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Abr. 2023

ARTE DA CAPA:
HALLINA BELTRÃO
2 | ABRIL DE 2023

eduardo ferreira Nota-se todo um proces-


TRANSLATO so de tradução subjacente às con-
siderações do protagonista de

EL SUPREMO (4)
Yo el supremo sobre a constru-
ção da palavra e seus sentidos, da
memória e das narrativas que se
desde 8 de abril de 2000
elaboram na confluência das lem-
branças com a realidade.

V
Rascunho é uma publicação mensal
Como todo ato tradutório, da Editora Letras & Livros Ltda.
olto, ainda esta vez, ao a memória coletiva — como ins- também a recuperação dos arqui- CNPJ: 03.797.664/0001-11
texto de Yo el supre- trumento legítimo de construção vos da memória e sua transcrição Caixa Postal 18821
mo, grande obra do pa- de narrativas. Diz ele a seu ama- em narrativa/texto sofre todo ti- 80430-970 | Curitiba - PR
raguaio Augusto Roa nuense: “Esquece a tua memória. po de crítica, censura, reprimenda
Bastos. Nesta coluna, pretendo Escrever não significa converter o — e não só do ditador supremo. rascunho@rascunho.com.br
ater-me a questões que o protago- real em palavras, mas fazer que a Esse questionamento se verifica es-
www.rascunho.com.br
nista do romance, o ditador supre- palavra seja real”. E complementa: pecialmente no caso da memória
mo, levanta sobre conceitos como “Acontece que a tua maldita me- individual — a única que de fato twitter.com/@jornalrascunho
narrativa e memória, esticando as mória recorda as palavras e esque- pode ser considerada “memória”, facebook.com/jornal.rascunho
reflexões para a seara da tradução. ce o que está atrás delas”. no sentido de repositório exclusi- instagram.com/jornalrascunho
Roa Bastos, por intermé- O conceito de memória é vamente mental de informações.
whatsapp (41) 99109.4352
dio de seu protagonista, questiona também invocado para ressaltar Essas passagens de memória
o papel da memória na produção a prevalência do oral sobre o es- em texto, de texto em leitura, de
da escritura, expressando opiniões crito: “O que está escrito no Li- leitura em tradução são todas al-
EDITOR
que a enquadram entre o nefasto vro de Memórias tem que ser tamente problemáticas — e Roa
Rogério Pereira
e o irrelevante, com um curioso lido primeiro; ou seja, tem que Bastos, por intermédio de seu pro-
apontamento sobre a perfeição que evocar todos os sons correspon- tagonista, trabalha muito bem es-
EDITOR-ASSISTENTE
reveste o miraculoso instrumento dentes à memória da palavra, e se tema complexo.
Luiz Rebinski
chamado de “caneta-recordação”. esses sons têm que evocar o senti- A complexidade é tão aca-
A memória é, acima de tu- do que não está nas palavras, mas chapante que o supremo busca EDITOR DE FICÇÃO
do, considerada como vetor in- que foi unido a elas por movi- um escape nas fantasias de uma Samarone Dias
capaz de produzir uma correta mento e figura da mente em um caneta mágica ou de uma nova
transcrição do real em palavras: instante determinado, quando se linguagem plenamente transpa- DIRETOR DE ARTE
“Sabe o que é a memória?”, per- viu a palavra pela coisa e se en- rente à realidade. Alexandre De Mari
gunta o supremo. E ele mesmo tendeu a coisa pela palavra”. A voz crítica do supremo,
responde: “Estômago da alma, E, apesar de todas essas embora talvez excessivamente se- DESIGN
disse erroneamente alguém. Em- ponderações, a memória impes- vera, tem bom amparo na realida- Thapcom.com
bora no ato de nomear as coisas soal — materializada na “cane- de das transições imperfeitas que
nunca haja um primeiro. Nada ta-memória” — é o instrumento testemunhamos todo o tempo. IMPRESSÃO
mais há que uma infinidade de por excelência da escrita fidedig- Que se há de fazer? A prolifera- Press Alternativa
repetidores. Só se inventam no- na, o aparelho inventado pelo su- ção das interpretações é incon-
vos erros. Memória de um só não premo para descrever a realidade trolável. O protagonista de Roa COLUNISTAS
serve para nada”. tal como ela é, imageticamente. Bastos, como supremo ditador, Alcir Pécora
Para o supremo, o ideal se- Ou quase isso, segundo os ele- apenas se insurge inutilmente Eduardo Ferreira
ria descartar a memória indivi- mentos de dúvida lançados pelo contra a contínua insubordina- Fabiane Secches
dual — embora talvez nem tanto próprio ditador. ção dos sentidos. João Cezar de Castro Rocha
José Castello
José Castilho
Luiz Antonio de Assis Brasil
Maíra Lacerda

rinaldo de fernandes mente uma ideologia que no passado combateu.


Nilma Lacerda
Noemi Jaffe
RODAPÉ O conto é sobre a derrota de uma geração que Olyveira Daemon
apostou em mudanças, mas que foi engolida pe- Ozias Filho

A DITADURA
las forças conservadores, pelos valores do capital. Raimundo Carrero

E por essa via a narrativa faz uma leitura primo- Rinaldo de Fernandes

rosa da elite brasileira, inclusive, ou sobretudo, da Rogério Pereira

NUM CONTO
que dá suporte ao bolsonarismo. Rogério convive Tércia Montenegro

com pessoas extremamente conservadores (fami- Wilberth Salgueiro

liares de sua esposa), com valores segregacionistas

DE VERISSIMO
COLABORADORES DESTA EDIÇÃO
fortes — pessoas entre as quais identifica no pas-
Ana Maria Machado
sado um complô com os ditadores. Há na trama
André Caramuru Aubert
uma metáfora vigorosa, a do condomínio fechado,
David Lehman
explicativa do modo de ser da elite que apoiou a
Giovana Proença
ditadura e agora apoia a extrema direita. Essa me-

O
Luiz Rebinski
táfora, identificando a perspectiva presente de Ru-
Márwio Câmara
longo conto A mancha nos tempos difíceis da repressão, binho, a de se fechar em si mesmo para apagar ou,
Maurício Melo Júnior
(2004), de Luis Fer- mas tem uma perspectiva diferen- estrategicamente, desautorizar os fatos vividos, o
Miguel Sanches Neto
nando Verissimo, inte- te dos fatos. Pode-se afirmar que seu envolvimento com a resistência à ditadura, é
Paulliny Tort
gra a coleção Vozes do Rogério e Rubinho ficaram trau- extensiva ao modo de ser da elite brasileira. Rubi-
Paulo Paniago
golpe, publicada pela Companhia matizados com a tortura. Rogério, nho diz para Rogério, quando este busca reaver Sérgio Tavares
das Letras. Tem como protagonis- o personagem mais denso da tra- com o antigo amigo a memória da tortura: “Meu
ta Rogério, que foi torturado pe- ma, e mesmo enriquecido, quer filho, o Sidnei, está tentando me ensinar a lidar ILUSTRADORES
lo regime de 64. Com o fim da reaver a memória, entender os de- com o computador. Ele sabe tudo, eu não consigo Amy Maitland
ditatura, e de volta do exílio, Ro- talhes do que se passou com ele. aprender. E ele me disse por quê. Disse: ‘Pai, vo- Carolina Vigna
gério torna-se empreendedor, en- Rogério se esforça para não matar cê tem uma mente defensiva’. É exatamente isso. Denise Gonçalves
riquecendo no ramo imobiliário. o passado. Rubinho, ao contrário, Desenvolvi uma mente defensiva como um con- Eduardo Mussi
Compra, reforma e vende prédios. faz do trauma um esquecimento. domínio fechado. Uma mente com guarita, que Eduardo Souza
Num de seus passeios para verifi- Fecha-se para a memória do so- abate qualquer inimigo na porteira. Novas técni- Fabio Miraglia
car prédios negociáveis, identifi- frimento, dos desgostos. Mas co- cas, lembranças, ideias, tudo que possa perturbá- Hallina Beltrão
ca, perplexo, um no qual sofreu mo no presente tem propósitos -la e solapar sua burrice assumida, é abatido na Kleverson Mariano
tortura — identifica inclusive a e/ou valores ligados ao agrone- entrada”. Eis uma leitura precisa da mentalidade Maíra Lacerda
mancha de seu sangue num dos gócio (quer, aposentado, plantar de nossa elite sob o bolsonarismo, que presentifi- Marcelo Frazão
compartimentos do prédio. No maçãs), o esquecimento de Ru- ca valores de um passado que, para ela, não mor- Ramon Muniz
conto, outro personagem impor- binho pode significar também rem. E a força dessa permanência, a reatualização Raquel Matsushita
tante é Rubinho, que também foi menos um trauma e mais a pers- desses valores no Brasil atual, termina sendo su- Tereza Yamashita
torturado. Foi amigo de Rogério pectiva de quem assimilou plena- focante no conto de Luis Fernando Verissimo. Thiago Thomé Marques
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9
DIVULGAÇÃO

6
Entrevista:
Tudo meio horrível,
de Nathalie Lourenço
Sérgio Tavares

Ana Maria Gonçalves

27
Márwio Câmara

Considerações
sobre o
romance
Fabiane Secches

35
Friday Black, de Nana
Kwame Adjei-Brenyah
Luiz Rebinski

10
DIVULGAÇÃO

Trilogia Brasil, de Antônio Torres


Maurício Melo Júnior
17
Inquérito
36
Um brinde
na primavera
Xico Sá
Ana Maria Machado

14
Um túmulo para meu avô
38
Miguel Sanches Neto Poemas
David Lehman
DIVULGAÇÃO

40
O país das
maravilhas
Paulliny Tort

22
Paiol Literário
Jarid Arraes

ILUSTRAÇÃO: FABIO MIRAGLIA

30
Os errantes
de Cormac
McCarthy
ARTE DA CAPA:
Paulo Paniago Hallina Beltrão
ABRIL DE 2023 | 5

Ilustração: Raquel Matsushita

josé castello
A LITERATURA NA POLTRONA

A ROUPA
NOVA DO
POBRE

N
a esquina da padaria, vejo uma mulher en-
rolada em um cobertor. Esticada ao lon-
go da vitrine e em sono profundo, traz os
seios à mostra. Sua nudez, mais que surpre-
sa, desperta repulsa. “Que nojo”, escuto uma mulher,
que passeia com seu cachorro, dizer. “Por quê, pelo me-
nos, essa miserável não se cobre?”
Tenho o impulso de parar e me abaixar para co-
bri-la com os restos de seu cobertor lamacento, mas me
contenho. Nem meus cabelos brancos convencerão a
dama do cachorrinho de que não sou um tarado. Dou
mais dois ou três passos e paro, sem saber o que fazer.
“Eu só quero comprar uma chupeta para meu ir-
mão”, grita um menino na porta da loja vizinha. Um
pequeno bazar, em que nunca entrei. “Cai fora, meni-
no, não enche”, diz um rapaz uniformizado enquanto
o empurra. O garoto veste só um calção largo, que ba-
lança em sua cintura. Está sem camisa e descalço. “Por
que eu não posso entrar na loja?”
O segurança ainda tenta: “Ninguém pode en-
trar em uma loja só de cuecas”. O menino o enfrenta,
diz que não está de cuecas, mas de shorts. Está furioso.
“Você não tem nem dinheiro para comprar a chupeta”,
o rapaz completa, empurrando-o pelo peito.
Nesse momento, um casal de meia idade sai do
bazar. A mulher, comovida, vai até o garoto, abre a bolsa,
e lhe dá algum dinheiro. “Pronto, agora você pode com-
prar o que quer”, ela diz, afagando seus cabelos. O segu-
rança assiste a tudo em silêncio mas, assim que o casal se
afasta, debocha: “Se deu bem, hein, garoto? Mas pela-
do assim, mesmo com dinheiro, você não pode entrar”.
Penso em intervir, argumentar a favor do me-
nino, mas, antes que eu dê um passo, chega uma se-
nhora de idade. Aproxima-se e pergunta: “Meu filho,
o que está acontecendo com você?”. O menino recla-
ma do segurança. Diz, ainda, que tem um irmão mui- gulo com dificuldades e que me O velho logo volta com um conjunto de gi-
to pequeno que perdeu sua única chupeta e agora não sufoca, me aproximo do garoto, nástica azul, bastante desbotado. O agasalho tem um
para de chorar. Diz e aponta para a mulher que traz os agacho-me e sussurro em seu ou- gorro. “Há uma cabine?” A roupa fica um pouco lar-
seios expostos. Só agora vejo uma pequena cabeça que vido: “Vou te ajudar. Mas preci- ga, mas serve. O garoto se olha no espelho feliz. “O
se protege logo abaixo deles. samos ir até a esquina”. senhor vai mesmo comprar para mim?” Digo que é
A senhora de idade nem se dá ao trabalho de O menino me olha descon- claro que sim, e peço ao vendedor, ainda, um par de
olhar para o segurança, que se perfila às suas costas. fiado, me examina, e enfim diz: tênis barato. Ele traz um tênis de brim, que fica meio
“Vamos fazer o seguinte, você me espera aqui, eu vou “Ninguém pode me proibir de en- largo também, mas resolve nosso problema.
lá dentro e compro três chupetas para seu irmão.” Era trar na loja. E eu vou entrar na lo- “Não precisa embrulhar, ele vai vestido mes-
o que eu mesmo, pouco antes da mulher chegar, me ja”. Seguro-o pelo ombro e digo: mo”, explico. Pago, dou a mão ao garoto e volta-
preparava para sugerir. Agora nem preciso enfrentar “Estou do seu lado. E é exatamen- mos em direção ao bazar. O rapaz da segurança
mais o rapaz da porta. Está tudo resolvido. te isso o que você vai fazer. Eu te- continua perfilado na calçada. “Não olhe para ele,
“Não!” — ouço o menino gritar. “Não sou mais nho um plano”. só olhe para a frente. Agora nós vamos entrar.” O
um bebê, sei fazer as coisas sozinho. Eu mesmo quero Ele me examina de novo, garoto cumpre à risca minhas instruções. Sua pe-
comprar a chupeta.” A velha se paralisa, não sabe o que sabe que pode ser uma armadi- quena mão treme.
pensar, mas não se afasta. “Já disse que você não pode lha, mas, já exausto, me segue. Pa- No balcão de atendimento, lhe passo um tro-
entrar”, o segurança insiste, agora elevando a voz. “Se ramos logo depois da esquina, em cado e digo: “Agora peça a chupeta de seu irmão”.
você quisesse mesmo a chupeta, aceitava a ajuda da se- um lugar em que o segurança não O vendedor pergunta quantas chupetas ele quer.
nhora. Você está tramando outra coisa.” pode mais nos avistar. Dou uma Quando o garoto mostra o dinheiro, o homem diz:
A mulher ainda tenta argumentar, sem sucesso, a olhada em torno, examino as vi- “Com isso acho que você compra umas cinco”. Ele
favor do menino. Abre, então, sua carteira, lhe dá mais trines, nenhum sinal do que pro- abre um sorriso e, sempre apertando minha mão,
algum dinheiro, acena e entra no bazar. “Agora entendi curo. Até que, um pouco mais à diz: “Eu quero todas”.
qual é sua jogada”, diz o rapaz. “Você comove as pes- frente, meus olhos de velho veem Depois vamos ao caixa onde, orgulhoso, o
soas, faz seu teatro e assim lhe dão dinheiro. Não quer um cartaz: “Brechó”. menino paga sua compra. “Agora podemos ir”, eu
chupeta coisa nenhuma.” “Achei!” — digo entusiasma- aviso. “Continue a olhar para a frente.” Na porta
Nesse momento, para desmentir o segurança, ou- do. “Vamos até lá.” Sem entender o do bazar, porém, sua raiva transborda. Larga minha
vimos o choro do bebê enroscado no cobertor. Tenho que se passa, o menino me segue. mão, arranca o casaco e o gorro, abre a embalagem
o impulso de voltar alguns passos e falar com a mu- Agora de mãos dadas, entramos das chupetas e se aproxima no segurança.
lher, mas, antes disso, o menino escapa por uma fresta sem nenhum problema. Um velho “Agora eu tenho roupa, agora eu posso entrar.
e consegue entrar na loja. “Vagabundo”, berra o segu- nos recebe. “O senhor tem roupas Olha aqui as chupetas”, grita cheio de entusiasmo
rança, que entra no bazar atrás dele. O rapaz é grande e usadas para esse menino”, pergun- O rapaz não acredita no que vê. De longe, a moça
forte. Logo o traz para fora, arrastando-o pelos cabelos. to. O garoto me olha espantado, do caixa começa a bater palmas. Eu a acompanho,
Vai acabar dando uma surra no garoto, eu pen- mas não larga minha mão. “Algu- aplaudo e grito “bis”. Um pouco à frente, a mu-
so. Vai acabar machucando o coitado. Preciso fazer ma coisa barata e simples, talvez lher do cobertor se ergue e, sem se importar com
alguma coisa. Então, tomado por uma fúria que en- um conjunto de moletom.” os seios nus, bate palmas também.
6 | ABRIL DE 2023

LEO PINHEIRO

entrevista
ANA MARIA GONÇALVES

Força
atemporal
Nova edição de Um defeito de cor, de Ana
Maria Gonçalves, confirma a relevância
do romance para entender processo
histórico de formação do Brasil

MÁRWIO CÂMARA | RIO DE JANEIRO – RJ

N
ão é exagero considerar Ana Maria Gon-
çalves uma das mais importantes vozes
femininas da literatura brasileira con-
temporânea. Nascida em Ibiá, interior de
Minas Gerais, em 1970, é publicitária de formação
e teve seu início como ficcionista por meio de uma
obra independente, custeada por ela própria, intitu-
lada Ao lado e à margem do que sentes por mim.
Porém, foi com o romance Um defeito de cor, pu-
blicado em 2006, que rapidamente a autora ganhou
notoriedade e respeito da crítica ao reconstruir em
tom memorialístico a história de Kehinde, uma mu-
lher afrodescendente, da infância à vida adulta, mar-
cada pelo regime da escravidão negra que perdurou
durante três séculos no Brasil.
Aliada a uma intensa pesquisa documental, o
romance desbrava os interiores da senzala e os confli-
tos existenciais de toda uma subjetividade de perso-
nagens inesquecíveis ali encontradas que mimetizam
o amálgama de vozes silenciadas pelo sistema patriar-
cal consonante à hegemonia branca vigente. Não à
toa que, dezessete anos depois de sua publicação, o
romance retorna às livrarias em edição comemorati-
va, mostrando-se mais atual do que nunca, visto que,
mesmo com os avanços culturais e tecnológicos ocor-
ridos na sociedade brasileira, o país continua expe-
rienciando o fatídico drama do racismo estrutural e
da desigualdade de classe.
Em entrevista ao Rascunho, Ana Maria Gon-
çalves comenta sobre o processo de elaboração de
sua mais aclamada obra, a questão da representativi-
dade na literatura, as mudanças do mercado edito-
rial, além de trazer informações sobre o seu próximo
projeto ficcional.

• Um defeito de cor é um dos grandes clássicos


da literatura brasileira contemporânea, além de
traçar um panorama significativo sobre a iden-
tidade de homens e mulheres afro-brasileiros.
Como foi o processo de construção do livro?
O processo de elaboração da história que es-
tá em Um defeito de cor começou no momento
em que li num livro de Jorge Amado, Bahia de To-
dos os Santos: Guia de ruas e mistérios, sobre uma
rebelião na Bahia, ocorrida em Salvador, em 1835,
chamada Revolta dos Malês, que foi uma rebelião de
escravos muçulmanos que queria fundar o que de-
pois os historiadores começaram a chamar de Cali-
fado Baiano, que era fazer a Bahia independente do
Brasil, governada por eles. Eu nunca tinha ouvido fa-
lar dessa rebelião escrava — extremamente importan-
te e que mudou os rumos do processo escravagista no
Brasil. Comecei a querer contar aquela história, e se-
ria até um jeito de contar aquela história para mim.
Sempre digo que Um defeito de cor é um livro que
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gostaria de ter lido. Então, fui atrás dessa história, que • Existe a possibilidade de Ao la- dade individual e coletiva de
acabou virando o capítulo 7 de Um defeito de cor. do e à margem do que sentes por um país?
Foi no processo de pesquisa que realmente entendi a mim ser reeditado? Acredito que a Acredito que a literatura
dimensão da escravidão no Brasil. O livro cresceu em Não. É um livro apressado, do pode muita coisa, mas não po-
volta da rebelião malê conforme fui vendo novos per- qual sempre digo que nem me orgu-
literatura pode muita de tudo. E ela também não tem a
sonagens, estudando coisas que eu não sabia e gosta- lho nem me envergonho. Conside- coisa, mas não pode necessidade de ter uma finalidade
ria de colocar ali. Foi um processo de cinco anos, os ro-o apenas mediano, e por isso não tudo. E ela não tem a específica, seja de transformação
dois primeiros foram só pesquisa, eu só li, não escre- pretendo republicá-lo. necessidade de ter uma social, construção de subjetivida-
vi absolutamente nada a não ser um roteiro da histó- finalidade específica, des ou coletividades. Pode ter só
ria, do que se tornou a história depois disso. Depois, • O interesse pela literatura surge seja de transformação papel de entretenimento também.
mais um ano de escrita e mais dois de reescrita, perío- quando e por quê? Acredito que vai muito da possi-
do em que reescrevi o romance dezenove vezes. Duran- Meu interesse pela literatura
social, construção bilidade e da necessidade de cada
te o processo de pesquisa, achei que ia contar cem anos surgiu na infância. Tive a sorte de ser de subjetividades ou autor ou autora. Eu me considero
de história. Lembro de ter pegado cem folhas de papel filha de uma mãe leitora. Então des- coletividades." um ser político no mundo, então
sulfite, grudei todas na parede de casa, uma para cada de muito cedo convivi com muitos é óbvio que a literatura que faço
ano, e dividi as folhas em três colunas. Na primeira co- livros na minha casa. De uma manei- vai refletir isso, mas não necessa-
luna, conforme ia pesquisando e lendo, escrevia coisas ra muito orgânica, a literatura foi in- riamente que ela tenha obrigação
que poderiam acontecer na vida da minha personagem cluída no meu dia a dia, porque em de ser um veículo de transforma-
principal, a Kehinde. Na segunda coluna, coisas que qualquer momento de folga eu via ção social. Ela pode ser um veícu-
aconteciam na vida de pessoas que conviviam com ela minha mãe lendo e gostando de ler lo de entretenimento e de beleza,
e poderiam afetar a vida dela, e na terceira coluna, coi- e se divertindo com a leitura. Acho duas coisas extremamente neces-
sas que aconteciam na cidade, no estado, no país ou no que isso passou para mim também. sárias também no mundo de hoje.
mundo, que poderiam afetar a história da personagem
principal. Ao fim de dois anos do processo de pesquisa, • Como é chegar até aqui, com es- • O número significativo de mu-
o que eu tinha era isso. Passei a limpo para o compu- sa nova edição de Um defeito de lheres brancas e negras escre-
tador e a partir dali fui costurando a história. Acredi- cor, acompanhando o Brasil em vendo em nosso país diz alguma
to que esse pré-roteiro foi mudando muito na escrita, sua atual conjuntura econômica, coisa para a senhora quanto ao
porque uma coisinha que você muda na história é um política e social? É possível pen- mercado editorial brasileiro dos
efeito cascata que vai fazer com que ela tome um no- sar que estamos no caminho da últimos dez anos?
vo rumo. A pesquisa foi um guia, um processo que me mudança mesmo após termos vi- Gostaria de ter números, de
deu um entendimento do que queria dizer, e a partir venciado tamanho retrocesso nos ter fontes mais específicas para po-
dali fui deixando a história seguir seu fluxo. últimos anos? der responder a essa pergunta, se
Acho que Um defeito de cor houve realmente um aumento sig-
• De que maneira as pesquisas contribuíram para pode ajudar a compreender o pro- nificativo nesses últimos dez anos.
os caminhos que o enredo acabou tomando? Além cesso histórico de formação do Bra- Confesso que não tenho acom-
disso, como manteve o equilíbrio entre a escrita de sil. Então, fico muito feliz que essa panhado de perto os dados, mas
ficção e a pesquisa histórica? nova edição traga um novo fôlego tenho visto em termos de visibi-
Fiz questão de colocar uma bibliografia no fim para o livro, apresente-o a quem lidade. Acredito que os principais
do romance, apesar de não ser muito usual, porque sou ainda não o tinha no radar. E que a prêmios literários dos últimos
uma escritora que se apoia muito no processo de pes- partir daí a gente realmente entenda anos foram ganhos por mulheres,
quisa. Eu gosto. Talvez seja uma das etapas de escrita quem a gente foi para poder definir mas o que a gente pode deduzir aí
de um livro, não só de um livro, mas de qualquer pro- quem a gente quer ser. Acho que es- é um dado qualitativo, não neces-
cesso criativo, de que eu mais goste. É a partir dali que se é o processo de mudança. E, sim, sariamente quantitativo.
acho que as pecinhas que formam a história que está envolve idas e vindas, é assim que se
na minha cabeça se encaixam umas nas outras, criando faz a história. • É possível superar todas as
trajetórias que sejam verossímeis ao leitor. E esse não é mazelas que o Brasil enfrenta
um processo pensado, é um processo muito intuitivo, • Qual é a sua opinião sobre a Um defeito de cor há mais de cinco séculos e que
ou seja, pedaços de ficção ou de realidade vão se mis- atual produção da literatura bra- ANA MARIA GONÇALVES atormentam substancialmente
turando para criar uma determinada história, no sen- sileira que representa novos luga- Record a vida de milhões de brasileiros?
966 págs.
tido que são necessários para aquela história, não tem res de fala e dá protagonismo a É uma pergunta bem
uma forma, vou colocar mais daqui ou mais dali, e eu subjetividades que, durante mui- abrangente que eu não saberia
acho que nem saberia fazê-lo desta maneira. to tempo, foram silenciadas por responder. A esperança e o oti-
uma sociedade de herança escra- mismo são necessários para mi-
• Luísa Mahin, mãe do poeta abolicionista Luís vagista, hegemônica e patriarcal? nha saúde psicológica e física, até
Gama, foi uma figura crucial para a construção da Sim, o mercado literário bra- de existência no mundo agora, e
protagonista Kehinde. Como foi chegar à respecti- sileiro é um mercado extremamen- acredito que há sim possibilida-
va personagem histórica? te seletivo, principalmente quando a de de se superar tudo, mas não
Não existe nenhuma documentação oficial so- gente está falando da publicação de sei em quanto tempo, porque não
bre Luísa Mahin. Então parti de um poema e uma car- romances. A maioria dos romances sei qual é a vontade de cada ge-
ta autobiográfica em que Luís Gama fala de sua mãe. publicados ultimamente no Brasil foi ração em realmente superar um
Aí, fui pesquisando histórias de outras mulheres que escrita por homens brancos do sul e determinado problema que esteja
viveram na mesma época e nos mesmos lugares que sudeste do país. Nomes como Ita- no Brasil há séculos ou que tenha
essa personagem que eu construí a partir das referên- mar Vieira Junior, Jeferson Tenório, surgido no últimos anos, mesmo
cias biográficas do Luís Gama para a possível história Eliane Alves Cruz, Geovani Martins, porque os problemas vão mudan-
da Luísa Mahin. Conceição Evaristo, por exemplo, já do de acordo com o tempo, de
vêm de uma trajetória bastante con- acordo com as ações do povo que
• Escrever um romance de quase mil páginas não sistente, anterior a Um defeito de está habitando o mundo naquele
causou nenhum tipo de insegurança quanto ao re- cor. O que não havia era uma abertu- determinado momento.
torno do público ou de alguma editora publicá-lo, ra ou interesse do mercado na divul-
já que o número de páginas, em alguns casos, pode gação dessas obras. Acredito que de • Podemos aguardar um novo
atrapalhar a ascensão do livro? algum tempo pra cá, o mercado per- livro seu?
Escrevi o livro que gostaria de ter lido sobre o as- cebeu que há demanda, há interesse Sim, tenho um livro novo
sunto, sem deixar de fora assuntos que considerei inte- e há necessidade de publicar cada vez que terminei há uns três anos, e
ressantes ou importantes. Não dá para se pensar uma mais autores, e aí eu não falo apenas que está na gaveta decantando
história em relação ao limite de páginas, até porque é de autores negros e negras, mas indí- ou descansando um pouco an-
impossível controlar a recepção do livro. O que me genas ou LGBTQIA+ que estão sur- tes que eu volte a trabalhar ne-
preocupa é sempre contar a melhor história que consi- gindo, contando uma história que é le, um processo de que gosto
go contar, independentemente do tamanho. diferente das histórias das ficções, das muito. Eu falo sempre que sou
narrativas que sempre nos foram con- uma reescritora. Gosto do pro-
• Ao lado e à margem do que sentes por mim foi pu- tadas a partir de um único ponto de cesso de ir em busca da história
blicado de forma independente. Como se deu sua vista. É isso que acho interessante no que quero contar, usando a fra-
estreia e quais eram as suas pretensões? mercado editorial agora. Acho que Um defeito se eu acho que é a frase que cabe
Digo que é um livro que eu tinha de escrever, ali. O livro é uma ficção cientí-
de cor pode ajudar
durante o processo de pesquisa do Um defeito de • A senhora acredita que a lite- fica policial muito diferente de
cor, para aplacar minha ansiedade de escrever um li- ratura ainda pode cumprir esse a compreender o Um defeito de cor. Mas não te-
vro e deixar que o Um defeito... levasse o tempo que papel, que muitos falam, de mu- processo histórico de nho pressa. Vai chegar o momen-
tivesse de levar. dança social diante da subjetivi- formação do Brasil." to dessa história ser contada.
MINISTÉRIO DO TURISMO APRESENTA

11ª
temporada

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ABRIL DE 2023 | 9

Rindo de
se reserva a determinadas clas-
ses sociais, ao passo que o aflitivo
Farpa é uma mensagem eletrôni-
ca na qual se relata abuso infantil

nervoso
de forma lacunar, nunca ficando
transparente se é uma denúncia ou
uma confissão. As possibilidades
de interpretação têm muito mais
potência que a descrição gráfica.
Se por um lado isso pode soar sá-
Em Tudo meio horrível, Nathalie dico, por outro não deixa de ser li-
teratura de boa qualidade.
Lourenço explora temas delicados Alguns contos, contu-
com uma ironia trágica que deixa do, são menos inspirados. Es-
tão longe de ser ruins, mas dão
o leitor sem saber como reagir a impressão de estarem ali pa-
ra fazer volume. A subtração de
três ou quatro textos certamente
SÉRGIO TAVARES | NITERÓI – RJ deixaria o conjunto mais coeso,
especialmente quando certas ex-
perimentações evidenciam o ca-
ráter incipiente dos exercícios de
escrita. Ainda assim, a qualidade

