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SAGA

ERICO VERÍSSIMO

SAGA

Introdução
Flávio Loureiro Chaves

20ª Edição
Copyright © 1987 by Herdeiros de Erico Veríssimo

Ilustração de capa: Glauco Rodrigues, Ninguém é inocente (detalhe)

Direitos de edição em língua portuguesa,


para o Brasil, adquiridos por
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Impressão e acabamento:
RR Donnelley & Sons Company - EUA

CIP-Brasil. Catalogação na fonte — Câmara Brasileira do Livro, SP

Veríssimo, Erico, 1905-1975.


Saga / Erico Veríssimo ; ensaio introdutório Flávio Loureiro
Chaves. - 20. ed. - São Paulo : Globo, 1995.

ISBN 85-250-0281-X

1. Romance brasileiro I. Chaves, Flávio Loureiro, 1944 - II.


Título.

87-1190 CDD-869.935

Índices para catálogo sistemático:


1. Romances : Século 20 : Literatura brasileira 869-935
2. Século 20 : Romances : Literatura brasileira 869.935
SUMÁRIO

PREFACIO XI

SAGA: Um Testemunho Humanista XVII

I O CIRCULO DE GIZ, 1
II SÓRDIDO I N T E R L U D I O 59
III O D E S T I N O B A T E A PORTA 171
IV PASTORAL 329
A dois amigos:
HENRIQUE E LUIZA
Ao ex-combatente da Brigada Internacional
que me deu o roteiro de Vasco na jornada da Espanha,
além de muitas outras sugestões valiosas; e ao Sr. Jesus
Corona, a quem devo um punhado de notas sobre o
campo de concentração de Argelès-sur-Mer, a minha
homenagem e os meus agradecimentos.

E. V.
PREFÁCIO

SAGA é talvez o mais controvertido de todos os meus romances.


Creio que isso se deve principalmente ao seu conteúdo político, que desa-
gradou com igual intensidade tanto a esquerdistas como a direitistas. O
juízo dos críticos literários não foi menos severo para com esta narrativa.
Álvaro Lins esteve a ponto de — como já fizera Jules Lemaitre com George
Ohnet — proclamá-la Hors la littérature.
Saga foi escrito naqueles sombrios meses de 1940, quando as tropas
nazistas, com suas brutais Panzerdivisionen, se aproximavam invencivel-
mente de Paris. Para nósque amávamos a França e detestávamos o nazismo,
isso não era apenas o fim da Guerra, mas também o fim do mundo, o fim
de tudo. Rússia e Alemanha tinham firmado um pacto de não-agressão. No
Kremlin, von Ribbentrop e Stalin, cada qual com uma taça de champanha
na mão, haviam trocado brindes cordiais. Nas altas esferas governamentais
do Brasil viam-se figurões civis e militares que não escondiam sua simpatia
pelo hitlerismo, seu fascínio pelos feitos da Wehrmacht. Tudo nos levava a
crer que o destino próximo de todos os liberais seria o internamento num
campo de concentração — caso em que não nos importaria a cor da camisa
daqueles que nos levassem para lá.
Embora nós os socialistas democratas tivéssemos sido sempre antito-
talitários, nunca deixáramos — naqueles anos anteriores a 1939 — de consi-
derar a União Soviética a esperança do socialismo. Fossem quais fossem os
erros, deformações e violências do stalinismo, uma coisa era certa: nesse
tremendo laboratório que é a U. R. S. S. estava-se a fazer uma experiência
social e econômica muito séría, capaz de influir decisivamente sobre o cur-
so da História. Agora o pacto nos apanhava de surpresa, deixando-nos ton-
tos e desarvorados. Explicavam os comunistas que o desconcertante trata-
do não passava dum magistral golpe de Stalin com a finalidade de ganhar
tempo, certo como estava o senhor do Kremlin de que mais tarde ou mais
cedo Hitler se voltaria contra a Rússia, o mais temível adversário da Ale-
manha na Europa. Por outro lado o pacto permitiria aos nazistas levar ao
Ocidente uma guerra que haveria de desgastar fatal e formidavelmente tan-
to a Wehrmacht como os seus inimigos. Não tínhamos então nós os ino-
centes socialistas ouvido falar numa coisa chamada "política realista"? Não
sabíamos também que o fim justifica os meios? Por que então, ó vestais
cor-de-rosa do liberalismo, torcíeis os vossos sensíveis narizes ante o pacto
germano-soviético?
Seja como for, essa desilusão com a Rússia — que naquele ano de
1939 afastou do comunismo tantos intelectuais através do mundo inteiro
— havia de refletir-se também em Saga, levando seu autor a perder o senso
de perspectiva histórica ao focar a guerra civil espanhola.
Mas não serão de natureza apenas política os erros e deformações
deste romance. Literária e artisticamente muitas são também as restrições
que hoje faço a Saga.
O livro me evoca um símile: esses vinhos feitos sem uva, apenas com
essências, anilinas e habilidade técnica. No que diz respeito ao romance,
aquilo a que chamo uva é o tema legítimo, a história que o autor tenha pe-
lo menos sentido, senão propriamente vivido. Ora, isso não aconteceu com
as aventuras de Vasco na Espanha.
Em princípios de 1940 senti que tinha de escrever mais um livro, não
porque algum tema particular ou alguma personagem me estivesse induzin-
do a isso, e sim porque os leitores me escreviam pedindo mais um romance
e porque, finalmente, sendo eu um escritor profissional, não podia nem de-
via permanecer por muito tempo inativo.
Por aquela época um brasileiro, ex-combatente da Brigada Interna-
cional antifranquista, me havia oferecido seu diário de guerra, sugerindo-
me que eu o aproveitasse num romance da maneira que achasse mais con-
veniente.
Por que não mandar Vasco lutar na Espanha ao lado dos legalistas? O
temperamento do primo de Clarissa, revelado através de livros como Músi-
ca ao Longe e Um Lugar ao Sol, tornava verossímil esse gesto.
Não hesitei. Tomei dos papéis do ex-combatente e tirei deles uma
série de anotações de ordem geográfica e referentes ao movimento de tro-
pas e ainda um punhado de outras descritivas da vida nas aldeias espanho-
las e nas frentes de batalha.
Decidi que o livro seria narrado por Vasco na primeira pessoa. Co-
mecei a escrever, mas com tanto gosto e facilidade, que o contador de his-
tórias que há em mim, isto é, o puro ficcionista que se compraz na narrati-
va de episódios, anedotas, incidentes, entrou como que num grande feriado
da imaginação, perdendo por vezes o contato com o mundo das probabili-
dades e até mesmo o cenário dramático onde se travava uma das guerras
mais absurdas e cruéis de nosso tempo. Pois esse ficcionista não hesitou em
criar uma galeria arbitrária ao sabor de sua veia inventiva e das conveniên-
cias imediatas da narrativa, e o resultado disso foram personagens falsas e
estereotipadas como Paul Green, Sebastian Brown e tantas outras, que pa-
recem saídas dum mau filme de Hollywood.
Nada disso, porém, invalida totalmente o livro — e isso eu afirmo
com a mesma sinceridade com que nestes prefácios tenho feito tão sérias
restrições aos meus romances. Saga está escrito com fluência e contém pá-
ginas e capítulos inteiros que se salvam como prosa.
Não terminei, porém, de desfiar o rosário de imperfeições desta obra.
Quando Vasco — interpretando o sentido da guerra civil espanhola tão er-
roneamente quanto o autor — resolve abandonar a Brigada Internacional
para voltar ao Brasil, eu me vi numa situação difícil. Tinha escrito a primei-
ra metade do livro e na segunda não sabia que destino dar ao herói
Faço Vasco casar-se com Clarissa e atiro-o depois numa outra espécie
de luta. Aparecem nessa segunda metade do romance personagens de histó-
rias anteriores. De todos os "enxertos", o que me parece mais desajeitado,
rebuscado e inútil é o de Eugênio Fontes, cujo drama — narrado por exten-
so em Olhai os Lírios do Campo — foi resumido em Saga sem nenhum be-
nefício para esta história nem para a original
Parecem-me, entretanto, bastante expressivas as cenas da vida peque-
no-burguesa narradas na terceira parte deste volume, e o diário de Vasco
oferece aqui e ali uma página que me parece boa como idéia ou como for-
ma.
Quando o meu desinquieto herói, cansado e enojado da sociedade
em que vivia, resolve voltar para a terra, estabelecendo-se como agricultor
no vale de Águas Claras (também pura invenção do autor) - o que eu fa-
zia nada mais era que passar procuração a essa personagem para que ela fi-
zesse tudo quanto eu então desejava mas não podia realizar, por uma cen-
tena de razões, umas boas e outras (vejo-o agora) inexistentes. É que eu es-
tava saturado da hipocrisia do mundo burguês e ao mesmo tempo desnor-
teado ante o cinismo stalinista. Repugnavam-me também as tendências cla-
ramente direitistas de membros de nosso próprio Governo, a par da indife-
rença de tantos de nossos homens de letras. Havia também razões de or-
dem mais pessoal como a surmenage e, finalmente, um certo cansaço físi-
co. Tudo isso me levava a desejar as frescas verduras e a paz bucólica da-
quele vale imaginário. E como é sempre mais fácil movimentar uma perso-
nagem de ficção do que uma pessoa de carne e osso — mandei Vasco para
Águas Claras, sem levar em conta duas coisas capitais. A primeira é que es-
sa fuga não era solução para o problema. A segunda é que nada seria mais
contrário ao temperamento turbulento e nômade de Vasco do que a vida
de agricultor. Como poderia ser feliz nos limites duns poucos hectares de
terra quem vivia sonhando com as larguezas dos cinco continentes e dos
sete mares?
Houve, no entanto, muita gente que gostou e ainda gosta de Saga.
Os comunistas o detestam. Os franquistas o abominam. Quanto a mim,
só sei dizer que mais de uma vez, ao fazer a enumeração verbal ou escrita
de minhas obras, surpreendi-me a omitir inconscientemente Saga.
Antes de terminar este prefácio, tão cheio de confissões constran-
gedoras, devo dizer que de todos os livros que formam a presente coleção,
Saga foi o único que não reli. Vai ele aqui tal como apareceu naquele dra-
mático e histórico ano de mil novecentos e quarenta.

ERICO VERÍSSIMO,
1966
SAGA: Um Testemunho Humanista

Ensaio Introdutório de
Flávio Loureiro Chaves
SAGA: UM T E S T E M U N H O HUMANISTA

Flávio Loureiro Chaves

Até a publicação de Saga, em 1940, a ficção de Erico


Veríssimo sempre abordou o cenário rio-grandense, fazendo
u m a anotação bastante precisa dos hábitos, tradições, tipos e
da própria história da província n u m determinado período.
Clarissa ( 1 9 3 3 ) , Caminhos cruzados ( 1 9 3 4 ) , Um lugar ao sol
( 1 9 3 6 ) e Olhai os lírios do campo ( 1 9 3 8 ) constituíram u m a
sondagem do contexto urbano de Porto Alegre, desenvolvendo
o painel da classe média em processo de ascensão na m a r é
das transformações políticas sofridas pela vida brasileira du-
rante esta década. Por outro lado, a temática de Música ao
longe ( 1 9 3 5 ) levantou um outro problema que, mais tarde,
iria assumir importantes desdobramentos até fixar-se como
u m a característica da sua obra quando vista n u m plano geral:
a decadência do patriarcado rural cujo lugar passa a ser ocupa-
do por imigrantes alheios à antiga tradição feudal.
A análise do contexto social, implicando tanto a crítica
à falência da aristocracia agrária como a aversão ao compor-
tamento burguês, é a origem da atitude h u m a n i s t a de Erico
Veríssimo cuja formação pode ser detectada em qualquer um
destes romances iniciais. A ficção traça u m a representação
direta da vida coletiva, as personagens são caracterizadas no
confronto com o seu meio e algumas linhas mestras já se
fazem constantes, indiciando o engajamento do narrador. A
saber: o desprezo pela tirania econômica e política, a conde-
nação da violência, a tendência para a reflexão histórica me-
diante a oposição entre o presente e o passado e, finalmente,
a opção pelo romance realista. Tudo isto pode ser agrupado
em torno a um problema central que passa a ser esquadri-
n h a d o sob múltiplas perspectivas — a privação da liberdade.
Seja no cenário do grande conglomerado urbano, seja na pe-
quena vila de Jacarecanga, aí reside invariavelmente a fonte
dos dramas individuais e é sob esse ângulo que se estabelece
o foco ideológico do discurso literário.
Embora a m p a r a d a na autonomia dos seres imaginários,
em sua força de convicção psicológica, a ficção n ã o deixa de
explicitar u m a referência direta à realidade, i m p u g n a n d o o
FLÁVIO LOUREIRO CHAVES

momento presente para empenhar-se na sua modificação. Aí


se localiza, talvez, o motivo pelo qual grande parte da crítica
negou sua adesão ao escritor que já então se declarava um
simples contador de histórias. O método realista adotado pa-
receria às vezes u m a transcrição demasiado simplista do real,
suas personagens excessivamente banais, os temas porventura
episódicos ou carentes de "universalidade". Ocorre, no entanto,
que justamente aí está a razão da extraordinária comunicabi-
lidade que se criou entre Erico Veríssimo e o público: isento
de formalismo, vinculando as existências individuais ao dra-
ma coletivo, o romance apresenta-se simultaneamente como
revelação e denúncia. A verossimilhança de Clarissa e Vasco,
F e r n a n d a e Noel, Eugênio e Olívia inclui a imagem nítida e
facilmente reconhecível da pequena classe média que quer ga-
rantir um lugar ao sol.
Nos romances que mencionei também estão presentes os
velhos caudilhos, bem como os novos capitalistas e políticos
republicanos. Os primeiros são os líderes d u m a elite provincial
que, embora atravessando o seu momento de crise em 1930,
ainda detém u m a parcela do poder. Os outros representam
u m a classe emergente que, não sendo propriamente o poder,
nasce e vegeta à sombra do poder, colhendo os seus benefí-
cios. Mas o centro da ação n a r r a d a em Caminhos cruzados ou
Olhai os lírios do campo é ocupado por estas personagens que
apenas lutam pela sobrevivência e, em geral, são sacrificadas
n u m a engrenagem cujo controle não lhes pertence. Ancorada
no tema da privação de liberdade, retratando o inútil sacrifí-
cio do indivíduo, a literatura de Erico Veríssimo assume a
consciência da pequena burguesia brasileira, dimensionando-a
pela primeira vez n u m a perspectiva histórica.
É certo que todo o romance produzido nesta época foi ro-
m a n c e social: o regionalismo de José Américo, a nostalgia re-
acionária de José Lins do Rego, a reflexão pascaliana de Octá-
vio de Faria, a reivindicação proletária de Jorge Amado e Dio-
nélio Machado. Entretanto somente nos livros que Erico Verís-
simo publicou entre 1932 e 1949 ( a n o em que aparece O
continente, inaugurando um novo ciclo), a burguesia urbana
torna-se núcleo da indagação, obtendo a voz de sua consciên-
cia na denúncia das injustiças sociais do presente ou na ar-
guição da seqüência de tiranias que formaram o passado do
Brasil meridional.
É este passado que vem à tona n u m a determinada se-
qüência de Saga através das reflexões de Vasco quando, ao re-
SAGA: Um Testemunho humanista.

gressar da Espanha, encontra-se detido na delegacia da sua


cidade:

Lembro-me de Jacarecanga, a pequena cidade onde pas-


sei a maior parte de m i n h a vida. No edifício da Intendên-
cia Municipal havia um retrato e um busto como os que
vejo hoje aqui. Eu os associava sempre aos h o m e n s e às
coisas da torva política local. O General Campolargo, de-
golador e despótico. . . Capangas mal-encarados, de bom-
bachas e chapelões de abas l a r g a s . . . Eleições. . . Tiro-
teios nas noites silenciosas. . . Cadáveres no barro da
r u a . . . Enterros graves e misteriosos. . . Manifestações
com foguetes, bandas de música, discursos e vivas. . . Os
longos invernos de revolução. . . Lenços verdes, lenços
vermelhos. . . Bravatas. . . L e n d a s . . . Ódios. . . Silveira
Martins, Júlio de Castilhos. . . F r a s e s . . . Idéias n ã o são
metais que se f u n d e m . . . Inimigo não se poupa. . . Mi-
n u a n o . . . Revolução. . . Rio G r a n d e . . .

Esta passagem recorda a primeira parte de Um lugar ao


sol que inicia precisamente n u m assassinato político na sar-
jeta de Jacarecanga onde é sacrificado o pai de Clarissa a m a n -
do dos poderosos do dia. Diante da violência desenfreada, ela
e Vasco abandonam a cidade e vão tentar a sobrevivência na
capital. No entanto, a tirania do caudilhismo apenas é substi-
tuída pela tirania dos desníveis classiais que dominam o con-
texto urbano. A investigação de Erico Veríssimo busca indagar
precisamente a ligação existente entre as duas situações e,
neste esforço, surge a consideração da História propondo u m a
visão do indivíduo como herdeiro necessário do passado que
lhe é imposto. Nas páginas de Saga aparece o Coronel Jango
Jorge, antigo déspota municipal, transformado em caricatura
folclórica capaz de despertar o riso com a narrativa dos des-
m a n d o s cometidos em seus momentos de glória. Vasco observa
que este homem "é bem o símbolo de um m o m e n t o que pas-
sou"; m a s , logo, outra personagem corrige-O:

Passou. . . m a s continua de certo modo. ( . . . ) Conhece


o filho do Jango Jorge? Pois é advogado. Usa na advoca-
cia dos mesmos métodos que o pai usava na política. O
caudilho era u m a espécie de gángster, e gángster é tam-
bém o Dr. Miguel Jorge. Emprega a fraude, a coação, o
suborno. Vive de golpes de audácia e negociatas. Tem
FLÁVIO LOUREIRO CHAVES

u m a organização muito bem feita, u m a espécie de sin-


dicato da patifaria: n a d a lhe escapa.

Mudado o cenário físico, na transição do interior provin-


ciano para a cidade, não obstante o Rio Grande permanece
o mesmo. E a reflexão é levada a nível mais profundo n u m
episódio aparentemente secundário, quando ocorre um crime
passional envolvendo a família de Fernanda, e Vasco termina
por concluir que, no fundo, o motivo da farsa acabar em tra-
gédia reside na tradição machista do gaúcho — "um código
primitivo em torno do qual poetas e escritores têm feito poe-
m a s e romances, e dito palavras de exaltação. Como se mas-
culinidade dependesse apenas dessa coragem animal de dar
ou receber tiros".
A posição h u m a n i s t a de Erico Veríssimo deve ser com-
preendida portanto à luz desse reconhecimento crítico da rea-
lidade que vem a ser, em última instância, a determinante de
muitas das atitudes individuais tomadas pelas personagens. O
combate à violência se faz, na sua obra, um tema itinerante
desde Música ao longe até O prisioneiro; a discussão do pro-
blema da liberdade é o núcleo das experiências de Tônio San-
tiago em O resto é silêncio, de Floriano Cambará n ' 0 arquipé-
lago, de Pablo Ortega em O senhor embaixador. Por outro lado,
a revisão da história rio-grandense, apenas insinuada no 'back
ground" dos romances iniciais, assume u m a importância cres-
cente nas preocupações do escritor até resultar no plano global
de O tempo e o vento.
Todos estes elementos são indispensáveis quando se pre-
tende alcançar o verdadeiro significado da experiência de Saga
e a posição que este livro de 1940 ocupa no contexto da obra
de Erico Veríssimo. N u m certo sentido a narrativa é a reto-
m a d a de personagens e temas propostos nos romances ante-
riores que se encontram aqui reunidos, levando o autor a in-
cluir no desenvolvimento da ação pequenos resumos da trama
de Caminhos cruzados, Um lugar ao sol e Olhai os lírios do
campo. Ora, o ponto de convergência desta síntese está na
experiência de Vasco e nela se dá continuidade à investigação
sobre a busca da liberdade individual, deslocada do espaço
gaúcho para a guerra civil espanhola na qual ele se compro-
mete como soldado voluntário do exército republicano. As pá-
ginas iniciais deixam claramente registrada a motivação de
sua atitude:
SAGA: Um Testemunho Humanista

Atravessei o oceano para vir ao encontro justamente das


coisas que mais odeio. Não posso culpar ninguém do que
me aconteceu. Quando eu vivia no Brasil a m i n h a vida
de sonhos insatisfeitos, comparava-me ao peru que, se-
gundo se diz, metido no centro dum círculo traçado a
giz no chão, se julga irremediavelmente prisioneiro dele.
Um dia achei que devia correr para a liberdade, saltando
o risco de giz. Cortei as a m a r r a s que me prendiam a todas
as convenções sociais e a esse m a n s o comodismo dos há-
bitos. Dei o salto. . .

A problemática instaurada é, portanto, típica do romance


realista e do individualismo burguês — no confronto do ho-
m e m com a sua sociedade nasce o gesto de rebelião em que
está cifrada a busca da liberdade. Em Saga esta questão —
até aqui considerada quase sempre na órbita particular e res-
trita do cenário rio-grandense — amplia-se sob a forma d u m a
discussão ideológica. A guerra espanhola permite a aborda-
gem do fascismo e do comunismo, transferindo-se a análise
das manifestações da violência para u m a arguição do sistema
totalitário que, em 1940, parecia destinado a predominar no
m u n d o contemporâneo. Na verdade coloca-se em dúvida a
própria possibilidade de pular para fora do círculo de giz uma
vez que neste espaço corrompido e devastado a possibilidade
de ação já não pertence mais ao indivíduo, apenas u m a peça
da engrenagem que parece alimentar-se de si mesma.
Embora seja um livro político, dada a conjuntura ime-
diata em que foi escrito, Saga não define u m a escolha política
(e muito menos u m a adesão partidária) do seu autor. Ao con-
trário, sua preocupação é traduzir as perplexidades e o amargo
ceticismo diante dum m u n d o fragmentado por cisões insaná-
veis onde não parece haver grandes chances para a esperança
de Vasco de que "quando esta guerra terminar haverá na terra
pelo menos um homem novo".
O dilema de Erico Veríssimo neste romance é caracte-
rístico da encruzilhada em que se encontrou a "inteligência"
liberal ao anunciar-se a falência dos regimes democráticos
nos anos que antecederam a segunda grande guerra mundial.
A imposição do totalitarismo encerrava um período histórico,
relegando o heroísmo pessoal, a livre iniciativa, a capacidade
de transformação pacífica do mecanismo social a um plano
ultrapassado. A adivinhação do m u n d o futuro transparece, en-
tão, no ceticismo de algumas passagens que traduzem o desen-
FLÁVIO LOUREIRO CHAVES

canto do narrador projetado na experiência da personagem.


Note-se que, pela primeira vez, Erico Veríssimo tentou aqui
a
o discurso na l . pessoa, acentuando assim a identidade entre
o seu p e n s a m e n t o e as palavras de Vasco. N u m diálogo da
primeira parte ele interroga o Dr. Martin em meio a u m a dis-
cussão sobre o sentido daquela guerra na qual todos estão im-
plicados, recebendo a seguinte resposta: — "O homem nem
sempre é mau. A humanidade quase sempre o é." Não está
muito distante daí a conclusão do próprio Vasco, ao assumir
a consciência da inutilidade de sua presença n u m conflito cujo
destino não será m u d a d o pela sua atuação, n e m pelo sacrifício
de todos os que caíram antes dele:

. . . a vida não passa d u m a série numerosa de círculos


de giz concêntricos. A gente salta por cima de um apenas
para verificar depois que está prisioneiro de outro e as-
sim por diante. É a condição h u m a n a .

O h u m a n i s m o de Erico Veríssimo evolui assim da crítica


social já explícita na t r a m a de Caminhos cruzados e da sua
profunda adesão aos seres injustiçados para esta dimensão
ideológica de Saga, que culmina na rejeição ao totalitarismo
m a s , simultaneamente, no ceticismo diante da condição huma-
na. Este d r a m a é, aliás, patrimônio de quase todo o romance
produzido no período que tem por eixo o ano de 1945, esprai-
ando a ficção ocidental n a s mais variadas direções — do.
existencialismo sartriano à filosofia do absurdo em Albert Ca-
mus, do realismo épico de Malraux e Hemingway à crise da
linguagem em Virgínia Woolf e William Faulkner. No caso
de Erico Veríssimo, a constatação da crise levou-o a u m a pro-
funda reflexão sobre o sentido da literatura e a responsabili-
dade social do escritor. Não sendo o compromisso partidário
u m a solução viável, restando apenas a interrogação sobre o
homem na expectativa do a m a n h ã , o romancista conta a sua
história, re-escreve o m u n d o subvertido, n a r r a a sua corrup-
ção, denunciando a realidade mediante a criação imaginária
a fim de recompor a primitiva naturalidade do h u m a n o .
Não se deve esquecer que Saga é um livro narrado pelo
próprio Vasco que, diante do fracasso do heroísmo, quer alcan-
çar novamente a medida da simplicidade e integra o relato da
sua experiência neste esforço de comunicação. Ele próprio reco-
nhece a certa altura que toda palavra escrita é "um reflexo
da realidade" podendo tornar-se "um modo parcial de ver as
SAGA: Um Testemunho Humanista

coisas". Nem por isso abandona o seu objetivo incessantemen-


te perseguido desde as páginas de Um lugar ao sol: "quero
deixar traçada aqui a vacilante trajetória duma alma em bus-
ca de rumo". Creio que aí está precisamente a medida da gran-
deza de Saga e a sua importância no itinerário de Erico Verís-
simo. Trata-se do depoimento dum h u m a n i s t a assaltado por
perplexidades e dúvidas no momento em que o h u m a n i s m o ,
herança duma cultura liberal e democrática, atravessou a sua
pior crise. A literatura apresenta-se então como o território
onde as personagens de ficção podem impugnar a realidade,
preenchendo a sua insuficiência.
As experiências posteriores à publicação de Saga são pro-
jeções deste conceito do fazer literário e nelas a problemática
sugerida irá atingir seus níveis mais profundos: O resto é
silêncio ( 1 9 4 3 ) e O tempo e o vento (iniciado em 1949, com
a edição de O continente). No primeiro caso, o próprio escri-
tor transforma-se em personagem central da ação para incluir
na estrutura da narrativa o debate sobre as relações entre a
literatura e a vida, o universo imaginário que ilumina e revela
ò universo existente. Em O tempo e o vento, sob a aparente
crônica da Província de São Pedro, a própria História vem a
ser indagada na dialética entre o passado e o presente, nas-
cendo daí a serena compreensão da sua continuidade, asse-
gurada pela resistência das Ana Terra, das Bibiana e pelo
firme depoimento do escritor Floriano Cambará, em que pese
o instinto destrutivo dos guerreiros e dos tiranos.
Erico Verissimo considerava Saga um livro imperfeito,
principalmente quanto à solução final — porventura exces-
sivamente romântica para um livro cerradamente realista e
empenhado na denúncia do m u n d o burguês. Ao publicar Solo
de clarineta, em 1973 — mais de trinta anos depois, portanto
— declarou estar certo de que "Vasco Bruno abandonou a vi-
da do campo e voltou à luta, na cidade, em prol dum m u n d o
melhor e mais justo". No entanto, isto não altera — ao con-
trário, talvez confirme — a dignidade de Saga como o verda-
deiro e sincero depoimento da "vacilante trajetória em busca
de rumo". Este romance está a meio caminho da denúncia
social de Caminhos cruzados e da reflexão histórica de O tem-
po e o vento; constitui a definição do h u m a n i s m o de Erico
Verissimo amadurecido na observação da sua província e na
repulsa à violência da nossa época.
SAGA
1

O C I R C U L O DE GIZ
1
O h o m e m me p e d e f o g o . E r g o p a r a ele o i s q u e i r o a c e s o e
noto contrariado que m i n h a m ã o t r e m e um pouco. Seus
olhos cor de zinco se fixam nos meus dedos.
— Nervoso?
S a c u d o a c a b e ç a n e g a t i v a m e n t e , o d i a n d o - o c o m o se p o d e
odiar a pessoa que nos descobre o segredo que mais queremos
ocultar.
É verdade que meus nervos estão retesados. Mas não é
m e d o , n ã o . A p e n a s a â n s i a de e x p e c t a t i v a , o d e s e j o de q u e
esta espera acabe. Quero me atordoar na ação. Preciso apa-
g a r as doces e a m o l e n t a d o r a s visões da saudade, e s p a n t a r os
f a n t a s m a s f a m i l i a r e s , e s q u e c e r o s m o r n o s h á b i t o s d o con-
f o r t o — t u d o q u a n t o ficou p a r a t r á s . E s t o u t e n t a n d o p a s s a r
na memória u m a esponja embebida em vinagre. A vida é um
g r a n d e jogo e o destino, um parceiro temível que só aceita
grandes p a r a d a s . E s t á bem. P o n h o na mesa todos os m e u s
sonhos. N ã o b a s t a ? J o g o então a vida. Do outro lado daque-
l a s m o n t a n h a s f i c a m a E s p a n h a e a g u e r r a . C a m i n h o ao en-
contro de novas sensações. Ou da morte. Que i m p o r t a ? A
m o r t e t a m b é m é u m a aventura, a definitiva, a irremediável.
M a s o e s s e n c i a l é q u e a c o n t e ç a a l g u m a coisa.
O homem que se acha na minha frente está encarregado
de nos fazer p a s s a r a fronteira. Ê um tipo de e s t a t u r a me-
d i a n a e d e v e t e r p e r t o d e c i n q ü e n t a a n o s . A pele d o r o s t o
d e s c a r n a d o e o b l o n g o , d u m m o r e n o lívido, l h e cai e m p r e g a s
flácidas e melancólicas que l e m b r a m o focinho d u m perdi-
gueiro. Vejo na sua fisionomia desagradável a expressão de
permanente e mal-humorada vigilância que t ê m os cães dessa
raça.
Chama-se Rodriguez e é capitão das forças governistas
espanholas. T r a t a os o u t r o s voluntários com u m a afabilidade
que vai a t é onde lhe permite a m á s c a r a canina. Anima-os
com p a l a v r a s de entusiasmo em t o r n o da nobre missão dos
"internacionáles", f a l a - l h e s em v i t ó r i a e no a d v e n t o de um
4 ERICO V E R Í S S I M O

mundo melhor. Não sei por que não simpatizou comigo. Há


coisas inexplicáveis que nos fazem pensar em vidas passadas.
Talvez esta mútua repulsa não tenha surgido agora à primei-
ra vista, mas venha de muito longe, sombra de algum mundo
perdido. Tolice! A verdade pura e simples é que este tipo não
simpatiza comigo nem eu com ele.
— Gracias — diz com voz rouca, atirando-me no rosto
uma baforada de fumo.
Apago o isqueiro e meto-o no bolso. Estamos na área
dum pequeno café de Cerbère, povoação francesa dos Pireneus
Orientais. Somos um estranho bando. Vinte e poucos homens
de nacionalidades diversas que se destinam à Brigada Inter-
nacional.
Faço menção de me afastar, mas Rodriguez me detém
com uma p e r g u n t a :
— O seu nome?
— Vasco Bruno.
— Nacionalidade?
— Brasileiro.
— Idade?
— Vinte e seis anos.
P a r a encurtar o interrogatório entrego-lhe com maus
modos o passaporte, que ele examina superficialmente e de-
pois me devolve.
— Guarde isso. Vão todos passar como espanhóis repa-
triados pelo governo republicano. As coisas estão arranja-
das. Portanto é bom ficar de boca fechada.
Meus companheiros fumam, bebem e conversam ao redor
das mesas. Os castanheiros lançam sombras móveis no chão,
agitados pela brisa que vem do mar. Alguém canta uma
canção saltitante numa língua que não consigo identificar.
Polaco? Russo? H ú n g a r o ?
O perdigueiro me examina da cabeça aos pés.
— Idealista, não? — ladra ele de repente, arreganhando
os dentes amarelos e graúdos.
Sou tomado de súbito acanhamento. Não sei que respon-
der. Limito-me a dar de ombros. O ar entre desdenhoso e
autoritário de meu interlocutor me irrita. Viro-lhe as costas
sem dizer palavra e vou apanhar o saco de roupas.
Dirigimo-nos para a estação de Cerbère. O sol doura a
encosta dos Pireneus, onde escureçam as sombras des anfra-
ctuosidades. Fico a pensar em que tintas teria eu de m i s t u r a r
para obter o azul fluido e fresco daquelas manchas.
SAGA 5

A meu lado caminha um jovem chileno que não cessa de


falar. Chama-se Carlos Garcia, adora Cervantes e parece
saber de cor quase todo o "Dom Quixote". Quando lhe per-
gunto por que vai lutar na Espanha, responde com sua voz
oleosa, de modulações musicais:
— Você sabe amigo, que esta é uma época utilitária.
Não há mais cavaleiros andantes. Sou filho de um homem
que enriqueceu à custa desses pássaros que há milhares de
anos transformaram a costa do Peru em W. C. Negócio de
guano, compreende? Ora, a gente fica cansada de ver excre-
mento, de pensar em excremento, de viver de excremento.
De vez em quando é preciso ressuscitar Dom Quixote para
novas andanças, não é mesmo?
Sacudo a cabeça e sorrio, achando a explicação mais
pitoresca que convincente. Olho de soslaio para Garcia. O
rapaz tem cabelos pretos e lisos, uma larga cara trigueira
onde vislumbro traços de algum longínquo antepassado arau-
cano. Creio que vamos ser bons camaradas.

