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O Q U E É UM CLASSICO?

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empregando-a simplesmente como indicação da m a g n i t u d e ,


ou da permanência e da importância, de um escritor em seu
próprio campo de atividade, como q u a n d o falamos de The f i f t h
form at St. Dominic's como um clássico da ficção entre os estu-
dantes, ou do Handley cross como um clássico no c a m p o da
caça —, ninguém deverá esperar que o esteja elogiando. E há
O QUE É UM CLÁSSICO?' um livro muito interessante intitulado A guide ίο the classics,
q u e ensina como ganhar a disputa do Derby. Em outras oca-
siões, permitir-me-ei considerar " o s clássicos" — quer os das
literaturas grega e latina in toto, quer os maiores autores q u e
se expressaram nessas línguas — conforme o contexto. E, final-
mente, julgo q u e a avaliação do clássico q u e me p r o p o n h o a
fornecer aqui possa deslocá-la daquele terreno antitètico entre
"clássico" e " r o m â n t i c o " — u m a d u p l a de termos q u e per-
tence à política literária e que, por essa razão, insufla os ventos
da paixão, os quais peço a Eolo, 2 nessa o p o r t u n i d a d e , q u e
guarde na sacola.
O assunto do qual me dispus a falar resume-se apenas a
esta pergunta: "O q u e é um clássico? . Não é u m a pergunta Isso me conduz à próxima consideração. Segundo os ter-
nova. Há, por exemplo, um célebre ensaio de Sainte-Beuve com mos da controvérsia classico-romàntica, considerar qualquer
esse mesmo título. A pertinência de fazer essa pergunta, t e n d o obra de arte "clássica implica ou o mais alto elogio, ou o
em vista particularmente Virgílio, é óbvia: qualquer q u e seja mais desdenhoso abuso, conforme a parte a que pertença. Isso
a definição a q u e cheguemos, ela não p o d e excluir Virgílio — implica certos méritos ou defeitos particulares: seja a perfeição
poderíamos dizer com toda a segurança q u e ela deve ser u m a da forma, seja o zero absoluto da frigidez. Mas desejo definir
das q u e expressamente o levarão em conta. Mas, antes de pros- u m a espécie de arte, e não me interessa que cia seja absoluta-
seguir, gostaria de descartar alguns preconceitos e antecipar cer- m e n t e e em cada aspecto melhor ou pior do q u e qualquer
tos equívocos. Não pretendo substituir, ou proscrever, qual- outra. Enumerarei certas qualidades q u e presumiria fosse o clás-
quer uso da palavra "clássico' que u m a utilização anterior sico capaz de manifestar. Mas não afirmo q u e , se u m a litera-
haja tornado permissível. A palavra tem, e continuará a ter, tura for u m a grande literatura, deva ter algum autor, ou algum
período, em que todas essas qualidades se manifestem. Se,
diversos significados em diversos contextos: interesso-me por
como suponho, todas elas se encontram em Virgílio, com rela-
um unico significado em um único contexto. Ao definir o termo
ção ao qual não cabe assegurar que seja o maior poeta de todos
nesse sentido, não me comprometo, daqui cm diante, a não
os tempos — tal afirmação acerca de qualquer poeta me parece
utilizar o termo em n e n h u m dos outros sentidos em q u e ele
espatafúrdia —, não é decerto correto afirmar que a literatura
tem sido empregado. Se, por exemplo, eu concluir q u e , em
latina seja maior do que qualquer outra. Não devemos conside-
alguma f u t u r a ocasião, ao escrever, em discurso público ou
rar como defeito de n e n h u m a literatura se n e n h u m autor, ou
n u m a palestra, que devo utilizar a palavra "clássico' apenas
n e n h u m período, for rigorosamente clássico; ou se, como ocorre
para reconhecer um " a u t o r modelar " em qualquer língua —
na literatura inglesa, o período que mais se ajusta à definição

1. Discurso presidencial à Virgil Society em 1944. Publicado pela Faber & Faber
2. Do gr. Aiolos, pelo lat. Aeolus. Na mitologia grega, o deus dos ventos. ( N . T . )
em 1945. ( Ν . A . )
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clássica não é o maior. Penso q u e essas literaturas, das quais a


o significado da maturidade realmente compreensível — na ver-
inglesa é uma das mais ilustres, na qual as virtudes clássicas se
dade, até mesmo torná-lo aceitável — para o imaturo é talvez
acham dispersas entre vários autores e diversos períodos, pode- impossível. Mas se formos maduros, reconheceremos de ime-
riam ser perfeitamente as mais ricas. Cada língua tem seus pró- diato a maturidade, ou viremos a reconhecê-la graças a um rela-
prios recursos e suas próprias limitações. As condições de u m a cionamento mais íntimo. N e n h u m leitor de Shakespeare, por
língua e as condições da história do povo q u e a fala poderiam exemplo, pode se enganar ao reconhecer, progressivamente
colocar fora de questão a expectativa de um período clássico, e n q u a n t o ele próprio cresce, o gradual a m a d u r e c i m e n t o da
ou de um autor clássico. Esse não é em si m e s m o senão um mente shakespeariana: até mesmo o mais medíocre leitor p o d e
assunto mais para tristeza do q u e para congratulação. Ocorre perceber o rápido desenvolvimento da literatura c do drama eli-
que a história de Roma foi tão grande, o caráter da língua latina sabetanos como um todo, da primitiva crueza Tudor às peças
tão poderoso, q u e , em d e t e r m i n a d o m o m e n t o , um único poeta de Shakespeare, e captar um declínio na obra dos sucessores
estritamente clássico tornou-se possível, embora devêssemos nos deste último. Podemos t a m b é m observar, a partir de uma epi-
lembrar de que isso exigiu que tal poeta, e toda u m a vida de dérmica familiaridade, que as peças de Christopher Marlowe
trabalho da parte desse poeta, extraísse a obra clássica a partir revelam uma maturidade mental e estilística superior à das
da matéria de q u e d i s p u n h a . E, n a t u r a l m e n t e , Virgílio não peças que Shakespeare escreveu na mesma época: é i m p o r t a n t e
pôde saber q u e aquilo era o q u e ele estava fazendo. Ele foi, especular que, se Marlowe tivesse vivido tanto q u a n t o Shakespe-
se algum poeta chegou a sê-lo um dia, a g u d a m e n t e consciente are, seu desenvolvimento poderia ter continuado no m e s m o
do que estava t e n t a n d o fazer; a única coisa q u e não p ô d e alme- ritmo. Mas não o creio, pois observamos que certas mentes
jar, ou não sabia q u e estava fazendo, toi escrever u m a obra clás- amadurecem antes de outras, da mesma forma como verifica-
sica, pois é somente graças a u m a compreensão tardia, e em mos que aquelas que amadurecem muito cedo nem sempre vão
perspectiva histórica, que um clássico p o d e ser reconhecido muito longe. Suscito essa questão como um lembrete: primeiro,
como tal. porque o mérito da maturidade d e p e n d e do mérito daquele
Se houvesse u m a palavra cm q u e pudéssemos nos fixar, que amadurece; segundo, porque saberíamos q u a n d o estivésse-
capaz de sugerir o máximo do que pretendo dizer com a expres- mos preocupados com a maturidade de determinados escritores
são " u m clássico esta seria maturidade. Distinguirei entre o e com a relativa maturidade de períodos literários. Um escritor
clássico universal, como Virgílio, e o clássico que permanece que tenha individualmente um espírito mais maduro poderá
como tal apenas em relação à literatura de sua própria língua, pertencer a um período menos maduro de que outro, de m o d o
de acordo com a concepção de vida de um determinado período. que, desse ponto de vista, sua obra será menos madura. A matu-
Um clássico só pode aparecer q u a n d o u m a civilização estiver ridade de uma literatura é um reflexo da sociedade dentro da
madura, q u a n d o u m a língua e u m a literatura estiverem m a d u - qual ela se manifesta: um autor individual — especialmente
ras; e deve constituir a obra de u m a m e n t e m a d u r a . E a impor- Shakespeare e Virgílio — pode fazer m u i t o para desenvolver
sua língua, mas não pode conduzir essa língua à maturidade a
tância dessa civilização e dessa língua, bem como a abrangência
menos que a obra de seus antecessores a tenha preparado para
da mente do poeta individual, q u e proporcionam a universali-
seu retoque final. Por conseguinte, uma literatura amadurecida
dade. Definir maturidade sem admitir que o ouvinte já saiba
tem u m a história atrás de si uma história que não é apenas
o q u e isso significa é quase impossível. Permitam-nos dizer,
uma crònica, um acúmulo de manuscritos e textos dessa espécie,
portanto, que, se estivermos a d e q u a d a m e n t e maduros e formos
mas uma ordenada, embora inconsciente, evolução de u m a lín-
pessoas educadas, poderemos reconhecer a maturidade n u m a
gua capaz de realizar suas próprias potencialidades dentro de
civilização e n u m a literatura, do mesmo m o d o como fazemos
suas próprias limitações.
em relação aos outros seres h u m a n o s q u e encontramos. Tornar
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C u m p r e observar q u e u m a sociedade e u m a literatura, do tura fraseologica c o m u m — na verdade, é a prosa q u e , com


