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“Você não escolhe fugir de uma coisa assim, Ari. Não pode engolir em seco
e se esforçar para que isso
passe. Sempre vai haver consequência.”
feitiços para ajudar quem está passando por dificuldades. Nessa mitologia
criada pela autora Maggie Lehrman, a magia tem consequências claras, mas
um tanto imprevisíveis. Um feitiço desenvolvido para melhorar o
Kyle Gilman
Sobre a autora
Maggie Lehrman é uma escritora e editora que mora no Brooklyn, Nova
York. Ela cresceu no subúrbio de Chicago e estudou Inglês em Harvard.
Durante a década em que trabalhou como editora de livros para
A garota que
Maggie Lehrman
Tradução de
Guilherme Miranda
Para Kyle
Sumário
Capa
Quarta capa
Sobre a obra
Sobre a autora
Folha de rosto
Dedicatória
Parte 1. As hekamistas
4. Win
5. Ari
6. Markos
7. Kay
8. Ari
9. Win
10. Ari
11. Kay
12. Markos
13. Ari
14. Markos
15. Win
16. Kay
17. Ari
18. Markos
19. Win
20. Kay
21. Ari
22. Markos
23. Win
24. Markos
25. Ari
26. Kay
27. Markos
28. Ari
29. Kay
30. Markos
Parte 3. Os preços
31. Kay
32. Ari
33. Win
34. Kay
35. Markos
36. Ari
37. Kay
38. Markos
39. Win
40. Ari
41. Kay
42. Markos
43. Win
44. Ari
45. Markos
46. Kay
47. Ari
48. Markos
49. Kay
50. Markos
51. Ari
52. Markos
53. Kay
54. Ari
55. Win
56. Ari
57. Kay
58. Ari
59. Markos
60. Kay
61. Ari
62. Markos
63. Kay
64. Ari
Agradecimentos
Créditos
1. Ari
ao longo dos anos – colas de prova, retoques de beleza e auras de boa sorte.
Mas eu não. O único feitiço que já usei, quase dez anos atrás, foi feito por
uma hekamista de Boston. Me lembro do seu consultório
esterilizado e da fatia de torrada seca que ela colocou num prato à minha
frente. Me lembro de chorar tanto que mal conseguia engolir a torrada.
aceito, embora saiba que não deveria aceitar nem bebida nem comida de
estranhos, muito menos de uma
Meu pulso esquerdo dói. Dentro, embaixo do músculo e do osso. Uma dor
antiga. Meu efeito colateral.
Lipton comum em duas canecas de cores fortes. – Quem quer que seja, ele
vai te beijar, dizer as palavras
certas, acreditar que é de verdade. Mas você não. O amor exige esforço. –
Ela sorri para mim, um sorriso
sobem pelo meu corpo todo. Eu podia mudar de ideia, inventar alguma
coisa. Dizer que quero ter sorte ou
me tornar.
A Diana sempre me encheu por eu não querer falar sobre meus sentimentos.
É verdade, mas isso não significava que eu não tivesse nenhum. Eu só não
queria deixar que eles aflorassem todos de uma vez, que me dominassem. E
agora não consigo mais me conter.
A hekamista bebe um gole do seu chá. Olha para mim. Não consigo nem
levar a caneca à boca.
– Concordo. Perfeito.
– Bom, se você tiver o dinheiro, posso fazer. Claro. Posso preparar agora
mesmo, na verdade. Você toma
sorrindo só para mim. Não haveria mais beijos, promessas e planos. Amor,
nunca mais.
Nunca mais teria uma noite como a da véspera na praia. Nunca mais ouviria
palavras raivosas. Nunca mais
acordaria com a ligação da mãe dele. Nunca mais faria longas caminhadas
voltando da praia com areia e algas no cabelo, o estômago revirado, os
olhos apertados e secos demais para conseguir chorar. Toda a dor dos
para usar que não me lembrasse de Win. Não sabia que o dinheiro estava lá
e não tenho certeza se é realmente meu, mas não sei quem mais o teria
colocado lá, e não consigo deixar de pensar que encontrá-lo foi um sinal,
uma confirmação de que comprar esse feitiço é a coisa certa a fazer.
neurônios. Mas para algo assim? – Ela me contempla, e tento agir como se
essa informação fosse novidade.
maioria das pessoas sente pelo menos algumas dores depois de um feitiço
de memória. Pode afetar os
– Ah! – a hekamista diz, batendo com o dedo na cabeça. – Era para ter
perguntado antes, que besteira a
– Não.
– Juro que nunca tomei nenhum outro feitiço – digo rápido para não ser
pega na mentira. Eu minto muito mal. Se ela me pressionar, vou acabar
cedendo. Resisto à vontade de segurar o punho de novo e massagear o
lugar onde dói. Ele está fraco, como se me avisasse: “É isso que acontece
quando você toma feitiços”. Em
vez disso, olho fixamente para os meus pés. Dentro dos tênis, eles estão
vermelhos e doloridos. Perdi ou
Se ela soubesse a verdade, recusaria fazer o feitiço para o meu próprio bem,
para evitar o agravamento dos efeitos colaterais. Mas eu consigo suportar
outros efeitos como o meu punho – é com isso que lido todo dia no balé.
Dor. Sofrimento.
Mas dor física e sofrimento físico. O que são alguns músculos machucados
em comparação com a dor de perder Win?
faíscas, ela ergue a panela sobre o balcão, fazendo-a parar no ar. Pelo menos
é o que parece de onde estou vendo.
– Ah.
– Ela é especial, a minha filha. Sei que todos os pais pensam isso, mas é
verdade.
Exatamente quando acho que não consigo me sentir pior, sinto uma saudade
súbita da minha mãe. Também
é uma dor estranha, e normalmente consigo passar semanas sem reavivá-la
– a dor do punho é muito mais
pelas rachaduras das paredes e do piso. Meu punho pulsa junto com meu
coração. A hekamista, à beira do
Não consigo ver o que está acontecendo com a panela de sopa.Ela está no
meio do processo.
– Você parece estar decidida. Isso é bom. Conheça a sua mente, conheça a
si mesma. Mas os jovens nem
sempre pensam direito nas coisas, e ninguém fala sobre o que o hekame faz.
Não como antigamente. Vocês
acham que é perigoso, agora. Se é ilegal virar hekamista, deve ser perigoso,
não é? Uma pena. Que bobagem, que bobagem! – O apartamento está quase
todo às escuras, com exceção da luz emitida pela panela atrás da
dizer oi, você não o conhecerá, ele vai ficar confuso ou bravo… ou
qualquer coisa assim.
– Isso não vai ser problema – eu digo. Respiro e tomo um gole do chá. Tem
gosto de Lipton, falta leite. No escuro e no frio, enquanto minha salvação
está sendo preparada, é fácil dizer as palavras mais difíceis do
2. Kay
marrom, amarelo e cinza, com o céu das mesmas cores que a terra.
– À liberdade!
– Viva! – falei. Não conseguia pensar em algo a que brindar, mas, se não
dissesse nada, não faria parte da comemoração.
Diana e Ari, feliz pelas duas. Logo depois que as aulas terminassem, elas
partiriam para o verão de seus
– Você vai ser a rainha daquelas jóqueis metidas a besta – Ari disse. –
Talvez encontre um bom cavalariço
para seduzir.
– É mais provável que eu passe muito tempo com meu cavalo e que, no
meio do verão, descubra que
– Azar o deles.
– A pistoleira do balé. Essa sou eu. – Ela pegou a garrafa de Diana, cravou
a ponta do pé no chão e girou, parando apoiada nele sem perder o
equilíbrio, ao mesmo tempo em que impulsionava o outro pé para trás, em
uma linha reta como a corda de um arco. Ela deu um gole sem cambalear.
– Cadê o Win? – perguntei. Ari passava a maioria das noites com seu
namorado, Win Tillman. E era por isso
– Ele está doente em casa. O Markos está dando uma festa, mas eu queria
comemorar.
Diana não discordou. Ela era gamada por Markos Waters, o melhor amigo
de Win, mas Ari sempre dizia
que ele não era para namorar. Ari andava com ele e com Win quando não
estava com a gente, então acho que
ela devia saber melhor do que nós.
demais”. Não queria que a noite acabasse. Fazia só uns quatro meses que eu
era amiga de Diana e Ari, desde que eu e Diana sentamos juntas na aula de
inglês e começamos a sair nas noites que Ari passava com Win. Ari e Diana
eram inseparáveis havia anos, sussurrando durante a aula e cantando pneus
dos carros uma da outra, e eu sempre me perguntava como seria ter uma
amizade como aquela. Com uma pessoa que você escolhe, em
vez de já nascer com ela, como acontecia comigo e a minha irmã Mina.
Primeiro fiz amizade com Diana, mas logo depois fui chamada para sair
com Ari também, e viramos um
trio. Quatro meses de amizade. Seis meses do meu feitiço de beleza, que me
deu confiança para começar a
falar com Diana. E dois anos desde que Mina ficou melhor e me largou. Eu
conseguia lembrar todas as datas
Diana e Ari se viraram para olhar para a casa. Parecia normal vista de fora,
talvez um pouco acabada. Na
Quando fui lá para tomar meu feitiço de beleza seis meses antes, ainda dava
para ver os pedaços sem grama
Diana se aproximou de Ari como que para consolá-la, mas ela se afastou.
Eu nunca tinha visto Ari abraçar ou
Não, deixa para lá, não era o que eu queria… hum… Acho muito doido
todas as coisas pelas quais as pessoas
– Ora, você não precisa dizer isso. – Dei uma risada cujo som foi soprado
pelo vento quase imediatamente.
– Ei – Ari falou. Sua expressão ficou firme e, por mais que ela fosse uns
quinze centímetros mais baixa, eu me encolhi. – Não fica assim. Você é
incrível. Todas nós somos, tá?
Diana riu.
– Viu? A Diana entende. – Ari se virou para mim com uma expressão
decidida. – A questão, Kay, é que eu
sou incrível, e não sou amiga de pessoas que não sejam incríveis, logo, et
cetera. Dá pra você concordar?
Eu não fazia a menor ideia do que ela estava falando, mas, fosse o que
fosse, parecia incrível... parecia uma promessa... então concordei com a
cabeça e disse que sim.
Pude imaginar os meses seguintes com tanta clareza que quase me fez
explodir. Eu tinha amigas que
gostavam de mim e que estariam lá para mim e me defenderiam – até de
mim mesma.
praias e lojas.
Parei de andar.
Elas pararam um passo ou dois depois e se viraram para olhar para mim. O
rosto pequeno, aquilino e
insistirem que sua visão de mundo era a certa, apesar dos meus anos de
evidências do contrário.
– Tudo ok, Kay? – Ari perguntou, acotovelando Diana pela própria piada.
– Tudo – respondi. – Tudo bem. Na verdade, estou ótima e sou uma pessoa
incrível. Agora sei disso.
Eu não queria mudá-las – não queria obrigá-las a sentir coisas que não
sentiam. O feitiço não era para criar algo do nada e inventar uma relação
nova. Eu poderia continuar a ser eu mesma, e elas poderiam continuar a ser
quem eram, só que o feitiço as empurraria para mim pelo menos uma vez a
cada três dias, e elas não
Elas seriam leais. Seriam constantes. Não me largariam para viajar pelo
mundo. Não teriam como me largar
e estava feliz. Desde que a vida delas desse um pouco errado, nós
estaríamos juntas.
3. Markos
Um dia antes
Da primeira vez que prestei atenção nela foi do jeito como a gente olha para
as meninas gostosas: pelo canto do olho, um relance de cabelo e olhos
escuros, uma vontade de virar a cabeça e olhar fixamente. Foi só
quando obedeci a essa vontade e olhei com atenção que a reconheci. A filha
da hekamista.
atrás da mãe, olhando com desconfiança para todo mundo. Ela sempre
usava lápis preto carregado no olho e
um longo casaco preto, com muitos botões, que se movia em volta dos seus
quadris, e seu cabelo preto era
curto e bagunçado.
tempo e energia para correr atrás da filha de uma hekamista? Seria preciso
ficar de olhos bem abertos e
proteger sua comida o tempo todo. Além disso, havia umas cem outras que
não eram filhas de hekamista na
escola e com uma beleza que não era tão… complicada. Então,
definitivamente, posso dizer que esse não foi o motivo por que me
aproximei dela. Minhas razões eram puramente altruístas. Quer dizer,
quase.
Win saiu correndo depois do treino, quase sem acenar, quando gritei:
estava com preguiça e não queria vir ou ficava mal quando vinha.
Ele andava péssimo nos últimos tempos, e, como melhor amigo dele, eu
sabia que era minha obrigação
animá-lo. Ari também estava se esforçando, e, normalmente, com a junção
dos nossos poderes,
desde que éramos crianças, então eu sabia o segredo para deixá-lo melhor:
não dava para pedir que ele ficasse feliz. Era preciso fazer alguma coisa.
mãe sem dúvida a descobriria e arrancaria minha pele. Por isso, vendo Win
de cabeça baixa, em silêncio, e
ficaram longe. Eles sabiam que era melhor não me interromper quando eu
falava a sós com uma garota.
– E aí? – cumprimentei.
– Estou querendo saber o que você quer. – Ela não falou com raiva, mas eu
saquei. Ela era uma mulher de
negócios.
– E daí?
encarou. Sua beleza era meio assustadora, como se a qualquer momento ela
pudesse se transformar num
triciclo quebrado perto das portas dos fundos e uma mangueira enrolada na
garagem.
– Eu quero fazer uma festinha amanhã à noite – eu disse. – Eu, meu melhor
amigo e a namorada dele.
– Parece divertido.
– Quero que seja uma festa especial. – Tirei o dinheiro do bolso e os olhos
da filha da hekamista se
arregalaram. – Aposto que sua mãe pode me ajudar a torná-la extremamente
especial.
– Você é o Markos Waters, certo? Das Ferragens Waters? Aquele que tem
um bando de irmãos?
– O próprio.
Ela estava se referindo ao cabelo preto, aos olhos azuis e ao nariz aquilino.
Se nós quatro ficássemos um do lado do outro, pareceríamos com fotos de
um só tiradas em anos diferentes.
– Obrigado.
Sorri para ela, porque a conversa tinha saído do rumo e ela podia virar um
dragão a qualquer momento. Eu
gostava de uma boa paquera, como qualquer cara, mas tinha a impressão de
que ela não estava flertando
comigo e, na verdade, nem gostava de mim, o que era estranho. Eu era
incrível. Todo mundo sabia disso.
Ela não se parecia com as hekamistas que eu imaginava. Não tinha a idade
daquelas velhas que a gente vê
enlouquecendo e definhando.
– Você não vai me denunciar, vai? – ela perguntou, tentando não demonstrar
preocupação.
– Ah, claro. Isso é um golpe. Meu irmão policial está ouvindo pela escuta,
louco para prender a hekamista
sexuais.
– Ora, eu nunca faria isso. Não sou puritano, não ligo para o que você faz.
Negócios são negócios.
– Vai sonhando.
Eu sabia que ela faria o que eu tinha pedido, e não só por causa do dinheiro.
Ela me parecia alguém que
Eu não entendia nada. Sempre tivera sorte. O mundo não se curvava aos pés
de ninguém, nem mesmo aos
de Markos Waters.
mudou tudo.
A noite não tinha começado muito bem. O terno que minha mãe achara no
bazar e o buquê caseiro que
minha irmã Kara tinha feito para Ari com as rosas da vizinha faziam com
que eu me sentisse um impostor,
como um vigarista que conta mentiras para assumir a vida de outra pessoa.
Culpei essas coisas pela nuvem
negra que me seguiu até o ginásio, mas a verdade era que eu estava
embaixo dessa nuvem fazia dias – talvez semanas.
(Talvez a vida toda. Desde que me lembro, sinto um peso sobre mim.
Alguns dias, ele mal se nota na
O fato de meu namoro com Ari parecer a maior farsa de todas não ajudava.
Ela era tão bonita, talentosa,
forte e blá-blá-blá. Foram essas coisas que me atraíram nela, mas, agora que
estávamos juntos, sua beleza, seu talento e sua força me distanciavam. Eu
era medíocre em todos os sentidos. Jogava como interbases no
boas notas e ter amigos leais. Ari era excepcional. Ela era uma das melhores
bailarinas do país. Tinha superado um passado trágico. Era cheia de vida, a
parte do quadro em que o artista havia passado o dia inteiro antes de me
rabiscar às pressas no canto.
– Ari.
– Estou falando sério. O que você quer dizer sobre minha namorada?
– Certo. Vou reformular. Menina mais gostosa com quem eu possa ficar?
– Serena Simonsen.
Do outro lado do salão, vi Ari dançando, e deu para notar que ela estava se
esforçando muito para relaxar –
parar de contar as batidas, parar de prestar atenção nos rodopios. Ela queria
se misturar às pessoas normais.
– Que tal a Kay Chapal? – eu disse, já que ela estava dançando perto de Ari.
– Enfeitiçada demais.
careta azeda.
– Você é um imbecil.
– Por favor, me diz que você não está planejando alguma coisa.
Markos sorriu.
Faz anos que os irmãos mais velhos de Markos nos falam das pegadinhas da
Festa de Boas-Vindas. Brian
levou uma cabra de smoking como seu “par”, Dev prendeu na cesta de
basquete um projetor de laser que refletia xingamentos numa das paredes, e
Cal trocou todas as músicas do DJ pelo “ABC” dos Jackson 5.
normal e feliz aos meus olhos. Todos se sentiam à vontade. Quando voltei a
olhar para Markos, ele havia
Ela estava com um vestido tomara que caia azul, mais longo atrás do que na
frente. Eu já tinha visto seus
erguida no alto, arqueando as costas e voando. Eu não podia fazer isso por
ela, então continuei arrastando os pés.
Quando começou a música lenta, ela me olhou e pôs as mãos nos meus
ombros. Eu coloquei as minhas na
cintura dela e balancei para trás e para a frente. O tecido azul de seu vestido
tinha o calor do seu corpo, mas cintilava tanto que achei que minhas mãos
poderiam escorregar. Tinha medo de apertá-la com muita força –
não porque achasse que iria machucá-la, afinal, eu sabia que ela era mais
forte do que eu, mas porque poderia demonstrar como eu queria abraçá-la, e
ela teria que se afastar, deixando claro que não me desejava tanto
– Sente a música no peito – Ari disse com um sotaque europeu, a voz dela
de “mestra do balé”. – O que a música te diz?
Prestei atenção.
– Ela diz: “Eu sou uma balada de boy-band com uma letra besta”.
Ari riu.
Ela sorriu para mim – uma batida agradável no peito. Antes que eu perdesse
a coragem, me aproximei e a
Era isso: eu estava prestes a dizer algo que deixaria claro como gostava
dela, e a gangorra desabaria. As
gritaria começou. Quando minha vista ficou limpa, pude ver Ari olhando
para cima na direção do teto escuro do ginásio, rindo. Grandes gotas
ensaboadas caíam das entradas de ar. Ao nosso redor, as meninas tentavam
Peguei a mão dela e fomos deslizando até as portas do ginásio. Quase todo
mundo estava saindo aos gritos
– … sorte que era eu e não outro designado para a escola. Foi muita
idiotice, Markos – o policial dizia, e, antes de chegarmos perto o bastante
para ver, percebi que era o irmão mais velho de Markos, Brian. Apertei o
passo nos últimos dez metros que nos separavam deles, com Ari logo atrás
de mim. Brian virou para nós. –
certamente Markos contara com isso. Brian também tinha essa noção, e sua
testa se franziu ainda mais.
– Eu devia levar você para a delegacia, Markos. Seria bom para você
aprender uma lição.
– Não são bolhinhas depois de passarem pelo tubo de ar quente, seu idiota.
É só sabão.
mas, antes que eu chegasse perto dele, Ari se interpôs entre Markos e o
irmão.
– Não foi o Markos – ela disse. – Ele ficou com a gente a noite toda.
– Ele acabou de sair, juro. Ele não teria tido tempo de montar tudo aquilo –
ela insistiu. – E não faz sentido, Brian… quer dizer, policial Waters. Vocês
sempre pregaram suas peças no último ano, não foi? Então por que Markos
pregaria uma agora?
Brian levou um segundo para assimilar essa lógica, depois se voltou para
Markos.
– É verdade? – Markos não olhou para nenhum de nós nos olhos, mas fez
que sim. – O que você estava
Brian se virou para mim. Markos e Ari também. Era minha vez de decidir o
que fazer.
– Foi divertido.
retribuiu o aceno. Ari revirou os olhos e, quando Markos passou por mim,
pôs a mão no meu ombro e se
aproximou.
– Ela é legal. Pode ficar com ela – ele sussurrou no meu ouvido, como se a
decisão de Ari ficar ou não
– Você está me tirando? Ela está super a fim. Se liga e olha só pra ela.
No caminho, segui o conselho do Markos e olhei para ela. Não para a ideia
que eu tinha dela. Não para a Ari que usava sapatilhas e flutuava no palco.
Não para a menina cujos pais tinham morrido quando ela era
de ar do teto. O vestido de Ari era tão macio e o chão tão escorregadio que
eu precisava segurá-la com toda a firmeza, senão ela escaparia e nós dois
cairíamos no chão. Pus as mãos nas suas costas. Ela me abraçou com a
mesma firmeza – suas mãos se entrelaçaram no meu pescoço, enrolando
meu cabelo, e sua bochecha
encostou no meu queixo – dava para sentir seu coração batendo através do
tecido do terno de segunda mão.
Todos que haviam se irritado por causa das roupas e do cabelo arruinado
tinham saído fazia tempo, mas
escuro no ginásio, exceto pela luz dos celulares das pessoas, que
iluminavam os vestidos cintilantes. Havia um cheiro de lavanderia no ar e,
como o DJ tinha parado minutos atrás, dava para ouvir as pessoas rindo,
levando tombos e tentando dançar ao som de uma caixinha acústica portátil
que alguém tinha conectado ao celular. Era só uma questão de tempo até
Brian ou alguma outra autoridade vir nos expulsar, por isso aproveitamos
aquele momento.
Ari relaxou contra mim. Todo o esforço se esvaiu de seu corpo. Nós nos
fundimos um ao outro.
Ela suspirou mais fundo em meus braços. Seu cabelo estava molhado e
alisado, metade da maquiagem tinha
escorrido de seu rosto e estava passando para a minha roupa e seu vestido
tinha ficado molhado e disforme.
Mas eu nunca a vira tão bonita no momento em que ela ergueu a cabeça um
pouquinho para sussurrar no meu
ouvido:
Sua pele ensaboada estava colada na minha. Seus braços me prendiam. Ela
tremeu de leve, talvez um
calafrio. Ela não era de pedra e mármore, não era perfeita e distante. Estava
ali, na minha frente, e me
escolhera.
– Eu te amo – eu disse.
Ela olhou para mim com um brilho nos olhos. Aliviado, notei que não
estava surpresa.
– Eu também te amo.
Balançamos para a frente e para trás. Dançando. No escuro molhado, nós
dois, juntos.
5. Ari
Todo mundo ficava me dizendo que eu amava Win. Tia Jess, Diana. Até eu
mesma: teve o bilhete que
mover a caneta pela página, só que não do que estava pensando enquanto
fazia aquilo.
Você tinha um namorado. Win Tillman. Você o amava. Por mais de um ano.
Ele morreu. É sofrimento
demais. Se esse feitiço funcionar, você não vai mais se lembrar dele.
tido namorado algum. Tinha ficado com meu parceiro de pas de deux no
Instituto de Verão no ano passado, mas havia sido algo superficial, nada
sério.
Então liguei para Diana. Ela atendeu na hora, com a voz estranhamente
baixa e séria.
– O funeral é amanhã.
– Eu… hã…
– Todo dia, quando acordo, ainda não posso acreditar que ele tenha
morrido. Eu só… não acredito. Quer
dizer, a gente não precisa falar sobre isso, se você não quiser. Na verdade, é
melhor não falar. Desculpa ter entrado nesse assunto. Mas não quero que
você pense que estou ignorando. Porque estou pensando nisso.
tomar uma decisão. Eu e Diana fazíamos tudo juntas, contávamos tudo uma
para a outra. Não?
Lá fora, o sol estava forte e a grama verde. Um dia bonito. Eu tinha aula de
balé dali a meia hora, e queria ir.
– É. Se quiser que eu vá aí, acho que ela pode me levar. – O carro de Diana
andava quebrando muito, o que
– É. Eu também não.
– Não precisa fazer nada. Quer dizer, pode fazer o que quiser.
Era sexta-feira. A última vez que eu me lembrava de ter dançado tinha sido
uma semana antes. Conseguia
meu corpo se sentia. Era como… um único músculo. Meu braço, meu
tornozelo, meus quadris e minhas
Uma sensação se abriu no meu estômago. Algo pior que o nervosismo, mas
não exatamente pânico. Não
ainda. Segurei o punho dolorido contra o peito, como que para protegê-lo.
Tia Jess pareceu surpresa quando desci a escada, prendendo o cabelo num
coque.
Seus olhos estavam vermelhos. Toquei a pele em volta dos meus: inchada e
sensível. Eu também tinha
chorado.
pareceu velha. Ela tinha só quinze anos a mais do que eu, porém a tristeza
ressaltava as rugas do seu rosto, e eu podia jurar que havia mais fios
brancos no seu cabelo do que da última vez que eu tinha olhado. Algum dia,
na lanchonete dela, a chamariam de tiazinha, e teriam razão.
– Pensei que a gente poderia conversar – ela disse. – Passar algum tempo
juntas. Tirei folga do trabalho.
Depois.
Jess olhou fundo nos meus olhos, aquela encarada de quem não leva
desaforo para casa que costumava
– Sim.
Rowena, ex- prima ballerina do Royal Ballet e minha professora fazia nove
anos, me deu um abraço quando entrei (tão constrangedor e bem-
intencionado quanto o de Jess), mas não pareceu surpresa ao me ver. Talvez
ir ao balé tivesse sido a coisa certa a se fazer, afinal. Aquele era o meu
lugar, naquela sala de ensaio, com suas três paredes de espelhos e uma de
janelas. O antigo piano esperava no canto, como sempre, e, como sempre,
sala estéril, sem algo em que pousar, um lugar para descansar. Tentei sentir
os músculos e as articulações,
Fiz que sim, mantendo o rosto estoico, embora este fosse o conselho que ela
dava quando alguém fazia
para ser destruída e substituída pelo que eu encarava diante de mim: uma
mixórdia de cotovelos, joelhos aos trancos, braços estabanados, pulsos
desajustados. Quanto mais eu me forçava para alinhar o corpo, pior
com a mão e dizia o que queria (“Tombé, pirueta, relevé e estender, pas de
bourrée e balancé, balancé…”). Eu fazia a contagem, esperando a minha
vez.
Assim que atravessei o piso, soube que não estava apenas destreinada.
Soube por que tinha sido estranha a sensação de me vestir para o balé.
Mas, com os olhos abertos e uma parede de espelhos à minha frente, dava
para ver como meu corpo
não conseguia fazer correções se não tinha como regular, não dava para
consertar o que, na minha cabeça,
parecia perfeito.
Quando me esforcei ainda mais, ignorando os sinais que meu corpo estava
dando e me baseando apenas no
espelho, dei um jeito de acertar uma das mãos no meu próprio rosto e perdi
o equilíbrio, caindo de cara no chão.
O piano parou. As outras meninas estavam olhando para mim, ainda caída
no chão, com os rostos cheios
No corredor, ela não me soltou nem quando sentei no banco. Seus dedos
eram como adagas na minha pele.
– Está tudo bem – eu disse. Mesmo assim, ela não me soltou. – Eu estou
bem.
colapso nervoso. Mesmo assim, achei que ela poderia ter razão. A pulsação
do punho dolorido parecia se
espalhar por todo o meu corpo, e eu quase não conseguia sentir mais nada.
Nem mesmo vergonha.
– Primeiro de agosto.
– Então você vai estar – ela disse apenas. – E eu preciso voltar para a aula.
Fica aí e depois a gente
Fiz que sim, mas, logo que ela saiu do vestiário, eu me levantei e saí
correndo, estabanada, porta afora.
Meu corpo não parecia mais um só músculo, nem mesmo vinte músculos.
Parecia que eram milhares. As
6. Markos
não me lembrava do funeral do meu pai, mas dava para ver que eles
estavam se lembrando, comparando,
clubinho idiota do qual eu nunca poderia fazer parte. Eles que se fodam.
Esse era o meu amigo. Esse era o dia de Win, não do nosso pai. Esse era o
meu sofrimento, não o deles.
Na frente do salão estava um caixão branco. Não precisei olhar para saber o
que havia dentro dele.
aquele babaca metido a besta que nunca tinha conversado com Win, que só
o conhecia pelas fotos que
Passei por Cal, que não tentou me deter, e por minha mãe, que tentou me
pegar pelo braço, sem conseguir.
Saí correndo na direção oposta ao caixão até a saída, mas havia mais gente
entrando, ondas e ondas de gente, e lá fora estava ensolarado, quente e
insuportável, uma linda tarde de junho, as primeiras semanas do verão, que
maldito milagre de merda. Então me virei antes de chegar à última porta e
entrei num armário cheio de
Covarde.
Até para os seus irmãos? Eles estão lá dentro, se perguntando qual é o seu
problema.
Por quê?
Respirei fundo mais algumas vezes por entre o tecido e estava prestes a sair
quando a porta se abriu.
Estiquei a mão para fechar a maçaneta e quase dei de cara com Ari
Madrigal.
– Oi – eu disse.
Ela ficou olhando para mim. Seus olhos estavam vermelhos, mas sua
tristeza não me deixou com raiva
como a do resto do mundo. Ela era digna. Ela, assim como eu, tinha amado
Win o suficiente para ser digna
dessa dor.
– Pois é.
– Espera! – Peguei seu braço. Ela olhou para minha mão e eu a soltei. –
Você vai… vai lá para casa depois?
Covarde.
Ela não retribuiu o abraço. Seu corpo ficou tenso. Quando me afastei para
ver seu rosto, até seus dentes
estavam cerrados.
– Desculpa – eu disse, e a soltei.
Ari não era alguém que eu escolheria para ser amigo. Ela tinha vindo de
brinde com Win. No começo,
parecia só mais uma garota, mas, quando passamos tempo com as pessoas,
elas nos surpreendem – fazem
Ela devia ser minha amiga mais próxima agora. Não minha melhor amiga –
não como Win. Só que ela era a
Ela entrou na igreja, sentou e ouviu. Ela conhecia Win. Se ela conseguia, eu
também poderia conseguir.
Paletós pretos.
controle.
Dei um passo para trás, para a entrada. Depois outro e mais outro, até sair
correndo na direção do carro da minha mãe, no estacionamento. Eu não
tinha as chaves, então sentei no chão, com as costas apoiadas numa
das rodas, e tentei respirar.
Covarde.
Eu não era tão forte quanto Ari. Win sempre dizia que ela era durona, capaz
de suportar tudo, e acho que
ele tinha razão. Eu não conseguia. Nem mesmo pelo meu melhor amigo.
7. Kay
Sentei na fileira atrás das minhas melhores amigas perto da frente da igreja.
Ari mantinha o olhar vazio
que fosse. Fiquei por perto, esperando que alguém precisasse de mim.
coisas. Quando saíamos em grupo, o que era raro, ele me incluía nas
conversas. Nada excepcional, mas fazia diferença para mim.
Além disso, eu não teria nenhuma amiga se não fosse por ele. Se Ari não
vivesse ocupada com Win, Diana
nunca teria ficado sozinha o bastante para me ligar. Eu sempre fui grata por
isso.
voltar. As grandes asas negras do medo pairavam sobre mim. Eu não sentia
esse aperto no peito desde que
minha irmã, Mina, partira para sua turnê mundial, e não sentia falta disso.
Isso poderia ter acontecido com Mina durante tantos anos, quando ela
estava doente: o enorme pássaro preto poderia tê-la pegado em suas
que, quando sentei atrás de Diana e Ari na igreja para o funeral de Win, me
senti como se já tivesse estado lá antes.
Contudo, na verdade, esse era o primeiro funeral a que eu ia. Mina havia
melhorado e fora embora. Ela tinha acabado de voltar para passar o verão,
mas eu não conseguia mais olhar na cara dela.
Estendi o braço para pôr minha mão sobre a de Diana, mas Ari tirou o braço
de Diana, e então deixei minha
mão cair no colo. Ari não olhou para Diana, mas Diana a observava
atentamente por entre as lágrimas,
O pastor falou, houve longos silêncios terríveis, e então Ari chegou ao topo
da escada que levava ao altar antes de dar meia-volta e se sentar sem dizer
uma palavra. Ela tropeçou no caminho e toda a igreja levou um susto. Ari,
cujos pés faziam com exatidão todas as coisas impossíveis que ela queria
que eles fizessem, quase havia caído. Tropeçou no caminho de volta ao
banco, com o cabelo na frente do rosto.
dizer a Ari e Diana, em como a parte mais frágil, fraca e inútil de mim se
sentia. Coisas que nunca tinha
contado para elas, porque não se fala sobre coisas deprimentes como as
experiências de quase morte da irmã, o tempo passado no hospital todo dia
depois da aula, vendo-a definhar. Ninguém gosta de ter uma pessoa
chata dessas por perto. E eu queria que elas me quisessem por perto, não
apenas me aturassem porque meu
Quando minha irmã Mina ficou doente, há quatro anos, fomos a uma
hekamista. Bom, primeiro fomos ao
Então fui com ela no dia da consulta. Não era a hekamista da cidade, que
morava na vizinhança atrás do
colégio. Essa tinha sido muito bem recomendada como a melhor das
melhores – meu pai não teria aceitado
menos. Ela tinha um consultório de verdade perto de um hospital em
Boston. O dinheiro nunca fora problema
para os meus pais. Ou talvez fosse o único problema – a única coisa que
sabiam fazer quando a tragédia
alguns boatos: que bastava encontrar a hekamista certa. Que os clãs davam
a seus membros uma longevidade
ilegal entrar para os clãs vinte anos antes. E Mina estava doente – talvez
morrendo, não sabíamos –, então precisávamos tentar.
– Nada disso é verdade – a hekamista disse. Seu rosto era tão cheio de rugas
que quase não se viam os
físico, o mental e a aura, como prefiro chamar. Digamos que seu orçamento
tenha muito para a inteligência, mas nada alocado no departamento de
beleza. – Pude jurar que todos na sala olharam para mim, menos Mina.
convertido em beleza. Quando alguém está tão doente quanto Mina, sinto
muito, minha querida, mas o custo
para as capacidades mentais dela poderiam ser catastróficos.
