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Silvana Boone
Universidade de Caxias do Sul (UCS)
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Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul – v. 18, n. 35, jan./jun. 2019, p. 99-117
http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conexao DOI 10.18226/21782687.v18.n35.05
REPRESENTAÇÃO DA MULHER
NEGRA NAS ARTES VISUAIS E NA
LITERATURA BRASILEIRAS
From imoral animal to total invisibility:
the representation of the black woman
in the visual arts and in the brasilian
literature
Gabriela Valer Picancio1
Rafael José dos Santos2
Silvana Boone3
RESUMO
Este artigo aborda duas diferentes perspectivas da presença da mulher negra nas
artes brasileiras: como agente criadora de imagens e textos; e como figura passiva,
representada de modo estereotipado. Por meio da reunião de obras literárias e
artístico-visuais, produzidas entre os séculos XVI e XXI, na qual encontramos a
mulher negra representada, podemos realizar uma leitura das modificações sócio-
1
Bacharel em Artes Visuais pela Universidade de Caxias do Sul, com extensão universitária na
Universidad Autónoma de Madrid. Aluna do Programa de Pós-Graduação em Letras e Cultura (UCS)
e bolsista Prosup/Capes. E-mail:gvpicancio@hotmail.com
2
Cientista Social (Unicamp). Doutor em Ciências Sociais (Unicamp). Antropólogo. Professor na
Universidade de Caxias do Sul. E-mail: rafaprof@gmail.com
3
Doutora em Artes Visuais: história, teoria e crítica (IA-UFRGS). Docente na Universidade de Caxias
do Sul (UCS). E-mail: sboone@ucs.br
Revisão: Letícia Lima
Data de submissão: 26.10.2018
Data de aceite: 28.8.2019.
históricas ocorridas no País em relação a questões de gênero e étnico-raciais,
100
principalmente no que diz respeito ao espaço destinado à autorrepresentação e
ao lugar de fala. O pouco conhecimento sobre a existência de mulheres negras
como criadoras de arte confirma a abstenção dos meios responsáveis pela pesquisa
e difusão de conhecimento das áreas correspondentes, independentemente do
caráter da ação, seja o silêncio intencional ou indiferente.
Palavras-chave: Arte. Literatura. Gênero. Mulher negra. Representação.
Gabriela Valer Picancio, Rafael José dos Santos e Silvana Boone • Do animal imoral à total invisibilidade:...
ABSTRACT
This article approaches two different perspectives of the presence of black women
in the Brazilian arts: as an agent creator of images and texts; and as a passive
agent, represented by third parties. By means of themeeting of literary and artistic-
visual works, produced between the sixteenth and twenty-first centuries and in
which we find the black women, it is possible to make a reading about the socio-
historical changes in the Country in relation to gender and ethnic-racial issues,
especially as regards the space destined for self-representation and the place of
speech. The lack of knowledge on the existence of black women as creators of
art confirms the abstention of the different channels responsible for research and
diffusion of knowledge in the corresponding areas, regardless of the character of
the action: intentional or indifferent silence.
Keywords: Art. Literature. Gender. Black woman. Representation.
INTRODUÇÃO
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autonomia e propriedade de discurso de criadores locais. As imagens
seguiram interesses políticos governamentais e dos próprios artistas,
primeiramente vendo na mulher uma fonte de figuração da imagem do
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território ainda desconhecido, depois, com o Romantismo, na personagem
estereotipada da índia ou das brancas submissas. Com o advento do
Realismo, as negras e, principalmente, as mestiças entram em cena como
degeneradas. Entrando no século XX, principalmente a partir dos anos
1930, são transformadas em ícones de uma identidade construída como
ideologia nacional e, simultaneamente, como imagem do Brasil a ser
vendida ao Exterior.
A presença da mulher na arte antecede o tempo da própria conceituação
do fazer artístico como pertencente a uma área específica do
conhecimento. Seguindo pelos séculos de acordo com o pensamento
vigente, a representação não somente foi influenciada pelas correntes
ideológicas culturais e artístico-estéticas de cada período e região, como
modificada de acordo com o entendimento sobre gênero e o espaço
socialmente delegado aos artistas que trabalharam com o tema.
