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1. Discurso presidencial à Virgil Society em 1944. Publicado pela Faber & Faber
2. Do gr. Aiolos, pelo lat. Aeolus. Na mitologia grega, o deus dos ventos. ( N . T . )
em 1945. ( Ν . A . )
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chamar de excêntrico aquilo q u e não está no centro. Seus tex- tas dessa estirpe no final de qualquer época, poetas com u m a no-
tos poderão ser, ao mesmo t e m p o , pedantes e licenciosos. A ção apenas do passado ou, alternativamente, poetas cuja espe-
época q u e se segue a u m a época clássica p o d e t a m b é m revelar rança no f u t u r o repousa na tentativa de renunciar ao passado.
excentricidade e monotonia porque os recursos da língua, pelo A persistência da criatividade em qualquer povo consiste, con-
menos para aquele t e m p o , foram esgotados, e excentricidade seqüentemente, na manutenção de um equilíbrio coletivo entre
porque a originalidade se torna mais valorizada do q u e a corre- a tradição no sentido mais amplo — a personalidade coletiva,
ção. Mas a época na qual encontramos um estilo c o m u m será por assim dizer, consubstanciada na literatura do passado
uma época em q u e a sociedade já cristalizou um m o m e n t o de e a originalidade da geração que se encontra viva.
ordem c de estabilidade, de equilíbrio e de h a r m o n i a , assim Não podemos considerar a literatura da era elisabetana,
como a época que manifesta os maiores extremos de estilo indi- em q u e pese a sua grandeza, inteiramente m a d u r a ; não pode-
vidual será uma época de imaturidade ou de senilidade. mos considerá-la clássica. N e n h u m íntimo paralelismo pode ser
Pode-se presumir q u e a m a t u r i d a d e da língua a c o m p a n h e traçado entre o desenvolvimento das literaturas grega e latina,
a maturidade da m e n t e e dos costumes. Podemos admitir q u e a pois esta tinha aquela atrás de si; tampouco podemos esboçar
língua tangencia a m a t u r i d a d e no m o m e n t o em q u e os ho- um paralelismo entre ambas e qualquer literatura m o d e r n a ,
mens adquiram um sentido crítico do passado, u m a confiança pois as literaturas modernas têm tanto a latina q u a n t o a grega
no presente e n e n h u m a dúvida q u a n t o ao f u t u r o . Em literatura, em suas origens. Na Renascença há uma precoce aparência de
isso significa que o poeta está consciente de seus antecessores, maturidade que foi herdada da Antigüidade. Estamos cônscios
c que estamos conscientes dos antecessores q u e pulsam por de u m a aproximação mais íntima da maturidade com Milton.
detrás de sua obra, assim como p o d e m o s estar conscientes dos Milton se encontrava n u m a posição mais favorável para desen-
traços ancestrais n u m a pessoa q u e é, ao m e s m o t e m p o , única c volver um sentido crítico do passado — do passado na litera-
individual. Os antecessores deveriam ser eles próprios grandes tura inglesa - do que seus grandes antecessores. Ler Milton é
confirmar o respeito pelo gênio de Spenser, e a gratidão a Spen-
e dignos, mas suas realizações devem ser de tal ordem q u e sugi-
ser por haver contribuído para que o verso de Milton se tornasse
ram recursos ainda não desenvolvidos da língua, não de m o d o
possível. Todavia, o estilo de Milton não é um estilo clássico: é
a intimidar os escritores mais jovens com o temor de q u e t u d o
o estilo de uma língua ainda cm formação, o estilo de um escri-
o que possa ser feito já foi feito em sua língua. O poeta, é claro,
tor cujos mestres não foram ingleses, mas latinos e, em menor
n u m a época madura, pode ainda obter estímulo a partir da
escala, gregos. Isso, creio eu, parafraseando o que disseram J o h n -
esperança de que esteja fazendo algo q u e seus antecessores não
son e depois Landor q u a n d o se queixaram de que o estilo de
fizeram; pode até mesmo rebelar-se contra estes, como um ado-
Milton não era inteiramente inglês. Permitam-nos modificar
lescente promissor pode insurgir-se contra as cienças, os hábitos
esse julgamento dizendo desde já que Milton fez muito para
e as maneiras de seus pais, mas, retrospectivamente, p o d e m o s
desenvolver a língua. Um dos indícios do avanço em direção
observar que ele é o herdeiro de suas tradições, o q u e preserva
a um estilo clássico é um desenvolvimento q u e tem cm mira a
as características familiares, c que sua diferença de comporta-
maior complexidade da frase e da estrutura da oração. Tal