Estação de Cerbère. Seis horas da tarde. Esperamos o


trem de Perpignan que nos levará a Portbou, já em t e r r a s
da Espanha. A pequena plataforma está apinhada de gente.
Vejo mulheres e crianças sentadas no chão ou deitadas nos
bancos. São fugitivos de I r u n e San Sebastian, criaturas ma-
gras, pálidas e apalermadas, que trazem no rosto a marca da
guerra. Algumas sobraçam os grandes pães que lhes deram
os campônios francesss. Muitas delas estão de luto. A pou-
cos passos de onde me encontro, sentada num baú de folha,
uma mulher escaveirada, de olhos muito negros, apsrta con-
t r a o peito a filha de dois anos, cujo rosto está todo cheio
de feridas inflamadas. As moscas voejam em torno da pobre
cabecinha e a mulher procura espantá-las com a mão magra,
num desânimo. A criança choraminga.
Os guardas-móveis franceses caminham por entre a multi-
dão. Um deles se aproxima de mim e pergunta à queima-roupa:
— Donde nació usted?
— Em Málaga — respondo sem pestanejar.
Não sei por que me ocorreu tão depressa o nome dessa
cidade. Lembro-me de que no Brasil, quando menino, eu co-
mia gostosas passas de figo fabricadas em Málaga.
O guarda sacode a cabeça, sorrindo, e me deixa em paz.
Agora é a vez do sueco louro e silencioso que de braços
6 ERICO VERÍSSIMO

c r u z a d o s f u m a o s e u c a c h i m b o . C h a m a - s e Á x e l n ã o sei d e
q u e , e d e s d e q u e n o s e n c o n t r a m o s n ã o lhe o u v i m a i s d e m e i a
d ú z i a d e p a l a v r a s . É u m belo t i p o d e h o m e m . T e r á q u a n d o
m u i t o vinte e cinco anos e fala um francês h o r r e n d o .
O g u a r d a p l a n t a - s e - l h e na f r e n t e e p e r g u n t a :
— Y u s t e d , a m i g o , de d o n d e v i e n e ?
O s u e c o c o m e ç a a o l h a r d u m l a d o p a r a o u t r o , n u m si-
lêncio a t a r a n t a d o . O o u t r o r e p e t e a p e r g u n t a e Á x e l se l i m i t a
a s a c u d i r a c a b e ç a d e v a g a r i n h o , p o n d o à m o s t r a os d e n t e s
m u i t o brancos e a p o n t a n d o ao m e s m o tempo p a r a o nosso
g u i a com a h a s t e do cachimbo. Rodriguez fuma t r a n q ü i l o o
seu c i g a r r o e não lhe noto no rosto a m e n o r s o m b r a de
emoção. Os guardas-móveis sabem de tudo e vão nos deixar
p a s s a r : o que estão fazendo é p u r a brincadeira. O embaraço
d e Á x e l , p o r é m , a u m e n t a e e s s e h o m e m g r a n d a l h ã o ali e s t á
a p a s s e a r em t o r n o os olhos azuis de menino, a pedir um
s o c o r r o q u e n i n g u é m lhe p o d e p r e s t a r . O g u a r d a o c o n t e m p l a
com ar divertido e ao cabo de alguns s t g u n d o s cantarola,
sorridente:
— Tout va três bien, madame la marquise... Allez!
Risadas.
F a z c a l o r . O sol d e c l i n a e a s o m b r a d o s P i r e n s u s a v a n ç a
na nossa direção. A demora do t r e m nos deixa impacientes.
Meus companheiros conversam como podem: gestos, frases
soltas em francês, inglês e espanhol, sinais de cabeça, sor-
risos, movimentos de o m b r o s . .. Carlos Garcia me conta pas-
s a g e n s d e s u a v i d a n o Chile. N ã o c o n s i g o a c h a r i n t e r e s s e n a
n a r r a t i v a . Meu espírito já se encontra do o u t r o lado das
m o n t a n h a s . A ansiedade chega a me d a r ao corpo um ador-
mecimento de febre.
Ouço gritos. Volto-me brusco. Vejo u m a das refugiadas
a gesticular diante dum grupo de voluntários. E s t á agitada,
a e s p u m a lhe b r o t a d o s l á b i o s d e s c o r a d o s , o s o l h o s lhe s a l -
t a m das órbitas. A t i r a os braços p a r a o ar e exclama, cus-
pinhando :
— Ustedes estan locos, locos, locos!
O s g u a r d a s c o r r e m p a r a ela e a m u i t o c u s t o c o n s e g u e m
a c a l m á - l a . F a z - s e u m silêncio p r e s s a g o . M a s a voz d o l o r i d a
c o n t i n u a a e c o a r . d e n t r o de m i m . Estan locos, locos! Sim,
e s t a m o s t o d o s loucos. O m u n d o i n t e i r o é u m v a s t o h o s p í c i o .
O bom-senso desapareceu da t e r r a . Os homens se estraça-
lham. É a guerra.
L e m b r o - m e dos m e u s velhos sonhos pacifistas e há um
SAGA 7

confuso m o m e n t o em que me é custoso convencer de que


estou prestes a pegar em armas para matar. E m a t a r quem?
H o m e n s que nem sequer conheço. P o r que m o t i v o ? P o r u m a
n e v o e n t a r a z ã o q u e n e m a m i m m e s m o a g o r a c o n s i g o expli-
c a r . J á d i s s e q u e t e n h o d e e s q u e c e r t u d o q u a n t o deixei p a r a
t r á s : confortos familiares, amigos e ilusões. Repito interior-
m e n t e : vou l u t a r do lado de um povo b a r b a r a m e n t e agre-
dido. E i s a fórmula que eu procurava. Sou um idealista.
E s t r s n h a palavra e s t a . . . branca e remota como a neve que
coroa aqueles cimos. Seja como for, o principal é n ã o p e n s a r .
Avisto daqui a a l g u m a s centenas de m e t r o s o túnel de P o r t -
b o u . P a r a a l é m dele, a E s p a n h a . O c o m e ç o d e u m a v i d a n o v a .
Mas quando c h e g a r á esse maldito t r e m ?
Ponho-me a caminhar d u m lado para outro na plata-
forma. As refugiadas me olham com expressão enigmática.
P e n a ? Odio? Talvez nem me enxerguem. E s t ã o decerto a
pensar na pátria, nos que ficaram, nos que t o m b a r a m . .. Ou
então esses olhos vazios de visão refletem apenas a atonia
do sofrimento.
F i n a l m e n t e se ouve um apito. Alvoroço na estação. Sur-
ge o perdigueiro, com as o r e l h a s em pé, como se tivesse fa-
rejado caça. O t r e m pára, j u n t o da plataforma. N u m dos
vagões vejo pequeno g r u p o de voluntários que a s s o m a m às
janelas. Alguns mostram-se alegres, gesticulam e gritam. Em
muitos rostos julgo ver a sombra da apreensão. Há também
caras neutras e impenetráveis. Dois italianos cantam u m a
canção guerreira que mais t a r d e venho a saber que se chama
"Bandiera Rossa".
Garcia m u r m u r a :
— Pensam que vão p a r a algum piquenique.
Mandam-nos embarcar. No v a g ã o onde e n t r o com o chi-
leno e o s u e c o , s o m o s r e c e b i d o s c o m e f u s õ e s de s i m p a t i a .
Um italiano muito vermelho se precipita ao meu encontro
e n u m e n t u s i a s m o t o r r e n c i a l e viscoso me p r e g a dois beijos
nas faces.
O t r e m se põe em movimento. Atiro-me n u m banco. A
e s t a ç ã o d e C e r b è r e v a i f i c a n d o p a r a t r á s . . . P e r c o r r o a s ca-
ras com o olhar. Cada u m a delas me pode contar a sua his-
t ó r i a . N ã o f o s s e a c a n s e i r a , a e x c i t a ç ã o , eu p r o c u r a r i a d e s -
cobrir o que elas estão dizendo na expressão dos olhos, no
formato do nariz, no desenho da boca. O hábito de d e s e n h a r
c a b e ç a s h u m a n a s m e d e u o g o s t o d a a n á l i s e d o s t r a ç o s fisio-
n ô m i c o s . M a s t e n h o o c o r p o q u e b r a n t a d o de f a d i g a , a c a b e ç a
8 ERICO V E R Í S S I M O

num redemoinho, e só agora descubro que estou com fome.


Cerro os olhos e me deixo levar ao ritmo das rodas. A al-
gazarra ao meu redor não cessa. Palavras de várias línguas
se cruzam e m i s t u r a m no ar. Um espetáculo para os olhos,
uma festa para os ouvidos. Há também uma "festa" inter-
nacional para o olfato. A atmosfera está impregnada do
cheiro de corpos humanos suados. Resmungo alguma coisa
a este respeito a Garcia, que me retruca imediatamente:
— Se você pensa que na Brigada Internacional os legio-
nários cheiram a Coty ou Caron, é melhor ir desde já per-
dendo a ilusão.
Abro os olhos e volto-os para a janela. Anoitece. Con-
tinuamos a avistar montanhas. Têm elas um repousado ar de
eternidade, a serena imponência das coisas antigas. Restos
de luz alaranjada tingem-lhes os cumes nevados.
Um doce fantasma me vem agora assombrar a memória.
C l a r i s s a . . . Tento tibiamente afugentá-lo. Inútil. Lá está ela
sorrindo para mim, com os olhos úmidos de lágrimas, a me
acenar do cais. Foi assim que a vi pela última vez. Saudade.
Moleza brasileira. Que teria sido de mim se ficasse? O ca-
samento, uma vida medíocre, a luta sem glória de todos os
dias à sombra ameaçadora do caderno do armazém. Depois,
o envelhecimento precoce, a amargura, o tédio. E no entan-
to eu sei, eu sinto que amo Clarissa. Mas não devo pensar
mais nisso. P a r a essas doces feridas, uma esponja embebida
em vinagre. E s t á acabado.
E n t r a m o s no túnel, penetramos nas e n t r a n h a s dos Pire-
neus. Diga adeus à França.
Escuridão quase completa aqui dentro. As lâmpadas elé-
tricas estão apagadas. São carros muito danificados; os vi-
dros das janelas se acham partidos, efeitos de bombardeios
aéreos. A noite artificial, porém, dura pouco. O t r e m logo
emerge do outro lado do túnel. Tornamos a ver a luz da
tarde. E é bastante estranho pensar em que este sol já é o
sol da Espanha.
2
PORTBOU. A p o v o a ç ã o foi q u a s e t o d a d e s t r u í d a p e l o s
aviões inimigos vindos da base aérea de Majorca. A esta-
ção se acha m u i t o danificada. U m a b o m b a abriu e n o r m e
r o m b o n a p l a t a f o r m a , f e n d e u u m a d a s p a r e d e s d a c a s a e fez
v o a r o pequeno sino. Q u e m me descreve o b o m b a r d e i o com
a b u n d â n c i a de o n o m a t o p é i a e de g e s t o s , é o p r ó p r i o e s t a c i o -
nário, um sujtitinho baixo e magro, de bigode híspido. En-
quanto revistam as nossas bagagens — precaução que não
p o s s o d e i x a r d e a c h a r r i d í c u l a n e s t a s c i r c u n s t â n c i a s — fico
à e s p e r a d a m i n h a vez. O e s t a c i o n á r i o m e p u x a p e l a m a n g a
da c a m i s a , a p o n t a p a r a a p o v o a ç ã o d e s t r u í d a e c o m e ç a a
f a l a r c o m a n a t u r a l i d a d e e a c o n f i a n ç a de um v e l h o c a m a -
rada.

É curioso: tenho notado que as pessoas em geral sim-


p a t i z a m c o m i g o à p r i m e i r a v i s t a . N o e n t a n t o , sou u m t i p o
arisco e distante. N ã o que eu queira mal aos homens ou que
os t e m a a ponto de p r o c u r a r fugir-lhes ao contato. Alguém
já disse que na m i n h a a t i t u d e p a r a com o m u n d o há m u i t o
de orgulho. Engano. Não tenho atitude nem orgulho. U m a
paisagem bela t e m a força de me comover até as l á g r i m a s
M a s a p a i s a g e m h u m a n a é a q u e m a i s ms i n t e r e s s a . O m i s -
t é r i o d a s a l m a s m e seduz. E s t a v a g a s e n s a ç ã o d e d e s c o n -
fiança que me envolve q u a n d o estou em c o m p a n h i a dos ho-
m e n s vai p o r conta de velhas decepções. Sinto que t e n h o ter-
n u r a suficiente para beijar a testa daquele legionário mulato
que a g o r a e s t á escalando a plataforma. Mas t e m o que se o
cenário de repente m u d a r e vier a luta, um demônio surja
d e n t r o de m i m e eu seja e n t ã o capaz até de u m a crueldade.
C h o r a r e i m a i s t a r d e por causa dela, arrependido, q u a n d o
v o l t a r a c a l m a e o a m o r . S o u um i n s t i n t i v o . D e i x o - m e l e v a r
pelos impulsos. Foi por causa d u m impulso que a t r a v e s s e i
o oceano em terceira classe e vim p a r a r na Catalunha. Her-
dei e s s e t r a ç o d e m e u p a i , u m a v e n t u r e i r o s e m lei. Ê v e r d a d e
10 ERICO VERÍSSIMO

que no sangue de m i n h a m ã e me vieram as qualidades de


equilíbrio e sóbria bondade de m e u avô. Só elas conseguem
d a r a l g u m a e s t a b i l i d a d e a e s t e c o m p l i c a d o edifício i n t e r i o r .
Mas é preciso p r e s t a r atenção ao estacionário que fala
um espanhol p a r a m i m quase ininteligível. Consigo e n t e n d e r
v a g a m e n t e que a noite p a s s a d a v i e r a m aviões italianos e
l a n ç a r a m b o m b a s sobre Portbou. O velho sino da estação
foi p e l o s a r e s b a d a l a n d o " c o m o u m p a s s a r i t o f e r i d o " .
— A m i g o — conclui o m e u i n t e r l o c u t o r , a t i r a n d o p a r a
a n u c a o b o n é v e r m e l h o a g a l o a d o de o u r o , q u e ele a i n d a t r a z
com certo o r g u l h o — eu lhe digo que esse sino e r a como
u m a pessoa de m i n h a família. Tinha um som t ã o b o n i t o . . .
— Sacode a cabeça vagarosamente, suspirando. — Quando
e u b a t i a o s s i n a i s , d l e m - d l e m , e l e p a r e c i a d i z e r "papai,
papai..." F r a n c o m e p a g a r á .
E r g u e p a r a o céu o p u n h o f e c h a d o . E s e m me l a n ç a r o
m a i s breve olhar, sem dizer mais nada, afasta-se de m i m e
vai repetir a outro a sua história.
— E h , b r a s i l e i r o ! — g r i t a G a r c i a , f a z e n d o - m e s i n a l de
l o n g e . — V e n h a cá m o s t r a r a e s t e s s e n h o r e s os p e r f u m e s ,
sabonetes e cigarros que trouxemos da F r a n ç a !
O e x a m e d a s m a l a s e s a c o s de v i a g e m é r á p i d o . S o m o s
t a m b é m obrigados a trocar por pesetas o dinheiro francês
que trazemos.
É quase noite fechada quando nos dirigimos p a r a a ve-
lha casa onde estão alojados os voluntários da B r i g a d a In-
ternacional. Pelo caminho encontramos soldados. Não trazem
u n i f o r m e s . E s t ã o a r m a d o s d e fuzis, p e q u e n a s m e t r a l h a d o r a s
portáteis e fuzis-metralhadoras. Parecem mais bandoleiros,
com suas roupas desiguais, bornais de pano, camisas de man-
gas arregaçadas, pés metidos em alpercatas e boinas ou gor-
ros de dois bicos nas cabeças.
P e l a p r i m e i r a v e z e m t o d a a m i n h a v i d a v e j o u m a ci-
dade bombardeada. Ê indescritível. As casas parecem cria-
t u r a s h u m a n a s mutiladas, com as e n t r a n h a s à mostra. A
p e q u e n a p o p u l a ç ã o s e r e f u g i o u n o t ú n e l q u e fica d o l a d o e s -
panhol, p a r a se abrigar dos bombardeios. Foge assim à ação
das bombas, m a s não consegue escapar a outros perigos e
misérias. A promiscuidade sórdida em que essa gente vive
g e r a t o d a a s o r t e de doenças. O tifo dizima os h a b i t a n t e s
do túnel. Fico a pensar que por causa do avião, u m a expres-
são do progresso, essas c r i a t u r a s são o b r i g a d a s a v o l t a r à
SAGA 11

vida p r i m i t i v a e animalesca d a s cavernas. O diabo queira


entender o m u n d o em que estamos vivendo!
A c o m i d a q u e n o s d ã o é f a r t a : ovos, l e g u m e s e s a r d i -
nhas. Cada homem ganha um canecão de vinho.
— Boa vida! — exclama Garcia.
Um argentino de aspecto tristonho e grossas costeletas
n e g r a s nos explica que e s t a refeição só é possível aqui n a s
proximidades da fronteira francesa, por causa do contraban-
do. E c o m u m s o r r i s o a p a g a d o , a c r e s c e n t a n u m m u r m ú r i o
medroso:
— N a s trincheiras passa-se mal. É melhor aproveitar
agora.
E s t a m o s n u m a g r a n d e sala que em outros tempos deve
t e r s i d o o r e f e i t ó r i o d u m a h o s p e d a r i a ou c o i s a q u e o v a l h a .
Cerca de duzentos voluntários comem, falam, f u m a m e can-
t a m . O s l a m p i õ e s d e q u e r o s e n e e n c h e m a s a l a d e u m a luz
amarelada e frouxa.
— Viva a E s p a n h a republicana! — berra alguém.
Segue-se um clamor prolongado de vivas. Tomo um largo
gole de v i n h o , e s t a l o a l í n g u a e d e p o i s b a t o c o m a c a n e c a
na mesa. Alço os olhos e neste m o m e n t o acontece a l g u m a
coisa c u j a i m p o r t â n c i a s ó m a i s t a r d e é q u e p o s s o a v a l i a r .
N a m i n h a f r e n t e u m n e g r o s o r r i p a r a m i m . P a r e c e u m con-
v i t e à a m i z a d e . É um e s p l ê n d i d o t i p o e s p a d a ú d o , de feições
p u r a s e g r a n d e s o l h o s l í q u i d o s . S u a pele, d u m a t o n a l i d a d e
r e p o u s a n t e e e n x u t a , é d u m belo n e g r o a z u l a d o e fosco. L e m -
bro-me imediatamente do Brasil e quase sem sentir jogo
estas palavras por cima da mesa:
— Como vai?
Ele estende p a r a m i m a m ã o forte e fresca, que eu aper-
to, e s u s s u r r a :
— Sebastian Brown.
Digo-lhe o meu nome. Entabula-se um diálogo n u m a
m i s t u r a de espanhol e inglês. Temos de g r i t a r por causa
do barulho. Garcia me bate nas costas.
— P a r a b é n s ! F a z e s a m i g o s , n ã o ? Q u e m é a B r a n c a de
Neve?
Venho a saber que Sebastian Brown é norte-americano,
da Geórgia. Veio no nosso t r e m e vai seguir t a m b é m ama-
n h ã p a r a F i g u e r a s , onde fica o p r i m e i r o posto da B r i g a d a
Internacional.
T e r m i n a o j a n t a r . E s t a n o i t e e s t a m o s l i v r e s . G a r c i a in-
terpela o argentino das costeletas:
12 ERICO VERÍSSIMO

— Não há mulheres nesta terra, amigo?


O outro faz u m a c a r e t a :
— P e n s a s q u e e s t á s em P a r i s ? É a g u e r r a ! — e x c l a m a .
E s a i p a l i t a n d o os d e n t e s . O c h i l e n o e s v a z i a o s e u ca-
neco de vinho.
— E h , brasileiro! Vamos ver Portbou. Deve haver por
aí a l g u m bordel. — Olha p a r a Brown. — N ã o vens t a m b é m ,
amor?
S a í m o s o s t r ê s . É n o i t e d e l u a c h e i a , m a s o céu e s t á
q u a s e t o d o c o b e r t o d e n u v e n s . Á x e l f u m a s o l i t á r i o o s e u ca-
c h i m b o j u n t o d o p o r t ã o . A o p a s s a r , G a r c i a p u x a - o pelo b r a ç o .
— Vem, Viking do meu coração. Vamos nos emporca-
l h a r um p o u c o . - O o u t r o se d e i x a l e v a r , t r a n s f o r m a n d o a
s u a i n c o m p r e e n s ã o n u m sorriso. — N ã o gosto dessa t u a pu-
reza nórdica. N ó s os mestiços sentimos a vida a q u i . . . —
B a t e no peito com o punho fechado. — N ã o t e m o s medo das
coisas e muito menos das palavras.
P a r a um i n s t a n t e e começa a g r i t a r p a r a a noite toda
a sorte de palavrões. As casas destruídas parecem escutar.
— S a b e s ? — d i z d e p o i s o c h i l e n o a Á x e l , em t o m m a i s
calmo. — A melhor das t u a s s a g a s não vale um capítulo de
Cervantes. O m a i o r dos t e u s heróis não t e m a m e t a d e da
e s t a t u r a moral de Dom Quixote.
Áxel sacode a bela cabeleira loura que o v e n t o do m a r
faz e s v o a ç a r . E eu s i n t o a b e l e z a g r a v e e a b s u r d a d e s t a c e n a .
Um chileno, um sueco, um n e g r o n o r t e - a m e r i c a n o s um b r a -
sileiro a c a m i n h a r n u m a noite de p r i m a v e r a pelas r u a s du-
ma povoação bombardeada da Catalunha.
P o r t r á s d o s P i r e n e u s , feixes d e luz b r a n c a , azul e v e r -
m e l h a s e e n t r e c r u z a m n o céu. S ã o o s h o l o f o t e s d e C e r b è r e
que na sua linguagem luminosa advertem os aviões italianos:
"Cuidado! Não larguem bombas aqui. E s t a s são terras de
França".
Sebastian Brown sacode a cabeça devagarinho.
— P o r t b o u fica à s e s c u r r s p o r c a u s a dos a v i õ e s - - diz
ele. — M a s é i n ú t i l . A q u e l e s h o l o f o t e s d e n u n c i a m a p o v o a -
ção. O s a v i a d o r e s s a b e m q u e b a s t a j o g a r a s b o m b a s a u m
quilômetro e pouco p a r a a esquerda. . .
Á x e l d e t é m - s e p o r u m m o m e n t o p a r a c o n t e m p l a r o Me-
d i t e r r â n e o . S e b a s t i a n t a m b é m faz a l t o a o l a d o d o s u e c o e
ficam ambos, um muito b r a n c o e outro m u i t o preto, a olhar
as on as que se espicham na areia. Garcia q u e b r a o silêncio:
Os a v i õ e s v ê m aí. Ê n o i t e de l u a . E h ! Q u e é i s s o
SAGA 13

Não me ouves? E s t á s também atacado de melancolia aguda?


Vamos!
Retomamos a marcha. Vemos alguns homens e n t r a r nu-
ma casa de onde saem os sons roucos dum gramofone. As
janelas e portas conservam-se fechadas e estão pintadas de
preto.
— Música! — m u r m u r a Brown, segurando-me o braço.
Sua voz é grave, redonda e macia.
— Vamos e n t r a r ? — pergunto.
— Que dúvida! grita Garcia. — E avança, de braço
dado com Áxel.
Entramos. Somos envolvidos por uma onda quente que
cheira a humanidade e a álcool. O ar enfumaçado é tão es-
pesso que dá a impressão de que pode ser cortado em fatias.
Muitos internacionais estão aqui a beber e a conversar.
Vejo poucas mulheres. No meio da balbúrdia o gramofone
rouquejava um rag-time. Caminhamos os quatro por entre
as mesas, procurando um lugar. Ninguém parece dar pela
nossa presença. Mas de repente ergue-se um homem alto e
moreno, de sobrancelhas espessas e dentes podres, e planta-
se esplêndido diante de Garcia, barrando-lhe a marcha. Leva
a mão ao gorro numa continência teatral e exclama com voz
trêmula:
— Ave, Caesar, morituri te salutant!
Garcia empurra-o para um lado com decisão mas sem
brutalidade, dizendo:
— Não sou César, sou Garcia. E tu estás bêbedo, meu
irmão.
Vamos sentar-nos a u m a mesa no fundo do salão. Tra-
zem-nos vinho.
— Quero mulher! — berra o chileno.
Quem nos serve é o proprietário, um sujeito gordo de
cara amarga.
— As que temos aqui estão ocupadas — resmunga ele.
— No túnel encontrarás raparigas de quinze anos que se
vendem por um pedaço de pão. Por que não vais para lá?
F a r á s bom negócio.
Garcia cerra os dentes, a g a r r a o copo com fúria e joga
o vinho na cara do outro.
— Toma a resposta, porco!
Há um princípio de tumulto. O catalão, possesso, com
o rosto a pingar vinho, os olhos piscos e chispantes, apanha
uma garrafa pelo gargalo e ergue-a sobre a cabeça do chi-
14 ERICO V E R Í S S I M O

leno. P o n h o - m e de pé n u m p u l o e s e g u r o - l h e o b r a ç o , i m p e -
d i n d o o g o l p e . S e b a s t i a n e Á x e l s a l t a m ao m e s m o t e m p o e
me a j u d a m a imobilizar o h o m e m . G a r c i a continua sentado
e a g o r a d e s p e j a de n o v o t o d o o s e u r e p e r t ó r i o de n o m e s
f e i o s . C o n s e g u i m o s a r r a s t a r o p r o p r i e t á r i o d a c a s a p a r a longe
d a l i e a m u i t o c u s t o o c o n v e n c e m o s de q u e G a r c i a n ã o d e v e
s e r l e v a d o a s é r i o . Q u a n d o v o l t a m o s p a r a a n o s s a m e s a , dez
minutos depois, encontramos lá u m a mulher. Ê u m a r a p a r i g a
n o v a q u e à p r i m e i r a v i s t a n ã o m e p a r e c e feia.
O chileno nos recebe recitando um verso de Dom Quixote:

Nunca fuera Caballero


De damas tan bien servido
Como fuera Don Quijote
Quando de sua aldeã vino:
Doncellas curaban de él,
Princesas de su rocino.

Á x e l e e u t o r n a m o s a nos. s e n t a r . M a s S e b a s t i a n B r o w n
p e r m a n e c e d e p é , e m b a r a ç a d o e silencioso. T e n h o d e o b r i g á -
lo a o c u p a r a c a d e i r a a m e u l a d o .
— A m i g o s , e s t a é a D u l c i n é a del T o b o s o — diz G a r c i a
mostrando-nos a companheira.
Sorrio p a r a ela e aperto-lhe a m ã o franzina. N ã o me
parece u m a profissional experimentada. Terá no máximo
dezessete anos e nos seus olhos não descubro sensualidade
n e m malícia: a p e n a s u m a espécie de espantada resignação.
T r a z u m a flor v e r m e l h a enfiada nos cabelos. E s t o u apostan-
d o t o d a s a s m i n h a s p e s e t a s e m c o m o foi u m a c o m p a n h e i r a
m a i s s o l e n e que lhe s u g e r i u esse enfeite. A c r i a t u r i n h a t e m
um aspecto comovente. Neste momento não existe no mundo
inteiro coisa mais t r i s t e m e n t e convencional do que essa pobre
f l o r e n c a r n a d a . A m a n h ã t a n t o ela c o m o a r a p a r i g a e s t a r ã o
e s m a g a d a s e cobertas de poeira no chão de Portbou.
— C o m o é o t e u n o m e ? — p e r g u n t o p o r p u r a f a l t a de
assunto.
E l a sorri. Vejo que não me entendeu. Garcia lhe repete
a p e r g u n t a . A r e s p o s t a v e m p r o n t a , a colegial s a b e a lição
na ponta da língua:
— S o f i a M a r t i n e z da G a v i r i a .
T e m u m a voz f i n a e u m p o u c o f a n h o s a . S o r r i , m o s t r a n d o
dentes miúdos e limosos.
O o l h a r d e Á x e l p o u s a e m Sofia. V e j o n e l e s u m a r e m o t a
SAGA 15

luz d e c o m p a i x ã o . A d m i r o e s s a g e n t e q u e s a b e s e r s e n t i m e n -
t a l d u m a m a n e i r a seca, higiênica e discreta.
Bebemos à saúde da menina. E l a beberica a sua cidra,
sorri d a s macaquices de Garcia e de q u a n d o em quando olha,
curiosa, p a r a Brown.
O gramofone p á r a de repente. Ouvem-se os sons d u m a
g u i t a r r a . U m a voz q u e n t e e s e n t i d a enche a sala. U m a j o t a
aragonesa. A princípio há entre os homens um intervalo de
silêncio a t e n t o . D e p o i s r e c o m e ç a m a s c o n v e r s a s . M a s a v o z
do c a n t o r domina o zunzum geral. Olho p a r a Sebastian e
v e j o q u e ele e s t á m a r a v i l h a d o . Q u e l e m b r a n ç a s l h e p a s s a r ã o
pela m e n t e ?
Sinto-me deprimido. O vinho nada consegue contra o meu
e s t a d o d e e s p í r i t o . A s r e c o r d a ç õ e s b a t e m à p o r t a d o café.
N ã o devo deixá-las e n t r a r . Que fiquem lá fora! As b o m b a s
aéreas não lhes podem fazer mal, ao passo que aqui, neste
ar viciado, elas correm o perigo de se contaminar.
N ã o sei p o r que a g e n t e se e n t r e g a com t a n t a facilidade
a o s e n t i m e n t a l i s m o . Vício, t a l v e z . S e a o m e n o s e s s e t i p o
p a r a s s e de. c a n t a r . . . O l h o p a r a G a r c i a e n u m r e l a n c e j u l g o
descobrir-lhe o segredo. Ele não passa dum h o m e m que está
p r o c u r a n d o e s q u e c e r a l g u m a coisa. E s s a s u a a t i t u d e d e s l i g a -
da, os desabafos pornográficos, a p r e t e n s a falta de sensibi-
lidade n a d a m a i s são que um escudo. Neste m o m e n t o vejo-
lhe n o r o s t o a s o m b r a d e u m p e n s a m e n t o t r i s t e .
O c a n t o r se cala. E s t r a l a m p a l m a s . O g r a m o f o n e reco-
m e ç a . Agoira é u m a v a l s a . V o l t o a c a b e ç a e o l h o em t o r n o .
U m a a s s e m b l é i a difícil d e d e s c r e v e r . H o m e n s d e d i v e r s a s
r a ç a s e t i p o s , e n t r e o s q u a i s a g e n t e v ê logo q u e p r e d o m i n a m
os italianos. Um' espanhol com quem pouco depois entabula-
mos conversação mostra-nos ao redor de u m a mesa, um
g r u p o de e x - o f i c i a i s r u s s o s , f r a n c e s e s e a l e m ã e s . O g o v e r n o
espanhol precisa muito dos serviços de técnicos militares,
v i s t o c o m o a m e l h o r e a m a i o r p a r t e do e x é r c i t o e s t á c o m
F r a n c o . O n o v o c a m a r a d a é u m h o m e m d e pele c u r t i d a , t e s t a
i m p r e s s i o n a n t e m e n t e alta e cabelos grisalhos. Conta-nos que
no túnel m u l h e r e s e crianças m o r r e m à m í n g u a de recursos
médicos.
Um velho de b a r b a s b r a n c a s e sujas que anda de mesa
em mesa pedindo cigarros e dinheiro, aproxima-se de nós.
É um pobre f a r r a p o de vida. Dou-lhe u m a peseta. Garcia
o f e r e c e - l h e v i n h o : ele b e b e , l i m p a o s l á b i o s c o m a m a n g a d o
casaco seboso e poído e depois a p o n t a p a r a Sofia:
16 ERICO VERÍSSIMO

— Ê minha neta, sabem? E s t á prostituída, está perdi-


d a . . . Tudo está perdido.
F a z um movimento de ombros e sai a r r a s t a n d o os pés.
Dá alguns passos, p á r a e volta-se de novo p a r a nós.
— Deus é g r a n d e e poderoso — acrescenta, fazendo com
a m ã o um sinal na direção do alto. — Mas t e m má memória.
F e z o m u n d o e e s q u e c e u - s e dele.
E s e v a i . F i c a m o s n u m s i l ê n c i o difícil. S e b a s t i a n B r o w n
m e i n t e r r o g a c o m o s o l h o s . Sofia s o r r i e G a r c i a l h e p e r g u n t a :
— E n t ã o , pequena, esse tipo é m e s m o teu a v ô ?
A rapariga sacode a cabeça negativamente.
— Meus avós já m o r r e r a m há m u i t o tempo. Esse velho
é D o m J o s é , o c o v e i r o de P o r t b o u . E n l o u q u e c e u d u r a n t e o
último bombardeio.
O t e m p o passa e m e u s olhos começam a ficar pesados
d e s o n o . G a r c i a t e m S o f i a s o b r e o s j o e l h o s , b e i j a - l h e o s ca-
belos, a t e s t a , a b o c a . E l a s e e n t r e g a p a s s i v a m e n t e , n u m
desajeitamento enternecedor.
U m a m u l h e r loura de seios f a r t o s que há já alguns mi-
n u t o s está a olhar i n s i s t e n t e m e n t e p a r a o sueco, ergue-se de
s u a m e s a e v e m s e n t a r - s e n o colo dele. S e g u r a - l h e a m b a s
as o r e l h a s c o m f o r ç a e p r o c u r a - l h e a b o c a c o m l á b i o s á v i d o s .
Áxel move a cabeça d u m lado p a r a outro, fugindo ao beijo.
Seus braços, caídos ao longo do corpo, recusam-se a a b r a ç a r
a m u l h e r . T a i s e t ã o d e s e s p e r a d o s m o v i m e n t o s e s t a faz, q u e
n u m d a d o m o m e n t o p e r d e o e q u i l í b r i o e cai e s t r o n d o s a m e n t e
no chão. Levanta-se, furiosa, e despeja em cima do sueco
u m a t o r r e n t e de impropérios em catalão. Volta depois as
costas e se afasta por entre risadas. De repente um h o m e m
s u r g e à p o r t a do s a l ã o e g r i t a :
— Los aviones!
A p a g a m - s e imediatamente os lampiões e as velas. Mas
o g r a m o f o n e c o n t i n u a a g e m e r . A v a l s a d o s p a t i n a d o r e s . As
conversas cessam por um momento. Sinto na minha orelha
o h á l i t o m o r n o d e S e b a s t i a n B r o w n . E l e m e diz c o i s a s es-
t r a n h a s sobre a morte. Começamos a ouvir o ronco dos mo-
tores, primeiro longe, depois mais p e r t o e, ao cabo de alguns
segundos, atroando por cima de nossas cabeças.
— Mas para que b o m b a r d e a r u m a cidade em r u í n a s ? —
p e r g u n t o em voz alta.
Alguém me responde:
— Eles s a b e m que a população e s t á no túnel. Decerto
vão lançar bombas sobre a estação.
SAGA 17

