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LITERATURA E PRISÃO: A REMIÇÃO PELA LEITURA E A UNIDADE

PRISIONAL COMO ESPAÇO DE FORMAÇÃO DE LEITORES.


Thiago Gomes de Souza
Orientação: Gabriela Fernandes de Carvalho

RESUMO
A remição da pena pela leitura é um direito de natureza socioeducativa que garante à
pessoa presa o direito de subtração do tempo de cumprimento da pena. A presente
pesquisa buscou investigar o conceito de literatura e as estratégias de formação de
leitores que a Unidade Prisional de Tabatinga/AM utiliza no projeto denominado
“Projeto Remição pela Leitura da Comarca de Tabatinga”. Neste sentido, a pesquisa
parte da indagação acerca do cumprimento do dever legal e constitucional do Estado
para com os encarcerados, e da compreensão de literatura nas atividades práticas de
leitura daquele estabelecimento prisional. Para tanto, consideramos neste trabalho as
concepções de Foucault (1987), sobre como o sistema punitivo opera no ambiente e nos
corpos que ali estão; Cândido (2004), pensando a literatura como um direito básico do
ser humano; Magalhães (2008), pontuando a importância das leituras de livre escolha na
formação do leitor; Literatura para quê?, de Compagnon (2009), acreditando que a
literatura tem o poder de nos tornar sujeitos mais sensíveis. Leis e doutrinas que
regulamentam a leitura literária em estabelecimentos prisionais, assim como demais
pesquisas que discorrem sobre o letramento literário em prisões, também auxiliaram no
aporte teórico-metodológico utilizado na pesquisa. Utilizamos o método descritivo e
documental, além de visitas de campo observatórias, a fim de compreender as mudanças
que espaços e propostas de leitura podem ocasionar em um ambiente carcerário. Assim,
este estudo pretende contribuir para pensar práticas, espaços educativos, ressocialização
nas prisões, bem como dar visibilidade a esses corpos/leitores silenciados.

Palavras-Chave: Direitos Humanos; Literatura; Leitura literária; Remição pela leitura.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa produzir debates acerca da remição pela leitura


enquanto espaço formativo e alternativa de ressocialização, assim como, dar visibilidade
aos corpos silenciados que estão dentro da Unidade Prisional de Tabatinga/AM e aos
processos e políticas educacionais e formativas presentes neste espaço. Mas antes,
contextualizaremos brevemente o município onde se localiza este estabelecimento
prisional.
Tabatinga é um município situado no Amazonas, cujo nome vem do tupi-
guarani que significa “barro branco”. Uma cidade transfronteiriça com a Colômbia e
Peru, possui, segundo o IBGE em levantamento no ano 2020, 67.182 (sessenta e sete
mil cento e oitenta e dois) habitantes, com significativa população indígena. “Capital do
Alto Solimões” como é conhecida popularmente, apesar de ter a língua portuguesa
como idioma oficial, também tem a forte presença da língua espanhola, da língua
ticuna, e de outros idiomas indígenas.
A despeito da riqueza cultural presente nessa região, devido a sua posição
geográfica estratégica, também é usada como importante rota para o tráfico
internacional de drogas. E a população que ali vive sofre os impactos da atuação
exploratória de organizações criminosas, as quais se valem da fragilidade
socioeconômica dos moradores para recrutar mulas1. E os efeitos dessa atuação é
sentido por comunidade local, e reflete, sobremaneira, na superpopulação carcerária do
município.
É importante destacar que a população carcerária da qual falamos é constituída
por cidadãos de famílias cuja renda (e em alguns casos a única renda) provém de
programas sociais do governo. Cidadãos que cresceram expostos a uma diversidade de
violências, que tiveram seus direitos básicos atravessados por negligência do Estado,
que cedo renunciaram a sua infância para trabalhar e contribuir no sustento da família.
Em Tabatinga não há colônia agrícola, industrial ou similar para cumprimento
de pena no regime semiaberto, bem como não existem casas de albergados para abrigar
reeducandos em regime aberto. Há apenas um estabelecimento prisional, situado na Rua
Manoel Tananta, s/nº, Bairro Santa Rosa, no Município de Tabatinga/AM, ao lado do
Centro Integrado de Segurança do 8º Batalhão de Polícia Militar do Estado do
Amazonas (8ºBPM/AM), que atende a decretações de prisões da justiça estadual e
federal.
O referido estabelecimento foi inaugurado no dia 21 de janeiro de 2005, possui
capacidade para 108 (cento e oito) internos, sendo 90 (noventa) vagas para presos do
sexo masculino e 18 (dezoito) para do sexo feminino. A gestão do estabelecimento é
pública e feita pela Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP), cujo quadro de
pessoal é composto por oito servidores estaduais e dois municipais, dos quais os cargos
vinculados à SEAP são: um Diretor, um Diretor Adjunto e seis Assessores AD-III, bem
como, dois policiais militares lotados no 8ºBPM/AM.
O estabelecimento conta com um corpo técnico especializado composto por
um Odontólogo, um Técnico em Saúde Bucal, um Enfermeiro, um Técnico de
Enfermagem, uma Psicóloga, um Psiquiatra, um Assistente Social, um Fisioterapeuta e
um Farmacêutico.

