaria que Markos morreria devagar diante dos nossos olhos.

Não disse nada disso em voz alta. Ninguém teria ouvido mesmo.

– Ari? – Echo perguntou. – Ari? Você está bem?

Ela não respondeu, e Diana encostou a testa num dos buracos da grade. Sua
respiração era fraca, sua testa

estava suada e vermelha. Ela parecia sem ar e com febre.

– Foi você que enfeitiçou Cal? – ela perguntou a Echo.

Echo se empertigou e olhou para Ari, espantada. Ari continuava agachada.

Alguém havia enfeitiçado Cal?

– Minha mãe fazia os feitiços para Cal – Echo disse, baixo. – A mãe dele
nos procurou quando eu tinha

onze anos e ainda nem era hekamista. Ela estava morrendo de medo. Nunca
tinha visto um adulto tão

assustado na minha vida. Não sabia o que estava acontecendo. Achei que
era bom estarmos ajudando aquela

pobre mulher.
– Do que você está falando? – perguntei, mas ninguém respondeu. Pensei
em começar a carregar Markos

para o carro de Mina, só que ele era pesado demais e, se seu ferimento fosse
grave, poderia ser pior movê-lo dali. Poderia deslocar alguma coisa que
devia ficar imobilizada.

Além disso, Diana continuaria presa naquele lugar. Olhei ao redor em busca
de algo que pudesse usar para

arrombar a fechadura ou cortar a grade. Não que eu tivesse ideia de como


fazer alguma dessas coisas.

– Só fui descobrir o que realmente estávamos fazendo passados alguns


anos, depois que entrei para o clã –

Echo disse.

Queria que ela parasse de falar e fizesse algo. Ela era hekamista, devia
haver algum feitiço para quebrar

fechaduras, ou talvez ela tivesse alguma outra ideia brilhante. Um extintor


de incêndio, talvez. Olhei em volta, mas não encontrei nenhum, então me
levantei e comecei a empurrar as ferramentas para ver se havia um

escondido em algum canto. – Achava que era um mal necessário. Minha


mãe acreditava que os feitiços de Cal

eram nossa proteção, caso as pessoas descobrissem sobre mim. Dinheiro


para sobreviver, ainda que ela não

nos deixasse gastar muito, e para ajudar uma família da comunidade que
precisava de nós. Acho que ela se

arrepende de ter me transformado numa hekamista desde o dia em que


fizemos o ritual. Queria ser forte o

bastante para morrer e me salvar. – O sorriso de Echo parecia forçado e


fraco. – Temos ideias muito
diferentes em relação a isso.

Enquanto ela falava, abandonei minha busca e voltei para o lugar onde
Diana estava. Pensei em sair

correndo pelo resto da loja e tentar encontrar um extintor de incêndio ou um


cortador de arame – mas não

saberia onde procurar ou se conseguiria encontrar alguma coisa, tinha


certeza de que me perderia e talvez não conseguisse achar o caminho de
volta. Em vez disso, tirei o celular do bolso e pedi uma ambulância da

maneira mais firme e calma que pude. Torci para que o feitiço não
funcionasse por telefone ou que o serviço de emergência não se esquecesse
de mim assim que eu saísse da linha.

Enquanto eu estava ligando, Ari se levantou com dificuldade. Não consegui


ver seu rosto. Ela olhava para

Echo, de costas para mim. Os olhos de Echo seguiam todos os movimentos


estabanados de Ari. Quando Ari

deu um tapa nela, o barulho fez com que todos – menos Markos – déssemos
um pulo. Echo levou a mão à bochecha, porém não revidou.

– O que está acontecendo? – perguntei para Diana, torcendo e rezando para


que essa pergunta pudesse ser

ouvida e respondida.

– Entre outras coisas? – Ela tentou respirar fundo. – Nove anos atrás, Cal
botou fogo na casa de Ari.

– Ah! – eu disse.

A tristeza e a compaixão eram fortes demais, como todas as minhas


emoções agora. Podia sentir as
lágrimas enchendo meus olhos, não apenas por Ari e seus pais, mas também
por Echo e sua mãe, por

Markos, que estava caído no chão, por Diana, ainda presa, e por todos nós,
abalados pelos feitiços.

Estendi o braço e segurei a mão de Diana através da grade. Ela segurava a


mão de Markos com a outra.

Ela não olhou para mim. Deve ter esquecido que eu estava lá. Isso também
doeu muito, mas eu precisava

passar por isso. Esperaria com Diana até ter certeza de que ela ficaria bem.

Eu tinha me tornado impotente, invisível e irrelevante para salvá-la do meu


feitiço, só que descobri que eu não era a pessoa mais perigosa, afinal de
contas. Agora, tudo que eu podia fazer era ficar de olho nela até a ajuda
chegar.

Torcendo para que valesse a pena.

54. Ari

A pele de Echo, sempre pálida, parecia frágil e transparente como vidro sob
a luz intensa da lâmpada da

oficina. Quando dei o tapa na cara dela e a marca vermelho-vivo da minha


mão surgiu só fez a palidez se

destacar mais. Ela engoliu em seco e não tirou os olhos dos meus.

– Você sabia a verdade sobre meus pais e mesmo assim tentou me


chantagear.

– Eu… Você não entende. Eu tinha passado quase vinte anos da minha vida
sozinha. Win era importante

para mim. Eu estava… brava… pelo que você tinha feito com ele.
– Por que todo mundo insiste em dizer que fiz isso com ele? – perguntei. –
Fiz isso comigo mesma.

Ninguém pode fazer nada com ele agora.

– Não é o que parece.

– As coisas que você faz consigo mesma têm efeitos nas outras pessoas –
Kay disse de onde estava

ajoelhada, ao lado de Markos e Diana. Não tinha visto que ela estava lá, e
era difícil me concentrar nela. Até sua voz parecia abafada.

Echo passou os braços de preto sobre o estômago.

– Fiz algumas coisas ruins e outras boas. Mas o mundo não é justo.

– Isso é tudo que você tem a dizer?

Echo suspirou e respondeu em voz branda:

– Nada do que eu possa dizer fará com que isso deixe de ser verdade. – Ela
colocou a mão num dos bolsos

do casaco e tirou um saco plástico de sanduíche. Estava cheio de biscoitos


salgados com queijo. Ela o

estendeu, desconfiada, como se eu pudesse arrancá-lo da sua mão. – Fiz o


feitiço para você.

– Isso é um pedido de desculpas? “Toma o seu feitiço de dança, agora vai


ficar tudo bem?”

– Nada está bem. Win continua morto. Seus pais continuam mortos. Minha
mãe vai morrer daqui a algumas

semanas, já que não tenho dinheiro para deixá-la e arranjar um clã novo. –
Ela chacoalhou o saquinho, o queijo manchou o plástico. – Mas você pode
dançar de novo, se quiser. Prometo.
Dei um passo para perto de onde ela estava, ao lado da porta da oficina.
Echo não recuou, só ficou com o

saco plástico pendurado entre nós.

Tirei o foco dela e olhei fixo para a loja toda destruída, como se tentasse
limpar tudo aquilo com a força da mente. Queria apagar o que estava diante
de mim. Negar a verdade.

Cal estava em algum lugar lá fora.

A pessoa que tinha matado os meus pais.

Lá estava: aquilo em que eu vinha tentando não pensar. A coisa que mais
queria que não fosse verdade, mas

que Echo confirmara com toda a certeza.

Eu havia perdido meus pais.

Tinha muito tempo. Hoje. Aquele tempo todo. Disso eu não podia fugir.
Não tinha como aguentar. Eles

haviam sido arrancados de mim, e eu sentia falta deles. O buraco no meu


coração era uma ferida mortal.

Senti um calafrio e percebi que estava segurando o punho dolorido. Pela


primeira vez não senti a dor isolada de sempre. Em vez disso, ela cobriu
toda a minha pele, fina como papel, penetrando nos meus músculos,

ossos e sangue.

O fato de a lembrança do dia da morte deles ter sido apagada não


melhorava nada. Na realidade, era pior.

Em vez de conhecer com detalhes o terrível acontecimento, eu o imaginava


de milhares de maneiras
diferentes, uma pior que a outra. Eu os vi morrer repetidas vezes com o
rosto cheio de surpresa, raiva ou

tristeza. Estava ou não com meus fones de ouvido. Atrasando os dois ou


não. Chorando ou não. Em cada

uma delas, Cal saía correndo da casa e se escondia. Ele estava escondido
desde então. Até agora.

Então eu sabia o que realmente havia acontecido.

55. Win

Minha última noite na terra, um sábado, começou como muitas outras. Fui
buscar Ari e Markos, então

seguimos para a praia na minha caminhonete. Estava chovendo e ainda


faltavam algumas semanas para

começar a temporada de turistas, portanto tínhamos o lugar só para nós.

O dia tinha sido ruim. Eu não tinha saído do quarto, nem mesmo para
comer, e sentia a língua inchada e

pesada na boca. Meu estômago roncava de fome, meu cérebro parecia feito
de lama. Como a areia molhada

que entrava entre os dedos dos nossos pés enquanto descíamos a praia.

– Por que não estamos numa lanchonete nem no porão limpo e seco da casa
de alguém? – Ari perguntou.

Sua camiseta estava molhada e grudada no corpo de uma forma que eu


sabia que deveria achar sensual.

Marcos lançou um olhar para ela, mas parecia um olhar clínico, como se
estivesse examinando o diagrama de

um corpo feminino na aula de biologia.


– Arranjei um presente especial – Markos disse. – Confia em mim, você vai
me agradecer depois.

Ela suspirou e colocou meu braço sobre seu ombro. Conhecendo Markos,
sua surpresa poderia ser

realmente incrível – um churrasco ao ar livre ou um cruzeiro noturno para


observar baleias –, ou podia não ser nada, e talvez ele quisesse
simplesmente nos ter só para ele pelo resto da noite.