(GOMBRICH, 2012).
Se a arte em sua totalidade pode ser usada como mecanismo de leitura e
compreensão sócio-histórica, a representação da mulher nos permite ter
acesso às entrelinhas. Por meio de cenas representadas em obras, podemos
analisar os diferentes papéis e as funções que a mulher deteve ao longo
da História. Outra possibilidade é entender, a partir das eleições estéticas
dos artistas, quais eram as visões masculinas e, consequentemente, sociais4
do feminino.
Colocadas em conjunto as obras de arte literárias e visuais que se seguiram
da colonização até meados dos anos 1980, notamos uma constante
sincronização entre a representação da mulher a partir da imagem e sua
representação no texto escrito. As conotações variam praticamente entre
dois perfis: as representações que apresentam a mulher negra como peça
para “preencher” a cena, nivelando sua visibilidade à mesma direcionada
a itens inanimados; e as que objetificam seu corpo e reduzem sua pessoa
à fisicalidade desprovida de alma e caráter. Nas poucas e raras vezes que
encontramos mulheres que destoam desses dois perfis, elas não são negras,
mas mestiças, com sua negritude e “caráter associado”5 diluído.
4
Considera-se aqui a visão masculina como sendo consequentemente social pelo fato de que a
sociedade dos períodos iniciais tratados neste artigo, incluindo seus governos, considerava apenas
os homens para a ocupação de cargos de poder e que eram esses os responsáveis pela tomada de
decisões, criação de normas e legitimação de correntes artístico-estilísticas.
5
Destaca-se aqui um pensamento recorrente no período estudado, relacionado às correntes
raciológicas e ao determinismo biológico, que defendia a ideia de que a raça condicionava não
A disseminação dessas imagens, de forma constante e reforçada, sem a
102
mediação ou a contraposição de outras possíveis formas de representação,
reforça e “educa” o público para uma única verdade, fazendo com que a
totalidade de imagens fosse entendida como a totalidade da realidade. Vale
lembrar que essa visão era aceita e adotada pelos diferentes gêneros que
consumiam direta ou indiretamente imagens visuais e obras literárias.
Nas últimas décadas do século XX, será notada uma modificação no fluxo
Gabriela Valer Picancio, Rafael José dos Santos e Silvana Boone • Do animal imoral à total invisibilidade:...
apenas a fenotipia, mas o psicológico, o caráter e a forma de agir e pensar dos membros de cada
grupo. (Ler: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras,
1993).
6
As obras dos artistas Albert Eckhout (1610-1660) e Frans Post (1612-1680) sobre o Brasil da primeira
metade do século XVII, com os “tipos brasileiros” são exemplos.
um grupo específico, como sendo comum aos demais. Alguns dos artistas
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não identificavam tais variações, outros as ignoravam, generalizando
conforme grupo étnico-racial, itens culturais e fenotipias.
Quando o barroco brasileiro configurou-se, apesar de suas distinções em
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relação à fonte portuguesa, pela primeira vez a representação da mulher
nas artes visuais alinhou-se com o que já havia sido feito na Europa.
Encontramos o feminino atrelado ao sagrado, ocupando igrejas e espaços
públicos, servindo como meio para a personificação imagética das figuras
bíblicas e sacras. Apesar da distinção do movimento e suas características
adaptadas à realidade local, dificilmente encontramos figuras bíblicas
associadas às mulheres pertencentes às populações nativas ou negras.7
Na literatura, encontra-se a mínima presença, também demarcada até então
pela voz do estrangeiro em terras brasileiras com forte caráter descritivo
da mulher, destacando que a pequena amostragem da representação
feminina, em maioria, dava-se por meio de textos religiosos.
