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DOM CASMURRO E O
·OS FARRAPOS DE TEXTOS

Wellington de Almeida Santos

Quero falar de sua mania de negar o que é, gião) , 'compondo um jogo discursivo de rara
e de explicar o
que não é. funcíonalidade narrativa.
(Edgar A. Poe, Os crimes da rua Morgue) Situado no âmbito do estritamente lite-
rário, o discurso ficcional de Dom Casmur-
A leitura, hoje, de um romance quase ro satura-se da "ilusão referencial", ex-
centenário, como Dom Casmurro (1899), de pressão que designa o carácter opaco da
Machado de Assis, náo pode descartar as linguagem utilizada na comunicação esté-
leituras que dele fizeram os críticos, em di- tico-Iiterária.'
ferentes épocas. Não obstante a idade, o ro- O relato do velho e casmurro advogado
mance rejuvenesce a cada nova investida se organiza segundo um rigoroso controle
crítica, sobretudo quando passamos em re- da palavra escrita, veículo comum da repro- .
vista sua já volumosa fortuna critica. dução atualizada das falas do passado (os
A diversidade das interpretações e aná- diálogos dos personagens), de alusões e
lises criticas sugere a riqueza de caminhos apropriações textuais (os diferentes resídu-
a que pode conduzir o texto machadiano. os e fragmentos de textos incorporados à nar-
Ainda que muitos críticos reivindiquem ração)e de comentários circunstanciais dos
para si a primazia de terem desvendado fatos passados, em contraste com as reflexões
seu "verdadeiro" sentido, ainda não apa- do presente. Esse senso de ordenação, fun-
receu a leitura definitiva da obra, sinal in- damental para evidenciar o carácter artifici-
conteste de sua extrema vitalidade crítica. al da ilusão realista, é lembrado constante-
Dom Casmurro continua a desafiar a argú- mente ao leitor:
cia do leitor. Todo esse discurso não me saiu assim. de vez,
No presente trabalho, não ambicionamos enfiado naturalmente, peremptório, como
preencher qualquer tipo de lacuna na bibli- .pode parecer do texto, mas aos pedaços, mas-
oqrafia do livro; tampouco pretendemos cor- tigado, em voz um pouco surda e tímida. "2

rigir eventuais interpretações, das quais


possamos discretamente discordar, inserin- o narrador utiliza-se de uma tática sutil
do-nos num campo mais fértil.de diálogo de narração, em que se combinam dois pro-'
crítico. Por isso, rendemos homenagem a pósitos discursivos, sem choque ou desequi-
todos os estudiosos da obra, os quais, direta líbrio. Um deles é o de comentar a escrita,
ou indiretamente, contribuíram para o de- invasão despudorada de um narrador que
senvolvimento de nossas idéias. não hesita em manter sob permanente vigi-
No entanto, desculpamo-nos pela escas- lância o mundo narrado. Mediante esse ar-
sez de citações teóricas ou críticas que im- tifício, controla as reações do leitor, tentan-
pliquem comentários marginais. Nossa lei- do persuadi-Ia de que sua versão dos fatos
tura privilegia aspectos da microestrutura narrados (e não existe outra disponível) éà
narrativa, nível em que o narrador dissemi- única realidade possível. Confiando na efi-
na partículas de sentido - autênticos farra- cácia do estratagema utilizado, não titubeia
pos de textos - em tomo de três áreas sernán- em acusar Capitu, sua finada mulher, de
ticas distintas (slalus social, erotismo e reli- adultério. Em nenhum momento, porém, ten-

