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lugares de enunCiação e Corpos em disputa - vol. 3

UMA POÉTICA DA AMBIGUIDADE: AUTORIA,


GÊNERO E POLÍTICO DA LÍNGUA EM PERTO DO
CORAÇÃO SELVAGEM, DE CLARICE LISPECTOR1

Jacob dos Santos Biziak

Indecidível é a experiência daquilo que, estranho,


heterogêneo à ordem do calculável e da regra, deve
entretanto – é de dever que é preciso falar – entre-
gar- se à decisão impossível, levando em conta o
direito e a regra. Uma decisão que não enfrentasse
a prova do indecidível não seria uma decisão livre,
seria apenas a aplicação programável ou o desen-
volvimento continuo de um processo calculável.
(DERRIDA, 2007, p. 47)

INTRODUÇÃO: UMA APROXIMAÇÃO AO SELVAGEM2

Existe um instante e outro, entre o passado e as


névoas do futuro, a vaguidão branca do intervalo.
Vazio como a distância de um minuto a outro no
círculo do relógio. O fundo dos acontecimentos er-
guendo-se calado e morto, um pouco da eternidade.
(LISPECTOR, 1998, p. 157)
1 Este trabalho é feito de muitos atravessamentos dialógicos. Agradeço imensamente a todos
do “Grupo Mulheres em Discurso” por terem sido os primeiros leitores deste trabalho. Es-
pecialmente, gratidão à minha supervisora de pós-doutorado, Profa. Mónica Zoppi Fontana;
às amigas e pesquisadoras Sheilla Resende e Fernanda Pereira, pelas trocas diárias; à leitura
atenta da amiga e pesquisadora Beatriz Pagliarini Bagagli.
2 Vale dizer que as questões teóricas aqui levantadas, foram organizadas e textualizadas so-
mente após a análise do corpus aqui selecionado. Portanto, este demandou as necessidades
de dispositivos de interpretação conforme sua leitura foi acontecendo em determinadas
condições de produção. Ainda que se trate de algo feito ulteriormente à análise, por questões
didáticas, eles comparecem anteriormente.

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Entre 2019 e 2020, a editora Rocco, em homenagem ao


centenário de nascimento de Clarice Lispector, relança obras da
escritora com novo projeto visual e gráfico. Assim, as pinturas
feitas por Lispector são relidas3 nas capas das obras, e novos
posfácios são elaborados para a ocasião. O posfácio assinado por
Nádia Battella Gotlib, na nova edição de Perto do coração selvagem
(2019), textualiza:

O crítico [Antonio Candido] reconhece no romance


tanto uma ‘força de exceção’, uma personalidade
forte da protagonista, quanto um novo procedi-
mento por parte de autora ao desenvolver o que
ele chama de ‘romance de aproximação’, ou seja,
uma tentativa de o narrador chegar cada vez mais
perto do problema, eu diria inclusive da própria
personagem, de modo a tentar desmanchar a dis-
tância entre o sujeito que narra e o objeto narrado.
Um dos meios de conseguir tal efeito, acrescento,
é o uso do fluxo de consciência: o narrador acom-
panha o que se passa no de-dentro da personagem,
deixando-se levar por esse movimento de intimida-
de, e para isso se ausenta, aparentemente, da cena
narrativa. Escreve o que se passa, mas como se não
escrevesse, isto é, como se apenas existisse a per-
sonagem experimentando o que ele, na realidade,
escreve. Dessa forma, o de-dentro da personagem
aparece com destaque e de modo direto a nós,
leitores. (GOTLIB, 2019, p. 201).

Neste trecho, destaco algumas sequências discursivas que


acredito poderem sustentar a construção do início de meu gesto
de leitura sobre Perto do coração selvagem (LISPECTOR, 1998). Pen-
3 “Relidas”, aqui, nomeia o trabalho editorial feito com as pinturas de Clarice Lispector para
as novas capas produzidas pela Editora Rocco em comemoração ao centenário da escritora.
Nestas capas comemorativas, foram recortados trechos dos quadros. Estes passam a compor
a primeira capa, então, dos livros. Na segunda orelha de cada um, é possível contemplar
uma reprodução integral destes quadros. Portanto, estas edições de aniversário de cem anos
trazem como novidade editorial: capas com novo projeto estético, os quadros feitos pela
autora e posfácios inéditos.

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so em como compreender efeitos de um “novo procedimento”,


na então literatura brasileira mais (re)conhecida (o romance foi
publicado em 1943), a partir de uma consideração discursiva do
funcionamento da autoria, da enunciação e da língua na mencio-
nada obra de Lispector. Assim, pela posição teórico-analítico e
política com que assumo o dizer neste trabalho, interrogo sobre
a necessidade de se ler a autoria não como uma associação direta
à escritora, mas como uma função que atua no texto. Somo a isso
minha proposta de compreender a atividade narrativa por meio
do dispositivo da enunciação, da construção de enunciadores na
divisão do real operada no/pelo dizer. Nesse sentido, devo reto-
mar e pensar a ação do narrador em relação a outros Locutores
(GUIMARÃES, 2005, 2018), como os personagens. Portanto, neste
trabalho, opto por usar o conceito de Locutor – proveniente dos
estudos da enunciação – no lugar do conceito de narrador – pro-
veniente da crítica literária. Com isso, busco um gesto de leitura
que trabalhe com a historicidade e a materialidade das escolhas
linguísticas operadas na narrativa de Clarice.
Dessa forma, neste artigo, construo uma possibilidade de
leitura a respeito do funcionamento da autoria e da enuncia-
ção em Perto do coração selvagem (1998), para pensar como isso
dialoga com a construção de performatividades de gêneros4
femininos na obra. Para tanto, a análise de discurso inaugurada
por Pêcheux será a posição de entrada à compreensão assumida
aqui. Com isso, não pretendo tomar o mencionado romance a
partir de uma suposta teleologia de desenvolvimento do conjun-
to da obra assinada por Clarice Lispector, como se eu tentasse
rastrear no primeiro livro da autora “novos procedimentos” que
seriam desenvolvidos em textos posteriores. Diferentemente, a
interpretação é tornada possível graças a determinadas condições
de produção que, paradoxalmente, permitem aproximações de
leitura com o texto que, em outras retomadas da memória e do
4 Tomo, neste trabalho, “gênero”, “feminino(s)”, “masculino(s)”, na perspectiva formulada
por Judith Butler (2003).