Ele também poderia estar querendo me animar.

Ari e Markos ficaram trocando farpas enquanto o sol começava a ir embora.


Como estava chovendo, o pôr

do sol não foi nada sutil. O céu se tornou cada vez mais cinza até ficar
completamente preto, então Markos acendeu uma lanterna.

– Era uma noite escura e chuvosa – ele disse, apontando a luz para o seu
queixo.

Ari tirou a lanterna da sua mão.

– E um babaca vagou pela praia, afogando seus amigos lentamente até a


morte.

Ela entregou a lanterna para mim e olhei para a lâmpada. Era a minha vez
de continuar a história de terror, mas só conseguia pensar na terrível
verdade, por isso não disse nada. Apontei a luz para Markos: o bom e

velho Markos, sorridente, confiante, confiável, com o cabelo escurecido


pela chuva caindo sobre os olhos.

Depois para Ari: a boa e velha Ari, engraçada, dedicada e forte, com a pele
ainda mais iluminada pelas gotas de chuva que caíam sobre ela e os olhos
semicerrados por causa da luz da lanterna. Não conseguia ver naquele

momento, mas agora vejo: eles me amavam. Inteira, completamente. Não


como Kara e minha mãe. Ari e
Markos me amavam porque tinham me escolhido. Era inacreditável.

Naquele instante, olhei para o rosto deles e senti seu amor como um peso.
Como se tivessem instalado

argolas de aço em volta do meu coração e, quando queriam me punir,


bastava que olhassem em meus olhos

para que as argolas me apertassem com mais força.

Então desliguei a lanterna.

Markos me deu uma bronca e me tirou a lanterna na escuridão súbita. A


escuridão na praia, a uma distância

tão grande, era diferente da escuridão na cidade. O oceano estava


completamente negro e seu rugido

aumentou de repente, como se, agora que a luz não impedia, ele pudesse
retumbar. As dunas pareciam

infinitas, um deserto a atravessar para voltar aos carros, às pessoas e à vida.

– Cara, a gente precisa da luz – Markos disse, meio rindo, enquanto


procurava o botão. – É assim que ela

vai encontrar a gente.

– Ela? – perguntei, quando a luz de Markos acertou uma figura feminina a


uns três metros de nós. Ari deu

um grito e segurei sua mão, mas não para confortá-la: para me acalmar. A
menina que se aproximava da nossa rodinha era Echo.

– Ei, você já está aqui... – Markos disse. Na mesma hora, ele assumiu o tom
que usava com garçons,

faxineiras e outros funcionários: arrogante, íntimo demais. – Você trouxe?


Echo ergueu um saco com três pãezinhos brancos e redondos.

– Como o senhor pediu – ela falou.

Ele deu risada e lhe tomou o saco, mas ela não pareceu achar graça.
Continuou olhando fixamente para

mim. Eu devia estar com um ar aterrorizado, porque ela abanou a cabeça de


leve.

– O que é isso, Markos? – Ari perguntou. Ela não parecia muito contente.

– Por que você não experimenta e descobre? – Markos disse. Aí abriu o


saco e comeu um pãozinho com

uma só mordida, depois entregou o pacote para Ari.

Nós ficamos observando-o, todos nós, até mesmo Echo. Ele cruzou os
braços diante do peito, esperando.

No começo, aconteceu tão devagar que nem notei. Mas então ouvi o grito
abafado de Ari e percebi que

Markos estava flutuando a um metro e meio do chão, subindo rápido.

Quando alcançou uns três metros, soltou um grito e passou por sobre nossas
cabeças, nadando pelo ar.

– Você só tem alguns minutos, então não sobe alto demais – Echo disse, só
que Markos já estava subindo,

batendo os braços como uma borboleta, sumindo no escuro e na chuva.

– Vem aqui para cima, Win! – ele gritou.

Ari olhou para o saco e para Echo.

– Isso é seguro?
Echo deu de ombros.

– Vai deixar vocês imunes à gravidade por algum tempo. Nada disso me
parece seguro.

– E os efeitos colaterais?

– Desagradáveis. Mas, como é um feitiço temporário, não vão durar muito


tempo.

– Tenho um feitiço de memória de muito tempo atrás. Os efeitos colaterais


vão ser um problema?

Echo a observou. Por um instante senti um medo terrível de que ela fosse
mentir para Ari a fim de magoá-

la – pensei no beijo que quase dera em Echo na caminhonete e no que Echo


deveria pensar de Ari, minha

namorada –, mas não achei que isso tivesse importância. Ela não faria uma
coisa dessas, mesmo se tivesse

ciúmes.

– Não. Você vai ficar bem.

Markos deu uma cambalhota no ar, então Ari voltou os olhos cintilantes
para mim.

– E aí? – ela perguntou.

– Como não? – perguntei.

Ari deu risada, tentando parecer despreocupada, e comeu seu pãozinho.

– Mascarpone. Que delícia!

– Obrigada – Echo disse.


Ari me deu o saco quando já estava na altura do meu ombro.

– Puta merda! Win, rápido!

Ela girou no céu. Já estava mais graciosa do que Markos. Seu treinamento
de balé ficou evidente enquanto

girava e rodopiava na chuva. Abri o saco, mas Echo o tirou das minhas
mãos antes que pudesse pegar o

último pãozinho.

– Que é isso?

– Você já tomou seu outro feitiço? – ela perguntou baixo. Fiz que não. –
Então não pode fazer isso, Win. Os efeitos colaterais…

– Ah, vá! – eu disse. Foi meio que uma surpresa querer voar. Fazia muito
tempo que não queria nada. – Vou

tomar o outro assim que chegar em casa.

– Por favor, confia em mim.

– Você falou que não prejudicaria os efeitos colaterais da Ari. Por que
comigo é diferente?

Ela olhou para mim por um longo momento. A chuva colava seu cabelo na
testa, fazendo seus olhos

parecerem maiores.

– Porque você é diferente.

Estendi a mão para pegar o saco, mas ela virou mais rápido do que eu na
areia úmida. Markos gritou e

depois caiu com um baque.


Ele fez menção de se levantar e aí, deitando-se de lado, vomitou e gemeu.

– Estou me sentindo um lixo – disse.

– Vai passar – Echo garantiu.

– Ah, cara. Vai se foder. Sério, vai se foder.

– O feitiço faz você não pesar nada fisicamente. Mentalmente, traz você
para baixo. Bem para baixo – ela

disse, alto o bastante para Markos ouvir, mas olhando nos meus olhos.

– O que vou dizer para eles? – murmurei. Ari passou por cima da minha
cabeça, tocando-me de leve com

os dedos dos pés. Markos xingou mais alto, uma série de palavrões
ininterruptos.

– Não é problema meu. Não posso deixar você comer isso. – Ela
chacoalhou a sacola.

– Como assim? Por causa de algum código de ética das hekamistas? –


perguntei, sarcástico, porém ela

concordou com a cabeça.

– Mais ou menos isso.

– Pelo amor de Deus, me mata! – Markos berrou. Echo olhou para mim,
enfática.

– Só que Markos pagou por três…

– Vou descontar da sua dívida.

Ari desceu, graciosa como sempre, até os dois pés tocarem a areia. Então,
ela tremeu e caiu de joelhos.
Muito devagar, foi abaixando a testa até pousá-la no chão, como se
estivesse rezando.

– Eu te odeio, Markos – Ari disse.

– Não precisa agradecer.

– Vou prender a respiração até parar de respirar.

– Ari? – eu disse.

– Também te odeio, Win.

Algo se inflamou no meu peito, então demorei um segundo para entender


por que minhas costas estavam

arqueadas e meu maxilar, dolorido. Estava com raiva. Não de Echo por me
negar o voo. Dos meus supostos

amigos, por… por quê? Por roubarem minha tristeza?

Eles gemiam de dor no chão, lamentando e rangendo os dentes. Não era a


mesma coisa que a piração de Ari

por causa do Balé de Manhattan, que pelo menos era sincera, apesar de não
ter durado muito. Aquilo era uma paródia do que eu estava vivendo dia a
dia. Sabia que eles não estavam fazendo de propósito, mas não

importava. Tinham tirado o que era terrível, secreto e meu e o haviam


exposto de um lado para o outro, a fim de que todo mundo visse.

E o pior era que tinham conseguido voar. Eu não pudera voar em momento
algum, então por que me sentia

um lixo? Que tipo de equilíbrio era aquele?

– Estou com o seu dinheiro – disse para Echo.


Seu rosto se iluminou e ela agarrou meu punho com entusiasmo. Achei que
talvez tentasse me beijar e puxei

a mão.

– Preciso ir pegar.

– Vamos lá então.

Sim, pensei. Vamos para a casa da Ari, eu a distraio e pego o dinheiro do


fundo do seu guarda-roupa.

Depois, vamos para a minha casa de merda na periferia da cidade, no


buraco minúsculo que é o meu quarto

cheirando a meias suadas, revirar a gaveta das minhas cuecas, abrir o


recipiente plástico e engolir o sanduíche de uma bocada só. Eu tinha
chegado àquele ponto. Era isso. O momento mais baixo. Chega.

Me aproximei de Ari e toquei seu ombro. Ela gemeu e sussurrei no seu


ouvido:

– Ari, esqueci uma coisa na sua casa.

– Vai pegar então.

– Por que você não vem? A diversão acabou.

– Sério, sua voz é muito irritante. Vai pegar logo seu troço.

– Você pode vir…

– Eu mandei você ir embora! – ela gritou. – Me deixa em paz. Não quero


você aqui, Win.

– Dá para calar essa boca? – Markos perguntou, depois tossiu tanto que
quase vomitou de novo.

Eu a deixei sozinha e me aproximei de Echo.


– Não posso deixar os dois aqui assim.