1
Pessoa que, consciente ou não, realiza o transporte de substâncias ilícitas.
É dever legal e constitucional do Estado para com os encarcerados garantir
direitos mínimos e oferecer tratamento digno e humanizado durante o cumprimento da
pena. E a remição é uma garantia fundamentada nos artigos 1º, III, e 5º, XLVI, ambos
da Constituição Federal de 1988, que possibilita ao reeducando acessar os diferentes
níveis de cultura por meio da leitura literária livre, e, com isso, a ressocialização e o não
retorno às práticas criminosas.
Atualmente, no Brasil, as possibilidades de remição são três: remição pelo
trabalho, remição pelo estudo e remição por meio de atividades educacionais
complementares. A ampliação das possibilidades de remição se tornou possível em
virtude da Lei nº 12.433/2011, sancionada pela ex-presidente da república Dilma
Roussef, a qual alterou a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984) passando a ampliar
esse direito que até então se restringia somente ao trabalho. E a concessão de habeas
corpus pelo Superior Tribunal Federal (STF) a uma pessoa presa no Estado de Santa
Catarina, a qual foi aprovada no Exame Nacional de Certificação de Competências de
Jovens e Adultos (Encceja), reforçou esse direito, incumbindo o Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) de regulamentar a temática e propor aos Tribunais que instituam e
promovam projetos de remição pela leitura, por meio da Recomendação CNJ nº
44/2013.
Neste sentido, em agosto de 2021 foi instituído o projeto “Remição pela
Leitura da Comarca de Tabatinga”, o qual está em execução e visa possibilitar a remição
pela leitura no estabelecimento prisional do município. O Juízo de Execução Penal da
Comarca de Tabatinga/AM, a Defensoria Pública do Estado do Amazonas, o Ministério
Público do Estado do Amazonas, a Direção da Unidade Prisional de Tabatinga/AM e a
Secretaria Municipal de Educação de Tabatinga/AM são os entes envolvidos. Nele fica
estabelecido que a participação seja voluntária e aberta a todos os internos, esteja em
prisão cautelar, provisória, preventiva ou definitiva, sem prejuízo da cumulação com
outras atividades, conforme prevê o artigo 126, § 3º, da Lei de Execução Penal.
Entretanto, a criação do projeto em si não é garantia de acesso ao direito à
leitura pelos internos dos estabelecimentos penais. Ademais, esta pesquisa compreende
que a literatura é um direito universal que deve estar disponível em todos os espaços
sociais, principalmente na prisão. A partir daí, buscamos refletir os dispositivos legais
que norteiam a leitura literária em prisões, investigar o acesso a tal direito, a
compreensão de literatura que o projeto aplica nas atividades, as estratégias de formação
de leitores, bem como discutir a literatura e sua importância para a humanização das
pessoas e do espaço prisional.
Neste trabalho, a primeira etapa consistiu numa visita de campo junto ao
espaço destinado à leitura na Unidade Prisional de Tabatinga/AM e conversa com os
internos e servidores públicos que coordenam o projeto, com o objetivo de conhecer o
Programa de Remição pela Leitura na Unidade Prisional de Tabatinga/AM e seu
funcionamento.
Ainda para o aporte teórico-metodológico, visitou-se leis e doutrinas que
regulamentam a leitura literária em presídios, assim como também pesquisas que
discorrem sobre o letramento literário em estabelecimentos penais. Desse modo,
caracteriza-se o presente estudo como descritivo, haja vista que foi desenvolvido através
de pesquisa bibliográfica e documental.

FUNDAMENTAÇÃO

A prisão é o espaço que recebe a pessoa condenada e promete devolvê-la à


sociedade por meio da ressocialização. Neste processo, a pessoa presa é tratada na
perspectiva médica, ou seja, como alguém doente, que apresentou falhas no convívio
social e por isso acaba submetida aos reparos que o sistema punitivo propõe.
Não podemos discutir sobre literatura nesses espaços sem entender como o
sistema punitivo opera no ambiente e nos corpos que ali estão. Sobre esse assunto
Michel Foucault, professor, filósofo e crítico literário, em sua obra Vigiar e Punir,
discorre acerca do sistema punitivo e suas operações nos corpos ques estão dentro da
prisão.
Segundo o autor, ao discutir e propor um percurso histórico sobre os corpos
dos sujeitos privados de liberdade e as punições imputadas ora simbolicamente, ora
fisicamente, argumenta que em algumas dezenas de anos, desapareceu o corpo
supliciado, esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro,
exposto vivo ou morto, dado como espetáculo

Por volta do século XVI, a punição era organizada no formato de um espetáculo,


onde o corpo do supliciado era alvo e utilizado como um personagem que tinha o papel
de servir de exemplo ao restante da sociedade. O suplício se organizava de maneira
longa, com a apresentação do supliciado nas ruas, confirmando seu crime e de posse da
arma do crime. Não havia distinção entre crime, infração e contravenção, logo, o
sistema penal considerava todo e qualquer ato um crime de mesma natureza, e, portanto,
aplicava o rigor da lei de igual forma diretamente no corpo do condenado.
Apesar da negatividade que era atribuída ao suplício, ele foi nomeado
instrumento do interrogatório pelo qual se descobriria a verdade, isto é, a verdade
surgiria por meio do corpo do supliciado, seja ele inocente ou culpado. E para atravessar
a possibilidade de o supliciado resistir e impedir a “aplicação da justiça”, o autor
descreve que os casos mais graves, se reservava a prerrogativa do suplício do
interrogatório "com reservas de provas", cuja justiça de qualquer forma perderia caso o
supliciado resistisse, posto que a validação da justiça, do processo, do suplício, reside na
confissão do crime, o que também justifica seus métodos.
Para Foucault, um castigo desafio físico que deve decidir sobre a verdade; se o
paciente é culpado, os sofrimentos impostos pela verdade não são injustos; mas ela é
também uma prova de desculpa se ele for inocente. Ou seja, se a pessoa acusada fosse
inocente, o método aplicado para se descobrir a verdade era injusto, mas neste
momento, já houve a fabricação de uma culpa, os métodos já tornaram aquela pessoa
culpada.
Dois séculos mais tarde, após a identificação de que essa abordagem inverte os
papéis do espetáculo, atribuindo aos operadores do direito o status de criminoso e ao
suposto criminoso um personagem que merece piedade e admiração, ocorre uma
modificação no sistema punitivo, o corpo deixa de ser o objeto central e a mente torna-
se o alvo principal do poder.
Logo, visando preservar o prestígio e a imagem do julgador, durante o
processo de punição, a administração penal passa a ser distribuída com elementos e
personagens extrajurídicos, como a psiquiatria, a qual desempenha o papel não
qualitativo no julgamento, mais de sugerir "tratamento médico judicial”.
O sistema penal, então, abandona o suplício como técnica punitiva e passa a
utilizar outro objeto, qual seja, a liberdade. Ainda assim, segundo o autor, o corpo físico
não fica isento da punição, haja vista que a prisão, inevitavelmente, acredita-se que não
funciona sem certos complementos punitivos: redução alimentar, privação sexual,
expiação física, masmorra (prisão dentro da prisão) e outros.
A redução da severidade da penal em relação ao corpo pretende, dessa forma,
construir uma falsa imagem de que há humanidade no modelo punitivo, simplesmente
pela redução da crueldade no corpo, do desuso da violência física, da crueldade; quando
na verdade, a punição está operando em outro aspecto, um que está intimamente ligado
ao corpo, o qual é, segundo Foucault, a alma.
Punindo a alma, pune-se o corpo. É em cima do corpo que a prisão sempre se
consolidou enquanto modelo punitivo, e também como política penal. As rebeliões e
revoltas que ocorrem dentro dos presídios expõem não somente a busca por garantia de
direitos de tratamento digno e humanizado para o corpo, mas estende suas
reivindicações para a alma.
Trata-se bem de uma revolta, ao nível dos corpos, contra o próprio corpo da
prisão. O que estava em jogo [...] era toda essa tecnologia do poder sobre o
corpo, que a tecnologia da "alma" - a dos educadores, dos psicólogos e dos
psiquiatras - não conseguem mascarar nem compensar, pela boa razão de que
não passa de um de seus instrumentos. (FOUCAULT, 1987, p. 34)