m e n t o é u m a diferença dentro das circunstâncias de u m a outra
desenvolvimento é visível em uma única obra de Shakespeare,
época. E, por outro lado, assim como observamos às vezes cer-
q u a n d o rastreamos seu estilo das primeiras às últimas peças:
tos homens cujas vidas foram eclipsadas pela fama dos pais ou podemos mesmo dizer que, em suas derradeiras peças, ele vai
dos avós, homens dos quais qualquer realização de q u e foram tão longe quanto possível rumo à complexidade dentro dos limi-
capazes parecem comparativamente insignificantes, t a m b é m tes do verso dramático, os quais são mais restritos do que os
uma época tardia da poesia pode ser conscientemente incapaz de outros gêneros. Mas a complexidade, para seu próprio bem,
de competir com sua ilustre ancestralidade. Encontramos poe-
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não constitui um objetivo a d e q u a d o ; seu propósito deve ser, tido outras coisas a fazer do que realizá-lo, não podemos nos
antes de mais nada, a expressão concisa das mais delicadas nuan- dar o luxo nem de rejeitar nem de superestimar a época de
ças da emoção e do pensamento; e, em s e g u n d o lugar, a intro- Pope; não podemos encarar a literatura inglesa como um todo,
dução de maior apuro e variedade musicais. Q u a n d o um autor ou visar corretamente o f u t u r o , sem uma apreciação crítica do
parece haver perdido, em seu amor à estrutura elaborada, a capa- nível cm que as virtudes clássicas estão exemplificadas na obra
cidade de dizer q u a l q u e r coisa de m o d o simples, q u a n d o seu de Pope; e isso significa que, a menos que estejamos aptos a
apego ao modelo torna-se tal q u e ele diz coisas a f e t a d a m e n t e desfrutar a obra de Pope, não podemos chegar a compreender
no m o m e n t o em que o melhor seria dizê-las com simplicidade, plenamente a poesia inglesa.
limitando assim seu espectro de expressão, o processo de com-
E absolutamente óbvio que a cristalização das virtudes clás-
plexidade deixa de ser inteiramente b e n i g n o , e o escritor
sicas em Pope só foi obtida por alto preço, ou seja, m e d i a n t e
começa a perder o contato com a linguagem falada. N ã o obs-
a exclusão de algumas das maiores potencialidades do verso
tante, como o verso se desenvolve, nas mãos de um poeta após
inglês. Mas, cm certa medida, o sacrifício de algumas potencia-
outro, ele transita da m o n o t o n i a à variedade, da simplicidade
lidades para consubstanciar outras é u m a condição da criação
à complexidade; e, q u a n d o declina, caminha outra vez em dire-
artística, como é uma condição da vida em geral. O h o m e m
ção à monotonia, embora possa p e r p e t u a r a estrutura formal à
que em vida se recusa a sacrificar algo para ganhar outra coisa
qual o gênio dá vida e significado. Vocês julgarão por si mes-
em troca, acaba na mediocridade ou no fracasso, e m b o r a , por
mos até q u e p o n t o essa generalização é aplicável aos antecesso-
outro lado, haja o especialista que sacrificou muito por quase
res e seguidores de Virgílio: p o d e m o s todos observar essa m o n o -
nada, ou aquele que tem tolerado a tal ponto o especialista
tonia secundária nos imitadores de Milton d u r a n t e o século
q u e nada tem a sacrificar. Mas na Inglaterra do século XVIII
XVIII ele mesmo nunca é m o n ó t o n o . E aí chega um t e m p o
temos motivo para perceber que m u i t o mais se perdeu. Criou-
em que u m a nova simplicidade, até m e s m o u m a relativa crueza,
poderá ser a única alternativa. se uma mentalidade madura, mas estreita. A sociedade e as
letras inglesas não foram provincianas no sentido de q u e não
Vocês anteciparão a conclusão em direção à qual estou
se encontravam isoladas das melhores sociedades e letras euro-
caminhando: que as virtudes do clássico q u e até agora mencio-
péias, nem tampouco na retaguarda delas, ainda q u e a própria
nei — maturidade mental, de costumes, de língua e perfeição
época fosse, por assim dizer, u m a época provinciana. Q u a n d o
do estilo c o m u m — são mais fáceis de serem comprovadas na
alguém pensa num Shakespeare, n u m Jeremy Taylor 5 ou n u m
literatura inglesa do século XVIII; e, na poesia, mais na poesia
Milton, na Inglaterra — ou num Racine, num Molière, num Pas-
de Pope. Se isso fosse t u d o o q u e eu tivesse a dizer sobre o
cal, na França —, durante o século XVII, mostra-se inclinado
assunto, decerto não seria novo, e nem valeria a pena dizê-lo.