– Posso ficar com eles. Vai pegar e volta para cá. – Ela sorriu e me abraçou
muito rápido, um clarão de

braços na escuridão.

Eu lhe entreguei a lanterna e me abaixei para dar um beijo na bochecha de


Ari, mas ela atirou um punhado

de areia nos meus olhos.

– Sai daqui! – ela berrou, depois cobriu a cabeça com os braços e gemeu.

Não tentei de novo. Aquela era a despedida que eu achava que merecia, por
mais que, em algum ponto

distante do meu cérebro, soubesse que era só o efeito colateral do feitiço.

Fui andando para a caminhonete no escuro. Ela parecia estar mais longe do
que devia, como se o

estacionamento se distanciasse a cada passo, porém, no fim, cheguei, entrei


e fui para casa.

A estrada para casa. Essa é a parte importante. Nenhuma testemunha, só eu.


Uma estrada em que eu tinha

dirigido centenas de vezes antes. Era uma noite chuvosa, sim, mas a via
estava vazia. Nenhum outro carro.

Nenhum bicho, nada.

Será que eu tive um momento de fraqueza? Que eu vi a árvore e soltei o


volante? Será que planejei aquilo

em um canto obscuro da minha mente, enquanto Ari e Markos flutuavam


sobre mim e Echo me observava
com atenção demais?

Essa é uma maneira como aquilo pode ter terminado. A outra é um acaso do
universo: algo tão pequeno a

ponto de não poder ser provado me distraiu, e uma série de eventos


inevitáveis me jogou contra a árvore.

Nenhuma intenção ou razão humana teve parte alguma nisso.

Ou pode ter terminado através do hekame. Algo invisível, incompreensível


e inabalável tinha me

acompanhado na caminhonete. E essa coisa empurrou meus braços. Uma


força os jogou para baixo e girou o

volante para a esquerda, para fora da pista, contra uma árvore. Rumo à
morte.

No entanto, são apenas teorias. Só eu sei o que aconteceu.

No momento em que a batida se tornou inevitável, tive tempo suficiente


para notar a árvore e a minha

trajetória, me lembrar com perfeição e amor da minha mãe, de Kara, de Ari


e de Markos, de torcer para que

houvesse algum lugar para ir depois daquilo – algum lugar onde eu fosse
leve, despreocupado, livre –, antes que a caminhonete batesse.

Uma das partes mais estranhas da depressão é a maneira como ela afeta a
memória. Quando estava

deprimido, não conseguia me recordar de nada particularmente feliz que


tivesse acontecido comigo. As coisas que antes via como felizes pareciam
falsas e vazias. O passado bom se apagava a uma distância homérica, e o
presente bom, enfim, esse parecia impossível.
Contudo, quando acertei a árvore, o filtro de tristeza instalado na minha
memória se apagou e me lembrei de momentos de pura felicidade.

Jogar bola com Markos na infância.

Segurar Kara quando ela chegou do hospital.

Ari rindo de alguma coisa que eu tinha dito.

Bolos de aniversário. Grandes vitórias. Piadas bestas. Notas boas


inesperadas.

Deitar num saco de dormir no quintal dos fundos. Não importava de que
casa, porque o céu era o mesmo

em todas, vasto e gelado, cintilando com um brilho lindo e distante.

Por um segundo, me lembrei de tudo isso e amei tudo isso com todo o meu
coração.

E, então, morri.

56. Ari

Tirei o saco da mão estendida de Echo.

Não era um feitiço para esquecer, como eu tinha desejado, e não consertaria
nada do que Cal fizera, mas já era alguma coisa. Me tiraria daquela cidade.

– Se isso funcionar – disse para Echo, pressionando o plástico entre meus


dedos –, você pode vir comigo

para Nova York e ficar no sofá do nosso apartamento miserável. Deve ter
um bando de hekamistas por ali,

certo?

Echo tocou a parte do rosto em que eu tinha batido.


– Por que você faria isso por mim?

– Porque senão tomar esse feitiço seria caridade. E não preciso da sua
compaixão.

Esse não era o único motivo, claro – havia o fato de que ela provavelmente
morreria se eu não a ajudasse, e o fato de que eu lhe devia em dobro por
isso, pois tinha roubado o dinheiro de Win. Havia também o fato de eu
gostar dela, mesmo sem querer. Ela guardara o segredo de Cal, tentando me
chantagear, mas também

tentara ajudar, por mais que não tivesse motivo para isso. Além do mais, ela
gostava de Win, e eu já tinha gostado dele, então devia ter bom gosto.

Ela olhou para mim por um longo momento. Por um segundo, não nos
preocupamos com Cal, em algum

lugar da loja, Diana, na jaula, ou Markos, ainda caído no chão. Ela sorriu,
hesitante, como se eu pudesse

mudar de ideia.

– Vai funcionar. Você vai ficar linda.

Abri o fecho do saco plástico e várias coisas aconteceram ao mesmo tempo.

Kay empurrou Echo contra uma pilha de baldes e me jogou no solo, tirando
o saco da minha mão.

Bem na hora em que a prateleira atrás de mim – onde eu estava pouco antes
– rangeu e tombou, fazendo

um monte de tubos de PVC cair ruidosamente no chão.

Quando eles pararam de rolar, tirei Kay de cima de mim. Echo gemeu e se
levantou.

– O que foi isso?


Kay falava histericamente, atropelando as palavras. Por mais que não
estivesse sussurrando, precisei chegar bem perto e me concentrar muito
para entender o que dizia.

– Eu entendi tudo. Deve ter um feitiço. O feitiço de Echo. Quero dizer, o


feitiço sobre Echo. Uma

amarração! – Kay agitava os braços, frustrada. – Lembra quando você e


Diana tentaram me deixar lá na festa da fogueira e Diana quebrou a cara?

– A sua amarração está equilibrada agora – Echo disse.

– E muito obrigada por isso – Kay disse, frisando cada palavra com rancor.
– Mas não estou falando de mim. Acho que tem um feitiço afetando Echo.
Uma amarração. Uma que a mãe dela deve ter lhe dado, talvez

anos e anos atrás. Pensa um pouco: é por isso que Echo não consegue que
ninguém lhe pague pelos feitiços

que faz, porque não consegue simplesmente sair da cidade. É exatamente


como o meu feitiço: mantém Echo

perto da mãe.

Echo franziu a testa.

– Minha mãe não faria uma coisa dessas.

– Mas, Echo… toda essa sua má sorte – eu disse. – E se não for só má


sorte?

Echo chutou um dos tubos, que saiu rolando.

– Ela não faria isso. As hekamistas não enfeitiçam outras hekamistas.

– Você dá feitiços para a dor da sua mãe – falei.

– É diferente. É para o bem dela. – Os olhos de Echo se arregalaram ao


ouvir suas próprias palavras em
voz alta.

– Ela deve ter pensado que estava protegendo você – Kay disse.

– Impedindo que você fosse descoberta e acabasse na cadeia – acrescentei.

– Cuidando de você. Porque se importa com você – Kay falou, na


defensiva.

– Espera… espera um pouco – falei. – Tudo que fiz foi oferecer um sofá em
Nova York se o feitiço

funcionar, e a prateleira caiu em cima de nós. Então, se alguém tentar te


ajudar ou oferecer uma saída… –

parei, olhando para o saco plástico que ainda estava nas mãos de Kay.

Uma coisa pequena – aquilo que me permitiria dançar de novo e ir para


Nova York. Não estava mais presa à

amarração de Kay, então isso não me manteria no cabo Cod.

E, se eu partisse, Echo poderia partir também.

Ela já tinha chegado perto de ir embora antes. Tinha me dito que estava
esperando que Win lhe pagasse na

noite em que ele morreu.

Me debrucei sobre os tubos caídos e segurei o braço de Echo.

– Echo… Win te devia dinheiro, certo?

Ela inspirou fundo.

– Ah... – Seu queixo tremeu, o que a fez parecer dez anos mais jovem. –
Win estava indo buscar o dinheiro

que me devia quando bateu o carro.


– Se você tivesse o dinheiro dele, poderia ir – Kay falou.

– Então, se tinha uma amarração em mim… Win… – Ela envolveu os


braços junto ao peito, como que para

impedir que seu coração subisse pela garganta.

– Pode ter sido uma coincidência – apontei.

– É assim que as amarrações funcionam – Kay disse. – Com coincidências,


sorte e acaso. Sua mãe me

falou isso quando comprei a minha.

– Ai, Deus! – Echo respirou fundo, tremendo. – Eu matei Win.

Nunca saberíamos. Não com certeza. Ninguém estava lá com ele na


caminhonete, nenhuma hekamista faria

uma análise forense para nos contar a verdade. Contudo, parecia ser
verdade, como o fato de Cal ter botado fogo na minha casa, da mesma
forma que a amarração de Kay explicava tanta coisa sobre minha amizade
com

ela.

– Tudo o que fiz saiu pela culatra – Echo disse. Ela olhou para as próprias
mãos e continuou em voz monótona: – Todos os feitiços que já realizei só
pioraram as coisas.

Eu conhecia essa sensação. Estava prestes a dizer que a culpa não era dela e
que eu tinha tomado muitas

decisões erradas que também nos haviam levado até ali, mas ouvimos as
sirenes à distância, então Kay nos

agarrou pelo braço, dizendo:

– Eles não vão conseguir nos encontrar aqui no fundo.


Ela começou a correr para a porta da oficina, com o meu feitiço na mão. Eu
ainda estava tentando decidir

se ia atrás de Kay ou se continuava com Diana e Markos quando ela parou


de repente e recuou, tropeçando

nos tubos de PVC no chão.

Cal entrou na sua frente.

Com aquele rosto inexpressivo. Ele esquecera muita coisa – e agora tudo
surgia de volta de repente, todos

os sentimentos e pensamentos terríveis. Devia ser enlouquecedor.