mesmo m o d o que um ser h u m a n o como indivíduo, não a m a d u - maior freqüência, se distancia mais desses padrões comuns, q u e
recem necessariamente de maneira idèntica e corrente em cada é individual ao extremo, dc m o d o q u e somos capazes de admi-
um de seus aspectos. A criança precoce é quase sempre, em tir uma "prosa poetica". N u m a época em q u e a Inglaterra já
alguns óbvios sentidos, tola para a sua idade cm comparação realizara milagres em poesia, sua prosa era relativamente ima-
com as crianças comuns. Há algum, período da literatura inglesa tura, desenvolvida o bastante para certos propósitos, mas não
que possamos qualificar de p l e n a m e n t e m a d u r o em sua abran- para outros: nessa mesma época, q u a n d o a língua francesa já
gência e em equilíbrio? Não penso assim — e, c o m o repetirei oferecera pequenas promessas de poesia tão grandes q u a n t o as
mais tarde, espero q u e não seja assim. N ã o posso dizer q u e que se descortinavam em inglês, a prosa francesa era m u i t o
algum poeta na língua inglesa haja se tornado, no curso de sua mais madura do q u e a inglesa. Só dispomos de um ou outro
vida, um h o m e m mais m a d u r o do q u e Shakespeare; não pode- escritor Tudor para compará-los a Montaigne — e o próprio
mos sequer dizer q u e algum poeta tenha feito tanto para tor- Montaigne, como estilista, é apenas um precursor, e seu estilo
nar a língua inglesa capaz de exprimir o mais sutil p e n s a m e n t o não amadureceu o bastante para atender às exigências francesas
ou as mais refinadas nuanças de s e n t i m e n t o . Todavia, não do q u e fosse um clássico. Nossa prosa estava pronta para algu-
podemos senão sentir q u e u m a peça como Way of the world, mas tarefas antes que pudesse competir com outras: um Malory
de Congreve,· é, em certo sentido, mais m a d u r a do q u e qual- poderia aparcccr m u i t o antes de um Hooker, 4 e um Hooker
quer das peças de Shakespeare, mas apenas q u a n t o a esse antes de um Hobbes, e um Hobbes antes de um Addison.
aspecto, já q u e ela reflete u m a sociedade mais m a d u r a , ou seja, Quaisquer que sejam as dificuldades que tenhamos ao aplicar
u m a maior m a t u r i d a d e de costumes. A sociedade para a qual tais padrões à poesia, é possível observar que o desenvolvimento
Congreve escreveu era, do nosso p o n t o de vista, vulgar e bas- dc u m a prosa clássica é o desenvolvimento em direção a um
tante grosseira; no entanto, ela está mais próxima de nós do estilo comum. Por isso, não pretendo dizer q u e os melhores
que a sociedade dos Tudor; talvez por essa razão a julguemos escritores sejam indistinguíveis entre si. As diferenças c caracte-
com maior severidade. Não obstante, era u m a sociedade mais rísticas essenciais permanecem: não é que as diferenças sejam
polida e menos provinciana: sua m e n t a l i d a d e era mais superfi- menores, mas se tornam mais sutis e refinadas. Para um pala-
cial, sua sensibilidade mais tacanha; descumpriu algumas pro- dar sensível, a diferença entre a prosa dc Addison e a de Swift
messas de maturidade, mas realizou outras. Assim, à maturi- será registrada como a diferença entre duas safras de vinho por
dade da mente devemos acrescentar a m a t u r i d a d e dos costumes. um connoisseur. N u m período de prosa clássica, o q u e encon-
O avanço em direção à m a t u r i d a d e da língua é, creio cu, tramos não é uma simples convenção c o m u m de escrita, como
mais facilmente reconhecido e mais r a p i d a m e n t e apreciado no o estilo c o m u m dos que redigem os artigos dc f u n d o dos jor-
desenvolvimento da prosa do q u e no da poesia. Ao considerar- nais, mas uma c o m u n i d a d c do gosto. A época que precede
mos a prosa, perturbam-nos menos as diferenças individuais uma época clássica poderá revelar tanto a excentricidade q u a n t o
de grandeza, e inclinamo-nos antes a buscar u m a aproximação a monotonia: monotonia porque os recursos da língua não foram
com um padrão c o m u m , um vocabulário c o m u m e u m a estru- ainda explorados, e excentricidade porque ainda não há n e n h u m
padrão genericamente aceito, caso seja verdade que se possa
3. Congreve. William. D r a m a t u r g o inglês (Bardsley, perto de Leeds, 1670 — Lon-
dres, 1729), considerado por Voltaire o Molière da Inglaterra. É o m e l h o r c o m e d i ó -
grafo da época da Restauração, destacando-se pela habilidade técnica. a graça dos 4 Hooker, Richard. Teòlogo e jurista inglês (Heaviiree, perto dc Exeter, 1554 —
diálogos e, sobretudo, por um cinismo epigramático e c o m e d i d o , e m b o r a às vezes Bishopsbourne, 1600) Processado como herege por suas idéias contrárias ao purita-
obsceno. Além de Way of the world, escrita em 1700, deixou The old bachelor nismo, escreveu uma obra m o n u m e n t a l , em cinco volumes, sob o título de Of the
(1693), The double dealer (1694) e Love for love (1695) (Ν T.) laws of ecclesiastical policy (1594-1597), notável por sua elegância estilística. ( N . T . )
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chamar de excêntrico aquilo q u e não está no centro. Seus tex- tas dessa estirpe no final de qualquer época, poetas com u m a no-
tos poderão ser, ao mesmo t e m p o , pedantes e licenciosos. A ção apenas do passado ou, alternativamente, poetas cuja espe-
época q u e se segue a u m a época clássica p o d e t a m b é m revelar rança no f u t u r o repousa na tentativa de renunciar ao passado.
excentricidade e monotonia porque os recursos da língua, pelo A persistência da criatividade em qualquer povo consiste, con-
menos para aquele t e m p o , foram esgotados, e excentricidade seqüentemente, na manutenção de um equilíbrio coletivo entre
porque a originalidade se torna mais valorizada do q u e a corre- a tradição no sentido mais amplo — a personalidade coletiva,
ção. Mas a época na qual encontramos um estilo c o m u m será por assim dizer, consubstanciada na literatura do passado
uma época em q u e a sociedade já cristalizou um m o m e n t o de e a originalidade da geração que se encontra viva.
ordem c de estabilidade, de equilíbrio e de h a r m o n i a , assim Não podemos considerar a literatura da era elisabetana,
como a época que manifesta os maiores extremos de estilo indi- em q u e pese a sua grandeza, inteiramente m a d u r a ; não pode-
vidual será uma época de imaturidade ou de senilidade. mos considerá-la clássica. N e n h u m íntimo paralelismo pode ser
Pode-se presumir q u e a m a t u r i d a d e da língua a c o m p a n h e traçado entre o desenvolvimento das literaturas grega e latina,
a maturidade da m e n t e e dos costumes. Podemos admitir q u e a pois esta tinha aquela atrás de si; tampouco podemos esboçar
língua tangencia a m a t u r i d a d e no m o m e n t o em q u e os ho- um paralelismo entre ambas e qualquer literatura m o d e r n a ,
mens adquiram um sentido crítico do passado, u m a confiança pois as literaturas modernas têm tanto a latina q u a n t o a grega
no presente e n e n h u m a dúvida q u a n t o ao f u t u r o . Em literatura, em suas origens. Na Renascença há uma precoce aparência de
isso significa que o poeta está consciente de seus antecessores, maturidade que foi herdada da Antigüidade. Estamos cônscios
c que estamos conscientes dos antecessores q u e pulsam por de u m a aproximação mais íntima da maturidade com Milton.
detrás de sua obra, assim como p o d e m o s estar conscientes dos Milton se encontrava n u m a posição mais favorável para desen-
traços ancestrais n u m a pessoa q u e é, ao m e s m o t e m p o , única c volver um sentido crítico do passado — do passado na litera-
