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g00146-dez-2021-grad-ead/)

1. Introdução
Para dar início ao estudo da disciplina Antropologia, Ética e Cultura, é impres-
cindível lembrar a importância deste estudo para todos os cursos de gradua-
ção, em todas as grandes áreas de formação, tais como a Saúde, Educação,
Gestão e Administração, Engenharias etc.

O Ensino Superior é o passo mais complexo na educação formal, possível so-


mente diante da conclusão da Educação Básica, que, no Brasil, abrange desde
a Educação Infantil até o Ensino Médio. Conforme a Base Nacional Comum
Curricular (2018) de�ne:

No novo cenário mundial, reconhecer-se em seu contexto histórico e cultural,


comunicar-se, ser criativo, analítico-crítico, participativo, aberto ao novo, colabora-
tivo, resiliente, produtivo e responsável requer muito mais do que o acúmulo de in-
formações. Requer o desenvolvimento de competências para aprender a aprender,
saber lidar com a informação cada vez mais disponível, atuar com discernimento e
responsabilidade nos contextos das culturas digitais, aplicar conhecimentos para
resolver problemas, ter autonomia para tomar decisões, ser proativo para identi�-
car os dados de uma situação e buscar soluções, conviver e aprender com as dife-
renças e as diversidades.

Assim, guiando-nos pela legislação brasileira e de acordo com os desa�os hu-


manos que são reconhecidos mundialmente, o desenvolvimento do pensa-
mento crítico-re�exivo pode ser considerado o maior objetivo da Educação
Básica, pela qual você passou para chegar até aqui – isso tendo em vista tanto
a sua participação responsável e cidadã quanto a preparação para o mundo do
trabalho.

Bom, mas quais são os objetivos da Educação Superior? E por que ela é chama-
da de “superior”?

O cenário descrito envolve inovação constante, o que requer ampla quali�ca-


ção – plural e dinâmica, de modo a alcançarmos o nível mais elevado, que é o
da produção do conhecimento. “Produção do conhecimento” refere-se às pes-
quisas cientí�cas, que são realizadas desde a graduação até o pós-doutorado,
mas também diz respeito a produzir soluções para o dia a dia. O pro�ssional
graduado será requisitado pela sociedade a ser aquele que resolve: ou porque
possui conhecimento prévio ou porque sabe onde e a quem consultar para ob-
ter as respostas de que necessita. De maneira simples, podemos considerar
que, depois de formado, você ouvirá, várias vezes, as pessoas dizerem: “Você,
que estudou, dê um jeito nisso!”. Portanto, não é à toa que o aluno é tão cobrado
e estimulado, pois, se o ensino é superior, requer, também, uma dedicação su-
perior!

A universidade, por analogia, abrange um universo de saberes e deve ser o lu-


gar dinâmico em que o conhecimento alcança o seu nível mais elevado em to-
das as áreas. Diferentemente de um curso pro�ssionalizante, o curso universi-
tário – a graduação – deve graduar seu aluno para superar o nível meramente
técnico, desenvolvendo aprendizado detalhado de sua área especí�ca e tam-
bém o conhecimento mais universal.

Comparativamente, assim como seria estranho um pedreiro executar o projeto


de uma casa sem levar em conta que ela será habitada por pessoas, também
não é razoável realizar um curso de graduação sem conhecer o ser humano
sob diversos aspectos – inclusive do ponto de vista da Antropologia. A�nal,
somos seres humanos integrais e precisamos de formação que permita nos
reconhecermos enquanto tais.

Como defende a Missão do Claretiano – Rede de Educação:

Capacitar a pessoa humana para o exercício pro�ssional e para o compromisso


com a vida, mediante a sua formação integral; missão essa que se caracteriza pela
investigação da verdade, pelo ensino e pela difusão da cultura, inspirada nos valo-
res éticos e cristãos e no carisma Claretiano que dão pleno signi�cado à vida hu-
mana (PEC, 2012, p. 17).
Ou seja: é desejado que os pro�ssionais de nível superior sejam pessoas ple-
nas, capazes de propagar a plenitude da vida. Isso signi�ca estabelecer-se no
mercado de trabalho e na vida em sociedade, mas mantendo e reforçando o
compromisso humano e solidário.

Vale destacar que o princípio da solidariedade ofereceu a base para a constru-


ção de vários instrumentos legislativos em todo o mundo ao longo da História
Contemporânea – desde as constituições da França, promulgadas após a
Revolução Francesa (1789), a Constituição do México de 1917, a Constituição da
Alemanha de 1919 e a Constituição da Itália de 1948.

Não obstante, a solidariedade entre pessoas de todos os povos se tornou um


dos principais objetivos de todos os seres humanos com a promulgação da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948.

A própria Constituição do Brasil de 1988 explicita este princípio, que orienta,


em seu artigo terceiro:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e re-


gionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 1988).

Portanto, o estudo que realizaremos é de suma importância e se aplica a todos


os contextos possíveis da educação em nível superior.

Posto isso, gostaria de apresentar, de maneira resumida, algumas característi-


cas desta disciplina.
A Antropologia, assim como a Sociologia, é uma área do conhecimento que
surgiu no século 19, como resultado das grandes transformações que abala-
ram a Europa e o mundo desde o início da Idade Moderna. Contudo, enquanto
a Sociologia se preocupava com os rumos da sociedade após a Revolução
Industrial (século 18), a Antropologia preocupava-se em estudar os agrupa-
mentos humanos considerados “primitivos” ou “selvagens”, que estavam cada
vez mais escassos devido aos processos de colonização europeia no continen-
te americano e no continente africano.

Inicialmente, os antropólogos preocuparam-se em legitimar os massacres


ocasionados pelo colonialismo e imperialismo europeu. Analisando os povos
“exóticos”, de acordo com a metodologia oferecida pelo positivismo e pelo evo-
lucionismo, suas concepções eram voltadas para “conhecer, estudar, transfor-
mar, cristianizar e dominar os povos colonizados” (COLAÇO, 2011, p. 20). Ou se-
ja, o principal objetivo era tornar os povos colonizados “mais evoluídos”, de
acordo com as concepções europeias de progresso, deixando para trás aqueles
que não se adaptassem. O intuito era contribuir para a evolução natural da es-
pécie humana. Desse modo, foram realizadas classi�cações de acordo com ca-
racterísticas biológicas/raciais, assim como de seus padrões de comporta-
mento social.

De acordo com Copans (1971, p. 18-20 apud COLAÇO, 2011, p. 21):

Neste contexto, as sociedades “primitivas” são consideradas os antepassados da


sociedade ocidental contemporânea. Há uma classi�cação dos diversos estágios
que obrigatoriamente todas as sociedades passariam, veri�cadas nas formas de
produção (Marx e Engels), nas formas de parentesco (Morgan, Banchofen) e nas
formas de Direito (Sumner Maine).

Nesse sentido, considerando, resumidamente, Henry Lewis Morgan


(1818-1881) defendeu que o desenvolvimento das sociedades acontece em três
níveis ou etapas: selvageria, barbárie e civilização. Já James Frazer
(1854-1941) acreditou que o desenvolvimento das sociedades acontece a partir
das seguintes fases: da magia, da religião e da ciência. E Sir H. Sumner-Maine
(1822-1888) mostrou que as sociedades vão de um estágio arcaico (sem
Direito), passando pelo tribal (surge o Direito) e, saindo da condição nômade
para a sedentária, desenvolve a noção do pertencimento a um território e as
primeiras codi�cações do Direito escrito (COLAÇO, 2011, p. 22).

Contudo, com o passar do tempo, no século 20, os antropólogos tornaram-se


defensores da diversidade cultural, livrando-se do juízo de valores estabeleci-
do dentro do processo de colonização. Assim, foi considerada a noção de etno-
centrismo, que de�ne o comportamento de quem toma a própria etnia e cultu-
ra como superiores às demais. Em contraposição a essa forma etnocêntrica de
ser e agir, temos a compreensão da pluralidade cultural, que consiste no reco-
nhecimento da diferença entre diversas formas culturais, sem estabelecer dis-
tinção hierárquica entre elas, julgamento ou juízo de valor. Trata-se, apenas,
de situar cada qual em seu contexto.

Nesse sentido, Franz Boas (1858-1942) opôs-se ao evolucionismo e valorizou a


cultura desenvolvida e aplicada na vida cotidiana em relação a uma cultura
o�cial e que era considerada superior. Em sua obra  A mente do ser humano
primitivo:

Boas desmonta de�nitivamente o conceito de raça e evolução ontogênica como pa-


radigma do pensamento antropológico e estabelece os métodos e os critérios para o
trabalho de campo que até hoje ajudam a guiar os antropólogos. Ele consegue reu-
nir nesta obra os principais temas da Antropologia e traz para a discussão a�rma-
ções como, por exemplo, a não existência de raças humanas totalmente de�nidas,
demonstrando que nenhum grupo humano é biologicamente superior a outro
(PEREIRA, 2011, p. 104).

A partir dos estudos de Bronislaw Malinowski (1884-1942), o trabalho de pes-


quisa de campo torna-se essencial para o antropólogo. Assim, propunha a al-
teridade (colocar-se no lugar do outro) como um elemento basilar para o estu-
do antropológico e para o entendimento da sociedade na qual aquele que pes-
quisa vive. Em seu livro Crime e Costume na Sociedade Selvagem, ele reforça
a necessidade de uma “jurisprudência antropológica” nascida do contato com
os “selvagens”, tratando dos problemas, dos costumes, família, posses, ou seja,
das questões básicas em que se assenta o Direito.

Alfred Radcliffe-Brown (1881-1955), por sua vez, relata que nem todas as socie-
dades se organizam com uma relação passado e presente, ou seja, tomando
uma história linear para pensar a própria existência. Assim, a sociedade do
outro deve ser pensada de acordo com os termos do outro, com observação di-
reta das ações cotidianas, descrição e comparação (COLAÇO, 2011, p. 23-24).

No Brasil, podemos destacar o trabalho de Darcy Ribeiro (1922-1997), elucidan-


do as diversas matrizes culturais que compõem a população brasileira, esta-
belecendo a diversidade como característica que a de�ne de maneira singular.
Sem dúvida, trata-se de um dos maiores intelectuais do País. Em seu estudo
da cultura brasileira, procura estabelecer critérios que identi�quem esse povo.
Nas palavras do prefácio de seu livro O povo brasileiro (1995, p. 16):

Nos faltava, por igual, uma tipologia das formas de exercício do poder e de militân-
cia política, seja conservadora, seja reordenadora ou insurgente. Toda politicologia
copiosíssima de que se dispõe é feita de análises irrelevantes ou de especulações �-
losofantes que nos deixam mais perplexos do que explicados. Efetivamente, falar
de liberais, conservadores, radicais, ou de democracia e liberalismo e até revolução
social e política pode ter sentido de de�nição concreta em outros contextos; no nos-
so não signi�ca nada, tal a ambiguidade com que essas expressões se aplicam aos
agentes mais diferentes e às orientações mais desconexas.

Dito de outro modo, diante da grandiosidade territorial e da diversidade huma-


na que há no Brasil, diversas de�nições que �guram claras na política euro-
peia e mesmo norte-americana não se aplicam da mesma maneira ao nosso
País. Esquerda e direita, progressista, liberal e conservador, entre outros ter-
mos da política, precisam ser repensados de acordo com o contexto brasileiro,
para, então, podermos entender um pouco do que se passa no cenário político
nacional.

O mesmo acontece no que diz respeito à cultura:


Faltava ainda uma teoria da cultura, capaz de dar conta da nossa realidade, em que
o saber erudito é tantas vezes espúrio e o não-saber popular alcança, contrastante-
mente, atitudes críticas, mobilizando consciências para movimentos profundos de
reordenação social. Como estabelecer a forma e o papel da nossa cultura erudita,
feita de transplante, regida pelo modismo europeu, frente à criatividade popular,
que mescla as tradições mais díspares para compreender essa nossa nova versão
do mundo e de nós mesmos? Para dar conta dessa necessidade é que escrevi O
Dilema da América Latina. Ali, proponho novos esquemas das classes sociais, dos
desempenhos políticos, situando-os debaixo da pressão hegemônica norte-
americana em que existimos, sem nos ser, para sermos o que lhes convém a eles
(RIBEIRO, 1995, p. 16).

Desse modo, mesmo no Brasil, a Antropologia debruçou-se sobre a de�nição


de critérios hábeis para permitir entender a produção cultural e as soluções
para o cotidiano – neste caso, muitas vezes, produzidas fora das universida-
des, nos saberes populares e cotidianos dentro do processo histórico. Contudo,
isso não diminui ou invalida a importância do conhecimento cientí�co no
País; apenas o diferencia daquele produzido nas demais nações da Europa e
do mundo.

Tais pensamentos e pensadores da Antropologia animam nossos estudos e


ensejam um tipo de atitude que é essencial ao educador e ao estudante, ao pro-
�ssional e ao cidadão. En�m, permitem rea�rmar, de maneira mais quali�ca-
da e consciente, nossos compromissos como seres humanos.

A partir da Antropologia e dessa atitude solidária, realizaremos um estudo in-


terdisciplinar, que se propõe a ancorar nossos entendimentos na ética, no res-
peito aos outros e a nós mesmos.

Se o conjunto de disciplinas especí�cas de cada curso remete ao fazer alta-


mente quali�cado, nesta disciplina institucional, temos o desa�o do aprimora-
mento do ser: sermos melhores – esse é o resultado almejado. Mais que con-
teúdos programáticos a serem comprovados por meio de instrumentos avalia-
tivos, a proposta é que o aluno se aproprie de tais conhecimentos, seja desa�a-
do pelas atividades e consiga gradativamente compor uma sabedoria de mun-
do útil para a vida.
Assim sendo, desejamos excelentes estudos!

2. Informações da Disciplina
Ementa
A Antropologia, Ética e Cultura, no contexto das disciplinas institucionais,
ofertada nos cursos de graduação do Claretiano – Rede de Educação, tem o
propósito de subsidiar o corpo discente quanto à importância da formação in-
tegral do ser humano na sua relação consigo mesmo, com o outro, com a natu-
reza e com o transcendente. A disciplina propõe a re�exão sobre o ser humano
como ser �nito e, ao mesmo tempo, como ser de liberdade, de consciência e de
amor. Para isso, é discutido o conceito de pessoa, numa perspectiva sincrôni-
ca e diacrônica, entendido nas suas dimensões biológica, psicológica, social e
espiritual. Os temas, tais como imanência, transcendência, alteridade, multi-
culturalidade, ética, moral, cidadania, entre outros, serão apresentados dentro
da área especí�ca vinculada ao curso em que a disciplina está alocada. E se-
rão tratados, também, nessa mesma perspectiva, alguns temas transversais,
como os direitos humanos, as histórias e culturas afrodescendentes e indíge-
nas, as questões de gênero, sexualidade e família, as políticas a�rmativas, in-
clusão e acessibilidade e a educação ambiental numa dimensão ético-
planetária. A proposta, no seu conjunto, está fundamentada no Carisma
Claretiano, no Projeto Educativo e nos Princípios estabelecidos pela
Instituição, visando uma educação pautada em valores éticos e cristãos, aber-
ta ao diálogo e crítica a toda forma de preconceito e fundamentalismo.

Objetivos Gerais
• De�nir o que é antropologia a partir da conceituação de pessoa, numa vi-
são sincrônica e diacrônica, tendo como referência a cultura ocidental.
• Conhecer o conceito de pessoa no Projeto Educativo Claretiano e as impli-
cações no campo da educação confessional e laical da sociedade contem-
porânea.
• Enfatizar a responsabilidade do corpo discente, como futuro pro�ssional,
para compreender o ser humano como pessoa e contribuir efetivamente
para uma sociedade mais humana e sustentável.

Objetivos Especí�cos
• Identi�car a distinção entre natureza e cultura, visando a compreensão
do ser humano como ser de projeto, e, portanto, distinto dos demais seres
da natureza.
• Conhecer o método de investigação da Antropologia e sua forma de abor-
dar o ser humano.
• Compreender as diversas concepções de dignidade humana no decorrer
da história ocidental e conhecer quais foram os grupos sociais com maior
possibilidade de desfrutá-la.
• Compreender o ser humano com uma visão humanista.
• Conhecer a visão de ser humano do Claretiano – Rede de Educação, con-
forme o seu Projeto Educativo e a Carta de Princípios que orienta a vida
educativa.
• Entender a ética como estudo da moral, mostrando a relação de reciproci-
dade entre elas e suas respectivas distinções.
• Reconhecer os campos de atuação da ética, enfatizando sua importância
nas relações humanas e na vida em sociedade.
• Re�etir sobre a questão dos preconceitos e dos fundamentalismos no atu-
al contexto social e político mundial e brasileiro, entendendo como postu-
ras que se apresentam como contrárias à uma visão ética e cidadã.
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Ciclo 1 – A Dimensão Antropológica do Ser Humano

Sávio Carlos Desan Scopinho

Objetivos
• Entender a distinção entre natureza e cultura, visando à compreensão
do ser humano como ser de projeto e, portanto, distinto dos demais seres
da natureza.
• Conhecer a importância do símbolo como expressão do ser humano, que
procura dar signi�cado às suas ações e se coloca como uma forma de
comunicação que transmite uma determinada compreensão de mundo.
• Estudar a linguagem como característica antropológica e como meio
que atribui signi�cado à existência humana, possibilitando a comunica-
ção verbal e escrita, entre outras formas de expressão.

Conteúdos
• Distinção entre natureza e cultura.
• Ser humano como ser simbólico.
• Linguagem como característica antropológica.

Problematização
O ser humano é um ser cultural? Como podemos considerar o ser humano di-
ante da natureza? Como entender o ser humano enquanto ser simbólico? O
que são símbolos? Qual é o papel da linguagem humana? Quais são as dife-
rentes formas com que a linguagem interfere na vida?

Orientação para o estudo


O estudo da Antropologia é marcado pela relação entre diversos conteúdos e
áreas do conhecimento, por ser muito abrangente e complexo. Dessa forma,
requer um conhecimento básico dos conceitos que serão apresentados. Para
isso, sugere-se uma busca nos dicionários, principalmente de Filoso�a e, es-
peci�camente, de Antropologia.

Além de englobar e se referir a diversos conteúdos relacionados à cultura,


linguagem, entre outros, o estudo da Antropologia não se refere somente à
compreensão do ser humano numa única ciência, mas abrange várias disci-
plinas que se relacionam, tais como: História, Biologia, Filoso�a, Teologia, en-
tre outras. Dessa forma, esta é uma área interessante para o ensino e para a
aprendizagem, visto que é interdisciplinar, quando não transdisciplinar, en-
volvendo várias áreas do conhecimento.

1. Introdução
Para estudar a disciplina e ter clareza do conteúdo que será apresentado, é im-
portante entender quem é o ser humano. Na história da humanidade, sabe-se
de muitas e variadas tentativas de compreendê-lo, passando por interpreta-
ções religiosas, �losó�cas, cientí�cas, poéticas, entre outras formas de lingua-
gem, que procuraram elaborar uma leitura coerente desse ser racional e que,
por causa disso, se coloca como diferente de todos os demais seres da nature-
za.

Assim, nosso propósito não é apresentar uma re�exão que considere somente
um estudo mais aprofundado dessas dimensões nem as diferentes formas de
compreensão do ser humano. O objetivo é propor uma tentativa de resposta à
seguinte questão: por que o ser humano é um ser que pergunta diante da reali-
dade que o circunda?

2. Distinção entre natureza e cultura


O ponto de partida para uma resposta coerente ao problema levantado é en-
tender o ser humano como ser de cultura. Muitas de�nições a respeito já fo-
ram elaboradas sobre a respectiva temática, mas, sem entrar na especi�cação
de cada uma delas, partimos do fato de que cultura é uma atitude do ser hu-
mano frente ao mundo. De momento, o importante é saber que "cultura" foi um
termo sintetizado por Edward Tylor (1832-1917) e pode ser entendido como:

[...] um extenso e contínuo processo de seleção e �ltragem de conhecimentos e ex-


periências, não somente de um indivíduo, mas sobretudo de um grupo social; no
entanto, cada grupo distingue-se por uma determinada cultura, com características
próprias (GOMES MACHADO, 2002, p. 11).

Tal compreensão de cultura, presente no universo humano, faz com que se


constate uma diferença substancial com relação aos demais seres da nature-
za, por uma especi�cação bem particularizada. O ser humano, além de se
adaptar ao meio, interage com ele, transformando-o segundo suas necessida-
des, que vão além das exigidas pela própria natureza.

O animal tem uma forma de "responder" à natureza, sem necessariamente


transformá-la. Sua ação é interativa e de adequação aos limites do próprio
meio. Numa linguagem oferecida pelas ciências biológicas, o animal entende-
se como um "sistema fechado", ou seja, sua necessidade é de duas instâncias:
sobrevivência e conservação. Por isso, pode-se a�rmar que ele se adapta ao
meio em que está inserido. O ser animal relaciona-se com seu próprio corpo e
com os demais seres da natureza, segundo leis necessárias e universais.
"Dizer que alguma coisa é natural ou por natureza signi�ca dizer que essa coi-
sa existe necessária e universalmente como efeito de uma causa necessária e
universal" (CHAUÍ, 1994, p. 289). O animal age por instinto, sendo possível pre-
ver seu comportamento ou atitude diante das diferentes situações em que se
encontra.

Por sua vez, o ser humano faz parte de um "sistema aberto". Sua relação com o
mundo não é simplesmente de adaptação, mas de transformação do próprio
meio. É possível a�rmar que "[...] o homem é a única criatura que se recusa a
ser o que ela é" (CAMUS apud ALVES, 1990, p. 14). Sua maneira de se relacionar
com a realidade leva em consideração critérios que não se pautam por leis ne-
cessárias e universais, presentes na natureza - ainda que o positivismo consi-
dere essa possibilidade -, mas por leis históricas e sociais. Nesta perspectiva,
parte-se do princípio de que o ser humano não é simplesmente o seu corpo,
mas ele tem um corpo, no sentido de que os objetos que estão a sua volta se
apresentam como extensão do seu próprio corpo. "Porque o homem, diferente-
mente do animal que é o seu corpo, tem o seu corpo" (ALVES, 1990, p. 16).

O �lósofo E. Cassirer ajuda-nos a entender essa abordagem, quando a�rma que


o ser humano tem uma diferença que não é simplesmente quantitativa, mas,
principalmente, qualitativa, quando comparado com os demais seres da natu-
reza. E isso se deve ao fato de que os seres humanos são capazes de atribuir
sentido às suas ações. Desse modo, a�rma o �lósofo:

É evidente que este mundo não constitui exceção às regras biológicas que gover-
nam a vida de todos os outros organismos. Entretanto, no mundo humano encon-
tramos uma nova característica, que parece ser a marca distintiva da vida humana.
O círculo funcional do homem não foi apenas quantitativamente aumentado; so-
freu também uma mudança qualitativa. O homem, por assim dizer, descobriu um
novo método de adaptar-se ao meio. Entre o sistema receptor e o sistema de reação,
que se encontram em todas as espécies animais, encontramos no homem um ter-
ceiro elo, que podemos descrever como o sistema simbólico. Esta nova aquisição
transforma toda a vida humana. Em confronto com os outros animais, o homem
não vive apenas numa realidade mais vasta; vive, por assim dizer, numa nova di-
mensão da realidade (CASSIRER, 1977, p. 49).

Segundo Cassirer (1977), o sistema simbólico apresenta-se como diferenciador


das relações entre os seres humanos e os demais seres da natureza. Essa situ-
ação faz com que se a�rme que o ser humano é o único ser capaz de perguntar.
Assim, essa capacidade de perguntar é uma característica inerente ao ser hu-
mano.

Na medida em que o ser humano tem consciência do mundo à sua volta, as


perguntas aparecem como consequência inevitável. Na tradição ocidental, as
questões foram surgindo à medida que o ser humano se encontrava em conta-
to com a natureza, consigo mesmo e com o próprio mundo. Desde os pré-
socráticos da civilização grega antiga até os dias atuais, para citar um exem-
plo a partir da civilização ocidental, o ser humano vem se perguntando sobre
grandes questões que desa�am a humanidade: Quem sou? De onde vim? Para
onde vou? As respostas nem sempre foram satisfatórias, mas as tentativas
apareceram e remeteram a outras questões. Gerou-se, assim, um processo dia-
lético e contínuo que simplesmente con�rma a ideia de que, enquanto ser de
cultura, o ser humano é um ser que pergunta.

Na origem, na raiz do perguntar, encontramos, portanto, a ruptura, a cisão e a con-


tradição. Não sei, preciso saber e porque sei que não sei, pergunto, na expectativa
de que a resposta possa trazer-me o conhecimento que não tenho e preciso ter
(CORBISIER apud COTRIM, s.d. p. 24).

Perguntar pelo sentido da vida, pela origem das coisas e pelo futuro que nos
aguarda se apresentam como questões que fazem parte do universo cultural
do ser humano. Mas o que faz com que o ser humano pergunte? Para respon-
der a essa pergunta - o perguntar pelo perguntar -, temos de entender duas
condições importantes, sem as quais não é possível colocar essa questão. A
primeira é entender o que signi�ca caracterizar o ser humano como um ser
simbólico e a segunda signi�ca entender o ser humano como um ser de lin-
guagem. Essas duas condições possibilitarão o estudo do ser humano como
pessoa, numa perspectiva diacrônica e sincrônica, inclusive sustentando o fa-
to de que é o único ser na natureza capaz de ter consciência de sua condição
ética e moral nas relações pessoais e sociais.

 Consulte outros autores e saiba mais sobre natureza e cultura!

Indicamos a leitura da obra de Marilena Chauí, Cultura e democracia


(http://www.cultura.ba.gov.br/arquivos/File/oqeculturavol_1_chaui.pdf)
e também do artigo Os desa�os da Filoso�a no Ensino Médio (https://pe-
riodicos.ufrn.br/saberes/article/view/12224) de Eliane Maria Rozin.

3. O ser humano como ser simbólico


Segundo Cassirer (1977, p. 49): "Em confronto com os outros animais, o ho-
mem não vive apenas numa realidade mais vasta; vive, por assim dizer, numa
nova dimensão da realidade". Assim, �ca a pergunta: o que signi�ca dizer que
o ser humano é um ser simbólico? E para respondê-la, é necessário fazer ou-
tra: a�nal, o que é um símbolo? Na busca de compreender-se no mundo, o ser
humano - não se assumindo como inerente ao próprio mundo, mas como algo
que o transcende - cria realidades que vão além dos elementos encontrados
na natureza. Não ocorre propriamente um desvirtuamento da natureza, mas
uma atribuição de signi�cados que vão além do que se encontra na mesma
natureza.

Para Riffard (1993, p. 331), a palavra "símbolo" (do grego symbolon) foi inicialmente
utilizada entre os gregos para se referir às metades de uma tabuinha que hospedei-
ro e hóspede guardavam, cada um a sua metade, transmitidas depois aos seus des-
cendentes. As duas partes juntas (sumballô) funcionavam para reconhecer os por-
tadores e para provar as relações de hospitalidade ou de aliança adquiridas no pas-
sado (RIBEIRO, 2010, p. 46).

Dessa maneira, conforme Ribeiro destaca a partir da análise semiótica, o sím-


bolo representa algo abstrato, tal qual um compromisso. Para tanto, ele pode
ser algo concreto, cujo valor não é o material de que é constituído, mas aquilo
que ele simboliza.

Por exemplo, os anéis trocados num casamento são símbolos do compromisso


assumido pelo casal, ganhando o nome de alianças.

O sentido da palavra "símbolo" desenvolveu-se bastante, chegando a envolver, por


exemplo, oráculos, presságios, fenômenos extraordinários considerados provindos
dos deuses, emblemas de corporações, crachás e vários tipos de sinais de compro-
misso, como o anel de casamento ou o anel depositado pelos participantes de um
banquete, garantindo que pagarão corretamente por ele. De fato, poucas palavras
adquiriram tão vasta signi�cação como a palavra "símbolo" (RIBEIRO, 2010, p. 47).

O símbolo pode surgir, muitas vezes, de uma necessidade natural ou como re-
sultado de uma convenção social. Mas sempre se trata de uma relação entre
seres humanos, cujo objetivo é estabelecer uma forma de comunicação, a par-
tir de uma linguagem especí�ca dos próprios seres humanos. Assim, o símbo-
lo, para ser compreendido, necessita sempre de um emissor e de um receptor
que estejam em um ambiente cultural propício para que a mensagem seja
compreendida e assimilada por todos os envolvidos. O emissor e o receptor
podem ser uma pessoa ou um povo, que se presume serem sempre capazes de
entender o conteúdo da mensagem que se quer transmitir.

Para o que se propõe neste estudo, basta entendermos que o símbolo se apre-
senta como o primeiro aspecto que possibilita a aquisição da linguagem, em-
bora ele também possa ser entendido como uma forma de linguagem, como se
verá a seguir.

Vamos apresentar um exemplo expressivo para entender o signi�cado da pa-


lavra "símbolo". Quem vai nos ajudar nesta tarefa é a obra O pequeno príncipe.

No capítulo 21 do livro, escrito por Antoine de Saint-Exupéry (1943, p. 55-56), o


pequeno príncipe encontra-se com uma raposa, que lhe faz uma proposta:
deixar-se cativar. Depois de toda uma conversa entre eles, e com a possibilida-
de de não mais se encontrarem, o pequeno príncipe entende que foi ruim te-
rem se cativado, porque permanecerá a saudade de um momento que não vol-
tará novamente. A raposa, por sua vez, apresenta outra visão, dizendo que é
importante que ocorra o envolvimento, mesmo que a separação seja inevitá-
vel, porque o momento que viveram juntos tem sua importância por si só. E é
neste momento que surge a questão simbólica como expressão de uma pre-
sença da ausência. Vamos ver o diálogo que ocorreu entre eles:

Assim o principezinho cativou a raposa. Mas, quando chegou a hora da parti-


da, a raposa disse:
"O essencial é invisível para os olhos", pois o trigo, que não signi�cava nada
para a raposa, tornou-se uma presença da ausência. Por quê? Pelo fato de que
a raposa não come trigo, os cabelos loiros do pequeno príncipe lembram uma
plantação de trigo; logo, aquilo que até então não representava nada para a ra-
posa se tornou uma presença da ausência. Tornou-se um símbolo.

Portanto, o símbolo é o primeiro passo para a realização da linguagem e se ex-


pressa como uma dimensão especi�camente antropológica - inclusive, até
mesmo, como uma forma de linguagem. Assim, como condição para a lingua-
gem, vamos dar o passo seguinte e compreender a importância da linguagem
como um elemento fundamental da cultura.
 Para saber mais!

Sobre o caráter simbólico que envolve o ser humano, indicamos as se-


guintes leituras Elizabeth Johansen e Leonel Brizola Monastirsky intitu-
lada As formas simbólicas de Ernst Cassirer e o conceito de patrimônio
cultural (https://pem.assis.unesp.br/index.php/pem/article/vi-
ew/688#:~:text=Assim%2C%20ao%20utilizar%20Ernst%20Cassirer,com-
preensivo%2C%20do%20que%20apenas%20descritivo)  e Para uma �loso-
�a do símbolo (https://www.uc.pt/�uc/dfci/public_/publicacoes/pa-
ra_uma_�loso�a_do_simbolo) de Miguel Baptista Pereira.

Recomendamos ainda que assista ao vídeo a seguir:

4. Linguagem como característica antropológi-


ca
Diante da capacidade de transformar a natureza e criar símbolos para sua
compreensão da realidade, o mundo humano apresenta-se na forma de lin-
guagem, que possibilita a comunicação. A linguagem se expressa como parte
da cultura, que se origina, por sua vez, por meio dos símbolos, entendidos,
também, como forma de linguagem humana. Esta, por sua vez, pode ser tradu-
zida nas suas mais diversas expressões, como a linguagem mítica, artística,
religiosa, cientí�ca, entre outras, podendo ser compreendidas numa perspecti-
va conceitual (lógica) e emocional (imaginação poética). Tudo isso porque o
ser humano se apresenta como ser de desejo, sempre se colocando como al-
guém que ultrapassa os elementos da natureza.
Assim, na sua dimensão cultural, o ser humano cria símbolos (presença da
ausência), que se traduzem em signos (palavras) e sinais (convenção), que se
tornam expressões da linguagem humana e condição para sua atuação con-
creta no mundo. A linguagem, por sua vez, tem como característica um códi-
go. E por apresentar um código, que expressa uma condição antropológica, ela
se torna a primeira instituição com que nos deparamos já no nosso nascimen-
to. Querendo ou não, somos envolvidos por ela; e, através dela, é que se tem
uma visão do mundo, embora não de maneira determinista. Sua in�uência é
tão signi�cativa que pode ser percebida através de cinco características bási-
cas: a objetividade, a exterioridade, a coercitividade, a autoridade moral e a
historicidade. Isso quer dizer que nosso comportamento está condicionado
por um contexto social e cultural que nos impõe padrões de comportamentos
que interferem na nossa relação com os outros e com a própria sociedade
(BERGER; BERGER apud FORACCHI; MARTINS, 1984, p. 193-199).