Ou talvez ele sempre tivesse sido um pouco maluco e essa fosse sua
verdadeira personalidade, que

finalmente subia à superfície, livre da gaiola de feitiços.

Ele estendeu o braço, com o isqueiro prateado no punho. Com um estalido


metálico, acendeu a chama.

57. Kay

Me coloquei diante de Cal e tirei o isqueiro da sua mão.

Não foi algo especialmente corajoso. Na última hora, desde que eu


equilibrara minha amarração, já tinha

praticamente me acostumado a ser quase invisível, então imaginei que ele


não me notaria. Dito e feito:

precisou piscar algumas vezes até que seus olhos – estranhos e desvairados
– se focassem em mim.

– Você não precisa disso, Cal.


Ele franziu a testa, correndo o olhar terrível pela sala, como um pássaro
batendo contra as janelas em busca do céu.

– Você não devia ter me enfeitiçado – ele falou, com a voz distante, como
se estivesse se lembrando de um

sonho.

– Desculpa. Fiz merda. Achei que ficar sozinha era a pior coisa que poderia
me acontecer, mas não era.

Não importava que eu estivesse sendo sincera, não só para Cal como para
Ari e Diana também, porque ele

não era obrigado a ouvir, e elas também não. Ele me empurrou com força e
correu de uma ponta a outra da

oficina, saltando agilmente sobre as bancadas e em volta das peças gigantes


de maquinaria, revirando as pilhas queimadas de refugo e jogando os canos
de PVC a torto e a direito. Estava procurando algo. Outro isqueiro?

Segurei o dele junto com o feitiço de Ari no saco plástico. Talvez meu
feitiço antiamarração não o deixasse ver que eu estava com o isqueiro.

No entanto, ele não demoraria muito para descobrir algo que também
funcionasse. Pensei em sair correndo,

só que não podia deixar todos ali. Cogitei tentar fazer com que Cal desse
dinheiro a Echo para que

pudéssemos ativar a amarração da mãe dela contra ele, como havia


acontecido com Win, porém não havia

tempo. Além disso, os feitiços eram imprevisíveis. Me lembrava de estar no


pronto-socorro esperando que

minha amarração se ativasse e trouxesse um dos meus amigos pela porta.


Eles não apareceram em momento
nenhum. Não dava para saber quanto precisávamos forçar para que o feitiço
revidasse.

Ari se afastou de Cal enquanto ele corria pela oficina e Echo se manteve na
frente dela de forma protetora.

Olhei para o monitor de segurança e vi os policiais apontando suas


lanternas para a porta da frente. Cal devia ter despistado a mim e a Echo e
ter trancado a porta depois que entramos.

Isso me causou um calafrio ainda maior do que a escuridão de seus olhos ou


o fluido do isqueiro. Mostrava

que ele não estava simplesmente desenfreado, mas que sabia o que fazia e
não queria que saíssemos ou

fôssemos resgatados. Queria que queimássemos junto com ele.

Enquanto corria perto do corpo imóvel de Markos, Cal derrubou uma lata
de fluido de isqueiro. O líquido se espalhou rapidamente, infiltrando-se por
baixo de Markos e sob a beira da grade de Diana. Ela deixou que o líquido
ensopasse os joelhos dos seus jeans.

Cal deu um grito que mais parecia um uivo e apertou um botão na altura do
seu joelho, preso a um cano de borracha, bem atrás da gaiola onde Diana
estava presa. O cano terminava num gatilho manual e num gargalo

fino como o caule de uma flor. Cal o apertou uma vez, duas vezes, até que a
flor se abriu em chamas. Azul e amarela. Forte demais para se olhar.

Eu não pensei. Corri direto para cima de Cal, envolvendo-o na altura do


estômago e tentando jogá-lo no

chão. Só que ele era mais alto que eu e mais forte também, e eu não queria
machucá-lo – só detê-lo. Consegui jogá-lo contra a parede. Ele derrubou a
solda, que se apagou antes que tivesse a chance de tocar o fluido de isqueiro
no chão, porém pegou uma tábua de madeira recostada e, enquanto eu o
arranhava, chutava e me
debatia, a tábua me atingiu no tronco. Caí de joelhos. Em seguida, ele me
acertou no peito com um estalo.

Não consegui respirar.

Caí no chão e engasguei em busca de ar.

Fiquei à espera de outro golpe de tábua, sabendo que me faria desmaiar e


que eu não teria mais que sentir

minhas costelas quebradas, nem a dor no tronco, nem teria que ver Cal
botar fogo na loja com todos nós

dentro dela.

Em vez disso, senti o fluido de isqueiro cair ao meu redor. Entrando pelas
minhas narinas. Fazendo arder

meus olhos.

Ari gritou para Cal, gritou para chamar o resgate que estava em algum lugar
da loja, implorou para que ele não fizesse aquilo, afirmou que íamos
esquecer, que todos tomaríamos um feitiço com ele para fazer as coisas
voltarem a ser como antes, se era isso que ele queria.

Ele não respondeu. Não era capaz de dar ouvidos a ela.

Inspirei os gases nocivos, zonza. A sala rebrilhava.

Virei a cabeça, e Cal pegou o Zippo onde eu o tinha derrubado. Eu estava


visível novamente.

Tonta. Com fluido de isqueiro nas roupas, no cabelo. Não conseguia me


levantar.

Não podia ver Ari ou Echo. Markos continuava deitado ao meu lado, sem se
mover. Diana, do outro lado

dele, estava aos berros.


Encostei a cabeça numa poça. Inspirei e meu peito estalou. As costelas
estavam quebradas. Eu estava sem

ar.

Me sentia vazia, capaz de flutuar, como se não restasse nada de mim além
de uma casca de papel. Não faria

mal morrer queimada. Uma explosão e depois nada, feito um jornal velho.

Tanto trabalho para fazer as coisas certas e reverter a amarração... Tanto


trabalho pelos feitiços...

Não dava para contar com eles na hora do aperto. Os feitiços sempre
achavam uma forma de nos enganar,

de usar nossas fraquezas contra nós, de criar a pior solução possível para o
nosso problema. Pareciam

inofensivos – mas, enfim, as tábuas e as chamas também. Punhos e


martelos. Palavras e beijos.

Cal afastou a chama amarela do Zippo do corpo. Ela se aproximou de mim,


um sol pequenino, e precisei

fechar os olhos.

58. Ari

– O que tem no saco? – Cal perguntou.

Ele segurava o Zippo a uns trinta centímetros da cabeça de Kay, que estava
encharcada de fluido de

isqueiro. Eu sentia um cheiro de churrasco e fogueira. De carne queimada.

Se corresse, sabia que tropeçaria, cairia e me perderia na loja antes de


encontrar a saída. Sabia que o lugar queimaria comigo, com Diana e com
todos os outros lá dentro.
Cal olhou para o meu feitiço de dança no chão, onde Kay devia tê-lo
deixado cair.

– É… é um feitiço – falei.

Kay ergueu um braço e empurrou o saco na direção dele.

– Para quê? – Cal perguntou.

– Vai fazer você esquecer – eu disse, com mais firmeza. – Como esqueci do
Win.

Ele pegou o saco. Algo brilhou nas profundezas de seus olhos vazios e
inexpressivos. Algo vivo – algo que

sentia dor –, um vislumbre da pessoa que Cal já tinha sido, esforçando-se


para sair.

Ele ficou olhando para o feitiço. O brilho ardente da oficina iluminou seu
rosto e a esperança, o desejo, a raiva e o medo estampados nele.

Atenção...

Olhei para Echo, ajoelhada diante de alguma coisa, murmurando algo para
si mesma.

A boca de Diana estava se movendo e ela chacoalhava a grade.

Kay virou a cabeça e, com dificuldade, conseguiu rolar de lado para olhar.

As lágrimas desciam pelo rosto de Cal. Não mais um vazio aterrorizante,


mas um homem destroçado, cheio

de angústia e alívio. Ele abriu o saco e jogou todo o seu conteúdo na boca.
Mastigou e engoliu.

Um momento de silêncio. O Zippo ainda estava aceso em sua mão.

Ele emitiu um som estrangulado e sua expressão se contorceu.


– O que é isso…? – Ele virou e bateu em alguma coisa. – O que você…?
Isso não é…

Corri na direção dele, escorregando no fluido de isqueiro. Caí com todo o


peso do corpo em cima do

joelho, que se torceu embaixo de mim. Algo estalou. A dor subiu pelas
minhas coxas até as costas, mas eu me levantei com dificuldade e me lancei
sobre Cal, jogando-o no chão. Cravei os dois joelhos, mesmo o que eu

sentia solto e trêmulo de dor, nas suas costas.

Com um silvo, o fogo se acendeu onde ele estava. Ele segurava o isqueiro –
era uma chama viva. Markos

continuava inconsciente. Kay mal conseguia se virar de barriga para cima.


Diana estava trancada atrás da

grade. Nós queimaríamos rápido com o fluido nas roupas, no cabelo e na


boca.

Um jeito fácil para que a amarração da mãe de Echo eliminasse a ameaça


da partida da filha seria matar a todos nós.

Echo – onde estava Echo?

59. Markos

Inspirei.

Calor e chamas. Uma serra de mesa pegou fogo, depois uma pilha de
madeira compensada. As chamas

lambiam um lado da minha cabeça, meu peito e minhas pernas, mas eu não
conseguia me mover.

Expirei.

Diana tentou me tocar. Conseguia ouvir seus gritos. Abri os olhos.


Ela queria me puxar para longe das chamas. Abafou o fogo com a camisa
do seu lado da grade. A sala se

iluminou como se estivéssemos de volta à festa da fogueira do dia três de


julho.

Inspirei.

Minha cabeça doía. Cal tinha me batido com força ali. Meu irmão.

Expirei.