Por muito tempo, o aparelho penal era o responsável tanto pelo julgamento,
que se dava de maneira sigilosa, quanto pelo poder de punição. Com o tempo surgem
perguntas que começam a questionar seu poder de sanção e controle. Diante disso, o
aparelho penal busca se fortalecer compartilhando sua responsabilidade com o que o
autor chama de elementos extrajurídicos, como a psicologia e a psiquiatria. Estes, por
sua vez, passam a desempenhar um papel jurídico que fortalece o aparelho penal e
divide o peso da responsabilidade da punição, tornando-se, desse modo, instrumentos
do aparelho penal importantes na operação contra os corpos.
Foucault inclina seu estudo à prisão, mas mostra que todos os sujeitos da
sociedade obedecem ao mesmo modelo disciplinar que existe na prisão, com regras que
operam por vezes sem que se perceba, como horário para praticar certas atividades,
horário para acordar, para receber visitas, o dever de produzir, de ser útil e entre outros.

Não é a primeira vez, certamente que o corpo é objeto de investimento tão


imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está preso ao interior
de poderes muitos apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou
obrigações. (FOUCAULT, 1987, p. 163)

O aparelho penal não é o único que faz uso da disciplina, as igrejas, as escolas,
os quartéis, o Estado também são instituições que produzem a disciplina com o objetivo
de docilizar o corpo do indivíduo numa relação de utilidade. E na prisão, o sujeito fica
no centro, ele é obrigado a obedecer a regras rigorosas e fica sujeito a limitações e
proibições de diversas naturezas.
O corpo foi e ainda é o objeto de investimento principal do poder e das
instituições disciplinares como a prisão, um poder que se dedica a operar e até mesmo
fabricar corpos dóceis como nos suplícios, por exemplo, a fim de que sejam úteis sob
uma perspectiva econômica, ou seja, é a mente que será controlada, mas é o corpo que
vai produzir.
A disciplina pode ser observada em muitos espaços sociais e na própria
sociedade. E muito embora a ordem seja usada para tentar justificar sua utilização, esse
método não esconde seu verdadeiro objetivo que é o de trabalhar os corpos, de controlá-
los, de observá-los, se explorar eles, de torná-los obedientes e, consequentemente, úteis.
A instituição-prisão aparece então como um excelente espaço onde seria possível
aplicar com precisão todas as técnicas de operações dos corpos. E diz o autor que ela
foi vista desta forma antes que a lei a definisse como pena por excelência.

Uma justiça que se diz “igual”, um aparelho judiciário que se pretende


“autônomo” mas que é investido pelas assimetrias das sujeições disciplinares,
tal é a conjunção do nascimento da prisão, “pena das sociedades civilizadas”.
(FOUCAULT, 1987, p. 260)

A realidade que vemos no presídio derruba a ilusão de uma justiça igual à


medida que vemos nos sujeitos que ali estão uma seletividade realizada pelo sistema
penal, isso porque os corpos que estão lá são majoritariamente pretos ou pardos, corpos
operários, com baixa escolaridade ou nenhuma. E a suposta civilização que a prisão
promete oferecer é outra teoria distante da realidade dos presídios.
O mesmo autor que sugere a possibilidade de julgar o grau de civilização de
uma sociedade visitando suas prisões, que reconhece o perigo e a inutilidade que por
vezes a prisão oferece, também afirma não haver alternativa para pôr em seu lugar, isto
é, ela é a detestável solução de que não se pode abrir mão.

Ela foi desde o início uma “detenção-legal” encarregada de um suplemento


corretivo, ou ainda uma empresa de modificação dos indivíduos que a
privação da liberdade permite fazer funcionar no sistema legal. (FOUCAULT,
1987, p. 262)