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interdiscurso, não seriam possíveis. Isso equivale a assumir a


incompletude desta leitura, cuja materialidade se relaciona aos
movimentos da história e da língua. Logo, não lido com uma lei-
tura linear, mas histórica enquanto luta de classes e de sentidos
na construção de formas de dizer (na literatura e na crítica).
Trata-se, então, de assumir uma posição mediante a divisão
social do trabalho de leitura que se inscreve e é produzido em
uma relação de dominação política, produzindo efeitos sobre os
dizeres que devem ou podem ser assumidos “como verdadeiros”
sobre um determinado arquivo (PÊCHEUX, 2014, p. 60). Retorno
ao primeiro romance de Clarice Lispector, então, graças e por
causa dos movimentos descontínuos de leitura que só podemos
realizar porque eles se inscrevem em e por materialidades da
forma da língua que se transformam conforme a história tam-
bém se desloca. Logo, tais idas e vindas no arquivo de obras
da escritora permitem (ou não) que sejam criadas posições de
compreensão sobre elas. A obra é acontecimento que reclama
sentidos na história (HENRY, 2010), mas não enquanto estrutura
linear em que fatos se desenrolam.
No caso específico deste gesto de leitura, proponho retomar
a autoria enquanto função do texto que cria efeitos de unidade
para a leitura (ORLANDI, 2012), graças à organização, também,
do trabalho da enunciação. Portanto, segundo Orlandi (2012, p.
81), é da autoria que a função enunciativa deriva, organizando
a heterogeneidade do dizer, como se o real fosse único (GUI-
MARÃES, 2005, 2018). Isso comparece, na verdade, como efeito
ideológico elementar, graças aos efeitos de esquecimento de que
sofre o sujeito da enunciação (PÊCHEUX; FUCHS, 1997). Dessa
forma, os enunciadores emergem divididos, sem constituir uma
unidade fechada. Assim, atestam a divisão do próprio sujeito.
Além disso, a organização e a atualização sintática da língua
são fundamentais ao processo de constituição dos enunciadores
e, por extensão, do trabalho de autoria. Para Pêcheux (2014, p.

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65), a “materialidade específica de natureza formal” resiste no


interior da suposta evidência da lógica. Por um lado, a materiali-
dade da sintaxe pode ser alvo de um cálculo que opera segundo
um imaginário do controle do sentido; por outro, a sintaxe es-
capa, “na medida em que, o deslize, a falha e a ambiguidade são
constitutivos da língua, e é aí que a questão do sentido surge no
interior da sintaxe” (Ibidem).
Toma-se, aqui, a sintaxe como um trabalho na/da língua que
corresponde à contradição estruturante da enunciação: entre
controle e resistência. Digo isso de forma que o desvio ou o uso
sintático, mediante a forma-sujeito, devem ser compreendidos
como algo da ordem do abjeto5, como aquilo que é foracluído6 na
5 O abjeto é tomado por diferentes autores, como Kristeva (1982) e Bataille (2013), para citar
alguns somente. Para minha reflexão, tomo a perspectiva desenvolvida por Judith Butler,
principalmente na passagem reflexiva entre Cuerpos que importan (2002) e Problemas de
gênero (2003), quando foi questionada a respeito da materialidade dos corpos. Nesse sentido,
o abjeto seria uma produção a partir de certas normas e regulações tomadas como evidentes
para a construção de performatividades de corpos e vidas. Assim, pelo trabalho de repetição
destas normas – efetuado pelos sujeitos acreditando que há uma “origem”, um “modelo” a
ser copiado – cria-se o que deve ser lido como “vida vivível” e o que deve ser retirado dela,
já que fora ao “normal”, à “regra”, ao “certo”. Isso seria o abjeto. Este, no entanto, por maior
que seja o trabalho dos sujeitos para que seja controlado, nunca abandona a norma compul-
sória, já que continua atuando como parte do enquadramento que torna uma determinada
realidade legível. Ou seja, a abjeção (bem como a materialidade de qualquer corpo) não é
uma materialidade anterior e/ou essência a ser alcançada e descrita enquanto “natureza”, mas
uma performatividade convocada a existir nos usos da língua, sempre a partir de determinado
imaginário hegemônico em que haveria o imaginário de alguma matriz de sentido, de real,
a ser “recuperado”. Vale a pena mencionar o que Butler menciona em entrevista a Prins e
Meijer (2002): “Meu trabalho sempre teve como finalidade expandir e realçar um campo
de possibilidades para a vida corpórea. Minha ênfase inicial na desnaturalização não era
tanto uma oposição à natureza quanto uma oposição à invocação da natureza como modo
de estabelecer limites necessários para a vida gendrada. Pensar os corpos diferentemente
me parece parte da luta conceitual e filosófica que o feminismo abraça, o que pode estar
relacionado também a questões de sobrevivência. A abjeção de certos tipos de corpos, sua
inaceitabilidade por códigos de inteligibilidade, manifesta-se em políticas e na política, e
viver com um tal corpo no mundo é viver nas regiões sombrias da ontologia. Eu me enfu-
reço com as reivindicações ontológicas de que códigos de legitimidade constroem nossos
corpos no mundo; então eu tento, quando posso, usar minha imaginação em oposição a essa
ideia. Portanto, não é um diagnóstico, e não apenas uma estratégia, e muito menos uma
história, mas um outro tipo de trabalho que acontece no nível de um imaginário filosófico,
que é organizado pelos códigos de legitimidade, mas que também emerge do interior desses
códigos como a possibilidade interna de seu próprio desmantelamento”.
6 Penso o foracluído (ou a foraclusão), retomando (e reelaborando um pouco) a reflexão que
Lacan (2010) estabelece a partir de Freud (2010). Dessa forma, trata-se de um trabalho no
simbólico de exclusão de algo que não pode comparecer ao nível significante, devendo
permanecer “de fora”, “excluído”. No entanto, “isso” que se julga poder deixar de fora, pelo
controle do imaginário e do simbólico, permanece inscrito enquanto Real, apontando para
outras possibilidades de deslizamentos dos significantes que permanecem afetados pelo efeito