– Mas ela viveria? – minha mãe perguntou. Mina tinha herdado o cabelo
preto e macio, a pele morena e
suave e o nariz elegante de mamãe, mas não seu bom gosto para moda ou
seu hábito obsessivo de praticar
ainda não tinha encontrado um chapéu que não lhe provocasse coceira.
Sussurrou para que a hekamista não a
– Você não se sente esquisita? É para cá que as pessoas vêm quando estão
desesperadas. – A hekamista
estava nos vigiando, e Mina sorriu para ela enquanto abaixava a voz ainda
mais. – Não conseguem viver
consigo mesmas.
– Muita gente compra feitiços.
Ela não explicou o que queria dizer com isso, mas tive muito tempo para
pensar a respeito, e acho que ela
quis dizer que o câncer era apenas uma coisa, como a neve, e que não fazia
sentido odiá-lo, porque ele não se importava conosco. Odiar o câncer não o
mudaria, só faria com que nos apegássemos ao ódio. Na hora, não
Pensei nessa conversa quando fui comprar meu feitiço de beleza três anos
depois. Mina não tinha falado
muito quando contei a ela o que iria fazer. Não foi nenhuma surpresa,
considerando que havia meio mundo
entre nós. Seu e-mail de resposta só tinha uma linha: “Estou sem tempo.
Boa sorte. Te amo”, como se estivesse mandando um telegrama e pagasse
por palavra, e não frequentando cafés que ofereciam serviço de
internet irregular em Uttar Pradesh. Ela poderia ter escrito mais, mas não se
importou. Ela tinha me
abandonado.
Pensei naquilo e, por mais que quisesse discordar de Mina, sabia que era
verdade. Eu estava desesperada e
me odiava. Tudo o que ela havia dito sobre os usuários de feitiços era
verdade.
pedra entalhada. – Você come um e dá o outro para cada uma das suas
amigas, e elas não vão mais poder te
largar.
carteira da minha mãe por quatro dias seguidos. Ela nem tinha se tocado. A
pilha alta de notas amassadas
ficar sozinha.
Eu os cutuquei.
usando sorte, coincidência e acaso. Elas vão te ver a cada três dias, não vão
ficar a mais de oitenta
quilômetros de distância de você. Você pode descobrir que outras partes da
sua vida… se deslocam.
Tentei não me preocupar com aquilo e pensei em tudo o que eu havia dado
a Mina – anos da minha vida,
minha vida mesmo assim. E ela era minha irmã, dizia me amar. Se ela tinha
sido capaz disso, qualquer um
seria.
não se odiar quando a gente é bonita e tem amigos. Não era culpa minha se
eu me odiava. Eu precisava ser
solidão.
8. Ari
Ninguém poderia perceber que meu luto era pela dança, e não por Win.
Contudo, não podiam ler minha mente e então deixei que acreditassem que
eu estava triste por causa de
Win. Fingi.
Eu tinha planejado contar a verdade sobre o feitiço para Diana e Jess, mas
depois tinha ido para a aula e
na quarta à tarde?
– Não – eu disse.
– Não, não, a dança vai me ajudar. Você não devia ter gastado dinheiro com
isso. Vamos precisar dele em
Nova York.
– Claro que é uma boa hora. Primeiro de agosto. A data está marcada. O
Balé de Manhattan me escolheu.
para não criar hábitos viciados, e você sabe que eles escalam a maioria da
companhia com base na turma
jovem, então posso conseguir um emprego de verdade lá no ano que vem.
Não quero esperar. Não posso ficar
parada definhando por mais um ano. Jess, por favor. Nós precisamos ir.
Precisamos.
Durante meu discurso, dei um passo em direção a Jess, que estava sentada
no nosso velho sofá de veludo.
– Nós vamos nos mudar, Ari. Vamos fazer o que for necessário. – Ela
entreabriu um sorriso. – Mas,
– Tenho certeza de que vai pensar em alguma coisa. Fala sobre o balé, se
não quiser falar sobre o Win.
saberiam que eu não tivera força suficiente para lidar com uma tristezinha.
Saberiam que me importava mais com um menino qualquer do que com a
dança, o que era impossível. Eu não tinha ideia de quem era sem a
dança. Não sabia viver sem ela, porque nunca tinha vivido sem ela.
E não viveria. Isso não podia ser o fim – não podia ser para sempre. Eu
voltaria a dançar. Precisava voltar a dançar. Eu ia me mudar para Nova
York no dia primeiro de agosto, e isso era o mais importante – muito mais
importante do que um desconhecido chamado Win.
– Tudo bem – eu disse para Jess. Tudo bem, eu ia para a terapia. Tudo bem,
ia fingir.
Comecei a levar a dança a sério logo depois da morte dos meus pais. Jess se
mudara de San Francisco para
cuidar de mim, terminando com a namorada por isso. Eu só tinha visto Jess
algumas vezes na vida, então ela era praticamente uma desconhecida de
luto pela irmã mais velha e pelo cunhado, chorando pelo fim do
namoro.
Na rua, aonde quer que eu fosse, tudo me fazia lembrar que eu era diferente
dos outros. Todos tinham pais.
Menos eu. Já era terrível quando alguém fazia um comentário casual sobre
a mãe ou o pai no recreio. Pior era quando uma pessoa obviamente sabia
sobre o que acontecera comigo e, por isso, evitava cuidadosamente
dizer “mãe”, “pai” ou mesmo “fogo”, o que, no fim das contas, significava
me evitar por completo.
Jess não me evitava, mas também não sabia o que fazer comigo. Ela me
levara à hekamista para apagar o
trauma com um feitiço, para que eu não tivesse mais pesadelos em que via a
casa cair com meus pais dentro.
aberta mesmo no inverno, para o caso de precisar pular para fora no meio
da madrugada. Verificava o alarme contra roubo umas três ou quatro vezes
por noite.
Jess não sabia como as crianças agiam e não me conhecia antes daquilo, ela
não sabia que esse meu comportamento não era normal. (Além disso, nunca
notou que eu verificava o alarme contra roubo. Ela tinha
o sono pesado – o que me deixava ainda mais nervosa.) Alguma hora ela
teria percebido, ou eu teria começado a agir de maneira ainda mais
estranha. Em vez disso, mergulhei na dança.
Eu vinha fazendo aulas para iniciantes havia alguns anos, como todo
mundo. Mas, naquele ano, a aula se
transformou em outra coisa. Durante uma hora do meu tempo, eu não tinha
que ouvir barulhos estranhos.
Desde o princípio, percebi que sabia controlar meu corpo melhor que as
outras meninas.
Quando disse a Jess que queria ir ao balé todo dia, ela não hesitou.
Concordou e acrescentou mais aulas ao calendário gigante que havia colado
na parede da cozinha. Ela me pegava na escola, me levava para o balé e
depois me buscava, sem nunca reclamar. E nós viramos uma família.
Foi assim que o balé me salvou. Não só porque eu e Jess éramos obrigadas
a interagir durante aquela hora
capaz e livre.
Sem a dança, voltava a ser uma sombra rastejando pela casa, estranha e
sozinha, um nada. Durante
mas, enquanto via, também sentia uma raiva explosiva e crescente que
começava na nuca, se espalhava pelo
O pior era que não havia de quem ter raiva. Eu mesma havia feito aquilo
comigo. A Ari de antes tinha tirado a única coisa que fazia sentido para
mim. A única coisa em que eu era boa. A única coisa que eu amava.
exatamente igual a mim fazendo coisas das quais eu não tinha nenhuma
recordação. Porque lá, nos bastidores, estava Win.
lembrasse, pelo menos. Nos vídeos, ele parecia quase tímido, embora talvez
fosse o contexto – ficava para
“Ari, o que você está vestindo? Vira e sorri para a câmera, querida!” – Jess
cantarolou e deu um zoom perto do meu rosto. Eu a afugentei e me recostei
no braço de Win para dar um beijo nele. “Gente, eu sei que sou
jovem e, posso não parecer, mas sou a figura materna aqui e estou bem na
sua frente.”
consegui.
“… materna aqui e estou bem na sua frente.” – Aproximação, beijo, ponta
dos pés, sussurro.
“… aqui e estou bem na sua frente.” – Beijo, ponta dos pés, sussurro.
Era um segredo eterno entre aqueles dois – que nunca mais voltariam a ser
dois. Mas eu não tinha como
9. Win
Ninguém mais sabia disso. Nem Diana, nem Kay, nem sua tia Jess. Não
contei para Markos, nem para
ballerina.
– Eu sei.
e…
– Eu sei.
Ela soluçou, ainda chorando, mas deu para ver que estava me ouvindo.
– Só que felizmente eu não sou você. Você é que é. Não tem motivo para ter
medo. Eles escolheram você
porque viram o seu talento. A sua paixão. Terão a sorte de contar com você
lá.
– Que bom!
– Bom?
– Você deve me achar uma idiota – ela disse entre soluços minúsculos.
– Nunca?
– Nunca.
– Nunca.
– Nunca.
– Sempre.
10. Ari
como se eu estivesse presa num quadro, com a expressão fixa. Ainda não
conseguia dançar. Faltava menos de
– Eu sei que só faz um mês desde que Win… – Diana parou, depois passou
rápido para o próximo
raciocínio. – Só faz um mês, mas é muito importante para mim que você vá.
Quer dizer, não só para mim,
mas para todo mundo. Ver você lá… significa que vamos sobreviver, sabe?
– Ela abandonou meu guarda-
roupa, sentou na cama e abraçou os joelhos. – E acho que não só para nós,
mas para você também. Faz
– Eu vou para o trabalho. E para a aula. – Não era verdade: eu não ia para a
aula desde que havia caído, um dia depois de ter tomado o feitiço. Mentiras,
mentiras, mentiras.
– E aí vem direto para casa. Senta comigo e com Kay por quarenta e cinco
minutos, uma hora no máximo,
e depois a cara que você faz quando pode nos expulsar… Você fica aliviada.
– Diana abanou a cabeça. – Sinto sua falta.
– Desculpa.
– Não peça desculpa. Você está passando por um período difícil. Mas não
quero que pense que está
sozinha. – Ela deu de ombros, insegura. – Você sempre vai ter a mim.
– Eu sei.
– E a Kay também.
– Certo. Kay.
– Experimenta estas.
– Vou fingir que não ouvi isso. Lá, lá, lá, lá... – Ela tapou os ouvidos até seu
olhar recair sobre o meu punho, vermelho de tanto que eu o havia beliscado.
Ela abaixou as mãos e ficou séria. – Ari, você… está tudo bem?
contar.
– Então vamos ao cinema – eu disse. – Faz semanas que a gente não vai.
Mas não podia dizer isso para Diana e, normalmente, não precisaria dizer.
Ela nunca tinha discutido assim
fazer coisas. Quando ficamos amigas, no quarto ano, ela só me ligou seis
meses depois de começarmos a
Diana enrolou uma mecha ruiva nos dedos e puxou-a para a frente a fim de
examiná-la.
– Está bonito.
– Para de tentar mudar de assunto. Por que você não quer ir?
mais, você precisa me fazer companhia, porque o Markos vai estar lá.
Diana riu.
– Você acabou de dizer que ele é ótimo! Como pode ser ótimo e mau ao
mesmo tempo?
– Contexto.
– Não se preocupa, ele provavelmente vai me ignorar, como fez das últimas
cem vezes. Mas você devia ir
Eu não lembrava como ou por que tinha ficado amiga do Markos, porém
sabia que éramos próximos. Ele
era divertido e menos babaca do que parecia – mas nós não estávamos
namorando. Diana era fofa e reservada
demais. Se eles ficassem, ele a magoaria sem nem perceber. Ela precisava
de alguém sério e doce como ela.
– Não tem mais ninguém no mundo de quem você esteja a fim?
– Não, estou gamada no Markos para sempre. Isso significa que você vai?
Olhei para a parede, onde havia uma foto minha abraçada a Win. Ele estava
usando um uniforme de beisebol
e boné. Ela parecia feliz – quer dizer, eu parecia feliz. Se fosse para a
fogueira, teria que passar uma noite toda fingindo ser aquela garota,
evitando perguntas reveladoras e lembranças embriagantes, torcendo para
ninguém notar meus passos estabanados ou minha falta de memória. Isso
não me deixaria nem um pouco mais próxima
da dança.
Mas era isso ou mais uma noite de vídeos, autocensuras e perguntas sem
resposta. Mais uma noite com
íamos ao cinema. Ela não sentia necessidade de pedir minha opinião sobre o
cabelo. Tinha ficado amiga de
Eu só tinha mais algumas semanas até me mudar para Nova York – talvez
pudesse ir e fingir ser outra
11. Kay
Diana foi me buscar para irmos à fogueira. Ari já estava no banco da frente
do Impala da mãe de Diana. Eu as via regularmente nos últimos meses,
assim como a hekamista havia prometido em janeiro. Pelo menos uma
vez a cada três dias, o que quer que acontecesse, eu recebia uma ligação, ou
Diana precisava de uma carona ou então eu encontrava uma delas no
mercado. Às vezes, achava que o feitiço não teria como funcionar, e que
aquele seria o dia em que tudo viria abaixo, mas sempre, sem falta, ele
funcionava.
retornassem.
Eu estava ansiosa pela fogueira. Nunca tinha ido antes. Durante anos, nem
soubera que ela existia e então, quando Mina foi embora e comecei a
prestar atenção, fiquei com medo de ir sozinha. Talvez aparecer do nada
fosse contra as regras. Seria muito melhor ir com Ari e Diana, que eram
especialistas no evento. Até o dia da festa, eu não sabia se elas iriam, mas
nunca devia ter desconfiado do feitiço.
Por algum tempo, pensei que o fato de Ari ter perdido Win poderia nos
ajudar. Não num sentido horrível –
não estava feliz com a morte dele nem nada desse tipo. Não desejava aquilo
a ninguém. Mas tinha pensado que a morte dele amansaria Ari, faria com
que ela repensasse suas prioridades e relações, e nos deixaria mais
próximas. Sem dúvida, ela teria mais tempo para a gente.
No entanto, não foi isso que aconteceu. Pelo contrário, ela tinha ficado mais
dura desde a morte de Win.
Mais fria. Às vezes, sentia que ela nem estava presente e que a Ari que
víamos era uma substituta sua.
– Valeu.
– Você jura que nunca foi? – Diana perguntou. – Onde estava com a cabeça
enfiada todo esse tempo?
Eu não soube dizer se ela estava brincando ou tirando sarro. Virei para Ari,
mas ela já estava olhando fixo pela janela, ausente de novo.
– Nem sei. Ah! – Tive dificuldade para pôr o cinto de segurança, que tinha
puxado minha camiseta até
quase dar a volta. Diana e Ari, como sempre, estavam lindas. – Gostei do
seu cabelo, Di.
Diana voltou a dirigir, e Ari ficou olhando pela janela. Essa era a hora em
que eu devia dizer alguma coisa fofa, inteligente ou engraçada. Elas dariam
risada e seríamos um trio. Devia haver palavras mágicas em algum lugar
para fazer isso acontecer. O feitiço tinha me dado a oportunidade de estar
no carro com elas. Agora, tudo de que eu precisava era aproveitar essa
oportunidade para tornar aquilo real.
Ari respirou fundo e começou a descer pela praia com cuidado. Diana
suspirou, recostou-se no banco e
– Pois é – Diana assentiu. – Pensei que sair faria bem a ela, mas agora não
tenho mais certeza.
– Ela vai ficar bem. Você está fazendo tudo o que pode.
– Vou dar um pouco de espaço para ela hoje. Não quero forçar demais.
Talvez você devesse fazer o
mesmo.
– Certo.
– Ah… claro.
Meu rosto deve ter transparecido a mágoa, porque Diana olhou para mim
pelo retrovisor.
feitiço fazia com que elas fossem elas mesmas – essa era a sua melhor
qualidade. Ele não era intrusivo. No fundo, era até inofensivo.
toda a minha vida antes das duas tinha sido assim –, mas nasci para estar
entre pessoas. Sozinha, eu não era nada.
Mina riu.
– Ah, então prazer, Kay. Você viu minha irmã? Ela era uma menina tão
legal… Queria saber onde ela foi
parar…
– Por quê?
– Porque por uma noite eu não quero ser a irmãzinha da Mina Charpal, está
bem?
Não dava para ver seus olhos no escuro. A luz do fogo se refletiu em seus
piercings quando ela assentiu.
– Tá.
Ela jogou o copo plástico no chão e me deu as costas. Imaginei que fosse
entrar em alguma roda de
estacionamento.
Bom, eu tinha pedido para ela me deixar em paz. Isso era bom.
Mina estava dando as costas para mim. Eu devia estar acostumada com
isso.
desculpas rápido, então olhou para o meu rosto. Precisei me conter para não
fazer careta, porque às vezes
– Meu nome é Cal! – ele praticamente gritou. – Cal Waters. Você está na
turma do Markos?
– Oh- Kay – ele disse, rindo, e acendeu um cigarro com o isqueiro. – Não
acredito que não estou me
Mas Diana e Ari não estavam lá. Talvez eu precisasse fazer novos amigos.
12. Markos
Win tinha morrido e todo mundo à minha volta havia sofrido uma
lobotomia ao mesmo tempo. Não, não era
Ou talvez não tenha sido exatamente isso. Parece uma daquelas merdas que
os hippies falam. O que deve ter acontecido é isto: Win tinha morrido, e eu
era a única pessoa que se importava o bastante com isso para saber o
significado daquele inferno.
Win tinha morrido. Ora, eu conseguia dizer isso em voz alta. Ele tinha
morrido. Eu não tinha mais o meu
melhor amigo e nunca mais teria um amigo como ele. Só dá para ser melhor
amigo de alguém que você
nada. Até mesmo Ari – nós não estávamos nos evitando, mas não saíamos
nem conversávamos mais também,
desde o funeral, quando ela deixara claro que não estava interessada na
minha compaixão. Certo. Sem
problemas. Ari estava certa. Eu também me sentia mal quando olhava para
ela.
Era isso que a morte de Win significava: que o mundo era injusto. Os caras
errados se dão bem. Nada que
adiantava amar, ser amado ou essa merda toda se a morte era tão
absolutamente eterna?
Meus irmãos eram a vida da festa. Brian fazia vista grossa para os menores
que estavam bebendo. Dev
começava os jogos de futebol americano no escuro. Cal sorria e ia
cumprimentando grupo a grupo. Havia uma
galera em volta deles o tempo todo. Eles faziam todo mundo rir. Para eles,
não parecia esforço nenhum ser um Waters, ser aqueles que davam a festa,
que conheciam todo mundo, que não tinham nenhuma preocupação na
vida.
Brian foi o primeiro a vir falar comigo, largando um trio de meninas. Se ele
notou o olhar que lhe lancei –
uma encarada muito especial de quem diz “fica longe de mim, porra” –,
fingiu não ver.
– Eu sei que você está chateado. Mas vai ficar tudo bem se você relaxar, tá?
E, se não estiver animado,
pode ir para casa quando quiser. Esquece a festa este ano. Eu te dou carona,
é só me avisar.
Virei as costas para Brian e vi Diana North, a melhor amiga de Ari, olhando
para a fogueira. Ela tinha
biquíni verde-limão. Ela sempre fora meio proibida para mim por causa de
Ari. E era quietinha e silenciosa, tímida a ponto de ser sem graça. Fazia
tudo que Ari mandava, e até então não tinha valido a pena irritar Ari para
flertar com ela. Olhei para seu cabelo ruivo e seu biquíni e pensei em Win,
em como tudo era inútil e impossível, e concluí: foda-se. Não tinha por que
perder tempo com alguém de quem eu realmente gostasse.
Esse pensamento devia ser horrível. Ari teria dito que eu estava sendo
canalha e levaria Diana embora. Mas Ari não estava por perto. Além disso,
por que eu teria que dar ouvidos a ela? Win estava morto. Ari não era mais
a voz irritante da minha consciência.
– Você está diferente – eu disse. Essa é uma daquelas frases que são
verdadeiras mas não comprometem
– Eu pintei o cabelo – ela disse. – Fazia séculos que queria fazer isso, mas
nunca fiz. Acho que tinha medo, por mais que pareça idiota ter medo de
uma cor de cabelo. Pensava que, se eu pintasse, não saberia mais
mês –, mas num nível mais profundo também. Estava destruído por dentro,
como um brinquedo embrulhado
para presente que você chacoalha até quebrar, até que não sobre nada além
de pedaços de plástico rolando de um lado para o outro. Mesmo essa
fogueira de três de julho, que Brian fazia desde que eu tinha sete anos,
parecia diferente.
Fomos descendo pela praia sem conversar, passando por casais que se
beijavam deitados na areia ou em pé
no mar, com as ondas até os joelhos. Os que ficavam no mar eram sempre
os que estavam profundamente
Ari estava conversando com meu irmão Cal. Ela não me viu com Diana.
Estava curvada e parecia não estar
bem. Sua postura estava estranha. Acho que nunca a tinha visto assim antes.
Algum instinto automático me
fez especular o que haveria de errado com ela, até lembrar o que tinha de
errado com nós dois.
Mas ela não queria conversar. Tudo bem. Eu devia tentar ser mais como
Ari. Conseguir lidar com aquilo
sozinho.
– Acho que todo mundo sente falta do Win – Diana disse. Apontei para os
casais que estavam se divertindo,
e ela abanou a cabeça. – Acho que eles também, por dentro. À sua maneira.
– Não estou me debulhando em lágrimas, mas isso não significa que eu não
sinta falta dele.
– Espera – eu disse.
quisesse, poderia pisar nela até fazê-la compreender o que o resto daquela
multidão lobotomizada não entendia: que tudo aquilo era em vão.
Talvez fosse esse o motivo por que a levei para o canto depois de passar
tantos anos ignorando-a. Talvez eu soubesse que podia fazer com que ela se
sentisse um lixo, como eu vinha me sentindo o tempo todo. Seria
fácil pra cacete. Tão fácil quanto tascar um beijo nela. Diana não tinha
nenhuma defesa. Eu podia agir feito um canalha – rir da cara dela, como
tenho certeza de que já havia rido antes – ou realizar seu sonho, dando-lhe
uma lembrança romântica que ela guardaria para sempre. Bom, não para
sempre, já que nada é eterno. Até o fim.
Inspirei pelo nariz. Meu coração estava batendo como se eu tivesse subido a
duna correndo. Tentei me
– Logo mais a gente vai estar no último ano – eu disse. Era de longe a coisa
mais idiota que eu havia dito o dia todo e, se meus irmãos tivessem ouvido,
teriam rido da minha cara até ficarem com dor de barriga, mas
claro que Diana não tirou sarro de mim por isso. Ela parecia ter entendido
minha necessidade de conversa
meus irmãos, a fogueira, o oceano, coisas que eu podia ver bem na minha
frente. Toda vez que ela se mexia
Eu não era responsável por nada nem por ninguém. Só fui eu mesmo.
13. Ari
mais quente ficava. Diana tinha escolhido uma jaqueta jeans, e eu estava
suando, mas não a tirei. Eu a apertei com mais força em volta dos ombros
para me proteger. Podia não ter nenhuma lembrança do dia em que
Ela podia ter pensando nisso. A antiga Ari, quero dizer. Ela sabia que
haveria a festa da fogueira. Mas essa era mais uma coisa que ela não se
havia dado ao trabalho de considerar.
Enfiei a ponta dos tênis na areia e observei Diana abrir caminho até o barril.
Eu tinha vindo a essa festa por causa dela, mas ela não parecia precisar de
mim. Talvez tivesse sido melhor ficar em casa praticando
exercícios de balé.
segundo pensei que fosse Markos. Fiquei tensa, pronta para começar a
mentir.
Contudo, quem estava na minha frente era um dos irmãos de Markos, Cal.
– Quanto tempo! – ele disse. Cal estava com um cigarro apagado na boca e
brincava com um isqueiro
– Eu estou… bem.
Tentei sorrir para ele. Cal era o mais simpático dos irmãos Waters. Brian era
um policial metido a sabichão, Dev usava o charme da família para se
comportar com vulgaridade e Markos... enfim, era Markos. Cal era
bonito como os outros, claro, mas era descoordenado demais para se dar
bem nos esportes, e seu jeito
bonzinho provavelmente significava que ele não tinha jeito para a coisa
também. Ele tinha passado por um
período porra-louca depois da morte do pai, mas isso parecia ter servido
para acabar com todo o seu estoque de rebeldia.
Contudo, mesmo que ele fosse o menor dos quatro males, não queria dizer
que fosse alguém a quem eu
estivesse disposta a me confessar.
– Bom… obrigada.
– Obrigada.
Eu não era o tipo de pessoa que abraça os outros. No entanto, desde que
apagaram a minha memória, eu
Era isso que as pessoas faziam para expressar consolo. Elas se tocavam. Eu
não podia evitar. Não podia
pedir que me deixassem em paz. Elas faziam isso para que eu – a sofredora
– me sentisse melhor. Mas, como
não estava sofrendo – pelo menos não da maneira como elas pensavam –,
aturava os afagos e abraços para
que elas se sentissem melhor.
Prendi a respiração, tentei ignorar a dor no pulso e esperei que Cal tirasse a
mão de cima da minha. Sua
mão era quente, mas o isqueiro tinha a frieza do metal. Eu estava contando
até três quando uma menina parou ao meu lado e olhou feio para Cal até ele
abaixar a mão. Não a reconheci.
Tive a impressão de que Cal ia dizer alguma coisa, mas acabou mudando de
ideia. Ele acenou para mim
com o copo plástico, só que o gesto foi tão estabanado que o derrubou,
depois tentou pegá-lo e não
A menina se virou para mim. Ela tinha cabelo preto curto e estava usando
um casaco longo com fivelas
– Ari Madrigal – ela disse, fechando a cara. Torci para que a cara feia fosse
normal e não específica para mim.
– Que dramático...
Kay e Cal – esse seria um casal inesperado. Tentei lembrar se Kay já tivera
um namorado antes, mas a menina parada à minha frente estalou os dedos
na minha cara.
– Espera, eu te conheço?
Olhei para ela com mais atenção. Eu não a reconhecia – não seu rosto, pelo
menos. Mas havia algo nela que
me parecia familiar. Sua expressão era dura, mas me lembrava de… leveza.
De flutuar.
Que esquisito.
Retribuí a encarada.
– O quê?
Minhas mãos tinham começado a tremer. Cinco mil dólares. Fora o preço
do meu feitiço para apagar Win.
dinheiro era meu, uma sorte inesperada – deixado pelos meus pais, talvez,
como anjos da guarda. Destinado a mim.
– Escuta, hã…
– Meu nome é Echo – ela retrucou. – Nós já nos conhecemos. Claro que
você não se lembra.
– Echo – eu disse. – Não sei do que você está falando. Não estou com
dinheiro nenhum do Win.
– Está sim. Ou pelo menos estava antes de gastar. Só fui perceber depois
que tive certeza de que não estava com a mãe de Win, mas é óbvio. Se você
não me pagar o que deve, vou contar para todo mundo que usou
Parei de respirar.
– Nem tente fazer esse joguinho porque você vai perder. Devolve meu
dinheiro ou todo mundo vai
descobrir.
Se essa menina realmente tinha ideia do que eu tinha feito, poderia contar
para todo mundo. E todos
saberiam que eu tinha mentido para eles. Descobririam que não sou capaz
de dançar e que tinha gastado tudo por causa daquele menino que todos
ainda amavam.
Tentei lhe dar as costas, mas não consegui me virar na areia. Num instante
Echo estava lá, me bloqueando.
Nada. Não havia nada para lembrar. Não dá para se concentrar e juntar as
memórias quando não há
– Boa tentativa.
– Não devo ter prestado muita atenção em você.
– Não sou eu quem precisa provar alguma coisa. – Ela apontou para as
pessoas que rodeavam a fogueira. –
Diana lá, talvez tivesse pensado numa saída. Numa forma de convencer
Echo de que eu era uma pessoa
– Desculpa – eu disse.
– O quê?
– Não!
dólares.
Assenti em resposta, porque não havia mais nada que eu pudesse fazer, e
Echo se afastou. Os sons da festa
resolveria.
14. Markos
encontrou Diana, quero dizer. Ela não estava procurando por mim. Disse oi
e levou a amiga embora, e eu
sabia que não tinha direito de reclamar, então continuei sentado na areia.
– Não, tatuagens são caras. Vamos para Nova York dançar na fonte do
Lincoln Center.
Diana deu risada, como se tivessem tirado um peso dos seus ombros. Ela
olhou de soslaio para mim – com
Fiquei olhando para a multidão, que parecia ter vida própria, expandindo-se
e contraindo-se como um
coração. Então ouvi um grito. Antes de ter noção do que estava fazendo, me
levantei e corri na direção dela.
Diana tinha tropeçado, caído e batido o rosto com tanta força no canto de
um cooler que formou um
Ela começou a chorar. Ari estava parada ao lado dela, apenas olhando, em
choque.
Não sei como, mas meu braço envolveu o ombro de Diana, enrolando-se no
seu cabelo comprido, enquanto
caminho. Vou acabar com ele. Chhh, chhh... Está tudo bem.
Toquei-a não só para consolá-la, não só por desejar alguma coisa. Talvez
isso significasse que eu era o mais falso dos falsos da festa, daquela cidade,
do mundo: eu estava fingindo ser alguém que se importava.
15. Win
ter beleza, sorte ou inteligência, mas quem pedia alguma dessas coisas
precisava achar que não a tinha. Eu não era feio, nem burro, nem azarado.
Era Win Tillman. Interbases da equipe. Namorado da menina mais linda da
escola. Tirava boas notas. Tinha boa pele. Tudo de bom. Outras pessoas iam
às hekamistas. Eu não.
Quer dizer, Ari tinha feito um feitiço, claro, mas não tinha sido uma decisão
dela. Além disso, ela era jovem demais na época, e fazia tanto tempo que
não era a mesma coisa. (Que fique claro que eu também teria
tomado um feitiço para apagar a visão da minha casa pegando fogo com
meus pais dentro. Não é algo bom de
lembrar.)
No dia seguinte àquele em que Ari teve o ataque no quarto depois de ser
chamada para o Balé de Manhattan,
eu sofri um ataque de pânico e não consegui ir para a aula. Achei que estava
morrendo. Achei que havia
absorvido a tristeza de Ari – que, depois daquele dia, não derramou uma
lágrima. Tive certeza de que meu
coração ia explodir, mas imaginei que meu pânico passaria tão rápido
quanto o dela. Se não mais rápido ainda, porque o sofrimento não era meu.
Então tive outro ataque na aula de música, quando não consegui acertar
uma única nota. Depois, ao longo
dizer que eu estava doente, mas eu não estava doente. Eu estava chorando.
Chorava tanto que fiquei
engordavam, e eu estava com medo de não ser eu mesmo nem por dentro
nem por fora. Então não conversei com minha mãe sobre a gravidade do
meu estado.
Contei para Ari. Claro que contei para Ari, contávamos tudo um para o
outro. Mas acho que não expliquei
Não que eu pensasse nisso todo dia. Não. Na maioria dos dias eu estava
bem. Meu melhor amigo era o
Markos. Com Markos era mais fácil fingir, porque eu o conhecia desde
sempre e, com ele, tudo é um grande
Minha mãe me levou a um alergista que ela não tinha como pagar, porque
não era coberto pelo convênio. Mas
não se tratava de alergia, nem do ambiente, nem de glúten. Estava tudo
dentro de mim. Minha mente não
o novo cabelo brilhante para o lado e parecia bem. Perguntei para Ari o que
ela achava daquilo.
– Todo mundo deve fazer, se está sofrendo – Markos falou, mas eu entendo
a língua dele e o que ele quis
se tornara algo ilegal. Devia existir só umas dez mil nos Estados Unidos, e
só uma no cabo Cod, uma velhinha que estava lá desde sempre. Então foi
uma surpresa quando entrei na casa da hekamista perto da escola e a
A menina disse que seu nome era Echo, e eu gostei dela na hora. Não estou
falando num sentido romântico
– naqueles dias eu não conseguia nada nem com Ari, que eu amava –, mas
ela parecia ser uma boa pessoa. Na
mesa da cozinha havia uma maçã comida pela metade, ao lado de um monte
de cartas de baralho – eu tinha
Sentei do outro lado das cartas espalhadas. Echo sentou na minha frente.
Não sou muito de prestar atenção
nos lugares, mas dava para ver que aquela casa estava acabada e mal tinha
espaço para uma pessoa, que diria para uma família. O sofá separava a
cozinha da sala de estar, colocado de forma torta no espaço aberto. Notei
isso porque parecia que as pessoas tropeçavam nele o tempo todo. Eu estava
acostumado com espaços
pequenos e móveis que nem sempre cabiam neles. Estava acostumado com
casas baratas e carpetes velhos
– Ah...
– Então você queria um feitiço. – Com a ponta dos dedos, Echo pegou o
miolo da maçã e o jogou no lixo. –
Ridículo. Uma palavra tão pequena e idiota que não chegava nem perto da
verdade. Ela me expulsaria aos
– Triste como?
Parecia uma piada, mas nem assim ela riu, o que me deu a sensação de estar
fazendo a coisa certa, e de que ela me ouvia como não faziam havia muito
tempo.
– Minha mãe pode preparar uma coisa capaz de apagar tudo isso pra você.
maquiagem deixava a parte branca dos seus olhos ainda mais branca. – E
podemos manter isso aqui entre nós.
Engoli em seco. Ela era jovem demais para ser uma hekamista, o que
significava que aquilo era ilegal. Se
alguém descobrisse, ela, sua mãe e todas as outras do seu clã iriam parar na
cadeia.
entendendo algo.
– Minha mãe cobra cinco mil dólares por feitiços permanentes. – Eu não
tinha nem perto dessa quantia,
mas não havia pensado nisso. – Se quiser se sentir bem por um dia, uma
semana ou duas, bastarão algumas
centenas, já que você precisará voltar de tanto em tanto tempo para retocar
o feitiço, mas eu não vou fazer isso com você.
– Você tem cinco mil dólares? – ela perguntou, e eu meio que fiz que sim.
– Tá.
– Vou precisar penetrar no seu cérebro, Win. Você vai ter que aceitar isso.
– Tá. Eu aceito.
Olhei para ela e para as cartas colocadas na mesa à sua frente. Olhei para o
sofá que sobressaía na sala,
depois olhei de volta para Echo. Por mais triste que eu estivesse, me
solidarizei com ela. Algo na forma como se portava, ou na profundidade do
seu olhar. Não era para ela existir. Como ia aos lugares? Como conhecia
Seria solitário.
e a maquiagem forte.