Mesmo tendo conhecimento da discrepância que permeia o sistema


penitenciário, a prisão ainda continua sendo considerada a única alternativa para pena,
pois ela tem como objeto a liberdade, elemento que Foucault acredita ter preço igual
para todos, o que não prospera diante da desigualdade que existe no sistema de justiça.
Um sujeito com poder aquisitivo pode pagar pelas custas processuais e um advogado
para defender seus interesses, enquanto outros aguardam anos na prisão por julgamento
que sem a Defensoria Pública, órgão que assiste pessoas hipossuficientes perante a
justiça, não ocorre.
A estratégia usada na construção das prisões, geralmente local afastado dos
centros urbanos, contribui bastante para tal modificação, de modo que a distância e os
muros altos transmitem aos corpos uma sensação de impermeabilidade. E de fato os
corpos sofrem inúmeras e profundas modificações que vão além da relação com o
trabalho. A prisão permite ao sistema penal o controle, a observação e a operação sobre
os corpos encarcerados de maneira ininterrupta.
Essas operações têm como objetivo a utilidade, ou seja, o detento precisa ser
útil trabalhando para o sistema prisional e, dessa forma obterá seu perdão, pois o
trabalho demonstra bom comportamento, o que tem peso significativo durante o
julgamento e cumprimento da pena. Mas, além disso, o sistema penal apresenta indícios
de que o motivo do crime está ligado à falta de trabalho, o que nos faz perceber que
existe no ambiente prisional um viés econômico.
Na verdade, o trabalho na prisão constrói um espaço de mão de obra barata,
com trabalhos exaustivos e sem remuneração, em suma, constrói um espaço de
exploração dentro da prisão, uma vez que o sistema penal, ao inserir o indivíduo dentro
do presídio, se articula de diversas maneiras para operar no sujeito durante e após o
cumprimento da pena.
[...] a existência de uma proibição legal cria em torno dela um campo de
práticas ilegais, sobre o qual se chega a exercer controle e a tirar um lucro
ilícito por meio de elementos ilegais, mas tornados manejáveis por sua
organização em delinquência. (FOUCAULT, 1987, p. 307)

A prisão, enquanto modelo de prevenção/redução do crime, falhou e continua


falhando em muitos sentidos. Ela transforma infratores em delinquentes, e sua função
representa a classe do poder, a qual fabrica ilegalidades por meios legais, haja vista que
as leis e regras sociais são criadas por um uma determinada classe num dado tempo. E a
delinquência é um efeito/instrumento oriundo do poder que mostra, inclusive, o
pretensioso fracasso da prisão e alimenta a crença de que sua existência é necessária.
A disciplina enquanto mecanismo de controle natural de uma prisão é o
instrumento que fabrica o sujeito delinquente, uma vez que, muito embora o sistema
penal deseje operar em todos os corpos, algumas cirurgias não apresentam o resultado
esperado ou nenhuma “melhora”, ou seja, algumas pessoas conseguem resistir a pressão
e o ritmo disciplinar da prisão e acabam, por esse motivo, sendo transformada numa
figura perigosa, de quem a sociedade precisa ter medo.
O noticiário policial, junto com a literatura de crimes, vem produzindo há
mais de um século uma quantidade enorme de “histórias de crimes” nas quais
principalmente a delinquência aparece como familiar [...] provam-no as
campanhas dos jornais populares contra o trabalho penal, contra o “conforto
das prisões”, para que sejam reservados aos detentos os trabalhos mais duros
e mais perigosos, contrato o excesso de interesse que a filantropia dedica aos
delinquentes, contra a literatura que exalta o crime [...] (FOUCAULT, 1987, p.
313)

Para a classe dominante, um ser perfeito é um ser subserviente, que seja


submisso, obediente, disciplinado. Mas a delinquência se apresenta também como o
oposto, tanto como um problema para esse sistema quanto um instrumento que justifica
o encarceramento e a prisão.
A pessoa que resiste à operação disciplinar social e prisional é transformada
num sujeito duplamente perigoso para a sociedade, e que por esse motivo deve ser
separado dos demais grupos. Assim, então, a delinquência torna-se um instrumento do
sistema carcerário que o reafirma e, segundo o autor, consegue tornar natural e legítimo
o poder de punir, bem como tende a apagar o que possa haver de exorbitante no
exercício do castigo.
Levado pela onipresença dos dispositivos de disciplina, apoiando-se em todas
as aparelhagens carcerárias, este poder se tornou uma das funções mais
importantes de nossa sociedade. Nela há juízes da normalidade em toda parte
[...] professor-juiz, do médico-juiz, do educador-juiz, do “assistente social ”-
juiz [...] (FOUCAULT, 1987, p. 330)

O poder normalizador se expande tão amplamente criando o que o autor chama


de “rede carcerária”, isto é, um conjunto de dispositivos do sistema carcerário que
juntos ou individualmente operam nos corpos para docilizá-los e desempenham o papel
normalizador do poder de punir.
O suplício não é mais o meio pelo qual se cumpre a pena. Atualmente no
Brasil,o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 assegura que ninguém será submetido
à tortura nem a penas ou tratamentos cruéis. Vislumbra-se um avanço. Os direitos da
pessoa presa estão descritos na Constituição Federal de 1988 e pela Lei de Execução
Penal, entretanto, a realidade que vemos nos presídios destoa das promessas que
esculpem tais dispositivos legais. O espaço prisional vive constantemente marginalizado
e subjugado como um espaço que não merece usufruir de igualdade de direito ou pelos
menos, os corpos que ali estão, como se tivessem escolhido estar ali, não demandam
prioridade quanto outros espaços sociais.

Nesse ponto as pessoas são frequentemente vítimas de uma curiosa


obnubilação. Elas afirmam que o próximo tem direito, sem dúvidas, a certos
bens fundamentais como casa, comida, instrução, saúde, coisas que ninguém
bem formado admite hoje em dia que sejam privilégio de minorias, como são
no Brasil. Mas será que pensam que o seu semelhante pobre teria direito a ler
Dostoiévski ou ouvir os quartetos de Beethoven? (CÂNDIDO, 2004, p. 174)

O reconhecimento do direito que o próximo possui se estende até o limite do


que se considera fundamental para a própria sobrevivência. Tudo que estiver além é
considerado ostentação, um privilégio reservado a certas classes sociais. E por não ser
considerado fundamental para a sobrevivência física, é negado. Muito embora Cândido
(2004), professor, sociólogo e crítico literário, acredite que essa negação possa ocorrer
sem que se perceba, acreditamos que essa negação ocorre de maneira consciente e
muitas vezes intencionada, com o objetivo de reservar o acesso exclusivamente a grupos
cuja riqueza está concentrada. Mas para aprofundar a discussão, faz-se necessário
distinguir bens compressíveis de bens incompressíveis:

Certos bens obviamente são incompressíveis, como o alimento, a casa, a


roupa. Outros são compressíveis, como os cosméticos, os enfeites, as roupas
supérfluas. Mas a fronteira entre ambos é muitas vezes difícil de fixar [...]
cada época e cada cultura fixam os critérios de incompressibilidade [...]
(CÂNDIDO, 2004, p. 175)

Fica evidente que classificar um bem como incompressível será sempre


questionável, tanto do ponto de vista individual como do coletivo. Uma vez que
incompressibilidade, conforme afirma o autor, é estabelecida de acordo com a época, a
cultura, e está fortemente ligada à divisão de classes, ou seja, mais importante do que
discutir o que seria um bem incompressível é necessário reconhecer que todos somos
seres humanos, e que por isso temos direito de igualdade de tratamento.
Quanto à incompressibilidade, Candido (2004) afirma, ainda, que são bens
incompressíveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde,
a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência à opressão etc.; e
também o direito à crença, à opinião, ao lazer, e por que não, à arte e à literatura.
Portanto, são bens incompressíveis não apenas os que asseguram a
sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual.
Neste mesmo sentido, Magalhães (2008), escritora e professora universitária, em seu
trabalho sobre a importância das leituras de livre escolha, afirma que o cultivo do
imaginário é uma necessidade básica do ser humano, ou seja, a arte, a literatura é
necessária para a vida, posto que ela é um reflexo do próprio ser humano:

Vista deste modo a literatura aparece claramente como manifestação


universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há
homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em
contato com alguma espécie de fabulação. (CANDIDO, 2004, p.176)

Na medida em que não se pode viver sem ela, torna-se um direito universal,
cuja satisfação é um dever social, o que não exclui a pessoa presa da fruição de tal
direito. Mas para deixar mais claro o lugar de necessidade que a literatura ocupa,
Compagnon (2009), professor de literatura, escritor e crítico literário, sustenta que a
vida é mais cômoda, mais clara, mais ampla para aqueles que leem que para aqueles que
não leem. E que isso ocorre por uma razão, qual seja, de que a literatura confirma e
nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo possibilidades de vivermos
dialeticamente os problemas, isto é, há um poder imensurável nela mesma e outro
ligado ao lugar que ela ocupa no meio social, o qual pode ser tanto para humanizar
como para dominar.
A literatura humaniza porque possibilita a autonomia. E o ato de ler enquanto
habilidade útil para o viver reside na necessidade de leitura do dia-a-dia. Ela possibilita
ao leitor melhor gozar a vida ou ao menos suportá-la.

A literatura detém um poder moral. [...] a experiência e o exemplo guiam a


conduta melhor do que as regras. Ela tem o poder de nos fazer escapar “das
forças de alienação ou de opressão”. Ela tem o poder de contestar a
submissão ao poder. (COMPAGNON, 2009)

Vemos nela, então, não só um meio de nos tornarmos melhores, mas também
um instrumento de luta. Ela possibilita, de modo particular, a dar forma às experiências
humanas, ela auxilia, segundo Compagnon (2009), na nossa educação sentimental. A
literatura se apresenta como um meio de transmitir a experiência daqueles que estão
distantes de nós no tempo e espaço, e, dessa forma, nos torna sujeitos mais sensíveis.

A literatura nos liberta de nossas maneiras convencionais de pensar a vida


[...]. Seu poder emancipador continua intacto, o que nos conduzirá por vezes
a querer derrubar os ídolos e a mudar o mundo, mas quase sempre nos tornará
simplesmente mais sensíveis e mais sábios, ou em uma palavra, melhores..
(COMPAGNON, 2009)

As possibilidades que a literatura oferece vão muito além. Ela é capaz de bem
mais do que nos tornar sujeitos sensíveis. Magalhães (2008), professora e escritora
brasileira, sustenta que ela é capaz de refinar tal sensibilidade e que para acessar esse
benefício é necessário reconhecer que a literatura é arte e, como tal, demanda
competências e habilidades ligadas à subjetividade, à criatividade e à sensibilidade.
Sabendo disso, Annie Rouxel, escritora e professora emérita em Língua e
Literatura Francesa em seu estudo intitulado “Práticas de leitura: quais rumos para
favorecer a expressão do sujeito leitor?”, aponta que historicamente o ensino de
literatura exlcui a leitura e o sujeito leitor. E que as leituras análiticas, costuman deixar
pouco espaço à subjetividade do leitor, posto que exigem dele que seja capaz de
responder as injunções do texto unilateralmente.

No que diz respeito ao autor de uma obra literária, de acordo com Iser (1985),
citado pela autora, o leitor assume na leitura uma parte igual no jogo da imaginação,
isso significa que a leitura analítica é um espaço de avaliação de saberes e competências
que ignora o protagonismo do sujeito leitor, o que pode ensejar em uma leitura
frustrada.