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constituição das formas do dizer na história. Ao mesmo tempo,


no caso de Perto do coração selvagem (1998), as formas enuncia-
tivas de atualização da sintaxe também produzem efeitos sobre
performatividades de gênero, as quais, dialogando com Butler
(2003), compreendo como efeitos de coerência sobre corpos, vi-
das e identidades que se tornam possíveis por meio de repetições
que ocorrem na língua, muitas vezes por conta do imaginário de
que existe uma realidade a ser imitada, representada, retoma-
da. Logo, se esses funcionamentos ocorrem na língua, é nela e
através dela que podem ser desestabilizados; por exemplo, pelo
trabalho histórico nas formas da sintaxe produzido através da
atividade de enunciação na estruturação da autoria. Sendo assim,
atacar a ordem hegemônica dos gêneros por meio do ataque à
“construção imaginária da sintaxe”, é visto como se fosse “um
posicionar-se fora da língua” (PÊCHEUX; GADET, 2015, p. 101).
No entanto, para a elaboração teórica e política da análise
de discurso pêcheuxtiana, não há fora da língua, mas somente
movimentos que são dentro desta, já que possibilitados por ela,
objeto paradoxal da ideologia. Assim, pensar sintaticamente um
enunciado, em certo trabalho da função de autoria, significa o
compreender em relação a outros enunciados (PÊCHEUX; GADET,
2015, p. 103), os quais são atualizados em uma textualidade por
meio de uma tomada de posição em relação à língua (e, também,
aos gêneros). Logo, pensar o impossível da/na língua é compre-
ender o que existe nela, de forma que não se trata da linearidade
natural contra as “anomalias” do dizer (e, claro, dos corpos).
Considerar o impossível é atentar-se ao constitutivo da língua,
já que aquele nunca deixa de atuar – como se fosse um “outro”,
de “esquecimento” operado no sujeito pelo inconsciente e pela ideologia. “Isso” que não é
simbolizado, posto na formulação, permanece foracluído. A consequência é que continua
produzindo efeitos sobre o sujeito que “esquece”. Aqui, penso a relação do foracluído com
o abjeto: este não é um resto de simbolização que deve ser retirado do discurso, um “recal-
que”. O abjeto seria o que não comparece ao simbólico, ao formulado, sendo inacessível e
permanecendo como Real (da língua, da história, do registro psíquico). Logo, o abjeto não
seria nem o excluído, mas algo da ordem do intolerável, do horror: discursivamente, ele
implica em uma negociação permanente com os sentidos, a qual coloca sempre em risco o
já nomeado, o já dito. Para mais sobre isso, sugiro a leitura de Porto (2016).

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um “fantasma”, um unheimlinch – no trabalho do sujeito frente


ao(s) sentido(s) (e, claro, ao não-sentido). Trata-se, então, de
“afirmar o valor político e histórico da falha” (PÊCHEUX; GADET,
2015, p. 105), sendo que “a questão primordial cessa de ser a da
subjetividade produtora do discurso e torna-se a das formas de
existência histórica da discursividade” (PÊCHEUX, 2015, p. 156).
Assim, penso as formas sintáticas como formas discursivas, na
esteira de Pêcheux (2015, p. 157):

Tratar-se-ia de levar em consideração o fato de que


as formas discursivas nas quais aparecem os objetos
[…] são sempre conjunturalmente determinados
enquanto objetos ideológicos; nem universais his-
tóricos, nem puros efeitos ideológicos de classe,
esses objetos teriam a propriedade de ser ao mesmo
tempo idênticos a eles mesmos e diferentes deles
mesmos, isto é, de existir como uma unidade dividi-
da, suscetível de se inscrever em um ou outro efeito
conjuntural, politicamente sobredeterminado.

É por meio do dispositivo de interpretação até aqui retomado


que penso ser possível construir outro gesto de leitura discursi-
vo sobre a constituição de autoria e gênero em Perto do coração
selvagem, especialmente atento às construções e funcionamentos
sintáticos da língua na enunciação. Nessa direção, tomo o sujeito
como um processo nos textos (GUILHAUMOU; MALDIDIER, 2016a,
p. 230), construído no encadeamento discursivo e, historicamen-
te, na dispersão de enunciados. Novamente, o funcionamento da
língua e da história como acontecimento são fundamentais, de
forma que não basta a descrição dos enunciados, mas a interpre-
tação destes a partir da relação com a enunciação que possibilita
o trabalho de autoria, que é função do texto, dando-lhe aspecto
de unidade. Assim, “a partir da sintaxe e da dispersão dos enun-
ciados atestados historicamente, contribui para a descoberta de
novas relações históricas, faz surgir um sentido não percebido”