S
geral compensa tais baixas como
A AUTORA
e houvesse, na literatu- cio de sacar a história secreta num se fossem leves desvios de um cir-
ra brasileira, um prê- golpe de desconcerto funciona em NATHALIE LOURENÇO cuito bem afinado cujas variações
mio para melhor título, intensidades variadas. A namora- de temas e ideias nunca descarac-
É escritora e publicitária. Pós-graduada
Tudo meio horrível, da turca, sobre um sujeito que co- terizam seu movimento identitá-
em Formação de Escritores pelo
de Nathalie Lourenço, ganharia nhece uma mulher pela internet Instituto Vera Cruz. Integra o Coletivo
rio. Isso fica claro na decisão de
de barbada. Dúbia e insinuante, e manda o irmão conferir se não Discórdia, coletivo literário proveniente
posicionar o mais robusto (e me-
a expressão traz uma inclinação é cilada, tem a picardia das crôni- do Clipe, curso de escrita da Casa das lhor) conto no fim do livro. O ho-
de comicidade para algo sobre o cas rodriguianas, enquanto Seis da Rosas. Lançou, em 2017, a coletânea mem dentro do vidro trata de um
qual não se devia fazer graça, a manhã no Fritos Lanche, a madru- de contos Morri por educação (Oito faxineiro que fica responsável pe-
ironia clandestina para uma rea- gada agitada de uma lanchonete e Meio) e, em 2021, o livro de contos la limpeza do setor de um hospi-
lidade em que o absurdo ultra- em que a presença de uma mulher de ficção científica Sabor idêntico tal, onde se depara com um jarro
passou as raias do mal-estar e se com uma criança que nunca acor- ao natural (Vacatussa). Escreve contendo uma cabeça humana
converteu num tipo picaresco de da gera estranheza, instala non- crônicas na plataforma Árvore de partida ao meio. O convívio com
estado de espírito. A mais recente sense no que deveria ser empatia Livros, incluindo o e-book infantil O o grotesco, então, vai lhe resgatar
incidente do cocô voador e outras
antologia da autora paulista sub- pela tragédia urbana. Já Assombra- memórias e, através da associação
crônicas, além de minicontos no perfil
verte o previsível para arrancar, ção, no qual um cara invade a casa do Instagram @Histórias_Bermudas.
com uma ausência em sua infân-
de capturas da vida, o riso invo- da ex-namorada para retomar cer- cia, desencadear uma descoberta
luntário que sucede o espanto. tos itens, flerta com o pós-terror, das mais apavorantes.
São dezesseis relatos de corrup- uma tensão sobrenatural apoiada A certa altura, o protagonis-
ções e falências tanto das relações num esteio crítico. ta comenta que o cheiro de for-
humanas quanto das instituições mol do ambiente, que lhe deixava
sociais abordadas com uma in- Careta ao a princípio nauseado, já não in-
correta naturalidade. politicamente correto comodava; que se tornou “fami-
Versão brasileira, que abre Para uma antologia que liar, reconfortante”, um estímulo
o livro, estabelece a tônica e a es- transforma a unidade temática para “seus pensamentos correrem
tratégia narrativa que irão se re- em modo de condução, esse con- livres”. A experiência com os con-
produzir por todo conjunto. Um to marcaria um ponto de ruptura tos de Tudo meio horrível deixa
casal goza da cara alheia, fingin- no qual a irreverência e a careta ao a mesma sensação: situações des-
do ser estrangeiros durante uma politicamente correto poderiam se confortáveis e atos descabidos
hospedagem numa cidade de ve- dobrar a uma certa catequese ideo- que, no estouro da perplexidade,
raneio. Até que vão jantar e en- lógica. Por sorte, a autora escapa vão se desaforando do espanto,
contram estrangeiros de verdade dessa armadilha, temperando as do contra-ataque de repúdio, e
na mesma pousada, exclusiva- narrativas seguintes com comen- sendo incorporadas por uma co-
mente atendidos por mulheres tários sociais, porém sem dessabo- micidade incidental, uma ironia
em último estágio de gravidez. rar os componentes originais. No trágica diante do absurdo, que faz
Os movimentos inesperados que ótimo Entre paredes, uma filha re- com que o leitor não saiba bem
o texto faz para concatenar os te- torna para casa humilde que divide como reagir, e ri sem querer, meio
mas maternidade, apartamento e com o pai, trazendo no rosto mar- com culpa; ri de nervoso.
turismo indicam uma solução si- cas vivas de uma agressão. O velho
nistra, que vai se desdobrar num homem pergunta se ela não prefe- TRECHO
desfecho ainda mais impactante. re fazer uma denúncia, e a negação
A escrita sempre oferece uma sen- dá partida a um testemunho lento, Tudo meio horrível
sação incômoda de presságio, de como se sussurrado, em que lem-
que o leitor está posicionado de branças e detalhes prosaicos irão Juliana tinha ido fumar um
forma que não consegue distin- construir uma escalada de suspen-
cigarro no quintal e gritou
guir aquilo que ganha corpo fora se até o desvelar de um fim implí-
do quadro, e lhe cabe apenas espe- cito, e por isso mesmo chocante e para eu ir lá ver. A piscina não
rar o baque da revelação. perverso. Fica claro que se trata de estava mais coberta.
VHS é o perfeito modelo uma manifestação contra a violên- Meu coração afundou, se
estético dessa analogia. Estrutu- cia à mulher, mas sem bandeiras
escondeu em algum lugar
rado em cortes de cenas mobili- e panfletos, estabelecendo a verve
zadas pela simulação das teclas de de protesto no efeito da surpresa. entre o fígado e os rins. Não
um videocassete, o conto ocorre Cinco-dois e Profs seguem acabou. As tralhas preenchiam
sobre a perspectiva de um homem no universo feminino, embora em a piscina até a borda. Cento
que assiste gravações domésticas frequências distintas. Enquanto o
e cinquenta metros cúbicos de
de sua família. O aniversário da primeiro é um relato internalizado
filha, momentos com a esposa, pa- sobre autodescoberta, o segundo lixo. Quis xingar tia Beta.
rentes aleatórios... Então, frases e usa do escracho para comandar a Não o fiz. É preciso esperar
condutas dão indício de que nem postura de uma professora diante alguns meses depois do enterro
tudo é o que parece, preparando de uma incorreção. Voltando aos Tudo meio horrível
antes de admitir que às
para a reviravolta nas últimas fra- registros de violência, Na foto ela NATHALIE LOURENÇO
ses. Tal engenharia se torna uma sorria toca no assombro moralis- Caos & Letras
vezes temos raiva das pessoas
marca inconfundível, cujo artifí- ta de que a crueldade masculina 136 págs. que amávamos.
10 | ABRIL DE 2023

A alma
do Brasil
Trilogia Brasil reúne três romances fundamentais
de Antônio Torres para melhor entender o país

MAURÍCIO MELO JÚNIOR | BRASÍLIA – DF

E
ntre os escritores da família Torres Cruz
(eles são muitos) conta-se que, ao publi-
car Essa terra, em 1976, Antônio Torres
recebeu um veredito de seu irmão Tom
Torres: você vai demorar toda uma vida para se li-
vrar desse livro. A profecia parece se cumprir. O ro-
mance ganhou duas continuações, O cachorro e o
lobo, de 1997, e Pelo fundo da agulha, de 2006.
Foi traduzido alhures e aqui, respectivamente, lá se
vão 29, 6 e 4 edições, sem contar com a mais nova
delas, a Trilogia Brasil, lançada pela Record, reu-
nindo os três romances num único volume.
Algumas características marcam os romances,
como a paisagem do Junco em contraponto às ima-
gens paulistanas e as referências literárias e musicais,
no entanto, certamente são os livros de Antônio
Torres que mais de perto dialogam com a tradição
narrativa latino-americana surgida a partir da dé-
cada de 1960, quando o protesto político e social
e a irrealidade cotidiana eram quase uma ordem.
Essas irmandades narrativas, assim, se con-
centram como um legado maior do escritor.
Mesmo transitando outras artérias, como as im-
possibilidades vivenciais de Um táxi para Viena
d’Áustria, e as peculiaridades de nossa formação
cultural, de Meu querido canibal, ainda é o apelo
do migrante, do eterno estrangeiro, que marca to-
da a prosa do escritor. Não é apenas Nelo, o filho
desejado e esperado, que está fora da ordem viven-
cial descrita por Torres, todos os seus personagens,
de uma maneira ou de outra foram ferrados com o
fogo e os ferros incandescentes de um Brasil pro-
fundo que insiste em não avançar no tempo.
Como diria Ariano Suassuna, mesmo trocan-
do o jumento por uma moto, a essência telúrica
não largou este homem.

Suicídio
O capítulo inicial de Essa terra aponta para
uma esperança, o desejo do pai de rever o filho que migrante que voltou contado por um tio inquietou guinte!” Durante pouco mais de
migrou para São Paulo. E Nelo volta, mas já não tanto o romancista. Somente se livrou do “fantas- um dia perambula por ruas que
é o mesmo rapaz que sonhava fortunas e sucessos. ma” quando o jogou no papel e celebrou a desgra- o rejeitam. Não traz na aparên-
A cidade grande o tornou bruto, insensível, fracas- ça de saber que nem sempre a felicidade está além cia, nem nos bolsos, as riquezas
sado em todos os momentos, mesmo quando des- das próprias fronteiras. que São Paulo promete despejar
frutou de instantes felizes. É o que não sabe, ainda, o narrador Totonhim: em cada ponto de cada esquina.
Desta depressão previsível, da impossibilida- O cachorro e o lobo é
de de corresponder às expectativas geradas na parti- Quem não mudou em nada mesmo foi um lu- também uma história de fracas-
da, nasce a cena mais emblemática do livro, quando garejo de sopapo, caibro, telha e cal, mas a questão é sos, embora menos fatais que o
o irmão Totonhim encontra Nelo pendurado, com saber se meu irmão lembra de cada parente, (...) um romance que abre a trilogia. To-
a corda no pescoço, num armador de rede. É desfe- dia pegou um caminhão e sumiu no mundo para se tonhim, ao seu modo, prospe-
cho consagrado à maioria que migra, estender uma transformar, como que por encantamento, num ho- rou, mas tendo que entregar a
corda fatal para quarar e secar a alegria de recons- mem belo e rico. (...) Um monumento, em carne e osso. alma aos inimigos do pai, os ban-
truir a vida livre da determinante previsível e natu- cários. Para pagar um emprésti-
ral dos sertões, de todos os sertões. A cidade grande devolveu, de vera, apenas fra- mo de um incentivo federal para
O sentido emblemático do gesto, no entanto, cassos, pois o chamado exigia bem mais que apenas plantar juta, o velho terminou
é que o protagonista não mata apenas ele próprio, coragem e vontade. falido, tendo que vender a pou-
mas todo sonho de sua comunidade; a esperança ca terra que tinha. A mulher mu-
de deixar a miséria intrínseca, atávica. Chamado dara para Feira de Santana, em
Antônio Torres conta que começou a dese- Anos depois quem volta é Totonhim. A busca de estudos para os filhos, e
nhar seu livro depois de uma visita ao Junco. A ci- exemplo de Nelo, ele também migrou e voltou car- ele, o velho, é um lobo solitário
dade, há anos, mudou de nome, chama-se Sátiro regado de desesperanças. Veio para ver o pai, pois em terra alheia, enquanto o filho
Dias, mas o escritor ainda se apega ao topônimo e faltara às comemorações dos oitenta anos do velho. circula por uma cidade que mu-
aos sentimentos de antanho. Por isso o suicídio do “Uma festa de arromba, me disseram. No dia se- dou e o rejeita, como quem en-
ABRIL DE 2023 | 11

mortal comum, sobrevivente de seus próprios emba-


tes cotidianos, aqui e ali bafejado por lufadas da sorte,
mais a merecer uma menção honrosa pelo seu esforço na
corrida contra o tempo do que um troféu de vencedor.

Este é o Totonhim que volta, pela segunda


vez, ao Junco. Vem em busca de suas referências.
No tempo que ficou fora, construiu uma vida re-
gular. Agora, bancário aposentado, em crise con-
jugal, distante dos filhos, procura o elo perdido. E
Trilogia Brasil também a família que abandonou, que nunca dei-
ANTÔNIO TORRES xou se aproximar de fato da outra, a que construiu
Record em seus dias paulistanos. Os netos civilizados não
529 págs.
conhecem os avós sertanejos.
No meio disso tudo está o protagonista e seus
fantasmas.
Em Pelo fundo da agulha, Torres se utiliza da
dicotomia da expressão para dizer do eterno drama
do migrante. Há no título uma referência bíblica:
O AUTOR
é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma
ANTÔNIO TORRES agulha que um rico entrar no reino do céu. No en-
tanto, há também uma simbologia de resistência.
Nasceu em Sátiro Dias (BA), em 1940.
A velha mãe preserva a capacidade de botar a linha
Antes de chegar à literatura, passou
pelo jornalismo e, já em São Paulo,
no buraco da agulha sem precisar de óculos. Suas
pela publicidade. Viveu três anos em
visões, a natural e a do mundo, continuam sólidas.
Portugal e por décadas no Rio de E no protagonista permanece o legado da dú-
Janeiro. Estreou na literatura em 1972 vida. O que teria sido se não migrasse? É a angustia
com o romance Um cão uivando para do migrante Ferreira Gullar em seu Poema sujo:
a lua. De lá para cá, publicou mais de
vinte livros, o mais recente, Querida Se tivesse me casado com Maria de Lourdes,
cidade, em 2021. Sua premiada meus filhos seriam dourados uns, outros
obra, que passeia por cenários morenos de olhos verdes
urbanos, rurais e históricos, tem e eu terminaria deputado e membro
várias edições no Brasil e traduções
da Academia Maranhense de Letras;
em muitos países. É membro da
Academia Brasileira de Letras.
se tivesse me casado com Marília,
teria me suicidado na discoteca da Rádio Timbira.

Mas Ferreira Gullar, como Totonhim, mi-


grou. O poeta deixou um Maranhão de possibili-
dade até felizes, o protagonista de Torres, apenas as
incertezas. Poderia ter casado com a primeira na-
LEIA TAMBÉM morada, que desvirginou. Na volta ela estava des-
casada, o marido a rejeitou na lua de mel, por saber
que não era virgem. É o mesmo sertão de precon-
ceitos e dores, onde a condicionante do desconhe-
cido continua a ser uma saída para quem fica.
Sem direito à paixão ou ao reencontro com o
passado, o protagonista retoma o invencível desejo
da partida. A cidade já não é a sua cidade.

Círculo
Trilogia Brasil se estabelece como num círcu-
lo, começo, meio e fim não denunciados na leitura
Antônio Torres: avulsa dos romances. Em tudo, no entanto, sobre-
50 anos de literatura vive a impossibilidade de felicidades para quem bus-
Antônio Torres por Ramon Muniz ca fugir do sentido da própria vida. Lelo, mesmo
Org.: Aleilton Fonseca
Mondrongo tendo sido feliz um dia, com casa e família, vê tudo
424 págs. desmoronar no fim do trabalho e das esperanças.
Totonhim, com estabilidade de emprego e família
constituída, depois de aposentado, vê tudo escor-
rer, e já não tem referências de vida onde se apegar.
Linguagem e enredos se apresentam com o
sotaque próprio do escritor. O clima, no entanto,
xota um cachorro que perdeu todas as referências. lembra o mais profundo do realismo-mágico da li-
Persiste nesse texto o sentimento das diferenças. teratura hispano-americana. É possível encontrar
O lugar mudou, mas a transformação se dá como arre- ecos das incertezas e buscas inúteis do filho de Pe-
medo do que seus habitantes — ou poderosos de plan- dro Páramo, de Juan Rulfo, como a inadaptabi-
tão — pensam ser o sentido real do marco civilizatório: lidade diante da opressão e do imponderável de
estradas, comércios, televisões. Ou seja, possibilidade TRECHO
Garabombo, o invisível, de Manuel Scorza. Este
de fuga, pão, circo. E os filhos, com os mesmos apa- diálogo prova que nossos escritores nunca estiveram
ratos de antigamente, continuam buscando educação Trilogia Brasil isolados do resto do continente. Somos, dizem eles,
e saúde em outros cantos. “Um homem passa a cava- uma literatura unificada por nossos medos, sonhos
lo, chapéu de couro, jaleco de couro, perneira de cou- Os cabelos eu sempre preferi e dramas, bem mais comuns entre si do que parece
ro, sapato de couro cru — deve ser o último vaqueiro.” a quem a olha de maneira superficial.
loiros, quando os tinha. E
É também nesse romance que Antônio Torres A leitura da Trilogia Brasil revela um au-
define um dos cacoetes mais caros de toda sua litera- sinto pena de mim por não ter tor preocupado com o seu tempo, mais ainda com
tura, as referências musicais e literárias, que se acen- guardado a inocência e saber o aquilo que o passado entranhou no presente e de-
tuam em seu mais recente romance, Querida cidade. quanto acreditar na vida e no senhou para o futuro. Seus personagens são marca-
Estas citações, no entanto, servem como parâmetros dos por sentimentos incapazes de serem apagados.
amor é brega, piegas e sem o
de épocas, um contraponto fundamental para se en- Trazem na alma o profundo de uma cultura que se
tender toda a obra do escritor. mínimo direito a se tornar cult. gestou com os séculos. Em São Paulo ou no Junco
Canções pode se tornar cult; é o mesmo homem diante de um destino imutável.
Retorno flores plásticas podem sofrer essa Esses homens e mulheres, que de certa forma
Não o imagine um guerreiro que depois de todas as permearam toda a geração de escritores de 1930,
mutação; estampa de animais,
batalhas finalmente encontrou repouso, abraçado a uma continuam modernos, pois, como prova a prosa
deusa consoladora dos cansados de guerra. Seria um exa- cult. O amor não, o amor é certeira de Antônio Torres, são o retrato da própria
gero inscrevê-lo na lenda heroica. Esta é a história de um brega, sem remédio. alma brasileira.
12 | ABRIL DE 2023

olyveira daemon
SIMETRIAS DISSONANTES
Ilustração: Kleverson Mariano

CORPORAÇÃO
LIT EM PERIGO?

S
om e fúria. Uma cacofonia sem fim, cheia
de medo, distorções e falácias. Muito ca-
lor e pouca luz é o que o debate sobre as
plataformas ChatGPT, Stability AI, Mid-
journey e DeviantArt, enfim, sobre o comporta-
mento divergente da recém-nascida inteligência
artificial no campo da criação humana, está geran-
do há meses. Artistas, escritores e pesquisadores aca-
dêmicos gritam, esperneiam, chamam a polícia e
protestam nos tribunais. Mas a barragem rompeu-
-se e ninguém está conseguindo conter a inunda-
ção algorítmica. O gênio gigante engatinhou pra
fora da lâmpada e a histeria coletiva não está sendo
capaz de colocá-lo de volta.
Os artistas que estão processando as empre-
sas de inteligência artificial podem até vencer nos
tribunais, mas já perderam no campo da arte. Para
a apreciação artística, o que vale é o valor estético.
Então, se algo é esteticamente fascinante e revolu-
cionário, foda-se a ética.
Duas questões me ocorrem:
1. ChatGPT, a celebridade do momento, não
tem nem um ano. Foi lançado em novembro de
2022. Ainda é um Adamastor bebê. E já está cau-
sando o maior furdunço no mundo acadêmico. O
que não fará em dez, vinte, trinta anos de evolução
(machine learning)? ao leitor as paranoias e amnésias mistura de guarani, português e Drama saga é uma novela gráfica
2. Os programas de imagens estão muito de uma guerrilha obscura. Con- espanhol — impulsionada pelo produzida em parceria com o len-
mais avançados: Stability AI, Midjourney e De- tra o tecnológico Neverland Ins- poeta Douglas Diegues no final dário quadrinista e ilustrador mi-
viantArt. Eles realmente criam desenhos, fotos titute, corporação de engenharia do século passado. neiro Mozart Couto. A saga é
e pinturas sensacionais. Tanto que alguns artis- genética e outras pesquisas pós- protagonizada por Antônio Eu-
tas estão de fato processando as empresas que os -humanas, posiciona-se a sorra- BioCyberDrama saga clides (batizado em homenagem
criaram. Mesmo que esses artistas vençam nos tri- teira Divisão dos Não-Lineares, Visões dentro de possessões. a Antônio Conselheiro e Euclides
bunais, será que isso impedirá a difusão clandesti- organização secreta que luta pra Transmutações dentro de revolu- da Cunha), um homem conserva-
na desses programas? impor certa ordem no caos das ções. Música eletrônica, realida- dor, pertencente ao pequeno gru-
Os poetas e ficcionistas estão mais preocu- Personalidades Intercambiantes. de aumentada, figurino exótico po dos resistentes, formado pelos
pados com o ChatGPT e similares, obviamente. São agentes da Divisão o e imersão amorosa no corpo an- poucos seres humanos que evitam
Temem o fim humilhante de nossa vaidosa corpo- aloprado Zed Stein, a multifaceta- cestral da natureza. Muitos ain- qualquer aperfeiçoamento biotec-
ração. Não apreciam a beleza justiceira do pavio da Baby Gasoline e o gorila albino da não sabem, mas um ciberpajé nológico. Estamos no século 30
aceso — bomba, fogo no parquinho! —, que tanto Butthole Kongo, pra quem “Deus — o primeiro da Terra Brasilis da era Cristã. Além dos resisten-
me agrada. Gosto de pensar que a inteligência arti- é noise, barulho preto, ruído bran- — vive entre nós há quase duas tes, duas outras espécies disputam
ficial irá revolucionar — metamorfosear — a cria- co, papo reto, pau a pau”. J. D. décadas. Convergindo as habili- o domínio político do planeta: os
ção literária. E fará isso com violência, até o ponto Salinger e Philip K. Dick, renas- dades mágicas e místicas de uma extropianos e os tecnogenéticos.
de fervura, chegando bem perto do extermínio des- cidos, também são agentes. Não autoridade indígena e a curiosi- Os extropianos são cons-
sa antiga arte, tão nobre e complexa. são os mais excêntricos. Traba- dade científica transformadora de ciências humanas transferidas para
Não tenho bola de cristal, mas recomendo lhando juntos num apartamento um tecnoartista, nosso ciberpajé máquinas de todos os tipos e com-
que, para adiar ao máximo o apocalipse criativo, os do edifício Copan, há um viden- viaja no tempo e no espaço, in- plexidades, e representam sessenta
autores concentrem toda a sua potência na escritu- te chamado Fabrizio e um tuba- vestigando os impasses assombro- por cento da população da Terra.
ra de obras excêntricas, estranhas, insólitas, bizar- rão-tigre hermafrodita chamado sos da sociedade pós-humana que Os tecnogenéticos são seres orgâni-
ras, expressionistas, quero dizer, verdadeiramente Hannah, emanação carnívora da um dia substituirá a nossa. cos híbridos — uma mistura bioge-
autorais. Suspeito que as máquinas chegarão a esse misteriosa Mnemomáquina. Sua Se você pesquisar na web, nética de humano, animal e vegetal
território entrópico, não-racionalista, tendendo ao missão é enviar aos agentes do descobrirá que Edgar Franco, o — e representam trinta e cinco por
abstrato, somente no finalzinho de sua campanha passado mensagens colhidas no Ciberpajé, é mineiro de Ituiu- cento da população. Os cinco por
de conquista da subjetividade humana. futuro, “para, quem sabe, melho- taba, graduado em arquitetura, cento restantes são representados
Mnemomáquina, de Ronaldo Bressane, e rar este presente absurdo em que mestre em multimeios pela Uni- pelos resistentes. As três espécies,
BioCyberDrama saga, de Edgar Franco (rotei- vivemos”. À margem dessa comu- camp, doutor em artes pela USP, não é preciso dizer, vivem em cons-
ro) e Mozart Couto (arte), são ótimos exemplos de nidade de conspiradores, vivem os pós-doutor em arte e tecnociência tante estado de tensão ideológica,
obras — verdadeiramente autorais — que forma- indigentes e os superfodidos, ca- pela UnB e professor da faculdade sempre alimentada por ações terro-
rão a última linha de defesa da cidadela literária. çando e coletando no traiçoeiro de Artes Visuais da Universidade ristas e doutrinação radical.
Rio-Mar. No piso mais baixo e Federal de Goiás. Mas essa é ape- O mais fascinante em
Mnemomáquina podre da pirâmide da escrotidão nas sua persona acadêmica, sua BioCyberDrama saga e em to-
Estamos em 2054. Choveu tanto que São estão os abjetos Coisos, segrega- identidade apolínea e civilizada. da a proposta multimídia da Au-
Paulo virou uma Veneza de marés fétidas sob um dos na Interzona. Amalgamado ao professor-pes- rora Pós-humana é a riqueza de
céu cítrico, com canais envenenados riscados por Alguns capítulos desse me- quisador está o feiticeiro tropical, detalhes culturais, científicos, re-
hovercrafts cheios de passageiros, além de colônias canismo mnemopolifônico fun- o tecnobruxo dionisíaco e deli- ligiosos, políticos, sociológicos,
subaquáticas na avenida Berrini e uma praia ines- cionam isoladamente, como rante que organiza performances- geográficos etc. Dialogando com
perada onde hoje é a praça Benedito Calixto. Psico- se fossem um conto. O de nú- -rituais multimídias com a banda o melhor da tecnoarte e da ficção
pombos falantes infestam o mundo. Esse labirinto mero 19, por exemplo, batiza- Posthuman Tantra e produz qua- científica contemporâneas, Edgar
de lixo biológico e industrial, desenhado pelas gran- do Los cibermonos de Locombia, drinhos poético-filosóficos, sobre Franco, nosso Ciberpajé, criou
des enchentes, chama-se agora Cidade-Olho. é uma obra-prima. Esse capítu- o evento por ele batizado de Au- uma rede densa de pormenores,
Mnemomáquina é um romance fragmentá- lo é um irreverente relatório de rora Pós-humana. que continua se expandindo e ali-
rio, em que cada um de seus quarenta e três capítu- Zed Stein escrito em portunhol Parte importante desse pro- mentando outros trabalhos indi-
los — mais um preâmbulo e um epílogo — revela selvagem, onda transgressora — jeto em progresso, BioCyber- viduais e coletivos.
ABRIL DE 2023 | 13

A força da
ANA ALEXANDRINO

Se apaixonaram um pelo ou-


tro justamente por isso, afinal es-
tranhar as mesmas coisas era uma
afinidade importante, uma oportu-

memória
nidade maior até mesmo do que gos-
tar das mesmas coisas.

A união de Natália e Vicen-


te dura até a morte do marido, nos
braços da protagonista. Entre o
Em Humanos exemplares, idealismo comum e a rotina para-
Juliana Leite tece uma narrativa da de dois aposentados, o romance
mostra uma relação conjugal feliz,
em que a metafísica temporal mas não utópica. Em certo mo-
se coloca em desordem mento do casamento, o silêncio, os
desencontros e os segredos rodam
o casal, de modo que Humanos
exemplares aborda as ocasionais
GIOVANA PROENÇA | TAUBATÉ – SP
disjunções do arranjo familiar,
quando tanto Vicente quanto Na-
tália vão procurar satisfazer os seus
desejos com outros pares.

À
Na juventude de professo-
primeira vista, Humanos exemplares é uma ra, ela também encontra conforto
ficção em que há mais passado do que futuro. nos “queridos”, o grupo de ou-
Na trama de Juliana Leite, a centenária Na- tros docentes que busca enfrentar
tália passa os dias no marasmo de seu apar- o turbulento momento históri-
tamento, isolada devido a uma ameaça externa — o co brasileiro: os Anos de Chum-
que nos remete à recente pandemia. O presente, para bo. As reuniões são permeadas de
a personagem, é ínfimo. Ela é captada pela lembran- afeto e proximidade. Ela recorda:
ça dos seus queridos, pessoas que já morreram, mas
cujos afetos continuam a rondar a rotina por meio da Seriam companheiros fiéis en-
lembrança. Natália reflete: “Nesse ponto da existên- tre si e companheiros fiéis da juven-
cia o passado é o único futuro, o único lugar onde al- tude enquanto tivessem vida e pele,
guns encontros ainda acontecem”. não abandonariam aquele posto
Nesse sentido, a memória é o grande tour de force nem mesmo se a escola explodisse ou
do romance. Ela atua como um redemoinho, atraindo desabasse — era assim mesmo que se
Natália para o seu centro, no qual há a possibilidade sentiam, uma velha de apartamen-
de contato com o passado perdido. A memória alcan- to pode afirmar.
ça um caráter dúbio dentro dessa ficção. Temos traços
A AUTORA
de Eulálio — o também centenário —, protagonista Aproximações ra de uma vida plena. Natália re-
do Leite derramado (2009) de Chico Buarque, para Neste arranjo, eles também JULIANA LEITE siste a um sistema de aniquilação
quem a memória “é deveras um pandemônio, mas es- conhecem Jorge, misterioso mo- dos afetos, cada vez mais infesta-
Nasceu em Petrópolis (RJ), em 1983.
tá tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é rador de rua que vê o destino nas do socialmente, o que lembra, por
Seu primeiro romance, Entre as mãos
capaz de encontrar todas as coisas. Não pode é alguém cartas. Sarah, a amiga mais próxi- (2018), recebeu os prêmios Sesc
exemplo, a luta social de Janina
de fora se intrometer, [...] como a filha que pretende ma de Natália, torna-se dona de e APCA e foi finalista dos prêmios
Dusheiko, a protagonista de So-
dispor minha memória na ordem dela, cronológica, al- uma loja de biscoitos, após ser im- Jabuti, São Paulo e Rio de Literatura. bre os ossos dos mortos, da No-
fabética, por assunto”. pedida de vender os seus quitu- bel Olga Tokarczuk.
Bem colocada é a sentença de William Faulk- tes na escola. Ela funciona como Quando se tem um século
ner, presente na orelha de Humanos exemplares, um apêndice do ambiente fami- de vida, a morte é algo a se esperar.
“a afirmação redonda e idiota do relógio”. Assim co- liar. Por último, resta a filha, que Para Natália, essa espera é amena.
mo o escritor norte-americano, Juliana Leite tece uma mora em outro país e telefona dia- Humanos exemplares, embora
narrativa em que a metafísica temporal se coloca em riamente para a mãe. Natália se com uma protagonista idosa e am-
desordem, em que os tempos se ultrapassam e interpe- lembra do relacionamento da fi- bientado entre momentos tensos
netram. A idade de Natália, o correr dos anos e o isola- lha e de sua companheira de qua- (a ditadura militar e ecos da pan-
mento presente a fazem viver em uma temporalidade se quarenta anos, iniciado ainda demia de covid-19), não é uma
fora da cronologia do tempo físico. Assim como Quen- na adolescência. ficção sobre a morte. Assim como
tin Compson, figura trágica de Faulkner em seu O som As recordações da protago- A morte de Ivan Ilítch, do russo
e a fúria (1929), Natália tenta escapar do mausoléu do nista a transportam até os Anos Tolstói, nos diz muito sobre a vi-
relógio, mas, “o tique-taque não parou”. de Chumbo, período mais recru- da de seu personagem, o romance
descido da Ditadura Civil-Mili- de Juliana Leite nos oferece lapsos
Tom memorialista tar (1964-1985). A repressão se Humanos exemplares da vivência de Natália. Como po-
Essa temporalidade, centrada no passado, de- instala lentamente, invadindo o JULIANA LEITE demos notar, os fragmentos des-
termina também o tom memorialista do romance. microcosmo da escola. O famo- Companhia das Letras sa vida são repletos de plenitude.
248 págs.
Com este, temos uma interessante técnica: a ocasio- so macarrão feito pela professora, Humanos exemplares dei-
nal coincidência entre primeira e terceira pessoa. Es- que servia para aproximá-la dos xa ao leitor uma profunda refle-
sa focalização atua na cisão da voz narrativa. Entre alunos, é visto com suspeitas pe- xão sobre a dor de quem fica.
o tempo vivido e o tempo narrado, há espaço sufi- los policiais. As suas aulas de re- Mais do que isso, há um ques-
ciente para ser duas, nos mostra a forma do roman- dação são limitadas, tornando-se TRECHO
tionamento: quem vai lembrar
ce de Juliana Leite. apenas um exercício de caligrafia. daqueles que permanecem? Nes-
O poder das lembranças está em primeiro plano Vicente, professor de geografia, Humanos exemplares se sentido, o romance de Julia-
na narrativa. Em grande parte de Humanos exempla- sofre duramente com a censura. na Leite é uma ode à lembrança,
res, Natália não é nomeada. Ela é a velha, a professo- Por fim, ele tem que passar seis Ela abre os olhos para mais um na qual se conectam o passado, o
ra, a mãe. Afinal, o nome é para ser usado pelos outros meses escondido no porão de um presente e também o futuro.
dia e já não pode impedir a si
— só há serventia quando temos alguém para chamá- amigo em Petrópolis. A experiên- Em um primeiro momen-
-lo — e os queridos de Natália já estão mortos. A úni- cia opressiva marca a vida do casal, mesma de se sentir um pouco to, parece não haver futuro possí-
ca exceção é a filha, cujas ligações diárias são o único que pensa constantemente em fu- livre, ela se sente assim, como vel no romance. Mas logo somos
alento da protagonista, o grande acontecimento da ro- gas e modos de desaparecer. alguém que dormiu numa introduzidos aos mapas de Vicen-
tina pacata da velhice. Mas, para ela, Natália é a mãe. Humanos exemplares adi- te, resultados de uma atividade na
rede fresca e acordou livre para
Os queridos de Natália, como ela os chama, con- ciona novos tons à literatura que qual ele propõe aos alunos traçar
tinuam a ser o seu conforto, ainda que não mais exis- se concentra na vivência da ve- escolher o que fazer em uma um mundo ideal. Nisso reside o
tam concretamente. Entre eles estão o marido, Vicente, lhice. A narrativa memorialista manhã comum. Quem olha futuro; não individual, mas co-
que dava aulas na mesma escola que ela e foi arrebata- de Natália a aproxima de nomes de fora percebe que seus ossos letivo, com a transformação em
do por seu macarrão. Embora não existisse em ambos como o Eulálio de Chico Buar- uma nova humanidade. Huma-
despertaram firmes sobre a
o pensamento de se casar, logo eles percebem que en- que e o Bento Santiago de Ma- nos exemplares, como toda dose
tre os encontros furtivos e o casamento havia uma li- chado de Assis. Ainda assim, há cama, mais ou menos firmes, e de boa literatura, nos lembra das
nha tênue. O amor é explicado na narração: algo novo, concentrado na ternu- isso sim é uma surpresa. infinitas possibilidades.
14 | ABRIL DE 2023