No caso da comunicação humana, esse código é a palavra, que pode ser tradu-
zida por meio da linguagem verbal ou não verbal.

Tratando de maneira bem simples, podemos dizer que a linguagem verbal é


aquela escrita ou falada. Já a linguagem não verbal estabelece comunicação
sem o verbo, ou seja, utilizando outros meios, tais como a obra de arte (a dança
e a música instrumental, por exemplo), imagens etc.

Para compreender melhor a questão da linguagem, vamos entender o que nos


diz Rubem Alves (1979, p. 21-39; 1984, p. 7-35). A primeira ideia colocada por
ele é entender a linguagem como rede de palavras que expressa as esferas do
desejo, que, por sua vez, se manifesta no amor ou no medo. Assim, ela expres-
sa três níveis de compreensão: uma forma de poder, apresenta uma determi-
nada cosmovisão e implica numa escala de valores. Vejamos o que signi�ca
cada um deles.

A linguagem como poder expressa o avanço e o diferencial do ser humano em


relação aos demais seres da natureza. Segundo Marshall McLuhan, "[...] a pa-
lavra falada foi a primeira tecnologia por meio da qual o homem se separou do
seu ambiente a �m de se apropriar dele sob uma forma diferente". Por sua vez,
Henri Lefebvre a�rmava que "[...] para o homem social o universo só existe por
meio da sociedade e, consequentemente, por meio da língua". E Ludwig
Feuerbach dizia que "[...] falar é um ato de liberdade; a palavra é liberdade. É
correto, portanto, que a linguagem seja considerada a raiz da cultura" (ALVES,
1979, p. 21).

O fato é que a linguagem surgiu devido a necessidades concretas, como a luta


pela sobrevivência, a necessidade de preservação e a socialização das experi-
ências bem-sucedidas. E, assim, ela tornou-se uma forma de poder.

A linguagem também expressa uma determinada cosmovisão, uma visão de


mundo. Como nos diz Ludwig Wittgenstein, "[...] os limites da minha lingua-
gem denotam os limites do meu mundo" (ALVES, 1979, p. 28), pois ela pode ser
entendida como um "[...] conjunto de sinais fonéticos e/ou grá�cos convencio-
nais, criados pela sociedade a �m de representar para o homem as coisas e su-
as relações, e assim tornar possível a comunicação, necessária à conjugação
da ação" (ALVES, 1984, p. 17). Assim, a linguagem apresenta-se como uma for-
ma de organização do real, fazendo com que nós tenhamos de compreender e
interpretar o mundo das palavras, que começa com a percepção, que, por sua
vez, se inicia com as sensações.

O ato de conhecer é, portanto, um ato de re-conhecer: a constatação da concor-


dância entre dados sensórios novos e as formas memorizadas. A cosmovisão,
o tempo e o espaço humano não poderiam existir sem a linguagem, pois ela se
coloca como uma importante ferramenta criada pelo ser humano, no seu es-
forço para construir um mundo, e que, depois de criada, se transforma de fer-
ramenta em sistema.

Outro aspecto importante da linguagem é a capacidade de expressar um va-


lor. Conhecemos o que nos é alcançado pelo corpo. Para Rubem Alves:

Não é correto separar o conhecimento objetivo das emoções e dos valores. [...] O
verdadeiro conhecimento objetivo brota de uma atitude valorativa e emotiva, e pre-
tende ser uma ferramenta para que o homem integre e�cazmente o referido objeto
no seu projeto de dominar o mundo (ALVES, 1984, p. 26).

Assim, "a vida é relação e, por sua vez, o valor é relação".


O ser humano vê o mundo por meio de uma atitude valorativa, buscando sig-
ni�cado e, assim, dando nomes às coisas. E, na medida em que dá um nome,
cria a palavra, que, por sua vez, expressa um valor. Os valores é que criam a
necessidade e a possibilidade da razão. "É a linguagem comum, como estrutu-
ra de valores, que se constitui na base que poderíamos chamar de comunida-
de" (ALVES, 1984, p. 30).

A partir desses três níveis, podemos dizer que a linguagem, ainda segundo
Rubem Alves, apresenta duas dimensões. Trata-se de uma forma de estrutura-
ção do mundo e, como tal, programa a nossa maneira de organizar os dados
da experiência.

Na feliz sugestão de Michael Polanyi, a linguagem é um mapeamento da realidade


que nos permite apreende-la como um todo estruturado. Nesta função é ela a fonte
das categorias fundamentais do pensamento (ALVES, 1979, p. 37).

Ela é também "expressiva de valores e intenções, revelando-nos um sujeito


oculto, individual ou coletivo, por detrás do discurso, fazendo com que o ser
humano, ainda que não o deseje, se dá a conhecer" [...] E, "[...] �nalmente, a lin-
guagem é uma ferramenta para domínio e controle da realidade" (ALVES, 1979,
p. 37).

Outro aspecto importante é considerar que a linguagem pode ser expressa de


diferentes maneiras (e cada uma delas apresenta uma determinada visão de
mundo, uma forma de poder e um valor). Por exemplo, existe a linguagem reli-
giosa, a linguagem cientí�ca, a linguagem poética, a linguagem política, entre
outras. A di�culdade que se coloca é como reconhecer a autonomia de cada
uma delas sem perder a necessidade do diálogo e o reconhecimento do que
podemos chamar de "autonomia relativa", ou seja, a consciência de que a ver-
dade é uma busca que não se encontra numa única forma de interpretação.

Um tema que tem sido relevante tanto para a linguagem �losó�ca quanto para
a linguagem teológica é a autonomia nas relações humanas, que se manifesta
do ponto de vista natural, social e cultural. Autonomia está vinculada a duas
temáticas de fundo, que são, respectivamente, a liberdade e o condicionamen-
to. Normalmente, nós somos condicionados nas várias situações em que nos
encontramos. Fisicamente, somos chamados a reconhecer nossas limitações
dentro das possibilidades que temos; o fato é que não podemos fazer tudo
aquilo que queremos e de que gostamos. Por outro lado, existe, também, o con-
dicionamento institucional. Somos envolvidos por normas e procedimentos
que limitam nossa capacidade de ação e decisão.

O problema que se coloca é quando os condicionamentos, tanto naturais como


institucionais, impedem a realização de nossas ações dentro do universo tam-
bém natural e cultural. O respeito pela autonomia implica no respeito pela di-
versidade, considerando-se os condicionamentos, mas não se deixando domi-
nar por eles. Nesse sentido, cabe uma re�exão de Hugo Assmann, que, embora
num contexto diferente, nos ajuda a pensar nessa questão:

A criação intelectual requer, sem dúvida, uma boa dose de disciplina e rigor. Isto
implica na adaptação a um mínimo de normas, cuja função é de meio, veículo e
instrumento. O empenho criativo deve encará-los como ajuda à versatilidade.
Ajustar-se a meios e instrumentos pode incrementar a �exibilidade. Só quando não
existe a �echa do desejo, que aponta para além do normativo e energiza o empe-
nho, as regras inevitáveis se transformam em camisa de força domesticadora da li-
berdade de criar. Por exemplo, o mínimo de orientações, a serem seguidas para dar
forma correta e agradável ao texto, não deve ser visto como coerção limitante, mas
como procedimentos para tornar o ato de redigir mais fácil e prazeroso (apud BELO
DE AZEVEDO, 1994. p. 7).

Também nesta discussão sobre a autonomia, faz parte a temática da autoa�r-


mação e da alteridade - sempre dentro de relações bipolares -, que expressam
a diversidade presente na realidade em suas várias formas de manifestação. A
manutenção dos valores e das ações que preservam uma tradição própria, pre-
servando a identidade e a originalidade de uma cultura, devem ser uma preo-
cupação sempre pertinente e necessária. Mas tal comportamento não pode
menosprezar, ou até mesmo eliminar, posições que vão fazer frente às nossas
posições, muitas vezes, já consolidadas.

Para uma melhor compreensão da presente re�exão, recomendamos a leitura da parábola


das rãs, presente na obra O que é religião, de Rubem Alves (1981, p. 119-120).
O reconhecimento da alteridade - do diferente, do plural e do respectivo res-
peito pelo outro -, envolvendo os seres humanos entre si e com a natureza, é
condição fundamental para a teorização e ação, principalmente da ciência e
da religião no mundo atual, tendo presente a questão ecológica. Toda tentativa
unilateral, ainda que expressiva e de grandes proporções, por ótima e positiva
que seja, termina por destruir, de alguma forma, a relação básica entre o ser
humano e seu ambiente, tanto biológico quanto social.

 Amplie seus conhecimentos!

A abordagem sobre a linguagem requer uma atenção especí�ca para os


diversos fatores envolvidos, pois trata-se de uma prática presente em to-
dos os aspectos de nossa vida. Assim, é importante aprofundar os estu-
dos, considerando a referência de Aldair C. Peruzzolo, intitulada
Dimensão humana da comunicação (https://periodicos.ufsm.br/sociai-
sehumanas/article/view/1391).

Para que não remanesçam dúvidas sobre os conteúdos estudos até o momen-
to, é fundamental que você teste seus conhecimentos, respondendo às ques-
tões a seguir.

Assim terminamos este primeiro ciclo, cuja preocupação fundamental foi com
a compreensão do ser humano na sua dimensão social e cultural. Tal aborda-
gem, por sua vez, conduziu para uma re�exão sobre o símbolo e sobre a lin-
guagem e suas diferentes formas de expressão. Agora, vamos entrar em outro
ciclo, que, como complementação do que se estudou até aqui, fará um aprofun-
damento da compreensão do ser humano, a partir de um enfoque ainda mais
particularizado.

5. Considerações
Ao fazermos a distinção entre natureza e cultura, apresentando a dimensão
simbólica e a linguagem como características especi�camente antropológi-
cas, devemos ter em mente, também, a noção de diversidade cultural, ou seja,
o fato de que, diante da multiplicidade de povos e culturas, cada uma deve ser
respeitada.

Observe que não se trata de propor simplesmente uma tolerância, mas de


compreender que existe uma multiplicidade de comportamentos e de relações
culturais. Tolerar, muitas vezes, signi�ca suportar aquilo de que não se gosta.

Nossa discussão sobre cultura visa promover a compreensão de que o ser hu-
mano é um ser que tem um valor em si mesmo. Ele carrega uma dignidade
própria e peculiar, independentemente da cultura à qual pertença.

Nossa comunidade educativa deve, portanto, ter uma concepção ampla de cul-
tura e aberta para acolher a pluralidade ou a multiplicidade cultural do Brasil
e do mundo.

Vale salientar que, em nosso cotidiano, já vislumbramos exemplos signi�cati-


vos de promoção da vida e da cultura humana, com as interações entre profes-
sores, alunos e funcionários de vários estados do Brasil, como é o caso de
Rondônia, Goiás, Minas Gerais, Paraná e Distrito Federal; além das parcerias e
contatos com comunidades educativas claretianas da Argentina, do Chile e da
Colômbia: povos com culturas diferentes, porém unidos para a promoção da
educação de pessoas mais livres, fraternas e humanas.

O princípio educativo do diálogo é o caminho que possibilita uma compreen-


são ampla e abrangente de cultura. No próximo ciclo, vamos re�etir sobre o
homem como ser livre.
(https://md.claretiano.edu.br/anteticul-

g00146-dez-2021-grad-ead/)

Ciclo 2 – O Conceito de Pessoa

Everton Luis Sanches

Objetivos
• Conhecer os pensadores que iniciaram o estudo antropológico e suas
principais preocupações.
• Identi�car o método de investigação da Antropologia e sua forma de
abordar o ser humano.
• Compreender as diversas concepções de dignidade humana no decorrer
da história ocidental e conhecer quais foram os grupos sociais com mai-
or possibilidade de desfrutá-la.

Conteúdos
• Perspectiva diacrônica: a pessoa na história ocidental.
• Perspectiva sincrônica: entre a humanização e a rei�cação.

Problematização
O que signi�ca ser humano (ser um homem ou uma mulher)? É possível de�-
nir o ser humano? Além dos aspectos físicos, o que permite identi�car um
ser humano? Quais comportamentos, ideias e valores você considera huma-
nos e de�nem a sua existência? O que motiva a sua existência enquanto ser
humano? O que motiva você a viver?

Orientação para o estudo


As análises propostas, por tratarem do fenômeno humano, dizem respeito a
todos nós. Assim, é importante aproveitar a oportunidade para desenvolver o
autoconhecimento enquanto se toma contato com múltiplas percepções de
mundo e formas de organizar a vida coletiva.

Mantenha a sua atenção durante a leitura, pois algumas coisas podem não
fazer sentido no início, mas, com a continuidade do estudo, as coisas tendem
a �car mais fáceis. E, se a di�culdade continuar, lembre-se de consultar o di-
cionário (diagramação: é possível linkar com o da SAV?) para ajudar no en-
tendimento de algumas expressões ou conceitos com os quais você ainda
não tenha familiaridade. Persistir é o caminho.

1. Introdução
Falar sobre o ser humano não é nada fácil, especialmente se �zermos uma
abordagem que atravesse um longo período de tempo e diferentes modelos de
civilização. As diversas formas de viver ensejam diferentes percepções e vári-
os usos linguísticos para tratar do mesmo tema. Sendo assim, mesmo a análi-
se mais simples e didática abrangerá muita complexidade.

Diante dessa complexidade, qualquer área da ciência que se aventurar em tal


percurso não poderá fazê-lo sozinha, mas precisará se apoiar também em ou-
tras áreas do conhecimento para elaborar uma análise competente da capaci-
dade humana de ser e existir em diferentes contextos, de amar, odiar e se ar-
mar; de querer, conquistar, perder ou abandonar; de manter padrões de com-
portamento, transformar e revolucionar o funcionamento da vida. En�m, nun-
ca teremos uma compreensão completa de nós mesmos, justamente por ser-
mos tão plurais e dinâmicos. Assim, vamos implementar esse caminho
tomando-o como um recorte possível e responsável, que lançará luz a alguns
aspectos fundamentais do fenômeno humano entre inúmeros outros que per-
manecem a serem desbravados.

Trata-se, portanto, de um estudo interdisciplinar, realizado a partir da


Antropologia; sintético, porém profundo. Desse modo, áreas como a História, a
Filoso�a, a Sociologia e o Direito poderão auxiliar o nosso percurso.

E sobretudo, todo o estudante deve ter em mente, em qualquer área do conhe-


cimento, que não há conhecimentos social, cultural, político, econômico, geo-
grá�co, histórico, biológico ou quaisquer que sejam, que não sejam em seu
mais alto nível de compreensão um conhecimento de si. Dito isso, todo estudo,
quando bem realizado, torna-se transformador para quem o realiza.

Nesse sentido, esperamos que, ao realizar esse estudo seja ampliada a sua
compreensão de si a partir da análise dos mais diferentes "outros" contextos
humanos localizados no espaço e tempo.

2. Perspectiva diacrônica: a pessoa na história


ocidental
O que signi�ca ser humano (ser um homem ou uma mulher)? É possível de�-
nir o ser humano? Além dos aspectos físicos, o que permite identi�car um ser
humano? Quais comportamentos, ideias e valores você considera humanos e
de�nem a sua existência?

Tais perguntas não são fáceis de se responder. Por isso, é fundamental de�nir
claramente o contexto para que se ofereça respostas, precipitando-nos a uma
perspectiva histórica de análise do fenômeno humano, da existência humana.

O existir se mostra, em sua constituição, como �uxo signi�cativo de eventos - é a


condição humana histórica - do mesmo modo a re�exão é um processo de reapro-
priação e de reavaliação interpretativa contínuas abrindo sempre novas possibili-
dades de compreensão. Como enigma prático o existir vai, em sua dinâmica pró-
pria, revelando-se sob novos aspectos, buscando para si sempre novas conforma-
ções. A historicidade é, assim, constitutiva tanto do existir quanto da elucidação in-
terpretativa desse existir (VON ZUBEN, 2016, p. 14).

Uma vez que "humano" e "humanidade" têm sua signi�cação de�nida por es-
tudos e experiências imersos em seus períodos históricos, podemos conside-
rar que, ao longo da história ocidental, foram estabelecidas distinções sobre o
que é ou não humano, sobre o que deve ser valorizado e aquilo que deve ser re-
preendido nos comportamentos.
Assim, temos um percurso de busca, no qual o pressuposto era a mudança de
acordo com padrões mais elevados de humanidade. A vida moderna é, segura-
mente, um produto disso:

O mundo europeu estava em expansão, graças às novas tecnologias de navegação e


ao espírito empreendedor ou aventureiro dos conquistadores espanhóis e portugue-
ses. Uma �loso�a natural, baseada na observação empírica do mundo e no uso do
raciocínio matemático para interpretá-la, estava substituindo as tradições religio-
sas e especulativas, que tinham base na leitura ritual de velhos livros e na autori-
dade estabelecida dos padres. A crença geral era de que essas mudanças eram para
o bem, e eram descritas em termos de "progresso" e "evolução". Mais tarde, econo-
mistas começaram a falar de "desenvolvimento econômico". Muito mais recente-
mente, cientistas sociais adotaram o termo "modernização" (SCHWARTZMAN,
2004, p. 12).

Procurou-se desenvolver um modo de vida, um modelo de civilização e pa-


drões culturais mais racionais, que pudessem tornar a humanidade mais ele-
vada, superando velhas crendices, num processo de modernização constante.
Era preciso cultivar o que fosse no sentido do "progresso" almejado para que
toda a sociedade "evoluísse".

Todavia, do ponto de vista da convivência, é importante considerar a elabora-


ção de entendimentos discriminatórios, subdividindo a humanidade em cate-
gorias, variando de acordo com o grau de adaptação ao sistema dominante.

A situação de interesses político-comerciais e político-sociais costuma então deter-


minar a "visão de mundo". Aquele que em sua conduta de vida não se adapta às
condições do sucesso capitalista, ou afunda ou não sobe (WEBER, 2004, p. 64).

Essa imposição de adaptação às premissas de entendimento do mundo mo-


derno no âmbito político e econômico acabou resultando em diversos con�i-
tos humanos, além de muitos desa�os preexistentes que também permanece-
ram (Quadro 1).

Quadro 1 Os custos dos con�itos em vidas humanas crescem constantemente.


*Nota: os valores da população mundial são estimativas referentes ao meio do século.

Fonte: adaptado de ONU – PNUD (2005).

Considerando as informações do Quadro 1, divulgado pelo Programa das


Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD-ONU) em 2005, podemos cons-
tatar que a estimativa da população mundial morta em con�itos subiu de me-
nos de meio por cento (0,32%) no século 16 para mais de quatro por cento
(4,35%) no século 20. Ou seja: o número de mortes em con�itos aumentou mais
de 13 vezes.

Nesse ínterim, a era moderna teve como resultantes alguns paradoxos: as pes-
soas vivem mais, porém também morrem mais em con�itos; a tecnologia per-
mite maior conforto e plenitude, mas também é e�ciente na fabricação de ar-
mas de destruição em massa.

A idade moderna e contemporânea também é marcada por muitas mudanças


no cerne da humanidade, promovendo maior autonomia e abrindo inúmeras
possibilidades para a população mundial.

Nas sociedades antigas, as pessoas viviam de acordo com suas tradições, em um


mundo dominado por poderes transcendentais, e eram limitadas por um destino
de�nido desde seu nascimento. Com a modernidade, o mundo passou a ser visto
como aberto à compreensão graças ao uso da ciência e da racionalidade, e seus re-
cursos e poderes passaram a ser postos a serviço da humanidade. Ao mesmo tem-
po, o nascimento deixou de ser a fonte do destino. Por meio do trabalho, da dedica-
ção e do uso da inteligência é possível transcender as próprias condições e
responsabilizar-se pela própria vida (SCHWARTZMAN, 1997, p. 11).
Portanto, relacionando os números do relatório e as análises sociais/históri-
cas elencadas, podemos dizer que, num período em que o uso da razão abriu
espaço para que o esforço de cada um fosse valorizado e permitisse melhorar
as suas condições de vida - livrando as pessoas da prevalência das condições
de nascimento -, permaneceu crescente um dos grandes desa�os históricos da
humanidade: aprender a conviver paci�camente.

Seguindo adiante, veri�camos que os con�itos no início do século 21 são dife-


rentes daqueles ocorridos durante o século 20. De acordo com o mesmo relató-
rio:

As instituições internacionais de segurança de hoje foram criadas como resposta


às duas grandes guerras da primeira metade do século XX e às ameaças colocadas
pela guerra fria. O mundo de hoje enfrenta novos desa�os. A natureza e a geogra�a
do con�ito mudaram. Há sessenta anos, uma geração visionária de líderes do pós-
guerra procurou resolver as ameaças colocadas pelos con�itos entre Estados. As
Nações Unidas foram um produto dos seus esforços. No início do século XXI, a
maior parte dos con�itos são dentro de Estados e a maioria das vítimas é civil. Os
desa�os de hoje não são menos profundos do que os desa�os enfrentados há ses-
senta anos (PNUD, 2005, p. 153).

Assim, os desa�os de convivência entre as potências econômicas nacionais


do eixo socialista e as do eixo capitalista que marcaram o período da Guerra
Fria (1945-1989) não são mais o grande dilema. Com o �m da predominância
�agrante da luta entre comunismo e liberalismo na conjuntura internacional,
as di�culdades de convivência e as lutas por poder manifestam-se principal-
mente no interior das nações, diante de processos de exclusão de grupos soci-
ais, lutas políticas, crescimento dos movimentos fundamentalistas, con�itos
religiosos e ideológicos endógenos.
O genocídio do Ruanda, em 1994, matou quase 1 milhão de pessoas. A guerra civil
na República Democrática do Congo matou 7% da população. No Sudão, uma longa
guerra civil de duas décadas entre o Norte e o Sul custou mais de 2 milhões de vi-
das e desalojou 6 milhões de pessoas. Quando o con�ito terminou, irrompeu uma
nova crise humanitária patrocinada pelo Estado na região ocidental de Darfur.
Hoje, estima-se que 2,3 milhões estejam desalojados e outros 200.000, ou mais, fugi-
ram para o vizinho Chade. A década de 1990 também assistiu à limpeza étnica no
coração da Europa, quando violentos con�itos civis varreram os Balcãs (PNUD,
2005, p. 153-154).

Todavia, se incluirmos nessa lista a violência urbana e os con�itos na Europa


e Oriente Médio posteriores ao ataque ao World Trade Center (EUA) em 11 de
setembro de 2001, teremos um diagnóstico ainda mais preocupante de nossa
falta de habilidade para resolver paci�camente nossos con�itos com o "outro",
seja ele (o outro) oriundo do outro lado do mundo, seja do mesmo país e região.

Retomando o início de nossa re�exão, temos, na base constitutiva de todos es-


ses con�itos, a sobreposição de diferentes concepções sobre o que signi�ca ser
humano (ser um homem ou uma mulher), sobre os comportamentos, ideias e
valores que devem ser cultivados pelos seres humanos e quais devem ser
combatidos ou mesmo exterminados.

Analisando de maneira mais objetiva, longe de ser uma luta determinada por
forças "do bem" contra as forças "do mal", todos os lados em con�ito se pro-
põem a ser ícones de algo melhor e correto para toda a humanidade, impondo
como adequadas compreensões que não são consensuais para todas as cultu-
ras. O esgotamento das negociações das divergências ou mesmo a indisposi-
ção para o diálogo leva ao �m do sufrágio, do qual emergem os con�itos.

Isso não signi�ca dizer que não existam pessoas mal-intencionadas no mun-
do, que desejam impor à força seus interesses, mas leva-nos a reconhecer que
mesmo elas acreditam na validade de suas intenções, de modo a defendê-las
sem dimensionar os altos custos humanos. A destrutividade das ações parece
justi�cada, por mais irracional que seja.
As pessoas costumam considerar a guerra como uma "tempestade social". A�rma-
se que a guerra "puri�ca" a atmosfera, que tem grandes vantagens - ela "fortalece a
juventude", tornando-a corajosa. E acredita-se, de maneira geral, que sempre houve
e sempre haverá guerras. As guerras são motivadas biologicamente. Segundo
Darwin, a "luta pela existência" é a lei da vida (REICH, 1972, p. 244).

Wilhelm Reich (1972), em sua análise psicossocial, considera absurdo defen-


der a necessidade do con�ito e propõe repensar a questão, encarar o que nos
leva à guerra considerando a forma como organizamos a civilização e como
nos organizamos pessoalmente.

[...] por algum motivo os homens evitam conhecer as causas profundas da guerra.
Além disso, há, sem dúvida, melhores meios do que a guerra para tornar a juventu-
de forte e sadia, ou seja, uma vida amorosa feliz, um trabalho agradável e seguro,
esportes em geral e liberdade em relação às intrigas maldosas. Tais argumentos
são, portanto, vazios de signi�cado (REICH, 1972, p. 244).

Qual será, então, a causa das guerras? De maneira breve, o autor considera a
atitude do "cidadão comum", ou das "massas", lembrando que: "Os ditadores
construíram o seu poder sobre a irresponsabilidade social das massas huma-
nas. Utilizaram-na conscientemente e nem sequer procuraram encobrir esse
fato" (REICH, 1972, p. 245). Assim, cabe a cada um de nós, membros anônimos
da massa popular, assumir a própria responsabilidade diante dos grandes pro-
blemas da humanidade.

O próprio Reich (1972, p. 245) elucida que:

Quem leva a sério as massas humanas, exige delas plena responsabilidade, pois só
elas são essencialmente pací�cas. A responsabilidade e a capacidade de ser livre
devem ser acrescentadas agora ao amor pela paz.

Portanto, a segurança e a liberdade de ação devem superar os con�itos e in-


cluir a prática da paz entre pessoas e nações.

Isso nos remete aos desa�os que temos mais do que a um entendimento pessi-
mista em relação à civilização, pois ainda estamos trilhando um caminho en-
leado por um processo muito mais abrangente, de longa duração:

As primeiras civilizações surgiram há cerca de cinco mil anos, nos vales da


Mesopotâmia e do Egito. Ali, os seres humanos estabeleceram cidades e estados,
inventaram a escrita, desenvolveram religiões organizadas e construíram grandes
edifícios e monumentos - tudo o que caracteriza a vida civilizada. A ascensão do
homem à civilização foi longa e penosa. Cerca de 99% da história humana se de-
senrolou antes do surgimento da civilização, ao longo das extensas eras pré-
históricas (PERRY, 1999, p. 4).

Considerando as grandes transformações da humanidade em cerca de 1% de


sua história, construindo-se nesse período de acordo com diferentes modelos
de civilização, talvez seja possível dirimir o custo humano durante os próxi-
mos passos a serem dados.

Socialmente, a modernidade trata de padrões, esperança e culpa. Padrões - que ace-


nam, fascinam ou incitam, mas sempre se estendendo, sempre um ou dois passos à
frente dos perseguidores, sempre avançando adiante apenas um pouquinho mais
rápido do que os que lhe vão no encalço. [...] E sempre mesclando a esperança de al-
cançar a terra prometida com a culpa de não caminhar su�cientemente depressa
(BAUMAN, 1998, p. 91).

Falando de outra maneira, de acordo com o sociólogo Zygmunt Bauman (1998),


na modernidade, estamos sempre buscando atender a padrões de vida com
suas exigências: outro curso, novo emprego, entender novas tecnologias etc.,
na esperança de melhorar sempre nossas condições de vida e sempre alertas,
com a sensação de que estamos atrasados, de que já deveríamos ter o dinheiro,
o conhecimento ou as atitudes que ainda não pudemos. Superar o passado em
busca de um futuro melhor tornou-se a prerrogativa deste momento.

Não obstante, vamos nos empenhar em entender um pouco mais sobre como
as concepções de humano dentro da civilização ocidental se transformaram
desde o mundo antigo até a atualidade, como foi defendida a dignidade huma-
na e quem foram os que mais desfrutaram dessa dignidade.
A história da dignidade, para o direito, pode ser sintetizada nas seguintes fases: 1)
apenas o serviço ao Estado gera dignidade, de forma diretamente proporcional à
posição hierárquica; 2) reconhece-se uma dignidade mínima comum a todo ser hu-
mano, mas, acima disso, permanece o escalonamento; 3) a dignidade propriamente
dita é igual para todos os seres humanos (CORREA, 2013, p. 1).

Considerando tal perspectiva de construção da dignidade humana ao longo da


história ocidental, trataremos dos desa�os a serem enfrentados, daqueles que
foram excluídos e das possibilidades que foram abertas. Mas longe de estabe-
lecer julgamentos, vamos tratar com respeito àquilo que passou, para que pos-
samos atender às necessidades do presente, construindo um futuro melhor.
Vejamos o Quadro 2.

Quadro 2 Concepções de humano ao longo da História Ocidental.

Fonte: acervo pessoal do autor Everton Luís Sanches.

Importante ainda esclarecer que não é almejado dar a última palavra a respei-
to do assunto. Pelo contrário, é um início de conversa, com indicações para o
aprimoramento constante das conclusões.
Analisando atentamente o Quadro 2, podemos perceber que o que de�nia o lu-
gar de cada um na sociedade foi mudando ao longo do tempo, até chegarmos
ao momento atual, em que precisamos rever nossas posições e aceitar que vi-
vemos uma crise de entendimentos a respeito do ser humano.

Para analisarmos melhor este assunto, assista ao vídeo a seguir.

Por um lado, temos atualmente a compreensão de pessoa humana, em que


"pessoa" se refere ao indivíduo singular e único, enquanto "humana" se refere
ao ser coletivo, ao conjunto da humanidade que cada um de nós representa. A
implicação de tal compreensão, amplamente defendida pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos (https://nacoesunidas.org/wp-content
/uploads/2018/10/DUDH.pdf) (1948) e pelos documentos que a sucederam, é de
que determinadas coisas, ao serem feitas contra uma pessoa, constituem um
crime contra toda a humanidade na medida em que a destitui de sua condição
de "ser humano". É o caso da tortura, por exemplo.

Importante:
Existem versões em português da DUDH que trazem a expressão "ser humano" ao invés de "pessoa huma-
na". Contudo, a versão original da Declaração, em inglês, usa a expressão human person, aproximando-se
mais da tradução escolhida e permitindo, assim, os comentários sobre sua signi�cância.

Tal proposta exige das lideranças e das pessoas do mundo todo um acordo so-
bre a universalidade do humano, assim como quanto à necessidade de respei-
tarmos mesmo aquilo que não concordamos ou entendemos.

Mas alcançar tal objetivo não é nada fácil. Mesmo a compreensão do mundo
material tem sido submetida ao crivo das crenças, desacreditando pesquisas
cientí�cas e leis estabelecidas nacional e internacionalmente. Esse fenômeno
tem sido chamado de "pós-verdade (https://www.revista-uno.com.br/wp-
content/uploads/2017/03/UNO_27_BR_baja.pdf)".

Pós-verdade, do inglês post-truth, foi considerada a palavra do ano pelo dicio-


nário Oxford em 2016. De acordo com Zarzalejos (2017, p. 11):

A pós-verdade não é sinônimo de mentira, mas "descreve uma situação na qual,


durante a criação e a formação da opinião pública, os fatos objetivos têm menos in-
�uência do que os apelos às emoções e às crenças pessoais". A pós-verdade consis-
te na relativização da verdade, na banalização da objetividade dos dados e na su-
premacia do discurso emocional.

A palavra já havia sido usada anteriormente, na década de 2000, com o intuito


de discutir a manipulação política com o uso de "[...] técnicas para suavizar
emotivamente as mensagens, com o propósito de causar uma espécie de
curto-circuito no senso crítico e analítico dos cidadãos" (ZARZALEJOS, 2017, p.
11).

Desse modo, a verdade, traduzida como pós-verdade, é apresentada não mais


como o esclarecimento e aprofundamento do conhecimento de acontecimen-
tos - políticos, econômicos, sociais etc. -, mas é identi�cada como um diálogo
o mais direto possível entre crenças infundadas, subjetividades irre�etidas e
interesse político-econômico de grandes núcleos de poder.

[...] a verdade não tem êxito e as descrições que não se ajustam a ela - ou mesmo
que nem se aproximam - sim, vencem, e além disso, terminam impunes. Como
a�rma o escritor Adolfo Muñoz (El País, de 02 de fevereiro de 2017) "a mentira polí-
tica ganha porque tem as qualidades necessárias para triunfar, convertendo-se no
que Richard Dawkins chamou de "meme". O meme é uma unidade de conhecimen-
to viral, na visão deste autor, que se dispersa à margem de seus atributos de veraci-
dade. Vivemos no universo dos memes e necessitamos de critérios para distinguir
o verdadeiro do falso, o seguro do provável, o certo sobre o duvidoso. E nos fazemos
perguntas cada vez mais angustiantes: seria o Photoshop, por exemplo, uma técni-
ca da pós-verdade? Seria a contextualização de um recurso falsi�cador? O insulto
poderia ser considerado uma mera descrição? Os efeitos especiais no cinema ou as
experiências de realidade virtual, por exemplo, são um atentado à integridade da
verdade, tal como a temos entendido até agora? (ZARZALEJOS, 2017, p. 12).
Diante de tantas variantes a serem consideradas antes de chegar a um veredi-
to (verdadeiro ou fake?), a necessidade de entendimento mistura-se com o de-
sejo de ter razão; nesse emaranhado de notícias e informações que invadem o
cotidiano do indivíduo via redes sociais e toda forma de tecnologia de infor-
mação e comunicação, a vontade de lidar com a verdade cada vez mais intan-
gível e inacessível faz com que os sujeitos se apressem em acreditar numa in-
verdade tangível.