Estava quente. Muito quente.

Inspirei.

Do nada, a oficina esfriou e ficou escura. As chamas pareciam ter


congelado. O ar latejou com a batida do

coração de uma criatura muito maior do que nós. No canto, um único ponto
de luz iluminava Echo, com o

braço erguido sobre um pedaço de papel. Ela arregaçou a manga, tirou um


de seus muitos curativos e cortou a pele até um corte sangrar sobre o papel.

A oficina pareceu tremer e algo se iluminou na fumaça acima da cabeça de


Echo. Ela gritou e, um segundo

depois, a sala ficou mais quente e iluminada do que nunca. Echo enfiou o
papel encharcado de sangue na boca e o engoliu.

Expirei.

60. Kay

– O que você fez? – Ari perguntou para Echo enquanto cravava os joelhos
nas costas de Cal, segurando seus

braços.
Piscar exigia esforço. A fumaça ardia. Prestes a morrer queimada, em
algum canto remoto do meu cérebro

que não estava se contorcendo de dor, eu me perguntei para que seria o


novo feitiço de Echo.

Ela pareceu ter ficado um pouco zonza, mas logo começou a agir. Correu
até a grade e arrancou o cadeado

com um único movimento rápido. Diana saiu tropeçando, tossindo por


causa da fumaça.

– Você aguenta levar Cal? – Echo perguntou para Ari. Ela fez que sim,
embora, ao se levantar, puxando Cal

para cima, só conseguisse colocar peso sobre uma perna. Echo se voltou
para Markos, apagou as chamas que

cobriam o peito dele com seu longo casaco preto e ergueu-o no ombro com
facilidade. Ela saiu dali em

direção à porta da oficina. Mancando, Ari puxava Cal, que não parava de
gemer atrás dela, enquanto Diana

arrastava os pés no fim da fila. Para longe de mim e daquela sala infernal.

Esquecida. O feitiço para sobrepor a amarração havia funcionado


perfeitamente.

Inspirei e tentei me levantar.

A dor que sentia no peito me fez soltar um grito. Não consegui tomar
fôlego.

Diana me ouviu e se virou. Ela voltou. Me deu a mão. Quase a derrubei,


mas consegui me levantar, tossindo

e tentando respirar. Me apoiei nela e ela em mim, e, juntas, saímos


cambaleando da oficina em chamas.
A fumaça já tinha começado a encher os corredores da loja. Eu não
conseguia encontrar a saída. Seguimos

o som do quebra-quebra de Echo. Ela não tentou fazer voltas e curvas, saiu
derrubando estantes aos chutes e despedaçando prateleiras, tomando o
caminho da porta. Atrás dela, Ari arrastava Cal, e eu e Diana ajudávamos
uma à outra a abrir caminho o mais rápido possível sobre as montanhas de
tralhas. Passamos pelo resgate,

mas Echo não parou, e eles nos seguiram, aos gritos, perguntando se
estávamos bem, tentando entender de

onde vinha a fumaça.

A porta fora erguida pela metade, contudo, em vez de abrir o restante, um


único chute de Echo fez o vidro

e o metal saírem voando. Saímos tropeçando para a rua.

61. Ari

As ambulâncias e os caminhões de bombeiro encheram a rua, iluminando-a


com seus faróis como se fosse

dia. O resgate e os policiais nos rodearam, disparando perguntas, e os


bombeiros correram para dentro da loja com suas mangueiras. Me recusei a
soltar o braço de Cal até que um paramédico me afastou dele. Outro o

levou para uma ambulância enquanto ele chorava, com as mãos na cabeça.
Fiquei olhando para ele, e a

paramédica que me atendeu precisou se repetir meia dúzia de vezes até que
eu conseguisse responder.

– Estou bem – eu disse, mas ela franziu a testa e examinou meus


hematomas, os novos e os antigos, como

se eu pudesse mentir para ela. Ela parecia estar especialmente preocupada


com o meu joelho. Disse que eu
podia ter rompido o ligamento cruzado anterior. Ouvi suas palavras com
apenas parte do cérebro.

Eu estava bem. Nenhuma das minhas cicatrizes vinha daquela noite,


nenhuma das minhas feridas era

visível.

Em meio às luzes e à confusão, perdi Cal de vista, e parte de mim desejou


nunca mais precisar vê-lo

novamente. A dra. Pitts diria que eu estava evitando meu trauma. Ou que
era saudável seguir em frente. Seja como for, ela teria muito a dizer na
nossa próxima consulta.

No chão, perto do lugar de onde levaram Cal, avistei um saco de sanduíche


manchado cheio de migalhas:

os restos do feitiço que Echo havia preparado para mim, aquele que Cal
tinha tomado porque eu dissera que o faria esquecer. Meu feitiço. Minha
graciosidade. Meu futuro. Não sabia quanto tempo duraria – ou mesmo se

havia poder suficiente nas migalhas restantes para causar alguma coisa –, só
que não podia deixá-las ali.

Cerrei os dentes, coloquei o peso do corpo sobre o joelho machucado e


chutei o saco para a sarjeta, rumo a um bueiro.

Diana seguiu Markos para dentro de uma ambulância – a primeira a sair,


com as sirenes ligadas. Echo

estava em pé ao lado de Kay e Mina, como uma sentinela, enquanto Kay


estava sentada no meio-fio, com a

mão nas costelas, respirando com dificuldade, e Mina segurava sua mão,
encostada no ombro da irmã.

– Quer que eu chame um paramédico? – perguntei.


Kay fez que não.

– Vai chegar a minha vez – ela falou, arfando. – O que tinha no feitiço que
ele tomou?

Echo respondeu por mim:

– Graciosidade. Ele vai ser um lindo bailarino. – Expirando longamente, ela


sentou no chão. A explosão de

força e energia se esgotara. Grossos fios de sangue escorriam do seu braço


para a calçada, do corte recente e de vários outros anteriores. Ela estava
mais pálida do que de costume. Sua voz ia perdendo o volume a cada
palavra. – E vai mexer com a cabeça dele. Ainda mais.

– E você? – perguntei.

– Não se preocupa comigo – ela disse, depois fechou os olhos e se deitou de


lado.

– Echo? – Ela não respondeu. Fiquei de joelhos (meus pobres joelhos


machucados) e chacoalhei seus

ombros. Kay estendeu o braço para sentir o pulso de Echo e eu peguei a sua
outra mão. O fogo fez as janelas da loja estourarem com uma explosão, mas
ela não se assustou. – Echo!

Seus olhos não se abriram, contudo ela conseguiu murmurar alto o bastante
para que eu ouvisse:

– Não tem problema. Era tarde demais para mim e para minha mãe mesmo.
Ainda mais com a amarração.

– Você poderia reequilibrar o feitiço, como fez com a Kay…

– São feitiços demais. Efeitos colaterais demais. Chega de feitiços. – Ela


suspirou. – Não tem como fugir.

– Echo, não…
– Fala para a minha mãe que sinto muito, mas que era tarde demais.

– Não, não é – eu disse. – Echo, escuta: você ainda pode vir para Nova York
comigo. Leva sua mãe

também. Vamos procurar hekamistas juntas. Mesmo se eu não for para


Nova York, podemos descobrir uma

maneira de te salvar. – Ouvi sirenes à distância e, mesmo assim, Echo não


se mexeu. – Você não deve ficar

aqui para ser interrogada, é melhor se levantar. Eles vão te achar, vão
descobrir a verdade, colocar você e sua mãe na cadeia. Por favor, Echo…
você precisa fugir. Echo… vamos lá…

Nenhum raio partiu do céu para me destruir. Meu coração não parou. E foi
isso que realmente me deu

medo.

A amarração da mãe de Echo não funcionava mais.

Baixo, ao longe, ouvi alguém chamar meu nome.

– Ari? Ari! – Jess correu na minha direção e eu soltei a mão de Echo.

Tentei correr ao encontro de Jess, mas meu joelho mal aguentava me manter
em pé. Ela chegou até mim e

me abraçou, quase me derrubando de volta na calçada, aí enfiei a cabeça na


sua camisa.

– Está tudo bem, está tudo bem – Jess disse.

– Desculpa – eu disse.

– Chhhh.

Ninguém veio abraçar Echo. Ninguém veio levá-la para casa.


Echo entrou em coma no caminho para o hospital e morreu algumas horas
depois. Tinha perdido muito

sangue, disseram. Mas os médicos não entendiam muito de hekame – ao


contrário de mim, com meus

múltiplos feitiços. Echo colocara um feitiço em si mesma que lhe permitia


arrombar portas, abrir fechaduras com as próprias mãos e destroçar estantes
de metal. Os efeitos colaterais de algo desse nível deviam ser

desastrosos.

O feitiço a tornara sobre-humana, mesmo que por um período curto. Ela


devia saber o que precisaria dar

em troca para equilibrar isso.

62. Markos

O cheiro me acordou. (“Alguém deixou carne na grelha por tempo


demais.”) Depois veio a dor. (“Sou uma

faca de metal quente de tanta dor.”) Tentei voltar a ficar inconsciente, mas
era tão inútil como dar de cara com a parede. Então, em vez disso, abri os
olhos.

– Oi – Diana disse.

– Você está bem – falei com dificuldade. Minhas cordas vocais ardiam.

Ela segurou minha mão. Senti tanta dor que parte da minha visão ficou
nublada, mas nunca teria dito isso

para ela, mesmo se conseguisse falar direito.

– Cal? – tentei perguntar, sem conseguir emitir nenhum som. Não estava
conseguindo ouvir direito, por

causa das sirenes. Estávamos em movimento. Numa ambulância.


– Ele está em outra ambulância – ela disse. Ele incendiara a loja de
ferragens. Será que o prenderiam por

incêndio criminoso? Pela casa de Ari, nove anos antes? O que quer que
acontecesse, senti alívio, não só por ele ter sido pego e nós termos
conseguido fugir, mas também por estar vivo. A morte é permanente. Não é

possível chamar os mortos para conversar ou saber o que eles acham de


determinada situação.