Um túmulo Este bicho andejo que é o


café estimulou a vocação de um
grupo social que não se fixara em
nenhuma destas áreas com mais

para meu avô


recursos, procurando as regiões
ainda selvagens do Norte do Pa-
raná, que estava sendo desmatado
por esta altura. No novo territó-
rio, meus familiares continuaram
se mudando ciclicamente, talvez
como forma de demonstrar des-
A linguagem e a ficção como potentes maneiras de contentamento com o país a que
acabaram condenados.
registro de um ancestral sem berço, sem túmulo Um dos resultados des-
ta mobilidade é que se encontra-
vam sempre em áreas novas, sem
MIGUEL SANCHES NETO | PONTA GROSSA – PR maiores estruturas. Os filhos não
puderam estudar, repetindo assim
uma sina histórica. Meu pai mor-
Ilustração: Tereza Yamashita reu analfabeto em 1969, ideali-
zando para a prole a conquista de
Bichos andejos alguma escolaridade. O café os ha-
Neto de espanhóis por parte via deixado nus, tal como as terras
de avô paterno e bisneto por par- improdutivas. Mas a nudez deles
te de sua esposa, não herdei deles era de palavras.
nenhuma palavra em castelhano. A Esses agricultores não só
língua ancestral não foi transmitida não dominaram nenhum idioma
na sucessão das gerações não ape- escrito como perderam o que ori-
nas pela interrupção da vida de Mi- ginalmente falavam. Convivi com
guel Sánchez, morto muito cedo, três irmãos de meu avô e nunca
mas também por um apagamento ouvi deles nenhuma palavra em
do idioma pela falta de uso. Este ra- sua língua primeira. Não havia
mo de minha gente chegou ao Bra- nem mesmo um sotaque que os
sil em 1912, ano conhecido como o ligasse ao país anterior.
do grande dilúvio migratório, pas- Diferentemente das comu-
sando a viver em colônias domina- nidades alemã, japonesa e italiana,
das por etnias mais coesas — como entre as quais se manteve a língua
os italianos e os japoneses. Assim, — ou, no mínimo, traços dela —
forçosamente, o português foi a e outras marcas culturais, os espa-
língua de contato, destinando o es- nhóis dos quais descendo não nos
panhol a um lugar cada vez mais transmitiram nada, prendendo-
secundário no cotidiano de nossa -nos a um universo monolíngue,
família, até que ele desaparecesse. em que o verdadeiro código es-
Pesou para isso também a trangeiro que devíamos aprender
constante mudança a que eram era o português culto, pois fala-
obrigados os que não tinham um vam uma variante sertaneja, acai-
pedaço de terra. Naquele momen- pirada, própria dessas latitudes.
to, os contratos mais vantajosos Nelas, em pequenas cidades
eram os que previam a derruba- interioranas, sem maiores oportu-
da da mata e o plantio de cafezais nidades de estudo, num período de
nos extremos dos sertões de Arara- fechamento do Brasil, o da Ditadu-
quara, interior de São Paulo, o que ra Militar (1964-1985), minha ge-
os empurraria sempre para novas ração tentou dominar de forma um
áreas, como trabalhadores tempo- pouco menos precária o português
rários, num permanente desenrai- — idioma materno e estrangeiro;
zamento, dificultando o cultivo de língua de acolhida e de apagamento.
tradições. Estes contratos previam
o direito de plantar arroz, feijão, Perder o idioma,
milho e batatas nas linhas entre os perder pessoas
pés de café, o que representava um Tal pobreza de linguagem
ganho adicional. Com o café já for- se reflete também na ausência de
mado, não havia mais espaço para documentos sobre este grupo, de-
esta prática, o que obrigava quem monstrando uma carência total de
precisasse aumentar os rendimen- bens legados. Não nos chegaram
tos a ir para outras regiões que ain- informações mínimas sobre o pro-
da estavam sendo desbravadas. cesso de imigração deles.
Não existem documentos Não tenho de meu avô se-
sobre a itinerância de meus fami- quer uma foto. Nem mesmo uma
liares pelo Brasil, mas tais mudan- agricultura numa época sem adubações, em que se precisa- descrição física por parentes. So-
ças eram muito comuns entre os vam de solos virgens. Há uma discussão entre os nortistas, breviveram apenas alguns epi-
espanhóis que chegaram tarde, em recentes naquela paisagem, e os paulistas, favorecidos pela sódios de sua vida, narrados de
um momento de saturação imigra- riqueza desta lavoura. São os migrantes, no entanto, que re- forma fragmentária, em estado de
tória. O ciclo de abertura das terras velam uma verdade sobre tal sistema. ruína, por sua viúva. Com estes
e de cultivo de mantimentos dura- trapos memorialísticos, não é pos-
va em torno de cinco anos, ao final O paulista, furioso, quis intimidá-lo. sível reconstituir uma biografia.
dos quais o grupo de trabalhadores — O melhor, cabra, é tu te calares, porque tu estás na Em tentativa recente de
sem posses era empurrado à próxi- pátria alheia. restaurar a sua trajetória, um dos
ma fronteira da cafeicultura. Du- — Terra estranja — gritaram os camaradas nortistas. meus objetivos principais era de-
rante quase 50 anos, manteve-se — Olha, paulista, deixa de arreliação e de pabulagem. finir de que região da Espanha
esta diáspora interna e permanen- Tu só arrotas café, café. Vai te fiando. Nós somos da terra de a família viera. Sabíamos vaga-
te, que reforçava a diáspora maior. cana, que dá açúcar, cachaça, melado, rapadura. Açúcar já foi mente que meu avô chegara aos
A parte final do romance A rei. Açúcar pagou a independência do Brasil. Realeza do açú- 8 anos de idade no Porto de San-
viagem maravilhosa (1929), de car acabou, acabará também despotismo de café. tos, em São Paulo. Havia nascido
Graça Aranha, um dos autores de Outro cangaceiro gritou, ameaçador: em 1905 e se casara no municí-
nosso Modernismo, se passa numa — Toma tento, paulista velho, café é bicho andejo. Ca- pio de Dobrada, em 1925. Dis-
fazenda no Estado de São Paulo e fé te deixa nu na estrada, como já deixou Rio de Janeiro. Ca- púnhamos também dos nomes de
denuncia esta natureza móvel da fé agora só procura por Paraná e Mato Grosso... seus pais e irmãos, sem saber quais
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co vantajosas, que não lhes per-


Meu pai morreu analfabeto em 1969, mitiram vencer a pobreza da qual
fugiam, antes aprofundando-a,
idealizando para a prole a conquista pois acabaram destinados a uma
vida errante. Este excedente hu-

de alguma escolaridade. O café mano ajudava a diminuir o preço


de produção do café, tornando-o

os havia deixado nus, tal como as mais rentável e competitivo no


mercado internacional.

terras improdutivas. Mas a nudez Passaporte ficcional

deles era de palavras. Continuo não sabendo de


onde a família de meu avô veio.
Provavelmente de algum povoa-
do da Andaluzia, região que mais
mandou gente para a lavoura ca-
destes nasceram no Brasil, quais documento não fazia referência a isso, constando ape- Meus antepassados não se feeira paulista neste período e
na Espanha. Consultando os pa- nas que era genericamente da Espanha. No município enquadrariam no grupo dos pro- que foi referenciada por minha
rentes mais velhos a que tive aces- vizinho, Santa Ernestina, tentei achar o seu atestado prietários de terras que vendem avó em algum momento de nos-
so, pois a nossa não é uma família de óbito no cartório, mas ele jamais foi lavrado. Nem pequenas áreas para tentar o enri- sas conversas, embora outros
que se reúne nem mesmo para se do livro de enterros da prefeitura constava seu nome. quecimento em outro país. Tudo locais também apareçam na me-
desentender, ninguém conseguiu De tal forma que meu avô nasceu não sabemos indica que partiram com pouco mória escassa que guardamos de
me informar nossa procedência. onde e foi enterrado também em lugar incógnito, sem dinheiro (fruto da venda de mo- suas recordações. Só posso pen-
Em criança, convivi com minha que se possa precisar sequer o ano em que isso ocor- bílias e do acúmulo de jornadas sar nestas origens familiares em
avó, e me lembro de ouvir dela reu. Faltam-lhe berço e túmulo. A única certidão sua de trabalho) e se valendo dos sub- termos aproximativos, de pro-
duas referências geográficas recor- que há é a de casamento, com dados errados, como o sídios, o que os levou a uma exis- babilidades estatísticas. Não há
rentes — Málaga e Navarra. Que- nome de sua mãe e a idade de sua noiva. tência errante durante décadas. como olhar o mapa da Espanha,
ria agora delimitar com alguma O apagamento da língua espanhola no interior Nada (ou pouco) tinham na Es- fincar o dedo em um lugar e di-
precisão os pontos de partida. de nossa família faz parte de um movimento maior, panha e continuaram não tendo zer: somos daqui.
A primeira pesquisa foi fei- do próprio apagamento das pessoas, que não tiveram nada nos sertões de São Paulo e Sem nenhuma província, ci-
ta nas atas da Hospedaria dos documentado seu curso existencial. Deixando o cam- depois do Paraná. dade ou povoado para tratar como
Imigrantes, em São Paulo, desti- po histórico rumo ao poético, seria aceitável afirmar Devem ter sido seduzidos terra ancestral, resta-nos o país in-
no de quem procurava se colocar que o memorial que coube ao meu avô foi a repetição pela propaganda da empresa de teiro, ao qual nos ligamos com um
nas atividades produtivas do Bra- de seu nome no meu. navegação contratada em 1897 sentimento genérico de pertenci-
sil. A hospedaria funcionava como Em um dístico de versos livres publicado em para remeter imigrantes ao Brasil. mento, passando por cima de de-
um estoque de mão de obra bara- minha segunda coletânea de poemas, Venho de um Era a firma José Antunes dos San- fesas de culturas regionais (que são
ta, oportunidade de negócios para país obscuro (2000), explorei alguns sentidos des- tos & Cia, com sede em Lisboa micronacionalismos) e de desejos
os fazendeiros que já não podiam ta sobreposição. e sucursal em Gibraltar. Os seus de separação. Não nos sentimos
contar com a escravidão. Muitos agentes, os ganchos, percorriam os bascos, galegos, catalães, andalu-
trabalhadores vinham, no entan- Meu avô e meu pai eram analfabetos. povoados, arregimentando candi- zes etc. E este apagamento talvez
to, com destino certo, agenciados Como pesa este nome: Miguel Sanches Neto. datos para a viagem subsidiada, tenha um valor simbólico em um
por profissionais ligados às com- com promessas de terra e pros- momento em que se precisa reafir-
panhias de navegação que faziam Em mim, meu avô encontrou um registro, um peridade. Também orientavam o mar a ausência de fronteiras.
o transporte do contingente de lugar de permanência pela linguagem, um túmulo on- que devia ser feito para fugir aos O que nos torna, na condi-
esfomeados ou iludidos por novas de pudesse ser lembrado. Carrego comigo este morto. trâmites legais de imigração im- ção de descendentes sem passapor-
oportunidades. Estes seguiam di- O Nobel francês Patrick Modiano, que compõe postos pelo governo espanhol. te europeu, espanhóis a distância
reto para as fazendas, num fim de seus livros como tentativas detetivescas de reavivar mi- Em 1910, diante da denúncia não é sequer o idioma preponde-
linha qualquer, podendo ou não nimamente a lembrança de pessoas que não deixaram das más condições de trabalho rante do país, substituído entre
passar algum tempo na hospeda- maiores sinais da própria existência, diz em Ronda da na construção da estrada de ferro nós pela língua portuguesa, há-
ria. Outros ali permaneciam até noite (1969): “Se não escrevesse seus nomes não have- Madeira-Mamoré e dos conflitos bitos alimentares ou o cultivo de
acharem uma colocação, o que era ria nenhum resquício de sua passagem pelo mundo”. entre os colonos e os fazendei- outros traços culturais próprios da
uma questão de dias, pois a neces- No meu caso, se o nome de meu avô não estivesse ins- ros paulistas, para quem mes- pátria antiga, e sim a capacidade
sidade os tangia aos piores postos crito no meu, ele talvez restasse apagado para sempre. mo os nortistas eram estrangeiros de sonhar-se, de repovoar o passa-
de trabalho. Nas atas da hospeda- Como em tudo que marcou esta biografia, há (de acordo com o depoimento do, afirmando pela ficção nomes
ria, não encontrei referência ao aqui também um erro, um desvio. Em mim, seu so- romanceado de Graça Aranha), sem densidade de memória, feitos
meu bisavô e seus filhos. Ou pas- brenome não manteve a grafia original, num processo e para tentar conter o derrame de ar. É pela invenção que convo-
saram por aquele mercado huma- acidental (por parte do cartorário) de aportuguesa- emigratório, o governo espanhol co seres que não deixaram sinais de
no sem registro (uma possibilidade mento, cifrando assim a perda do próprio idioma. proíbe a vinda subvencionada pa- sua existência, propondo-os como
bastante forte dado o grande nú- ra o Brasil, obrigando os que não figuras históricas, que assim se fa-
mero de pessoas nas levas imi- Fome de terra tinham outros meios de fazer a zem a partir do momento em que
gratórias, que seriam acolhidas Se não posso conhecer a história de indivíduos es- travessia a alcançar Gibraltar, co- ganham alguma espessura de lin-
informalmente nos alojamentos) pecíficos, cabe-me intuí-la por movimentos históricos lônia inglesa, vencendo a pé mui- guagem. Se suas vivências são in-
ou foram encaminhados sem es- maiores. Meus antepassados estão representados nestas tos quilômetros. Permaneciam ventadas, isso não inviabiliza a sua
calas a alguma fazenda. fotos de grupos de imigrantes que esperam a partida em aguardando na fronteira a pas- historicidade, antes lhes dá uma
Esta primeira frustração vários portos da Europa ou que chegam enfim à Améri- sagem de navios oriundos prin- estatura mais representativa.
apontava para ingressos não oficiais ca. São faces anônimas às quais colo seus nomes, em um cipalmente da França e da Itália,
no país. Restavam quase mil listas processo de fundação falseadora. Sem traços memoriza- para então partirem. Eis a hipó-
de bordo dos navios que atracaram dos entre nós, eles ganham rostos-padrão, que servem tese mais forte da maneira como
em Santos naquele ano. Minha ir- a uma época toda. meu povo fez a viagem, porque
mã e eu fizemos a conferência de- A diáspora espanhola não tem uma causa úni- a mais comum num período de
las, uma por uma, linha por linha. ca, embora a principal talvez seja o anseio por no- fuga em massa. “Estima-se que
Encontramos nomes parecidos, vas oportunidades de escrever a própria vida. Marília 10% da população espanhola te-
mas a composição familiar não Klaumann Cánovas, em Hambre de tierra (2005), nha emigrado entre 1901-11, e
permitia que os tomássemos como aponta para a diversidade de razões que levavam uma desse contingente, 80% seriam
parentes. Eles também não figura- família ou uma pessoa sozinha a cruzar o oceano, de- camponeses, sobretudo de zonas
vam entre os passageiros contabili- safiando a sorte e, em certo momento, a proibição de tipicamente minifundiárias” (cá-
zados. Havia uma clandestinidade imigrar com a ajuda financeira do Brasil. O que ela novas). A probabilidade de que
documental que iria se confirmar chama de grande derramamento populacional teria os meus façam parte destas esta-
ao longo da pesquisa. como causa ora as más colheitas, as secas, as inunda- tísticas é muito grande. Assim, se
Tendo se mostrado sem efi- ções, ora as guerras coloniais, o caciquismo, o direito seus nomes não estão nos registros
cácia estes documentos da imi- hereditário à propriedade, o latifúndio, o minifún- de entrada no Brasil, dificilmente
gração, partimos em busca dos dio, a superpopulação, a miséria, a desmoralização da estariam nos de saída da Espanha.
registros pessoais. Fui a Dobrada sociedade e mesmo o espírito de aventura do povo. Chegados em um período
para retirar a segunda via da certi- Observando minha família, vejo que também contou de excesso de mão de obra, teriam NOTA
dão de casamento de meu avô, na e continua contando certa inquietude que nos joga que buscar as regiões mais remo-
Este artigo apresenta o contexto que o autor
esperança de que ele houvesse de- de um canto a outro. Deste traço familiar nasce uma tas, as bocas das matas, e disputar explora ficcionalmente em seu novo romance
clarado de que região imigrara. O energia centrífuga ainda ativa. espaço aceitando condições pou- Inventar um avô (Maralto, 2023).
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wilberth salgueiro to ainda mais se expande quando,


no fecho, se impõe fantasmática a
SOB A PELE DAS PALAVRAS imagem dos “olhos que estão sem-

CEGA,
pre abertos” em direção à imensidão
do céu e, no entanto, nada veem.
A semelhança sonora entre “cega”
e “céu” produz outro conflito entre
contrastes, pois, sendo cega, mes-
mo olhando em direção ao céu, na-
da vê. Tal qual “cega” parece estar

DE FRANCISCA JÚLIA
em parte já em “trôpega”, também
os “olhos” foram sequestrados pelos
“escolhos”, isto é, pelos perigos, pe-
los obstáculos da existência.
A alusão à poesia, ao fim, que
aproxima a condição amargurada
da cega à tristeza que toma conta da
poeta, insinua que a expressão “arri-
Trôpega, os braços nus, a fronte pensa, várias zes”), a mulher cega e idosa (“linguagem senil das mada ao bordão” pode ser lida em
vezes, quando no céu o louro sol desponta, suas velhas árias”) caminhando bem cedo (“o sol dupla chave: a imediata, referida à
vejo-a, no seu andar de sonâmbula tonta, desponta”), com dificuldade (“trôpega”), calada e situação da cega, amparada a uma
despertando a mudez das vielas solitárias. só (“mudez das vielas solitárias”), amparada em muleta (ou cajado); ou, sutil, à pró-
muleta, ora ensimesmada, ora interagindo com pria poesia, considerando que “arri-
Arrimada ao bordão, lá vai... Imaginárias transeuntes, aos quais conta algo de sua sofrida mado” é “pôr em rima”, “empilhar”,
cousas pensa... Verões e invernos maus afronta... existência; nos dois tercetos, a poeta pergunta por e que “bordão” é “aquilo que se re-
Dores que tem sofrido a todo mundo conta que o destino (“negra mão”) impingiu-lhe a ce- pete”. Ou seja, tal qual a velha cega,
na linguagem senil das suas velhas árias. gueira e, por fim, se solidariza com a velha: sua cujo cotidiano é atravessado por sua
ausência de visão produz em ambas — poeta e condição de “treva”, a poeta e o poe-
Cega! que negra mão, entre os negros escolhos cega — uma “poesia amargurada”. Também em ma “várias vezes” repetem, arrimam,
do caos, foi procurar a treva, que enegrece, outros poemas, de modo bem diverso de seus co- empilham essa trágica e amargurada
para cegar-te a vista e escurecer-te os olhos? legas parnasianos (e de poetas em geral), Francisca condição: o título Cega e a reitera-
Júlia se solidariza com personagens subalterniza- ção do termo três vezes, mais as cin-
Cega! quanta poesia existe, amargurada, dos ou desprezados no cotidiano: uma costureira, co ocorrências no terceto de “negra”,
nesses olhos que estão sempre abertos e nesse em Rústica; uma jovem trabalhadora, em A floris- “negros”, “treva”, “enegrece” e “escu-
olhar, que se abre para o céu, e não vê nada!... ta; uns “pássaros feridos”, em A caçada; e alguns recer-te”, exemplificam, no poema,
velhos, como em A um velho, que “vive de gozar a acepção de bordão como repetição
Cerca de setenta poemas, sonetos em sua a pungente saudade/ das noites sem abrigo e dos para obter efeito estético (em parale-
maioria, e algumas traduções compõem toda a dias sem pão”. Seria mesmo esse o comportamen- lo à acepção de “cajado”).
obra de Francisca Júlia — obra tão curta quanto to de uma “musa impassível”, como se quer rotu- No excelente ensaio Cegueira
a vida: faleceu, ao que parece um suicídio, aos 49 lar a poesia de Francisca Júlia? e literatura, em Crítica em tempos
anos, em 1920, horas após o velório do marido. Aqui, não há que se confundir, ainda que in- de violência (2012), Jaime Ginz-
Publicou dois livros de poemas: Mármores, em separáveis, sentimento e pensamento. No soneto, burg parte de uma obra de Cildo
1895; e Esfinges, em 1903, no qual revê o livro ademais em qualquer poema, a emoção deve querer Meireles (O espelho cego), para arti-
de estreia, mantendo ou incluindo obras, e acres- “encontrar a mais justa adequação” (Caetano). As- cular uma vasta rede de obras que,
centando inéditas (Cega é um dos novos sonetos, sim, na forma mesma sentimento e pensamento se a seu modo, pensam essa questão:
tendo antes sido publicado pelo irmão Júlio Cé- encontram. Já no primeiro verso temos uma mos- desde o grego Tirésias, passando
sar na revista Illustração ainda em 1903). Os títu- tra dessa isomorfia, com os encontros consonantais por contos de Guimarães Rosa (São
los chamam a atenção, como se fizessem um arco — “Trôpega, os braços nus, a fronte” — encenando Marcos) e Clarice Lispector (Amor),
da objetividade fria do Parnasianismo aos misté- o próprio andar trôpego, dificultoso da cega idosa pelo filme Dançando no escuro, de
rios místicos do Simbolismo. Na história da poesia de muleta. Essa hesitação no andar tem eco no uso Lars Von Trier, até se deter em um
brasileira feita por mulheres, o nome de Francis- da mesma palavra, “pensa”, com sentidos diferen- poema de Lara de Lemos (Cegos) e
ca Júlia constitui um marco incontornável, sen- tes: em “fronte pensa”, o adjetivo “inclinada, desa- uma crônica de Paulo Mendes de
do, por exemplo, a primeira poeta a aparecer com jeitada, caída”; em “cousas pensa”, o verbo “reflete, Campos (O cego de Ipanema). Ginz-
um poema, Musa impassível, na História concisa pondera”. Retornando ao forte adjetivo proparoxí- burg, com precisão, diz que “é mui-
da literatura brasileira (1970), de Alfredo Bosi, tono, “Trôpega”, que dá partida ao poema, nele se to difícil tratar da cegueira dentro de
que destaca que Mármores da poeta (“vinda após perpetua o título do poema, Cega, que há de se repe- uma reflexão teórica e estética. O as-
a consagração dos mestres”) “logo a alçou ao nível tir, ao longo do poema, como numa rima interna de sunto é extremamente intenso e de-
daqueles”. Depois dela, no livro de Bosi, somente tipo homoteleuto: trôpega/cega. Mas, sobretudo, o licado e exige o maior cuidado”. Diz
Cecília Meireles e Clarice Lispector, entre as escri- próprio esquema rítmico parece colaborar no senti- ainda que, pelo menos, a cegueira
toras, se alçam a títulos de subcapítulos, ombrean- do de amplificar o efeito desse “andar de sonâmbula pode ser pensada como “metáfora”
do com dezenas de escritores. tonta”, ficando assim o desenho das sílabas tônicas e como “forma de experiência”. No
A expressão “mestres” recorda, de imediato, dos catorze alexandrinos, em que apenas os versos 1 caso do poema de Francisca Júlia, a
os conhecidos e iconoclásticos ensaios de Mário de e 7, e 2 e 6, repetem a mesma estrutura de acentos, personagem cega, em seu silêncio e
Andrade, Mestres do passado, de 1921. No ensaio enquanto todos os demais doze versos se sustentam solidão, “imaginárias/ cousas pen-
dedicado a ela, ou contra ela, Mário logo no início em sílabas tônicas em lugares variados: sa... verões e invernos maus afron-
diz que Francisca Júlia “negou-se à sensibilidade, ta...” — e as reticências indicam o
ao lirismo, à comoção”, disparando outros petar- 1) 1 4 6 8 10 12 limite da poeta (e do leitor) para
dos irônicos em direção à poesia da paulista de El- 2) 1 3 6 8 10 12 adentrar essas “coisas imaginárias”
dorado: “Não quero dizer mais coisas desagradáveis 3) 1 4 6 9 12 da velha “arrimada ao bordão”.
da ilustre artífice do verso brasileiro”. Mário, que 4) 3 6 8 12 Diferentemente de Mário de
em inúmeras cartas discorreu sobre a generosidade 5) 3 6 7 8 12 Andrade, Danilo Lôbo, em Fran-
crítica, quis nestes ensaios derrubar os tais mestres 6) 1 3 6 8 10 12 cisca Júlia: entre o pincel e a pena
parnasianos, todos, para abrir caminho aos ventos 7) 1 4 6 8 10 12 (1991), diz que, “Dotada de senti-
modernistas. Mas como negar sensibilidade, liris- 8) 3 6 8 10 12 dos privilegiados, de uma sensibili-
mo e comoção ao poema Cega? A despeito de to- 9) 1 4 6 7 9 12 dade à flor da pele, Francisca Júlia
da a arquitetura que um soneto, se convencional, 10) 2 6 8 12 reagia ao menor estímulo externo
busca seguir, o que pode lhe dar um tom cerebral e 11) 1 4 6 10 12 do mundo físico”. Esse poema e
artificial, os versos de Francisca Júlia são, sim, sen- 12) 1 3 6 8 12 tantos outros da curta obra adver-
síveis e comovem. O drama da personagem cega re- 13) 1 3 6 7 9 12 tem que nem todo poema parna-
cebe contornos surpreendentes, em época na qual a 14) 2 4 6 8 10 11 12 siano provém de “uma máquina de
indiferença dava a nota. (Século depois, o drama de fazer versos” (Oswald). O engenho
quem tem necessidades especiais permanece, ape- O espanto da poeta no primeiro terceto se de sua composição não elide a soli-
sar de haver, institucionalmente, leis que deveriam intensifica com a repetição dos vocábulos “negra dariedade, o espanto e o cuidado da
proteger e facilitar a vida de tais pessoas.) (mão)”, “negros (escolhos)”, “treva”, “enegrece” e poeta no trato do delicado assun-
O poema se assemelha a um quadro ou uma “escurecer-te”, que, ladeados pelos termos “Cega!”, to — a cegueira. Poeta e obra que,
cena em câmera lenta: nas duas quadras, a poe- “caos” e “cegar-te”, evidenciam o transtorno daque- aliás, merecem lentes bem melhores
ta observa, condoída, com frequência (“várias ve- la que vê (“vejo-a”) aquela que não vê. O espan- do que tiveram até hoje.
ABRIL DE 2023 | 17

inquérito
DIVULGAÇÃO

XICO SÁ

EM BUSCA DA
GRAÇA INFINITA

X
ico Sá é um cronista raiz. Daqueles que
precisam parir um texto por dia, sempre
com o prazo mordendo os calcanhares.
Seus textos espirituosos vêm povoando a
imprensa brasileira desde os anos 1990, quando
ainda era um intrépido repórter investigativo.
Os tempos de reportagem ficaram para trás e
há anos Xico vem se dedicando apenas à literatura.
Além de cronista, é autor dos romances Big Jato e
A falta, que surgiu enquanto o escritor assistia a um
jogo de futebol no estádio Zerão, em Macapá. Foi A falta
o lugar mais inusitado de onde o autor tirou uma XICO SÁ
ideia, conforme confessa neste Inquérito. “Aquele Tusquets
campo é dividido pela linha do Equador, um go- 160 págs.
leiro fica no hemisfério sul e o outro no norte”, diz.
A rotina nas redações o treinou para “escre-
ver até com uma faca no pescoço”. “Não preciso
de maiores luxos, às vezes o silêncio até atrapalha.”
Nascido no Crato (CE), Xico começou a car-
reira de jornalista no Recife. Foi colunista da Fo-
lha de S. Paulo e do El País. Na televisão, fez parte
dos programas Notícias MTV, Cartão Verde (Cultu-
ra), Amor & Sexo (Globo), Redação Sportv e Papo de
Segunda (GNT). Atualmente, escreve crônicas no
Diário do Nordeste.