individual. Os antecessores deveriam ser eles próprios grandes tura inglesa - do que seus grandes antecessores. Ler Milton é
confirmar o respeito pelo gênio de Spenser, e a gratidão a Spen-
e dignos, mas suas realizações devem ser de tal ordem q u e sugi-
ser por haver contribuído para que o verso de Milton se tornasse
ram recursos ainda não desenvolvidos da língua, não de m o d o
possível. Todavia, o estilo de Milton não é um estilo clássico: é
a intimidar os escritores mais jovens com o temor de q u e t u d o
o estilo de uma língua ainda cm formação, o estilo de um escri-
o que possa ser feito já foi feito em sua língua. O poeta, é claro,
tor cujos mestres não foram ingleses, mas latinos e, em menor
n u m a época madura, pode ainda obter estímulo a partir da
escala, gregos. Isso, creio eu, parafraseando o que disseram J o h n -
esperança de que esteja fazendo algo q u e seus antecessores não
son e depois Landor q u a n d o se queixaram de que o estilo de
fizeram; pode até mesmo rebelar-se contra estes, como um ado-
Milton não era inteiramente inglês. Permitam-nos modificar
lescente promissor pode insurgir-se contra as cienças, os hábitos
esse julgamento dizendo desde já que Milton fez muito para
e as maneiras de seus pais, mas, retrospectivamente, p o d e m o s
desenvolver a língua. Um dos indícios do avanço em direção
observar que ele é o herdeiro de suas tradições, o q u e preserva
a um estilo clássico é um desenvolvimento q u e tem cm mira a
as características familiares, c que sua diferença de comporta-
maior complexidade da frase e da estrutura da oração. Tal
m e n t o é u m a diferença dentro das circunstâncias de u m a outra
desenvolvimento é visível em uma única obra de Shakespeare,
época. E, por outro lado, assim como observamos às vezes cer-
q u a n d o rastreamos seu estilo das primeiras às últimas peças:
tos homens cujas vidas foram eclipsadas pela fama dos pais ou podemos mesmo dizer que, em suas derradeiras peças, ele vai
dos avós, homens dos quais qualquer realização de q u e foram tão longe quanto possível rumo à complexidade dentro dos limi-
capazes parecem comparativamente insignificantes, t a m b é m tes do verso dramático, os quais são mais restritos do que os
uma época tardia da poesia pode ser conscientemente incapaz de outros gêneros. Mas a complexidade, para seu próprio bem,
de competir com sua ilustre ancestralidade. Encontramos poe-
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não constitui um objetivo a d e q u a d o ; seu propósito deve ser, tido outras coisas a fazer do que realizá-lo, não podemos nos
antes de mais nada, a expressão concisa das mais delicadas nuan- dar o luxo nem de rejeitar nem de superestimar a época de
ças da emoção e do pensamento; e, em s e g u n d o lugar, a intro- Pope; não podemos encarar a literatura inglesa como um todo,
dução de maior apuro e variedade musicais. Q u a n d o um autor ou visar corretamente o f u t u r o , sem uma apreciação crítica do
parece haver perdido, em seu amor à estrutura elaborada, a capa- nível cm que as virtudes clássicas estão exemplificadas na obra
cidade de dizer q u a l q u e r coisa de m o d o simples, q u a n d o seu de Pope; e isso significa que, a menos que estejamos aptos a
apego ao modelo torna-se tal q u e ele diz coisas a f e t a d a m e n t e desfrutar a obra de Pope, não podemos chegar a compreender
no m o m e n t o em que o melhor seria dizê-las com simplicidade, plenamente a poesia inglesa.
limitando assim seu espectro de expressão, o processo de com-
E absolutamente óbvio que a cristalização das virtudes clás-
plexidade deixa de ser inteiramente b e n i g n o , e o escritor
sicas em Pope só foi obtida por alto preço, ou seja, m e d i a n t e
começa a perder o contato com a linguagem falada. N ã o obs-
a exclusão de algumas das maiores potencialidades do verso
tante, como o verso se desenvolve, nas mãos de um poeta após
inglês. Mas, cm certa medida, o sacrifício de algumas potencia-
outro, ele transita da m o n o t o n i a à variedade, da simplicidade
lidades para consubstanciar outras é u m a condição da criação
à complexidade; e, q u a n d o declina, caminha outra vez em dire-
artística, como é uma condição da vida em geral. O h o m e m
ção à monotonia, embora possa p e r p e t u a r a estrutura formal à
que em vida se recusa a sacrificar algo para ganhar outra coisa
qual o gênio dá vida e significado. Vocês julgarão por si mes-
em troca, acaba na mediocridade ou no fracasso, e m b o r a , por
mos até q u e p o n t o essa generalização é aplicável aos antecesso-
outro lado, haja o especialista que sacrificou muito por quase
res e seguidores de Virgílio: p o d e m o s todos observar essa m o n o -
nada, ou aquele que tem tolerado a tal ponto o especialista
tonia secundária nos imitadores de Milton d u r a n t e o século
q u e nada tem a sacrificar. Mas na Inglaterra do século XVIII
XVIII ele mesmo nunca é m o n ó t o n o . E aí chega um t e m p o
temos motivo para perceber que m u i t o mais se perdeu. Criou-
em que u m a nova simplicidade, até m e s m o u m a relativa crueza,
poderá ser a única alternativa. se uma mentalidade madura, mas estreita. A sociedade e as
letras inglesas não foram provincianas no sentido de q u e não
Vocês anteciparão a conclusão em direção à qual estou
se encontravam isoladas das melhores sociedades e letras euro-
caminhando: que as virtudes do clássico q u e até agora mencio-
péias, nem tampouco na retaguarda delas, ainda q u e a própria
nei — maturidade mental, de costumes, de língua e perfeição
época fosse, por assim dizer, u m a época provinciana. Q u a n d o
do estilo c o m u m — são mais fáceis de serem comprovadas na
alguém pensa num Shakespeare, n u m Jeremy Taylor 5 ou n u m
literatura inglesa do século XVIII; e, na poesia, mais na poesia
Milton, na Inglaterra — ou num Racine, num Molière, num Pas-
de Pope. Se isso fosse t u d o o q u e eu tivesse a dizer sobre o
cal, na França —, durante o século XVII, mostra-se inclinado
assunto, decerto não seria novo, e nem valeria a pena dizê-lo.
a dizer que o século XVIII manteve perfeito o seu jardim con-
Consistiria apenas em propor u m a escolha entre dois erros à
vencional, restringindo apenas a área cultivada. Concluímos
qual os homens já chegaram: u m , o de q u e o século XVIII é
que, se o clássico e dc fato um ideal digno, deve ser ele capaz
o mais refinado período da literatura inglesa; outro, o de q u e
de revelar u m a amplitude, uma catolicidade, as quais o século
a idéia clássica deveria estar inteiramente desacreditada. Minha
opinião pessoal é a de q u e não possuímos, na língua inglesa, XVIII não pode reivindicar para si; qualidades que estão visi-
n e n h u m a época clássica nem qualquer poeta clássico; de q u e ,
q u a n d o observamos por q u e a situação é essa, não temos a 5. Taylor, Jeremy. Teólogo e religioso inglês ( C a m b r i d g e , 1613 — Lisburn, 1667),
um dos maiores representantes da Igreja anglicana no período da guerra civil.
mais leve razão para nos aborrecermos; mas q u e , apesar disso, G r a n d e poeta em prosa e mestre da retórica, foi o maior orador sacro inglês depois
devemos manter o ideal clássico diante de nossos olhos. Porque de J o h n D o n n e . Deixou, entre outros, The liberty of prophesyng (1647) e The
minister's duty in life and doctrine ( 1661 ). ( N . T . )
nos cumpre mantê-lo, e porque o gênio inglês da língua tem
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veis em alguns grandes autores, como Chaucer, 6 que não p o d e m ,