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ta explicitar as razões que a teriam levado à investimento para o velho Pádua, falando
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suposta traição conjugal. Limita-se à acusa- em."economia de esperanças". O termo eco-
I ção, baseado apenas num julgamento alta- nomia reveste-se de significação inespera-
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mente parcial e subjetivo, que é seu. da, quando determinado pela palavra espe-
O outro propósito consiste em assumir rança. Acresce que a comparação entre o con-
posição contrária à atitude anterior. Através trato conjugal e a sorte lotérica já fora usa-
de um eficiente jogo indutivo, o narrador, da pelo narrador, a propósito do casamento
subrepticiamente, se exime de comentar di- de seus pais. Advirta-se, entretanto que há
retamente os fatos narrados. A estratégia, uma diferença fundamental entre as duas
agora, consiste em selecionar e combinar cui- comparações. No exemplo dos pais, o casa-
dadosamente palavras e expressões com que mento como bilhete de loteria que foi pre-
veicula informações constrangedoras ou miado prende-se à felicidade conjugal, no
emite, sem dizer explicitamente, opiniões plano amoroso. É o que sentencia Dom Cas-
sobre assuntos, a respeito dos quais é mais murro, ao contemplar com orgulho o retrato
prudente calar. Trata-se de uni. discurso oblí- do casal: "O que se lê na cara de ambos é
quo, sinuoso, dissimulado que afirma que- que, se a felicidade conjugal pode ser com-
rendo negar e nega afirmando. Estão nesse parada à sorte grande, eles a tiraram no bi-
caso a consciência de pertencer a uma clas- lhete comprado de sociedade." (OC, 736)
se social abastada, o conseqüente preconcei- Quanto ao Pádua, o narrado r relaciona-
to social que advém dessa certeza e o recal- o a bilhetes de loteria, em dois outros capí-
que sexual, conseqüência de sua educação tulos. No capítulo XVI, informa-nos que o
para o seminário. São esses os elementos pai de Capitu comprou a casa em que mo-
que destacamos para analisar. ravam, "com a sorte grande que lhe saiu
Dom Casrriurroparece lamentar que, ten- num meio bilhete de loteria, dez contos de
do amado profundamente a mulher, não foi réis." (OC, 745) No capítulo LXII, a situa-
plenamente correspondido. Embora não ad- ção é mais complexa, por se tratar de um
mita com clareza, preferindo a via da insi- sonho ..Bentinho sonhara com Capitu sen-
nuação, indicia que Capitu casou-se com ele do cortejada por um "peralta da vizinhan-
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interesse econômico.
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ça". Logo depois, aparece o Pádua, enxu-
Um bom exemplo, na opinião do narra- gando os olhos, com um bilhete de loteria
dor, de que a famíliade Capitu desejou o ca- na mão, dizendo-lhe que "o peralta fora le-
samento para sair da situação de penúria fi- var-lhe a lista dos prêmios da loteria, e o
nanceira em que se encontrava, está no epi- bilhete saíra branco." (OC, 797)
sódio em que Bentinho, a caminho do semi- A alusão é compreensível. Dom Casmur-
nário, se despede do velho Pádua. A lingua- ro utiliza-se da imagem dos bilhetes de lo-
gem cifrada de DomCasmurro assinala a pro- teria do Pádua - metafórico, literal e oníri-
vável decepção do velho Pádua, que, supos- co, pela ordem - como farrapos de textos, li-
tamente, nutria a esperança de união con- gados ao sentido de frustração econômica.
jugalentre a filha pobre e o vizinho rico: Nas duas situações em que chora, o faz, não
Tinha 0S olhosúmidosdeveras;levavaa cara pelo bilhete branco (metáfora da frustração
dos desenganados, como quem empregou econômica), mas pela perda de esperanças
em um só bilhetetodasas suas economiasde de ver a filha casada com Bentinho. Perde o
esperanças, e vêsairbrancoo malditonúme- desejado genro, na realidade, por causa do
ro - um número tão bonito!" (Oe, 784) seminário; perde-o, também no sonho, pela
intromissão do "peralta da vizinhança".
Observe-se como o narrador, discreta- O único momento positivo - bilhete pre-
mente, refere-se ao casamento como sinal de miado - resultou na compra da casa em que

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mora, o que é muito pouco para suas preten- Aparentemente sem importância para a
sões de ascensão social. economia funcional da narrativa, o episó-
Manipulando estruturas fragmentadas, o dio do "pregão das cocadas", mencionado
narrador confere sentido à recuperação do nos capítulos XVIII, LX, CX e CXIV, é ou-
passado, embora este tenha sido aprioristi- tro farrapo de texto bastante significativo
camente determinado, conforme propósito na narrativa,
declarado, desde o início da narração. No capítulo XVIII. Dom Casmurro escre-
O desejo irrefréável da escrita e uma re- ve sobre um dos raros momentos em que Ca-
quintada competência na arte de compor o pitu perde o equilíbrio emocional. Bentinho
texto garantem ao narrador a motivação su- comunica-lhe que Dona Glória decide, final-
ficiente para concretizar o projeto da obra, mente, mandá-lo para o seminário. A reação
sob total controle, Desse modo, tanto a di- intempestiva da moça surpreende o futuro
gressão como a visão retrospectiva são téc- seminarista. Passado o instante da irritação,
nicas narrativas que servem ao mesmo ob- ambos dirigem -se à janela, quando passa um
jetivo: apaziguar o impulso compulsório da preto vendendo cocadas, O vendedor ofere-
"sarna de escrever" que fascina o narrador, ce o doce a Capitu, que o recusa. Bentinho
ao mesmo tempo que o incomoda, sentimen- compra duas cocadas, mas come-as sozinho,
to paradoxal que se traduz num estilo que O comentário do narrador sobre esse epi-
mistura tom elegíaco, repassado de saudo- sódio é cheio de minúcias: I

