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O TEMPO E O VENTO E SUAS TRADUÇÕES AUDIOVISUAIS: A NARRAÇÃO DA


MEMÓRIA

Aline Cristina Maziero

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO:
Literatura e Vida Social – Doutorado

LINHA DE PESQUISA
Literatura Comparada e Estudos Culturais

RESUMO

Este projeto pretende analisar os audiovisuais O tempo e o vento (1985, 2013/2014) como traduções

do texto literário de Erico Verissimo (1905-1975), O tempo e o vento (1949 a 1961). Cabe ressaltar

que embora levem o nome da trilogia, os produtos audiovisuais traduzem somente o primeiro

volume da obra, O continente (1949). A partir da percepção das obras audiovisuais como traduções

e, ampliando o conceito, como transcrições, buscaremos identificar como ocorre a transposição

entre as linguagens. A análise terá instrumentos interdisciplinares, utilizando conceitos da literatura

comparada, uma vez que procederemos a um estudo comparado que trate os objetos e sua recepção

como diferentes entre si, no se refere à linguagem (literária e audiovisual), ao gênero (romance e

ficção seriada) e ao formato (livro e minissérie). Os aspectos que se optou por enfocar são os de

foco narrativo e memória, buscando-se compreender a percepção e função dessas categorias nos

textos e considerando nos audiovisuais a existência e a especificidade de uma personagem central

narradora e protagonista que utiliza sua memória como fio condutor da narrativa. Por fim, almeja-se

verificar de que forma memória e narração se entrelaçam nas reproposições televisivas da trajetória

da família Terra-Cambará e se relacionam com a obra de Verissimo de modo a ressignificar


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estruturas correspondentes ao romance de origem em épocas de produção diferentes, levando-se em

conta o grau de sugestão sobre o leitor/espectador.

INTRODUÇÃO

A narrativa é parte relevante da interação social ao longo do tempo e, com as

mudanças culturais, sociais e políticas, o modo de narrar se modificou. O século XX viu

surgir uma nova modalidade de interação, mediada pelos meios de comunicação de massa:

rádio, cinema e mais recentemente televisão e internet. Essa presença constante, diríamos

ubíqua, dos meios de comunicação favorece as relações que estes podem estabelecer com

outras esferas do conhecimento humano, especialmente as artes, como música, artes plásticas,

escultura, literatura, etc.

Se nos ativermos somente às possíveis relações com a literatura é possível dizer que

nesse contexto destacam-se os meios audiovisuais, mais especificamente o cinema e a

televisão, que desde o início de sua produção utilizaram-se de textos literários, sejam peças

teatrais sejam romances, como importante “fonte” na criação de novos produtos para compor

sua grade de programação.

Ressalte-se que tanto a literatura quanto os meios audiovisuais têm em comum a

capacidade, e de acordo com Sauboraud (2010), a necessidade de narrativas. Esse primeiro

elo comum suscita o interesse por investigações que aproximem essas duas áreas. Cada forma

de expressão, contudo, tem suas próprias e diversas maneiras de gerar os significados

pretendidos. Dessa forma, diferem tanto em linguagem, formato, gênero, e também no que se

refere ao conteúdo apresentado. Considerando essas especificidades, este projeto de pesquisa

opta por considerar a transposição da linguagem verbal-escrita para a audiovisual como um

processo de tradução.
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Tomando como perspectiva a interdisciplinaridade, optamos por um método de estudo

comparado, que leve em consideração as diferenças existentes entre cada um dos produtos

que aqui se pretende estudar: o texto literário O tempo e o vento de Erico Verissimo e os

audiovisuais homônimos de 1985 e 2013/2014.

A proposta da pesquisa, a partir dos objetos de análise referidos acima, é a de discutir

como ocorre a relação entre memória e foco narrativo, tanto no texto literário quanto no

audiovisual. Existe nas traduções audiovisuais uma personagem central narradora, figura

inexiste no texto de O continente, já que ali o narrador estava distanciado dos fatos narrados.

Nas duas traduções que optamos por analisar uma das personagens centrais do romance –

Bibiana Terra Cambará – assume o papel de narradora da história de sua família, o que faz a

partir de suas memórias.