As subjetividades (recheadas de crenças pessoais irre�etidas) de pessoas su-


perestimuladas por informações que se apresentam nas formas mais variadas
(vídeos, imagens, piadas, textos jornalísticos, memes, gifs etc.) se sobrepõem à
objetividade (acontecimentos e análise de seus desdobramentos e diversos
signi�cados).

Assim, a descrição mais objetiva e cuidadosa, cheia de senões, talvez, de acor-


do com referência tal e que aponta possibilidades de entendimento, aparece
como um rascunho malfeito de uma verdade inacessível, enquanto a a�rma-
ção jocosa, preconceituosa e taxativa se apresenta como verdade que querem
esconder.

Em meio à di�culdade para trazer à tona o que seja verdadeiro e honesto, é


aberto um espaço de confusão entre aquilo que seja verdadeiro e aquilo que
um indivíduo ou grupo social gostaria que fosse verdadeiro. Nesse cenário, a
célebre frase de René Descartes, considerado ícone da ciência moderna,
"Penso, logo existo", pode ser trocada pela atitude traduzida em "Acredito, logo
é verdade".

Vamos investigar os caminhos possíveis para a superação dos con�itos?


Sigamos adiante!

 Saiba mais!

Para aprofundar os estudos referentes ao contexto da pós-verdade, fake


news e fact-checking, recomendamos que faça a leitura do artigo Pós-
verdade, fake news e fact-checking: impactos e oportunidades para o jor-
nalismo. Clique aqui (http://sbpjor.org.br/congresso/index.php/sbpjor
/sbpjor2017/paper/viewFile/746/462) e bons estudos!

3. Perspectiva sincrônica: entre a humaniza-


ção e a rei�cação
Iniciamos este ciclo com algumas perguntas e buscamos respondê-las no tó-
pico anterior, na medida do possível. As perguntas eram: o que signi�ca ser
humano (ser um homem ou uma mulher)? É possível de�nir o ser humano?
Além dos aspectos físicos, o que permite identi�car um ser humano? Quais
comportamentos, ideias e valores você considera humanos e de�nem a sua
existência?

Contudo, as respostas não encerraram um debate. Pelo contrário, constituem


pontos de partida. Podemos resumir didaticamente esses pontos de partida
que abordamos até agora e encaminhar a continuidade do estudo da seguinte
maneira:

1. O signi�cado de ser humano vem mudando ao longo da história da hu-


manidade conforme os modelos de civilização que foram construídos.
2. Há várias possibilidades de compreensão ainda hoje e, embora haja legis-
lação internacional e muitas pesquisas cientí�cas que tratem do assunto,
não há consenso.
3. Várias teorias e práticas políticas foram estabelecidas no período con-
temporâneo, ou seja, desde a Revolução Francesa, em 1789. Contudo, essa
busca intensa de modernização, de construção de um mundo civilizado,
evoluído e de equilíbrio duradouro (modernidade sólida, de acordo com
Zygmunt Bauman, conforme veremos adiante) gerou altos custos huma-
nos e não alcançou os seus objetivos.
4. Com a fragmentação do conhecimento cientí�co e religioso na contempo-
raneidade, conjuntamente à di�culdade de diálogo, temos uma crise de
valores.
5. A modernidade trouxe a prerrogativa de superar o passado em busca de
um futuro melhor, porém não temos certeza de como fazê-lo. Temos, atu-
almente, apenas a certeza de que precisamos seguir adiante, nos adap-
tando às adversidades. Conforme veremos na continuidade, o sociólogo
Zygmunt Bauman de�niu essa condição do período recente como "mo-
dernidade líquida".
6. A universalização da pessoa humana proposta pela Declaração Universal
dos Direitos Humanos (1948) deu amparo social e jurídico para a busca de
direitos por vários grupos sociais, e o reconhecimento desses grupos
avançou muito. Contudo, disputas pela "verdade" geraram o contexto da
pós-verdade (Acredito, logo é verdade), dentro de uma sociedade em que
as pessoas se legitimam enquanto consumidoras (Consumo, logo sou).
7. Cabe a cada um de nós, membros anônimos da massa popular, assumir a
própria responsabilidade diante dos grandes problemas da humanidade
para que possamos coletivamente resolver os grandes con�itos locais e
mundiais de maneira pací�ca.

Importante lembrar que todas as a�rmações anteriores foram fundamentadas


por um esforço interdisciplinar, tomando as preocupações da Antropologia
(estudo do homem), mas analisando algumas produções das áreas da
Psicologia Social, da Sociologia, da História, do Direito e da Comunicação
Social. Além disso, consideramos a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, por constituir uma base jurídica válida mundialmente, dados esta-
tísticos e análises contextuais produzidos pela ONU.

Esse caminho de entendimento constituiu uma perspectiva diacrônica, tra-


tando do desenvolvimento histórico da pessoa humana no Ocidente.

A partir de agora, veremos a perspectiva sincrônica, tratando especi�camente


de como lidamos com os resultados atuais de todo o percurso analisado e con-
siderando algumas diretrizes para a superação dos principais desa�os identi-
�cados.

Como foi feito antes, vamos partir de algumas perguntas, as quais são: o que
motiva a sua existência enquanto ser humano? O que motiva você a viver?

Vamos traçar uma situação hipotética: pela manhã, você desperta, ainda com
sono, e estabelece o desa�o de levantar e encarar o seu dia. Diante disso, o que
faz com que você se levante? Qual é a sua motivação para sair de sua cama e
se precipitar a ocupar o seu lugar no mundo?
Em sala de aula, nas inúmeras vezes em que essa situação foi apresentada du-
rante os estudos desta disciplina, os alunos, invariavelmente, responderam
majoritariamente, com diferentes versões da mesma problemática: boletos a
pagar.

Talvez não tenha acontecido em seu caso, mas vamos dar continuidade a este
raciocínio com outra pergunta: e se não houvesse boletos a pagar, você nunca
mais sairia da cama? Ou sairia por outros motivos? Quais motivos?

A partir deste ponto, as respostas passam a não ser tão majoritárias. Há certa
dissipação do foco, variando entre muitas formas de diversão, contato com a
família, descanso e repetição de algumas atividades prazerosas, como comer,
viajar, assistir �lmes, ouvir música etc.

A circunstância apresentada traça, entre outras coisas, um cenário de como a


situação econômica interfere na existência de cada um de nós, alterando, in-
clusive, o sentido da vida.

Assim, podemos dizer que o sistema econômico faz parte da nossa organiza-
ção pessoal, estimulando-nos para dadas áreas, encorajando e desencorajando
ações em nossas vidas. Mesmo se ponderar sobre ter um(a) �lho(a), por exem-
plo, a condição econômica será posta em pauta.

Aprofundando o debate, especialmente considerando o recente processo de


globalização da economia capitalista a partir da década de 1990, após a derro-
cada da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), podemos dizer
que, mundialmente, as pessoas cada vez mais se organizam para ser comprá-
veis, consumíveis, desejáveis (BAUMAN, 2008).

 Quer saber mais sobre o Comunismo?

Até a data de publicação desta obra, o Comunismo é o regime o�cial em


cinco países: República Popular da China, Cuba, República Democrática
Popular da Coreia (Coreia do Norte), República Democrática Popular de
Laos e Vietnã. Destes, a China é a que implementou maior abertura co-
mercial, e a Coreia do Norte conservou-se com a economia mais fechada.

Saiba mais sobre cada um desses países: clique aqui (https://www.un.org


/en/about-us/member-states) e boa leitura!

Podemos identi�car tal comportamento na aparência física, nos rostos maqui-


ados, cabelos pintados, corpos malhados e depilados, nas roupas que mostram
o su�ciente para inspirar o desejo alheio sobre o "produto" embalado por elas.

Recentemente, foi formulado o conceito "capital erótico", tratando de como


despertar o desejo pode ser uma estratégia de sobrevivência exigida por diver-
sos ambientes sociais, inclusive no trabalho.

Saiba mais sobre capital erótico no livro: HAKIM, Catherine. Capital erótico: pessoas atraen-
tes são mais bem-sucedidas. A ciência garante. Rio de Janeiro: Best Business, 2012.

Assim, enquanto as pessoas oferecem serviços e produtos, elas também estão


no pacote de consumo, tornando-se objetos de desejo do consumidor.

Para Bauman (2008, p. 13):

Seja lá qual for o nicho em que possam ser encaixados pelos construtores de tabe-
las estatísticas, todos habitam o mesmo espaço social conhecido como mercado.
Não importa a rubrica sob a qual sejam classi�cados por arquivistas do governo ou
jornalistas investigativos, a atividade em que todos estão engajados (por escolha,
necessidade ou, o que é mais comum, ambas) é o marketing. O teste em que preci-
sam passar para obter os prêmios sociais que ambicionam exige que remodelem a
si mesmos como mercadorias, ou seja, como produtos que são capazes de obter
atenção e atrair demanda e fregueses.

Dito de outra maneira, nós temos de nos tornar pessoas maleáveis, tal qual os
líquidos (imagine a água assumindo a forma do local que a contém),
adequando-nos às necessidades de consumo para sermos atraentes aos con-
sumidores. Assim, teremos condições de nos manter durante algum tempo
num emprego que nos dará condições de sermos nós mesmos consumidores,
que consumiremos produtos, serviços e as pessoas que os oferecem.

Esse contexto histórico é de�nido por Bauman (2008) como modernidade lí-
quida (alguns autores também tratam esse mesmo período recente da história
como "pós-modernidade"), em que as relações se liquefazem para se adequa-
rem ao ritmo acelerado e constante de mudanças do mercado global.

Os vídeos a seguir explicitam o trabalho de Zigmunt Bauman e o conceito de


modernidade líquida.

Vamos tomar uma situação prática: ao comprar um aparelho celular, a tecno-


logia dele, por mais avançada que seja, estará ultrapassada em alguns anos.
Ao ser atendido(a), quem o(a) atender deverá ser alguém atraente o su�ciente
para despertar o seu desejo pelo produto enquanto alimenta fantasias e dese-
jos que cativam para o ato da compra.

Para Bauman (2008, p. 17-18):


O empregado ideal seria uma pessoa sem vínculos, compromissos ou ligações
emocionais anteriores, e que evite estabelecê-los agora; uma pessoa pronta a assu-
mir qualquer tarefa que lhe apareça e preparada para se reajustar e refocalizar de
imediato suas próprias inclinações, abraçando novas prioridades e abandonando
as adquiridas anteriormente; uma pessoa acostumada a um ambiente em que
"acostumar-se" em si - a um emprego, habilidade ou modo de fazer as coisas - é al-
go malvisto e, portanto, imprudente: além de tudo, uma pessoa que deixará a em-
presa quando não for mais necessária, sem queixa nem processo.

Todavia, o desejado dentro do ambiente de trabalho é a pessoa que seja aquilo


que se espera dela - e nada além disso. Equivale a dizer que a pessoa deve
abrir mão daquilo que a faz uma pessoa humana em toda a sua integralidade e
complexidade. Ao mesmo tempo, isso não garantirá a sua permanência na
empresa, pois inclui no pacote de mudanças a sua dispensa tranquila e pací�-
ca quando ela deixar de ser necessária. Não há grande premiação, apenas so-
brevivência e instabilidade. Não se espera da pessoa que seja integral, comple-
ta e plena, mas apenas "líquida", disposta a estar sempre assumindo a forma
do "copo"/emprego - ou do "copo"/desemprego, caso seja mais vantajoso para a
empresa diante do cenário do mercado mundial.

Vamos traçar mais um exemplo de como isso pode ocorrer: um bancário que,
ao se tornar gerente de um setor do banco, precisa mudar de agência - e de ci-
dade - constantemente, adequando-se ao novo ambiente e aceitando novas re-
gras de convivência, novas atividades pro�ssionais, desenvolvendo novos há-
bitos e deixando parentes, amigos e até cônjuge para trás (o ideal é que não te-
nha vínculos que possam prendê-lo a um lugar ou pessoa). Mesmo com essa
dedicação plena, pode ser que o banco precise diminuir o número de gerentes
e, com isso, demita esse gerente. Ele deve estar sempre preparado para isso e
disposto a se realocar no mercado, procurando emprego em outra instituição,
em condições tão �uidas quanto as anteriores. Assim, a vida dessa pessoa se
resume ao cargo de gerente e �ui de acordo com a agência e instituição/banco
em que trabalha. Todo o resto de sua vida �ca como resto mesmo e é adaptado
conforme as necessidades impostas pelo trabalho. Ele é o papel que ocupa e
nada mais.

E como �cam as relações humanas dentro da modernidade líquida? Para


Bauman (2008, p. 19):
Os encontros dos potenciais consumidores com os potenciais objetos de consumo
tendem a se tornar as principais unidades na rede peculiar de interações humanas
conhecida, de maneira abreviada, como "sociedade de consumidores". Ou melhor, o
ambiente existencial que se tornou conhecido como "sociedade de consumidores"
se distingue por uma reconstrução das relações humanas a partir do padrão, e à se-
melhança, das relações entre os consumidores e os objetos de consumo.

Dito de outro modo, o autor considera que as pessoas interagem na sociedade


de forma semelhante àquela das relações de consumo. Essa dinâmica pode
ser dividida em dois momentos ou papéis sociais distintos: o de consumido-
res, em que desejam algo e vão pagar para adquiri-lo, analisando qual é a me-
lhor oferta do mercado, ou melhor relação custo-benefício; e o de objetos de
consumo, no qual procuram despertar o desejo de outros para conseguir deles
emprego, satisfação afetiva e/ou sexual, favores, privilégios, respeito, amizade
etc. Nessa relação, pode-se estabelecer algumas condições desejáveis de mer-
cado, como um preço mínimo que devem receber como pagamento e um pre-
ço máximo previsto a pagar pelo benefício interpessoal (produto ou serviço)
oferecido/recebido.

Vamos traçar um exemplo para facilitar o entendimento: o mesmo gerente de


banco, tomado anteriormente, se relaciona com o cônjuge ou "parceiro" de ma-
neira super�cial, sem envolvimento emocional profundo, oferecendo conver-
sas agradáveis, soluções práticas para problemas do dia a dia, momentos de
prazer e uma contraparte de suas conquistas no emprego. O compromisso,
nesse caso, é muito mais com o papel social exercido na relação que com a re-
lação em si.

O gerente pode levar seu cônjuge ou "parceiro" em algumas festas do trabalho,


pode lhe transferir privilégios, gerando facilitações para suas transações �-
nanceiras - e demonstrar o quanto é maravilhoso estar ao lado do gerente in-
�uente que ele é. Em troca, o gerente recebe lazer, apoio moral quando estiver
triste, uma rotina sexual e também exibe para os colegas de trabalho o quanto
a sua vida pessoal e sua relação "afetiva" é bem-sucedida. Nesse arranjo, a
existência pessoal de cada um é resumida a um papel na relação estabelecida
por eles, em meio a uma dinâmica econômica e social - não à experiência vi-
va de um relacionamento afetivo com todas as suas angústias, aspirações e
desejos.

Caso apareça melhor oferta no mercado (outra pessoa que possa ser mais inte-
ressante devido aos seus atributos físicos, sua inteligência ou posição social),
inicia-se uma disputa ou análise de qual é o melhor custo-benefício para esse
gerente.

O mesmo pode acontecer se, numa dessas festas em que o casal foi visto, outro
funcionário do banco mais bem-sucedido que o gerente de nosso exemplo ma-
nifeste interesse pelo seu "parceiro afetivo". Em sentido inverso, inicia-se a
mesma relação de disputa ou análise de qual é o melhor custo-benefício: con-
tinuar como está ou abandonar o gerente e aceitar a oferta de outro funcioná-
rio do banco que está em um cargo mais alto e que, por isso, tem condições de
ampliar os diversos benefícios obtidos na relação?

Voltando à pergunta inicial: o que motiva a sua existência enquanto ser huma-
no? O que motiva você a viver? Podemos considerar que o contexto apresenta-
do nos leva a uma dinâmica de busca por condições de consumo e à expecta-
tiva do próprio consumo, colocando-nos a nós mesmos como seres consumí-
veis no ambiente cada vez mais competitivo do mercado globalizado. De uma
maneira irre�etida, seria esse o impulso decisivo para sairmos da cama ao
acordarmos.

Contudo, considerando a construção desse contexto numa perspectiva sincrô-


nica, ou seja, analisando conjuntamente indivíduos e sociedade, a pessoa hu-
mana e o impacto da transformação coletiva, a volatilidade do comportamen-
to humano na sociedade contemporânea foi abordada no campo da Psicologia
e associada ao processo de modernização, como um de seus resultados huma-
nos. De acordo com Carl Gustav Jung (1988, p. 43):

Em consequência da industrialização, amplos círculos da população viram-se de-


senraizados e aglomerados nos grandes centros. Essa nova forma de existência, ca-
racterizada pela psicologia de massa e pela dependência social dos fatores de osci-
lação do mercado e dos salários, gerou um indivíduo instável, inseguro e facilmen-
te in�uenciável.
Dessa maneira, podemos considerar que seguimos nos adaptando à fruição
das mudanças externas, propostas por instituições políticas, �nanceiras ou si-
tuações pessoais, de modo que a "nossa conduta pací�ca em relação ao exteri-
or apenas serve para afastar de nossas lutas internas in�uências intrusas"
(JUNG, 1988, p. 45).

Para que não remanesçam dúvidas sobre os conteúdos estudados até o mo-
mento, responda a questão a seguir.

Contudo, a falta de atenção para o mundo dos con�itos pessoais de cada um


de nós precipita as atitudes para os objetivos materiais, para a ambição por
poder, prestígio e posses. Nesse sentido, a psicanalista alemã Karen Horney
(1885-1952) conclui:Por esse percurso, compreendemos que aos processos so-
ciais correspondem con�itos que cercam o interior de cada pessoa, de cada
um de nós: "Se tudo está indo mal é porque o indivíduo vai mal, é porque eu
estou mal" (JUNG, 1988, p. 52).

Ao pesquisar as condições que levam o indivíduo a empenhar-se na consecução


dessas metas, torna-se evidente que este empenho, usualmente, só se manifesta
quando �cou patenteada a impossibilidade de conseguir tranquilizar a ansiedade
oculta por meio da afeição (HORNEY, 1964, p. 122).

É importante veri�car que a adaptação constante e irre�etida à dinâmica de


mercado pode disfarçar processos pessoais de tristeza e depressão, senão até
mesmo neuroses, sendo que "[...] a aspiração normal ao poder nasce da força e
a aspiração neurótica nasce da fraqueza" (HORNEY, 1964, p. 122).

O neurótico desenvolve um ideal rígido e irracional de força que o faz crer que deve
ser capaz de controlar, sem perda de tempo, qualquer situação, por mais difícil que
seja. Esse ideal associa-se ao orgulho e, consequentemente, o neurótico encara a
fraqueza não só como uma ameaça mas também como uma desgraça. Ele classi�-
ca as pessoas em fortes e fracas admirando aquelas e desprezando estas. É tam-
bém exagerado no que considera como fraqueza: desdenha mais ou menos todos os
que com ele concordam ou que cedem a seus desejos, que têm inibições ou que não
controlam suas emoções tão bem de modo a mostrar sempre uma �sionomia im-
passível (HORNEY, 1964, p. 124).
Feitas tais distinções e retomando a descrição de Bauman (1999), no contexto
mais recente e tocante à perspectiva da sociedade do consumo, a fuga de con-
�itos internos manifesta-se da seguinte maneira:

Não tanto a avidez de adquirir, de possuir, não o acúmulo de riqueza no seu sentido
material, palpável, mas a excitação de uma sensação nova, ainda não experimenta-
da - este é o jogo do consumidor. Os consumidores são primeiro e acima de tudo
acumuladores de sensações; são colecionadores de coisas apenas num sentido se-
cundário e derivativo (BAUMAN, 1999, p. 80).

Todavia, o contexto que se mostra é de uma sociedade que se organiza de ma-


neira compulsiva e que vive em torno de suas compulsões:

Agir assim é uma compulsão, um must, para os consumidores amadurecidos, for-


mados; mas esse "must", essa pressão internalizada, essa impossibilidade de viver
a vida de qualquer outra forma, revela-se para esses consumidores sob o disfarce
de um livre exercício da vontade. […] Eles são os juízes, os críticos e os que esco-
lhem. Eles podem, a�nal, recusar �delidade a qualquer das in�nitas opções em ex-
posição. Exceto a opção de escolher entre uma delas, isto é, essa opção que não pa-
rece ser uma opção (BAUMAN, 1999, p. 81).

Podemos considerar os mais diversos tipos de compulsões, tais como depen-


dência química, o impulso exagerado para fazer algo repetidamente, vícios di-
versos etc., sendo estimulados, entre outras causas diretamente associadas a
cada caso, pela dinâmica social na qual estamos inseridos.

O historiador Christopher Lasch (1986) considera que o processo individualista


é também um processo de desintegração da identidade social. Os padrões de
consumo, assim como os padrões de comportamento, são ditados pelos meios
de comunicação, de modo que se cria valor conceitual relacionado com o pro-
duto.

En�m, os modismos criados pela sociedade de consumo ditam os seus com-


portamentos e padrões de consumo, dizendo o que você é de acordo com o que
você consome.
Isso impacta indivíduos, sociedade e meio ambiente:

Como vimos, a tecnologia moderna corrói a autocon�ança e a autonomia tanto dos


trabalhadores como dos consumidores. Ela expande o controle coletivo do homem
sobre o meio ambiente às custas de seu controle pelos indivíduos; e mesmo tal con-
trole coletivo, como já apontaram inúmeras vezes os ecologistas, começa a se reve-
lar ilusório, na medida em que a intervenção humana ameaça provocar reações
inesperadas da natureza, incluindo alterações climáticas, o esgotamento da cama-
da de ozônio e a exaustão dos recursos naturais (LASCH, 1986, p. 34).

Diante disso, podemos entender que, na mesma medida em que fazemos vári-
as coisas simultaneamente com o auxílio da tecnologia, nos tornamos depen-
dentes dela, como se a nossa própria existência fosse a ela submetida.

Lasch (1986) questiona se há espaço possível para a existência profunda do


ser, para o desenvolvimento da psique pessoal, da sua identidade enquanto ser
único e irrepetível. Para ele, o ser humano capitalista é volúvel, desregrado e
super�cial; ele passa a ser de�nido pelo impulso à competição a partir das re-
lações de consumo.

O autor conclui que a organização das classes sociais é um processo de reco-


nhecimento da identidade social, dentro do qual o lugar ocupado pelo indiví-
duo precisa signi�car transformação.

A menos que a ideia de escolha traga com ela a possibilidade de fazer diferença, de
mudar o curso dos acontecimentos, de desencadear uma cadeia de eventos que po-
de provar-se irreversível, ela nega a liberdade que pretende sustentar (LASCH, 1986,
p. 29).

Encerrando este ciclo, Bauman (1999, p. 9) defende que: "Questionar as premis-


sas supostamente inquestionáveis do nosso modo de vida é provavelmente o
serviço mais urgente que devemos prestar aos nossos companheiros huma-
nos e a nós mesmos".

Desse modo, ele ressalta que perdemos a capacidade de negociar sentidos lo-
calmente, uma vez que, com a globalização da economia, os principais aconte-
cimentos que impactam a vida de cada um de nós são decididos fora da locali-
dade, em negociações que ocorrem usualmente nas principais capitais do
mundo �nanceiro, transitando numa dinâmica de mercado global.

Sugerimos agora que você responda a questão a seguir a �m de testar seus co-
nhecimentos acerca dos conteúdos estudados.

Tal como foi sopesado anteriormente, estamos abrindo um campo de compre-


ensão a respeito do assunto que não se esgota com o �m deste ciclo. Assim,
continuaremos no ciclo seguinte.

4. Considerações
Encerramos aqui o estudo do Ciclo 2. O intuito foi que estivéssemos mais aten-
tos a diversos aspectos da vida que envolvem a pessoa humana e sua trans-
formação, tanto em relação àquilo que se impõe historicamente quanto ao per-
meia a sua construção individual, suas motivações e pressões internas. Tal
caminho pode ser considerado bem sintético, pois a discussão é muito abran-
gente.

Inicialmente, foi estabelecido um caminho de entendimento numa perspecti-


va diacrônica, tratando do desenvolvimento histórico da pessoa humana no
Ocidente. Em seguida foi a perspectiva sincrônica, abordando como lidamos
com os resultados atuais do percurso histórico analisado e considerando algu-
mas diretrizes para a superação dos principais desa�os identi�cados.

Esperamos que esse estudo tenha contribuído para o seu aprimoramento pes-
soal e pro�ssional.
(https://md.claretiano.edu.br/anteticul-

g00146-dez-2021-grad-ead/)

Ciclo 3 – Dualidades Existenciais: Imanência e


Transcendência; Condicionamento e Liberdade

Everton Luis Sanches

Objetivos
• Entender o conceito de Pessoa Humana, sua importância e suas impli-
cações.
• Analisar as possibilidades humanas de exercício da dignidade na atua-
lidade.

Conteúdo
• As dualidades existenciais: imanência e transcendência; condiciona-
mento e liberdade.

Problematização
Como ser livre e enfrentar a problemática humana que se impõe sobre cada
um de nós? Como enfrentar situações trágicas ou de privação e permanecer
livre?

Orientação para o estudo


Todo conhecimento antropológico diz respeito a pelo menos dois grandes de-
sa�os: o de ver o outro sem julgá-lo e o de respeitar nele aquilo que não pare-
cer razoável ou mesmo compreensível. É preciso olhar com respeito e evitar
o juízo de valores, aceitando o que aconteceu com nossos antepassados (a
história da humanidade) mesmo quando considerarmos inadequadas as es-
colhas que nos antecederam. Essa atitude é fundamental para ampliarmos
as possibilidades futuras, organizando nossas atitudes livres de mágoas e
disponíveis para as oportunidades do "vir a ser".

1. Introdução
O ciclo anterior explorou como nos organizamos para viver na sociedade atu-
al, dentro do sistema econômico predominante no planeta, considerando os
desa�os que ele impõe. A análise partiu das seguintes perguntas: O que moti-
va a sua existência na condição de ser humano? O que motiva você a viver? O
que faz com que você se levante? Qual é a sua motivação para sair de sua ca-
ma e se precipitar a ocupar o seu lugar no mundo?

Resumidamente, traçamos as seguintes respostas:

Uma das principais motivações é a busca por condições �nanceiras de sobre-


vivência. Assim, o aspecto econômico é fundamental para a de�nição das me-
tas das pessoas, do que elas fazem e de como vivem.

No mundo globalizado, em que se estabeleceu um mercado de ampla concor-


rência, o grau de inserção social de cada um depende da sua capacidade de
despertar o desejo do consumidor, tornando-se a própria pessoa uma merca-
doria.

As relações entre as pessoas têm sido orientadas pelos critérios de consumo,


acompanhando, assim, as oscilações do mercado e se guiando pela lei da ofer-
ta e da procura.

A expectativa dentro da dinâmica de mercado é que a pessoa não estabeleça


vínculos profundos que a prendam em um lugar, situação ou relacionamento.
Dessa maneira, ela permanecerá livre para mudar e assumir a forma necessá-
ria a cada momento, comportando-se de forma análoga aos líquidos, que assu-
mem a forma do recipiente que os contém.

A dinâmica de mudanças constantes que se estabeleceu com o processo de


modernização da sociedade resultou num estado de permanente incerteza, em
que as pessoas se tornaram vulneráveis e facilmente in�uenciáveis.

A busca por objetivos materiais e a ambição por poder podem ser resultado da
di�culdade ou impossibilidade de satisfazer, por meio da afeição, a ansiedade
oculta em cada pessoa.

A sociedade de consumo tem se organizado de maneira compulsiva, de modo que as pesso-


as, enquanto consumidores, procuram compulsivamente, cada vez mais, experiências de
consumo. Assim, as sensações geradas pelo consumo importam mais que os serviços e
produtos negociados.

De acordo com Lasch (1986), os padrões de consumo são ditados pela mídia,
ensejando modismos e padrões de comportamento, de modo que o ser huma-
no capitalista passa a ser de�nido pelo impulso à competição a partir das rela-
ções de consumo. Isso impacta indivíduos, sociedade e meio ambiente.

Como resposta aos desa�os elucidados, os autores apontaram:

• os processos de modernização identi�cados a partir do período moderno


afetaram a psique, de maneira que é necessário considerar simultanea-
mente processos pessoais e coletivos na busca de equilíbrio (HORNEY,
1964; JUNG, 1988);
• a organização das classes sociais permite o reconhecimento do lugar do
indivíduo, desde que isso signi�que transformação enquanto exercício da
liberdade (LASCH, 1986);
• diante da di�culdade de construção de sentido localmente, uma vez que
as principais decisões são tomadas de acordo com o mercado global,
questionar as bases de nosso modo de vida é uma contribuição funda-
mental para cada um de nós e para todos os seres humanos (BAUMAN,
1999).

Tal percurso constituiu uma perspectiva sincrônica, ou seja, estabeleceu a si-


multaneidade dos processos de construção e desintegração da Pessoa
Humana na sociedade contemporânea, considerando a modernização e seus
resultados. Ao fazê-lo, também abordamos as formas de lidar com tais resul-
tados, de acordo com os autores estudados.

Todavia, passaremos a tratar mais apuradamente de como podemos a�rmar


plenamente a existência da pessoa humana, exercendo a liberdade diante dos
diversos condicionamentos socioculturais que enfrentamos. Assim, vamos
partir das seguintes perguntas: como ser livre e enfrentar a problemática hu-
mana que se impõe sobre cada um de nós? Como enfrentar situações trágicas
ou de privação e permanecer livre?

Para tanto, faremos um percurso menos conceitual e mais prático, incluindo


um sucinto estudo comparativo de dois casos de superação à hostilidade ex-
trema. Vamos lá!

2. Entre a humanização e a rei�cação


Caso 1: Viktor Frankl (http://institutoviktorfrankl.com.br
/sample-page-2-2/) (1905-1997) - um psicólogo num campo
de concentração
Identi�cado como prisioneiro n.º 119104, Viktor Frankl registrou, em 1945, su-
as memórias do holocausto, em seu livro Em busca de sentido. Enquanto psi-
cólogo, considerou importante sua iniciativa, a qual ele descreveu da seguinte
maneira, no prefácio da edição de 1984:

Havia querido simplesmente transmitir ao leitor, através de exemplos concretos,


que a vida tem um sentido potencial sob quaisquer circunstâncias, mesmo as mais
miseráveis. E considerava que, se a tese fosse demonstrada numa situação tão ex-
trema como a de um campo de concentração (https://www.historiadomun-
do.com.br/idade-contemporanea/campos-concentracao-nazistas.htm), meu livro
encontraria um público. Consequentemente, me senti responsável pela tarefa de
colocar no papel o que eu havia vivido. Pensava que poderia ser útil a pessoas que
têm inclinação para o desespero (FRANKL, 1987, p. 4).

Dica:
Você pode encontrar a versão em PDF da edição de 1987 do livro Em busca de sentido: um psicólogo no
campo de concentração, de Viktor Frankl, disponível para download gratuito em alguns sites, ou adquirir
edições mais recentes do livro impresso.

Viktor Frankl (1987) descreveu no livro a experiência de ter vivido num cam-
po de concentração, com as privações físicas e psicológicas oriundas de não
ser considerado um ser humano. De acordo com ele, as reações mais comuns
naquele contexto, diante da doença, sujeira e penúria, podem ser traduzidas
em algumas etapas ou estados: inicialmente, almeja-se sair do sofrimento, é
alimentado algum tipo de esperança; em seguida, as ilusões vão se desfazen-
do, e o humor torto, sombrio e ácido começa a tomar conta das conversas, as-
sim como a curiosidade, em piadas bastante controversas; depois, vem a apa-
tia e a irritabilidade, em que a indiferença prevalece. Ocasionalmente, surgia a
curiosidade sobre como o corpo vai reagir às intempéries. Interiormente,
questionava-se sobre quanto tempo mais conseguiria resistir.

Frankl (1987, p. 15) de�niu a apatia como um estado em que notícias ruins,
pessoas morrendo na câmara de gás, tortura e qualquer forma de sofrimento
alheio não faz diferença: "A pessoa, aos poucos, vai morrendo interiormente".

Quanto ao humor ácido, diante do risco iminente de morrer na câmara de gás


ou ser surpreendido por uma agressão inesperada, piadas bastante inusitadas
e insólitas eram trocadas entre os prisioneiros:

Debaixo do chuveiro fazemos comentários engraçados, que pretendem ser gracejos.


Em atitude meio forçada, cada qual se diverte primeiro consigo mesmo, depois
também com os outros. A�nal, do chuveiro realmente sai água! (FRANKL, 1987, p.
13).

