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MULHERES, CÁRCERE E ATIVIDADE LABORAL: 

 
um olhar sobre o trabalho das detentas no presídio feminino de
Pedrinhas 
WOMEN, PRISON AND WORK ACTIVITY:
a look at the work of inmates in the Pedrinhas women's prison

Alessandra Lílian de Jesus Teixeira1


Marcelo Bomfim Pereira2

Resumo

A pesquisa proposta nasce da necessidade de dar visibilidade a temas relativos ao gênero


feminino, e neste caso, tem como objetivo realizar estudo sobre as iniciativas relacionadas às
atividades de profissionalização e de trabalho das mulheres detentas na Unidade Prisional
Feminina do Maranhão. Nesse sentido, abordam-se aspectos do discurso sobre o ser feminino
e a história do encarceramento de mulheres, partindo do contexto geral para o local.
Apresentam-se os marcos legais do trabalho prisional, tanto nacionalmente quanto no estado
do Maranhão. Apontam-se também dois projetos inovadores desenvolvidos na UPFEM, o
Projeto “Digitalizar Já!” e a Cooperativa Social Cuxá. A metodologia foi desenvolvida através
de revisão bibliográfica e documental. Por fim, observa-se que, a despeito da demora estatal
histórica em desenvolver uma política pública direcionada às mulheres em meio prisional, as
iniciativas inovadoras ora apresentadas que se configuram como alternativas viáveis para o
processo de ressocialização e resguardo da dignidade humana da população prisional.
Palavras-chave: Encarceramento feminino; Ressocialização; Profissionalização; Dignidade
humana.

Abstract
The proposed research arises from the need to give visibility to issues related to the female
gender, and in this case, aims to conduct a study on the initiatives related to
professionalization activities and work of women inmates in the Female Prison Unit of
Maranhão. In this sense, aspects of the discourse on being female and the history of women's
imprisonment are approached, starting from the general context to the local one. The legal
landmarks of prison work are presented, both nationally and in the state of Maranhão. Two
innovative projects developed in UPFEM are also pointed out, the "Digitalize Now!" Project
and the Cuxá Social Cooperative. The methodology was developed through a bibliographic
and documental review. Finally, it is observed that, despite the historical delay of the state in
11
Graduanda em Direito da Universidade CEUMA. E-mail: allessandralilian@gmail.com
2
Professor Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal da Universidade CEUMA.
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developing a public policy directed to women in prison, the innovative initiatives presented
here are viable alternatives for the process of re-socialization and protection of human dignity
of the prison population.
Keywords: Female incarceration; Resocialization; Professionalization; Human Dignity.

1- INTRODUÇÃO

Dar visibilidade a temas inerentes ao feminino é, antes de tudo, uma necessidade para
que a sociedade possa atingir a almejada equidade de gênero e superar a ainda existente visão
da mulher como cidadã de segunda classe.  Nas palavras de Saffioti (2013): “Conquanto seja
o fator sexo um critério menos conveniente do que o fator raça para a conservação do domínio
das camadas privilegiadas, constitui sempre um elemento pelo menos potencialmente
discriminador e, portanto, estratificatório.” 
Com o intuito de discutir tal estratificação, convém voltar o olhar também para  o
sistema prisional, buscando conhecer a realidade da mulher encarcerada, suas condições
enquanto encontra-se sob a tutela do Estado e o que lhe é ofertado como preparação para a 
reinserção na sociedade. Nesse sentido, a previsão constitucional do artigo 5º, XLVIII,
assegura que a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza
do delito, a idade e o sexo do apenado, ou seja, os presídios femininos encontram pleno
amparo na Constituição Federal.
Na pesquisa em tela, tem-se como objetivo realizar um estudo sobre as iniciativas
relacionadas às atividades de profissionalização e de trabalho das mulheres detentas na
Unidade Prisional Feminina do Maranhão.  Para tanto, faz-se necessário inicialmente
apresentar uma análise dos discursos legitimadores da prisão feminina e um breve retrospecto
da história do aprisionamento feminino no Brasil, marcado em quase todo o período pelo
manto da invisibilidade social, a fim de traçar-se uma comparativo com os dados atuais e a
apontar-se as possibilidades de aprimoramento futuro da atividade laborativa prisional. Em
seguida, busca-se discutir ações voltadas à profissionalização e ao trabalho das mulheres
encarceradas no Maranhão e quais os possíveis impactos dessas ações sobre a vida dessas
mulheres durante e após o cárcere, buscando ainda responder como essas iniciativas podem
atingir um número maior de detentas e melhores resultados. Questionando-se de outra forma:
o que o Estado oferece a estas mulheres enquanto elas estão em sua posse? E como as prepara
para voltar à sociedade?
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A metodologia empregada é a da pesquisa bibliográfica e documental, a fim de coletar


informações, base teórica e marcos legais, além de dados oficiais sobre o tema abordado, e em
seguida, pretende-se analisar e contextualizar tais informações.

2- ASPECTOS SÓCIO HISTÓRICOS  DO ENCARCERAMENTO FEMININO

Ao abordar-se o tema do encarceramento, independentemente do gênero da pessoa sob


pena privativa de liberdade,  é inegável discutir-se antes a função primária da prisão, a qual,
nas palavras de FOUCALT: 
É de ser uma garantia sobre a pessoa e sobre seu corpo: ad continendos homines,
non ad puniendos, diz o adágio: nesse sentido, o encarceramento de um suspeito tem
um pouco o mesmo papel que o de um devedor. A prisão assegura que temos
alguém, não o pune. É este o princípio geral. E se às vezes a prisão desempenha o
papel de pena mesmo, e em casos importantes é essencialmente a título do
substituto: substitui as galés para aqueles — mulheres, crianças, inválidos — que
nelas não podem servir: ( 1987, p.138)(Grifou-se)

Observa-se o entendimento do autor sobre a posse, a reclusão do corpo do detento, e


ainda mais, sobre quem, em casos importantes, gravosos, a ela eram destinados, pessoas
consideradas inaptas, que não tinham condições físicas de servir nas galés: inválidos, crianças
e... mulheres. Percebe-se que, ao nível do senso comum, o entendimento sobre o princípio
basilar do aprisionamento é ainda o mesmo, a prisão como punição, não como
ressocialização. Tal interpretação punitivista se traduz, em casos mais graves, no discurso do
“bandido bom é bandido morto” revisitada no contexto brasileiro atual.
Num outro prisma, Beccaria (2017) tece sobre a prisão o entendimento de que seu
fim é o de impedir o réu de causar novos danos a seus cidadãos e afastar os demais do
cometimento de crimes iguais, trazendo portanto um viés educativo, visto que aquele que não
foi agente do crime aprende a afastar-se dele ao ver o criminoso ser punido. Porém, ainda
assim, afirma que devem ser escolhidas penas e aquele método proporcionais que,
“respeitada a proporção causem uma impressão mais eficaz e mais durável sobre o ânimo dos
homens e que seja a menos dolorosa para o corpo do réu.” (BECARIA, 2017, p 51) Nesse
sentido, evita-se o crime não pelo horror causado pelas penas aplicadas, mas pela certeza da
punibilidade; muda-se o comportamento não pela dor infligida, mas pela oportunidade de
reinserção no seio da sociedade. Quanto às mulheres, existem historicamente perspectivas de
legitimação da reclusão, seja motivada por fatores religiosos, médicos ou jurídicos, embora
todas essas abordagens tenham em comum a ideia de submissão e incapacidade feminina,
gerando a invisibilidade desta população no âmbito da elaboração de políticas governamentais
específicas do gênero feminino.
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2.1- Os discursos legitimadores do cárcere feminino

