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(vlivros/libros

Sobre a crítica, crítica cult


Maria Lúcia de Barros Camargo

SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo


Horizonte: Editora UFMG, 2002.

As bonequinhas de papel de Car- alguma marca dedistinção que, senão cado rodapé, agora cheio de carmens
men Miranda parecem bailar no faz deles os mais festejados e promo mirandas a evocarem a necessidade de
rodapé de uma capa vermelha. Um vidos pelosistema da indústria cultu a crítica abrir seus olhos e seus textos
samba? Uma nimba? Nem samba, nem ral, garante-lhes uma permanência no tanto para os produtos da indústria
nimba, anunciará Eneida Maria de tempo, uma apreciação diferenciada cultural como para as relações
Souza no artigo que fecha este seu últi por grupos que os tomam como um interculturais. Assim, o termo "cult",
mo livro, Crítica cult: reunião de um certo objeto de culto, à margem do aqui, pode ser lido como uma dupla
conjunto esparso de ensaios. Escritos que ocupa o centro da cenae dasaten ironia: brinca com o que a "outra crí
entre 1994 e 2001 e publicados em ções. E aquele tipo de produto que tica" desta poderia dizer, ao mesmo
distintos veículos, além de um texto está ao mesmo tempo dentro e fora tempoque ironiza o lugar e osobjetos
inédito, esses textos se acham unidos, da moda, ou dentro e fora do da crítica universitária, reiterando, to
porém, pela motivação comum: dis "mainstream". davia, seu pertencimento a ela.
cutiro lugar e asformas da crítica bra Por tudo isso, nada mais adequa Assumindo seu discurso e suas
sileira contemporânea na relação com do queo título Critica cult para desig posições, Eneida Maria de Souza de
os estudos culturais e com a literatura nar a produção ensaística de Eneida fine claramente o lugar de onde fala e
comparada, tal comonosanuncia a au Maria de Souza aí reunida: ela está ao a quem se dirige, marcando antago
tora no prefácio. mesmotempo dentro do sistema uni nismos e cumplicidades. Pode-se di
Ao olhar a capa e se deparar com versitário que produza crítica que seus zer que os treze ensaios reunidos nesse
este título —Crítica cidt—o leitor cer textos discutem, como se coloca numa livro constituem interessantes varia
tamente suspeitará de que se trata de posição de distanciamento e diferen ções de um tema principal: a tensão
algo diferente, dissonante até, em re ça em relação a determinados grupos entre os esttidos literários e os estudos
lação aos normalmente sisudos traba acadêmicos e suas posições crítico-te- culturais na crítica literária contem
lhos da crítica universitária. Afinal, óricas. Discute a crítica contemporâ porânea brasileira. Trata-se, é verda
uma crítica que se qualifica como nea no Brasil, seus dissensos e consen de, de uma reiteração bastante forte,
"cult", evoca, nesse termo, não ape sos, traçando um nítido quadro das já que a oposição aparece em todos os
nas a palavra cultura, mas um certo tensões que perpassam a crítica literá textos, ora em tons fortes e predomi
campo de abrangência para a noção ria brasileira institucionalizada napas nantes, ora em tons menores, varia
decultura: insere-se num jargão con sagem do século XXparao XXI. Nes çõessecundárias. Masnão seveja nes
temporâneo e na vizinhança com a se quadro, posiciona-se claramente à sa repetição um defeito: bem ao
cultura de massa "elevada", em que o margem da crítica brasileira "moder contrário, a redundância reafirma as
termo "cult" abriga também a idéia na", se entendermos nesse termo tan posições, insere um certo ar de mani
de objeto de culto, cultuado (mais do to a crítica que se consolida a partir festo, de polêmica, e, afinal de contas,
que cultivado). Se pensarmos nas ex do "grupo Clima" e com sólidos her sempre háalgo novo na repetição.1 E
pressões usuais "cult movie" ou "cult deiros em plena atividade, como se repito também que, embora escritos
fiction", estaremos no campo desses entendermos nele "crítica formalista", cm momentos distintos e com distin
produtos culturais que, mesmo per também ativa. O objeto de reflexão tas finalidades, a reunião desses escri
tencendo ao universo dos produtos em Crítica culté, de fato, a tradição tos nada tem de fortuita, como se
geralmente classificados como cultu crítica que se instaura a partirdasuni constata na redundância das preocu
rade massa, deles se diferenciam por versidades e que se distancia da práti pações básicas: sejam quais forem os
enfoques ou temas, estaremos sempre que preocupam Eneida Maria de Sou va, o elogio a Silviano Santiago, "o
lendo que houve uma mudança nos za são, fundamentalmente, aquelas mais sábio dos cults", como se lê na
estudos literários contemporâneos (a relativas aos estudos universitários de dedicatória do livro e se reafirma ao
partir talvez dos anos 70), decorren literatura, ou o queacontece nas uni longo de suas páginas. Temos assim,
tes dos novos paradigmas teóricos e versidades, ou entre os que fazem a grosso modo, uma definição de cam
das alterações quanto aolugar eà fun universidade, isto é,seus professores e pos antagônicos e da posição assumi
çãodo literário, especialmente no tra seus escritos, ao lidar com as mudan da por Eneida, sem tergiversações.