Ainda assim, diante desse cenário, a dor pela injustiça frequentemente dilace-
rava o interior de quem seguia vivo, suplantando mesmo as dores físicas:

A dor física causada por golpes não é o mais importante por sinal, não só para nós,
prisioneiros adultos, mas também para crianças que recebem castigo físico! A dor
psicológica, a revolta pela injustiça ante a falta de qualquer razão é o que mais dói
numa hora dessas. Assim é compreensível que um golpe que nem chega a acertar
eventualmente pode doer até muito mais (FRANKL, 1987, p. 17).
Dentro dos campos de concentração, havia, ainda, a �gura dos Capos, que
eram prisioneiros com privilégios, aqueles que vigiavam os demais prisionei-
ros e, por isso, tinham melhores condições de vida:

[...] os Capos não passavam mal. Houve até alguns que nunca se alimentaram tão
bem em sua vida. Do ponto de vista psicológico e caracteriológico, este tipo de pes-
soas deve ser encarado antes como os SS ou os guardas do campo de concentração.
Os Capos tinham se assemelhado a estes, psicológica e sociologicamente, e com
eles colaboravam. Muitas vezes eram mais rigorosos que a guarda do campo de
concentração e eram os piores algozes do prisioneiro comum, chegando, por exem-
plo, a bater com mais violência que a própria SS. A�nal, de antemão somente eram
escolhidos para Capos aqueles prisioneiros que se prestavam a este tipo de procedi-
mento; e caso não �zessem jus ao que deles se esperava, eram imediatamente de-
postos (FRANKL, 1987, p. 5-6).

 Quer saber mais sobre a SS – Schutzstaffel?

SS é a abreviação de Schutzstaffel, que era considerada uma tropa de eli-


te nazista, cujos soldados comandavam os campos de concentração e era
encarregada de exterminar os grupos étnicos que não fossem arianos.

Para saber mais, clique aqui (https://www.infoescola.com/segunda-


guerra/ss-schutzstaffel/) e boa leitura!

Frankl (1987) considerou que a inclinação de alguns prisioneiros a exercerem


funções que vitimavam os demais - mesmo estando todos sob o julgo dos sol-
dados nazistas - constituía uma espécie de compensação ao sentimento de in-
ferioridade. Ele citou, inclusive, o exemplo do presidente de um banco que se
tornou um prisioneiro comum, mas, em seguida, foi "promovido" à condição
de Capo.

De todo modo, ainda assim, era possível estabelecer algum tipo de camarada-
gem com os Capos.
Um Capo do meu grupo de trabalho se mostrava muito reconhecido para comigo.
Passei a ser seu protegido desde quando lhe dera atenção ao me contar seus casos
amorosos e con�itos matrimoniais durante a marcha de várias horas rumo ao local
da obra; �-lo com visível compreensão pro�ssional e impressionei-o com uma di-
agnose caracterológica sobre a sua pessoa e alguns conselhos psicoterapêuticos.
Desde então ele me era muito grato. Já fazia vários dias que sua gratidão me era de
grande valia (FRANKL, 1987, p. 18).

Todavia, depois de detalhar diferentes aspectos da rotina dos campos de con-


centração, Viktor Frankl (1987, p. 73) teceu algumas conclusões acerca do ser
humano, das suas reações diante de fatores externos que condicionam a sua
vida e de seu exercício da liberdade. Ele esclareceu que: "Sem dúvida, o ser hu-
mano é um ser �nito e sua liberdade é restrita. Não se trata de estar livre de
fatores condicionantes, mas sim da liberdade de tomar uma posição frente aos
condicionantes".

Desse modo, o autor defendeu que as condicionantes biológicas, psicológicas e


sociais interferem na liberdade da Pessoa Humana, impondo limites e, muitas
vezes, gerando imensas di�culdades. Mas, dentro dessas limitações, diante de
tais condicionantes e conforme elas permitem, as escolhas são feitas.

Como eu disse certa vez: "Sendo professor em dois campos, neurologia e psiquia-
tria, sou plenamente consciente de até que ponto o ser humano está sujeito às con-
dições biológicas, psicológicas e sociológicas. Mas além de ser professor nestas du-
as áreas sou um sobrevivente de quatro campos - campos de concentração - e co-
mo tal também sou testemunha da surpreendente capacidade humana de desa�ar
e vencer até mesmo as piores condições concebíveis" (Value Dimensions in
Teaching, um �lme colorido para televisão produzido por Hollywood Animators,
Inc., para California Junior College Association) (FRANKL, 1987, p. 73).

Considerando toda a sua bagagem - pessoal e acadêmica - Frankl, em sua


obra Sede de sentido (consideramos a edição de 2016), contrariou as de�nições
de Sigmund Freud e traçou uma percepção da Pessoa Humana que vai além
dos estímulos condicionadores do instinto ou da busca por poder. O poder, pa-
ra ele, indica a possibilidade de efetivar um sentido que traz a sensação de
prazer e realização. Isso implica que a satisfação real e profunda não é alcan-
çada quando se obtém poder ou quando os impulsos do instinto são saciados,
mas, sim, quando há um sentido elevado para a vida.

Ao analisar 20 pro�ssionais graduados em Harvard, Frankl (2016) constatou


que eles declaravam, 20 anos após se formarem que, apesar de suas carreiras
de sucesso, estavam desesperados ou simplesmente não identi�cavam a fun-
ção/sentido do próprio sucesso.

Por outro lado, entre muitos casos semelhantes, Frankl (2016, p. 43) destacou o
prisioneiro n.º 020640 da penitenciária de Baltimore, que lhe escreveu uma
carta declarando que, mesmo "[...] totalmente arruinado no aspecto �nanceiro
e cumprindo pena de prisão", ele havia conseguido encontrar "o verdadeiro
sentido" para sua vida.

Podemos identi�car tal fenômeno, didaticamente, na Figura 1, sobre as dimen-


sões do existir humano.

Fonte: Frankl (2016, p. 44).

Figura 1 Dimensões do existir humano.


Concluindo, enquanto a dimensão do homo sapiens (linha horizontal do qua-
dro), conforme de�niu Frankl (2016), se orienta entre o fracasso e o sucesso, a
Pessoa Humana somente conseguirá realização plena na dimensão do homo
patiens (linha vertical), em que a organização da vida se volta para a constru-
ção de sentido. Assim, quem não busca sentido pode obter sucesso e permane-
cer desesperado, enquanto aqueles que constroem sentido conseguem se rea-
lizar mesmo quando passam por privações.

É muito importante destacar que Frankl não defende que somente pessoas
que não possuem sucesso conseguem ter sentido para a vida. Apenas indica
que, nos casos pesquisados por ele, o sucesso não garantiu realização, de mo-
do que a busca por sentido é fundamental para todos nós, mesmo que impli-
que, em algum momento, em repensar questões que envolvam a busca por su-
cesso. Desse modo, muitas vezes, o sofrimento pode propiciar a busca de sen-
tido, mas também não é indicado que precisemos sofrer tanto para isso. Trata-
se de se equilibrar em meio às duas dimensões apontadas.

Agora, sugerimos que teste seus conhecimentos acerca dos conteúdos estuda-
dos, respondendo à questão a seguir.

Dando continuidade aos nossos estudos, acompanhe, agora, o segundo caso,


de Bert Hellinger.

Caso 2: Bert Hellinger (http://www.constelacaofamili-


ar.com.br/bert-hellinger/) (1925-2019) - um lugar para os
excluídos
Bert Hellinger fez um percurso bastante peculiar. Conforme contou em seu li-
vro Um lugar para os excluídos (original em alemão, publicado em 2005), era
católico em sua formação religiosa, nascido na Alemanha e, desde os 5 anos
de idade, manifestou interesse em ser padre. Assim, aos dez anos, foi morar
num internato, com o intuito de progredir em sua formação. Em 1941, contudo,
a Alemanha estava em guerra, e o internato foi fechado quando ele tinha 15
anos. No ginásio, ele participou de um movimento católico da juventude, o
qual era proibido e perseguido pela polícia alemã. Contudo, diante do cenário
político, com 17 anos: "Ao terminar a sétima e penúltima classe do ginásio, to-
dos nós fomos incorporados, inicialmente na prestação de serviços e, depois,
no exército" (HELLINGER, 2006, p. 13).

Embora sua formação cristã o tivesse afastado do pensamento nazista, assim


como sua família, isso os colocou numa posição bastante complicada.

[...] quando eu estava no exército e estacionado na França, nossa classe recebeu pe-
lo correio o certi�cado de conclusão do ginásio. O último ano nos fora abonado,
porque todos estávamos servindo no exército. Entretanto, foi exigido um certi�cado
da prestação de serviços e no meu certi�cado constou que eu era um "elemento po-
tencialmente nocivo ao povo". Naquela época, isso signi�cava praticamente uma
autorização de fuzilamento. Com isso, recusaram-me o diploma.

Quando minha mãe soube disso, procurou o diretor da escola e o interpelou energi-
camente: "Meu �lho está servindo o exército, está arriscando sua vida e vocês lhe
recusam o diploma?" O diretor �cou envergonhado e lhe entregou o diploma. Minha
mãe lutara por mim como uma leoa (HELLINGER, 2006, p. 13-14).

Contudo, ao salvar a sua vida, sua mãe também o colocou de�nitivamente no


front de batalha da Segunda Guerra Mundial (https://www.infoescola.com
/historia/segunda-guerra-mundial/), lutando como um soldado do exército
alemão.

No seu livro, Hellinger (2006) contou que esteve várias vezes perto da morte e
viu muitos soldados que eram seus companheiros morrerem, até que foi apri-
sionado pelo exército americano na Bélgica. Como eram considerados odiosos,
já que lutavam do lado nazifascista, os 1600 soldados presos eram castigados
de várias maneiras, por ordem do próprio general Eisenhower, trabalhando 12
horas por dia, com pouca comida e dormindo apertados, em pé, no frio e sem
cobertores. Os delitos, tais como roubar comida ou as tentativas de fuga, eram
penalizados severamente, normalmente levando à morte.

Contudo, Hellinger (2006) contou que, em meio a todo esse tormento, era agra-
ciado com penas mais leves pelos seus delitos, algo que ele só veio a compre-
ender muito tempo depois.
Mais tarde, um amigo meu, que continuou no acampamento por longo tempo, de-
pois de minha fuga, esclareceu-me a razão daquilo. O "americano", meu vigilante,
era na realidade um judeu alemão que naturalmente nos entendia, mas não deixa-
va transparecer isso. Muitos prisioneiros o ridicularizavam, chamando-o de 'bicha'
ou outros nomes. Eu lhes dizia: "Vocês não devem dizer isso". Todos pensávamos
que ele não entendia. Mas ele entendia tudo e por isso me protegeu mais tarde
(HELLINGER, 2006, p. 16).

Retornando da guerra com 20 anos de idade, Hellinger encontrou cidades em


ruínas; seu irmão havia morrido e boa parte de seus colegas também estavam
mortos. Mas a vida seguiu seu curso. Ele entrou numa ordem católica e deu
andamento na sua proposta de se tornar padre. Depois, foi para a África do Sul
como missionário e, durante os 16 anos em que esteve junto do povo Zulu
(tornando-se também professor e diretor de uma escola), aprendeu muito so-
bre o respeito às forças da natureza e sobre a relatividade dos valores cultu-
rais.

Eu vivia então numa sociedade católica, hermeticamente fechada. Lembro-me per-


feitamente de como era isso quando cheguei à África e lá comecei uma segunda
formação superior. Eu vinha de uma universidade como a de Würzburg, onde os
teólogos, no �nal dos anos 50, desempenhavam um papel importante e eram gran-
demente respeitados. Estava acostumado a isso. Na África do Sul tornei-me, de re-
pente, um indivíduo entre muitos e era tratado sem privilégios. Na época, ainda
pensava que só podia ser bom quem tem fé. Então notei que existem professores
que absolutamente não crêem e eram excelentes pessoas! Esta foi a primeira gui-
nada, quando subitamente percebi: "Em que idéia eu embarquei?" (HELLINGER,
2006, p. 22).

Em 1964, conheceu a dinâmica de grupos, num curso que realizou com os sa-
cerdotes anglicanos. De acordo com Hellinger (2006, p. 22): "Esses grupos
eram frequentados por negros, brancos, índios, mestiços, católicos e protes-
tantes. Todos aprendiam juntos. Eram grupos ecumênicos, sem separação de
raças - algo inédito na época".

No primeiro treinamento, o treinador indagou: "O que é mais importante para


você, as pessoas ou os ideais? O que você sacri�ca pelo quê: as pessoas pelos
ideais ou os ideais pelas pessoas?" Foi a partir desse momento que Bert
Hellinger entrou "no espaço das experiências da alma" (HELLINGER, 2006, p.
23).

Tudo isso mudou a sua vida.

O autor concluiu, a partir de suas experiências e estudos, entre outras coisas,


que todos têm seu lugar na vida e na história e que precisamos reconhecer es-
se lugar. Há um lugar para os excluídos, sejam eles aqueles que estiveram no
papel das vítimas, sejam eles os que vitimaram (perpetradores, em suas pala-
vras). Importante notar que isso não signi�ca ser permissivo com a iniquida-
de, mas refere-se a olhar sem julgamento e com respeito para todos os envol-
vidos em seu enredo.

Conforme Hellinger (2006, p. 49) defendeu: "Vejo Hitler como um ser humano,
sem desculpar nada". Nesse sentido, o autor destaca que não parece razoável
personalizar numa liderança um movimento coletivo, nem desresponsabilizar
as ações de cada um ao participarem desse movimento. Todavia, trata-se de
considerar que somos parte de sistemas e que não seguimos imunes a isso,
não agimos sozinhos e movidos unicamente por nossas forças pessoais. Mas
em cada papel exercido há responsabilidades: "Quem é que seduziu quem? Foi
o Führer que seduziu o povo ou foi talvez o povo que também o seduziu?"
(HELLINGER, 2016, p. 49). O que sabemos é que foi como foi e que, a partir des-
sa experiência, podemos aprender e, humildemente, fazer melhor.

Em Strange meeting, um poema de Wilfried Owen, um homem, que na véspera


apunhalara um inimigo de guerra, morre por sua vez e chega ao reino dos mortos.
Os dois adversários se olham nos olhos e se perguntam: "O que foi tudo isso e para
quê?" A frase �nal do poema diz: Let us sleep now - Vamos dormir agora. Então tu-
do passou. Essa atitude, de sentir-nos envolvidos em algo muito diferente do que
habitualmente pensamos, torna-nos modestos, então cessa a arrogância. Nessa vi-
são, perpetradores e vítimas, nazistas ou não, deixam de desempenhar papéis pes-
soais. Nesse movimento da história, todos eles se encontram num mesmo barco
(HELLINGER, 2006, p. 49).

Podemos identi�car tal arrogância quando nos consideramos superiores


àqueles que cometem erros que supostamente não cometemos. Naturalmente,
queremos sempre ser o "lado bom" da história. Contudo, Bert Hellinger (2006)
expõe-nos ao desa�o de descartar tal posição de superioridade.
Historicamente, a posição de inferioridade foi identi�cada com padrões de
moralidade, religião, ideologia política, costumes, etnia, nacionalidade, gênero,
orientação sexual, entre outros. E �nalizada a tormenta, ela se reinicia com a
exclusão daqueles que outrora foram os excludentes. Como no poema que
Hellinger (2006, p. 49) mencionou: "O que foi tudo isso e para quê?"

 Conheça mais sobre a vida e a obra de Bert Hellinger!

Saiba mais sobre Bert Hellinger e o alcance de seu trabalho. Clique aqui
(https://www.hellinger.com/pt/constelacao-familiar/) e bom estudo!

Posto isto, vamos, na continuidade, acompanhar uma questão relacionada ao


conteúdo estudado neste tópico.

Por �m, podemos considerar, a partir desta re�exão, o desa�o de não nos dei-
xar enredar nesse caminho discriminatório; e, contraditoriamente,
respeitarmo-nos mutuamente quando nos vemos enredados, aceitando lidar
com os resultados para seguir adiante. Metaforicamente, equivale, ainda, a
abalizar que, seguindo a compreensão do "olho por olho, dente por dente", po-
deremos construir uma existência de cegos e desdentados. A�nal, estamos to-
dos no mesmo barco, e, quanto antes reconhecermos isso, um tanto melhor
para todos!

 Vamos conhecer mais sobre dignidade da pessoa humana?

Para saber mais a respeito da transformação do entendimento da digni-


dade da pessoa humana, recomendamos as seguintes leituras:

CORRÊA, Carlos Romeu Salles. Evolução da doutrina da dignidade da


pessoa humana. Revista Jus Navigandi (https://jus.com.br/artigos
/23950), Teresina, ano 18, n. 3541, 12 mar. 2013. ISSN 1518-4862.
DE ALMEIDA, Rogério Tabet. Evolução histórica do conceito de pessoa -
enquanto categoria ontológica.   Revista Interdisciplinar de Direito
(http://revistas.faa.edu.br/index.php/FDV/article/view/202), [S.l.], v. 10, n.
1, out. 2017. ISSN 2447-4290.

3. Considerações
Estamos encerrando o Ciclo 3, mas, antes, é importante retomarmos rapida-
mente alguns pontos fundamentais que foram relacionados.

Visitamos o tema das dualidades existenciais, ou seja, de como nos comporta-


mos diante dos dilemas estabelecidos pelas diversas condições que nos afe-
tam, pelas intempéries que se impõem à Pessoa Humana em seu percurso de
vida, com ênfase na busca pela a�rmação da liberdade e da superação contí-
nua ou transcendência. Para tanto, consideramos os relatos e conclusões de
Viktor Frankl (1905-1997), um psicólogo que passou por quatro campos de
concentração durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e de Bert
Hellinger (1925-2019), que, mesmo se opondo ao nazismo, teve de lutar no
exército alemão e, depois, tornou-se prisioneiro durante a guerra, sendo, nesse
período, punido como se fosse um defensor convicto de Hitler.

Como no Ciclo 2, este ciclo partiu de algumas perguntas, a saber: Como ser li-
vre e enfrentar a problemática humana que se impõe sobre cada um de nós?
Como enfrentar situações trágicas ou de privação e permanecer livre?

As respostas foram indicadas a partir dos dois casos estudados. Sendo assim,
vamos relacionar sinteticamente as respostas a partir de cada um deles.

De acordo com Viktor Frankl, mesmo diante de fatores condicionantes, o ser


humano é livre. Contudo, sua liberdade é restrita, e ele a exerce posicionando-
se diante das situações que se apresentam. A realização plena da Pessoa
Humana pode ser alcançada mesmo diante das piores atrocidades, quando há
um sentido elevado para a vida. Assim, ele demonstrou que pessoas de suces-
so podem viver desesperadas porque não encontraram sentido, enquanto um
encarcerado pode estar realizado diante de seu encontro com um sentido ele-
vado para a vida. Todavia, é preciso buscar equilíbrio entre a dimensão do ho-
mo sapiens (fracasso versus sucesso) e a dimensão do homo patiens (desespe-
ro versus realização).

Para Bert Hellinger, cada um ocupa um papel diante dos movimentos de âmbi-
to coletivo/sistêmico, de modo que a liberdade individual é organizada dentro
desse âmbito. Os direcionamentos pessoais representam não apenas escolhas
individuais, mas podem ser identi�cados igualmente, com orientações sistê-
micas. Desse modo, por pior que tenham sido as coisas, se elas aconteceram
de dada maneira, foi porque não se conseguiu encontrar outro jeito por aque-
les que assim agiram.

Isso não signi�ca que devemos concordar com tudo, mas apenas respeitar o
que foi e reconhecer o lugar de cada um, sem excluir ninguém. Assim,
Hellinger propõe evitar os julgamentos e ocupar novos papéis, levando paz aos
sistemas de que participamos. Desse modo, considera que é preciso olhar para
frente, imbuído da sabedoria oferecida pelo passado e reconhecendo que é
possível fazer melhor.

Em ambos os casos, a experiência do cárcere foi vivenciada incluindo - tanto


quanto possível - o respeito deles pela Pessoa Humana travestida de carrasco,
permitindo, inclusive, que tanto Frankl quanto Hellinger fossem poupados por
seus "tiranos" de dores ainda maiores.

Toda esta análise foi realizada tendo em vista a preocupação com o desenvol-
vimento integral da Pessoa Humana, que é salutar e está relacionada na
Missão (https://claretiano.edu.br/missao) e na Carta de Princípios
(https://dev.redeclaretiano.edu.br/dev/res/emkt/2018/faculdaderco/credencia-
mento/principios.pdf) do Claretiano - Centro Universitário, conforme veremos
nos próximos ciclos.
(https://md.claretiano.edu.br/anteticul-

g00146-dez-2021-grad-ead/)

Ciclo 4 – O Humano como Ser de Finitude e de


Abertura

Eugenio Daniel

Objetivos
• Identi�car o ser humano com uma visão humanista.
• Compreender a visão de ser humano do Claretiano – Rede de Educação,
conforme o seu Projeto Educativo e sua Carta de Princípios, que orienta
a vida educativa.

Conteúdos
• Ser de �nitude e de abertura.
• Liberdade, alteridade, multiculturalidade.
• Ser de relação.
• Dimensões da pessoa humana.
• Projeto Pedagógico.
• Carta de Princípios.

Problematização
Qual é a visão do Claretiano quanto ao ser humano? De que maneira pode-
mos analisar a complexidade do ser humano? Quais são as dimensões hu-
manas? O que é multiculturalidade? Como podemos compreender o ser hu-
mano de maneira humanista?

Orientação para o estudo


Prezado(a) aluno(a), daremos início a uma parte muito importante do nosso
estudo. Deste modo, é preciso estar aberto para a aprendizagem, é preciso co-
nhecer as propostas que o Claretiano tem para a educação e para o relaciona-
mento com o ser humano em geral. Tudo isso contribui para nosso relaciona-
mento conosco mesmos, com o outro e com o sobrenatural.

Ao estudar este ciclo, você vai complementar os estudos que você fez até
aqui. Para isso, é preciso estar com o espírito aberto para estudar, para apro-
fundar o conhecimento, para assimilar as situações novas que são apresen-
tadas para nossa vivência, de maneira completa, na realidade em que nos
encontramos.

Pode ser que você esteja se perguntando: qual a razão deste estudo? Contudo,
não podemos esquecer que nossa vida não é isolada do mundo e das pessoas.
Fazemos parte de um todo, e qualquer que seja nossa pro�ssão, direta ou in-
diretamente, estaremos em contato com as pessoas. Tudo que fazemos tem
relação e consequência no mundo em que vivemos, respinga nas pessoas de
maneira positiva ou negativa, depende do entendimento que temos de nós,
do outro e do mundo.

1. Introdução
Nos ciclos anteriores, pudemos perceber que, no decorrer da história, algumas
teorias e algumas maneiras de viver e conceber a sociedade in�uenciaram a
forma de entender e viver a realidade humana. Neste ciclo, vamos estudar te-
mas que estão intimamente ligados ao humano, tais como liberdade, alterida-
de e multiculturalidade.

Quando falamos do ser humano, precisamos entender as suas características,


como ele foi entendido e tratado no decorrer da história, quais são suas di-
mensões e, en�m, vê-lo como um todo. O ser humano está inserido no mundo
e, por isso mesmo, é um ser com características de �nitude, ou seja, ele possui
suas limitações. Apesar de ser aberto a si mesmo, aos outros seres humanos, à
natureza e ao transcendente, ele é capaz de sair de si mesmo para ir ao encon-
tro daquilo que está além de si.
Heidegger (1965 apud DETTONI et al., 2016) atesta que o ser humano não é
uma "coisa" entre outras coisas – ou um ente entre outros entes –, mas o úni-
co do qual se pode dizer que realmente é "ser", que "existe" plenamente, já que
é o único a se interrogar sobre o sentido de sua própria existência, o único a
tomar nas mãos o próprio destino. Para ele, é preciso, antes de mais nada, per-
guntar pelo "sentido do ser" ou, mais propriamente, pelo "sentido de ser", de
"existir".

A pessoa é um ser de relação (http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream


/10923/3407/1/000433190-Texto%2bCompleto-0.pdf), não é fechada em si mes-
ma. Quando analisamos que ela é aberta a si mesma, aos outros, à natureza e
ao transcendente, percebemos que é um ser único, indivisível, com dimensões
que dão sentido ao seu ser e à sua existência. É isso que dá sentido à sua razão
de ser no mundo.

No decorrer do estudo deste ciclo, vamos nos aprofundar nesses temas, mais
antes, acompanhe no vídeo a seguir alguns aspectos importantes deste deba-
te.

2. Liberdade, alteridade e multiculturalidade


Vimos, anteriormente, que há muitas maneiras de se olhar a vida humana, e
muitas são as formas como o ser humano é encarado e explicado durante a
história, em que o ser humano foi visto e discutido a partir de diversos pontos
de vista. No decorrer deste estudo, vamos olhar essa realidade humana, perce-
bendo que o humano está inserido no mundo e que não vive de maneira soli-
tária, pelo contrário, vive rodeado de outros humanos, semelhantes, e de ou-
tros seres que não são humanos, e é nessa relação com os seres humanos e
não humanos, com a natureza e com o transcendente, que a pessoa se desen-
volve e se projeta.
Existir com os outros humanos e existir com os outros seres é fundamental
para mostrar o que é o ser humano e qual é seu caráter nesse mundo. Sua
existência implica a presença do outro, da mesma forma que é semelhante na
cultura, na linguagem, em aspectos físicos e compartilha as preocupações en-
contradas na convivência com os demais.

Segundo Heidegger (1965), o mundo do ser humano é o mundo com os outros


seres humanos e com os outros seres e coisas. Por isso, não existe meu mun-
do, existe nosso mundo. O autor chama isso de mundo ao seu redor, e a�rma
que o ser humano precisa estar atento ao mundo que o circula e ao próximo
como tal.

Contudo, a rotina pode levar o ser humano a viver na indiferença ou, de outra
maneira, as solicitudes do mundo e as preocupações do cotidiano podem
torná-lo mais humano ou não. Na relação com o outro e com a sociedade, o eu
pode comportar-se de maneira irresponsável e não autêntica. Mas essa rela-
ção também pode gerar atitudes de colaboração e companheirismo (DETONI
et al., 2016).

Na convivência com seus semelhantes e nos seus afazeres, o ser humano faz
cultura. Dependendo da realidade em que vive, ele se adapta e produz cultura;
isso depende do meio ambiente onde está inserido. Por isso, o ser humano é,
ao mesmo tempo, sujeito e objeto da cultura.

Liberdade
Quando tratamos do assunto da liberdade, no sentido em que abordamos nes-
ta disciplina, é mais adequado tratar de liberdade de (escolha) e de liberdade
para (atuar). É complicado falar em liberdade total, pois em todo ato há um li-
mite. Contudo, isso não tira da liberdade aquela característica que permite ao
ser humano que ele não esmoreça diante de sua situação de vida. Para viver
livremente, é preciso levar em consideração a ética e a responsabilidade, en-
frentando os desa�os. Não é possível viver livremente sem ética e sem res-
ponsabilidade.

Como vimos, o ser humano é sempre um eu no mundo, vivendo em relação


com os outros. Essa relação exige reciprocidade na maneira de viver e na ma-
neira de ser. Por isso, o ser humano possui suas responsabilidades ao mesmo
tempo em que possui seus direitos. No �nal das contas, você é livre para esco-
lher se quer ser responsável ou não.

Sem liberdade, não há condição de o ser humano viver racionalmente e com


vontade. Só ele pode escolher entre agir e não agir, escolher entre fazer uma
coisa ou outra, pensar antes de escolher agir. Ele tem capacidade de mudar, de
transformar sua vida e de transformar a forma de ver e de viver no mundo em
que está inserido.

Cada ser humano é livre para atuar. Esse caminho pode levar à plenitude da
humanidade e pode ajudar na construção de uma sociedade justa e igualitária.

Frankl (1978), ao tratar da liberdade, demonstra que o ser humano pode forjar
seu destino sem estabelecer um mundo arbitrário. O ser humano adquire a
dignidade por meio da liberdade.

Liberdade e dignidade fazem parte da essência da pessoa humana.

Vamos estudar mais adiante a dimensão espiritual e veremos que o ser huma-
no é livre e pode libertar-se de todo determinismo. Isso, porém, como já vimos
anteriormente, não o livra dos condicionamentos apresentados pelo mundo. E
é aí que vivencia sua responsabilidade.

 Quer saber mais sobre resiliência segundo Viktor Frankl?

Clique aqui (http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v25n4/a11v25n4.pdf) e reali-


ze a leitura do artigo: Contribuições de Viktor Emil Frankl ao conceito de
resiliência.

Pelo fato de ser humano, ele é livre, pois a liberdade faz parte da constituição
do ser humano. A liberdade é anterior à ação. O ser humano é um ser de liber-
dade, ele pode transcender o egocentrismo, viver com autonomia e tomar de-
cisões em sua vida.

Segundo Daniel e Scopinho (2013, p. 163-166):


Na liberdade, está radicada a possibilidade de realização ou de fracasso do projeto
pessoal. A pessoa, pela liberdade, sente-se capaz do progresso, da realização do hu-
manismo, de ser mais do que ela sempre foi. Mesmo depois do mais terrível fracas-
so, da mais completa alienação, continuamos a ter uma consciência livre palpitan-
do dentro de nós.

Mesmo ante tal cenário de onipotência e império, variados são os impedimentos da


liberdade: há os impedimentos psíquicos e, também, a possibilidade de que indiví-
duos que não estejam enfermos careçam de liberdade – são aqueles que se deixa-
ram alienar. Por que acontece isso? Porque, em qualquer desses casos, o espírito
não consegue expressar-se, �ca impedido de se atualizar. Octavio Derisi (1985) ex-
plica que a liberdade no sentido estrito consiste no autodomínio da vontade sobre
sua própria atividade, em poder querer ou não alguma coisa, em poder escolher en-
tre esta ou outra coisa.

O termo liberdade acompanha o termo homem, é uma condição considerada por


praticamente todas as correntes de pensadores que estudam o homem:

Os kantianos veem na liberdade a ideia suprema para alcançar a perfeição. Para


eles a liberdade é iluminada pelos ditados da razão prática. Nessa concepção, a
vontade �ca submetida à moral decorrente dessa razão prática, e os princípios da
razão prática devem ser de plena realização, sem esperar nenhuma recompensa.
Esse momento é reconhecido pelo pensamento kantiano como "de total liberdade".

Os materialistas são rígidos ao extremo na defesa da liberdade do homem. Nesse


ponto, coincidem com os existencialistas, que são ainda mais radicais na hora de
conceber a liberdade. Sartre, que, olhando Nietzsche, adere à não existência de va-
lores absolutos, vê na própria liberdade o fundamento para o sentido e o valor. O
ponto máximo da liberdade é, para o existencialismo, possibilitar a liberdade dos
demais. Para Sartre, os valores são projetos que o homem propõe baseados no que
ele quer ser sem poder pensar que exista um futuro e sem necessidade de um prin-
cípio caracterizador. Diferentemente dos materialistas, ele rejeita qualquer princí-
pio naturalista. Para ele, o homem transcende as estruturas naturais e as verdades
anteriores, tudo deve ser produto de sua liberdade (SARTRE, 2003).

Assim como Sartre, as posturas mais radicais a respeito da liberdade, argumentam


que não existem determinismos no homem, sempre é possível agir de outra manei-
ra.

Na perspectiva antropológica, Sartre não crê em determinismo teológico, biológico


ou social. Como escreve na obra O existencialismo é um humanismo, que contém
as principais ideias da conferência que deu em Paris em 20 de outubro de 1945: nela
expressa as ideias de que nem Deus, nem a natureza, nem a sociedade determina
absolutamente nossas possibilidades, predispomos nossa conduta na mediação da
liberdade (SARTRE, 2009, ps. 31,36, 43, 55, 77). Esse autor considera que o homem é
um ser "para-si", ou seja, que não tem uma essência de�nida antecipadamente,
nunca é resultado de uma ideia preexistente; o homem é um fazer-se contínuo,
"Somos o que temos querido ser e sempre poderemos deixar de ser o que somos"
(2009, p. 61).

Segundo Sartre, só o homem é o responsável pelo que é. Essa responsabilidade não


está restrita ao âmbito individual, e, sim, corresponde à totalidade da humanidade.
Quando decidimos pelo casamento, aceitamos seguir a monogamia. Sempre que
aderimos a uma ideia política ou a um ideal, estamos tomando partido de uma for-
ma de humanidade. Sartre explica: "Se Deus não existe, não há valores ou ordens
que modelem nossa conduta. Estamos sós, o homem é o ser condenado a ser livre"
(2009, p. 42-43). No mundo (na existência), o homem é responsável por tudo o que
faz ou deixa de fazer; ele é o único responsável por suas paixões, pela moral que
adota. "Não há signos no mundo que digam ou indiquem o que devemos fazer"
(2009, p. 50).

Para esse pensador, os �ns que perseguimos não são dados nem do exterior nem do
interior, não existe nenhuma suposta natureza, é na liberdade que cada um se esco-
lhe; cada "Para-si" tem a liberdade de fazer de si o que quiser. [...] o homem está
condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio e no entanto é li-
vre pelo fato de estar no mundo. Assim o homem começa a existir para logo, na sua
existência, de�nir-se (2009, p. 42-43).