Tratando-se da custódia feminina, Soraia da Rosa Mendes (2017) aponta, ao longo


da história, três abordagens principais, que giram em torno da visão teológica, do enfoque
médico e do enfoque jurídico.
Nessa esteira, num primeiro momento, sob a égide da visão teológica medieval sobre
o corpo feminino, constrói-se uma demonização da mulher, onde eram listados vícios e más
ações femininos, sendo-lhe creditada uma gama de atributos nefastos, inoportunos, onde
desde sua beleza era considerada artifício satânico para atrair o gênero masculino às
profundezas, suas vestes eram comparadas aos animais e os seus adornos eram “a prova de
que o diabo as arrastava com ele, acorrentadas” (MENDES, 2017, p. 128). Por outro lado,
eram desacreditadas em suas palavras e desencorajadas violentamente em suas tentativas de
conhecimento, pois se dizia que a mulher apenas deveria ter acesso às letras para o caso de
tornar-se freira, devendo neste caso resignar-se a uma vida monástica. O púlpito lhes era
impossível, visto que não eram consideradas dignas de falar de Deus, ou em nome de Deus,
Nesse sentido, a clausura, a custódia, era uma forma de expiação e purificação de um ser tão
contraditório e perigoso aos olhos masculinos, ao qual se atribuíam a responsabilidade tanto
pelo trazer à vida quanto pelos cuidados post morten, e o qual, caso tentasse afrontar a
hegemonia androcêntrica, deveria ser confinado às celas do claustro.
Numa segunda perspectiva, têm-se a substituição do viés teológico por uma
perspectiva médica, o qual, através de estudos sobre gestação, anatomia e fisiologia da
mulher, corrobora o entendimento da submissão feminina disseminada pelos religiosos:

No discurso médico a representação da mulher é condicionada por ideias simples e,


por isso, facilmente incutidas na consciência coletiva. Na verdade, o estudo da
anatomia feminina, em linhas gerais, serviu tão somente para confirmar o desprezo
expresso pelos teólogos que, ancorados no Gênesis, consideravam a mulher como
um produto secundário, e consequentemente inferior ao homem. (MENDES, 2017,
p. 132)

Percebe-se no discurso médico uma evidente comparação entre a anatomia masculina


e feminina, na qual o corpo feminino é considerado inferior, frio, fraco, inacabado. Desse
modo, por suas características anatômicas e fisiológicas, seria uma espécie de “incubadora”
de moléstias, tais como a lepra, que nessa visão pseudocientífica, seria contraída pelo homem
ao manter relação sexual com uma mulher menstruada, ou numa outra versão, seria
disseminada pela mulher, que ao manter relação sexual com um leproso não contrairia a
doença, mas seria vetor de sua transmissão ao seu próximo parceiro. Também as mulheres
velhas eram consideradas capazes de adoecer com o olhar as crianças pequenas, e as mulheres
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pobres, por sua alimentação, eram consideradas “mais venenosas que as demais”.
Configura-se nesse discurso, não mais a demonização da mulher como no discurso teológico,
mas sua inferiorização do ponto de vista físico e sua transformação em instrumento do
castigo, através da transmissão de doenças.
Conforme nos aponta ANGOTTI, essa ótica de inferioridade e degeneração feminina
repete-se nos estudos de Lombroso e Ferrero, em especial na obra La Donna Delinquente, la
Prostituta e la Donna Normale, de 1893, onde buscam demonstrar que o menor índice de
criminalidade feminina deve-se ao fato de serem biologicamente menos evoluídas, o que
levaria ao sedentarismo feminino, e em consequência uma menor capacidade de evolução
criminal. Dessa forma, continua legitimado o discurso do afastamento, da clausura doméstica
ou conventual, agora por motivos médicos, legitimando até mesmo tratamentos análogos à
tortura, disfarçados sob um manto de pretensa cura dos males femininos.
Por fim, têm-se o discurso jurídico, essencial para o propósito ora traçado. Nessa
esfera, implica observar-se a retórica de André Tiraqueau, jurista francês do século XVI, cuja
visão sobre as mulheres as apontava como menos providas de razão, faladeiras, lascivas, entre
outros epítetos não menos desabonadores, e cujas sentenças impediam mulheres de ensinar,
pregar, amamentar ou ter relação sexual estando menstruadas, assinar contratos, fazer doações
ou elaborar testamentos sem a anuência do cônjuge. (MENDES, 2017) Entendimento
semelhante nota-se em Boutillier, no século XV, que é enfático ao proibir às mulheres o
exercício da advocacia e do julgamento, justificando tal proibição com o argumento de que
mulheres seriam impetuosas, além de desprovidas da constância e discrição necessárias às
funções.
Outrossim, atribui ao gênero feminino a obrigação de abnegar-se aos cuidados
domésticos e aos deveres de coabitação, sendo a residência familiar um novo espaço de
confinamento feminino, e o marido, ao qual ela devia obediência, de certa maneira assumia o
papel de carcereiro. Da mesma forma, o testemunho da mulher em juízo só passou a ser
acreditado em processos inquisitoriais em relação à acusação de crimes de feitiçaria, embora
comparativamente se considerasse que o testemunho de um homem seria equivalente ao de
duas mulheres. Sobre esse fato, é salutar ressaltar a divergência de Beccaria, (2017) na obra
Dos Delitos e das Penas, ao firmar que é por motivos frívolos que não se admite o
testemunho de uma mulher, por sua franqueza, bem como de condenados ou infames, visto
que uma pessoa pode dizer a verdade quando não tem interesse de mentir, noutras palavras,
nada impede a mulher de falar a verdade, salvo resguardar seus próprios interesses.
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2.2- Aprisionamento feminino no Brasil

 Voltando à obra de Foucalt, nota-se que ele pouco discute sobre as peculiaridades do
aprisionamento feminino, mas há um curto e simbólico  trecho onde o autor comenta da  
inutilidade do trabalho na prisão, utilizado para o estabelecimento de uma relação de poder, de
uma forma econômica vazia, de um esquema da submissão individual e de seu ajustamento a
um aparelho de produção, descrevendo para tanto o ambiente de uma oficina de mulheres:
Num púlpito, acima do qual há um crucifixo, está sentada uma freira; diante dela, e
alinhadas em duas fileiras, as prisioneiras efetuam a tarefa que lhes é imposta, e
como domina quase exclusivamente o trabalho de agulha, resulta que o mais
rigoroso silêncio é constantemente mantido... Parece que nessas salas tudo respira a
penitência e a expiação. ( FOUCALT, 1987,p. 272) 

Coadunam-se neste trecho o discurso teológico e a visão punitiva do cárcere, e nesse


sentido, entende-se que o sistema prisional brasileiro não foge à regra no que tange ao
tratamento das mulheres apenadas. Entretanto, é mister ressaltar-se que, atrelado ao poder de
punir, deveria o Estado incumbir- se também do dever de suprir as necessidades mínimas da
pessoa punida, de forma que sua punição seja justa, e não majorada pela precariedade das
condições do local de reclusão, ou, nas palavras de Mendes (2020):
Neste sentido, o Estado só teria o direito de punir alguém com a aplicação de pena,
caso oferecesse a satisfação mínima dos direitos fundamentais estabelecidos na
Carta Magna. Por consequência, comprovada a inadimplência estatal para com suas
obrigações, quanto à garantia das condições mínimas de subsistência para que um
ser
humano possa viver com um mínimo de dignidade, é injusto puni-lo com a mesma
intensidade que se pune alguém que vive em melhores condições sociais e
econômicas.