Ouve-se um estrondo. Outro. Mais o u t r o . Tenho a im-


pressão de que as b o m b a s explodem dentro de meu peito. A
vitrola continua a encher a sala com a serena alegria dos
patinadores. Sebastian Brown fala ainda na morte, com sua
voz g r a v e e doce. O r o n c o d o s a v i õ e s às v e z e s se f a z t ã o
f o r t e , q u e a g e n t e t e m a i m p r e s s ã o d e q u e eles e n t r a r a m n a
sala, como morcegos extraviados da noite.
P o r fim as explosões cessam. O ruído dos m o t o r e s aos
p o u c o s s e p e r d e n a d i s t â n c i a . T o r n a m a a c e n d e r a s luzes.
Vejo na cara do negro u m a expressão de êxtase.
Q u a n d o s a í m o s do café, à m e i a - n o i t e , c o n t a m - n o s q u e o
e s t a c i o n á r i o foi m o r t o d u r a n t e o b o m b a r d e i o .
3

Oito horas da manhã. Nosso trem corre paralelamente à


praia. Ouvi dizer que nos m a n d a m p a r a F i g u e r a s . O m a r
e s t á c r e s p o , o c é u n u b l a d o , o v e n t o f r i o . Á x e l e eu n o s a c h a -
mos sentados no mesmo banco. Sebastian cochila na nossa
frente, com a boca aberta, o chapéu p u x a d o p a r a os olhos:
os percevejos de P o r t b o u n ã o lhe d e r a m t r é g u a d u r a n t e t o d a
a n o i t e p a s s a d a . A seu l a d o v e j o um s u j e i t o m a g r o e r u i v o ,
d e pince-nez d o u t o r a l ; e s t á m e r g u l h a d o n a l e i t u r a d u m l i v r o
cujo t í t u l o n ã o c o n s i g o d i s t i n g u i r . D e q u a n d o e m q u a n d o o
h o m e m o l h a p a r a o n t g r o c o m o r a b o d o s o l h o s e c o m visí-
vel r e p u g n â n c i a . T e m u m a c a r a a s c é t i c a , m u i t o b r a n c a , d e
t e s t a a l t a e l á b i o s a p e r t a d o s . A p o u c o s p a s s o s de n ó s , q u a -
t r o i t a l i a n o s j o g a m poker, f a z e n d o g r a n d e b a l b ú r d i a . Á x e l
m e oferece u m cigarro.
— S ã o da F i n l â n d i a — e x p l i c a , m o s t r a n d o - m e a b e l a
c a i x a d e l u x o e m q u e eles v ê m a c o n d i c i o n a d o s . T o m o d e u m ,
p r e n d o - o n o s l á b i o s e a p r o v e i t o o m e s m o f ó s f o r o do c o m p a -
nheiro.
— S u p e r s t i c i o s o ? — p e r g u n t a ele.
— Não. E você?
— Também não.
Garcia, que se acha instalado no vagão contíguo, vem
fazer-nos u m a visita.
— Q u e m é o c a b e l o de f o g o ? — i n d a g a , f a z e n d o um
sinal na direção do desconhecido. Encolho os o m b r o s . O chi-
leno s u b m e t e o h o m e m do pince-nez a u m a p r o v a i n f a n t i l de
nervos. Sem o m e n o r aviso, b a t e de repente com o pé no
chão e grita: pum! Sebastian Brown desperta, sobressaltado.
O h o m e m r u i v o l i m i t a - s e a e r g u e r c a l m a m e n t e os o l h o s , co-
mo um mestre-escola que quer descobrir e n t r e os alunos da
classe q u a l foi o a u t o r d a t r a v e s s u r a .
— B o m dia, a m i g o ! — s a ú d a - o G a r c i a .
O outro responde ao cumprimento com um curto aceno
20 ERICO VERÍSSIMO

de cabeça, m a s seu r o s t o s a r d e n t o e s e m sangue permanece


inexpressivo.
— A p o s t o c o m o é a l e m ã o — d i g o eu. — P e l o j e i t o de
c u m p r i m e n t a r logo s e v ê . . .
Á x e l f a l a b e m o a l e m ã o e d e n t r o em b r e v e , i n s t i g a d o e
orientado por Garcia, entabula conversação com o estranho.
As p r i m e i r a s p a l a v r a s lhe s ã o a r r a n c a d a s com g r a n d e
d i f i c u l d a d e . D e início o h o m e m s e m o s t r a r e l u t a n t e , r e t i -
cente, arisco e até mal-humorado. Ao cabo de alguns mi-
nutos de penoso interrogatório o sueco me t r a n s m i t e em
f r a n c ê s o r e s u l t a d o de s u a p e s c a e eu f i n a l m e n t e e n t r e g o a
história em segunda m ã o a Garcia, n u m espanhol da fron-
t e i r a d o R i o G r a n d e d o Sul. A c r ô n i c a d e n o s s o e s q u i v o com-
panheiro de viagem nada tem de excepcionalmente interes-
s a n t e . Chama-se Willy Kunz, é a l e m ã o e t e v e de s a i r de seu
país pela simples razão de que seu bisavô m a t e r n o , nos tem-
p o s d e e s t u d a n t e d e H e i d e l b e r g , a p a i x o n o u - s e n u m biergarten,
em certa noite de outono, pela filha d u m r a b i n o ; essa paixão,
m a u grado a oposição das duas famílias, resultou em casa-
m e n t o e o c a s a m e n t o em f i l h o s . A h i s t ó r i a f i c a r i a s e n d o
apenas u m a apagada lenda familiar não fossem os escrúpu-
los a r i a n i s t a s d o n a z i s m o . W i l l y K u n z f e z a G r a n d e G u e r r a ,
foi d o s ú l t i m o s a s e r e m c h a m a d o s e t i n h a a p e n a s d e z e s s e t e
anos quando o m a n d a r a m para as trincheiras.
— Bela h i s t ó r i a — m u r m u r a o c h i l e n o , d e p o i s de o u v i r
a v e r s ã o p o é t i c a q u e l h e d o u . — M a s o t i p o n ã o me i n s p i r a
confiança.
P e ç o a K u n z p a r a me m o s t r a r o l i v r o q u e e s t á l e n d o . Ele
m e p a s s a o v o l u m e n u m g e s t o m a q u i n a l . N ã o c o n s i g o deci-
f r a r o título. Áxel me explica que é um t r a t a d o sobre ex-
plosivos.
— Sou q u í m i c o i n d u s t r i a l — e s c l a r e c e o a l e m ã o a t r a v é s
de Áxel. — Vou t r a b a l h a r n u m a fábrica de g r a n a d a s em
Barcelona.
Sebastian B r o w n começa a cantarolar um desses "spi-
r i t u a i s " dos negros americanos. A melodia t e m u m a funda
t e r n u r a h u m a n a e é ao mesmo t e m p o d u m a límpida simpli-
cidade infantil. Compreendo a l g u m a coisa da letra, que diz
que "todos os filhos de Deus t ê m a s a s " . A canção é em t o r n o
do Céu de Jeová, de anjos com vestes b r a n c a s a t o c a r h a r p a .
Áxel sorri apertando a haste do cachimbo com os dentes
m u i t o c l a r o s . G a r c i a e s c u t a e m silêncio. E c o m o e u m e m o s -
t r o t a m b é m interessado, Sebastian começa a cantar m a i s
SAGA 21

alto. Em breve a s u a voz de veludo enche o vagão, é como


um gemido que sai de funda caverna escura cheia de resso-
n â n c i a s m i s t e r i o s a s . E lá e s t á ele a se r e m e x e r no b a n c o ao
r i t m o da melodia; parece que a n d a contente a c a m i n h a r can-
t a n d o p e l a s e s t r a d a s d o céu. D e q u a n d o e m q u a n d o v o l t a a
c a b t ç a p a r a K u n z e a r r e g a n h a o s d e n t e s p a r a ele. O t é c n i c o
em explosivos defende-se das investidas cordiais do p r e t o
p o r t r á s d u m a t r i n c h e i r a d e gelo. E s s e sujeito positivamente
está mexendo com os m e u s nervos. Vejo-lhe na cara as per-
versidades de que é capaz. E s t á i r r i t a n t e m t n t e limpo e b e m
vestido. Parece um turista. Deixo escapar estas p a l a v r a s :
— E s s e a l e m ã o é o t i p o m a i s a n t i p á t i c o do m u n d o !
Kunz fecha o livro, fita os olhos no m e u rosto e, com
g r a n d e s u r p r e s a m i n h a , diz n u m c l a r o p o r t u g u ê s :
— O s e n h o r e x a g e r a . O h o m e m m a i s a n t i p á t i c o do m u n -
do é o M a r e c h a l G o e r i n g . D o u - l h e a m i n h a p a l a v r a .
O choque da s u r p r e s a me corta a respiração p o r alguns
segundos. Garcia solta u m a risada e Willy Kunz me conta
que já t r a b a l h o u d u r a n t e seis anos n u m a fábrica de São
Paulo.
O m u n d o é m e s m o m u i t o p e q u e n o . ..

O t r e m rola. Do lado esquerdo, o m a r . Do direito, mon-


t a n h a s ao fundo e, m a i s perto, u m a série de colinas verdes,
com grandes vinhedos por entre os quais de quando em quan-
do b r a n q u e j a a casa d u m a quinta. A C a t a l u n h a é u m a t e r r a
áspera, de á s p e r a gente. Aqui se fala um e s t r a n h o dialeto
e o povo desta região parece t e r na a l m a um pouco da du-
r e z a r o c h o s a d e s t e solo, d a i m p á v i d a a g r e s s i v i d a d e d e s s a s
m o n t a n h a s . Segundo ditado popular, os catalães são capazes
até de fazer pão com pedras. Gozam da f a m a de ser o povo
mais rebelde e ativo desta velha E s p a n h a indomável. Lem-
bro-me da camponesa que nos vendeu um cesto de frutas
em Portbou. E s t á convencida de que, seja qual for o resul-
tado da guerra, F r a n c o respeitará a independência da Cata-
lunha.
— Eles n ã o se a t r e v e r ã o — disse ela com ar a r r o g a n t e .
— Os espanhóis nos conhecem bem.
F a l a d a E s p a n h a como d u m país e s t r a n g e i r o . T e m or-
g u l h o de s u a t e r r a , p r i n c i p a l m e n t e de Cataluña la Vieja, o n d e
nasceu. É d u m a família de agricultores. Seus antepassados
a j u d a r a m a t r a n s f o r m a r estas t e r r a s pedregosas e áridas em
22 ERICO VERÍSSIMO

c a m p o s f é r t e i s q u e d ã o b e l o s f r u t o s c o m o o s q u e ela e n t ã o
nos oferecia.
S e b a s t i a n e s t e n d e a m ã o p a r a f o r a d o t r e m e , n u m a ale-
g r i a a l v o r o ç a d a , m e m o s t r a a l g u m a coisa. O l h o . N o a l t o d u m
outeiro, cercado de árvores, ergue-se um castelo de dois tor-
reões contra o céu d u m cinzento azulado. É sombrio e grave.
F i c a m o s a contemplá-lo em silêncio. Somos a m b o s de países
novos, sem tradições. E s t a visão t e m p a r a nós um encanto
particular. Se eu pudesse saltar do t r e m e correr na direção
daquelas pedras a n t i g a s . . . Seria o mesmo que voltar ao
passado, ir ao encontro de idades m o r t a s . Mas isto não pas-
sa d u m desejo de t u r i s t a . Sou a p e n a s um v o l u n t á r i o da Bri-
g a d a Internacional que viaja em péssimo t r e m p a r a destino
incerto. A m a n h ã talvez um Savoia-Marchetti de três moto-
r e s s e e n c a r r e g u e d e e l i m i n a r d a p a i s a g e m esse r o m â n t i c o
castelo, que virá abaixo com todos os seus espectros, glórias
e tradições. P r o n t o ! Já não o enxergo mais. U m a curva da
linha férrea acaba de roubá-lo ao campo de minha visão.
Parece que agora deixamos o m a r para t r á s e r u m a m o s p a r a
sudoeste. Adeus, Mediterrâneo!
Willy K u n z e s t u d a com frio interesse, no seu livro de
c a r a c t e r e s góticos, o m é t o d o m a i s rápido, b a r a t o e eficiente
de e s t r a ç a l h a r o próximo. Os italianos discutem, blasfemam
e p r a g u e j a m . E n t r e c e r r a n d o os o l h o s , e n t r e g o - m e a C l a r i s s a .
Ê u m a rendição incondicional, sem batalha. Sinto-a j u n t o de
mim, mostro-lhe as t e r r a s de Gênova, os vinhedos, as faias,
os álamos, os castanheiros, os velhos castelos. Lembro-lhe
as nossas conversas de um tempo perdido.
M a s a voz m a c i a d e S e b a s t i a n m e t i r a d e s s e d e v a n e i o
p a r a me precipitar depois n o u t r o :
— E n g r a ç a d o — diz e l e . — Em i n g l ê s q u a n d o q u e r e m o s
f a l a r d e p r o j e t o s loucos, s o n h o s i m p o s s í v e i s , n ó s d i z e m o s
"castelos em E s p a n h a " .
Sacudo a cabeça vagarosamente.

O t r e m p á r a em Figueras. Descemos. Noto que ninguém


n o s e s p e r a , e a G a r c i a , q u e se a c h a a m e u l a d o , d o u v o z à
minha estranheza.
— Q u e q u e r e s ? — p e r g u n t a ele c o m a s u a r u d e z a b r i n -
alhona. — U m a recepção com b a n d a de música, r a p a r i g a s
jogando pétalas de rosas em nossas cabeças?
Tenho as pernes entorpecidas. As nuvens estão baixas
SAGA 23

e s ã o c o r de s é p i a . C o m e ç a a c h u v i s c a r . A p a n h o o m e u s a c o
de roupas e olho em torno. Reaparece Rodriguez. C a m i n h a
gingando na nossa direção e suas botas de verniz reluzem
f r a c a m e n t e n a d e s m a i a d a luz d e s t e d i a c i n z e n t o . L e v a à b o c a
um apito. Ouve-se um trilo longo e desagradável.
— Los internacionales! — grita.
F o r m a m o s n u m a fila. E m p o u c a s p a l a v r a s e l capitán
nos dá instruções.
Saltamos para dentro de um caminhão de carga e em
breve estamos a r o d a r por u m a bela estrada asfaltada. O
chauffeur, u m c a t a l ã o d e c a r a e q ü i n a e g r o s s a s s o b r a n c e l h a s
eriçadas, nos conta que os aviões inimigos a n d a m voando
n a s p r o x i m i d a d e s d e F i g u e r a s . E r g o o s o l h o s p a r a o céu.
Pingos frescos de chuva me caem no rosto. Sinto um cheiro
de t e r r a m o l h a d a que me provoca lembranças de coisas dis-
tantes no tempo e no espaço. Os homens conversam alto,
riem, dizem b r a v a t a s . P a s s a por nós um caminhão cheio
de v o l u n t á r i o s f r a n c e s e s a c a n t a r a M a r s e l h e s a . G r i t a m e
acenam p a r a nós. A velocidade do carro a u m e n t a . T e n h o a
i m p r e s s ã o d e q u e e s t a m o s f u g i n d o d e a l g u m a coisa.
— E h ! para que essa pressa? — pergunta alguém.
E a r e s p o s t a do chauffeur se r e s u m e n e s t a s d u a s p a l a -
vras:
— Los aviones.
O c h u v i s q u e i r o c e s s a , a b r e - s e u m a c l a r e i r a n o céu, b r i -
l h a o sol. V a m o s t o d o s de p é , m u i t o a p e r t a d o s , e de m e u lu-
g a r m a l posso v e r a paisagem. Willy Kunz não e s t á conosco.
Subimos agora a encosta de um outeiro. Passamos por
um ônibus cheio de voluntários italianos que c a n t a m a "Ban-
diera Rossa".
Dois minutos depois nosso c a r r o diminui a m a r c h a e
pára. Saltamos para o chão. Ê singular. Achamo-nos diante
dos m u r o s d u m velho mosteiro. Dirigimo-nos p a r a u m p o r t ã o
severo e m o n u m e n t a l em cujo frontão se vêem e s t a s pala-
vras pintadas numa tabuleta:
CUARTEL DE LAS BRIGADAS INTERNACIONALES.
P o r c i m a d a c r u z e n f e r r u j a d a e r o í d a pelo t e m p o f l a m e j a
a estrela vermelha, distintivo da Brigada. Sebastian me puxa
pela m a n g a do c a s a c o e dizia:
— A c r u z é m a i s a n t i g a . ..
Concordo com um apressado sinal de cabeça, ao m e s m o
tempo que Garcia, a t r á s de nós, cochicha ao ouvido de
Brown:
24 ERICO VERÍSSIMO

— G u a r d a e s s a s idéias p a r a ti se n ã o queres ser fuzilado.


E n t r a m o s e s e g u i m o s e m g r u p o p o r u m a aléia d e c i p r e s -
t e s e pinheiros. Os homens fazem grande algazarra, m a s por
m a i s que g r i t e m n ã o conseguem q u e b r a r o silêncio secular
deste j a r d i m . Um espanhol que vai conosco explica que o
mosteiro t e m mais de seiscentos anos de existência. Perten-
cia à O r d e m d o s B e n e d i t i n o s e s e u s h a b i t a n t e s f u g i r a m p a r a
o s u l da E s p a n h a logo q u e d e f l a g r o u a g u e r r a .
Ê u m edifício p e s a d o , d e p e d r a , d e e s t i l o r o m â n i c o . N a s
suas paredes limosas e sombrias vêem-se agora, em rudes
l e t r a s d e p i x e , l e g e n d a s d e ódio.
F o r m a m o s n o p á t i o c e n t r a l . P o r e n t r e a s f r e s t a s d a s la-
jes g a s t a s brota a relva. Um sujeito muito m a g r o e de ar
s o n o l e n t o , a q u e m o u v i c h a m a r "el s e ñ o r m a j o r " v e m f a z e r -
n o s u m a a r e n g a . A g u e r r a — a s s e g u r a - n o s ele — n ã o é n e -
n h u m brinquedo de criança. Franco t e m tropas regulares e
a luta vai ser muito dura. Elogia a nossa atitude despren-
dida e a s s e g u r a - n o s que a E s p a n h a n ã o esquecerá os nossos
sacrifícios. Ê um m a u orador. T e m u m a voz e s t e r t o r o s a e
fraca que nem a esplêndida acústica deste pátio consegue
amplificar. Às suas primeiras palavras presto alguma aten-
ção. M a s em breve esqueço o discurso e me deixo a b s o r v e r
pelo cenário. Contemplo as a r c a d a s e os corredores onde não
faz m u i t o r e s s o a v a m as p a s s a d a s dos monges. São b e m es-
t r a n h o s os contrastes do mundo. Há pouco quando passei
pela capela, ouvi um tipo c a n t a r lá dentro em francês u m a
cançoneta canalha de café-concerto. A l g u é m enfiou na cabeça
d a i m a g e m d e S . A n t ô n i o u m g o r r o d e d o i s b i c o s . N ã o sei
p o r que t o d a s essas coisas me deixam v a g a m e n t e inquieto.
T a l v e z s e j a a c o n s c i ê n c i a d o p e c a d o , e s s a i d é i a q u e n o s in-
c u t e m desde a infância e de que t a r d e ou n u n c a nos conse-
guimos livrar. Tenho a impressão de que um dia alguém nos
p e d i r á c o n t a s de t u d o i s s o . É a v e l h a n o ç ã o da c u l p a e o
pavor do castigo.
Termina a arenga. Os voluntários e r g u e m vivas. Deban-
damos.
Três h o r a s da tarde. Dão-nos de comer no refeitório do
mosteiro. É u m a sala comprida e baixa, calçada de pedra.
M ó v e i s p o u c o s e t o s c o s . Os v o l u n t á r i o s f r a n c e s e s e i t a l i a n o s
que e n c o n t r a m o s na e s t r a d a sentam-se conosco às longas me-
s a s e n c a r d i d a s . N ã o h á toalhas, n e m g u a r d a n a p o s , o s p r a t o s
são de folha e os t a l h e r e s t ê m cabo de osso. Sopa de feijão
SAGA 25

branco e carne em conserva, u m a grossa fatia de pão preto


para cada uni e um caneco de vinho tinto.
— O n d e e s t ã o os famosos licores dos m o n g e s ? — per-
gunta Garcia, teatralmente, lançando a sua pergunta para o
teto abobadado do refeitório.
Sebastian e Axel, que se a c h a m na nossa frente, comem
com apetite, principalmente o negro.
Ao anoitecer formamos na frente do mosteiro p a r a a
cerimônia de arriação da bandeira. Somos ao todo u n s du-
zentos e poucos homens. Soa um clarim. F a z e m o s continência.
El "señor major" t o m a da b a n d e i r a e e n r o l a - a c o m s o -
lene c a r i n h o . C o r r o o s o l h o s p e l a f i l e i r a d e v o l u n t á r i o s q u e
se estende na m i n h a frente. São homens dos mais variados
tipos, idades e raças. Quase todos jovens. Alguns muito bem
vestidos: r o u p a s de boa casimira e camisas de seda. Vejo
u m g r u p o d e q u a t r o r a p a z e s l o u r o s d e knickerbockers q u e
me p a r e c e m universitários ingleses. Têm u m a expressão re-
soluta m a s não há carranca que consiga tirar-lhes do rosto
u m a certa rosada c a n d u r a que lembra os r e t r a t o s de crianças
pintados por Gainsborough.
O clarim silencia. B a i x a m o s as m ã o s . A u m a ordem dis-
persamo-nos ruidosamente.
A noite desce com u m a brisa fria. Depois do j a n t a r va-
mos fumar no pátio. Fazemos camaradagem com um francês
alto, e n c u r v a d o e anguloso, que t e m u m a e n o r m e cicatriz
e s b r a n q u i ç a d a q u e l h e c o r t a o r o s t o t o s t a d o d e sol. N ã o l h e
sei o p r i m e i r o n o m e , m a s o s e g u n d o é F r a n c h o n . C o n t a - n o s ,
ao cabo de a l g u m t e m p o de palestra, que serviu d u r a n t e de-
zessete anos na Legião E s t r a n g e i r a da qual fugiu um dia
em Túnis. Foi carregador no porto de Nápoles e mascate na
Iugoslávia. Passados alguns anos sentiu a nostalgia da aven-
t u r a g u e r r e i r a e meteu-se na E s p a n h a . Garcia lhe p e r g u n t a :
— O n d e foi q u e a r r a n j o u e s s e a r r a n h ã o ?
E a p o n t a p a r a a c i c a t r i z . F r a n c h o n n ã o se p e r t u r b a e
pronuncia simplesmente um nome:
— Ab-del-Krim.
Queremos saber de sua opinião sobre a g u e r r a em que
n o s v a m o s m e t e r . A o c a b o d e a l g u m a h e s i t a ç ã o e l e n o s diz
que d e p o i s d e t e r e m a s t r o p a s d e F r a n c o c h e g a d o a o m a r ,
a s i t u a ç ã o se t o r n o u m a i s s é r i a p a r a o g o v e r n o e a E s p a n h a
ficou d i v i d i d a e m d u a s p a r t e s . E q u a n d o e u l h e p e r g u n t o s e
temos a l g u m a probabilidade de vencer sem auxílio da Ingla-
t e r r a e da F r a n ç a , ele responde e v a s i v a m e n t e :
26 ERICO V E R Í S S I M O

— P e r g u n t e a o E s t a d o - M a i o r . E u s o u u m s i m p l e s sol-
dado.
A f a s t a - s e d e n ó s s&m d i z e r m a i s p a l a v r a .
— E h , V a s c o ! — e x c l a m a de r e p e n t e C a r l o s G a r c i a . —
V a m o s a F i g u e r a s ? N ã o seria m a u brincar um pouco com
as meninas. .. Ninguém sabe que vai ser de nós a m a n h ã .
S a i pelo p á t i o p o v o a d o d e s o m b r a s p a r a p r o c u r a r q u e m
lhe queira servir de guia n u m a excursão erótica ao povoado.
B r o w n , Á x e l e eu p o m o - n o s a a n d a r s e m d e s t i n o . N o s s o s
passos nos levam à p o r t a da capela. E n t r a m o s . A escuridão
aqui d e n t r o é completa. Áxel risca um fósforo. F l u t u a no
ar um cheiro de antiguidade. Vislumbro os vultos das ima-
gens nos nichos. O fósforo se a p a g a . F i c a m o s os t r ê s p a r a -
d o s , e m silêncio, c o m o q u e p e r d i d o s . P e l a s j a n e l a s o g i v a i s
e n t r a a nevoenta claridade da noite sem lua. Sento-me no
banco m a i s próximo. Meus dois companheiros fazem o mes-
m o . B r o w n n o s oferece c i g a r r o s . R i s c o o u t r o f ó s f o r o , q u e
o n o r u e g u ê s a p r o v e i t a p a r a a c e n d e r t a m b é m o seu c i g a r r o .
M a s o n e g r o h e s i t a q u a n d o eu v o l t o a c h a m a p a r a ele. E de-
pois, s o r r i n d o p a r a e s c o n d e r o e m b a r a ç o , a p a g a - a c o m u m
s o p r o e a c e n d e o s e u c i g a r r o na p o n t a do m e u . F i c a m o s a
f u m a r d u r a n t e a l g u n s i n s t a n t e s e m c o m p l e t o silêncio. Q u e m
nos visse agora diria que estamos orando.
T u d o n o s leva a f a l a r em D e u s . É i n e v i t á v e l . E ao c a b o
de longa conversa pontilhada de hesitações e reticências,
c h e g o à c o n c l u s ã o q u e o m e u D e u s n ã o é D e u s de Á x e l e
m u i t o m e n o s o d e S e b a s t i a n B r o w n . N o e n t a n t o , t o d o s temos
um Deus que d u m modo geral não se parece muito com o
dos beneditinos que viviam neste mosteiro.
B r o w n começa a recitar um sermão negro sobre a
C r i a ç ã o . S u a voz, q u e t ã o b e m s e c a s a c o m a e s c u r i d ã o d a
capela, nos envolve:

E Deus saiu pelo espaço,


E olhou em torno e disse:
"Sinto-me solitário —
Vou fazer um mundo"

A escuridão cobria t o d a s as coisas, mais n e g r a do que


c e m m e i a s - n o i t e s n e g r a s . D e u s s o r r i u , e s u r g i u a luz. E l e
d i s s e : " I s s o é b o m " . T o m o u a luz n a s m ã o s , e n r o l o u - a n o s
SAGA 27

d e d o s , fez u m a b o l a — o sol, e d e p o i s l a n ç o u - o no e s p a ç o .
E D e u s t i n h a n u m a d a s m ã o s o sol e na o u t r a a l u a e s u a
cabeça estava t o d a cheia de astros. E a t e r r a jazia sob seus
pés. E Ele c a m i n h a v a sobre a t e r r a e seus pés i a m fazendo
os vales e as m o n t a n h a s . E e n t ã o D e u s viu que a t e r r a e r a
a r d e n t e e v a z i a e fez os s e t e m a r e s . P i s c o u os o l h o s e c r i o u
o relâmpago. Bateu palmas e reboou o trovão. E jorrou a
á g u a dos céus, n a s c e r a m os rios, b r o t o u a relva, v i e r a m m a i s
t a r d e as flores, e os rios c o r r e r a m p a r a o m a r . E Deus ex-
clamava: "Isso é b o m ! " Depois olhou p a r a a sua obra e
disse: " A i n d a sinto a solidão." Sentou-se ao pé d u m a colina
e ficou a. p e n s a r . P e n s o u e m a i s p e n s o u e no f i m r e s o l v e u :
" E u vou fazer p a r a m i m o h o m e m " . Do fundo do rio tirou
um p u n h a d o de l o d o e c o m ele fez o h o m e m à s u a p r ó p r i a
imagem.

E insuflou nele o sopro da vida


E o homem se tornou uma alma vivente
Amém! Amém!

Sebastian cala-se. No pátio alguém g r i t a por nós.


— Vasco! Áxel!
Saímos e v a m o s ao encontro de Garcia.
— P o d e m o s ir a F i g u e r a s , r a p a z e s ! T e m o s licença. O
carro está nos esperando lá fora. Depressa!
Deitamos os q u a t r o a correr a t r a v é s do jardim. Salta-
mos p a r a o c a m i n h ã o onde já se e n c o n t r a m m u i t o s homens.
O v e í c u l o c o m e ç a a d e s c e r a colina.
Levo idéias pessimistas.
N ã o s e i s e D e u s fez b e m e m t i r a r o t r a n q ü i l o lodo d o
f u n d o d o r i o p a r a f a z e r c o m ele e s s e e s t r a n h o a n i m a l q u e
é o homem.
4
Chove há já dois dias. E s t a m o s ainda no mosteiro. Tenho
a impressão de que se eu passar mais tempo nesta inati-
vidade úmida, começarão a b r o t a r cogumelos dentro de mim.
Carlos Garcia o l h a a c h u v a c a i r n a s lajes d o p á t i o e m o n o -
loga:
— A quê liamos apear, o a quê dormir? Soy yo, por
ventura de aquellos caballeros que toman reposo en los pe-
ligrosf — V o l t a - s e p a r a S e b a s t i a n , q u e e s t á d e i t a d o de cos-
t a s a o s p é s dele, m a s c a n d o u m p a u d e f ó s f o r o e o l h a n d o
p a r a o t e t o . — Duerme tu que naciste para dormir, o haz lo
que quisieres, que yo harê o qué viere que más viene con mi
pretension.
Áxel descobriu um passatempo. Como é hábil relojoeiro
(dessa gente nórdica devemos esperar t u d o ) passa o dia a
consertar os relógios defeituosos que os voluntários lhe t r a -
zem.
D u a s vezes p o r dia o velho sino nos c h a m a à capela,
onde nos reunimos todos p a r a ouvir o major que, com sua
voz m o n ó t o n a e fosca, n ã o c a n s a d e a f i r m a r q u e a E s p a n h a
não esquecerá os nossos sacrifícios no dia da vitória. Segue-
se u m a longa e fastidiosa hora de instrução militar. Como
ainda, n ã o t e m o s a r m a s , e n s i n a m - n o s c o i s a s t e ó r i c a s s o b r e a
g u e r r a : como lançar granadas, que fazer quando se avista
um avião inimigo, a maneira de avançar aproveitando os
acidentes do terreno. ..
F a z e m o s novas relações, principalmente e n t r e os italianos.
C o n h e c i e s t a m a n h ã P e p i n o V e r g a , e x - p a l h a ç o d e circo,,
um tipo a t a r r a c a d o e musculoso, de pescoço t a u r i n o e cabeça
r a p a d a , de um oval c a r i c a t u r a l m e n t e minúsculo. Ele nos di-
verte à noite proporcionando-nos um espetáculo de variedades
— malabarismo, pilhérias, saltos mortais e equilibrismo. É
d u m a falta de graça comovedora. Vê-se que sempre andou
em companhias de q u a r t a ordem.
Improvisa-se u m a arena no refeitório. E m p u r r a m - s e as
mesas contra as paredes. Os homens sentam-se nos bancos.
Há duas guitarras e u m a gáita-piano. Ao som de u m a mar-
30 ERICO VERÍSSIMO

cha triunfal, entra Pepino. A grande novidade desta noite é


q u e ele v e m v e s t i d o d e m o n g e b e n e d i t i n o , m e t i d o n u m a s u r -
r a d a batina que descobriu em algum canto do mosteiro. Traz
na cabeça a coroa d o u r a d a que roubou na capela à i m a g e m
de Nossa Senhora. Gargalhadas estrepitosas. Aplausos. Pe-
p i n o e s t a c a n o c e n t r o d o s a l ã o e faz u m a leve c u r v a t u r a ,
tirando a coroa da cabeça n u m rápido cumprimento gaiato.
Seus olhinhos miúdos de mico b r i l h a m picaramente. A ca-
m a d a de f a r i n h a e os t r a ç o s negros de carvão que lhe cobrem
a pele do r o s t o n ã o c o n s e g u e m e s c o n d e r - l h e a e x p r e s s ã o de
s u b m i s s a imbecilidade. O t u m u l t o continua. Pepino pede si-
lêncio. E m v ã o . G r i t o s , p a l m a s , b a t e r d e p é s , a s s o b i o s . P e p i -
n o exige silêncio, p u l a c o m o u m o r a n g o t a n g o , a t i r a o s b r a ç o s
p a r a o ar, ao mesmo tempo que p r o c u r a equilibrar a peque-
na coroa no alto da cabaça. A a l g a z a r r a finalmente cessa.
U m d o s h o m e n s a v a n ç a p a r a o clown e p e r g u n t a :
— Como vais, Pepino V e r g a ?
E ele r e s p o n d e c o m voz de f a l s e t e :
— N ã o sou Pepino Verga.
— Q u e m és, e n t ã o ?
E o palhaço, com voz a i n d a m a i s fina, a p o n t a p a r a a
coroa dourada com o seu indicador curto e g r o s s o :
— Sou Pepino o Breve.
Vaias e risadas. Seguem-se velhas anedotas, trocadilhos,
piadas em t o r n o de Mussolini, Hitler e F r a n c o .
Pepino se entrega a números de malabarismo com gar-
rafas e c o p o s , ao s o m da Giovinezza. N o v o s a p l a u s o s .
Os voluntários bebem, c o n v e r s a m e f u m a m . Lá fora a
chuva continua a cair.
Pepino, incansável, equilibra u m a cadeira na testa. Os
h o m e n s c o m e ç a m a p e r d e r o i n t e r e s s e pelo e s p e t á c u l o . A s
aclamações r a r e i a m . E o palhaço, que a d o r a os aplausos, está
desolado. E q u i l i b r a a cadeira no queixo, na ponta do nariz.
N i n g u é m m a i s lhe p r e s t a a m e n o r atenção. O nosso b a n d o
se c o m p a d e c e do a c r o b a t a e sem a m e n o r c o m b i n a ç ã o G a r c i a ,
Áxel. Sebastian e eu e s t a m o s em d a d o m o m e n t o a aplaudi-lo
freneticamente. Pepino volta para nós o rosto lambuzado e
feliz e a t i r a - n o s b e i j o s . A " a r e n a " é i n v a d i d a p e l o s e s p e c t a -
dores indiferentes, m a s o palhaço não se quer d a r por ven-
cido. V i r a c a m b a l h o t a s , d á s a l t o s m o r t a i s e , c o m o n a d a d i s s o
c o n s e g u e a t r a i r o p ú b l i c o , numa s u p r e m o g o l p e de p a n t o m i m a
c o m e ç a a a t i r a r - s e no c h ã o de t o d o o c o m p r i m e n t o , b a t e n d o
com o ventre e a cara nas pedras. Rompe violenta a assuada.
SAGA 31

U m a tempestade de urros, assobios e mugidos. Pepino apa-


nha a p o n t a da batina, e r g u e do chão a coroa de N o s s a
Senhora e retira-se de cena com o nariz s a n g r a n d o . Em dois
segundos os homens o esquecem completamente. Um tenori-
no — r a p a z m o r e n o de e s c u r o s c a b e l o s c r e s p o s — r o m p e a
cantar u m a trêmula e dulçurosa canção napolitana.
Corro a t r á s de Pepino e alcanço-o no corredor. Passo-lhe
o braço pelos o m b r o s .
— Pepino, foste admirável.
Ele ergue p a r a m i m uns olhos de cão s u r r a d o e p e r g u n t a :
— Sinceramente?
— Claro, homem. E s t a v a s engraçadíssimo.
O clown f i c a um i n s t a n t e c a l a d o , o l h a n d o p a r a o c h ã o ,
e d e p o i s me a p e r t a a m ã o c o m f o r ç a .
— És um bom amigo.
A r r e g a ç a a batina, precipita-se c o r r e d o r em fora e lá no
fundo d á u m duplo salto m o r t a l . V o l t a p a r a m i m sorrindo.
— V i u ? E s t e n ú m e r o foi d e d i c a d o e s p e c i a l m e n t e a o ca-
marada.
F a ç o c o m a c a b e ç a u m s i n a l a f i r m a t i v o e ele s e a f a s t a ,
feliz.
Pepino V e r g a . . . P a r a os outros, um simples palhaço.
Para mim, um enigma.