– Ótimo. Vou dar um jeito em você, Win Tillman. Você vai ficar novinho
em folha.
mais sombrio do que antes. Como, quando Ari me beijava, eu não sentia
nada, ou sentia apenas um pânico
mas aliviado.
Contei para ela como fingia estar normal com Markos, falei da minha
desconfiança em relação aos remédios
e do meu medo de não ser forte o bastante para sobreviver a tudo aquilo.
– Você é – ela disse. E eu acreditei nela.
16. Kay
nas minhas. A luz estava cinza e enevoada, e o som das ondas que batiam
na costa parecia o de uma pessoa
vomitando. Não, aquilo era uma pessoa vomitando – a quinze metros dali,
de quatro na areia úmida. A fogueira tinha se apagado, transformando-se
em meia dúzia de brasas vermelhas sobre o carvão preto.
– Idem.
dele estavam com gosto pútrido de álcool, e notei – porque o susto foi
demais para fechar os olhos – que seus olhos também não estavam
fechados. Ele olhava fixo para mim enquanto nossas línguas secas e bocas
sujas
Mas pelo menos ele lembrava meu nome. Pelo menos, o meu beijo não
tinha sido tão ruim a ponto de ele
não aguentar olhar para a minha cara. Dei tchau para ele, com os pés no
chão e meio dormindo de novo, e
uma cena cheia de luz e graça. Nunca teria pensado naquele bando de restos
humanos tristes e exaustos. Eu
precisava encontrar Ari e Diana e contar para elas o que havia acontecido,
talvez isso transformasse o fato em algo real e interessante. Talvez elas
tivessem sentido minha falta e tivessem histórias para compartilhar
também.
dormindo.
– Sim – respondi, e esperei que ela perguntasse mais para poder contar
sobre Cal.
Ela se virou para mim. Estava chorando e seu rosto normalmente duro
tremia.
– Qual é o problema?
– Diana…
para a frente do carro. Levei um susto. O lado esquerdo do rosto dela tinha
um grande hematoma, roxo, preto e sarapintado.
Então ela tinha me visto com Cal. Não era mais uma história divertida para
contar.
– Desculpa, Kay. Foi só uma ideia besta. A gente teria te ligado da estrada.
– Não sei por que você está me enchendo tanto. A gente não foi a lugar
nenhum, foi? Estávamos subindo a
embora. Iriam sem me avisar. Eram quase duzentos quilômetros até Boston.
E quase quinhentos até Nova
York.
Nova York ou Boston durante a noite tinha surgido de repente. Para mantê-
las na cidade, o feitiço havia
precisado agir rápido, a fim de garantir que não chegassem nem perto do
carro.
Olhei para ela. Ela estava tocando a bochecha machucada com o dedo e
mexendo o maxilar em silêncio.
Elas tinham tentado, mas não tinham conseguido ir sem mim. Era
exatamente o que eu queria.
Claro que não queria que Diana se machucasse, mas parte de mim ficou
contente pelo fato de a hekamista
ser tão boa no seu trabalho e de o feitiço funcionar tão bem, e por elas não
terem me deixado sozinha na praia.
17. Ari
– Vou ficar bem – Diana disse. Estávamos sentadas no carro dela vendo
Kay subir os degraus que davam para
verdade sobre Win e dizer que tudo ficaria bem. Não ficaria. Eu não poderia
lhe contar. O que eu imaginava que ela poderia fazer, arranjar cinco mil
dólares do nada?
juntar o dinheiro de Echo, teria que trabalhar por um ano, sem folga, e
provavelmente muito mais se
Então eu precisava impedir que Echo contasse a verdade para as pessoas até
partirmos para Nova York. Só
que essa ideia era tão claramente impossível que me oprimia, como tentar
fazer plié vestindo uma calça de couro.
– Nossa! Jura? – Fiz que sim, e Diana apertou os olhos. – Você não vai
afastar Kay dele como vive fazendo
Diana me lançou um olhar de raiva que deve ter feito o hematoma em seu
rosto doer, porque ele se
contraiu.
– Está bem, se isso faz você se sentir melhor, vou me lembrar de avisar Kay
para não se envolver com os
irmãos Waters.
próxima a ele, como se irradiasse calor. Dei ré para tirar o carro da entrada
de Kay e tomei o caminho de casa.
Abri um sorriso para Diana, embora parecesse haver alguma coisa errada
nele. Meus sorrisos tinham se
– Claro. Inesquecível.
***
Diana se despediu e prometeu me ligar mais tarde. Fui para o meu quarto e
fiz os exercícios como sempre,
ou seja, pessimamente.
A única forma de melhorar era continuar tentando. O meu plano era: seguir
praticando até conseguir
recuperar a graciosidade.
Pestanejei.
– Foi ontem? – Ela sorriu e fez um gesto com a mão, como se estivesse
espantando mariposas.
sabia que havia estado ali no dia anterior, mas reconhecia o lugar de uma
forma distante, como se só tivesse visto fotos dele num livro.
– Parece que estou dançando como se meu cérebro estivesse falando para
eu me mover, para ser graciosa,
– Isso não é um “efeito colateral”. Não consigo fazer nada do que conseguia
fazer.
– Mas esqueceu seu namorado morto. Está se sentindo melhor.
não sabia como era até então. A mulher encostou a bochecha no batente,
cobrindo um olho e deixando o outro se focar e desfocar lentamente. – Você
está descontente com os efeitos colaterais. Hum... já tomou outro
feitiço antes?
diminuir a dor.
– Ah. Entendi. Você não comentou isso comigo ontem. – Ela continuou
com a cara amassada no batente,
– Um incêndio. Acidente?
– Ah...
– Escuta, você precisa desfazer esse feitiço. Por favor. Eu vou para Nova
York em agosto para estudar balé e não consigo nem…
– Ótimo. Dane-se. Não ligo para as memórias. Quero que meu corpo volte
ao normal. Você consegue
consertar isso?
Seu humor tinha mudado. Em vez de observar a rua, olhou para dentro da
casa e se afastou de mim. Com
medo.
– Uma hekamista pode arrumar você. Colocar mais um feitiço para rebater
o efeito colateral. Você ficaria
tão graciosa quanto uma gazela. Mas esse feitiço viria com sua própria série
de efeitos colaterais e você teria três feitiços permanentes… Isso é muito
ruim. Muito arriscado. Efeitos colaterais em cascata.
vivia perdendo o equilíbrio no fim –, até que então, um dia, fez catorze em
seguida com perfeição. Ela chorava toda manhã ao acordar porque não
conseguia lembrar onde estava, mas conseguia dançar. Soube que ela tinha
virado aprendiz no Balé de San Francisco.
Mas será que seria eu mesma se não conseguisse nem me lembrar do meu
próprio nome?
– Quê?
– Não esta hekamista aqui. Que bobagem, que bobagem a minha! Eu não
posso. Não posso.
– Você é uma menina doce. Disso eu sei. E você estava triste no outro dia
por causa do seu namorado que
Ninguém nunca teria me descrito como doce. E eu tinha certeza de que não
havia tomado a decisão certa.
– Não, de jeito nenhum… Por favor. Amo a dança mais do que tudo.
– Sim, agora. – Ela empurrou a porta com força contra a minha mão. –
Ontem você amava mais seu
namorado. Tente pensar que fez um favor a si mesma.
Com um último empurrão, a porta se fechou. Bati mais algumas vezes, mas
ela não voltou a sair.
Estava presa dentro deste corpo que não colaborava. E Echo iria contar a
verdade sobre Win para todo
18. Markos
com Ari para se recuperar, fiquei tão bêbado que me esqueci da morte de
Win. Me lembrava daquela sensação
de segurança, sabendo – mas sem me aprofundar nessa certeza – que meu
melhor amigo estava lá em algum
Claro que ele não apareceu, então continuei bebendo. Pior do que a ressaca
da bebida era a ressaca do
eu estaria encrencado.
careca?
dizia, mas às vezes achava necessário nos lembrar de que podia ouvir o que
estávamos falando.
casa inteira que eles mal tirariam os olhos de suas tigelas de cereais.
– Vou sair – disse, e fui embora antes que alguém conseguisse me deter.
Liguei para Diana North. Como não tínhamos ficado, eu não precisava
esperar alguns dias. Não havia me
comportado como um canalha com ela, porque ela atendeu o telefone.
Depois me encontrou na loja de
rosquinhas, onde sentamos numa mesa ao sol. A luz era tão forte e quente –
já tinha passado do meio-dia e
minha cabeça estava doendo –, mas não sugeri que passássemos para uma
mesa na sombra. Eu merecia
Ela estava com um ar de boa moça, com aquele vestido e um colar, embora
seu longo cabelo farto ainda
olhando.
Ela bufou.
– Sim – eu disse. Não falei dos meus irmãos e não contei que tinha
esquecido que Win estava morto, mas
devia estar pensando em Win por causa do que saiu da minha boca em
seguida. – Win costumava passar em
casa para tomar café e comer donuts. No dia quatro de julho, quero dizer.
– Como assim?
– Minha mãe quase teve um ataque por conta do meu machucado. Eu sabia
que ia ser assim.
filhos tinha uma crise, ela era capaz de arrancar os olhos de qualquer um
por ele. Se eu voltasse para casa com a cara machucada, minha mãe me
jogaria um saco de ervilhas congeladas e perguntaria quem ela
– Pois é.
– Minha mãe é legal. Sempre cuidou de mim… talvez até demais. Sempre
tentou me deixar segura e feliz.
Entre ela e Ari, às vezes parecia que elas estavam levando a vida por mim.
– Ela parou de falar e ficou
vermelha.
– Não – Diana disse, parecendo estar surpresa consigo mesma. – Não, não
quero. Na verdade… acho que
foi por causa do Win. Ari começou a passar tanto tempo com ele que… eu
fiquei sozinha.
Engoli meia rosquinha em três mordidas.
– Sim, mas o que isso significa agora? Vamos sentar juntos e falar dos
nossos sentimentos?
– Podia ser bom para vocês dois conversar sobre essa coisa toda.
– Não parece nem um pouco provável. Ari abrindo o coração? Qual é! Está
aí uma qualidade dela: não é
– Sim.
– Não estou falando de paraíso, anjos ou seja lá o que for. Isso é bobagem.
Mas no fim de tudo. Como
nada importa depois disso. – “Como nada importa agora”, queria dizer, mas
sabia que isso provocaria aquela respiração esquisita e que ela não
entenderia o que eu estava falando.
tanta coisa, com o incêndio e depois Win... Mas, sabe… – Ela parou de
repente, olhou para mim como se
coisas. É quase como se eu quisesse ver isso, porque assim saberia o que as
pessoas achavam de mim de verdade. Se gostavam mesmo de mim.
Eu deveria ter ficado bravo por causa de Win. Porque Win não pedira para
morrer e todos tínhamos
passado por essa tortura de verdade, não era nenhuma fantasia egoísta e
autocentrada. Mas não fiquei bravo.
Eu me senti bem. Pensei na noite anterior, quando não quis dar um beijo
nela, o que parecia uma idiotice
agora. Por que não? Ao observá-la sob a luz clara da manhã no pátio do
café, ao ver como sua felicidade
brilhava, cheguei à conclusão de que aquilo me fazia sentir bem, que não
havia mal algum em deixá-la mais
feliz. Nós dois estávamos ganhando com aquilo – e daí se não fosse a
mesma coisa para ambos?
– A Ari tem medo de entrar aí – Diana disse, apontando com a cabeça para
a loja.
– Sim, mas ela a odeia. Diz que as paredes se fecham em volta dela.
das piadas de Ari e usava camisetas polo abotoadas até o pescoço, poderia
tirar onda comigo.
– Estou te falando – ela disse. – Se alguém pode conversar com ela, esse
alguém é você.
– Talvez – respondi, e sorri de novo.
A cara que ela fez foi tão perfeita – surpresa e contente – que dei risada, e
seu rosto começou a ficar
Mas não sabia por que estava rindo. Porque eu estava vivo? Era essa a
grande piada?
tipo? Na minha casa, às vezes me sentia como uma tevê quebrada: os outros
olhavam para mim e depois
Com Diana era diferente. Tudo que eu fazia era novo, tudo importava. Ela
não esperava que eu fosse desse
19. Win
Echo disse que precisava praticar o feitiço algumas vezes para ter certeza,
mas que me avisaria quando
dinheiro. Ari tinha economias suficientes do seguro de vida dos pais dela
para começar a vida em Nova York, o que era uma daqueles diferenças
quase invisíveis mas enormes entre nós; embora ela pudesse ter me dado o
dinheiro, eu não podia pedir. Para começar, era o seguro de vida dos pais
dela. E ela e sua tia precisavam daquela grana. Eu não podia tirar Nova
York dela. O Win legal, o namorado honrado e o bom moço
definitivamente não faria uma coisa dessas. Pedir esse dinheiro significaria
admitir que eu não era o Win legal e bom moço. Além disso, se ela
soubesse o que eu estava fazendo, iria se culpar, e ver isso em seu rosto me
Eu a amava. Mas era como amar uma pessoa de trás de dois metros de vidro
à prova de balas. Ela estava
Assim, restava Markos. Markos não tinha dinheiro, e sua mãe vivia tendo
problemas para pagar os
Pode parecer estranho que eu estivesse contando com o feitiço sem tentar
pensar numa forma de pagar por
ele. Não que estivesse planejando dar um calote em Echo ou coisa do tipo.
Eu queria pagar a dívida. É só
que… mais que isso, queria ficar bem. Queria sair do buraco.
Aquilo era muito parecido com um buraco. Ou mais com um poço, talvez:
escuro e claustrofóbico, nas
minha mãe não conseguia me dar atenção, que Kara ficaria irritada alguma
hora, que Ari não devia me amar e que Markos me via como uma
obrigação, e nem os culpava por nada disso, porque eu sabia que merecia
ser
tratado como lixo. Porque nunca tinha feito nada para tornar o mundo um
lugar melhor, não era um cidadão
impressão de que só fui prestar atenção nela pela primeira vez na aula de
trigonometria, que cursamos na
Ela sentava bem ereta, como se seu tronco acompanhasse a linha do cabelo
que descia por suas costas.
Esse tipo de postura poderia parecer esnobe para alguns, mas fazia tanto
tempo que eu estudava com ela que conhecia sua história. A tragédia dos
seus pais, mortos num incêndio, o fato de ela morar com a tia toda
tatuada, que trabalhava num café, e de ser bailarina – e uma boa bailarina.
Ela tinha sobrevivido a algo terrível. Eu não tinha pena dela por isso, essa
história aumentava meu respeito por Ari.
Comecei a conversar com ela antes e depois das aulas, e fomos ficando
amigos. Não sei dizer bem como.
Da forma como se vira amigo de alguém, ainda mais de uma menina: tudo
acontece com gestos, momentos,
olhares e piadas, então, antes que a gente perceba, está sempre perto do
armário dela de manhã ou na casa
então perguntei se ela achava que o feitiço que havia comprado valera a
pena.
– Sim – Ari disse, sem hesitar. – Sabe quando as pessoas dizem: “Nem
consigo imaginar como deve ter
sido horrível”? Então, agora posso dizer o mesmo. Também não consigo
imaginar.
Por algum motivo, não queria deixar o assunto para lá, por mais que
soubesse que Ari havia dito
praticamente tudo o que queria dizer sobre o assunto. Ela esfregou o pulso
com o polegar, franzindo a testa, e olhou atentamente para o livro de
trigonometria.
– Um turista.
– Por quê?
alguém que estava na cidade para se divertir. Acho que algum turista
chapado invadiu a casa, acendeu uns
– Se você acha que foi um turista, como consegue olhar para a cara deles
agora?
– Eles pensam que são os donos de tudo. – Eles eram os donos de tudo, pelo
menos em comparação
comigo. Eles tinham o direito de tirar férias.
Um dia minha mãe me levara de carro com Kara para a ilha Block, quando
eu tinha onze anos. A ilha era
muito parecida com a nossa cidade: turistas por todo lado, praias, frutos do
mar. Ela comprou sorvete para a
o sorriso no rosto.
Ari não tinha falado nada, e achei que tinha ido longe demais. Por fim, ela
abanou a cabeça.
– Não posso ter raiva de todos os turistas. Não conseguiria viver. Mas
também não tenho como evitar
– Não. – Ela suspirou com tanta força que soprou as folhas do caderno. –
Além disso, faz quase oito anos.
Ele já deve estar longe a essa altura. Duvido até que saiba que botou fogo
na casa. Não deve ter feito isso por maldade.
Senti meu coração apertar ao me dar conta do que ela estava dizendo. Ela
tinha abandonado a esperança.
sentir o quarto ficar menor, enquanto nós dois escorregávamos feito água
pelo ralo.
– Desculpa – eu disse. – Nem sei por que estou te perguntando essas coisas.
– Não tem problema – ela disse, e até chegou a sorrir um pouco. – Prefiro
que pergunte em vez de nunca
tocar no assunto, como se fosse alguma doença terrível. Estou bem agora.
– Tenho Jess, Diana e o balé… e tenho você também. – Ari disse essa
última parte rápido, como se
desconfiasse de que tinha ido longe demais, dizendo que eu era dela.
Mas ela não tinha ido longe demais. Eu me senti bem – ótimo até – por
estar na lista de coisas que a faziam viver, porque eu sentia o mesmo por ela
sem perceber: ela ocupava um espaço na minha vida que eu não sabia que
tinha até então. Foi nesse momento que decidi que não estava só pensando
em dar um beijo nela, mas que realmente daria. Acabei demorando para
realizar isso, mas a decisão nasceu naquela conversa.
20. Kay
O problema era que eu achava que Ari e Diana também não andavam
conversando muito entre si. Ari ficava
divertido.
para deixar entrar o sol do verão. Ari estava deitada de costas atrás do sofá,
tentando estender a perna sobre a cabeça, e Diana olhava para o próprio
rosto na câmera do celular. Ela realmente continuava bonita. Tinha o cabelo
vermelho, a pele lisa e olhos grandes. Mas não me respondeu e não guardou
o aparelho.
Se havia uma coisa que eu tinha aprendido com a doença de Mina, era
como cuidar de uma pessoa doente.
descansar e se recuperar.
Ofereci um Tylenol e uma garrafa de água que tinha na bolsa pra ela. Ela
fez um sinal indicando que não
precisava de nada.
– Estou bem.
aparece.
– Eu só estava dizendo…
– Você fala isso para todo mundo. Está desvalorizando seus elogios.
– Estou falando sério! – As duas riram com mais sinceridade, até que o
rosto de Diana doeu e ela voltou a
apertar o machucado com o dedo, devagar e cuidadosamente.
– Fiz isso porque vocês comentaram que queriam ir para Boston na festa da
fogueira…
– Não era exatamente isso que a gente tinha em mente – Ari disse,
sentando-se e estalando as costas. – Mas valeu, Kay.
– E a gente vai, né? Quer dizer, meus pais compraram para nós e não sei se
dá para pedir reembolso…
– Mas talvez você queira chamar algum menino… como o Cal Waters…
– Acho que é o jeito da Diana perguntar se você vai sair com o Cal de novo.
– Ah... – Não tinha pensado muito nele desde a fogueira. – Não sei se vai
rolar alguma coisa.
– Que bom! – Ari disse. – Quer dizer, ele é um Waters. Eu adoro o Markos,
mas sabe como eles são.
– Não tenho esperança nenhuma – disse, mas senti uma parte de mim
murchar e se contorcer diante do
– Que bom!
avisar? Não acreditava que, porque ele era um Waters e eu era eu, não
houvesse chance alguma de dar certo.
chocolate meio amassado que podia provar para Ari e Diana que eu não era
só mais uma garota de quem Cal
inseticida e babosa. Ele sorriu para os clientes mesmo quando eles passaram
a fuçar os inúmeros
Ari, Diana e Mina, que quase não sorriam mais. A animação de Cal parecia
vir de outro mundo.
– Ah... Oi.
– Eu, hum… – Estendi o biscoito para ele, que ficou olhando como se
esperasse que o biscoito se
– Quê? Não! – Dei uma risada fingida e joguei o cabelo para o lado. – É um
feitiço de boa sorte. Dura um
dia. Minha avó me mandou. Mas minha hekamista disse que não posso
tomar mais feitiços, por causa dos
efeitos colaterais, e não queria desperdiçar, então, quando passei, sei lá…
pensei que você pudesse gostar.
– De nada. – Não saí da fila. Ele ainda não tinha comido o biscoito, e eu
não podia correr o risco de ele
– Não! – interrompi. – Não vale comer quando você sabe que precisa. É
mais divertido comer num dia
– Está bem. – Ele olhou para o pescador que suspirava atrás de mim,
inquieto. O sorriso de Cal não
Peguei o celofane e as migalhas de sua mão antes que fossem comidas por
ratos e eu virasse a Flautista do
cabo Cod.
Então, eu, Ari e Diana fomos ver Wicked em Boston. Nem pensei nos quase
duzentos quilômetros que
Pensando em vc.
Dei o cano no trabalho e peguei a balsa pra Boston. A gente podia sair qdo
eu voltar.
Quando eu voltar. Ele não sabia que eu estava em Boston. O feitiço o tinha
atraído para cá
inconscientemente.
Diana e Ari, quando era natural e divertido fazer tudo juntas, e não
silencioso, estranho e desconcertante. Na época, toda vez que saíamos
juntas era uma nova aventura.
Cheia de possibilidades.
21. Ari
primeiro dia de agosto, fui de carro à praia e caminhei até mais ou menos o
mesmo lugar onde Echo havia me encontrado.
Sentei na areia durante os noventa minutos de “aula”, que era onde Jess
pensava que eu estava. Fiquei
obrigara a ir. Por isso, quando sentava para a nossa consulta, sempre a
desapontava. Não me abria. Não
– Não sou mais aquela menina – eu disse. Quanto mais vago e dramático,
mais fácil era mentir.
– Como assim?
Opa.
– Diferente como?
terem seios e estarem mais altas. Elas ficam com medo. O cérebro delas não
deixa mais que elas saltem, ou
– Como assim?
Pestanejei.
– Bom... Acho que algumas pessoas reagem a uma perda, a uma mudança
ou seja lá o que for perdendo o
bem.
– Então você não acha que perder alguém pode te modificar? – Ela bateu
com a caneta prateada elegante no
Dei de ombros.
A dra. Pitts se inclinou. Ela estava envolta em lenços, como uma múmia.
Nem sabia se ela era gorda ou
magra, porque sempre usava esses lenços, além de calças largas e botas cuja
altura não se podia adivinhar, em função de todos os tecidos que as
encobriam.
– O luto não é uma fraqueza, Ari. Não é algo que se possa reprimir ou
vencer. Sim, ele pode te mudar, mas
é isso que as pessoas fazem: mudam, crescem. Eu receio que você esteja em
negação.
Fiquei vermelha.
– Sim, é claro! Não fico na cama o dia todo, mas isso não significa que não
esteja triste. Que tipo de
terapeuta é você, insistindo que eu fique tão triste quanto todas as pessoas
do mundo? Isso é doentio. Estou lidando com isso do meu jeito.
A dra. Pitts pareceu satisfeita por alguns segundos, o que me deixou ainda
mais furiosa.
– É bom ter raiva – a terapeuta disse, o que me deu vontade de jogar a mesa
de centro em cima dela e sair
batendo os pés. Se seu plano era me deixar com raiva, estava de parabéns. –
Me conte sobre seus pais.
Ela fez que sim, como se os outros vivessem dizendo ter raiva dela. Talvez
vivessem mesmo.
Pensei nos meus novos vídeos. Toda manhã eu acordava, ligava a câmera,
colocava música para tocar e
arriscava uma sequência simples de passos: algo de uma apresentação, de
um teste do Instituto ou mesmo a
Agora, eu podia pensar estar sentindo amor, medo, raiva, alegria ou outra
coisa, mas meu cérebro não
resolvido me remexer no sofá dela sem que houvesse razão para isso.
Passou pela minha cabeça que, se não conseguisse impedir que Echo
falasse, não precisaria mais ir à
terapia, porque Echo contaria tudo, e a dra. Pitts não esperaria mais que eu
me sentisse deprimida e torturada por causa de Win. Seria bom. Mas seria a
única coisa positiva.
lidar com essas coisas, para elas não destruírem sua vida. Adianta para
esquecer o medo. Você se recusa a
falar sobre seus pais. Não me contou quase nada sobre Win. Mas eu passo
pelo ponto da estrada onde ele
– Mas você sim. Não quero que você deixe um ursinho de pelúcia em cima
do monte, mas que pense por
que todos eles resolveram homenagear Win daquela forma. Eles podiam
não ter feito nada na estrada, mas
Elas queriam se lembrar dele, claro. Era a esse ponto que ela queria chegar.
Por mais que ela me deixasse
de ser uma boa paciente, era a antiga Ari, ferrando com as coisas de novo.
“balé”, a cara triste ensaiada, as perguntas da dra. Pitts, tudo era inútil.
A antiga Ari havia roubado do seu falecido namorado e, agora, era eu quem
tinha de pagar. Era minha oferta ao memorial de Win à beira da estrada.
Não conseguia ficar de luto, então daria o dinheiro.
Dei partida no carro, mas, em vez de dirigir para a Sweet Shoppe, onde meu
turno começava ao meio-dia,
22. Markos
Quarta-feira foi o primeiro dia em muito tempo em que não acordei com a
cara fechada. Não que de repente
estar enfiado num monte de lama, estivesse suspenso sem gravidade numa
substância mais agradável.
Desde a festa da fogueira, via Diana todos os dias. Nem me importava com
o fato de ela talvez achar que
Ainda não tinha tentado nada com ela, embora pensasse nisso às vezes.
Tinha vontade de me aproximar e
beijá-la no meio de uma frase ou de colocar a mão por baixo da sua
camiseta enquanto víamos tevê. Poderia
ter feito isso. Ela nunca me deu um sinal de que não gostaria. Mas o fato de
eu poder fazer mantinha a ideia guardada, pronta para que a colocasse em
prática se algum dia sentisse necessidade.
Ela não era como aquelas meninas que nos faziam olhar para elas e
esperavam que as desejássemos, e que
só nos davam ouvidos porque achavam que era o que queríamos. Diana
ouvia porque queria ouvir o que eu
sumia quando eu e Win íamos buscar Ari no local onde ficava seu armário.
Ela não era tão engraçada quanto
Ari, nem tão confiante, e isso fazia com que parecesse não ter nenhum
atrativo. Ao menos nada pelo que
Mas agora Diana parecia diferente. Foi como ela disse: com Ari ocupada,
precisava fazer alguma coisa. Ser
meninas. Mas descobri que havia muitas outras qualidades além dessas.
Como… compreensiva, acho que é a
Quando eu estava com ela, não precisava me controlar ou ficar calmo, nem
agir como um Waters. E, como
não havia expectativas para que eu ficasse feliz, conseguia me sentir bem de
verdade.
Assim, na quarta, estava me sentindo o melhor possível que uma pessoa não
lobotomizada podia se sentir –
não que minha família tenha notado; eles se reuniram em volta da mesa da
cozinha para o café da manhã,
– Dá uma varridinha na oficina hoje, tá, Markos? – minha mãe pediu. Ela
estava com seu livro de
computador, mas ela se mantinha fiel ao livro e não deixava que nenhum de
nós mexesse nele.
– Dormindo no quarto.
– Como é então?
não se meta em nada sério nessa idade. Você vai querer manter todas as
suas opções em aberto.
– Você é muito novo para alguma coisa séria, é isso que Brian quer dizer –
minha mãe falou, e Brian deu de ombros, meio que concordando.
– Mesmo assim, traz a menina para cá – Dev disse. – Quando o Markos der
um fora nela, talvez ela queira
sair comigo.
– Você não faz o tipo dela – eu disse, e Dev deu risada. – Além disso, nós
somos só amigos.
Toda a mesa virou para me encarar. Não devia ter falado nada. Seria melhor
que pensassem que estava
abrissem a boca.
Assim que saí, tive vontade de procurar Diana e falar mal deles. Pensei que
ela não entenderia e que não
gostaria de saber que andaram falando dela. Além disso, ela ficaria o dia
todo trabalhando como babá e tinha mais o que fazer, então deixei a ideia
para lá.
cidade.
Claro que não! Eles acham que sou exatamente igual a eles quando eram
mais novos. Como se eu fosse um deles mais jovem. Às vezes Dev até
esquece que eu não jogo polo aquático, saca? Porque ele jogava.
Eles amam você.
O que os envergonharia?
Que mais?
Diana. Não. Sei lá. Talvez. Ela não é o tipo com que eles estão
acostumados.
Parei de andar. Me agachei. Coloquei as mãos nos joelhos. Tomei ar. Senti o
chão tremer sob meus pés. Um
turistas.
Win amava meus irmãos. E eles o amavam também – não que falássemos
sobre Win desde sua morte. Não
Waters. Nos fundos da loja, havia uma oficina entulhada com todas as obras
de carpintaria e outras
ferramentas que todo homem pode querer. Na minha opinião, meu pai havia
aberto a loja de ferragens só para poder fazer essa oficina para si.
Brian não descobrisse. As horas foram passando, até que eu vi Ari Madrigal
pelo circuito fechado de câmeras da loja.
dos artigos sem que nenhum de nós percebesse. Mas, em vez de limpar e
organizar a loja – porque Deus me
livre de que a família Waters tentasse fazer algo tão ambicioso –, instalamos
mais câmeras. Elas cobriam os diversos cantos e todos os corredores sem
saída. Um monitor de tela plana mostrava uma grade com imagens
de todos os ângulos.
Ari foi caminhando de corredor em corredor, às vezes em círculos, olhando
ao redor com uma cara digna
de pena. Eu sorri. Ela tinha ido lá inúmeras vezes, mas sempre se perdia.
Nunca me encontraria sem ajuda.
Liguei o interfone.
– Bem perto das lixas. – Ela levou um susto e tropeçou, mas virou à direita.
– A porta fica à esquerda do
mostruário de tintas.
Ari passou de uma tela a outra do monitor e, alguns segundos depois, surgiu
em pessoa na porta da oficina.
olhar para ela e ter me lembrado de Win, porque eu já estava pensando nele.
Em vez disso, foi como receber a visita de uma velha amiga que eu não via
há séculos.
O que era verdade, aliás. Talvez Diana estivesse certa e eu devesse ter
conversado com ela antes.
Ao pensar em Diana, porém, senti um frio na barriga. Ari devia estar ali por
causa de todo o tempo que eu
vinha passando com sua amiga. Ela havia mandado eu me afastar de Diana
de maneira enfática diversas vezes, mais do que conseguia enumerar, e eu
não queria entrar na mesma discussão de novo.
barulho.
Me lembrei do que Diana tinha dito sobre Ari ter medo de entrar na loja.
Imaginei que só a própria Diana a levaria a fazer isso.
– Ari Madrigal – eu disse, ao sair. – Mas que porra você está fazendo aqui?
Ela olhou para a oficina, pousando o olhar nos cachimbos e na bagunça que
eu tinha feito. Seu cabelo
mas nunca entendi o que fazia Win ser tão louco por ela. Uma vez eu a
tinha visto levar o pé até a cabeça, então talvez fosse um fetiche por balé.
– Bom dia para você também, Markos – ela disse, com um sorriso.
– Ah, é?
– Que bom ver que você está trabalhando pelos menos favorecidos...
– Queria nada.
junto? Sei lá, você deixou bem claro no funeral que não queria conversar
sobre Win, mas, sabe, tricô parece ótimo, vai em frente e me inscreve para
as seis. – Bocejei, espreguiçando os braços para o alto. – Por que você está
aqui, Ari?
preparei: “Fica longe de Diana. Para de mexer com a cabecinha dela. Qual é
o seu plano maligno?”. Mas não
– Não estou brincando. Desculpa pedir isso para você, mas não sei quem
mais…
– A loja é da minha mãe. Por que diabos você precisa de cinco mil dólares?
– Não posso te contar.
– Isso funcionou com Win, mas não vai funcionar com você.
– O que você quer dizer com… ah. Foi com você que ele conseguiu. – Ela
esfregou os olhos com as
Claro que Ari sabia do dinheiro emprestado para Win. Eu achava que era o
único a quem ele havia contado,
– Não.
– Não.
Pelo menos não tinha contado isso para ela. Me sentiria um completo idiota
se ela soubesse e eu não.
Pensavam de mim.
– Por favor, Markos. Você sabe que eu não pediria se não fosse importante.
– Porque… eu gastei.
– Não sabia que era dele – Ari disse. – Quer dizer, seu. Achei no meu
guarda-roupa. Ele deve ter escondido lá.
Ari abanou a cabeça. Ela não iria dizer em que tinha gastado, isso dava para
ver. Deve ter pensado que eu
– Não posso.
– Eu devia te dar cinco mil dólares… por quê? Você basicamente já roubou
cinco mil dólares de mim. E se
recusa a me dizer com que gastou. Se recusa a falar comigo. Onde você
esteve o verão todo?
– Você acha que nós dois somos tão amigos quanto eu e Win éramos?
– Win era meu melhor amigo. Não tem ninguém que eu trataria do mesmo
jeito e ninguém que eu vá tratar.
Nunca. Eu e você não saímos juntos há semanas. Você acha que eu devia
tratar você como tratava Win?
Porque ele te amava? Não mesmo. Na verdade, agora, nós nem somos
amigos. Sacou?
– Puxa, Markos…
– Não. Estou falando sério. Por que fingir? Nós não temos mais nada em
comum. Acho que nunca
tivemos. – Não era isso que eu queria dizer, e provavelmente nem era
verdade, mas não consegui me conter. –
Não gosto de você. Não gosto das suas piadas. Não sinto pena de você por
causa do seu passado trágico.
Ela deu a impressão de estar derrotada, mas não tão completamente quanto
eu queria que ficasse. Queria
Por Win eu roubaria. Por Win eu mataria. Ari não era Win.
Ela virou as costas, tropeçando ao sair pela porta da oficina. Na tela plana,
eu a vi virar e dar a volta pela loja várias vezes, sempre escolhendo o
caminho errado. Perdida.
Eu não a ajudei.
23. Win
Echo tinha aceitado me ajudar, mas praticar o feitiço levou tempo – meu e
dela. Ela me chamava para ir à sua casa e me sentar no sofá, perguntando
coisas sobre como eu me sentia e como queria me sentir, ou me
contava sobre o que tinha lido num dos livros da mãe sobre feitiços mentais
e o que eu poderia esperar sobre os efeitos colaterais.
demência, mas era algo além disso: era o que acontecia quando as
hekamistas viviam mais do que o resto do
seu clã. A mãe dela só tinha a Echo. Um clã precisava ter pelo menos três
hekamistas para ficar estável, sendo que o ideal eram sete. – Quando ela
morrer, vou ficar completamente maluca – Echo afirmou.