Por outro lado, a leitura cursiva compreende que a experiência do sujeito é a


raiz da questão, ao mesmo tempo propõe um espaço de liberdade ao sujeito leitor, pois
reconhece que a leitura além de um lugar de expressão é um lugar de existência.
Ainda nesse sentido, Magalhães (2008) afirma a existência de pelo menos duas
dimensões diferentes do letramento literário, uma voltada para o sentir e outra para o
racionalizar o texto. Ou seja, durante o processo de despertar o gosto pela leitura é
importante conhecer o espaço em que está inserido o objetivo. Algumas leituras
ocorrem pelo afeto que o leitor estabelece com o livro e é esse o primeiro passo para
que se chegue à segunda dimensão.
Isso quer dizer que existe o leitor amador e o leitor especialista, mas ambos
fazem parte de um único processo que os distancia pelo conhecimento técnico e os
aproxima pelo objeto da leitura, qual seja, o prazer de ler.
As escolhas dos livros devem se pautar na diversidade, sem preconceito ou
qualquer outro tipo de discriminação, ou seja, a motivação do leitor está no respeito a
sua liberdade em escolher o livro, uma vez que cada leitura é única. Desse modo, a
motivação advém da liberdade, e a motivação à leitura, segundo Zilberman (2003),
citada pela autora, advém da relação com a realidadeque surge entre o leitor e a obra.
Magalhães (2003) pertinentemente indaga: “Haveria de fato escolha livre”?
Sim, ou pelo menos deveria ser, uma vez que apesar de algumas leituras impostas,
oriundas de indicações de parentes, amigos ou redes sociais operarem, a leitura está
ligada à maturidade, à carência, às expectativas e, portanto, à subjetividade. E a leitura e
processo de formação de leitores dentro do estabelecimento prisional de Tabatinga/AM
deve oferecer a liberdade, deixar os leitores escolherem os livros por meio de seu
interesse, da afetividade, em suma, não pode deixar de respeitar a subjetividade e
autonomia do leitor.
A literatura desconhece, portanto, as divisões de faixa etária, pois ainda que
os textos se diferenciem pela linguagem, todos eles apresentam, entretanto,
um substrato atemporal, vinculado à sensibilidade, à imaginação e à
criatividade, que pode dialogar com os leitores, independentemente de idade,
época, local ou linguagem. (MAGALHÃES, 2003, p. 125)

Geralmente a discussão sobre faixa etária e tipo de textos surge mais


frequentemente quando falamos de literatura infanto-juvenil, uma denominação também
questionável, mas que não pretendemos discutir aqui. Vemos que a subjetividade do
leitor é um espaço gigantesco e impenetrável. Logo, as escolhas dos textos literários
devem vir do leitor, a fim de que acesse o prazer, o entretenimento, amplie sua
imaginação. O texto literário está pautado nessas possibilidades. Todavia, o que se vê no
espaço prisional é a oferta de textos moralizantes, textos que tem a intenção de moldar a
maneira de pensar e se comportar dos sujeitos que os leem.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Neste trabalho, encontramos inúmeras dificuldades de acesso a informações e


documentos oficiais relativos ao Projeto de Remição pela Leitura da Unidade Prisional
de Tabatinga, em razão de esses dados serem publicados e arquivados em formato físico
e para acessá-los é necessária autorização da SEAP e da Direção da Unidade.
Em levantamento de pesquisas e projetos de atuação dentro da Unidade
Prisional de Tabatinga pelo Centro de Estudos Superiores de Tabatinga – CESTB/UEA,
somente foi encontrada uma pesquisa desenvolvida pelo curso de Pedagogia, que
destaca o processo de formação do aluno-detento, através do Programa Nacional de
Integração da Educação Profissional com a Educação Básica, na modalidade de
Educação de Jovens e Adultos. Este é o único programa de cunho educacional existente
no presídio que, somado ao fato de que nenhuma outra instituição educacional realiza
trabalhos formativos naquele espaço prisional, mostra que a ciência, a educação, a
literatura, a arte de uma maneira geral continua sendo tratada como um privilégio, e não
como direito fundamental de todos, principalmente de grupos marginalizados, como é o
caso dos que estão nos estabelecimentos prisionais.
A remição pela leitura na Unidade Prisional de Tabatinga é uma atividade
educacional complementar que foi instituída em 18 de agosto de 2021 pelos órgãos
responsáveis pela concretização do direito à remição de pena: o Juízo de Execução
Penal da Comarca de Tabatinga/AM, a Defensoria Pública do Estado do Amazonas, o
Ministério Público do Estado do Amazonas, com a participação da Direção do Presídio
e da Secretaria Municipal de Educação de Tabatinga/AM.
O projeto assegura a participação a presos nacionais e estrangeiros submetidos
a prisão cautelar, provisória, preventiva ou definitiva. E em seu artigo 5º incumbe a
direção do presídio de encaminhar mensalmente ao juízo de execução penal cópia do
registro de todos os participantes do projeto com informações sobre a obra literária lida
de cada participante. Além disso, a direção fica responsável por integrar as práticas
educativas às rotinas e difundir informações incentivando a participação dos presos.
A direção do presídio externa que o número de servidores é insuficiente para
atender às demandas administrativas e atividades de rotina do estabelecimento prisional
de Tabatinga/AM, que abriga uma população carcerária significativa e acima da
capacidade, o que nos deixa a pergunta de como uma equipe assoberbada de trabalhos e
sem qualquer auxílio do Poder Público poderia conduzir um projeto dessa dimensão.
A Secretaria Municipal de Educação na função de Comissão de Validação fica
apenas responsável por designar 3 (três) servidores responsáveis para definir a obra a
ser disponibilizada, inclusive obras doadas ao acervo da biblioteca do estabelecimento
prisional, bem como avaliar as resenhas apresentadas pelos internos participantes do
programa de remição pela leitura. A avaliação, de acordo com artigo 7º do projeto,
prevê o reconhecimento de resenha escrita da leitura e resenha oral do preso que tiver
dificuldade de escrita formal.
Após a validação da resenha, o resultado é enviado ao Juiz de Execução Penal
para apreciação. A cada obra lida a pessoa privada de liberdade terá direito de remir 4
(quatro) dias de sua pena, e ao final de até 12 (doze) obras efetivamente lidas e
avaliadas, terá direito de remir 48 (quarenta e oito) dias de sua pena, ou seja, a remição
pela leitura está limitada a 12 (doze) obras literárias por ano.
A partir destas bibliografias, não se pode olvidar os avanços que houve no
sistema prisional brasileiro, como a criação da Lei de Execução Penal e outras leis e
doutrinas que esculpem a proposta de tratamento digno e humano para a pessoa privada
de liberdade. Ademais, os operadores do direito e a administração do presídio do
município de Tabatinga demonstram preocupação em garantir e concretizar direitos que
auxiliam na ressocialização e na humanização do espaço prisional, reconhecem a
realidade deficitária do município em relação à educação, bem como, utilizam a
cooperação institucional para tornar possível a remição pela leitura no estabelecimento
prisional de Tabatinga/AM.
Existem no município Escolas Municipais, Estaduais, Instituto de Educação,
Ciência e Tecnologia do Amazonas- IFAM, Centro de Estudos Superiores de Tabatinga
– CESTB/UEA, Campos da Universidade Federal do Amazonas – UFAM em Benjamin
Constant, município vizinho de Tabatinga, e outras instituições de educação superior
privadas. Apesar disso, verifica-se que o projeto de remição pela leitura instituído na
Unidade Prisional de Tabatinga/AM não trata a literatura com profundidade, como um
direito ou uma via de formação humana, de fato. O projeto não conta com uma
curadoria especializada, nem na elaboração e nem na condução do projeto dentro do
presídio. São os poucos servidores do estabelecimento prisional, assoberbados de
trabalho, os principais atores do projeto de remição pela leitura.
Um médico, tendo hipoteticamente um familiar acusado criminalmente, não
saberá e nem poderá assistir esse familiar perante o Juiz, já que para realizar isto, seria
necessário conhecimento técnico sobre ritos, trâmites processuais e capacidade
postulatória (inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil - OAB). De igual modo, um
advogado num centro cirúrgico não saberá e nem poderá realizar qualquer
procedimento, já que não possui o conhecimento necessário e inscrição junto ao
Conselho Federal ou Regional de Medicina (CFM/CRM). O exemplo acima expõe que
a formação do profissional é importante e deve ser considerada na criação e condução
de determinadas atividades. Se para advogar é necessária inscrição na OAB e para
realizar procedimentos cirúrgicos é necessária licença do CFM/CRM, por que para
atividades que envolvem literatura e formação de leitores a qualificação é dispensável?
A despeito da existência de diversas instituições de educação e pesquisa no
município de Tabatinga/AM, o projeto de remição pela leitura em questão não
consultou em sua elaboração profissionais de Letras ou Literatura, nem tampouco as
pessoas presas, ignorando o processo formativo democrático de modo a não permitir
prosperar um espaço de leitores literários autônomos e capazes de escolher o que deseja
ler.