• Quando se deu conta de que • Quais são as circunstâncias


queria ser escritor? ideais para escrever?
Continuo querendo, hei de Uma vida nas redações, na
alcançar a graça infinita. A espo- imprensa, me treinou para escre-
leta foi a leitura de Graciliano Ra- ver até com uma faca no pescoço.
mos, uma imagem de um vaso de Não preciso de maiores luxos, às • Um livro imprescindível e um descartável. • O que te faz feliz?
louça cheio de pitomba (no In- vezes o silêncio até atrapalha. O destino das metáforas, de Sidney Rocha, é Um piquenique com Laris-
fância) e aquela coisa de gente ser necessário, como todos desse autor. Descartável se- sa e os filhos Irene e Teo. Na praia
bicho e bicho ser gente em Vidas • Quais são as circunstâncias ria qualquer coisa na linha Colleen Hoover — na- ou no parque. Com ou sem sol.
secas. Ué, literatura pode ser co- ideais de leitura? da contra ela, é só um modelo.
mo a existência aqui nos meus ar- De preferência na minha re- • Qual dúvida ou certeza
redores? Isso pegou. de cearense azul, mas fora de casa • Que defeito é capaz de destruir ou compro- guiam seu trabalho?
leio na boa até na linha Consola- meter um livro? Há sempre a sensação de
• Quais são suas manias e ob- ção/Paraíso do metrô de SP. Querer imitar o James Joyce ou brincar de que me faltam palavras melhores.
sessões literárias? vanguardismo demodê. É roubada.
Esmagar insetos na tela • O que considera um dia de • Qual a sua maior preocupa-
branca do computador. Antes era trabalho produtivo? • Que assunto nunca entraria em sua literatura? ção ao escrever?
na página de papel ofício na má- Pelo volume das encomen- O metaverso. Literatura já é o próprio me- Ser uma companhia, mes-
quina de escrever. Há sempre uma das, tenho que escrever ao menos taverso. mo que às vezes desagradável.
formiga, um siriri, uma aleluia ou uma crônica por dia. Cumprir es-
cupim de lâmpada passeando so- sa meta me deixa satisfeito. • Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou • A literatura tem alguma
bre a falta de ideias ou palavras. inspiração? obrigação?
Parecem mensageiros obsessivos • O que lhe dá mais prazer no Um jogo de futebol no estádio Zerão, em Zero obrigação, mas se der
do Bartleby: “prefiro não, melhor processo de escrita? Macapá, que me rendeu o romance A falta. Aque- para (pelo menos) pagar o pão e
não escrever”. Conseguir uma frase espiri- le campo é dividido pela linha do Equador, um go- o vinho, melhor.
tuosa em uma crônica, daquelas leiro fica no hemisfério sul e o outro no norte.
• Que leitura é imprescindível que podem ser repetidas por um • Qual o limite da ficção?
no seu dia a dia? bêbado em uma mesa de bar. • Quando a inspiração não vem... O noticiário, com o qual
Por ganhar a vida como cro- Mando o texto de qualquer jeito, minha mu- já tenho que lidar na rotina da
nista de jornais/portais, o noticiá- • Qual o maior inimigo de um sa é o prazo da encomenda. crônica.
rio é obrigatório, a começar pelo escritor?
futebol. Por prazer, sempre uma O bar. • Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de • Se um ET aparecesse na sua
ficção no resto do dia. A do mo- convidar para um café? frente e pedisse “leve-me ao
mento é Filho de Jesus, de Denis • O que mais lhe incomoda no Um encontro, com uísque, ao lado do cronis- seu líder”, a quem você o le-
Johnson. meio literário? ta pernambucano Antônio Maria seria o suficiente, varia?
O escritor bêbado que se diz aqui ou no além-bar. Direto para a Glória, Glo-
• Se pudesse recomendar um li- injustiçado — o pior é que, por al- rinha, dona do cabaré mais fa-
vro ao presidente Lula, qual se- gumas vezes, já fiz esse tipo. • O que é um bom leitor? moso da história do Crato.
ria? O salta-página, aquele que pula a parte cha-
Depois que o Brasil acabou • Um autor em quem se deveria ta, como na obsessão do escritor argentino Mace- • O que você espera da eterni-
(Veneta), HQ de João Pinheiro. O prestar mais atenção. donio Fernández. dade?
livro relata o apocalipse bolsona- A poeta cearense Nina Riz- Que demore a chegar, pois
rista. Interessante para quem tem zi. Tem letra e tutano para ser ain- • O que te dá medo? tenho Irene (filha de seis anos)
a missão de reconstruir o país. da mais lida no país inteiro. A conta. pra criar.
18 | ABRIL DE 2023

josé castilho
LEITURAS COMPARTILHADAS

OS IMPRESCINDÍVEIS (2)
Ilustração: Eduardo Mussi E, afinal, por que exponho Para além do setor produti-
todas essas mazelas para tratar dos vo e distributivo, como pensar em
imprescindíveis autores, professo- democratizar a leitura sem a ação
res, bibliotecários, mediadores de dos profissionais das bibliotecas
leitura? Por que recorro às analogias de acesso público, sejam elas físi-
do nosso tempo com essa obra-pri- cas ou digitais? Como fazer chegar
ma e atemporal do cinema? os livros, em um país com recursos
Talvez porque os escrito- escassos, aos milhões de brasilei-
res e escritoras, primeiro elo des- ros que não conseguem ter acesso
sa corrente de formação sólida de a este direito, hoje assegurado pe-
cidadania e suas múltiplas formas la Lei 13.696, da PNLE, se não for
de seduzir e formar leitores e lei- por uma ação de política pública
toras, nos mostrem antecipada- em favor da expansão e desenvol-
mente futuros que dificilmente vimento das bibliotecas? E o que
enxergaríamos sem a criativida- são as bibliotecas sem os seus pro-
de, a sensibilidade e a arte desses fissionais compromissados politi-
“contadores de histórias”, des- camente com a formação cidadã de
ses arautos de nós mesmos, os se- seus compatriotas? Reconhecê-los
res humanos. Blade Runner tem como imprescindíveis é o primei-
na origem de seu roteiro cine- ro passo para valorizarmos o estra-
matográfico a inspiração de um tégico e essencial instrumento de
romance escrito em 1968 pelo formação cultural, educacional e
norte-americano Philip K. Dick de cidadania ao longo da vida que
intitulado Androides sonham são as bibliotecas de acesso público.
com ovelhas elétricas?. Além dos profissionais bi-
A literatura em todos os bliotecários há outra categoria
seus gêneros — assim como a poe- de profissionais que desde a mais
sia, a escrita ficcional, os ensaios tenra infância dos seres huma-
científicos que procuram com- nos exerce papel fundamental na
preender todas as ciências huma- sua formação. Apesar das tentati-
nas e naturais — é essencial para vas cada vez mais agressivas das li-
nos compreendermos enquanto deranças políticas e empresariais,
seres humanos. São essas “excen- ávidas pela anulação de políticas
tricidades”, como diria um obtu- que formam cidadãos integrais e
so neoliberal dos nossos dias, que pela avidez do lucro, a imprescin-
forjam nossos ideais de valores, dibilidade dos professores e pro-
de moralidade e da ética que nos fessoras na formação integral do
permitem conviver em socieda- ser humano é ponto inquestioná-

À
de. Quebrar a névoa da ignorân- vel para toda política que visa a
cadeia produtiva e distributiva do livro, Como não identificar no fil- cia, que nos acompanhará a vida construção de uma sociedade hu-
objeto dessa coluna no mês passado e me os sem-teto, os dependentes toda se não a desbravarmos com mana harmônica e sustentável.
que denominei de imprescindíveis, jun- químicos, os corpos doentes que o conhecimento adquirido formal Apenas os que valorizam mais os
to agora os outros elos dessa corrente da vagam por um espaço urbano em ou informalmente, é a possibilida- gadgets modernosos do que as ob-
leitura: autores/as, mediadores/as, bibliotecários/ destroços, das cenas cotidianamente de de se chegar a um patamar ci- jetivos educacionais e culturais;
as, professores/as. observadas nas principais metrópo- vilizatório que permita a vida sã e apenas os que pensam que o ser
Compartilho algumas reflexões sobre eles les do país? Como não identificar a equânime num planeta ecologica- humano precisa ser treinado e não
não apenas pela temática, mas porque nas últimas chuva ininterrupta, a névoa, a natu- mente sustentável. formado; apenas os que se satisfa-
semanas intensificaram-se especulações diversas so- reza sufocada que marca a ficção de Por isso que o primeiro elo zem com “coachs” e subestimam
bre a própria necessidade desses profissionais do Scott com as mudanças climáticas dessa cadeia, a dos escritores, artí- os professores; apenas aqueles que
livro e da leitura no mundo que está tentando con- que provocam desastres ambientais fices da palavra, já nasce impres- não entendem a educação como
figurar um futuro questionável. cada vez mais intensos e frequentes? cindível. Mas que dizer dessas um processo sistêmico e de lon-
O consumismo volátil da indústria cultural Como não identificar o olhar vazio, virtudes, ou o resultado delas, se ga duração e sua absoluta cum-
contemporânea e de alguns produtos oferecidos à a desorientação, a ignorância dos seguirem encapsuladas no univer- plicidade com a cultura; apenas
educação como eficientes treinamentos de futuros homens e mulheres comuns que so único de seus autores? O que é esses não reconhecem que inves-
trabalhadores está chegando ao limite da disrup- perambulam pelo espaço da disto- uma ideia, um poema, uma aná- tir e formar cada vez melhor nos-
tura de valores e conceitos humanísticos, que são pia do filme com as multidões que lise científica, um romance guar- sos profissionais docentes, e dar a
uma das últimas barreiras para o dilema dos últi- hoje no Brasil estão ensandecidas e dado a sete chaves, sem leitores? O eles condições dignas de vivência,
mos séculos: civilização ou barbárie. capturadas pelos falsários da terra ato social da escrita demanda seu é investimento estratégico funda-
O cenário do filme Blade Runner, que assis- plana, da criminalização da políti- compartilhamento. Se escrevemos mental e vital para as sociedades.
ti angustiado em 1982, com personagens vivendo ca e do elogio do individualismo para nós mesmos, numa jornada Finalmente menciono os me-
sob chuva ácida e cercados pela massa miserável egoísta que tenta matar o ideal do de autoconhecimento, como se- diadores e mediadoras de leitura. O
das ruas e um estado policial onipresente na figu- coletivo e de uma sociedade equâ- res humanos o impulso para com- conceito é amplo, a diversidade de
ra dos caçadores de “replicantes”, é apenas o pano nime? Como não enxergar nos ma- partilhar se impõe e a marca do ser atuação desses agentes do bem co-
de fundo de uma sociedade futura vítima de sua nipuladores e financiadores desse gregário que somos triunfa. mum é enorme e abrange muitas
própria perda de valores públicos tragados por in- caos, no filme representados pela Por essa razão é que chamo categorias profissionais, inclusive as
teresses privados, por detentores do poder que con- empresa Tyrell Corporation, com de imprescindíveis não os indiví- que já citei. Mas também envolve
trolam máquinas sem alma e sem humanidade em o bando organizado de gângsteres duos, mas o conjunto deles que voluntários, familiares, agentes cul-
um planeta devastado. O diretor Ridley Scott pro- que assaltam com seus colarinhos torna possível que a palavra che- turais, de saúde, do poder judiciá-
duziu, no cinema, uma reflexão referencial sobre brancos as instâncias das corpora- gue à figura principal disso tudo: rio, entre tantos outros. Sobre eles,
o sentido da vida humana, de sua moral e de sua ções produtivas e financeiras, da o leitor, a leitora. Apesar de, quan- os contadores de histórias, os espa-
ética nos estertores do longo e cruento século 20. política pública, dos poderes cons- do em cargos públicos, ter recebi- lhadores de poesia e encantamento
O ano de 2019 é o tempo em que Blade Run- tituídos, atacando frontalmente os do muitas pressões para realçar a com base nos livros, gostaria de ter
ner acontece mostrando a distópica cidade de Los fundamentos do estado democráti- importância de um ou outro elo, um artigo inteiro só para eles. Cada
Angeles como a síntese de um mundo já captura- co de direito e perpetuando as de- todos são igualmente importantes vez me encantam mais e são com-
do pela barbárie. Uma expectativa premonitória sigualdades sociais na preservação e só se fortalecem quando harmô- panheiros para toda a vida, presen-
que antecipou questões hoje debatidas universal- de seus lucros financeiros imorais nicos no ato de fomentar a leitura tes nos mais inusitados territórios.
mente pela academia e pela mídia. e improdutivos? para todos e todas. Imprescindíveis!
rascunho.com.br
20 | ABRIL DE 2023

alcir pécora
CONVERSA, ESCUTA

PATRIMÔNIO CULTURAL EM
Por fim, não gostaria de en-
cerrar essa apresentação dos pro-
blemas que afligem a integração

TEMPOS PÓS-COLONIAIS (4)


do Patrimônio cultural nos paí-
ses de língua portuguesa, sem alu-
dir ao fato de que, em todos esses
ensaios, há pouca discussão esté-
tica. Não é inesperado, mas não
deixa de ser decepcionante. Ainda
que não se acredite na autonomia
Ilustração: Amy Maitland

dos objetos artísticos em relação à


biografia dos autores, os seus con-
textos históricos e as representa-
tividades envolvidas, a noção de
“valor artístico” está pouco previs-
ta nos ensaios. Se é verdade que
cresce a atenção aos direitos e di-
ferenças de cada comunidade, não
é menos verdade que diminui, na
mesma intensidade e proporção, a
avaliação crítica dos próprios ob-
jetos postulados como diferentes
do padrão europeu.
Mas, afinal, pergunto, não é
relevante saber que categorias se-
riam adequadas para um juízo es-
tético do patrimônio quando ele
se associa à criação de comunida-
des plurais com direito a partilhar
um espaço até então ocupado pe-
las culturas de um centro hegemô-
nico? Será que as novas teorias de
partilha do Patrimônio devem ne-
cessariamente implicar no sacrifí-
cio da estética, do objeto de arte,
e, enfim, da técnica e da qualida-
de final da obra? Dito de outra
forma: ainda quando haja comu-
nidades de direito, sociedades re-
lativamente justas e que convivem
bem — o que, porém, nem de per-
to está num horizonte realista de
um país como o Brasil, que mal

C
consegue usar a cabeça para sair de
ontinuo e finalizo aqui o exame de um apenas o de responder ao esforço “transcriação“, “entre-lugares” um pesadelo perverso como o do
livro pioneiro sobre as questões patri- desses ensaios pioneiros em língua etc. É por meio delas que se tenta bolsonarismo —, poderá haver pa-
moniais comuns aos países de língua portuguesa, que buscam uma vi- reinventar a noção de patrimônio. trimônio cultural que dispense o
portuguesa, numa época em que a crí- são mais equilibrada, vale dizer, Talvez por isso mesmo, as debate sobre a forma artística?
tica dos processos coloniais já não pode ser ig- menos autoritária e menos euro- teorias deixam entrever uma pers- Nesse sentido, acho relevan-
norada. Trata-se de Patrimónios de influência cêntrica, a propósito do patrimô- pectiva identitária, politicamente te ecoar a consideração de Mirian
portuguesa: modos de olhar, de 2015, coeditado nio cultural dos países envolvidos. correta e usualmente edificante, Tavares, da Universidade do Al-
pela Imprensa da Universidade de Coimbra, Fun- A primeira questão que me que nasce sobretudo de posições garve, um dos poucos autores a
dação Calouste Gulbenkian e Editora da Univer- ocorre após a leitura dos ensaios é liberais de esquerda, as quais mos- articular as noções de patrimônio
sidade Federal Fluminense, organizado por Walter que não é tão fácil dar exemplos tram sensibilidade diante de dife- e de crítica de arte, ao reivindi-
Rossa e Margarida C. Ribeiro, docentes ligados ao de obras ou processos culturais renças e pluralidades no âmbito car para o cinema moçambica-
Centro de Estudos Sociais, da Faculdade de Letras que corresponderiam adequada- das diversas comunidades, espe- no não a condição de objeto de
da universidade coimbrã. mente a esse novo conceito de cialmente daquelas representa- etnografia, mas de verdadeira ci-
Nas três colunas anteriores, descrevi sucin- patrimônio. Este tende, em cer- tivas de minorias ou de grupos nematografia; não a admissão do
tamente todos os ensaios que participam do livro, ta medida, a se desmaterializar, oprimidos. São teorias — en- cinema africano como testemu-
menos aquele que o fecha, de autoria do citado passando a exigir menos referên- tretanto ou portanto — que se nho de uma memória coletiva em
Walter Rossa, docente do Departamento de Arqui- cia direta a obras, monumentos e interessam bem menos pelas con- extinção, mas como construção de
tetura da Universidade de Coimbra, que começa objetos específicos do que a teo- tradições materiais que envolvem um cinema contemporâneo. En-
por reconhecer a relevância de, a partir de 1972, rias capazes de englobá-los. Daí o terreno conflagrado da expan- quanto tal, não deve ter o direito
a Unesco ter incorporado uma vertente urbana toda a primeira parte do livro ser são capitalista globalizada. de receber um juízo crítico como
à noção de “paisagem”. Isso teria dado um alen- dedicada a uma revisão conceitual Ocorre que o patrimônio, qualquer outro cinema sério? Se o
to interdisciplinar à área do patrimônio, depois da área do patrimônio. com as suas obras, cidades, cul- julgarmos digno de ser proclama-
consolidado em 1992 com a inclusão da noção de Como mostra o texto de turas, existe dentro desse terreno do mau não será um gesto de reco-
“paisagem cultural”. Ultrapassava-se assim a antiga Rossa, não se trata mais de per- minado da globalização capitalis- nhecimento maior do que julgá-lo
noção de “centro histórico”, para representar tam- manecer cuidando de restaurar ta, na qual toda a área da língua bom por condescendência, ou por
bém outros lugares articulados à vida presente, não ou documentar obras com risco portuguesa está em posição pouco amor ao folclore?
apenas a ruína arquitetônica. Para Rossa, porém, de desaparecimento, mas de re- influente, seja em termos teóricos No meu tempo de menino,
se houve um arejamento conceitual, ainda não foi formular um campo teórico —, ou quaisquer outros. Isso precisa quando as crianças menores que-
suficiente para conquistar o salto epistemológico doravante não mais afeito exclu- ser considerado, a fim de que o Pa- riam entrar num jogo, as maiores
que descolaria a noção de Patrimônio das teorias sivamente à noção arquitetônica trimônio não critique o passado e combinavam entre si que elas eram
de conservação e restauro de bens artísticos autô- tradicional de patrimônio, mas se entregue a um presente que es- “café com leite” — referindo à ideia
nomos, sem nexo com o território e a cidade. O sim associado a teorias socioló- tá longe de ser ideal ou progressis- de que tomavam a bebida mais fra-
mais próximo desse salto dar-se-ia, para ele, com gicas e políticas de viés pós-colo- ta. Ou seja, se não queremos mais ca — para anular o valor das joga-
o conceito de “paisagem urbana histórica”, ou hul nial e decolonial. No núcleo delas que a questão do Patrimônio seja das que faziam. De minha parte,
(historic urban landscape), cujo uso ainda não é estão categorias como “plurali- uma epopeia do colonialismo, te- suspeito que, enquanto o juízo es-
consensual nos organismos patrimoniais oficiais. dade”, “diversidade”, “identida- mos de estar atentos a uma crítica tético entrar de maneira envergo-
Feita esta longa (e ao mesmo tempo sumá- de” ou “identidade incompleta”, material do presente para não fa- nhada na discussão pós-colonial, o
ria) apresentação dos trabalhos, deixo aqui alguns “sustentabilidade”, “não homoge- zer dos estudos pós-coloniais uma que se evidencia é a face paternalis-
breves comentários pessoais, cujo intuito crítico é neidade”, “transdisciplinaridade”, épica da globalização. ta de todo bom-mocismo.
ABRIL DE 2023 | 21

rascunho recomenda
Vencedor do prêmio Jabuti em 2022, o primeiro livro de contos Nestas Ficções amazônicas,
de Eliana Alvez Cruz traz temas comuns na abordagem literária indígenas e não-indígenas
da escritora, tal como crítica social, referências à ancestralidade entrelaçam-se nas tramas, que
africana e forte pesquisa histórica. A vestida traça um painel revelam a diversidade cultural,
do Brasil de ontem e de hoje, de um país que não se move em a argúcia e a beleza dos povos
questões que são centrais para a maioria de sua população. Ao originários. Personagens
desenhar essa paisagem, Eliana não se desvirtua, no entanto, em imortalizadas pelas boas histórias
oferecer bons enredos: seja descrevendo a cidade de Justiçópolis, passeiam em danças circulares ou
do conto Cidade espelho, ou o desconforto de Flávio, personagem relaxam ao som de uma sonata de
de Oito e oitenta, com o seu filho. Ou ainda nas precipitações de Debussy. Histórias de grandes xamãs Ficções amazônicas
Marilene, no conto Noite sem lua. A carioca Eliana Alves Cruz fez A vestida indígenas compartilham o mesmo APARECIDA VILAÇA E
sua estreia com o romance Água de barrela, vencedor do prêmio ELIANA ALVES CRUZ espaço com Merlin e o rei Arthur, FRANCISCO VILAÇA GASPAR
Silveira Oliveira, da Fundação Palmares, em 2015, e é autora Malê revelando as experiências dos autores Todavia
114 págs.
ainda dos elogiados O crime do cais do Valongo (2018), Nada com povos indígenas. 216 págs.
digo de ti, que em ti não veja (2020) e Solitária (2022).

DIVULGAÇÃO Neste breve romance, Leonardo Brasiliense


narra o inusitado caso de amor entre
Marvin, um homem de 40 anos que já
se separou duas vezes, e Analice, uma
boneca de silicone. Na história, o silêncio
da companheira perfeita — calada e
paciente — faz com que o protagonista,
maníaco por limpeza e frustrado com
suas ex-mulheres, mergulhe em memórias
doloridas e desejos não cumpridos. Peixe estranho
“Uma novela ágil, conectada com o seu LEONARDO BRASILIENSE
tempo mas também com temas que o Companhia das Letras
ultrapassam”, escreveu sobre o livro o 120 págs.
gaúcho Amilcar Bettega.

Sente-se comigo faz um relato sensível


sobre uma experiência extrema — a
pandemia de covid-19 — que transformou
a fundo toda uma geração. Isolado em
casa, o narrador conta seus passos pela casa,
conta os dias, as horas, e faz um ajuste de
contas consigo mesmo e com o tempo,
com seus familiares, com as lembranças e
aprendizagens que carrega pela vida e por
esta nova e inesperada vivência. Diante Sente-se comigo
da solidão e dos questionamentos do
LUCIANA CHARDELLI
protagonista, seu casamento, trabalho e lar 7Letras
são postos à prova, não deixando esquecer 124 págs.
que é o presente que entrelaça os tempos
verbais da vida.

Em sua mais nova persona literária, Nelson


de Oliveira, agora Olyveira Daemon
(colunista do Rascunho), narra a história
de um homem que, fugindo dos sete
pecados capitais, transforma-se em mulher
(sem deixar de ser homem), engravida e
dá à luz uma criança extraordinária (seu
nome é Eu), predestinada a salvar o Brasil,
Todos nós estaremos bem Se eu não posso ser quem sou
mais que isso, predestinada a salvar toda a
SÉRGIO TAVARES LEILA DE SOUZA TEIXEIRA
humanidade, enquanto deuses e demônios Gigante pela
Dublinense Zouk
192 págs. 236 págs.
da mitologia ameríndia e africana própria natureza
perambulam pelo enredo mirabolante, OLYVEIRA DAEMON
distribuindo bênçãos e maldições. Patuá
Depois de publicar dois livros de contos, Sérgio O título deste livro foi retirado de um verso de Vyscondim, Narizim, Pedrim e uma 216 págs.
Tavares (colaborador do Rascunho) estreia no Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando boneka maluka chamada Gabi também
romance com uma história cujo pano de fundo Pessoa, conhecido por ser um futurista que protagonizam esse breve romance povoado
é a ditadura brasileira nos anos 1970. Roberto paradoxalmente ironiza o progresso. O de sofismas alados e terraplanistas armados.
é um empresário que ficou rico trabalhando que tem tudo a ver com a história proposta
para empresas financiadoras da ditadura militar por Leila de Souza Teixeira. A personagem
e que vive imerso numa obsessão sexual — e central, Geórgia, é uma servidora do judiciário Vinte e cinco anos após escrever
em mentiras para encobri-la. Lúcia é uma ex- brasileiro insatisfeita com o trabalho. Ela Cidade de Deus, um dos livros mais
guerrilheira do MR-8 que atuou em sequestros percebe que não é somente a rotina presa importantes deste século no Brasil,
e assaltos a bancos, até ser presa, torturada e ao tribunal que a incomoda, mas o barulho Paulo Lins volta a falar sobre as
exilada. E é no entrelaçar dessas trajetórias, que da cidade; a hostilidade da vida urbana; a mazelas sociais do país. A obra tem
vão do final dos anos 60 ao alvorecer do novo poluição visual dos centros comerciais; o como cenário Mãe Luzia, comunidade
milênio, que o romance de Tavares retrata a culto ao excesso de trabalho; as exigências de na região oceânica de Natal, capital
ambiguidade de uma geração marcada por um produtividade, consumo e sucesso, etc. Após do Rio Grande do Norte. O livro é
ideal de liberdade. Crítico literário, Tavares conhecer Olivia (canadense que abdicou dividido em duas partes: uma ficcional
publicou os livros de contos Cavala, vencedor do de um alto salário em uma empresa de e outra documental, com imagens A construção
Prêmio Sesc de Literatura, e Queda da própria telecomunicações de Montreal, para recolher em preto e branco. O surgimento da de um novo sol
altura, finalista do Prêmio Brasília de Literatura. plásticos em praias e oceanos), a protagonista comunidade, criada por imigrantes PAULO LINS
Alguns dos seus contos foram traduzidos para o embarca em uma viagem que a levará a uma fugidos da seca no sertão, foi o mote Gryphus
inglês, o italiano, o japonês, o espanhol e o tâmil. nova forma de existência. para Lins elaborar a trama. 276 págs.
22 | ABRIL DE 2023

MINISTÉRIO
DO TURISMO
APRESENTA

Jarid
DIVULGAÇÃO

Arraes
F
oi seguindo um conselho da
americana Toni Morrison
que a cearense Jarid Arraes
chamou a atenção de leito-
res e editores. Em um discurso nos
anos 1980, a ganhadora do Nobel de
Literatura disse que “se há um livro
que você quer ler, mas não foi escrito
ainda, então você deve escrevê-lo”.
“Eu levo isso para minha vida”, diz
Jarid, convidada do quinto encontro
da 11ª temporada do Paiol Literá-
rio, projeto realizado pelo Rascu-
nho com o patrocínio do Itaú por
meio da Lei Rouanet.
Nascida em Juazeiro do Norte
(CE), na região do Cariri, Jarid foi
influenciada pela literatura de cordel
que o pai e o avô escreviam. E foi com
o cordel que começou a ficar conhe-
cida dos leitores. Ao escrever sobre a
trajetória de mulheres negras, colo-
cou em prática o conselho de Toni
Morrison, criando ela mesma as his-
tórias que gostaria de ter lido em seus
anos de formação.
“Queria colocar mulheres pro-
tagonistas nas histórias, escrever bio-
grafias de mulheres negras, que eu só
conheci adulta, e também queria mui- • Literatura que une • Diferentes contextos • Literatura é
to que meus cordéis chegassem às pes- A importância da literatu- E vai desde a poesia de Drummond — sempre política
soas e que elas tivessem esse momento ra na vida das pessoas, da ficção que até hoje é um dos meus poetas favoritos, Uma sociedade que se re-
do primeiro contato com temas que especialmente, está em como con- sendo que meu livro da vida é A rosa do povo laciona com a ficção, com a lite-
ainda não conheciam”, relembra. seguimos nos aproximar do outro. — até O senhor dos anéis, na ficção, que tam- ratura, tem um gás muito forte
“E desde o começo deu muito Aproximar-se humanamente de bém é um dos meus livros favoritos. Eu até cos- para avançar em discussões, pa-
certo. Eu mesmo montava e vendia quem, geralmente, não estaria tão tumava falar que me identificava muito com o ra avançar em direitos humanos,
pelas redes sociais os cordéis. Cheguei próximo porque não temos tanta elfo — e não tenho nada a ver com elfo. Então em muitas coisas que, de outra for-
a vender 20 mil cordéis em um ano. coisa em comum. E encontrar em isso é um exemplo de como a gente consegue ma, demorariam mais tempo para
Montando à mão.” Ao migrar para pessoas diferentes, o campo comum se aproximar. E isso também vale para um ou- acontecer. Acredito muito no pa-
o formato tradicional do livro, Jarid que é a humanidade. As questões e tro lado, do leitor homem, que tem a oportu- pel político da literatura. Às vezes
continuou fazendo sucesso. Seus dois sentimentos humanos, crises, ques- nidade de se aproximar de uma literatura feita o autor nem escreve algo político
primeiros livros, As lendas de Dan- tionamentos, sofrimentos, princi- por uma mulher negra e por pessoas diferentes intencionalmente. Mas costumo
dara (prosa) e Um buraco com meu palmente, que é a coisa que mais dele e do contexto em que vive. Da sua realida- dizer que a literatura sempre é po-
nome (poesia), publicados de forma une as pessoas na literatura. de familiar. É uma oportunidade de pisar um lítica, quer o autor saiba disso ou
independente, chamaram a atenção pouquinho fora do que é familiar e do repertó- não. Sempre é político, não apenas
da Companhia das Letras, que em • Lendo homens rio que lhe é cômodo, e com isso conhecer o ser quando é “intencional”. Não estou
2019, pelo selo Alfaguara, publicou Penso muito na minha ex- humano com mais profundidade. E se enxergar falando de uma maneira panfletá-
a primeira compilação de contos da periência quando criança e ado- em outra pessoa, é algo poderoso e que trans- ria, mas no sentido antropológico
autora, Redemoinho em dia quente. lescente. Só tive acesso a livros forma a nossa visão de mundo e subjetividade. e social. Algo que vai muito além
Com histórias com o “sotaque” escritos por homens, só fui come- da nossa própria visão limitadora
cearense, o livro recebeu prêmios da çar a ler mulheres, especialmente • Coletivo do que é política. E esse valor co-
Associação Paulista de Críticos de Ar- negras, já adulta. Então, fiz o mo- Vejo a literatura como um campo cole- letivo da literatura é o que me mo-
te (APCA) e da Biblioteca Nacional, vimento de me identificar com tivo. Não vejo a literatura como uma coisa so- ve a continuar a escrever.
além de ter figurado entre os finalistas personagens e escritores que não litária, nem o ato de escrever nem o ato de ler,
do Prêmio Jabuti. Para além do suces- tinham nada em comum comigo. nada na literatura é individual, mas sim coleti- • Relação com as
so individual, Jarid faz questão de en- Nem nas regiões onde as histórias vo. E isso implica em tudo que o coletivo quer escolas
fatizar o aspecto político e coletivo da se passavam, nem nos persona- dizer. Não só em realmente ter contato e se re- Sempre me relacionei mui-
sua literatura. Para ela, “uma socieda- gens, porque a maioria era ho- lacionar com outras pessoas, mas com outras to com as escolas. Porque quan-
de que se relaciona com a ficção tem mem. E as personagens femininas realidades, valores, opiniões, visões de mundo, do comecei a escrever e publicar,
um gás muito forte para avançar em eram sempre muito secundárias, às com coisas divergentes também. Isso faz com o meu maior sonho era chegar às
discussões, em muitas coisas que, de vezes muito superficiais. Tive que que as coisas sejam mais ricas e diversas. E is- escolas através das minhas obras.
outra forma, demorariam mais tem- encontrar em personagens diferen- so tem um potencial político muito forte, de E felizmente esse sonho se reali-
po para acontecer.” tes de mim aquilo que nos unia. transformar a sociedade. zou bem rápido e hoje meus livros
ABRIL DE 2023 | 23