A narradora-protagonista dos audiovisuais recorda a história de sua família por meio

de suas lembranças. Tal estratégia narrativa permite que enfoquemos a memória como fio

condutor das narrativas audiovisuais e demarca uma diferença quanto ao narrador do texto de

Verissimo e por isso, Derrida (2001) nos auxilia na compreensão de memória como arquivo,

já que Bibiana, distante cronologicamente de grande parte dos fatos narrados, ao recordar

“desarquiva” sua própria história e a de sua família.

JUSTIFICATIVA

As mudanças sociais, econômicas e culturais que ocorreram nos últimos anos fazem

notar a possibilidade de a literatura estabelecer relações com outras artes ou áreas do

conhecimento, como por exemplo, música, artes plásticas e meios de comunicação de massa.

Isso se torna possível, pois tais meios criam uma nova forma de interação do sujeito com a

sociedade que o cerca, por meio da modificação na forma de narrar.


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De maneira diversa do texto literário, contudo, os meios audiovisuais lidam com

características de representação, que são compartilhados com a pintura, a fotografia e o

teatro. Por outro lado, tais meios têm características próprias, como enquadramentos,

montagem e movimentos de câmera, elementos intrínsecos à linguagem cinematográfica.

Todas essas características devem ser consideradas ao tratarmos da adaptação de textos

literários para o audiovisual, como uma possibilidade de aproveitamento desses textos, com

vistas a atingir novas audiências e repropor de forma ainda não explorada, uma história já

conhecida.

Os primeiros estudos sobre adaptação valorizavam a fidelidade do produto adaptado

ao original, mas as bases dos estudos nos últimos cinquenta anos tratam o produto adaptado

como independente do texto literário que o originou, diferente deste, embora a ele ligado por

laços intertextuais. A intertextualidade, segundo Julia Kristeva é um processo pelo qual “todo

texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é a transformação e absorção de

um outro texto”. (KRISTEVA, 1974, p. 54). O conceito será, depois, expandido por Genette

(2006), para quem a intertextualidade se resume a uma das categorias do que o autor chama

de transtextualidade. (GENETTE, 2006, p. 12). Considerando aspectos como a

intertextualidade e a independência da obra adaptada em relação ao chamado “texto original”,

Hutcheon busca conceituar o termo adaptação e afirma:

Em primeiro lugar, vista como uma entidade formal ou produto, uma


adaptação é uma transposição anunciada e extensiva de uma ou mais
obras em particular. Essa “transcodificação” pode envolver uma
mudança de mídia (de um poema para um filme) ou gênero (de um
épico para um romance), ou uma mudança de foco e, portanto, de
contexto: recontar a mesma história de um ponto de vista diferente,
por exemplo, pode criar uma interpretação visivelmente distinta. [...].
Em segundo, como um processo de criação, a adaptação sempre
envolve tanto uma (re)- interpretação quanto uma (re)- criação.
Dependendo da perspectiva, isso pode ser chamado de apropriação ou
recuperação. (2011, p. 29)
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A partir dessa concepção, notamos que o texto literário não é a única fonte para as

adaptações, mas é considerada uma das mais confiáveis, pois ao se transpor obras literárias

para o cinema ou televisão há expectativas quanto ao público, quanto ao tratamento do enredo

e também com as possíveis modificações promovidas pelo produto audiovisual. Autores

contemporâneos (SANDERS, 2006, COMPARATO, 2000, ANDREW, 2000) esboçaram

classificações dos produtos adaptados de acordo com o grau de proximidade em relação ao

texto literário que os originou.

Por esse motivo, o conceito de adaptação não parece se adequar completamente aos

nossos propósitos, e, portanto, decidimos tratar o que até agora estamos chamando de

adaptação, como uma forma de tradução. Para Walter Benjamim (1984), tradução é forma e

evoca o regresso ao original e a busca pela autenticidade. Porém, essa busca não garante que o

tradutor encontre um sentido absoluto, pois, como o próprio Benjamin esclarece, a ideia de

“original” “não se encontra nunca na matéria dos fatos brutos, e seu ritmo só se revela a uma

visão dupla, que o reconhece, por um lado, como a restauração e reprodução, e por outro lado,

e por isso mesmo como incompleto e inacabado”. (BENJAMIN, 1984, p. 68).