M á r i o G u a r i n i é um n a p o l i t a n o melenudo e apoplético,
de olhos verdes e saltados. E r a sapateiro em Nápoles, jun-
tou e c o n o m i a s b a t e n d o s o l a d e b a i x o d u m a e s c a d a , c a s o u c o m
u m a s i c i l i a n a e fez a G u e r r a . N o s a n o s q u e s e s e g u i r a m a o
a r m i s t í c i o , foi p a r t i d á r i o f e r v o r o s o d e M a t t e o t i . Q u a n d o o
f a s c i s m o d o m i n o u a I t á l i a , t e v e de r e f r e a r a l í n g u a e r e c a l c a r
as mágoas. No primeiro ano da era fascista morreu-lhe a
mulher. Mário Guarini não chorou. Antes de fecharem o
caixão, disse b a i x i n h o : "Vai, C a r m e l a . Lá no o u t r o m u n d o
não e n c o n t r a r á s esse "schifoso" de Mussolini". Viveu daí por
d i a n t e c o m o p ô d e . E m 1 9 2 5 foi o b r i g a d o a t o m a r v i o l e n t a
dose d e óleo d e r í c i n o . P e r d e u t r ê s q u i l o s . S e n t i u - s e d e s m o -
r a l i z a d o , q u i s m o r r e r . M a s na I t á l i a — c o n t o u - m e ele — a
gente precisa de fazer um requerimento ao Duce até p a r a
m o r r e r . . . C o n t i n u o u a b a t e r sola, a c h o u no ó d i o um m o t i v o
para viver. Mas quando as t r o p a s de Mussolini a t a c a r a m a
A b i s s í n i a ele t e v e a i m p r e s s ã o d e q u e i a e s t o u r a r . A q u i l o
era d e m a i s . V i ú v o , s e m f i l h o s , n a d a m a i s o p r e n d i a à p á t r i a :
32 ERICO VERÍSSIMO

— ia embora. Dava-lhe n á u s e a viver no meio d u m povo t ã o


a b j e t a m e n t e servil. P a s s o u p a r a a F r a n ç a . O pouco dinheiro
que levava, em breve se acabou. P a s s o u fome em P a r i s e
t e r i a m o r r i d o ao abandono se o E x é r c i t o de Salvação n ã o o
recolhesse, dando-lhe casa e comida. E r a um áspero inverno
e h a v i a n e v e n a s r u a s . O c a l o r d u m b o m fogo, u m a s o p a
quente e gentes amigas que nos c h a m a m "irmão" não são
coisas que um h o m e m extraviado possa desprezar. P a r a não
perder a situação conveniente, G u a r i n i aceitou o Evangelho
e fez-se m e m b r o do e x é r c i t o s a l v a d o r . V e s t i u - l h e o u n i f o r m e
e saiu com um dos b a n d o s pelas r u a s de P a r i s a recolher
almas transviadas. Como não soubesse tocar nenhum instru-
mento de sopro ou de corda, deram-lhe o bombo. Mário Gua-
r i n i , h o m e m d e e n t u s i a s m o à f l o r d a pele, a c h a q u e t o d o s
o s p r o b l e m a s d e s t e m u n d o s ã o f á c e i s u m a vez q u e a g e n t e
os e n c a r e c o m a l e g r i a . L e v o u a s é r i o o s e u b o m b o e a c a b o u
um virtuoso. No fim de algum tempo, e s t a v a convencido de
que realmente tinha fé no Deus daquelas boas criaturas. Le-
v o u m e s e s p a r a c o m p r e e n d e r q u e n a r e a l i d a d e o q u e ele a m a -
va m e s m o e r a o b o m b o e n ã o Deus. O gostoso da coisa e s t a v a
principalmente naquele alvoroço, naquela singular a v e n t u r a
de a n d a r p e l a s e s q u i n a s a c a n t a r h i n o s r e l i g i o s o s e a c a ç a r
h o m e n s . E s s a espécie de caça, porém, e r a d e m a s i a d o inocen-
te. Mário Guarini preferia a luta em que se d e r r a m a sangue.
A r e v o l u ç ã o de F r a n c o d e i x o u - o i n q u i e t o . T o m o u l o g o o p a r -
tido dos governistas. Pela primeira vez na vida estava ao
lado de um governo. E quando Mussolini, vitorioso na Abis-
sínia, m a n d o u s u a s t r o p a s c o m b a t e r na E s p a n h a , o ex-sapa-
teiro sentiu t r a n s b o r d a r a t a ç a da s u a paciência. Sendo-lhe
impossível explicar aos " i r m ã o s " certos sentimentos que lhe
ferviam no peito, preferiu fugir sem dizer palavra. Como
t i n h a amigos no P a r t i d o Socialista francês conseguiu que o
incluíssem n u m grupo de voluntários destinados à B r i g a d a
Internacional.
E a g o r a a q u i e s t á conosco, a e s p e r a r q u e o d e s i g n e m
para algum batalhão.
Mário Guarini tornou-se subitamente de simpatia por
S e b a s t i a n B r o w n . Lá e s t ã o eles f r e n t e a f r e n t e e o i t a l i a n o
t e n t a por meio de sinais dizer q u a l q u e r coisa ao negro, que
sacode a cabeça d u m lado para outro n u m a prolongada ne-
gação. Guarini insiste, com paciência. A c a b a m ambos ajoe-
l h a d o s no c h ã o . A p r o x i m o - m e , c u r i o s o , e v e j o o i t a l i a n o a
fazer riscos n a s lajes com um pedaço de carvão. É um tosco
SAGA 33

mapa-mundi onde a Itália, a E s p a n h a e a Abissínia apare-


cem com especial relevo. O italiano desenha u m a série de
bonecos e de sinais p a r a m i m sem sentido.
— Q u e d i a b o de h i s t o r i a é e s s a ? — p e r g u n t o .
Mário Guarini ergue os olhos claros fungando, e res-
ponde com o seu vozeirão musical:
— Planos políticos.
E me p e d e q u e e x p l i q u e t u d o a S e b a s t i a n . A c o i s a é
simplíssima. Vencemos F r a n c o , d e r r u b a m o s Mussolini do po-
der e coroamos B r o w n imperador da Abissínia!
O negro sorri. E Guarini, que com essa brincadeira quis
apenas dar u m a prova da estima que tem por Sebastian
Brown, sorri também, mostrando os fortes dentes de carní-
voro.

O nosso dormitório. As luzes a p a g a d a s . F a z frio e a i n d a


chove. E s t a m o s d e i t a d o s e m c o l c h õ e s g r o s s e i r o s q u e n ó s
mesmos tivemos de encher de palha. Somos cerca de cem
homens no salão. E s t a é a nossa t e r c e i r a noite no mosteiro.
Alguns de meus companheiros ressonam e muitos têm um
sono a g i t a d o . Deito-me de borco e t e n h o a i m p r e s s ã o de que
meu coração está pulsando dentro do travesseiro.
G a r c i a foi a F i g u e r a s . À p r o c u r a de m u l h e r , c o m o s e m -
pre. É quase meia-noite e o imbecil ainda n ã o voltou. Fico
a p e n s a r n o q u e l h e t e r á a c o n t e c i d o . A i n d a n ã o consegui-
p r e g a r olho. T e n h o um peso aflitivo no e s t ô m a g o . A comida
ultimamente t e m andado péssima. Levo a m ã o ao rosto e
sinto a b a r b a espinhar. Há já dois dias que n ã o me barbeio.
Ê a chuva. Amolece tudo. A t é os jovens ingleses p e r d e m as
cores, a p o s t u r a e s p o r t i v a e j á n ã o e s c a n h o a m o r o s t o t o d o s
os dias. Creio que F r a n c o n ã o p r e c i s a r á m a n d a r seus solda-
dos c o n t r a nós. A c h u v a se e n c a r r e g a r á de nos d e r r o t a r . P o r
falar nisso, esta m a n h ã nos c h e g a r a m notícias inquietadoras.
A s o r t e t e m s i d o c o n t r á r i a à s a r m a s d o g o v e r n o . O s oficiais
que e s t ã o e n t r e n ó s n ã o c o n s e g u e m e s c o n d e r s e u p e s s i m i s m o .
Creio q u e esses reveses a b r e v i a r ã o a n o s s a ida p a r a a frente
d e b a t a l h a . N ã o sei p o r q u e a i n d a n ã o n o s d e r a m a r m a s .
L u t a r seria b e m mais divertido do que ficar aqui criando
bolor. E s t a s l a j e s s ã o f r i a s e a p r i m a v e r a s e o b s t i n a e m
parodiar o inverno. Acabaremos todos reumáticos.
Um homem, perto, fala dormindo. Da outra extremidade
do salão p a r t e um longo gemido.
34 ERICO V E R Í S S I M O

F e c h o o s olhos. Que t e r á sido feito d e G a r c i a ? J á e r a


tempo de e s t a r de volta.
Vêm-me agora recordações do Brasil. Que estará fazendo
Clarissa a esta h o r a ? E F e r n a n d a ? E Noel? O velho Dr.
Seixas seria um excelente médico p a r a a Brigada Interna-
c i o n a l . C h e g o a vê-lo a r e s m u n g a r p o r e n t r e o s l e i t o s d e u m
hospital, com o toco de c i g a r r o a p a g a d o colado ao lábio in-
ferior. G r a n d e tipo!
As lembranças mais absurdas, as criaturas mais insus-
peitadas me v ê m à mente. Tenho oito anos, é u m a t a r d e de
inverno e eu vou p a r a a escola na m i n h a pequena cidade.
E s t a m o s em g u e r r a com os meninos da R u a do Poço. A u m a
esquina s u r g e m de emboscada três inimigos. "Rendei-vos!"
g r i t a um deles. L a r g o a lousa e a C a r t i l h a de J o ã o de D e u s
e me preparo p a r a a luta. Eles investem. A p a n h o do chão
u m a p e d r a e o b r i g o - o s a m a n t e r - s e à d i s t â n c i a . P o r felicida-
de aparecem dois de m e u s soldados que correm em m e u so-
corro. Trava-se a batalha.
As crianças a m a m a guerra. N ã o admira. Tudo as leva
a i s s o . A s lições d e H i s t ó r i a . B i o g r a f i a s d e h e r ó i s . O t a m -
borzinho inglês que não sabia t o c a r retirada. N a p o l e ã o . . .
Leônidas nas T e r m ó p i l a s . . .
Curioso, eu me l e m b r a r de t u d o isso a g o r a aqui, às doze
da noite num mosteiro antigo da Catalunha. Mistérios da
memória. Traições da insónia.
N ã o sei p o r q u e m e m e t i n i s t o — c o n f e s s o a m i m m e s -
mo. Espírito de aventura, talvez. A fascinação do perigo.
Simples curiosidade. Mas o pior é que essas palavras a g o r a
não q u e r e m dizer nada. Tenho o corpo q u e b r a n t a d o e a alma
vazia. Derrotado a n t e s de e n t r a r em combate.
Segue-se um período de madorna. Torno a despertar.
Quanto tempo dormi?
Julgo ouvir o ronco longínquo dum avião. Decerto é
um aparelho inimigo que aproveita a noite tempestuosa para
p a s s a r a s l i n h a s g o v e r n i s t a s . S e ele d e i x a r c a i r u m a b o m b a
certeira em cima deste telhado, t u d o e s t a r á resolvido da ma-
neira m a i s simples. Mas qual! O i m p o r t a n t e é que essa chuva
cesse, q u e n o s d ê e m a r m a s e n o s m a n d e m p a r a a f r e n t e . D e v e
ser mais decente m o r r e r lutando.
O t a m b o r z i n h o inglês. Marcílio Dias. N ó s somos da pá-
tria a guarda.
O sono vem. Se t r a z sonhos, a m a n h ã se e n c a r r e g a de
os apagar. Ao acordar no outro dia não me lembro de nada.
5

Cessam a s c h u v a s e sai o sol. E s t a m o s a l v o r o ç a d o s p o r q u e


s e diz q u e a i n d a h o j e v a m o s s e r d i s t r i b u í d o s e n t r e o s d i -
versos corpos que estão recebendo instrução militar antes de
p a r t i r p a r a as trincheiras. E s s a classificação, a que parece,
vai s e r f e i t a d e a c o r d o c o m a n a c i o n a l i d a d e d o s v o l u n t á r i o s .
— T e m o s de nos s e p a r a r ? — p e r g u n t a Áxel.
E n t r e o l h a m o - n o s o s q u a t r o e m silêncio.
— Ê pena — sussurra Sebastian.
Garcia fica u m i n s t a n t e p e n s a t i v o :
— Talvez nos m a n d e m p a r a Gerona, onde há um regi-
m e n t o f o r m a d o d e r u s s o s , s u e c o s , l i t u a n o s e n ã o sei m a i s q u ê .
Sacudo a cabeça, dizendo:
— Eu preferia ir p a r a o batalhão dos italianos que está
em Besalu.
V a m o s os q u a t r o p r o c u r a r o m a j o r e lhe pedimos que
nos m a n d e p a r a Besalu. E n c o n t r a m o - l o a t i r a d o n u m a ca-
deira, p o r t r á s d u m a mesa sobre a qual se a m o n t o a m papéis
em desordem.
— A l g u m a r a z ã o e s p e c i a l ? — i n d a g a ele c o m v o z s o n o -
lenta. F a z e s t a p e r g u n t a s e m a b r i r o s o l h o s . S u a s p á l p e b r a s
arroxeadas contrastam com o rosto desbotado.
— M u i t a s . . . — respondo. — A língua, por e x e m p l o . . .
— A f i n i d a d e s de t e m p e r a m e n t o , o s e n h o r v ê . . . — a v a n -
ça Garcia.
— C l a r o — r e f o r ç o eu. — F i c a r á t u d o m a i s fácil p a r a
nós.
É como se atirássemos u m a a u m a as nossas razões em
cima d a m e s a e e l a s f o s s e m ali f o r m a n d o u m a p i l h a d i a n t e
d a m á s c a r a c a d a v é r i c a d o oficial.
H á u m m o m e n t o d e silêncio e m q u e c h e g o a t e r a i m -
pressão de que o h o m e m dorme. É com voz a r r a s t a d a que
ele diz, e r g u e n d o a m ã o d e d e f u n t o e m g e s t o l e n t o :
— E s t á bem. Deixem os nomes com o s a r g e n t o . Vocês
vão para Besalu.
36 ERICO VERÍSSIMO

N ã o creio que t e n h a ouvido os nossos agradecimentos e


as nossas palavras de despedida.
— T i p o e s t r a n h o — c o m e n t o eu, q u a n d o v a m o s a c a m i -
n h o do alojamento. — P a r e c e que passou a noite em claro.
Garcia sacode a cabeça devagarinho, sorrindo.
— És u m a criança de p e i t o . . .
— Que queres dizer com isso?
— Aquilo é morfina, homem.
— Como sabes?
— Que é q u e n ã o se s a b e ? O m a j o r foi f e r i d o em T e r u e l ,
coisa g r a v e . D a v a m - l h e m o r f i n a n o h o s p i t a l , p o r q u e o f e r i -
m e n t o d o í a m u i t o . O h o m e m p e g o u o vício. N ã o é o p r i m e i r o
caso, m e u anjo, n e m s e r á o último.
Mário Guarini nos avista de longe e corre p a r a nós,
gritando que vamos partir dentro de duas horas.

Chegamos a Besalu ao entardecer. E s t a é u m a vila mui-


t o a n t i g a d a província d e Gerona. Teria n o m á x i m o t r ê s mil
habitantes antes de começar a guerra. Hoje os seus homens
válidos que não m o r r e r a m ainda, estão lutando lá p a r a as
b a n d a s do E b r o . E n c o n t r a m o s aqui quase só mulheres, ve-
lhos e crianças — gente triste que nos olha com u m a t o r v a
expressão de desconfiança. Creio que já se a p a g o u neles a
esperança de vitória. Às janelas, nas calçadas, por cima de
muros, olham a passagem dos caminhões que trazem os no-
vos voluntários. N ã o acenam, n ã o aclamam. Fecham-se n u m
silêncio d e p e d r a . D i r - s e - i a e s p i a m u m e n t e r r o q u e p a s s a —
m a s um enterro de alguém que n ã o conhecem ou não esti-
mam.
Um dos batalhões da " B r i g a d a Garibaldi" está alojado
t a m b é m n u m m o s t e i r o . S a l t a m o s p a r a o solo, f o r m a m o s n o
pátio central, ouvimos breve arenga, recebemos u m a capa de
colchão — que devemos encher de p a l h a m a i s t a r d e — um
cobertor, cigarros, um naco de sabão e algumas pesetas.
O c é u e s t á l i m p o e azul. U m a b r i s a f r i a p õ e l e v e m e n t e
inquietas as árvores do jardim.
D e b a n d a r ! Os homens se espalham em t o d a s as direções.
Sentimo-nos como colegiais da província que a c a b a m de che-
g a r a um g r a n d e i n t e r n a t o . Carlos Garcia sai a e x p l o r a r o
terreno e volta pouco depois acompanhado d u m homem.
— A m i g o s ! — e x c l a m a . — E s t e é o S a r g e n t o De N i c o l a .
— F a z um g e s t o na n o s s a d i r e ç ã o e d i z : — T e n h o a h o n r a
SAGA 37

de apresentar-lhe os t r ê s reis m a g o s : Gaspar, Melquior e


Baltazar.
Apertos de mão. De Nicola vai mostrar-nos os nossos
alojamentos. É u m a sala e s t r e i t a e longa p a v i m e n t a d a de
pedra.
— S ã o os p i o r e s q u a r t o s do h o t e l — g r a c e j a ele. — E s -
tou com a casa c o m p l e t a m e n t e cheia. — Pisca o olho e faz
uma careta. — E s t e a n o o t u r i s m o e s t á m u i t o forte em
Besalu.
De Nicola é um h o m e m de meia-idade, alto, descarnado
e teso. T e m u m a cara comprida e simpática, cabelos de um
esverdeado de pessegada, já branqueando nas frontes; não
aei p o r q u e o s e u a p r u m o d á l o g o a i m p r e s s ã o d u m h o m e m
que j á v e s t i u c a s a c a . O s o l h o s n ã o d i z e m g r a n d e c o i s a , m a s
as mãos — santo Deus — as mãos me parecem t ã o expres-
sivas que se o s a r g e n t o não as esconde, dentro em pouco elas
me e s t a r ã o a contar os segredos de u m a vida e de u m a per-
sonalidade. L o n g a s , n e r v o s a s e bem modeladas, de dedos afi-
lados e vibráteis, elas dizem de u m a a l m a sensível e d u m
espírito não de todo destituído de brilho. Mãos talvez de pia-
nista ou de e s c u l t o r . . .
— Quando vamos para a frente? — pergunta Garcia.
De Nicola fita no meu amigo os seus olhos claros e mos-
queados.
— F r e n t e ? V o c ê s t e r ã o q u e p a s s a r p r i m e i r o pelo j a r d i m
da-infância.
T i r a do bolso da camisa caqui um cachimbo, enche-o de
fumo, a c e n d e - o c o m r a p i d e z e d e s t r e z a a d m i r á v e i s , l e v a - o à
boca, t i r a u m a b a f o r a d a e d e p o i s p a s s a - o a Á x e l , d i z e n d o :
— V a m o s f u m a r o c a c h i m b o da paz.
O sueco hesita.
— Fume.
— M a s . . . m a s eu t e n h o o meu cachimbo.
— É u m a q u e s t ã o de r i t u a l — s o r r i o n o s s o n o v o c a m a -
rada.
Áxel não consegue evitar u m a careta de repugnância,
m a s n ã o t e m o u t r o r e m é d i o s e n ã o l e v a r o c a c h i m b o a o s lá-
bios e t i r a r u m a b a f o r a d a .
— A g o r a o núbio — diz o s a r g e n t o .
Mas quando Sebastian Brown estende a mão, o cachimbo
desaparece como por encanto p a r a alguns segundos depois
ser descoberto no bolso de Carlos Garcia. E n e m b e m Sebas-
38 ERICO V E R Í S S I M O

t i a n s e r e f a z d a s u r p r e s a , j á D e N i c o l a a v a n ç a p a r a ele, a c a -
r i c i a - l h e o r o s t o e p o r f i m t i r a - l h e u m ovo d a b o c a . R i s a d a s .
D e N i c o l a faz u m a leve c u r v a t u r a p a r a a e s q u e r d a , o u -
tra para a direita e exclama:
— Professor Marcantônio, ilusionista!
O h o m e m acaba de nos conquistar. F i c a m o s à sua mercê.

O s n o s s o s seis p r i m e i r o s d i a s n o " B a t a l h ã o G a r i b a l d i "


s ã o b a s t a n t e d u r o s . S o b a s o r d e n s d e u m ex-oficial a l e m ã o
rígido e glacial e de dois a u s t r í a c o s , um deles m u t i l a d o na
G r a n d e G u e r r a , p a s s a m o s os dias a fazer exercícios milita-
r e s , a a p r e n d e r a n o m e n c l a t u r a e o m a n e j o de fuzis c m e -
tralhadoras. Nossos instrutores falam uma pitoresca mistura
de italiano, espanhol e francês. As a r m a s foram fabricadas
na Rússia, m a s as granadas vêm de Barcelona.
Os a r r e d o r e s de Besalu se enchem dos gritos dos volun-
t á r i o s em seus c o m b a t e s simulados. Minha companhia, com
a r m a s imaginárias, t o m a de assalto as ruínas do castelo. Fica
e s t e s i t u a d o n a c o r o a d e u m o u t e i r o o n d e foi a v i l a p r i m i -
tiva. C h e g a m o s lá em cima suados, sujos, esfalfados e com
ar de quem se está prestando a u m a brincadeira imprópria
da idade adulta.
— H o m e n s do n o s s o t a m a n h o — diz S e b a s t i a n — h o -
m e n s g r a n d e s . . . b r i n c a n d o de g u e r r a . . .
D e p o i s d e s c e m o s a e n c o s t a e u m a vez lá e m b a i x o saí-
m o s a r a s t e j a r pelo c h ã o p e d r e g o s o ; c a v a m o s trincheiras,
precipitamo-nos em c a r g a s de b a i o n e t a e deitamo-nos de no-
v o a o solo p a r a n o s d e f e n d e r d e h i p o t é t i c a s r a j a d a s d e m e -
tralhadora. Os camponeses catalães nos contemplam intriga-
dos, com olhos em que julgo v i s l u m b r a r remotíssimo brilho
de piedade.
— D e v e m p e n s a r q u e e s t a m o s loucos.
De Nicola, que se acha a dois passos de mim, observa:
— N ã o e s t a r ã o muito longe da verdade.
— S a r g e n t o ! — exclama Garcia. — P o r falar nisso quan-
do é que nos vão d a r a r m a s ?
— N ã o sei. E s c r e v a a o P a p a , p e r g u n t a n d o .
— P e n s a m que podemos vencer os franquistas com gri-
tos?
— Sst — sibila o s a r g e n t o . — A t e n ç ã o ! O nosso próxi-
mo o b j e t i v o é a p o n t e . V a m o s a v a n ç a r .
Corremos p a r a a ponte de cimento a r m a d o que através-
SAGA 39

s a o r i o n a d i r e ç ã o d e Ollot. L a n ç a m o s g r a n a d a s , p e d r a s q u e
cortam o ar n u m a curva serena e caem dentro d'água. Um
bando de moleques v a d i o s . . .
à noite sentimo-nos exaustos. Felizmente nossos pensa-
mentos também estão cansados e querem repousar. Evitam-
se a s s i m as l e m b r a n ç a s incômodas e a volta da saudade. Dor-
mimos como c r i a t u r a s sem pecados.
Na segunda s e m a n a começam a nos d e i x a r em paz. Os
fuzis-metralhadoras e as metralhadoras russas não têm mais
segredos p a r a nós. A g o r a fazemos rápidos exercícios na fres-
ca da m a n h ã . Pouco antes do meio-dia ouvimos u m a prédica
de c a r á t e r p o l í t i c o e f i c a m o s em l i b e r d a d e o r e s t o do d i a .

F i z amizade com u m a menina de doze anos, de rosto re-


dondo, cabelos p r e t o s e pele açafroada. A p r e n d i com ela al-
g u m a s p a l a v r a s de c a t a l ã o e hoje, logo que me avista, ela
se p õ e a p u l a r e a f a z e r s i n a i s p a r a m i m , s o l t a n d o g r i t i n h o s .
Sabe que como sempre lhe t r a g o algum presente. N ã o se
engana. Passo-lhe um embrulho que contém pedaços de pão,
a l g u m a s s a r d i n h a s e u m a fatia de bolo.
— Como se c h a m a m aqueles p a s s a r i n h o s ? — p e r g u n t o -
lhe, f a z e n d o u m s i n a l n a d i r e ç ã o d a s a n d o r i n h a s q u e a c a -
b a m de pousar no beiral de velha casa.
A p e q u e n a a l ç a a c a b e ç a , e s p r e m e os o l h o s e, a p o n t a n d o
p a r a o t e l h a d o com um dedo m u i t o sujo, de u n h a t a r j a d a
d e p r e t o , diz c o m s u a v o z m i n ú s c u l a e e s t r i d u l a :
— Ourenetes.
O u t r a s crianças brincam descalças na lama, cantando
u m a c a n ç ã o d a q u a l m e f i c a m e s t a s p a l a v r a s Deu comina
d'selops a n'el fang — D e u s a n d a de t a m a n c o s na l a m a .
O catalão de cara a m a r g a que me t r a d u z a letra da can-
t i g a folclórica m e a s s e g u r a que D e u s n u n c a andou d e t a -
m a n c o s e q u e a ú n i c a v e z q u e t e v e c o n t a t o c o m a l a m a foi
no dia em que modelou o primeiro homem.
A m e n i n a d i v i d e o p r e s e n t e c o m os c o m p a n h e i r o s e d e n -
tro em pouco estão todos a comer com voracidade.
V o l t o p a r a o m o s t e i r o . V o u p e n s a n d o n a s ourenetes d e
Besalu que ao voltarem na última primavera e n c o n t r a r a m
a g u e r r a , os aviões que d e s t r o e m os seus beirais a m i g o s e
m a t a m as crianças descuidosas que brincam no barro da rua.
40 ERICO V E R Í S S I M O

Há neste b a t a l h ã o g e n t e de t o d a s as espécies e proce-


d ê n c i a s . S ã o e m s u a g r a n d e m a i o r i a h o m e n s d e c i d i d o s e for-
t e s , t i p o s m á s c u l o s c u r t i d o s pelo sol e p o r t o d o s o s v e n t o s
da vida. T ê m u m a consciência p a r t i d á r i a e s a b e m o que que-
rem. Fugitivos de países onde o fascismo impera, vieram
p a r a d e r r u b a r u m r e g i m e c a p i t a l i s t a . H á e n t r e eles u m a e s -
pécie de c o m p r o m i s s o t á c i t o de n ã o se m e t e r e m u n s na vida
p r i v a d a dos o u t r o s . C o n v e r s a m , f u m a m , b e b e m e c a n t a m j u n -
tos como bons c a m a r a d a s que se encontram agora aqui para
se separarem a m a n h ã mais adiante s e m aviso prévio nem
m a n i f e s t a ç õ e s de s e n t i m e n t a l i s m o . N ã o t e m e m a m o r t e e a
s u a ú n i c a lei é a lei d a B r i g a d a I n t e r n a c i o n a l . P a r e c e m a c h a r
como Lenine que esta não é a h o r a de a f a g a r cabeças m a s
s i m de r a c h a r crânios. N ã o creio que s e j a m h o m e n s visceral-
m e n t e cruéis, m a s estou certo de que são capazes de cruel-
d a d e , p o i s s a b e m q u e à v i o l ê n c i a s ó s e p o d e o p o r u m a violên-
cia m a i o r . S e u ódio, p o i s , s e a l i m e n t a d o ó d i o d o s i n i m i g o s .
E é curioso observar como em s u a q u a s e totalidade esses
" i n t e r n a c i o n a i s " t ê m o que se pode c h a m a r "ódio dirigido".
Odeiam metodicamente d e t e r m i n a d a s pessoas e coisas com
u m ó d i o f o r r a d o d e a r g u m e n t o s m a i s o u m e n o s lógicos. S i n t o
em m u i t o s deles u m a boa dose de espírito messiânico e em
quase todos u m a indisfarçável sede de aventura. Conheço um
florentino esguio e rijo como um p u n h a l que condena a guer-
ra com o espírito ao mesmo t e m p o que a a m a desesperada-
m e n t e c o m o c o r p o . T e n h o a i m p r e s s ã o de q u e se p o r m i l a -
gre se ajustassem todas as diferenças do m u n d o e desapa-
r e c e s s e m d a t e r r a t o d o s o s m o t i v o s d e ódio, d i s s e n ç ã o e g u e r r a
— m u i t o s destes h o m e n s sofreriam u m a espécie de m u t i l a ç ã o
m o r a l . A p a z p a r a eles s e r i a d o l o r o s a e a v i d a se l h e s t o r n a r i a
insuportável.
Aproximo-me de muitos dos voluntários. Falam-me da
situação da E u r o p a e do mundo e só s a b e m apreciá-la em
t e r m o s de marxismo. São indivíduos em sua quase totalidade
destituídos de todo o senso de h u m o r . N ã o me sinto perfei-
t a m e n t e à v o n t a d e j u n t o d e l e s m a s r e s p e i t o - o s p o r q u e o s sei
sinceros e p o r q u e no fim de contas estão a r r i s c a n d o a vida
neste jogo perigoso.
Ao cabo de alguns dias começo a ver esses internacio-
nais como tipos fabricados em série, c r i a t u r a s que oferecem
apenas um interesse de superfície. Deixo de me preocupar
c o m eles p a r a s a i r à c a ç a d o s q u e v i e r a m p a r a c á p o r m o t i -
vos extrapolíticos — os r a r o s , os e s t r a n h o s , os misteriosos,
SAGA 41

o s que n ã o v i v e m d e acordo c o m u m a r í g i d a f ó r m u l a doutri-


nária.
R e p i t o q u e a c o m é d i a h u m a n a me d i v e r t e e que n ã o
canso n u n c a de o l h a r o e s p e t á c u l o da vida. N o s m o m e n t o s
de folga, que a g o r a s ã o largos, s a i o à c a t a de t i p o s . P a s s e i o
pelo m e i o d e s t e s s e r e s h u m a n o s c o m a s e n s a ç ã o de que me
encontro n u m e s t r a n h o m u s e u v i v o o u n u m m e r c a d o d e al-
mas. A t i r o o m e u anzol c o m o ar m a i s c a s u a l d e s t e m u n d o
e espero. Os p e i x e s , porém, n ã o m o r d e m a i s c a e m u i t a s v ê -
zes v o l t o para m e u s a m i g o s c o m a cara decepcionada de q u e m
tirou de dentro d'água a p e n a s um s a p a t o velho. P a c i ê n c i a é
virtude que n u n c a tive. J o g o l o n g e caniço e anzol, v o l t o - m e
para o m e u l a g o interior e c o m e ç o a p e s c a r d o c e s m e m ó r i a s .
Mas B e s a l u é um l u g a r pequeno e f i c a m o s m u i t o t e m p o
uns c o m os outros. A f u g a é difícil. Os d i a s s ã o l o n g o s . Ê
numa h o r a de d e v a n e i o que o primeiro p e i x e s a l t a v o l u n t a -
riamente para o m e u c e s t o .
C h a m a - s e D i n o Giglio e é um t o s c a n o louro e e m a c i a d o .
duma palidez doentia. P r i m e i r o , u m d i á l o g o c u r t o e m t o r n o
dos internacionais. D e p o i s : i
— N u n c a v i u u m a e n x u r r a d a ? — p e r g u n t a - m e ele.
— Muitas.
D i n o G i g l i o e s t e n d e o s braços, a s s u a s m ã o s b r a n c a s d e
dedos l o n g o s e t r ê m u l o s t r a ç a m um g e s t o a m p l o e nervoso.
— A á g u a é c o r de barro e a correnteza t r a z g r a v e t o s ,
cascas d e fruta, p a p é i s v e l h o s , a n i m a i s m o r t o s . . . — F a z u m a
pequena p a u s a e d e p o i s c o n c l u i : — P o i s eu s o u c o m o um
vaso n o t u r n o a m a s s a d o e v e l h o q u e a e n x u r r a d a da vida
trouxe para a B r i g a d a Internacional.
Olho-lhe o r o s t o m a r c a d o pela vida. Há nele u m a e x p r e s -
são de canse da perversidade.
— N ã o há sordidez q u e eu n ã o t e n h a c o m e t i d o — con-
tinua o t o s c a n o . — O h o m e m é um poço de iniqüidade. Os
que se j u l g a m p u r o s é porque t ê m a s u j e i r a escondida n u m a
camada m a i s profunda. O u t r o s n a s c e r a m c o m o l i x o à flor
d a pele. E m a l g u n s d á - s e d e repente u m a e s p é c i e d e e x p l o s ã o
e a imundície começa a j o r r a r . . .
N ã o m e d i z m a i s nada n e m e u l h e pergunto. N ã o acre-
dito que D i n o G i g l i o t e n h a i n v e n t a d o n o v o s m é t o d o s d e s e
degradar. O t o s c a n o se vai, perco-o de v i s t a d u r a n t e m u i t o s
dias. O s e g u n d o p e i x e que me cai i n o c e n t e m e n t e n a s m ã o s
é um rapaz de v i n t e e um a n o s a q u e m c h a m a m o s "El R u s i -
to". T e m u m a h i s t ó r i a curiosa. O pai e r a um nobre, oficial
42 ERICO V E R Í S S I M O

d o e x é r c i t o i m p e r i a l , q u e c o n s e g u i u f u g i r d a R ú s s i a p o r oca-
s i ã o d a r e v o l u ç ã o b o l c h e v i s t a . P a s s o u p a r a a T u r q u i a e fi-
n a l m e n t e p a r a a F r a n ç a c o m a m u l h e r e o filho r e c é m - n a s -
cido. V i v e r a m r e l a t i v a m e n t e b e m e n q u a n t o d u r o u o d i n h e i r o
obtido com a venda das jóias da família. V i e r a m depois dias
c r u é i s e o ex-oficial do C z a r t e v e de g a n h a r a v i d a em e m -
p r e g o s m o d e s t o s e precários. Em 1925 e m b a r c o u com a l g u n s
e m i g r a n t e s p a r a a Argentina. A m u l h e r m o r r e u na viagem
e foi l a n ç a d a a o m a r . E m C a t a m a r c a p a i e f i l h o c o m e ç a r a m
v i d a n o v a . O r a p a z foi m a t r i c u l a d o n u m colégio d e B u e n o s
Aires e o velho lhe escrevia freqüentemente cartas saudosas
em que lhe falava de s u a s crescentes esperanças de que um
d i a f o s s e r e s t a b e l e c i d o o t r o n o n a R ú s s i a e eles p u d e s s e m
voltar para a pátria que "esses malditos bolcheviques agora
infelicitam".
Olho com s u r p r e s a p a r a o rapaz e lhe p e r g u n t o :
— Como se explica que t e n h a s vindo te alistar na "Bri-
gada Internacional"?
"El R u s i t o " fita em m i m os olhos muito azuis.
— Ê q u e d e s t e m o d o eu me s u b m e t o à p r o v a q u e me
f a r á conseguir a coisa que m a i s desejo na vida.
P o r u m i n s t a n t e f i c a e m silêncio, b r i n c a n d o c o m o g o r r o
que t e m n a s mãos. E depois conclui:
— A cidadania soviética.
6

