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O diálogo do espelho
Edson Nascimento Campos | UFMG
Reporto-me ao transcendente.
João Guimarães Rosa
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Belo Horizonte, p. 1-356.
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amor e do ódio. Mas isso ocorre se pensarmos apenas na lâmina que acolhe
o que se forma sob a forma de imagens no jogo da semelhança com a diferença.
Isso porque o nosso herói-Narrador, abrindo a reflexão, desloca o nosso olhar
e nos faz ver o que a sabedoria clássica tem a dizer: “Tirésias, contudo, já
havia predito ao belo Narciso que ele viveria apenas enquanto a si mesmo
não se visse...” (ROSA, 1994, p.438).
Dado por certo, então, que a transformação habita o jogo visível
das imagens do espelho, a partir dessa advertência do herói-Narrador,
evocando Tirésias, o espelhamento ocorreria, então, de outro modo, no jogo
da imagem com a não-imagem, articulando-se os planos do visível do imediato
com o invisível do mediato do processo de espelhamento de onde surgiria,
então, a verdadeira face do eu que singulariza o ser humano.
O herói-narrador começa, então, a procurar a si, “a tona dos
espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio”, pois ali estaria “a vera
forma” de seu eu. E nos diz:
Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi
nada. Só o campo liso, às vácuas, aberto como o sol, água limpíssima, à
dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu não tinha formas, rosto? Apalpei-
me, em muito. Mas, o invicto. O ficto. O sem evidência física. Eu era – o
transparente contemplador? [...]
Pois foi que, mais tarde, anos, ao fim de uma ocasião de sofrimentos
grandes, de novo me defrontei – não rosto a rosto. O espelho mostrou-me.
Ouça. Por um certo tempo, nada enxerguei. Só então, só depois: o tênue
começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-
se em débil cintilação, radiância. Seu mínimo ondear comovia-me, ou já estaria
contido em minha emoção? Que luzinha, aquela, que de mim se emitia, para
deter-se acolá, refletida, surpresa? Se quiser, infira o senhor mesmo. [...]
São coisas que se não devem entrever; pelo menos, além de um tanto. São
outras coisas, conforme pude distinguir, muito mais tarde – por último –
num espelho. [...]
E... Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o
senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda nem-rosto – quase delineado,
apenas – mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E
era não mais que rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será
que o senhor nunca compreenderá? (ROSA, 1994, p.441-442).
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Marginal,escrever na entrelinha,
sem nunca saber direito
quem veio primeiro,
o ovo ou a galinha.
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Guimarães Rosa.
A esplêndida metáfora do espelho possibilitaria, aqui, até então
– acredito – a captura dos diversos sentidos desse diálogo do espelho que
estou propondo.
Referências Bibliográficas
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