Você está na página 1de 6

O sistema penitenciário é a arte de punir.

A punição aqui suscitada não é somente


física, mas, sobretudo, é aquela que estigmatiza a identidade psicológica perante a
sociedade daquele corpo de forma e pensamentos, de direitos constitucionais e políticos.
As práticas e os discursos abordados pelos atores relacionados ao sistema penitenciário
podem ser entendidos dentro de um espaço e tempo. Temporalmente, a administração
do fato prologa-se ao longo do tempo, não havendo precisão de fato quando se inicia o
julgamento, quando se condena e se executa a pena. Já no espaço, a pessoa, como réu do
fato a ser diligenciado e incriminado, e pouco é a importância de ser o verdadeiro réu ou
não, caminha entre as várias instâncias no processo criminal, passando pela audiência de
custódia, para a audiência de instrução e julgamento até a audiência de execução da
pena, sendo cerceado por um maior tempo a sua liberdade ambulatorial.

O sistema penitenciário é a pura arte de punir, lógica contraditória à retórica


ressocializadora. A punição aqui suscitada não é somente física (suplício), mas recai,
sobretudo, na desconsideração da identidade desses sujeitos e na difusão, ativa e
passiva, do senso comum no que tange à construção do ser apenado (forma e
pensamento), coincidindo também na nulação de seus direitos constitucionais e
políticos. No caminho da punitividade, o processo aos acometidos ao sistema
penitenciário podem ser expressos dentro de uma lógica espaço-tempo.
Temporalmente, a administração do fato se prolonga, não havendo precisão decerto
sobre quando se inicia o processo judicial, quando se condena, quando se executa a
pena e tampouco qual cálculo penal foi e precisará ser feito. Já no espaço, o indivíduo
enquanto réu a ser diligenciado e incriminado (parte na qual há diversos vícios
jurídicos) passará entre várias instâncias no processo criminal, como a audiência de
custódia e a Audiência de Instrução e Julgamento (AIJ), sendo cerceado por um maior
tempo de sua liberdade ambulatorial até sua condenação de fato sentenciada.

O processo desse espaço-tempo é explícito por Rafael Godoi em A Arte de Livrar,


2019, se apoiando em Valverde (2015), como o cronotopo do tribunal. Se trata
basicamente do ritual do processo, controlado a todo tempo pelo juiz, determinando o
início, meio e fim, suas pausas e a participação coordenada de cada parte integrante
do processo. Esse dito ritual das AIJ's foi sancionado a partir da lei 11.719/08 pela
reforma do CPP, no qual ficou determinado "uma audiência única para esses diversos
expedientes, com a presença de juiz, promotor, defensor, vítima, perito, réu e
testemunhas" (Godoi, 2019), porém, como o autor também expõe:
"entre o rito de abertura formal da AIJ e a determinação da sentença, existe um enorme
lapso, expansivo mesmo, indefinido, que desaparece na coerência construída dos autos
do processo - ecoando, portanto, a dinâmica que prevalecia antes da reforma de 2008".
E mais, "nessa conversa de corredor, entre réu e defensor, sob a vigilância do policial
militar, a audiência parecia finamente terminar."

Os antecedentes criminais dos sujeitos é fator primordial na balança da justiça para


determinar ou cercear o direito de ir e vir dos investigados, além de ser o compasso
para ser condenado pelo fato novo, pois o direito na sua perspectiva material busca
condenar comportamentos altamente e/ou moralmente reprováveis com o objetivo de
prevenir e reprimir bens jurídicos indispensáveis ao progresso da sociedade. Rafael
Godoi (2019) também explicita esse fenômeno ao descrever que com a sala de
audiência sem a presença do réu, "juíza, promotora, defensor e escrivã passam a
trabalhar juntos no processo, (...) até que chegam num ponto importante: os
antecedentes do sujeito." e desse modo se instaura uma espécie de simulacro
investigativo para verificar se há algum fato antecessor, o que mudaria completamente
o rumo da sentença. Vale ressaltar ainda que nas condenações, o embasamento
jurídico não é voltado para a liberdade do indivíduo da mesma maneira que também
não o é para o justiçamento punitivista, mas sim para a defesa de um julgamento
imparcial, com equidade e que julgue apenas o mérito do fato ("bis in idem") diante da
inquisitoriedade do Poder Judiciário.