Esse respeito às garantias de condições mínimas é e sempre foi um ponto sensível


no sistema prisional brasileiro. Têm-se ao longo do processo histórico das penas privativas de
liberdade, no que tange ao feminino, uma constante invisibilização da mulher apenada. A
história é em geral contada sob uma ótica masculina, a história do cárcere, também. Estudos
realizados por ANGOTTI apontam que no período colonial, mulheres eram aprisionadas junto
aos homens, o que resultava em situações de abandono, agressões sexuais, doenças, e que tal
situação só tornou-se pauta de estudos específicos já no século  XIX, supondo-se que talvez
tal descaso se devesse ao reduzido número de mulheres entre a população carcerária da época.
Cumpre destacar que o Código Criminal Imperial de 1830 proibia a aplicação de
pena de morte às mulheres grávidas e puérperas, bem como a aplicação da pena das galés a
qualquer mulher, sendo estas condenadas à prisão com trabalho “análogo ao seu sexo”. A
inovação na pena de prisão com trabalho diário era considerada uma técnica vanguardista.
7

Sob influência das teorias de Cesare Beccaria, trata-se de substituir as penas cruéis por outras
de cunho educativo e laboral. Tal código foi revisto apenas em 1890, já na vigência da
República, tendo como principais mudanças a exclusão da condenação às galés e a fixação
das penas máximas em 30 anos. Neste Código, os crimes imputados como femininos são o
adultério, o aborto e o uso do sobrenome do marido após a condenação em ação de divórcio.
Reforça-se neste aspecto o pensamento já apresentado sobre a presunção da mulher como um
ser desprovido de racionalidade e tomado de lascívia.
Já no início do século XX, uma das contribuições ao debate  foi a criação do
Patronato das Presas, em 1921, gerenciada pelas  Irmãs da Congregação de Nossa Senhora do
Bom Pastor d´Angers e por mulheres da elite carioca, que visava amparar e regenerar
mulheres privadas de liberdade. As ideias do Patronato, a despeito do viés religioso, ainda
poderiam ser consideradas vanguardistas, visto que, propunham um presídio feminino
praticamente autossustentável, onde: “o governo teria pouquíssimo gasto com o
estabelecimento prisional feminino, uma vez que este seria antes um local de receitas que de
despesas, pois caberia às próprias internas a produção de alimentos, roupas e daquilo que
precisassem para a sua subsistência.” (ANGOTTI, 2018, p. 20). Entretanto, tal avanço não se
concretizou, e só em 1937 ocorreu pela primeira vez a adaptação de um espaço para acolher
um presídio feminino, no Rio Grande do Sul, seguido de outro em  São Paulo e mais um, este
construído especificamente para o  fim ao qual se destinou, em 1942, no então Distrito
Federal, mais especificamente em Bangu, administrado pelas supracitadas Irmãs da
Congregação de Nossa Senhora do Bom Pastor d´Angers. 
Outrossim, nos anos de 1923 e 1924, estudo realizado pelo Ministério da Justiça
apresentava dados sobre a população carcerária de vários estados, sendo esta pesquisa
conduzida pelo penitenciarista José Gabriel de Lemos Britto. Das informações que se extraem
dessa pesquisa acerca das condições das mulheres encarceradas à época, sabe-se que na Casa
de Detenção do Rio de Janeiro existiam 3 celas do fundo, todas de mau aspecto, mantidas sob
a guarda de duas carcereiras femininas.
Sobre o estado do Maranhão, foco da presente abordagem,  são apontados no estudo
realizado entre 1923 e 1924 um total de três mulheres e 143 homens presos. (LEMOS
BRITTO apud ANGOTTI, 2018,  p. 18.) Um percentual feminino insignificante diante da
totalidade da população carcerária da época, fator que novamente evoca a invisibilidade
destas mulheres apenadas. Lemos Britto tornou-se um dos maiores nomes no estudo do
sistema penitenciário nacional, tendo em 1941, à época Ministro da Justiça e Negócios
Interiores, divulgado relatório onde se apontava um total de 340 mulheres presas em todo o
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país. Excetuaram-se do relatório os estados do Mato Grosso e Maranhão, pois não enviaram
os dados solicitados à época. Angotti relata que em palestra proferida em 1943, Lemos Britto
apresenta percentual de 6% de mulheres do total da população carcerária brasileira.
Nessa senda, cumpre destacar que o artigo 766 do Código de Processo Penal de 1941,
determinava que   a internação das mulheres deveria ser feita em estabelecimento próprio ou
em seção especial. Entende-se como seção especial um pavilhão ou setor específico para
mulheres, entretanto não havia ainda um regramento específico sobre as especificidades do
mesmo. Ademais, 80 anos depois da positivação deste dispositivo, lamenta-se que o mesmo
ainda não seja plenamente cumprido em todo o território nacional, o que resulta em diversos
casos de violações de direitos das mulheres encarceradas3. No mesmo sentido, a lei 7209/84
altera o Código Penal que passa a vigorar com a determinação, em seu Art. 37, de que as
mulheres cumprem pena em estabelecimento próprio, observando-se os deveres e direitos
inerentes a sua condição pessoal. 4
Apresentado este contexto, traça-se doravante uma síntese do histórico das prisões no
estado do Maranhão. Os dados históricos iniciais são extraídos do documento Histórico dos
Presídios do Maranhão, apresentados pelo SINDSPEN- Sindicato dos Servidores do Sistema
Penitenciário do Estado do Maranhão, entretanto frisa-se aqui a insuficiência de dados e
referências consolidadas sobre o histórico das prisões maranhenses.
Têm-se, numa narrativa linear, ainda no século XIX a construção do Presídio São
João, no bairro dos Remédios, região central de São Luís, onde eram oferecidas aos apenados
oficinas de alfaiate e sapateiro. Posteriormente, em 1948, o então governador Sebastião
Archer autorizou a transferência desta prisão estadual para o município de Alcântara, onde
gerou-se uma insatisfação da população local, motivando nova transferência, visto que o
complexo penitenciário prejudicava a vocação turística já demonstrada pela cidade. Um
marco no gerenciamento do sistema prisional se dá em dezembro de 1965, quando é
inaugurada pelo governador Newton de Barros Bello a Penitenciária Agrícola de Pedrinhas,
em bairro de mesmo nome, destinada a receber até 120 detentos de todo o estado. Entretanto,

3
-Caso emblemático deu-se com a jovem Lidiany, em 2007, ocasião em que a juíza do caso, ao agir com
inércia, mesmo após expressa solicitação da autoridade policial, levou a menor, à época dos fatos com 15 anos
de idade, a permanecer 24 dias numa cela com cerca de 30 homens, período no qual foi submetida a diversas
violações, físicas, sexuais e psicológicas, na cidade de Abaetetuba/PA. Os desdobramentos administrativos
disciplinares se arrastaram até 2019.
4
- Sobre este aspecto, é impactante a leitura do livro reportagem Presos que menstruam, onde a autora, Nana
Queiróz, com base em uma pesquisa realizada durante 5 anos, traça um perfil das mulheres presas no Brasil,
apontando o descaso e a omissão do Estado com as necessidades das presidiárias. O livro foi lançado em 2015,
entretanto é uma referência ainda atual sobre o tema.
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tal estabelecimento penal restringia a apenas uma sala o atendimento às necessidades da


população carcerária feminina.
Já na década de 90, com o crescimento da população carcerária, e consequentemente o
aumento do número de mulheres internas, esta ala feminina improvisada é ampliada para um
pavilhão feminino, embora as internas ainda dividissem algumas atividades com os homens.
Tal situação se modifica em 2006, quando é criado o Centro de Reeducação e Inclusão de
Mulheres Apenadas – CRISMA, objetivando a melhoria da qualidade de vida das mulheres
presas.5 O CRISMA situava-se no bairro do Olho D’água e recebia as internas que até então
permaneciam na Penitenciária de Pedrinhas.(CARVALHO e FREITAS, 2016) Quatro anos
depois, em agosto de 2010 foi inaugurada a Penitenciária Feminina de Pedrinhas, também
denominada Unidade de Ressocialização Prisional Feminina.
Louzeiro (2017) aponta que a estrutura física do Presídio Feminino apresenta 2 blocos,
com 34 celas com capacidade para 6 internas cada uma, além de sala de triagem, celas de
alojamento, berçário, 2 celas destinadas a visitas íntimas e 3 espaços para banho de sol. Os
pavilhões foram nomeados como Pavilhão das Margaridas, das presas provisórias, Pavilhão
das Orquídeas, o das sentenciadas, Lírio do Campo, o berçário, e Solários, os espaços de
banho de sol. Tal estrutura ainda se mantém praticamente inalterada.