Em 1807, a família real portuguesa, acompanhada de uma comitiva, muda-
se para o Brasil. Com isso, houve uma estimulação no campo cultural e
artístico, na tentativa da demonstração de uma permanência de status da
Coroa portuguesa, independentemente das tensões internacionais. A elite
brasileira começou a se formar em meio a um período de instabilidade
política, sendo filha bastarda da nobreza fugitiva e dos membros de cargos
governamentais ocupados segundo privilégios.
A europeização da colônia e a tentativa de solidificação da cultura da
metrópole portuguesa no Brasil, em particular na Corte, fizeram com que,
em um curto período de tempo, as representações femininas se
adequassem ao que era produzido na Europa. Tanto nas artes visuais como
na literatura, podemos afirmar que, durante um expressivo período, sua
execução em território brasileiro se deu apenas com a imposição cultural
e não a partir da errônea ideia de uma construção conjunta por grupos
étnico-raciais distintos, como se tentou fazer acreditar. Para Candido:
7
É interessante destacar que, no século XX, algumas religiões de matrizes africanas, encontrando
formas de manterem práticas frente à intolerância e absorvendo influência católica na sua formação,
adotaram santos católicos, atribuindo-lhes características diferentes, de acordo com semelhanças
de seu povo.
todos os lados. Uma literatura, pois, que do ângulo político pode
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ser encarada como peça eficiente do processo colonizador. (1989,
p. 2).
105
Escrava Isaura(1875), de Bernardo Guimarães, em que, em realidade, a
mulher negra é branqueada em uma tentativa de apagar traços que
diminuiriam seu valor. Em certo trecho, a senhora elogia a moça por
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parecer mais branca do que negra, dizendo: “És formosa e tens uma cor
linda, que ninguém dirá que gira em tuas veias uma só gota de sangue
africano”. (GUIMARÃES, 1998, p. 29-31).
Nas artes visuais, as mulheres negras e mulatas seguiram associadas ao
trabalho braçal durante todo o século XIX, cercadas por uma aura de
passividade, ligadas ao passado e sem projeções de futuro melhor. No
início do século XX, há apenas transferência parcial do cenário onde elas
são retratadas conforme as modificações sociais. Com o passar dos anos,
após a abolição da escravidão, a mulher foi “realocada”, passando a
ambientar o cenário urbano. Na rua, representada como vendedora,
quitandeira, florista, fruteira; no ambiente interno é doméstica, cozinheira,
arrumadeira. Segundo Conduru (2007, p. 106) “constrói-se um lugar social
e hierarquicamente inferior para a mulher negra ao configurar sua imagem
entre o animal e a coisa, explorando sua condição associada ao trabalho
físico”.
Quando representada por escritores, as qualidades apresentadas sempre
estão ligadas ao corpo da mulher. Nunca é mencionado o que ela pensa,
ou o que deseja. (MONTEIRO, 2006, n. p.). A mulher negra habita um
espaço entre a bestialidade, a irrelevância e a invisibilidade; presente em
tramas por sua sedução, beleza ou resistência física. Conforme Queiroz
Junior:
107
paradigmática dessa transformação foi Casa Grande e Senzala, de Gilberto
Freyre (1997), que efetua uma mudança de ótica em relação à questão
racial, retirando-a do quadro conceitual raciológico para interpretá-la em
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termos culturais. Ortiz aponta para essa mudança no nível das ideias:
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
vem me ajudar, ó Fulô,
vem abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!
vem coçar minha coceira,
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vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
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que eu estou com sono, Fulô!
Ó Fulô? Ó Fulô?
Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô!
“Minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira
que o Sabiá beliscou.”
Ó Fulô? Ó Fulô?
(Era a fala da Sinhá
Chamando a negra Fulô.)
Cadê meu frasco de cheiro
Que teu Sinhô me mandou?
[...]
Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê meu lenço de rendas,
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[...]
O Sinhô foi açoitar
sozinho a negra Fulô.
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção,
de dentro dêle pulou
nuinha a negra Fulô.
[...]
Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê, cadê teu Sinhô
que Nosso Senhor me mandou?
Ah! Foi você que roubou,
foi você, negra fulô?