povo do poeta; precisamos disso para ver nosso próprio lugar
a meu ver, ser olhados como clássicos da literatura inglesa, e
na história. Devemos conhecer a história de pelo menos outro
que se encontram presentes de corpo e alma na m e n t e medie-
povo altamente civilizado, e a de um povo cuja civilização é
val de Dante. Pois cm A divina comedia, possivelmente em
suficientemente aparentada para ter influenciado e penetrado
qualquer de suas passagens, encontramos o clássico n u m a lín-
a nossa própria história. Essa foi u m a consciência q u e os roma-
gua europeia moderna. D u r a n t e o século XV11I estamos sufoca-
nos tiveram, e que os gregos, por mais q u e possamos estimar
dos por um espectro restrito da sensibilidade, especialmente
cm alto grau sua proeza — e, na verdade, c u m p r e respeitá-los
no plano do sentimento religioso. N ã o é q u e a poesia, pelo
acima de t u d o por isso —, não possuíram. Foi u m a consciência
menos na Inglaterra, não fosse cristã, como tampouco até mesmo
que certamente o próprio Virgílio se e m p e n h o u bastante em
os poetas não fossem cristãos devotos, pois um m o d e l o de orto-
desenvolver. Desde o começo, Virgílio, como seus contemporâ-
doxia de princípios, c dc sincera religiosidade de sentimentos,
neos e antecessores imediatos, foi c o n t i n u a m e n t e a d a p t a n d o e
poderão ser vislumbrados m u i t o antes q u e nos deparemos com utilizando as descobertas, as tradições e as invenções da poesia
um poeta mais autêntico do q u e Samuel J o h n s o n . Todavia, grega; utilizar uma literatura estrangeira nesse sentido assinala
há evidências de u m a sensibilidade religiosa mais p r o f u n d a na um estágio ulterior de civilização que suplanta aquele em q u e
poesia de Shakespeare, cuja fé e prática p o d e m ser apenas u m a apenas se utilizam os primitivos estágios da sua própria, embora
questão dc conjectura, E essa limitação da sensibilidade religiosa eu julgue ser possível dizermos que n e n h u m poeta jamais reve-
produz ela mesma u m a espécie de regionalismo (embora deva- lou um senso de proporção mais aguçado que o de Virgílio
mos acrescentar q u e , nesse sentido, o século XIX foi ainda q u a n t o à utilização que ele faz dos poetas gregos e da primi-
mais provinciano): o regionalismo q u e indica a desintegração tiva poesia latina. E esse desenvolvimento de u m a literatura,
da cristandade, a decadência da crença e da cultura c o m u n s . ou de u m a civilização, relativamente à outra, q u e confere u m a
Pareceria, portanto, que o nosso século XVIII, apesar de sua significação peculiar à temática da épica virgiliana. Em Homero,
proeza clássica — u m a proeza, creio e u . q u e tem ainda grande o conflito entre gregos e troianos é acentuadamente mais a m p l o
importância como um exemplo para o f u t u r o —, estava per- em alcance do que u m a disputa entre uma cidade-estado grega
dendo ccrta condição q u e possibilita a criação de um verdadeiro e u m a coalizão de outras cidades-cstados: atrás da história de
clássico. Para descobrir o q u e seja tal condição, devemos voltar Enéias^ está a consciência da mais radical distinção, u m a distin-
a Virgílio. ção que é, ao mesmo tempo, u m a declaração de parentesco
Em primeiro lugar, gostaria de insistir sobre as característi- entre duas grandes culturas e, afinal, de sua reconciliação sob
um destino totalmente entrelaçado.
cas que já atribui ao clássico, aplicando-as especialmente a Vir-
gílio, à sua língua, à sua civilização e ao m o m e n t o particular A maturidade da mente de Virgílio, e a m a t u r i d a d e de sua
da história dessa língua e dessa civilização a q u e ele chegou. época, estão manifestas nessa consciência da história. Relacio-
Maturidade da mente: isso implica a história, e a consciência nei a maturidade da mente à maturidade das maneiras e à
da história. Essa consciência não pode estar plenamente desperta, ausência de provincianismo. S u p o n h o que, para um europeu
a não ser que haja outra história além da história do próprio moderno subitamente imerso no passado, o c o m p o r t a m e n t o
social dos romanos e dos atenienses poderia parecer indiferente-
6. Chauccr, Geoffrey Poeta e ficcionista inglês (Londres? c 1340 id. 14(H)). mente grosseiro, bárbaro e agressivo. Mas se o poeta puder retra-
estudioso das obras de Ovídio, Virgílio e Boécio, de q u e m traduziu De comolatione
philosophie ($23-524). Influenciado por D a n t e . Peitaria e a literatura francesa, tra- 7. Eni lai. Aeneas, cm gr. Aíneias. Príncipe troiano, herói de u m a lenda grega
duziu L· roman dt' la rose, de G u i l l a u m e de Loris e J e a n de Meung O b r a s princi- retomada e ampliada por Virgílio na Eneida Essa lenda supõe a origem asiática
pais: The hook of the duchess (1369). Troylus and Cnseyd (c. 1385) c. acima de de certos povos italianos, provavelmente os etruscos. De acordo com a lenda,
todas, os Canterbury tales. (Ν T.) Roma teria sido f u n d a d a pelos descendentes de Enéias. ( N . T . )
T. S. ELIOT 84 O QUE É UM CLÁSSICO > 89
88