Diante do descrito no retrato etnográfico de Godoi, fica evidente que há 2 formas de


justiça sendo empregadas: o ser e o dever-ser, a prática e a teórica. No meio desse
imbróglio estão os cidadãos, figurantes do rito, submetidos à um sistema que
transforma suas vidas mesmo que não as conheça e, muito menos, compreendem como
se deu seu julgamento e, se for o caso, sua pena. Pena essa que muitas vezes já estão
cumprindo mesmo sem uma condenação de fato, "apesar de haver ainda muitas
mulheres aguardando julgamento por quase um ano ou mais" (Martins, Luana. Fazer a
pena andar: Uma etnografia sobre o cumprimento de pena em unidades prisionais
femininas entre o Rio de Janeiro, Paris e Marseille, 2022.), o que nos leva a observar
esse próximo passo.

A se tratar do cumprimento da pena, sob perspectiva comparada, Luana Martins


(2022) descreve o Centre Pénitentiaire de Marseille na França como uma unidade
prisional voltada à dignidade humana, com o devido acolhimento físico e psicológico e
que dispõe de mão de obra técnica importante para o desenvolvimento cívico das
apenadas , como psicólogas, enfermeiras, agentes educadores e secretárias. A prisão
na França não é só um espaço de encarceramento, como também é uma tentativa
realista de ressocialização daquelas infratoras penais, em que os seus corpos, as suas
forças de trabalho, as suas fala, os seus pensamentos e as suas posições políticas são
levadas em consideração para suas respectivas auto-reconstruções sociais, com
estruturas como bibliotecas, academias, salões de beleza, entre outras atividades. No
Brasil, por outro lado, a lógica é inversa apesar do finalidade, em tese, ser a mesma.
Como aponta o relatório da CNJ intitulado como Letalidade Prisional: uma questão de
justiça e de saúde pública (2023), "a superlotação associada à estrutura precária das
unidades prisionais condena a população privada de liberdade a penas efetivamente
cruéis", e como o próprio relatório referencia, "as prisões no Brasil são espaços de
violações sistemáticas de direitos humanos que atingem majoritariamente a juventude
negra, pobre e periférica (Ferreira et al, 2020)". Ou seja, "trata-se de um ambiente que
adoece o corpo e a alma" (Mallart e Godoi, 2017; citação em Letalidade Prisional:
uma questão de justiça e de saúde pública, 2023 - CNJ).

A vivência no sistema penitenciário brasileiro, na verdade, é uma luta constante por


sobrevivência. Dados obtidos e transcritos no relatório da CNJ (Letalidade Prisional:
uma questão de justiça e de saúde pública, 2023) demonstram tal problemática:

" um grupo de internos narrou à Defensoria Pública que, após mais de 24horas sem
alimentação, ingeriu papel higiênico molhado para matar a fome. À pouca quantidade
de alimentos ou mesmo ao fornecimento de comida estragada, somam-se os relatos de
espancamento, o racionamento de água ou o fornecimento de água imprópria para o
consumo, o frio ou o calor intensos – gerados pelas próprias condições de
infraestrutura das prisões –, a alocação de presos em terrenos contaminados (como é o
caso do CDP IV de Pinheiros, zona leste de São Paulo, situado em terreno que abrigou
um lixão, solo no qual se acumulam metais pesados), a ausência de produtos de higiene
e limpeza, as infestações de insetos e roedores, a superlotação em espaços sem
ventilação, úmidos e com pouca luminosidade, em suma, precariedades de múltiplas
ordens. (...) beber água e comer não são direitos assegurados a todos.".

O contraponto do sistema penitenciário francês fornece outro paronama:


Em cima dessa mesa, um computador, livros e objetos pessoais estão organizados.
“Não reparana bagunça”, Jamille diz quando começa a me mostrar os móveis que têm
em sua cela.(...) Do lado da escrivaninha, a pequena geladeira serve de apoio à
televisão." (Martins, Luana. Fazer a pena andar: Uma etnografia sobre o cumprimento
de pena em unidades prisionais femininas entre o Rio de Janeiro, Paris e Marseille,
2022.).