3- DAS DISPOSIÇÕES LEGAIS SOBRE O TRABALHO E A REMIÇÃO DA PENA

Ao tratar-se do trabalho no cárcere, é imperioso que se abordem, ainda que


brevemente, os pactos internacionais que tocam o tema, em especial as Regras de Mandela e
subsidiariamente a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) ou Pacto de San
José de Costa Rica, dos quais o Brasil é signatário. Ao abordar-se o tema do encarceramento
feminino, cumpre registrar ainda que o Brasil é signatário das Regras de Bangkok − Regras
das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de
Liberdade para Mulheres Infratoras. Entretanto optou-se por não abordar tais regras neste
trabalho, sob o risco de ampliar-se demasiadamente o objeto do estudo, além do que, no que
tange aos aspecto laborativos, as regras de Bangcok referendam o exposto nas regras de
Mandela .
Sobre o Pacto de San José de Costa Rica (1969) é indispensável ater-se ao artigo 6º,
que veda expressamente a escravidão e a servidão, e ainda mais, determina que nos casos de
pena privativa de liberdade, ainda que acompanhada de trabalhos forçados, não devam estes

5
-Notícia veiculada na imprensa local sobre a fundação do CRISMA:
https://imirante.com/sao-luis/noticias/2006/12/11/presidio-feminino-e-inaugurado-nesta-segunda-feira.shtml.
10

afetar a dignidade, nem a capacidade física e intelectual do recluso, de forma a preservar os


direitos essenciais e a dignidade da pessoa humana.
Em paralelo ao supracitado Pacto, as regras de Mandela (2015), ou Regras Mínimas
das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos, condensam um conjunto de regras
mínimas, estabelecidas pela ONU em 1955, relacionando diretrizes para o tratamento
humanitário de pessoas em situação de cárcere. Tal rol passou por revisão no ano de 2015,
sendo esta a versão utilizada neste estudo, e as regras aplicam-se indistintamente a todas as
pessoas privadas de liberdade. Sobre a atividade laboral, devem ser observadas as regras 96 a
103, que norteiam esta questão.
Sem a pretensão de aprofundar-se no teor das regras, é possível observar que, nos
aspectos referentes ao trabalho, o documento versa sobre: o direito essencial do preso à
atividade laboral, segundo suas habilidades e aptidões ( Regra 96); a vedação do trabalho
penoso e servil, ou em benefício pessoal ou privado da equipe prisional (Regra 97); a
capacitação e formação profissional do apenado(Regra 98); a organização e os métodos de
trabalho no cárcere (Regra 99); a administração, a vigilância e a remuneração do trabalho
prisional (Regra 100); a segurança e saúde tanto do profissional em liberdade que exerce
atividade laboral no cárcere, quanto dos trabalhadores reclusos (Regra 101); a
regulamentação das horas de trabalho do recluso (Regra 102) e por fim a regulamentação
sobre a remuneração do trabalho prisional e a distribuição do salário auferido pelo detento
(Regra 103). Percebe-se que as regras de Mandela, em que pese seu descumprimento na
realidade fática dos presídios brasileiros, lograram êxito em influir no texto do ordenamento
jurídico nacional, consoante se verifica numa abordagem comparativa entre o texto de Lei de
Execuções Penais brasileira e as referidas regras.
Convém ressaltar que o artigo 39 do Código Penal de 1940 já dispunha que “o
trabalho do preso será sempre remunerado, sendo-lhe garantidos os benefícios da Previdência
Social.”,sem entretanto tal trabalho estar sujeito às regras da Consolidação das Leis do
Trabalho. Ressalta-se Outrossim, a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, Lei de Execuções
Penais, em seu capítulo III, traz ao ordenamento jurídico  o regramento atual sobre o trabalho
do apenado, considerado tanto um dever social quanto uma condição de dignidade humana,
com finalidade produtiva e educativa. Pontua-se uma das influências das Regras de Mandela
sobre a LEP em seu artigo 29 que, ao tratar da remuneração do trabalho do preso, determina
que o mesmo não poderá ser inferior a ¾ do salário mínimo. O referido artigo regulamenta
também a destinação desta remuneração, que deverá atender: à indenização dos danos
causados pelo crime; à assistência da família do recluso; a pequenas despesas pessoais; ao
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ressarcimento das despesas do Estado com sua manutenção. Ao que porventura sobrar neste
criativo exercício da contabilidade, determina a LEP :
Art. 29.[...]
§ 2º Ressalvadas outras aplicações legais, será depositada a parte restante para
constituição do pecúlio, em Caderneta de Poupança, que será entregue ao
condenado quando posto em liberdade. (Grifou-se)

É evidente a relação entre o referido artigo e as regras de Mandela de número 100 e


103, as quais determinam, a primeira, a administração, a vigilância e a remuneração do
trabalho prisional, tópico no qual se aprofunda a regra 103, ao dispor sobre a remuneração
equitativa para o trabalhador preso, a possibilidade de destinar parte dos recursos para
despesas pessoais e para a assistência da família, assim como a constituição de pecúlio a ser
resgatado quando da liberdade do detento. Muitas críticas são feitas pelo homem médio a esse
dispositivo, mas, evidentemente, considerando-se o valor do salário mínimo e a distribuição
das verbas, reputa-se minimamente ingênua a ideia de um pecúlio significativo a um preso
que receba remuneração de 1 a ¾ do salário mínimo e que não tenha sido condenado a uma
pena relativamente longa. No contexto da lei, sobressai também a indenização dos danos
causados pelo crime, de forma a não onerar quem não o cometeu ou quem dele foi vítima,
nem postergar o pagamento devido, de modo que ao final do período da pena, esteja o
apenado desincumbido de qualquer outra obrigação decorrente do crime cometido.
Pactua-se também no texto da LEP, pela possibilidade de remição da pena pelo estudo
ou trabalho, nos termos do artigo 126, sendo a contagem realizada na proporção de 1 dia de
pena para cada 12 (doze) horas de frequência escolar, em atividade de ensino fundamental,
médio, profissionalizante, ou superior, além de atividades de requalificação profissional,
divididas em um mínimo de 3 dias. Quanto à possibilidade de remição pelo trabalho, deve
ser subtraído um dia de pena para cada 3 dias de trabalho. Depreende-se de tal leitura uma
possibilidade de mitigar, mediante esforço oneroso, o tempo total da pena, na proporção de 1
dia de pena para 3 ciclos de estudo totalizando 12 horas, ou para cada 3 dias de trabalho. Este
direito à remição é essencial para que se preserve a função de ressocialização do apenado,
visto que oportuniza- se não somente o encurtamento da pena, mas o aprendizado de uma
nova habilidade profissional, vislumbrando-se a possibilidade real de uma reinserção da
pessoa egressa do sistema prisional no mercado de trabalho e na sociedade de fato. Para fins
de comprovação do direito à remição é imperativo que a administração carcerária encaminhe
mensalmente ao juízo da execução, nos termos do Art. 129 da LEP, “cópia do registro de
todos os condenados que estejam trabalhando ou estudando, com informação dos dias de
trabalho ou das horas de frequência escolar ou de atividades de ensino de cada um deles.”
12