Paul Ricouer (2011) faz uma releitura da proposta de Benjamin concebendo a tradução

como um trabalho de luto ou de lembrança em torno do “original” perdido. A proposta de

Ricouer se volta, em princípio, para a acepção de estrangeiro. Segundo o autor, o estrangeiro

é aquele que é levado diante do outro por meio da mediação de um tradutor, e nessa

percepção, tanto o autor vai até o leitor quanto o inverso também acontece. Assim, texto

original e traduzido se encontram em outro plano, o plano da tradução, no qual é possível

vislumbrar “resistência” de parte à parte: da tradução para com o “original” e do “original”

em relação à tradução. Para Ricouer não existe tradução perfeita, toda tradução implica a

aceitação de uma perda. Mas é nessa consciência de perda que se percebe mais evidentemente

a tarefa do tradutor como renúncia, algo intrinsecamente ligado ao luto. Essa nova consciência
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de luto e perda, para Ricouer, permitiria uma aproximação com o estrangeiro, e pensando

socialmente, levaria à convivência na diferença. O tradutor agiria “sem esperança de eliminar

a distância entre equivalência e adequação total. (RICOUER, 2011, p. 30).

Aceitar as diferenças e conviver com a língua – ou em nosso caso, linguagem – do

outro oferecendo hospitalidade ao que é estrangeiro nos parecem ser as linhas-mestras da

percepção apresentada por Ricouer acerca da tradução. Desse modo, a tradução teria de ser

um ato de compreensão. Derrida aponta que a tradução é a “solução” para a tensão entre o que

é o próprio e estrangeiro, pois torna “presente uma afinidade que não está jamais presente”.

(DERRIDA, 2002, p. 44).

Com base nessas considerações é possível dizer que a tradução, mais do que mera

busca de correspondência semântica, é um processo de interpretação realizado pelo tradutor,

que demonstra sua participação na criação de uma nova obra, não sendo, portanto, neutro,

uma vez que propõe resignificações no texto “original” de acordo com as ideias

compartilhadas por um grupo de indivíduos empenhados na tarefa de traduzir. Ora, o processo

de tradução parece-nos inacabado sem a presença de um leitor/receptor, que deverá se

apropriar do texto traduzido, de modo que este possa ser compreendido como “palimpsesto”.

(GENETTE, 2006).

A tradução, especialmente quando pensada para meios audiovisuais de comunicação,

deve considerar ainda o aspecto da representação. Assim, mais do que um tradutor de línguas,

faz-se necessário o que Patrice Pavis (2008) denomina translação, muito mais do que somente

representação, um processo que envolve a adequação de artes e culturas estranhas umas às

outras. Aqui, também nos valem as contribuições de Haroldo de Campos (1977), acerca do

fazer tradutório. O autor, inspirando-se na poesia concreta, considera que o essencial não é a

reconstituição da mensagem, mas “a reconstituição do sistema de signos em que está


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incorporada essa mensagem, da informação estética, e não da informação meramente

semântica”. (CAMPOS, 1977, p. 100).

Essa afirmação corrobora o que discutimos acerca da tradução: tem natureza

composta e, para melhor compreensão de sua poética, é necessário considerar, assim como em

qualquer outro texto, ao mesmo tempo, a existência de forma e conteúdo. Dessa maneira,

somos levados a pensar que ao tratarmos de traduções para os meios audiovisuais de

comunicação é necessário considerar a mudança de suporte, gênero, formato e linguagem,

pois esses aspectos diferenciados modificam a maneira como percebemos e interagimos com

eles: a palavra escrita é substituída por signos tanto sonoros quanto visuais que adquirem

novos significados.

Vale lembrar que Haroldo de Campos considera a tradução como criação e como

crítica, pois a problematização imposta pela obra é transferida para a tradução como vivência

interior do mundo e da técnica do traduzido, como se a máquina da criação se desmontasse e

se remontasse e, ainda, como se uma frágil beleza intangível, oferecida por uma língua

estranha, pudesse ser suscetível a uma vivissecção implacável para ser trazida ao nosso corpo

linguístico (CAMPOS, 2010, p. 43). A direção crítica do texto original também pode, assim,

ser recriado.