Vejo e s t e s h o m e n s e m t o d a s a s p a r t e s , e n c o n t r o - o s n a s cir-
cunstâncias m a i s diversas. À h o r a d a s refeições com a
cabeça q u a s e m e r g u l h a d a n u m p r a t o de grão-de-bico. Com-
pletamente despidos a t o m a r b a n h o no rio. A n i m a d o s dessa
euforia q u e v e m dos primeiros copos de vinho. Acocorados,
de calças arriadas, n u m a posição grotesca em que é quase
impossível qualquer gesto de vaidade ou arrogância. Mudos
e silenciosos d i a n t e d u m p ô r - d e - s o l . . .
Tenho e n c o n t r a d o tipos t u r b u l e n t o s e palavrosos, sujei-
t o s s o c i á v e i s q u e s ó p o d e m v i v e r e m g r a n d e s g r u p o s . Co-
nheço m u i t o s contadores de histórias que não passam sem
u m a boa platéia. Avisto às vezes os solitários que a n d a m pe-
los c a n t o s s o m b r i o s o u q u e g o s t a m d e p a s s e a r p o r e n t r e o s
e s c o m b r o s d o c a s t e l o d a colina o u d a v e l h a i g r e j a d e S a n t a
M a r i a . Sei a i n d a d u m a c u r i o s a e s p é c i e — a d o s q u e t ê m a
obsessão do h e r o í s m o e a n s t i a m pela h o r a decisiva. A um
encontrei q u e é t o m a d o de súbitos p a v o r e s e crises de choro
quando se fala nos combates que h ã o de vir; m a s apesar
disso q u e r c o n t i n u a r porque na tortura em que vive, no medo
pânico da morte, parece a c h a r um prazer quase voluptuoso.
U m d o s i t a l i a n o s , h o m e n z a r r ã o v e r m e l h o d e c a b e ç a rap3da,
a n d a em e s t a d o de d e p r e s s ã o , r e c u s a - s e a c o m e r e á f a l a r ,
é como u m a s o m b r a a p a g a d a no meio dos outros. Há porém
um grande número de voluntários que atravessa as horas
numa atividade turbulentamente descuidosa e parece ver na
guerra o seu jogo predileto.
A n d a m por aqui numerosos refugiados judeus da Ale-
m a n h a e da Á u s t r i a e n ã o são poucos t a m b é m os que se alis-
t a r a m na Brigada Internacional para fugir a algum d r a m a
íntimo. Acabo de descobrir, por exemplo, que aquele homen-
z i n h o g r i s a l h o e t r a n q ü i l o q u e ali e s t á e n r o l a n d o o s e u ci-
garro, achou n a g u e r r a u m a forma d e suicídio.
Encontro t a m b é m aqui alguns homens que vieram por
puro espírito esportivo. N ã o estão desiludidos do mundo nem
44 ERICO VERÍSSIMO

f a l a m em ideal. A c h a m que a v i d a é u m a só e o h o m e m t e m
t o d o o d i r e i t o de usá-la ou perdê-la c o m o entender.
T r a v o relações c o m u m e x - e s t u d a n t e f r a n c ê s que adora
os l i v r o s de A l a i n Gerbault e as n o v e l a s de Jack London.
Fala-me do m a r com paixão. É um tipo baixo, de olhos doces
e z i g o m a s s a l i e n t e s . Vê a v i d a em t e r m o s de a v e n t u r a e de
a ç ã o . P a r a ele o m u n d o só v a l e pelo que pode oferecer ao
h o m e m de episódio e de e m o ç õ e s v i o l e n t a s .
T e m o s aqui o s i d e a l i s t a s puros. S ã o e m g e r a l m o ç o s que
d e s e j a m m o r r e r por a l g u m a coisa. T ê m u m corpo v i b r a n t e ,
u m a a l m a p r o n t a a se d e i x a r e m b a l a r à m ú s i c a d a s u t o p i a s :
q u e r e m d e s e s p e r a d a m e n t e oferecer a v i d a em sacrificio de
qualquer idéia. U n s f a l a m e m c o m u n i s m o , o u t r o s e m d e m o c r a -
c i a e a p a l a v r a h u m a n i d a d e a n d a em m u i t a s b o c a s . Eu qui-
s e r a s e r u m d e s s e s . À s v e z e s t e n t o iludir-me com p a l a v r a s .
N ã o adianta. J á procurei d a n ç a r a t o d a s e s s a s m ú s i c a s . N ã o
m e a d a p t o a s e u r i t m o . N o e n t a n t o , é curioso, n ã o s o u u m
céptico, n e m u m s u i c i d a e m u i t o m e n o s u m a p a i x o n a d o d a
g u e r r a . A n i m a - m e u m a esperança n e m e u m e s m o sei e m quê.
Sebastian B r o w n me assegura que eu tenho, embora não
s a i b a , o e s p i r i t o r e l i g i o s o e que e s s a i n t u i ç ã o v a g a é o prin-
cipio de fé. Ê m e l h o r n ã o cavocar. D i g o - l h e i s t o e o n e g r o
me retruca:
— C a v o c a r é b o m . No c o m e ç o a g e n t e encontra v e r m e s ,
c a d á v e r e s , d e t r i t o s . . . A t e r r a parece s ó encerrar c o i s a s s u -
jas. ..
Cala-se. N a s u a cara f o s c a abre-se u m sorriso.
— D e p o i s — c o n t i n u a ele — a g e n t e e n c o n t r a n a s ca-
m a d a s m a i s f u n d a s á g u a pura, fresca, boa. E t a l v e z ouro. O
o u r o d a fé.
— Palavras.
— Que importa que sejam palavras?
— Poesia.
— V o c ê t a m b é m é um poeta. N ã o a d i a n t a esconder.
— Q u e m foi q u e l h e d i s s e i s s o ?
— Eu sei. Eu s i n t o . V o c ê g o s t a de o l h a r p a r a o c é u e
ficar calado. A s p e s s o a s a s s i m n u n c a m e e n g a n a m . S ã o d i f e -
rentes das outras.
— Talvez.
U m silêncio. S e b a s t i a n B r o w n m e p e r g u n t a c o m o é q u e
se t r a d u z p a r a o p o r t u g u ê s a p a l a v r a "friend".
— A m i g o — respondo-lhe.
SAGA 45

— B e m como em espanhol. .. Devia ser igual em todas


as línguas do mundo.
Ele repete a palavra, duas, t r ê s vezes, b e m baixinho,
c o m o se a a c a r i c i a s s e c o m os l á b i o s .
— A m i g o . .. A m i g o . . . O m a i o r p r e s e n t e da vida.
É um grande negro. Tenho vontade de abraçá-lo. P o r
que será que a gente se e n v e r g o n h a de ser s e n t i m e n t a l ? N ã o
quero me deixar a r r a s t a r por esta vaga quente e estontea-
d o r a . A g a r r o - m e d e s e s p e r a d a m e n t e a o solo. L i m i t o - m e a
o i h a r p a r a S e b a s t i a n B r o w n , a c e r r a r e e r g u e r o p u n h o , di-
zendo:
— T u m e r e c i a s u m soco n o o u v i d o !
Ele repete sorrindo:
— Amigo.

O C o m i s s á r i o C a n t a l u p o é um r o m a n o b a i x o e g o r d o , de
rosto redondo e faces coradas. Seus lábios carnudos, d u m
v e r m e l h o ú m i d o , e s t ã o a c o n t a r s e g r e d o s de l u b r i c i d a d e e
gula. P a r e c e u m f r a d e d a I d a d e M é d i a , s a í d o d a s p á g i n a s d o
Decameron. A g o r d u r a não lhe e n t r a v a a ação. Gino Canta-
lupo é u m d o s h o m e n s m a i s a t i v o s q u e c o n h e ç o . M e t i d o n a
sua j a q u e t a de couro, calças de m o n t a r i a de veludo castanho,
b o i n a e n t e r r a d a n a c a b e ç a , a n d a ele p o r t o d o s o s c a n t o s d o
m o s t e i r o , p e l a s r u a s d e B e s a l u , c o n f a b u l a c o m oficiais, p r e -
dica s o l d a d o s e c a m p o n e s e s , e x a l t a - s e , s u a , g r i t a , e x o r t a , c a n -
t a . N u n c a o v e j o e m r e p o u s o . T e m u m a v o z u n t u o s a , leve-
mente feminina, m a s ao mesmo tempo vibrante e firme. Fala
com u m a eloqüência meridional e s u a s m ã o s g o r d a s e r o s a d a s
ora volitam t r ê m u l a s no ar como p á s s a r o s decorativos, o r a
se fecham ameaçadoras para esmagar cabeças imaginárias.
Nos m o m e n t o s de ira Cantalupo se t r a n s f i g u r a . Seus olhos
escuros despedem fagulhas, a papada lhe t r e m e e todo aquele
c o r p o m a c i ç o p a r e c e t r e p i d a r c o m o s e d e n t r o dele e s t i v e s s e
a funcionar um dínamo. T e m o h o m e m u m a tal eloqüência,
uma t a l força persuasiva que ao cabo de alguns instantes a
gente chega a esquecer-lhe a figura ridícula e precisa fazer
um esforço desesperado p a r a não se deixar levar por esse
cálido v e n t o d e e n t u s i a s m o q u e a r r a s t a o s o u t r o s h o m e n s ,
arrancando-lhes aclamações.
O e s t i l o o r a t ó r i o do C o m i s s á r i o C a n t a l u p o é p e s s o a l í s s i -
mo. Compõe-se duma combinação de doçura evangélica, pom-
bas líricas, i m a g e n s místicas, com visões apocalípticas e blas-
46 ERICO VERÍSSIMO

f ê m i a s i t a l i a n a s . À s vezes, d o a u g e d o e n t u s i a s m o ele c a i
n u m t e r r e n o g r o s s e i r a m e n t e cômico p a r a n ã o r a r o e n t r a r ino-
pinadamente no domínio da m a i s desbragada pornografia. Os
homens rompem então em gargalhadas e desse modo são
m a n t i d o s com a atenção em suspenso. Mas lá de novo está o
Comissário C a n t a l u p o s e r e n o e profético, a p i n t a r no qua-
d r o do f u t u r o o m a i s j u s t o e belo dos mundos.
O s u o r lhe escorre pelo rosto lustroso, pinga na j a q u e t a
de couro. O o r a d o r p e r o r a e n t r e vivas e aplausos.
C o n t a m - m e que C a n t a l u p o j á esteve m a i s d e u m a vez n a
frente de b a t a l h a e se portou com u m a coragem sobre-humana.
N ã o levava a r m a s e a s u a função e r a p r i n c i p a l m e n t e a de
incitar os homens ao combate. Fazia discursos, cantava hinos
e lançava o seu s a r c a s m o sobre o inimigo como g r a n a d a s
altamente explosivas.
Um dia Gino Cantalupo se aproxima de mim. Deve ter
no máximo um metro e sessenta de altura. Respira forte
como um touro. P e r g u n t a - m e o nome, a r a z ã o por que estou
aqui e acaba pedindo-me informações sobre o Brasil. Digo-
lhe apenas coisas v a g a s . O h o m e m se irrita. Quer dados
exatos.
— M a s c o m o ! — v o c i f e r a . — N ã o s a b e q u e é m e l h o r ca-
lar do que prestar informações erradas ou incompletas?
Bate nervoso com as palmas das mãos nas coxas nédias.
O l h o e s t a c a r a r e l u z e n t e e e x u b e r a n t e e s i n t o u m a r a i v a sú-
bita formigar-me no peito.
— E s c u t e — digo por entre dentes, n u m italiano estro-
p i a d o — eu n ã o sou n e n h u m a r e p a r t i ç ã o a m b u l a n t e de es-
tatística.
N ã o sei s e o r o m a n o m e c o m p r e e n d e , m a s s e u s o l h o s
piscam r e p e t i d a m e n t e ao m e s m o t e m p o que, de m ã o nos qua-
d r i s , ele p e r g u n t a :
— Valente, h e m ?
— P o i s é.
M i r a m o - n o s por a l g u n s s e g u n d o s em silencioso desafio.
Achamo-nos j u n t o de um dos m u r o s do convento e eu penso
— " A m a n h ã pela m a d r u g a d a um pelotão me p r e g a r á à b a l a
n e s t e m u r o " . O c o m i s s á r i o me o l h a de a l t o a b a i x o e v e j o
dissipar-se a nuvem da ira que p a i r a sobre o lustroso terri-
t ó r i o q u e é o r o s t o d e l e : em b r e v e o sol v o l t a a b r i l h a r n a s
rosadas m o n t a n h a s das bochechas. Creio que o perigo passou.
— Vasco Bruno, e h ? Sul-americano, e h ? Sabe que eu o
podia denunciar como insubordinado?
SAGA 47

— Sei.
— S a b e q u e d e n t r o de p o u c a s h o r a s v o c ê poderia e s t a r
diante d o p e l o t ã o d e f u z i l a m e n t o ?
— T a m b é m sei.
— E não tem medo?
— Não.
Os lábios do comissário se encrespam n u m sorriso de
desprezo.
— R i c o t i p o . . . — m u r m u r a ele. — S u l - a m e r i c a n o , e h ?
S a c o d e a cabeça, s o r r i n d o s e m p r e , e d e s f e r e - m e de sur-
presa um s o c o no peito. Q u a s e perco o equilíbrio. C a n t a l u p o
solta u m a risada, f a z m e i a - v o l t a e l á s e vai, n o s s e u s p a s s o s
bruscos, r á p i d o s e e l á s t i c o s .
U m h o m e m e x t r a o r d i n á r i o . A s s e g u r a m - m e que o b s e r v a
rigorosa c a s t i d a d e e, q u a n t o à m e s a , é d u m a f r u g a l i d a d e
espartana.

P o r obra e g r a ç a de Carlos Garcia v a m o s h o j e ao bordel


de Besalu. Trata-se duma instituição nova, embora funcione
n u m a c a s a t r ê s v e z e s centenária. U m d o s p r o d u t o s d a guerra.
Das s e t e m u l h e r e s que l á e s t ã o , t r ê s v i e r a m d e Gerona, t r ê s
são r a p a r i g a s d o s arredores, c a m p o n e s a s l a n ç a d a s à prosti-
tuição pelo p r i m e i r o b a t a l h ã o que p a s s o u na v i l a e f i n a l m e n -
te a s é t i m a é u m a a r a g o n e s a t r i g u e i r a , t r a z i d a p a r a cá n ã o
sei por q u e v e n t o s , É a m a i s b e l a e a m a i s d i s p u t a d a de
todas.
Garcia e e u s a í m o s c o m D e N i c o l a que, c o m o e l e próprio
sempre diz, "vai a t o d a s " . A m u i t o c u s t o o chileno c o n s e g u e
arrastar Á x e l .
— V e m , lírio b r a n c o da E s c a n d i n á v i a — diz ele c o m ar
patético. — V a m o s r e s p i n g a r n e s s a corola pura u m p o u c o
d a l a m a d e B e s a l u . É u m a l a m a histórica, n ã o t e e s q u e ç a s .
Á x e l s e d e i x a levar, contrariado. É u m a n o i t e clara e
fresca. H á l u z e s e m a l g u m a s janelas. A l g u é m c a n t a n ã o s e i
onde u m a c a n ç ã o andaluza. L e v o c o m i g o u m a s e n s a ç ã o d e
a n g u s t i a . O m u n d o , t ã o diferente, que d e i x e i do o u t r o lado
do mar me acompanha numa lembrança brumosa, Tenho pas-
sado e s t e s d i a s procurando n ã o lembrar. F a ç o r e l a ç õ e s , con-
quisto a m i g o s e i n i m i g o s . P r e c i s o me a t o r d o a r c o m o ódio e
a simpatia dos outros, embrenhar-me nas histórias e nos
problemas a l h e i o s para e s q u e c e r a m i n h a h i s t ó r i a e os m e u s
problemas. N ã o q u e r o pensar. O i m p o r t a n t e a g o r a é e s q u e -
48 ERICO V E R Í S S I M O

cer. A g e n t e só d e v e g u a r d a r é a l e m b r a n ç a d o s v e l h o s e r r o s ,
p a r a n ã o t o r n a r a c a i r neles. Q u a n t o à s r e c o r d a ç õ e s dopes,
s e m p r e a esponja ensopada de v i n a g r e e m a i s t a r d e , talvez,
u m a e s p o n j a e m b e b i d a e m s a n g u e . E s t o u d r a m á t i c o . Deve
ser a noite milenar de Besalu.
O b o r d e l fica ao pé da colina. E n t r a m o s . A s a l a p r i n c i -
pal está cheia de voluntários, ao redor de pequenas mesas.
As poucas mulheres do bordel a n d a m de grupo em grupo,
fazem o possível p a r a satisfazer à n u m e r o s a e t u r b u l e n t a
freguesia.
O s s o l d a d o s c a n t a m , f a l a m a l t o , q u e r e m v e n c e r o silên-
cio. I n ú t i l . A q u i e t u d e de B e s a l u é m u i t o a n t i g a , é o silêncio
d o t e m p o e d a m o r t e , o silêncio q u e m a n a d o s c a d á v e r e s
desses bispos que há séculos r e p o u s a m nos sepulcros d a s
i g r e j a s , s o b i n s c r i ç õ e s s o l e n e s . E s t a s c a n t i g a s v ã o p a s s a r co-
m o p a s s a r t a m b é m v ã o a s f r a s e s e e x c l a m a ç õ e s d e ódio q u e
o s g u e r r e i r o s d e h o j e e s c r e v e m c o m giz o u p i x e p o r c i m a d a s
v e t u s t a s legendas latinas. O nosso m o m e n t o é apenas um re-
lâmpago na eternidade de Besalu.
D u a s m u l h e r e s v ê m p a r a a nossa mesa. U m a loura, que
vai sentar-se j u n t o de Garcia, e o u t r a morena, que se aco-
m o d a perto de mim. A presença de a m b a s me desperta re-
cordações d u m mundo longínquo. P o r que estou a q u i ? — per-
g u n t o a m i m m e s m o , o d i a n d o - m e p o r t e r feito e s t a p e r g u n t a ,
que me soa como u m a espécie de traição. M a s t r a i ç ã o a que,
a quem?
— Q u e b e b e s ? — i n d a g a De N i c o l a .
— N ã o há senão v i n h o . . . — resmungo.
T a l v e z a s a l v a ç ã o e s t e j a m e s m o no álcool — c o n c l u o
interiormente. E em seguida u m a rapariga vestida de verde
s u r g e em meus pensamentos. "Alguém do outro lado do m a r
a e s t a h o r a decerto e s t á dizendo u m a prece por m i m " —
p e n s o . Q u e r o a f a s t a r e s s e a l g u é m d a l e m b r a n ç a e p a r a isso
c o m e ç o a f a l a r à t o a p a r a a m u l h e r q u e se a c h a a m e u l a d o .
Vejo agora que é um tipo b a s t a n t e bonito, de tez moçárabe,
olhos lânguidos e c a r n a ç ã o rija.
— Queres posar p a r a m i m ? — pergunto-lhe.
— Posar?
Explico-lhe. Desejo pintar-lhe o r e t r a t o . Com um cravo
v e r m e l h o n a b o c a o u e n f i a d o n o s c a b e l o s n e g r o s . E l a s e li-
m i t a a me dizer p o r cima do o m b r o :
— M i r a , que g r a c i a !
— E n t ã o , à t u a s a ú d e ! — d i g o , e r g u e n d o o copo.
SAGA 49

Bebo. O vinho e s t á morno.


A a r a g o n e s a c o n t e m p l a Á x e l , cujo o l h a r p a r e c e p e r d i d o
nos s e u s p r ó p r i o s p e n s a m e n t o s . N o s olhos dela vejo o desejo
como u m a v a g a q u e se avoluma, a r d e n t e , que sobe violenta
e se vai e s b o r o a r c o n t r a o q u e b r a - m a r de gelo azul dos olhos
do sueco. Isso não me c a u s a a d m i r a ç ã o . Áxel r e a l m e n t e é o
m a i s belo e x e m p l a r h u m a n o do b a t a l h ã o . P e n s o isto com um
certo orgulho de irmão.
A loura t a g a r e l a que G a r c i a t e m nos joelhos diz-lhe ca-
rícias em diminutivos e mordisca-lhe a orelha. Fico v a g a -
mente excitado. De Nicola olha a cena com olhos p a t e r n a i s .
A a r a g o n e s a , cujo n o m e n i n g u é m t e v e a c u r i o s i d a d e de
p e r g u n t a r , a p r o x i m a a s u a c a d e i r a de Á x e l . O sueco, l i m i t a - s e
a l a n ç a r - l h e um o l h a r r á p i d o e c a s u a l .
E s v a z i o o m e u copo. Um h o m e m lá fora c a n t a u m a
canção de amor. Um cachorro começa a latir longe. Ouço
alguém g r i t a r a palavra "vitória". Tudo isto é muito estra-
nho.
De Nicola está fazendo mágicas com um velho baralho
para t r ê s jovens italianos corados com ar de "balillas".
— E s c o l h a m u m a c a r t a — diz o s a r g e n t o , f e c h a n d o os
olhos.
Tinem copos, a r r a s t a m - s e cadeiras. E n t r a u m a d a s cria-
das do bordel com u m a bandeja com g a r r a f a s e canecões.
A o vê-la G a r c i a d e s c r e v e - a c o m p a l a v r a s d e C e r v a n t e s :
— "Servia en la venta asimismo una moza asturiana,
ancha de cara, llena de cogote, de nariz roma, dei un ojo
tuerta e dei otro no muy sana."
A aragonesa m u r m u r a ao ouvido de Áxel palavras que
não consigo ouvir, m a s que adivinho, exaltado. Seus dedos
morenos se a t u f a m nos cabelos louros do r a p a z n u m a carí-
cia e s v o a ç a n t e . S e u s s e i o s p a l p i t a m d e d e s e j o , q u t r o d e s v i a r
os olhos m a s u m a fascinação me prende à cena. Áxel revol-
ve-se na c a d e i r a , i n q u i e t o , c o m e ç a n d o a p e r d e r a c a l m a o l í m -
pica. Q u e d i a b o t e r á e s s e h o m e m n a s v e i a s . . . á g u a f r i a o u
sangue?
— O ás de o u r o ! — g r i t a De N i c o l a .
G a r c i a ergue-se da m e s a a b r a ç a d o com a sua loura. E
a aragonesa, n u m movimento elástico salta p a r a os joelhos
do s u e c o , e n l a ç a - l h e o p e s c o ç o c o m os b r a ç o s e m o r d e - l h e a
boca. A l g o d e i n e s p e r a d o , e n t ã o , a c o n t e c e . Á x e l d e s e m b a r a ç a -
s e dela c o m g e s t o s q u a s e b r u t a i s , e r g u e - s e d e s a b r i d o , d e r r u -
50 ERICO VERÍSSIMO

b a n d o u m a cadeira, a t r a v e s s a a s a l a em p a s s a d a s l a r g a s e sai
b a t e n d o c o m a porta.
— S e u a m i g o v i u f a s t a s m a ? — p e r g u n t a De N i c o l a , vol-
t a n d o a cabeça c o m pouco interesse.
E n c o l h o os ombros. E s t o u me h a b i t u a n d o à e s q u i s i t i c e
das criaturas.
A a r a g o n e s a se a p r o x i m a de m i m , o f e g a n t e , e p e r g u n t a -
me, n u m t o m d e d e s a f i o :
— Tu t a m b é m és de p e d r a ?
C o m o única r e s p o s t a ergo-a n o s b r a ç o s e levo-a para o
quarto.
7
É n u m a t a r d e de céu nublado. Vejo pela p r i m e i r a vez o
h o m e m que ali e s t á s e n t a d o j u n t o d o p o r t ã o d o mosteiro,
a esculpir a canivete u m a figura em madeira. Quem s e r á ?
Quero p a s s a r de largo e esquecê-lo m a s sinto um inexplicável
f a s c í n i o . E s g u i o , o s s u d o , t e m ele u m a c a b e ç a d e p r o f e t a , e
a b a r b a à nazarena, c a s t a n h a e crespa, forma belo contraste
c o m o r o s t o d u m a lividez a m a r e l a . P a r e c e u m C r i s t o p i n t a d o
por Van Gogh.
O c o r r e - m e u m a idéia. C o r r o a b u s c a r p a p e l e l á p i s e
s e m q u e o h o m e m m e v e j a — pois e s t á a b s o r t o e m s e u t r a -
balho — faço-lhe um rápido r e t r a t o . Ótimo p r e t e x t o p a r a me
a p r o x i m a r dele.
— Com licença...
E l e e r g u e o s o l h o s m a s n ã o diz p a l a v r a . E n t r e g o - l h e o
desenho, que ele olha d e m o r a d a m e n t e , m a s sem interesse, e
depois, c o m o q u e m q u e r p a g a r u m a g e n t i l e z a c o m o u t r a ,
mostra-me o t r a b a l h o que está fazendo. Acocoro-me ao lado
dele e t o m o n a s m ã o s a p e q u e n a e s c u l t u r a . É e v i d e n t e m e n t e
u m C r i s t o , m a s u m C r i s t o v e s t i d o c o m o e u e c o m o ele, u m
Cristo que t e m na cabeça um capacete de aço, na mão, u m a
c a r a b i n a e n o r o s t o , u m a e x p r e s s ã o d e ódio. N o s s o s o l h o s
s e e n c o n t r a m . O s m e u s d e v e m e x p r i m i r e s p a n t o . O s dele s ã o
apenas vagos e agora de perto eu lhe descubro nas pupilas
azuis curiosos p o n t i n h o s de fogo.
— É o C r i s t o m o d e r n o — e x p l i c a ele c o m s u a v o z ca-
vernosa. — O Cristo Legionário.
N ã o sabendo que dizer, limito-me a s a c u d i r a cabeça,
n u m submisso acordo, como se estivesse diante de u m a cri-
a n ç a o u d e u m louco.
— O s h o m e n s a d o r a m ídolos f e i t o s p o r s u a s p r ó p r i a s
m ã o s . T a m b é m t e n h o d i r e i t o a f a z e r o m e u ídolo. A q u i e s t á .
F a l a sem me olhar, com a cabeça um pouco alçada p a r a
o céu.
— C r i s t o foi s u b l i m e q u a n d o e x p u l s o u os v e n d i l h õ e s do
t e m p l o — p r o s s e g u e e l e . — N e s s e d i a eu o a d o r e i . F o r a do
ódio n ã o h á s a l v a ç ã o .
52 ERICO V E R Í S S I M O

C o n t r a o m u r o limoso e escuro, e s t a cabeça de profeta


antigo t e m um realce singular. Fico a escutar, com o Cristo
Legionário na mão.
— E x p e r i m e n t e i todos os caminhos que levam ao êxtase.
Segui os passos de Pascal, Santa Teresa, São F r a n c i s c o . . .
O r o s t o do desconhecido continua imóvel. P a r e c e mono-
l o g a r p a r a u m a p l a t é i a invisível.
— T u d o em v ã o . A g o r a só o p a v o r da m o r t e é o m e u
êxtase.
C a l a - s e . E de r e p e n t e , c o m o se d e s p e r t a s s e , p a s s a - m e o
papel e tira-me das mãos a escultura.
C o n t i n u a a t r a b a l h a r c o m o se eu n ã o e x i s t i s s e , e c o m o
se nunca nos tivéssemos visto.
R e t i r o - m e em silêncio. Dizem-me que o h o m e m se c h a m a
E t t o r e Sarto e vem de antiga família do norte da Itália.
Quando pergunto a um dos internacionais que pensa
dele, o b t e n h o e s t a r e s p o s t a g r a v e :
— É um m í s t i c o .
I n t e r p e l o u m d i a o C o m i s s á r i o C a n t a l u p o . E l e fica a m o r -
d e r o lábio inferior por um i n s t a n t e e depois cicia:
— E t t o r e S a r t o ? Aquele tipo de b a r b a s ?
— Esse mesmo.
— Um l o u c o — b e r r a . E se v a i .
M a s D e N i c o l a , a q u e m m o s t r o o m e u p r o f e t a , t e m dele
uma opinião diferente. E n c o n t r a m o s E t t o r e Sarto no mesmo
l u g a r em que o vi pela p r i m e i r a vez e e n t r e t i d o no m e s m o
t r a b a l h o . O sol l h e i n c e n d e i a as b a r b a s , a l â m i n a do c a n i v e t e
fulgura.
— E t t o r e S a r t o . . . — diz o s a r g e n t o . — É de T r e n t o .
Conto-lhe do nosso encontro e d a s p a l a v r a s do homem.
De Nicola t i r a o cachimbo da boca, cospe p a r a um lado e diz:
— Um f a r s a n t e .
O r e t r a t o q u e fiz d e S a r t o a n d a d e m ã o e m m ã o . E co-
mo e s c r e v i p o r b a i x o as p a l a v r a s — Cristo Legionário — os
homens agora passam a chamá-lo por esse nome.