Assim, aproxima-se o Estado do papel que lhe é determinado como garantidor dos direitos e
da dignidade humana das pessoas privadas de liberdade. Nesse sentido, também é imperioso
ressaltar a adoção da Política Nacional de Trabalho no âmbito do Sistema Prisional, em
cooperação com os estados, e voltada à ampliação e qualificação da oferta de vagas de
trabalho, ao empreendedorismo e à formação profissional das pessoas presas e egressas do
sistema prisional, regulamentada na forma do decreto nº 9.450, de 24 de julho de 2018.
Sobre o trabalho da mulher em privação de liberdade, é vital elencar-se a
implementação da Portaria Interministerial nº 210, de 16 de janeiro de 2014, que instituiu a
Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas
do Sistema Prisional- PNAMPE. Entre as metas designadas no referido dispositivo,
destacam-se aqui duas: a primeira. expressa no inciso IV do artigo 2º da Portaria
Interministerial: “humanização das condições do cumprimento da pena, garantindo o direito à
saúde, educação, alimentação, trabalho, segurança, proteção à maternidade e à infância, lazer,
esportes, assistência jurídica, atendimento psicossocial e demais direitos humanos;”(BRASIL,
2014) Tal objetivo, embora claramente ambicioso, se traduz no caso concreto no amparo a
diversas iniciativas, a princípio isoladas, que visam retirar do campo da invisibilidade o ser
feminino encarcerado, oportunizando um processo de resgate da autoestima, uma
possibilidade de qualificação profissional e o exercício de direitos que porventura já lhe eram
negados desde antes do aprisionamento. Em paralelo a esta diretriz, ressalta-se também o
inciso X: “fomento ao desenvolvimento de ações que visem à assistência às pré-egressas e
egressas do sistema prisional, por meio da divulgação, orientação ao acesso às políticas
públicas de proteção social, trabalho e renda” ( BRASIL, 2014) Esta determinação abre um
leque de possibilidades de parceria entre os sistemas prisionais estaduais e entidades voltadas
para a reintegração social de mulheres presas, num recorte de gênero, e não mais como parte
do grupo geral e invisibilizante intitulado população carcerária.
Em terras maranhenses, no contexto da Lei de Execuções Penais, surge a Lei
estadual nº 9.116 de 11/01/2010, que instituiu a a Política Estadual de Inserção de Egressos do
Sistema Prisional no Mercado De Trabalho. O referido programa foi intitulado “Começar de
Novo” e beneficiava os egressos em livramento condicional, em suspensão condicional de
pena-sursis e os que já houvessem cumprido integralmente a pena. Às empresas interessadas
em participar da política estadual de reinserção, eram atribuídos percentuais de contratações
na proporção de: para empresas com  até 200 empregados, 2% de egressos; de 201 a 500,
empregados, 3% de egressos; de 501 a 1.000 empregados, 4% de egressos; de 1.001 em
diante 5% de egressos. O descumprimento destes percentuais acarretaria multa à empresa. A
13

lei determina ainda termo de cooperação técnica com a União, Estado, Municípios,
entidades representativas da sociedade civil, entidades de formação profissional vinculadas ao
sistema sindical e organismos internacionais, objetivando a capacitação e inserção
profissional dos egressos.
Os percentuais supracitados foram alterados com a adoção da Lei Ordinária 10.182/
2014, que dispõe sobre a obrigatoriedade da reserva das vagas para admissão de detentos e
egressos do sistema penitenciário nas contratações de obras e serviços pelo Estado do
Maranhão. O Programa Começar de Novo passa então a vigorar nestes termos:
Art. 3º Nas licitações promovidas por órgãos e entidades da Administração Pública
Direta e Indireta do Estado do Maranhão para contratação de prestação de serviços
que prevejam o fornecimento de mão de obra, constará obrigatoriamente cláusula
que assegure reserva de vagas para detentos e egressos do sistema penitenciário, na
seguinte proporção:
I - 5% (cinco por cento) das vagas, quando da contratação de vinte ou mais
trabalhadores;
II - uma vaga, quando da contratação de seis a dezenove trabalhadores.
(MARANHÃO, 2014) (Grifou-se)

Com a implementação desta lei, e dos novos percentuais nela determinados, ocorre
um aumento significativo na inserção de pessoas privadas de liberdade ou egressas do sistema
penitenciário no mercado de trabalho, correndo no mesmo sentido do crescimento
apresentado nacionalmente, conforme se observa nos dados apresentados pela Nota técnica nº
79 do DEPEN_ departamento Penitenciário Nacional, que trata da evolução dos índices de
pessoas envolvidas em atividades laborais nos sistemas prisionais estaduais, entre os anos de
2015 e 2019. Os números nacionais apontam um crescimento de 48,67%, passando de 96.998
em 2015 para 144.211 em 2019.
Entretanto, outro fator preponderante para o aumento nos índices de crescimento da
atividade laboral prisional no Maranhão foi a mudança nas normas e procedimentos para o
trabalho dos presos inseridos no Programa Começar de Novo, que passam a ser estabelecidas
pelo Decreto nº 31.462, de 30 de dezembro de 2015, que determina em seu artigo 9º a
obrigatoriedade do trabalho ao preso condenado, excetuando-se, de acordo com o artigo 27 da
mesma lei, os maiores de 70 anos, os que sofram de enfermidade incapacitante para o
trabalho e a mulher antes e após o parto. Determina ainda em seu artigo 10º que a resistência
ao trabalho ou a falta voluntária em sua execução constituem infração disciplinar cuja punição
será anotada no prontuário do preso. Note-se aqui a dicotomia entre direito e dever, numa
evidente manifestação do poder e da posse do Estado sobre o corpo, a força de trabalho e a
vontade do preso condenado, este que se torna não mais o detentor de um direito ao labor,
como elemento garantidor de dignidade humana, mas passa a ser o devedor de uma
14

obrigação, visto que impossibilitado de negar-se voluntariamente ao trabalho. Nesse