a dizer que o século XVIII manteve perfeito o seu jardim con-
Consistiria apenas em propor u m a escolha entre dois erros à
vencional, restringindo apenas a área cultivada. Concluímos
qual os homens já chegaram: u m , o de q u e o século XVIII é
que, se o clássico e dc fato um ideal digno, deve ser ele capaz
o mais refinado período da literatura inglesa; outro, o de q u e
de revelar u m a amplitude, uma catolicidade, as quais o século
a idéia clássica deveria estar inteiramente desacreditada. Minha
opinião pessoal é a de q u e não possuímos, na língua inglesa, XVIII não pode reivindicar para si; qualidades que estão visi-
n e n h u m a época clássica nem qualquer poeta clássico; de q u e ,
q u a n d o observamos por q u e a situação é essa, não temos a 5. Taylor, Jeremy. Teólogo e religioso inglês ( C a m b r i d g e , 1613 — Lisburn, 1667),
um dos maiores representantes da Igreja anglicana no período da guerra civil.
mais leve razão para nos aborrecermos; mas q u e , apesar disso, G r a n d e poeta em prosa e mestre da retórica, foi o maior orador sacro inglês depois
devemos manter o ideal clássico diante de nossos olhos. Porque de J o h n D o n n e . Deixou, entre outros, The liberty of prophesyng (1647) e The
minister's duty in life and doctrine ( 1661 ). ( N . T . )
nos cumpre mantê-lo, e porque o gênio inglês da língua tem
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época; e a língua de sua época, como ele a utilizou, será a lín- paração com aquela que produziu um clássico. Se a literatura
gua em sua perfeição. De m o d o q u e não é o poeta sozinho culminasse n u m clássico, isso seria uma questão de sorte. Trata-
que temos de levar em conta, mas a língua em q u e ele escreveu: se a m p l a m e n t e , suponho, de uma questão relativa ao grau de
não se trata simplesmente do fato de q u e um poeta clássico fusão dos elementos dentro dessa língua, de m o d o que as lín-
esgota a língua, mas de q u e u m a língua esgotável constitui a guas laiinas podem se aproximar mais i n t i m a m e n t e do clássico,
variedade lingüística q u e produz um poeta clássico. não apenas porque são latinas, mas porque são mais homogê-
Podemos estar propensos a perguntar, p o r t a n t o , se não neas do que o inglês e, por conseguinte, t e n d e m mais natural-
somos afortunados por dispor de u m a língua q u e , em vez de mente ao esti/o comum, enquanto o inglês, por ser a mais diver-
ter produzido um clássico, pode orgulhar-se de u m a rica varie- sificada das grandes línguas no que se refere a seus elementos
dade no passado e, além disso, da possibilidade de algo novo constitutivos, tende mais à variedade do que à perfeição, carece
no f u t u r o . Mas e n q u a n t o estivermos dentro de u m a literatura, de um t e m p o maior para cristalizar sua potencialidade e contém
e n q u a n t o falarmos a mesma língua e tivermos f u n d a m e n t a l - ainda, talvez, possibilidades mais inexploradas. Ele tem, prova-
mente a mesma cultura q u e produziu a literatura do passado, velmente, a maior capacidade para m u d a r e, não obstante, per-
desejaremos conservar duas coisas: o o r g u l h o de q u e nossa lite- manecer a mesma língua.