Imagem 1: Artigo 7º do Projeto de Remição pela Leitura.

Fonte: Unidade Prisional de Tabatinga/AM, 2022.


Compreende-se a criação de Comissão de Validação para avaliar as resenhas,
para atestar se de fato a pessoa leu a obra literária e para que a remição seja declarada
concretamente. Todavia, o que não é aceitável é os integrantes desta comissão definirem
a obra a ser disponibilizada e, desse modo, mediar as escolhas dos leitores.
Isto evidencia a articulação de uma tendência disciplinar que rouba o direito de
escolha do participante, limita as opções de leitura ao repertório e conceito de literatura
dos integrantes da comissão de validação, transformando-se em uma comissão de
filtragem, ou seja, ao invés de contribuir para que o direito à remição pela leitura seja
garantido a toda pessoa que cumpre pena, a comissão filtra as obras que serão
disponibilizadas, induzindo o leitor a escolher textos pedagógicos, moralizantes e
religiosos, conforme se constatou em visita realizada naquele estabelecimento prisional,
onde o diretor do estabelecimento informa que não pode qualquer obra literária entrar
naquele espaço.
A literatura, nestas circunstâncias, aparece como mais uma pena, uma
condenação/imposição que ignora a subjetividade que cada leitor possui e compromete
a motivação e a afetividade do leitor com o livro. Retira o que se pretende com a leitura
no espaço prisional, que é o entretenimento, o prazer, o acesso à cultura, direitos que
todo ser humano deve acessar durante sua formação e em qualquer espaço social.
A visita, previamente autorizada pela direção, realizada na Biblioteca e na Sala
de Aula da Unidade Prisional de Tabatinga, foi acompanhada por um servidor da
administração e um interno, o qual é responsável por organizar o acervo da unidade e o
único que possui acesso direto ao acervo bibliotecário, em virtude de seu trabalho.

Imagem 2: Biblioteca da Unidade Prisional de Tabatinga/AM

Fonte: Thiago Gomes, 2022.