sa ternura, e ácida mordacidade, de indis- (... 1 fiquemos em que a minha amiga, apesar i
farçável rancor. de equilibrada e lúcida, não quis saber de I
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" doce, e gostava muito de doce. Ao contrário, Daí para a frente, as lembranças são um
o pregão que o preto foi cantando, o pregão tanto confusas.
das velhas tardes, tão sabido do bairro e da No capítulo LX, Dom Casmurro afirma ter
nossa infância: mandado pôr em música o pregão:
Chora, menina, chora, Justamente, quando contei o pregão das
Chora, porque não tem cocadas, fiquei tão curtido de saudades que
Vintém, me lembrou fazê-Ia escrever por um ami-
go, mestre de música, e grudá-Ia às pernas
.a modo que lhe deixara uma impressão abor- do capítulo .
recida. Da toada não era; ela a sabia de cor
e de longe, usava repeti-Ia nos nossos jogos Entende-seque a iniciativa foi tomada
de puerícia, rindo, saltando, trocando os durante a escrita do livro. Porém, no capítu-
papéis COIIÚgo,ora vendendo, ora compran- lo CX, atribui essa atitude a Bentinho, mui-
do um doce ausente. Creio que a letra, desti- to tempo antes: '~..
nada a picar a vaidade das crianças, foi que a Em São Paulo, quando estudante, pedia um
enojou agora, porque logo depois me disse: professor de música que me transcrevesse a
- Se eu fosse rica, você fugia, metia-se no pa- toada do pregão; ele o fez com prazer, bas-
quete e ia para a Europa. (De, 748) tou-me repetir-lho de memória, e eu guardei
o papelinho; fui procurá-Ia.
o narrado r frisa com bastante cuidado os
detalhes da cena. Com a perspicácia dequem Esta segunda versão confirma-se no ca-
precisa ser cauteloso, examina o contexto, pítulo CXIV: "Viste que eu pedi (capítulo
procurando razões que justificassem a con- CX) a um professor de música de São Paulo
trariedade da amiga. Destaca o carácter gra- que me escrevesse a toada daquele pregão
tuito e prazeroso que o pregão assumia nos de doces de Matacavalos."
folguedos, eliminando as diferenças, em to- São farrapos de textos que se esgarçam na
dos os níveis, pela representação lúdica das lembrança, perdidos na referência temporal.
constantes trocas de papéis. Agora, não há A segunda versão convence-nos com ra-
opção de troca. Cada qual ocupa seu lugar zoável facilidade, porque decorre de um
próprio, principalmente na escala social, e Ca- pacto de cumplicidade amorosa, firmado pelo
pitu, consciente de que não poderia evitar casal de namorados. O narrador recorda emo-
que o companheiro fosse para o seminário, la- cionado esse momento: "Capitu e eu tínha-
menta a pobreza e se revolta. O narrador vis- mos jurado não esquecer mais aquele pre-
lumbra na letra do pregão - "Chora, porque gão; foi um momento de grande ternura!"
não tem/Vintém" - a origem do incidente. (Oe, 843) Além disso, liga-se coerentemen-
Recuperado na escrita com um misto de te a outros aspectos da questão.
prazer e melancolia, o pregão das cocadas O pedido de transcrição musical do pre-
\.

percorre a vida inteira de Bentinho: infân- gão e a intenção de anexar a partitura a: um


cia, adolescência, maturidade e a própria capítulo do livro (LX) são providências dis-
velhice de Dom Casmurro. Dom Casmurro tintas, tomadas em tempos igualmente dis-
parece não entender direito o acontecido ao tintos.
longo dos anos. Esse capitulo truncado (LX) exemplifica,
Na infância, apenas referida, predomina mais uma vez a técnica da afirmação pela
o sentimento ingênuo das brincadeiras in- negação: "Se depois jarretei o capítulo foi
íantis. Na adolescência, dá-se ênfase ao tu- porque outro músico, a quem o mostrei. me
multo das sensações confusas, diante do irn- confessou ingenuamente não achar nf tex-
p,acto da notícia da ida para o seminário. to escrito nada que lhe acordasse saudades."