O comportamento de Dido nos dá a impressão de ser quase


tar algo superior à prática contemporânea, não o fará no sen-
uma projeção da própria consciência de Enéias, e percebemos
tido de antecipar algum tardio, e absolutamente distinto, código
que es se é o meio através do qual a consciência de Enéias pode-
de conduta, mas por meio de u m a percepção (insight) na qual
ria esperar que Dido se comportasse em relação a ele. A ques-
a conduta de seu próprio povo em sua própria epoca poderia
tão, me parece, não é a de que Dido se mostre inexorável,
ser o melhor de t u d o isso. As reuniões festivas das classes abas-
embora seja importante que, cm vez de zangar-se com ele, cia
tadas na Inglaterra eduardiana não foram exatamente o q u e
simplesmente o censura — talvez a mais eficiente censura em
lemos nas páginas de Henry J a m e s ; 8 a sociedade de J a m e s foi
toda a poesia; o que importa sobretudo é que Enéias não se
u m a idealização (de qualidade inferior) dessa sociedade, e não esqueça de si mesmo — e isso, significativamente, a despeito
a antecipação de n e n h u m a outra. S u p o n h o q u e estejamos cons- do (ato de que ele esteja bastante consciente dc q u e t u d o
cientes, mais em Virgílio do q u e em qualquer outro poeta latino aquilo que fez, o fez de acordo com o destino, ou em conse-
— pois, se comparados a ele, Catulo 9 e Propércio 1 0 parecem qüência das intrigas dos deuses que são eles próprios, perce-
rufiões, e Horácio um tanto plebeu —, de um r e f i n a m e n t o de bemo-lo, apenas instrumentos de um poder inescrutável supe-
maneiras que brota de u m a sensibilidade delicada, e particular- rior. Aqui, o que seleciono como um exemplo de maneiras civi-
mente nesse teste de maneiras, u m a c o n d u t a pública e privada lizadas continua a testemunhar uma consciência e u m a percep-
entre os sexos. Não me c o m p e t e , n u m a reunião de pessoas, as ção civilizadas, mas todos os níveis em q u e podemos considerar
quais todas p o d e m ser mais eruditas do q u e eu, recapitular a um episódio isolado pcrtencem a um conjunto. Podcr-se-á
história de Enéias e Dido. 1 1 Mas sempre imaginei o encontro observar, finalmente, que o comportamento das personagens
entre Enéias e a sombra de D i d o , no livro IV da Eneida, não de Virgílio (eu poderia excetuar Turnus, o h o m e m sem desti-
apenas u m a das mais pungentes, mas t a m b é m u m a das mais no) jamais parece estar de acordo com algum código de con-
civilizadas passagens em verso. Ela é complexa q u a n t o ao signi- duta estritamente local ou tribal: ele pertence a seu t e m p o ,
ficado e económica do ponto de vista da expressão, pois não tanto romano q u a n t o europeu. No plano dos costumes, Virgí-
nos informa apenas sobre a atitude de D i d o , mas t a m b é m — lio não é decerto um provinciano.
o que é ainda mais importante — sobre a atitude de Enéias. Tentar demonstrar a maturidade da língua e do estilo virgi-
lianos é, na presente ocasião, uma tarefa supérflua: muitos dc
8. James, Henry. Romancista e contista norte-americano (Nova York, 1843 — Lon- vocês poderiam se portar melhor do que cu, e imagino q u e to-
dres, 1916), irmào do filósofo pragmatista William J a m e s Passou a maior parte
da vida na Europa e naturalizou-se cidadão inglês em 1916. Seu tema quase obses-
dos deveríamos estar de acordo. Mas vale a pena repetir q u e o
sivo é o conflito moral entre a m e n t a l i d a d e norte-americana e a européia, c o m o estilo dc Virgílio não teria sido possível sem que houvesse uma
se pode ver em The Bostonian (1886), The turn of the screw (1898) ( n o Brasil. A literatura a sua retaguarda, e sem que houvesse de sua parte
outra volta do parafuso ou Os inocentes). The wings of the dove (1902) e The gol
den howl( 1914). (N.T.)
um conhecimento muito íntimo dessa literatura, de m o d o que,
9. Catulo, Caio Valério (em lat. Caius Valerius Catullus) Poeta latino (Verona, c.
cm certo sentido, ele estava reescrevendo a poesia latina, como
87 — Roma, c. 54 a . C . ) . cuja breve existência foi preenchida pelos prazeres m u n - nos casos cm que toma dc empréstimo uma frase ou uma inven-
danos e pela paixão por Lésbia. Dele sobrevivem cento e dezesseis p o e m a s , imita- ção de um antecessor e as aperfeiçoa. Virgílio foi um autor culto,
dos dos poetas alexandrinos. ( N . T . )
para o qual toda a erudição era relevante à sua tarefa; e teve à
10. Em lat. Sextus Aurelius Propertius. Poeta latino (Umbria, c 47 ? c. 15
a . C . ) que dedicou seus poemas à m u l h e r q u e celebrizou sob o n o m e de Cíntia. sua disposição, em termos de literatura, apenas o bastante atrás
Suas elegias se inspiram nas dos alexandrinos, mas distinguem-se de simples imita- de si, e não mais do que isso. Q u a n t o à maturidade dc estilo,
ções pela autêntica paixão erótica. Foram m u i t o traduzidas na Renascença. ( N . T . )
não creio que n e n h u m poeta tenha jamais desenvolvido um
11. Segundo a lenda, após várias peregrinações, Enéias, q u e escapara de Tróia
domínio maior da complexa estrutura tanto de sentido q u a n t o
q u a n d o da t o m a d a da cidade pelos gregos, foi a m a d o em Cartago pela rainha
Dido, chegando depois à Itália, o n d e o rei do Lácio lhe deu a filha Lavinia em casa- de som, sem perder o recurso da simplicidade direta, concisa e
mento. Os amores de Enéias e D i d o foram eternizados por Virgílio na Eneida. ( N . T . )
90 T. S. ELIOT
O QUE É UM CLÁSSICO? 91