Quando no a n o de 1003 da E r a C r i s t ã o bispo de G e r o n a


c o n s a g r o u e s t a i g r e j a , n e m p o r s o m b r a s d e c e r t o lhe p a s s o u
pela m e n t e a idéia de que u n s novecentos e poucos anos m a i s
tarde, n u m m u n d o turbulento e complicado, enorme panelão
de sopa estivesse a fumegar na frente do altar-mor do tem-
SAGA 53

plo, p r o n t o p a r a s a c i a r a f o m e d u m b a n d o d e a v e n t u r e i r o s
irreverentes e em sua maioria hereges.
N ã o s e i s e foi p o r u m a n e c e s s i d a d e d e o r d e m p r á t i c a
ou por puro espírito de diabolismo que os administradores
do Batalhão escolheram esta igreja p a r a nela instalar o ran-
cho.
O s s o l d a d o s e n t r a m e m fila i n d i a n a p o r u m a d a s p o r t a s
laterais, com o p r a t o n u m a d a s m ã o s e o caneco na outra,
recebem logo à e n t r a d a um pedaço de pão, um pouco de vi-
nho, c h e g a m ao panelão onde se lhes e n c h e m o p r a t o de u m a
sopa de feijão b r a n c o onde b ó i a m descoloridos e r a r o s peda-
ços d e c a r n e e f i n a l m e n t e s a e m p e l a p o r t a c e n t r a l q u e d á
para a pequena praça.
E s t e é u m belo t e m p l o e m e s t i l o r o m â n i c o . A á b s i d e
central muito alta, está sustentada por colunas de capitéis
esculpidos de figuras de s a n t o s e folhas estilizadas. T e m
uma f a c h a d a s e r e n a m e n t e despida e a t o r r e do c a m p a n á r i o ,
relativamente baixa, é q u a d r a d a e de ar severo. A n t i g a m e n t e
era a fumaça do incenso que subia p a r a o altar-mor. Hoje
é o v a p o r da sopa q u e invade e s t e i n t e r i o r s o m b r i o e fresco
onde ecoam vozes internacionais. Dizem-se heresias e blasfê-
mias em mais de t r ê s línguas, m a s é ainda o idioma cantante
e p i t o r e s c o de C a n t a l u p o o q u e p r e d o m i n a .
Confesso que sinto um vago mal-estar quando entro
aqui. T e n h o na a l m a v á r i o s séculos de cristianismo. Mais de
uma vez q u a n d o adolescente proclamei aos q u a t r o ventos,
com a r i m p á v i d o , a m i n h a h e r e s i a . M a s u m a i g r e j a , s e m p r e
m e i m p õ e silêncio. É c o m o s e d e r e p e n t e s o b r e a s u p e r f í c i e
esfuziante da m i n h a a r r o g â n c i a caísse um véu opaco. É como
s e e u fosse d i m i n u í d o d e a l g u m a coisa, c o m o s e a a s a d u m
a n j o n e g r o d e r e p e n t e e s c u r e c e s s e o sol. S i n t o u m a e s p é c i e
d e frio interior, u m presságio. M a s . . . esqueçamos t u d o isso!
A v a n ç o com o m e u p r a t o de folha. A fome, sim, é u m a
coisa p o s i t i v a . A s o p a , a l g o d e p a l p á v e l . D e u s n ã o e x i s t e o u
se existe esqueceu-se do mundo, como disse aquele velho ma-
luco d e P o r t b o u .
Mário Guarini é um dos homens do r a n c h o : está encar-
r e g a d o do p a n e l ã o e q u a n d o c h e g a a m i n h a v e z o n a p o l i t a n o
pisca o o l h o e m o s t r a - s e g e n e r o s o n a r a ç ã o . A t r á s d e m i m
vêm Sebastian, Garcia e Áxel. Sebastian está meio assom-
brado e m b o r a n ã o o confesse. A c h a t u d o isso u m a p r o f a n a -
ção. N e m ele m e s m o s a b e q u e r e l i g i ã o t e m . Q u a l q u e r c o i s a
confusa, u m a m i s t u r a d e a d v e n t i s m o , p o e s i a e t e r r o r c ó s m i c o .
54 ERICO VERÍSSIMO

É um s u j e i t o f u n d a m e n t a l m e n t e bom. O n t e m à noite, c o m o
f a l á s s e m o s d a s razões que n o s t r o u x e r a m a lutar na E s p a n h a ,
ele m u r m u r o u n u m t o m d e v o z d e q u e m c o n t a u m s o n h o :
— E u e s t a v a e m Geórgia. U m dia u m jornal ilustrado
publicou f o t o g r a f i a s d a g u e r r a n a E s p a n h a . Crianças e s t e n -
d i d a s n a calçada, e n s a n g ü e n t a d a s , m u t i l a d a s , m o r t a s por
b o m b a s a t i r a d a s de a v i õ e s e s t r a n g e i r o s . C r i a n ç a s . . . Just
kids .. E n t ã o eu v i m .
S a í m o s para fora c o m n o s s o s p r a t o s . À frente da igreja
a m o n t o a - s e pequena m u l t i d ã o f o r m a d a d e v e l h o s , m u l h e r e s
e crianças. N a s r o u p a s predomina o preto, pois a maioria
e s t á de luto. N o s r o s t o s d o m i n a a n o t a da t r i s t e z a desalen-
t a d a . S ã o caras lívidas e descarnadas. As c r i a n ç a s é que dão
m a i s p e n a : descalços, o s p é s e n l a m e a d o s , o s o l h o s e s p a n t a d o s
de q u e m ainda n ã o compreendeu t o d a e s t a súbita e brutal
confusão.
P a r a m o s os q u a t r o à p o r t a da igreja. As m u l h e r e s e as
crianças e s t e n d e m para n ó s p r a t o s e p a n e l a s v a z i o s e um
coro de m u r m ú r i o s l a m e n t o s o s se e r g u e do grupo. Querem
comida. A l g u n s d o s s o l d a d o s r e p a r t e m c o m eles o que aca-
b a m d e g a n h a r . Outros p a s s a m d e largo. Garcia s e e s g u e i r a
dizendo:
— Considero-me um ó t i m o sujeito, m a s se me e n t r e g o à
caridade, c o m que f o r ç a s v o u c o m b a t e r o s f a s c i s t a s d e F r a n -
c o ? — E t o r n a a e v o c a r o t e s t e m u n h o de D o m Q u i x o t e —
. . . que el trábajo y peso de las armas no se puede llevar sin
el gobiemo de las tripas.
O s u e c o reflete um i n s t a n t e e depois, descendo calma-
m e n t e os degraus, a p r o x i m a - s e de u m a v e l h a e despeja-lhe
no prato a ração de sopa, g u a r d a n d o para si o pão e o vinho.
S e b a s t i a n e eu d a m o s t u d o q u e t e m o s e f i c a m o s de m ã o s
vazias.
— Eu não e s t a v a c o m f o m e . . . — minto.
O n e g r o a r r e g a n h a os d e n t e s :
— N a m i n h a terra negro quando t e m f o m e canta, s a b e ?
E começa a m u r m u r a r u m a c a n t i g a que fala d u m pais
m a r a v i l h o s o em q u e os p r e s u n t o s e os queijos b r o t a m n a s ár-
v o r e s c o m o frutos.
S a í m o s de b r a ç o s dados a caminhar.
S u b i m o s a colina onde ficava a a n t i g a B e s a l u e p o m o -
n o s a c a m i n h a r por e n t r e os e s c o m b r o s do castelo. Ao lado
dele e n c o n t r a m o s o s r e s t o s d u m a igreja. É a p e n a s u m frag-
m e n t o da ábside e u m a p a r t e da entrada. Sinto um e s t r a n h o
SAGA 55

prazer em p a s s a r a mão por estas pedras milenares e não


deixa de ser curioso a gente t a m b é m p e n s a r em que o mes-
m o sol q u e d o u r a e s t e m o n t ã o d e r u í n a s i l u m i n o u n o p a s s a d o
a glória da igreja de S a n t a Maria, a respeito da qual os ha-
bitantes desta vila c o n t a m t a n t a s histórias.
Sebastian e eu c a m i n h a m o s calados por entre os escom-
bros. P a r o de r e p e n t e com a imprecisa m a s i n q u i e t a n t e sen-
sação de que alguém nos espreita emboscado. Seguro o braço
d o n e g r o , q u e t a m b é m e s t a c a . E n t r e c e r r o o s o l h o s q u e o sol
ofusca. E v e j o c r e s c e r d a s o m b r a a z u l a d a d u m c a n t o o v u l t o
d e E t t o r e S a r t o . E s t á ele s e n t a d o , c o m o s b r a ç o s a e n l a ç a r
as p e r n a s dobradas, e as costas apoiadas na parede. T e m a
cabeça e r g u i d a e imóvel e parece olhar p a r a m u i t o longe.
Fica a s s i m longo t e m p o n u m silêncio quieto. N ó s t a m b é m
n ã o n o s m e x e m o s . C o m o ele p a r e c e n ã o d a r p e l a n o s s a p r e -
sença, a f a s t a m o - n o s s e m f a l a r e c o m e ç a m o s a d e s c e r a en-
costa.
— S e b a s t i a n , q u e é q u e v o c ê p e n s a do C r i s t o L e g i o n á r i o ?
Um místico ou um mistificador?
S e b a s t i a n volta a cabeça na direção do rio e seu o l h a r
p a r e c e f i x a r - s e n a v e l h a p o n t e e m z i g u e z a g u e q u e foi c o n s -
truída, disseram-me, no tempo das invasões mouras.
— N ã o s e i — m u r m u r a ele ao c a b o de a l g u n s s e g u n d o s .
— N ã o sei.
A n d a m o s alguns passos sem t r o c a r palavra e depois,
como se tivesse ficado a r u m i n a r a p e r g u n t a , B r o w n fala:
— Conhece aquela história do h o m e m que não quis d a r
abrigo ao mendigo n u m a noite de t o r m e n t a ? Pois bem. O
mendigo e r a Jesus Cristo disfarçado.
— E que t e m isso?
S e b a s t i a n B r o w n coça o q u e i x o , p e n s a t i v o .
— P o i s é. A g e n t e n u n c a s a b e . S e m p r e é b o m d e s c o n f i a r .
E se e s s e S a r t o é m e s m o J e s u s C r i s t o ?
A o p e r g u n t a r i s t o ele m e faz p a r a r e s e g u r a - m e f o r t e -
m e n t e os ombros. E s c r u t o - l h e o rosto, que e s t á fixo n u m a
expressão de seriedade ansiosa. Mas eu julgo ver-lhe nos
olhos u m r e m o t o b r i l h o d e i r o n i a .
E s t a r á S e b a s t i a n B r o w n f a l a n d o s é r i o o u f a z e n d o blague?
Por outro lado que esconderá Carlos Garcia por t r á s daquela
m á s c a r a de índio a r a u c a n o ? E que complicadas histórias
haverá na vida de Á x e l ? Qual é a verdade sobre E t t o r e Sar-
to? Como única resposta a m e u s pensamentos, encolho os
o m b r o s . Q u e p o s s o e u s a b e r d a a l m a d e s s e s h o m e n s q u e co-
56 ERICO VERÍSSIMO

n h e c i ontem, quando a m i n h a própria a l m a a i n d a t e m recan-


t o s d e s c o n h e c i d o s para m i m ?
S a i o a c a m i n h a r c o m De N i c o l a p e l o s arredores de B e -
salu, mas o que vejo não é a paisagem deste velho recanto
d a província d e Gerona, n ã o s ã o a s s u a s i g r e j a s q u a s e mi-
l e n a r e s n e m o seu rio que já se t i n g i u do s a n g u e de c r i s t ã o s
e infiéis. Marcantônio D e N i c o l a m e leva c o n s i g o n u m p a s -
s e i o f a n t á s t i c o a o redor d o mundo, c o n t a - m e d e s u a s a n d a n -
ç a s em cinco c o n t i n e n t e s c o m o o P r o f e s s o r Marcantônio, o
g r a n d e m a g o . E o diabo do h o m e m t e m um t a l poder d e s -
critivo, u m a t a l força d e d r a m a t i z a ç ã o verbal que e u c h e g o
a vê-lo de casaca, t u r b a n t e branco na cabeça a se curvar
ante os a p l a u s o s de mil e u m a p l a t é i a s .
— A vida, em s u m a , é u m a cartola de m á g i c o — diz èle
c o m a s u a p i t o r e s c a filosofia. — C o m um pouco de i m a g i n a -
ção e m u i t a habilidade a g e n t e t i r a dela t u d o : u m a lebre,
pombos, l a n t e r n a s a c e s a s , m o e d a s de ouro, b a n d e i r a s . . . —
De N i c o l a sorri, m o s t r a n d o os d e n t e s e s c u r o s . — É v e r d a d e
que há m o m e n t o s em que ela é s i m p l e s m e n t e u m a cartola
v e l h a e v a z i a s e m glória n e m surpresas. — Sacode a cabeça
d e v a g a r i n h o , s é r i o m a s n ã o melancólico, e conclui: — E s s a
é a h o r a de d e i x a r o palco, porque se d e m o r a m o s um s e g u n d o
m a i s , c h o v e m repolhos e o v o s p o d r e s . . .
Marcantônio De . N i c o l a pára e a p e r t a - m e o b r a ç o :
— A q u e s t ã o é s a b e r s a i r do palco na h o r a e x a t a — me
diz ele n u m murmúrio, c o m o para n ã o revelar o s e u s e g r e d o
às pedras de Besalu.
R e t o m a m o s a marcha. A t r a v e s s a m o s a ponte. Olho para
o céu e d i g o :
— Os aviões t ê m nos deixado em p a z . . .
C o m o se n ã o t i v e s s e e s c u t a d o e s t a s p a l a v r a s o prestidi-
gitador conta:
— U m a vez, e m Marselha, h a v i a u m a m u l h e r que m e
adorava. E r a u m a a l m a ingênua, de e n t u s i a s m o fácil e cre-
dulidade ilimitada. Ia para a c a m a c o m i g o convencida de que
e s t a v a dormindo c o m u m s u p e r - h o m e m . E x i g i a , como u m a
espécie de aperitivo, que a n t e s d o s b e i j o s eu lhe fizesse m á -
g i c a s . E lá e s t a v a o P r o f e s s o r Marcantônio a t i r a r a n é i s de
ouro da b o c a de s u a b e m - a m a d a , a fazer o chinelo s u m i r - s e
debaixo da c a m a para aparecer d e p o i s d e n t r o do jarro do
lavatório. — F a z u m a pausa breve. — E l a a c h a v a simples-
m e n t e que eu era u m a espécie de deus. H o m e n s belos e
ricos lhe f a z i a m p r o p o s t a s que ela r e c u s a v a s ó p a r a m e s e r
SAGA 57

f i e l . P o i s m u i t o bem. U m d i a ensinei-lhe o s m e u s t r u q u e s ,
f i z n ú m e r o s d e p r e s t i d i g i t a ç ã o e m m o v i m e n t o s l e n t o s , decom-
pus m u i t a s v e z e s a s m i n h a s m a i s e s p a n t o s a s m á g i c a s . . .
Cala-se. Olho p a r a ele, esperando.
— S a b e que foi que me a c o n t e c e u ? P e r d i a mulher. É
a velha h i s t ó r i a . E l a s querem ilusão. A s c r i a t u r a s g o s t a m
de m i s t é r i o . J o v e m a m i g o , n u n c a m o s t r e a s u a a l m a a nin-
guém.
No caminho da volta Marcantõnio me conta anedotas que
colheu n o s d i v e r s o s p a í s e s por onde a n d o u . F a l a c o m u m a
graça m u n d a n a e t e m o d e s e m b a r a ç o d u m b o m ator.
P a s s a m o s rindo o p o r t ã o do m o s t e i r o , m a s l o g o a o s pri-
meiros p a s s o s s e n t i m o s a a l m a b a f e j a d a por u m s o p r o 'pres-
aago. Há no ar q u a l q u e r e l e m e n t o e s t r a n h o e hostil. De N i c o l a
parece t e r s e n t i d o o m e s m o , porque e s t a c a de repente, p u x a -
me a m a n g a do casaco, f a z e n d o - m e p a r a r t a m b é m .
— A l g o de m a u a c o n t e c e u . . .—cicia ele.
D e onde n o s v e m e s s e p r e s s e n t i m e n t o e s c u r o ? D o s r o s t o s
fechados d e t r ê s h o m e n s q u e a c a b a m d e p a s s a r por n ó s ? O u
do silêncio e s p e s s o q u e p a i r a sobre e s t a c a s a e e s t e parque
de ordinário c h e i o s da balbúrdia d o s v o l u n t á r i o s ?
E n t r e o l h a m o - n o s , m u d o s , e ao c a b o d u m i n s t a n t e o s a r -
gento c o c h i c h a :
— E u nunca m e e n g a n o . S i n t o e s s a s c o i s a s a q u i . . .
E m o s t r a o coração. R e t o m a m o s a m a r c h a . No p á t i o
central os h o m e n s c a m i n h a m c a l a d o s e s e m g e s t o s , p a r e c e m
sombras. Q u e t e r á a c o n t e c i d o ? D i r i g i m o - n o s a um v o l u n t á r i o
d e aspecto i n c a r a c t e r i s t i c o que e s t á s e n t a d o s o b u m a d a s ar-
eadas da galeria. E e l e n o s i n f o r m a :
— U m soldado v i o l o u u m a menina. V a i s e r fuzilado da-
qui a u m a h o r a .
— C o m o se c h a m a e l e ? — indaga, rápido, De N i c o l a .
O o u t r o encolhe o s ombros. U m a idéia a s s u s t a d o r a m e
ocorre. S e b a s t i a n . . . M a s é impossível, quero t i r á - l a da m e n -
te, sacudo a c a b e ç a muitas, m u i t a s v e z e s c o m o p a r a a e s -
pantar. M a s e l a contínua aqui dentro, a v o l u m a - s e a cada s e -
cundo q u e p a s s a . F o i S e b a s t i a n . C o m e ç o a andar à t o a pelo
nosteiro, p r o c u r a n d o . . . N ã o e n c o n t r o n e n h u m d o s m e u s t r ê s
a m i g o s e isso a u m e n t a a m i n h a aflição. S e b a s t i a n . . N ã o há
dúvida. N u m m o m e n t o d e loucura, t o d a s a s f o r ç a s a n c e s t r a i s
surgindo d e repente, i r r e p r i m í v e i s . . . Entro no alojamento.
Ninguém. Corro p a r a o j a r d i m . À s o m b r a d u m a árvore Gua-
rini e Sebastian, acocorados, j o g a m d a d o s . Ao me v e r , o n e -
58 ERICO VERÍSSIMO

gro a r r e g a n h a os dentes. Respiro, aliviado. Mas onde e s t a r á


G a r c i a ? E por que me preocupo eu com esses rapazes como
se eles fossem m e u s filhos? Que vão todos p a r a o inferno!
— E n t ã o , já s a b e ? — p e r g u n t a Mário Guarini.
— Quem foi?
— P e p i n o V e r g a — r e s p o n d e ele, s e m l e v a n t a r o s o l h o s
do chão.
Julgo não t e r ouvido bem.
— O palhaço?
— O p a l h a ç o . .. T r i n c a de a s e s . . . N e g r o de s o r t e . . .
Mas, Vasco, estás p á l i d o . . . Que é isso?
— Nada.
Volto-lhe as costas e me afasto.
C o n t a m - m e que a menina que Pepino violou é u m a cria-
t u r i n h a franzina de quinze anos, de cara sardenta e ar sara-
p a n t a d o . T i n h a ido b u s c a r á g u a n o r i o d e p o i s d o a l m o ç o . . .
P e p i n o e s t a v a s e n t a d o n u m a p e d r a , p e s c a n d o . N ã o q u e r o ou-
vir d e t a l h e s . . . Alguém me informa t a m b é m que o coman-
dante deseja t r a n s f o r m a r o fuzilamento n u m a advertência, e
e x i g e a p r e s e n ç a de t o d o o b a t a l h ã o .

Tudo se passa com u m a rapidez estonteante. E s t a m o s


formados nos fundos do mosteiro e Pepino Verga, com u m a
venda sobre os olhos estúpidos, acha-se contra o muro, amar-
r a d o a u m p a l a n q u e . N ã o faz o u t r a c o i s a s e n ã o b a l b u c i a r
— Mamma. .. Mamma. . . Mamma. .. L o g o q u e o t r o u x e r a m
gritou, esperneou e depois r o m p e u em soluços convulsivos,
proporcionando aos soldados o seu último espetáculo. N ã o
h o u v e r i s a d a s n e m v a i a s n e m a p l a u s o s . A p e n a s o silêncio.
E a g o r a , e s t u p o r a d o , ali e s t á o clown d i a n t e do p e l o t ã o
de fuzilamento.
Ouve-se u m a voz de c o m a n d o seguida do estalido dos
f e r r o l h o s d o s fuzis. V o l t o a c a b e ç a p a r a f u g i r à q u e l a cena.
Vejo o C r i s t o L e g i o n á r i o que olha o condenado com u m a ex-
pressão quase voluptuosa. Seus lábios palpitam, s u a s mãos
t r e m e m , t o d o o s e u c o r p o s e a g i t a . M a s h á ê x t a s e n o seu
rosto.
U m a voz r o u c a :
— Fogo!
U m a d e s c a r g a rápida. E r a u m a vez u m p a l h a ç o . . . E s -
tou de tal maneira atordoado que não consigo coordenar
i d é i a s . D e b a n d a m o s e m silêncio.
8

Parece aproximar-se o grande momento. Embarcaremos


dentro de algumas horas. Os caminhões que nos vão levar
a Ollot c o m e ç a m a c h e g a r . A n o t í c i a da p a r t i d a é c o m o um
v e n t o s ú b i t o e v i v i f i c a d o r a e n c r e s p a r a s u p e r f í c i e do r i o
liso e i g u a l q u e c o m e ç a a s e r a v i d a do B a t a l h ã o G a r i b a l d i
neste mosteiro. Os homens ficam excitados. F o r m a m - s e as
c o m p a n h i a s , o s oficiais n o s f a z e m r e c o m e n d a ç õ e s . C a n t a l u p o
p r o f e r e i n f l a m a d o d i s c u r s o . N a f i l e i r a vejo u m a p a s s i o n a n t e
coleção d e m á s c a r a s h u m a n a s . N ã o t e n h o n e n h u m a t r a n q ü i -
lidade p a r a a s e s t u d a r a g o r a . E u s ó q u i s e r a v e r a m i n h a
própria cara. Escuto as palavras do comissário. A sua ter-
m i n o l o g i a c o m u n i s t a já "mi fá mole allo stomaco" — c o m o
costuma dizer De Nicola. Houve t e m p o em que essas p a l a v r a s
exerceram algum fascínio sobre o meu espírito de adolescen-
t e . A o s d e z o i t o a n o s a g e n t e t e m d e s e j o s m e s s i â n i c o s ás r e -
f o r m a r o m u n d o , d e m o l i r os v e l h o s edifícios, m a t a r a t r a d i -
ção. L a n ç a m o s c o n t r a o céu o n o s s o g r i t o de g u e r r a . — " S o -
mos a h u m a n i d a d e n o v a . A b a i x o o p a s s a d o ! N o s s o r e i n o é
o f u t u r o ! " Mas o próprio t e m p o acaba por nos convencer de
que a v i d a é a b s o l u t a m e n t e " o u t r a c o i s a " . N ã o c a b e n u m
programa de partido. N ã o se pode resumir n u m a fórmula. Ê
e n c a n t o e c o n f u s ã o , delícia e m i s é r i a , d o ç u r a e violência, or-
d e m e c a o s . F o g e a t o d a s as definições — p o r q u e a v i d a é
simplesmente a vida. E s t a m o s agora escutando um homem
que n o s f a l a em h e r o í s m o , s a c r i f í c i o , i d e a l e v i t ó r i a . F i c o a
imaginar que essas palavras devem t e r u m a significação es-
pecial p a r a c a d a u m d e s t e s h o m e n s .
U m a curiosidade mórbida de repente me assalta. Tenho
observado as m i n h a s reações diante da vida, quero agora ver
como m e p o r t o e m f a c e d a m o r t e . T a l v e z s e j a o e s t o n t e a -
m e n t o , o p a v o r e n ã o h a j a , no f i n a l de c o n t a s , n e n h u m a p o s -
sibilidade de a n á l i s e . Ou e n t ã o é p o s s í v e l t a m b é m q u e a m o r -
te me leve s e m q u e eu c o n s i g a v e r - l h e o r o s t o . S e j a o q u e
Deus q u i s e r . C u r i o s o , e u n ã o a c r e d i t o e m D e u s m a s E l e e s t á
60 ERICO VERÍSSIMO

sempre em meus pensamentos. E em minhas palavras. Fi-


g u r a d e r e t ó r i c a ? E s t r a n h a figura, p o r s i n a l C o m u m m i s -
t é r i o e u m a s e c r e t a f o r ç a que n e n h u m a o u t r a t e m . D e u s pode
existir. O u s e r á a p r o x i m i d a d e d o p e r i g o q u e m e e s t á a m o -
lecendo a v o n t a d e ? Talvez s e j a m a s v e l h a s i g r e j a s d e B e s a l u
com os túmulos de seus bispos e de seus santos. Mas em Besalu
t a m b é m e x i s t e m p r o s t i t u t a s , m u l h e r e s m a c i l e n t a s q u e perde-
r a m os m a r i d o s na guerra, c r i a n ç a s i n f e l i z e s e l a m a , m u i t a
lama. E s t o u m e f a z e n d o t ã o p a l a v r o s o q u a n t o o C o m i s s á r i o
Cantalupo. L á e s t á ele a perorar. E r g u e m - s e v i v a s . O s v o l u n -
t á r i o s c a n t a m p r i m e i r o a "Bandiera R o s s a " e d e p o i s a "In-
ternacional". A s v o z e s e n c h e m o p á t i o , s o b e m para o c é u s e m
n u v e n s , p a r a o c é u d a s e s t r é i a s líricas e d o s a v i õ e s m o r t í f e -
ros. Mundo d o i d o !
E s t a m o s f o r a d e forma. A c o r n e t a d e n t r o e m p o u c o n o s
c o n v o c a para o rancho. A p a n h a m o s p r a t o s e t a l h e r e s e cami-
n h a m o s p a r a a igreja, e n t r a n d o na fila.
— Nunca mais verei Besalu — resmunga Áxel.
— A g e n t e n u n c a s a b e — replico.
— T e n h o certeza de q u e n u n c a m a i s v e r e i e s t e lugar.
— S e e s s a i d é i a t e d á prazer, fica c o m e l a .
Á x e l p e r m a n e c e u m i n s t a n t e s i l e n c i o s o e depois, b a t e n d o
c o m o g a r f o d i s t r a i d a m e n t e no p r a t o de f o l h a , diz b a i x i n h o :
— Na escola em Estocolmo nos contavam muitas sa-
g a s . . . B e l a s l e n d a s d e heróis, c o n q u i s t a d o r e s , príncipes per-
f e i t o s e h o m e n s do m a r . — S u a m ã o m u i t o g r a n d e e clara
p o u s a n o m e u ombro, n u m a p r e s s ã o a m i g a . — M a s c o m o e m
todas as outras escolas do mundo eles se esqueceram de nos
preparar para a vida, a m a i s e s t r a n h a d a s s a g a s . . .

A p ó s o r a n c h o t e m o s a l g u n s m o m e n t o s de f o l g a e fica-
m o s a c o n v e r s a r e a f u m a r , s e n t a d o s n o s b a n c o s da p e q u e n a
praça.
Chega um grande caminhão empoeirado, que v e m de Fi-
g u e r a s c o m n o v o s v o l u n t á r i o s . S a l t a m dele u n s dez h o m e n s
e n t r e o s q u a i s v i s l u m b r o u m a v i s ã o surpreendente. U m h o -
m e m alto, esbelto, m e t i d o e m e l e g a n t í s s i m o dinner-jacket,
dirige-se p a r a nós. S e u s p a s s o s s ã o l a r g o s e decididos e n ã o
há nele o m e n o r ar de c o n s t r a n g i m e n t o . C a m i n h a c o m u m a
g r a ç a natural, é c o m o se a t r a v e s s a s s e a p i s t a d u m dancing
para c o n v i d a r u m a loura a d a n ç a r a rumba.
O s n o s s o s c a m a r a d a s que s e e n c o n t r a m n a s p r o x i m i d a -
SAGA 61

d e s cercam o d e s c o n h e c i d o , n u m a vozearia. M a s ele n ã o se


perturba, faz-lhes a c e n o s c o m a m ã o , sorridente. Na cara
m o ç a e s i m p á t i c a azula u m a barba de d o i s d i a s . E o j o v e m
do dinner-jacket abre c a m i n h o a t r a v é s da pequena multidão
e se a p r o x i m a de n ó s decidido. E s t e n d e a m ã o p a r a m i m c o m
a m a i o r naturalidade e d i z :
— P a u l Green. A m e r i c a n o . N ã o f a ç a caso, e s t o u m e i o
bêbedo.
F a z u m a c u r t a e g a i a t a c o n t i n ê n c i a para os o u t r o s e,
t o m a n d o - m e d o braço c o m u m a familiaridade fraternal, ar-
r a s t a - m e c o n s i g o . S o m o s s e g u i d o s d u m g r u p o ruidoso.
— Onde fica o bar, m e u v e l h o ? — p e r g u n t a - m e ele.
— Bar? A c h o que você errou o caminho.
— E u s e i . . . E u s e i . . . É u m v e l h o hábito. Q u e m é o
dono do e s t a b e l e c i m e n t o ? — pergunta, f a z e n d o um g e s t o lar-
go que abrange o m o s t e i r o e arredores.
— P e r d ã o . . . E s t a m o s n a C a t a l u n h a . . . E s p a n h a . . . sa-
be?
— Okay, o k a y . B a r b e i r o ? Manicure?
C o m o única r e s p o s t a d e s a t o a rir. E n t r a m o s no parque.
— Meu a m i g o — digo-lhe c o m t o d a a paciência. — N ã o
v ê que i s t o a q u i . . .
O r e c é m - c h e g a d o f a z um g e s t o de paz c o m a m b a s as
mãos erguidas e espalmadas.
— E u s e i . . . Catalunha, B r i g a d a Internacional, E s p a n h a ,
g u e r r a . . . E s t á certo. N ã o s e fala m a i s nisso. Ê e s p a n h o l ?
— N ã o . S o u brasileiro.
— Oh! B r a s i l . . . Buenos A i r e s . . . Cumparsita...
— É i s s o m e s m o . . . — atalho, para e n c u r t a r a e n u m e -
ração.
Os n o v o s v o l u n t á r i o s se a p r e s e n t a m ao c o m a n d a n t e . Sir-
vo de intérprete para P a u l Green. O C o m i s s á r i o Cantalupo
olha-o da cabeça ao p é s :
— Corja de b u r g u e s e s i n ú t e i s ! — r e s m u n g a ele. — Quan-
do p a s s a r a bebedeira é tarde para éle se arrepender. Ê por
causa de g e n t e d e s s a espécie que o m u n d o a n d a t o r t o .
— Que é q u e éle e s t á dizendo? — p e r g u n t a - m e Green
fazendo u m sinal n a direção d o c o m i s s á r i o .
— E s t á elogiando o s e u dinner-jacket! — m i n t o .
— Oh!
— E sua b a g a g e m ?
O americano t i r a do bolso u m a e s c o v a de d e n t e s .
— Aqui está.
62 ERICO VERÍSSIMO

Os n o v o s l e g i o n á r i o s v ã o partir c o n o s c o para Ollot. Can-


t a l u p o se a p r o x i m a de m i m e m o s t r a n d o c o m o g o r d o pole-
gar o meu novo camarada:
— T o m e conta do m a l u c o — diz. — P a r e c e s e r d e s s e s
m o ç o s que p e n s a m que a guerra é um garden-party em que
a g e n t e vai c o m u m a flor na botoeira.
— E não s e r á ? — pergunto, provocante.
O romano me lança um olhar de desprezo por c i m a do
o m b r o e, pondo na v o z e s s a caricia apertada em que às v e z e s
a g e n t e t r a n s f o r m a a v o n t a d e de vociferar, c i c i a :
— Conte-me d e p o i s . . . se n ã o perder a fala.

A c a m i n h o de Ollot n o s s o s carros v i a j a m b e m distancia-


dos u n s dos outros c o m o f i m de oferecer o m e n o r alvo pos-
sível à aviação inimiga, caso ela surja n u m a incursão ines-
perada. F a z frio, e s t a m o s a m o n t o a d o s u n s por c i m a dos ou-
t r o s e Garcia e eu, que n o s a l o j a m o s na parte posterior do
veículo, de v e z em quando recebemos d e s a g r a d a v e l m e n t e no
rosto os r e s p i n g o s de saliva de a l g u m soldado que cuspinha
para fora, lá na frente. O chileno queixa-se em voz b a i x a do
desconforto da v i a g e m .
— N ã o há dúvida que um P u l l m a n é m e l h o r . . .
Ele me olha de v i é s , com u m a e x p r e s s ã o torva.
— E s t á s e n g r a ç a d i n h o hoje.
— E tu e s t á s a m a r g o .
— D e v e s e r o fígado.
— Soldado não t e m fígado.
— V a i para o diabo, brasileiro!
— Em breve i r e m o s t o d o s para o diabo — d i g o baixi-
nho, pois sempre é bom t e r cautela u m a vez que v i v e m o s
no c o n s t a n t e receio de que d ê e m u m a interpretação derrotis-
ta às n o s s a s brincadeiras.
Garcia s e g u r a - m e a orelha com força.
— Desejo-te u m a boa bala b e m no centro da t e s t a .
— P o i s eu quero que u m a granada f a ç a picadinho des-
s a s t u a s carnes sul-americanas.
S e b a s t i a n n o s olha a s s o m b r a d o e Á x e l , que e s t á pren-
sado entre o corpanzil de Guarini e um saboiano gordíssimo,
mal a c h a e s p a ç o para f u m a r o s e u cachimbo e para n o s lan-
çar olhares protetores de i r m ã o m a i s velho que procura v e r
se "os m e n i n o s e s t ã o se portando direitinho".
O c a m i n h ã o rola pela estrada. O céu e s t á sombrio numa
SAGA 63

ameaça de chuva. Os homens estão sombrios numa ameaça


n ã o sei d e q u ê . T a l v e z e s t a a t m o s f e r a p e s a d a e n v o l v a a p e n a s
o nosso carro, pois dos outros nos chegam aos ouvidos sons
de cantigas, fragmentos de conversas animadas.
P a u l G r e e n , lá e s t á de p é , e n c o s t a d o à c a b i n a do chauf-
feur. A c h a - s e v e s t i d o b e m c o m o c h e g o u : f a l t a - l h e a p e n a s a
gravata de seda preta, que deu de presente a um rapaz cata-
lão e m B e s a l u .
Garcia contempla-o por alguns segundos e depois, tocan-
do-me com o cotovelo, diz:
— Ainda quero ver aquela camisa manchada de sangue.
— E s t á s fúnebre.
— E tu e s t á s i n s u p o r t á v e l .
— Que q u e r e s que eu f a ç a ?
— Dá-me um cigarro.
Dou-lhe. Sebastian risca um fósforo, que a m b o s aprovei-
tamos.
Noto que os internacionais parecem não simpatizar com
P a u l G r e e n . T a l v e z e s s e dinner-jacket s e j a o e l e m e n t o de d e s -
c o n f i a n ç a q u e e s t á a a f a s t á - l o s do a m e r i c a n o . G r e e n é um
sujeito de aspecto b a s t a n t e agradável. Q u a n d o lhe examina-
m o s o r o s t o de p e r t o , o q u e m a i s n o s f e r e a a t e n ç ã o s ã o os
olhos d e b o n e c a , d u m a z u l v í t r e o e i n g ê n u o c o m p e s t a n a s
femininamente longas e recurvas. Mas um queixo q u a d r a d o e
saliente, revelador de energia, u m a boca b e m r a s g a d a e u m a
testa alta g a r a n t e m para essa máscara um ar de masculi-
nidade.
Sempre achei um certo encanto nesses tipos que não se
a p e g a m a coisa a l g u m a d o m u n d o e p a r a o s q u a i s p a r e c e n ã o
e x i s t i r o p a s s a d o n e m e s s a i d é i a a q u e os h o m e n s d ã o o n o -
me de futuro. Colhem os frutos das árvores do caminho sem
p e r g u n t a r a q u e m pertencem. Com a m e s m a facilidade com
que t i r a m sem pedir, dão — m a s d ã o a mancheias, prodiga-
mente, m e s m o q u a n d o n i n g u é m lhes pede. São iguais t a n t o
na miséria como na f a r t u r a . Tempo, dinheiro e consciência
do dever — t r ê s elementos que t a n t o pesam na vida do ho-
mem ordinário — são coisas a que eles não dão o m e n o r
apreço. Tipos sem medida nem horário, não t ê m a m e n o r
n o ç ã o d e c o m p r o m i s s o . S ã o c a p a z e s d e s a c r i f i c a r a u m ca-
pricho m o m e n t â n e o o m e l h o r amigo com a m e s m a inconsci-
ê n c i a s e m r e m o r s o c o m q u e m a i s a d i a n t e s e s a c r i f i c a m fú-
t i l m e n t e pelo p r i m e i r o d e s c o n h e c i d o . N ã o q u e r e m s a b e r d e
obrigações sociais; a m a m a liberdade e o imprevisto acima
64 ERICO V E R Í S S I M O

d e t o d a s a s c o i s a s . A c h a m o t r a b a l h o n ã o s ó u m f a r d o in-
suportável, como t a m b é m a pior das degradações. Gostam da
v i d a m a s p õ e m - s e em r i s c o a t o d o o i n s t a n t e e q u a s e s e m p r e
s e m o m e n o r p r o p ó s i t o . T i p o s d e s s a espécie, q u e m o s p o d e r á
classificar com j u s t e z a ? Eles se me afiguram nas mais das
vezes t r e m e n d o s e g o í s t a s , m a s n ã o r a r o s o u l e v a d o a c r e r
que são as criaturas mais desprendidas do mundo.
P a u l G r e e n p e r t e n c e a e s s e clã. S u a a t i t u d e n e s t e m o -
m e n t o é b a s t a n t e s i m b ó l i c a . V a i v i a j a n d o d e c o s t a s n e m ele
mesmo sabe p a r a onde. Talvez p a r a a morte. No e n t a n t o
parece despreocupado, sorri, procura entabular conversação
com os voluntários, que se m a n t ê m reservados, faz-nos sinais
humorísticos e a c a b a por se a p r o x i m a r de nós, depois de
u m a série de acrobacias incríveis.
— Quer f u m a r ? — pergunto, passando-lhe a m i n h a car-
teira.
— G r a n d e i d é i a — r e s p o n d e ele, a p a n h a n d o u m c i g a r r o .
S e n t a - s e a n o s s o l a d o , d e s a l o j a n d o u m i t a l i a n o , q u e lhe faz
lugar, r e s m u n g a n d o m a l - h u m o r a d o . E quando lhe p e r g u n t o
c o m o foi q u e v e i o p a r a r n a B r i g a d a I n t e r n a c i o n a l , ele f a z
um gesto que significa: "Oh! Isso não t e m importância".
E, como eu e B r o w n insistimos, o a m e r i c a n o nos r e s u m e
sua história. Tem vinte e q u a t r o anos e nunca trabalhou em
toda a vida. Fez estudos atabalhoados porque estava an-
sioso p o r d e i x a r a universidade e a r d e n d o por conhecer o
mundo. Herdou u m a fortuna apreciável — dinheiro e bsns
i m ó v e i s — d u m t i o q u e o a b o r r e c i a e q u e ele d e t e s t a v a .
T r a n s f o r m o u os i m ó v e i s em d ó l a r e s e s a i u a v a g a b u n d e a r
p e l a t e r r a . V i a j o u d u r a n t e d o i s a n o s . N ã o l e v a v a m a l a s . Mui-
t o a t r a v a n c a m e n t o , v o c ê s c o m p r e e n d e m , m u i t o i n c ô m o d o , co-
n h e c i m e n t o s , c a r r e g a d o r e s . . . u m t r a n s t o r n o ! T r a z i a n o bolso
cheques de t u r i s m o e ia c o m p r a n d o r o u p a s à medida que pre-
cisava. As que t i r a v a do corpo, jogava-as fora. Andou assim
p o r t o d a a E u r o p a , pelo O r i e n t e e foi t e r m i n a r o s ú l t i m o s
dois mil dólares em Barcelona. Certa noite, ao p a g a r n u m
café a l g u n s whiskeys a u m h o m e m q u e c o n h e c e r a h a v i a m e i a
hora, verificou que se lhe ia a última peseta. Disse isso ao
companheiro eventual e pediu-lhe um conselho. Que fazer?
E s t a v a quebrado e odiava o trabalho. O outro mirou-lhe o
dinner-jacket i m p e c á v e l e disse, i r ô n i c o :
— Aliste-se na B r i g a d a Internacional.
— Grande idéia!
Sempre aborrecera os conselhos sensatos e nunca se ar-
SAGA 65

rependera de seguir os rumos da fantasia e do absurdo. Bar-


celona s e r i a a m i s é r i a . A B r i g a d a I n t e r n a c i o n a l , o i m p r e v i s t o .
Eis a razão por que está agora aqui em nossa companhia.