Essa negra Fulô! (LIMA, 1974, p. 121).
111
a “Sinhá” do engenho se mostrar inativa, de outro, no poema de
Jorge de Lima, Fulô representa a mulher transgressora, lúbrica e ágil,
tipificada como fonte do prazer tropical, dos desejos libidinosos do
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Sinhô, aquela que “escurece a vista” do proprietário do bangüê e
toma seu Sinhô para si. (2017, p.182).
8
AGE: criadora de imagens e textos; agente passiva: representada por terceiros.
Sabemos que existiram artistas negras nos séculos anteriores e que
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acabaram sendo invisibilizadas e caladas, sem entrar para o cânone. Nas
artes visuais, é apenas na década de 1990, depois de quatro séculos de
imagens, que encontramos a representação da condição da mulher negra
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na produção de uma artista, mulher e negra: Rosana Paulino. Ela não
apenas é a primeira artista negra a assumir o lugar de fala no Brasil, como
estreia a vinculação do corpo negro feminino com temáticas nunca
abordadas, como identidade e história, violência e solidão. Pela primeira
vez, a mulher negra tem rosto e voz; caráter e psique; vontades e anseios.
Paulino será a percursora de gerações de artistas negros, homens e
mulheres, que, a partir de seu exemplo, sentem que têm o direito de narrar
suas próprias histórias.
Já na literatura, a presença dessas mulheres motivadas a vociferarem sua
perspectiva, inicia-se um pouco antes, em meados da década de 1960, com
autoras como Carolina Maria de Jesus, Geni Guimarães, Esmeralda Ribeiro,
Conceição Evaristo, Miriam Alves, Lia Vieira, Celinha, Roseli Nascimento,
Ana Cruz, Mãe Beata de Iemanjá, dentre outras. O traço comum na
produção dessas escritoras é o nítido comprometimento com a causa da
negritude, configurando uma literatura de combate, mesmo nos textos
líricos e fantásticos. Para Navarro e Schmidt:
[...]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como quaisquer manifestações humanas, as artes visuais e a literatura
acompanharam as diferentes formas de pensar e sentir a sociedade,
articulando-se e se adaptando ao que certos grupos elegiam como
pertinente em cada período. No que diz respeito ao tema-objeto de
estudos, a mulher negra não poderia sofrer soma maior de limitações sócio-
históricas, já que se encaixa em diferentes posições: como mulher e como
negra. Dois grupos invisibilizados e que unidos não tinham interesse algum
para os dominantes.
Tanto nas artes visuais como na literatura, as representações das mulheres
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negras exploraram uma gama limitada de temas e formas, partindo da
mulher como escrava e sua utilidade física e trabalhadora, perpassando o
ambiente do labor doméstico, ainda utilitário, em que essas mulheres
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funcionavam como pano de fundo, até a sexualização do seu corpo. Em
todas essas formas, há a constância da inexistência de espírito, poder de
decisão e intelecto nessas mulheres representadas. Podendo afirmar, assim,
que, nas representações entre os séculos XVI e meados de 1980, a mulher
negra não passou de um corpo-objeto colocado e realocado nas imagens
e textos, conforme o entendimento social da sua utilidade.
As últimas décadas do século XX demarcam a transferência de discurso
do outro para a mulher-negra-sujeito que se descreve, a partir de uma
subjetividade própria, assumindo os meios de representação e
transfigurando-os em meios de autorrepresentação ou auto-apresentação.
Essas mulheres apresentam um lugar comum de fala, que contesta as
representações já existentes e visa à reelaboração de suas imagens e dos
papéis que assumiram/assumem na sociedade. Na sociedade, essa postura
que é reafirmada pelo revisionismo histórico, tem buscado redimir e/ou
ressignificar concepções já reconhecidas como limitadas e unilaterais.
Nos últimos anos, temos presenciado a potencialidade desses discursos
que a duro custo têm galgado espaço e meio para se difundirem e chegarem
às mais variadas esferas da sociedade brasileira.
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