A ambulância passou por cima de um buraco na rua e quase desmaiei – ou,


pelo menos, o mundo, Diana,

os paramédicos e a dor começaram a se apagar.

Win?

Queria pedir desculpas para Diana e dizer que, mesmo se ela nunca mais
quisesse me ver de novo, eu

continuaria arrependido, mas não consegui abrir a boca, então apertei a mão
dela.

Win?

Não conseguia ver o mundo real, mas um cantinho da minha mente se


abriu, frio e iluminado, e assim

decidi ficar ali deitado e descansar, porque todos os outros lugares eram
barulhentos demais. Mas mantive a porta aberta, para poder sair quando me
acalmasse.

Adeus, Win.

Concussão grave. Queimaduras de segundo grau no rosto e nas pernas.


Queimaduras de terceiro grau nas

mãos. Parte da minha sobrancelha direita nunca voltaria a crescer, embora


tenham me prometido que a pele
irritada e enrugada das bochechas e do nariz voltaria ao normal. Não ficaria
mais tão parecido com meus

irmãos. Um conjunto desigual.

– Você teve sorte de não ter partido o crânio – os médicos disseram.

Ah, sim. Sorte.

Diana dormiu na cadeira ao lado do meu leito no hospital. Sua camiseta


estava meio queimada, seu cabelo embaraçado e chamuscado. Tinham lhe
dado soro e um sedativo, mas ela parecia bem para alguém que fora

presa numa jaula e quase morrera queimada. Melhor que o resto de nós,
com certeza.

Quando minha mente se recusava a se acalmar e eu não conseguia dormir,


virava a cabeça e ficava

observando-a respirar, remexendo-se ligeiramente na cadeira, com os fios


de cabelo vermelhos se enrolando

na parte de trás do pescoço. Eu tinha sorte, sim.

Não sabia dizer quanto tempo se passara desde a última visita de Brian, Dev
e da minha mãe. Brian estava à paisana, mas com sua cara de policial, sério
e vigilante. Dev estava de pijama e olhava para Brian e para nossa mãe com
o rosto perdido. Minha mãe – eu mal conseguia olhar para ela. Rios de
lágrimas desciam pelo seu

rosto agoniado. Diana deu uma olhada em todos nós e saiu discretamente do
quarto, fechando a porta com

cuidado atrás de si.

– Ai, meu Deus, Markos! – minha mãe disse, chorando mais ainda quando
olhou para os curativos, o leito
do hospital, a intravenosa na minha mão direita. – Mandei você não falar
sobre o feitiço. Implorei. Por que não me deu ouvidos?

– Eu? – Doía quando respirava; os médicos tinham se esquecido de


catalogar algumas costelas quebradas,

provavelmente de quando Echo me arrastara de lá. – Cal começou o


incêndio.

– Só porque você contou para ele…

– Estou falando do incêndio de nove anos atrás. Aquele que matou pessoas.

– Foi um acidente. – O rosto dela se contorceu. – Ele era só um menino.


Um bom menino. Estava tentando

chamar atenção e cometeu um erro. Acendeu uns fogos de artifício… não


sei por que foi na casa da família

Madrigal, e foi terrível… um acidente terrível… mas a vida dele não


precisava se resumir àquilo. Teriam

arrancado Cal de nós, Markos. Ele teria crescido na detenção juvenil. Teria
se transformado, se destroçado.

Mas, em vez disso, eu o ajudei… Ele começou do zero.

Ela agarrava a ponta do leito com as mãos trêmulas.

– Todo aquele dinheiro… todo o dinheiro do seguro do seu pai, e muito


mais, por todos aqueles anos... não

valeu de nada. Ele se lembrou. Contou para o resgate no caminho para cá…
está falando para as enfermeiras, para todo mundo. Tudo o que fiz por ele…
por todos vocês… não valeu de nada.

– Olha para mim, mãe. – Ergui a mão quebrada e tentei apontar para minhas
queimaduras. – Ele fez isso
comigo.

Em vez de olhar para mim, ela fechou os olhos.

– Eu também teria salvado você, sabia? Teria feito o mesmo por qualquer
um de vocês.

Engoli em seco com dificuldade.

– Você teria me enfeitiçado, sem meu conhecimento, pelo resto da minha


vida adulta?

– Eu dei uma vida a ele. Dei uma vida a todos vocês. – Ela continuava
chorando, o ranho se misturava às

lágrimas que pingavam na sua blusa. – Por que você tinha que estragar
tudo?

Ela cambaleou, e Dev, Brian e eu, por instinto, mesmo deitado, nos
movemos para ajudá-la a se equilibrar.

Estava chorando demais para continuar falando e se deixou levar para fora
do quarto por Dev, enquanto eu

ficava a sós com Brian.

Ele ficou observando os dois saírem.

– A mãe vai ser processada por obstrução à justiça – ele disse, como se
falasse sozinho. – Eu pedi

demissão.

Senti um frio na barriga.

– Ela vai ser presa?

– Eles querem fazer alguma coisa. O crime do incêndio da família Madrigal


prescreveu, então isso é tudo o
que eles têm.

– Eu não pensei…

– Claro que não. – Quando ele se voltou para mim, seu rosto tinha perdido
parte da severidade policial. –

Por que não me contou o que estava acontecendo?

– Você não quis saber.

– Isso não é…

– Claro que você quer saber agora… que alguma coisa aconteceu. –
Respirei o mais fundo que consegui e

tentei falar rápido, antes que ele pudesse me interromper. – Só que, naquele
momento, quando achava que eu estava triste e nervosinho por causa do
Win, você só queria que eu calasse a boca e agisse como um Waters

descolado.

Seus olhos se apertaram.

– Eu queria que você fosse feliz. É o que todo mundo quer para sua família.

– Sim. Exatamente.

Ele olhou para o sol nascente pela janela.

– Você sempre teve raiva de nós. Nunca entendi por quê. Você não teve uma
vida ruim, sabia?

Quis dizer a Brian que a vida que ele e meus outros irmãos me
proporcionaram nunca fora verdadeiramente

minha. Mas, embora ele estivesse se esforçando ao máximo para ouvir,


achei que não iria entender.
Ele suspirou.

– Nós poderíamos ter dado um jeito nisso juntos, se soubéssemos. Só que


agora não dá mais. – Fechei os

olhos, o que não impediu que eu ouvisse sua voz, que continuava
perturbadoramente calma. – Você realmente

não tem ideia do que fez, Markos. Nós protegíamos uns aos outros. Você
acha que alguém vai te proteger de

novo, depois dessa? Depois do que fez comigo, com Dev, com a nossa mãe
e com Cal?

Continuei com os olhos fechados. Era mais fácil não olhar para ele. Pensar
nele apenas como uma voz.

– Acho que é melhor você sair.

– Eu sou seu irmão.

– Vai embora, Brian.

Continuei de olhos fechados até ouvir seus passos e a porta se fechar. Não
tinha como saber se esse era

mesmo o fim – se tudo acabara, se eu não era mais um Waters, se não nos
falaríamos mais. Eu havia pedido

para ele sair, e ele tinha saído. Parecia fácil demais.

Mas não era. Porque agora eu estava sozinho.

Quando abri os olhos, Diana estava no lugar de Brian ao pé da cama,


olhando para mim.

– Você está bem? – perguntou.

– Não – eu disse. – Todas as pessoas que eu amo morreram ou me odeiam.


Ela sorriu por um segundo, então seu rosto se contorceu como se ela fosse
chorar.

– Diana… o que foi?

Seus olhos passaram pelo meu rosto, por minhas queimaduras sob os
curativos. Provavelmente cheias de

pus e sangue, com um cheiro de podridão. Eu estava horrível, claro. Só que


isso não devia tê-la feito chorar tanto.

– Onde estão seus pais? O que eles disseram?

Ela abanou a cabeça.

– Eles vieram me ver enquanto você estava dormindo. Estão preocupados,


mas está tudo bem. Eles

entendem.

– Entendem o quê? – Eu estava tão cheio de remédios que nada doía


fisicamente, porém, mesmo assim,

ficava arrasado ao vê-la tão triste. – Por favor. Me fala.

Ela tomou fôlego, trêmula, e se aproximou da cama, onde se sentou com


cautela para não tocar nenhuma

parte da minha pele machucada. Em seguida, deitou de lado junto a mim e


pousou a cabeça no travesseiro ao

lado do meu rosto enfaixado.

– Estou com medo porque – ela engoliu em seco – vou confiar em você de
novo, e isso é assustador.

Prendi a respiração e consegui erguer o braço para que ela pudesse encostar
a cabeça numa parte não
queimada do meu peito. Ela devia estar ouvindo meu coração bater
descontroladamente, porque, pela primeira vez em horas, senti o cheiro de
algo que não era fluido de isqueiro, carne, gaze e hospital. Senti o cheiro do
seu cabelo.

A única coisa capaz de fazer com que Diana me abandonasse era eu


mesmo. Sempre fora assim, desde a

festa da fogueira, quando eu poderia ter acabado com as suas esperanças ou


dado a ela uma noite

inesquecível, e preferi não fazer nada. O destino da nossa relação estava nas
minhas mãos. Eu podia fazer

com que ela desse certo ou ferrar tudo de novo.

A diferença era que agora não era apenas o destino dela que estava em jogo.
Era o meu também.

– Também estou com medo – eu disse.

Ela deve ter entendido tudo, porque sua respiração se normalizou e ela se
acomodou mais confortavelmente

no meu peito.

E eu me senti feliz. Muito feliz.

Naquele momento, eu teria passado o resto da vida no hospital envolto em


curativos se significasse que

poderia ter a cabeça dela junto à minha para sempre.