C h e g a m o s a Ollot. U m t r e m e s t á à n o s s a e s p e r a p a r a
nos l e v a r n i n g u é m s a b e a i n d a p a r a o n d e . U n s d i z e m q u e p a r a
o m a r ; outros afirmam que nos m a n d a r ã o diretamente para
a frente de batalha. Boatos desencontrados.
A i n d a n ã o n o s d e r a m a r m a s . C o m e ç a m o s a f i c a r inquie-
tos por não saber a razão disso.
E m b a r c a m o s sob forte chuva. N ã o h á n a d a como u m
b o m a g u a c e i r o p a r a a r r e f e c e r o â n i m o d o s o l d a d o , dissolver-
lhe a v o n t a d e de l u t a r , levá-lo a um e s t a d o de a b a t i m e n t o .
O t r e m se põe em m a r c h a . O nosso v a g ã o cheira mal. E s t a -
mos deprimidos.
E m Ollot n o s c o n t a r a m q u e o s a v i õ e s i t a l i a n o s f a z e m
e x c u r s õ e s d i á r i a s p e l o s a r r e d o r e s , à c a ç a d o s t r e n s q u e con-
duzem t r o p a s governistas. A nossa composição é enorme, um
belo alvo, c e r t a m e n t e , e , m a i s q u e isso, u m a l v o indefeso. S ó
os o f i c i a i s e a l g u n s v e t e r a n o s é q u e t r a z e m p i s t o l a s a u t o m á -
ticas e fuzis-metralhadoras.
P a u l G r e e n c o n s e g u i u p e r m u t a r em Ollot o dinner-jacket
p o r u m a s v e l h a s c a l ç a s d e v e l u d o m u i t o c o ç a d a s e u m a ca-
misa g r o s s e i r a d e lã. E m t r o c a d o s s a p a t o s d e v e r n i z r e c e b e u
um p a r de a l p e r c a t a s velhas. D a d a s as circunstâncias, creio
q u e foi u m ó t i m o n e g ó c i o .
O t r e m r o l a . S e b a s t i a n s e g u r a u m p e q u e n o e s p e l h o à al-
t u r a do rosto de Green enquanto este se barbeia com o meu
aparelho de Gillette.
Hoje é primeiro de maio. Um dos voluntários que vão
no nosso carro está furioso p o r n ã o t e r m o s participado da
grande p a r a d a que se está realizando em Barcelona. Culpa
o c o m a n d o da B r i g a d a , p r o n u n c i a a p a l a v r a desorganização,
m a s acaba se calando, pois sabe que se falar m u i t o correrá
o r i s c o de t e r o m e s m o f i m de P e p i n o V e r g a .

F a z h o r a s que e s t a m o s viajando de novo pela beira do


m a r . S a b e m o s a g o r a a o c e r t o q u e n ã o é a i n d a d e s t a vez q u e
v a m o s p a r a as t r i n c h e i r a s . O que eu desejo é um banho, rou-
pas limpas e u m a boa cama. Encosto a t e s t a no vidro da
janela, m a s não consigo e n x e r g a r o mar. A noite está escura
66 ERICO VERÍSSIMO

e a chuva continua a cair. Meus companheiros d o r m e m . N ã o


s e i o n d e foi q u e l i u m a h i s t ó r i a e m q u e o s m o r t o s v i a j a v a m
p a r a a Eternidade n u m trem. Talvez isto seja p u r a imagina-
ç ã o e e u n ã o t e n h a lido n a d a . D e c e r t o foi u m s o n h o . . . N a
m i n h a sonolência já n ã o sei distinguir o que sonhei do que
vivi. Talvez a vida seja um s o n h o ou um sono. ( H a m l e t na
Brigada Internacional.)
O matraquear das rodas. Rajadas de chuva batendo nas
vidraças do trem. Um homem que ronca. F a r t u m de corpos
s u a d o s e r o u p a s m o l h a d a s , b a f i o de a g u a r d e n t e . O v a g ã o é
um ninho de animais repelentes. Bastava u m a bomba para
acabar com todos estes sonhos e com todas estas misérias.
A última coisa que vejo antes de c e r r a r os olhos é u m a m ã o
p r e t a j u n t o d a m i n h a . D e p o i s , j á e s t o u n u m o u t r o p a í s e Se-
bastian Brown, de calças curtas, me convida p a r a ir r o u b a r
a m o r a s n u m q u i n t a l . Dizem que hoje chegou um circo for-
midável, t e m um palhaço muito engraçado c h a m a d o Pepino.

Quando acordo anunciam que estamos chegando a Bar-


celona. O t r e m diminui a m a r c h a . Olho a t r a v é s do vidro em-
baciado. Vejo vultos de casas, luzes m o r t i ç a s . F i n a l m e n t e o
t r e m estaca. Não chegamos a ver a estação. A demora é
c u r t a e estamos proibidos de saltar do carro. Chegam-nos
ruídos, vozes h u m a n a s , apitos, o resfolegar d u m a locomotiva.
Depois, um trilo prolongado, um novo a p i t o e o u t r a vez o
comboio se põe em movimento. P a s s a m o s por u m a r u a de
aspecto f a n t a s m a l . Dir-se-ia u m a cidade m o r t a . As luzes es-
t ã o a p a g a d a s e a c h u v a cai s e m c e s s a r . A l g u é m n o s a n u n c i a
que vamos descer em Tarragona.
Green abre os olhos, espreguiça-se e me p e r g u n t a com
cara de sono:
— C o n h e c e a h i s t ó r i a de G e o r g e W a s h i n g t o n , a m a c h a -
dinha e a cerejeira?
E s e m e s p e r a r resposta, enrosca-se no banco, r e p o u s a a
cabeça no respaldo de palha t r a n ç a d a e t o r n a a fechar os
olhos.
Na m a n h ã seguinte p a s s a m o s por T a r r a g o n a a t o d a ve-
l o c i d a d e . A c h u v a c e s s o u , o c é u e s t á l i m p o e o sol b r i l h a .
Almoçamos sardinhas, pão velho e vinho. Deixamos já p a r a
t r á s a p r o v í n c i a de G e r o n a , n o s s o d e s t i n o é d e s c o n h e c i d o e
continuamos ainda desarmados.
SAGA 67

O M e d i t e r r â n e o e s t á hoje d u m verde de e s m e r a l d a e
quando a b r o a janela u m a r a j a d a de vento fresco cheio de
sol e m a r e s i a , m e b a t e n o r o s t o . E n t r e g o - m e a p e n s a m e n t o s
líricos e p o r l a r g o i n s t a n t e esqueço q u e v i m à E s p a n h a p a r a
lutar.
Avistamos um amontoado de casas. Dentro de poucos
minutos o t r e m pára. Temos ordem de desembarcar. Ao pu-
lar do carro Garcia olha em t o r n o e diz:
— N ã o ficarei nada a d m i r a d o se estivermos em Lis-
boa. ..
— Perca a ilusão — grita alguém que passa. — Esta-
mos em Cambrills.
P a u l Green e r g u e no ar os alongados braços e saúda o
m a r . A v i s t a m o s De Nicola que nos faz sinais amistosos.
— S a r g e n t o ! — exclama o chileno. — F o m o s miseravel-
mente enganados, isto não é a frente.
Muito sereno, sem perder o aprumo, o prestidigitador
pede:
— Tenha calma. Vamos fazer agora u m a pequena esta-
ção b a l n e a r i a . . .
E com um gesto ágil t i r a u m a peseta do ouvido de Paul
Green.
9
C a m b r i l l s é u m a p e q u e n a v i l a da provincia de T a r r a g o n a .
N o s e u c a s t e l o , q u e s e a v i s t a d a praia onde e s t a m o s a c a m -
a
pados, a c h a - s e i n s t a l a d o o c o m a n d o da 4 5 . D i v i s ã o , que i n -
clui t r ê s b r i g a d a s internacionais.
O c e n á r i o m u d a e n o s s a vida t a m b é m . E n c o n t r a m o - n o s
a dois p a s s o s do m a r e a primeira n o i t e d o r m i m o s ao ar
livre. Os oficiais que n ã o f o r a m para o c a s t e l o , i n s t a l a r a m -
se nas cabanas dos pescadores. Temos de lançar mão dum
p r i m i t i v o t i p o d e h a b i t a ç ã o para n ã o c o n t i n u a r dormindo a o
relento. O s v e n t o s d a p r i m a v e r a m o v e m n o céu a s n u v e n s
c a r r e g a d a s de c h u v a e q u a n d o m e n o s se e s p e r a d e s a b a m s o -
bre n o s s a s c a b e ç a s f o r t e s a g u a c e i r o s . C a v a m o s t o c a s n o s
barrancos — "chavolas", c o m o l h e s c h a m a m os e s p a n h ó i s —
e em c a d a u m a d e l a s f i c a m a l o j a d o s t r ê s soldados.
N o s d i a s d e s o l t o m a m o s b a n h o s d e mar. Q u a n d o c h o v e
f i c a m o s m e t i d o s e m n o s s a s c a v e r n a s a o redor d u m f o g o , bar-
budos e t r u c u l e n t o s c o m o t r o g l o d i t a s .
Cada soldado g a n h a t r e z e n t a s e p o u c a s p e s e t a s e P a u l
Green m o s t r a - s e a n s i o s o por g a s t a r a s s u a s i m e d i a t a m e n t e .
T e m o s de contribuir para as l i s t a s de d o n a t i v o s d e s t i n a d o s a
"los n i ñ o s e s p a ñ o l e s " e a a u x í l i o s de r e t a g u a r d a , de s o r t e
que n o f i m d e c o n t a s n o s r e s t a m a p e n a s u m a s c i n q ü e n t a o u
sessenta pesetas.
Um dia n o s s u r g e m m u l h e r e s e c r i a n ç a s s u j a s e m a g r a s ,
pedindo e s m o l a s . D o u - l h e s o que t e n h o no b o l s o e Garcia,
que v e m correndo da praia, o n d e e s t e v e a j o g a r luta r o m a n a
com u m siciliano, brada d e l o n g e :
— A p o s t o c o m o lhe d e s t e t o d o o t e u dinheiro, n ã o ? O
famoso sentimentalismo sul-americano...
Fazemos diariamente exercícios militares, m a s continua-
m o s d e s a r m a d o s c o m o a n j o s . R a s t e j a m o s pela areia e m c o m -
b a t e s s i m u l a d o s , e n c o n t r a m o s na p r a i a p e i x e s e c a r a n g u e j o s
mortos, que e x a l a m um cheiro insuportável. F i c o a i m a g i n a r
c o m o s e r á n o d i a e m q u e e s t i v e r m o s a n o s a r r a s t a r por e n t r e
corpos h u m a n o s e m e s t a d o d e putrefação.
70 ERICO VERÍSSIMO

U m a noite, c o m o s e u h u m o r g e r m â n i c o , o i n s t r u t o r pre-
para-nos uma surpresa. Sem o menor aviso, na hora dum
a s s a l t o , m a n d a j o g a r g r a n a d a s d e m ã o d e v e r d a d e , que e x -
p l o d e m a p o u c o s p a s s o s na n o s s a frente. Ê u m a e m o ç ã o n o v a
e inesperada, m a s t u d o s e p a s s a s e m n o v i d a d e .
Os soldados aos poucos vão construindo as suas casas
c o m t r o n c o s e r a m o s de á r v o r e s t r a z i d o s do b o s q u e p r ó x i m o .
A l g u n s c o m habilidade e g o s t o e r g u e m b e l o s b a n g a l ô s . A
p r a i a se v a i e n c h e n d o de r a n c h o s . O m a i o r de t o d o s t o m a
o n o m e de "El Hogar dei Soldado". É u m a e s p é c i e de clube
d o s i n t e r n a c i o n a i s . T e m o s aqui o "jornal m u r a l " o n d e encon-
t r a m o s n o t i c i a s , p r o c l a m a ç õ e s , s u g e s t õ e s d e u m o u outro v o -
l u n t á r i o p a r a m e l h o r a r e s t e ou aquele s e r v i ç o , c o n v o c a ç õ e s e
c o n v i t e s p a r a f e s t a s . N o p r i m e i r o d o m i n g o s e r e a l i z a n a praia
u m a f e s t a c o m a p r e s e n ç a de o f i c i a i s e s o l d a d o s . Marcantô-
nio faz números de prestidigitação. Um italiano com ar de
b o x e a d o r toca á r i a s n u m v i o l i n o d e s a f i n a d o . U n s d o i s o u t r ê s
c a n t a m . D e quando e m q u a n d o s u r g e C a n t a l u p o , t r e p i d a n t e
c o m o s e m p r e , e r e ú n e os h o m e n s p a r a u m a preleção. E x p l i c a -
n o s o s "Treze P u n t o s d a N e g r i n " , que c o n t ê m a s f i n a l i d a d e s
d e s t a g u e r r a d o â n g u l o republicano.
Os banhos de mar me fazem bem. Sinto-me m a i s anima-
do, p o i s a n o s s a v i d a t o m a a g o r a u m r i t m o e s p o r t i v o .
P e r g u n t o u m dia a o c o m a n d a n t e d e n o s s a c o m p a n h i a :
— Quando teremos armas?
S e m p a r a r ele m e r e s p o n d e :
— A r m a s para q u ê ? P a r a m a t a r p a s s a r i n h o s ? O s fran-
q u i s t a s a i n d a e s t ã o longe.
C u r i o s a coincidência. N e s s a m e s m a t a r d e t r ê s a v i õ e s
i n i m i g o s p a s s a m e m v ô o b a i x o por c i m a d e n o s s a s cabeças.
T o m a d o s de p â n i c o os h o m e n s d e i t a m a correr para o bosque.
F e l i z m e n t e os S a v i o - M a r c h e t t i n ã o l a n ç a m b o m b a s e dentro
de p o u c o s m i n u t o s t o r n a m a desaparecer. À h o r a da r e v i s t a
u m d o s o f i c i a i s berra, f u r i o s o :
— Estúpidos! Correrem dessa maneira. P o d i a m ter mor-
rido como moscas.
E repreende-nos por n ã o t e r m o s p o s t o e m p r á t i c a a s
instruções recebidas com relação aos ataques aéreos.
U m a tarde de sol mandam-nos formar e marchar para
o c a s t e l o . S o m o s c o n d u z i d o s ao p á t i o c e n t r a l o n d e um oficial
francês nos ordena:
— Dispam-se todos!
Creio q u e n ã o ouvi b e m . O s h o m e n s p a r e c e m h e s i t a r .
SAGA 71

— T i r e m t o d o s as s u a s r o u p a s ! — i n s i s t e o oficial.
N ã o há dúvida. Querem que fiquemos nus. Entreolhamo-
nos n u m e m b a r a ç o cômico e começamos a nos despir. Em
menos de cinco minutos o pátio do velho castelo se transfor-
ma n u m a colônia nudista.
— Q u e diabo q u e r e r ã o de n ó s ? — indaga Sebastian com
um olhar desconfiado.
— C o n c u r s o de b e l e z a — diz P a u l G r e e n .
Passam-se os segundos. Os h o m t n s estão à vontade, pas-
seiam sós ou aos g r u p o s , conversam, f u m a m e esperam. É
u m e s p e t á c u l o s i n g u l a r . M a i s d e d u z e n t o s h o m e n s n u s a o sol
n u m castelo medieval da província de T a r r a g o n a . Vejo aqui
os mais variados tons de epiderme, os corpos de modelos
mais diversos. Indivíduos atléticos e raquíticos, apolíneos e
desengonçados, esplêndidos e ridículos. U n s são glabros como
adolescentes, outros peludos como símios. Sebastian parece
u m a f i g u r a t a l h a d a e m é b a n o e o c o n t r a s t e d e s u a pele n e g r a
com a b r a n c u r a d o u r a d a do corpo de Áxel chega a ser como-
vente. Ao redor destes homens as pedras escuras e antigas
do castelo que v i r a m t a n t a s cenas de glória e de miséria,
parecem t e r u m a r g r a v e m e n t e irônico. Descubro n u m dos
cantos do pátio E t t o r e Sarto. É de todas as figuras a mais
I m p r e s s i o n a n t e . S e u c o r p o d e s c a r n a d o , e m cujo t r o n c o a p a r e -
ce o relevo d a s costelas, e s t á m a i s do que nunca parecido
com o Cristo amarelo de V a n Gogh.
O u v i m o s u m a voz d e c o m a n d o . T e m o s d e f o r m a r n u m a
d u p l a fileira. Um s u j e i t o g o r d o e b a i x o de pince-nez c o m
corrente de ouro se a p r o x i m a de nós. Vêem-se a seu lado
mais dois h o m e n s de aspecto neutro, um dos quais t e m nas
m ã o s u m l á p i s e u m a c a d e r n e t a . M a n d a m - n o s d e s f i l a r pela
frente do h o m e m gordo, que examina os soldados com minú-
cia e r e p u g n â n c i a , d e u m e m u m . E m b r e v e s a b e m o s d o q u e
se t r a t a . Descobriram-se no batalhão vários casos de sarna e
os sarnosos vão ser recolhidos a um campo de isolamento.
N ã o posso fugir a u m a sensação de náusea. É esquisito como,
ao pensar na guerra, a gente nunca se lembra desses porme-
nores sórdidos ou então simplesmente triviais. Tem-se em
v i s t a a a ç ã o , a l u t a , o í m p e t o , as a r r e m e t i d a s c o r a j o s a s ou
então a silenciosa e s u b t e r r â n e a luta c o n t r a o medo. P o e t a s e
j o r n a l i s t a s , r o m a n c i s t a s e h i s t o r i a d o r e s , a n t e s de f i x a r a
g u e r r a em livros, r e v i s t a s e j o r n a i s p a s s a m - n a por u m a penei-
ra cuja t r a m a é feita de idealismo, r o m a n c e e clarinadas
gloriosas.
72 ERICO VERÍSSIMO

A q u i v o u eu, n u c o m o o p r i m e i r o h o m e m n o d i a d a c r i a -
ção. Acontece a p e n a s que levo n a s m ã o s a s m i n h a s r o u p a s
e na alma u m a sensação de repugnância que aquele remo-
tíssimo antepassado provavelmente ainda não conhecia na
m a n h ã da vida.
E s t a m o s nos vestindo j u n t o dos m u r o s do castelo. Chega
P a u l Green, de g o r r o na cabeça, o b u s t o coberto pela c a m i s a
d e lã, m a s n u d a c i n t u r a p a r a b a i x o .
— P a s s e i no e x a m e — d i z - n o s ele. — D i s t i n ç ã o .
Descemos depois os cinco p a r a a p r a i a e v a m o s c o m p r a r
sardinha aos pescadores. Ficamos a fritá-las em pratos de
barro.
O sol i r i s a a c o r o a de e s p u m a d a s o n d a s . S e m p r e é b o m
brincar com imagens poéticas depois d u m a cena como aquela
do pátio do castelo. S a r n a e poesia. Desses c o n t r a s t e s é que
se faz a vida. U m a coisa não t e r i a valor s e m a existência da
outra. Mas eu confesso que de bom grado dispenso a sarna.
Q u a n t o à poesia, ela às vezes é u m a espécie de janela que
se abre p a r a u m a paisagem repousante: cores e formas novas
para os olhos, ar p u r o p a r a a alma. Mas há m o m e n t o s em
que me revolto c o n t r a o que ela t e m de amolecedor e femi-
nino.
De qualquer modo as sardinhas fritas despedem um cheiro
apetitoso. C o m e m o s com voracidade e o vinho hoje me sabe
particularmente bem.

Ganho alguma popularidade entre os soldados desenhan-


do-lhes o s r e t r a t o s . E n q u a n t o u m deles posa p a r a m i m o s
outros me cercam e ficam a o l h a r os movimentos de m e u
lápis. Um t e n e n t e cujo perfil t r a ç o com a l g u m a felicidade,
fica de tal m a n e i r a e n t u s i a s m a d o com o r e t r a t o , que sai a
mostrá-lo para os amigos e volta algum tempo depois, tra-
zendo-me de presente u m a caixa de aquarela e alguns pincéis.
Um novo interesse e n t r a na m i n h a vida no fim da nossa
segunda s e m a n a em Cambrills. Começo a pintar. Já disse
que me interesso mais pelas figuras h u m a n a s que pela pai-
sagem. Mas da e n t r a d a da minha toca o quadro que se apre-
s e n t a aos olhos de q u e m se volta p a r a o poente oferece u m a
beleza t ã o t r i s t e e ao m e s m o t e m p o t ã o sóbria, que n ã o re-
sisto ao desejo de fixá-lo no papel. I m p r o v i s o um cavalete,
f a ç o um e s b o ç o a l á p i s — a c o l i n a de s u a v e declive, o c a s t e l o
lá em cima, um bosque de pinheiros a meia encosta, a cerca
SAGA 73

de p e d r a s m a r g e a n d o a e s t r a d a . Misturo as t i n t a s e ponho-
m e a t r a b a l h a r . S ã o dez h o r a s d a m a n h ã e o sol b r i l h a . E s -
queço me do m u n d o e m a n t e n h o um diálogo interior sobre a
:

qualidade grave dos verdes do outeiro. Reencontro u m a velha


alegria que j u l g a v a p a r a s e m p r e perdida.
M a s G a r c i a , G r e e n e B r o w n me o b r i g a m a a b a n d o n a r o
trabalho para acompanhá-los numa excursão ao aldeamento
d e p e s c a d o r e s q u e fica a t r ê s q u i l ô m e t r o s m a i s o u m e n o s d e
nosso a c a m p a m e n t o . V a m o s c o m p r a r s a r d i n h a s p a r a o al-
m o ç o . O céu t e m u m a z u l f e s t i v o , a s g a i v o t a s v o e j a m , p o u -
sam nas ondas crespas, aventuram-se em passinhos miúdos
pela p r a i a , t o r n a m a a l ç a r o v ô o n a d i r e ç ã o d o m a r a l t o . É
um belo dia de paz e boa vontade. Com o v e n t o iodado v e m
um bafo m o r n o da África. Que e s t a r á pensando Sebastian
Brown neste m o m e n t o ? Paul Green e Garcia fazem u m a apos-
ta e s a e m a c o r r e r . A e s t a luz m e d i t e r r â n e a se v a i a o s p o u -
cos d e r r e t e n d o a e s c u r a c r o s t a d e p e s s i m i s m o q u e m e e n v o l -
v e o e s p í r i t o . A l g u m a coisa q u e e s t a v a e s c o n d i d a n o f u n d o
d e m e u s e r v o l t a à t o n a , e s p r e g u i ç a - s e a o sol, r e s p i r a o
vento do m a r , sai a c o r r e r pela praia. Tenho a certeza de
que Sebastian me compreenderia se eu lhe dissesse o que
sinto. M a s eu g u a r d o p a r a mim, ciumento, e s t e m i n u t o de ale-
gria luminosa.
Os pescadores são h o m e n s m a d u r o s ou já velhos. F a l a m
pouco e t r a t a m - n o s com desconfiança. Compramos-lhes sardi-
nhas e preparamo-nos para voltar.
Não andamos ainda duzentos metros quando Green me
a p e r t a o b r a ç o e a p o n t a p a r a o céu. O l h a m o s . D o i s a v i õ e s
que v ê m d a s b a n d a s d o m a r dirigem-se p a r a Cambrills. E m
m e n o s d e dez m i n u t o s e s t ã o a m b o s v o a n d o p o r c i m a d o a c a m -
pamento. Vemos o repentino clarão de explosões seguidas de
estrondos. U m a , duas, t r ê s , q u a t r o , cinco b o m b a s . . . O s aviões
continuam a v o a r t e r r a a d e n t r o e em breve os perdemos de
vista.
Deitamos a correr na direção do acampamento. Chega-
m o s o f e g a n t e s e a n s i o s o s . U m d o s r a n c h o s foi p e l o s a r e s .
G r a n d e alvoroço. Homens correm d u m lado p a r a outro. Di-
zem-nos que há cerca de dez m o r t o s e v á r i o s feridos.
Encarregam-nos duma tarefa desagradável. Temos de ti-
rar de entre os ramos duma árvore os restos do voluntário
q u e u m a d a s b o m b a s e s t r a ç a l h o u e fez v o a r e m p e d a ç o s . A
á r v o r e goteja s a n g u e e pelo seu tronco dilacerado e s c o r r e m
filetes vermelhos. Um s a r g e n t o dá ordens. G a r c i a oferece-se
74 ERICO VERÍSSIMO

p a r a t r e p a r . T i r a a c a m i s a e os s a p a t o s e c o m e ç a a s u b i r .
Ficamos aqui e m b a i x o n u m silêncio de a n g u s t i a . Chego a
sentir a m i n h a própria palidez e m e t o as m ã o s nos bolsos
p a r a lhes disfarçar o t r e m o r .
Garcia grita de cima:
— Lá vai!
E começa a a t i r a r p a r a baixo os m e m b r o s mutilados. As
postas de carne ensangüentada batem no chão com um ruí-
do fofo e h e d i o n d o — g r a n d e s f r u t o s p o d r e s q u e o v e n t o faz
t o m b a r . S i n t o n á u s e a s , u m gelo n o e s t ô m a g o , u m e n f r a q u e c i -
mento súbito.
Quando Garcia desce, com mãos, braços e torso salpica-
dos de sangue, a p o n t a p a r a o chão e me diz:
— Aí tens u m a bela natureza morta. P o r que não vais
buscar a t u a caixa de t i n t a ?
Dentro de meia h o r a estamos livres desse horror. F o r a m
a p u r a d a s com e x a t i d ã o as p e r d a s . Q u a t r o m o r t o s e o i t o fe-
ridos. Os mortos vão ser enterrados imediatamente dentro
de sacos de lona. N ã o há t e m p o p a r a fazer caixões.
No cemitério de Cambrills. Cantalupo em cima d u m tú-
m u l o diz u m d i s c u r s o d e d e s p e d i d a a o s m o r t o s . A l i t e r a t u r a
de costume. F a z e m o s continência enquanto dois catalães
musculosos e melancólicos descem os sacos p a r a o fundo da
cova. Soa um clarim.
São três horas da t a r d e quando descemos p a r a a praia,
taciturnos e opressos. Um voluntário me vem dizendo:
— E n g r a ç a d o . . . escolherem-me para comandar o grupo
que andou recolhendo os pedaços de c a d á v e r e s . . .
— E n g r a ç a d o por quê? — pergunto, desconhecendo a
m i n h a p r ó p r i a voz.
Ele acende um toco de c i g a r r o m u i t o q u e i m a d o e sujo,
fita em m i m os olhos miúdos e explica:
— Quando eu era rapaz gostava muito desses jogos de
armar, sabe? F i g u r a s que vêm nas revistas com os pedaci-
nhos separados para depois a gente j u n t a r tudo direito.
Solta u m a risada seca e r e m a t a :
— Este mundo t e m cada c o i s a . . .
Chego à m i n h a "chavola" e verifico que a p a i s a g e m que
a i n d a h á p o u c a s h o r a s e u p i n t a v a j á n ã o existe m a i s t a l co-
mo era. Os aviões na s u a passagem apocalíptica a mutilaram.
A estradinha serena agora apresenta em dois lugares enor-
m e s r o m b o s . O b o s q u e d e p i n h e i r o s foi a r r a s a d o . A c e r c a
SAGA 75

de p e d r a s v e i o abaixo. Minha p i n t u r a é já u m a i m a g e m do
passado.
S e n t o - m e à p o r t a da "chavola" e fico olhando na direção
do c a s t e l o . N ã o p o s s o e s q u e c e r os corpos e s t r a ç a l h a d o s . O
mar, o v e n t o , o sol s ã o ainda os m e s m o s , apesar de t o d a e s -
tupidez d o s h o m e n s e da inopinável incongruência da vida.
P r o c u r o o s c o m p a n h e i r o s . S e b a s t i a n e s t á abatido. Green,
um p o u c o pálido, e n u m g e s t o que a princípio n ã o compreen-
do b e m , v e m me a p e r t a r a m ã o c o m o se t i v e s s e de dar pêsa-
m e s a a l g u é m pelo que aconteceu. A p r o x i m o - m e de Á x e l que,
de b r a ç o s cruzados, c o n t e m p l a o mar. F i c a m o s lado a lado
por a l g u n s i n s t a n t e s s e m dizer palavra. V e j o n o r o s t o dele
u m a e x p r e s s ã o rígida, u m a pétrea t e n s ã o muscular. A o cabo
d e a l g u n s i n s t a n t e s ele m e d i z :
— S a n t o D e u s ! P o r que será q u e n ã o n o s m a n d a m lutar
duma v e z ? !
Garcia e De N i c o l a acocorados na praia, em t o r n o d u m
braseiro, f r i t a m s a r d i n h a s t r a n q ü i l a m e n t e .

C h e g a um t r e m de T a r r a g o n a c o m a r m a s e m u n i ç õ e s . O
dia g a n h a u m a s p e c t o f e s t i v o . A s carabinas e o s fuzis-metra-
Ihadoras s ã o distribuídos entre o s h o m e n s d o n o s s o b a t a l h ã o .
F a z e m - n o s m i l r e c o m e n d a ç õ e s e um oficial r u s s o n o s a s s e g u -
ra q u e um fuzil é t ã o precioso c o m o a vida d u m h o m e m . Os
i n t e r n a c i o n a i s n o primeiro m o m e n t o p a r e c e m crianças que
a c a b a m d e g a n h a r brinquedos n o v o s . D u r a n t e dois d i a s e n -
t r e g a m o - n o s a e x e r c í c i o s r e g u l a r e s de t i r o .
O C o m i s s á r i o Cantalupo f a z um discurso a propósito da
distribuição d a s a r m a s . É t ã o feliz que, m u i t o a c o n t r a g o s t o ,
c h e g o a ficar e n t u s i a s m a d o . A v e l h a h i s t ó r i a do h e r o í s m o . Os
i n t e r n a c i o n a i s t e r m i n a m c a n t a n d o o H i n o E s p a n h o l , a Mar-
selhesa e f i n a l m e n t e a "Bandiera R o s s a " .
C h e g a m - n o s h o j e n o v o s soldados. N o t a m o s c o m a l g u m a
e s t r a n h e z a que s ã o q u a s e t o d o s c a t a l ã e s . N ã o a t i n a m o s por
que m a n d a m n a t u r a i s d o p a í s lutar a o lado d o s soldados d a
B r i g a d a Internacional.
U m deles, t i p o m o ç o d e o l h o s e s p a n t a d o s , m e c o n f e s s a
que preferia o t i v e s s e m m a n d a d o para um corpo de s o l d a d o s
espanhóis.
— Por quê?
E l e h e s i t a p o r u m i n s t a n t e m a s acaba c o n f e s s a n d o :
— Na Brigada os homens são audaciosos demais. Vie-
76 ERICO VERÍSSIMO

r a m lutar espontaneamente. Expõem-se muito, não a m a m a


vida.
Vê-se que o pobre r a p a z está assustado.
— N ã o acredita na vitória d a s forças do governo? —
pergunto. — N ã o tem esperança numa vida melhor para a
sua terra?
file sorri tristemente.
— Eu só acredito n u m a coisa: é que tenho vinte anos
e quero viver.
Diz isto olhando ansiosamente p a r a o m a r .