contexto, essa mudança normativa impacta os índices do trabalho carcerário no estado do
Maranhão. Segundo a supracitada Nota Técnica 79 do DEPEN, a população carcerária em
atividade laboral cresce de 699 de (8,86%) em 2015 para 4.378 (35, 46%) em 2019, sendo o
segundo estado em número proporcional de pessoas aprisionadas trabalhando. Destacam-se
aqui duas iniciativas, os Programas Rumo Certo e Trabalho com Dignidade, ambos
desenvolvidos pela SEAP- Secretaria de Administração Penitenciária.
O Programa de Aumento do Nível de Escolaridade e Profissionalização do Sistema
Penitenciário do Maranhão,  ou Programa Rumo Certo, lançado em dezembro de 2017,
objetiva aumentar o nível de escolaridade e profissionalização no sistema prisional, atendendo
não só as pessoas privadas de liberdade, mas seus familiares, egressos do sistema prisional e
servidores penitenciários. Já o Programa Trabalho com Dignidade, indicado em como um dos
seis finalistas do Prêmio Excelência em Competitividade 2020, tem como meta a
“ressocialização da Pessoa Privada de Liberdade (PPL), através da capacitação e
profissionalização. Dentre os trabalhos, os internos desenvolvem serviços nas áreas de
fabricação de blocos de concreto para pavimentação de ruas, com redução dos custos em mais
de 35% em comparação ao valor praticado no mercado.”( SEAP, 2020) Um aspecto salutar
desse programa apresenta-se justamente na formação de mão de obra qualificada, de baixo
custo e disponível, cujo trabalho é parte de uma política nacional, e reflete na economicidade
do próprio Estado, pois os blocos produzidos são utilizados na pavimentação das vias públicas
nas obras estaduais, por meio do Programa Rua Digna, do governo estadual, de forma a
reduzir custos e ao mesmo tempo em que cumpre as determinações da Lei de Execução Penal.
As mudanças nas práticas adotadas na administração do sistema carcerário no
Maranhão tiveram como efeito a indicação do estado para inclusão no termo de cooperação
técnica realizado com o Instituto Humanitas 360, entidade sem fins lucrativos com sede nos
EUA, para a criação de uma cooperativa de trabalho, visando a profissionalização e
ressocialização o de pessoas privadas de liberdade; tal indicação será fundamental para o
objeto a que se propõe este estudo, o trabalho da mulher encarcerada no estado do Maranhão.

4- DO TRABALHO DA POPULAÇÃO CARCERÁRIA FEMININA NO  MARANHÃO

Em consonância com o processo de invisibilidade da mulher aprisionada já


apresentado na abordagem sócio histórica, entende- se que também as atividades laborais das
mulheres encarceradas só se tornaram alvo de um olhar mais atento a partir da adoção da
PNAMPE, portanto, as iniciativas inovadoras nesse espectro são ainda recentes, tímidas e
15

pontuais. No estado do Maranhão, além das habituais oficinas de artesanato e costura,


destacam-se duas iniciativas, o Projeto Digitalizar já, em parceria com o Tribunal de Justiça
do Estado do Maranhão, e a Cooperativa Social Cuxá, em parceria com o CNJ, a qual se
destaca não pelo produto oferecido, mas pelo modelo cooperativista empregado, conforme se
verá adiante.

4.1- Breves apontamentos sobre a população carcerária feminina maranhense

O mais recente Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, divulgado pelo


DEPEN_ Departamento Penitenciário Nacional, referente ao período de Julho a Dezembro de
2020, apresenta uma população carcerária de 638.853 homens (95,7% ) e 28.688 mulheres
(4,3%), num total de 667.541 pessoas privadas de liberdade em todo o Brasil. No estado do
Maranhão a população carcerária total, segundo o mesmo estudo, é de 11.595 pessoas,
excluindo-se desse total os que encontram-se em prisão domiciliar, Polícia Judiciária,
Batalhões de Polícia e Bombeiros militares. Entretanto, o número total de vagas no sistema
prisional maranhense, é de 9.861 vagas, o que ocasiona um déficit de 1.734 vagas no estado.
Em relação à Unidade de Ressocialização Prisional Feminina, nota-se uma diferença, visto
que o Presídio Feminino conta com 324 vagas, e destas, 299 encontravam-se ocupadas em
Dezembro de 2020, portanto não há que se falar em déficit no sistema carcerário feminino no
estado do Maranhão, embora esse não seja o único critério em se tratando de condições de
dignidade humana no cárcere.
Traçando-se um comparativo do total da população carcerária feminina no Brasil e no
Maranhão, é interessante observar-se que, tomando-se como referência o período quinquenal
de 2016 a 2020, têm-se no período, em nível nacional, um decréscimo significativo no
número de mulheres encarceradas, conforme se pode observar nos dados apresentados pelo
INFOPEN: em 2016 , o número de mulheres encarceradas, expresso em milhar, é de 40,97;
em 2017, decresce par 38,40; em 2018, diminui para 36,35; em 2019, ocorre um leve
movimento ascendente, indo a 37,20; em 2020, ocorre novo movimento de queda, atingindo
28,88.
Observa-se que entre os anos de 2018 e 2019 há uma leve oscilação nos números
apresentados, contrariando a série decrescente, entretanto, faz-se necessário refletir sobre os
dados de dezembro de 2020, que demonstram uma queda brusca no número de mulheres
encarceradas. A intensidade desse declínio pode ser parcialmente explicada pela ocorrência
da pandemia do Covid 19, não necessariamente pelo fato da diminuição do cometimento dos
tipos penais, mas pela desaceleração do ciclo da persecutio criminis, pois em um primeiro
16

momento foi necessário que se estabelecessem protocolos de segurança, com a adoção de


medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus – Covid-19, no âmbito
dos estabelecimentos do sistema prisional e do sistema socioeducativo, sendo a partir daí
estabelecidas orientações, tais como a Recomendação nº 62, de 17 de março de 2020, do
Conselho Nacional de Justiça- CNJ, que dispõe sobre diretrizes como a adoção de medidas
socioeducativas em meio aberto, a máxima excepcionalidade de novas ordens de prisão
preventiva e reavaliação da prisões provisórias, bem como a recomendação da antecipação de
saída do regime fechado e semiaberto a pessoas mais vulneráveis ao vírus, dentre as quais,
mulheres gestantes, lactantes, mães ou pessoas responsáveis por criança de até 12 anos ou por
pessoa com deficiência, entre outras medidas, impactando assim a taxa de encarceramento no
ano de 2020.
No mesmo período, os dados referentes à população carcerária feminina do estado do
Maranhão são os seguintes: em 2016, 319 mulheres privadas de liberdade; em 2017 este
número sobe para 423 mulheres; em 2018 este número cai para 360 mulheres; 451 em 2019,
dados referentes ao mês de outubro do referido ano, e por fim, 392 mulheres em privação de
liberdade no ano de 2020. Percebe-se que, em comparação com o cenário nacional, não se
revela na esfera estadual uma linha decrescente, mas um movimento em “ziguezague” um ir
e vir de pequenas oscilações no número de mulheres encarceradas nos 5 anos abordados.
Entretanto, chama a atenção o fato de que o quantitativo de mulheres presas no Maranhão em
2020 é, em termos proporcionais, menor que a média nacional, correspondendo a 3,38% da
população carcerária local, em contraponto aos 4,3% apresentados nacionalmente.
Os dados relativos a cor e raça entre a população prisional feminina apresentados pelo
relatório do DEPEN em 2020 seguem a mesma tendência apresentada no encarceramento
masculino e acabam por robustecer a tese da seletividade penal, ou a constatação de
Marcelo Yuca de que que “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”6 (O Rappa,
1994), ao apresentar uma ampla maioria de mulheres negras encarceradas, em um provável
resquício do positivismo criminal de Lombroso, atrelado à “estratificação etnorracial e a
discriminação baseada na cor, endêmica nas burocracias policial e judiciária” (WACQUANT,
2001). No cenário nacional, 16.431 mulheres, aproximadamente 57% das presas, são
autodeclaradas pretas ou pardas. No cenário local, são 305 mulheres pretas ou pardas, de um
total de 382 presas, aproximadamente 80% do total.