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(GUILHAUMOU; MALDIDIER, 2016b, p. 242). Por isso, a recon-


sideração da autoria, da enunciação e da performatividade de
gênero por meio da análise discursiva da organização sintática
de Perto do coração selvagem (1998) pode fazer surgir sentidos
outros sobre o arquivo de obras da escritora Clarice Lispector.
Portanto, a sintaxe é como o sujeito interpreta em relação
com a memória, já que atua junto às famílias parafrásticas, ou-
tras possibilidades de formulação (ORLANDI, 2001, p. 110). Por
conta disso, a sintaxe, discursivamente, funciona como instância
imaginária da organização, criando relações de sentido e permi-
tindo posicionamento frente às políticas do dizer. Desse modo,
a sintaxe atua, dentro da aparente unidade de como Perto do co-
ração selvagem (1998) comparece frente ao efeito leitor, em uma
tensão entre constituição e formulação, no ritmo entre dizer e
não dizer como manifestação do interdiscurso na função-autor
(ORLANDI, 2001, p. 111). Justamente por isso, a sintaxe pode
ser tomada como instância de manifestação do processo de
subjetivação (inclusive, talvez, nas identificações de gêneros), a
qual revela a dimensão simbólica do sujeito. Temos, então, um
trabalho (afetado pelo esquecimento) no simbólico e que liga o
real ao imaginário, como se fosse possível um ajuste definitivo
e/ou sem “defeitos” entre discurso e texto.
Sendo assim, a sintaxe (ORLANDI, 2001, p. 116) opera,
na enunciação e no trabalho de autoria, dando dimensão ao
discurso no espaço do texto. Com isso, indicam-se modos de
subjetivação e demonstra-se que a falta e o equívoco sofrem
tentativas de administração, mas nunca podem ser eliminados.
Aliás, todo esse complexo funcionamento demonstra a divisão
política do real: não se é falante das línguas, em certo espaço de
enunciação (necessariamente desigual), de maneira igual. Logo,
este é político no que diz respeito a como as línguas funcionam
e ao agenciamento dos falantes (GUIMARÃES, 2018, p. 24). O
autor, enquanto função, então, é inscrito em uma relação com o

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interdiscurso (uma das manifestações disso é o funcionamento


sintático tomado em perspectiva discursiva) e nunca de maneira
simétrica em relação a outro sujeito ou, inclusive, de encaixe
perfeito com a forma-sujeito (PÊCHEUX, 1997).
Por fim, a sintaxe é um conjunto de procedimentos que ser-
vem à elaboração de efeitos de univocidade e controle da língua,
mas ao mesmo tempo e paradoxalmente, desliza e revela o que
não é localizável nela como lugar determinado. Assim, o poético
comparece como esse jogo entre velar e desvelar, dizer e silenciar,
dos (in)esperados da enunciação, da autoria e do gênero: a falha,
o desvio, a ruptura, o equívoco. Estes comparecem como algo da
ordem que não pode ser colocado “de fora” da língua, a não ser
como ação do imaginário. Portanto, da perspectiva discursiva que
assumo, aqui, o poético sustenta qualquer dizer, já que a dimen-
são do “erro” (o impossível, a contradição) nunca abandona os
usos da língua (estrutura que funciona, mas não com uma função
pré-determinada), cujos fundamentos são: poesia, equivocidade
e heterogeneidade (MOTTA, 2019, p. 109). Estes são essenciais a
nosso trabalho de interpretação, enquanto analistas de discurso.
Dessa forma, o poético desloca-se do entendimento como
um uso exclusivo a certos sujeitos, os poetas ou escritores de
“alta” literatura. Ele é base do funcionamento da língua, cujo
fundamento de ação é o erro. O que se faz, recorrentemente, nas
literaturas tidas como artísticas, é uma exacerbação ou poten-
cialização deste aspecto político do dizer (PÊCHEUX, 2008). Por
conta disso, o sentido é diferencial, negativo, capaz de subversão
e de absurdo (quem sabe, até de efeitos de “hermetismo”), já
que tanto o poeta quanto o “enunciador comum” são marcados
pela relação com outros termos da cadeia associativa (MOTTA,
2019, p. 145), marcando o funcionamento da língua em relação
ao histórico. Logo, “dizer com erro” a sintaxe e o gênero pode
ser revolucionário (e/com/pelo poético).

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UMA SELVAGERIA

Apenas um segundo quieto talvez separando um


trecho da vida ao seguinte. Nem um segundo,
não pôde contá-lo em tempo, porém longo como
uma linha infinita. Profundo, vindo de longe – um
pássaro negro, um ponto crescendo do horizonte,
aproximando-se da consciência como uma bola
arremessada do fim para o princípio.
(LISPECTOR, 1998, p. 157).

Desde as primeiras páginas, Perto do coração selvagem (1998)


é estruturado a partir da organização ao redor de dois Locutores
principais, o narrador e a personagem central, Joana. Vejamos:

Deu um corrupio e parou espiando sem curiosidade as


paredes e o teto que rodavam e se desmanchavam.
Andou nas pontas dos pés só pisando as tábuas
escuras. Fechou os olhos e caminhou, as mãos
estendidas, até encontrar um móvel. Entre ela e o
objetos havia alguma coisa mas quando agarrava
essa coisa na mão, como a uma mosca, e depois
espiava – mesmo tomando cuidado para que nada
escapasse – só encontrava a própria mão, rósea e
desapontada. Sim, eu sei, o ar, o ar! Mas não adian-
tava, não explicava. Esse era um de seus segredos.
(LISPECTOR, 1998, p. 16, grifos nossos).

A partir da proposta de Eduardo Guimarães (2005, 2018),


podemos ir compreendendo o funcionamento das enunciações.
Sequências discursivas como as acima não são incomuns ao lon-
go do romance, de forma que um enunciador, com elementos
linguísticos indicativos de uma primeira pessoa particularizante
(“eu”), emerge em relação aos dizeres de um outro enunciador,
com marcas linguísticas de uma terceira pessoa que cria efeitos
de aproximação ou intimidade (como se vê pelos destaques