Não podia deixar minha mãe se despedaçar. – Ela abriu um sorriso com
seus lábios de batom vermelho. –
Além disso, ser uma hekamista tem muitas vantagens. Se eu não tivesse
entrado, não poderia ajudar você.
– Parece até que minha mãe me fez uma amarração – disse, revirando os
olhos.
– Um tipo de feitiço para me manter perto dela. Faria sentido: ela vive
preocupada comigo porque sou ilegal.
– Bom, sim. – Ela fez um gesto indicando que não era nada de mais. – Eu
iria para a cadeia, ela iria para a cadeia. Qualquer pessoa de um clã que
inicia uma hekamista nova pega prisão perpétua. É por isso que
preciso encontrar outro clã e convencer as hekamistas a nos aceitarem. Elas
vão precisar de um pouco de
preciso fazer alguma coisa para salvar minha mãe. Para me salvar.
– Se ela tivesse me dado um, sim, mas acho que não foi isso que aconteceu.
– Minha mãe me ama, mas sabe das coisas. Às vezes, má sorte não passa de
má sorte.
culpa minha. Se eu fosse Echo, preferiria acreditar que era uma amarração
que me mantinha longe do que eu
queria – qualquer coisa, menos “às vezes as coisas são assim mesmo”.
– No entanto, se fosse uma amarração, você poderia quebrá-la – eu disse.
O problema dos feitiços, como Echo me explicou, é que eles não podem ser
quebrados. No máximo, dá
para esperar que passem (quando são temporários) ou tentar colocar outra
camada de feitiço sobre eles
hekamista pode arranjar o feitiço ideal com os efeitos colaterais certos para
levar a pessoa quase de volta à direção original. Só que essa tentativa pode
ser perigosa. Um feitiço bem-feito se protege. Ele age no mundo para não
ser destruído, segundo Echo.
Echo havia dito. “Ele vai agir no mundo para se proteger.” Ela tirou as
cascas do pão, cortou o sanduíche na diagonal e o colocou num saco
plástico para mim.
Poderia ingeri-lo naquela hora mesmo, engolir tudo de uma vez e resolver a
questão do dinheiro depois. Mas não podia fazer isso com Echo, que só
havia tentado ajudar e tinha seus próprios problemas – uma mãe
da testa com as duas mãos. Parecia não apenas triste, mas amedrontada. O
que era compreensível.
– É melhor eu devolver?
Ela olhou para mim sem firmeza com os olhos maquiados de preto.
– Se ninguém tomou, você não tem como saber se algum dos que praticou
funcionariam.
– Vai funcionar, Win. Sua tristeza… vai sumir. Os efeitos colaterais vão ser
físicos, então talvez não consiga jogar beisebol por um tempinho, mas você
não vai se matar, então…
era bom no beisebol porque era ruim em ser feliz?) Mas um vermelho-vivo
subiu do pescoço de Echo para as
bochechas, fazendo-a corar.
Ergui o saco pela ponta e olhei para o sanduíche. Comum. Mas não, de
algum modo, aquele era um
sanduíche permanente.
Ela fechou a torneira e olhou para mim, não mais corada, só com a
curiosidade reservada de sempre.
– O tempo que precisar. O pão pode ficar velho, mas o queijo não vai
estragar.
– Valeu – agradeci.
Dei de ombros. Ela é que tinha achado necessário me assustar com histórias
de feitiços inquebráveis. Ela é que não tinha me contado até o último
minuto que era uma amadora inexperiente.
Não me tocou, só ficou olhando para mim. Não gostei daquilo, mas não
conseguia desviar o olhar. Talvez
tem de escolher entre comer esse sanduíche ou cortar os pulsos, você come
o sanduíche, tá?
24. Markos
Claro que eu dei o dinheiro para Win. Eu teria feito qualquer coisa por ele.
Ele me pediu e eu sabia que a coisa era séria. Ele nunca pedia porra
nenhuma, e sua pobreza nunca fora
segredo para mim. Sua mãe fazia como as outras e pagava a dança de Kara,
irmã de Win, como se ela pudesse
certo cheiro incrustado. Ele se mudava com frequência e não explicava por
quê. Às vezes para lugares
melhores, outras para verdadeiros buracos. Eu não questionei por que ele
precisava do dinheiro.
E não perguntei para que precisava. Era dinheiro. Eu tinha, ou pelo menos
tinha como arranjar, ele não. Não era justo, mas a vida era assim. Por que eu
insistiria em saber de suas merdas pessoais, só porque estava na posição de
lhe fazer um favor? Eu confiava nele. Isso era suficiente.
O que não quer dizer que não tenha pensado no assunto, nem ficado
curioso. Sabia que ele estava
preocupado com alguma coisa. Ele vinha ignorando minhas mensagens por
dias e, às vezes, como na noite de
Quando me permiti ponderar para que seria o dinheiro, pensei que fosse
para sua mãe ou para Kara – algum
enquanto, preferiam guardar segredo. Achava que eu era o único para quem
ele havia contado.
E continuei pensando assim até o dia em que Ari entrou na oficina pedindo
mais. Que belo babaca eu tinha
sido.
Ouvi um monte da minha mãe por causa do dinheiro que dera para Win,
então não foi exatamente fácil.
Apesar do seu antigo livro de contabilidade, ela nunca deixaria que tanto
dinheiro sumisse da loja sem notar.
Mas eu fui esperto. Não tirei do caixa da loja nem nada assim. A cada
quatro semanas, minha mãe deixava um envelope pardo na loja para a velha
hekamista vir pegar. Devia ter uns dez ou doze centímetros de grossura em
alguns meses. Notei pela primeira vez alguns anos atrás, quando estava
vigiando o monitor de segurança
Havia seis mil dólares nele, para minha surpresa. Não achava que os
feitiços fossem tão caros, mas, enfim, nunca havia encomendado um, então
não tinha como saber. Embolsei os mil a mais, por via das dúvidas, e dei o
resto para Win na escola no dia seguinte.
Só que tinha mais alguma coisa, algo que não consegui identificar.
– Já era – eu disse.
Ela me pegou pelo braço, cravando as unhas em mim, mas não pestanejei.
– Por que isso é tão importante? Está com medo de mais alguns fios
brancos?
– Não é para mim, seu idiota. O seu irmão… – E daí ela parou.
– Para quem é? Dev? Cal? Por quê? O que há de errado com eles?
Só que minha mãe não me contou. Algo em sua expressão se retorceu e ela
chegou a abrir um sorriso
maldoso. Foi até minha cômoda e abriu a gaveta do meio, onde guardo
alguns dos cachimbos que faço na loja
antes de distribuir para os compradores. Não tinha ideia de que ela sabia
sobre eles, então levei um segundo para encaixar tudo na minha cabeça.
– Hum… – foi tudo que eu disse antes de ela tirar um cachimbo com um
gesto exagerado.
– Você não consegue esconder nada de mim, Markos, eu sou sua mãe. – Ela
brandiu o cachimbo como um
bastão. – Você acha que não sei sobre isso? Eu sei de tudo. Sei com quem
você conversa, o que faz com as
pessoas. Sei quanto dinheiro tem na carteira. Sei quem são suas namoradas
e quem são os pais delas. Sei até que tipo de sites pornôs você visita.
– Sei tudo sobre você, Markos. Você é meu filho. Se pensa que consegue
esconder o dinheiro…
– Então encontra. Se você sabe tudo sobre mim, me mostra onde está o
dinheiro. – Mantive o olhar fixo
– Eu faria tudo pelos meus filhos. Fiz tudo o que pude. E não me arrependo.
– Não fazia ideia do que ela
estava falando, mas nem mesmo eu sou tão frio a ponto de não sentir nada
quando minha mãe chora. – Você
não sabe como é difícil… todo mês… mas vale a pena. Seu moleque
ingrato de merda!
– Ah, mãe…
Assim que tive certeza de que ela havia saído de casa, tirei o restante da
grana do tênis, enfiei no bolso e prometi a mim mesmo que gastaria o mais
rápido possível. Então, quando vi a filha da hekamista perto do
surpresinha.
Minha mãe só voltou a falar comigo quando Win morreu, três dias depois.
25. Ari
O melhor da Sweet Shoppe era o frio, que entrava nos meus ossos e os
deixava dormentes. Depois que eu
entrava no ritmo, o tempo passava rápido. Abaixar, pegar, servir, estender.
Abaixar, pegar, servir, estender.
Não precisava pensar na tarefa nem em nada. Como no fato de Markos ter
se recusado a me dar cinco mil
dólares. Como no fato de eu ter ido mal em mais uma sessão de ensaio
naquela manhã e ter torcido o
Echo chegou como uma nuvem negra, uma influência maligna à leveza da
vida dos turistas. Eu conseguia
– Ah, oi – eu disse.
– Eu vim buscar. – Seu olhar era mais potente do que me lembrava, tão
inflamado que era capaz de derreter
o sorvete, mas, por algum motivo, tive aquela lembrança parcial de novo:
leveza, como plumas.
– Não tenho.
– Doze dias.
– Isso, discute comigo. Você deve estar louca para que todo mundo
descubra seu segredo.
– Não estou, mas também não tenho cinco mil dólares. Isso me deixa numa
situação meio complicada.
dobrar noventa graus e meu cotovelo se recusar a dobrar. Aquilo não era
uma curva. Era uma rota sem saída.
Tentei chacoalhar o punho, mas acabei por batê-lo no torso. Podia jurar, por
meio segundo, que Echo iria
– Escuta – ela disse finalmente, com a expressão mais suave do que antes. –
Eu vou te dar uma folga. Se
Echo mordeu o lábio e passou a mão direita pelo braço esquerdo. Por fim,
abanou a cabeça.
– Não dá. Preciso de pelo menos quatro para garantir, e já. – Ela murmurou
algo para si mesma que me
mil dólares imaginários. Pode continuar pedindo cinco mil. Não vou ter
como pagar.
– O que você acha que vai acontecer? – ela perguntou, debruçando-se sobre
o balcão de vidro para poder
sussurrar. Havia uma fila se formando atrás dela, mas não tive coragem de
mandá-la embora, mesmo com
sentiu muito mal por você. Toda a cidade foi, ficou com pena da coitada da
Ari Madrigal. Pessoas que
Como você acha que elas vão reagir quando contar que você estava
fingindo esse tempo todo? Que tomou um
feitiço para facilitar as coisas? Que nunca nem mereceu uma pessoa como
Win?
– Por favor… não – pedi. A súplica era tão em vão que fiquei tensa.
– Estou tentando!
– As pessoas têm pena de você, mas todo mundo amava Win. Você pode
não se lembrar, mas eu me
lembro. Todo... mundo... amava... Win. Você está pronta para que todos
sintam ódio de você em vez de pena?
testa.
– Eu não tenho.
– Jura? Nenhum resto de dinheiro do seguro sobrando? Nada que sua tia
possa emprestar?
– Vamos nos mudar para Nova York daqui a duas semanas. Precisamos
desse dinheiro.
ir para Nova York. Não sabia por que estava me explicando para Echo, mas
fiquei me repetindo, tentando
– Então vai. Vai embora – ela disse, como um desafio. – Não importa que
todo mundo saiba seu segredo se
você for, não é? Vai! – Não disse nada, e ela bateu no vidro mais uma vez
para enfatizar. – Só que, se ficar aqui, vai continuar me devendo. Você tem
mais uma semana.
Ela saiu e eu devia ter voltado direto para o “abaixar, pegar, servir,
estender”. A fila de clientes se aproximou e fez seus pedidos, esperando que
eu obedecesse. O gerente voltou para o caixa, contente agora que a nuvem
negra havia partido.
Mas não continuei trabalhando. Minha cabeça estava a mil, completamente
fora de ritmo. Deixei a colher
cair num pote de chocolate e saí atrás de Echo, sem nem me importar em
tirar o avental rosa de babados.
A filha da hekamista. Ela havia dito que tinha uma filha – eu me lembrava
de ela ter mencionado isso numa
Sentei do outro lado da rua e fiquei olhando para a casa. Pessoas tristes e
confusas entravam e saíam, mas nada de Echo. Quando a porta se abria, eu
entrevia a hekamista.
Então, tinha sido assim que Echo soubera do meu feitiço. Talvez tudo
aquilo fosse algum tipo de golpe que
elas faziam juntas, uma quadrilha de mãe e filha, em que a hekamista fazia
os feitiços para as pessoas e depois a filha mandava que elas pagassem para
guardar segredo.
porta, convidando as pessoas para entrar e levando-as até a porta para sair.
Talvez oferecendo uma xícara de chá.
tropeçar.
– Sou eu.
Respirei fundo.
– Qual é a graça?
– Não tem graça nenhuma. Echo está me chantageando. Ela quer cinco mil
dólares ou vai contar para todo
Franzi a testa.
– Que ela está me chantageando, claro. Que vocês duas estão. O que mais
eu diria?
– Ah... – A mãe de Echo suspirou e seu rosto relaxou. – Ah… Echo, minha
Echo… Os segredos são muito
poderosos.
– Eu sei.
– Porque, se você não tivesse guardado segredo sobre o feitiço, Echo não
teria como te pressionar pelo
dinheiro.
Não parecia haver mais nada a dizer. Apertei o pulso e me levantei. Meus
pés tinham adormecido.
Echo? – continuou, como se estivesse pedindo. Mas isso não fazia sentido.
truque. Só que a mãe de Echo não parecia uma inimiga e, se não fosse,
talvez Echo não fosse minha inimiga
26. Kay
– Eu estava dormindo.
– Estava?
– Sim.
Cal riu de novo. Ele parecia extremamente alegre para as duas da manhã.
casa gelada mesmo no verão. Mina se rebelava, enfiava toalhas nas entradas
de ar e abria as janelas, mas eu gostava da sensação de temperatura amena
ao meu redor. Me enfiei embaixo da coberta, só que um lugar
Esse telefonema era efeito do feitiço que empurrava Cal para mim. Nós
conversávamos regularmente agora.
Logo mais começaríamos a sair também. Ari e Diana veriam que eu não era
só mais uma para Cal. Ele
Certo?
Desamarrado.
Essa era a palavra que a hekamista tinha usado para descrever meus efeitos
colaterais. Ela disse que parte de mim se deslocaria. Se desamarraria. Eu
não sabia o que significava desamarrar. Talvez ela também não
Essa desamarração podia explicar o frio no meu peito, mais do que o ar-
condicionado. Tudo que eu mais
amava – Ari, Diana, até mesmo Mina, ter amigos próximos, compreensivos,
e tudo o mais que eles
Desamarrado. Devia ser isso. Mas então, se não fossem meus efeitos
colaterais, por que eu não estava
feliz?
Cal continuou me ligando no meio da noite. Ele não dormia nunca, pelo
menos era o que parecia.
– Desde que tenho doze anos não durmo uma noite inteira.
– Por quê?
Ele suspirou.
– Sei lá. Eu fecho os olhos como todo mundo. Estou cansado, ou pelo
menos acho que estou. E nada
acontece. Fico vendo o lado de dentro das minhas pálpebras. Isso acontece
com você?
diferença entre euforia e pavor. Será que essa era mais uma coisa que tinha
se desamarrado? – Quer sair
durante o dia?
– Por que não? – ele disse. – Passa na loja amanhã. Vamos fingir que somos
turistas e ir para o parque.
– Ari Madrigal? Ah, cara, que foda o que aconteceu com o Win! Claro que
ela pode.
Ari e Diana se juntaram a nós nas Ferragens Waters. Elas pararam logo na
entrada, perto de uma prateleira
Cal pulou por cima do balcão e quase conseguiu não cair, mas se
desequilibrou com o pulo e caiu de joelhos bem na frente de Diana e Ari.
Nós três avançamos por instinto, tentando impedi-lo de tombar – tarde
demais –
ou ajudá-lo a se levantar.
uma cara de quem achava a falta de coordenação dele uma afronta pessoal.
– Meu Deus, Ari, parece até que você está com medo de me encontrar! –
Markos Waters disse, surgindo
do fundo da loja.
Todos menos Cal pareceram horrorizados com a ideia. Eu sei que devia ter
apreciado sua generosidade e
– Dinheiro?
– Não se preocupa.
– Que dinheiro?
– Vamos logo.
Ela saiu da loja. Diana esperou um segundo, olhando para trás e para a
frente, entre a porta e Markos, mas então ele virou as costas e foi para o
fundo da loja sem dizer nada. Os ombros de Diana se afundaram e ela saiu
para a calçada atrás de Ari.
– Não sou responsável pelos meus irmãos. Você sabe tudo que sua irmã faz?
– Não está tudo bem. Eu não devia falar coisas assim. Você não devia me
deixar falar essas coisas.
Não retruquei: “Então é culpa minha quando você me diz essas coisas
cruéis?”. Fiquei quieta.
Chegou a nossa vez, então entramos nos carrinhos. Como eu estava do lado
de Diana, fomos no mesmo
estranho.
uma volta completa, nossos carros começaram a virar. A barra sobre meu
colo e o de Diana rangeu.
– Diz que você não vai me largar – falei rápido. Podia jurar que a barra de
segurança estava se erguendo. Eu a segurei com firmeza, puxando-a para
baixo.
Naquele momento, não me senti desligada dos meus sentimentos por causa
da amarração. Estava com
medo demais.
Pode parecer estranho, mas tive a forte e clara impressão de que, se Diana e
Ari tivessem continuado a falar dos seus planos, o feitiço poderia ter
machucado as duas para mantê-las aqui comigo.
Uma coisa era o feitiço me dar doses regulares de Ari e Diana. Eu queria
proteger as duas. Me preocupava
com elas, e elas já haviam se preocupado comigo. Estaria ao lado delas para
o que quer que fosse. Mas Cal…
ele nunca quisera ficar perto de mim de verdade. O feitiço tinha dado mais
do que um empurrãozinho – ele o tinha jogado com tudo para cima de mim.
grandes amigas, mas com Cal era diferente. Quer dizer, por um lado, ele era
estabanado, seria fácil demais para o feitiço. Ele cairia um dia e se
machucaria feio, então seria culpa minha por não querer ficar com ele.
Mas mais importante que isso era que eu nem gostava tanto dele, e Ari e
Diana nem pareciam muito
impressionadas por eu ter conseguido “sair” com ele, qualquer que fosse o
significado disso. Tinha sido uma ideia impulsiva e idiota dar a amarração
para Cal. Agora a responsabilidade era minha.
No dia seguinte, quando ele ligou, às duas e meia, eu quase não disse nada.
Ele ficou divagando por algum tempo até finalmente notar que eu não
estava respondendo.
e constante por minha culpa. Que não estava no controle dos seus atos. Não
podia correr o risco de o feitiço atacar e lhe dar um castigo.
que o feitiço achava que eu queria fazer. O que nenhum de nós precisava ou
queria fazer.
27. Markos
Nunca precisei pedir desculpas a uma menina como tinha que fazer agora
para Diana. Não porque ela
estivesse brava comigo – não estava –, mas porque eu me sentia muito mal.
– Desculpa de novo. Não sei o que aconteceu comigo. Fui muito grosso.
Eu queria estender o braço e pôr o cabelo dela atrás da orelha, mas, em vez
disso, apertei as mãos em volta da xícara, queimando-as.
– Devia ter ido ao parque com vocês. Ter agido como uma pessoa normal.
como se não fosse nada de mais. Por que diabos eu não podia fazer o
mesmo?
– Não bota a culpa na Ari. Ela está passando por muita coisa também.
– É isso que está acontecendo comigo? Estou passando por muita coisa?
Diana não respondeu, e seu silêncio valeu como resposta. Eu precisava pôr
a culpa em alguém por me
sentir mal, por ter agido mal, e lá estava Ari, “passando por muita coisa”.
Não tinha me comportado como um cretino sem motivo.
– Você acha que Ari arranjou em algum outro lugar? O dinheiro, quero
dizer.
– Duvido.
Fazia menos de uma semana que ela havia me pedido os cinco mil dólares e
contado que gastara o que eu
– Me irrita que ela ache que pode me pedir algo assim depois de tanto
tempo. É como se pensasse que,
– Ela deve precisar de verdade, só isso. Talvez tenha a ver com Nova York.
– Você confia demais nela. Ela mal falou com você o verão todo.
– Você sabe por que eu e Ari ficamos amigas no começo? Ela me contou
alguns anos atrás. Fui a única aluna do quarto ano que não perguntou nada
sobre os pais dela, nunca, mas que continuou por perto. A última coisa que
ela queria era conversar, e eu sempre tive muito medo de falar sobre o
assunto, por isso somos
– Quer dizer – eu disse, e me esforcei para que minha voz não tremesse –,
até que não é ruim conversar
com você.
Não consegui me controlar e não olhar em seus olhos, então senti que caía
num grande poço sombrio, em
– Obrigada – ela agradeceu, mas sua voz estava estranha e distante, como
um sonar embaixo da água,
em que comecei a fingir para mim mesmo que não queria mais tocá-la. Às
vezes, quando estávamos juntos,
passava a olhar fixamente para ela – para qualquer parte do seu corpo,
como um dos ombros – e entrava
macia, nas suas duas sardas, e em como seu ombro era próximo do pescoço,
da boca e dos seios, em como
seria seu gosto ou o calafrio que ela sentiria se eu a beijasse do jeito certo.
Quer dizer, eu estava perdido.
Desmiolado. Desesperado.
Mas não fazia nada. Talvez o fato de não fazer nada só agravasse a situação.
Talvez fosse assim que os
Eu conseguia falar com ela – meu Deus, eu falava sem parar, como um
idiota. Contudo, quanto mais eu
falava, mais sentia que precisava lhe dar um beijo, e que, ao mesmo tempo,
nunca conseguiria fazer isso. No entanto, em vez de fazer algo a respeito –
beijá-la, como tinha quase certeza que queria, ou parar de falar com ela e
sair com outra menina, o que sabia que não queria –, continuava
telefonando, buscando-a em casa,
Não era bem verdade que eu não tinha tocado nela. Nada de sério havia
acontecido, mas, numa noite em que
contando isso, por favor, finja que não disse nada – ficamos de mãos dadas.
Que droga!
Diana sorriu ligeiramente para mim, de um jeito que causou frio na barriga,
porque, por incrível que pareça, o seu sorriso era a expressão mais bonita
que eu já tinha visto.
– Meu dia... Meu dia foi de médio para bom. Um ruim requentado. – O que
ela queria saber era se eu estava
muito triste. Até que ponto eu sentia falta de Win. – Mas é foda. Quando os
dias não são um lixo completo, me sinto culpado. Como posso merecer me
sentir bem ajudando os fregueses, vendo tevê ou bebendo café
aqui?
– Você merece – ela disse. – De que adiantaria nunca mais se permitir ser
feliz de novo?
– Antigamente achava que havia uma quantidade fixa de coisas boas e ruins
para cada pessoa. Que elas
Ela olhou para mim, corou e voltou a olhar para baixo. – Porque passei
algum tempo com você.
revirou os olhos, como deveria. – Mas você sabe que essa teoria é bobagem,
né?
– Sei lá. É mais ou menos o que as hekamistas fazem. Elas mudam o que
nos foi dado, só que sempre tem
um equilíbrio.
– Isso é diferente da vida real. Às vezes, as coisas são uma bosta e não
melhoram. Algumas pessoas nunca
qualquer lugar, menos para Diana. Era estranho que antes eu não a achasse
bonita. Talvez visse apenas uma
uma conversa vazia que as pessoas teriam me incluído – não, elas teriam
adorado a minha companhia. Não
Eu poderia chamar uma das meninas para sair. Seria fácil, sem sofrimento.
Não me importaria o bastante para ter medo de fazer qualquer coisa além de
ficar de mãos dadas.
Então por que eu ficava me torturando com Diana se não achava que
deveria viver em sofrimento?
Comecei a sentir que o salão estava abafado e tirei algum dinheiro do bolso.
– Preciso ir – disse.
tonto. Tonto demais para tirar as chaves do bolso. As luzes dos postes
piscavam, então fechei os olhos.
seu corpo através das camadas de roupas. Ela colocou a mão livre no bolso
da frente dos meus jeans para
Ela estava ali. Bem ali. Entre mim e o carro. Eu me sentia como uma
estátua – um homem preso em mármore,
Puta merda!
Seu pulso latejava contra a minha mão. Eu me controlava para não beijá-la,
mas, mais do que desejava fazê-
maravilhoso.
Diana retribuiu o beijo, e eu percebi que ela sorria, e aquela dor que sentia
por ela não passava – ao
28. Ari
tivesse passado metade dos últimos dez anos ali. Sua energia vibrante não
era exatamente de felicidade, mas também não era de tristeza. Ela parecia
estar lidando com muitas emoções diferentes ao mesmo tempo, e eu
Dei risada.
– Ah, é? Tenta.
Eu tinha vontade de matar a velha Ari. Como ela ousava tratar minha
melhor amiga assim? Como ousava
– Tenta – eu disse.
– Contasse o quê?
Ela respirou fundo e abriu um sorriso que tomou seu rosto todo.
Engoli em seco.
– Isso é… nossa!
– Me dá um segundo, Diana.
– Sempre acreditei quando você dizia que estava apaixonada pelo Win.
antes de algumas respostas. Markos me falou do dinheiro que ele deu para
Win, o dinheiro que você gastou. O
que você fez com ele? Por que precisa de mais? Você está com algum
problema?
– Como assim, Ari? Entendo que você não conte para o Markos, mas não
pode deixar de me contar.
servem os amigos. Meu Deus, Ari! Seu namorado morreu. Você está
precisando de dinheiro, de muito
“Eu me preocupo o tempo todo em que você não está aqui”, ela dissera, e
aquilo parecia maluco, mas ao
só que, toda vez que dizia aquilo, sentia remorso, a tênue mas inegável
certeza de que eu zoava a sra. North porque tinha medo de que ninguém se
preocupasse comigo daquele jeito.
Echo não havia falado comigo desde que eu tinha conversado com sua mãe,
a hekamista – talvez eu a
tivesse afugentado. Ou talvez ela voltasse para arruinar tudo. Não queria
viver com aquela ameaça pairando
Estava confusa. Diana parecia flutuar cada vez para mais longe.
Diana amava Markos. Ele partiria o coração dela, aquele filho da mãe, mas
ela conseguiria o que sempre
quisera. Ela não tinha dado ouvidos aos meus conselhos – não precisava
mais de mim. Seu cabelo era
vermelho e ela tinha opiniões fortes – e fazia um ano que não íamos ao
cinema juntas, e havia sido obrigada a ficar amiga de Kay, e agora estava
pedindo para se preocupar comigo.
da minha boca. – Para não ficar triste, acho. Não lembro nada dele.
Diana deu um tranco para trás como se eu tivesse batido nela. Depois
piscou rapidamente.
Ela levou uma mão à boca e ficou me encarando. Não conseguia imaginar o
que estava passando pela sua
cabeça. Medo?
Respirei fundo.
– É. Foi… mais fácil. Acho que… talvez… eu estivesse com vergonha. Não
sabia explicar por que tinha
feito aquilo, porque não me recordo do que fazia eu me sentir tão mal.
Achei que seria melhor fingir.
– Estou falando de antes. – Ela voltou a andar, olhando para todos os cantos
do quarto, menos para mim. –
Antes de fazer isso. Depois que Win morreu. Você poderia ter me contado
que estava pensando nisso. Eu
– Desculpa, Diana.
– Você nunca me falava dos seus problemas. Só com a Jess ou com o Win.
Eu sempre fui a idiota da
Uma dor aguda começou no fundo da minha garganta e subiu pelos meus
canais nasais até os olhos. Mas
lugar.
– Não é verdade. Estou te contando agora. Não para Jess, nem para Kay,
nem para ninguém. É em você
que confio.
Diana parou, desviando os olhos dos meus.
– Sim. – Diana se recusava a olhar para mim. Não dava para adivinhar sua
expressão. – Win deve ter
que ele tinha conseguido com Markos. O problema é que Win devia esse
dinheiro para uma pessoa. E ela me disse que, se eu não pagar a dívida de
Win, ela contará para todo mundo que eu não me lembro mais dele.
O ar vazou dos meus pulmões. Não me lembrava de ter visto Diana tão
brava.
– Mas você mesma vai contar logo, não é? Antes que essa pessoa que está
fazendo a chantagem volte e
verdade.
Diana não falou mais nada por um bom tempo. Em vez disso, recostou a
cabeça no colchão e ficou olhando
para o teto. Tentei seguir seu olhar, só que ela estava olhando para o vazio.
– Você pode não se lembrar de Win – ela disse finalmente –, mas devia
lembrar que você e Markos eram
amigos. Você pegava no pé dele, mas eram amigos. Acho que ele sente sua
falta agora. E não é justo mentir
Ela ficou olhando para a minha mão segurando a dela. Então, depois de um
longo momento, assentiu.
Também assenti.
Contudo, se eu contasse para o Markos, teria que contar para todo mundo, e
a imagem que eu tinha – de
29. Kay
ficarem ao meu lado que não conseguia nem imaginar como dizer para
alguém ir embora. Parecia impossível,
por mais que Cal não tivesse me escolhido no início. Então achei melhor ir
à hekamista e quebrar essa
amarração. Assim, nunca mais teria que falar nem me preocupar com ele.
Quando ouvi meus pais desligarem a tevê da sala, fui na ponta dos pés até o
hall de entrada da casa, onde minha mãe deixava a bolsa. Tirei a carteira de
couro de cobra e peguei o cartão de crédito preto. Se ela
olhasse para sua conta, o que nunca fazia, imaginaria que tinha comprado
mais fertilizante, terra ou coisa assim naquele mês.
***
A velha hekamista, que tinha feito a amarração, não estava em casa.
– Sua mãe está aí? – perguntei para a menina que atendeu à porta, embora
não houvesse muito espaço para
– Isso depende.
– Claro – respondi.
encontrado.
– Se você tem dinheiro, posso ajudar – a menina disse. Diante do meu olhar
desconfiado, acrescentou, quase descontraidamente: – Também sou
hekamista.
– Entrei para o clã quando tinha treze anos – disse. – Quer ou não quer um
feitiço?
– O que exatamente você pretende que eu faça com isso? – Ela pegou o
cartão e o girou entre os dedos. –
Não acredito que te contei que era hekamista à toa. Isto aqui não é uma
lanchonete. Só aceitamos dinheiro
– Meu nome é Kay – corrigi. Depois peguei o cartão da sua mão, cruzei os
braços diante do peito e fiz uma
careta. É a mesma que minha mãe faz para vendedoras e médicos quando
não recebe a resposta que quer.
– Não sei o que é carnê, mas consigo te arranjar o dinheiro. Desde que você
realmente possa fazer o
serviço.
Ela sentou diante de mim com uma caneca de chá nas mãos.
– Do que você precisa?
minhas duas melhores amigas e para um menino, e que não queria mais que
ele continuasse enfeitiçado.
– Tem duas maneiras de fazer isso – disse quando terminei. Ela ainda não
tinha me falado seu nome, e eu é
– A amarração precisa saber quem você é para amarrar a algo. Por isso esse
feitiço deixa você meio que…
conhecem ou não ligam para você. E vai afetar todo mundo, não só seu
namorado.
– É um pouco mais difícil. Eu poderia preparar algo que você vai ter que
dar para ele comer. Um feitiço que realmente quebre o outro e o desconecte
de você.
ser quebrados.
Aquilo soava como os avisos típicos da hekamista, que eu ouvira toda vez
que fora comprar feitiços.
– Eu sei.
– Você não sabe que outros feitiços ele já tomou, não sabe que tipos de
reação podem acontecer. Além disso, se não for cuidadosa, o feitiço original
vai descontar em mim, daí é provável que eu seja pega, e eu e minha mãe
podemos ir para a cadeia até ficarmos loucas e morrermos.
Dei de ombros.
– Só quis dizer que você sabia dos riscos quando entrou, né?
– Claro, sabia que era ilegal entrar e que todas seríamos condenadas à
prisão perpétua se fôssemos pegas.
Mas também sabia que o governo tinha tornado ilegal que minha mãe
envelhecesse em paz. Sabia que a coisa
“legal” a fazer seria ver minha mãe morrer aos pouquinhos, dia a dia. – Ela
se debruçou com os cotovelos na mesa, deixando o cabelo escuro cair sobre
os olhos. – Muita gente acha que a extinção das hekamistas é uma coisa
boa.
– Discordo – eu disse.
– Porque você tirou vantagem da nossa existência. Mas sabe o que significa
essa “extinção”? Ela não é
que a seguia por toda parte. No entanto, eu não queria pensar em Mina.
Estava ali para me livrar de Cal.
todas mortas?
– Por que você está me contando tudo isso? Não tem nada que eu possa
fazer a respeito.
– Escuta – eu disse, engolindo em seco –, não estou aqui para ficar rica,
nem para ferir alguém, nem para
fazer algo de mau. Não estou aqui porque me importo com você ou com a
sua situação. Não vou te denunciar
e prometo que vou pagar pelo seu trabalho. Só estou tentando fazer a coisa
certa. Duvido que Cal queira ficar preso no meu feitiço.
– Cal? – Echo se empertigou. – Não foi Cal Waters que você amarrou, foi?
– Como assim? Por que não do outro jeito, quebrando o feitiço diretamente
em Cal?
– Pensei que você fosse uma guerreira hekamista fodona. Está com
medinho, é?
– Você vai ter que achar outra pessoa para fazer seu trabalho sujo – disse.
Deixei que ela me empurrasse até a porta, passando pela mesinha de centro
manchada e coberta de xícaras
de chá, pelas runas rabiscadas na parede e pelo sofá velho no meio da sala.
Senti que devia ter tentado mais, oferecido mais dinheiro ou dito algo
compreensivo, contudo, toda aquela
experiência tinha me deixado sem forças para lutar, assim como Mina
ficava fraca depois das consultas
médicas, mesmo que não tivessem feito nada além de conversar com ela.
Todos ficariam livres, mas como eu ficaria? Pior do que estava antes.
Sozinha. Invisível.
30. Markos
Diana.
Eu já tinha ficado com muitas meninas antes – não tantas quanto os meus
irmãos, como eles adoravam me
jogar na cara, mas umas tantas –, e às vezes elas se destacavam por algum
motivo sacana, ou eu ficava com a mesma menina mais de uma vez porque
era fácil, porque ela era gostosa ou porque era doidona. Mas nunca
tinha acordado na manhã seguinte, e na outra, e na outra, me sentindo
assim. Mais vivo.