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(OC, 793) E arremata: "Vês que não pus dão, na descrição dos trajes e objetos pes-
nada, nem ponho." (OC, 793) soais de Capitu.
E tudo se completa, em termos da expe- No capítulo em que narra o encontro que
riência vivida por Bentinho, com a matéria culmina com o primeiro beijo, o narrador não
contida no capítulo CX. Já casado, Bentinho deixa de ver "~lhinho de pataca (per-
pede a. Capitu que toque a toada ao piano, doai a barateza) comprado a um mascate ita-
a pretexto de ensiná-Ia ao filho, Ezequiel. liano, moldura tosca, argolinha de latão"
Decepcionou-se ante a resposta negativa da (OC, 763) pendurado na parede da sala de
esposa que disse tê-Ia esquecido. Rapida- Capitu. Observe-se que Dom Casmurro des-
mente, procura e acha a velha partitura. culpa-se pela modéstia do "espelhinho de
Agora, sozinho e velho, o casmurro nar- pataca", e não pela indiscrição de exibi-Io
rador insiste no aspecto sentimental da re- publicamente. Diante desse pobre espelhi-
cordação, um farrapo de texto ligado a mo- nho, Bentinho penteará Capitu, numa das
mentos de intensa ventura e enlevo amoro- cenas mais carregadas de erotismo de todo
so. Mas há também a suspeita de que, para o livro, o que não impede o narrador de in-
além do clima idílico, o pregão simboliza formar ao leitor que, para atar as duas tran-
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desilÍvel social. Sugere o narrador nas en- . ças, havia "em cima da mesa, um triste pe-
trelinhas que, depois de casada, Capitu es- ,daço de fita enxovalhada." (O C, 764)
quece o pregão e quebra o juramento. Na Quando Capitu vai cumprimentar o pa-
sua opinião, duplo perjúrio, esquecendo-se dre Cabral pelo título recebido (protonotá-
de que ele próprio também o teria esqueci- rio-apostólico}, o narrado r não deixa de ano-
do, não o juramento, mas o pregão, se não o tar que ela "trazia um vestidinho melhor e
tivesse mandado pôr em música. Livre da os sapatos de sair"(OC, 771). pois se trata-
ameaça de pobreza, Capitu pode, sem alvo- va de uma ocasião especial.
roço, tocá-Ia: e cantá-Ia, para alegria de Eze- Encerremos esta parte com a mais am-
quiel: "Capitu achou à toada um sabor par- pla e minuciosa descrição do corpo e dos
ticular, quase delicioso; contou ao filho a trajes de Capitu. Dom Casmurro demora-se
história do pregão, e assim o cantava e te- extasiado na contemplação demorada da-
clava. Ezequiel aproveitou a música para pe- quela figura tão humilde, mas tão sensual.
dir-me que desmentisse o texto dando-lhe A atração fora intensa e o narrador, pelo
algum dinheiro." (O C, 839) olhar magnetizado de Bentinho, sucumbe
Como quer que seja, Dom Casmurro, ao fascínio da visão:
como se não tivesse outra intenção que não Não podia tirar os olhos daquela criatura de
.....
fosse a fiel narração dos fatos, vai fixandg .. quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada
_
". . aspectos'
da vida
-
modesta
'.... .
da -..família
'..
de- Ca- .
em um vestido de chita, meio desbotado. Os
.p.it.~. Assim, fala do pai dela que "era em- cabelos grossos, feitos em duas tranças, com
pregado em repartição dependente do Mi- as pontas atadas lima à outra, à moda do
nistério da Guerra. Não ganhava muito, mas tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena,
a mulher gastava pouco e a vida era bara- olhos claros e grandes, nariz reto e compri-
ta ...", (OC, 745) ou reproduz um diálogo que do, tinha a boca fina e o queixo largo. As
Bentinho tivera com José Dias, quando o mãos, a despeito de alguns ofícios rudes,
agregado aconselhou-o a não andar com o eram curadas com amor; não cheiravam a
Pádua. José Dias argumenta que podia íazê- sabões finos nem águas de toucador, mas
10 quando era criança, porque "era natural, com água do poço e sabão comum trazia-as
ele podia passar por criado." (OC, 754) sem mácula. Calçava ~-~~~~?~_<:!~cl~~~q~_~ ra-
Freqüentemente, porém, detém-se , às sos.,e..ye.l,i1gs,.9que ela mesma dera algtuns
vezes com demasiado escrúpulo de exati- P<?I}!Q,!!,jQC, 742)