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em itálico no trecho) com aquilo que narra (a vida de Joana, no


caso). No caso deste trecho, os dois enunciadores alternam-se,
mas sem explicitar quem seria o Locutor responsável em assumir
uma perspectiva particularizante pelo uso do “eu”: de forma
que poderia ser nomeado como Joana ou mesmo o narrador. Tal
dificuldade fica maior à medida em que os dois enunciadores,
neste pequeno trecho, parecem dizer a partir de uma relação de
identificação muito próxima sobre aquilo que falam. Em outros
termos, enquanto locutores-x (falando afetados por um lugar
social), parece não haver diferença de imediato.
Com isso, abre-se ao menos uma ambiguidade de leitura à
organização sintática. O enunciado “eu sei” pode referir-se, si-
multaneamente, a Locutores diferentes, a instâncias diversas que
assumiriam a responsabilidade por determinados dizeres. Portan-
to, tanto Joana quanto o narrador podem fazer usos de recursos
enunciativos e linguísticos semelhantes ou iguais. Com isso,
enquanto enunciadores (lugares de dizer), ainda que recebam
nomeações e identificações diferentes (Locutores) em sua relação
com a exterioridade (narrador e personagem, narrador e Joana),
de início e comumente, formalizam seus dizeres, produzindo
uma ambiguidade que, em momento algum, irá se resolver. Isso
se dá porque a ambiguidade não emerge como um “problema”,
um “resto”, um “isso”, do processo de sintagmatização que deve
ser eliminado do controle do discurso.
Chamo atenção a tal funcionamento porque sua repetição
constante ao longo do romance atua como índice do processo
de subjetivação dos sujeitos que dizem (enunciadores). Enquanto
processos de subjetivação dos enunciadores7 (lugares de dizer,
afetados por lugares sociais de dizer e, enfim, identificados e
responsabilizados pelo dizer pela exterioridade), temos uma
7 Lembro que enunciador, Locutor e Locutor-x estão sendo tomados, neste trabalho, na perspec-
tiva apresentada por Guimarães em Semântica do acontecimento (2005). Ainda que seja um
trabalho vinculado aos estudos de semântica da enunciação, Guimarães propõe articulações
teórico-analíticas que se articulam ao político como componente atuante no funcionamento
da língua.

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indeterminação entre os Locutores Joana e narrador com relação


aos enunciadores primeira-pessoa-particularizante e terceira-
pessoa-observadora-íntima. Nisso, o Locutor-narrador mistura-se,
eventualmente, e confunde-se com o enunciador-eu. Ao mesmo
tempo, retornando à compreensão do trecho, pode-se afirmar,
pela produção de ambiguidade, que o Locutor-Joana pode, sim,
enunciar como lugar de dizer “eu” e lugar de dizer “alteridade,
outro”.
Invisto nisso porque tal consideração sobre o funcionamento
da enunciação surgiu como importante dispositivo de leitura so-
bre a função-autor. Esta organiza-se rumo à direção do indecidível,
já que as escolhas sintáticas não permitem uma relação unívoca
de compreensão. Nesse sentido, as opções sintáticas enunciadas
e formalizadas estabelecem uma posição frente à divisão do
real, assumindo a ambiguidade como forma material de relação
com a historicidade dos sentidos sobre a estrutura narrativa. A
partir disso, pela perspectiva teórica assumida aqui, o narrador
atua como Locutor tanto quanto a personagem Joana, de forma
que a relação entre eles é paradoxal: ora distante (como se um
observasse o outro); ora muito próxima (como se um pudesse
falar pelo outro, sendo este outro inclusive). Assim, atua o polí-
tico da língua: lugares sociais e suas relações são reorganizados,
ganhando sentido e recortando a realidade conforme o político
da língua parece surgir aos sujeitos – através deste conflito, o
real se divide, redivide, refaz “em nome do pertencimento de
todos no todos” (GUIMARÃES, 2018, p. 50). Portanto, os dife-
rentes lugares sociais de dizer não são desfeitos, mas colocados
em relação ambígua com os lugares de dizer, os enunciadores.
As opções linguísticas (sintáticas) são significadas como formas
materiais que se transformam no movimento da história. Este,
por seu turno, abre condições de produção para que o romance
perca a exigência de unidade racional e fechada que teve em ou-
tras, como as prosas realistas da segunda metade do século XIX.

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Vejamos mais um trecho:

Desceu das rochas, caminhou fracamente pela praia


solitária até receber a água nos pés. De cócoras, as
pernas trêmulas, bebeu um pouco de mar. Assim ficou
descansando. Às vezes, entrefechava os olhos bem
ao nível do mar e vacilava, tão aguda era a visão –
apenas a linha verde comprida, unindo seus olhos à água
infinitamente. (LISPECTOR, 1998 p. 38, grifos nossos).

Nesse momento, novamente, vemos as escolhas sintáticas


colocando em jogo a alternância entre os enunciadores e, com
isso, indeterminando os Locutores, os que devem ser respon-
sabilizados pelos dizeres. Buscando uma organização desta
análise, desenho um pequeno quadro comparativo. As escolhas
dos tempos verbais e as concordâncias, novamente, funcionam
confirmando a ambiguidade assumidamente como recurso das
enunciações e da função-autor:

Quadro 1

Verbos em terceira pessoa – Verbos possíveis de


pretérito perfeito (ação concordância em primeira e/
encerrada no passado) ou terceira pessoa – pretérito
imperfeito (ação dilatada no
passado)
(ela) Desceu (eu/ela) Entrefechava
(ela) Caminhou (eu/ela) Vacilava
(ela) Bebeu
(ela) Ficou descansando

As sequências discursivas destacadas em negrito são atualiza-


das pela atividade do enunciador com efeitos de terceira pessoa
observadora; as em itálico funcionam na ambiguidade entre o