O intuito da pesquisa é analisar o texto literário de Erico Verissimo O tempo e o vento

e os audiovisuais com título homônimo (JOSÉ, 1985 e MONJARDIM, 2013), enfocando os

aspectos do narrador e da memória como esteios de cada produção artística. Na primeira

etapa, o trabalho deve se debruçar sobre tais elementos da narrativa literária e seus

correspondentes na narrativa fílmica, para que se possa localizar as correspondências e, em

seguida, inferir sobre as soluções encontradas na transposição do texto para a tela, tomando

uma posição na interpretação da recriação, respeitando cada contexto de produção.


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O tempo e o vento é uma trilogia composta por O continente (1949), O Retrato (1051),

e O Arquipélago (1962), que narram, desde uma perspectiva histórica, a trajetória de uma

família sul-rio-grandense, os Terra-Cambará, ao longo de 200 anos, de 1745, nas Missões

jesuítas, a 1945, com o fim do Estado Novo. O tempo e o vento é o texto de Verissimo que

mais vezes foi traduzido ao audiovisual, seja de forma fragmentada, seja integralmente. A

única versão que tomou por base a trilogia como um todo foi a telenovela O tempo e o vento

(1967), exibida pela TV Excelsior. Baseados em partes da trilogia há ainda os filmes: O

sobrado (1956), Ana Terra (1971), Um certo capitão Rodrigo (1971) e O tempo e o vento

(2013), este “reformatado” como minissérie no início de 2014, quando foi exibido em três

capítulos pela Rede Globo; e a minissérie O tempo e o vento (1985).

O romance O continente é dividido em seis partes de retrospectiva cronológica: A

fonte, Ana Terra, Um certo capitão Rodrigo, A teiniaguá, A guerra e Ismália Caré, e todos

eles são intercalados pelo “episódio-moldura” (BORDINI, 2004, p. 52) O sobrado, que narra

os acontecimentos do presente da narrativa, referentes ao cerco à residência da família Terra-

Cambará no ano de 1895, durante a Revolução Federalista.

A escolha dos objetos se deve à intenção de dar continuidade à pesquisa iniciada em

dissertação de Mestrado (MAZIERO, 2013) na qual, lidando somente com a minissérie de

1985, investigamos por meio da comparação na diferença entre romance e minissérie, como a

tradução audiovisual repropõe ou reconta o texto de Verissimo. Naquele trabalho, enfocamos

as categorias narrativas de tempo, espaço e personagens para a verificação de quais recursos

expressivos os autores, do texto literário e do produto audiovisual, utilizaram para compor a

sua narrativa. Na presente pesquisa pretendemos demonstrar por meio da análise comparatista

do romance e de duas de suas traduções audiovisuais, as relações existentes entre memória e

narração em O tempo e o vento.


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Ao assentarmos a pesquisa no campo interdisciplinar entre a literatura e a

comunicação, por meio do estudo de objetos relacionados interartisticamente, consideramos

que isso pode ser realizado pelo viés da literatura comparada: não mais buscando fontes e

influências, o campo de estudos passa a investigar outras formas de expressão e não somente

a literatura. Essa perspectiva está presente na definição de Remak, segundo a qual:

A literatura comparada é o estudo da literatura além das fronteiras de um


país específico e o estudo das relações entre, por um lado, a literatura, e, por
outro, diferentes áreas do conhecimento e da crença, tais como as artes (por
exemplo, a pintura, a escultura, a arquitetura, a música), a filosofia, a
história, as ciências sociais (por exemplo, a política, a economia, a
sociologia), as ciências, a religião etc. Em suma, é a comparação de uma
literatura com outra ou outras e a comparação da literatura com outras
esferas da expressão humana. (REMAK, 1994, p. 175).

A definição acima exposta aponta para o fato de que a literatura comparada não deve

privilegiar apenas o estudo das literaturas, mas abrir-se para outras áreas de expressão, e

nesse sentido, podemos destacar os meios de comunicação. Tânia Carvalhal afirma que

embora ainda exista “a exigência de que um destes meios de expressão seja o literário, [...]

aos poucos perde a perspectiva dominante deste em relação aos outros meios de expressão

artística, estabelecendo o necessário equilíbrio” (CARVALHAL, 2003, p. 39). Por esse

motivo, acreditamos que o olhar comparatista sobre o objeto pode trazer contribuições à

pesquisa.