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Esta minuciosa descrição evidencia; pelo de Assis construiu ao contrapor, distinguin-
menos, duas conclusões. A primeira delas é do-os entre si, o personagem (Bentinho) e o
que, ao contrário do que nos informa o na r- narrador (Dom Casmurro).
rador, no capítulo LIX, sua memória é óti- . Diferentes em quase tudo, a partir mes-
ma, capaz de, decorridos mais de quarenta mo da indicação onomástica, ironicamente
anos, desenhar com tanta nitidez os traços é através de um que se chega à compreen-
naturais e de status social da namorada. são do outro.
Um retrato de corpo inteiro em que o ín- Ao decidir-se pelo relato da experiência
dice da mais completa pobreza realça, pa- vivida por Bentinho. Dom Casmurro forne-
radoxalmente, o perfil mais encantador. ce a pista, às avessas, que conduz ao des-
A outra conclusão refere-se à insistência vendamento de sua personalidade. Às aves-
com que Dom Casmurro introduz, mesn;o re- sas, por dupla razão:
cordando momentos de intensa emoção vivi- 1 - Porque o narrador crê ou quer fazer-
dos por Bentinho, notações relevantes sobre nos crer ter sido em vão todo o esforço para
a situação econômica de Capitu. Era consci- recompor o passado, conforme o dito no ca-
ente das diferenças sociais entre ele e Capi- pítulo II: "O meu fim evidente era atar as
tu, mas foi incapaz de resistir à sedução dela. duas pontas da vida, e restaurar na velhice
Passemos, agora, a examinar a tensão en- a adolescência. Pois, senhor, não consegui
tre o erotismo ea religião. recompor o que foi nem o que fui." (OC,730)
Para. introduzir esta questão, duas refe- 2 - Porque Dom Casmurro objetiva o in-
rências criticas nos interessam. teresse de seu relato na tentativa de conven-
A primeira, de Augusto Meyer: cer o leitor de que Capitu lhe fora infiel.
Dom Casmurro é o livro de Capitu, embora
o seu perfilapareça aos olhos do leitor indi- Ora, é justamentequando supõe não ter
retamente, coado e transfiguradopelo ângu- alcançado a compreensão de si mesmo ou por
lo visual retrospectivode Bentinho.? estar convicto da traição de Capitu que Dom
Casmurro se revela por inteiro. O narrado r
A segunda, de Dante Moreira Leite: confessa, por via oblíqua, ou seja, diferente
Se aceitamosa verdade de Bentinho,sempre de sua intenção consciente, que fora um ser
nos faltará a verdade de Capitu, isto é, não reprimido sexualmente, daí advindo sua tra-
temos recursos para saber se, objetivamen- gédia, e que a causa dessa repressão foi a
te, o romanceé a históriade uma grande trai- sua destinação religiosa, motivada pela pro-

I
.I
ção ou de um grande ciumentoque, incapaz
de trair, projetava a traição.' - grifodo autor
messa da mãe, Dona Glória.
Assim, na tessitura do discurso narrativo
I de Dom Casmurro haverá uma retórica cru-
"Livro de Capitu" (Augusto Meyer) ou zada, prenhe de ambigüidade, envolvendo
J
I
I
"Sempre nos faltará a verdade de Capitu" erotismo e religião.
r (Dante Moreira Leite). são caminhos que Esses dois pólos semânticos - erotismo e
não nos interessam percorrer imediatamen- religião, farrapos de textos - em princípio an-
te. Mas um fragmento do texto de Dante Mo- titéticos e excludentes, formarão um amálga-
reira Leite sugeriu o percurso analítico por ma retórico em que a interdependência dos
nós escolhido: "incapaz de trair". termos se fará patente. Para melhor clareza,
O reconhecimento prévio de que Benti- situemos, _noplano dos acontecimentos (ex-
nho foi incapaz de trair provocou-nos o de- periência de Bentinho). quatro momentos:
s.ejo de explicitar as razões de tal impossi- 1 - Formação e domínio da religiosidade
bilidade. Necessariamente, centramos nos- - idéia do s~minário, em conseqüência da
sa atenção no jogo ficcional que Machado promessa de Dona Glória;

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