tamento dado a ele nas instituições ças nocampo literário, Repita-se, por Evidentemente, nesse espaço de uma
acadêmicas. Não setrata, portanto, de tanto: o objeto é a crítica universitá resenha não cabealinhar todososque
discutir asmudanças do lugar da lite ria, o tratamento acadêmico dado à se encontram em cada um dos lados:
ratura na vida social, cuja centralidade literatura, ou a situação da literatura essa é tarefa do leitor.
já havia desaparecido desde os anos enquanto campo do saber Mas é interessante observar que,
50, como observaraAntônio Cândido institucionalizado, cuja principal ma tendo um tópico (no sentido de luga
emvárias oportunidades, esim doque nifestação é a crítica. E é desse lugar res argumentativos que lhe dáa tradi
se passa na literatura enquanto saber institucional - a partir dele esobre ele ção clássica), Eneida não apenas o
institucionalizado, enquanto discurso —que Eneida Maria de Souza nos fala. apresenta e discorre sobre ele,
sobre a literatura. Assim, aprendemos com Eneida adotandoalgumas variações, mas tam
Tais mudanças, a que Eneida se que, apesar deas fronteiras terem sido bém o demonstraatravés do exemplo:
refere de modo geral como "aborda alargadas ouforçadas, produzindo um procura praticar algumas das posições
gens contemporâneas" ou "tendênci olhar para o objeto literário que vai que defende. Assim, além de desdo
as atuais", dizem respeito, resumida além dele, e queinclui outros textos e brar seu objeto, traçando o histórico
mente,à "abertura teórica" propiciada saberes, tais posições, por não serem da entrada do estruturalismo nas uni
pelo enfraquecimento das fronteiras hegemônicas, precisam ser defendidas versidades brasileiras e das tensões crí
disciplinares e, conseqüentemente, diante das posições tidas como "con ticas (objeto mais direto dos oito pri
</> pela ampliação do trânsito entre as servadoras". Para isso, a estratégia de meiros ensaios), opera uma narrativa
disciplinas, do questionamento dos Eneida é mapear o desenvolvimento dessa história a partirde um olharpar
lugares produtores do saber, bem da crítica contemporânea no Brasil, ticipante e implicado, que se quer,
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como dos conceitos operatórios res especialmente a partir dos anos 70, também, distanciado no tempo, em
ponsáveis pela produção de marcado pela entrada do estruturalis- que a memória é aliada da pesquisa.
paradigmas e de metodologias críti mo no ensino da teoria literária. Ob Ou seja, das memórias dos tempos de
cas. A essa abertura teórica se acres viamente, para reconstruir esta histó aluna na PUC do Rio deJaneiro, pas
centa ainda, ou dela decorre, a mu ria, Eneida trata dos debates sobre sando pela atuação como docente na
dança do próprio lugar da literatura identidadenacional e transculturação, UFMG, Eneida se vê no "olho do fu
nos estudos literários, que deixaria de ou sobre as relações entre o nacional racão", e faz do cruzamento entre a
ter um caráter auto-suficiente, periférico ea importação cultural. Diz vivência e a experiência da leitura, ou
substancialista, e um valor naturaliza Eneida: "A aceitação da sina de país do mapeamento dos embates levan
do, em benefício tanto de sua periférico e a resistência que impulsi do em conta a memória pessoal e a
contextualização quanto do alarga ona a busca da diferença e das inser pesquisa acadêmica, a forma de pro
mento de seu campo de abrangência. ções residuais de nossa cultura frente dução do saber, um certosaber narra
Tais "abordagens contemporâneas", às demais colocam em xeque o pre tivo que se aproxima da "crítica bio
contudo, não se encontram assimila conceito de estarem as idéias sempre gráfica". Aliás, o ensaio "Notas sobre
das pela crítica universitária e, na ver fora do lugar de origem."(p.l08) a crítica biográfica" (o nono ensaio do
dade, produzem as tensões que moti Se um dos propósitos declarados livro), em que a autora, ou melhor, a
vam todos os ensaios deste livro: no prefácio é confrontar "os precon escritora, apresenta mais detidamente
defender as "tendências atuais" e ata ceitosde ordem teórica", talvez o "pre como vê as "atuais tendências da críti
car as posições "conservadoras" e conceito" mais atacado ao longo do ca literária brasileira", pode ser lido
"preconceituosas", ou seja, assumir a livro seja a já famosa tese das "idéias como paradigmático de todo o livro.
luta por posições hegemônicas no fora de lugar", desenvolvida e defen Se os primeiros oito ensaios que le
campo da crítica brasileira enquanto dida por Roberto Schwarz. Mesmo mos em Crítica cult se dedicam a
um saber institucionalizado, o que sem ter feito um levantamento exaus mapear, historicizar, delimitar posi
pressupõe, evidentemente, conseqüên tivo, ou "científico", pode-se dizer que ções, cumplicidades e antagonismos,
cias para a atividade didática nos cur umadas reiterações ao longo do livro cumprindo um propósito - "Reco
sos de Letras e Programas de Pós-Gra- é a crítica a esse conhecido crítico. Na nheceraslimitações interpretativas da
"^.duàção brasileiros. Assim, as questões outra ponta e em proporção equitati- crítica, verificadas ao longo dos anos,

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