O primeiro princípio do existencialismo sartreano é: o homem é o único ser que po-


de ser tal como ele se quer. Segundo o autor como não temos uma natureza ou es-
sência, não estamos determinados; como não escolhemos ser livres, não somos li-
vres de deixar de ser livres (2009, p. 60-63). A liberdade é tão importante nesta an-
tropologia porque ela é o fundamento de todos os valores. Também é princípio de
responsabilidade: "Querer a liberdade é respeitar a liberdade do outro" (SARTRE,
2009, p. 77). O homem de boa fé procura a liberdade pela liberdade.

Mesmo defendendo que o homem deve obrar de forma humana em relação à hu-
manidade, que está representada por ele próprio e pelos outros homens, para exe-
cutar sua liberdade, essa "liberdade" proposta por Sartre é totalmente autônoma.
Nesse ponto, é criticável, já que a verdadeira liberdade não existe se não está orien-
tada à perfeição, à humanização e à plenitude do próprio ser humano – caso con-
trário, pode ser uma "libertação". Liberdade está sempre acompanhada pelo vocá-
bulo "responsabilidade".
3. Alteridade
Como é próprio de sua natureza humana, o ser humano necessita de relacio-
namento interpessoal, e a alteridade caracteriza-se dessa necessidade de
relacionar-se. Essa necessidade está presente em todas as etapas da vida hu-
mana. A relação íntima do ser humano demonstra a disposição de si mesmo
enquanto necessita do amor recebido do outro. A relação “eu – tu” faz parte da
dimensão essencial do ser humano e faz parte da autotranscendência. O ser
humano é um ser social.

Como vimos, o ser é um ser de relação, inserido no mundo, por isso, é aberto à
realidade social. Trata-se de uma relação amorosa de semelhantes que neces-
sitam um do outro. Para Frei Betto (2020): “Todo ser humano, dentro da pers-
pectiva judaica ou cristã, é dotado de dignidade pelo simples fato de ser vivo.
Não só o ser humano, todo o Universo”.

Essa visão judaico-cristã mostra bem a realidade daquilo que estamos apre-
sentando em nossos estudos. Tudo o que já vimos e veremos até o �nal deste
ciclo nos remete a uma realidade que abrange todos os seres humanos e que
os coloca em lugar de dignidade, seja quem for esse ser humano. Todos mere-
cem viver dignamente.

O mesmo autor aponta para os pilares que sustentam a sociedade: família, es-
cola, Estado, Igreja e trabalho. Neles é possível resgatar a cidadania, com a
possibilidade de exercício da alteridade. O desa�o, segundo ele, “[...] é transfor-
mar essas instituições naquilo que elas deveriam ser sempre: comunidades. E
comunidades de alteridade” (FREI BETTO, 2020).

Na base de nosso relacionamento está o outro. Ele é o ponto de referência para


a construção da generosidade. Para Frei Betto (2020): “Só existe generosidade
na medida em que percebo o outro como outro e a diferença do outro em rela-
ção a mim”. O autor a�rma que, pela alteridade, a pessoa “[...] é capaz de apre-
ender o outro na plenitude da sua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo, da
sua diferença. Quanto menos alteridade existe nas relações pessoais e sociais,
mais con�itos ocorrem”.
Frei Betto (2020) destaca que: “Só existe generosidade na medida em que per-
cebo o outro como outro e a diferença do outro em relação a mim”. A única via
possível para manter essa relação é a via do amor, que pressupõe o respeito, o
reconhecimento dos seus direitos, a sua dignidade como ser humano. E com-
pleta: “[...] isso supõe a via mais curta da comunicação humana, que é o diálo-
go e a capacidade de entender o outro a partir da sua experiência de vida e da
sua interioridade”.

Se utilizarmos o entendimento ético, vamos nos lançar “[...] na re�exão sobre a


condição humana deste outro, partindo do pressuposto que o outro não é um
inimigo desumanizado, mas que deve ser visto como um ser humano ao mes-
mo tempo igual e diferente de mim (FREI BETTO, 2020)”. Burckhart (2016) ex-
pressa, de forma mais contundente, que: “Num contexto marcado pela ‘falta de
ética’, ou seja, a falta de uma re�exão sobre nossas ações, hábitos e costumes,
a alteridade enquanto proposta torna-se difícil de concretizar-se.”

Ao entender alteridade no sentido de colocar-se no lugar do outro e com ele


manter uma relação interpessoal, colaboramos para que aconteça um diálogo
entre as culturas, as religiões e as crenças. Nesse diálogo é possível aprender
com o outro ao mesmo tempo em que se aprende a respeitar as convicções di-
ferentes.

Multiculturalidade
De acordo com o que nossos estudos apontam – e para o que nos desa�am –
quando analisamos a questão da relação com o outro, é possível conviver pa-
ci�camente em um ambiente multicultural. Esse fenômeno cultural
relaciona-se diretamente com a globalização das sociedades pós-modernas.

Quando falamos em multiculturalidade, precisamos levar em consideração


que os grupos culturais estão interligados e que as culturas estão em constan-
te relação e em contato entre si.

Vale ressaltar que, para que haja multiculturalidade, é preciso estabelecer uma
convivência entre várias culturas em uma cidade, região ou país. Não há pos-
sibilidade de haver predominância de uma cultura sobre a outra.
Com a constante imigração, percebemos que várias pessoas, de várias cultu-
ras diferentes, convivem entre si. Essa diversidade cultural é que se caracteri-
za como culturalidade. Nesse contexto, pode acontecer a marginalização de
algum grupo social, como geralmente ocorre com os imigrantes.

 Amplie seus conhecimentos sobre justiça, liberdade e alteridade!

Clique aqui (http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/veritas/ar-


ticle/view/35008/18345) e realize a leitura do artigo Justiça, liberdade e
alteridade ética. Sobre a questão da radicalidade da justiça desde o pen-
samento de E. Levinas, de Ricardo Timm de Souza.

Veremos, a seguir, que todo ser é um ser de relação. Essa relação se dá no con-
tato com o outro, com a sociedade, com os vários grupos culturais e com o
mundo. É nessa relação interpessoal que a pessoa aprende e ensina: aprende a
viver livremente, aprende a viver a culturalidade e aprende a ser.

4. Ser humano como ser de relação


A Antropologia sempre investigou as questões que envolvem o ser. As análi-
ses das formas como o ser foi e é encarado evidenciam que, apesar de a huma-
nidade ter vivenciado inúmeras situações nas quais o ser foi relegado à pró-
pria sorte, humilhado, execrado, selecionado, ainda não aprendemos a convi-
ver com o outro e, por isso, vemos, em pleno século 21, o ser perder a sua digni-
dade devido ao desrespeito.

É nesse sentido que o �lósofo Martin Buber (1878-1965) (https://novaesco-


la.org.br/conteudo/1938/martin-buber-um-teologo-que-prega-o-dialogo), ao
estudar a importância de respeitarmos a dignidade do ser, nos apresenta, em
seu texto Eu e Tu, publicado no ano de 1923, uma análise pormenorizada das
palavras “Eu-Tu” e “Eu-Isso”, que, para ele, são “palavras-princípio” que se refe-
rem ao “entre-dois”. Para Buber (2006), uma relação só pode se dar por meio do
compromisso com a vida – não só a nossa vida, mas a vida do outro.
As “palavras-princípio”, de acordo com Buber (2006, p. 53):

[...] são proferidas pelo ser.

Se se diz Tu profere-se também o Eu da palavra-princípio Eu-Tu.

Se se diz Isso profere-se também o Eu da palavra princípio Eu-Isso.

A palavra-princípio Eu-Tu só pode ser proferida pelo ser na sua totalidade.

A palavra-princípio Eu-Isso não pode jamais ser proferida pelo ser em sua totalida-
de.

Em suas re�exões sobre as relações que podemos estabelecer com o outro,


Buber (2006) deixa claro que o ser pode ser enfocado pela experienciação, pela
exploração super�cial, que nos permite apenas apreender este ser como um
objeto. Contudo, essa apreensão nos distancia da essência de relações efetivas.
Algumas das re�exões a respeito desse tema expostas pelo autor são: “O mun-
do como experiência diz respeito à palavra-princípio Eu-Isso. A palavra-
princípio Eu-Tu fundamenta o mundo da relação (2006, p. 55-59).”

Logo após, o autor enobrece o ser humano ao a�rmar que: “O homem não é
uma coisa entre coisas ou formado por coisas quando, estando eu presente di-
ante dele, que já é meu Tu, endereço-lhe a palavra-princípio” [...], demonstran-
do, claramente, que o ser humano precisa receber um lugar de destaque na re-
lação com o outro. “Ele não é uma qualidade, um modo de ser, experienciável,
descritível, um feixe �ácido de qualidades de�nidas. Ele é Tu, sem limites,
sem costuras, preenchendo todo o horizonte. Isto não signi�ca que nada mais
existe a não ser ele, mas que tudo o mais vive em sua luz” (BUBER, 2006, p.
55-59). Por essa razão, o relacionamento existente entre o Eu e o Tu envolve a
totalidade do ser e não somente parte do todo:
Entre o Eu e o Tu não se interpõe nenhum jogo de conceitos, nenhum esquema, ne-
nhuma fantasia; e a própria memória se transforma no momento em que passa dos
detalhes à totalidade. Entre Eu e Tu não há �m algum, nenhuma avidez ou anteci-
pação; e a própria aspiração se transforma no momento em que passa do sonho à
realidade. Todo meio é obstáculo. Somente na medida em que todos os meios são
abolidos, acontece o encontro (BUBER, 2006, p. 55-59).

O ser humano, apreendido pela ótica do “Isso”, perde suas características pes-
soais, uma vez que é tratado como objeto, e aquilo que era particular, único, ir-
repetível, passa a ser universal. Nesse contexto, leis universais são formula-
das para designar o particular e, para Buber (2006), não devemos nos conten-
tar com relações baseadas no mundo das coisas e sim no mundo do ser. Por
isso, adverte: “Sem dúvida, alguém que se contenta, no mundo das coisas, em
experienciá-las e utilizá-las erigiu um anexo e uma superestrutura de ideias,
nos quais encontra um refúgio e uma tranquilidade diante da tentação do na-
da” (p. 60). Assim, se a humanidade for reduzida ao “Isso”, perde sua razão de
ser.

Precisamos enfrentar o desa�o de vivermos e nos distanciarmos desse mundo


ditado pelas regras das conceituações e das experienciações para primarmos
por relações que valorizem a subjetividade, a autonomia e a liberdade do ser
se não quisermos experimentar a grande melancolia de nosso destino, na
qual, se não tomarmos o devido cuidado, o Tu se torna um objeto entre os obje-
tos.

Assim, para Buber (2006), estabelecemos a relação Eu-Isso, pois utilizamos a


representação de palavras convencionadas para expressarmos as característi-
cas do ser que, nessa situação, se torna o nosso objeto. Por meio de palavras,
usamos formulações indiscriminadas de conceitos. Mas o ser deve ser valori-
zado enquanto ser, não como conceito.

Para Heidegger (1984, p. 158), “Ele é ele mesmo” e, sendo assim, único, singular,
irrepetível. Portanto, o relacionamento entre os seres deve ser um evento per-
meado pela reciprocidade, pelo velar e desvelar do ser. Não devemos compac-
tuar com ações que tenham o ser como uma coisa, um “Isso”. Nesse aspecto,
Buber (2006, p. 74 e 77) chega ao ponto de a�rmar que: “[...] o homem não pode
viver sem o Isso, mas aquele que vive somente com o Isso não é homem” e
continua: “O homem que se conformou com o mundo do Isso, como algo a ser
experimentado e a ser utilizado, faz malograr a realização deste destino: em
lugar de liberar o que está ligado a este mundo ele o reprime; em lugar de
contemplá-lo ele o observa, em lugar de acolhê-lo serve-se dele”.

Nossas relações com o ser dentro do espaço e do tempo podem deixar marcas:
se tratado como “Tu”, certamente as marcas serão positivas; contudo, se trata-
do como “Isso”, certamente essas marcas serão danosas. O ser vive e convive
com outros seres no espaço que nos acolhe e no tempo cronometrado.
Contudo, não é somente de batidas de relógio que a vida do ser é permeada pe-
lo tempo, pois sua vida também é marcada pelo sentido que só a pessoa hu-
mana pode atribuir às suas vivências.

Ende (apud HOYUELOS, 2008, p. 4, tradução nossa), ao falar sobre o tempo,


pondera que: “Há uma coisa muito misteriosa, mas muito comum. Todos parti-
cipam nela, todo mundo sabe disso, mas poucos param para pensar sobre isso.
Quase todos somos limitados a tomá-la como se trata, sem fazer perguntas.
Essa coisa é o tempo”.

Guimarães Rosa (1986, p. 92), em sua obra Grande Sertão: Veredas, por meio de
seu personagem Riobaldo, a�rma que:

O que vale, são outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos
diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem
não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa im-
portância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez da-
quela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado.
Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas
antigas que �caram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O se-
nhor mesmo sabe.

É dessa forma, encarando o ser como inédito, único, irrepetível, que o


Claretiano – Rede de Educação prima pelo encontro efetivo, pela efetivação de
um tempo marcado pelo relógio, mas também marcado pelas batidas do cora-
ção. Tempo no qual o ser se desvelará e se velará a todo o momento, pois não
será encarado como um “Isso” e sim como um “Tu” que compartilha conosco a
sua vida, e esta reside no coração.

Nessa mesma linha de pensamento, a essência do ser humano está ligada ao


fato de ele estar no mundo, existir. Dentro do pensamento de Heidegger, o ser
humano se diferencia fundamentalmente dos outros entes por ser o único ca-
paz de se perguntar sobre si e sobre os outros. Pela consciência, o ser humano
está aberto a si mesmo, aos outros seres humanos, aos outros entes, ao ser.
Essas características o tornam diferente de todos os outros seres, humanos ou
não. Ele possui a essência humana de uma forma plena. Contudo, não perde
suas características próprias que, como veremos mais adiante, são talhadas
por sua essência própria, pela vivência em sua família e pelo grupo social do
qual ele faz parte. Por isso ele é único e irrepetível.

A liberdade do ser humano se caracteriza, também, por ele não estar preso ao
seu ambiente. Já que ele tem o mundo diante de si, ele é capaz de transcender
seu ambiente, embora ele se perceba como parte in�nitamente pequena desse
mundo. O mais bonito de tudo isso é que a estrutura eu-mundo dá ao ser hu-
mano a capacidade de encontrar-se a si mesmo. Tillich (2005, p. 113) a�rma
que “[...] sem o mundo, o eu seria uma forma vazia. A autoconsciência carece-
ria de conteúdo, pois o conteúdo, psíquico e corporal, encontra-se no interior
do universo”. Da mesma forma, para o mesmo autor, não existe consciência de
si mesmo sem um mundo. Sem ele o eu seria vazio.

Todavia, pode-se a�rmar que o ser humano só existe inserido no mundo. É


claro que, nem por isso, ele é igual ao mundo, pois o “[...] ser humano deve es-
tar completamente separado de seu mundo para poder olhá-lo. Caso contrário,
ele permaneceria simplesmente preso ao ambiente”. É inserido no mundo que
o ser humano percebe que é capaz de transcender o seu ambiente. Estar inse-
rido no mundo é fundamental para o ser humano adquirir conhecimento. “O
eu sem o mundo é vazio; o mundo sem o eu é morto” (TILLICH, 2005, p.
180-181).

Essa realidade do Eu e suas relações sempre preocuparam pensadores inte-


ressados em responder aos questionamentos referentes ao ser humano. A re-
lação consigo mesmo, com o mundo e com o transcendente, mas, principal-
mente, a sua relação com o outro, sempre intrigaram o ser humano de manei-
ra geral.

Atenção!
Sobre a transcendência, transcendente e transcendental, é importante considerar que se refere ao encon-
tro com o outro. Em nosso estudo, foi tratado que, ao relacionar-se com os outros de maneira ética, ultra-
passamos os limites individuais e estabelecemos uma conexão que nos possibilita o alcance teológico, ou
seja, é feita uma abertura do indivíduo para ter conhecimento de Deus.

Vaz (2002 apud SILVA, 2016, p. 532) a�rma que “[...] o sujeito está situado na trí-
plice dimensão da realidade: o mundo, a sociedade e o próprio Eu. Isso implica
que a construção do discurso antropológico sistemático começa pelo Eu en-
quanto exprime a sua situação nas formas de presença corporal, psíquica e es-
piritual”. E acrescenta que: “[...] o ser humano, por ser capaz de efetivar a reali-
zação da própria vida, encontra como desa�o e tarefa, nunca acabada, o domí-
nio do sentido da vida, no qual a sua existência está lançada como existência
propriamente humana na relação com o outro”.

Dessa forma, pudemos perceber, sem esgotar o assunto, que o ser humano
sempre se questionou a respeito de si mesmo e de seu relacionamento com o
outro. Isso implica em compromisso consigo mesmo e, principalmente, o seu
compromisso com o outro. Essa relação é con�itante às vezes, mas aberta pa-
ra uma dimensão que abrange a vida, de uma maneira complexa, mas com-
prometedora.

Tendo em vista o conteúdo estudado até o momento, sugerimos que você teste
o seu aprendizado, respondendo à questão a seguir.

Depois de estudarmos todas essas situações que envolvem o ser humano e que
marcam sua razão de ser e de estar no mundo (mundo de relações múltiplas,
mas exigentes e carentes de sentido), vamos nos ocupar agora em entender o
que tudo isso signi�ca para o ser humano, olhando-o de uma forma totalizan-
te.

5. Dimensões biológica, psicológica, social e


espiritual do ser humano
Quando olhamos o ser humano como unidade e como totalidade, não pode-
mos deixar de perceber que esse ser não é fragmentado, mas é um ser comple-
to e complexo. Contudo, quando analisamos as dimensões do ser humano,
percebemos que ele é uma unidade constituída das dimensões biológica, psi-
cológica, social e espiritual.

Antes de analisarmos essas dimensões, vamos estudar alguns detalhes im-


portantes para o bom entendimento dessa realidade que envolve o ser huma-
no e para entendermos qual é a proposta de ser humano do Claretiano – Rede
de Educação.

Esses detalhes nos ajudarão, ainda, a considerar as diversas implicações des-


sa maneira de encarar o ser humano para a vida e para a prática pro�ssional.
A�nal, dependendo da maneira como nós nos encaramos enquanto humanos
e da maneira como encaramos os outros humanos, semelhantes a nós, agire-
mos de uma forma ou de outra. Podemos dizer o mesmo com relação ao mun-
do, à natureza e aos outros seres.

Nossa responsabilidade no mundo é grande. Não basta ser um pro�ssional


quali�cado, pois o compromisso ultrapassa o campo pro�ssional, seja qual for
a pro�ssão. Dito isso, vamos estudar alguns elementos necessários para po-
dermos entender o ser humano e a proposta humanista que queremos dispen-
sar em nossa prática humana e pro�ssional.

Espírito
Vamos começar apresentando o que Santo Tomás (2002) descreve sobre o ser
humano. De acordo com ele, o ser humano não pode ser explicado como a
união de duas partes: a orgânica e a espiritual. Quando se trata de “espírito”,
geralmente as pessoas interpretam no sentido teológico-religioso. Não quere-
mos ter essa interpretação. O ser humano é a uni�cação das dimensões corpo
e espírito. Não são elementos superpostos. As duas dimensões estão unidas
no mesmo núcleo.
É comum atribuir ao termo “espírito” um sentido religioso. Para Gevaert (1995),
o termo “espírito” é um termo vago e impreciso. Muitas vezes, expressa um
fenômeno vital concreto: hálito (sopro de vida); e, outras vezes, um princípio
exclusivamente humano. Porém, esse termo é empregado, também, para sim-
bolizar aquilo que é humano e que não pode ser reduzido a fenômenos materi-
ais de�nidos pela causalidade ou pela realidade espaço-temporal.

Conseguir compreender o sentido, �xar metas, �xar �ns, ideais e possuir capa-
cidade de atuar lidando conscientemente com os condicionamentos são ma-
nifestações próprias do ser humano, e isso caracteriza manifestações espiritu-
ais. Por isso, Scheler (2003) destaca que o espírito é uma potência que comple-
menta e direciona as outras potências do ser humano, que nós, neste trabalho,
chamamos de dimensões.

Para Frankl (1978), corpo-espírito não podem se reduzir um a outro, nem po-
dem derivar-se um do outro. Na pessoa, há uma unidade, ou núcleo, que é co-
mum a toda pessoa humana. No entanto, cada pessoa é única. Há uma manei-
ra dinâmica de vivenciar a existência. Cada indivíduo humano constrói a sua
própria realidade em sua existência, transformando-se continuamente. Mas
sua existência, sua maneira de ser e de viver são únicas. São realidades parti-
culares, que cada um vive.

Hume (2003) admoesta que falar em espírito é falar em fenômenos psíquicos


impessoais. Já para Santo Tomás (2002) o espírito concede a perfeição ao ser
humano, relacionando-o com seu ser. É ele que caracteriza o ser humano.
Assim, o ser humano é composto de corpo e espírito numa unidade integrati-
va, substancial.

Coreth (1998) explica por que cada um de nós se sente um eu. O eu é o ponto
central do ser humano. O eu é o centro do mundo do ser humano. Contudo,
Frankl (2003) a�rma que é o espírito que individualiza o ser humano. Por isso,
podemos considerar que o ser humano é uma unidade e, também, uma totali-
dade.

Portanto, por ser espiritual, o ser humano é um ser de liberdade aberto ao


mundo e atua como uma unidade indissolúvel. Cada indivíduo possui uma al-
ma individual, que constitui a intimidade pessoal. A noção de pessoa diferen-
cia o ser humano dos outros seres individuais, e seu conceito está baseado na
unicidade, na racionalidade e na vontade livre.

O homem é um ser social


Para Mondin (1998), o ser humano é um ser cultural. O ser humano não é um
composto pré-fabricado, não há como montá-lo. Ele deve se construir com su-
as próprias mãos, cultivando a si mesmo. O objetivo primário da cultura é pro-
mover a realização da pessoa. Mas, ao mesmo tempo em que o ser humano
produz cultura, ele é produzido por ela.

Desde o início da vida, a pessoa é in�uenciada, pois necessita de alguém que


cuide dela para sobreviver. Assim começa a participação social e cultural na
vida de cada ser humano. Nenhum ser humano é autossu�ciente, pois nin-
guém chega ao mundo pronto. Todos nós estamos em permanente constru-
ção.

Enquanto ser social, o indivíduo precisa das outras pessoas, da relação com o
outro, com o tu, para levar adiante a existência pessoal. Assim, podemos con-
siderar que somos seres de alteridade, já que a vida de cada um de nós se de-
senvolve em comunhão com os outros sujeitos (outros eus) no mundo. O ser
humano é, também, um ser inserido na História. Ele vivencia os acontecimen-
tos de sua existência pessoal diante dos eventos da existência coletiva.

Nenhum de nós é autossu�ciente: necessitamos de elementos da natureza pa-


ra sobreviver, da mesma forma que precisamos das outras pessoas, pois nin-
guém vive sozinho. Essa relação com as pessoas forja a personalidade, pois
vivemos em relação com os outros, numa atitude de troca constante. Troca de
afeto, de pensamento, de projeto de vida. É nessa relação que de�nimos o que o
outro é para nós. E o outro não é um ser invisível ou uma coisa que nos serve
quando precisamos. Por sua complexidade, ele exige um comportamento éti-
co. Estabelecido tal compromisso ético na relação com o outro, somos trans-
portados para a relação com o divino, transcendente, pois desenvolvemos ca-
da qual o seu ser enquanto ser de relação mútua.
Nessa situação, percebemos que o ser não está sozinho, ele é um ser de rela-
ção. Buber (1976) explica que, até quando o ser humano está só, a dimensão di-
alogal é mantida, devido ao seu caráter transcendental.

A vivência com o outro faz com que o ser humano perceba que ele é capaz de
compreender-se, de determinar sua própria existência e que isso o faz único e
irrepetível. De outro lado, o ser humano sofre a in�uência da sociedade em que
está inserido.

É importante lembrar, conforme vimos no Ciclo 2, quando estudamos as con-


cepções de humano ao longo da História Ocidental (Quadro 2), que, na socieda-
de pós-moderna, com o mundo globalizado economicamente, vivemos uma
crise de valores (acredito, logo é verdade), em que predominam os parâmetros
políticos e econômicos que concebem as pessoas como seres que produzem e
que consomem (consumo, logo sou). Assim, de maneira contraditória, o pro-
gresso tecnológico comumente é considerado mais importante que a pessoa
humana, que os próprios seres humanos.

Continuando, o ser humano é um ser inserido na História, vivendo-a e


construindo-a o tempo todo, em cada gesto e decisão que toma. Como o ser
humano é um ser aberto ao mundo, ele vai desenvolver seu projeto pessoal e
pode organizar sua existência a partir de valores espirituais.

Valor espiritual é aquele que se refere à realidade, a uma relação pessoal, a


uma programação de uma ação, à intervenção racional na natureza. Signi�ca
escolher algo para comer ou beber, que cada situação existencial vivida está
revestida de um valor, que há um sentido por trás da realidade que se apresen-
ta. É claro que isso não acontece de forma idêntica para todas as pessoas.
Nem todos percebem o sentido da mesma maneira, pois cada um é um ser
único.

Estudos reforçados? Então é hora de testar seus conhecimentos, realizando a


questão a seguir.

Dimensões da pessoa
Depois de entendermos alguns conceitos importantes, podemos compreender
o ser humano e suas dimensões. Faremos um estudo com todos os conceitos
que vimos anteriormente, mas, agora, de acordo com cada dimensão.
Entendendo a particularidade de cada dimensão, poderemos compreender
melhor a relação entre elas e o ser humano como um todo.

Acompanhe uma descrição geral do entendimento que o Claretiano tem a res-


peito da pessoa.

Dimensão biológica

Ao referir-se à dimensão biológica, refere-se, naturalmente, a tudo que se rela-


ciona ao corpo da pessoa. Sem dúvida, é por meio do corpo que o ser humano
faz contato com os outros seres, com o mundo e com Deus, seu Criador.

[...] não se pode deixar de perceber que a sociedade está inserida em um contexto
social capitalista, neoliberal. Nesse ambiente, envolvidos pela lógica tecnicista, co-
mo é próprio do sistema neoliberal vigente, o homem acaba sendo reduzido a um
ser que produz e que consome. Diante desse enfoque, o que acaba tendo valor espe-
cí�co é essa parte do ser humano que está em contato com o mundo e que possui a
força produtiva e consumidora.

Um dos problemas fundamentais que aparece com relação ao corpo é aponta-


do por Scheler (2003, p. 73), quando ele analisa a questão do Dualismo: “O fosso
erigido por Descartes entre o corpo e a alma através de seu dualismo de exten-
são e consciência como substâncias fechou-se hoje quase até a palpabilidade
a unidade da vida”.

No entanto, apesar da distorção imposta pela atual sociedade, não se pode ne-
gar que o corpo tem seu valor e que este deve ser considerado. É por meio dele
que o homem constrói o mundo, adquire conhecimento, transforma a realida-
de e consegue dar sentido à sua existência. Portanto, é importante frisar que é
necessário cuidar bem do corpo.

Leloup faz um relato interessante sobre a atenção e o cuidado que é preciso


dispensar a ele e o respeito que se deve ter com o ser humano quando comen-
ta que:

“O corpo, o imaginal, o desejo, o outro – estamos na presença de um quatérnio para


o qual os Terapeutas no tempo de Filon de Alexandria dirigiam sua atenção e os
seus cuidados. Esse quatérnio depende de uma antropologia em que as diferentes
dimensões do ser humano – corpo, alma, espírito – parecem respeitadas. Os cuida-
dos do corpo não excluem os cuidados da alma, os cuidados da alma não dispen-
sam que se leve em consideração a dimensão ontológica e espiritual do homem”
(1998, p. 32).

E acrescenta:

“Para o terapeuta, o corpo não deve ser visto somente como um objeto, uma coisa
ou uma máquina funcionando com defeito, que seria mister ‘consertar’. Não; o cor-
po é corpo ‘animado’. Não há corpo sem alma, não sendo mais ‘animado’, não mere-
ce o nome de corpo, mas de cadáver” (1988, p. 70).

Falar do corpo é falar da necessidade de cuidado, cuidado esse que requer um


olhar diferenciado para si, mas que leva na direção do outro que, para Boff
(2004, p. 33-34), signi�ca “mais que um ato; é uma atitude... Representa uma
atitude de ocupação, preocupação, de responsabilidade e de envolvimento afe-
tivo com o outro", pois "sem o cuidado ele deixa de ser humano".

Esse é o ideal, mas é notório que as coisas não acontecem dessa forma no am-
biente social capitalista da atual sociedade. É possível perceber uma realidade
que explora e expõe o corpo e as pessoas de modo ultrajante. Não é difícil per-
ceber que a mídia impõe uma exploração total da realidade corpórea em di-
versos níveis.

Aliás, a mídia criou padrões de beleza e de biotipo. Quem não se adapta aos
padrões �ca relegado ao segundo plano. Os padrões de beleza e do corpo estão
expostos na moda, nas novelas, nos programas de televisão, nas revistas, nos
�lmes etc. São padrões criados e valorizados, forçando as pessoas a se ade-
quarem a eles. Quem, por uma razão ou por outra, não se sente enquadrado
nesse padrão gasta muito dinheiro para se adequar a ele ou se sente excluído
da convivência geral da sociedade.
É só notar que os tipos de roupas produzidos pelas grifes (pelo menos, pelas
grandes grifes) não são feitos para qualquer pessoa ou qualquer corpo. Quem
desejar precisa adaptar o próprio corpo para vestir aquele tipo de roupa. Aliás,
as grandes grifes não querem qualquer tipo de corpo vestindo as suas roupas.
Elas são feitas para físicos “esculturais”, pois é uma forma de fazer propagan-
da da marca. As pessoas tornam-se “etiquetas ambulantes”, como diz o poeta
Carlos Drummond de Andrade (1984).

Do mesmo modo, é impressionante a corrida atrás dos bisturis, dos “botox” e


de toda espécie de cirurgia para mudanças na estética facial e corporal. Há
uma supervalorização da dimensão corporal em detrimento das demais. Para
uma sociedade assim, a pessoa vale pelo que aparenta �sicamente. E só em
função disso. Tudo visando à possibilidade de aumentar o lucro daqueles que
possuem os meios de produção em suas mãos.

Dimensão psíquica

A dimensão psíquica remete àquilo que os �lósofos gregos chamam de anima


– no Português, “alma”, “o que dá vida”. O que faz a vida da pessoa acontecer é
sua interioridade; remetendo ao pensamento �losó�co, é deparar-se com o
conceito de essência. A alma da pessoa é sua essência. Mas o que vem a ser
essência?

Por essência, entende-se aquilo que faz o ser ser ele mesmo. Ou seja, o ser é
aquilo que ele é por causa da sua essência. É a essência que o torna um ser
único. Só eu sou eu. Só você é você. E o que me faz ser eu e você ser você é a
essência. Não existe outro igual. Eu sou único. Você é único(a).

Cada um possui um corpo, mas não é o seu corpo. Do mesmo modo, o indiví-
duo possui emoções, mas não é nenhuma dessas emoções. O indivíduo tem
desejos, mas não são esses desejos. O indivíduo pensa, estuda e sabe muita
coisa, mas não são as coisas que sabe. Como costumava a�rmar Sócrates, o
indivíduo é um centro de autoconsciência e vontade; por isso, é dotado de um
poder dinâmico, capaz de observar, dominar e dirigir todos os seus processos
psicológicos.

Entendendo melhor, tomemos como exemplo os perfumes. Sabemos que, em


todos eles, há elementos químicos, tais como o álcool e a substância que �xa o
perfume. Porém, o que diferencia um do outro é a essência, usada em pouca
quantidade, mas que o diferencia e o torna único. Aliás, quem não ouviu a ex-
pressão popular que diz: “nos pequenos frascos, os grandes perfumes”?

Hoje em dia, há alguns cientistas que querem dimensionar o homem de ma-


neira fracionada, a�rmando que ele possui de 2% a 5% de essência. O resto é
hereditário e in�uência social. Alguns até a�rmam que próprio da pessoa não
existe nada, ela é 100% in�uência do meio social e da herança genética. Mas,
ao olhar a pessoa como um todo, não se pode entendê-la assim. Ela não pode
ser reduzida a frações percentuais, pois é única e irrepetível.

E aqui �ca a interrogação: como é que a pessoa conhece e entra em contato


com essa essência? A resposta vem de forma simples: quem tem a chave de
seu interior é a própria pessoa. Para conhecer seu interior, é preciso que entre
em contato consigo mesma através da re�exão e da meditação. É um constan-
te prestar atenção em si mesmo, no seu modo de ser, de pensar e de agir.