REPRODUÇÃO/ YOUTUBE

próximo encontro
6/abril
19h
Tatiana Salem Levy

estão nas escolas e universidades. • Cordel • Descoberta das


E essa minha relação com as esco- Sempre tive contato com a lei- mulheres
las e com políticas públicas é um tura porque meu pai e meu avô são Só fui me questionar do
pouco mais antiga, desde quando cordelistas. Cresci ouvindo e len- porquê de eu não ler mulheres,
comecei a fazer parte de coletivos do cordel. Eu era sempre uma das quando já estava bem crescida e
de direitos das mulheres, especial- primeiras pessoas a ler os cordéis em contato com o feminismo.
mente de mulheres negras. A gente de meu pai e de meu avô. E meu Uma sociedade que se relaciona com E aí comecei a procurar. Depois
sempre fazia ações em escolas, in- avô também fundou um centro de a ficção tem um gás muito forte para disso, levou um tempo ainda pa-
vestindo em formação de professo- cultura no Cariri, chamado Mestre ra eu subir um degrau e começar
res, para falar sobre a lei de ensino Noza, que tinha cordel, além de ar- avançar em discussões, em muitas a ler mulheres negras. E lembro
de história e cultura afro-brasileira. tesãos. Tive muito contato com a ar- coisas que, de outra forma, demorariam que quando me fiz esse questio-
Desde muito cedo na minha tra- te popular, maracatu, etc. O cordel namento, fiquei até decepciona-
jetória, eu estava em contato com se tornou algo muito familiar pa- mais tempo para acontecer.” da comigo mesma, porque isso
isso, e muito consciente que exis- ra mim, muito íntimo. Considero nunca tinha me incomodado. E
tia um problema grande aí, de fal- cordel poesia tanto quanto qualquer nunca tinha lido mulheres pa-
ta de formação dos professores, de outro formato de poesia. DIVULGAÇÃO
recidas comigo. Foi uma coisa
conteúdo, de material. muito impactante conhecer au-
• Impacto da poesia toras negras.
• Professores Eu tinha mais ou menos nove
Sou muito lida por crian- anos quando comecei a pensar em ser • Primeiras
ças, adolescente e adultos, mas leitora. Na escola tivemos que ler o autoras
isso parte muito dos professores. poema Porquinho-da-índia, do Ma- A primeira que li foi a Con-
Pois são eles que vão e compram nuel Bandeira. Voltei para casa alu- ceição Evaristo e, depois dela, vie-
o livro para utilizar na escola. É cinada porque amei o poema. Eu ram muitas, como a Esmeralda
sempre mais difícil que a coorde- estava na garupa da moto do meu Ribeiro, a Miriam Alves, aqui no
nação da escola faça o movimen- pai, no trânsito do Cariri, com ju- Brasil. De fora, Alice Walker, Toni
to de adquirir o livro, ou que seja mento, carro, carroça, tudo ao mes- Morrison, etc. Então fui adquirin-
adotado ao ponto de os pais te- mo tempo, e a gente conversando, do mais referências, que fizeram
rem que comprar os exemplares. aí falei para meu pai que tinha lido muita diferença na minha vida. Se
Já aconteceu, mas sempre é mui- o poema do Bandeira. Falei para ele eu tivesse conhecido essas autoras
to mais uma atitude do professor. que tinha adorado poesia. Aí ele falou antes, quando estava crescendo,
assim, já que gostou, vou declamar muitas coisas sobre mim teriam si-
• Pequenas dois trechos de dois poemas. E ele co- do diferentes. Até mesmo na for-
transformações meçou: “Tinha uma pedra no meio ma como eu me enxergava, como
Agora no PNLD (Programa do caminho, no meio do caminho ti- via meu lugar no mundo e a possi-
Nacional do Livro Didático), ti- nha uma pedra”. Fiquei me pergun- bilidade de ser escritora. Eu tinha
ve o Redemoinho em dia quen- tando se aquilo era poesia, porque cadernos e mais cadernos com tex-
te adotado em várias escolas. Foi estava com o Porquinho-da-índia na tos, mas não mostrava nem para
escolhido por várias escolas e foi cabeça. E aí ele emendou esse: “Ape- meu pai porque tinha vergonha,
muito legal saber disso. Acho que dreja essa mão vil que te afaga, escar- não achava que tinha valor. Nem
essas pequenas coisas fazem a di- ra nessa boca que de beija!”. Fiquei ao sequer pensava na possibilidade
ferença porque, para falarmos em mesmo tempo muito incomodada e de ser escritora. Mas no fundo, eu
transformação coletiva, não neces- instigada por conta da quantidade de queria ser escritora.
sariamente precisa ser uma grande coisas que poderiam ser poesia. Mi-
massa, que vai mudar a visão do nha cabeça ficou em polvorosa.
Vejo a literatura como um campo coletivo. Não • Conceição
mundo de uma hora para a ou- Evaristo
tra. Acredito na transformação • Primeiros poetas vejo a literatura como uma coisa solitária, nem A vontade de escrever sur-
dos nossos núcleos, do nosso en- Pedi ao meu pai para me em- o ato de escrever nem o ato de ler, nada na ge muito a partir do momento
torno. E a partir daí a gente vai prestar um livro de poesia do Carlos literatura é individual, mas sim coletivo.” que conheço a obra da Concei-
ampliando isso. Então, se meu li- Drummond de Andrade, porque fi- ção Evaristo. Os primeiros textos
vro é lido em uma escola por dez quei com “a pedra no meio do cami- que comecei a compartilhar para
turmas diferentes, para mim is- nho” encasquetada na cabeça. E ele outros leitores foram de opinião.
so é uma coisa gigantesca, porque me emprestou vários livros, não só • Fascínio com as palavras Escrevia em blogs de direitos hu-
lembro de nunca ter tido acesso, do Drummond, mas do Augusto dos E foi isso que me fez começar a escrever também. manos, falando sobre questões
quando criança e adolescente, a Anjos, que foi uma grande presença Porque lia os poemas e queria meio que espelhar o estilo de gênero e raça, especificamen-
conteúdo afro-brasileiro. Então, na minha vida, Álvares de Azevedo, do autor que estava lendo. Principalmente com o Augus- te. Enquanto estava escrevendo
acho que hoje conseguimos avan- Paulo Leminski, Ferreira Gullar, to- to dos Anjos. Lia e ficava no dicionário procurando pa- meus textos de opinião, pensei
çar nessa questão, ainda que este- dos foram muito presentes na minha lavras parecidas com as quais ele usava. E nessa época eu em publicar cordel. Mas nunca
ja longe do que considero ideal. formação inicial. perguntava muito o significado das palavras para a minha tinha escrito cordel. Os poemas
avó paterna. Ela sempre me dizia, exceto quando não sa- que havia escrito eram em ou-
• Ações e políticas • A menina que bia. Aí ela fingia que não tinha me ouvido. Chegou um tros formatos. Escrevia até sone-
públicas roubava livros dia em que ela se cansou e me deu um dicionário, que te- to, mas não escrevia cordel.
Acredito que precisamos Depois vieram autores como nho até hoje, com dedicatória dela. Eu era muito curiosa
cobrar por políticas públicas, mas Camilo Castelo Branco. Eu pega- com as palavras. E atribuo isso à influência do meu pai e • Mulheres
também agir individualmente, va todos os livros a que tinha acesso. do meu avô, com certeza. Porque pra você continuar seu no cordel
para balancear as coisas e fazer o Chegava a roubar livros da bibliote- caminho na arte, seja qual for, precisa de estímulo. Então falei com meu pai que
que é possível. Vejo os professores ca porque não conseguia emprestar queria manter viva a tradição da
fazendo isso o tempo todo, tiran- mais de um título por mês. E eu lia • Poucas opções família. Mas queria colocar mu-
do do próprio bolso para fazer a muito rápido. Uns três livros por fim Quando era adolescente e tive acesso à internet, lheres protagonistas nas histórias,
diferença em seus núcleos. Sem- de semana, às vezes mais se fosse de comecei a ter mais contato com outros livros — e aí escrever biografias de mulheres ne-
pre penso que tenho uma plata- poesia. Depois devolvia, mas eu era a não eram só os livros do meu pai. Porque nesse perío- gras, que eu só conheci adulta, e
forma e as pessoas me ouvem por menina que roubava livros. Era mui- do, não havia livraria lá no Cariri. Havia a biblioteca também queria muito que meus
conta dessa plataforma. Como to ávida com a literatura, especial- municipal e a biblioteca da escola. E os acervos eram cordéis chegassem às pessoas e que
posso usar isso para o coletivo e mente com a poesia, que foi a minha muito limitados aos livros didáticos e aos clássicos. Por- elas tivessem esse momento do pri-
não só para promover minha car- base maior, tanto no cordel quanto tanto, durante muito tempo, meu repertório foi curto meiro contato com temas que ain-
reira de escritora? nos outros formatos. em relação a autores e estilos. da não conheciam.
24 | ABRIL DE 2023

DIVULGAÇÃO

• Vendendo cordéis
E desde o começo deu
muito certo. Eu montava e ven-
dia pelas redes sociais os cordéis.
Cheguei a vender 20 mil cordéis
em um ano. Montando à mão. Ti- Até quando é fácil, é difícil
ve até problema no pulso de ficar ser mulher no Brasil. Mesmo
baixando a guilhotina no papel. quando se está em um lugar
Comecei também a chegar às es-
colas, havia gente fazendo conta- confortável socialmente
ção das minhas histórias. falando, há preocupações
que não desaparecem.”
• Lendas de Dandara
Isso me acordou. O que
mais quero fazer, além do cor-
del? Sempre tive na minha cabeça
a mentalidade de que posso fazer
qualquer coisa que quiser: se eu
quiser escrever soneto, escrevo, se
quiser escrever ficção científica, es-
crevo. Basta eu ter vontade, por-
que a literatura está acessível para
mim e para todo mundo. Então
pensei, vou publicar um livro de
prosa. E não tinha a menor ideia
do que era o gênero. Escrevi As
lendas de Dandara e publiquei
de forma independente, porque
levei muitos nãos das editoras. A
justificativa era de que não existia
mercado para meu livro, e eu dis-
cordava muito porque via o tanto Acompanhe • Incômodo • Novos temas
que meus cordéis vendiam quan- no canal do Escrevo muito a partir do incômodo. Não é só Escrevi um cordel em que
do o tema era biografia de mu- YouTube do no sentido de algo que me faça mal. Me incomoda fiz um diálogo breve com o pen-
lheres negras. Então apostei no Paiol Literário não encontrar essas personagens, esses cenários e am- samento de Sartre, autor de que
livro. Peguei um empréstimo, pa- bientações em livros, em grandes editoras, em even- gosto muito. E recebi muitas
guei a impressão e vendi pelas re- tos. Me incomoda ver o que eu faço sendo colocado mensagens de pessoas achando a
des sociais. Em menos de um ano em uma caixinha de regionalismo. Então minha lite- história muito diferente. Gente
esgotou a tiragem de 1.500 exem- ratura é planejada, de propósito, para que tenha pro- perguntando se eu havia desisti-
plares. E só vendia pelo Facebook. tagonista mulher, para que tenha sotaque no que eu do de escrever sobre mulheres ne-
Não tinha em nenhuma livraria, escrevo, para que a ambientação no sertão do Ceará gras. Então faz parte da visão das
ninguém divulgando. Aí algumas seja muito evidente. pessoas, elas não imaginam ou-
editoras que me disseram não, de- tra coisa que não seja essa visão
pois que o livro esgotou, vieram • Conselho de Toni Morrison folclórica, que diminui e reduz.
me procurar. Daí neguei pra to- reescrevê-las e mostrei pra Luara. Trato desses temas, que eu queria ter lido na mi-
do mundo que havia rejeitado. Então chegamos à conclusão de nha formação e não li, porque escutei o conselho da • Regionalismo
E aceitei o convite da Editora de que dava para fazer um livro de Toni Morrison, quando ela disse que se tem um livro Isso está diretamente liga-
Cultura, que até então eu não co- contos com eles. Foi aí que surgiu que você gostaria de ler, mas ele ainda não existe, então do ao fato de que faço literatu-
nhecia. Depois disso, vieram os o Redemoinho em dia quente. deve escrevê-lo. Eu levo isso para minha vida. Queria ra regional para o Sudeste. E não
outros livros. muito ler um livro sobre abuso infantil, que isso fosse enxergo desse jeito porque, para
• Prêmios discutido, para podermos falar sobre a nossa socieda- mim, regional é uma coisa mar-
• Rejeições Não esperava ganhar prê- de adultocentrada. E queria que passasse no sertão do cada no tempo histórico. E isso
Mesmo com o livro de cor- mios, porque sou muito jovem na Ceará porque gostaria de falar sobre esse ambiente, essa não cabe para autores como eu,
del Heroínas negras brasileiras, literatura. Eu estava muito con- cultura, e usar o meu vocabulário. Cansei de reprimir Cristhiano Aguiar, autor do Gó-
também fui rejeitada por mui- tente só por ele estar indo bem, meu vocabulário aqui em São Paulo, para não sofrer tico nordestino, para a Socorro
tas editoras. Até chegar à primei- pois ficou entre os mais vendidos discriminação, deboche. É tudo proposital na minha Acioli. Nós somos muito diferen-
ra editora que publicou a obra. E na Flip no ano do lançamento. O literatura e imagino que isso vai durar por muito tem- tes uns dos outros. Há coisas mui-
a gente vendeu muito esse livro. que eu mais queria era escrever po. Por isso, escrevi Corpo desfeito, que trata justa- to diferentes sendo publicadas por
Não sei nem quantas reimpressões com sotaque do Ceará. E as pes- mente do abuso infantil. pessoas de vários lugares do Nor-
foram feitas. O livro rodou muito soas estavam gostando disso no li- deste, e não dá para falar que isso
em escolas, vendeu muito na Flip. vro. E aí veio o APCA, que foi o • Cultura popular é regional. Ou então tudo é re-
E depois ele foi para a Seguinte primeiro prêmio que ganhei. E foi Se você ouvir as pessoas falando sobre cordel, elas gional. Posso falar a partir de ago-
[selo da Companhia das Letras] e incrível. Depois veio o prêmio da dizem que é uma “literatura popular”, “poesia popu- ra que sudestino publicando está
continua sempre sendo impresso Biblioteca Nacional e ainda fui fi- lar”. E com esse popular, elas querem dizer que não é fazendo literatura regional do Su-
e indo para as escolas. nalista do Jabuti. Para mim, foi poesia como outros tipos de poesia, é uma poesia me- deste. E não cabe.
uma coisa imensa. nor. É algo diferente do que faz Carlos Drummond de
• Grande editora Andrade, Waly Salomão, é outra coisa. É folclórico. E • Mulheres
Em 2018, lancei Um buraco • Persistência por ser assim, não cabe em evento literário, não cabe e negros
com meu nome pelo selo Ferina, Mas tudo isso, estar na convidar cordelista para falar sobre poesia em uma me- Em 2015, quando come-
que criei para publicar só mulheres. Companhia, os prêmios, etc., eu sa sobre poesia, em um grande evento literário. cei a publicar livro, tinha o há-
Estava andando na rua em Paraty vejo da forma como falei no iní- bito de receber por e-mail a lista
para participar de uma programa- cio, através de uma lente política. • Preconceito dos lançamentos das grandes edi-
ção da Off Flip, quando a Luara Porque se eu não tivesse aposta- Eu e o Bráulio Tavares fomos os primeiros cor- toras. Então eu contava quantos
França, que foi minha editora na do e acreditado na minha literatu- delistas a participar da programação oficial da Flip. E livros publicados eram de mulhe-
Companhia das Letras, me parou ra e na importância daquele tema fiz questão de falar que era a primeira mulher corde- res e quantos eram de pessoas ne-
no meio da rua e falou que gostava socialmente falando, eu não teria lista no evento. Mas se pensarmos, há quanto tempo a gras ou indígenas. Os indígenas,
do que eu escrevia e, caso eu tives- feito nada. Teria aceitado o não. literatura de cordel tem formado leitores, entrado em não preciso nem dizer, nunca es-
se algo, ela queria publicar. Fiquei Mas sabia que ia dar certo porque camadas da sociedade que a chamada “alta” literatura tavam nessas listas, os negros eram
em choque, porque levei não pra via o interesse das pessoas em ler não penetra? E essa desvalorização permanece. Noto poucos e as mulheres em um nú-
caramba e de repente estavam me cordel e sobre personagens negras. isso até em bienais e outros grandes eventos. O espaço mero ínfimo. Isso era uma coisa
convidando para publicar. Por isso reafirmo sempre, minha do cordel nos estandes de editoras é todo folclorizado, que me revoltava muito. Foi por
trajetória na literatura é uma tra- toda estética é feita para parecer uma coisa fechada, re- isso que comecei a me mover com
• Redemoinho jetória coletiva e política. Porque gional, quase caricata. Tem alguns cordelistas que real- coletivos de escritoras, de leitores
Eu tinha alguns contos, que foi com o apoio dos leitores que mente vestem esse personagem da caricatura. Que bota que estavam focados em ler livros
escrevi em 2015. E fui reescreven- eu cheguei aqui. Foi um esforço chapéu de vaqueiro, chapéu de Lampião. Mas fazem escritos por mulheres, como Leia
do as histórias ao longo dos anos. de boca a boca pelas redes sociais esse personagem porque é só assim que as pessoas aces- Mulheres, Mulheres que Escre-
Isso até 2018, quando desisti de que me trouxe até aqui. sam e entendem o cordel. vem, Lendo Mulheres.
ABRIL DE 2023 | 25

• Clube
Aí criei o Clube de Escrita
• Desconforto necessário
E o desconforto é sempre necessário, preciso. Se es-
raimundo carrero
para Mulheres, também pensan- tou desconfortável, também quero que outras pessoas fi- LUTA VERBAL
do nisso, que precisávamos ter um quem desconfortáveis com meu desconforto. E que a gente

O OLHAR DE
grupo de mulheres que escreves- fique em um grande desconforto, ache tudo ruim, para que
sem para que esse quadro mudas- aí melhore. Tenho como missão de vida trazer o que é in-
se. De 2015, naquele lugar em que cômodo para as minhas criações literárias. Porque eu es-

EMMA NARRA
estava, me sentindo solitária, com tou em uma posição muito complicada, não tenho como
o mercado absolutamente branco, escrever sobre besteira e colocar crises idiotas nas minhas
num nível de supremacia gritante, coisas, se estou lidando com a realidade tão profunda e tão

A PRÓPRIA
até hoje, quando a gente vê a Elia- complexa de misoginia, de homofobia.
na Alves Cruz, o Jeferson Tenório
e o Itamar Vieira Junior sendo • Pautas importantes

MORTE
premiados, a Conceição Evaristo Eu sou bissexual, então estou nesse lugar com mui-
sendo muito reconhecida, parece tas questões envolvidas, de alguém que tem o pé no sertão.
que as coisas mudaram um pouco. Mas não sou do sertão que as pessoas imaginam que é o
sertão, um lugar seco, da vaca morta, da casa de taipa, en-
• Melhorou, mas tão preciso explicar isso também. Como não vou incomo-
não muito dar e ser incomodada com tudo isso girando em torno de

O
Acho que muita coisa me- mim? E ainda tem o lugar racial, que também é uma ques-
lhorou, mas ainda há muito para tão grande para mim e pessoas parecidas comigo, que é es- olhar do personagem é, sem dúvida,
melhorar. Às vezes, penso se isso sa coisa da miscigenação. a técnica mais sofisticada criada por
não é uma onda passageira, por- Flaubert. Impressionante sobretudo
que tem esses grandes fenômenos, • Dinâmica de trabalho no momento da morte da persona-
como o Geovani Martins, essas Não me sinto solitária quando escrevo. A parte do gem central em Madame Bovary, no roman-
pessoas que aparecem e explodem, ofício, que é sentar e escrever, realmente faço só, mas tem ce que vem a ser chamada de A Bíblia da ficção.
e só de sabermos assim de cara ci- muitas etapas que compartilho com outras pessoas: a edi-
tá-los, já é um indício de que são ção, a revisão, a leitura crítica, o leitor beta, que geralmen- Com efeito, Emma em torno, lentamente,
exceções. Pode ser um fenômeno te é um amigo. Muitas etapas são bem compartilhadas na como quem desperta de um sonho; depois, com
pontual. Então fico observando e minha experiência. Não me sinto isolada fazendo isso. O a voz nítida, pediu o espelho e esteve inclinada
tentando entender. Leio muitos trabalho e a visão das outras pessoas acrescentam e melho- para ele algum tempo, até que dos olhos se des-
contemporâneos, priorizo essa lei- ram muito o que eu faço. E me sinto muito acompanhada prenderam duas grossas lágrimas. Em seguida,
tura, não só de grandes editoras, pelas personagens que crio. soltou um profundo suspiro e deixou cair a ca-
mas dos independentes também. beça no travesseiro.
Porque quero entender o que está • Corpo desfeito No mesmo instante, começou-lhe o peito
acontecendo na literatura brasilei- No caso de Corpo desfeito, isso foi tão intenso para a arfar rapidamente. A língua saiu toda da bo-
ra e ver quem está tendo reconhe- mim, que sentia que a Amanda, protagonista da obra, era ca; Emma relanceava os olhos, num movimen-
cimento, quem vai para listas, uma criança de verdade que estava me pedindo para contar to continuo, amorteciam-se como dois globos da
recebe prêmios. Porque é a par- a história dela. Porque tive que mergulhar tanto no tema lâmpada que se apagam; e até a julgariam já
tir daí que vemos o quadro social do abuso infantil, resgatar muito as coisas que já conhecia, morta se não fosse a aceleração do arfar das cos-
e político da literatura no Brasil. ler muitas biografias, ver muitos filmes, só pensava nisso 24 telas sacudidas por uma respiração furiosa, como
horas por dia. Escrevi esse livro durante dois anos, ao longo se a alma estivesse aos pulos para se desprender.
• Repertório dos da pandemia, sendo que estava tratando um câncer. Então Felicidade ajoelhou diante do Crucifixo e o pró-
curadores eu não saía de casa pra nada, porque não poderia me expor prio farmacêutico flectiu um pouco os joelhos,
Problema de repertório de de maneira nenhuma. E mesmo assim, na minha terapia, ao passo que Canivet olhava vagamente para a
curadores é uma coisa que me cha- passei dois anos falando desse livro. Porque me sentia me praça; Bournisien continuava a orar com o ros-
ma muito atenção. Quando são afogando na coisa, e em constante conflito com a minha to inclinado para a beira da cama; e sua com-
os mesmos nomes convidados pa- criatividade para retratar esse tema, que é pesado. prida batina preta arrastando-se atrás de si pro
ra falar sobre as mesmas coisas... E chão. Charles estava do outro lado, de joelhos, e
aí eu me coloco. Se sou eu sempre • Sofrimento com os braços estendidos para Emma. Pegava-
a pessoa convidada para falar sobre Gosto muito de livros com temas difíceis, com so- -lhe as mãos, apertava-as e estremecia a cada
literatura feita por pessoas do Nor- frimento. Porque a vida do ser humano é repleta de sofri- pancada do seu coração, como ao desmoronar
deste, de mulheres nordestinas, en- mento. E lendo ficção a gente pode até mesmo elaborar esse de uma ruína. À proporção que o estertor se tor-
tão há um problema de repertório sofrimento de uma forma que traga autorreflexão e auto- nava mais forte, o eclesiástico precipitava as suas
da curadoria. E isso é cansativo. É conhecimento. Muitas vezes um processo inicial de cura. orações, que se misturavam e se confundiam com
uma marca que me colocaram. Se Acho que a literatura tem essa possibilidade também. Gos- os soluços sufocados de Bovary; às vezes tudo pa-
eu não escrevesse nada sobre o Nor- to muito de histórias tristes, é uma preferência de leitora. recia desaparecer no surdo murmúrio das síla-
deste, a caixinha onde iriam me co- Só não gosto do sofrimento de escrever, porque sou muito bas latinas que tangiam como dobres de finados.
locar era na de escritores negros. perfeccionista e nunca nada está bom. E sempre é um pro- De repente ouviu-se no passeio um ruído
É onde às vezes me colocam. Po- cesso muito tenso. Eu me irrito e me frustro muito. Cos- de tamancos, o bater de um pau no passeio de ta-
rém, depois de Redemoinho em tumo dizer que não gosto de escrever, gosto de quando já manco, o bater e um pau e uma voz que se ele-
dia quente, virou mais Nordeste. E está feito e as pessoas estão lendo. O processo criativo para vava, uma voz rouca que cantava.
sempre o tema mulheres também. É mim é muito conturbado.
algo que incomoda, porque não sou Aí observa-se a chegada da morte que
convidada para falar sobre outros te- • Caminhos da escrita é anunciada pelo ouvido através da metáfora
mas da literatura, porque sempre A pessoa que começa a escrever, precisa entender que do cego, uma das mais poderosas do romance,
partem desse enquadramento. essa angústia com o que escreve não é exclusividade dela. No com a força do tamanco a marcar pelo ritmo
Clube de Escrita Para Mulheres, escuto esse tipo de coisa o — Flaubert tinha obsessão pelo ritmo narra-
• Ser mulher no tempo todo: de que a pessoa tem vergonha do que escreve, tivo — a presença da morte dolorosa com a
Brasil de que não se acha escritora, etc. E quando encontramos ou- voz cantando os versos que resumem a tragé-
Até quando é fácil, é difícil tras mulheres que também falam essas coisas, mas que supe- dia de Emma. Tudo isso é técnica apurada.
ser mulher no Brasil. Mesmo quan- raram essa fase, isso faz com que esse medo vá embora. Então Apuradíssima. A grande obra de arte precisa
do se está em um lugar confortável é preciso saber que isso é um processo social das mulheres. desses movimentos técnicos e não apenas de
socialmente falando, há preocu- Tem que enxergar o quanto isso é social, coletivo e político. impressões. A morte de Emma exige, ainda,
pações que não desaparecem. E é não somente os olhos, mas também os ouvi-
muito difícil ser mulher e escrito- • Vida dos como se o leitor estivesse executando uma
ra no Brasil. É um constante can- Parece que sempre estamos em guerra. Nosso Estado, o melodia. Verdadeira revolução literária.
saço, completamente enfadonho Brasil, está em frangalhos, está todo mundo muito cansado e Por isso mesmo destaque-se que a narra-
falar sobre as mesmas coisas, ficar destemperado. Uma polarização absurda. Ao mesmo tempo tiva é construída em dois movimentos.
observando como as mulheres es- em que vejo tantas coisas positivas acontecendo, tanta coi- 1) Com efeito, Emma relanceava os
tão sendo tratadas e lidas. Como sa que me dá esperança, sinto medo do nosso contexto. Há olhos em torno, como quem desperta de um
a crítica está reagindo às mulheres. muito ímpeto de violência e pouca disposição para o diálogo sonho; depois, com a voz nítida, pediu o espe-
Tem tantas nuances e detalhes. E nas pessoas. Isso no geral, não só em um lado específico, mas lho e esteve inclinada para ele algum tempo;
ficamos nesse papel ingrato de co- entre nós mesmos, que estamos no mesmo lado. Tem muito 2) Até que dos olhos se desprenderam
locar luz em cima do problema e cansaço envolvido. Eu mesma me cansei muito. Foram dois grossas lágrimas. Em seguida, soltou um pro-
ouvir que é exagero, que melhorou anos em que estive exausta. Mas ainda assim, acho que pas- fundo suspiro e deixou cair a cabeça no tra-
muito e tantas coisas... sei bem durante a pandemia, mesmo com câncer e tudo. vesseiro.
26 | ABRIL DE 2023

tércia montenegro
TUDO É NARRATIVA

LITERATURA
EXPANDIDA

J
osé Leonilson Bezer- popular cada vez mais intensa, Ilustração: Obra de Leonilson
ra Dias faleceu há trinta transformando sua solidão e/ou (Reprodução)
anos, e sua obra nunca carência em espelho para que seu
foi tão conhecida. Se a público se veja e compreenda seu
régua do tempo serve para testar a interior. Vida e arte, agrupadas, fa-
qualidade de um autor, estas déca- zem da escrita de si uma escrita do
das já confirmam que Leó cresceu mundo e, de Leonilson, um ex-
em público postumamente. Várias poente de sucessivas gerações pa-
exposições, documentários e livros ra as quais pautas de identidades
surgiram (com destaque para o be- marginalizadas encontram resso-
líssimo Catalogue Raisonné) — e, nância na produção artística” —
dentre as pesquisas que se debru- lemos na pesquisa citada.
çam hoje sobre o artista, ressalto o O deslizar entre a lingua-
trabalho de Lúcio Flávio Gondim, gem imagética e verbal justifica
Leonilson expandido. Recentemen- a ideia de uma literatura instá-
te defendida no doutorado de lite- vel, ambígua, expandida; uma li-
ratura comparada na Universidade teratura em processo, que, assim
Federal do Ceará, esta tese — que como a própria intimidade que
pode ser acessada online, pelo re- marca a obra de Leonilson, não
positório institucional da UFC se completa jamais e, exatamente
— é uma das mais sensíveis inves- por isso, está disponível para ser
tigações que li sobre o diálogo en- revista e revigorada, sem cessar.
tre literatura e artes plásticas. Além disso, o conceito da ines-
Logo no resumo, o pesqui- pecificidade da arte vem anco-
sador anuncia a escolha por um rar, sob tal visada, os trabalhos de
elemento, a rosa dos ventos, co- Leonilson no âmbito contempo-
mo um híbrido sintetizador da râneo, pelo seu estilo polimorfo.
obra de Leonilson, que “em 36 Florência Garramuño é
anos de vida construiu um reper- lembrada como referência nos es-
tório de cerca de quatro mil pro- tudos sobre as práticas de Nuno
dutos artísticos e muitas incógnitas Ramos, que igualmente fogem a
imagético-verbais”. A partir da- uma classificação em única lin-
qui, pensamos: talvez o enigma da guagem, constituindo na verda-
obra de Leonilson (que, entretan- de “um espaço-tempo sensorial”.
to, à primeira vista pode parecer Segundo a pesquisadora, tais rea-
tão simples, tão espontânea) seja lizações artísticas estariam acon-
o que, no âmbito estrutural, con- tecendo por meio de um “modo
tinua a instigá-la. Veiculadas por ou dispositivo que evidencia uma
suportes multimodais, suas produ- condição da estética contemporâ-
ções são dificilmente classificáveis nea na qual forma e especificida-
ou reduzíveis a rótulos. Livres pa- de parecem ser conceitos que não
ra circularem por múltiplas cama- permitem dar conta daquilo que
das, suas peças incluem desenhos, nela está acontecendo”.
pinturas ou bordados que sempre Além disso, pode-se tam-
fazem a linha transitar entre o tra- bém tratar de “literatura pós-
ço e a palavra. Ora, essa frontei- -autônoma”, conforme Josefina
ra diluída também se aplica hoje Ludmer, na qual os limites es-
a certas práticas literárias, mistu- téticos da escrita se estendem e conhecimento sobre um determinado assunto, e es- quisadores da obra de Leonilson.
radas ao visual e ao performático... abarcam marcas de outras moda- ta tese alcança toda a grandeza no que se propõe, des- A reunião de tais trabalhos e afe-
Em conteúdo, o aspecto lidades artísticas. Trata-se de uma construindo Leonilson para aprofundá-lo e torná-lo tos foi possível especialmente pelo
subjetivo ergue-se como um gran- reformulação que mescla concei- ainda mais abrangente — não só no que diz respeito mecanismo de uma hashtag com o
de atrativo em Leonilson: “Se- tos como o de literário e não-lite- às questões técnicas, conceituais e mesmo historiográ- nome do artista”.
ja costurando por influência da rário. Diante da questão que trata ficas das suas criações artísticas, mas sobretudo, penso Dessa maneira, através
mãe ainda na infância, na pintu- de um possível ponto de partida, eu, no que tange às possíveis leituras, abertas e poten- de um aprofundamento das in-
ra das primeiras composições e até qual seja, a tendência de Leonilson cialmente infinitas, que tais peças inspiram, no diálo- fluências de Leonilson, com a
na produção de fanzines (peque- moldar as artes visuais por uma go com as recepções que surgem. Lúcio Flávio é um análise da obra de outros artistas
nas publicações com colagens), es- perspectiva literária ou expandir leitor que conduz, guia e articula as chances íntimas que com ele dialogam, demons-
se artista cearense, mundivagante a literatura para uma perspectiva que qualquer um(a) de nós pode ver desenvolvidas, a tra-se, na prática, como essa ex-
— como é próprio de seus con- multimídia, o pesquisador faz o partir da estética de Leó. Nesse sentido criativo, é um pansão se propaga. A grandeza de
terrâneos — almeja falar de seus que se deve: revira o seu objeto de leitor-artista, um pesquisador performer, um escritor Leó extravasa pelas ramificações
fluxos e dores, assumindo sua sub- estudo, olha o mesmo fenômeno que também “pinta e borda”. possíveis — e potencialmente in-
jetividade como meio de expres- de ângulos diferentes até surpreen- No intuito de aplicar ao seu próprio trabalho um termináveis — com outras obras,
são”. A identificação do público dê-lo sob mais de um viés. teor polivalente, para além de uma profunda investiga- biografias e estéticas. É mais um
acontece pelo tom diarístico; “en- Lúcio Flávio Gondim busca ção bibliográfica, Lúcio Flávio Gondim abriu seu cam- momento de profunda coerência
tre frases e bordados”, Leó desen- o avesso de Leonilson, descostu- po metodológico, conforme explica à página 115 da na tese, pois não apenas se desen-
volve a história de suas tristezas, ra o tecido de sua obra, puxa-lhe tese: “foi criado também para esta pesquisa um espaço volve aqui uma investigação com
sobretudo depois de ter sido diag- os fios, para ver de que matéria a de troca e de atualização constante a respeito de nosso texto híbrido, poético e científi-
nosticado com HIV, numa época trama foi feita. Com esse gesto, objeto de pesquisa. Tratou-se de um perfil na rede social co, e permeado pelas imagens de
em que o tratamento da doença longe de destruir o produto que iminentemente imagética Instagram chamado ‘Leonil- análise, mas também se demons-
ainda não era eficaz. analisa, consegue desdobrá-lo, son Expandido’. Fundada desde o início da pesquisa de tra de fato a hipótese de expansão
Transitando entre memó- propagá-lo de uma nova manei- doutorado, a página serviu primeiramente como uma apresentada, fazendo uma pesqui-
ria e invenção de si mesmo, “Leo- ra. Afinal, é tarefa do espaço aca- convocatória e, logo em seguida, como um relicário da sa ainda mais abrangente do que
nilson passa a ter uma difusão dêmico aumentar as diretrizes do produção verbovisual de artistas, admiradores e pes- poderíamos imaginar.
ABRIL DE 2023 | 27

fabiane secches
CADERNOS DE LEITURA

Ilustração: Thiago Thomé Marques

FUTURO
A produção romanesca mé- externo e mundo interno, litera- espírito de nosso tempo: se ainda
dia parece florescer viçosa, ao me- tura e história como um processo quer continuar a descobrir o que
nos no plano quantitativo, na dinâmico. Para Hegel, a percepção não foi descoberto, se ainda quer