4.2- Das atividades laborais desenvolvidas no Presídio Feminino de São Luís

6
- Todo camburão tem um pouco de navio negreiro- música e letra de Marcelo Yuca/ O Rappa, 1994.
17

Em atendimento aos pressupostos determinado pela legislação anteriormente


apresentada, em especial ao artigo 2º, X, do PNAMPE, é adotada no sistema prisional
maranhense, em 2018, a Cartilha da Mulher Presa, que esclarece sobre os direitos e deveres
das mulheres em privação de liberdade. Sobre o trabalho prisional, o documento apresenta
informações sobre a carga horária diária permitida, o descanso dominical, a destinação da
remuneração, a possibilidade de remição da pena pelo trabalho ou estudo, nos termos da LEP.
Assim, estando já orientadas sobre a possibilidade e/ou obrigatoriedade do exercício de
atividade laborativa, oportuniza-se a inclusão num dos programas de ressocialização por via
do estudo ou trabalho voltados para a população carcerária. Nesse sentido, pretende-se
abordar o projeto Digitalizar Já e a experiência em implementação da Cooperativa Social
Cuxá.
O projeto Digitalizar Já surge através da portaria conjunta 152019, do TJMA, e
insere-se no âmbito do programa Começar de Novo, anteriormente referenciado, através de
Termo de Cooperação firmado entre a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária
(Seap), e o Tribunal de Justiça do Maranhão (TJ-MA). O referido projeto visa a ampliação da
virtualização dos processos judiciais que tramitem em autos físicos relativos às classes
judiciais que já são processadas em formato digital nas unidades jurisdicionais das comarcas
que utilizam a plataforma do Sistema Processo Judicial eletrônico (PJe) do 1º Grau do Poder
Judiciário do Estado do Maranhão. (TJMA, 2019).
Tendo iniciado efetivamente em novembro de 2019, o projeto atingiu inicialmente 10
reeducandas, e segundo Gomes (2019) digitalizou cerca de 3.500 processos físicos7, com sua
consequente migração para o PJE. Às mulheres do sistema prisional era designada a
preparação dos processos físicos para digitalização: sua higienização, verificação e
organização antes e depois do escaneamento. Algumas, devido à aptidão, auxiliam também no
processo de escanear. No ano de 2020, aponta-se que o projeto envolve:
 Mão-de-obra de 34 apenadas e está sendo realizado pela Central de Digitalização e
Migração de Processos Físicos para o PJe do Poder Judiciário, em parceria com a
Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP), em duas unidades
localizadas em São Luís e Pedrinhas, onde são feitas a higienização e posterior
digitalização dos autos de processos ainda não julgados. 
A primeira unidade, instalada em 22 de junho, funciona no auditório do Fórum
“Desembargador Sarney Costa”, onde trabalham 12 reeducandas do regime
semiaberto, e a segunda, instalada em 11 de setembro, no presídio feminino, a 22,3
km da capital, com mais 22 apenadas do regime fechado. (BARBOSA, 2020) 

7
- Números não oficiais, embora apresentados no site do TJMA. Observa-se no cotejo com o número
apresentado no ano seguinte uma incongruência dos dados.
18

Observa-se um aumento no número de mulheres alcançadas pelo projeto, as quais


recebem remuneração de ¾ do salário mínimo por uma jornada diária de 8 horas de trabalho,
mais o benefício da remição da pena nos termos da LEP. Percebe-se também que as internas já
passam a realizar as ações da digitalização propriamente ditas, o que lhes possibilita a
capacitação no uso dos recursos tecnológicos, e não apenas no processo de higienização e
verificação. Os trabalhos da Central de Digitalização e Migração de Processos Físicos foram
temporariamente suspensos em 2020 em decorrência da pandemia, mas ao retomar as
atividades, estima-se que a média de processos digitalizados foi de 2000 laudas por dia, ou
cerca de 10 processos diários. Já no ano de 2021, em informativo veiculado no mês de
agosto, o CNJ apontou que cerca de 11 mil processos já foram digitalizados, sendo a mão de
obra carcerária alcançada um total de 38 detentas, 5 do regime semiaberto, que trabalham nas
dependências do Fórum de Justiça, e 33 do regime fechado, que exercem a atividade laboral
no núcleo do projeto instalado na UPFEM.
A atividade laboral proporcionada pelo projeto Digitalizar Já, mostra-se assim uma
experiência exitosa, embora se observe que num primeiro momento as apenadas eram
designadas para as atividades mais insalubres ou onde se exigia menor qualificação, na fase
atual percebe-se que as mesmas passam a dominar todo o processo de digitalização,
contribuindo assim tanto para a modernização e celeridade do sistema judiciário, quanto o
cumprimento da LEP no âmbito estadual e principalmente, para a construção de uma nova
perspectiva de futuro para a egressa do sistema prisional, de reconstrução da autoestima, ao
agregar essa qualificação profissional recém adquirida e o vislumbre de um trabalho em
ambiente salutar.
Sobre a segunda iniciativa abordada, cumpre inicialmente esclarecer que, segundo
Lima (2020) o modelo de Cooperativa em meio prisional foi primeiramente implementado no
Centro de Recuperação Feminina, no município de Ananindeua/PA, a partir da iniciativa da
advogada e ex- diretora do CRF, Carmem Lúcia Gomes Botelho, no ano de 2014,
denominando-se Cooperativa Social de Trabalho Arte Feminina Empreendedora-
COOSTAFE.. Esta iniciativa desenvolveu-se a partir das oficinas de artesanato realizadas com
as detentas, nas quais produzem objetos artesanais como costuras, bordados, pinturas,
bijuterias, enfeites, crochê, pelúcias, entre outros. Os objetos são vendidos em feiras
realizadas em espaços públicos como a Praça da Bíblia em Ananindeua, e Praça da
19

República em Belém shoppings, e redes sociais da COOSTAFE.8 Os resultados apresentados


pela cooperativa
9
ganharam projeção nacional e internacional, além de menção honrosa do Prêmio Innovare
realizado em dezembro de 2014, cujo tema foi “Sistema Penitenciário Justo e Eficaz”, além
do reconhecimento, financiamento e melhoria do ateliê de trabalho, capacitação profissional
das cooperadas e para a aquisição de novos equipamentos com recursos da Brazil
Foundation10, entre outras menções ao trabalho desenvolvido pelas presas, motivando o
reconhecimento do Conselho Nacional de Justiça deste projeto como um modelo de
reinserção social a ser seguido por todo o país. Para tanto foi firmado termo de cooperação
técnica entre o Conselho Nacional de Justiça- CNJ e o Instituto Humanitas 360, a fim de
implementar as cooperativas em diversos estados.
Relembrando-se que as boas prática na administração penitenciária no Maranhão
renderam a indicação do estado ao termo de cooperação técnica com o Instituto Humanitas
360, tornou-se o Maranhão o terceiro estado a realizar as tratativas para adoção do modelo
cooperativista no sistema penitenciário.11 A Cooperativa Social Cuxá é um projeto
desenvolvido pelo Instituto Humanitas 360, em parceria com a Secretaria de Estado da
Administração Penitenciária, Tribunal de Justiça pela 1º e 2ª Vara de Execuções Penais de São
Luís/MA, Unidade de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário, Defensoria
Pública, Ministério Público e Conselho Penitenciário. O projeto teve suas tratativas iniciadas
em 2019, tendo sido anunciado pelo setor de comunicação do Estado e pelo Instituto
Humanitas 360 em março de 202012; entretanto teve sua implantação suspensa em
decorrência da pandemia do COVID 19, vindo a ter sua inauguração em 21 de agosto de
2020, em cerimonia presencial.13
O termo de cooperação técnica Nº 3/2020, referente ao processo nº 255670.19/2020-
SEAP/MA, foi publicado no Diário Oficial do estado do Maranhão em 01/10/2020, com
vigência de dois anos a partir da data da publicação. O objeto da cooperação é assim definido:
Constitui-se objeto a cooperação técnica para implantação de unidade produtiva no
estado do Maranhão pela Cooperativa Cuxá, por interveniência do Instituto
Humanitas360 Brasil, que contará com pessoas privadas de liberdade nos regimes