Pensando nisso, cabe perguntar: quanto tempo você gasta consigo mesmo?
Cinco minutos por dia? Cinco por semana? Cinco por mês? É por meio desse
tempo que se ocupa consigo mesmo que se consegue perceber e entender
quem se é de fato.

Mas há um segundo passo; além de se conhecer, é preciso aceitar-se como vo-


cê é na sua essência. Tem erros? Como e o que fazer para corrigi-los? Tem de-
feitos? Claro que sim. Mas quando percebe sua essência na profundidade, per-
cebe a beleza daquilo que é. Aceitar-se como é de�ne o passo adiante. Mas não
é tudo, há mais pela frente, é hora de gostar de si como você é.

Se não conseguir dar esses passos, não poderá perceber que os semelhantes
são tão importantes como você e merecem seu carinho, sua atenção, seu apre-
ço, seu amor. Assim é possível entender as palavras de Cristo: “amarás teu
próximo como a ti mesmo” (Mt 22,39). Quem consegue amar-se na essência
ama o outro, o mundo, a natureza e o Criador, porque se percebe parte desse to-
do.
O eu do indivíduo é a sua individualidade, é o seu ser pessoa. É essa a marca
indelével do eu sou. E a consciência disso é que faz o indivíduo perceber que
ninguém vai ocupar seu lugar no mundo; sua missão no mundo é única.
Entrar em contato com o seu núcleo, isto é, com o seu ser interior, é abrir as
portas para descobrir sua individualidade, sua importância, para encontrar o
caminho para a autorrealização, a felicidade.

Quanto mais profundo for esse contato com o seu próprio eu, mais profundo
será seu conceito de pertença do todo; mais profunda será a percepção de seu
papel na melhora do meio em que vive, do mundo onde habita.

Não é possível ser feliz sozinho. Quanto mais o indivíduo busca a realização
pessoal, mais ele percebe que essa realização só acontece à medida que se
abre para o outro, para o todo, para que todos tenham vida em abundância, co-
mo ensina o Cristianismo.

Essa busca do próprio eu não signi�ca fechar-se em si mesmo, mas, sim, per-
ceber e sentir um intenso amor e respeito por si e por seu corpo e, ao mesmo
tempo, uma abertura e um profundo amor pelo outro, pela natureza, pelo meio
ambiente, pelo universo, pelo todo. É isso que nos une aos outros, é isso que
une ao Criador. Entrar em sintonia consigo, com seu próprio núcleo, é entrar
em sintonia com o outro, é entrar em sintonia com Deus.

Essa unidade é quebrada quando o indivíduo se fecha em si mesmo, em uma


atitude egoísta, egocêntrica, como ensina e propõe a lógica tecnicista.

Fechar-se em si mesmo é causar morte, não vida. Contribuir para que haja vi-
da signi�ca estar centralizado, mas aberto, sem deixar que o meio tire a possi-
bilidade de autorrealização, a qual abrirá as portas para que os outros também
se realizem e sejam felizes. Contribuir para que haja vida é lutar contra tudo o
que impede a vida de estar ao alcance de todos.

O que caracteriza o indivíduo diante da comunidade é saber que homem al-


gum é uma ilha, e que um necessita do outro para ser o que é. No contato com
as outras pessoas, o indivíduo percebe-se. Ao perceber-se, compreende que é
na relação com o outro que ele próprio se identi�ca. Contudo, nem sempre isso
acontece de forma consciente e clara.

Scheler (2003, p. 75) a�rma que “a vida psicofísica é una – e esta unidade é um
fato que vale para todos os seres vivos; portanto, também para os homens”.
Fazendo uma crítica a Descartes, o autor ainda a�rma, categoricamente, que
este:

[...] introduziu na consciência ocidental todo um exército de equívocos da pior es-


pécie acerca da natureza humana (ele dividiu todas as substâncias em "pensantes"
e "extensas")... Para Descartes o mundo não consiste senão em pontos "pensantes"
e em um mecanismo violento a ser investigado matematicamente (2003, p. 69).

E acrescenta:

[...] os �lósofos, os médicos, os pesquisadores da natureza que se ocupam hoje com


o problema do corpo e da alma convergem cada vez mais para a intuição funda-
mental: é uma e a mesma vida que possui uma con�guração formal psíquica em
seu íntimo, corpórea em seu ser para os outros (2003, p. 71).

Dimensão social

Conforme alguns pensadores, o ser humano é produto do meio em que nasce e


vive. Ele recebe uma carga genética muito grande. Alguns dizem que essa car-
ga e essa in�uência do meio chegam a 95%, outros falam em 98%. Há até al-
guns que dizem que a in�uência do meio é de 100%. Se fosse assim, não have-
ria individualidade.

O meio in�uencia os que vivem nesse ambiente, levando-os a adquirir os mo-


dos da família, do bairro onde vivem, da cidade etc. Existe grande in�uência
dos amigos que, ao mesmo tempo, é transmitida ao ambiente.

Não se pode esquecer, ainda, que a ideologia do sistema capitalista in�uencia


a pessoa no seu pensar, seu sentir e seu agir. Portanto, essa carga de in�uên-
cia que diariamente é recebida por meio da família, da mídia, da escola, do
grupo de amigos etc. confere à pessoa uma maneira própria de ser.
Apesar da carga genética e da in�uência do meio, o ser humano possui algo
que o identi�ca consigo mesmo e o torna diferente. Portanto, o que vai mostrar
essa diferença é a forma como ele olha para si e como ele se identi�ca com
seu interior. Assim, pode-se distinguir o que é identidade própria e o que é in-
�uência do meio em que vive.

É nesse âmbito que a pessoa humana se encontra. Cada ser humano é um ser
único. No entanto, está inserido num contexto mais complexo, bem mais am-
plo do que seu próprio ser.

Cada pessoa humana tem necessidade dos outros: para vir ao mundo, para
crescer, para nutrir-se, para educar-se, para programar-se a si mesma e para
realizar seu próprio projeto de humanidade. [...] Cada ser humano nasce, vive e
cresce no interior de um grupo social... (MONDIN, 1998, p. 27).

A pessoa vive em sociedade. Ela não pode e não deve �car isolada em sua
existência, pois é um ser em relação. Não é apropriado restringir a análise e a
concepção da pessoa humana, como popularmente se fala e se ouve pela vida
afora: o homem é um ser que nasce, cresce, reproduz, envelhece e morre.
Muitas vezes, crianças e adolescentes fazem esse tipo de brincadeira, e, na ati-
tude, muitas pessoas adultas também agem como se esse fosse o sentido da
vida, fazendo, simplesmente, uma leitura biológica. Assim, valorizam uma
parte do ser em detrimento do restante. É comum valorizar uma dimensão em
detrimento das demais.

Dimensão espiritual

O signi�cado etimológico da palavra "espiritual" apresenta um problema de


terminologia especí�co da língua portuguesa.

O termo estóico para espírito é pneuma, e o latino, spirtus, com suas deriva-
ções nas línguas modernas – no alemão é Geist, em hebraico ru’ach. Não exis-
te problema semântico nessas línguas, mas existe um problema no português,
por causa do uso da palavra "espírito" equivocadamente, com um "e" minúscu-
lo. As palavras "Espírito" e "Espiritual" só são usadas para o Espírito divino e
seus efeitos no homem, e são escritos com "E" maiúsculo. A questão agora é
então: pode ser restaurada a palavra "espírito", designando uma dimensão
particular da vida humana? (TILLICH, 1984, p. 401).

Essa preocupação remete a uma questão fundamental para o entendimento


dessa dimensão da pessoa. O mesmo autor a�rma mais adiante, quando apon-
ta o espírito como poder de vida:

[...] espírito é o próprio poder de animar e não uma parte acrescentada ao sistema
orgânico. Contudo, alguns desenvolvimentos �losó�cos, aliados a tendências místi-
cas e ascéticas no mundo antigo tardio, separaram espírito e corpo. Nos tempos
modernos essa tendência chegou ao seu auge em Descartes e no empirismo inglês.
A palavra recebeu a conotação de "mente" e a própria "mente" recebeu a conotação
de "intelecto". O elemento de poder no sentido original de espírito desapareceu, e �-
nalmente a própria palavra foi descartada.

Martins (2009, p. 37) dimensiona o entendimento sobre a espiritualidade a�r-


mando que:

[...] quando falamos de espiritualidade, falamos de uma relação com algo superior à
própria materialidade. Não necessariamente estamos falando da relação com Deus,
tampouco com o Deus cristão...

Se não estamos no terreno religioso, então, onde se situa o entendimento da


questão em pauta? O mesmo autor a�rma que:

[...] entramos no terreno da �loso�a, precisamos considerar a espiritualidade com


base na questão da transcendência, uma questão genuinamente �losó�ca... No ser
humano há uma abertura para as coisas existentes e uma abertura para seu seme-
lhante, portanto, um ser-para-as-coisas e um ser-para-o-outro. A relação estabele-
cida com as coisas se dá no plano da objetividade e a relação com o outro se dá no
plano da intersubjetividade. Contudo, há um terceiro nível de abertura, que ocorre
no plano da transcendência. Uma abertura para o Absoluto... (MARTINS, 2009, p.
37).

A vida em si possui um signi�cado próprio e dá ao ser humano uma expressão


de totalidade. O ser humano tem um signi�cado especial e deve ser visto na
sua totalidade.

A questão fundamental que devemos analisar é como ajudar a pessoa a se


descobrir e a se perceber dessa forma. Quando se trata de totalidade do ser hu-
mano, trata-se das dimensões biológica, psicológica, social e espiritual. Sua
existência não está isolada, pois o ser humano é um ser de relação. Relação
essa que abrange o seu eu, o outro, o mundo e a transcendência, ocorrendo
uma inter-relação

Leonardo Boff (2003), teólogo e escritor, quando fala a respeito da vida que en-
volve o ser humano, especi�ca as características próprias da pessoa que co-
meça com a auto-organização, passa pela autonomia, pela adaptabilidade ao
meio e pela reprodução e culmina na autotranscendência.

Por isso, constantemente, ele chama a atenção para o cuidado, o respeito, a ve-
neração e a ternura que devemos ter para com a vida de maneira geral e a pes-
soa em particular. É a vida que garante a todos os seres a razão de seu existir,
do seu ser-no-mundo. Respeitar a vida, cuidar dela, tratá-la com veneração e
ternura são requisitos inerentes a todos nós que estamos em busca de um sen-
tido.

Entretanto, é preciso entrar em contato com algo que está implícito no ho-
mem: o espírito. Isso não elimina a importância dos outros aspectos da pes-
soa, que estão subentendidos no ser como um todo. Mas o que evidencia essa
espiritualidade? Quem nos dá essa resposta é Mondin (1998, p. 21), quando fala
que há:

[...] muitos indícios: a autoconsciência, a re�exão, a contemplação, o colóquio, a au-


totranscedência etc. Mas o indício mais certo, porém, é a liberdade. Esta é a condi-
ção própria do espírito. O espírito, e somente o espírito é essencialmente livre. [...] o
homem possui uma dimensão interior de natureza espiritual: a alma, a mente e o
espírito.

Completando essa a�rmação, Betto e Boff acrescentam que "Espírito é o ser


humano na sua totalidade enquanto ser que pensa, que decide, que tem identi-
dade, que tem subjetividade, é sujeito. [...] espírito é o modo de ser" (2005, p. 76),
pois "espiritualidade é a transformação que a mística produz nas pessoas, na
forma de olhar a vida, no jeito de encarar os problemas e de encontrar solu-
ções" (2005, p. 28).

Para aprofundar um pouco mais o que signi�ca essa dimensão espiritual, é


importante veri�car o que Mandrioni (1964, p. 53) escreve quando se refere a
ela:

[...] capacidade de re�exão; a plena consciência de si mesmo; a capacidade de sepa-


rar a essência universal da existência concreta e particular; o poder universaliza-
dor; o fator da liberdade e o âmbito inde�nido de possibilidades aberto aos atos hu-
manos; o poder de controlar seus impulsos mais poderosos a �m de ajustar sua
conduta à norma de um ideal percebido e valorizado; o poder de conceitualizar, jul-
gar e raciocinar; a capacidade de captar a ordem [...] o poder de transcender a relati-
vidade dos atos humanos e alcançar um conteúdo permanente, necessário e está-
vel [...] o fato de poder perguntar-se sobre o sentido do "Todo"; a capacidade de
construir a ciência; o sucesso da cultura com a imensidade de valores que concen-
tra...

Max Scheler (2003, p. 35) aponta o espírito como princípio ao mostrar a dife-
rença entre o homem e o animal:

O espírito é um princípio novo e ele abarca a razão, utilizada pelos gregos, abarca
um determinado tipo de intuição, que ele chama de intuição dos fenômenos origi-
nários ou dos conteúdos essenciais e abarca os atos volutivos e emocionais (a bon-
dade, o amor, o remorso, a veneração, a ferida espiritual, a bem-aventurança, o de-
sespero e a decisão livre), além disso, designa pessoa como sendo o centro ativo no
qual o espírito aparece no interior das esferas �nitas do ser.

No entanto, Scheler ainda acrescenta que o ser "espiritual" está aberto para o
mundo. "Espírito é com isso objetividade... Somente um ser capaz de levar a
termo tal pertinência às coisas "tem" espírito" (2003, p. 36). E acrescenta:

O ato espiritual, como o homem pode realizá-lo... leva ao "recolhimento em si",


"consciência de si mesmo por parte do centro espiritual do ato" ou autoconsciência.
Isso dá ao homem a possibilidade de "modelar livremente sua vida" (2003, p. 39).
Por força do espírito o homem é dado a si na autoconsciência e na objetivida-
de de seus processos psíquicos e de seu aparato senoriomotor (2003, p. 41).

O espírito envolve o ser humano no seu todo. A autoconsciência e a liberdade


representam para a pessoa a capacidade de entender seu papel no mundo. O
homem, e só ele, é capaz de conhecer seu passado e entendê-lo; de perceber-se
no presente e projetar seu futuro. Mas nessa dinâmica da vida pode fazer es-
colhas tornando-se pessoa na plenitude.

Como espírito, o homem goza de uma abertura sem limites, in�nita. Ele está
em busca da plena realização porque participa dessa esfera espiritual que o
coloca em contato com o in�nito. Como pessoa, é ser �nito se relacionando �-
nitamente com os outros seres, pois são seus semelhantes. Por isso, sua exis-
tência e sua autorrealização ocorrem enquanto se relaciona com os outros,
seus semelhantes.

Cada pessoa é o princípio de suas ações, de sua capacidade de governar-se


tendo em vista sua liberdade. Fundamentalmente, o ser humano é livre para
se realizar como pessoa e, por isso, responsável pelo seu projeto pessoal e so-
cial de vida (CLARETIANO, 2005, p. 23).

A pessoa que consegue olhar para si mesma se percebe como pessoa humana,
una e única, capaz de criar e dar respostas positivas a seus anseios e de con-
quistar todas as chances de fazer uma opção livre e consciente.

A evolução técnica experimentada nos últimos séculos desumanizou o ser hu-


mano. É importante que ele perceba que é coautor na construção do mundo;
por isso, deve agir com liberdade, responsabilidade e justiça. No entanto, ele
entenderá essa responsabilidade quando adquirir a liberdade de pensamento,
quando aguçar a capacidade de discernimento e puder compreender seus sen-
timentos e sua imaginação (DANIEL; SCOPINHO (2013, p. 72-82).

 
Vertendo-se para esse nível de compromisso, o Claretiano – Centro
Universitário, tendo em vista o ensino confessional, coloca como centro de su-
as preocupações o desenvolvimento integral da pessoa humana. Dessa manei-
ra, sua Missão é identi�cada da seguinte forma:

Capacitar a pessoa humana para o exercício pro�ssional e para o compromisso


com a vida, mediante a sua formação integral; missão essa que se caracteriza pela
investigação da verdade, pelo ensino e pela difusão da cultura, inspirada nos valo-
res éticos e cristãos e no carisma Claretiano que dão pleno signi�cado à vida hu-
mana (AÇÃO EDUCACIONAL CLARETIANA, 2012, p. 17).

Dito de outro modo, as pessoas são a primeira grandeza a ser considerada. Com esse intuito, foram de�ni-
dos 7 princípios institucionais, a saber:
• Princípio da Singularidade: cada pessoa merece atenção, respeito e valorização na comunidade educati-
va.
• Princípio da Abertura: a comunidade educativa está aberta ao diálogo e deseja servir às pessoas, à socie-
dade e ao mundo.
• Princípio da Integralidade: a comunidade educativa é profética e facilitadora da construção responsável
de si e da investigação da verdade.
• Princípio da Transcendência: queremos melhorar o que somos e fazemos.
• Princípio da Autonomia: na comunidade educativa cada um deve responder com empenho pelo bem de
todos.
• Princípio da Criatividade: queremos ser criativos e proativos no cumprimento de nossa missão.
• Princípio da Sustentabilidade: queremos que a instituição viva e faça viver com passos �rmes e de forma
sustentável no presente e no futuro (AÇÃO EDUCACONAL CLARETIANA, 2012).
Conheça na integra os princípios institucionais do Claretiano - Rede de Educação. (https://dev.redeclareti-
ano.edu.br/dev/res/emkt/2018/faculdaderco/credenciamento/principios.pdf)

Assim, em conformidade com tais princípios, têm sido estruturadas as inicia-


tivas da Instituição, visando contribuir para o desenvolvimento humano ne-
cessário a todos nós.

Pronto para testar seus conhecimentos? Responda à questão a seguir e identi-


�que se o seu aprendizado está e�ciente.

6. Considerações
Ao chegar no �nal deste ciclo, pudemos perceber que o entendimento que o
Claretiano possui a respeito da pessoa se distingue daquele predominante na
atualidade e de inúmeras correntes �losó�cas, antropológicas, sociais etc.

Vimos que o Claretiano entende a pessoa como um ser único e irrepetível,


considerando todas as pessoas, sem distinção nenhuma, visto que todas são
importantes e merecem nosso respeito e atenção.

Estamos inseridos em uma sociedade que faz distinção entre as pessoas e que
valoriza a pessoa que “possui mais”. O poder e o dinheiro acabam dando à pes-
soa uma importância que não corresponde à realidade, mas que é imposta pe-
la sociedade em que vivemos.

Nesse sentido, cabe a nós perceber essa situação e lutarmos para que o enten-
dimento a respeito da pessoa seja adequado à realidade que nos faz mais hu-
manos e humanizados. Não basta só conhecermos, é preciso vivenciar o
aprendizado.
(https://md.claretiano.edu.br/anteticul-

g00146-dez-2021-grad-ead/)

Ciclo 5 – Ética, Preconceitos e Fundamentalismos

Eugenio Daniel
Everton Luís Sanches
Sávio Carlos Desan Scopinho 

Objetivos
•  Entender a ética como estudo da moral, identi�cando a relação de reci-
procidade entre elas e suas respectivas distinções.
• Conhecer os campos de atuação da ética e sua importância nas relações
humanas e na vida em sociedade.
• Re�etir sobre a questão dos preconceitos e dos fundamentalismos no
atual contexto social e político mundial e brasileiro, entendendo-os co-
mo posturas que se apresentam contrárias a uma visão ética e cidadã.

Conteúdos
• Distinção entre ética e moral.
• Campos de atuação da ética.
• Crítica aos preconceitos e fundamentalismos.

Problematização
Qual é a diferença entre ética e moral? Quais são os campos de aplicação da
ética? O que são preconceitos e quais os seus tipos mais comuns? O que são
os fundamentalismos, quais as suas origens? Como podemos viver a cidada-
nia numa dimensão ético-planetária?

Orientação para o estudo


Não se limite ao conteúdo deste material didático; busque outras informa-
ções em sites con�áveis e/ou nas referências bibliográ�cas apresentadas.
Lembre-se de que, na modalidade EaD, o engajamento pessoal é um fator de-
terminante para o seu crescimento intelectual.

O estudo da ética é muito amplo e envolve diversas áreas do conhecimento,


por ser muito abrangente, complexo e, ao mesmo tempo, desa�ador. Dessa
forma, requer um conhecimento básico dos conceitos que serão apresenta-
dos. Para isso, sugerimos uma busca na ferramenta Dicionário e também em
dicionários de �loso�a.

A ética e sua relação com a moral apresenta enormes desa�os, pelo fato de
que nem sempre acontece de maneira crítica e racional. Suas interpretações
são muito variadas e dependem da cultura e do contexto histórico em que
elas estão inseridas. Por isso que a pretensão deste estudo não é apresentar
uma solução de�nitiva para o problema, mas oferecer elementos para que vo-
cê possa ter discernimento e elementos teóricos que ajudem a obter um posi-
cionamento que não se satisfaça com respostas banais e medíocres, diante
de uma temática tão importante para o ser humano e sua relação com a soci-
edade.

1. Introdução
Diante dos desa�os presentes, quando se procura entender quem é o ser hu-
mano em suas mais diferentes formas de linguagem, um tema que se apre-
senta como fundamental é a ética. O que signi�ca? Como entendê-la? Quais as
implicações que coloca para o ser humano? Essas e outras questões serão res-
pondidas na continuidade.

2. Distinção entre ética e moral


Facilmente, o senso comum e a ciência identi�cam a ética com a moral. No
entanto, há diferença entre elas.

De acordo com Scopinho (2013, p. 71):


A moral se refere à regulação dos valores e comportamentos considerados legíti-
mos por uma determinada sociedade, um povo, uma religião, uma tradição cultural
etc. Trata-se, portanto, de um fenômeno histórico-social particular, sem o compro-
misso com a universalidade. Isso signi�ca dizer que existem tantas morais quan-
tas forem as formas de convivência e de estrutura social entre os povos. Por exem-
plo, a moral católica tem sua importância dentro do contexto cultural de tradição
católica. O mesmo acontece com a moral islâmica, que se apresenta como uma for-
ma de comportamento dentro de um contexto religioso de tradição muçulmana.
Assim, cada tradição religiosa tem suas formas próprias de manifestação e expres-
são, embora todas elas apresentem uma característica comum, que é fazer parte de
uma determinada cultura, apresentando-se, portanto, com características eminen-
temente antropológicas.

As religiões, em geral, apresentam várias possibilidades de interpretação, por-


que isso depende de cada contexto religioso. Assim, em cada situação, são es-
tabelecidos critérios morais diferenciados. Um exemplo disso é uma situação
experimentada dentro da religião católica, que, em um contexto, diz que o cris-
tão não deve se envolver em transformação política, econômica, social e cul-
tural da sociedade. No entanto, há outra vertente, a da Teologia da Libertação,
mostrando que o cristão deve se inserir na transformação da sociedade, pois
entende que "[...] a fé não como um instrumento mágico de salvação, mas um
instrumento histórico de humanização" (MURAD, 1994, p. 85).

Tendo como enfoque a Teologia da Libertação, algumas tradições religiosas,


cristãs ou não, em especial, o catolicismo, contribuíram para o processo de
transformação da sociedade. O mesmo não ocorreu com alguns movimentos
apostólicos conservadores, que não fazem a opção por uma dimensão política,
econômica, social e cultural. A opção dessa vertente religiosa converge para a
dimensão espiritual. Assim, para essa vertente, é mais importante o aspecto
religioso, não o social. Essa opção religiosa pode ser encontrada no islamismo
(https://www.politize.com.br/islamismo-como-e-a-religiao-muculmana/),
mas também em parcelas consideráveis do catolicismo.

Como vimos anteriormente, a moral refere-se à regulação dos valores e com-


portamentos; já "[...] a ética deve ser entendida como o julgamento da validade
das morais ou como uma re�exão crítica sobre a moralidade. Nesse caso, todo
comportamento moral passa pelo juízo ético" (SCOPINHO, 2013, p. 72).
Se tomarmos como exemplo um caso citado por Ferreira Gullar, vamos perce-
ber que o comportamento moral contribui para entender a distinção entre a
ética e a moral:

[...] E li também que RukhsanaNaz, de 19 anos, grávida de sete meses de seu namo-
rado de infância, foi morta pelo irmão - estrangulada com um �o de náilon - en-
quanto a mãe lhe segurava as pernas para que ela não se debatesse. Em defesa da
honra. A mãe, enquanto ajudava o �lho na sua macabra tarefa, chorava desespera-
damente, mas nem por isso desistiu da decisão homicida. Gostaria de não ter que
fazer aquilo, mas não podia deixar de fazê-lo. Um poder maior que seu amor de
mãe a obrigava. Que poder é esse? O poder das ideias, dos valores culturais - sejam
eles, religiosos, morais ou ideológicos - que regem a vida das pessoas. Por isso,
creio não haver exagero em dizer que o homem, �lho da natureza, é de fato um ser
cultural que vive num mundo por ele inventado (GULLAR, 2005, p. 10 apud
SCOPINHO, 2013, p. 72).

Como a�rma Leonhardt (2008, p. 154), "[...] o homem é um ser eminentemente


cultural, infere-se que as atividades humanas − destacando-se o labor, o traba-
lho e a ação − dimanam dessa causa, são produtos da cultura".

Podemos perceber que, no caso citado por Ferreira Gullar, é preciso colocar um
posicionamento ético. Contudo, a ética não deve ser entendida como teoria.
Para Scopinho (2013, p. 73):

Ela tem que ser percebida como um conjunto de princípios e disposições voltados
para a ação, histórica e socialmente produzida, cujo objetivo é balizar as ações hu-
manas. A ética existe, portanto, como uma referência para os seres humanos em
sociedade, de tal modo que os próprios seres humanos possam se tornar cada vez
mais humanos, estabelecendo critérios para a análise do comportamento moral.
Diante do exemplo apresentado por F. Gullar, caberia a seguinte pergunta: qual deve
ser o posicionamento ético diante da moral assumida pela família de
RukhsanaNaz?

Tanto a moral quanto a ética não são um conjunto de verdades �xas e imutá-
veis. Nelas, devemos levar em consideração o caráter histórico e cultural, pois
os momentos históricos e as concepções culturais interferem muito no enten-
dimento ético e moral. Entretanto, é importante considerar que a ética se apre-
senta como o julgamento da moral.

 Saiba mais sobre moral na visão de Aristóteles!

Clique aqui (https://www.pucsp.br/pos/cesima/schenberg/alunos/paulo-


sergio/teologia.htm) e bons estudos!

Desse modo, a ética é a referência a princípios humanitários fundamentais,


que estão presentes em todos os povos, nações, religiões etc. A ética é o princi-
pal regulador do desenvolvimento histórico e social da humanidade. Ou seja,
ela é imprescindível.

De acordo com Amaral (2012):

Ethos (raiz de "ética"), em grego, designa a morada humana. O ser humano separa
uma parte do mundo para, moldando-a ao seu jeito, construir um abrigo protetor e
permanente. A ética, como morada humana, não é algo pronto e construído de uma
só vez. O ser humano está sempre tornando habitável a casa que construiu para si.
Ético signi�ca, portanto, tudo aquilo que ajuda a tornar melhor o ambiente para que
seja uma moradia saudável: materialmente sustentável, psicologicamente integra-
da e espiritualmente fecunda.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela ONU, no ano


de 1948, é apontada como sendo o objetivo a ser buscado por cada pessoa, cada
sociedade, en�m, por toda a humanidade.

No que diz respeito à ética, podemos encontrar, na Declaração, no artigo se-


gundo, dois itens que contribuem para um entendimento sobre a questão plu-
ralidade cultural (http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/pluralidade.pdf):
1 - Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabe-
lecidos nesta Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo,
língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, ri-
queza, nascimento, ou qualquer outra condição.

2 - Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídi-
ca ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de
um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer
outra limitação de soberania (ONU, 2020, p. 5).

 Vamos explorar a Declaração Universal dos Direitos Humanos?

Clique aqui (https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10


/DUDH.pdf) para ler a Declaração e conheça na íntegra todos os princípi-
os expressos.

Assim, cada ser humano está convocado a incorporar os princípios expressos


na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de modo a colaborar para que
o mundo seja melhor e mais sustentável, o que traria uma consequência ética
inevitável.

Se considerarmos que a moralidade vigente, muitas vezes, é exercida sob pres-


são de interesses religiosos, políticos e econômicos culturalmente determina-
dos, podemos a�rmar que ela sofre frequentes e graves degenerações e distor-
ções, além de desconsiderar a importância da ética, pautada nos direitos hu-
manos e no pleno exercício da cidadania.

Será que você compreendeu todo o conteúdo estudado neste tópico? Veri�que
sua aprendizagem respondendo à questão a seguir.

3. Campos de atuação da ética


A ética está presente em todos os campos de atuação das pessoas. Tanto que é
possível pensar de várias maneiras a aplicação da ética, de acordo com o
compromisso que é estabelecido pelo princípio ético em questão. Esse com-
promisso, para ser ético, deve direcionar-se ao benefício coletivo.

Retomando de outra maneira aquilo que já estudamos, navegue no infográ�co


a seguir, adaptado da obra do professor Vanderlei de Barros Rosas (2002), e ve-
ja algumas concepções de ética, como elas são organizadas em relação às re-
gras morais e aos seus direcionamentos.

CONCEPÇÕES ÉTICAS
Fonte: adaptado de Rosas (2002) (http://www.dnit.gov.br/download/institucional/comissao-de-etica/artigos-

e-publicacoes/artigos-sobre-etica/A�nal%20o%20Que%20e%20Etica.pdf).

Podemos dizer que o infográ�co retrata o caráter humano da ética, ou seja,


destaca que, enquanto criação humana, a ética não está isenta e sua aplicação
se �lia a objetivos bem especí�cos. A ética normativa compromete-se com a
obediência, a ética teleológica vincula-se com o capital, e a ética situacional
defende uma organização política vigente durante um período. Você já pensou
se alguma dessas três formas ou compromissos éticos predomina na sua vida
e qual deles? É uma re�exão válida, especialmente para nos atermos a como
organizamos nossas prioridades. Mesmo sendo éticos, a vida pode nos surpre-
ender com situações inesperadas, e as respostas que temos para o dia a dia
nem sempre são as melhores diante do contexto vivenciado.

 Conheça mais sobre ética!

Como vimos, a ética é fundamental na sociedade. Assim, sugerimos que


você aprofunde seus conhecimentos sobre esta temática realizando a lei-
tura do artigo Ética e modernidade (https://doi.org/10.1590
/S1414-98931991000100002), de Carlos Roberto Drawin. 
Agora, vamos conhecer alguns campos de aplicação da ética e os compromis-
sos especí�cos assumidos por eles. Você notará que, de alguma maneira, to-
das se vinculam, também, à defesa dos Direitos Humanos.

Espaço da convivência humana, o outro


O ser humano é um ser de relação. Ele está sempre se relacionando com outro
ser humano, seu semelhante. Nesse caso, como deve ser a atitude ética? A res-
posta é clara e precisa: atitude de amor à humanidade.

Nesse sentido, podemos considerar que algumas condições essenciais e de


base ética precisam ser construídas. Trata-se, nesse caso, especialmente, do
desenvolvimento da alteridade - ou seja, conhecer e aprender com o "lado do
outro" - debatida ao longo dos ciclos anteriores de estudos.

Justiça social
A noção de justiça social é muito presente na atualidade, pautada, inclusive,
na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Porém, sua discussão
remonta a noções que foram se transformando até chegarem aos dias atuais.
Por isso, vamos esclarecer alguns pontos centrais.

De acordo com Lacerda (2016), a de�nição de justiça social do jesuíta Luigi


Taparelli (1793-1862) faz menção apenas a uma noção liberal de liberdade pes-
soal e de igualdade perante a lei. Isso signi�ca tratar a liberdade como direito
de cada um, garantido a todos pela lei, mas sem menção especí�ca às condi-
ções econômicas, sem considerar se as condições materiais permitem ou não
o exercício dessa liberdade. Por uma vertente semelhante, caminharam outros
autores que trataram a expressão, como Antônio Rosmini (1797-1855) e
Sera�no Pachini (na sua obra Trattato della giustizia sociale, de 1865). Quem
esteve mais próximo do signi�cado atualmente atribuído à justiça social foi
Louis De Potter (1786-1859).
Segundo o autor, a única via que pode conduzir a humanidade à felicidade é a justi-
ça, pois somente por meio dela a liberdade de todos pode ser assegurada. A liberda-
de dissociada da justiça conduz à anarquia, situação que inviabiliza os projetos de
vida e, consequentemente, a felicidade das pessoas. Até aqui, as palavras do autor
nada trazem de novo em relação à ideia liberal então consolidada. Um pouco mais
à frente, no entanto, algo diferente vem à tona. Para De Potter, a "justiça social" exi-
ge também que não existam privilégios em demasia para os homens que tiveram a
sorte de nascer favorecidos, e que os privilégios existentes não sejam tão vultosos
de modo a "privar um único dos membros da sociedade das necessidades da vida
ou das vantagens da educação social" (LACERDA, 2016, p. 70-71).

Portanto, inicialmente, a justiça social estava ligada à igualdade perante à lei e


à liberdade pessoal, sem fazer menção à questão econômica ou à desigualda-
de de condições sociais. Contudo, De Potter tocou nesse tema, remetendo a
evitar que os privilégios de uns privem outros.