A biblioteca daquele estabelecimento funciona numa cela que antes se
destinava à acomodação de pessoas privadas de liberdade, no Raio I, o qual é destinado
aos internos em remição. Ao lado desta cela existem outras celas com pessoas presas,
todas mantidas trancadas, inclusive a cela da biblioteca que foi aberta somente para a
visita, o que nos instiga a refletir sobre como poderia a pessoa presa se interessar por
um espaço que sequer tem acesso, tendo em vista que a biblioteca é mantida inacessível.
O acervo existente é constituído de doações feitas pelas igrejas do município e
outras instituições educacionais. Este fato evidencia que o Poder Executivo Estadual e o
Municipal não promovem políticas que visem oferecer suporte e estrutura ao
desenvolvimento do Projeto de Remição pela Leitura dentro do estabelecimento
prisional de Tabatinga/AM. Os textos recebidos pelo estabelecimento, que compõem o
acervo usado para leitura, na sua maioria, não são livros literários, mas textos
pedagógicos, didáticos, textos bíblicos, fábulas, e todos escritos em língua portuguesa, o
que desconsidera a realidade cultural local, os estrangeiros, indígenas e demais pessoas
presas que não falam português.
Desde a criação do projeto foram realizadas três rodadas de leitura nos meses
de abril, maio e junho de 2022 e, deste então, o projeto encontra-se paralisado. Nessas
três oportunidades, os envolvidos na condução do projeto estabeleceram critérios
relacionados à disciplina e obediência como condição para participação no projeto.
Ocorre aqui muito mais do que a restrição do acesso ao direito à remição pela leitura, os
internos também estão sendo privados do direito à cultura, ao lazer, ao entretenimento e,
consequentemente, à ressocialização.
Durante a visita, os alunos que estavam em sala de aula, principalmente o
interno que acompanhava a visita, se mostraram extremamente interessados pelo
assunto. O interno que acompanhou a visita relatou que já leu alguns dos textos que
existem na biblioteca. Em nenhum momento foi mencionado ou demonstrado interesse
exclusivo à remição pelos internos com que tivemos contato, eles apenas demonstram
sentir que a leitura dos textos disponibilizados para eles oferecem a possibilidade de
refletir o que o levou à prisão e relata buscar nesses textos a salvação, a remissão pelos
pecados, além de considerarem uma oportunidade para aprender e aprimorar
competências acadêmicas.
Constata-se aqui uma operação do sistema penal por meio da mente, para assim
controlar os corpos das pessoas que estão presas. Para não ser transformado num
delinquente e sofrer de maneira mais severa nas operações do sistema prisional, como
na limitação de acesso ao direito de remição, banho de sol, e privação de demais
atividades, o referido interno apresenta uma manifestação que não é natural e nem
propriamente dele, mas resultado de uma construção comportamental que o sistema
prisional aprecia e que o interno se assujeita para sobreviver na prisão.
A manifestação de um aluno-detento que estava em sala de aula e que disse se
interessar por livros de gastronomia mostra que não há no sistema prisional espaço de
escuta dos interesses dos internos. As atividades são impostas de acordo com os
interesses do sistema penal. Nesta manifestação, existe muito mais do que o interesse
pela leitura, existe aqui a carência de espaços formativos que poderiam beneficiar a
própria instituição penal, caso os internos tivessem a possibilidade de se formar para
produzir sua própria alimentação, a qual é fornecida por empresa privada atualmente.
Não existem naquele estabelecimento prisional oficinas de trabalho nem
tampouco oficinas literárias ou de leitura. Tanto o estabelecimento prisional como o
Projeto de Remição pela Leitura não dispõem de um espaço para leitura ou mesmo para
trabalhos de formação de leitores. Isso mostra que muito ainda há de ser feito para
garantir os direitos da pessoa presa e para que a literatura seja trabalhada de forma
efetiva e não como mais um instrumento de disciplina e adestramento do sujeito que
está preso, cumprindo sua pena e em ressocialização. A observância da lei que prevê a
remição pela leitura mostra-se insuficiente para garantir que esse direito seja de fato
acessado por toda pessoa presa.
Diante da população carcerária que atualmente é de 198 internos entre
brasileiros, estrangeiros e indígenas, o número de servidores mostra-se aquém e
sobrecarregado para desenvolver as atividades administrativas, atividades de rotina e,
além da falta de pessoal, sem qualificação para conduzir o Projeto de Remição pela
Leitura na Unidade Prisional de Tabatinga/AM, o que afeta diretamente o acesso da
pessoa presa à cultura, à literatura e ao direito de remição.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, buscamos investigar o Projeto de Remição pela Leitura pensando
o espaço prisional como um espaço de formação de leitores literários autônomos.
Atento às operações do sistema penal sobre as escolhas, as ações e mente dos corpos
que ali estão, conforme explicado por Foucault, tira-se das análises a importância e
urgência de pensar em ações que visem abrir na prisão espaço destinado à leitura e
formação de leitores, com estrutura, com profissionais qualificados, e não sem qualquer
preocupação, improvisado, como ocorre no estabelecimento prisional de Tabatinga/AM.
Apesar de ainda haver a necessidade de aprofundar estudos através de
entrevista com os atores envolvidos na criação do projeto, o que se pretende em
próximas etapas desta pesquisa, não resta dúvidas que as ações de formação de leitores
inexistem e que a leitura aparece como um favor do poder público, prestado de qualquer
forma à pessoa presa, e não um dever que é previsto em Lei.
Diante da falta de estrutura na condução do projeto no que concerne à ausência
de preocupação com a literatura, o Centro de Estudos Superiores de Tabatinga –
CESTB/UEA mostra-se uma instituição que muito pode contribuir para democratizar a
literatura e pensar formas de levá-la a espaços discriminados e esquecidos, como é o
caso da Unidade Prisional de Tabatinga.
Conclui-se que a literatura deve ser vista não como uma inimiga, mas uma via
para o processo de ressocialização e que, por esse motivo, deve ser acessada por toda
pessoa presa. A leitura não pode ser convertida num instrumento de adestramento e
disciplina dentro do espaço prisional. A leitura literária deve ir muito além da remição,
é preciso incluir nesse processo a compreensão de que a literatura é um bem que deve
ser democratizado e que para o ambiente prisional é um elemento formativo que
beneficia a pessoa presa, ao estabelecimento prisional e a sociedade.

REFERÊNCIAS:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília/DF, outubro 1988.

BRASIL. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.


Brasília: MEC, 1996.

BRASIL. Lei nº 13.696, de 12 de julho de 2018. Institui a Política Nacional de Leitura e


Escrita.

BRASIL. Lei nº 7.210, DE 11 DE JULHO DE 1984. Lei de Execução Penal,


Brasília/DF, jul. 1984.

BRASIL. Lei nº 12.433, de 29 de junho de 2011. Altera a Lei nº 7.210, de 11 de julho


de 1984 (Lei de Execução Penal), para dispor sobre a remissão de parte do tempo de
execução da pena por estudo ou por trabalho.

CANDIDO, Antônio. Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades/ Ouro sobre azul,
2004.
COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Tradução de Laura Taddei Brandini.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Regras de Mandela: regras mínimas


padrãodas Nações Unidas para o tratamento de presos. Brasília: CNJ, 2016.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 391, de 19 de maio de 2021;

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. População Estimada:IBGE, 2021.

Disponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/am/tabatinga.html. Acesso


em: 22 de nov. 2022.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de


Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.

MAGALHÃES, Hilda Gomes Dutra. A importância das leituras de livre escolha na


formação do leitor. Via Atlântica, n. 14, p. 119-128, 2008.

ROUXEL, Annie. Práticas de leitura: quais rumos para favorecer a expressão do


sujeito leitor?. Cadernos de pesquisa, v. 42, p. 272-283, 2012.

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