8
- A COOSTAFE encontra-se em plena atividade, conforme se observa em suas redes sociais, a exemplo de
https://www.instagram.com/coostafe/?hl=pt-br
9
- Sobre o Instituto Innovare, pode-se saber mais em https://www.premioinnovare.com.br/.
10
- Fundação filantrópica criada por brasileiros residentes no exterior. https://www.brazilfoundation.org/pt-br/
11
- Anteriormente, além da já citada cooperativa em Ananindeua/PA, foram instaladas duas outras em
Tremembé/SP.
12
- Vídeo disponível em https://youtu.be/oM9gdDt0304
13
- O Instituto Humanitas 360 apresenta vídeo sobre a Cooperativa cuxá em
https://www.youtube.com/watch?v=GbGYVe2MnmE
20

fechado e semiaberto intramuros, e pessoas egressas em regime aberto ou livramento


condicional. ( MARANHÃO, 2020)

Na mesma data, publicou-se também o Termo de Cessão Nº 4/2020, relativo ao


processo nº 255670.19/2020- SEAP/MA, que versa sobre a cessão gratuita , por um período
de cinco anos, de espaço físico com área total de 244,17 m2, denominado UPFEM- Galpão
Cuxá, no interior do imóvel da Unidade Prisional Feminina de São Luís-MA (UPFEM), onde
passaram a ser desenvolvidas as atividades das cooperadas. (MARANHÃO, 2020).
Cardoso (2014) conceitua cooperativa como uma associação voluntária de pessoas
para satisfazer aspirações e necessidades econômicas, sociais e culturais comuns, por meio de
empreendimento de propriedade coletiva e gestão democrática, fundamentado na economia
solidária, objetivando desempenho econômico eficiente, por meio da produção de bens e
serviços com qualidade destinada a seus cooperados e clientes. Nesse sentido, a Cooperativa
Cuxá reúne cerca de 40 mulheres, que desenvolvem suas atividades em turno de 6 horas
diárias, tendo como atividade principal da empresa o comércio varejista de suvenires,
bijuterias e artesanatos. Entretanto, nesse período inicial de dois anos de colaboração entre o
Instituto Humanitas e a SEAP, entende-se que a empresa, registrada sob o CNPJ
36.098.685/0001-06, necessita do aporte técnico para sua consolidação, sendo seu conselho
administrativo presidido nesta fase inicial pelo integrante do referido instituto, Higor Cauê de
Souza Oliveira. Dados da Receita Federal coletados em outubro de 2021 apontam que a
cooperativa possui um capital social de R$ 13.000,00 ( treze mil reais). No mesmo período,
observa-se no Diário Oficial do Estado do Maranhão, datado de 15/10/2021, página 12,
dispensa de licitação pelo valor do objeto referente a compra de bolsas e nécessaires
artesanais que passarão a compor o acervo da Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão –
SECMA, no valor de e R$ de R$ 12.416,00 (doze mil, quatrocentos e dezesseis reais).
Julga-se que este modelo cooperativista, a despeito da necessária interveniência inicial
do Instituto Humanitas 360, prevista por um período de dois anos, possa vir a ser o ponto
chave de uma mudança efetiva na dinâmica do processo de ressocialização tão presente no
discurso e tão pouco palpável na realidade fática dos presídios brasileiros. O diferencial
consiste no exercício da participação e da autonomia da interna, que passa a ser não apenas
mão de obra qualificada e de baixo custo, mas conhecedora dos processos de gestão e
participação democrática, tornando-se parte integrante das decisões e assumindo também as
responsabilidades advindas da atividade empresarial, e tendo como perspectiva o retorno
financeiro, em razão de sua quota-parte, e a possibilidade de tornar-se uma empreendedora na
área de sua qualificação ao tornar-se egressa do sistema prisional.
21

5- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base no exposto, verifica-se que, historicamente, a própria existência da mulher


encarcerada sofre um processo de constante invisibilização, sendo este decorrente das
abordagens do ser feminino socialmente construídas, que transitam por sua demonização,
numa vertente teológica, sua inferiorização com base em características físicas e biológicas,
na visão médico positivista de Lombroso, ou na negação de seus direitos civis e jurídicos, na
abordagem de Tiraqueau.
No Brasil, essa visão limitada e limitante do Estado sobre as questões do feminino se
traduz em intervenções pífias no processo de ressocialização das mulheres encarceradas. A
demora na construção dos marcos legais referentes ao aprisionamento feminino demonstra tal
insuficiência. Desde o Código Criminal Imperial de 1830, até a adoção, em 2014, de uma
Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas
do Sistema Prisional- PNAMPE, um longo caminho é percorrido, e é esse tardio
estabelecimento de uma política nacional voltada para a mulher presa que serve de arrimo
para enfim dar visibilidade ao tema do cárcere feminino e da finalidade ressocializadora do
trabalho, enquanto instrumento de aprendizado profissional, de remição de pena, de
reconhecimento de habilidades, e por fim, de empoderamento desse ser feminino
encarcerado, que, se por vias tortuosas chegou ao interior do cárcere, por via laboral pode
reconstruir sua própria identidade, reconhecendo-se como possuidora de habilidades, sonhos e
principalmente, de dignidade humana.
No Maranhão, percebe-se que, em consonância com a política nacional, o processo de
percepção da necessidade de iniciativas específicas voltadas para a ressocialização da mulher
apenada também se constrói tímida e tardiamente. Em relação às iniciativas de trabalho
prisional ofertadas às mulheres aprisionadas, teceram-se considerações sobre o Projeto
Digitalizar Já, que proporciona atividades relacionadas aos meios digitais no âmbito do
processo de modernização do sistema judiciário estadual, sendo uma atividade diversa das
comumente oferecidas às mulheres marcadas pelo estigma do cárcere, em uma área com reais
possibilidades de expansão de vagas de trabalho. Sugere-se que este protótipo seja replicado
através de parcerias firmadas entre a SEAP e outros órgãos e entes públicos estaduais, a
exemplo da Secretaria de Cultura, responsável pelo Arquivo Público Estadual, de forma a
garantir a preservação documental e a modernização do acervo.
Por outro lado, a experiência da Cooperativa Cuxá, traz uma inovação no aspecto
gerencial, entretanto destina-se à produção de artesanatos e suvenires tão largamente
22

repisados quando se aborda o trabalho prisional. Ao mesmo tempo, a ironia observada na


instalação do modelo cooperativista tão promissor reside no fato de que uma iniciativa
voltada para a participação e autonomia feminina está, legalmente, sob a tutela masculina,
visto que o executivo principal da cooperativa é um homem, embora o discurso e a imagem
explorada nas mídias e redes sociais seja feminina, o que demonstra os reflexos subjacentes
do patriarcado mesmo nas propostas mais inovadoras. Reafirma-se porém, a ideia de que este
modelo é singular ao propor, de fato, uma participação da pessoa presa nas decisões,
tornando-a sujeito ativo no processo de construção de sua autonomia, o que pode configurar
uma das respostas possíveis para o ajustamento e o restabelecimento do princípio da
dignidade humana no ambiente carcerário.

REFERÊNCIAS

ANGOTTI, Bruna. Entre as leis da ciência, de Estado e de Deus. San Miguel de Tucumán:
Universidad Nacional de Tucumán. Instituto de Investigaciones Históricas Leoni Pinto, 2018.
Livro digital. Disponível em
https://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2018/06/bruna-angotti-entre-as-leis-da-cincia-do-
estado-e-de-deus.pdf. Acesso em 03/10/2021.
BARBOSA, Helena. Apenadas da Unidade Prisional Feminina digitalizam processos
para a Justiça do Maranhão. Disponível em
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