ANCESTRAL
absoluta ignorância do mundo da realidade e as técnicas de repre- ‘progredir’ como romance, ele só
e de sua transformação, no tran- sentação vão se modificando con- pode fazê-lo contra o progresso do
quilo desconhecimento da reali- forme o entorno se transforma. A mundo”. Poderíamos fazer uma
dade; a maior parte dos romances questão que nos assombra é: será analogia com algo que o escritor
assemelha-se a aparelhos antiqua- que o romance é uma forma elás- indígena Ailton Krenak, um dos

O
dos e obsoletos. Nesse sentido, o tica o bastante para seguir como pensadores brasileiros mais im-
romance é concebível romance médio cada vez mais se tal no mundo de hoje? portantes da atualidade, defende
sem o mundo moderno? assemelha (...) àqueles gêneros li- Em A arte do romance, desde o título em seu livro mais
— essa é a questão que terários envelhecidos e antiquados Milan Kundera reflete sobre a recente: Futuro ancestral. 
nomeia o ensaio do ita- que o grande romance moderno, evolução do romance e de seus as- Gosto bastante desse pen-
liano Claudio Magris sobre os pa- ao irromper violentamente em ce- pectos centrais desde Miguel de samento, mas acho importante
radigmas do romance literário no na, havia varrido. Cervantes, autor daquele que é acrescentar uma observação que a
mundo contemporâneo. A pergun- Magris lembra também que considerado a pedra angular oci- italiana Elena Ferrante faz em uma
ta também ocupa as páginas de A o romance é impensável sem a no- dental do gênero pela maior par- entrevista, ao ter sua obra compa-
arte do romance, antologia de en- va função do dinheiro e a ascen- te dos historiadores do romance. rada à de Alexandre Dumas, gran-
saios e entrevistas do tcheco Milan são da burguesia. Menciona o Embora Kundera concorde que de autor francês do século 19:
Kundera: o romance como gênero fenômeno dos best-sellers no sécu- tudo que é humano traga em seu Posso escolher reutilizar al-
literário, tal qual o conhecemos no lo 18, como Robinson Crusoé, de nascimento também o germe de guns dos potentes dispositivos da
mundo ocidental desde Dom Qui- Daniel Defoe, e Os sofrimentos seu fim, argumenta que o roman- literatura popular, mas se faço is-
xote, estaria fadado à morte? do jovem Werther, de Goethe. O ce não é apenas uma representação so, estou em uma época completa-
O ensaio de Claudio Ma- romance seria, portanto, um para- do mundo moderno, mas tam- mente diferente, gostando ou não,
gris encerra o primeiro volume de doxo, uma “lança de Aquiles que bém a sua gênese, já que, a partir da que essa literatura teve seu au-
A cultura do romance, organiza- fere e cura”, no sentido de que, a dele, passamos a lidar com outra ge. O que quero dizer com algum
da por Franco Moretti, coletânea um só tempo, representa a crítica realidade: “em vez de uma só ver- pesar é que de modo algum pos-
de mais de mil páginas, divididas ao mundo moderno, como tam- dade absoluta, muitas verdades re- so ser Dumas. Pertencer à grande
em quatro partes, propõem-se a bém o assimila e se torna parte dele.  lativas que se contradizem”. Para tradição dos romances populares
pensar a história do romance co- Segundo Magris, somen- ele, o romance tem como única não significa mais, para o bem ou
mo gênero literário através de suas te um romance que assumisse os certeza a sabedoria da incerteza.  para o mal, criar esse estilo de nar-
sucessivas crises. Na introdução, dilemas atuais poderia alcançar o “O espírito do romance é o rativa, mas sim utilizá-la, distor-
Moretti argumenta que o roman- sentido da realidade e de sua dis- espírito da complexidade. Cada ro- cê-la, violar suas regras, frustrar
ce combina três perspectivas dis- solução. Conclui observando que, mance diz ao leitor: ‘As coisas são suas expectativas, tudo a serviço
tintas: 1) o romance como grande atualmente, vivemos em um “su- mais complicadas do que você pen- de contar uma história do nosso
acontecimento cultural, “que re- permercado político-social” onde sa’. Essa é a eterna verdade do ro- tempo. (...) Nós podemos apagar
definiu o sentido de realidade, o os romances, que seriam apenas mance que, entretanto, é ouvida a fronteira entre as diferentes ex-
fluxo do tempo e da existência in- remakes da tradição, aparecem cada vez menos no alarido das res- periências literárias e utilizá-las si-
dividual, a linguagem e as emo- como produtos secundários, po- postas simples e rápidas que prece- multaneamente para dar forma a
ções e os comportamentos”; 2) o rém vendáveis. “Talvez o roman- dem a questão e a excluem”, escreve.  nosso momento histórico.
romance como forma: “(...) aliás, ce termine em uma auto paródia O romance poderia ser pen- De um lado, temos a im-
formas, no plural, porque na sua involuntária”, mas isso, diz ele, se- sado como o espírito de continui- portância de experimentar novas
longa história encontram-se as ria uma outra história.  dade, uma vez que cada obra é formas estéticas que dialoguem
criaturas mais surpreendentes, e De outro lado, temos Vir- resposta às obras que a precede- com as características do mundo
o alto e o baixo trocam de lugar ginia Woolf, para quem o roman- ram; cada obra contém toda a ex- atual — com a velocidade, a efe-
de bom grado, e os próprios limi- ce é “a mais maleável de todas as periência anterior do romance, meridade dos vínculos, os frag-
tes do universo literário se tornam formas”. Pensar o romance como ainda que seja para romper com mentos de experiência —; de
incertos”; 3) o romance como o um gênero literário que se relacio- ela. No entanto, há aqui um pa- outro, a constatação de que, pa-
que chama de “geografia planetá- na mais com um espírito do que radoxo observado por Kundera: ra manter o espírito do romance,
ria”: “Às vezes, ocorre-nos pensar com essa ou aquela forma pare- O espírito de nosso tem- talvez a grande subversão do nos-
em Babel; mas é exatamente essa ce um caminho interessante. Mas po está fixado sobre a atualidade, so tempo seja resistir à celeridade
flexibilidade que fez do romance não podemos dizer que os argu- que é tão expansiva, tão ampla, e à fragmentação.
a primeira forma simbólica verda- mentos de Magris não são razoá- que expulsa o passado de nos- Faço aqui uma mistura de
deiramente mundial”.  veis: se o romance é uma forma so horizonte e reduz o tempo ao citações de autores tão diferentes
Mas, para Magris, uma vez artística intrinsecamente vincula- único segundo presente. Incluí- para tentar demonstrar a minha
que o mundo moderno ou “a mo- da a um período histórico, com o do nesse sistema, o romance não aposta de que existem caminhos
dernidade com m maiúsculo aca- processo de derrocada desse perío- é mais obra (coisa destinada a du- distintos que apontam para a lon-
bou ou está acabando, em uma do, essa forma poderia de fato ter rar, a unir o passado ao futuro), gevidade do romance também co-
guinada histórica de enormes di- se tornado insuficiente para dia- mas acontecimento de atualidade mo possibilidade literária e não
mensões, que só pode ser com- logar com esse novo momento. como outros acontecimentos; um apenas como mercadoria. Apesar
parada ao fim da Antiguidade”, As crises do romance podem ser gesto sem amanhã.  disso, é importante reconhecer: é
também o romance como gênero pensadas também como um mo- Para o escritor, o roman- uma raridade quando acontece e,
literário estaria morrendo. vimento dialético entre mundo ce não pode “viver em paz com o por isso mesmo, um tesouro.
28 | ABRIL DE 2023

nilma lacerda e maíra lacerda


CALEIDOSCÓPIO

LIVROS DE VIAGEM

O
encontro entre livros e produções contemporâneas, nas Gabriela, la poeta viaje- treita e, na volta do povo à aldeia,
quem os lê acontece de quais a ilustração toma a si par- ra, de Alejandra Toro, com ilus- será ela a descobrir que, onde esta-
várias formas e, sendo o te da narrativa, em lugar do dis- trações de Isabel Hojas, integra ria a avó, há agora uma árvore, que
livro um objeto, supõe- curso verbal. Ainda da Boutique a Lista de Honra do Internatio- tempos depois frutificará.
-se ser o sujeito quem o busca, del Libro, trouxemos um livreto nal Board on Books for Young A importância dos ances-
ainda que não sejam incomuns as de Alan Pauls sobre criação literá- People, além de distinção recebi- trais e o reconhecimento de uma
histórias em que o livro encontra ria: Fallar otra vez, um anúncio da do Banco del Libro, da Vene- jornada cultural configuram es-
o leitor. Essa descoberta costuma a favor da escrita imperfeita, em zuela. Síntese da vida de Gabriela se conto de origem, que traduz
ocorrer devido a uma demanda convite a fazer da falha um exer- Mistral, a obra tem foco em suas nos tons e padrões das estampa-
latente, acionada pelo olhar des- cício perpétuo e original. constantes viagens, como profes- rias uma história a preservar. O
pretensioso, pela súbita aparição Em Puerto Natales, Chile, sora de zonas rurais no Chile, ou glossário ao final, detalhado no
de um título ou nome de autor, uma loja de produtos típicos abri- como embaixadora da cultura de desenho e no texto verbal que o
por uma quarta capa convidativa. gava um pequeno canto com li- seu país. A ilustração em aquare- acompanha, permite identifica-
Fortuito momento, esse, em que vros. De lá vieram, Pikinini, El la toma o texto caligráfico como ção e respeito com a história pre-
um livro chama de forma impera- calafate e Gabriela, la poeta componente chave, em constru- cedente da humanidade.
tiva por seu leitor. Como em casos viajera. Surpresa bem significati- ção similar a uma textura, na qual O compromisso que impõe
amorosos, uma faísca pode defla- va, essa loja. Entre camisetas, peças se pode perceber um subtexto ver- a necessidade de não permitir a re-
grar a paixão. Bibliotecas e livra- para adorno doméstico ou pessoal, bal, em claro diálogo com as pró- petição de injustiças e crimes, que
rias são, por excelência, os espaços pequenas telas, ímãs de geladeira, prias linhas de vida da poeta. marcaram o processo de coloni-
propícios a isso. lá estavam livros de qualidade sur- As linhas estilizadas de gra- zação, mostra-se patente em Pi-
O acesso ao livro é marcado preendente, itens que — supõe- fismos primordiais, característi- kinini. Em coragem incomum,
ainda por uma seletividade, seja -se — não seriam encontrados em cos de povos originários da região Raquel Echenique ilustra a nar-
financeira, social, ou vinculada a meio aos souvenirs. E foi lá, na tí- que, posteriormente, se configu- rativa de José Miguel Varas, jor-
um sistema pessoal de referências. mida e competente livraria, que rou como América do Sul, são a nalista e escritor, que tomou o
Se alguns desses limites de aces- nos demoramos mais tempo, e de base das ilustrações de Paloma testemunho de dona Clementina
so vêm, muito lentamente, sendo onde veio também grande fruição. Valdivia para o texto de Ana Ma- Fidret Bonard, em 1958, na ci-
deixados para trás, o círculo que Se Lacombe é um nome já admi- ría Pavez e Constanza Recart. El dade chilena de Punta Arenas. A
nos envolve dita suas determina- rado, e Bambi um clássico, cuja calafate: cuento basado en una narrativa em primeira pessoa não
ções. Como buscar uma coisa que referência visual se faz reinventada leyenda aónikenk relata a histó- economiza nas tintas dramáticas
você não sabe que existe? na edição que nos chegou às mãos, ria da avó que não consegue mais para relatar a selvageria com que
Uma viagem marca a que- o mesmo não acontece em relação acompanhar a tribo em seu des- os Onas ou Selkman foram trata-
bra de paradigmas. Ao menos, às autoras e aos autores das demais locamento sazonal, e, apesar dos dos até o extermínio. Também a
uma viagem bem usufruída. O obras. Os projetos, no entanto, re- esforços contrários da família, se ilustradora não poupa os olhos de
lugar é outro, o tempo se faz ou- velam um imaginário local e his- deixa ficar em sua tenda. A rela- quem lê do mar de sangue sobre
tro, o novo reclama atenção. O tórico dos mais ricos e instigantes. ção com a neta é especialmente es- a terra da Patagônia, fosse do lado
conhecido ato de passear por li- chileno ou argentino.
vrarias se transforma em expe- A compartimentação em
Ilustração: Maíra Lacerda

riência inusitada: destinada a ilustrações sequenciais, em uso se-


outro público, é diversa a pro- melhante ao de Lacombe, confere
dução ali exposta, por vezes é di- um tom narrativo diferencial, em
verso o idioma, e serão outras, que a paleta de cores em tons ter-
inevitavelmente, as vozes que nos rosos sublinha o impacto do azul
chamam. A célebre frase atribuí- — usado principalmente para as
da a Picasso — “Eu não procuro, roupas dos colonos e os ambien-
eu acho” — tem aqui o seu valor. tes dominados pelo branco — e
O que achamos em recen- do vermelho, sangue vertido que
te viagem à Patagônia? O roteiro contamina toda a terra. Uma Pa-
começou em Ushuaia, na Argenti- tagônia feita de sangue.
na, onde chegamos à livraria local Uma viagem marca a que-
procurando pela obra de Bru- bra de paradigmas, dissemos. En-
ce Chatwin, Na Patagônia. En- contramos, nessa viagem, uma
tre as edições inglesa e argentina, paisagem natural deslumbran-
optamos pela primeira, em fun- te, livros que narram e poetizam
ção do idioma original e da capa o mundo, que o vertem em perple-
gráfica, a evocar as cores da paisa- xidade, náusea, anseio e deslum-
gem natural. Atentas aos chama- bramento… A paisagem se fazia
dos amorosos, fomos encontradas anunciar, embora em pequenas
pela belíssima edição de Bambi, porções, por fotos e anúncios tu-
una vida en el bosque, ilustrada rísticos; os livros, porém, foram
por Benjamin Lacombe, com pre- achados. Sem se mostrarem pre-
fácio do filósofo Maxime Rovere. viamente em nossas ferramentas
Trazer este volume pedia ponde- usuais de busca, chegamos a eles
ração, em razão do preço e do pe- por meio da presença mútua em
so que representaria na bagagem. um mesmo lugar.
Não resistimos. A obra de Não voltamos para casa da
Lacombe é luxuriante, tem pági- forma como partimos. A paisa-
nas rendilhadas, folhas triplas que gem de fotos ou cartões-postais
se abrem em amplo quadro de seis desfaz-se em palidez em face da
páginas; os desenhos são elabora- visão direta, cara a cara com o
dos, com predominância de uma glaciar. E os livros, bem, os livros
expressão art nouveau, junto a são parte dos chamados amoro-
pinturas monocromáticos a cra- sos. Que paradigmas resistem ao
yon, em contraste com guaches amor ou ao deslumbramento? O
exuberantes. A par de uma lingua- que nos diz, você, leitora, leitor?
gem tradicional, Lacombe tem, na Que livros têm te levado a escu-
exploração de frames, um diálo- tar esses chamados e por eles se
go evidente com o cinema e com deixar guiar?
ABRIL DE 2023 | 29

rascunho recomenda INFANTOJUVENIL HQS

Versões reúne contos de alguns dos maiores escritores latino- Isadora Moon faz aniversário é o segun-
americanos, adaptados em HQs desenhadas pelo mais importante do volume da série britânica que tem co-
quadrinista do continente: Alberto Breccia. Com a ajuda de mo protagonista a Isadora Moon do título.
Carlos Trillo e Juan Sasturain, dois grandes roteiristas argentinos, Com mais de 3,5 milhões de exemplares
Breccia adapta histórias célebres de autoria dos gigantes Jorge Luis vendidos no mundo, já foi traduzida pa-
Borges, Gabriel García Márquez, Juan Rulfo, Alejo Carpentier, ra 36 línguas. A mãe de Isadora é uma fa-
Juan Carlos Onetti e Horacio Quiroga. O resultado em A galinha da e seu pai, um vampiro — e a menina é
degolada, de Quiroga, por exemplo, é considerado por muitos um pouco dos dois. Ela adora a noite, mor-
o ápice de Breccia. Versões é um livro aclamado como um cegos e sua saia de balé preta, mas também
monumento na história dos quadrinhos e um delicioso passeio ama a luz do sol, sua varinha mágica e o Co- Isadora Moon
pela literatura latino-americana do século 20. Alberto Breccia Versões elho Rosa, seu fiel companheiro de aventu- faz aniversário
nasceu em 1919, no Uruguai, e se mudou com a família para os ALBERTO BRECCIA, ras. Desde que começou a frequentar uma HARRIET MUNCASTER
subúrbios de Buenos Aires aos três anos de idade. Nos anos 1950, JUAN SASTURAIN escola humana, Isadora já foi a várias festas Trad.: Caroline Chang
começa a colaborar com quadrinhos para a editora Frontiera E CARLOS TRILLO de colegas — e amou. Quando o seu ani- L&PM
Trad.: Marcelo Barbão
Editorial, então dirigida pelo roteirista Héctor G. Oesterheld, versário se aproxima, ela não quer uma festa 128 págs.
Veneta
que iniciava uma revolução nos quadrinhos argentinos. Com 80 págs.
à moda dos vampiros e nem à moda das fa-
Oesterheld, Breccia produziria alguns de seus trabalhos mais das, mas uma igualzinha a de seus amigos.
famosos, como Mort Cinder (Figura, 2019), O Eternauta 1969
(Comix Zone, 2020) e Che (Comix Zone, 2021).
Neste livro-poema, Sofia Mariutti e Yara
REPRODUÇÃO Kono criam novos significados para
palavras e expressões e, dessa forma,
provocam o leitor a pensar um novo
universo de formas e sentidos — algo
natural para toda criança. Afinal, por
que uma faixa de pedestres não pode ser
uma zebra? E uma pinta na palma da
mão, uma pintura? Editora, tradutora, Vamos desenhar
poeta e mestra em língua e literatura palavras escritas
alemã, Sofia Mariuti é autora também da SOFIA MARIUTTI
compilação de poemas A orca no avião. Ilustrações: Yara Kono
Vamos desenhar palavras escritas? é o Companhia das Letrinhas
seu primeiro livro infantil. 40 págs.

Por causa da crise econômica, Luana


não poderá ir à praia com a mãe. Mas
o amigo André faz um convite especial:
passar as férias escolares no sítio do avô
argentino, que mora no Brasil. Serão dias
repletos de aventuras em contato com a
natureza, e o aparecimento de um livro
misterioso, escrito pelo avô para o filho
na época da ditadura na Argentina e no
Brasil, vai mostrar por que a economia
Dicionário fácil
e a política fazem parte da vida dos das coisas difíceis
adultos e também das crianças. Ao longo
DÉBORA THOMÉ
da narrativa, os autores demonstram
E LUCIO RENNÓ
na prática conceitos como democracia, Jandaíra
ditadura, eleições e governos. 112 págs.

Triste República Demônio na floresta A vida de Ella Brook parece normal,


SPACCA E LILIA MORITZ SCHWARCZ LEIGH BARDUGO E DANI PENDERGAST mas ela e a família guardam um
Quadrinhos na Cia. Trad.: Isadora Helena Prospero segredo muito especial: mamãe é uma
196 págs. Planeta Minotauro fada! E, quando tiver idade suficiente,
208 págs.
Ella também será uma. Enquanto
isso, a garotinha é uma fada-na-fila-
O cartunista Spacca e a historiadora e Leigh Bardugo é autora best-seller do de-espera que sempre ajuda a mãe
antropóloga Lilia Moritz Schwarcz narram The New York Times de romances e quando uma coisinha ou outra dá
o nascimento e as contradições da Primeira contos de fantasia. Ficou mundialmente errado com os feitiços. Neste volume
República através do olhar de um dos principais famosa por sua série Grisha. Agora de A fada mamãe e eu, as aventuras A fada mamãe e eu —
escritores brasileiros de todos os tempos: Lima está de volta a esse universo com a de Ella e da Fada Mamãe incluem Desejos de unicórnio
Barreto (1881-1922). Guiados pela narrativa graphic novel O demônio na floresta, carros voadores, panes mágicas,
SOPHIE KINSELLA
da vida desse personagem fundamental, autor que conta com as ilustrações de Dani sapatilhas encantadas de balé e até um Galera Júnior
do clássico Triste fim de Policarpo Quaresma, Pendergast. Bardugo narra o início do belo unicórnio… na cozinha. 176 págs.
nasce a República brasileira, carregada de que se tornaria o Darkling, um dos
marcas autoritárias, num “mundo em que personagens mais complexos da série.
a cor atua como marcador e discriminador Aqui, Ravka ainda não foi liderada Bullying, apoio familiar e aceitação são
social”. Escritor militante, como ele mesmo se pelo Segundo Exército, e a Dobra alguns dos temas tratados pelo autor
definia, Lima Barreto professou ideias políticas das Sombras ainda não existe. Mas francês Marc Majewski em Criança-
e sociais à frente de seu tempo, com críticas existe um garotinho, muito antes de borboleta. O livro narra a história de um
contundentes ao racismo (que sentiu na própria se tornar o Darkling. Aliás, Eryk tem garoto que adora se fantasiar de borboleta e
pele), aos estrangeirismos e outras mazelas um poder extraordinário, que o torna sair pelo bairro, rodopiando e batendo suas
crônicas da sociedade brasileira. Em Triste solitário e oprimido. Ele e a mãe, asas. Mas nem todos os colegas entendem
República, Spacca e Lilia Moritz Schwarcz Lena, só sabem fugir em busca de um sua brincadeira e o excluem. Com a
— autores de As barbas do imperador e D. refúgio que nunca encontram. Afinal, ajuda do pai, ele vai ganhar forças para se
João Carioca — voltam a contar a história do eles são os mais raros e perigosos reestabelecer e superar o preconceito. A Criança-borboleta
Brasil em quadrinhos, desta vez investigando Grishas. Entretanto, isso significa que história é autobiográfica, pois o próprio
MARC MAJEWSKI
a Primeira República e prestando um tributo muitos querem explorar esses dons e, autor, ao se sentir rejeitado na infância, teve Trad.: Thaise Macêdo
a um dos maiores prosadores da língua portanto, Eryk e Lena escondem os o incentivo do pai para não deixar a própria VR
portuguesa de todos os tempos. poderes de todos. essência de lado e a construir seu caminho. 48 págs.
30 | ABRIL DE 2023

Perdidos
mundo
afora
A errância dos
personagens de
Cormac McCarthy em
romances articulados
uns aos outros para
compor painel sombrio
e áspero da vida