surpreendente q u a n d o a ocasião o exigia. Desnecessário alon-


lembrança agradavelmente vaga do distante original. Mas a poe-
gar-me sobre isso, mas imagino q u e valha a pena dizer u m a
sia inglesa c t a m b é m a francesa podem ser consideradas b e m -
palavra mais sobre o estilo comum, pois se trata de algo q u e
sucedidas sob este aspecto: o de que os maiores poetas esgota-
não podemos ilustrar p e r f e i t a m e n t e a partir da poesia inglesa
ram apenas determinadas áreas. Não podemos dizer q u e , desde
e para o qual somos capazes de tributar menos respeito do q u e
a época de Shakespeare, e respectivamente desde os tempos
o suficiente. Na m o d e r n a literatura européia, as mais íntimas
de Racine, tenha-se escrito algum drama poético realmente de
aproximações com o ideal de um estilo c o m u m são provavel-
primeira grandeza na Inglaterra ou na França; desde Milton
mente encontradas em Dante e Racine; q u e m dele mais se apro-
não tivemos n e n h u m grande poema épico, embora t e n h a m
xima na poesia inglesa é Pope, e o estilo c o m u m de Pope é
sido estritos poemas longos de grande qualidade. E verdade
um estilo que, em comparação, revela um alcance m u i t o estreito. que cada supremo poeta, clássico ou não, tende a esgotar o
O estilo c o m u m é aquele q u e nos leva a exclamar, não este solo que cultiva, de modo que este, após a produção dc u m a
é um h o m e m de gênio no uso da l í n g u a " , mas este realiza colheita reduzida, deve afinal ser deixado sem cultivo por algu-
o gênio da l í n g u a " . Não afirmamos isso ao 1er Pope, p o r q u e mas gerações.
conhecemos muito bem todos os recursos da língua inglesa dos
Pode-se aqui objetar que o efeito sobre a literatura por mim
quais ele se serviu; p o d e m o s no m á x i m o dizer este realiza o
atribuído ao clássico resulte não no caráter clássico dessa obra,
gênio da língua inglesa n u m a d e t e r m i n a d a é p o c a " . Não afir-
mas simplesmente de sua grandeza, pois tenho negado a Sha-
mamos isso ao 1er Shakespeare e Milton, p o r q u e estamos sem- kespeare e a Milton a condição de clássicos no sentido em q u e
pre conscientes da grandeza do h o m e m e dos milagres q u e ele estou utilizando o termo de forma cabal, c ainda q u e não haja
está realizando com a língua; estamos mais próximos talvez de admitido que n e n h u m a poesia superlativamente grande do
Chaucer, mas é q u e Chaucer está utilizando, do nosso p o n t o mesmo gênero tenha sido desde então escrita. E incontestável
de vista, u m a língua diferente e mais grosseira. Shakespeare e o fato de que cada grande obra de poesia tende a tornar impos-
Milton, como demonstra a história mais recente, deixaram aber- sível a produção de obras igualmente expressivas da mesma espé-
tas muitas possibilidades para outros empregos do inglês na cie. A razão para isso pode ser parcialmente exposta em termos
poesia, ao passo q u e , após Virgílio, é mais verdadeiro dizer de propósito consciente: n e n h u m poeta de primeira ordem ten-
que não se registrou n e n h u m desenvolvimento até a língua taria fazer novamente o que já foi feito tão bem q u a n t o p ô d e
latina tornar-se algo diferente. tê-lo sido em sua língua. Somente após ter sido a língua
A esta altura, gostaria de voltar à questão q u e anterior- mais ainda a sua cadência do q u e o vocabulário e a sintaxe —
mente propus, isto é: se o aparecimento de um clássico, no sen- modificada o bastante, com o correr do tempo e das transforma-
tido em que tenho utilizado o termo em todos os aspectos, cons- ções sociais, é que outro poeta dramático tão grande q u a n t o
titui inteiramente, para o povo e a língua de sua origem, u m a Shakespeare, ou outro poeta épico tão grande q u a n t o Milton,
pura bênção — ainda que isso seja indiscutivelmente um motivo pode torná-lo possível. Não unicamente todo grande poeta,
de orgulho. Suscitar essa questão na m e n t e de alguém é quase mas todo poeta autêntico, mesmo que poeta menor, satisfaz
tão simples q u a n t o meditar sobre a poesia latina depois de Vir- alguma possibilidade da língua, deixando então u m a possibili-
gílio e considerar cm que extensão os poetas q u e se lhe segui- dade a menos para seus sucessores. O veio q u e ele esgotou
ram viveram e trabalharam à sombra de sua grandeza, de pode ser muito p e q u e n o , ou pode representar alguma forma
m o d o que os louvamos ou não, dc acordo com os padrões q u e maior dc poesia, épica ou dramática. Mas o que o grande poeta
ele estabeleceu, ou os admiramos, às vezes, pela descoberta dc esgotou foi apenas uma forma, c não a totalidade da língua.
alguma variação que era nova, ou mesmo apenas pela recombi- Q u a n d o o grande poeta é t a m b é m um grande clássico, ele
nação de modelos vocabulares destinados a proporcionar uma esgota não apenas uma forma, mas t a m b é m a língua de sua
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O QUE í : : UM CLÁSSICO? 93

época; e a língua de sua época, como ele a utilizou, será a lín- paração com aquela que produziu um clássico. Se a literatura
gua em sua perfeição. De m o d o q u e não é o poeta sozinho culminasse n u m clássico, isso seria uma questão de sorte. Trata-
que temos de levar em conta, mas a língua em q u e ele escreveu: se a m p l a m e n t e , suponho, de uma questão relativa ao grau de
não se trata simplesmente do fato de q u e um poeta clássico fusão dos elementos dentro dessa língua, de m o d o que as lín-
esgota a língua, mas de q u e u m a língua esgotável constitui a guas laiinas podem se aproximar mais i n t i m a m e n t e do clássico,
variedade lingüística q u e produz um poeta clássico. não apenas porque são latinas, mas porque são mais homogê-
Podemos estar propensos a perguntar, p o r t a n t o , se não neas do que o inglês e, por conseguinte, t e n d e m mais natural-
somos afortunados por dispor de u m a língua q u e , em vez de mente ao esti/o comum, enquanto o inglês, por ser a mais diver-
ter produzido um clássico, pode orgulhar-se de u m a rica varie- sificada das grandes línguas no que se refere a seus elementos
dade no passado e, além disso, da possibilidade de algo novo constitutivos, tende mais à variedade do que à perfeição, carece
no f u t u r o . Mas e n q u a n t o estivermos dentro de u m a literatura, de um t e m p o maior para cristalizar sua potencialidade e contém
e n q u a n t o falarmos a mesma língua e tivermos f u n d a m e n t a l - ainda, talvez, possibilidades mais inexploradas. Ele tem, prova-
mente a mesma cultura q u e produziu a literatura do passado, velmente, a maior capacidade para m u d a r e, não obstante, per-
desejaremos conservar duas coisas: o o r g u l h o de q u e nossa lite- manecer a mesma língua.
ratura já se cumpriu e a crença de q u e p o d e ainda cumprir-se Abordarei agora a distinção entre o clássico relativo e o clás-
no futuro. Se deixássemos de acreditar no f u t u r o , o passado sico absoluto, a distinção entre a literatura q u e podemos cha-
deixaria de ser p l e n a m e n t e o nosso passado: tornar-se-ia o pas- mar de clássica em relação a sua própria língua e aquela q u e é
sado de uma civilização morta. E essa consideração deve atuar clássica em relação a u m a série de outras línguas. Antes de
de forma particularmente irrefutável sobre a m e n t e daqueles mais nada, porém, desejo registrar mais u m a característica do
que se comprometeram com a tentativa de contribuir para clássico, alénrdas q u e já enumerei, a qual nos ajudará a estabe-
ampliar o repertório da literatura inglesa. Não há n e n h u m clás- lecer essa distinção e sublinhar a diferença entre um clássico
sico na língua inglesa; por conseguinte, n e n h u m poeta vivo como Pope e outro como Virgílio. Convém aqui recapitular cer-
pode dizer q u e não resta ainda a esperança de q u e eu — e os tas afirmações que fiz anteriormente.
que vierem depois de m i m , pois n i n g u é m p o d e encarar com Logo de início sugeri que uma freqüente, senão universal,
serenidade, u m a vez q u e c o m p r e e n d e o q u e está implícito, a característica do amadurecimento dos indivíduos pode ser um
idéia de ser o derradeiro poeta — possa ser capaz de escrever processo de seleção (não de todo consciente), de desenvolvi-
algo que valerá a pena preservar. Mas do p o n t o de vista da eter- m e n t o de algumas potencialidades em detrimento de outras; e
nidade, esse interesse pelo f u t u r o nada significa: q u a n d o duas que a semelhança pode ser encontrada no desenvolvimento da
línguas são ambas línguas mortas, não p o d e m o s dizer q u e u m a língua e da literatura. Sc assim fosse, deveríamos esperar ser
delas seja maior devido ao n ú m e r o e à diversidade de seus poe- possível que n u m a literatura clássica menor, tal como a nossa
tas, ou que a outra possa sê-lo p o r q u e seu gênio está mais no fim do século XVII e no século XVIII, os elementos excluí-
cabalmente expresso na obra de um poeta. O q u e desejo afir- dos, para atingir a maturidade, fossem mais numerosos e mais
mar, a um só e mesmo t e m p o , é isto: q u e , pelo fato de ser o sérios, c que a satisfação diante do resultado fosse sempre qua-
inglês u m a língua viva e a língua na qual vivemos, p o d e m o s lificada por nossa consciência q u a n t o às possibilidades da lín-
nos dar por satisfeitos de que ela jamais se realizou inteiramente gua, reveladas nas obras dc autores mais antigos, q u e haviam
em si na obra de um poeta clássico, mas q u e , por outro lado, sido ignorados. A era clássica da literatura inglesa não é repre-
o critério clássico é de importância vital para nós. Ele é indis- sentativa do gênio total da raça; como insinuei, não podemos
pensável para julgarmos nossos poetas em separado, embora dizer que esse gênio esteja cabalmente consumado em n e n h u m
nos recusemos a julgar nossa literatura como um todo em com- período, resultando daí que podemos ainda, com referência a
94 T. S. ELIOT 96 O QUE í : : UM CLÁSSICO? 95