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enunciador em primeira pessoa de efeito particularizante e o ou-


tro. Dessa forma, as escolhas verbais e de concordância marcam
um indecidível sobre qual Locutor responsabilizar pelo dizer, dado
que tanto o narrador quanto Joana, nos trechos apresentados
e em muitos outros do romance, podem funcionar a partir de
enunciadores diferentes (sendo que ambos funcionam a partir de
um aparente “mesmo” lugar social de dizer, com identificações
imaginárias muito semelhantes). Toda a organização da enuncia-
ção cria efeito de unidade (função-autor) em uma relação ambígua
da identificação dos Locutores com a exterioridade: afinal, quem
diz? Trata-se de uma forma ficcional romanesca cuja materialidade
é possibilitada pelos deslocamentos das possibilidades de dizer
que surgem na/pela história. Ou seja, a memória sobre o que é
romance ou forma romanesca é deslocada à medida em que os
sentidos sobre a “propriedade” do dizer também são.
Logo, através de uma leitura materialista histórica e dialética,
as escolhas sintáticas feitas pelos enunciadores em detrimento
de outras são índices fundamentais para a leitura e para a com-
preensão do entendimento do funcionamento dos sentidos em
Perto do coração selvagem (1998), não especificamente em relação
ao seu contexto de publicação, mas na relação política que os
usos da língua estabelecem com o interdiscurso sobre ficção
romanesca e identidades. Em outros termos, a indeterminação
dos Locutores, graças à materialidade da sintaxe atualizada nas
enunciações, não ocorre por livre atividade do gênio de um escri-
tor ou uma escritora, mas pelos processos de subjetivação que só
podem acontecer pela língua na história. Logo, a obra interessa
enquanto uma existência sócio-histórica das condições verbais
de existência enquanto objeto ideológico, estético e político
paradoxal em certa possibilidade de retomada dos memoráveis.
A ambiguidade inerente à língua e reforçada pelo trabalho
sintático empreendido pelas enunciações afeta a performativida-
de de gêneros, em especial o feminino. A reprodução do longo

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trecho a seguir justifica-se à medida que desenvolve um funcio-


namento muito reiterado ao longo do romance. Neste momento,
Joana é posta em relação a Lídia, amante de seu marido, Otávio,
a qual engravidou deste. Em itálico, sequências discursivas com
índices de lugar de dizer (enunciador) com efeitos de terceira-
pessoa-observadora-íntima. Em negrito, sequências discursivas
com índices de enunciador com efeitos de primeira-pessoa-
particularizante (ou individualizante).

Sim, revivia, acordou Joana. Que estou dizendo?


como ouso vir aqui? Estou longe, longe. Basta olhar
para esta mulher para compreender que não se poderia
gostar de mim. O aço encostou subitamente em
meu coração. Ah, o ciúme, era isso o ciúme, a mão
fria amassando-a lentamente, apertando-a, diminuindo
sua alma. Comigo acontece o seguinte ou senão
ameaça acontecer: de um momento para outro,
a certo movimento, posso me transformar numa
linha. Isso! numa linha de luz, de modo que a pes-
soa fica só ao meu lado, sem poder me pegar e à
minha deficiência. Enquanto Lídia tem vários planos.
A cada gesto revela-se outro aspecto de sua dimensão. Ao
seu lado ninguém escorrega e se perde, porque se apoia
sobre seus seios – sérios, plácidos, pálidos, enquanto
os meus são fúteis – sou sobre sua barriga onde
até um filho cabe. Não exagerar sua importância, em
todos os ventres de mulheres pode nascer um filho. Como
é bela e é mulher, serenamente matéria-prima, apesar
de todas as outras mulheres. O que há no ar? estou so-
zinha. Os lábios grandes de Lídia, de linhas vagarosas,
tão bem pintados de claro, enquanto eu de batom
escuro, sempre escarlate, escarlate, escarlate, o
rosto branco e magro. (LISPECTOR, 1998, p. 141,
grifos nossos).

O enunciador primeira-pessoa-particularizante pode ser


assumido tanto pelo Locutor-narrador quanto pelo Locutor-

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Joana: isso fica ainda mais possibilitado pelo recurso do fluxo


de consciência. Enquanto isso, o enunciador primeira-pessoa-
particularizante pode ser mais claramente assumido pelo Locutor-
Joana, tendo em vista que este emergiria como voz que ganha
espaço na narrativa para poder dizer (o que alguns chamariam
de discurso direto). No entanto, pela leitura atenta a partir de
nosso dispositivo teórico, o gesto de leitura permite perceber que
várias sequências discursivas poderiam também ser assumidas
pelo Locutor-narrador, dado que este enuncia sempre muito pro-
ximamente ao Locutor-Joana. Novamente, isso fica possibilitado
porque o lugar social de dizer (locutor-x) para ambos os Locutores
produz efeitos de “ser” muito próximo, como se não houvesse
distância entre as identificações das posições de sujeito.
Vale a pena apontar que o enunciador em terceira pessoa usa
de uma sintaxe mais simples, por orações coordenadas; enquanto
o em primeira pessoa funciona, predominantemente, a partir de
uma sintaxe mais complexa, por orações subordinadas. Nesse
funcionamento enunciativo, a função-autor organiza as conexões
sintáticas de forma a reforçar os efeitos de ambiguidade, princi-
palmente pelo apagamento de separações entre os enunciadores,
seja pela ausência de maiúsculas (“O que há no ar? estou sozinha”),
seja conectando por meio de “enquanto” (fazendo atuar efeitos
de temporalidade simultânea), em um mesmo período sintático,
enunciados de diferentes lugares de dizer (“Ao seu lado ninguém
escorrega e se perde, porque se apoia sobre seus seios – sérios, plácidos,
pálidos, enquanto os meus são fúteis – sou sobre sua barriga
onde até um filho cabe”).
Efeitos de indistinção e de ambiguidade são produzidos na
relação criada entre as perspectivas de narrador e personagens.
Tais efeitos, a abjeção e a indecibilidade estão articulados com o
problema dos “limites”. Estes, ainda que imaginários, constituem
sujeitos. Dessa forma, a constituição de autoria, aqui analisada,
acontece a partir do efeito de indistinção de limites entre os