Diante de tanta discrepância, é de se questionar como a administração interna do


sistema penitenciário brasileiro se mantém diariamente. Além do fator repressivo e do
caráter administrativo pacifista das facções criminosas em suas áreas de domínio, à
qual não adentraremos na discussão neste ensaio, a religião, majoritariamente
evangélica, detém um grande poder sobre os(as) detentos(as). Geralmente provocando
introspecção sobre o porquê de estarem onde estão e a noção de penitência (ter que
obrigatoriamente passar pelo que estão passando para se redimirem), mas também
mediando conflitos e os provendo de fé, o mais forte impulsionador da esperança,
fundamental para o dia a dia nesse meio. Luana Martins (2022) descreve que "é
possível compreender a igreja como parte responsável por políticas públicas nas
unidades prisionais" e também que "a igreja, neste ponto, promove não só uma
assistência material, mas uma partilha moral de pertencimento a outra identidade". Ou
seja, em face a punição, sobretudo, psicológica sobre os presos, percebe-se que dentro
das relações prisionais, a disposição religiosa é o meio que dá sentido ao
encarceramento para suprir a falta de aparato do Estado no que tange a
ressocialização.

Diante do que foi supracitado, é preciso refletir diante do contrate feito entre os
sistemas de Brasil e França sob a lógica da ressocialização, além de levar em
consideração a forma pela qual se exerce a condenação no Brasil e as consequências
dessas decisões proferidas muitas vezes de forma inquisitorial e afastadas de aspectos
de observância social que fazem parte do contexto dos réus e de seus respectivos cases.
Para além, é preciso também refletir sobre a religiosidade no sistema penitenciário,
pois por mais que há várias benécias observadas, também é de conhecimento comum a
associação do tráfico com tal religiosidade, gerando perseguição à outras expressões
religiosas e verdadeiros complexos criados seguindo a lógica do neoevangelismo.
O antecedente criminal do sujeito é balança da justiça para dizer o direito de ir e vir
daquele sujeito, possível infrator da lei penal. Além de ser o compasso para ser
condenado pelo fato, pois o Direito material busca condena comportamento altamente
reprováveis com o objetivo de reprimir e prevenir bens jurídicos indispensáveis ao
progresso da sociedade. Vale ressaltar ainda que nas condenações, o embasamento
jurídico não é voltado para a liberdade do indivíduo, mas, sobretudo, a defesa e o
antecedentes criminais do réu serem parâmetros para a condenação ser mínima diante da
inquisitoriedade do Poder Judiciário.

- Condenação - Audiência única: um ritual de tempo e espaço único e próprio que reúne
juiz, promotor, defensor, vítima, perito, réu e testemunha que estabelece um nova
racionalidade e técnica para operacionalizar o governo de indivíduos.

- Execução da pena

- Vivência da pena

Diferentemente do espaço prisional brasileiro, a vivência da pena no Centre


Pénitentiaire de Marseille é da forte presença do Estado no que tange o acolhimento
físico e psicológico, tendo alguns personagens importantes, como psicólogas,
enfermeiras, agentes educadores e secretárias, dispostas diante das necessidades das
presas. A prisão na França não é só um espaço de encarceramento, como também é uma
tentativa de ressocialização daquelas infratoras penais, em que o seu corpo, o seu
trabalho, a sua fala, o seu pensamento e sua posição política é importante para a
construção de uma civilidade tendo como pressuposto sua a dignidade. No Brasil, o
encarceramento é mais punitivo do que propriamente civil. O Estado é presente, mas em
contraste do que se vê na França, os presos são titulados como pessoas moralmente
reprováveis, os seus corpos são despojos daqueles da sociedade que não deu certo, ou
seja, indivíduos não legalistas.

No Brasil, em face a punição, sobretudo, psicológica sobre os presos, percebe-se que


dentro das relações prisionais, a disposição religiosa é o meio que dá sentido ao
encarceramento para suprir a falta de aparato do Estado no que tange a ressocialização.
A religião se contextualiza nesse espaço da pena, incisivamente, pois supri a punição
psicológica, dando ressignificação ao enceramento e a vivência na pena dos apenados,
trazendo, assim, mais humanização e sentido para serem realocados na sociedade.

Você também pode gostar