um ou outro período do passado, imaginar possibilidades para ção, pretender encontrar a semelhança aproximada com o clás-
o futuro. A língua inglesa oferece um a m p l o espectro para legí- sico cm nenhuma língua moderna. E necessário remontar às
timas divergências de estilo, q u e parece ser tal q u e n e n h u m a duas línguas mortas; é importante que elas estejam mortas,
época, c certamente n e n h u m escritor, p u d e r a m estabelecer pois graças à sua morte é que podemos penetrar cm sua herança
u m a norma. A língua francesa parece ter permanecido mais (o fato de que estejam mortas não lhes daria n e n h u m mérito,
intimamente apegada a um estilo normal; todavia, mesmo em a não ser a circunstância de que todos os povos da Europa são
francês, embora a língua dê a impressão de q u e sc estabeleceu, seus beneficiários). E de todos os grandes poetas gregos e roma-
definitivamente, no século XVII, hâ um sprit gaulois, um ele- nos, julgo ser a Virgílio aquele a quem mais devemos pelo esta-
mento de riqueza presente em Rabelais e em Villon, a consciên- belecimento de nosso padrão do que seja um clássico, o q u e ,
cia de que ele pode alterar nosso j u l g a m e n t o q u a n t o à totali- volto a insistir, não é o mesmo que pretendê-lo como o maior
dade de Racine ou Molière, pois sentimos q u e esta se acha não de todos, ou aquele com o qual, de qualquer m o d o , mais esta-
apenas irretratada, mas t a m b é m irrcconciliada. Podemos con- mos em dívida — é de uma dívida particular que falo. Sua com-
cluir, portanto, q u e o perfeito clássico deve ser aquele cm q u e pletude, sua singular espécic de completude, é devida à situa-
todo o gênio de um povo esteja latente, senão de todo revelado; ção única, em nossa história, do Império Romano c da língua
latina — uma situação com cujo destino se p o d e dizer estar
e que ele só pode se manifestar n u m a língua se t o d o o seu
de acordo. Esse sentido de destino vem à consciência na Enei-
gênio puder estar presente de u m a vez. Devemos assim acres-
da. Enéias é cm si, do princípio ao fim, um " h o m e m com des-
centar, à nossa lista de características do clássico, a da comp le-
tino' , um h o m e m que não é nem um aventureiro nem um in-
tude. Dentro de suas limitações formais, o clássico deve expres-
trigante, nem um vagabundo nem um carreirista, mas um
sar o máximo possível da gama total de s e n t i m e n t o q u e repre-
homem obediente ao seu destino, não por compulsão ou decreto
senta o caráter do povo q u e fala essa língua. Representá-lo-á o
arbitrário, e não certamente por qualquer desejo dc glória, por
melhor que puder, e exercerá t a m b é m o mais a m p l o fascínio:
submeter sua vontade a um poder superior ao dos deuses q u e
junto ao povo a q u e pertence encontrará sua resposta entre
o frustrariam ou o dirigiriam. Ele teria preferido ficar em Tróia,
todas as classes e condições h u m a n a s .
mas optou pelo exílio, e por algo maior e mais significativo
Q u a n d o u m a obra literária, além dessa c o m p l e t u d e relati- do que qualquer exílio: exilou-se por um propósito maior do
vamente a sua própria língua, revela idêntica significância em que poderia imaginar, mas que reconhecia; c não é, n u m sen-
relação a várias outras literaturas, p o d e m o s dizer q u e possui tido h u m a n o , um homem feliz ou bem-sucedido. Mas é o sím-
t a m b é m universalidade. Podemos falar, por exemplo, mereci- bolo de Roma; e assim como Enéias está para Roma, a antiga
d a m e n t e o bastante da poesia dc G o e t h e como constituindo Roma está para a Europa. Assim, Virgílio adquire a centrali-
um clássico, devido ao lugar q u e ela ocupa em sua própria lín- dade do único clássico; ele está. no centro da civilização euro-
gua e literatura. Mas, devido, ainda, a sua parcialidade, à péia, n u m a situação que n e n h u m outro poeta pode usurpar-lhe
impermanência de alguns de seus conteúdos, e ao germanismo ou dividir com ele. O Império Romano e a língua latina não
da sensibilidade, por G o e t h e se revelar, para um olhar estran- constituíram um império qualquer nem uma língua qualquer,
geiro, limitado por sua época, por sua língua e por sua cultura, mas um império e uma língua com um destino único em rela-
de m o d o a não ser representativo de u m a tradição européia glo- ção a nós mesmos; e o poeta em cuja consciência e expressão
bal — e, como nossos autores do século XIX, um pouco provin- cs se império e essa língua vieram à tona é um poeta de destino
ciano — „ n ã o podemos considerá-lo um clássico universal. É ele único.
um autor universal no sentido de que é um autor com cujas Se Virgílio é, pois, a consciência de Roma e a suprema voz
obras todo europeu viu-se obrigado a se familiarizar, mas isso de sua língua, deve ter uma significação para nós que não
é outra coisa. Não podemos tampouco, n u m a ou noutra avalia-
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O QUE í:: UM CLÁSSICO? 97