Vc tá tentando me seduzir? :)
Eu ñ
Tá. Eu tb ñ
Sdds
Sdds tb
Nojenta
Nojento é vc
Por quê?
E daí?
Ela é ótima.
Pois é.
Pois é.
E tem os beijos.
Pois é.
Pois é.
firme. Ocupava mais espaço. Era as partes boas de si mesmo, só que mais.
Ari agia como um amplificador de
Win.
Depois que notei isso, deixei de ter problemas com ela. Passei a gostar dela.
Não como Win gostava, mas
Quanto a Win, me assustava que uma pessoa que eu conhecia tão bem –
melhor que meus irmãos até –
pudesse mudar só por estar com outra. “Nunca vou mudar”, eu pensava.
“Sei quem sou.”
Ha-ha.
primeiro pensamento foi de que ela gritaria comigo por causa dos seis mil
dólares roubados, mas isso não
fazia sentido. Aquilo tinha acontecido meses antes e minha mãe devia ter
pagado para ela, não contado que eu tinha pegado o dinheiro. Então,
comecei a ficar realmente paranoico e achei que ela sabia que eu estava
pensando em Diana, Win e Ari, e que tinha algum tipo de conselho de velha
hekamista sábia para me dar sobre tudo aquilo.
– Markos Waters? – ela disse. Era uma senhora grande e parecia estar
chapada. Cheirava a galhos de
Fiz que sim. Ela pegou uma das amostras de tinta e olhou para cima e para
baixo. Meio desejosa, meio
Ela olhou para mim de cima a baixo, como se eu também fosse uma cor do
mostruário.
– Meus pêsames.
Certo. Ela era uma hekamista, mas, mesmo assim, podia fazer turismo de
luto. Schadenfreude. Funciona assim: as pessoas fingem sentir muito, só
que, na verdade, estão aliviadas e meio que fascinadas pela cara
daqueles que perderam alguém. “Como ele pode passar por isso e seguir em
frente?”, elas se perguntam. “Ele é completamente diferente de nós, agora.”
– Você era um bom amigo. – (Como ela sabia disso?) – Ele parecia o tipo
de pessoa de quem é bom se
os lados.
– Ela não te contou. Claro que não... Que engraçada, que engraçada...
Aquela menina… a bailarina.
– Ari pagou uma hekamista para apagar Win. Ela não lembra nada dele.
Por um segundo, só ouvi os gritos das crianças. Acho que nenhum de nós
respirou. Então Diana soltou um
suspiro.
– Como é que é? Ela não… o que você quer dizer com “ela finalmente me
contou”? – O sangue subiu para
– Alguns dias atrás. Não consegui acreditar. Fiquei com muita raiva,
Markos. Ela mentiu para mim…
– Você mentiu para mim. Mentiu na cara dura. Me mandou ligar para ela,
porra! – Agora eu já estava gritando, de joelhos no meio da calçada,
enquanto os turistas se abriam feito o mar para passar ao meu redor.
– E você acreditou nela? Depois que ela contou o que fez, você acreditou
em alguma palavra do que aquela
garota disse?
– Markos, desculpa…
– Não me liga nunca mais. Essa vai ser a última vez que você vai ouvir
minha voz, sua cretina mentirosa!
Apertei o celular para desligá-lo. Havia uma ligação e várias mensagens.
Meu coração descia sangrando
Comecei a andar rumo à Sweet Shoppe, onde Ari trabalhava, mas parei no
meio. Sabia que, se visse a cara dela, algo terrível poderia acontecer. Uma
parte enorme de mim queria ferir aquela menina, deixá-la com um
hematoma, fazer com que ela sentisse algo, trazer de volta parte da dor que
ela havia jogado fora quando
apagara meu melhor amigo. Essa raiva me assustava. Outra parte de mim
achava que eu teria um colapso, o
Havia tantas coisas que eu e Win fizemos juntos que, de alguma forma,
achava que não desapareceriam
lance de “superar”... Era o único que precisava passar por isso. Não podia
abandonar a dor agora, nunca
poderia superar. Não quando eu era o único que podia impedir que Win
fosse esquecido para sempre.
amiga de Diana e Ari que tomara o feitiço de beleza – Kay. Katelyn. Algo
assim. Estava pouco me lixando.
aproximei, ela relaxou. Tentei pensar em algo que pudesse dizer para
mandá-la embora logo, mas minha mente estava vazia. Quase dava para
ouvir o vento uivando em meus ouvidos. Ou será que era um rugido?
Parei a alguns metros dela. Ela estava entre mim e a porta. Mas não havia
nada dentro de casa que fosse
– Então acho que estou mal. – Enfiei as mãos nos bolsos para pararem de
tremer. Tudo parecia se colocar a
uma distância impossível. – Aposto que você também sabe, já que vocês
três são tão amigas e tal.
– Sei o quê?
– Que Ari tomou um feitiço para esquecer Win. Que ela só está se fazendo
de triste. Ela contou para
Kay ficou boquiaberta, seu rosto bonito tão atormentado quanto o monstro
que me consumia por dentro.
Dei risada e ela recuou como se eu tivesse cuspido na sua cara. A menina
não era uma pessoa ruim nem
tinha feito nada contra mim, mas eu precisava descontar parte daquela
sensação ruim, ou ela me faria desabar.
dava para ver que ela não se encaixava bem, que a raiva e a dor saíam pelos
cantos e fendas, ameaçando
romper a máscara.
– Por quê?
Ela deu um passo à frente. O mais perto que uma menina tinha chegado de
mim desde aquela noite no
estacionamento da lanchonete, desde Diana – só que ela não era Diana.
Essa menina tinha o cabelo preto
brilhante, o rosto e o corpo bonitos, mas eu não sentia nada por ela. Como
uma zona morta onde o celular não pega, ou uma parte gelada do mar.
falsificada. Senti um choque descer pela minha espinha também – não pela
beleza dela, mas pelo que eu era
– Você é que é uma farsa – ela disse. – Se esforçando demais para fingir que
não se importa.
– Você está se comportando como um cretino porque está com raiva da Ari.
– Estou com raiva da Ari, mas talvez não goste de você também.
– Você não estaria sendo tão filho da puta comigo se soubesse do que sou
capaz – falou.
Dei risada.
Eu deveria ter ficado puto. Ter empurrado aquela menina para longe. Dito
que ela não ia provar nada me
Enquanto ficava esperando que tudo fizesse sentido, Ari não sentia nada.
Agora eu não sentia nada. Ou talvez essa sensação fosse tudo, como o
branco é a combinação de todas as
cores.
– Por que você fez isso? – perguntei. Kay deu de ombros. Peguei o braço
dela, puxei-a para perto de mim e
– Você vai se arrepender disso – ela disse, quando paramos para tomar
fôlego.
Não me importava com ela – nem mesmo gostava dela –, o que significava
que o que estava acontecendo
não tinha o menor sentido. Mas eu não era Win, preso a uma única menina
para todo o sempre. Era apenas eu
Quando Kay foi embora algum tempo depois, mandei uma mensagem para
Ari dizendo que, se a visse de novo, a mataria. Depois bloqueei o número
de Diana e deletei todas as suas mensagens. Sentei na frente da
tevê com uma garrafa de Jack Daniel’s e me preparei para encher a cara, o
que era um método normal,
31. Kay
Fui embora da casa dos Waters me sentindo diferente. O mundo estava
diferente. A escuridão tinha quase
meus ombros.
E eu. Por dentro. Tinha ido ver como Cal estava, cumprir o meu dever para
com o feitiço. Em vez disso,
Markos estava furioso. E maldoso. Eu havia dado um beijo nele para provar
que, no fundo, ele não me
achava uma farsa feia e mentirosa. Ou, pelo menos, a fim de atestar que ele
era tão ruim quanto eu, e que nós dois sabíamos disso.
No fim, acabei não provando nada para ele. Só provei a mim mesma que
tipo de pessoa eu era.
meu lugar não era com alguém tão animado, sociável e popular como Cal.
Eu sabia exatamente como era por
dentro, alguém que não era digna de ser namorada de ninguém. Não. Eu
merecia ser xingada por Markos, ser
Da casa do Markos, fui para a de Ari. Ela atendeu à porta usando a roupa de
balé – a malha e o bolero cinza
sem dizer nada. Ela estava distraída, com o olhar vazio. Dava para ouvir sua
tia cantando fora do tom
– Kay, estou num dia meio ruim – Ari disse, depois de um tempo. – Será
que você pode vir em outra hora?
– É só… ruim.
dois assentos. – Está triste por causa do Win? Porque não é bom ficar
guardando tudo, Ari. Você devia falar mais dele. Deixar a gente te confortar.
Compartilhar algumas das suas boas lembranças.
Sua expressão ficou vazia, como uma casa de praia vaga no inverno.
– Sim, fiquei.
– Como?
– Markos me contou.
Ari pressionou as palmas das mãos nas olheiras escuras sob os olhos.
– Eles quem?
– Markos e Diana.
Uma faísca de raiva por um momento me fez esquecer que tanto Ari quanto
Diana haviam mentido para
mim.
– Sabe, enquanto você estava lá com Win fazendo sabe-se lá o quê, Diana
confiava em mim. Porque você
tinha sumido.
– Isso eu já entendi.
– Ela ficava triste por isso. Porque você a trocara por um menino. Mas eu
estava lá quando ela precisava. –
Ari não disse nada. Puxou o bolero para cima dos ombros. – E sabe o que
mais? Depois de meses, ela parou
de ficar triste. Seguiu em frente. Ela não precisa mais de você.
– Não sei se você sabe, mas você e Diana agem como se nem gostassem de
mim às vezes.
Ela olhou para o teto. Parte de mim torceu para que Ari negasse, mas ela
não estava nesse clima.
– Bom, talvez eu não queira ser a coitadinha de quem vocês duas tiram
sarro o tempo todo.
As palavras saíram da minha boca antes que pudesse julgar se aquela era
uma boa ideia. Só que Ari não
minha parte.
Jess atingiu uma nota alta na cozinha, e nós nos encolhemos. Eu passara
todo o verão – e toda a primavera
também – me esforçando com Ari e Diana. Tentando fazer com que elas me
tratassem como uma amiga de
verdade.
No entanto, não precisava fazer nada. Não precisava cuidar de Diana depois
do acidente. Nem de elogios,
realmente me sentia – que elas, ainda assim, seriam obrigadas a ficar perto
de mim. Era isso que minha
A única razão para que eu me esforçasse era provar que, no íntimo, eu não
era tão ruim. Mas, por dentro, acabei apodrecendo de qualquer forma, então
esse esforço fora em vão.
– Certo. Esquecer Win realmente está te fazendo muito bem, não está?
Voltei a relaxar no sofá. Minha vida estava uma bagunça, sim. Eu havia
beijado Markos e não tinha falado
32. Ari
Kay estava certa em relação a uma coisa: eu não podia desistir tão fácil.
Depois que ela saiu, troquei de roupa e fui à casa de Echo e sua mãe. Não
conseguia dançar, Diana mal me tolerava, Markos me odiava e até Kay
O rosto de Echo se iluminou ao me ver, e ela fez sinal para que eu entrasse
antes de voltar correndo para a cozinha. Não sabia o que fazer, então entrei
pela porta da casa. A mãe de Echo estava agachada na frente do sofá, com o
rosto entre duas almofadas. Seu cabelo branco encaracolado era tudo que eu
conseguia ver da
sua cabeça. Um som constante e agudo saía dela. Eu não sabia como ela
estava respirando. Tirando o barulho, estava estranhamente imóvel, tensa
como se um único toque fosse disparar uma mola interna que faria o som, o
sofá e tudo por perto pegar fogo.
Fiquei paralisada.
– Fica quieta.
Meu olhar foi atraído pela maçã. Só depois percebi que toda a luz do
cômodo havia diminuído, exceto por
Echo entrou embaixo da luz. Até então, não tinha notado que ela não estava
usando o casaco de sempre, só
uma camiseta preta de manga longa. Ela arregaçou uma das mangas,
revelando uma série de cortes, do punho
não consegui me mover. Quando ela se cortou, não gritou nem fez careta.
Tampouco fechou os olhos. Ficou
momentos, toda a luz da sala ficou vermelha. Pensei ter visto um rosto
sobre a maçã, piscando malignamente, então Echo gritou. Eu também gritei,
fechando os olhos e cobrindo a cabeça com as mãos.
Quando voltei a abrir, havia silêncio na casa. Até a mãe de Echo tinha
parado de gritar. Ela estava em pé
lembrava um disco. Agora que a casa não parecia mais estar prestes a
explodir, me aproximei de Echo para
agora. Meu segredo tinha sido revelado. Não havia nada que Echo pudesse
fazer então.
– Você trouxe o dinheiro? – disse com a voz baixa, olhando de soslaio para
a mãe.
saber. Achei que você havia ficado cansada de esperar e tinha contado para
ele.
– Por que eu contaria para o Markos? Guardar segredo era minha única
vantagem.
– Mal falei com ele desde o funeral de Win. Ele não teve tempo de me testar
com um questionário sobre
Win.
– Eu sei disso.
Ela limpou o sangue do corte. Era uma linha fina, apesar das pontas
dentadas da pedra, que ainda segurava
– Hum... – eu disse. – Sim. Mas… não eram vocês duas que estavam me
chantageando? Juntas?
– É isso que acontece quando perdemos nosso clã. Primeiro, a mente fica
desequilibrada, insegura. Depois
ombros. – Quanto mais feitiços a pessoa tenha praticado, mais rápido isso
acontece. É por isso que ainda
estou bem e ela já está na fase da dor. Ando fazendo alguns feitiços para
aliviar.
– Eu sou ilegal. Não devia existir. Se for pega, todo mundo do meu clã vai
para a cadeia. Preciso convencê-
las pessoalmente. Talvez até pagando um suborno. Para que você achava
que eu queria seu dinheiro?
– Ah... – Olhei para a mãe de Echo, que dormia no sofá. – Ah! Ela não quer
encontrar outro clã?
– Ela tem medo. De que eu seja pega, de que me levem embora. Medo de
que eu a deixe sozinha.
– Se estivermos vivas daqui a seis meses, ela vai estar num estado melhor
para entender por que precisei ir.
fazemos, mas ela sempre escondeu o dinheiro, dizendo que não queria
chamar atenção esbanjando, então eu
nunca consegui encontrar. Nem tenho certeza se ela ainda sabe onde está,
agora que sua mente está se
passado todo aquele tempo ali desde que eu começara a frequentar a escola,
levando a vida numa casinha
– E… dói? – perguntei.
– Pra caramba.
– Não é só dor. Tem prazer também… o poder. Faço parte de algo maior
que eu. Algo bonito. Arrumo as
Por um segundo, ela pareceu querer me dar uma resposta rude, mas
reconsiderou.
– Tem momentos em que seria mais fácil… não ser uma hekamista.
– Bom, agora que o segredo foi revelado, acho que não temos mais o que
conversar – ela disse.
Fiquei olhando para ela, examinando todos os fios retorcidos de seu cabelo
e a fivela de seus coturnos.
Seus olhos eram castanho-claros, mais suaves que os ângulos duros de seu
rosto. Tive novamente aquela
– Você me parece um pouco familiar. Não sei o que isso significa, porém
tenho uma lembrança vaga de…
leveza.
Com isso, ela abriu um sorriso largo, tão largo que pareceu quebrar seu
rosto em dois, então começou a
chorar.
Eu poderia ter saído naquela hora, ter lhe dado as costas e ido embora.
Contudo, não havia nada para mim
lá fora além de vídeos de apresentações antigas e amigos que não
confiavam em mim. Por mais estranho que
– Eu não estava apaixonada por ele nem nada – ela disse depois de algum
tempo.
Onde ela estaria agora? Será que a antiga Ari a teria procurado, teria
passado mais tempo com ela? Será que ela sentia minha falta?
Echo se levantou tão abruptamente que pensei que ela fosse desmaiar. No
entanto, mesmo assim, continuou
– Win era um bom irmão – ela disse. – Não que eu tenha algo com que
comparar. Sou filha única, óbvio…
e nem sei como minha mãe conseguiu me ter, porque é difícil para as
hekamistas ter filhos. Há alguma coisa na vida compartilhada de um clã que
não combina com as necessidades de um bebê. É por isso que… na
palavras.
– Mas você queria saber de Win – ela disse baixinho. – Não de mim. Eu
queria ter algo para te contar. Mas
– Win nunca chegou a tomar o feitiço que fiz para ele – ela disse. Então
olhou para a mãe, que dormia no
sofá, e depois voltou a se sentar à mesa, pousando o rosto nas mãos. – Acho
que, enfim, se ele tivesse
Echo não disse nada. Outro segredo então… mais uma coisa que não sabia
sobre ele.
– Sinto muito pela sua perda – eu disse. Não sabia o que mais dizer. Ela
afundou a cabeça na mesa de novo
– Odeio admitir, mas… – Ela respirou fundo e falou, com a cabeça pousada
no tampo da mesa: – Entendo
Assim que falei, desejei retirar o que havia dito, pegar as palavras no ar e
enfiá-las de volta na minha boca grande e idiota. Me mudar para Nova York
era a única coisa que me restava.
No entanto, agora que todo mundo sabia que eu havia apagado Win, não
tinha mais por que fingir: fazia
– É muito ruim?
– Foi o que sua mãe me falou. Disse que eu teria ainda mais problemas por
causa dos efeitos dos meus
Ela me examinou.
– Como assim?
Agora meu coração pulava em círculos, dando uma pirueta sempre que
pousava. Girando, tonta, levantei
com dificuldade.
– Não tira sarro da minha cara, por favor. Sei que você deve me odiar…
– Não te odeio.
33. Win
como sou eu contando a história, sinto dizer que não foi isso o que
aconteceu. Enfim, vocês sabem o final: só tragédia.
novo Win feliz – o Win que via nas fotos da escola que não me lembrava de
ter tirado, sorrindo e segurando a luva de beisebol, ou o Win que dançava
com Ari na escuridão cintilante da Festa de Boas-Vindas.
Além disso, ainda não tinha pagado Echo. Não parecia justo usar o feitiço
antes de pagar por ele.
Mesmo se não quisesse tomar, desejava pagar Echo, ajudar a ela e a sua
mãe, mesmo que do meu jeito
simples. Afinal, ela já tinha se esforçado. E assim, alguns dias depois que
Echo me deu o sanduíche, fiz minha primeira e única tentativa de pedir o
dinheiro para Ari.
Fui buscar Ari e Kara no estúdio de dança. Todas as outras pessoas que
buscavam as alunas eram mães de
meia-idade, então imaginei – ou talvez tenha visto, mas não podia confiar
nos meus próprios olhos – que elas me encaravam desconfiadas pelos
retrovisores. Comecei a tremer. Minhas mãos se agitavam no volante, meu
tronco tremia no banco e meus dentes rangiam. Sem dúvida elas ficariam
me encarando se eu tivesse saído da caminhonete correndo para o mar, que
era o que aquele tremor me mandava fazer, ou isso ou vomitar em
estava da mesma forma dentro dele, tanto que só podíamos estar nos
desfazendo. Então, Kara abriu a porta e se sentou no banco de trás. Um
segundo depois Ari sentou no banco da frente e me deu um beijo que mal
Ari e Kara ficaram conversando entre si, o que me poupou por alguns
minutos. No entanto, percebi que Ari
me observava, olhando-me de soslaio quando parávamos nos faróis
vermelhos.
Ela era inteligente e notava coisas sobre mim, o que às vezes chegava a ser
assustador. “Você parecia bravo no almoço.” “Você riu muito naquele
programa, deve ter gostado.” “Com que você está preocupado?” Coisas
que nem eu tinha notado ainda. Com certeza ela percebera o tremor. Talvez
nem ficasse surpresa quando eu
Deixamos Kara na casa de uma amiga. Ela mandou um beijinho para nós e
Ari respondeu mostrando a
Ari estava muito feliz. A felicidade irradiava dela. Nem sabia o que estava
fazendo, o que era o mais
Se eu não estivesse pensando em como falar dos cinco mil dólares, teria
rachado a cuca para me lembrar
– Ai, caramba! – esfreguei os olhos. Maio do ano passado parecia ter sido
mil anos antes. – Desculpa.
– Não precisa pedir desculpa. Você tem sorte de ter uma namorada legal que
não liga para essas coisas
bobas de aniversário.
importava. Só que ela tinha lembrado. Se eu tivesse… o que teria feito? Isso
teria me deixado melhor? Ou a pressão de um dia importante pairando
sobre mim seria tão terrível quanto?
Eu não estaria planejando pedir aquela soma enorme de dinheiro, isso com
certeza.
– Não posso sair hoje – eu disse, quebrando o silêncio. – Sou tão babaca...
Desculpa. Acho que estou
notar.
– É, sim.
– Não, não é. Você está contando da noite que a gente passou na casa do
Markos. Quando conversamos e
Paramos na entrada da casa dela. Ari colocou a mão no meu joelho. Poderia
ser o joelho de outra pessoa, até ele parecia distante.
– O aniversário não importa, Win. Você não precisa se sentir mal nem nada.
Nós estamos bem, tá?
Notei todos os detalhes familiares, como sempre. Não entendia como podia
estar anestesiado para todo
mundo, incluindo para sua mão no meu queixo, como um fantasma, mas
ainda assim eu a amava e sabia que
algum.
Quando abri a boca para pedir o dinheiro para pagar Echo, ela me beijou.
– Você tem razão – ela disse, sorrindo para mim. – Nosso aniversário é
amanhã. Claro.
Eu a levei até a porta, ela se virou para mim, colocando as duas mãos em
volta do meu pescoço. Eu me
ali. Eu tocava a sua cintura, sob seus seios, mais apertados do que
normalmente sob a malha de balé,
pressionava os lábios com força contra os dela e até pensei na primeira vez
em que a vira nua, alguns meses antes – normalmente, essa lembrança
apagava a sensação de paralisia.
Só que não havia nada. Nenhuma pontada. Nem mesmo quando ela
suspirou e abaixou a cabeça, permitindo
que eu sentisse o gosto da pele ligeiramente salgada de sua testa.
Sentia sua preocupação como uma força física, mais do que conseguia
sentir seus lábios ou sua pele. O
problema dessa pergunta era que, mesmo se decidisse contar tudo para ela,
me abrir como um livro e
quisesse ajudar. Seria o mesmo que colocar meus sentimentos acima dos
dela. E eu queria poupar os de Ari.
do feitiço. Certo?
Demorei um segundo para me dar conta de que ela estava falando do ano
seguinte, da grande mudança dela
– Que coisa idiota a dança! Devia ser possível dançar em qualquer lugar.
Me afastei para poder ver mais do que apenas seu rosto de perto. Procurei
sinais de que ela fosse começar a chorar de novo, como no dia em que tinha
entrado no Balé de Manhattan. Não sabia o que faria se ela
chorasse – poderia ter me arrasado por completo. Mas seus olhos estavam
claros, sua pele pálida, sem
nenhum rubor. Ela não havia ficado triste de novo depois daquele dia. Foi
como se aquilo nunca tivesse
acontecido.
– Não. Não! É só que… você é muito boa no que faz. E pode dedicar a vida
toda a isso. – Dava para sentir
– Claro que não! Pensei que você é que estava preocupado com isso…
– Terminar não me deixaria menos preocupado. Pelo contrário, seria
horrível. Nem consigo imaginar. –
Terminar significaria desistir. – Não, eu estou bem. Vou ficar bem. Você vai
ficar bem. Você vai dançar e eu vou… Está sendo um dia estranho. Estou
com a cabeça avoada. Amanhã vamos comemorar nosso
aniversário. E sei que o ano que vem será incrível. Eu irei para Nova York
para os dois dias de aniversário.
Estou muito feliz por você… Irei para lá todo fim de semana.
– Eu te amo – falei porque a amava e porque não sabia mais o que dizer
exceto isso, ainda que as palavras
Ela me deu um beijo na bochecha e eu virei a cabeça para lhe dar um beijo
de verdade, o mais real que
consegui.
Quando nos separamos, fui correndo para o carro, antes que tivesse a
chance de dizer ou fazer algo que
Continuei com aquele pânico capaz de fazer tremer o carro a noite toda,
sem parar, até a escuridão e o
silêncio das três da madrugada, vendo a luz do despertador contra a parede
do quarto. O pânico me consumiu até não sobrar quase nada de mim.
34. Kay
Era um alívio ser maldosa. Não precisava ser doce ou engraçada e sabia que
nunca ficaria sozinha. Aquele
acontecido.
Mesmo Mina, que não estava sob o feitiço, não importava. Afinal, ela já
havia me abandonado. Não devia
nada a ela.
Na segunda, fui com Mina para seu check-up anual no hospital. Subi no
carro por hábito, porque sempre ia com ela para as suas consultas, mas,
assim que pegamos a estrada, lembrei que não precisava fazer aquilo.
No trajeto pelas ruas de sempre, deu para ver que Mina achava que eu
decidira ir porque queria lhe dar
apoio, como sempre. Ela não disse nada, mas olhava para mim pelo canto
do olho nos semáforos e curvas à
Katelyn jovem e idiota que fazia tudo o que ela pedia, que só pensava em
animá-la e não tinha nenhum outro amigo ou interesse.
Entretanto, só porque não havia me furado toda nem raspado a cabeça como
ela não queria dizer que eu não
tinha mudado também. Eu era uma pessoa diferente agora.
– Pronta?
Se eu fosse a antiga Katelyn, a cara que Mina fez teria partido meu coração.
Surpresa, confusão, decepção, mágoa. As coisas ficaram tensas entre nós
durante todo o verão, mas nada que eu tivesse feito havia chegado perto de
causar aquele olhar.
– Por que você está agindo assim, Katelyn? – ela perguntou em voz baixa.
– Como assim?
– Mal vi você o verão todo, você está sempre com as suas amigas e, quando
está comigo, faz questão de
Ela passou a mão na cabeça raspada, então tentei imaginar seu cabelo
espetado em todas as direções em espinhos frustrados. Nem sabia como
seria o cabelo de Mina agora.
Muitas pessoas que tinham passado pelas mesmas coisas que eu odiavam
hospitais porque os associavam a
morte, perda e desespero. No entanto, acho que, mesmo que Mina tivesse
morrido, o que, três anos antes,
Claro, havia sofrimento por todos os lados. Mas também era onde as
pessoas iam para ficar bem. Adorava
com você, e as boazinhas, mesmo quando dava para ver que estavam sendo
falsas.
sabiam as respostas. Mesmo quando não havia esperanças, cabia a eles nos
comunicar isso. Emitiam receitas, diagnósticos. Usavam roupas melhores
que as de todos os outros e nos cumprimentavam com suas mãos
Uma vez, entrei no quarto dela depois da aula, dei uma olhada na prancheta,
falei alguma coisa, Mina deu
risada… então, dez minutos depois, um médico de verdade entrou, olhou
para a prancheta e disse exatamente
– Até parece.
deles justamente porque eram muito diferentes de mim. Nunca seria capaz
de entrar num quarto e dominá-lo
Mina havia deixado esse assunto para lá e nunca mais falara dele, o que
provava meu argumento: não era
para ser.
meia-idade com a pior queimadura de sol que já tinha visto. Uma mulher
segurando um pano de prato em volta da cabeça foi levada para dentro
quase imediatamente. O resto continuou esperando.
dúzia de familiares davam risadas altas e forçadas, por muitos quartos onde
só havia uma tevê no volume
máximo. Era tudo muito familiar, mas distante. Como andar num sonho.
Uma vez que não me dera ao trabalho de escolher um destino, meus pés me
levaram à oncologia pediátrica por força do hábito. Mina devia estar no
consultório do dr. Brown, então me dirigi à ala dos residentes.
Lá, meu passo confiante ficou mais lento. Algumas crianças estavam na
área de recreação vendo tevê ou
nenhum ali. Fazia dois anos que não visitava aquele lugar; as crianças e
adolescentes de que me lembrava
deviam ter saído, a essa altura, como havia acontecido com Mina – ou então
morrido.
Uma criança parou na minha frente. Por causa da cabeça raspada, eu não
sabia dizer se era um menino ou
uma menina. Embora ele (ou ela?) parecesse ter uns dez anos, sabia que,
nesse lugar, ela (ou ele?) devia ser um pouco mais velha (ou velho?) que
isso. Era a minha idade quando tinha começado a ir lá com Mina.
– Você está?
Dei de ombros.
Ela olhou para mim, incrédula. (Tinha concluído que era uma menina.)
– Não uso.
– Northwestern.
Olhei para ela. Estava usando um pijama verde – calça comprida e mangas
longas. Não dava para ver
nenhuma cicatriz. Era quase impossível saber o que uma pessoa tinha só de
olhar para ela. Essa era uma das coisas mais assustadoras do câncer. A
pessoa podia estar andando feliz por aí e, por dentro dela, as células estarem
crescendo em mutação. Pensei de repente em Mina, sozinha no consultório
do dr. Brown, mais para
A menina soltou uma gargalhada alta e curta. Algumas das crianças que
viam tevê olharam para nós.
O frio tomou conta de mim e eu dei um passo para trás. Era tudo familiar
demais. Já tinha estado ali antes, brincando com alguém que poderia ou não
ficar melhor.
A expressão dela se fechou. Notava isso com Mina também: sem cabelo, as
emoções viviam perto demais
da superfície.
voltara a assumir um papel antigo. Não queria mais ser aquela menina que
animava as pessoas quando elas
ficavam doentes. Que não tinha nada melhor para fazer além de visitas de
dia ou de noite. Cujo único objetivo na vida era apoiar os outros e ajudá-los
a se sentirem bem. Que era deixada para trás. Eu não era mais aquela
menina. Pelo menos, não precisava ser. Podia me afastar.
Contudo, assim que cheguei ao pronto-socorro, me dei conta de onde
estava.
um segundo, pensei “Cal”, então “Diana” e “Ari”, e “aqui não, aqui não,
estou saindo, juro que estou saindo, estou saindo agora!”.
Foi como no Redemoinho, só que muito pior. Não seria nada difícil para o
feitiço fazer com que eles me
– Por quê?
– O doutor Brown falou que estou bem. Não há nenhum sinal do câncer. Se
é que você se importa com
isso.
Mina soltou uma risadinha triste e não olhou para mim enquanto ligava o
carro e saía do estacionamento.
se esqueceria de mim até o fim do dia. Mina não precisava de mim. Ela
estava bem.
olhos.
35. Markos
Acordei de ressaca e com um gosto azedo na boca. Por cinco dias seguidos.
Isso me lembrou do dia seguinte à morte de Win. Eu estava mal por causa
dos efeitos colaterais do feitiço, então bebi meia garrafa de vodca e derrubei
a casa da árvore do quintal dos fundos. Tive sorte de não quebrar o pescoço
enquanto chorava, bebia, arrancava tábuas podres dos galhos e rasgava a
pele das mãos, mas é
difícil dizer que se tem sorte com alguma coisa quando a coisa mais terrível
no mundo acontece.
Viu? Eu me lembro daquela última noite horrível. O álcool não apaga tudo.
Na manhã seguinte, as coisas
passando na tevê, mais alguém para matar num videogame ou mais cerveja
para roubar da geladeira.
Minha mãe tentou me convencer a fazer alguma coisa, só que ela era fácil
de ignorar. Me trazia um
– Te trouxe milho cozido – ela disse certa noite, ou dia, não sei direito.
Colocou um prato na mesa de
centro, ao lado dos meus pés descalços. – Você devia comer alguma coisa
além de salgadinhos.
Ela recuou.
– Quando você me roubou aquele dinheiro – ela disse, e cada palavra estava
cheia de farpas –, eu te perdoei rápido demais. Disso eu me arrependo. Você
passou por muita coisa, mas não vamos falar sobre aquele
Depois meus irmãos caíram em cima de mim, do mais velho ao mais novo.
Brian entrou de farda e me deu
ficar sentado sem fazer nada, depois que eu era um babaca por não
enfrentar a vida, depois que era
Quando finalmente foi a vez de Cal, já estava exausto. Nem lhe dei a
chance de tentar me convencer a sair da cadeira. Conhecendo Cal, sabia que
a tática dele seria sorrir e tropeçar em algo para me fazer dar risada.
Cal era assim – o mais tranquilo de nós quatro. Nunca guardava mágoa.
Não merecia meu mau humor.
Na verdade, quando éramos crianças, depois que nosso pai morrera, ele
tinha passado por um período que
E ele estava saindo com Kay. Tinha ido ao parque com ela. Ela achava que
eles estavam namorando –
bastava pensar nela para sentir ânsia de vômito, que disfarcei com meia lata
de cerveja.
Cal parecia estar tão mal quanto eu, com a pele fria e úmida, o olhar
desfocado. Ele ficou se remexendo no batente da sala.
Odiava como era fácil para ele dizer isso. Como se fosse óbvio. Claro que
ela não era sua namorada. Claro
moletom.
falasse dele. Perfeito, então. Não sabia se o dinheiro e o feitiço eram para
Cal – ou para que serviria aquela magia. Mas era maldoso suficientemente
jogar isso na cara dele e ver se a carapuça servia. Atormentar Cal e irritar
minha mãe com uma cajadada só.
– Até parece... – eu disse, quase contente. – Todo mês a mãe paga por eles.
Já vi o dinheiro… já o roubei
uma vez, inclusive. Talvez sejam para que você deixe de ser tão fracassado.
Provavelmente, porque você
parece meio desesperado. Antes de me beijar, você devia ter ouvido o que
Kay falou sobre…
Ele voou pela sala e apertou o antebraço contra minha garganta, enquanto
preparava a outra mão para socar
minha cara. Não cresci com três irmãos mais velhos à toa. Relaxei o
pescoço – dói mais quando você tenta se preparar para o soco – e fiquei
esperando pelo som e pela dor.
Ele resmungou. No entanto, não conseguia fazer o punho chegar até meu
rosto. Parecia até que,
voltou a me atacar.
Ele não conseguia.
Seu rosto ficou pálido. Era ele quem estava enfeitiçado. Palpite de sorte. Os
feitiços não deixavam que ele batesse em mim, nem em ninguém,
provavelmente. Ele me olhou perplexo, como se fosse eu quem tivesse
batido nele.
diferente, e não só porque eu não ficava com Win. Sentia uma saudade
estúpida e inútil de Win, porque parte de mim entendia a situação, que era o
fato de a morte ser permanente, de a vida ser finita e de os anjos não
existirem, etc., etc. Mas Diana... Sentia falta dela como se estivesse levando
vários socos repetidos no
Durante todo esse tempo, Cal continuou na sala. O coitado do Cal, que nem
sabia que estava tomando
– Você está chorando? – perguntou. Não respondi, já que ele devia estar
vendo e que a pergunta tinha sido
Quando ergui os olhos, pensei que Cal iria acenar com a cabeça, mas ele
estava olhando fixamente para as
– Não se preocupe com o feitiço – falei. – Você não tem que dar uma surra
neste cretino aqui, porque já
– Há quanto tempo?