Como dito anteriormente, essa proposta pretende estudar as relações que se

estabelecem entre memória e narração, a partir da análise comparativa do romance O tempo e

o vento, de Erico Verissimo e suas mais recentes traduções audiovisuais. O aspecto da

narração ganha destaque, em nossa perspectiva, pois há uma mudança significativa, se

compararmos o texto literário e os dois audiovisuais. Em O continente, o narrador é

distanciado, heterodiegético. Nas traduções audiovisuais, ocorre uma mudança no foco

narrativo, já que a personagem Bibiana é alçada ao papel de protagonista nas duas minisséries
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e a história é contada a partir de suas lembranças, reminiscências, ou ainda, a partir daquilo

que ela ouvira alguém contar.

O foco narrativo recebe diferentes tratamentos se considerarmos o texto literário e as

traduções em estudo. Isso se deve, especialmente ao fato de que romance e audiovisual são

compostos em linguagens diferentes e com diferentes intencionalidades. Sobre esse assunto,

Friedman (2002), ao estudar o foco narrativo, propõe que existe uma diferença fundamental

entre cena e sumário, duas instâncias também ligadas ao aspecto temporal da ação narrada e

também com a forma de narração: o texto de Verissimo compõe-se em grande parte de cenas,

mas, para dar mais agilidade à narrativa é frequente o uso do sumário. Assim também ocorre

com o audiovisual, que embora opte pelo uso mais frequente de cenas – devido a própria

característica de “mostrar” o que é narrado – também faz uso do sumário ou resumo.

Quanto à tipologia de narradores, Friedman postula a existência de categorias como o

narrador onisciente intruso, o narrador onisciente neutro, o eu como testemunha, o narrador-

protagonista, o narrador de onisciência múltipla e o de oniciência seletiva. Para os fins desse

projeto, interessa-nos destacar dois dentre esses tipos de narradores, a saber, o narrador

onisciente neutro e o narrador-protagonista: o primeiro, por ser o utilizado no romance de

Verissimo, se considerarmos apenas O continente; o segundo, por estar presente tanto na

minissérie de 1985 quanto no filme de 2013.

O narrador onisciente neutro se manifesta em terceira pessoa e, de modo geral, mais

“objetivo” em relação às personagens, agindo com um observador, sem juízos de valor sobre

quaisquer de suas ações, como no excerto:

[...] Pedro sentou-se, cruzou as pernas, tirou algumas notas da flauta, como
para experimentá-la e depois, franzindo a testa, entrecerrando os olhos,
alçando muito as sobrancelhas, começou a tocar. Era uma melodia lenta e
meio fúnebre. O agudo som do instrumento penetrou Ana Terra como uma
agulha, e ela se sentiu ferida, trespassada. [...] (VERISSIMO, 2011, p. 112)
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Já o narrador-protagonista é aquele que, em primeira pessoa participa da ação em

papel central. Nesse sentido, pode-se dizer que ambas as traduções de O tempo e o vento

enfocadas nesse projeto alçam a personagem Bibiana Terra-Cambará ao papel de narradora e

protagonista, ainda que sua visão não seja “limitada”, como Friedman sugere que ocorre a

esse tipo de narrador. Isso porque a Bibiana do filme e da minissérie tem a seu favor o

mecanismo da memória e, utilizando desse recurso, narra a história de sua família, de seu

estado e de seu país. No texto de O continente, encontramos vários indícios de que recordar é

algo que os Terra-Cambará fazem com frequência.

Sozinha no seu quarto, sentada na sua cadeira de balanço, e enrolada no seu


xale, a velha Bibiana espera... O quarto está escuro, mas para ela nestes
últimos anos sempre, sempre é noite, pois a catarata já lhe tomou conta de
ambos os olhos. Ela mal e mal enxerga o vulto das pessoas, mas ouve tudo,
sabe de tudo, conhece as gentes da casa pela voz, pelo andar e até pelo
cheiro. Quando ouviu o primeiro tiroteio, ficou nesta mesma cadeira,
esperando e escutando. Quando as balas partiam as vidraças ou se cravavam
nas paredes, ela tinha a impressão de estar vendo - não! - de estar ouvindo
uma pessoa de sua família ser fuzilada pelos inimigos. [...]. (VERISSIMO,
2011, p. 40).