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enunciadores, entre si e o outro. Tentar enunciar a partir deste


funcionamento parece poder produzir posicionamento – o políti-
co da língua – diante da abjeção, mas não conforme a hegemonia
falogocêntrica. Ou seja, não há posicionamento frente à abjeção
como algo insuportável, um resto, um erro a ser tratado, desviado,
corrigido. A ambiguidade, enquanto posicionamento diante da
abjeção, não é da ordem do que pode ser desfeito.
Quando penso em ambiguidade como elemento importante
da compreensão do romance pela via da constituição de enun-
ciação e autoria, pela análise de trechos como o anterior, abre-se
caminho para a consideração a respeito de como os gêneros são
postos a significar em relação à materialidade da língua. Joana
compara-se e/ou (indecidível) é comparada à Lídia. Em sublinhado,
há as famílias parafrásticas que redizem com diferença os efeitos
de feminino identificados à Joana, atravessados pela contradição
entre fragilidade (“rosto branco e magro”, “fúteis”, “deficiência”,
“linha de luz”) e força (“batom escuro, sempre escarlate, escarlate,
escarlate”). Com isso, algo do real a respeito de um (im)possível
feminino em Joana é bordeado pelo trabalho simbólico, propor-
cionando a ambiguidade entre enunciação e efeito metafórico
das paráfrases. “Enquanto” isso, a construção de Lídia também
não escapa a este jogo interminável da/na língua: ela é posta
em relação à Joana, mas sem “exagerar sua importância”, que
atua como paráfrase de “bela e mulher”, “lábios grandes”, por
exemplo.
As performatividades de feminino, em Perto do coração sel-
vagem (1998), então, podem ser entendidas, também, a partir de
uma ambiguidade que é trabalhada pela materialidade histórica
da língua posta em funcionamento enunciativo na ficção roma-
nesca analisada. Conforme tenho tentado demonstrar, a ambigui-
dade, ainda que fundamento da língua em todos os seus usos,
aqui, é reforçada pelos usos sintáticos e, por extensão, de famílias
parafrásticas. Logo, da mesma forma que um mesmo enunciador

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pode ser assumido, concomitantemente (sem uma decisão que


“resolva”), por Locutores diferentes, os dizeres sobre os femininos
(de Joana, de Lídia, de outras personagens e, inclusive, de uma
narradora possível) desdobram-se em termos que, em outras
condições de produção, seriam tomados como inconciliáveis,
contraditórios, falhos, ambíguos. Na ordem discursiva assumida
pela materialidade em funcionamento no romance, as filiações
de sentidos apontam para memórias que são recuperadas e pos-
tas em relações que, em outras condições, seriam interpretadas
como “equívocos” por um suposto sujeito que estaria “de fora
da língua”, afirmando qual feminino estaria, enfim, “na obra de
Clarice”. Sendo assim, pela análise que tento demonstrar, não se
pode decidir e fechar tal conclusão, já que a sintaxe, a enunciação
e a autoria não o permitem.
Tal aproximação sintática e semântica, discursivamente,
produz efeitos de ambiguidade sobre o que pode “ser feminino”,
mesmo quando Otávio, marido de Joana, assume-se Locutor:

Nada se perde, nada se cria. O homem que sentisse isso,


quer dizer, não apenas compreendesse, mas adorasse,
seria tão feliz como o que acredita realmente em Deus.
No começo dói um pouco, mas depois a gente se acos-
tuma. Quem escreve esta página nasceu um dia. Agora
são exatamente sete e pouco da manhã. Há névoas lá
fora, além da janela, da Janela Aberta, o grande símbolo.
Joana diria: eu me sinto tão dentro do mundo que me
parece não estar pensando, mas usando de uma nova
modalidade de respirar. Adeus. Isso é o mundo, eu sou
eu, está chovendo no mundo, é mentira, eu sou
um trabalhador intelectual, Joana dorme no quarto,
alguém deve estar acordando agora, Joana diria: outro
morrendo, outro ouvindo música, isto é o mundo. […]
Vivo com uma mulher nua e fria, não fugir, não
fugir, que me olha bem nos olhos, não fugir, que
me espia, mentira, mentira, mas é verdade. (LIS-
PECTOR, 1998, p. 120-121, grifos nossos).

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Em negrito, as sequências discursivas (com marcas lin-


guísticas de uma primeira pessoa particularizante) indicam um
enunciador que, por sua vez, é assumido pelo Locutor-Otávio.
Este é afetado por lugar de dizer (locutor-x) diferente do Locutor-
narrador, já que se identifica a outra posição de sujeito, de forma
que “eu sou um trabalhador intelectual” surge como paráfrase e
metáfora para Otávio. Sustentado por isso, o Locutor-Otávio fala
de si e de Joana, tomada pela paráfrase “mulher nua e fria”, “que
me olha bem nos olhos”. Ao mesmo tempo, em negrito, temos
sequências discursivas cujos elementos linguísticos apontam um
enunciador-observador-íntimo que, também, pode ser assumido
tanto pelo Locutor-narrador quando pelo Locutor-Otávio. Inclu-
sive, esta manifestação de Locutor-narrador, quando funciona
a partir de um enunciador terceira-pessoa-íntimo, textualiza,
principalmente, uma sintaxe mais simples, predominantemen-
te organizada por coordenadas. Por outro lado, o enunciador
primeira-pessoa-íntimo também atualiza formas sintáticas mais
complexas, de conexões subordinadas.
Ou seja, o funcionamento da enunciação repete-se em seus
recursos sintáticos na ambiguidade do indecidível de diversos mo-
mentos entre Locutor-narrador e Locutor-Joana, Locutor-narrador
e Locutor-Otávio. Com isso, a orquestração de vozes torna-se
ainda mais complexa quando pensamos em “quem é dono dos
dizeres?”. Se há ambiguidade, indecisão e mistura entre os Locu-
tores narrador e Joana, narrador e Otávio; logo, há indícios para
que exista ambiguidade entre os Locutores Otávio e Joana. Sendo
assim, a ambiguidade está totalmente estruturada no funciona-
mento inerente à língua, mas também na ênfase dada a isso pelo
trabalho da autora em sua forma de (des)organizar as relações
entre Locutores e enunciadores. Com isso, complexificam-se as
identificações destes com os lugares sociais de dizer. Em outras
palavras: um mesmo enunciador, assumido por um Locutor, pode
agir identificado, em instantes diferentes, a lugares sociais dis-
tintos. Dessa forma, não é possível exigir uma coerência entre

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formas de sujeito (Locutor, enunciador) e univocidade do lugar


de dizer, porque o que há é equivocidade, graças ao movimento
dos sentidos na história que sustenta a materialidade das formas
da língua e desta ficção romanesca em análise.