Cal não se esforçou mais para tentar me animar. Ele saiu, e eu voltei a ficar
sozinho na sala.
Que saco.
Pois é.
Hum. É?
36. Ari
Não sabia mais o que fazer, e fui trabalhar na Sweet Shoppe, como sempre.
Mas nem o trabalho automático
– Obrigada por vir. Queria pedir desculpas… sei que Markos descobriu
sobre o feitiço. Não tive
– Você nunca contaria a verdade para ele. Só me falou que o faria para que
eu calasse a boca.
– Não é verdade.
– Tudo bem, Ari. Você tinha razão sobre o Markos. Nós não estávamos
apaixonados. Vamos deixar as
coisas como estavam antes.
– Claro – ela disse. Diana teria concordado com tudo: uma casquinha, uma
tatuagem no rosto, pular da
– Tem sido difícil para mim… pensar no que dizer e no que não dizer.
– Não é disso que estou falando. Acho que… tenho certeza de que as coisas
já estavam estranhas entre nós
antes de você tomar esse feitiço. Você não… eu precisava ligar para Kay.
Não podia mais confiar em você. E
sempre sentia que não fazia parte desse clubinho de vocês, Ari, Win e
Markos, para o qual eu não era
convidada. – Ela suspirou. – Uma parte ciumenta de mim achava que você
desejava o Markos para si e que
– Então por que não me chamava? Uma noite antes da morte de Win, vocês
saíram só os três. Como
Apertei os olhos para tentar lembrar. Podia me ver passando muito tempo
com Markos, me divertindo: Markos me provocando, sendo expulso dos
restaurantes e das pistas de boliche, Markos cantando rocks
branco.
– Não sei por que não te incluía, Diana. Não consigo lembrar.
– Você não era ruim. Você era você. Toma uma decisão e, depois que o faz,
é assim para sempre.
Não sabia dizer se era verdade, mas a decisão de tomar um feitiço para
apagar Win parecia se encaixar
naquela definição.
– Desculpa – eu disse.
Ela olhou para o sorvete e abanou a cabeça.
costas durante um plié e essa era a única coisa que diminuía a dor. Mesmo
deitada, doía, mas pelo menos a dor não me travava nem me fazia tremer
feito uma boneca de pano. (A única coisa que me consolava era a
– Oi – eu disse.
sentir o cheiro de café nas suas roupas e do gel que mantinha seu cabelo
curto para trás.
– Pelo quê?
Fechei os olhos.
– Fiquei.
– Quem contou?
– Uns meninos que estavam fofocando no café. Parece que ficaram sabendo
pelo Markos e por seus
– Quer dizer, então, que tudo bem se eu for péssima nisso? – Jess esfregou
os olhos com as mãos. Me
– Não fala isso – disse, mas fiquei sem saber se ela tinha conseguido me
ouvir, por mais que estivesse
jeito. Mas, se você parece bem, acho que está bem. Esse tipo de visão…
deve ser algum instinto maternal que eu não herdei. Katie tinha isso. – Katie
era minha mãe. Durante anos, quase não ouvira Jess dizer o nome dela.
– Ela sempre sabia o que todo mundo estava pensando. Mas meus genes são
diferentes.
– É… até eu sei que isso não é verdade. – As rugas em torno dos olhos e da
boca de Jess estavam escuras,
– Você precisa conversar com alguém e acho que já provamos que não sou a
melhor pessoa para você abrir
o coração, então…
A cara que ela fez foi tão cheia de pena e culpa que mal consegui suportar.
– Você consegue dançar agora, Ari? Mostra para mim. – Não saí do chão.
Jess assentiu com a cabeça. –
Rowena disse que não vê você desde o dia do seu tombo na aula. Logo
depois que Win morreu.
Jess não estava brava comigo. Não gritou nem pareceu desapontada. Talvez
ela esperasse que eu
Jess não disse nada, só ficou me olhando com aquela compaixão terrível,
abominável. Ela estendeu o braço
e tocou meu pulso dolorido. A dor latejava junto com as batidas do meu
coração.
– Desculpa ter feito isso com você – ela disse, acariciando meu pulso com o
polegar. – Seu primeiro feitiço.
Tirei sua mão do meu pulso e me contraí com a dor que disparou até meu
cotovelo.
– Talvez, se eu não tivesse feito isso, você não teria achado que precisava
esquecer de Win.
– Não é isso que importa. O que importa é Nova York. – Eu não concordava
com Jess que tudo fosse culpa dela, nem que deveria saber melhor das
coisas, nem nada daquelas baboseiras. O feitiço para esquecer Win
havia sido um erro enorme e terrível, mas um erro meu. Não dela. Seu erro
seria impedir nossa mudança. –
Nós precisamos ir para Nova York.
– Jess, não. Você está exagerando. Nós vamos para Nova York. Me fala que
nós vamos para Nova York.
Não queria falar com ninguém – nem com ela, por mais estranha, triste e
errada que ela estivesse, e
definitivamente nem com a dra. Pitts. Contudo, fui com Jess até o carro
mesmo assim.
Ela não estava brava comigo, como Markos, nem desapontada, como
Diana. Então por que seu amor e sua
Depois que expliquei o que tinha feito, a dra. Pitts se recostou na cadeira,
olhando fixamente para a parede.
Não dissemos nada por um longo momento. E, no fim, fui eu que quebrei o
silêncio.
– Agora você entende por que todas as suas tentativas de me fazer ficar de
luto não funcionaram? Mas,
relaxa, pode ser uma coisa boa. Você não precisa se culpar por não ter me
curado. Não foi culpa sua.
– Não, acho que não estava, não. Deve ter sido isso, esse tipo de atitude de
quem pensa que a dor pode ser curada que fez você ir à hekamista em vez
de enfrentar seus sentimentos.
– A dor pode ser curada. Aposto que a senhora toma analgésico, dra. Pitts.
– Você realmente acha que um feitiço que causa dano cerebral é a mesma
coisa que um analgésico?
– Só estou dizendo que não acho que o problema seja acreditar ou não em
algo. É um fato. É só tomar um
comprimido para acabar com a dor de cabeça. Bastou tomar um feitiço para
acabar com o sofrimento. Não
– Como? – perguntou.
– Eu só… vou.
– Escuta, não sei o que Jess pretendia quando me obrigou a vir para cá. Sei
que essa história toda está
confusa. Vou pedir desculpas para Jess, Diana, Kay, até mesmo para
Markos e todo mundo, se você me
A dra. Pitts continuou olhando para mim. Talvez eu devesse ter oferecido
pedir desculpas para ela também.
– Por quê?
– Você não se lembra do incêndio. Mas ainda assim consegue sentir que o
mundo é arbitrário e perigoso.
– Como assim? Então você acha que, porque meus pais morreram num
acidente, tenho mais chances de
querer controlar minha vida do jeito que posso? Muito inteligente. Vou
pensar nisso na próxima vez em que
estiver olhando para o céu às três da madrugada me perguntando se o
paraíso existe.
Dei de ombros.
– Se funciona...
– Não, não funciona. Um dia você vai estar sozinha consigo mesma e vai
ter que enfrentar a verdade.
– Que verdade?
Engoli mais uma resposta sarcástica. Ela juntou as mãos e respirou fundo.
– Me diz, Ari. Por que você não consegue falar sobre seus pais?
– Qualquer coisa.
Dava para encaixar todas as memórias que eu tinha dos meus pais em seis
compassos de música.
– Minha mãe tinha o cabelo liso e claro, como eu. Meu pai tinha um
cavanhaque.
– Certo.
Não sabia se era verdade e não tinha para quem perguntar, no entanto
desconfiava de que fora por isso que
eu não havia ouvido o alarme de incêndio. Por isso o fogo já tinha tomado
conta de tudo quando meu pai me
Entretanto, como eu esquecera aquele dia, não tinha como ter certeza.
– Interessante. Tem mais alguma coisa que você lembra deles? – a dra. Pitts
perguntou.
– Sabe, tenho que discordar de você. Não acho isso interessante. É a única
coisa que recordo deles, mas não quer dizer que seja particularmente
importante. Nós costumávamos ouvir música. E daí?
Minha boca ficou seca. Nunca falara dos fones para ela nem para ninguém,
jamais.
– Não estou tentando te impor uma teoria, Ari – ela disse com a voz suave.
Mas eu não precisava da sua
– Além daquela em que sou uma cretina fraca e ridícula que apagou o
namoradinho amado e depois mentiu
sobre o acontecido? Em vez disso, vamos botar a culpa na morte dos pais?
– Existe mais de uma forma de encarar tudo. Se você sabe por que se sente
assim, pode aprender a lidar
A expressão serena da dra. Pitts mudou, e acho que ela estava sinceramente
curiosa quando perguntou:
– Por quê?
Porque eu tinha medo de que, se olhasse com atenção, descobriria que tinha
mudado de uma forma que não
podia controlar. A antiga Ari parecia ser uma pessoa diferente de mim.
Abandonando Diana, preferindo um
segunda mão e pais cantores – era eu, já que tinham tirado de mim a
lembrança do incêndio. No entanto, essas eram mudanças para as quais eu
tinha me planejado, que eu havia escolhido, por mais que já não
conseguisse entender o motivo de ter tomado essas decisões. Não queria
saber que outras mudanças aconteceram sem o
37. Kay
A luz do fim de verão lançava sombras sobre o deque. Diana estava deitada
em posição fetal num canto da
rede e Ari tinha puxado uma cadeira para perto dela. No gramado, os
irrigadores automáticos estalavam ao
sua roupa suja de jardinagem, que usava praticamente o tempo todo. Ela
permanecia lá fora até ficar escuro demais para ver. Meu pai, que passava a
maior parte das semanas em Boston, trabalhando como presidente de
uma empresa, brincava que o jardim era o terceiro filho da minha mãe, a
verdadeira ironia era que o jardim era o filho único dela.
três dias, porém recebia suas mensagens de texto e de voz, e supunha que
isso fosse o bastante, senão o
feitiço o teria lançado para perto de mim. Quanto mais tempo passava sem
vê-lo, menos queria fazê-lo, ainda mais porque suas mensagens tinham
começado a ficar extremamente esquisitas.
vez você me falou que você era incrível e que só tinha amigas incríveis
também.
– Quero dizer que vocês ainda são Ari Madrigal e Diana North. Então
honrem seus nomes.
Elas não responderam, mas, antes que eu pudesse insistir para que se
levantassem e fizessem algo, a
– Ah, oi, Kay – ele falou ao me ver. Depois se deixou cair no degrau de
cima.
– Estou doente. Por onde você andou? Não respondeu a nenhuma das
minhas mensagens.
– Não sei com quem mais falar. Parei de comer em casa, o que me deixou
doente e morrendo de fome, até
me tocar de que poderia simplesmente ir ao mercado e deixar a comida
trancada, mas não é esse o problema.
– Também não. Achei que só não conseguia bater no Markos, mas as coisas
estão se revirando na minha
cabeça, como tinta que descasca ou janelas sujas que se quebram. Eu não
sei separar a verdade da…
– Ele está deprimido. Acho que queria que eu batesse nele. Talvez eu
consiga agora. Ainda não tentei.
– Bom, também não sei. Mas você vai se sentir melhor agora, certo, Cal?
Mais tarde a gente se fala. Pode
– Que bom!
– Não, não é nada bom. Sempre achei que tivesse insônia… – Ele sacudiu a
cabeça, quase com raiva,
cruzando os braços diante do peito. – Nem sei por que vim aqui. Não vou
mais te incomodar.
No caminho de volta pela casa até o deque, ouvi risadas. Talvez meu
discurso tivesse funcionado, talvez Ari e Diana estivessem prontas para
deixar o passado para trás e voltar ao normal. No entanto, quando cheguei
mais perto, ouvi três vozes em vez de apenas duas. E reconheci a terceira.
Lágrimas brotaram no fundo dos meus olhos e levei a mão à boca. Mina
não sabia nada sobre ficar sozinha.
– Parece um clichê falar isso, mas acho que antes eu não entendia como o
mundo era grande. E antigo. Vi
fortalezas que existem há séculos. Montanhas que estão lá há eras. – Ela riu
um pouco. – Era meio
reconfortante estar em todos aqueles lugares com aquelas pessoas que não
ligavam para o fato de eu ter
estado doente e que não olhavam para mim como se eu fosse morrer a
qualquer momento.
– Sei como é – Ari disse. – Não que as pessoas achassem que eu fosse
morrer. Só que toda a minha vida…
todo mundo olhava para mim como alguém frágil. Como se fosse me
debulhar em lágrimas a qualquer
Sabia que deveria parar de ouvir e sair. O feitiço não me trazia amigas para
que Mina ficasse conversando
– Chorar não é tão ruim quanto parece. Chorei na Índia por uma semana
inteira. Lá pelo terceiro ou quarto
mês, estava totalmente estressada com os trens, as estalagens esquisitas e
todo mundo olhando para mim
Mas não dá para se manter calma, grata e zen durante todos os segundos do
dia. É completamente
impossível.
– Adoro ver vocês falando sobre “se permitir” chorar – Diana disse, e pude
notar o tom choroso da sua
voz. Parecia que falar sobre chorar era o suficiente para que suas lágrimas
começassem a cair. – Como se
não”.
era para elas terem se perguntado onde eu estava. Mas não tinham feito
isso.
Joguei a cadeira para trás, que caiu estrondosamente no chão, e fui correndo
para o deque. Na rede,
deitadas uma para cada lado, Diana e Ari ergueram os olhos. Mina estava
sentada numa das cadeiras, as luzes da casa se refletiam no piercing da sua
sobrancelha. Comecei a falar antes que ela pudesse emitir outro som.
– Oi, gente, desculpa a demora. Ah, Mina, o que você está fazendo aqui?
– Só dando um oi.
– Não estava, não – Ari disse. – Mina, você voltou de vez ou só para passar
o verão?
quimioterapia me atrasou.
– Não sabia que tinha um cronograma – ela disse, sem sacar absolutamente
nada pela milionésima vez.
Estava tentando dizer que não era só o câncer que podia tirar as pessoas de
perto de nós. Às vezes era a
– O Cal.
– Não tem o que contar. – “Exceto que beijei o irmão dele, Diana…
desculpa por essa parte.”
– Então, o que ele queria? Você não acabou de terminar com o cara,
acabou? – Mina quis saber.
– Não, claro que não. – Todas olharam para mim, esperando mais detalhes.
No entanto, como eu poderia
explicar que ele estava doente e não sabia por quê, mas precisava me ver? –
Ele… ele disse que Markos tentou bater nele.
– Como é que é? Por quê? – Ari perguntou. Diana parecia querer derreter
pela rede e se desfazer no chão.
– Ele disse que o Markos estava deprimido. Pode ser que… que ele sinta
falta da Di. Seria uma coisa boa,
– Cal veio dizer que Markos sente falta de Diana? – Ari perguntou.
– Hum… sim. – Sabia que isso não fazia sentido, mas não conseguia pensar
em nada que fizesse. – Ei,
– Que foi?
– Que insensível você! – Ari apontou para Diana, que começara a chorar
em silêncio. Por um momento, me
senti péssima, uma pessoa horrível, porém pensei que o feitiço estava
funcionando perfeitamente, então não importava se estava sendo boa ou má,
e me senti melhor.
Revirei os olhos.
– Claro que fui – Mina disse. – Você acabou de falar “vocês todas”. Eu sou
parte de “vocês todas”.
– Pois é – Ari disse, com um sorriso. – Ela faz parte de “vocês todas”.
Certo, Diana?
não estivesse ali no ano seguinte, eu deveria ler uma por ano e fingir que ela
estava fazendo todas as vozes, pedindo desculpas por não ter tempo para
escrever mais porque estava muito cansada, então nós choramos e
Se ela me escrevesse uma história neste ano – o que não faria, porque fazia
anos que não me escrevia nada
mais cedo ou mais tarde, ela iria embora – era isso que fazia. Não
importava que Cal estivesse meio doido, nem o fato de eu ter beijado o
amor da vida de Diana, ter mentido para ela e tê-la feito chorar, nem o fato
de não poder ficar em hospitais ou montanhas-russas. Nada disso
importava.
38. Markos
Sou o único dos filhos que não tem nenhuma lembrança do nosso pai.
Nenhuma. Nem mesmo de algo vago,
meio quando ele morreu de ataque cardíaco. Cal tinha seis, Dev oito e Brian
dez.
Não estou pedindo piedade, lágrimas nem um abraço coletivo por causa
disso. É um fato: sou o mais novo.
No entanto, o que me ferrou não foi a parte de sentir falta de um pai que
nunca conheci. Com isso, não
tinha problema – ele parecia um cara ótimo, e teria sido bacana tê-lo
conhecido, mas consegui ficar
salsichas toda noite por uma semana?”. Ou: “Lembra quando nosso pai
construiu a casa da árvore no quintal
dos fundos?”. Até o segundo mais novo, Cal, que tinha seis anos quando
nosso pai morrera, se recordava do
Natal em que todo mundo ganhou Legos e fomos todos para a Legolândia.
Meus irmãos podiam juntar suas
lembranças, trocá-las entre si. Eles ajudavam uns aos outros a reforçarem as
recordações que já tinham. Mas eu não podia ajudar. Mesmo quando estava
presente nessas histórias, normalmente estava dormindo no colo
Num certo sentido, parecia que estávamos em duas famílias diferentes: eles
três, que já haviam tido pai e
O que eu queria, mais do que um pai, era poder entrar nessa família, essa
que já havia tido pai e mãe.
Queria muito isso. Eu os via e tentava o tempo todo ser um deles. Os irmãos
Waters.
Fiquei muito bom em fingir ser assim. Confiante, engraçado, sedutor, mas
nunca sério. Notas relativamente
impaciente nem eufórico. Manter a calma. Eles sabiam que eu era uma
fraude e enchiam meu saco por isso,
mas ninguém de fora conseguia ver que eu não era igual a eles.
O estranho – ou, sei lá, talvez nem fosse tão estranho assim se pararmos
para pensar – era que eu não tinha pensado no meu pai durante todo aquele
verão. Seria esperado que, ao ser confrontado com o espectro da
morte, do luto e dessa merda toda, eu tivesse reservado alguns minutos para
o meu pai. Afinal, ele fora minha primeira grande perda, porém, como
disse, não é uma perda tão grande assim quando não se tem nada para
lembrar.
Depois de descobrir que Ari apagara Win, comecei a pensar no meu miolo
mole de bebê, que mal conseguia
Eu e ela tínhamos formado nossa própria família: aqueles que amavam Win.
Eu finalmente era membro de
um clube exclusivo, algo que sempre quisera ter com meus irmãos. Só que,
depois, ela tinha ido lá e
Agora eu entendia por que meus irmãos tinham fechado esse lado deles
para mim. Não era por egoísmo ou
cem por cento de garantia, por apenas US$ 49,99. Ela desligou a tevê e
parou na minha frente, com a cara
fechada.
Parte de mim queria pular do sofá e estrangulá-la por esquecer Win, mas o
resto de mim estava exausto
– Fiquei sabendo que você estava mal. Quis ver com meus próprios olhos.
Ari não respondeu. Eu a vi olhando por sobre o sofá, para as garrafas pela
metade de Gatorade e para o
meu rosto, que devia estar sujo e pálido, embora fizesse tempo que eu não
me olhasse no espelho.
Engoli em seco. Por pior que estivesse, ela também parecia estar péssima,
com olheiras escuras embaixo
antigamente.
– Ela achava que você estava sendo sincero – Ari disse. – Deve ter se
esforçado muito para convencê-la.
Win. Você foi lá e o arrancou como se fosse um câncer. Mas você não ia
morrer por se lembrar dele. Ele não era um câncer. Ele… te amava. E você
não se importou.
– Acho que eu devia amar muito esse menino para fazer o que fiz.
Meus olhos se fecharam, porém a escuridão não significava que ela fora
embora. Podia sentir sua presença
ali, respirando, e não sabia o que dizer, então ficamos parados em silêncio.
Abri os olhos.
– E você está sendo mais babaca do que nunca. Por que fez isso? Foi só
para se sentir amado e especial por cinco minutos? Isso é desumano.
– Esse sou eu, caso você não se lembre. Sou o cara que faz merda. Não levo
nada a sério. O que ela
esperava?
Ari me deu um chute na canela. Doeu, mas a sensação aguda me fez sentir
raiva e satisfação. Ela
– Entendo que esteja bravo comigo – ela disse. – Caramba, eu estou brava
comigo mesma. Mas partir o
Daí, por um breve momento, tive a impressão de que a Ari de quem eu era
amigo era a mesma que estava
ali na minha frente agora, e que a qualquer segundo ela também começaria
rir. Ela se sentaria e ficaríamos tirando sarro juntos dos programas da tevê.
Em seguida diria para os meus irmãos me deixarem em paz, e eu
– Nem tudo é sobre você, sua psicopata – eu disse com muita calma,
considerando as circunstâncias. –
Mas por que você não me fala, só para eu saber, o que quer que eu faça? Por
que estas são as opções: deixo Diana em paz, que é exatamente o que estava
fazendo até você vir aqui. Ou peço desculpas, e não vejo por
que faria isso. Ela saberia que não é sincero e que você me obrigara.
parecer idiota, fez meu plano de ficar no sofá e nunca mais sair parecer
infantil.
Pensa positivo.
Ela vai jogar um abajur em cima de mim e depois vai bater a porta na
minha cara.
Ah, claro. Assim como falei para Ari: não faço o tipo que pede desculpas.
Diana sabe disso. Ela me
conhece.
E isso é ruim?
É. Porque eu estraguei tudo como sempre soube que faria desde a noite da
festa da fogueira. Só tinha duas opções: me manter longe ou destruir.
Escolhi a segunda.
Porque preciso.
Por quê?
39. Win
com alguns dos outros caras, ela sumia. Mas, se ia sozinho, ela entrava pela
porta do passageiro e ficávamos conversando.
Echo não estava exatamente me pressionando pelo dinheiro. Mais que isso,
queria saber se eu tinha tomado
Assim eu conversava com ela. Falava sobre meus dias sombrios e noites
insones, enquanto mentia para Ari
problema era não conseguir querer nada direito, e que essa vontade fraca
não era o suficiente para me fazer tomá-lo de verdade. O fato de o feitiço
estar na minha gaveta de meias não o tornava mais acessível. Ari
estava bem na minha frente. Minha vida real estava logo ali. Nada vinha de
maneira fácil.
– Não posso obrigar você a tomar – Echo disse certa tarde. Ela estava
sentada no banco do passageiro,
tomasse.
– Eu vou tomar. Vou tomar. – Tirei a jaqueta de couro e a joguei no banco
de trás. A caminhonete ficava
longe de mim.
– Falei para não se preocupar com isso. Você vai descobrir um jeito de
conseguir o dinheiro mais rápido
– Contudo, depois que você tiver o dinheiro, vai me deixar aqui para sair da
cidade e virar uma heroína – eu disse, tentando brincar. – Talvez não queira
te pagar porque gosto das nossas conversas.
Echo não deu risada. Seu pescoço e suas bochechas ficaram vermelhos e ela
olhou fixamente para o porta-
luvas.
Tentei não me mexer. Eu tinha dito algo terrível sem nem perceber.
– Desculpa – falei.
Ela continuou sem dizer nada, mas parou de olhar fixo para o porta-luvas e
se voltou para mim. Seus olhos eram tão claros, quentes e tristes que
precisei desviar o olhar.
– Que foi? – perguntei. – Por favor, me fala. Sou um babaca, eu sei. Fiz
você ficar brava.
– Não. É que… quero que você tome o feitiço. Que se sinta melhor. Mas…
não sei mais se quero que me
– Ah! – eu disse.
Ela quis dizer que queria ficar na caminhonete comigo, perguntando como
eu me sentia. Queria ficar na
Por mim.
Ela estendeu o braço e pegou minha mão, que batia nervosamente contra o
volante. Sua pele estava fria.
Expirei, criando um vácuo no meu peito que me fez ter que inspirar logo em
seguida, profunda e
Eu não a beijei. Mas não importava. Queria beijá-la, o que já era ruim o
suficiente.
– Desculpa – falei.
Sua respiração também estava ofegante. Era tudo o que se ouvia no carro,
além do meu coração batendo
– Não posso.
– Eu sei.
– Por favor, não fala isso. Sério, Win, não vamos conversar. Vamos ficar
quietos sem falar nada, você me
leva para casa e nenhum de nós comenta isso nunca mais. Está bem?
Concordei com a cabeça e dei partida no carro. Precisei abrir a janela
porque o ar lá fora tinha ficado mais fresco, enquanto as janelas do carro
estavam cobertas de vapor. Os segundos que passamos esperando que
peito.
Dei a volta pelos campos esportivos para deixá-la na sua casa, depois fui
para a minha. O tempo todo eu
tinha certeza de que agora tomaria o feitiço, que sem dúvida era uma pessoa
infeliz e terrível a ponto de
40. Ari
Echo ligou assim que saí da casa do Markos. Eu vinha andando em círculos
pelo bairro dele, matando o
sabia sobre ele, os pequenos indícios que havia reunido. Como Markos
sentia sua falta. Como tinha mudado
quando estávamos namorando. Juntas, as peças formavam o esboço de uma
pessoa, definida por seus efeitos
Markos disse que, se eu realmente amasse Win, iria querer lembrar. Pensei
nos meus pais. Talvez não os
cicatriz em volta dela. Assim, pelo menos, guardaria essa cicatriz para
demonstrar todo o meu sofrimento.
Era para eu estar em Nova York, mas não conseguia provar para Jess que
podia dançar, então ela não
– Agora?
– Treinei algumas vezes e acho que estou pronta para fazer seu feitiço. – Ela
parecia animada, quase
rua.
Echo descreveu o que tinha planejado para o meu feitiço, as fases da lua e o
tipo sanguíneo, como tentaria limitar os efeitos colaterais dando-me
graciosidade apenas suficiente.
ficar mais emotiva do que de costume, talvez? É difícil dizer, ainda mais
porque é uma mistura.
Queria ficar animada com tudo o que ela estava dizendo, porém algo me
incomodava. Uma parte do esboço
Ela parou.
época?
Então Win tinha seus segredos. Se a antiga Ari soubesse disso, ainda se
daria ao trabalho de esquecê-lo?
– Como assim?
– Win morreu no fim de maio. Fiz meu feitiço uma semana depois. No
entanto, você só veio atrás de mim
podia nem atender à porta quando minha mãe não estava em casa.
pudesse esconder nem destruir, então contei para ele. Não esperava que… –
Ela suspirou ao telefone. – Não
sabia como seria a sensação de contar para alguém. Alguém que sabia quem
eu era. Ele me conhecia. Com
Parei de andar. Uma sensação amarga se revirou na minha barriga. Ela tinha
roubado meu luto, por mais que
– Quer saber? Não posso ir agora – eu disse. – Tenho que encontrar umas
amigas para o jantar.
– Não é nada.
– Minha amiga está ansiosa por esse jantar, senão eu daria um bolo nela.
Juro.
– Espera – Echo me interrompeu. Seu tom de voz não estava mais vacilante,
ela tinha voltado ao normal. –
41. Kay
– Elas podem ter ficado presas em algum lugar – Mina disse, tentando ser
gentil.
Fiquei irritada com a piedade dela. As meninas não haviam ficado presas
em lugar nenhum. Não tinham
como ficar. Mais cedo ou mais tarde, a amarração as traria para mim,
porque ela funcionava. Sempre
funcionava.
Cal Waters estava parado na porta do restaurante, olhando pelo salão com
cara de bobo. Ele continuava
com a aparência terrível: mais magro, inquieto, suado. Fiz sinal para que
viesse – o que mais poderia fazer?
– Oi, Cal, sou Mina – ela disse, sorrindo e estendendo a mão. – Nós fizemos
álgebra juntos no oitavo ano,
lembra?
Ele olhou para a mão estendida, mas manteve a sua ao lado do corpo.
Atrás de Cal, pude ver a porta aberta, e Ari e Diana entrando por ela.
Levantei de um salto, empurrando o
– Ari! Di!
Ari me lançou um olhar furioso. Puxou Diana pelo braço e a arrastou até
nossa mesa. Diana parecia estar
em choque.
Ari me encarou.
– Vocês sabem? – Cal balbuciou. Ele ficara mais pálido sob a camada fina
de suor.
– Sim. Nós sabemos que Kay fez uma amarração para nós, e que não temos
como sair de perto dela. Nem
Ela explicou o que eu contara para a hekamista no dia em que pedira para
ela desfazer a parte de Cal do
feitiço.
– E daí?
– Daí que eu quero ir para Nova York dançar. Diana quer poder sair da
cidade sem bater a cabeça. – Só que
Di estava olhando fixamente para a parede e não pareceu notar. Ari ficou
um pouco preocupada com ela, mas
depois se voltou para mim, com raiva. – Isso não está certo.
pressionou o pulso contra a ponta da mesa. – Além do mais, não quero fazer
isso. Nós somos amigas.
– Todas cometemos erros. Diana mentiu sobre estar com Markos. Você
mentiu sobre esquecer Win… e
– É melhor se cuidar, quem sabe ela não fez uma amarração para você
também. Se tentar viajar para a Índia
Todo mundo parecia esperar que eu dissesse alguma coisa, mas eu sabia que
tudo que falasse seria errado.
– Tem outra coisa errada – Cal falou. O cheiro de álcool exalou por toda a
mesa. – Não você e sua
amarração. Outra coisa. Estou com muita fome. Você tem alguma coisa para
comer?
– Talvez não seja uma memória – ele falou para Ari, como se ela tivesse
feito uma pergunta. – Talvez não
seja. Posso ter alucinações, esquizofrenia. Não sei. – Ele olhou para nós
como se não nos visse, detendo o
olhar sobre mim. – Você deu uma amarração para o Markos também?
Diana o pegou pela manga e se aproximou dele. Ele nem pareceu notar.
Diana e Ari olharam para ele, depois uma para a outra, então,
simultaneamente, para mim. Vi em seus olhos
voando como leves folhas de outono. Por baixo, não havia nada além de um
concreto frio e feio. Todo o
– Se for verdade, e não estou dizendo que é, mas se for, foi antes de eu
saber que a Diana estava com o
– Você diz ser essa amiga perfeita que sempre nos apoia, mas, enquanto
isso, ficava nos enfeitiçando e
– Para, por favor – Diana pediu. As pessoas à nossa volta sussurravam para
os garçons, apontando na
nossa direção.
– Você sabe o que é amizade? Porque posso ter esquecido disso ao longo de
grande parte do ano passado,
mas sei o suficiente para não fazer uma coisa tão terrivelmente cruel contra
a amiga mais doce e leal que você jamais vai ter a sorte de ter…
– Cala a boca, Ari! – Diana disse. Seu rosto estava vermelho. Ela ainda
segurava a manga de Cal, como se
– Não sou tão ruim quanto ela – argumentou, apontando para mim.
– Mas pensa um pouco. Não importa o que a Kay fez. O Markos terminou
comigo porque eu menti sobre o
o puxou pelo braço. – Vem. Vou chamar um táxi para você. – Ele se deixou
levar para fora do restaurante.
Desejei poder ir atrás deles. Durante a conversa, o lugar tinha ficado banal e
sem romantismo, com toalhas de mesa vagabundas e uma decoração
marinha cafona. Deveria ter escolhido outro lugar para comer. Um com
– Tentei ser uma boa amiga – argumentei. Ari bufou, e eu continuei mais
rápido, para não deixar que ela
vacilou, e me odiei por isso. Não precisava explicar nada para ela, só que
mesmo assim continuei: – Fiquei por perto. Mesmo quando vocês me
ignoravam ou tiravam sarro de mim, sabia que precisava estar próxima de
chegar à verdade. As lágrimas ardiam nos meus olhos, mais de raiva do que
de tristeza, porém eu as contive.
com você.
restaurante.
Deixei Ari e Mina ali, me odiando. Cal e Diana, à espera de um táxi na rua,
me odiando. Dane-se. Eu os
odiava também.
verdadeiro. Eu poderia fingir que para mim bastava mandar nelas e obrigá-
las a fazerem o que eu queria – irem ao meu jantar de aniversário ou
ficarem de mau humor no meu quintal, porém, o que eu realmente desejava
era que elas sentissem a minha falta. E isso eu não podia obrigá-las a sentir.
Em vez disso, eu as puni. Fiquei firme e não liguei para nenhuma delas
durante quatro dias.
42. Markos
Era tão cedo que o calor ainda não estava forte, e os jornais eram entregues
por um homem de meia-idade
Em vez disso, ela chamou Diana e tentou bater papo, mas eu fechei o rosto
e olhei para um ponto atrás
Ela surgiu, afinal, usando uma regata e um short de pijama, com o cabelo
preso num rabo de cavalo. Olhou para mim – depois de mais de uma
semana – com o rosto sem expressão. Como se eu não fosse ninguém.
Por um segundo terrível, pensei que ela tivesse comprado um feitiço para
apagar suas lembranças de mim,
desculpas.
– Você me xingou. Faz quase duas semanas que não fala comigo.
Ela listou meus crimes em voz baixa, o que foi muito pior do que se tivesse
gritado comigo.
– Desculpa, Diana.
– Você… me perdoa?
– Sim. Valeu por vir aqui. Foi legal da sua parte. Tchau.
Ela começou a fechar a porta, mas coloquei a mão para impedir. Então
olhou para minha mão e depois para
– Não parece ser um perdão sincero se você nunca mais quiser me ver de
novo.
– Você está aqui para me dar sermão sobre como perdoar alguém de
verdade? Quem é você para me
ensinar isso?
Eu não tinha capacidade mental para deduzir o que ela quisera dizer com
“quem é você para…”.
– Não estou aqui para te dar um sermão, não. Estou aqui para que você
possa gritar comigo por ferrar com
a sua vida.
Ela pareceu crescer uns dez centímetros, olhando nos meus olhos.
– Por quê? – ela perguntou. Parecia a voz de Win soando na minha cabeça.
cara que eu era... era horrível. – Ela abriu a boca como se fosse argumentar
e eu continuei falando, não
eu te ame, mas não sei direito, porque não sei nada sobre o amor. Estou
tentando entender o que Win diria, o que é uma causa perdida, só que ele
era um cara melhor do que eu, então acho que ele diria que isso é amor, sim,
e que deveria te falar isso, por isso estou falando. Eu te amo. Eu acho.