Na minissérie de 1985, esse é o ponto de partida da história. Bibiana, idosa, esquecida

por todos em meio ao cerco militar ao seu lar, recorda. Há, portanto, mudança no foco

narrativo que, de “externo”, ou “fora da cena”, passa a ser interno, feito a partir do ponto de

vista de uma das personagens que viveu, ou ouvir contar, tudo aquilo de que se lembra. Jost e

Gaudreault (2007, p. 177) ressaltam que ocorre “quando a narrativa está restrita ao que pode

saber o personagem”; por outro lado, os mesmos autores destacam que tal condição não

implica, necessariamente, “que compartilhemos sempre o seu olhar (JOST; GAUDREAUT,

2009, p. 177).

Nas traduções audiovisuais o recurso utilizado para expressar o momento de

recordação é o flashback: na minissérie de 1985, Bibiana recorda sozinha em sua cadeira de

balanço; no filme de 2013, a velha senhora recebe a visita do marido morto, o Capitão
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Rodrigo, e o utiliza como interlocutor para suas memórias, sempre se dirigindo a ele,

conversando. Quando tratamos das recordações de Bibiana consideramos que sejam de fundo

subjetivo, já que pertencem à personagem, mas ao serem expostas ganham teor objetivo, na

medida em que é possível atestar que ocorreram. Martin (2005) quando trata das evocações ou

recordações subjetivas distingue-as em três tipos: as reais, as falsas e as imaginadas. Tomando

por base essa distinção, dizemos que as recordações de Bibiana podem ser consideradas reais.

Por tudo o que dissemos até agora é possível inferir que se este não era um traço

predominante na escrita de Erico Verissimo, ao traduzirem-na para o audiovisual, os

realizadores desses novos produtos utilizaram a memória como fio condutor da narrativa. Por

esse motivo, parece-nos relevante um estudo que considere a imbricação desses dois

elementos.

A apropriação que a personagem Bibiana faz da memória familiar ao fim de sua vida

nos remete àquilo que Benjamin (1994) escreveu: “somente a humanidade redimida poderá

apropriar-se totalmente de seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida

o passado é citável, em cada um de seus momentos”. Apropriando-nos das palavras de

Benjamin, diríamos que para que se narre determinado acontecimento, é necessário estar

distanciado dele no tempo, e, por esse motivo, nas traduções audiovisuais, isso somente

ocorre quando a personagem encontra-se em seu leito de morte.

É interessante inserirmos nesta discussão, a noção de memória enquanto arquivo, uma

proposta de Jacques Derrida. Segundo a perspectiva desse autor, a literatura pode se ocupar da

investigação das “lembranças” e “esquecimentos”, de cada individuo, o que motiva o que

deve ou não ser memorizado. A noção derridiana está atrelada à sua reflexão acerca da obra

de Freud, segundo a qual, o que nos leva ao registro da memória é a pulsão de morte, o desejo

de morrer, que paradoxalmente nos impulsiona para a vida. Essa percepção se aproxima do
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que percebemos que ocorre à personagem Bibiana, que, nos momentos finais de sua

existência, mantém-se ligada à vida pelo fio da recordação.

Como escreve Derrida, a palavra “arquivo”, derivada de “arché” pode ter sentido de

“reunião”, mas, ao mesmo tempo, somos avisados de que não há “jamais a memória nem a

anamnese em sua experiência espontânea, viva e interior. Bem ao contrário: o arquivo tem

lugar na falta originária e estrutural da chamada memória” (DERRIDA, 2001, p. 22). Assim,

pode-se pensar na trilogia O tempo e o vento como arquivo, criado com base no medo da

“perda de memória”.

Ao mesmo tempo, ancorando-se na noção derridiana de “arquivo” pode-se dizer que

os romances de Verissimo são “arquivos de memórias”, posto que têm como objetivo

declarado e expresso desmistificar a história sul-rio-grandense oficial. Isso pode ser notado na

escolha do autor por narrar a história a partir de um ponto de vista feminino, por exemplo.