QUAL DISTÂNCIA É POSSÍVEL?

E explodindo diante dos olhos perplexos em busca


de silêncio. Deixando depois de si o intervalo per-
feito como um único som vibrando no ar. Renascer
depois, guardar a memória estranha do intervalo,
sem saber como misturá-lo à vida.
(LISPECTOR, 1998, p. 157)

No que diz respeito às performatividades de femininos, em


Perto do coração selvagem (1998), se elas produzem efeitos de
evidência e “naturalidade” pela repetição imaginário de modelos
que poderiam ser retomados e representados, temos, justamente,
a quebra (inclusive por mecanismos sintáticos) e a desautoma-
tização de tal processo, quando, por exemplo, uma enunciação
coloca certo feminino como algo e seu “suposto contrário” como
algo que funciona “ao mesmo tempo”, ambiguamente. Inclusi-
ve, a ambiguidade espraia-se com relação à determinação dos
lugares sociais sobre enunciadores e Locutores. Logo, não só o
indecidível atua sobre os Locutores e seus supostos lugares de
dizer (enunciadores), mas também pela possibilidade de estes
poderem falar a partir de identificações diferentes em relação à
forma-sujeito e, então, aos gêneros.
Isso que aponto sobre parte do funcionamento discursivo de
Perto do coração selvagem será trabalhado, com repetições e dife-
renças, nos demais romances assinados por Lispector. Logo há,
a princípio, índices que apontam para uma posição específica do
político sobre a língua no conjunto da obra da autora brasileira,
ainda que tenha sido, não raramente, acusada de alienação ou de

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falta de envolvimento social (como se isso pudesse ser definido


e fechado por um único sujeito transparente a si e ao outro).
Nesse sentido, uma abordagem discursiva da constituição
dos gêneros a partir da consideração do funcionamento da enun-
ciação e da autoria não permite estabelecer um fechamento a
respeito de “origens do dizer” bem como sobre “o feminino em
Clarice Lispector”. Pelo poético da língua tomado não como evi-
dência de certos tipos de textos (“os literários”), mas como parte
da sustentação da materialidade da língua, os sentidos, em Perto
do coração selvagem (1998) movimentam-se a partir de recursos
linguísticos que, em outras condições de produção, seriam toma-
dos como “erro”, elemento abjeto8 que deveria ser controlado e
“permanentemente excluído” pelo sujeito de direito capitalista.
Assim, a luta de classes atualiza-se no romance pelo funciona-
mento do político da língua que desloca usos desta, dando-lhes
outra materialidade, outra possibilidade para significar. Trata-se
de funcionamentos da língua e das formas romanescas que se
alteram não pela ação do sujeito livre, mas a partir de todo um
processo de acúmulo semântico que ocorre na história. Não há
distância segura (ainda bem!) a ser tomada diante deste coração
selvagem!

8 Vale finalizar reforçando que, ao longo do estudo e da análise aqui empreendidos, construí
a elaboração de que, em perspectiva do discurso, uma “sintaxe abjeta” ou a “abjeção da
sintaxe” não se reduz ao que deve ser controlado, retirado da formulação a partir de um
imaginário de controle de um suposto sujeito e saber racional-centrado-em-si-mesmo. Ou
seja, não é o erro que pode/deve/é passível de ser corrigido. O abjeto é da ordem do que
não pode ser simbolizado, produzindo efeitos a partir de um real da história e da língua,
em que os “esquecimentos” (PÊCHEUX; FUCHS, 1997) continuam a produzir efeitos de/
sobre sentidos. Logo, não podendo ser simbolizada, a sintaxe abjeta (a abjeção da sintaxe)
não pode ser “corrigida”, colocada “na norma”. Não sendo o sujeito origem de si e do seu
dizer e nem as sequências discursivas passiveis de fechamento, de unicidade, não há Um
para o sentido, abrindo os processos de autoria e de leitura para a não totalidade, inclusive
do ilegível que ronda e marca os textos (ainda que o ilegível, “em si”, não seja da ordem
do marcado, do formulável), produzindo estranhamento e horror. Nisso, também, Pêcheux
elabora que não haveria linguagem poética (2015) – esta marca, esta categoria – sendo, na
verdade, fundamento de todo funcionamento da língua (sempre aberto ao ainda não perce-
bido). Há sempre o perigo e o horror de “sermos poéticos”.

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335
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Proibida a reprodução total ou parcial em qualquer mídia
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Os infratores estão sujeitos às penas da lei.
A Editora não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta publicação.

Este livro foi publicado com auxílio financeiro da CAPES, programa PROEX,
Aux. 1835/2017 - Proc. 23038.012822/2017-68

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

F679m Fontana, Mónica G. Zoppi; Biziak, Jacob dos Santos (org.).


Mulheres em Discurso: lugares de enunciação e corpos em disputa – Vol. 3 /
Organizadores: Mónica G. Zoppi Fontana e Jacob dos Santos Biziak.
1. ed. – Campinas, SP : Pontes Editores, 2021.
il.; quadros; fotografias.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5637-337-9.

1. Análise do Discurso. 2. Gênero. 3. Língua Portuguesa. 4. Semântica.


I. Título. II. Assunto. III. Organizadores.

Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846

Índices para catálogo sistemático:

1. Grupos sociais: Mulheres. 305.4


2. Análise do discurso. 401.41
3. Semântica. 401.43
4. Linguística. 410
5. Língua portuguesa. 469

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