PAULO PANIAGO | BRASÍLIA – DF

Cormac McCarthy
por Fabio Miraglia
ABRIL DE 2023 | 31

T
rios e duos. O norte- Um velho que encontra pelo ca- cura (o que explica as conversas
-americano Cormac minho lhe diz para interromper as estranhas no início dos capítulos,
McCarthy parece gos- perambulações, porque poderiam são as conversas da irmã com as
tar de combinações de virar paixão “e por essa paixão se alucinações). E agora sabe-se que
números e uma nova edição do apartaria dos homens e por fim de Bobby se envolveu numa história
livro central da Trilogia da Fron- si mesmo”. É uma espécie de pro- estranha, depois de mergulhar pa-
teira acaba de ser lançada. Trata- fecia, porque é justamente o que ra ver o que se salvava num avião
-se de A travessia, que junto com vai acontecer com Billy. Quando que caiu no mar e percebe que
Todos os belos cavalos e Cidade ele volta para casa, os pais mor- falta um passageiro e talvez seja
das planícies (este, esgotado há reram e o irmão o aguarda. Eles ele quem tenha provocado o aci-
tempos) fecha a conta. Mas se o agora voltam juntos ao México, à O passageiro dente, porque falta também a cai-
Meio-Oeste norte-americano — procura dos cavalos que foram le- CORMAC MCCARTHY xa-preta do avião e os planos de
misturado a alguns cenários ári- vados com o assassinato dos pais. Trad.: Jorio Dauster voo. A partir daí, a vida de Bobby
Alfaguara
dos do México — dá forma a uma Mas é só pretexto para mais errân- muda a ponto de parecer que na-
392 págs.
trilogia em que a errância rege e cia. A certa altura o que se percebe da mais dará certo e ele nem sabe
confere o tom, o duo composto é que McCarthy está interessado exatamente quem está mexendo
por O passageiro e Stella Maris no conteúdo das narrativas: “To- os cordames para assegurar isso,
parece abrir uma nova frente de das as histórias são uma só”. As se FBI, CIA, ou talvez coisa pior,
trabalho importante na obra do diferenças do mundo, ou das ou ainda pior do que pior: apenas
escritor, quase sempre apontado pessoas nele, se reduzem à mes- a própria paranoia. O fato é que
como um dos grandes nomes da ma similaridade. Nas idas e vin- ele precisa sair do radar e também
prosa dos Estados Unidos, o que das, Billy chega a tentar se engajar inicia uma trajetória de errância
não deixa de carregar certo exa- na Segunda Guerra, mas é recusa- e tristeza infinita, outro ponto de
gero. É uma obra toda cheia de do três vezes por três médicos dis- articulação entre as obras, além do
articulações, isso sim, como essa tintos em três cidades diferentes, realismo empedernido e aparente-
preocupação com números pare- por ter um descompasso no cora- mente superficial.
ce transparecer. ção que o inabilita para o recruta- O que tira o risco de ce-
Por exemplo, o que mais so- mento. A última vez que volta ao na, no caso do autor, é o domí-
bressai em A travessia é a aten- México é para trazer de lá os os- Stella Maris nio em que ele quer se mostrar
ção minuciosa a detalhes, uma sos do irmão mais novo, Boyd. É CORMAC MCCARTHY competente, o de escavar as pro-
prosa meticulosamente realista, a primeira vez que encontra o que Trad.: Cássio de Arantes Leite fundezas humanas, mesmo reve-
Alfaguara
que acompanha a trajetória de procurava: “Mas não tenho a me- lando tão pouco, na aparência,
184 págs.
um garoto de dezesseis anos, Billy nor dúvida de que não é o que eu ao fingir permanecer na superfí-
Parham, do Novo México, nos Es- queria”. Há uma tristeza como- cie. Nesse sentido, O passageiro
tados Unidos, até o México pro- vente nesse personagem em cons- é livro bastante competente, tam-
priamente, em ida e volta várias tante deslocamento, que se reflete bém minucioso, está tudo certo,
vezes, a pretexto de lhe contar a num deslocamento que sente em tudo na linha do que vinha acon-
predisposição para a errância. relação ao entorno, uma inquieta- tecendo até agora em se tratan-
Billy mora numa fazendola ção permanente e incômoda que do de um romance de Cormac
da família com pai, mãe e o irmão transparece o tempo todo, embo- McCarthy. Um pouco de estra-
mais novo, Boyd. Tudo bem, há ra nunca se saiba o que vai pelo nheza com as passagens em itá-
um lobo à solta que ataca o gado e interior das personagens, a não ser lico, vá lá, mas ainda assim um
é preciso capturá-lo. Mãos à obra, aquilo que se justifica pelos diá- McCarthy clássico, dentro da car-
pegam-se armadilhas emprestadas logos esparsos. O que se sabe é o tilha, que discorre a respeito de
de um vizinho, mas o lobo é es- que fazem, as ações, gestos. personagem errante, tristonho,
perto demais e leva bastante tem- macambúzio, curtido pelas ad-
po até cair numa das armadilhas. Tristeza infinita A travessia versidades do caminho.
Ou melhor, loba, feminino, por- Por isso, é curiosa a forma CORMAC MCCARTHY A coisa muda de figura, e
que entre os rastros e pegadas do como a Trilogia da fronteira se ar- Trad.: José Antonio Arantes muda radicalmente, com Stella
Alfaguara
animal na neve é possível vislum- ticula com o díptico composto Maris, de longe o melhor dos três
408 págs.
brar sinais das tetas, indicação de por O passageiro e Stella Maris. livros e sozinho um dos melhores
que está grávida. Leva-se um tem- Porque o primeiro volume do duo que McCarthy escreveu. Literatu-
po razoável até a captura. E en- parece guardar algo dos livros da ra de alto padrão e talvez um dos
tão, do nada, o garoto decide que trilogia, a errância como funda- grandes livros que ele jamais es-
vai levá-la de volta ao México, de mento, o realismo descritivo co- creveu ou conseguirá escrever de
onde ela deve ter vindo. Sem co- mo técnica. Embora ele tenha, no novo. Se alguém sinalizava que
municar nada a ninguém, claro, é início de cada capítulo, um come- o escritor pertence a estirpe dos
uma espécie de decisão súbita fru- ço de estranhas conversas grafadas grandes romancistas norte-ame-
to de epifania, do tipo que muda a em itálico, e que o leitor demora ricanos, com esse livro sozinho
vida de alguém para sempre. A de- a entender bem do que se trata. O pode cravar: está correto. Aqui
cisão, no caso, pela errância. passageiro conta a história de um acabou a errância, pelo menos no
Ele se torna subitamente mergulhador, Robert, ou melhor, O AUTOR sentido mais trivial de mobilida-
aqueles caubóis que você vê nos Bobby Western, especializado em de. Se O passageiro acompanha
CORMAC MCCARTHY
filmes de faroeste, dormindo à salvamento, isto é, qualquer car- a versão de Bobby dos aconteci-
noite em torno de uma fogueira, ga que tenha se perdido no fundo Nascido em Providence, Rhode Island mentos, Stella Maris é o ponto
com o cavalo por perto, enrolado do mar, ou de rio, vai contratar a (Estados Unidos), em 1933, Cormac de vista de Alicia, e o impressio-
em manta. E no dia seguinte ca- empresa para a qual Bobby traba- McCarthy passou quatro anos na nante é como as diferentes abor-
valga. Homem e cavalo meio que lha e ele entra em ação. É algo pe- Força Aérea e depois estudou artes dagens ajudam a iluminar certos
se tornam a mesma entidade. Se rigoso, mas um perigo controlado. na Universidade do Tennessee. Um pontos escuros de um e de outro
a loba estava perdida muito além Sabe-se que Bobby tem tendên- de seus livros, Onde os velhos não dos livros. O título faz referência
das fronteiras, agora é Billy quem cia a gostar de atividades arrisca- têm vez, foi adaptado ao cinema pelos a uma instituição psiquiátrica em
irmãos Ethan e Joel Coen, com o título
parece mergulhar num mundo das, correu de carro na Europa, que Alicia, por livre e espontânea
em português Onde os fracos não têm
estranho. Embora ele fale espa- acidentou-se, ficou em coma por vontade, se faz internar pela ter-
vez. Avesso a entrevistas, McCarthy
nhol muito bem, não é a língua o um tempo. Sabe-se que Bobby é acumula prêmios importantes, como
ceira vez, aos vinte anos de idade,
problema de fundo, veja bem. A apaixonado pela irmã mais no- o National Book Award e o National no estado de Winsconsin. Vinte, é
avó era mexicana e ele cresceu fa- va, Alicia, que é muito bonita e Book Critics Award. Em 2007, isso mesmo, ou seja, muito jovem.
lando espanhol, que aliás está sal- foi matemática, mas está envol- ganhou um Pulitzer por A estrada Mas com uma história cabulosa
picado o tempo todo pelo livro. vida demais com a própria lou- (também transformado em filme). de inteligência e tristeza.
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O que o livro tem são as apa- tros fatores), enfim, uma série de
rentes transcrições das fitas de sete A coisa muda de figura, e muda radicalmente, questões importantes, discutidas
sessões de Alicia com um psiquia- com Stella Maris, de longe o melhor dos três de maneira competente e densa,
tra, o doutor Michael Cohen, em livros e sozinho um dos melhores que McCarthy mas não menos dramática e sen-
que falam a respeito de tudo, tudo escreveu. Literatura de alto padrão e talvez um sível. Por exemplo, as implicações
mesmo, o que importa. E se existe dos grandes livros que ele jamais escreveu ou de o pai dela ter sido um dos físi-
uma tradição romanesca de pacien- cos que trabalharam com Oppe-
tes a conversar no divã (lembram-se conseguirá escrever de novo. nheimer no Projeto Manhattan.
do clássico de Philip Roth, O com- “Quem não percebe que o Projeto
plexo de Portnoy, do fim dos anos Manhattan é um dos eventos mais
1960?), esse aqui chega com von- significativos da história humana
tade de desbancar os demais. Trata- não está prestando atenção”, arris-
TRECHO
-se de um longo diálogo de forças ca a paciente. Ao lado do fogo e da
conflitantes, em que Alicia é clara- A travessia linguagem, acrescenta.
mente a mais inteligente dos dois, Acontece que, não bastasse,
mas assolada por paranoia esquizo- Sim, fala dele. Conta o que você quiser que conte. Conta o que Alicia nutre um amor não só fra-
frênica, como diz o prontuário de terno pelo irmão, o que é men-
internação. Ela tem alucinações vi- faz o conto ser recontado. O corrido é a história do homem pobre. cionado e discutido no primeiro
suais, seria algo a ser dito, do pon- Não tem a obrigação de ser fiel às verdades da história, mas às livro, mas tratado por Bobby de
to de vista formal. Ou melhor, teve, verdades dos homens. Conta o conto do homem solitário que maneira meio rasteira, ou assim
no passado. Mas a definição que dá são todos os homens. O corrido acredita que onde dois homens me pareceu. Talvez porque Bobby
para o que vê ganha outros nomes. faça parte da obra descritiva, rea-
Por exemplo, o doutor Cohen fa- se encontram uma de duas coisas ocorre e nada mais. Num caso lista e fingidamente superficial de
la em espíritos familiares, enquanto nasce a mentira e no outro a morte. McCarthy. Mas agora que o lei-
ela chama a trupe que lhe aparece tor está aqui no divã junto com
de as hortes. Entre as personagens Alicia, não tem mais sentido qual-
TRECHO
com as quais interage está um anão quer tratamento superficial. Ela
nomeado Kid Talidomida, por ser O passageiro discorre, sem papas na língua, a
um anão (Alicia corrige o doutor respeito dos sentimentos e tam-
todas as vezes, ao preferir o politica- Western pôs a mão em cima do copo. O amigo alto sorriu. bém dos impedimentos, o ta-
mente correto gente pequena) de- bu do incesto, limitações sociais,
formado, que em vez de braços tem Você não me leva a sério. Mas ainda vou falar por um tempo. convenções que afinal contiveram
barbatanas. Para gerações mais jo- Talvez você seja apenas um colecionador de tristezas. o irmão (ela não estava disposta
vens, talvez seja necessária uma ex- Esperando que subam os preços no mercado. a seguir os protocolos da civiliza-
plicação lateral aqui, ou seja, dizer ção, ao contrário dele, e para cer-
que talidomida foi medicamento Não sou triste, John. to desconforto do psiquiatra, que
para enjoo de grávidas que resul- parece desolado e algo perdido em
tou em efeitos colaterais danosos: Bem, você é alguma coisa. O quê? Um estudo sobre remorso? meio a tantas confissões, embora
crianças que nasceram sem alguns Isso é clássico. O fundamento da tragédia. A alma do drama. siga mantendo a pose).
membros do corpo, nos anos ses- No entanto, o peso maior é
Enquanto o sofrimento é somente o tema.
senta e setenta do século 20. E que mesmo o de uma existência mi-
demorou mais do que devia para serável e dramática e não só em
Não tenho certeza de que entendo o que diz.
ser banido do mercado. decorrência das convenções. A
Alicia estava no doutorado, inteligência em algumas pessoas,
sim, com parcos dezessete anos mais do que bênção, lembra far-
TRECHO
e antes de abandonar a institui- do insuportável. Alicia tem idea-
ção mais careta que é a academia Stella Maris ções suicidas? Sim, e conversa
para trocá-la pela clínica para lu- também a respeito delas. No pri-
náticos. Alicia estudava topolo- A gente fala só pra gravar o que está pensando. Falar não é a coisa meiro dos livros, sabe-se que Ali-
gia, a teoria dos topos (faça um cia acabou por se suicidar. Então
teste, leitor, digite essa expressão em si. Quando converso com você uma parte separada da minha o que se lê agora é a antessala do
na Wikipedia e tenta entender o mente compõe o que estou prestes a dizer. Mas não ainda na fato, o que é forma de uma obra
que está escrito ali, se faz favor). forma de palavras. Então na forma de quê? Sem dúvida não existe anterior iluminar a outra (cro-
O criador dessa teoria, o matemá- nenhuma sensação de um homúnculo sussurrando as palavras que nologicamente, a leitura deve-
tico alemão naturalizado francês ria começar por Stella Maris).
Alexander Grothendieck, teria si- estamos a ponto de dizer. Excetuando o espectro de uma regressão Quando o assunto aparece, ela
do um dos chapas e coleguinha infinita — do tipo quem está sussurrando para o sussurrador —, diz a certa altura, como crítica ou
de Alicia, antes de ele também se isso toca na questão de uma linguagem do pensamento. como queixa, difícil definir, para
afastar da matemática. Ela, en- o psiquiatra: “Seu mundo se sus-
tre outros motivos, porque a tese tenta numa coletividade de con-
que escreveu prova três proble- cordâncias”. E aí espicaça o que
mas na teoria dos topos e depois resta. Em prol do doutor Cohen
passa a demolir o mecanismo das é possível dizer que ele pelo me-
demonstrações, o que coloca em Perceba, o que acontece é que se está diante de nos está atento, preocupado, in-
xeque inclusive o que fundamenta uma inteligência superior, muito superior, capaz de ser teressado na escuta (o que não se
a teoria e os problemas que tenta genial e enlouquecida (uma coisa não exclui a outra, pode dizer de muitos de seus co-
provar. Não é brinquedo. bem entendido, e loucura é um dos riscos colaterais de legas). Até a respeito do momen-
Quando o doutor Cohen ser gênio, todo mundo sabe) e ainda humorada, um to em que raiva vira tristeza, na
pergunta a ela se está decepcio- tipo de humor muito refinado, porque é capaz de rir infância, é tema para eles. Ali-
nada com a matemática, ela res- da própria desgraça. Quando o psiquiatra lhe pergun- cia pensou a respeito do assunto
ponde que esse seria um modo de ta que outra coisa ela gostaria de ter feito, se não fosse a e acha que sabe o motivo que faz
dizer. O que aconteceu?, o médi- matemática, ela dá resposta sucinta: “Morrido”. Agora, essa conversão em crianças:
co quer saber. para se criar uma personagem com esse nível de inte- A injustiça que motiva o de-
ligência e refinamento, é preciso ser ainda mais inteli- sespero é irremediável. E a raiva
“Fui influenciada por um gente e refinado, o que leva de volta à questão a respeito está reservada apenas ao que acre-
grupo de equações diferenciais par- do passo além que esse livro pode representar na traje- ditamos que pode ser consertado.
ciais malignas aberrantes e total- tória literária de McCarthy. Todo o resto é tristeza. Chega uma
mente maliciosas que conspiraram hora em que elas percebem isso.
para usurpar sua própria realidade Questões importantes Por último, o fecho do li-
dos circuitos questionáveis do cére- Entre outras façanhas, o livro passa em revista vro é um dos mais pungentes que
bro de seu criador de um modo não testes psiquiátricos (o Stanford-Binet, por exemplo), já li, embora o leitor saiba desde
muito diferente da rebelião descrita as teorias matemáticas em andamento (teoria dos jo- o anterior o que acontece (talvez
por Milton e para hastear as cores de gos, topologia, o modo como Wittgenstein atrapalhou por isso mesmo). Está num nível
sua bandeira como uma nação inde- os projetos de muita gente, a teoria do maço de fibras), de desolação que poucos autores
pendente que não presta contas nem engloba filosofia, ideações suicidas, música (o violino conseguem alcançar. Enfim, não
a Deus nem ao homem”, ela respon- Amati em que ela investiu grande parte da herança re- há outra expressão para definir o
de. “Algo nessa linha.” cebida e os desdobramentos decorrentes disso e de ou- resultado: obra-prima.
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luiz antonio de assis brasil 6.


A conduta narrativa é de um homem que já
O CÂNONE NA MOCHILA descobriu a graça, e que se diverte com o bebê que
ainda não a conhecia:

CONFISSÕES Pouco a pouco ia reconhecendo o lugar onde me


encontrava, e queria manifestar meus desejos às pes-
soas que deviam satisfazê-los, mas não conseguia, por-
que esses desejos estavam dentro de minha alma e elas
estavam fora, e através de nenhuma percepção teriam
1. 2. 3. podido penetrar no âmago de minha alma. E assim
Bispo, santo, professor, teó- Confissões é uma auto- O que proponho, na leitura eu me debatia e gritava, exprimindo uns poucos si-
logo, filósofo, Doutor da Igreja. biografia, e pode ser considera- de Confissões, é que nos abste- nais proporcionais aos meus desejos, como eu podia
Eis Agostinho de Hipona, autor de da a primeira que o Ocidente nhamos de posições apriorísticas e e de maneira inadequada. Se não me obedeciam, ou
Confissões, escrita pelo ano 400. conheceu. Eis o primeiro pon- intransitivas, como: “não acredito porque não me entendiam ou por medo de me faze-
Suas qualificações podem levar ao to de originalidade. Recuperar em Deus, portanto nada vale pa- rem mal, eu me indignava com essas pessoas grandes e
pensamento de que se trata de uma a própria vida em primeira pes- ra mim”. Quanto a isso, cabe rele- insubmissas que, sendo livres, recusavam ser minhas
obra piedosa, dedicada a cristãos- soa, com toda a sinceridade, e var dois dados: trata-se de grande escravas, chorando, eu me vingava delas.
-católicos que buscam o caminho dá-la para leitura alheia é coi- literatura, magistral mesmo, tan-
da perfeição, que os levará aos céus. sa de quem sabe medir e ava- to sob o aspecto linguístico como Esta gênese emocional já indica o caminho
Não é assim. Para já, Agostinho te- liar tudo o que fez, inclusive argumentativo — um encanto de de insubmissão de Agostinho.
ve uma vida que, na juventude, foi as ações de que se arrepende, narrativa e de sólida disposição das
marcada por relações amorosas não e essa não era a prática dos in- ideias; depois, é o exemplo da es- 7.
sacramentadas, teve um filho, va- telectuais, que tentavam afas- crita de uma pessoa que acredita O seu itinerário pessoal mostra o homem vo-
riou de pensamento filosófico — tar-se do eu, assumindo uma numa razão metafísica, e, assim, luntarioso e que não resistiu às tentações mais pre-
até que foi tocado pelo cristianismo atitude catedrática, especial- constrói sua vida — e eis aí uma mentes da idade jovem: “Não obstante eu ser feio e
e deixou-se batizar. Começava o ho- mente ao tratar de temas filo- atitude que está longe de frequen- indigno, apresentava-me, num excesso de vaidade,
mem que seria santo. Não impor- sóficos. Alguns falaram de si tar o século 21, o qual anda à bei- como pessoa elegante e refinada. Mergulhei então
ta, também, neste momento, seu próprios, mas apenas parcial- ra de retornar, ou já retornando, no amor em que desejava ser envolvido”. Depois:
pensamento teológico, polêmico mente e somente para argu- a ideias pré-iluministas. A propó- “Fui amado e cheguei ocultamente às cadeias do
em sua época, e que fica para os es- mentar, como o Cícero do De sito: Agostinho foi um iluminista prazer; mas, na alegria, eu me via amarrado por laços
pecialistas. Quero referir-me ao ser senectute [Acerca da velhice]. avant la lettre, e sem o saber. de sofrimento, castigado pelo ferro em brasa do ciú-
humano Agostinho, a partir do que Assim, Agostinho é uma sin- me, das suspeitas, dos temores, das cóleras e das con-
ele mesmo escreve. gularidade absoluta. 4. tendas”. Não cabe aumentar as citações que tratam
Nosso autor pode ser con- desse aspecto, pois já entendemos tudo: Agostinho
siderado um dos primeiros “filó- foi um ser humano que, em certo momento, reve-
sofos da existência”. Dentro dessa la, por exemplo, o gosto pelas paixões representadas
disponibilidade existencial, que já no teatro, em que afirma ter se divertido e chora-
anunciava o livre-arbítrio, Agosti- do com as tragédias dos amantes que se separavam.
nho estabelece um jogo muito mo-
derno: dado que a existência me foi 8.
dada, sou responsável pelas deci- Agostinho pertence a uma vertente seminal,
sões que tomo. Nada mais simples, que depois seria partilhada por nomes como Pascal,
nada mais complexo, pois implica Kierkegaard, Heidegger, Sartre, Clément Rosset,
reconhecer-se como um ente único que se maravilhavam pelo simples fato de existi-
perante as circunstâncias da vida. rem, de estarem no aqui e agora, e, se Agostinho
Ilustração: Eduardo Souza As atuais doutrinas de autoajuda fi- explicava esse fato pela existência da graça divina,
cam a repetir essa ideia como se ti- já Pascal perturbava-se com o fato de estar aqui e
vessem descoberto a roda. não noutro lugar, sendo que Clément Rosset reto-
ma a ideia da graça, mas nada divina, e inexplicável.
5.
Dado tudo isso, cabe, agora, 9.
ver do que trata essa autobiografia. O cerne “existencialista” do pensamento de
A coluna central que a sustenta é Agostinho está aqui, em sua própria voz:
o caminho que levou Agostinho à
fé cristã que ele decide aceitar; mas Nem tudo envelhece, mas tudo morre. Portan-
atenção: esse caminho foi de longa to, no exato momento em que nascem e começam a
humanidade, e ele se julga no dever existir, quanto mais rapidamente crescem para o ser,
de consciência de relatar sua vida tanto mais correm para o não ser. Tal é a condição
desde que era bebê, e não me lem- que tu, Deus, lhes impuseste, por serem partes de coi-
bro de outro texto autobiográfico sas que não podem existir simultaneamente. São as
que comece no berço, e eis aí mais coisas que, desaparecendo e sucedendo-se umas às ou-
outra originalidade, que nos deixa tras, compõem o universo. Também assim se pratica a
intrigados, pensando até que esta- fala, através de sinais sonoros. E o discurso não seria
mos perante uma peça literária ex- completo, se cada palavra, depois de pronunciada, não
perimental do nosso século. morresse para deixar lugar a outra.

Este fragmento, brilhante pela sua precocida-


de, poderia ser assinado por um filósofo de século
20, e aqui penso, mais concretamente, no existen-
cialista cristão Emmanuel Mounier ou, excluído o
vocativo divino, pelo ateu já citado, Clément Ros-
set. Ou, fazendo uma aproximação mais linear, di-
ria Pascal no século 17: “Tudo o que sei é que devo
morrer em breve. O que, porém, mais ignoro é es-
sa morte que não posso evitar”.

10.
Um pensamento tão vasto e complexo, uma
obra igualmente vasta, da qual alguns pontos foram
trazidos com pinças, pedem, é claro, uma leitura
completa, sem preconceitos: ela nos revelará um ho-
mem único, profundamente sofrido e com o qual nos
solidarizamos, pois nos sentimos ali representados em
nossas fraquezas. E, como bônus, leremos uma obra
soberba e atual. Realmente: se este livro não merecer
a nossa mochila, nenhum mais merecerá.
Revolução BAIXE
dos Bichos G R ÁT I S
O clássico de Orwell em
uma edição exclusiva. gazetadopovo.com.br/revolucaodosbichos
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Contos do inferno
Nas histórias absurdas de Friday Black, Nana Kwame
Adjei-Brenyah elege demônios e zumbis para descrever
o consumo exacerbado e o racismo americano
Friday Black
NANA KWAME ADJEI-BRENYAH
LUIZ REBINSKI | CURITIBA – PR Trad.: Rogério W. Galindo
Fósforo
224 págs.

O
ALEX M. PHILIP

s contistas não me le- mento de crítica social é incorpo-


vem a mal, mas é mais rado à narrativa de tal forma que é
fácil encontrar bons ro- impossível chamar Friday Black
mances do que bons li- de panfletário, na pior acepção da TRECHO
vros de contos. Primeiro, pelo palavra. Ainda que o seja, na me- Friday Black
óbvio, porque há mais romances lhor acepção do termo.
sendo editados desde sempre, é O conto é o mais longo do
uma preferência do mercado edi- livro e cheio de nuances. Como a Num flash a anja e Superbalofo
torial (e dos leitores?). Segundo, “escala de negritude” que Emma- estão de volta à Universidade
é bem difícil achar certa unidade nuel cria para cada situação vexa- de Ridgemore no banheiro
em um livro com várias narrati- tória que passa por causa da cor.
acima do corpo do Superbalofo,
vas, às vezes com histórias e for- Se está vestido como um rapper,
matos bem diferentes — o que o índice aumenta, assim como que está flácido e pálido sob a
também pode ser um trunfo, mas quando entra em algum comér- luz fluorescente, um buraco na
apenas em exceções. cio sozinho e de gorro. O des- bochecha, uma arma na mão
Por isso, quando encon- fecho injusto do julgamento do
inerte. O Cabo Grosso está no
tro um grande livro de contos, branco decapitador de crianças
faço questão de espalhar a no- negras causa uma onda de revol- vaso. Paramédicos e a polícia
tícia. Friday Black, estreia do ta, e Emmanuel entra nessa e não estão em volta dele. Tufos soltos
norte-americano Nana Kwame se dá nada bem. de papel higiênico bebem o
Adjei-Brenyah, é uma reunião de
sangue no chão. Um homem,
narrativas curtas que empolga co- Ambiente opressivo
mo os melhores romances. Pu- A questão racial perpassa uma mulher e mais um homem
blicado nos Estados Unidos em também O hospital onde, em que olham por cima do corpo.
2018, foi editado por aqui no fi- um jovem negro tenta dar con-
nal de 2022. E saiu por conta do ta das idas e vindas a um hospi-
esforço do tradutor Rogério Ga- tal onde o pai está internado. O
lindo, que apresentou o livro a que guia a história é o pacto que o
várias editoras até que fosse pu- narrador, um aspirante a escritor,
O AUTOR
blicado pela Fósforo. faz com uma entidade chamada
Poderia começar falando de “Deus de Doze Línguas”. “Ele ti- NANA KWAME ADJEI-BRENYAH
qualquer uma das 12 histórias (to- nha prometido que eu melhoraria
Nasceu em Spring Valley, Nova
das excelentes), que são diferentes nossa vida. Que eu poderia usar o
York (EUA). Já publicou em veículos
entre si, mas ainda assim possuem poder que ele tinha me concedido como New York Times Book Review,
a tal unidade que faz tão bem (na para mudar as coisas.” “As coisas” Esquire e Paris Review. Selecionado
maioria das vezes) aos livros de não saem tão bem como o plane- por Colson Whitehead como um dos
contos. Então começo pelo come- jado e o conto termina de forma laureados da National Book Foundation
ço. A primeira história, Os cinco surpreendente, em uma espécie de “5 abaixo dos 35”, venceu também
de Finkelstein, é certamente uma dia de fúria do narrador. o prêmio PEN/Jean Stein Book.
das melhores do livro. É um con- Nana volta ao “sobrenatu-
to forte, contestador e com uma ral” em uma história ao mesmo
fabulação incrível. Ainda assim, é tempo divertida e deprimente.
narrado de uma forma muito só- Cuspindo luz narra como Superba-
bria. Tanto é que dei uma google- lofo, um “solitário desagradável” deiros zumbis sedentos por calças,
ada para saber se a história não que sofre bullying na universida- jaquetas e acessórios, que arran-
havia mesmo acontecido — por- de, mata uma colega com um ti- cam membros uns dos outros para
que parece e poderia ser real. ro na cabeça e depois se suicida. conseguir os melhores produtos.
Nana (vou chamar o escri- Os dois se reencontram no É um ótimo conto, que tem a ca-
tor assim, porque é o nome mais purgatório e o conto todo é um ra dos filmes de George Romero.
fácil que ele tem) relata o assassi- cabo de guerra entre Deirdra, a Os contos No varejo e Co-
nato de cinco crianças perto de garota assassinada, e seu algoz. mo vender uma jaqueta, segundo
uma biblioteca por um homem Ela acha que vai para um “bom o Rei do Gelo têm a mesma temá-
branco chamado George Wilson lugar”, enquanto ele, que vai aos tica. No geral, mostram como o
Dunn. Ele decapitou as crianças poucos se desintegrando, luta para capitalismo gera demandas e ne-
com uma (pasmem!) motosserra não virar “um nada”. Os diálogos, cessidades ilusórias e como isso
porque “se sentiu ameaçado por mais uma vez de forma indireta, afeta a mente das pessoas, que
jovens negros”, que ao invés de dão o tom do ambiente escolar veem no consumo uma razão
estarem lendo, estavam à toa fo- opressivo nos Estados Unidos. para viver. Tudo isso torna ain-
ra da biblioteca. O conto-título, Friday bla- da mais impressionante o fato de
Quem narra a história é ck, é hilário, amedrontador e uma Friday Black ter se transforma-
Emmanuel, jovem e igualmen- paulada no consumismo desenfre- do em um best-seller da famosa
te negro que busca um emprego ado dos Estados Unidos. A histó- lista do New York Times.
e luta para driblar o preconceito ria se passa em uma loja de roupas Nana acaba de publicar
diário a que é submetido — co- no dia da maior promoção do co- nos Estados Unidos seu primei-
mo ser seguido por seguranças no mércio americano, a Black Friday. ro romance, Chain-gang all-s-
shopping, algo bem rotineiro no Quem narra é o melhor tars, sobre duas mulheres negras
nosso Brasa também. vendedor da loja, que segue fir- tentando sobreviver no sistema
Todas essas histórias são me tentando bater “as metas” e se carcerário privado. Torço, since-
permeadas por um espectro cha- manter como o primeiro da equi- ramente, para que o romance seja
mado racismo. Mas a habilidade pe. Com um toque surrealista, os tão bom quanto o grande livro de
de Nana é tamanha, que esse ele- clientes são descritos como verda- contos que ele escreveu.
36 | ABRIL DE 2023

UM BRINDE NA
PRIMAVERA
A
o acordar com o sino da igreja batendo,
Ana nem chegou a contar as badaladas.
Estava mesmo disposta a se levantar ce-
do. Sem ser por obrigação nem horários
a cumprir. Nessa segunda-feira, tinha até vontade
de festejar o campanário medieval que a desperta-
va barulhento, logo ali, na exata altura da janela de
seu quarto de hotel, do outro lado da viela estreita
em que se sentira tão bem acolhida até mesmo pe-
las pedras centenárias. Queria a manhã inteirinha.
Já obedecera a uma agenda carregada nos últi-
mos cinco dias. Agora, com o fim dos compromis-
sos profissionais, pretendia aproveitar ao máximo os
únicos momentos à toa disponíveis, na folga que se
dera. Por isso comprara a passagem de trem para o
meio da tarde, preferindo ter menos tempo livre na
chegada a Roma e então se deslocar direto da Sta-
zione Termini para o aeroporto. Mas garantia a si
mesma umas horas descompromissadas para agora
explorar as ruas e becos da cidade onde trabalhara
tão intensamente durante uma semana. Podia sair
logo e caminhar a esmo por seus becos estreitos ou
suas calçadas cobertas de arcadas, entre palácios e
casarões em todos os tons de terra, descobrindo pe-
quenas praças, largos inesperados, fontes surpreen-
dentes, fachadas revestidas de glicínias floridas.
Não pretendia fazer compras. Mas como se
livrara da maior parte da papelada que trouxera,
Ana sabia que havia lugar na mala para se dar o
presente de uma eventual descoberta irresistível.
E talvez o mercado ao ar livre que antes vislum-
brara na vizinhança a tentasse com alguma delícia
gastronômica transportável.
Nem sentiu o tempo passar. Quando deu por
si, o estômago vazio lembrava que já era quase uma
da tarde. Por sorte, estava perto do restaurante tão
elogiado em que não conseguira lugar para jantar,
por estar lotado nas duas tentativas que fez para re-
servar mesa. Mas agora, para um almoço de segun-
da-feira, quem sabe?
Deu sorte. Um jovem ajudante de garçom
acabava justamente de fixar um cavalete junto à
porta, anunciando o cardápio e confirmando que
o Buca San Pietro estava aberto. Num sorriso que
parecia espontâneo, o rapaz notou que ela diminuía
os passos e lhe deu as boas-vindas, convidando-a a
descer os degraus um tanto estreitos que levavam a
um subterrâneo de teto abobadado e paredes de ti-
jolinho aparente. Em uma delas, as estreitas jane-
las no alto davam para a rua, deixando ver os pés
de algum eventual passante. Assim quebravam um
pouco o fechamento daquele porão ou adega bem
iluminado e convertido agora em amplo salão, com
suas mesas cobertas por toalhas engomadas imacu-
ladamente brancas, onde se dispunham louça clara,
guardanapos em leque nos copos de pé e vasinhos
com frésias coloridas à espera dos fregueses. Que
ainda não haviam chegado.
No salão vazio, Ana foi encaminhada a uma
mesa próxima à parede onde se situava a porta de
entrada. Enquanto bebericava água e esperava pela
meia garrafa do Sangiovese da casa, estudou o car-
dápio. Não queria nada complicado. Atenta à pers-
pectiva de ainda ter pela frente uma viagem de trem
a emendar com aeroporto e travessia aérea transa-
tlântica, preferia não ter nada pesado no estômago.
Escolheu um antipasto e uma massa leve. Ia se con-
ABRIL DE 2023 | 37

tentar com isso, mas percebeu nas sugestões do dia uns Comprou um jornal pa-
aspargos frescos à Bismarck. Depois de ouvir a descri- ra ler no trem. Ao recebê-lo, do-
ção entusiasmada que lhe fez o garçom, deixou-se ten- brado, viu no canto de baixo da
tar pela perspectiva dos vegetais da estação com um ovo primeira página uma notícia me-
estalado por cima. Lembrou-se do pai, a dizer que não nor, dando conta de que na véspe-
há refeição que não melhore quando vem coroada com ra, em Paris, Simone de Beauvoir
um ovo frito. Sorriu para si mesma e achou que esse to- morrera de pneumonia.
que de primavera no prato não chegaria a comprome- Ana teve um sobressalto. Sa-
ter sua escolha de uma refeição frugal. bia que seu horário estava quase
Acabando de mordiscar um grissini, Ana perce- ficando apertado para chegar à es-
beu que não estava mais sozinha no recinto. Enquanto tação de trem com uma certa fol-
ANA MARIA MACHADO estivera entretida com o cardápio, entrara mais al-
guém. Uma senhora de certa idade fora conduzida a
ga, como pretendera. Mas num
vislumbre de mistério, quase num
Ilustração:Denise Gonçalves
uma mesa de canto, quase em frente à sua em diago- arrepio, lhe ocorreu que talvez ti-
nal, e agora dava instruções ao rapaz que a atendia. vesse acabado de compartilhar
Alguns fios de cabelo grisalho lhe escapavam de um um brinde encantado com a da-
turbante bem definido sobre o rosto suave, quase sem ma do turbante, saudando miste-
maquiagem. Vestia um paletó de tweed sobre blusa riosa partida para alguma viagem
e suéter, talvez agasalhada demais para o sol que bri- muito mais longa que a sua.
lhava lá fora, mas precavida para as surpresas climá- Não podia deixar de conferir.
ticas da estação. De costas para a parede, seguiu com Deu meia volta e retornou
os olhos o movimento do garçom a se afastar com seu rapidamente sobre os próprios
pedido. Na volta da mirada, deu com Ana olhando passos, em direção ao restauran-
para ela. Cumprimentou a moça num aceno de cabe- te de onde acabara de sair. Desceu
ça quase imperceptível. apressada os degraus que levavam
Algo constrangida ao ser flagrada em sua obser- ao salão. Estava deserto. Tanto sua
vação curiosa, a jovem sorriu ligeiramente de volta, e mesa quanto a da velha senhora
logo tratou de se concentrar nos objetos de sua mesa, estavam perfeitamente arruma-
na taça com seu vinho perfumado e vermelho intenso, das, à espera de fregueses, sem
no primeiro prato que chegava. qualquer sinal de que tivessem si-
Já pelo meio da refeição, quando começava a sa- do ocupadas. Procurou o garçom.
borear os aspargos, apreciando sua rara explosão de Veio lá de dentro da cozinha um
sabor, aroma e consistência, se surpreendeu com a velho, de guardanapo pendurado
chegada do garçom, trazendo uma flute e uma garra- no antebraço, andando bem de-
fa de prosecco aberta. vagar, arrastando os pés em pas-
— Aquela senhora a convida a brindar com ela sos curtos e quase hesitantes. Em
— explicou, enquanto servia o espumante. resposta a suas perguntas, teima-
— Eu? Tem certeza? — estranhou Ana, para di- va em responder que eles tinham
zer qualquer coisa, um tanto sem jeito. acabado de abrir a casa, não ha-
— É... Ela está celebrando algo muito especial, via nenhuma senhora a quem ti-
e não quer brindar sozinha. Além disso, só tínhamos vessem atendido, nenhum cliente
uma garrafa grande, ela contou que vai fazer uma via- ainda fora servido.
gem importante, receia ficar um pouco tonta... Expli- — Mas acabei de almoçar
cou que não queria desperdiçar o vinho nem tomar aqui. Aliás, uns deliciosos aspar-
demais. Convidou nós dois para festejarmos com ela. gos à Bismarck.
Fez uma pausa e completou: — Desculpe, a signorina
— Eu expliquei que não posso beber em serviço... deve estar confundindo alguma
Outra pausa e novo comentário: coisa. Não temos isso em nosso
— Então ela disse que gosta muito da ideia de que cardápio. Pode ver.
sejam duas mulheres celebrando. O brinde perfeito, disse. E enquanto lhe esten­
Sem saber o que dizer, Ana deixou que o rapaz dia a carta, completou em tom
lhe enchesse a taça e a ergueu em direção à dama de de brincadeira:
ar refinado, com seu turbante a evocar uma certa ele- — E, se não me engano,
gância dos anos 1940, fazendo lembrar a Duquesa de Bismarck era um político alemão,
Windsor ou Simone de Beauvoir. Sorriram ambas, um general. É o nome de um ho-
levaram a bebida aos lábios. Em seguida, discretas e mem de guerra, não de uma de-
elegantes, não se olharam mais. Cada uma seguiu con- lícia da terra como os aspargos...
centrada em seu próprio almoço. Não adiantava discutir. Nem
Depois da sobremesa, café e conta, ao se preparar com ele nem com o cardápio, cla-
para sair do restaurante, Ana pensou em chegar perto ramente omisso nesse ponto.
da senhora mais velha e cumprimentá-la, agradecendo No máximo, Ana podia re-
pela gentileza inesperada. Mas não a viu sentada em seu zar mentalmente uma ave-maria
lugar, agora vazio embora marcado pelo blazer aberto pela alma de Simone, enquan-
no encosto da cadeira. O excesso de agasalho na certa to se apressava na volta ao hotel,
fizera efeito e o calor a levara a se livrar de tanta lã. De quase correndo, para não perder
qualquer modo, não estava em seu lugar, devia ter ido a hora do táxi já contratado para
ao banheiro. Não era o caso de esperar que voltasse. levá-la à estação.
Já na rua, a caminho do hotel para recolher a Como uma menina bem
bagagem que deixara na recepção, Ana viu algumas comportada.
pessoas aglomeradas em frente a uma banca de jornal,
falando alto e olhando as primeiras páginas expostas.
Ia passar direto mas algo no vozerio do grupo chamou
sua atenção e a fez diminuir o passo. As manchetes fa-
lavam da marinha dos Estados Unidos, junto a fotos
do presidente Ronald Reagan e de navios de guerra.
A moça parou para ler as manchetes e fi-
cou sabendo da grande notícia do dia: a Sexta Fro-
ta norte-americana avançava em direção à Líbia pelo
Mediterrâneo. O mar do meio da terra, quase domés-
tico, casa e pátria de gregos e troianos, campo líquido
ANA MARIA MACHADO
lavrado por fenícios, cartagineses e venezianos, cujas
ondas ao longo dos tempos embalaram Ulisses e Mar- É autora de 10 romances, 12 livros de ensaios
e dezenas de infantojuvenis. Traduzida em
co Polo. Em terra firme, daí a pouco seu trem avança- diversos idiomas, é ganhadora do Prêmio
ria pelo meio de campos sólidos, plantados de aspargos Machado de Assis pelo conjunto da obra, de
e alcachofras, olivais, vinhedos e trigais. Há quem se- três Jabutis, do Hans Christian Andersen, do
Príncipe Claus, do Casa de las Américas, entre
meie a guerra e quem plante alimento, pensou. Co- outros. Seu título mais recente é a coletânea
mo os dessa refeição delicada que acabara de celebrar. de contos Vestígios (Alfaguara).
38 | ABRIL DE 2023

DAVID LEHMAN
Tradução e seleção: André Caramuru Aubert

Radio Homily

I left it Man has the will


on when I to grieve
left the house a week and no longer.
for the pleasure
of coming back Ever the stranger
ten hours later he will kill
to the greatness with righteous anger.
of Teddy Wilson
“After You’ve gone” What does he believe?
on the piano In his right to trade
in the corner a season of greed
of the bedroom
as I enter for an hour
in the dark. of love in an unlit corner.
Such is love’s power,

Rádio though it last no longer.