Não podia ser um bom sinal. Eu nunca havia confessado meu amor a
ninguém, mas duvidava que lágrimas
– Por favor, me deixa em paz, Markos – ela disse. – Não posso ser
responsável por você se tornar uma
pessoa melhor. Por que você não pode simplesmente ser uma pessoa
melhor?
Precisava me levantar para que Diana não olhasse pela janela e me visse de
joelhos.
acontecido.
Precisava me levantar.
Precisava.
43. Win
Depois do que aconteceu com Echo na minha caminhonete, sabia que tinha
que arranjar o dinheiro. Não podia
No fim, não foi tão difícil assim. Estávamos jogando videogame na casa do
Markos. Nem pausei o jogo.
– Quanto?
– Cinco mil.
Ele não disse nada na hora, então pensei que ele poderia rir. Nesse caso, eu
também teria que rir, depois
anos.
– Sim.
Mas o que fiz em seguida? Fui para a casa da Echo e entreguei a ela na
hora? Finalmente senti que tinha o
direito de comer o sanduíche, que ficava mais velho a cada dia na minha
gaveta de meias? Fiz alguma coisa de útil?
Não.
fixamente para a pilha, mais dinheiro do que eu já tinha visto na vida, tudo
num só lugar. Era muito mais do que tinha imaginado que seria. Uma pilha
enorme. Notas de vinte, principalmente, mas também algumas
amassadas de dez, cinco e um, além de uma de cem, que parecia ser falsa –
mas só porque uma nota de cem
dólares era uma daquelas coisas que só personagens ricos de filmes tinham
na carteira.
Cinco mil dólares poderiam pagar um aparelho para Kara. Poderiam
comprar um carro novo (usado) para
minha mãe a fim de substituir aquele que vivia morrendo nos cruzamentos.
Se eu colocasse na poupança, o
apenas um fardo.
Então como eu deveria medir? Minha mãe e Kara contra Echo e sua mãe –
não parecia ser uma escolha
Enfiei o dinheiro de volta no envelope. Ouvi minha mãe chamar meu nome
na porta de entrada. Escondi o
Naquela mesma noite, fui para a casa de Ari. Enquanto ela conversava com
sua tia, escondi o envelope no
fazer perguntas. Guardá-lo com Ari, fora da minha casa, me fazia parecer
menos egoísta do que o fato de ter dado preferência a mim em vez de a
minha família. Quase conseguia não pensar no dinheiro.
44. Ari
Três dias depois do aniversário de Kay (e três depois daquele em que já era
para eu estar em Nova York), levei um tombo enquanto tentava fazer um
fouetté no quarto. Desde aquele jantar, não tinha falado com Diana nem
com Kay, e vinha evitando Jess e seu estoque subitamente infinito de
abraços bem-intencionados, já que ela havia me obrigado a ir à dra. Pitts.
Também não fora à casa de Echo, embora ela houvesse dito que estava
tramavam, não saber como reagir. Assim, na minha pequena bolha isolada,
tive tempo de sobra para temer que todo dedo machucado, todo passo em
falso e todo corte de papel fossem obra de algum feitiço maligno.
colchão caiu no solo, um caderno que eu não reconhecia, num lugar que não
reconhecia, cheio de uma letra
que eu conhecia muito bem. Me virei onde tinha caído e sentei no chão para
ler.
No começo do caderno, dava para notar que uma página fora arrancada –
onde eu escrevera o bilhete para
mim mesma na noite em que tomara o feitiço. Então, mais ou menos no
meio, algumas páginas estavam
Matei o balé para sair com Win. Nem foi de propósito – simplesmente me
esqueci de ir. Só fui lembrar
quando Rowena ligou para casa. Estou muito cansada da Rowena, dos
coques e da perfeição. Muito cansada.
Win diz que é um dom ser bom em algo como sou na dança. E que me
arrependeria se não fosse para Nova
York. Mas ele está sendo o Bom Namorado Win, e sei que vai sentir minha
falta. Ele anda muito estranho
ultimamente. Mais triste do que de costume. Estou preocupada. Ele não diz
o que é. E tenho minhas próprias preocupações também. Jess está muito
animada. Ela está se candidatando para dezenas de trabalhos. Falando
longe de Win. Esse era o meu sonho, mas agora parece um grande
desperdício.
que minha mão tinha começado a ficar vermelha. A dor era como a de um
martelo batendo de maneira ritmada
Senti um frio descer por todo o meu corpo, como um balde de água gelada.
Imaginava que eu e ela tínhamos algumas coisas em comum. Ela tinha Win
e eu não, mas nós duas
tínhamos a dança. Algo tão importante que não era capaz de mudar. Certo?
A menos que houvesse algo na minha relação com Win que me fizesse não
querer dançar. Ou não precisar
dançar. Porque era assim que eu sempre pensava na dança antes, como uma
necessidade.
Jess achava que o feitiço tinha me salvado: aquele que tirara minha
lembrança do incêndio. Só que ela estava errada. A dança é que havia me
tirado do fundo do poço que era a morte dos meus pais. Sem ela, eu
Dei uma olhada no relógio. A aula avançada de balé terminaria logo mais.
Peguei o carro e dirigi até o
– Ariadne... Que bom te ver! – Seus olhos passaram pelas minhas pernas e
braços, eu me tensionei e não
me movi para não me denunciar. (Tive um lampejo de lembrança de como
era a sensação de dançar, com
Rowena se recostou contra a porta do seu carro, cansada, mas ainda assim
formal, com as costas eretas,
elegante.
– Não exatamente. Você nunca falou sobre isso direito. Mas você mudou. –
Ela sorriu. – Estou muito
acostumada com o fato de minhas alunas mudarem. Pode ser lindo ver
alguém descobrir que tipo de pessoa
vai ser.
objetivos mudam. As pessoas mudam. Você era tão talentosa como sempre
fora, e o Balé de Manhattan viu
– Eu desisti.
– O mundo de uma bailarina pode ser muito restrito. O seu expandiu. – Ela
olhou para os arbustos à distância em volta do estacionamento, como se
visse grandes florestas, montanhas e rios. – Depois que Win
faleceu e você voltou, fiquei feliz em te ver, claro, mas não foi nenhuma
surpresa o seu corpo não querer
Dava para ver que Rowena considerava aquele o fim do seu discurso, mas
eu não podia deixá-la ir embora
– Não sei – Rowena disse. – Talvez houvesse uma química única entre você
e Win. Mas eu diria que o
medo da mudança é o medo mais inútil que uma pessoa pode alimentar. As
mudanças vão acontecer, Ariadne.
Lesões. Amores. Mortes. Não existe um momento em que uma pessoa
esteja fixa. É assim, tudo muda.
Sempre muda.
se abrisse a boca, teria chorado, então voltei para o carro, acenando para
Rowena, desamparada. Ela retribuiu ao aceno.
45. Markos
próprio bem, mas eu não aparecia mais para o café da manhã, assim não
precisava ouvi-los julgar como eu
não tinha nenhum objetivo claro. Era simplesmente o que eu achava que
devia fazer.
Não achava que estava fazendo uma declaração. Que estava tentando provar
para Diana como a amava ou
coisa do tipo. Não havia esperança de que uma voz viesse sussurrar no seu
ouvido: “Está vendo aquele cara
passando as noites no seu quintal? Ele deve estar falando sério”. Não me
sentia mais sério do que no dia
noite, a mãe de Diana saiu alguns minutos depois que me acomodei. Olhou
para o meu piquenique com
desgosto e então para mim com piedade. Receber a piedade de uma mãe –
os novos níveis de humilhação
Considerei não responder, mas a casa era dela e não seria bom que ligasse
para a polícia por minha culpa.
– Nada, não.
– Sim.
– Por quê?
“Porque senão corro o risco de nunca mais sair de casa.”
– Bom, sim, e tomara que ela mude… mas talvez não seja melhor você
esperar que ela telefone? Na sua
casa?
Ela fez que sim de novo, depois tirou uma folha da árvore acima da sua
cabeça e a ficou revirando entre os dedos.
– Pode fingir que não estou aqui. Não vou incomodar a senhora, a Diana,
nem o senhor North. Só vou ficar
Por quê?
Sabendo.
As pessoas se magoam. É isso que elas fazem. Ninguém pode decidir que
não vai magoar alguém de novo.
É por isso que você está sentado aqui fora? Para provar alguma coisa?
Pois é.
Improvável.
era a pessoa que mais cuidara de Diana durante toda a vida. Era um consolo
estranho pensar que essa mesma
sinais e más lembranças para repassar e catalogar. Eram os erros que havia
cometido, como beijar Kay, ou as traições que tinha sofrido, como o feitiço
de Ari para esquecer Win, e a mentira de Diana sobre isso. Além disso,
havia as lembranças que eu pensava serem boas, mas que foram
corrompidas: todas as relacionadas a
Win, o que incluía quase minha vida inteira, dos cinco anos de idade em
diante, assim como as recordações
Tentei não pensar em nada. Meditar, acho que se pode dizer. No entanto,
minha mente se recusava a ficar
hekamista, não teria passado a última noite na praia e não teria funeral
algum para ir.
quando a gente saísse. Imaginei que, na época, não era quem sabia que era,
e teria dado uma chance a Diana em vez de estragar tudo com ela – sabe-se
lá como, todos estaríamos felizes.
Até parece.
– Que foi?
– Eu saí.
– Cal sumiu.
– Quer dizer que não sabemos onde ele está, seu panaca.
– Ajuda o Dev a procurar. Ele está olhando pela praia. Eu saio daqui a uma
hora e encontro vocês.
– Vai você. Você é o policial – eu disse. Sabia que estava agindo como um
babaca, mas não queria deixar
meu posto.
– Se liga, Brian…
– A mãe contou que você está passando a noite toda fora e não fala com ela
quando volta. Ninguém disse
nada, mas talvez devêssemos ter falado. Isso não está legal, Markos. Está na
hora de crescer, porra. De ser um membro da família. Não é nada fofinho se
comportar como um bebê quando você já tem dezoito anos.
– Eu tenho dezessete.
– Só faz isso, Markos. Para de ser tão egoísta e ajuda a encontrar seu irmão.
Depois você pode voltar a
Tentei não olhar para a janela de Diana enquanto ia embora, mas não pude
deixar de imaginar que, pelo
canto do olho, tinha visto a cortina se contorcer. É óbvio que, quando parei
na entrada para a garagem e olhei para trás, não havia ninguém lá.
46. Kay
Quando não consegui mais me conter e tentei falar com Diana e Ari na
noite de sexta, Ari se recusou a falar comigo por mais de alguns segundos e
Diana nem atendeu o telefone. Deixei uma mensagem após outra, mas
“A gente não precisa sair. Você não precisa falar comigo. Só me manda uma
mensagem dizendo que está
tudo bem.”
Ari não ajudou muito. Seu suspiro soou alto e claro pelo telefone.
– Mas Diana…
– Ela precisa falar. A cada três dias. E se ela tentou sair da cidade e alguma
coisa aconteceu com ela? E se ela se machucou e não conseguiu vir me ver?
– É mais provável que esteja puta com você – Ari disse. – Talvez você
devesse respeitar a decisão dela.
Houve uma longa pausa do outro lado da linha. Eu podia notar o efeito das
minhas palavras – elas soavam
– Então você não sabe – eu disse, quase aos berros. – Você não sabe se ela
está bem ou não! Não sabe e
– Não é verdade.
– Então liga pra Diana. Por favor! Eu entendo que ela esteja me ignorando,
mas você ela vai atender…
– Mas só quero saber se ela está bem! Ari? Alô? Está me ouvindo?
– Nada.
– Não posso.
– Deve ser difícil para ela. Nem eu quero falar direito com você, e olha que
você é minha irmã.
– Não acredito que você tenha dado esse feitiço para elas. No que você
estava pensando, Kay?
– Não é tão diferente do meu feitiço de beleza. Assim não preciso ficar
sozinha.
– Escrevi para você e te contei. É claro que você devia estar ocupada
demais para notar.
– Contei sim! Que foi, você acha que acordei linda da noite para o dia?
– Você é minha irmãzinha fofa. Todo mundo amaria você depois que a
conhecesse melhor.
– Você está prestando atenção? Não sou mais a Katelyn fofinha. Sou a vilã
da história. Eu magoo as
– Você me usava enquanto estava doente – acusei. Minha voz saiu dura
como o pedaço de aço que cortava
a sobrancelha de Mina. – Eu era útil. Mas, agora que você está bem, quem
se importa com a idiota da Katelyn feiosa e sem amigos?
Mina apertou o braço esquerdo com a mão direita. Era onde ficava a
intravenosa. Antigamente, ele vivia tão dolorido que, sempre que ela o batia
por acidente em algum lugar, soltava um berro.
– Mentira. Foi sim. Você ficou melhor e mal conseguiu esperar para dar o
fora daqui. Para mudar completamente. – Sabia que deveria respirar para
me acalmar, mas já me sentia cheia de ar. Precisava soltar mais. – Então eu
também mudei. Mudei meu rosto. Encontrei amigas. Amigas que não me
abandonariam num
partida no carro e foi embora antes que eu pudesse correr até a janela.
“Dane-se”, pensei, “vai embora.” Eu não precisava que ela me distraísse.
“Oi, Diana, é a Kay. Olha... estou… preocupada com você. Por favor, me
liga… tá?”
Tantas coisas poderiam ter acontecido. Um resfriado súbito, um passo em
falso. Deixar o gás ligado ou
47. Ari
vizinhos.
isso?
Não. Diana não era tão idiota assim. Markos tinha beijado Kay e partido o
coração dela.
– É impossível.
– Markos tem se esforçado muito para merecer o perdão dela. Nem todo
mundo faria isso.
Senti uma leve repreensão na voz dela, embora seu tom se mantivesse
calmo.
– Nem todo mundo beijaria outra pessoa e cortaria todo o contato com ela
também.
– Conversa com a Diana amanhã. Tenho certeza de que vocês vão conseguir
se entender.
Eu respondi:
– Sim, claro! – Falei em um tom tão falso que parecia uma idiota.
– Eu e sua mãe vivíamos brigando assim – Jess disse, entrando na cozinha.
– Ela era a irmã mais velha
– Eu sei que não. Era você que costumava sair e deixar Diana sozinha em
casa. Agora parece que o jogo virou, não é mesmo? – Jess sorriu. – Quando
Katie teve você, passei a ser a descolada, paquerando todas as meninas,
ligando para ela no meio da noite. Foi tão diferente para mim que posso ter
esfregado um pouco na cara dela. Diana deve estar fazendo o mesmo.
A pergunta que eu queria fazer – “Por que você está escolhendo este exato
momento para começar a se
lembrar da minha falecida mãe, sendo que passamos os últimos nove anos
fingindo que ela nunca existiu?” –
– Jess, como Win me fez deixar Diana para lá e querer parar de dançar?
48. Markos
Cal não estava na praia, na academia, nem em alguma das lojas da avenida
principal. Dev já tinha verificado a loja de ferragens e as casas dos amigos
de Cal. Ele fazia piadas enquanto entrávamos e saíamos de cafés,
bares e bancos, mas, quando escureceu e Brian se juntou a nós, paramos de
brincar. Ao olhar para eles, não dava para saber se estavam realmente
preocupados ou se só estavam fingindo.
Eu estava preocupado com Cal – claro. Não sou nenhum tipo de monstro.
Não tão preocupado a ponto de
pirar e começar a entregar panfletos no ponto de ônibus, mas ele era meu
irmão – o mais legal deles. Aquele que nossa mãe vinha enfeitiçando. Ele
estava doente na última vez em que o vira, dias antes, e minha teoria era de
que devia ter desmaiado em algum lugar.
Só que eu precisava ser idiota para não notar que eles nunca montaram
equipes de busca por mim enquanto
Brian nos guiou pela cidade, por becos e ruas paralelas que eu nunca teria
pensado em explorar, mas que ele parecia conhecer muito bem. Mendigos
com sacos de papel, trombadinhas, pessoas visivelmente ferradas pelo
álcool, pelas drogas ou por feitiços. Havia toda uma segunda cidade obscura
por baixo daquela que eu
conhecia. Todo mundo sabia quem Brian era, ninguém tinha visto Cal.
de Brian no fim do quarteirão. Deixei tocar até que fosse para a caixa
postal, então passou a tocar de novo.
Eu odiava Ari. Nunca mais queria falar com ela. Ela tinha ferrado com o
meu melhor amigo.
E se eu não conseguir?
Você consegue.
E se eu não quiser?
– Você está na loja? – ela indagou. Sua voz parecia mais aguda do que de
costume.
– A bicicleta da Diana está aqui. Ela não atende o telefone. Mas a porta está
fechada, então não sei como ela entrou. Também não sei por que entraria se
não fosse para te encontrar.
Dava para notar pelo seu tom de voz que ela achava que me procurar era a
coisa mais idiota que Diana
poderia ter feito na vida. E, por um segundo, concordei com ela: o trato era
que Diana ficaria parada,
Só que eu tinha abandonado meu posto, por isso ela tinha abandonado o
dela também. Ela não entendia.
Será que achava que a minha presença no seu quintal era o mesmo que
procurar por mim?
Brian, então, apertou a buzina para eu entrar no carro, e entendi por que
estava indo à casa da Diana de uma forma como nunca entendera antes. Eu
não achava que ela me perdoaria, nem estava me penitenciando. Era
49. Kay
Não peguei no sono. Deitei na cama com o celular no peito, esperando que
Diana ligasse e me avisasse se
estava bem – desejando que ela se salvasse, se fosse capaz. Fiquei olhando
o quarto escurecer e as luzes dos carros que passavam iluminando o teto por
horas. Mesmo assim, ela não ligou. Me perguntei se a amarração
– Também não tive sorte. Fui a todos os bares e lanchonetes num raio de
trinta quilômetros.
– Dei uma olhada nas praias também, mas ninguém viu uma adolescente de
cabelo supervermelho.
– Ela deve ter se machucado ou ter ficado presa em algum lugar. Não
consegue entrar em contato comigo.
– Eu não a conheço muito bem. Mas ela parece… uma menina normal.
– Se minha própria irmã quis se afastar de mim, por que outras pessoas
ficariam?
– Katelyn... – Ela puxou meu cobertor e esperou até que eu olhasse nos seus
olhos antes de continuar. –
– Assim que ficou melhor, você foi embora. Mochilando pelo mundo sem
mim. A gente vivia conversando
sobre viajar juntas, porém acho que era conversa de alguém à beira da
morte, e não uma promessa de
verdade.
– Você também. Mas você faltou. O plano todo mudou. Olha só para você.
que as regras tinham mudado para que eu pudesse viver. – Ela franziu a
testa, relembrando. – Precisava
aproveitar aquela chance. Pela primeira vez em anos, não estava morrendo.
Você não sabe…
– Não, eu entendo. Não sei como é difícil ficar doente e tudo mais. –
Respirei fundo e sussurrei: – Queria que você ficasse melhor, Mina. Era
tudo o que eu queria. Durante anos. A mãe e o pai passaram todo o tempo
deles com você, e eu também, porque te amava. – Tentei respirar de novo,
mas não consegui por causa do
catarro que escorria pelo meu nariz. – Não deveria ter esses sentimentos
egoístas. Mas tenho. É por isso que sou horrível, como te falei.
– Vou continuar sendo sua melhor amiga, por mais horrível que você seja.
Sabe quando alguém diz algo muito doce e sincero, e você sabe que é
verdade, que ela não tem razão para
insuportável?
Mina fez isso. Eu deveria estar feliz porque minha irmã se dava ao trabalho
de ficar comigo – isso poderia ter apagado os dois últimos anos ou, pelo
menos, tê-los tornado um pouco menos terríveis.
Acho que nem mesmo Mina iria querer ser minha amiga se eu fosse
responsável por Diana se ferir. Ou
morrer.
Ou talvez ela ficasse do meu lado, sempre compreensiva, sempre leal – mas
não queria ser alguém que ela
tivesse de perdoar a cada segundo, todos os dias. Queria ser melhor do que
isso. Ser digna. Alguém ao lado de quem ela tivesse orgulho de ficar para o
resto da nossa vida.
Meu telefone tocou. Era uma mensagem. Sabia que não era Diana, e sabia o
que iria fazer antes mesmo de
– Me deixa adivinhar…
Abanei a cabeça.
50. Markos
Deixei meus irmãos e fui correndo para a loja de ferragens, o que não foi
fácil depois de duas semanas à base de salgadinho e cerveja. Quando
cheguei lá, era oficialmente o meio da noite e a rua estava deserta, as lojas
todas escuras e fechadas. Dava para ouvir o mar batendo na areia a alguns
quarteirões dali. Ari se levantou de onde estava sentada, no batente da loja.
Ela tropeçou e quase caiu, recuperando o equilíbrio com uma mão no
Achei que ficaria furioso ao vê-la novamente, mas senti alívio. Por um
segundo, não tinha importância que
ela tivesse esquecido Win – ela se preocupava com Diana tanto quanto eu.
Já era alguma coisa.
– É bem provável que eu leve. Caio mais do que um maldito anjo hoje em
dia.
Tirei as chaves do bolso e fiz sinal para ela sair da frente da porta.
vazia.
Nada bom.
– Diana! – gritei assim que passamos pela porta da loja. O cheiro estava
mais forte do lado de dentro e
havia alguma coisa no ar, algo que se prendia na garganta e nos fazia tossir
como se tivéssemos fumado uns cinquenta cigarros. – Diana, você está
aqui?
Ari se manteve na minha cola. Sabia que ela não gostava da loja e, pela
primeira vez, achei compreensível: o lugar parecia ameaçador no escuro da
noite, com os corredores irregulares se assombrando à nossa volta,
– Não. Não sei o que está acontecendo com ele. Descobri que a minha mãe
paga para uma velha hekamista
enfeitiçá-lo todo mês… faz anos que ela paga seis mil dólares mensalmente.
Não tinha me tocado de que era tão caro. O único feitiço que comprara fora
aquele da última noite de Win.
– Ele não pode ferir ninguém. Não conseguiu me bater. Mas, se é tanto
dinheiro, talvez seja para outra coisa também.
Eu me contraí.
pergunta antes, então me preparei para o que pudesse ser. – Você gosta
mesmo da Diana?
Ela não disse nada por mais alguns passos. Depois, tropeçou numa
mangueira de jardinagem solta e gritou.
– Desculpa – disse.
– Sim, eu entendi.
Ela não estava perdoada. Não ainda. Mas agora era mais fácil ficar perto
dela. Se eu bloqueasse uma parte
braço.
Abri a porta com a mão livre e ela queimou minha pele. A oficina estava
tão clara que precisei piscar
algumas vezes para enxergar. Não eram só as luzes fluorescentes, mas parte
das latas de lixo perto das
chamei de idiota, mas então percebi o que ela vira: Diana, atrás da grade
onde costumávamos deixar a solda.
Meu coração martelou contra as costelas, “não não não não não não não”, e
as prateleiras de madeira, as
ouvir nada do que ela estava dizendo por causa do barulho ensurdecedor.
– Estava procurando você – Diana disse para mim. – Você não estava
embaixo da árvore. Saí para te
procurar.
Me lancei para a porta onde sabia que estaria a chave. As latas de refugo
queimavam, e pude ver onde a ponta de uma pilha de tábuas de madeira
começava a ficar preta e esfumaçada. Escorreguei em alguma coisa
pegado.
ainda não estava em chamas. (Logo mais estaria. O lugar todo estaria. Com
Diana trancada na jaula.) Respirei fundo, tossindo com a fumaça, e tirei um
pé de cabra do quadro.
minha mão e caiu com estrondo no chão. Me abaixei para pegá-la de novo –
mal conseguia tirar os olhos de
na outra.
Cal parou a alguns metros de distância e colocou a lata no chão. Ele não
disse nada. Não prestei muita
Diana inspirou, e me virei para olhar para ela. Assim, não vi Cal pegar o pé
de cabra que eu tinha deixado cair e erguê-lo para me atacar. Não vi nada
além dos olhos arregalados de Diana em pânico, antes de sentir dor e de o
mundo todo escurecer.
51. Ari
– Cal, não! – gritei, mas ele já tinha partido para cima do irmão. O pé de
cabra acertou a cabeça de Markos com toda a força e ele desmaiou. Cal
deixou a ferramenta cair e cobriu os olhos com as duas mãos. O corpo
de Markos estava imóvel no chão, então Diana se ajoelhou atrás da grade,
chamando-o baixinho. Focos de
– Porque não podia fazer antes – Cal disse, com as mãos no rosto. – E é por
culpa dele que consigo
era que eu precisava abrir a grade e tirar Diana e Markos dali antes que o
fogo se espalhasse.
seguida.
Seus olhos…
Ele era muito parecido com Markos, mas estava destroçado. Como se, atrás
do olhar, um animal
Ele tentou respirar fundo, porém o ar ficou preso na sua garganta, e ele
engasgou.
– Sentia muita raiva – ele disse. Não dava nem para ver se sabia quem eu
era ou se entendia o que ele
próprio estava dizendo. – Raiva por causa do meu pai, de tudo… mas faz
nove anos que não sinto raiva. – Ele piscou, e o bicho selvagem que se
instalara dentro dele se remexeu, chegando ao seu rosto, com pura fúria e
cegueira. – Sabe o que é isso? Não sentir nenhuma emoção? Não ser capaz
de respirar, mas também não
suficiente da rua para identificar duas pessoas entrando pela porta aberta.
Uma delas usava um casaco longo e tinha cabelo curto.
das tábuas de madeira e das pilhas de refugo. As chamas ainda não tinham
se unido numa única fogueira.
Sentia frio até, mas imaginei que fosse por algum tipo de choque. O suor
gelava minha pele como cacos de gelo.
nome.
– Não… Ari... Não... – ela dizia. Estava ajoelhada atrás da grade, o mais
perto de Markos que conseguia
chegar, só que olhava para mim com a expressão mais triste que eu já tinha
visto.
– Não se preocupa – falei. – Nós vamos sair daqui. Echo chegou agora. Ela
vai nos encontrar. Está tudo
bem.
quando eu tinha oito anos. Diana nunca havia falado dele. Nós nunca
falávamos dele. Era coisa do passado.
– Vim aqui para tentar achar o Markos – Diana disse. – A porta estava
aberta, então entrei. Dava para sentir o cheiro de querosene, óleo ou seja lá
o que for… Vim até aqui atrás… Cal estava encharcando o lugar. Tentei
fazer com que ele parasse, ele ficou maluco. Me prendeu aqui.
lo.
– Por um momento, achei que fosse a amarração de Kay que o fazia agir
daquele jeito esquisito. Mas, se
fosse a amarração, ela teria nos levado a Kay, e ele estava nos mantendo
afastadas. Então achei que… o único jeito de interferir com uma amarração
é outro feitiço, não é? Ele devia ter outros feitiços.
– Sim – falei. – Markos contou que ele está tomando feitiços há anos.
pagando pelos feitiços de Cal havia anos – mas uma enorme pilha de
dinheiro mensalmente, não um
pouquinho.
Nove anos, Cal falara. Nove anos desde que ele sentira raiva pela última
vez.
Eu estava perto de entender algo maior que eu. Puxei o cabelo e apertei os
olhos.
Nove anos. Então ele tinha onze quando aquilo começara. Era apenas uma
criança. Tentei lembrar como ele
O chão se abriu sob os meus pés, mas, se olhasse para baixo, não cairia.
Não.
Nas aulas, antes de Rowena chegar, costumávamos tirar sarro das meninas
cheias de hematomas nos joelhos, nas canelas e nos quadris. As bailarinas
não podiam topar em mesas ou tropeçar em degraus. Às
não era a mesma coisa. Aquilo eram medalhas de honra. Havia uma
diferença entre hematomas comuns, sem
que Echo nos encontrasse – outra pessoa poderia ser a heroína e salvar todo
mundo. Depois, no dia seguinte, se eu ainda estivesse viva, poderia ir a uma
hekamista com os últimos centavos das minhas economias da
sorveteria e do dinheiro do seguro de vida dos meus pais – todos os fundos
da mudança para Nova York – e
pedir para que ela arrancasse essa lembrança da minha mente. Cal Waters.
O crime terrível que ele cometera.
O segredo que sua mãe e a mãe de Echo mantiveram por anos. Markos
caído no chão. Diana sussurrando seu
nome sem parar. O cheiro de fogo, tíner e óleo. Aproveitaria até para apagar
Kay.
desejar?
52. Markos
Enquanto estava apagado no chão da oficina, não sonhei. Mas também não
fiquei na mais completa escuridão.
Flutuei para dentro e para fora do meu corpo em ondas. Dentro – dor,
pânico. Fora – dormência, vazio.
Sabia o que era o cheiro da oficina, de madeira, óleo e carvão, e que algo
crepitava ardentemente.
Sabia que Ari estava ferida e imóvel, mas também que ela iria se levantar
alguma hora e que continuaria em frente, porque ela nunca deixaria Diana e
eu presos ali à mercê do fogo.
dela, que desmaiara por causa da fumaça. Então, a casa caíra em cima deles.
A pessoa que iniciara o incêndio não era um mendigo nem um ladrão, como
todos tínhamos imaginado, não era alguém aleatório e sem rosto.
A pessoa que havia feito aquilo era alguém que eu conhecia desde que
nasci. Um dos meus irmãos mais
Também sabia que não estava morto porque não via Win nem meu pai em
algum tipo de visão mística me
Eu precisava levantar.
Levanta, levanta, levanta, levanta!
Não consigo.
Para de ser tão infantil. Você sabe o que o seu irmão vai fazer agora?
Não.
Mas e Diana?
Diana.
Desculpa, Markos.
Eu estava errado.
53. Kay
Echo e eu entramos direto pela porta aberta da loja de ferragens. Mina ficou
esperando no carro, eu tinha
Segui Echo pelos corredores escuros. Ela não teria conseguido me seguir.
Para uma hekamista, esse era o
Pior do que isso era a sensação. Os efeitos colaterais desse novo feitiço.
Minha amarração tinha
Precisava ver Diana para ter certeza de que ela estava bem e que aquilo
tinha valido a pena. Echo insistira em vir junto. E, como eu ainda não
pagara a hekamista – eu só tinha os oitenta dólares do dinheiro que meus
pais tinham deixado para a pizza, e que Echo havia aceitado como caução –,
não estava em posição de discutir com ela. Depois que víssemos Diana com
nossos próprios olhos e Echo tivesse feito o que tinha vindo fazer, poderia ir
embora com Mina – Mina, que ainda conseguia me ver, Mina, que me
amava – e chorar para
sempre.
concussão, para dizer o mínimo. Seu crânio parecia quase flácido onde
havia sido atingido, mas torci para que fosse por causa do hematoma. Não
saberia o que fazer se Cal tivesse quebrado seu crânio. Acho que isso
Não disse nada disso em voz alta. Ninguém teria ouvido mesmo.
Ela não respondeu, e Diana encostou a testa num dos buracos da grade. Sua
respiração era fraca, sua testa
– Minha mãe fazia os feitiços para Cal – Echo disse, baixo. – A mãe dele
nos procurou quando eu tinha
onze anos e ainda nem era hekamista. Ela estava morrendo de medo. Nunca
tinha visto um adulto tão
assustado na minha vida. Não sabia o que estava acontecendo. Achei que
era bom estarmos ajudando aquela
pobre mulher.
– Do que você está falando? – perguntei, mas ninguém respondeu. Pensei
em começar a carregar Markos
para o carro de Mina, só que ele era pesado demais e, se seu ferimento fosse
grave, poderia ser pior movê-lo dali. Poderia deslocar alguma coisa que
devia ficar imobilizada.
Além disso, Diana continuaria presa naquele lugar. Olhei ao redor em busca
de algo que pudesse usar para
Echo disse.
Queria que ela parasse de falar e fizesse algo. Ela era hekamista, devia
haver algum feitiço para quebrar
nos deixasse gastar muito, e para ajudar uma família da comunidade que
precisava de nós. Acho que ela se
Enquanto ela falava, abandonei minha busca e voltei para o lugar onde
Diana estava. Pensei em sair
maneira mais firme e calma que pude. Torci para que o feitiço não
funcionasse por telefone ou que o serviço de emergência não se esquecesse
de mim assim que eu saísse da linha.
deu um tapa nela, o barulho fez com que todos – menos Markos – déssemos
um pulo. Echo levou a mão à bochecha, porém não revidou.
ouvida e respondida.
– Entre outras coisas? – Ela tentou respirar fundo. – Nove anos atrás, Cal
botou fogo na casa de Ari.
– Ah! – eu disse.
Markos, que estava caído no chão, por Diana, ainda presa, e por todos nós,
abalados pelos feitiços.
Ela não olhou para mim. Deve ter esquecido que eu estava lá. Isso também
doeu muito, mas eu precisava
passar por isso. Esperaria com Diana até ter certeza de que ela ficaria bem.
54. Ari
A pele de Echo, sempre pálida, parecia frágil e transparente como vidro sob
a luz intensa da lâmpada da
destacar mais. Ela engoliu em seco e não tirou os olhos dos meus.
– Eu… Você não entende. Eu tinha passado quase vinte anos da minha vida
sozinha. Win era importante
para mim. Eu estava… brava… pelo que você tinha feito com ele.
– Por que todo mundo insiste em dizer que fiz isso com ele? – perguntei. –
Fiz isso comigo mesma.
– As coisas que você faz consigo mesma têm efeitos nas outras pessoas –
Kay disse de onde estava
ajoelhada, ao lado de Markos e Diana. Não tinha visto que ela estava lá, e
era difícil me concentrar nela. Até sua voz parecia abafada.
– Fiz algumas coisas ruins e outras boas. Mas o mundo não é justo.
– Nada do que eu possa dizer fará com que isso deixe de ser verdade. – Ela
colocou a mão num dos bolsos
– Nada está bem. Win continua morto. Seus pais continuam mortos. Minha
mãe vai morrer daqui a algumas
semanas, já que não tenho dinheiro para deixá-la e arranjar um clã novo. –
Ela chacoalhou o saquinho, o queijo manchou o plástico. – Mas você pode
dançar de novo, se quiser. Prometo.
Dei um passo para perto de onde ela estava, ao lado da porta da oficina.
Echo não recuou, só ficou com o
Tirei o foco dela e olhei fixo para a loja toda destruída, como se tentasse
limpar tudo aquilo com a força da mente. Queria apagar o que estava diante
de mim. Negar a verdade.