Alfred Fouillée (1899) tratou desse tema em um artigo, elucidando uma noção
de justiça social um pouco mais próxima daquela que é comum na atualidade.
De acordo com Lacerda (2016, p. 73):

O artigo de Fouillée é interessante porque usa a expressão "justiça social" em um


sentido bem mais próximo do de�nitivo. A vida social, cuja proteção se dá pelas vi-
as da justiça, não pode ser pensada pela eliminação do coletivo em prol do indiví-
duo, nem pela supressão deste em benefício daquele, mas como um arranjo de
compatibilização entre coletividade e individualidade. A liberdade também não de-
ve ser entendida como simples "poder de praticar ações", mas mais corretamente
como "poder efetivo" de fazer aquilo que se persegue como ideal de felicidade, o que
vai necessariamente exigir um espírito de solidariedade da sociedade em proveito
daqueles que são destituídos de bens ou que possuem poucas riquezas.

A discussão caminhou muito, até que, no século 20, tivemos uma compreen-
são mais clara de justiça social, a qual usamos como referência. Foi �cando
evidente que a justiça social não dizia respeito apenas a uma lei de Estado que
regulamentasse a relação entre indivíduos, assegurando a liberdade, mas in-
cluindo questões de âmbito da igualdade em seu sentido material. No bojo
dessas discussões, estavam consideradas as condições de miséria vistas na
Europa do século 19. Contudo, o debate avançou de modo a contemplar não
apenas o sentido material, mas também espiritual, ensejando a submissão da
economia a um caráter ético.

Por isso, a justiça social deve ser compreendida como algo mais que o direito a cer-
to nível de bem-estar material, pois é dever da sociedade política distribuir tam-
bém educação e bens culturais àqueles que não os possuem. Deste modo, além da
distribuição dos recursos materiais, compete às estruturas estatais repartir equita-
tivamente "também os interesses morais derivados da dignidade da pessoa huma-
na, os educacionais, comuns a todos os homens e ainda, também, na medida do
possível, os culturais em sentido amplo". De fato, é o que se diz hoje: fala-se em sa-
lário justo e em assistência aos carentes, mas também em direito à saúde, à educa-
ção, à cultura, ao lazer etc. (LACERDA, 2016, p. 85).

Portanto, justiça social remonta a um contexto de defesa da dignidade huma-


na e da utilização dos mecanismos estatais compatíveis a isso para a sua con-
secução efetiva. Na Constituição Federal de 1988, está exposto o posiciona-
mento o�cial do Brasil a esse respeito:

Ao contrário do direito constitucional americano, no qual os debates centrais se


dão em torno do conceito de igualdade, o direito constitucional brasileiro se articu-
la em torno do conceito de dignidade da pessoa humana, conforme determina o art.
1º, inciso III, da Constituição Federal. Em termos de Teoria da Justiça: ao passo que
a Constituição Americana pode ser vista como um esforço por realizar a ideia de
igualdade presente no conceito de justiça particular (distributiva e comutativa), a
Constituição Brasileira tem na justiça social, fundada na ideia de dignidade da pes-
soa humana, o cerne do seu ideal de justiça (GARCIA JÚNIOR, 2016).

Posto isso, considerando especialmente o contexto brasileiro e sua base con-


ceitual de justiça, é de suma importância fazer uma análise criteriosa com re-
lação ao sistema econômico, político e jurídico para perceber se a sua estrutu-
ra está causando desigualdade, injustiça, discriminação ou exclusão dos direi-
tos.

Se alguma dessas situações estiver acontecendo, pode-se considerar que esse


sistema é eticamente ruim, mesmo que ele seja moralmente constituído. Não
pode haver uma miséria estrutural, e, se ela ocorrer, a ética apontará que deve
haver transformações radicais na estrutura do sistema econômico.
 Vamos conhecer mais sobre justiça social?

Antes de prosseguir, clique aqui (https://pos.direito.ufmg.br


/rbep/index.php/rbep/article/viewFile/P.0034-7191.2016V112P67/341) e
leia o artigo Origens e consolidação da ideia de justiça social, de Bruno
Amaro Lacerda, para aprofundar seus conhecimentos sobre justiça soci-
al.

Meio ambiente
Quando o ser humano transforma a natureza pelo trabalho, ele cumpre a �na-
lidade de sustentar e humanizar o próprio ser humano. Contudo, isso deve le-
var em consideração a preservação da natureza, e não a sua destruição, como
acontece em muitos países. "Mais do que nunca, preservar e cuidar do meio
ambiente é uma responsabilidade ética diante da existência humana"
(SCOPINHO, 2013, p. 75). Relaciona-se com a terceira geração de Direitos
Humanos, identi�cada como defesa da solidariedade/fraternidade universal.
De inspiração na tomada de consciência posterior à primeira metade do sécu-
lo 20, entende-se a necessidade de preservação ambiental, tomando o meio
ambiente natural como patrimônio da humanidade.

A pessoa humana faz parte da coletividade humana e, por isso, tem direitos de
solidariedade por parte dessa coletividade. Isso inclui os direitos ao meio am-
biente pací�co, organizado e equilibrado (noção ecológica de equilíbrio).
Propõe o estímulo geral à preservação ambiental, defesa do patrimônio histó-
rico e cultural, combate à exploração predatória dos recursos naturais e proi-
bição de atividades contrárias à paz.

Para exempli�car os impactos ambientais nas populações futuras e a necessi-


dade de um compromisso ético orientado pelo princípio da fraternidade, va-
mos tratar de um caso especí�co, em que a questão ética quanto ao meio am-
biente é fundamental, impactando o Brasil e preocupando o mundo.
Acompanhe o estudo de caso a seguir.
Estudo de caso: a cidade de Mariana-MG antes e
 depois do rompimento da barragem

Informações gerais sobre a cidade:


• População estimada em 2019: 60.724 pessoas (em 2015, havia 58.802
habitantes).
• Primeira capital do estado de Minas Gerais.
• Rica em metais preciosos e minérios.
• Possui signi�cado histórico para o Brasil, tendo mais de 300 anos de
história e edi�cações do período colonial.
• Possui forte cultura local, com produção artesanal e turismo devido
aos aspectos históricos da região, além das paisagens naturais e ri-
queza ambiental.
• Possui alguns locais muito importantes, como o distrito de Bento
Rodrigues, com cerca de 612 habitantes e 317 anos, que possuía igre-
jas centenárias antes do desastre de 05/11/2015.
• Há também as Áreas de Preservação Permanente em sua região.
• Estrada Real no século 16: caminho que era feito pelo ouro e diaman-
tes extraídos da região de Mariana até o porto do Rio de Janeiro e
que, de lá, era transportado para Portugal (IBGE, 2020;
MARIANA.MG, 2020).

Forma de análise - conceitos

Para realizar uma análise rápida, usaremos dois conceitos simples, mas
bastante consistentes: Área de Preservação Permanente (APP) e Espírito
do Lugar.

Área de Preservação Permanente (APP)

De acordo com Lopes (2016, p. 8):


Conforme dispõe o artigo 3º, II do Novo Código Florestal - Lei n.º 12.651/2012,
considera-se Área de Preservação Permanente - APP a 'área protegida, co-
berta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os
recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, fa-
cilitar o �uxo gênico de fauna e �ora, proteger o solo e assegurar o bem-estar
das populações humanas' (BRASIL, 2012).

Espírito do Lugar

De acordo com Pereira Costa et al (2016, p. 7-8):

Segundo a Declaração de Quebec (2008, p. 03), o espírito do lugar é o conjunto


de bens materiais (sítios, paisagens, edi�cações, objetos) e imateriais (memó-
rias, depoimentos orais, documentos escritos, rituais, festivais, ofícios, técni-
cas, valores, odores), físicos e espirituais, que dão sentido, valor, emoção e
mistério ao lugar. A noção do espírito do lugar permite uma melhor compre-
ensão do caráter ao mesmo tempo vivo e permanente dos monumentos, dos
sítios e das paisagens culturais. Ela fornece uma visão mais rica, dinâmica,
ampla e inclusiva do patrimônio cultural. O espírito do lugar existe, sob uma
forma ou outra, em praticamente todas as culturas do mundo e é uma cons-
trução humana destinada a atender a necessidades sociais. Os grupos que
habitam o lugar, sobretudo quando se trata de sociedades tradicionais, deve-
riam ser estreitamente envolvidos com a salvaguarda de sua memória, de
sua vitalidade e de sua perenidade, ou mesmo de sua sacralidade. Ainda so-
bre a Declaração de Quebec (2008, p. 04), observa-se a preocupação dos auto-
res em se identi�car as ameaças que colocam em perigo o espírito do lugar:
levando-se em conta que a ocorrência de mudanças climáticas, do turismo
de massa, dos con�itos armados e do crescimento urbano conduzem a trans-
formações e a rupturas nas sociedades, faz-se necessária uma melhor com-
preensão dessas ameaças, a �m de se tomarem medidas preventivas e de se
planejarem soluções duráveis.

Resumidamente, esses dois conceitos-chave podem ser traduzidos da se-


guinte maneira: Área de Preservação Permanente (APP) constitui uma
área protegida devido à sua importância para o bem-estar das popula-
ções humanas; e Espírito do lugar, em síntese, é o conjunto dos bens ma-
teriais e imateriais, físicos e espirituais (que �guram no espírito humano)
que dão sentido/valor a um lugar. Com esses dois conceitos, de notável
relevância ética, vamos analisar suscintamente o signi�cado humano do
desastre de Mariana e o impacto sociocultural que ele alcança.

Para conhecer melhor a cidade de Mariana e região, assista aos vídeos a


seguir, que retratam a cidade antes da tragédia:
Vídeo 1 – Mega Drone - Imagens aéreas: Mariana/MG (https://www.you-
tube.com/watch?v=hbvJlV4Emxo)
Vídeo 2 – Terra de Minas - Trem da Vale (Mariana - Ouro Preto)
(https://www.youtube.com/watch?v=1mSCuCzNzm4)

Em 05/11/2015, ocorreu o rompimento da barragem de Fundão, localizada


no município de Mariana-MG, a qual armazenava rejeitos sólidos da mi-
neração realizada pela empresa Samarco, cujos maiores acionistas são a
Companhia Vale do Rio Doce e a anglo-australiana BHP Billinton. Esse
tem sido considerado o maior desastre ambiental do Brasil e o maior en-
volvendo ruptura de barragem do mundo.

Mariana depois do desastre

De acordo com o relatório da própria empresa Samarco, cerca de 32,6 mi-


lhões de m³ de rejeitos saíram do reservatório da barragem e atingiram,
também, a barragem de Santarém, que armazenava água usada no bene-
�ciamento de minério. O resultado relatado no site da própria empresa
foi: 19 pessoas mortas, destruição dos distritos de Bento Rodrigues e
Paracatu de Baixo, em Mariana-MG, e de uma parte do distrito de
Gesteira, em Barra Longa-MG. A empresa a�rma ainda no relatório de
07/11/2016, página 9:
Propriedades rurais, que somavam cerca de 2,2 mil hectares, �caram inunda-
das, impedidas de produzir. O material �uiu rio abaixo em direção ao Rio
Gualaxo do Norte e, na sequência, para o Rio Doce, prejudicando o abasteci-
mento público de água dos municípios da região. Cerca de 80% dos rejeitos
que desceram da Unidade de Germano �caram concentrados entre a área
pós-Fundão e a Usina Risoleta Neves, ou Candonga, nas proximidades de
Santa Cruz do Escalvado (MG), numa extensão de 113km. O restante seguiu
do Rio Doce para o mar, causando transtornos em municípios mineiros e do
litoral norte capixaba. Muitos desses problemas demandarão tempo para ser
contornados. A Samarco, porém, está comprometida a atenuar danos socioe-
conômicos e socioambientais ocasionados pelo rompimento da barragem
(SAMARCO, 2020).

Para maiores informações acerca do rompimento da Barragem do


Fundão, clique aqui (https://www.samarco.com/wp-content/uploads
/2017/01/Book-Samarco_�nal_baixa.pdf) e acesse o relatório completo da
empresa Samarco.

Veja a dimensão da tragédia ocorrida em 2015.


Vídeo 1 – Dossiê Mariana - UNISUAM (https://www.youtube.com/wat-
ch?v=sZ7MnzComGs)
Vídeo 2 – Rio Doce - Retrospectiva do Desastre de Mariana - Como está
hoje  (https://www.youtube.com/watch?v=mv5afPAx1YY)

Assim, considerando o impacto humano e ambiental, vamos traçar um


panorama à luz dos dois conceitos elencados para análise.

Aplicando os conceitos

A de�nição de uma APP (Área de Preservação Permanente) deve-se à sua


importância, de tal modo que, em hipótese alguma, essa área deve ser
afetada. Exige cuidado contínuo, pois não se sabe se podemos recuperar
sua estabilidade natural - e sua recuperação nunca fará que seja nova-
mente igual. Portanto, o dano a uma Área de Preservação Permanente
pode ser considerado irreparável; por isso, no caso analisado de
Mariana-MG, pode-se diminuir o efeito e permitir novamente a vida na
região, mas a área afetada precisará recomeçar e reescrever sua história
e suas memórias - inclusive memórias de esforço para melhoria ambien-
tal da região.

Desse modo, quanto ao Espírito do Lugar, ele também foi afetado de ma-
neira de�nitiva. Não será mais possível retomar o que ele foi. É necessá-
rio re�etir sobre o que ele foi antes da tragédia e construir o que pode ser
depois. É preciso buscar a memória do local, porém com o objetivo de tra-
çar uma nova história. Tendo sido um acontecimento de impacto tão
grande na região e o maior rompimento de barragem já registrado em
qualquer lugar do mundo, é imprescindível aprender com ele e evitar que
o mesmo ocorra em outras partes do Brasil e do mundo.

Contudo, o Decreto n.º 9.142, de 22 de agosto de 2017, do então presidente


Michel Temer, extinguia a Reserva Nacional do Cobre e Associados
(Renca), criada em 1984, localizada entre os estados do Amapá e do Pará,
e abria espaço para a mineração privada na região. A reserva mineral en-
globa unidades de conservação ambiental, além de territórios indígenas.
O governo defendeu, naquele momento, que isso não afetaria a área e até
ajudaria na preservação. As repercussões sobre o efeito desse decreto
promoveram o debate sobre a possibilidade de ocorrer novamente um
"imprevisto", como o que ocorreu em Mariana-MG, resultando em novos
desastres. Diante disso, o decreto foi revogado em 25 de setembro de 2017,
mantendo as garantias anteriores.

Ainda assim, podemos considerar que tal imprevisto já aconteceu, na ci-


dade de Brumadinho (https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/brumadinho
/pesquisa/1/21682), em 25 janeiro de 2019, quando a barragem B1 da Mina
Córrego do Feijão se rompeu (https://ufmg.br/comunicacao/noticias
/entenda-quais-sao-os-impactos-ambientais-do-rompimento-da-
barragem-em-brumadinho) e vitimou quase 300 pessoas, atingindo cer-
ca de 133 hectares de Mata Atlântica (UFMG, 2019).

Assista ao documentário Memórias Rompidas - Tragédia em Mariana


(https://www.youtube.com/watch?v=uxGORp0HGic), que mostra deta-
lhes do rompimento da Barragem de Brumadinho, ocorrido em 2019.

Clique aqui (http://www.vale.com/brasil/pt/aboutvale/servicos-para-


comunidade/minas-gerais/atualizacoes_brumadinho/paginas/acoes-da-
vale-em-brumadinho.aspx) e conheça as ações de recuperação ambien-
tal e social em Brumadinho promovidas pela empresa Vale.

Concluindo, permanece, no âmbito ético, a preocupação com o equilíbrio am-


biental, preocupação essa que impacta diretamente na vida material e espiri-
tual de pessoas em todo o planeta.

 Quer conhecer outros desastres ambientais ocorridos no Brasil?

Clique aqui (https://etica-ambiental.com.br/desastres-ambientais-do-


brasil/) e leia a matéria: Relembre os maiores desastres ambientais da
história do Brasil, publicada no site Ética Ambiental.

4. Educação
A educação está amplamente ligada à dignidade do ser humano, integrando
os objetivos de justiça social, conforme vimos. É pela educação que é apresen-
tada a ação interativa. Na educação, o ser humano relaciona-se com o outro
ser.

Para tratar de maneira introdutória o tema, vamos partir de um esquema sim-


ples, em que a função da educação e sua complexidade é colocada numa rela-
ção de equilíbrio ou harmonização entre indivíduo e sociedade. Acompanhe:
Fonte: Sanches (2017, p. 97).

Assim, na base do papel da educação, está o desenvolvimento do indivíduo e


da sociedade, assim como do indivíduo para a sociedade e com a sociedade.

De acordo com a Constituição brasileira de 1988:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovi-
da e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvi-
mento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua quali�cação para
o trabalho (BRASIL, 1988).

Na continuidade, artigo 206, a Constituição defende, ainda, em seus três pri-


meiros incisos:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o sa-


ber;

III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de institui-


ções públicas e privadas de ensino; (BRASIL, 1988).

Dessa maneira, podemos traçar um panorama em que a educação, dentro da


compreensão ética defendida pela Constituição brasileira de 1988, está direta-
mente ligada ao princípio da promoção da dignidade humana e do desenvolvi-
mento integral do ser humano, de maneira livre e democrática.
A segunda geração de Direitos Humanos, contemplada pela Declaração
Universal de Direitos Humanos (1948), também faz menção direta à educação,
entre outras coisas. Ela propõe a defesa da igualdade; dos direitos sociais, cul-
turais e econômicos. De inspiração nas consequências negativas da
Revolução Industrial (século 18), que alcançam os séculos 19-20, ela inclui os
direitos de acesso à alimentação, saúde, moradia, educação, condições dignas
de trabalho com salário justo e de participação da vida cultural. Propõe, ainda,
a defesa em relação à miséria, doença e ignorância (esse é um ponto em que a
educação é fundamental), promovendo o acesso de todos à riqueza produzida
pela humanidade, assim como aos recursos e ao progresso cientí�co de que
ela (a humanidade) dispõe para benefício humano.

 Saiba mais!

Dando continuidade aos seus estudos, clique aqui (http://www.crian-


ca.mppr.mp.br/pagina-1796.html) e saiba mais sobre a importância da
educação e os posicionamentos o�ciais da ONU, da UNESCO e do Brasil.

5. Bioética
Um campo que demanda uma abordagem mais aprofundada é o campo da bi-
oética. Bioética, por de�nição, reúne duas áreas distintas, que são a da biolo-
gia, enquanto estudo da vida, e a da ética, tal qual estamos estudando. De acor-
do com Azevedo (2010, p. 255), esta disciplina:

Teve na sua origem, entre outros, um pro�ssional humanista, Van Potter, que consi-
derou a Bioética como "ponte para um futuro com dignidade e qualidade de vida
humanas", onde a responsabilidade assume a dimensão mais importante para a
sua efectividade, como ética prática ou aplicada.

Conforme Azevedo (2010, p. 55) destaca, a Enciclopédia de Bioética de Reich


(REICH, W. T. Encyclopedia of bioethics. 2. ed. New York: 1995. 1: XXI) de�ne
esse campo da ética como "[...] o estudo sistemático da conduta humana no
âmbito das ciências da vida e da saúde".

O termo "bioética", usado desde o início do século 20, ganha força devido às
mudanças na sociedade, especialmente no campo cientí�co.

O avanço cientí�co e tecnológico vem propiciando inúmeras possibilidades ao ho-


mem, notadamente no que diz respeito às pesquisas que visam desvendar os "mis-
térios" do ser humano.

Nessa corrida em busca de respostas, surgiram os mais variados con�itos entre ci-
ência e ética. Visando dirimir tais con�itos, surge, na década de 70, a bioética, cuja
�nalidade é auxiliar a humanidade no sentido de estabelecer diálogos entre os di-
versos ramos do conhecimento, objetivando a re�exão acerca das soluções para
questões éticas provocadas pelos avanços cientí�cos, principalmente no que diz
respeito aos direitos humanos (QUAGLIO; DANIEL, 2008).

Portanto, a bioética implica no tratamento ético às questões que se relacionam


à biologia, especialmente no trato com seres humanos. Possui aplicação práti-
ca para a justiça e para a preservação da autonomia de todas as pessoas, mes-
mo aquelas que possuem di�culdades físicas (princípio da bene�cência e jus-
tiça). Quem possui condição plena de exercer sua autonomia, considerando,
nesse caso, suas condições físicas, deve garantir também o mesmo direito às
pessoas que não possuem as mesmas condições. Também diz respeito ao tra-
to consciente com seres vivos de modo geral, na realização de experimentos e
em atitudes de interesse social, como eutanásia, aborto, suicídio, pesquisas
com células-tronco etc. É uma área interdisciplinar, que envolve direito, socio-
logia, �loso�a, antropologia, biologia, história, teologia, saúde, entre outras.

 Conheça todos os aspectos que envolvem a bioética!

Como você viu, a bioética envolve diversos aspectos - e agora é a hora de


você se aprofundar em cada um deles. Clique aqui (http://www.scie-
lo.mec.pt/pdf/nas/v19n4/v19n4a05.pdf) e leia o artigo Origens da
Bioética, de Maria Alice da Silva Azevedo.
A bioética é identi�cada com a quarta geração de Direitos Humanos, que pro-
põe a defesa do patrimônio genético da humanidade. De inspiração no recente
processo de globalização da economia capitalista (a partir da década de 1970 e
especialmente depois do �m da Guerra Fria, em 1989), essa geração de Direitos
Humanos tem como norte as inovações tecnológicas no mundo capitalista,
podendo interferir, inclusive, na estrutura genética do ser humano. Inclui, as-
sim, a preservação do patrimônio genético do ser humano, regulamentando e
limitando o alcance de pesquisas cientí�cas nessa área. Propõe que nenhum
indivíduo pode ser submetido a determinadas manipulações provenientes de
experimentos genéticos, uma vez que se trata de proteger não apenas esse in-
divíduo, mas toda a espécie humana.

 Saiba mais!

Para maiores informações sobre os tratados internacionais de Direitos


Humanos, recomendamos que você faça a leitura do artigo Tratados in-
ternacionais no Direito Brasileiro (https://jus.com.br/artigos/22917), de
Mário Luiz Silva.

Sobre os direitos civis e políticos, clique aqui (http://www.dhnet.org.br


/direitos/novosdireitos/direitoscivis/weiss_direitos_civis_politicos.pdf)
e leia um artigo de Carlos Weis.

Assim, a bioética encontra, na interdisciplinaridade, o caminho para a concei-


tuação da responsabilidade do pesquisador quanto ao alcance de suas pesqui-
sas e dos métodos usados para se alcançar os resultados. O interesse coletivo,
assim entendido, deve ser respeitado tanto ao conceber os �ns almejados
quanto no uso dos meios para alcançá-los. Acompanhe os vídeos a seguir.
Portanto, a ética pode ser de�nida como um princípio regulador da sociedade,
cuja �nalidade é possibilitar o exercício da cidadania e o reconhecimento dos
plenos direitos da pessoa humana, tanto individuais quanto sociais. Mas ain-
da permanece a questão: é possível, de fato, concretizar uma ética e respectiva
ação moral que respeitem a condição humana na sua totalidade?

 Vamos conhecer mais sobre ética segundo Leonardo Boff?


Para um maior esclarecimento dos conteúdos tratados anteriormente re-
lacionados à ética, recomendamos a leitura da publicação de Leonardo
Boff, Saber cuidar: ética do humano (http://cursa.ihmc.us
/rid=1GMSLFWNB-5RXV9C-
GSQ/Saber%20Cuidar%20-%20Etica%20do%20Humano.pdf). 

6. Ética coisi�cadora ou humanizadora?


A expressão "ética coisi�cadora" não é uma expressão adequada quando fala-
mos sobre ética, mas ajudará a entender o que pretendemos demonstrar quan-
do falamos de uma ética humanizadora, ou seja, o real sentido da palavra éti-
ca.

Uma ética coisi�cadora do ser humano


Vamos entender o que é ética coisi�cadora por meio de um exemplo apresen-
tado pelas ciências. As implicações éticas das ciências modernas, desde o seu
início até a sua evolução, são alvos de muitas discussões. A ciência tem alcan-
çado um grau de desenvolvimento nunca antes percebido pela humanidade,
portanto, ela apresenta valores que não podem ser menosprezados. No entan-
to, podemos considerar que nem sempre houve uma contribuição para o reco-
nhecimento da plena dignidade humana. Esse fato coloca a necessidade de se
considerar a relação entre ciência, ética e cidadania. A compreensão de cada
um dos termos não é uma tarefa fácil por apresentar diversas abordagens a
respeito, o que não torna a temática irrelevante (GALLO, 1997).

Podemos perceber que existe uma postura ética que não se preocupa com este
assunto, pois não acredita na sua importância. Para essa interpretação, a ciên-
cia não necessita desse tipo de indagação, por se apresentar com característi-
cas particulares. Scopinho e Daniel (2013, p. 108) a�rmam que a ética "[...] é en-
tendida a partir de uma concepção positivista, que estuda a sociedade da
mesma maneira que se estuda a vida social das formigas ou das abelhas".
A ideia de que a sociedade pode ser entendida como coisa (E. Durkheim) trou-
xe várias implicações para o estudo das ciências não somente na área das ci-
ências exatas e biológicas, mas também na área das ciências humanas.

A mentalidade positivista esteve presente em várias ciências, desde a


Sociologia até a Psicologia, passando pela Teoria da Evolução e pela Física. A
Psicologia, por exemplo, que começa a ser entendida como ciência somente a
partir do século 19, re�ete esse tipo de pensamento. Fundamentando-se numa
concepção positivista da mente humana, ela não se preocupou com questões
ligadas à alma (psyque). A tendência behaviorista, na sua formulação inicial,
ressaltava o estudo do indivíduo apenas interagindo com o meio, baseando-se
na relação entre estímulo e resposta. Essa concepção teve di�culdade em tra-
balhar com o método da introspecção, que salientava as questões da alma, e
não somente o indivíduo e o meio (JAPIASSU, 1995).

As implicações éticas tornam-se evidentes quando se nega a condição huma-


na na sua complexidade. Quanto aos seus diferentes ângulos de compreensão,
podemos a�rmar que há um risco em interpretá-la como coisa. Esse processo
de coisi�cação apresenta sérias consequências para a sociedade e para o pró-
prio ser humano. Uma delas é a valorização excessiva das ciências, privilegi-
ando uma minoria, enquanto a grande maioria padece as consequências des-
sa evolução. A pesquisa cientí�ca avança nos diferentes campos da realidade,
enquanto uma parcela considerável da população não tem as mínimas condi-
ções para sobreviver (ASSMANN, 1994).

Um exemplo disso é a sociedade brasileira, que convive com uma diferença


exorbitante de ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres, classi-
�cando o Brasil como um dos países com pior distribuição de renda do mun-
do, com excelentes centros de pesquisa e, ao mesmo tempo, com uma situação
de extrema miséria. Ou no continente africano, onde os seus membros mor-
rem por motivos de doenças como a AIDS, ou por causa de guerras civis, sem o
apoio de organismos internacionais. Isso porque, como é um continente que
não interessa política e economicamente, seus problemas são irrelevantes pa-
ra o capitalismo globalizado.

A sociedade contemporânea tomou proporções alarmantes, criando relações


de dependência e intercâmbio entre todos os países do planeta. Essa situação
não considera a dignidade da pessoa humana. A abordagem é apenas de or-
dem econômica em detrimento da solução dos problemas sociais, tidos como
insigni�cantes para a manutenção de um pretenso crescimento econômico.

Diante desse quadro, podemos a�rmar que:

[...] parece que não existem saídas plausíveis. A apatia e a falta de perspectivas ge-
ram um sentimento de desânimo generalizado. Basta olhar para a política no
Brasil, diante dos casos de fraude e corrupção cada vez mais evidentes nos três po-
deres: o executivo, o legislativo e o judiciário. Ou o papel da imprensa diante destes
fatos e de tantos outros que envolvem vários campos da sociedade civil e política.
Na maioria das vezes, se percebe que ela não quer contribuir para o esclarecimento
dessas questões, mas quer apenas criar sensacionalismo e uma divulgação que não
considera as causas reais desses acontecimentos. E a violência explícita e implíci-
ta presente na sociedade? Não podemos deixar de nos preocupar com toda essa
problemática. Por isso, torna-se necessário pensar um projeto ético que resgate a
cidadania e o valor do ser humano não apenas como objeto de consumo, de propa-
ganda e de pesquisa (SCOPINHO, DANIEL, 2013, p. 110).

Um projeto ético humanitário


Existe saída diante de um projeto social que não prioriza o ser humano na sua
integralidade? Como ser protagonista numa sociedade em que a grande parte
da população apenas recebe as informações e decisões sem se comprometer
com uma ação que transforme a realidade? Podemos ter uma postura coisi�-
cadora da sociedade e agir de uma forma passiva?

Podemos a�rmar, com segurança, que é possível concretizar um projeto ético


humanitário, e, para obtê-lo, precisamos ter vontade para isso. Esse deve ser o
compromisso de todos - e o caminho é o da solidariedade, que se concretiza
em atitudes de humanos para com humanos. Só assim será possível obter re-
lações sociais com características justas e equitativas, sem esquecer o respei-
to pela natureza.

A solidariedade nos faz reconhecer o outro como pessoa. Nenhum ser huma-
no é objeto, é coisa; ele deve ser respeitado em todas as suas dimensões.
A solidariedade implica no compromisso com aqueles que são excluídos da
sociedade. É possível criar um processo de inclusão, no qual todos possam ter
os direitos plenamente reconhecidos, mas enquanto existir tamanha desigual-
dade social e enquanto tantas pessoas tiverem de viver embaixo de pontes e
viadutos, ou "puxando carroças" para sobreviverem, é sinal de que ainda há
muita coisa para ser feita. Talvez, diante disso, possamos sentir uma impres-
são de impotência. O que pode ser feito para transformar essa realidade? Basta
dar um pedaço de pão para quem precisa, ou dar uma esmola para um mendi-
go que nos interpela na rua? Se isso não for su�ciente, como reverter uma es-
trutura geradora dessa situação?

O primeiro ponto a ser discutido é a necessidade de se fazer alguma coisa den-


tro das nossas possibilidades. Dessa maneira, toma-se consciência do proble-
ma.

Contudo, muitas pessoas não se deparam com esse tipo de questionamento.


Existe um desconhecimento que ocorre ou por ignorância ou por negligência
e omissão. Se o problema atinge a todos, somos chamados a compartilhar com
a transformação; do contrário, estaremos legitimando a situação vigente.
Podemos recuar, mas, se o �zermos, estaremos nos colocando como coniven-
tes com a maneira com a qual a sociedade está se organizando, tanto no de-
senvolvimento das ciências como nas relações políticas e econômicas.

Quando se trata de relações sociais, somos motivados para criar uma ética hu-
manitária. A sociedade precisa oferecer condições de vida básica, para que o
ser humano viva dignamente. E levantar esses aspectos é considerar duas
grandes áreas prioritárias: saúde e educação.

Somente com uma população saudável, na qual a medicina, por exemplo, não
seja apenas curativa, mais preventiva, é que será possível garantir os direitos
à saúde, ao trabalho, ao lazer, à habitação, entre outros. Uma vida saudável,
que englobe todos esses elementos, exige também uma educação não somente
alfabetizadora, mas conscientizadora (FREIRE, 2000). Atualmente, essa tarefa
pode ser concretizada por várias instâncias da sociedade, que vai desde o en-
sino institucional até outras formas de organização, como sindicatos, ONGs e
empresas. A luta deve ser de todos, especialmente daqueles que estão inseri-
dos diretamente na prática pedagógica, atuando como agentes de conscienti-
zação libertadora e promotora da vida.

Saiba mais sobre ética, seu princípio humanizador e antropológi-


 co!

Recomendamos que faça a leitura da publicação de Ana Leonor Santos,


Para uma Ética do como se. Contingência e Liberdade em Aristóteles e
Kant (http://www.lusoso�a.net/textos/santos_ana_leonor_pa-
ra_uma_etica_do_como_se.pdf) (2008).

Com relação à natureza, podemos a�rmar não se tratar só de deixar de cortar


árvores - isso também, mas, muito mais que isso, é preciso recuperar e manter
o ecossistema, pois a natureza não pode ser tratada como um objeto de explo-
ração e de consumo.

Quando tomamos conhecimento de acontecimentos como o desmatamento da


�oresta amazônica, a dizimação dos índios (que cada vez mais perdem o direi-
to à terra), a destruição da camada de ozônio, entre tantos outros, nossa posi-
ção não pode ser de passividade. É preciso se manifestar, apoiando iniciativas
presentes na comunidade ou criando novas iniciativas pessoais ou com um
grupos de amigos, sensíveis aos problemas. Se nos calarmos, quem irá se ma-
nifestar é a própria natureza, e, quando isto acontecer, poderá ser tarde demais
para pensar numa solução viável e capaz de reverter o caos.

 Saiba mais!

Neste momento, clique aqui (http://www.rainhamaria.com.br/Pagina


/193/CARTA-ENCICLICA-VERITATIS-SPLENDOR) e leia a Carta Encíclica
Veritatis Splendor, escrita pelo Papa João Paulo II, que aborda questões
do ensinamento da moral da igreja.
Assim, apresentamos alguns elementos daquilo que estamos denominando
ética humanitária. A metodologia ou o caminho a ser seguido depende de ca-
da um; o fato é que não podemos �car parados, esperando os problemas apare-
cerem. Temos que fazer a nossa parte!