Contudo, ao mesmo tempo, sentia um buraco no peito de saudade de Win.

Sofria por não poder contar nada daquilo para ele. Porque ele não estava ali
para ver. Era terrível não poder conversar mais com ele.

Eu o amava muito. Nunca imaginei que teria que crescer sem ele.
Será que era um covarde por admitir isso? Não sei. Na verdade, me sentia
corajoso, sem precisar mais

manter as aparências.

Chorei sobre o cabelo vermelho de Diana, com o coração partido pelo peso
da morte de Win, e ela não se

afastou. Continuou comigo a noite toda.

63. Kay

Eu poderia contar o que aconteceu depois do desastre. Como fomos ao


hospital – o grande e velho hospital –, onde nos fizeram curativos. Poderia
contar como Cal ficou famoso, que sua mãe assumiu a culpa da acusação

de obstrução à justiça e abriu um processo de falência. Poderia falar das


semanas e semanas que minhas

costelas demoraram para cicatrizar. Eu estava lá enquanto tudo isso


acontecia, mas ninguém olhou para mim.

Poderia falar do meu feitiço. Ninguém mais me dá ouvidos. Sinto a mesma


sensação de quando ficava com

Mina no hospital. Eu perguntava algo para um médico ou enfermeiro e era


como se ninguém tivesse dito nada, Mina precisava repetir as minhas
perguntas. Sim, eu podia usar o banheiro. Sim, a comida chegaria logo
mais.

Sim, é esse o sentido de “carcinógeno”. Me sentia como se fosse um


pontinho na parede, uma mancha

irritante, algo que provocava um olhar de desprezo e um suspiro exasperado


– e ficava torcendo para que

ninguém notasse. Com meus efeitos colaterais, sentia todas essas coisas
cem vezes mais intensamente.
Eu poderia contar que a mãe de Echo perdeu a vitalidade rapidamente
depois da morte da filha. Ela não

conseguia mais fazer feitiços, sentia muita dor e então parou de comer. Ela
morreu antes que os turistas

fossem embora, em setembro.

Eu poderia contar que Diana e Ari ficaram tão gratas por eu ter salvado a
vida delas que as coisas entre nós voltaram a ser exatamente como antes –
não, melhor –, mas isso seria mentira.

Só que não estou sozinha. Tenho Mina. Mina me ama, por isso consegue me
ver, apesar do feitiço. Ela

trancou a faculdade por um semestre para cuidar de mim.

– O que é mais um ano? – Ela deu risada e, pela primeira vez, entendi o que
ela queria dizer. Algumas coisas são mais importantes do que planos ou
previsões. Algumas coisas precisam ser feitas agora.

Ari também se esforça. Ela me telefona, nós conversamos. Somos sinceras


uma com a outra. É de

verdade. Ela me dá o que pode, e não espero nem peço nada além disso.

Tudo bem. Tudo o que sempre quis foi ter duas boas amigas.

O lado bom dos meus efeitos colaterais é que não só os sentimentos ruins
são ampliados. Quando estou

feliz, o que não é raro, posso sentir a felicidade de maneira mais intensa e
clara do que antes. Quando me acontecem coisas boas, consigo sentir até a
última gota delas. E acontecem coisas boas o tempo todo. Até

mesmo comigo.

No entanto, algumas noites sonho que estou presa na loja de ferragens, só


que, em vez de Diana trancada e
Markos desmaiado, todas as pessoas que já amei na vida, mesmo que
apenas um pouco, estão atrás da grade

da oficina. Minha mãe, meu pai, Mina, Echo, Markos, Ari e Diana. Eu sou a
única pessoa que pode salvá-los, e a toda hora caio em armadilhas que
quebram minhas pernas, ferem meus pulmões e me fazem correr em

círculos. Nunca vejo sinal nenhum de Cal, apenas as armadilhas. Vou


ficando cada vez mais nervosa, até abrir

a grade com as próprias mãos, e meus entes queridos me encaram,


aterrorizados, emudecidos, desesperados, então me dou conta de que sou
Cal – o vilão da história –, e de que eles estão assustados e aprisionados por
minha causa. O terror me sufoca tanto quanto a fumaça que enche a oficina
– e não há hekamista nenhuma

para nos salvar. Depois acordo sem ar.

Feliz por ser invisível.

64. Ari

Uma semana depois do incêndio das Ferragens Waters, fui ao funeral com a
mãe de Echo, Diana, Markos,

Kay, Mina e Jess. Nenhum de nós sabia como deveria ser um funeral
hekamista, e a mãe de Echo não

conseguiu nos explicar, então os pais de Kay pagaram por algo simples na
Igreja Unitária da cidade.

Sentada no silêncio do funeral – quebrado apenas pelo choro da mãe de


Echo –, pensei em como estava

cega e desnorteada no funeral de Win, presa dentro da minha própria dor.


Fileiras e fileiras de pessoas atrás de mim sofriam por Win e me olhavam,
tentando encontrar palavras para me confortar. E pensei no funeral dos
meus pais. Jess era uma estranha na época, eu ainda não fizera amizade com
Diana, tinha tomado um feitiço

que havia arrancado uma memória terrível e tinha feito meu punho doer.
Assim como no funeral de Win, as

pessoas enchiam a igreja. Eu podia ter me sentido só, mas a vida de meus
pais não fora solitária.

Contudo, nós éramos os únicos que estavam ali por Echo, e a maioria de
nós só a conhecera nos últimos

meses, se é que a havíamos conhecido. Ela tinha passado a vida toda


escondida.

Me peguei desejando que Win estivesse ali. Não por mim, claro, mas por
Echo. Alguém de quem ela

gostava, alguém que provavelmente gostava dela, prestando-lhe


condolências. Alguém que tornara a vida dela menos solitária.

Diana segurava minha mão, e Markos, todo enfaixado, segurava a outra


mão dela. Ela tinha cortado o

cabelo queimado num estilo curto e irregular, e ele estava mais vermelho do
que nunca. As cicatrizes de

Markos o faziam parecer ainda mais um bandido bonitão. Ele se mudara


para o porão da casa de Diana depois

que saíra do hospital. Diana me contou que as coisas estavam tensas com os
irmãos Waters, e que a mãe dele corria o risco de ser presa. Jess havia
descoberto que eu poderia processar Cal no tribunal civil por danos morais,
mas a família Waters não tinha dinheiro, tudo fora entregue a Echo e a sua
mãe ao longo dos últimos nove anos. E eu não queria abrir um processo.
Acreditava que tinha sido um acidente do passado e que o

choque de se lembrar de tudo de uma vez levara Cal a fazer o que tinha
feito na loja de ferragens. Ele parecia já estar sofrendo o bastante, tendo de
conviver com sua mente perturbada. Depois de sair do hospital, foi

transferido para a ala psiquiátrica, onde provavelmente passaria muitos e


muitos anos. Eu não o perdoei – não ainda –, mas gostaria de fazê-lo algum
dia.

Diziam que a família Waters se mudaria da cidade assim que fosse possível,
só que Markos queria ficar. Eu

e ele não estávamos conversando muito – ainda não –, e a única coisa que
ele me falou no funeral de Echo foi pelo canto da boca, enquanto Diana
estava no banheiro.

– Eu entendo – ele disse, depois desviou os olhos, como se houvesse


alguém ali que se importasse se ele

falava comigo ou não.

No começo, pensei que ele queria dizer que havia entendido por que eu
tomara o feitiço para apagar Win, mas nós já havíamos tratado desse
assunto – da minha fraqueza generalizada, de não me importar o bastante

com Win a ponto de me lembrar dele. Quando pensei melhor, achei que ele
estava se referindo a Diana,

tentando dizer que entendia por que ela era minha melhor amiga. Então
comecei a pensar que talvez fosse algo mais profundo que isso. Talvez ele
entendesse minha relação com Win, por que Win queria ficar comigo, por

que devíamos ficar um com o outro. Eu também gostaria de compreender


isso, mas não tinha como

perguntar. Era um segredo ao qual nunca teria acesso.

Mas eu entendia por que Diana o amava. Ao lado dela, Markos mostrava
todas as qualidades: ele era

engraçado, leal e estava sempre disposto a defender os amigos. Além de


tudo, a ouvia e a levava a sério, tinha total confiança nela. O que me fazia
pensar que eu havia subestimado os dois.

Depois do funeral, ele foi descansar na casa de Diana e nós duas ficamos
sentadas no seu quarto, como

havíamos feito tantas vezes antes. Ela estava me fazendo rir com algo que
Markos lhe dissera, de repente

soltei:

– Acho que nunca mais vou dançar.

Diana inclinou a cabeça, desconfiada.

– Você pode comprar outro feitiço como o que Echo fez para você.

– E fazer uma cirurgia de joelho também.

– Sim. Mas um feitiço e uma cirurgia de joelho não são tanta coisa assim.
Faz anos que você ensaia. E o

Balé de Manhattan…

– Se Win não tivesse morrido, acho que eu não teria ido para Nova York.
Teria continuado aqui para ficar

com ele.

Diana abanou a cabeça.

– Você sempre quis dançar.

– Isso não quer dizer que eu nunca vá querer outra coisa.

Ela envolveu o tronco com os braços.

– Echo queria que você dançasse.


– Echo queria dar o fora daqui. – Isso parecia cruel, então abanei a cabeça.
– Ela queria salvar a mãe. E

acho que queria… se aproximar das pessoas. De outras pessoas. Ela nos
ajudou. Me deu o que eu disse que

me faria feliz. Acho… – Eu achava que, na verdade, Echo estava


apaixonada por Win. Mas ela guardava os

segredos dele, então eu guardaria o dela. – Acho que ela se sentia culpada
em relação a Cal também.

– Você não precisa se sentir culpada. Se tomar outro feitiço, todo mundo vai
entender.