And such is his need
Deixei-o than which nothing is stronger.
ligado quando
saí de casa
pelo prazer Homilia
de voltar
dez horas depois O homem se dispõe
para a grandiosidade a lamentar
de Teddy Wilson em por uma semana, não mais.
“After You’ve gone”
no piano Sempre o estranho
no canto que ele matará
do meu quarto com justificada raiva.
quando eu entrasse
no escuro. No que ele crê?
Em seu direito de trocar
uma temporada de lamentos

por uma hora


de amor numa esquina escura.
Tal é o poder do amor,

mesmo que não perdure.


E tal é sua necessidade
March 8 que não há nada mais forte.

Every so often my father comes over


to a visit he hangs his overcoat and hat
on my hat rack I brief him on recent
developments and serve us coffee
he is surprised that I like to cook
once when he made an omelette
he flipped it in the air much to my delight
and it landed on the floor yes that
was the summer of 1952, he remembered
the high breakers and how fearless
I was running into the ocean anyway
the important thing is to see you doing
so well he said and took his coat and hat
and left before I remembered he was dead

8 de março DAVID LEHMAN


O novaiorquino David Lehman
Ocasionalmente meu pai aparecia (1948) é mais conhecido como o
para fazer uma visita ele pendurava sobretudo e chapéu editor da prestigiada série anual
The Best American Poetry, já na
na minha chapeleira eu conto a ele os progressos trigésima terceira edição (que
recentes e sirvo café a nós dois a mim, pessoalmente, revelou
ele se mostra surpreso que eu goste de cozinhar muitos poetas, alguns dos
quais apareceram nas páginas
uma vez quando fez uma omelete deste Rascunho), e do Oxford
ele a lançou ao ar para meu grande deleite Book of American Poetry. Mas
ela aterrissou no chão sim isso Lehman, também jornalista,
crítico e professor universitário, é
foi no verão de 1952, ele se lembrou sobretudo um autor de obra poética
das ondas enormes e o quão sem medo sofisticada, urbana e culta.
eu corria para o mar de qualquer forma
o que importa é ver que você está se saindo
tão bem ele disse e pegou seu sobretudo e chapéu
e saiu antes que eu me lembrasse que ele estava morto
ABRIL DE 2023 | 39

Dutch Interior Interior de estilo holandês

He liked the late afternoon light as it dimmed Ele gostava dos fins de tarde quando a luz esmaecia
In the living room, and wouldn’t switch on Na sala de estar, e não acendia as luzes
The electric lights until past eight o’clock. Elétricas até depois das oito da noite.
His wife complained, called him cheerless, but Sua mulher reclamava, chamava-o de sombrio, mas
It wasn’t a case of melancholy; he just liked Não era um caso de melancolia; ele apenas gostava
The way things looked in air growing darker De como as coisas se mostravam no ambiente mais e mais escuro
So gradually and imperceptibly that it seemed Tão gradual e imperceptivelmente que parecia
The very element in which we live. Every man O próprio elemento no qual vivemos. Cada homem
And woman deserves one true moment of greatness E cada mulher merece um verdadeiro momento de grandiosidade
And this was his, this Dutch interior, entered E aquele era o dele, a interior de estilo holandês, entrava
And possessed, so tranquil and yet so busy E possuía, tão sereno e ao mesmo tempo tão ativo
With details: the couple’s shed clothes scattered Com seus detalhes: as roupas do casal largadas
On the backs of armchairs, the dog chasing a shoe, Nos encostos das poltronas, o cão perseguindo um sapato,
The wide-open window, the late afternoon light. A janela bem aberta, a luz do fim de tarde.

Sexism Sexismo

The happiest moment in a woman’s life O momento mais feliz na vida de uma mulher
Is when she hears the turn of her lover’s key É quando ela ouve girar a chave de seu amante
In the lock, and pretends to be asleep Na fechadura, e finge que está dormindo
When he enters the room, trying to be Quando ele entra no quarto, tentando fazer
Quiet but clumsy, bumping into things, Silêncio mas desajeitado, tropeçando nas coisas,
And she can smell the liquor on his breath E ela sente o cheiro de álcool em sua respiração
But forgives him because she has him back Mas perdoa porque ela o tem de volta
And doesn’t have to sleep alone. E não vai ter que dormir sozinha.

The happiest moment in a man’s life O momento mais feliz na vida de um homem
Is when he climbs out of bed É quando ele salta da cama
With a woman, after an hour’s sleep, Com uma mulher, depois de uma hora de sono,
After making love, and pulls on Depois de fazer amor, e veste
His trousers, and walks outside, As calças, e sai para a rua,
And pees in the bushes, and sees E mija nas plantas, e observa
The high August sky full of stars O céu alto de agosto cheio de estrelas
And gets in his car and drives home. E entra no carro e dirige para casa.

Flashback Flashback

The lonely boy in the blue snowsuit playing O garoto solitário com casaco para neve azul brincando
With the dog that didn’t exist Com um cachorro que não existia
In the yard of the house that hadn’t yet been built No quintal da casa que ainda não fora construída
Was the older brother I never had, and he was Era o irmão mais velho que nunca tive, e ele estava
Carving a snow palace guarded by soldiers and stone lions Esculpindo um palácio de neve protegido por soldados e leões de pedra
Where violins played waltzes from the Vienna woods Onde violinos tocavam valsas das florestas de Viena
While in the big bay window in the living room Enquanto na grande janela da sacada da sala de estar
You could see the mouths of his parents moving Você podia ver as bocas de seus pais se mexendo
And though you couldn’t hear the words E ainda que não conseguisse ouvir as palavras, você
You knew a divorce was in the cards, and then you see Sabia que um divórcio estava à vista, e então você viu
A close-up of the mother’s face and suddenly Um close-up do rosto de sua mãe e de repente
You can tell what she will look like in twenty years Podia dizer como ela seria em vinte anos
And what she looked like twenty years ago. E como ela foi vinte anos antes.
The boy vanishes. It continues to snow. O garoto esvanece. Continua a nevar.
40 | ABRIL DE 2023

O PAÍS DAS C
an I touch him? A americana de olhos azuis e
cabelo amarfanhado pergunta antes de inten-
tar com as mãos, se agachando, se aproximan-
do. Sorina abaixa e levanta a cabeça coberta
pelo lenço verde-pálido, autoriza. Não entende a língua

MARAVILHAS
da americana, apenas sabe o que ela quer. Dou um pu-
lo à frente, para fora desse tecido que é todo meu pasto,
mas Sorina me detém pela coleira. Ah, sempre me es-
queço da desgraçada coleira que me enlaça pelo peito e
me mantém humilhado como um cachorro. De relan-
ce, vejo sapatos de salto passarem apressados. Galochas,
botas, tênis, pernas que se entrecruzam costurando a ci-
dade. As pessoas são agulhas de bordar sobre uma colcha
de retalhos feita de pedra, concreto e asfalto. Depois da
PAULLINY TORT calçada, correm faróis acesos à luz do dia, motocicletas,
bicicletas, carros. Choveu pela manhã, os pneus chiam
Ilustração: Marcelo Frazão na pista, um depois do outro, um depois do outro, um
depois do outro, até um sinal fechar. Reconheço um
bueiro no fim da faixa de pedestres. Há tempos quero
escapar por um bueiro. Antes que eu possa tomar novo
impulso, Sorina me puxa para perto de si, me imobiliza.
Na ponte, um casal de chineses vestidos de branco posa
para um fotógrafo. A mulher pesadamente maquiada,
com uma estola de pelúcia sobre os ombros, e o homem
ABRIL DE 2023 | 41

enforcado numa gravata azul-be- Pelo fim da tarde, com os calefação. Por isso, Ion, neto de trilhos com os ciganos, no meio
bê. Ridículos, os dois. Todos vo- bolsos pesados, Sorina se levanta. Sorina, Ion, que vive de vender do lixo e dos ratos. Deus interce-
cês são ridículos! É o que grito do Já recolheu meus comes e bebes miniaturas chinesas da torre Eiffel derá por eles, ela diz e aponta para
meu silêncio, sacudindo os pés, es- e nossa garrafa. O copo de papel no Trocadéro e cadeados na Pont o céu. O neto continua matutan-
quecido da americana e perturba- que usou para as moedas, atira-o des Arts, Ion, que vez ou outra fo- do, com o queixo apoiado nos
do por esses outros transeuntes. longe, no chão. Como tantos ou- ge da polícia com suas muambas, joelhos. Quem sabe em Auber-
Quem dera pudesse mandar essa tros, esse copo acabará nas pro- Ion diz preferir a rua. Eu tam- villiers consigam vaga ao menos
gente à merda. Quem dera Sorina fundezas do Sena. Sem capricho, bém preferiria. Pelo menos, cá para passar as próximas noites?
o fizesse, porque também ela, ve- dobra o pedaço de pano que usa- fora vejo o sol, a neve, o rio. Ou Sorina faz muxoxo, não gosta de
lha, cansada, sentada num pedaço mos como tapete, as minhas fezes mesmo o interior desse túnel si- uma ideia nem de outra. E conti-
de pano, desperta uma curiosida- caem e pipocam na calçada. Fran- nistro. No apartamento, tudo o nuamos pela calçada. Tanto os ga-
de perversa e os turistas só não lhe ze o nariz ao guardar numa sacola que vejo é Sorina. Ela e suas mis- tos quanto os ratos já saíram das
passam a mão como fazem comi- o tecido dobrado (detesta o chei- sas imaginárias, seus rosários, seus tocas, se esgueiram às sombras
go porque têm nojo. Se até as pes- ro do meu mijo). Organizada essa mistérios bizantinos, seus dentes noturnas nas fachadas dos pré-
soas têm nojo das pessoas, por que bagagem modesta, Sorina reco- pouquíssimos, contados. É mui- dios. Guincham, miam, brigam,
eu não teria? Intento uma última lhe a mim. Vou embaixo do bra- to religiosa. Aos domingos e nos há bastante coisa acontecendo en-
escapada, mas a coleira me agarra ço, onde me aqueço na umidade dias santos, não trabalha. Passa tre eles. Confesso que a ideia de
firme. Não há remédio. Sem me flácida de sua axila. Notre Dame prostrada diante dos ícones que fugir agora me dá uma certa paú-
resignar, porque não há um pingo canta os sinos de suas torres outra colou na parede, rezando em ro- ra, mas amanhã, se ainda estiver-
de aceitação nessa derrota, desis- vez. As pessoas se agitam nas me- meno. Em tudo, gruda esses íco- mos pelas ruas, amanhã quando
to de fugir por enquanto. A ame- sas dos cafés, nas barracas de an- nes, umas figurinhas autocolantes for dia e abrirem minha gaiola pa-
ricana me devora. Enfia as garras tiguidades, nos automóveis. Vejo em que figuram uma virgem Ma- ra atirar um pedaço de cenoura,
por baixo do meu casaquinho de aves, vejo cães. Coelhos é que não ria e um Cristo, ambos sérios, co- amanhã pularei com tanta força
lã (Sorina o tricotou) e me assa- há, exceto talvez os que jazem nus loridos em tristes tons de sépia. que ninguém me deterá. A noite
nha, me apalpa. Repuxa as minhas e sem cabeça nos freezers dos res- Por ela me considerar uma ferra- esfria, as estrelas prescrevem. As
orelhas para trás, vendo nesses ges- taurantes. Passamos pela Fontai- menta de trabalho, acabo esque- lojas, inclusive a tabacaria de Said,
tos um carinho que eu retribuiria ne Saint-Michel, onde os turistas, cido na gaiola nesses dias, o que é descem pesadas mantas de ferro.
à bala, se pudesse. Mordo ou não onde os pútridos turistas foto- pior que ser exposto aos turistas, Sorina e Ion roem a baguete pura
mordo? Encolhido sob seus dedos grafam e ignoram as sacolas e os pois, preso tanto tempo num es- que esperavam comer com sopa.
armados de anéis, sinto um perfu- papéis que boiam na água. No ca- paço sem limpeza, minha comida Fora os dois, não vejo mais nin-
me forte demais e espirro. minho para a estação, ela entra em se mistura às fezes e tenho expe- guém. Ela assoa o nariz no lenço,
Satisfeita, a americana atira uma padaria para comprar uma riências bastante desagradáveis. não sei se pelo resfriado ou pelo
uma moeda de um euro num copi- baguete. A padaria tem um chei- Sem falar no ardor do mijo. Mas, choro. No futuro, quando eu es-
nho de papel que Sorina mantém ro morno, fermentado, de açúcar, para Sorina, tanto faz. Ela só re- tiver longe, talvez pense em Sori-
ali, sempre com pequenos valores, o melhor cheiro da França, mas za e reza. Às vezes me pergunto na sozinha na Pont Saint-Michel,
para estimular a clientela. Quan- não há nada aqui para mim. Sori- por que tipo de milagre roga tan- com seu copo de moedas e esse
do a moeda bate contra o fundo na usa as três palavras em francês to. Como deus a salvaria? A porta focinho molhado. Talvez ainda
do copo, os sinos da Notre Dame que conhece, paga e sai. Quando do trem se abre, meu peito dispa- ouça o murmúrio de suas preces.
soam, espantando as aves na bor- chegamos ao Odeón, antes de des- ra, tento saltar da bolsa, mas sou Mas não sentirei falta dela. De
da do rio. Depois que a america- cer a escadaria, ela me guarda na empurrado para dentro. De no- Ion, muito menos. E não me im-
na se afasta, Sorina mete os dedos bolsa. Então não vejo mais nada. vo, a escuridão. portarei com o destino deles, pois
no copo, cata a moeda e guarda no No trem, sentada em um O bairro em que descemos é amanhã serei enfim o que sou. De
bolso. Deixa apenas os valores miú- banco, é que ela coloca minha diferente dos arrondissements de dentro de uma das caixas, Sori-
dos mesmo, pois é preciso estimu- cabeça para fora. Há homens e Paris. Aqui não há turistas. Fran- na toma os ícones de papel ras-
lar sem parecer que goza de boa mulheres de pé, pendurados nas ceses, muito raros, só um ou outro. gados, arrancados às pressas da
situação. Bebe um gole d’água, da barras do vagão como bichos de Mesmo de dentro da bolsa, sem parede. Reza, como de costume.
garrafa que mantém por perto, en- abatedouro. Inspiro esse ar de lo- ver nada, dá para notar a diferen- Na sarjeta, ela também cumpre
che meu pote e pega um punhadi- tação máxima e, como sempre, ça. Em vez de cheiro de croissant, essas obrigações, quiçá com mais
nho de ração na bolsa. Junta esse olhos se voltam para mim. Há cheiro de kebab. Em vez de fran- fervor que as beatas perfumadas
punhadinho ao capim de trigo e à quem sorria, há quem reclame, cês, dialetos, romani, árabe. Até o nas igrejas. Considero positivo
cenoura que faz questão de manter há quem permaneça indiferente, jeito que ela caminha aqui é dife- que reze, que se distraia. Quem
à vista, sobre o tecido. Ajeita a pla- mas se voltam para mim, depois rente, mais relaxado, como se não sabe depois deus não arranje para
ca em que pede dinheiro para me se distraem de novo e se perdem tivesse tanta vergonha de ser uma Sorina outro coelho? Isso quando
alimentar, um pedaço de papelão na escuridão solitária dos túneis. estrangeira de pernas tortas com eu estiver distante, quando eu ti-
em que se lê a mesma mensagem Trocamos de trem duas vezes e es- um lenço amarrado na cabeça. ver aprendido a ser selvagem, co-
em quatro idiomas distintos, in- sa cena mais ou menos se repete. Nosso apartamento fica na sobre- mo esses gatos e esses ratos que
cluindo o romeno, único que ela No último que tomamos, há uma loja de uma tabacaria cujo dono é correndo rebrilham na penum-
entende. A placa é decorada com criança, uma menina muçulma- um franco-argelino chamado Said. bra. Quem sabe deus não a trans-
dois ícones bizantinos. Embora na sem os dentes da frente, e ela Por causa da fumaça dos clientes, forme, ela própria, num coelho
não costumem se apiedar da velha, se encanta com minha presença. uma bruma adocicada feita de vá- branco? Somos animais de fuga,
que é bigoduda e muito enruga- A menina pede para me fazer ca- rios tabacos, sempre sei quando cabemos em frestas, escapamos
da, se apiedam de mim, então, pa- rinho e, embora eu tenha resis- estamos chegando, mas hoje ou- por buracos, encolhemos, cres-
ra Sorina, é um negócio razoável. tido inicialmente, o afago dela é ço a voz de Said antes de sentir esse cemos, pode ser uma vantagem.
Uma vez, ela disse para Ion que is- dócil, fácil. Acabo adormecen- cheiro. Forço os pés contra as tra- Bom, mas isso não é problema
so nunca aconteceria no país deles, do como há muito não adorme- lhas que a velha carrega na bolsa e meu. Estarei longe, muito longe.
alguém oferecer dinheiro a uma cia. Sonho com o que conheço de desponto a cabeça para fora. Vejo Isso é entre Sorina e deus.
pessoa só porque ela está sentada longe, a partir da distância infini- Ion de pé na calçada, os dois col-
no chão com um coelho, mas aqui ta dos braços da velha: a grama chões, as caixas, o fogareiro, a gaio-
parece dar certo. Paris é muito di- fresca do Jardin du Luxembourg la. Said repete uma única frase em
ferente de Bucareste, de Rahova, na primavera, as árvores desfolha- romeno: nicio plată, nici o aface-
a França é muito diferente da Ro- das do Jardin des Tuileries no ou- re, sem pagamento, sem acordo. E
mênia, a velha costuma repetir em tono. Sorina se levanta, eu acordo volta para a tabacaria, desinteres-
casa durante a contagem dos co- — o trem está completamente va- sado das moedas e das súplicas de
bres. Agora assoa o nariz num len- zio. Só então me lembro que esta- Sorina. As lágrimas dela batem nas
ço de pano, porque está resfriada. mos a caminho de casa. Memória minhas orelhas, que estremecem e
Logo aparecem um brasileiro, uma mais curta, a minha! Todos os dias as espirram longe.
italiana, uma japonesa, e todos me o mesmo esquecimento, todos os Escureceu. A velha me enfia
perturbam, me esfalfam; em troca dias a mesma surpresa desagradá- na gaiola, que permanece na cal-
disso, largam suas moedinhas no vel. Os vagões voam nos trilhos, çada junto ao restante da mobília.
cofre de Sorina. Os franceses não, enquanto nos observamos no re- Ela e Ion conversam sentados no PAULLINY TORT
os franceses, graças a deus, nunca flexo das janelas. O som do ferro meio-fio sobre as possibilidades Nasceu em Brasília (DF). É jornalista e
param. Coelho, para eles, só tem contra ferro aqui parece mais alto. que restam. Como quem evita, mestre em Comunicação e Sociedade pela
UnB. Erva brava (Fósforo), seu primeiro
graça na panela. Lapin sauté chas- No apartamento em que vi- mas não encontra outra solução, livro de contos, foi vencedor do prêmio da
seur, lapin à la moutarde, lapin sau- vemos, cabem dois colchões, um Ion sugere timidamente tentarem Associação Paulista de Críticos de Arte
té chasseur à la cocote, coisas assim. fogareiro, três ou quatro caixas algo na Boulevard Ney. Sorina (APCA) e finalista do Jabuti 2022. Estreou na
literatura em 2016, com o romance Allegro
Se temos pelos brancos e olhos ver- de papelão e uma gaiola de fer- eriça os bigodes, balança a cabe- ma non troppo (Oito e Meio), semifinalista do
melhos, é irrelevante. ro. Não há janelas, banheiro e ça. De jeito nenhum viverá nos Prêmio Oceanos de Literatura.
42 | ABRIL DE 2023

ozias filho
QUEM EU VEJO QUANDO LEIO

PATRÍCIA
LAVELLE

PATRÍCIA LAVELLE
Em poesia, publicou Sombras longas (Relicário) e Bye bye
Babel (7Letras), menção honrosa no Prêmio Cidade de Belo
Horizonte e cuja reescrita autoral está no prelo. Contribuiu com
poemas e traduções de poesia para revistas como Po&sie e Place
de La Sorbonne e foi traduzida em espanhol, francês e inglês.
Participou das antologias Um Brasil ainda em chamas, Brésil:
poésie intraitable, Poetas contemporâneas do Brasil. Professora
da PUC-Rio, é doutora em filosofia e também autora de ensaios,
entre os quais Walter Benjamin metacrítico.

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rascunho.com.br
ABRIL DE 2023 | 43

rogério pereira
SUJEITO OCULTO

NÓS, OS VELHOS
V
ocê é um velho, meu fi- uma barata devorada por peque- tras brancas. É um menino feliz, show), Tom Jobim, Mônica Sal-
lho. As palavras mastiga- nas e famintas formigas. Optou-se tem muitos amigos, articula com maso, Vinicius de Moraes, The
das pelos dentes falsos da pelas formigas. No final, a mãe facilidade pensamentos lógicos, Velvet Underground, The Kinks
dentadura desenharam não falava (mas para que palavras vai bem na escola, joga futebol e por aí afora rumo aos anos ses-
um leve sorriso no canto da mi- se elas nunca contaram uma his- com desenvoltura, gana e elegân- senta, cinquenta, quarenta. Aos
nha boca, um esgar irônico carre- tória completa?), apenas grunhia cia. Mas algo está fora do lugar, treze anos, é um velho de bom
gado da certeza de que a assertiva e, vejam que incrível, comunica- desloca-se para um tempo preté- gosto. Um velhinho com a vita-
materna arrastava um punhado va-se por palavras escritas em tiri- rito, em direção aos antepassados lidade de um leão.
de verdade. Eu ainda era um ho- nhas de papel. Um tanto irônico que não tivemos. No domingo, o pai com-
mem jovem, de músculos firmes para uma mulher quase analfabe- Caminha com os ombros pletou setenta e cinco anos. Não
e certezas inabaláveis. E vislum- ta. Como bom filho, decifrei até arqueados. Vejo em sua mão es- teve festa. Eu não liguei. Não teve
brava alguns sonhos no delica- o fim cada hieróglifo esculpido querda (sim, ele se declara de es- o feliz aniversário, pai. Não teve
do equilíbrio da vida. Portanto, na caverna assombrada pela mor- querda para certo desespero da bolo. Nem velas. Nem parabéns
apenas um velho metafórico. Ou te. Reproduzi a história possível. mãe e da irmã) uma bengala de pra você. Nem nada. Meu irmão
nem tanto. Não lembro o moti- O que me preocupa agora carvalho. Estamos lado a lado a esqueceu do aniversário. Me
vo da ralhação da mãe. Vivíamos — neste instante em que chego ombrear nossas senilidades preco- mandou mensagem perguntado
num mundo de poucas palavras, ao terço final da vida, caso a ló- ces. Tem um gosto musical pecu- se já tinha passado a data. Eu dis-
silêncios pesados e afetos espar- gica prevaleça — é que coloquei liar: além de Beatles (de onde veio se é hoje, setenta e cinco anos.
sos. Às vezes, quebrávamos o pac- no mundo outro pequeno velho. Ilustração: Carolina Vigna o amor pela banda de Liverpool?), Vou mandar uma mensagem, ele
to doméstico e tínhamos alguns Esperávamos pelo arremedo dos de quem sabe todas as mais de disse. Eu não disse nada. Minha
momentos que tentavam dissipar Beatles no teatro quase lotado. duzentas músicas (Algumas ain- vingança é literalmente silencio-
as negras nuvens que pairavam so- A noite de sábado era agradável da não sei a letra toda, diz com a sa. Não se trata de vingança, na
bre a nossa família — conduzida e um amor imenso nos envolvia. certeza de que logo saberá), carre- verdade. É apenas a falta absolu-
com elevados índices alcoólicos Ele com a clássica camiseta preta ga em sua discoteca afetiva: Bel- ta de ter o que dizer. Nunca ti-
corpo adentro do pai, transforma- e o nome da banda inglesa em le- chior, Chico Buarque (fomos ao vemos palavras a entregar um ao
dos em safanões, socos e ofensas outro. Nunca tivemos quase nada
ridículas. Éramos feras enjauladas nesta troca imposta pelo acidente
a brincar de pai, mãe e filhos. O genético que nos colocou um no
lobo estava sempre dentro da ca- caminho do outro. Mas não te-
sa dos três porquinhos. mos escolha: vamos suportando
O irmão riu. E reproduziu a existência que logo será apenas
baixinho a alcunha proferida pela uma lembrança meio borrada.
mãe: velho. A palavra — mesmo Dançamos com a timidez
numa casa moldada de vazios se- que nos assombra. Um quase im-
mânticos — transformava-se em perceptível movimento de bra-
marca à brasa no lombo. Velho. ços e pernas entre as poltronas
Talvez a mãe tivesse razão. Sempre do teatro, onde velhos de todas
reclamando pelos cantos, os om- as idades sonhavam uma juven-
bros arqueados para baixo, como tude infinita. Desafinado, ele can-
se amparasse o corpo magro nu- tou com gosto todas as músicas.
ma bengala imaginária. Um típico Eu inventei palavras, movimen-
personagem das horrendas histó- tei os lábios em falsete: um títe-
rias infantis: espécie de bruxo ur- re de Lennon à sorrelfa. Somente
bano, com certo exagero. Detestei na infantil Yellow submarine,
quase todas as tecnologias. Evito consegui esboçar versos
atender chamadas telefônicas. E completos apesar da
ainda fujo das imprescindíveis canhestra pronúncia.
redes sociais feito um cachorro Mas, neste caso, tra-
sarnento apedrejado. Tenho um ta-se da vingança par-
trauma: nunca postei uma foto ticular de um daltônico.
de café expresso ao lado de um li- Escondo motivos diabólicos em
vro. Talvez, o faça, trocando a xí- minhas interações sociais.
cara de café por um penico ou a Após mais de duas horas
dentadura num copo d’água. En- dos falsos Beatles, todos de São
clausuro-me em casa e só saio para Paulo, esforçando-se num carre-
o necessário da vida. Alguns pou- gado sotaque britânico, saímos a
cos amigos garantem que não sou passos lentos, amparados numa
velho, sou um misantropo literá- fraternal felicidade, como con-
rio. Tomo isso como um elogio. vém a dois anciãos. Já sob um
Afinal, não posso me dar ao luxo céu estrelado rumo ao estacio-
de perder os amigos que chegaram namento, ele disse com um ar de
até aqui, nesta encruzilhada rumo normalidade “agora estou ouvin-
a um fim tão previsível. do muito a Celly Campello”. Os
Mas não me preocupo com versos de Estúpido cupido solapa-
a maldição que me acompanha ram a minha cara de increduli-
mesmo com a morte da mãe há dade. Consegui apenas retribuir
dez anos. Engraçado: para o epí- com um “muito bom, meu filho”.
logo, o câncer instalou-se na gar- Mas queria era devolver na mes-
ganta daquela mulher quieta e ma moeda a herança familiar: vo-
escavou buracos que a impediram cê é um velho, meu filho.
de falar. Inclusive os médicos fu- Restou-me entregar-lhe a
raram um buraco sem seu pesco- bengala para que tivesse mais fir-
ço para que respirasse. Havia duas meza nos passos até o charmoso
opções: morrer sufocada ou mor- Simca Chambord que nos levaria
rer mastigada devagarzinho feito de volta ao passado.

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