Em Mal de arquivo, Derrida questiona qual será a nova formulação do termo, qual

será enfim, a noção de arquivo, na era dos meios de comunicação. Talvez seja possível

responder a este questionamento, se considerarmos que os meios de comunicação permitem

uma revitalização arquivolítica, que desconstruiria nossa noção arcaica de “arquivo” como um

“armário empoeirado”, para torná-la algo vivo, em constante movimento, não mais ligado a

coisas do passado ou lembranças, mas sim como uma memória sempre presentificada.

Mas, em nossa concepção, arquivo não é apenas depósito para a conservação do

passado, pois a presença de um lugar a que se possa chamar arquivo pressupõe a existência de

um arquivante, que determina as características do conteúdo arquivável. Nas palavras de

Derrida, “não se vive mais da mesma maneira aquilo que não se arquiva da mesma maneira”

(DERRIDA, 2001, p. 31). É possível pensar tal afirmação no contexto das obras estudadas: a

trilogia O tempo e o vento, embora narre acontecimentos de um longo período da história do

país, visto sob as lentes de uma perspectiva sul-rio-grandense, o faz a partir de um olhar
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distanciado, seja pelo uso do narrador em terceira pessoa, seja pela distância temporal que se

estabelece entre o momento de escrita e os acontecimentos narrados. Constitui-se como

arquivo, na medida em que, como não se vive uma mesma história da mesma maneira duas

vezes, Verissimo a reconta e a atualiza com o seu olhar próprio, de seu tempo.

As traduções audiovisuais remexem no “arquivo” da obra literária e surgem assim

novas obras, propostas noutro contexto histórico, social e cultural e, repito, em uma nova

linguagem. Nossa perspectiva é, portanto, a de estudar as traduções audiovisuais de O tempo

e o vento como narrativas da memória.

OBJETIVOS

OBJETIVO GERAL

- Realizar um estudo comparado entre a trilogia O tempo e o vento, de Erico Verissimo e as

traduções audiovisuais O tempo e o vento (1985, 2013/2014), enfocando as relações que se

estabelecem entre as acepções de memória e narração nos objetos estudados.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS

- Compreender o processo de transposição interlinguagens do texto literário aos produtos

audiovisuais como uma tradução, que pode ser mais bem compreendida pelo viés da literatura

comparada;

- Verificar de que forma as traduções audiovisuais deslocam o foco narrativo do texto de

Verissimo, enfocando, para isso, a instância do narrador, tanto literário quanto seus

correspondentes cinematográficos.
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- Investigar o tratamento dado à noção de memória, tanto no texto literário quanto no

audiovisual, considerando possíveis relações deste conceito com os de luto, perda e arquivo,

presentes em Paul Ricouer (2011) e Derrida (2001).

- Analisar as relações que se estabelecem entre memória e narração tanto no texto literário

quanto nas traduções audiovisuais de O tempo e o vento, considerando que esses são aspectos

que foram “modificados” pelos produtos audiovisuais.

PLANO DE TRABALHO

Este trabalho visa estudar as relações que se estabelecem entre o texto literário O tempo e

o vento, de autoria de Erico Verissimo e suas traduções para o audiovisual, especificamente para o

formato minissérie, ambas realizadas pela Rede Globo, nos anos de 1985 e 2013/2014. A tradução

mais recente foi primeiramente apresentada como filme, em setembro de 2013 e depois,

reapresentada com inclusão de cenas e dividida em três capítulos, em janeiro de 2014,

caracterizando-se no formato minissérie, assim como a produção de 1985, composta em 26

capítulos. Esse projeto se propõe lançar um olhar comparatista sobre o texto literário O tempo e o

vento e suas traduções audiovisuais, enfocando as relações entre memória e narração.