pode ser expressa inteiramente em termos de apreciação literá- fica, mas da aplicação de padrões adquiridos dentro de u m a
ria e de crítica. Todavia, m a n t e n d o - n o s fiéis aos problemas de área restrita, para a totalidade da experiência h u m a n a , q u e con-
literatura, ou aos termos literários q u a n d o a b o r d a m o s a vida, f u n d e m o contingente com o essencial, o efêmero com o perma-
podemos nos permitir ir além do q u e afirmamos. Em termos nente. Em nossa época, q u a n d o os homens parecem mais do
literários, o mérito de Virgílio reside para nós no fato de q u e que propensos a confundir sabedoria com conhecimento, e
ele nos proporciona um critério. Podemos, c o m o já disse, ter conhecimento com informação, e a tentar resolver problemas
motivos para nos alegrar com a circunstância de q u e esse crité- da vida em termos de engenharia, começa a emergir na existên-
rio é fornecido por um poeta q u e escreve n u m a língua diferente cia uma nova espécie de provincianismo que talvez mereça um
da nossa, mas esta não constitui u m a razão para rejeitar o crité- novo nome. E um provincianismo, não de espaço, mas de
rio. Preservar o padrão clássico, e avaliar por meio dele cada tempo, aquele para o qual a história é simplesmente a crónica
obra literária individual, é comprovar q u e , e n q u a n t o nossa lite- dos projetos humanos que têm estado a serviço de suas revira-
ratura em c o n j u n t o pode abarcar t u d o , cada u m a de suas obras voltas e q u e foram reduzidos à sucata, aquele para o qual o
pode ser imperfeita em algum p o r m e n o r . Pode se tratar de m u n d o constitui a propriedade exclusiva dos vivos, a proprie-
uma imperfeição necessária, de u m a imperfeição sem a qual dade da qual os mortos não partilham. A ameaça dessa espécie
certa qualidade nela presente se perderia, mas devemos vê-la de provincianismo é que podemos todos, todos os povos do
como u m a imperfeição e ao m e s m o t e m p o c o m o u m a necessi- m u n d o , ser provincianos juntos; e aqueles que não estiverem
dade. À falta desse padrão a q u e me refiro, um padrão q u e . satisfeitos em ser provincianos podem apenas tornar-se eremitas.
podemos manter claramente diante de nós se confiarmos ape- Se essa espécie de provincianismo conduzir a uma tolerância
nas em nossa própria literatura, nos inclinaremos, acima de maior, n u m sentido de indulgência, poderia haver mais a ser
tudo, a admirar obras de génios por motivos erróneos, como lou- dito sobre ela; parece mais provável, contudo, que ela nos leve
vamos Blake por sua filosofia e Hopkins por seu estilo, e daí a nos tornar indiferentes a assuntos cm relação aos quais somos
caminharemos para um erro maior, ao nivelarmos u m a catego- obrigados a manter um dogma ou um padrão característico, e
ria de primeira grandeza a u m a de segunda o r d e m . Em suma, a nos tornar intolerantes em assuntos que poderiam ser deixa-
sem a contínua aplicação da medida clássica, q u e devemos mais dos à preferência local ou pessoal. Podemos ter quantas varieda-
a Virgílio do que a qualquer outro poeta, tenderemos a nos tor- des de religião nos aprouver, desde que todos enviemos nossas
nar provincianos. crianças às mesmas escolas. Mas minha preocupação aqui é ape-
nas com o corretivo para o provincianismo em literatura. Preci-
Por "provinciano' e n t e n d o aqui algo mais do q u e encon-
samos lembrar a nós mesmos q u e , como a Europa é um todo
tro nas acepções dicionárias. Pretendo dizer mais, por exemplo,
(c mais: cm sua gradual mutilação c desfiguração, o organismo
do que " n ã o possuir a cultura ou o requinte da capital·',
fora do qual n e n h u m a harmonia mundial superior deve se
embora, é claro, Virgílio fosse da capital, n u m a escala q u e torna
desenvolver), assim também a literatura européia é um todo,
qualquer poeta mais recente de igual estatura semelhante a
cujos diversos membros não podem florescer se a mesma cor-
um p e q u e n o regionalista; e p r e t e n d o dizer mais do q u e es-
rente sangüínea não circular por todas as partes do corpo. A
treito no pensamento, na cultura, no c r e d o " — u m a definição corrente sangüínea da literatura européia é latina e grega, não
traiçoeira, aliás, pois, de um ponto de vista liberal m o d e r n o , como dois sisicmas dc circulação, mas um só, pois c através de
Dante foi " l i m i t a d o no p e n s a m e n t o , na cultura, no c r e d o " , Roma que nosso parentesco deve ser delineado na Grécia. Q u e
embora, como m e m b r o da Igreja, fosse mais liberal do q u e con- unidade comum dc excelência temos nós na literatura, entre
servador, q u e é o mais provinciano. Refiro-me t a m b é m a u m a nossas várias línguas, senão a unidade clássica? Q u e inteligibi-
distorção de valores, à exclusão de alguns, ao exagero de outros, lidade recíproca podemos pretender preservar, a não ser a de
que resultam, não de u m a falta de ampla circunscrição geográ-
98 T. S. ELIOT
O Q U E É UM CLASSICO? 99

nossa herança c o m u m de p e n s a m e n t o e de sensibilidade naque-


las duas línguas, para a compreensão de q u e n e n h u m povo desfrutar, conduziu a Europa para a civilização cristã q u e ele
nunca poderia conhecer; e aquele que, ao pronunciar suas der-
europeu está em situação de vantagem com relação a q u a l q u e r
radeiras palavras na nova língua italiana, disse ao se despedir:
outro? N e n h u m a língua moderna poderia aspirar à universali-
dade do latim, ainda q u e viesse a ser falada por milhões de
il temporal foco e l'eterno
pessoas a mais do q u e aquelas q u e talaram o latim e m e s m o
veduto hai, figlio, e sei venuto in parte
que se tornasse o veículo de comunicação para os povos de todas dov Ίο per me più oltre non di scemo.1 s
as línguas e culturas. N e n h u m a língua m o d e r n a p o d e preten-
der produzir um clássico no sentido em q u e considero Virgílio Meu filho, ο fogo eterno e o temporal
um clássico. O nosso clássico, o clássico de toda a Europa, é já contemplaste, e eis-me chegado à parte
Virgílio. que ultrapassar não posso, por rneu mal.14
Em nossas diversas literaturas temos m u i t a opulência da
qual nos gabar para q u e a literatura latina seja c o m p a r a d a a
quaisquer delas; mas toda literatura tem sua grandeza, não iso-
ladamente, c sim graças ao lugar q u e ocupa n u m m o d e l o mais
vasto, um modelo q u e se estabelece em Roma. Já talei da nova
seriedade — poderia dizer gravidade , da nova percepção his-
tórica, ilustrada pela devoção de Eneias a Roma, a um f u t u r o
muito alem de sua realização viva. Sua recompensa foi pouco
mais do q u e u m a estreita cabeça-de-praia e um casamento polí-
tico n u m a extenuada meia-idade: sua j u v e n t u d e foi sepultada,
a sombra dela se m o v e n d o com as trevas do o u t r o lado de
Cumae. 1 2 De fato, disse e u , alguém intuiu o destino da Roma
antiga. Assim podemos imaginar a literatura romana: à primeira
vista, u m a literatura de alcance limitado, com um modesto
repertório dc grandes nomes, ainda q u e tão universal q u a n t o
n e n h u m a outra literatura conseguiu sê-lo; u m a literatura incons-
cientemente sacrificial, de acordo com seu destino na Europa,
com a opulência e a variedade das línguas mais recentes, desti-
nada a produzir, para nós, o clássico. Bastaria q u e esse p a d r ã o
fosse estabelecido em definitivo; não cabe realizar n o v a m e n t e
a tarefa. Mas a m a n u t e n ç ã o do padrão é o preço de nossa liber-
dade, a defesa da liberdade contra o caos. Podemos nos recor-
dar dessa obrigação através de nossa prática anual de compaixão
para com o grande espectro que guiou a peregrinação de Dan-
te: aquele q u e , qualquer q u e fosse sua f u n ç ã o ao conduzir
Dante rumo a u m a visão da qual jamais ele próprio poderia
13. Dante Alighieri. L· divina comme Ju, Purgatorio, Canto XXVII, 127-129. ( N . T . )
1·ί. Ί rad. dc Cristiano Martins, A divina comedia. vol. 2, Itatiaia, Belo Horizon-
12. Segundo Estrabão, a mais antiga (721 a . C . ) das colônias gregas no c o n t i n e n t e . te. Editora da USP, São Paulo, 1979. ( N . T . )

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