Lá estava: aquilo em que eu vinha tentando não pensar. A coisa que mais
queria que não fosse verdade, mas
Tinha muito tempo. Hoje. Aquele tempo todo. Disso eu não podia fugir.
Não tinha como aguentar. Eles
ossos e sangue.
uma delas, Cal saía correndo da casa e se escondia. Ele estava escondido
desde então. Até agora.
55. Win
Minha última noite na terra, um sábado, começou como muitas outras. Fui
buscar Ari e Markos, então
O dia tinha sido ruim. Eu não tinha saído do quarto, nem mesmo para
comer, e sentia a língua inchada e
pesada na boca. Meu estômago roncava de fome, meu cérebro parecia feito
de lama. Como a areia molhada
que entrava entre os dedos dos nossos pés enquanto descíamos a praia.
– Por que não estamos numa lanchonete nem no porão limpo e seco da casa
de alguém? – Ari perguntou.
Marcos lançou um olhar para ela, mas parecia um olhar clínico, como se
estivesse examinando o diagrama de
Ela suspirou e colocou meu braço sobre seu ombro. Conhecendo Markos,
sua surpresa poderia ser
do sol não foi nada sutil. O céu se tornou cada vez mais cinza até ficar
completamente preto, então Markos acendeu uma lanterna.
– Era uma noite escura e chuvosa – ele disse, apontando a luz para o seu
queixo.
Ela entregou a lanterna para mim e olhei para a lâmpada. Era a minha vez
de continuar a história de terror, mas só conseguia pensar na terrível
verdade, por isso não disse nada. Apontei a luz para Markos: o bom e
Depois para Ari: a boa e velha Ari, engraçada, dedicada e forte, com a pele
ainda mais iluminada pelas gotas de chuva que caíam sobre ela e os olhos
semicerrados por causa da luz da lanterna. Não conseguia ver naquele
Naquele instante, olhei para o rosto deles e senti seu amor como um peso.
Como se tivessem instalado
aumentou de repente, como se, agora que a luz não impedia, ele pudesse
retumbar. As dunas pareciam
um grito e segurei sua mão, mas não para confortá-la: para me acalmar. A
menina que se aproximava da nossa rodinha era Echo.
– Ei, você já está aqui... – Markos disse. Na mesma hora, ele assumiu o tom
que usava com garçons,
Ele deu risada e lhe tomou o saco, mas ela não pareceu achar graça.
Continuou olhando fixamente para
– O que é isso, Markos? – Ari perguntou. Ela não parecia muito contente.
Nós ficamos observando-o, todos nós, até mesmo Echo. Ele cruzou os
braços diante do peito, esperando.
No começo, aconteceu tão devagar que nem notei. Mas então ouvi o grito
abafado de Ari e percebi que
Quando alcançou uns três metros, soltou um grito e passou por sobre nossas
cabeças, nadando pelo ar.
– Você só tem alguns minutos, então não sobe alto demais – Echo disse, só
que Markos já estava subindo,
– Isso é seguro?
Echo deu de ombros.
– Vai deixar vocês imunes à gravidade por algum tempo. Nada disso me
parece seguro.
– E os efeitos colaterais?
Echo a observou. Por um instante senti um medo terrível de que ela fosse
mentir para Ari a fim de magoá-
namorada –, mas não achei que isso tivesse importância. Ela não faria uma
coisa dessas, mesmo se tivesse
ciúmes.
Markos deu uma cambalhota no ar, então Ari voltou os olhos cintilantes
para mim.
Ela girou no céu. Já estava mais graciosa do que Markos. Seu treinamento
de balé ficou evidente enquanto
girava e rodopiava na chuva. Abri o saco, mas Echo o tirou das minhas
mãos antes que pudesse pegar o
último pãozinho.
– Que é isso?
– Você já tomou seu outro feitiço? – ela perguntou baixo. Fiz que não. –
Então não pode fazer isso, Win. Os efeitos colaterais…
– Ah, vá! – eu disse. Foi meio que uma surpresa querer voar. Fazia muito
tempo que não queria nada. – Vou
– Você falou que não prejudicaria os efeitos colaterais da Ari. Por que
comigo é diferente?
Ela olhou para mim por um longo momento. A chuva colava seu cabelo na
testa, fazendo seus olhos
parecerem maiores.
Estendi a mão para pegar o saco, mas ela virou mais rápido do que eu na
areia úmida. Markos gritou e
– O feitiço faz você não pesar nada fisicamente. Mentalmente, traz você
para baixo. Bem para baixo – ela
disse, alto o bastante para Markos ouvir, mas olhando nos meus olhos.
– O que vou dizer para eles? – murmurei. Ari passou por cima da minha
cabeça, tocando-me de leve com
os dedos dos pés. Markos xingou mais alto, uma série de palavrões
ininterruptos.
– Não é problema meu. Não posso deixar você comer isso. – Ela
chacoalhou a sacola.
– Pelo amor de Deus, me mata! – Markos berrou. Echo olhou para mim,
enfática.
Ari desceu, graciosa como sempre, até os dois pés tocarem a areia. Então,
ela tremeu e caiu de joelhos.
Muito devagar, foi abaixando a testa até pousá-la no chão, como se
estivesse rezando.
– Ari? – eu disse.
arqueadas e meu maxilar, dolorido. Estava com raiva. Não de Echo por me
negar o voo. Dos meus supostos
por causa do Balé de Manhattan, que pelo menos era sincera, apesar de não
ter durado muito. Aquilo era uma paródia do que eu estava vivendo dia a
dia. Sabia que eles não estavam fazendo de propósito, mas não
E o pior era que tinham conseguido voar. Eu não pudera voar em momento
algum, então por que me sentia
a mão.
– Preciso ir pegar.
– Vamos lá então.
– Sério, sua voz é muito irritante. Vai pegar logo seu troço.
– Dá para calar essa boca? – Markos perguntou, depois tossiu tanto que
quase vomitou de novo.
– Posso ficar com eles. Vai pegar e volta para cá. – Ela sorriu e me abraçou
muito rápido, um clarão de
braços na escuridão.
– Sai daqui! – ela berrou, depois cobriu a cabeça com os braços e gemeu.
Não tentei de novo. Aquela era a despedida que eu achava que merecia, por
mais que, em algum ponto
Fui andando para a caminhonete no escuro. Ela parecia estar mais longe do
que devia, como se o
dirigido centenas de vezes antes. Era uma noite chuvosa, sim, mas a via
estava vazia. Nenhum outro carro.
Essa é uma maneira como aquilo pode ter terminado. A outra é um acaso do
universo: algo tão pequeno a
volante para a esquerda, para fora da pista, contra uma árvore. Rumo à
morte.
houvesse algum lugar para ir depois daquilo – algum lugar onde eu fosse
leve, despreocupado, livre –, antes que a caminhonete batesse.
Uma das partes mais estranhas da depressão é a maneira como ela afeta a
memória. Quando estava
Deitar num saco de dormir no quintal dos fundos. Não importava de que
casa, porque o céu era o mesmo
Por um segundo, me lembrei de tudo isso e amei tudo isso com todo o meu
coração.
E, então, morri.
56. Ari
Não era um feitiço para esquecer, como eu tinha desejado, e não consertaria
nada do que Cal fizera, mas já era alguma coisa. Me tiraria daquela cidade.
para Nova York e ficar no sofá do nosso apartamento miserável. Deve ter
um bando de hekamistas por ali,
certo?
– Porque senão tomar esse feitiço seria caridade. E não preciso da sua
compaixão.
Esse não era o único motivo, claro – havia o fato de que ela provavelmente
morreria se eu não a ajudasse, e o fato de que eu lhe devia em dobro por
isso, pois tinha roubado o dinheiro de Win. Havia também o fato de eu
gostar dela, mesmo sem querer. Ela guardara o segredo de Cal, tentando me
chantagear, mas também
tentara ajudar, por mais que não tivesse motivo para isso. Além do mais, ela
gostava de Win, e eu já tinha gostado dele, então devia ter bom gosto.
Ela olhou para mim por um longo momento. Por um segundo, não nos
preocupamos com Cal, em algum
lugar da loja, Diana, na jaula, ou Markos, ainda caído no chão. Ela sorriu,
hesitante, como se eu pudesse
mudar de ideia.
Kay empurrou Echo contra uma pilha de baldes e me jogou no solo, tirando
o saco da minha mão.
Bem na hora em que a prateleira atrás de mim – onde eu estava pouco antes
– rangeu e tombou, fazendo
Quando eles pararam de rolar, tirei Kay de cima de mim. Echo gemeu e se
levantou.
– E muito obrigada por isso – Kay disse, frisando cada palavra com rancor.
– Mas não estou falando de mim. Acho que tem um feitiço afetando Echo.
Uma amarração. Uma que a mãe dela deve ter lhe dado, talvez
anos e anos atrás. Pensa um pouco: é por isso que Echo não consegue que
ninguém lhe pague pelos feitiços
perto da mãe.
– Ela deve ter pensado que estava protegendo você – Kay disse.
– Espera… espera um pouco – falei. – Tudo que fiz foi oferecer um sofá em
Nova York se o feitiço
parei, olhando para o saco plástico que ainda estava nas mãos de Kay.
Ela já tinha chegado perto de ir embora antes. Tinha me dito que estava
esperando que Win lhe pagasse na
– Ah... – Seu queixo tremeu, o que a fez parecer dez anos mais jovem. –
Win estava indo buscar o dinheiro
uma análise forense para nos contar a verdade. Contudo, parecia ser
verdade, como o fato de Cal ter botado fogo na minha casa, da mesma
forma que a amarração de Kay explicava tanta coisa sobre minha amizade
com
ela.
– Tudo o que fiz saiu pela culatra – Echo disse. Ela olhou para as próprias
mãos e continuou em voz monótona: – Todos os feitiços que já realizei só
pioraram as coisas.
Eu conhecia essa sensação. Estava prestes a dizer que a culpa não era dela e
que eu tinha tomado muitas
decisões erradas que também nos haviam levado até ali, mas ouvimos as
sirenes à distância, então Kay nos
Com aquele rosto inexpressivo. Ele esquecera muita coisa – e agora tudo
surgia de volta de repente, todos
Ou talvez ele sempre tivesse sido um pouco maluco e essa fosse sua
verdadeira personalidade, que
57. Kay
precisou piscar algumas vezes até que seus olhos – estranhos e desvairados
– se focassem em mim.
– Você não devia ter me enfeitiçado – ele falou, com a voz distante, como
se estivesse se lembrando de um
sonho.
– Desculpa. Fiz merda. Achei que ficar sozinha era a pior coisa que poderia
me acontecer, mas não era.
Não importava que eu estivesse sendo sincera, não só para Cal como para
Ari e Diana também, porque ele
não era obrigado a ouvir, e elas também não. Ele me empurrou com força e
correu de uma ponta a outra da
Segurei o dele junto com o feitiço de Ari no saco plástico. Talvez meu
feitiço antiamarração não o deixasse ver que eu estava com o isqueiro.
No entanto, ele não demoraria muito para descobrir algo que também
funcionasse. Pensei em sair correndo,
só que não podia deixar todos ali. Cogitei tentar fazer com que Cal desse
dinheiro a Echo para que
Ari se afastou de Cal enquanto ele corria pela oficina e Echo se manteve na
frente dela de forma protetora.
que ele não estava simplesmente desenfreado, mas que sabia o que fazia e
não queria que saíssemos ou
Enquanto corria perto do corpo imóvel de Markos, Cal derrubou uma lata
de fluido de isqueiro. O líquido se espalhou rapidamente, infiltrando-se por
baixo de Markos e sob a beira da grade de Diana. Ela deixou que o líquido
ensopasse os joelhos dos seus jeans.
Cal deu um grito que mais parecia um uivo e apertou um botão na altura do
seu joelho, preso a um cano de borracha, bem atrás da gaiola onde Diana
estava presa. O cano terminava num gatilho manual e num gargalo
fino como o caule de uma flor. Cal o apertou uma vez, duas vezes, até que a
flor se abriu em chamas. Azul e amarela. Forte demais para se olhar.
chão. Só que ele era mais alto que eu e mais forte também, e eu não queria
machucá-lo – só detê-lo. Consegui jogá-lo contra a parede. Ele derrubou a
solda, que se apagou antes que tivesse a chance de tocar o fluido de isqueiro
no chão, porém pegou uma tábua de madeira recostada e, enquanto eu o
arranhava, chutava e me
debatia, a tábua me atingiu no tronco. Caí de joelhos. Em seguida, ele me
acertou no peito com um estalo.
minhas costelas quebradas, nem a dor no tronco, nem teria que ver Cal
botar fogo na loja com todos nós
dentro dela.
Em vez disso, senti o fluido de isqueiro cair ao meu redor. Entrando pelas
minhas narinas. Fazendo arder
meus olhos.
Ari gritou para Cal, gritou para chamar o resgate que estava em algum lugar
da loja, implorou para que ele não fizesse aquilo, afirmou que íamos
esquecer, que todos tomaríamos um feitiço com ele para fazer as coisas
voltarem a ser como antes, se era isso que ele queria.
Não podia ver Ari ou Echo. Markos continuava deitado ao meu lado, sem se
mover. Diana, do outro lado
ar.
Me sentia vazia, capaz de flutuar, como se não restasse nada de mim além
de uma casca de papel. Não faria
mal morrer queimada. Uma explosão e depois nada, feito um jornal velho.
Não dava para contar com eles na hora do aperto. Os feitiços sempre
achavam uma forma de nos enganar,
de usar nossas fraquezas contra nós, de criar a pior solução possível para o
nosso problema. Pareciam
fechar os olhos.
58. Ari
Ele segurava o Zippo a uns trinta centímetros da cabeça de Kay, que estava
encharcada de fluido de
– É… é um feitiço – falei.
– Vai fazer você esquecer – eu disse, com mais firmeza. – Como esqueci do
Win.
Ele pegou o saco. Algo brilhou nas profundezas de seus olhos vazios e
inexpressivos. Algo vivo – algo que
Ele ficou olhando para o feitiço. O brilho ardente da oficina iluminou seu
rosto e a esperança, o desejo, a raiva e o medo estampados nele.
Atenção...
Olhei para Echo, ajoelhada diante de alguma coisa, murmurando algo para
si mesma.
Kay virou a cabeça e, com dificuldade, conseguiu rolar de lado para olhar.
de angústia e alívio. Ele abriu o saco e jogou todo o seu conteúdo na boca.
Mastigou e engoliu.
joelho, que se torceu embaixo de mim. Algo estalou. A dor subiu pelas
minhas coxas até as costas, mas eu me levantei com dificuldade e me lancei
sobre Cal, jogando-o no chão. Cravei os dois joelhos, mesmo o que eu
Com um silvo, o fogo se acendeu onde ele estava. Ele segurava o isqueiro –
era uma chama viva. Markos
59. Markos
Inspirei.
Calor e chamas. Uma serra de mesa pegou fogo, depois uma pilha de
madeira compensada. As chamas
lambiam um lado da minha cabeça, meu peito e minhas pernas, mas eu não
conseguia me mover.
Expirei.
Inspirei.
Minha cabeça doía. Cal tinha me batido com força ali. Meu irmão.
Expirei.
Inspirei.
coração de uma criatura muito maior do que nós. No canto, um único ponto
de luz iluminava Echo, com o
depois, a sala ficou mais quente e iluminada do que nunca. Echo enfiou o
papel encharcado de sangue na boca e o engoliu.
Expirei.
60. Kay
– O que você fez? – Ari perguntou para Echo enquanto cravava os joelhos
nas costas de Cal, segurando seus
braços.
Piscar exigia esforço. A fumaça ardia. Prestes a morrer queimada, em
algum canto remoto do meu cérebro
Ela pareceu ter ficado um pouco zonza, mas logo começou a agir. Correu
até a grade e arrancou o cadeado
– Você aguenta levar Cal? – Echo perguntou para Ari. Ela fez que sim,
embora, ao se levantar, puxando Cal
para cima, só conseguisse colocar peso sobre uma perna. Echo se voltou
para Markos, apagou as chamas que
cobriam o peito dele com seu longo casaco preto e ergueu-o no ombro com
facilidade. Ela saiu dali em
direção à porta da oficina. Mancando, Ari puxava Cal, que não parava de
gemer atrás dela, enquanto Diana
arrastava os pés no fim da fila. Para longe de mim e daquela sala infernal.
A dor que sentia no peito me fez soltar um grito. Não consegui tomar
fôlego.
o som do quebra-quebra de Echo. Ela não tentou fazer voltas e curvas, saiu
derrubando estantes aos chutes e despedaçando prateleiras, tomando o
caminho da porta. Atrás dela, Ari arrastava Cal, e eu e Diana ajudávamos
uma à outra a abrir caminho o mais rápido possível sobre as montanhas de
tralhas. Passamos pelo resgate,
mas Echo não parou, e eles nos seguiram, aos gritos, perguntando se
estávamos bem, tentando entender de
61. Ari
levou para uma ambulância enquanto ele chorava, com as mãos na cabeça.
Fiquei olhando para ele, e a
paramédica que me atendeu precisou se repetir meia dúzia de vezes até que
eu conseguisse responder.
visível.
novamente. A dra. Pitts diria que eu estava evitando meu trauma. Ou que
era saudável seguir em frente. Seja como for, ela teria muito a dizer na
nossa próxima consulta.
os restos do feitiço que Echo havia preparado para mim, aquele que Cal
tinha tomado porque eu dissera que o faria esquecer. Meu feitiço. Minha
graciosidade. Meu futuro. Não sabia quanto tempo duraria – ou mesmo se
havia poder suficiente nas migalhas restantes para causar alguma coisa –, só
que não podia deixá-las ali.
mão nas costelas, respirando com dificuldade, e Mina segurava sua mão,
encostada no ombro da irmã.
– Vai chegar a minha vez – ela falou, arfando. – O que tinha no feitiço que
ele tomou?
– E você? – perguntei.
ombros. Kay estendeu o braço para sentir o pulso de Echo e eu peguei a sua
outra mão. O fogo fez as janelas da loja estourarem com uma explosão, mas
ela não se assustou. – Echo!
Seus olhos não se abriram, contudo ela conseguiu murmurar alto o bastante
para que eu ouvisse:
– Não tem problema. Era tarde demais para mim e para minha mãe mesmo.
Ainda mais com a amarração.
– Echo, não…
– Fala para a minha mãe que sinto muito, mas que era tarde demais.
– Não, não é – eu disse. – Echo, escuta: você ainda pode vir para Nova York
comigo. Leva sua mãe
aqui para ser interrogada, é melhor se levantar. Eles vão te achar, vão
descobrir a verdade, colocar você e sua mãe na cadeia. Por favor, Echo…
você precisa fugir. Echo… vamos lá…
Nenhum raio partiu do céu para me destruir. Meu coração não parou. E foi
isso que realmente me deu
medo.
Tentei correr ao encontro de Jess, mas meu joelho mal aguentava me manter
em pé. Ela chegou até mim e
– Desculpa – eu disse.
– Chhhh.
desastrosos.
62. Markos
faca de metal quente de tanta dor.”) Tentei voltar a ficar inconsciente, mas
era tão inútil como dar de cara com a parede. Então, em vez disso, abri os
olhos.
– Oi – Diana disse.
– Você está bem – falei com dificuldade. Minhas cordas vocais ardiam.
Ela segurou minha mão. Senti tanta dor que parte da minha visão ficou
nublada, mas nunca teria dito isso
– Cal? – tentei perguntar, sem conseguir emitir nenhum som. Não estava
conseguindo ouvir direito, por
incêndio criminoso? Pela casa de Ari, nove anos antes? O que quer que
acontecesse, senti alívio, não só por ele ter sido pego e nós termos
conseguido fugir, mas também por estar vivo. A morte é permanente. Não é
Win?
Queria pedir desculpas para Diana e dizer que, mesmo se ela nunca mais
quisesse me ver de novo, eu
continuaria arrependido, mas não consegui abrir a boca, então apertei a mão
dela.
Win?
decidi ficar ali deitado e descansar, porque todos os outros lugares eram
barulhentos demais. Mas mantive a porta aberta, para poder sair quando me
acalmasse.
Adeus, Win.
presa numa jaula e quase morrera queimada. Melhor que o resto de nós,
com certeza.
Não sabia dizer quanto tempo se passara desde a última visita de Brian, Dev
e da minha mãe. Brian estava à paisana, mas com sua cara de policial, sério
e vigilante. Dev estava de pijama e olhava para Brian e para nossa mãe com
o rosto perdido. Minha mãe – eu mal conseguia olhar para ela. Rios de
lágrimas desciam pelo seu
rosto agoniado. Diana deu uma olhada em todos nós e saiu discretamente do
quarto, fechando a porta com
– Ai, meu Deus, Markos! – minha mãe disse, chorando mais ainda quando
olhou para os curativos, o leito
do hospital, a intravenosa na minha mão direita. – Mandei você não falar
sobre o feitiço. Implorei. Por que não me deu ouvidos?
– Estou falando do incêndio de nove anos atrás. Aquele que matou pessoas.
arrancado Cal de nós, Markos. Ele teria crescido na detenção juvenil. Teria
se transformado, se destroçado.
valeu de nada. Ele se lembrou. Contou para o resgate no caminho para cá…
está falando para as enfermeiras, para todo mundo. Tudo o que fiz por ele…
por todos vocês… não valeu de nada.
– Olha para mim, mãe. – Ergui a mão quebrada e tentei apontar para minhas
queimaduras. – Ele fez isso
comigo.
– Eu também teria salvado você, sabia? Teria feito o mesmo por qualquer
um de vocês.
– Eu dei uma vida a ele. Dei uma vida a todos vocês. – Ela continuava
chorando, o ranho se misturava às
lágrimas que pingavam na sua blusa. – Por que você tinha que estragar
tudo?
Ela cambaleou, e Dev, Brian e eu, por instinto, mesmo deitado, nos
movemos para ajudá-la a se equilibrar.
Estava chorando demais para continuar falando e se deixou levar para fora
do quarto por Dev, enquanto eu
– A mãe vai ser processada por obstrução à justiça – ele disse, como se
falasse sozinho. – Eu pedi
demissão.
– Eu não pensei…
– Claro que não. – Quando ele se voltou para mim, seu rosto tinha perdido
parte da severidade policial. –
– Isso não é…
– Claro que você quer saber agora… que alguma coisa aconteceu. –
Respirei o mais fundo que consegui e
tentei falar rápido, antes que ele pudesse me interromper. – Só que, naquele
momento, quando achava que eu estava triste e nervosinho por causa do
Win, você só queria que eu calasse a boca e agisse como um Waters
descolado.
– Eu queria que você fosse feliz. É o que todo mundo quer para sua família.
– Sim. Exatamente.
– Você sempre teve raiva de nós. Nunca entendi por quê. Você não teve uma
vida ruim, sabia?
Quis dizer a Brian que a vida que ele e meus outros irmãos me
proporcionaram nunca fora verdadeiramente
olhos, o que não impediu que eu ouvisse sua voz, que continuava
perturbadoramente calma. – Você realmente
não tem ideia do que fez, Markos. Nós protegíamos uns aos outros. Você
acha que alguém vai te proteger de
novo, depois dessa? Depois do que fez comigo, com Dev, com a nossa mãe
e com Cal?
Continuei com os olhos fechados. Era mais fácil não olhar para ele. Pensar
nele apenas como uma voz.
Continuei de olhos fechados até ouvir seus passos e a porta se fechar. Não
tinha como saber se esse era
mesmo o fim – se tudo acabara, se eu não era mais um Waters, se não nos
falaríamos mais. Eu havia pedido
Seus olhos passaram pelo meu rosto, por minhas queimaduras sob os
curativos. Provavelmente cheias de
entendem.
– Estou com medo porque – ela engoliu em seco – vou confiar em você de
novo, e isso é assustador.
Prendi a respiração e consegui erguer o braço para que ela pudesse encostar
a cabeça numa parte não
queimada do meu peito. Ela devia estar ouvindo meu coração bater
descontroladamente, porque, pela primeira vez em horas, senti o cheiro de
algo que não era fluido de isqueiro, carne, gaze e hospital. Senti o cheiro do
seu cabelo.
inesquecível, e preferi não fazer nada. O destino da nossa relação estava nas
minhas mãos. Eu podia fazer
A diferença era que agora não era apenas o destino dela que estava em jogo.
Era o meu também.
Ela deve ter entendido tudo, porque sua respiração se normalizou e ela se
acomodou mais confortavelmente
no meu peito.
Sofria por não poder contar nada daquilo para ele. Porque ele não estava ali
para ver. Era terrível não poder conversar mais com ele.
Eu o amava muito. Nunca imaginei que teria que crescer sem ele.
Será que era um covarde por admitir isso? Não sei. Na verdade, me sentia
corajoso, sem precisar mais
manter as aparências.
Chorei sobre o cabelo vermelho de Diana, com o coração partido pelo peso
da morte de Win, e ela não se
63. Kay
ninguém notasse. Com meus efeitos colaterais, sentia todas essas coisas
cem vezes mais intensamente.
Eu poderia contar que a mãe de Echo perdeu a vitalidade rapidamente
depois da morte da filha. Ela não
conseguia mais fazer feitiços, sentia muita dor e então parou de comer. Ela
morreu antes que os turistas
Eu poderia contar que Diana e Ari ficaram tão gratas por eu ter salvado a
vida delas que as coisas entre nós voltaram a ser exatamente como antes –
não, melhor –, mas isso seria mentira.
Só que não estou sozinha. Tenho Mina. Mina me ama, por isso consegue me
ver, apesar do feitiço. Ela
– O que é mais um ano? – Ela deu risada e, pela primeira vez, entendi o que
ela queria dizer. Algumas coisas são mais importantes do que planos ou
previsões. Algumas coisas precisam ser feitas agora.
verdade. Ela me dá o que pode, e não espero nem peço nada além disso.
Tudo bem. Tudo o que sempre quis foi ter duas boas amigas.
O lado bom dos meus efeitos colaterais é que não só os sentimentos ruins
são ampliados. Quando estou
feliz, o que não é raro, posso sentir a felicidade de maneira mais intensa e
clara do que antes. Quando me acontecem coisas boas, consigo sentir até a
última gota delas. E acontecem coisas boas o tempo todo. Até
mesmo comigo.
da oficina. Minha mãe, meu pai, Mina, Echo, Markos, Ari e Diana. Eu sou a
única pessoa que pode salvá-los, e a toda hora caio em armadilhas que
quebram minhas pernas, ferem meus pulmões e me fazem correr em
64. Ari
Uma semana depois do incêndio das Ferragens Waters, fui ao funeral com a
mãe de Echo, Diana, Markos,
Kay, Mina e Jess. Nenhum de nós sabia como deveria ser um funeral
hekamista, e a mãe de Echo não
conseguiu nos explicar, então os pais de Kay pagaram por algo simples na
Igreja Unitária da cidade.
que havia arrancado uma memória terrível e tinha feito meu punho doer.
Assim como no funeral de Win, as
pessoas enchiam a igreja. Eu podia ter me sentido só, mas a vida de meus
pais não fora solitária.
Contudo, nós éramos os únicos que estavam ali por Echo, e a maioria de
nós só a conhecera nos últimos
Me peguei desejando que Win estivesse ali. Não por mim, claro, mas por
Echo. Alguém de quem ela
cabelo queimado num estilo curto e irregular, e ele estava mais vermelho do
que nunca. As cicatrizes de
que saíra do hospital. Diana me contou que as coisas estavam tensas com os
irmãos Waters, e que a mãe dele corria o risco de ser presa. Jess havia
descoberto que eu poderia processar Cal no tribunal civil por danos morais,
mas a família Waters não tinha dinheiro, tudo fora entregue a Echo e a sua
mãe ao longo dos últimos nove anos. E eu não queria abrir um processo.
Acreditava que tinha sido um acidente do passado e que o
choque de se lembrar de tudo de uma vez levara Cal a fazer o que tinha
feito na loja de ferragens. Ele parecia já estar sofrendo o bastante, tendo de
conviver com sua mente perturbada. Depois de sair do hospital, foi
Diziam que a família Waters se mudaria da cidade assim que fosse possível,
só que Markos queria ficar. Eu
e ele não estávamos conversando muito – ainda não –, e a única coisa que
ele me falou no funeral de Echo foi pelo canto da boca, enquanto Diana
estava no banheiro.
No começo, pensei que ele queria dizer que havia entendido por que eu
tomara o feitiço para apagar Win, mas nós já havíamos tratado desse
assunto – da minha fraqueza generalizada, de não me importar o bastante
com Win a ponto de me lembrar dele. Quando pensei melhor, achei que ele
estava se referindo a Diana,
tentando dizer que entendia por que ela era minha melhor amiga. Então
comecei a pensar que talvez fosse algo mais profundo que isso. Talvez ele
entendesse minha relação com Win, por que Win queria ficar comigo, por
Mas eu entendia por que Diana o amava. Ao lado dela, Markos mostrava
todas as qualidades: ele era
Depois do funeral, ele foi descansar na casa de Diana e nós duas ficamos
sentadas no seu quarto, como
havíamos feito tantas vezes antes. Ela estava me fazendo rir com algo que
Markos lhe dissera, de repente
soltei:
– Você pode comprar outro feitiço como o que Echo fez para você.
– Sim. Mas um feitiço e uma cirurgia de joelho não são tanta coisa assim.
Faz anos que você ensaia. E o
Balé de Manhattan…
– Se Win não tivesse morrido, acho que eu não teria ido para Nova York.
Teria continuado aqui para ficar
com ele.
acho que queria… se aproximar das pessoas. De outras pessoas. Ela nos
ajudou. Me deu o que eu disse que
segredos dele, então eu guardaria o dela. – Acho que ela se sentia culpada
em relação a Cal também.
– Você não precisa se sentir culpada. Se tomar outro feitiço, todo mundo vai
entender.
– Sim, talvez.
últimos momentos dos meus pais na terra. O ano perdido em que eu estivera
apaixonada por Win. O tipo
Resisti à vontade de fazer que sim, dar risada e dizer “claro”. Em vez disso,
pensei com cuidado no que
realmente sentia.
– Muitas pessoas que não sabem dançar vão para Nova York o tempo todo.
– Não joga o Markos na minha cara. Nunca fiz isso com você quando
estava com o Win.
tem… seu pais. Você se lembra dos alunos da escola, dos professores.
Minhas memórias estão todas
confusas.
– Eu já ia mesmo. Era para ter ido, na verdade. Que diferença faz se é para
o Balé de Manhattan ou não?
Ela abriu e fechou a boca, depois secou os olhos e colocou as mãos nos
quadris.
– Me dá um tempinho pra arranjar um motivo.
certo – a abracei e não a soltei. Não sou o tipo de pessoa que abraça, então
não sabia o segredo desses gestos até aquele momento: eles não são o
esforço de uma pessoa só. Uma abraça a outra.
Talvez fosse idiotice abandonar Diana agora que eu finalmente estava sendo
sincera com ela. Parte de mim
achava que era suficiente me apoiar nela e deixar que me ajudasse a passar
por aquilo. Só que uma parte maior sabia que, mais do que tudo, eu
precisava de uma tela em branco – e sem usar o hekame desta vez.
– Do Cal?
Achava que nunca mais decidiria esquecer alguém. Não agora, sabendo o
que isso custava: para a
hekamista fazer o feitiço, com sua comida, seu sangue e sua intenção, por
todos os outros, que precisavam
carregar a dor sozinhos, e por mim mesma – pela perda não só da dança,
mas também da conexão entre o que
eu era e o que viria a ser.
Até entrar nas Ferragens Waters pela última vez, acreditava que a morte dos
meus pais estava guardada
destroçada para sempre. Mas talvez tivesse me tornado uma pessoa melhor.
Não “boa” ou “perfeita”. Melhor.
Mais completa.
Respondi a verdade:
– Não sei.
Só que não saber não fazia com que me sentisse presa ou sem controle. Me
tornava livre.
cheiro estranho que sobe pelos ralos. Mas sua escada externa dá para o
terraço, onde deixaram uma cadeira
de jardim enferrujada.
Subo até lá com as pernas trêmulas e me sento na cadeira. O rio East fica
bem à minha frente, do outro
esgoto e lixo. Tenho lido bastante – a leitura me faz esquecer que meu
corpo não colabora – e escrito para Diana e para Kay, só que à noite subo
até aqui para pensar. Não posso mudar as decisões que tomei, nem
Vou ser como o Markos, uma cretina com coração de ouro – ou pelo menos
de prata?
Agradecimentos
Agradeço à minha família, que espero que aceite este livro como um pedido
de desculpas pelos muitos anos
que pulei na frente do computador para impedir que lessem o que eu estava
escrevendo; aos meus amigos,
mundo; à minha agente, Tina Wexler, e à minha editora, Donna Bray, pelos
conselhos perspicazes, atentos e, muitas vezes, simplesmente corretos a
cada passo do caminho; a todas as outras pessoas da Balzer +
de ler uma palavra sequer. Quem precisa de uma hekamista quando se tem o
Kyle?
Copyright © 2015 M aggie Lehrman
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada
ou reproduzida – em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico
–, nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados sem a
expressa autorização da editora.
1ª edição, 2017
e-ISBN 978-85-8419-051-5
2017
www.edicoespavana.com.br
#AGarotaQueNaoQueriaLembrar
/EdicoesP avana
Document Outline
Quarta capa
Sobre a obra
Sobre a autora
Folha de rosto
Dedicatória
Sumário
Parte 1. As hekamistas
1. Ari - Cinco dias depois
2. Kay - Cinco meses antes
3. Markos - Um dia antes
Parte 2. Efeitos colaterais
4. Win
5. Ari
6. Markos
7. Kay
8. Ari
9. Win
10. Ari
11. Kay
12. Markos
13. Ari
14. Markos
15. Win
16. Kay
17. Ari
18. Markos
19. Win
20. Kay
21. Ari
22. Markos
23. Win
24. Markos
25. Ari
26. Kay
27. Markos
28. Ari
29. Kay
30. Markos
Parte 3. Os preços
31. Kay
32. Ari
33. Win
34. Kay
35. Markos
36. Ari
37. Kay
38. Markos
39. Win
40. Ari
41. Kay
42. Markos
43. Win
Parte 4. Todas as coisas
44. Ari
45. Markos
46. Kay
47. Ari
48. Markos
49. Kay
50. Markos
51. Ari
52. Markos
53. Kay
54. Ari
55. Win
56. Ari
57. Kay
58. Ari
59. Markos
60. Kay
61. Ari
62. Markos
63. Kay
64. Ari
Agradecimentos
Créditos