O texto que estudará a relação entre os três textos O tempo e o vento – o literário e os

audiovisuais - constará de 4 capítulos. No capítulo inicial, buscaremos tratar do processo de

transposição de linguagens como tradução, entendendo o fenômeno sob o viés da literatura

comparada No segundo capítulo, estudaremos a categoria do foco narrativo com base no exposto

por Friedman (2002), destacando as especificidades de utilização em cada produto. No terceiro


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capítulo, investigaremos o tratamento dado à noção de memória, tanto no texto literário quanto no

audiovisual, considerando possíveis relações deste conceito com os de luto, perda e arquivo,

presentes em Paul Ricouer (2011) e Derrida (2001).

Por fim, no capítulo final, nossa intenção é analisar a relação entre memória e narração,

dando especial atenção aos produtos audiovisuais, por considerarmos que esses aspectos foram

bastante modificados quando comparados ao texto literário ”original”.

CRONOGRAMA DE EXECUÇÃO
Ano:2015
AÇÕES/ETAPAS J F M A M J J A S O N D
Cumprimento dos créditos das disciplinas X X X X

Encontros para a orientação da pesquisa X X

Participação em eventos e apresentação de X X


trabalhos
Pesquisa bibliográfica sobre os temas da X X X
pesquisa
Ano:2016
AÇÕES/ETAPAS J F M A M J J A S O N D
Entrega dos trabalhos finais de disciplinas X
Encontros para orientação da pesquisa X X X X X

Participação em eventos e apresentação de X X X X X


trabalhos
Publicação de artigos em revistas X X
cientificas
Pesquisa bibliográfica X X X X
Análise do texto literário e dos X X X X X X X X X
audiovisuais
Elaboração da tese X X X X
Ano: 2017
AÇÕES/ETAPAS J F M A M J J A S O N D
Encontros para orientação da pesquisa X X X X X X X X X

Participação em eventos e apresentação X X X X X


de trabalhos
Publicação de artigos em revistas X X
cientificas
Análise do texto literário e dos X X X X X
audiovisuais
Redação preliminar da tese X X X X X X
Entrega do relatório de qualificação X
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Ano: 2018
AÇÕES/ETAPAS J F M A M J J A S O N D
Encontros para orientação da pesquisa X X X X X X X X X
Qualificação X

Redação da tese com as contribuições da X X X X


banca de qualificação
Participação em eventos e apresentação de X X X
trabalhos
Publicação de artigos em revistas X
cientificas

2019
AÇÕES/ETAPAS J F M A M J J A S O N D
Redação final da tese X X X X
Depósito da tese X
Defesa da tese/banca examinadora x

MATERIAIS E MÉTODOS

Este projeto parte da perspectiva de conceber o produto audiovisual como uma forma

de tradução, algo já definido em Dissertação de Mestrado (MAZIERO, 2013), porém, ampliando o

escopo teórico no que se refere às teorias da tradução com as contribuições de Campos (2014)

Benjamin (2011), Ricouer (2011) e Derrida (2002). Após essa primeira etapa, auxiliados pelo

método da literatura comparada, encetaremos a comparação na diferença entre o texto literário O

tempo e o vento, de Erico Verissimo e as duas traduções audiovisuais escolhidas como objeto desse

projeto, a de 1985 e a de 2013, que foi reexibida em 2014 com a inclusão de novas cenas e em

formato diferenciado, já que o filme de 2013 tornou-se minissérie em 2014.·.

Para essa comparação na diferença, precisaremos ampliar conhecimentos teóricos

tanto no que se refere à teoria da literatura quanto a do cinema. Em uma terceira etapa,

trabalharemos com os aspectos da narrativa que decidimos enfocar neste trabalho, a saber: a relação

existente entre narração e memória a fim de que possamos proceder à comparação das obras

considerando suas especificidades e verificar como ocorre o tratamento dessas temáticas em uma e

outra linguagem.
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ANÁLISE DOS RESULTADOS

Procederemos à análise tendo como enfoques principais: narrador, foco narrativo e

memória em O tempo e o vento, considerando que os aspectos são tratados de formas diversas no

texto literário e nos audiovisuais e assumem papel relevante por constituírem-se na maneira

escolhida pelos realizadores dos audiovisuais para repropor o enredo do texto literário em outra

linguagem. Para isso, propomos a utilização de estudiosos da narrativa literária e da

cinematográfica para nos auxiliar a demarcar as semelhanças e diferenças existentes no tratamento

desses aspectos.

REFERÊNCIAS

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