Sugerimos, neste momento, que você dê uma pausa na sua leitura e re�ita so-
bre sua aprendizagem, respondendo à questão a seguir.

7. Crítica aos preconceitos e fundamentalis-


mos
Para realização de um projeto ético humanitário, é preciso superar algumas
questões que, muitas vezes, estão enraizadas em nossa mente e até mesmo na
nossa forma de ver e atuar no mundo. Referimo-nos, aqui, a dois assuntos que
são fundamentais quando se quer re�etir sobre as implicações éticas no mun-
do contemporâneo: preconceitos e fundamentalismos. A seguir, vamos enten-
der cada um deles.

Preconceito
Em seu sentido mais simples, podemos identi�car o preconceito como uma
ideia formada sobre algo que não se conhece, ou um conceito que antecede o
conhecimento/experiência daquilo que está sendo conceituado.

Podemos considerar, ainda, que se trata de um comportamento comum diante


daquilo que é desconhecido: sem um precedente claro que permita se formar
um valor a respeito, é feita uma tentativa aproximativa. Ou seja, constitui uma
forma de transformar o desconhecido em "conhecido", sem passar pela expe-
riência, baseando-se, portanto, em crenças e motivações afetivas.

Mas por que evitar a experiência de conhecer o diferente? Bom, muitas vezes a
diversidade em que vivemos pode nos expor ao reconhecimento de riscos. É
comum buscarmos uma vida previsível, organizada e segura, de acordo com
nossos entendimentos e costumes, crenças e hábitos. Contudo, uma circuns-
tância ou pessoa pode nos expor ao conhecimento de que as coisas não são
exatamente da maneira que acreditávamos. O preconceito pode ser uma saída
para fugir dessa indesejável experiência.

De um lado, a experiência é fortemente impedida pelos riscos que enuncia de co-


nhecer algo que é distinto daquilo que se formou, ou daquilo a que se reduziu o ob-
jeto preconcebido; de outro lado, o pensamento é reduzido a tarefas também já pre-
concebidas pelas necessidades industriais. A realidade, não se mostrando em sua
diversidade, impede o movimento da consciência em direção ao combate ao sofri-
mento existente, pois este é iludido sem por isso deixar de existir. Do mal-estar re-
sultante provém o preconceito (CROCHIK, 1996, p. 69).

Considerando a sociedade contemporânea, com seu ritmo de vida de�nido pe-


lo trabalho contínuo e mecanizado, temos um caminho de�nido e que parece
ser coerente, dentro do qual colocamos nossos afetos, família, amigos e siste-
ma de crenças. Ao assumir esse caminho, o indivíduo o interioriza e toma-o
como uma realidade única e universal.

Assim, aquilo que se interpõe a esse modo de entender a vida pode ser precon-
ceituosamente negado ou taxado como inadequado, desconsiderando a com-
plexidade e diversidade humana inerente à vida em sociedade. O indivíduo, ao
sentir-se confrontado por uma realidade diferente da sua, enfrenta uma espé-
cie de constrangimento. Ao defender-se desse constrangimento, o preconceito
surge como uma forma de se retirar do dilema e impingi-lo ao outro.

Mas há algumas implicações de tal atitude. De acordo com Novo (2019):

Preconceito nada mais é do que uma ideia ou conceito formado antecipadamente e


sem fundamento sério ou imparcial. Quer dizer, pode ser caracterizado como um
juízo preconcebido, geralmente manifestado na forma de atitude discriminatória
perante pessoas, lugares, tradições, crenças etc. Preconceito é um juízo pré-
concebido, que se manifesta numa atitude discriminatória perante pessoas, cren-
ças, sentimentos e tendências de comportamento. É uma ideia formada antecipa-
damente e que não tem fundamento crítico ou lógico.

Dessa maneira, o preconceito pode gerar uma compreensão equivocada de


pessoas e situações, levando à discriminação e a classi�cações precipitadas. O
preconceito não parte de uma análise do objeto e, por isso, resulta em conclu-
sões que o excluem, substituindo-o por uma apreciação que possa fazê-lo "ca-
ber" dentro de um estigma.

ATENÇÃO!
Estigma vem do latim stigma, stigmătis. "Marca de ferro em brasa, ferrete (impresso em es-
cravos como sinal de desgraça). Estigma. Corte, cicatriz" (REZENDE, 2014).
É um conceito ou categoria de análise usada em estudos sociológicos, antropológicos, na
área da saúde e também na psicologia, assim como na linguística. Diz respeito a uma rotu-
lação, como uma marca destinada àqueles que cometerem desvios de conduta. "Na de�ni-
ção goffmaniana, um estigma, que incide sobre indivíduos e grupos socialmente desabona-
dos, aplica-se não de maneira direta, considerando-se características em si mesmas negati-
vas, mas a partir da violação das expectativas normativas sustentadas culturalmente sobre
a apresentação social de um indivíduo em diferentes contextos de interação social" (BIAR,
2015, p. 113).
Para saber mais, clique aqui (http://revistas.unisinos.br/index.php/calidoscopio/article/vi-
ew/cld.2015.131.11).

Caniato (2008, p. 22) elucida que o preconceito é uma forma de defender a he-
gemonia. Isso signi�ca que apenas alguns grupos de pessoas que se compor-
tem e/ou pensem da mesma maneira sejam tomados como corretos, e os de-
mais são taxados como errados. Trata-se, portanto, de um con�ito entre for-
mas de entender e viver a vida, em que está em jogo defender a concentração
de oportunidades e poder em um grupo especí�co.

Embora categorizações excludentes existam em todos os agrupamentos humanos,


no contexto classista da sociedade capitalista, o preconceito preenche, mais ou me-
nos intencionalmente, uma função ideológica encobridora da primazia de oportu-
nidades para os grupos hegemônicos (CANIATO, 2008, p. 22).

Todavia, o preconceituoso defende que seu posicionamento é o mais correto,


que não deve ser questionado e que aqueles que o questionam são expressões
de um mal proeminente - ou estão abaixo do nível aceitável.
Muitas vezes, o preconceito manifesta-se diante do con�ito entre posiciona-
mentos ou características de pessoas e grupos sociais.

As representações preconceituosas, uma das expressões da violência social,


manifestam-se por meio de signos de periculosidade distintos e com atribuição de
perversidades a indivíduos e grupos diferentes. Isso porque a escolha de quem deve
ser hostilizado atende a interesses político-econômicos hegemônicos de cada épo-
ca (CANIATO, 2008, p. 22).

Diante da diferença, com o intuito de caracterizar no comportamento das pes-


soas a dualidade "bem" e "mal" ou "certo" e "errado", o preconceito é um recur-
so de organização do poder na sociedade, que sempre foi utilizado e segue as
determinações de cada período histórico. Desconsiderando a possibilidade de
coexistência de diferentes processos humanos, esse recurso de�ne quem é
bem-vindo e quem deve ser rejeitado, estigmatizando as diferenças e
tratando-as como símbolos da maldade.

Esse processo de "dividir para reinar", portanto, sofre as consequências de determi-


nações históricas e, na contemporaneidade, exprime-se de forma cada vez mais
encoberta e sutil. Consequências destrutivas permeiam a vida dos estigmatizados
pelo preconceito, em especial quando tais representações são internalizadas in-
conscientemente pelos indivíduos destinatários do preconceito, que se tornam
"portadores" de tais atribuições de malignidade (CANIATO, 2008, p. 22).

Dito de outra maneira, devido ao preconceito ser manifestado como se fosse


algo natural, propondo-se a de�nir o mais correto a ser feito, muitas vezes, é
difícil entender quando ele está sendo aferido. A não identi�cação do precon-
ceito pode levá-lo a ser tomado como verdade no ambiente social, assim como
à sua integração na psique do indivíduo estigmatizado. Assim, até a vítima
passa a olhar-se com preconceito, podendo estender essa forma de ver aos ou-
tros.

Por tratar-se de um processo comum em várias sociedades e que acompanhou


a história da humanidade, o preconceito é objeto de estudos que demonstram
a sua presença e alcance na atualidade, tanto do ponto de vista social quanto
psíquico.
Uma das questões centrais sobre o preconceito refere-se a como se dá a relação en-
tre os aspectos psíquicos e sociais na sua constituição. Conforme as pesquisas de
Allport (1946) e de Adorno et al. (1965) mostram, o preconceito não é inato; ele se
instala no desenvolvimento individual como um produto das relações entre os con-
�itos psíquicos e a estereotipia do pensamento - que já é uma defesa psíquica con-
tra aqueles - e o estereótipo, o que indica que elementos próprios à cultura estão
presentes (CROCHIK, 1996, p. 47).

Em outras palavras, o preconceito não nasce com as pessoas ou grupos soci-


ais, ele é construído ao longo de um processo mais abrangente. Esse processo
é ao mesmo tempo psíquico (depende das características internas do indiví-
duo) e cultural (está de acordo com a cultura que rodeia esse indivíduo e da
qual ele faz parte).

Assim entendido, há certo grau de complexidade entre o preconceito, aquele


que o manifesta e suas vítimas.

Por outro lado, essas pesquisas indicam também que o indivíduo que apresenta o
preconceito em relação a um objeto tende a apresentá-lo em relação a outros obje-
tos, o que revela uma relativa independência do indivíduo que porta o preconceito e
o objeto ao qual esse se destina (CROCHIK, 1996, p. 47).

Desse modo, o preconceito pode estabelecer mais que uma relação de repulsa
de alguém (pessoa ou grupo social) a esse ou aquele indivíduo/grupo: pode
constituir um padrão de atitude que direciona a ação geral de determinadas
pessoas em relação a todas as coisas.

Contudo, como são diversos os estereótipos presentes nos preconceitos que são di-
rigidos a diferentes objetos, algo destes últimos deve estar presente para a consti-
tuição daqueles, ainda que não se re�ra aos próprios objetos, mas à percepção que
se tem deles. Ou seja, ao mesmo tempo que podemos a�rmar que o indivíduo pre-
disposto ao preconceito independe dos objetos sobre os quais aquele recai, pode-
mos dizer também que o objeto não é totalmente independente do estereótipo apro-
priado pelo preconceito que lhe diz respeito. O estereótipo em relação ao negro não
é o mesmo daquele que se volta contra o judeu que, por sua vez, é diferente do este-
reótipo sobre o de�ciente físico (CROCHIK, 1996, p. 47-48).
Todavia, concluiu-se que há uma participação ativa de quem é vítima do pre-
conceito, muito embora não seja uma questão de escolha individual ser ou não
vítima de preconceito. O que ocorre é que a atribuição de preconceitos depen-
de também daqueles que a eles são expostos, levando, assim, a diferentes re-
sultados e mesmo diversos tipos de preconceitos.

Como foi dito anteriormente, devido à força com que o preconceito é imposto
dentro da organização social, muitas vezes, a própria vítima do preconceito
passa a acreditar nele, aceitando a "maldade" ou inadequação que lhe é atri-
buída. Por isso, também, preconceitos diferentes são atribuídos a diferentes ti-
pos de pessoas em diferentes momentos da história.

Cabe a nós inteirarmo-nos sobre o assunto, considerarmos que cada tipo de


preconceito tem a sua trajetória sociocultural, com dilemas que não podem
ser tratados de maneira simplista e fora de uma investigação mais profunda e
abrangente.

Circunstanciando-o de maneira rápida na sociedade atual, temos alguns agra-


vantes que precisam ser considerados. Segundo Crochik (1996, p. 59):

Como a racionalidade da produção capitalista é voltada para o lucro e não para as


necessidades humanas, e como com as transformações sociais ocorridas neste sé-
culo a racionalidade do mundo do trabalho se propaga às outras esferas de vida, o
objetivo da sociedade torna-se o de ser um mundo perfeitamente administrado. Ou
seja, como a racionalidade virou o �m do próprio sistema social, mas não mais um
meio para que todos possam ter uma vida digna, a sociedade tornou-se irracional.

Se a cultura que se reduziu à sociedade da sobrevivência torna-se irracional, o seu


princípio de realidade contém também algo dessa irracionalidade.

Portanto, o preconceito, em suas diferentes formas de expressão, coloca uma


questão muito séria que se refere às relações humanas e à vivência em socie-
dade. A defesa de uma sociedade moderna e racional, que funcione com crité-
rios claros e previamente de�nidos, pode impor, como apontou Crochik (1996),
uma submissão das pessoas a esse sistema organizativo racionalizante, de
modo que mantê-lo se torne mais importante que buscar as melhores condi-
ções de vida. Nesse sentido, podemos dizer que a busca cega pela a�rmação
de uma racionalidade ligada ao trabalho e à produção de lucro é a demonstra-
ção mais evidente de como a irracionalidade está presente em nossa forma de
viver.

Dito resumidamente, uma vez que essa racionalidade da produção de lucro


não se apresenta necessariamente como forma mais e�ciente de viver em to-
dos os contextos, a sua defesa irrestrita se torna ofensiva às condições de vida
de muitas pessoas - e até mesmo de quem a defende. Nesse ínterim, a conti-
nuidade dessa defesa passa a ser irracional, culminando no uso do preconcei-
to para acusar os que não se adequam ao sistema e isentar de responsabilida-
de o próprio sistema.

O Ministério Público do Estado de São Paulo lançou, em 2014, uma cartilha


chamada Tolerância (http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Cartilhas
/Tolerancia_cartilha_Impressao.pdf), esclarecendo que: "Na raiz da intolerân-
cia está o preconceito, que pode ser racial, econômico, de gênero, social, sexu-
al, religioso, esportivo, político, etário, de pessoa com de�ciência, dentre ou-
tros" (MPSP, 2015).

Em concordância com a Constituição brasileira (1988) e com a Declaração


Universal dos Direitos Humanos (1948), a proposta é um exemplo dentre os es-
forços empreendidos pelo poder público do Brasil, a partir de cada um de seus
entes (estados, municípios e União), no combate à violência gerada pela into-
lerância.

Agora, propomos que você assista a seguir a um vídeo do canal do Ministério


Público do Estado de São Paulo no YouTube, com a cantora Deena Love can-
tando uma música que integra a campanha Tolerância, ilustrando diversas
formas de discriminação e preconceito comuns no cotidiano.
Cabe a cada um de nós re�etir sobre nossas próprias ações e motivações e cul-
tivar o respeito mútuo.

Contudo, esse desa�o alcança um campo ainda mais abrangente, em que a


a�rmação de crenças e posições ideológicas assume um nível destrutivo que
tem se mostrado cada vez mais frequente no mundo todo, que é o dos funda-
mentalismos (tema que veremos na sequência).

Pronto para testar seus conhecimentos? Responda à questão a seguir e identi-


�que se o seu aprendizado está e�ciente.

8. Fundamentalismo
Outro aspecto que di�culta a implantação de uma ética humanista diz respeito
a toda e qualquer forma de fundamentalismo.

Inicialmente, vamos destacar duas de�nições, oferecidas pelo Dicionário


Michaelis On-line (2020) sobre o tema:

1. Movimento dos cristãos protestantes dos Estados Unidos da América, nascido


nos primórdios do século XX, que pregava a rejeição das tendências liberais das
igrejas protestantes, nas quais julgavam encontrar uma aceitação, ainda que incipi-
ente, de ideias e teorias seculares ou ateias, como, por exemplo, o marxismo e o
evolucionismo biológico de Darwin. (As igrejas fundamentalistas tendem a ser se-
paratistas e frequentemente não se associam a outras igrejas que não observem a
interpretação literal da Bíblia.)

2. Movimentos ou correntes de quaisquer religiões que defendem a retomada das


doutrinas consideradas fundamentais.

Nesse caso, temos o fundamentalismo situado no espaço e no tempo, identi�-


cado com o cristianismo protestante nos Estados Unidos da América desde o
início do século 20. Nesse contexto - espacial e temporal -, conforme de�ni-
ções anteriores, é traçado um per�l de atitude, que é o combate realizado por
cristãos protestantes a qualquer tipo de aceitação de ideias externas ao pensa-
mento cristão ortodoxo. Assim, era defendido o cristianismo pautado na com-
preensão literal da Bíblia.

Também é apresentada uma de�nição geral de fundamentalismo, que é tradu-


zido como a atitude de seguir uma doutrina a tomando como fundamental.

O mesmo dicionário relaciona esse verbete com a de�nição de fundamentalis-


mo islâmico, o qual trata da seguinte maneira:

[...] crença em que o mundo islâmico só passará por um processo de revitalização


se retornar aos princípios e às práticas tradicionais do islamismo, o que implica,
em particular, a volta a um tipo de vida que vigorava no século VII na comunidade
estabelecida por Maomé, em Medina, regida pela lei islâmica (sharia) e, se neces-
sário, defendida pela guerra santa (o jihad) e que tinha como uma de suas caracte-
rísticas principais a interpretação literal do Alcorão e da sharia (DICIONÁRIO
MICHAELIS ON-LINE, 2020)

Na mídia, é muito comum a palavra "fundamentalismo" ser utilizada no con-


texto do islamismo para tratar dos con�itos que permeiam o Oriente Médio
atualmente e ao longo de sua história, possibilitando confundir a religiosidade
Islã com tal movimento de doutrinação - embora sejam duas coisas distintas.
De modo geral, o fundamentalismo não é identi�cado como a doutrina em si,
mas como a postura de um grupo de seguidores diante da doutrina a que são
adeptos. Podemos, inclusive, fazer uma abordagem dos fundamentalismos de
acordo com a psicologia analítica. Acompanhe no vídeo a seguir.

Há uma discussão ampla, sendo difícil chegar a um ponto inequívoco sobre o


tema. De todo modo, podemos estabelecer alguns pontos de orientação.

Por de�nição, podemos considerar que fundamentalismo diz respeito a consi-


derar uma doutrina como tão fundamental que seus fundamentos precisam
ser tratados de maneira única, ortodoxa, sem interpretação ou variação de en-
tendimento. E sendo assim tão importante segui-la, não há espaço para dis-
cordância: a doutrina deve ser seguida cegamente e defendida plenamente,
tornando-se o principal sentido de existência de seus seguidores. A doutrina
passa a ser o fundamento de todas as coisas, o fundamento da existência da
vida, sendo apropriado viver e morrer - talvez até matar - em nome dela.

Assim, ter a própria vida rigorosamente fundamentada em uma doutrina, ar-


bitrariamente excluindo qualquer espaço de diversidade de pensamento e opi-
nião, pode ser considerado uma forma de fundamentalismo.

Por esse caminho de entendimento, podemos nos questionar pessoalmente:


eu sou fundamentalista? Eu coloco as crenças que tenho em uma doutrina
acima do respeito ao ser humano e à sua vida? Esses questionamentos �cam
para cada um de nós, como um debate interior muito importante sobre o al-
cance e a responsabilidade das nossas ações cotidianas.

Em 11 de setembro de 2001, o ataque ao Word Trade Center, ou às chamadas


"Torres Gêmeas", nos Estados Unidos da América, trouxe esse debate para o
mundo todo. Naquele caso, era o fundamentalismo islâmico que reivindicava
os ataques. Por isso, até hoje, quando pensamos em fundamentalismo, é co-
mum vir à mente o Islã. Mas isso é injusto com aqueles que, ao professarem
essa fé, mantêm o respeito a todos os representantes das demais religiosida-
des.

No bojo das discussões sobre os Ataques Terroristas de 11 de setembro, como


�caram conhecidos, o jornal Folha de S. Paulo publicou, em 21 de outubro de
2001, um artigo do ensaísta Sérgio Paulo Rouanet (http://www.ihu.unisinos.br
/78-noticias/549136-os-tres-fundamentalismos), no qual o autor defendia que
o con�ito envolvia três fundamentalismos distintos: o fundamentalismo islâ-
mico, o judaico e o cristão. Contudo, a de�nição de fundamentalismo teria sua
origem no território americano.
O próprio nome nasceu nos EUA, a partir de uma série de fascículos publicados en-
tre 1909 e 1915, em que pastores de várias denominações relacionaram os "funda-
mentals" ou pontos fundamentais da fé cristã, dos quais nenhuma das igrejas po-
deria se desviar. O principal desses pontos era a infalibilidade da Bíblia. O funda-
mentalismo protestante expôs-se ao ridículo mundial quando um professor secun-
dário do Estado de Tennessee foi processado por ter ensinado o evolucionismo na
escola, contrariando uma lei estadual. Mas os fundamentalistas continuam vivos e
atuantes (ROUANET, 2001).

De acordo com ele, apesar de suas distinções doutrinárias, esses três funda-
mentalismos possuem alguns aspectos em comum:

Os três fundamentalismos têm em comum o tradicionalismo em questões morais e


uma posição retrógrada quanto ao estatuto da mulher. São puritanos e misóginos.
Mas esse tradicionalismo não implica uma rejeição em bloco da modernidade.

Todos eles aceitam a modernidade técnico-econômica (ROUANET, 2001).

Nessa perspectiva, os fundamentalistas não são, em sua base, contrários a al-


guns fenômenos que caracterizam a modernidade, tais como a industrializa-
ção e o comércio, ou o acúmulo de riqueza e a propriedade. Mas fazem menção
a modelos ultraconservadores de família - conforme as noções especí�cas das
doutrinas que os fundamentam - e à certa rigidez moral. Tudo isso é tomado
pelos adeptos como aquilo que é inequivocamente e indubitavelmente certo.
Aqueles que não são adeptos de tal moralidade, portanto, são considerados,
pelos fundamentalistas, como aqueles que estão errados, devendo ser doutri-
nados, ignorados e/ou combatidos.

Retomando brevemente a discussão do tópico anterior, se considerarmos ética


como um princípio orientador, cujo compromisso central é preservar o equilí-
brio das relações humanas e o bem-estar coletivo; e moral como código de
conduta ou regra que prevê a aplicação do princípio ético, podemos dizer que o
fundamentalismo - ao supervalorizar a obediência à regra moral - acaba des-
vinculando a doutrina religiosa da possibilidade de manifestar uma ética en-
quanto princípio humanizador, solidário e pací�co. 
Tal fenômeno tem sido amplamente discutido em diversas áreas do conheci-
mento, tanto considerando as dinâmicas psíquicas quanto o seu alcance cole-
tivo. Do ponto de vista psicológico, é importante chamar a atenção para o pro-
cesso interior do qual ele é resultante.

Rocha (2014) considera que os fundamentalistas se relacionam com a religião, da


qual são adeptos, semelhantemente ao modo como um apaixonado lida com o obje-
to de sua paixão amorosa. Investem sua libido no ideal religioso, como os apaixona-
dos o fazem em relação ao seu objeto de amor. Da mesma forma como o objeto da
paixão é idealizado com todas as perfeições, de tal modo que o apaixonado não
consegue se imaginar sem ele, o fundamentalista também percebe seus ideais reli-
giosos como algo que lhe traz plenitude e sem os quais não poderia viver. Por esses
ideais, ele sente que vale a pena viver e morrer e, em situações de extremismo, até
matar (OLIVEIRA, 2018, p. 146-147).

Todavia, assim exposto, o fundamentalismo passa por um processo de ideali-


zação no sujeito, o qual se vê "apaixonado" pela defesa de ideais que, muitas
vezes, professam um mundo em que as pessoas não devem se render às pai-
xões seculares.

O seu alcance no processo histórico também chama a atenção:

A historiadora das religiões Karen Armstrong (2001) constata que um dos fatos
mais alarmantes do século XX foi o surgimento de uma devoção militante popular-
mente conhecida como fundamentalismo e demonstra que, no �nal da década de
1970, os fundamentalistas começaram a rebelar-se contra a hegemonia do secula-
rismo e empreender esforços para tirar a religião da posição subalterna que ela
ocupou com a modernidade. Sua hipótese de base é que o fundamentalismo pode
ser compreendido como uma reação à cultura cientí�ca e secular que nasceu no
Ocidente e que se arraigou no resto do mundo, destituindo as verdades religiosas.
Para a autora, as estratégias de ataque utilizadas pelos fundamentalistas aos pre-
ceitos secularistas e liberais revelam o temor da aniquilação e a tentativa de pre-
servar sua identidade por meio do resgate de certas doutrinas e práticas do passa-
do (COELHO; JORGE, 2017, p. 12).

Dito de outra maneira, em se tratando de mudanças no ambiente social que se


orientam pela cultura cientí�ca, por concepções laicas e que interferem dire-
tamente na formação da identidade das pessoas, religiosos de diferentes ori-
gens reagiram se a�rmando, a�rmando a identidade pessoal pautada em con-
cepções religiosas milenares e consideradas como verdades atemporais, reto-
mando ortodoxamente também as suas práticas.

Como resultado, podemos identi�car uma resistência às instituições moder-


nas e às suas formas de funcionamento.

O sociólogo Manuel Castells (1999) assume a mesma direção de análise e argumen-


ta que os movimentos fundamentalistas objetivam o resguardo da identidade reli-
giosa abalada com o enfraquecimento das formas tradicionais de socialização. Ao
forjarem uma identidade de resistência (CASTELLS, 1999), constroem trincheiras
de sobrevivência com base em princípios diferentes ou opostos àqueles que per-
meiam as instituições da sociedade em que estão inseridos (COELHO; JORGE, 2017,
p. 12).

Assim, como as propostas religiosas participam amplamente da vida em soci-


edade, as noções fundamentalistas alcançam o debate político, de modo a diri-
mir as suas compreensões dentro de projetos públicos ainda mais abrangen-
tes.

Relacionando suscintamente com a discussão realizada durantes os estudos


do Ciclo 2, com o processo recente de globalização da economia ocorrido após
o �m da Guerra Fria (1945-1989), a partir da década de 1990, esses con�itos pa-
recem terem se intensi�cado.

Diante da proposta de uma cultura globalizada, com parâmetros a serem se-


guidos de maneira coletiva e universal para a produção e o consumo, o sentido
da vida cotidiana passou a ser de�nido mais em alguns centros especí�cos do
planeta, mantendo as localidades imersas e com pouca possibilidade de de�-
nir as "verdades" da vida de acordo com suas histórias especí�cas e seus pro-
cessos psicossociais.

Bauman (1999), quando se refere ao mundo globalizado, mostra que esse mun-
do passou a ser de�nido mais como algo não localizado, fora do alcance da vi-
da local, sem espaços públicos. Perde-se, dessa forma, a localidade, propria-
mente dita.

Ou seja, os processos locais são interpretados dentro de uma dinâmica econô-


mica e social global e de acordo com intelectuais que não possuem vínculo di-
reto com a localidade. E, muitas vezes, esses processos locais sequer são con-
siderados relevantes. Não é o religioso, o sábio ancião ou o intelectual que par-
ticipou diretamente de sua experiência na localidade que indica o valor e a
originalidade dessa experiência: ela é, no máximo, valorizada diante de um
processo mundial muito mais abrangente e de difícil assimilação.

Tal processo, de acordo com Bauman (1999), resulta em desagregação, com


movimentos de resistência que buscam atribuir sentido para seus processos
na localidade e reivindicam seus espaços diante de uma "cultura global". Isso
leva a uma progressiva separação e exclusão.

Assim, podemos considerar, por um lado, as agremiações de pessoas em torno


da manutenção de processos culturais regionais, com seus costumes e festas,
religiosidades e manifestações artísticas, movimentando a economia local e
mantendo o �uxo de suas signi�cações. Mas, por outro lado, as regras sanitá-
rias da Organização Mundial de Saúde, os cuidados de preservação ambiental
oriundos de estudos de ecologistas e intelectuais de universidades de diversas
partes do mundo, o senso estético promovido pelos museus de referência -
com suas mostras de arte - e uma dinâmica de mercado interpretada pelo
Fundo Monetário Internacional se sobrepõem e de�nem os limites necessári-
os a esse �uxo. No limite, podem de�nir, inclusive, se tais manifestações são
adequadas, se devem continuar ou não.

De maneira similar, as ideologias políticas e teorias do Estado que tiveram su-


as formulações originais na Europa a partir do século 15 têm seus conceitos
básicos deslocados de seu contexto, os quais são tratados e aplicados de ma-
neira aproximativa no bojo de disputas políticas nos mais diversos cantos do
mundo todo. Na prática, as noções de esquerda e direita oriundas da
Revolução Francesa (1789) são esvaziadas de sentido ao serem tratadas diante
das dinâmicas de diferentes países da África, da Ásia, dos estados norte-
americanos ou do Brasil, por exemplo.
E como �ca o fundamentalista dentro dessa dinâmica? Quais são as suas di-
nâmicas interiores? Como �ca a sua psique diante da necessidade de mudar
costumes, de adaptar as suas práticas e crenças, implicando, inclusive, em
mais trabalho e custos �nanceiros?

Entre outras possibilidades, podemos traçar um caminho, ainda que inconclu-


so, para compreender tais questões e repensarmos nossas próprias motiva-
ções, a partir do estudo do ego.

Em Psicologia das massas e análise do ego, Freud (1921) propõe que o ego ideal da
infância pode, ao longo da vida do indivíduo, ser projetado sobre �guras ou ideias
substitutivas. Dentre essas �guras substitutivas do ego ideal infantil, destaca-se o
objeto da paixão amorosa. A partir dessa consideração de Freud, pode-se dizer o
mesmo dos ideais fundamentalistas. Na adesão irrestrita que o fundamentalista
faz em relação à crença religiosa, ele também pode estar buscando uma alternativa
para o ego ideal de sua infância. Nesse sentido, ele estaria tentando recuperar, por
meio dos ideais religiosos, a plenitude psíquica e narcísica infantil, do mesmo mo-
do como o apaixonado tenta fazer através do seu objeto de amor. Esse paraíso de
plenitude infantil - que foi perdido para sempre e que tanto se busca reaver de vari-
adas formas - nunca existiu realmente, a não ser na fantasia da criança, nos so-
nhos dos adultos e nos mitos da humanidade (OLIVEIRA, 2018, p. 148).

Resumidamente, trata-se da busca ilusória e um tanto quanto desesperada de


curar as dores do ego ideal que foi ferido pela implacável realidade da vida co-
tidiana.

Desse modo, o fundamentalista nega o mundo que se apresenta a ele e impõe


a esse mundo uma dinâmica - a única - que lhe faz sentido, que estabelece co-
nexão com suas "verdades" interiorizadas durante o seu processo de formação
da psique. Assim são construídas as ilusões em torno de doutrinas perfeitas,
de líderes que nunca erram e dos mitos de heróis que salvam a humanidade.

As sabedorias traduzidas pela doutrina religiosa (e por qualquer doutrina ou


fonte de conhecimento), ao invés de constituírem uma base sólida de valores
propulsores de humanidade, passam, dessa maneira, a concorrer no universo
de desprezo à experiência da imperfeição da humanidade e de sua busca por
conhecimento.
Concluindo, cabe a cada um de nós aprimorar continuamente o conhecimento
das coisas em diálogo com o amadurecimento do ser enquanto pessoa huma-
na: falha, incompleta, imperfeita e em busca. Consideramos, aqui, que um dos
fatores de maturidade é justamente o entendimento e implementação de mei-
os pací�cos de interação humana, que permitam agregar um pouco do melhor
que foi produzido em cada um dos movimentos cientí�cos, políticos, religiosos
e, en�m, humanos em amplo sentido.

 Você sabe o que é o compromisso com a paz global?

Antes de prosseguir, clique aqui (http://www.dhnet.org.br/direitos/bibpaz


/textos/cupula_paz.html) e leia A cúpula do milênio sobre a paz dos líde-
res religiosos e espirituais, que trata do compromisso com a paz global.

Agora, �nalizando este tópico, teste seus conhecimentos respondendo à ques-


tão a seguir.

9. Considerações �nais
Caro aluno, estamos concluindo o quinto e último ciclo da disciplina. No con-
junto, procuramos oferecer vários elementos que contribuem para compreen-
der o ser humano nas suas dimensões biológicas, psíquicas e espirituais.

Apresentamos aqui o tema da ética, mostrando que ela se distingue da moral e


que deve ser compreendida em seus vários campos de atuação, como na polí-
tica e na economia, assim como em outros campos da experiência humana.

Outro objetivo deste ciclo foi apresentar a existência de vários preconceitos e


posturas fundamentalistas, que, infelizmente, di�cultam uma vivência ética
verdadeiramente humanitária e uma participação cidadã, que contribua para
a sustentação de uma sociedade justa e equitativa.

É evidente que são temas polêmicos e que, muitas vezes, não são bem compre-
endidos. Assim, a intenção deste estudo foi apresentar uma visão cientí�ca, �-
losó�ca e teológica da questão, ajudando a não fazer dela uma leitura simplis-
ta ou até mesmo super�cial.

Agora, cabe a você fazer a sua leitura. Nosso desejo é de que tenhamos ajuda-
do nessa atividade e que você contribua para que possamos ter uma sociedade
justa e pautada em princípios que a tornem cada vez mais humana e corres-
ponsável com o meio ambiente e com tudo o que faça o ser humano se tornar
cada vez mais humano.

Contamos com o seu apoio e esforço para a realização desses objetivos!

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