ratura já se cumpriu e a crença de q u e p o d e ainda cumprir-se Abordarei agora a distinção entre o clássico relativo e o clás-
no futuro. Se deixássemos de acreditar no f u t u r o , o passado sico absoluto, a distinção entre a literatura q u e podemos cha-
deixaria de ser p l e n a m e n t e o nosso passado: tornar-se-ia o pas- mar de clássica em relação a sua própria língua e aquela q u e é
sado de uma civilização morta. E essa consideração deve atuar clássica em relação a u m a série de outras línguas. Antes de
de forma particularmente irrefutável sobre a m e n t e daqueles mais nada, porém, desejo registrar mais u m a característica do
que se comprometeram com a tentativa de contribuir para clássico, alénrdas q u e já enumerei, a qual nos ajudará a estabe-
ampliar o repertório da literatura inglesa. Não há n e n h u m clás- lecer essa distinção e sublinhar a diferença entre um clássico
sico na língua inglesa; por conseguinte, n e n h u m poeta vivo como Pope e outro como Virgílio. Convém aqui recapitular cer-
pode dizer q u e não resta ainda a esperança de q u e eu — e os tas afirmações que fiz anteriormente.
que vierem depois de m i m , pois n i n g u é m p o d e encarar com Logo de início sugeri que uma freqüente, senão universal,
serenidade, u m a vez q u e c o m p r e e n d e o q u e está implícito, a característica do amadurecimento dos indivíduos pode ser um
idéia de ser o derradeiro poeta — possa ser capaz de escrever processo de seleção (não de todo consciente), de desenvolvi-
algo que valerá a pena preservar. Mas do p o n t o de vista da eter- m e n t o de algumas potencialidades em detrimento de outras; e
nidade, esse interesse pelo f u t u r o nada significa: q u a n d o duas que a semelhança pode ser encontrada no desenvolvimento da
línguas são ambas línguas mortas, não p o d e m o s dizer q u e u m a língua e da literatura. Sc assim fosse, deveríamos esperar ser
delas seja maior devido ao n ú m e r o e à diversidade de seus poe- possível que n u m a literatura clássica menor, tal como a nossa
tas, ou que a outra possa sê-lo p o r q u e seu gênio está mais no fim do século XVII e no século XVIII, os elementos excluí-
cabalmente expresso na obra de um poeta. O q u e desejo afir- dos, para atingir a maturidade, fossem mais numerosos e mais
mar, a um só e mesmo t e m p o , é isto: q u e , pelo fato de ser o sérios, c que a satisfação diante do resultado fosse sempre qua-
inglês u m a língua viva e a língua na qual vivemos, p o d e m o s lificada por nossa consciência q u a n t o às possibilidades da lín-
nos dar por satisfeitos de que ela jamais se realizou inteiramente gua, reveladas nas obras dc autores mais antigos, q u e haviam
em si na obra de um poeta clássico, mas q u e , por outro lado, sido ignorados. A era clássica da literatura inglesa não é repre-
o critério clássico é de importância vital para nós. Ele é indis- sentativa do gênio total da raça; como insinuei, não podemos
pensável para julgarmos nossos poetas em separado, embora dizer que esse gênio esteja cabalmente consumado em n e n h u m
nos recusemos a julgar nossa literatura como um todo em com- período, resultando daí que podemos ainda, com referência a
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um ou outro período do passado, imaginar possibilidades para ção, pretender encontrar a semelhança aproximada com o clás-
o futuro. A língua inglesa oferece um a m p l o espectro para legí- sico cm nenhuma língua moderna. E necessário remontar às
timas divergências de estilo, q u e parece ser tal q u e n e n h u m a duas línguas mortas; é importante que elas estejam mortas,
época, c certamente n e n h u m escritor, p u d e r a m estabelecer pois graças à sua morte é que podemos penetrar cm sua herança
u m a norma. A língua francesa parece ter permanecido mais (o fato de que estejam mortas não lhes daria n e n h u m mérito,