– Sim, talvez.

Pressionei o punho dolorido contra o peito.

Eu não precisava de mais feitiços. Já era trabalho demais me acostumar


com os que tinha. O vazio dos

últimos momentos dos meus pais na terra. O ano perdido em que eu estivera
apaixonada por Win. O tipo

diferente de dor que eu tinha em vez disso.

– Você vai ficar bem? – ela perguntou.

Resisti à vontade de fazer que sim, dar risada e dizer “claro”. Em vez disso,
pensei com cuidado no que

realmente sentia.

– Sinto que está tudo mudando e saindo do meu controle – falei.

Ela concordou com a cabeça.

– E você não consegue dançar.


– E eu não consigo dançar – concordei, e ignorei o nó que me prendeu a
garganta. – Mas eu e Jess vamos

para Nova York mesmo assim.

Diana ficou paralisada, esperando que eu estivesse brincando.

– Mas… por quê?

– Muitas pessoas que não sabem dançar vão para Nova York o tempo todo.

– Vai me deixar aqui?

– Você não vai ficar sozinha.

– Não joga o Markos na minha cara. Nunca fiz isso com você quando
estava com o Win.

– Não é só o Markos – eu disse, e aquele maldito nó continuou a subir.


Tentei respirar pelo nariz. – Você

tem… seu pais. Você se lembra dos alunos da escola, dos professores.
Minhas memórias estão todas

confusas.

– Você se lembra de mim – ela disse com firmeza. – Quer me esquecer


também?

Não consegui respirar. Comecei a chorar, e Diana também. Um choro forte


e engasgado. Pensei: “Você não

merece chorar”, e isso só me fez chorar mais.

– Eu já ia mesmo. Era para ter ido, na verdade. Que diferença faz se é para
o Balé de Manhattan ou não?

Ela abriu e fechou a boca, depois secou os olhos e colocou as mãos nos
quadris.
– Me dá um tempinho pra arranjar um motivo.

Eu a abracei – um abraço estabanado, porque minhas panturrilhas travaram


no meio do quarto, mas deu

certo – a abracei e não a soltei. Não sou o tipo de pessoa que abraça, então
não sabia o segredo desses gestos até aquele momento: eles não são o
esforço de uma pessoa só. Uma abraça a outra.

Talvez fosse idiotice abandonar Diana agora que eu finalmente estava sendo
sincera com ela. Parte de mim

achava que era suficiente me apoiar nela e deixar que me ajudasse a passar
por aquilo. Só que uma parte maior sabia que, mais do que tudo, eu
precisava de uma tela em branco – e sem usar o hekame desta vez.

– Estou com medo – falei.

Diana me soltou e deu meio passo para trás.

– Do Cal?

– Não. Estou falando do futuro… de quando perder outra pessoa como


perdi Win. Tenho medo de não

conseguir lidar com isso.

Ela fez que sim, mas não disse nada.

O que mais havia para dizer?

Achava que nunca mais decidiria esquecer alguém. Não agora, sabendo o
que isso custava: para a

hekamista fazer o feitiço, com sua comida, seu sangue e sua intenção, por
todos os outros, que precisavam

carregar a dor sozinhos, e por mim mesma – pela perda não só da dança,
mas também da conexão entre o que
eu era e o que viria a ser.

Até entrar nas Ferragens Waters pela última vez, acreditava que a morte dos
meus pais estava guardada

com segurança em algum lugar do passado. Mas o passado não é apenas


isso – é o que nos constitui a cada

segundo dos nossos dias.

Eu e Cal esquecemos coisas e viramos pessoas diferentes do que teríamos


sido. Então resta a grande

pergunta: como seria se tivesse mantido a lembrança da morte dos meus


pais? Eu achava que ficaria

destroçada para sempre. Mas talvez tivesse me tornado uma pessoa melhor.
Não “boa” ou “perfeita”. Melhor.

Mais completa.

– O que você vai fazer agora? – Diana sussurrou.

Respondi a verdade:

– Não sei.

Só que não saber não fazia com que me sentisse presa ou sem controle. Me
tornava livre.

Jess encontrou um apartamento para nós no Lower East Side. É minúsculo,


quase sem janelas e tem um

cheiro estranho que sobe pelos ralos. Mas sua escada externa dá para o
terraço, onde deixaram uma cadeira

de jardim enferrujada.
Subo até lá com as pernas trêmulas e me sento na cadeira. O rio East fica
bem à minha frente, do outro

lado, o Brooklyn. À minha esquerda, vejo o topo do Chrysler Building, à


direita, mais rio. Estamos cercadas por água novamente.

Amanhã começo o último ano do ensino médio numa escola nova. Um


colégio normal, sem balé, onde

ninguém me conhece e eu não conheço ninguém. Aqui fora está escuro,


quente e úmido, e sinto um cheiro de

esgoto e lixo. Tenho lido bastante – a leitura me faz esquecer que meu
corpo não colabora – e escrito para Diana e para Kay, só que à noite subo
até aqui para pensar. Não posso mudar as decisões que tomei, nem

tentar encontrar as milhares de Aris alternativas que poderia ter sido. Em


vez disso, sento no terraço e tento responder à pergunta de Diana.

O que vou fazer?

Quem vou ser?

Vou ser como o Markos, uma cretina com coração de ouro – ou pelo menos
de prata?

Vou ser desesperada, mas audaciosa, como Kay?

Aberta e sincera, como Diana?

Vou me empenhar em fazer alguma coisa boa?

Tenho apenas o resto da vida para descobrir. Está na hora de começar.

Agradecimentos

Agradeço à minha família, que espero que aceite este livro como um pedido
de desculpas pelos muitos anos
que pulei na frente do computador para impedir que lessem o que eu estava
escrevendo; aos meus amigos,

que são inteligentes, engraçados e – sério, vamos falar a verdade logo de


uma vez – as melhor pessoas do

mundo; à minha agente, Tina Wexler, e à minha editora, Donna Bray, pelos
conselhos perspicazes, atentos e, muitas vezes, simplesmente corretos a
cada passo do caminho; a todas as outras pessoas da Balzer +

Bray/HarperCollins, incluindo Alessandra Balzer, Kate Jackson, Jordan


Brown, Viana Siniscalchi, Bethany Reis e Maya Packard; a todos os meus
colegas e mentores da Abrams Books, incluindo Susan Van Metre, Howard

Reeves e Tamar Brazis; aos meus brilhantes colegas do Vermont College of


Fine Arts, do Keepers of the

Dancing Stars e da incrível faculdade VDFA, incluindo meus orientadores,


A. M. Jenkins, Rita Williams-

Garcia, Franny Billingsley e Tim Wynne-Jones; a Jen Jude, que não


estranhou quando fiz perguntas sobre

incêndio criminoso, obstrução à justiça e crimes prescritos (e, devo


acrescentar, todos os erros jurídicos da história são responsabilidade minha
e apenas minha); a Skila Brown, Amy Rose Capetta, Lindsay Eyre, Erin

Hagar, Stefanie Lyons, Kristin Sandoval e Amy Zinn, que leram os


rascunhos, me incentivaram e deram

conselhos inestimáveis; e, finalmente, ao meu marido, Kyle Gilman, que,


além do seu amor e do apoio

cotidiano que me ajudaram a escrever este livro, também solucionou muitos


problemas da trama antes mesmo

de ler uma palavra sequer. Quem precisa de uma hekamista quando se tem o
Kyle?
Copyright © 2015 M aggie Lehrman

Copyright da tradução © 2017 Pavana

Publicado originalmente sob o título The Cost of All Things.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada
ou reproduzida – em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico
–, nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados sem a
expressa autorização da editora.

O texto deste livro foi fixado conforme o acordo ortográfico vigente no


Brasil desde 1º de janeiro de 2009.

EDIÇÃO UTILIZADA NESTA TRADUÇÃO M aggie Lehrman, The Cost


of All Things, Nova York, Harp erCollins Publishers, 2015

PREPARAÇÃO Fátima Couto e Andresa M edeiros

REVISÃO M artha Lop es e Júlia Thomas

CAPA Amanda Cestaro

FOTOS DE CAPA Aleshyn Andrei (Garota), NicoElNino (Casal),


Underworld (céu estrelado)/ShutterStock.com

PRODUÇÃO DE EBOOK S2 Books

1ª edição, 2017

e-ISBN 978-85-8419-051-5

2017

Pavana é um selo da Alaúde Editorial Ltda.


Avenida Paulista, Conjunto 11, 1337

01311-200 – São Paulo – SP

www.edicoespavana.com.br

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Document Outline
Quarta capa
Sobre a obra
Sobre a autora
Folha de rosto
Dedicatória
Sumário
Parte 1. As hekamistas
1. Ari - Cinco dias depois
2. Kay - Cinco meses antes
3. Markos - Um dia antes
Parte 2. Efeitos colaterais
4. Win
5. Ari
6. Markos
7. Kay
8. Ari
9. Win
10. Ari
11. Kay
12. Markos
13. Ari
14. Markos
15. Win
16. Kay
17. Ari
18. Markos
19. Win
20. Kay
21. Ari
22. Markos
23. Win
24. Markos
25. Ari
26. Kay
27. Markos
28. Ari
29. Kay
30. Markos
Parte 3. Os preços
31. Kay
32. Ari
33. Win
34. Kay
35. Markos
36. Ari
37. Kay
38. Markos
39. Win
40. Ari
41. Kay
42. Markos
43. Win
Parte 4. Todas as coisas
44. Ari
45. Markos
46. Kay
47. Ari
48. Markos
49. Kay
50. Markos
51. Ari
52. Markos
53. Kay
54. Ari
55. Win
56. Ari
57. Kay
58. Ari
59. Markos
60. Kay
61. Ari
62. Markos
63. Kay
64. Ari
Agradecimentos
Créditos

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