intimamente apegada a um estilo normal; todavia, mesmo em a não ser a circunstância de que todos os povos da Europa são
francês, embora a língua dê a impressão de q u e sc estabeleceu, seus beneficiários). E de todos os grandes poetas gregos e roma-
definitivamente, no século XVII, hâ um sprit gaulois, um ele- nos, julgo ser a Virgílio aquele a quem mais devemos pelo esta-
mento de riqueza presente em Rabelais e em Villon, a consciên- belecimento de nosso padrão do que seja um clássico, o q u e ,
cia de que ele pode alterar nosso j u l g a m e n t o q u a n t o à totali- volto a insistir, não é o mesmo que pretendê-lo como o maior
dade de Racine ou Molière, pois sentimos q u e esta se acha não de todos, ou aquele com o qual, de qualquer m o d o , mais esta-
apenas irretratada, mas t a m b é m irrcconciliada. Podemos con- mos em dívida — é de uma dívida particular que falo. Sua com-
cluir, portanto, q u e o perfeito clássico deve ser aquele cm q u e pletude, sua singular espécic de completude, é devida à situa-
todo o gênio de um povo esteja latente, senão de todo revelado; ção única, em nossa história, do Império Romano c da língua
latina — uma situação com cujo destino se p o d e dizer estar
e que ele só pode se manifestar n u m a língua se t o d o o seu
de acordo. Esse sentido de destino vem à consciência na Enei-
gênio puder estar presente de u m a vez. Devemos assim acres-
da. Enéias é cm si, do princípio ao fim, um " h o m e m com des-
centar, à nossa lista de características do clássico, a da comp le-
tino' , um h o m e m que não é nem um aventureiro nem um in-
tude. Dentro de suas limitações formais, o clássico deve expres-
trigante, nem um vagabundo nem um carreirista, mas um
sar o máximo possível da gama total de s e n t i m e n t o q u e repre-
homem obediente ao seu destino, não por compulsão ou decreto
senta o caráter do povo q u e fala essa língua. Representá-lo-á o
arbitrário, e não certamente por qualquer desejo dc glória, por
melhor que puder, e exercerá t a m b é m o mais a m p l o fascínio:
submeter sua vontade a um poder superior ao dos deuses q u e
junto ao povo a q u e pertence encontrará sua resposta entre
o frustrariam ou o dirigiriam. Ele teria preferido ficar em Tróia,
todas as classes e condições h u m a n a s .
mas optou pelo exílio, e por algo maior e mais significativo
Q u a n d o u m a obra literária, além dessa c o m p l e t u d e relati- do que qualquer exílio: exilou-se por um propósito maior do
vamente a sua própria língua, revela idêntica significância em que poderia imaginar, mas que reconhecia; c não é, n u m sen-
relação a várias outras literaturas, p o d e m o s dizer q u e possui tido h u m a n o , um homem feliz ou bem-sucedido. Mas é o sím-
t a m b é m universalidade. Podemos falar, por exemplo, mereci- bolo de Roma; e assim como Enéias está para Roma, a antiga
d a m e n t e o bastante da poesia dc G o e t h e como constituindo Roma está para a Europa. Assim, Virgílio adquire a centrali-
um clássico, devido ao lugar q u e ela ocupa em sua própria lín- dade do único clássico; ele está. no centro da civilização euro-
gua e literatura. Mas, devido, ainda, a sua parcialidade, à péia, n u m a situação que n e n h u m outro poeta pode usurpar-lhe
impermanência de alguns de seus conteúdos, e ao germanismo ou dividir com ele. O Império Romano e a língua latina não
da sensibilidade, por G o e t h e se revelar, para um olhar estran- constituíram um império qualquer nem uma língua qualquer,
geiro, limitado por sua época, por sua língua e por sua cultura, mas um império e uma língua com um destino único em rela-
de m o d o a não ser representativo de u m a tradição européia glo- ção a nós mesmos; e o poeta em cuja consciência e expressão
bal — e, como nossos autores do século XIX, um pouco provin- cs se império e essa língua vieram à tona é um poeta de destino
ciano — „ n ã o podemos considerá-lo um clássico universal. É ele único.
um autor universal no sentido de que é um autor com cujas Se Virgílio é, pois, a consciência de Roma e a suprema voz
obras todo europeu viu-se obrigado a se familiarizar, mas isso de sua língua, deve ter uma significação para nós que não
é outra coisa. Não podemos tampouco, n u m a ou noutra avalia-
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pode ser expressa inteiramente em termos de apreciação literá- fica, mas da aplicação de padrões adquiridos dentro de u m a
ria e de crítica. Todavia, m a n t e n d o - n o s fiéis aos problemas de área restrita, para a totalidade da experiência h u m a n a , q u e con-
literatura, ou aos termos literários q u a n d o a b o r d a m o s a vida, f u n d e m o contingente com o essencial, o efêmero com o perma-
podemos nos permitir ir além do q u e afirmamos. Em termos nente. Em nossa época, q u a n d o os homens parecem mais do
literários, o mérito de Virgílio reside para nós no fato de q u e que propensos a confundir sabedoria com conhecimento, e
ele nos proporciona um critério. Podemos, c o m o já disse, ter conhecimento com informação, e a tentar resolver problemas
motivos para nos alegrar com a circunstância de q u e esse crité- da vida em termos de engenharia, começa a emergir na existên-
rio é fornecido por um poeta q u e escreve n u m a língua diferente cia uma nova espécie de provincianismo que talvez mereça um
da nossa, mas esta não constitui u m a razão para rejeitar o crité- novo nome. E um provincianismo, não de espaço, mas de
rio. Preservar o padrão clássico, e avaliar por meio dele cada tempo, aquele para o qual a história é simplesmente a crónica
obra literária individual, é comprovar q u e , e n q u a n t o nossa lite- dos projetos humanos que têm estado a serviço de suas revira-
ratura em c o n j u n t o pode abarcar t u d o , cada u m a de suas obras voltas e q u e foram reduzidos à sucata, aquele para o qual o
pode ser imperfeita em algum p o r m e n o r . Pode se tratar de m u n d o constitui a propriedade exclusiva dos vivos, a proprie-
uma imperfeição necessária, de u m a imperfeição sem a qual dade da qual os mortos não partilham. A ameaça dessa espécie
certa qualidade nela presente se perderia, mas devemos vê-la de provincianismo é que podemos todos, todos os povos do
como u m a imperfeição e ao m e s m o t e m p o c o m o u m a necessi- m u n d o , ser provincianos juntos; e aqueles que não estiverem
dade. À falta desse padrão a q u e me refiro, um padrão q u e . satisfeitos em ser provincianos podem apenas tornar-se eremitas.
podemos manter claramente diante de nós se confiarmos ape- Se essa espécie de provincianismo conduzir a uma tolerância
nas em nossa própria literatura, nos inclinaremos, acima de maior, n u m sentido de indulgência, poderia haver mais a ser
tudo, a admirar obras de génios por motivos erróneos, como lou- dito sobre ela; parece mais provável, contudo, que ela nos leve
vamos Blake por sua filosofia e Hopkins por seu estilo, e daí a nos tornar indiferentes a assuntos cm relação aos quais somos
caminharemos para um erro maior, ao nivelarmos u m a catego- obrigados a manter um dogma ou um padrão característico, e
ria de primeira grandeza a u m a de segunda o r d e m . Em suma, a nos tornar intolerantes em assuntos que poderiam ser deixa-
sem a contínua aplicação da medida clássica, q u e devemos mais dos à preferência local ou pessoal. Podemos ter quantas varieda-
a Virgílio do que a qualquer outro poeta, tenderemos a nos tor- des de religião nos aprouver, desde que todos enviemos nossas
nar provincianos. crianças às mesmas escolas. Mas minha preocupação aqui é ape-
nas com o corretivo para o provincianismo em literatura. Preci-
Por "provinciano' e n t e n d o aqui algo mais do q u e encon-
samos lembrar a nós mesmos q u e , como a Europa é um todo
tro nas acepções dicionárias. Pretendo dizer mais, por exemplo,
(c mais: cm sua gradual mutilação c desfiguração, o organismo
do que " n ã o possuir a cultura ou o requinte da capital·',
fora do qual n e n h u m a harmonia mundial superior deve se
embora, é claro, Virgílio fosse da capital, n u m a escala q u e torna
desenvolver), assim também a literatura européia é um todo,
qualquer poeta mais recente de igual estatura semelhante a
cujos diversos membros não podem florescer se a mesma cor-
um p e q u e n o regionalista; e p r e t e n d o dizer mais do q u e es-
rente sangüínea não circular por todas as partes do corpo. A
treito no pensamento, na cultura, no c r e d o " — u m a definição corrente sangüínea da literatura européia é latina e grega, não
traiçoeira, aliás, pois, de um ponto de vista liberal m o d e r n o , como dois sisicmas dc circulação, mas um só, pois c através de
Dante foi " l i m i t a d o no p e n s a m e n t o , na cultura, no c r e d o " , Roma que nosso parentesco deve ser delineado na Grécia. Q u e
embora, como m e m b r o da Igreja, fosse mais liberal do q u e con- unidade comum dc excelência temos nós na literatura, entre
servador, q u e é o mais provinciano. Refiro-me t a m b é m a u m a nossas várias línguas, senão a unidade clássica? Q u e inteligibi-
distorção de valores, à exclusão de alguns, ao exagero de outros, lidade recíproca podemos pretender preservar, a não ser a de
que resultam, não de u m a falta de ampla circunscrição geográ-
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