Meia-noite. Ainda não consegui dormir. E s t a m a d r u g a d a


p a r t i m o s finalmente p a r a a frente de batalha. Deitado de
costas na toca, com as m ã o s t r a n ç a d a s a t r á s da cabeça, olho
a n e s g a d e céu q u e a p o r t a d a " c h a v o l a " e m o l d u r a . E n t r a - m e
pelas n a r i n a s um cheiro de t e r r a úmida. Talvez dentro de
poucas h o r a s eu esteja m o r t o e e n t e r r a d o em qualquer lugar
às m a r g e n s do E b r o . A idéia da m o r t e não me a b a n d o n a
desde o m o m e n t o em que vi os cadáveres espedaçados pelas
b o m b a s a é r e a s . I m a g i n o d e m i l m o d o s o m e u p r i m e i r o con-
t a t o d i r e t o c o m a g u e r r a . S i n t o u m a a t r a ç ã o m ó r b i d a pelo
perigo. Estou como que preparando um alçapão para mim
m e s m o e se na h o r a decisiva eu fracassar, h a v e r á um Vasco
t r ê m u l o e cheio de vergonha e o u t r o Vasco que há de rir
sarcasticamente do primeiro.
No seu discurso desta t a r d e Cantalupo declarou que para
cada homem que vai p a r a a linha de frente há nove proba-
bilidades de m o r r e r contra u m a de voltar vivo. "Sede b r a v o s
— p e r o r o u ele — m a s n ã o v o s a r r i s q u e i s i n u t i l m e n t e , p o r -
que a E s p a n h a e o m u n d o precisam de vós p a r a m a i s de u m a
campanha".
Nove probabilidades contra uma. É u m a aposta com o
diabo. Arrisca-se tudo p a r a g a n h a r . .. q u ê ?
Sinto-me como um condenado à m o r t e que espera a ma-
d r u g a d a de s u a execução. E s t a idéia me é e s t r a n h a m e n t e
agradável, me dá u m a certa e singular importância, confere-
me qualidades a d u l t a s que n u n c a tive em g r a n d e dose. No
fim de contas me acontece alguma coisa. .. Se ao cabo de
t u d o eu s a i r com vida, talvez o m u n d o passe a t e r p a r a m i m
u m a significação nova.
Os condenados à m o r t e t ê m o direito de fazer um último
pedido. Pois bem. Eu quero a lembrança de Clarissa, aqui
SAGA 77

c o m i g o . S i n t o - a v i r d a n o i t e p a r a a m i n h a cova, i m a g i n o q u e
seu h á l i t o m o r n o m e b a f e j a o r o s t o . E l a q u e r m e d i z e r al-
guma coisa que n ã o consigo ouvir. A l g u m segredo longamen-
te escondido, a l g u m a revelação salvadora. Mas é tarde, m u i t o
tarde, querida. E s t a m a d r u g a d a embarcamos para as trin-
cheiras. Tu te e n g a n a s . N ã o sou m a i s o teu companheiro de
b r i n q u e d o s , n ã o a n d a m o s d e s c a l ç o s pelo q u i n t a l . . . N ó s c r e s -
cemos, q u e r i d a , e o m u n d o d o s a d u l t o s t e m m i s t é r i o s a s s u s -
t a d o r e s . T o m a r a q u e n u n c a v e j a s o s q u a d r o s q u e e u v i on-
tem. Ê t a r d e agora. È preciso que voltes p a r a casa a n t e s que
os a v i õ e s t o r n e m a a p a r e c e r .
M a s Clarissa continua comigo, apega-se a m i m como
numa derradeira despedida e eu procuro ser forte para deixá-
l a i r t r a n q ü i l a . S i m , e u v i v e r e i p a r a u m dia a t r a v e s s a r o m a r
e ir de novo t e r contigo. V a i em paz. A d e u s ! N ã o chores,
menina, t u d o a c a b a r á bem. Talvez sejamos ainda crianças, e
isto n ã o p a s s e d e u m d e s s e s p e s a d e l o s a f l i t i v o s . A d e u s !
Sinto no peito q u a l q u e r coisa opressiva que me t o r n a
i n s u p o r t á v e l o f i c a r d e i t a d o . E r g o - m e e s a i o da " c h a v o l a " . A
noite e o m a r e s t ã o e n v o l t o s n u m a ú n i c a e h a r m o n i o s a t r a n -
q ü i l i d a d e . F i c o a c a m i n h a r p e l a p r a i a , f u m o u m c i g a r r o , de-
pois m e e s t e n d o n a a r e i a e e m b r e v e m e u s p e n s a m e n t o s e s t ã o
a se embalar ao ritmo das ondas.
E b e m c o m o u m r i o m a n s o e n t r a n o m a r , a d o c e cor-
rente de meu devaneio, sem que eu t e n h a consciência nítida
da m u d a n ç a , se e s p r a i a e f u n d e no s o n o .

É Sebastian quem me acorda.


— De p é , m e u a m i g o — diz ele. — V a m o s p a r t i r .
— Que horas s ã o ?
— Três.
Vejo luzes n a s o u t r a s " c h a v o l a s " e n a s c a b a n a s . As j a -
nelas d o c a s t e l o t a m b é m e s t ã o i l u m i n a d a s . L á d e c i m a d o
outeiro descem f l u t u a n d o no ar frio os sons d u m clarim.
Sinto u m estremecimento.
S e b a s t i a n e e u c a m i n h a m o s e m silêncio p a r a a t o c a , v a -
mos b u s c a r a s n o s s a s c o i s a s .
Ouvem-se vozes de comando, ruídos de passos, b a t e r de
ferros. Em breve a praia está formigando de gente.
Às t r ê s e m e i a n o s d i z e m q u e o e m b a r q u e foi a d i a d o ,
mas nos ordenam que fiquemos de prontidão rigorosa.
Dão-nos café b e m q u e n t e com pão. Às q u a t r o , De Nicola
78 ERICO VERÍSSIMO

nos informa que estaremos a caminho dentro de u m a hora.


E s t a s ordens e contra-ordens, denunciadoras de u m a certa
falta de unidade de comando, nos deixam v a g a m e n t e inquie-
tos.
Os c a m i n h õ e s c o m e ç a m a d e s c e r a c o l i n a c a r r e g a d o s de
soldados que g r i t a m e cantam.
E m b a r c a m o s a o c l a r e a r d o dia. A o e n t r a r n a e s t r a d a
real os carros começam a desenvolver grande velocidade. Os
internacionais s o l t a m vivas. H á n o a r u m a alegria d e pique-
n i q u e . A g a r r a d o a o m e u fuzil, o l h o p a r a a b a r r a l u m i n o s a
do h o r i z o n t e e fico a p e n s a r em se e s t a s e r á ou n ã o a m i -
n h a última alvorada.
10
São dez h o r a s d a n o i t e . D e s e m b a r c a m o s e m R a s q u e r a , p o -
voação que fica cerca de cinco quilômetros da m a r g e m es-
q u e r d a do E b r o . E n c o n t r a m o s aqui um silêncio de cemitério
campestre. As casas estão desertas e muitas, de p o r t a s e ja-
nelas escancaradas.
T e m o s l i c e n ç a d e c a m i n h a r pelo p o v o a d o c o n t a n t o q u e
não nos afastemos muito. Áxel, B r o w n e eu saímos a a n d a r
com De Nicola. F a z um claro luar. E s t e é um l u g a r tipica-
m e n t e c a t a l ã o com s u a s casas b r a n c a s em sua maioria de dois
ou t r ê s andares, ruas tortuosas e íngremes, calçadas de pe-
d r a s r e d o n d a s . B r o w n diz-nos a l g u m a coisa em voz b a i x a e
De Nicola, batendo n a s costas do negro, g r i t a - l h e :
— P o d e s f a l a r alto, h o m e m ! O inimigo a n d a longe.
E n t r a m o s por curiosidade n u m a casa cuja p o r t a encon-
t r a m o s a b e r t a . Á x e l a c e n d e o i s q u e i r o e à s u a luz v a c i l a n t e
v e m o s a m e s a p o s t a p a r a a r e f e i ç ã o : a t o a l h a de x a d r e z v e r -
melho, q u a t r o pratos, a m o r i n g a d'água, o pão cortado em
fatias. Fico a i m a g i n a r no que t e r i a sido a pobre família
c u j a v i d a a g u e r r a t ã o b r u t a l m e n t e c o r t o u . E s t a é u m a cida-
de de camponeses. As t e r r a s de cultivo ficam nos arredores
da povoação.
Ao s a i r m o s de novo p a r a a r u a De Nicola nos diz:
— É possível que hoje F r a n c o nos m a n d e o seu c a r t ã o
de visita.
J u l g a m o s que esta noite v a m o s d o r m i r em c a m a s de ver-
dade, dentro das casas, m a s o comando nos proíbe de fazer
isso. A c a m p a m o s f o r a d a p o v o a ç ã o e e s t e n d e m o s o s n o s s o s
capotes no chão.
P a s s a m o s a noite na expectativa do bombardeio. Somos
a s s a l t a d o s p o r u m i n i m i g o i n e s p e r a d o : a s p u l g a s . S ã o cen-
tenas, milhares, muitos milhares. Fico quase t o m a d o de pâ-
nico a n t e o n ú m e r o dos assaltantes. Impossível d o r m i r sob
a ameaça dos canhões dos f r a n q u i s t a s e ao m e s m o t e m p o
castigados por estes p a r a s i t a s repugnantes. E r g o - m e e começo
u m a espécie de d a n ç a desordenada.
80 ERICO V E R Í S S I M O

— E i s um detalhe da vida dos heróis que a História


U n i v e r s a l n ã o r e g i s t r a — diz D e N i c o l a , s o r r i n d o .
Levanta-se e vem para mim.
— Você t a m b é m perdeu o s o n o ? — pergunto-lhe.
— Na m i n h a i d a d e um cochilo de c i n c o h o r a s é o b a s -
tante.
Acende o cachimbo e diz:
— No p r i n c í p i o s ã o as p u l g a s . A g e n t e t e m a i m p r e s s ã o
q u e foi a t a c a d o p o r u m a d a s s e t e p r a g a s d o E g i t o . N o en-
t a n t o isso não p a s s a d u m curso p r e p a r a t ó r i o p a r a b a t a l h a s
maiores. Q u a n d o você ficar veterano, v i r ã o as m u q u i r a n a s .
N ã o confundir muquirana com pulga!
C o m u m a sensação de n á u s e a e desconforto, espero o
r a i a r do dia. E s t o u a r d e n d o por um b a n h o e a fome me dá
c ã i b r a s n o e s t ô m a g o . A ú l t i m a r e f e i ç ã o q u e f i z e m o s foi e s t a
m a d r u g a d a em Cambrills. A desorganização é quase comple-
t a : não e n c o n t r a m o s em R a s q u e r a o serviço de r a n c h o ins-
talado. Mas o remédio é ficar calado.
Felizmente estão calados t a m b é m os canhões inimigos.
U m g r a n d e silêncio e n v o l v e a r e g i ã o .
Paul Green se aproxima de mim com a cara muito séria
e m e v e m m o s t r a r a l g u m a coisa. E s t e n d e a m ã o e p e r g u n t a ,
intrigado:
— Que bicho é e s t e ?
D i g o - l h e . Ele i n s i s t e :
— P a r a que serve?
Respondo com u m a p e r g u n t a :
— P a r a que serve Paul G r e e n ?
— Par a b e b e r whiskey.
— P o i s e s s e s b i c h o s servem p a r a c h u p a r o n o s s o s a n g u e .
— Parasitas, hem?
Sacudo a cabeça, confirmando.
O a m e r i c a n o parece refletir por um i n s t a n t e e depois,
a c o c o r a n d o - s e , a p r o x i m a a m ã o do solo, v o l t a - a c o m a p a l m a
p a r a b a i x o , d e i x a o i n s e t o c a i r e, a c e n a n d o - l h e c o m os de-
dos, diz:
— Adeusinho, irmão!

A n t e s d e r a i a r o d i a t o r n a m o s a e m b a r c a r . D e s t a vez
parece não haver dúvida: vamos para a linha de frente. Nos-
sos caminhões se dirigem p a r a a m a r g e m do E b r o e e s t a m o s
prontos p a r a e n t r a r em ação imediatamente. Garcia a meu
SAGA 81

lado diz b r a v a t a s . N e m n e s t a h o r a decisiva esquece o seu


Cervantes:
— Yo soy aquel para quien están guardados los peligros,
las grandes hazañas, los valerosos hechos...
Miro-o com um olhar oblíquo. Desde o dia em que este
chileno subiu à á r v o r e p a r a d e i t a r abaixo os r e s t o s daquele
v o l u n t á r i o , p a s s e i a vê-lo a o u t r a luz. A n a t u r a l i d a d e c o m
que desempenhou a horripilante tarefa, o seu s a r c a s m o em
torno daqueles pedaços informes de carne h u m a n a me d e r a m
um g r a n d e mal-estar e por mais que eu me esforce não/consigo
t r a t a r Garcia como antes. É como se d u m modo obscuro e
i n e x p l i c á v e l ele f o s s e u m t a n t o c u l p a d o d a q u e l a m o r t e . S i n t o
que de todos nós deve s e r ele o q u e vai m a i s b e m a r m a d o
p a r a a g u e r r a . S u a frieza e sua ausência de sensibilidade va-
lem c o m o u m a e s p e s s a a r m a d u r a . E , p o r m a i s q u e e u m e
queira iludir, s i n t o - m e d e s a r m a d o e inerme, a p e s a r da c a r a -
bina, d a s g r a n a d a s que t r a g o comigo e dos r e c u r s o s guer-
reiros que me ensinaram.
D e s e m b a r c a m o s j á c o m sol a l t o e v a m o s o c u p a r u m a p o -
sição n u m b a r r a n c o . Somos t r o p a s de r e s e r v a e e s p e r a m o s a
hora de ir render as que estão lutando na frente. O serviço
de a b a s t e c i m e n t o a i n d a e s t á desorganizado. Às dez h o r a s
dão-nos pão velho, que devoramos, e vinho morno. P a s s a m o s
o r e s t o do d i a s e m c o m e r e a n o i t e e n t r a em c a l m a . O silên-
cio é a t e r r a d o r . D e N i c o l a , q u e t e m p r á t i c a d a g u e r r a , diz
que essa quietude é quase sempre o prelúdio de um a t a q u e
violento.
Chegam alguns novos soldados p a r a a nossa companhia,
e n t r e eles u m p o l a c o b a i x o , m a g r o e r u i v o , c o m c a r a d e s í m i o
e mãos enormes. É uma criatura desagradável. Um tenente
nos e n t r e g a o novo c o m p a n h e i r o e explica que ele veio t r a n s -
ferido d u m b a t a l h ã o onde p r e d o m i n a v a m os voluntários r u s -
sos c o m o s q u a i s o t i p o v i v i a e m c o n s t a n t e s r i x a s .
— T o m e c o n t a dele, s a r g e n t o ! — diz o oficial a De N i -
cola, r e t i r a n d o - s e .
O ex-ilusionista t e n t a fazer um interrogatório, m a s é
i n ú t i l . O p o l a c o só f a l a a s u a l í n g u a e se r e c u s a a c o m p r e e n -
d e r q u a l q u e r m í m i c a . D e N i c o l a faz u m g e s t o d e r e s i g n a ç ã o
e s e d e s i n t e r e s s a pelo h o m e m . G r e e n e x a m i n a - o c o m o s e ele
fosse u m e s p é c i m e r a r o .
— E u c o n h e ç o e s s e t i p o . . . — s u s s u r r a - m e ele. — N ã o
me lembro de onde. ..
82 ERICO V E R Í S S I M O

E de repente, dando u m a p a l m a d a na coxa, o americano


salta na minha frente:
— J á s e i ! F o i n o zoológico d e L o n d r e s . U m m a c a c o b r a n -
co!
D e s a t a m o s a rir. O polaco está tranqüilo e calado, seus
olhos esverdinhados e miúdos me fitam. No seu rosto verme-
lho de t e s t a c u r t a e boca m u i t o r a s g a d a diviso a primeira
e x p r e s s ã o d e a m i z a d e . D e n t r o e m p o u c o ele s o r r i p a r a m i m .
C o r r e s p o n d o a o s o r r i s o . C r e i o q u e a c a b o d e f a z e r u m a con-
quista. Mas esqueço-a imediatamente. T e n h o os olhos cons-
t a n t e m e n t e voltados p a r a as b a n d a s do rio. E s p e r o a qual-
q u e r m o m e n t o ver um clarão seguido de estrondo. A quie-
tude, porém, continua. A noite e s t á m a i s escura que a de
o n t e m , p o i s a luz do l u a r t e m de a t r a v e s s a r as n u v e n s e a
c l a r i d a d e q u e cai s o b r e o c a m p o é a c i n z e n t a d a e p o e i r e n t a .
Temos t a m b é m aqui as nossas "chavolas", encontramo-las
prontas. De nossa posição avistamos o vulto distante do Cas-
telo de Miravet na o u t r a m a r g e m do rio.
As h o r a s passam. Dizem-nos que podemos ser chamados
a qualquer momento. Sinto que preciso dormir, a r d e m - m e os
olhos, p e s a m - m e as pálpebras, dói-me a cabeça. Deito-me de
b o r c o : parece que o meu coração está e n t e r r a d o no chão à
a l t u r a de m e u s ouvidos. Fico n u m aflitivo estado de mador-
na e cem vezes e n t r o em combate p a r a cem vezes despertar,
o l h a r em t o r n o e c o n s u l t a r o r e l ó g i o .
A c o r d o c o m o sol n o r o s t o . C h e g a m c a m i n h õ e s d a r e t a -
g u a r d a conduzindo enormes m a r m i t a s térmicas. Temos a
e t e r n a sopa de grão-de-bico, feijão b r a n c o com escassos na-
cos d e c a r n e . V i n h o é q u e n u n c a n o s f a l t a .
O inimigo n ã o dá sinal de vida. Espero-o d u r a n t e o dia
n u m a ânsia quase trepidante. E s t a imobilidade e esta paz mis-
teriosa me enervam.
Cai o u t r a noite e o silêncio persiste. Consigo d o r m i r
m e l h o r . E n t r a u m n o v o dia, q u e s e e s c o a p a r a d o e i g u a l . Te-
mos festa à noite. Começamos a nos h a b i t u a r a esta vida a
pouco m a i s de q u a t r o quilômetros dos canhões inimigos.
Passam-se três dias, q u a t r o — u m a semana.
Um entardecer tépido. E s t a m o s reunidos em torno de
M a r c a n t ô n i o D e N i c o l a , q u e faz a a p r e c i a ç ã o c r í t i c a d e n o s s a
cozinha.
— Faltam-lhe v i t a m i n a s indispensáveis ao corpo h u m a -
no — c o n c l u i ele, c o m o seu m a n s o s a r c a s m o .
Garcia avança a cara de índio:
SAGA 83

— As granadas "deles" têm vitamina.


De Nicola lhe retruca, r á p i d o :
— E s t a m o s falando de coisas sérias. C o m e r é u m a arte
e a r t e s e m p r e é arte, m e s m o na trincheira.
— V o c ê é m á g i c o , p r o f e s s o r — i n s i n u o - l h e eu. — M u i t a
vez j á t i r o u l e b r e s e p o m b o s d u m a c a r t o l a v a z i a .
— I s s o é n o p a l c o , m e u filho. M a s s e v o c ê s m e a j u d a r e m
talvez a m a n h ã possamos comer u m a bela salada russa.
Conta-nos que à beira do rio existem grandes h o r t a s
com tomates, b a t a t a s , cenouras e outros legumes. Fica um
instante pensativo e depois:
— Arriscar a vida por u m a salada r u s s a . .. haverá no
mundo gesto mais sublime que esse?
T o m a o nosso silêncio como um a s s e n t i m e n t o e depois,
erguendo-se, diz:
— Preciso de dois h o m e n s que n ã o dêem à sua vida um
apreço maior do que a u m a boa salada.
Garcia e Áxel ficam sentados. Sebastian ergue-se ime-
d i a t a m e n t e e n ã o sei b e m p o r q u e t a m b é m m e l e v a n t o . G r e e n ,
a quem t r a d u z o as p a l a v r a s do sargento, põe-se de pé n u m
salto.
— Q u e r o só d o i s h o m e n s — diz De N i c o l a .
Olha-nos p o r a l g u n s segundos, faz um sinal na nossa di-
reção, dizendo:
— Vocês dois.
É noite escura. De Nicola, que conhece o t e r r e n o , serve-
nos de guia. E s t a m o s a duzentos m e t r o s do rio. É u m a aven-
t u r a i n s e n s a t a e p o r isso m e s m o e s t o u e x a l t a d o . Os a r b u s t o s
p r o t e g e m o n o s s o a v a n ç o . O s a r g e n t o n o s cicia o r d e n s . C h e -
g a m o s a u m p o n t o p e r i g o s o . A q u i c o m e ç a o s u a v e declive
que leva à beira do E b r o . De Nicola m u r m u r a :
— Lá e s t á a h o r t a .
Olho. Vejo lá embaixo um quadrilátero escuro pintal-
gado de claro. T e n h o a r e s p i r a ç ã o ofegante, a g a r g a n t a res-
s e q u i d a . A v i s t a m o s luzes d o o u t r o l a d o d o r i o . Eles... J u l g o
até ouvir vozes. B a s t a v a u m a r a j a d a d e m e t r a l h a d o r a . . .
— V a m o s c o n t i n u a r — cicia De N i c o l a . — C o m t o d o o
cuidado. Seguindo a linha dos arbustos. A g o r a . . .
Começamos a descida. E s t a a v e n t u r a é t ã o doida que
estamos correndo o risco de ser m e t r a l h a d o s até mesmo pe-
los n o s s o s p r ó p r i o s c o m p a n h e i r o s .
Achamo-nos agora junto da horta. A duzentos metros
das metralhadoras inimigas. E s t a sensação de angústia me
84 ERICO VERÍSSIMO

c h e g a a s e r p a r a d o x a l m e n t e deliciosa. A r r a s t a m o - n o s no c h ã o
fofo, m e t e m o s as m ã o s na t e r r a e c o m e ç a m o s a encher os
n o s s o s bornais. D e N i c o l a n o s recomenda calma. S o m o s e s -
t r a n h o s r é p t e i s d u m a e s t r a n h a fauna. S i n t o u m cheiro d e
t e r r a m o l h a d a e há um m o m e n t o de súbita e absurda fra-
queza em que t e n h o v o n t a d e de m e r g u l h a r a cara na t e r r a
e chorar. É preciso quebrar os t o m a t e i r o s para apanhar-lhes
o s f r u t o s : onde a n t e s e u c a r r e g a v a g r a n a d a s a g o r a v ã o t o m a -
t e s . Q u a n t o t e m p o f a z que e s t a m o s a r a s t e j a r na h o r t a ? Tal-
v e z u n s quinze m i n u t o s e m o c i o n a n t e s . Só a g o r a é que eu co-
m e ç o a t e r u m a consciência fria do perigo. Cravo a m ã o na
t e r r a ao acaso, d o e m - m e os dedos. A v i d a por u m a s a l a d a !
De N i c o l a n o s diz que d e v e m o s voltar. De n o v o o cami-
n h o penoso. Quando c h e g a m o s a um â n g u l o m o r t o respira-
m o s m a i s livremente. T e n h o o corpo t o d o dolorido. Os bor-
nais pesam.
S o m o s recebidos f e s t i v a m e n t e .
— Os h e r ó i s . . . — diz Garcia, irônico.
O polaco j n e o l h a c o m admiração. Prontifica-se a t r a z e r
um tacho com água para lavar os tomates e as batatas. No
dia s e g u i n t e De N i c o l a n o s prepara a salada c o m carinho.
Q u a n d o p a s s o um prato a Green, o a m e r i c a n o f a z um g e s t o
de r e p u g n â n c i a e d i z :
— Muito obrigado. D e t e s t o os l e g u m e s .

A l v o r o ç o n a s n o s s a s posições. U m b a t a l h ã o d e interna-
c i o n a i s v o l t a da linha de frente. Q u e r e m o s saber c o m o é a
vida nas trincheiras e eles nos assustam com histórias tene-
b r o s a s . E s t ã o m a g r o s , cansados, barbudos e sujos. O l h a m
c o m c e r t o desprezo para o n o s s o relativo a s p e c t o de frescura
e s o r r i e m c o m o q u e m diz: V o c ê s v ã o v e r o que é b o m . . .
R e c e b e m o s ordem d e marcha. A o anoitecer c h e g a m o s à s
m a r g e n s do E b r o e n o s i n s t a l a m o s n a s trincheiras. R e i n a
u m a calma absoluta. É e s q u i s i t a e s t a s e n s a ç ã o de saber que
a m a i s ou m e n o s d u z e n t o s m e t r o s à n o s s a f r e n t e o i n i m i g o
está à e s p r e i t a . . .
O s c o m b a t e n t e s n o s d e i x a r a m u m a herança inesquecível:
a s m u q u i r a n a s . S ã o r e p u g n a n t e s , cor d e m a r m e l a d a branca
(a definição é do S a r g e n t o De N i c o l a ) e a n d a m - n o s por t o d o
o corpo c o m o por u m a terra-de-ninguém. Os internacionais
l h e s c h a m a m "os t r i m o t o r e s " . S ã o m o t i v o d e riso, a s s u n t o
p a r a a n e d o t a s . Cá e s t o u eu d e i t a d o dentro de u m a c a s a m a t a ,
SAGA 85

a g a r r a d o a o fuzil, t o n t o d e s o n o m a s s e m c o n s e g u i r d o r m i r
por causa destes parasitas infernais.
O dia seguinte raia calmo. F a z e m o s a p r i m e i r a refeição
junto do parapeito da trincheira. Como com repugnância.
E s t o u sujo e m a l - h u m o r a d o . A t r a v é s d a s seteiras olho as
á g u a s do E b r o q u e o sol d o u r a , e fico a d e s e j a r a l u c i n a d a -
mente um banho. Chego à conclusão de que este estado de
espírito que g e r a a g u e r r a em ú l t i m a análise é sórdido e q u e
p o r t a n t o d e t e r m i n a u m a s u j e i r a física c o r r e s p o n d e n t e . M a s
a conclusão n ã o me t r a z consolo n e m alívio.
O dia passa sem acontecimentos dignos de menção. De
quando em quando um dos nossos homens, por puro desfas-
tio, m e t e a e s p i n g a r d a na s e t e i r a e a t i r a . V e m logo a r e s -
posta.
Ao meio-dia u m a forte descarga p a r t e das trincheiras
contrárias. Revidamos. Dou os meus primeiros tiros. Tenho
os nervos perfeitamente controlados. Como um homem que
e x p e r i m e n t a a á g u a f r i a c o m a p o n t a do p é , d e p o i s m e t e a
p e r n a , a c o x a e f i n a l m e n t e o c o r p o i n t e i r o d e n t r o do r i o , eu
vou mergulhando aos poucos na guerra.

N o s s o b a t a l h ã o é t r a n s f e r i d o p a r a u m a p o s i ç ã o q u e fica
a cinco quilômetros, rio acima. E s t a m o s defronte ao povoa-
do de Miravet, que se acha em poder das tropas de Franco.
Devemos t o m a r todo o cuidado, pois das seteiras do castelo
os inimigos dominam perfeitamente as nossas trincheiras.
Temos um dia relativamente tranqüilo, cortado apenas
de tiroteios ralos. D u r a n t e a t a r d e consigo dormir, pois é de
bom aviso fazer u m a provisão de sono. N i n g u é m sabe o que
e s t á p a r a vir. À noite sou d e s t a c a d o com m a i s cinco h o m e n s
para m o n t a r g u a r d a à beira do rio.
D o céu f o s c o cai u m a g a r o a e s f a r e l a d a . E s t a m o s a g a c h a -
d o s e m silêncio p o r e n t r e a r b u s t o s . O l h o p a r a o o u t e i r o , l á
do o u t r o lado do rio, e vejo a s i l h u e t a do castelo de M i r a v e t .
O vento nos t r a z fiapos de m ú s i c a e de vozes alegres. Curiosa
coisa é a g u e r r a : n u n c a vi as c a r a s de m e u s "inimigos".
O tempo passa. N ã o podemos fumar. Os companheiros
c o n v e r s a m aos cochichos. Um deles, que esteve em G u a d a -
lajara, conta proezas e h o r r o r e s . Sinto no r o s t o o c o n t a t o
úmido dos r a m o s d u m arbusto. Tento descobrir a l g u m a be-
leza o u a l g u m a s i g n i f i c a ç ã o n e s t e m o m e n t o , m a s n ã o e n c o n -
t r o n e m u m a coisa n e m outra. D e r e p e n t e m e p a s s a u m a
86 ERICO V E R Í S S I M O

idéia pela m e n t e : no Brasil há paz. Sacudo a cabeça como


quem quer afugentar um inseto importuno.
— Que é que t e m ? — p e r g u n t a o cabo.
— Nada.
— Tome isto.
D á - m e u m a g a r r a f a , q u e levo a o s l á b i o s . A g u a r d e n t e .
— Obrigado.
O cheiro da bebida me evoca m e m ó r i a s distantes. Revejo
interiormente figuras passadas. São como cadáveres de afo-
gados que voltam à superfície da água. Custa-me reconhecê-
los: estão carcomidos de esquecimento, é como se estivessem
m a i s m o r t o s a i n d a d o q u e n o d i a e m q u e o s v i d e s c e r à cova.
Pais, avós, tios, bisavós. Mortos, sim, m a s sempre comigo,
na m i n h a m e m ó r i a ou no meu sangue, nos m e u s desejos, n a s
minhas palavras, nos meus gestos.
P a s s a - s e o t e m p o . Felizmente o nosso q u a r t o se esgota
e outros homens vêm nos render.
V o l t a m o s p a r a as n o s s a s posições. Continua a g a r o a r .

F a z cinco d i a s que e s t a m o s a o l h a r p a r a o castelo de


M i r a v e t . P a s s a m o s as h o r a s a d o r m i r e a c o n v e r s a r . R e v e -
z a m o - n o s n a s g u a r d a s , l i m p a m o s o s n o s s o s fuzis, c o m e m o s e
esperamos. Cantalupo, muito vermelho e exaltado, a n d a de
homem para homem, animando-os com palavras. Murmura-
se que nossas t r o p a s vão t e n t a r a travessia do E b r o .
O n t e m , c o m a luz d o dia, u m d e n o s s o s h o m e n s a r r i s c o u -
se a ir a t é a beira do rio. Um soldado inimigo, que com
t o d a a c e r t e z a a t i r o u c o m fuzil d e l u n e t a , d e r r u b o u - o . V i
q u a n d o o p o b r e d i a b o c a i u de b o r c o e ficou i m ó v e l . Só p u -
demos ir socorrê-lo ao cair da noite. E s t a v a morto.
Dizem que à nossa r e t a g u a r d a há u m a g r a n d e concentra-
ção de t r o p a s republicanas. Tudo indica que estamos em vés-
p e r a s de u m a ofensiva.
Certa noite, inesperadamente, nossas trincheiras são vio-
lentamente bombardeadas. Apanhados de surpresa corremos
p a r a os abrigos. A m i n h a primeira sensação é de pânico, É
u m a repentina e b r u t a l dilaceração dos nervos e da vontade.
E h á u m r á p i d o i n s t a n t e e m q u e fico à b e i r a d e a l g o q u e s e
avizinha da loucura. Lanço-me ao chão do a b r i g o com o co-
r a ç ã o aos pulos, ofegante. Os e s t r o n d o s se sucedem, v o a m
e s t i l h a ç o s , cai t e r r a d o t e t o d a c a s a m a t a . C e r r o o s o l h o s .
Tenho a sensação de que as explosões se produzem dentro da
SAGA 87

m i n h a c a b e ç a , do m e u p e i t o . Ê o f i m . O c h ã o e s t r e m e c e .
Passam-se segundos, Minha razão parece vacilar como a cha-
ma do toco de vela que a r d e em cima da m e s a do abrigo.
Mas o trágico m o m e n t o de pavor e névoa não d u r a muito.
D o f u n d o d e m e u s e r , n ã o sei d e q u e s e c r e t a s r e s e r v a s , m e
vem um milagroso reavivamento da vontade e em breve to-
das as forças do espírito estão a l u t a r contra o animal. Os
o b u z e s c o n t i n u a m a r e b e n t a r e eu q u e r o c o n v e n c e r a m i m
m e s m o , c o m u m a i n s i s t ê n c i a feroz, u m a t e n a c i d a d e d e s e s p e -
r a d a de que é preciso eu me h a b i t u a r a esta nova realidade,
de que nada em essência mudou, de que tudo, em suma, não
passa d u m fenômeno sonoro.
Q u a n t o t e m p o j á s e p a s s o u ? L e v a n t o , a c a b e ç a e olho e m
t o r n o . À luz m o r t i ç a e o s c i l a n t e l o b r i g o v u l t o s . Á x e l se e n -
contra a m e u lado e mais longe um pouco vejo alguém que
me parece Green. T e n h o as m ã o s t r ê m u l a s e um suor frio
m e e s c o r r e pelo r o s t o . N a b o c a , u m g o s t o d e t e r r a .
O b o m b a r d e i o n ã o c e s s a . E s t o u a e s p e r a r o i n s t a n t e em
q u e um obuz n o s a p a n h e em cheio. Chego a desejar esse mo-
m e n t o . N ã o ! O q u e e u q u e r o é q u e o b o m b a r d e i o finde. L u t o
com o t r e m o r dos m e m b r o s e com o enfraquecimento que
me q u e b r a n t a o corpo, e soergo-me um pouco.
— Deite-se, imbecil!
Obedeço a u t o m a t i c a m e n t e . A voz do S a r g e n t o De Nicola.
De novo estou colado à t e r r a .
Um vulto r a s t e j a na m i n h a direção. O polaco. T e m os
olhos espavoridos. F i c a m o s d e i t a d o s lado a lado, c a r a c o n t r a
cara, a nos entreolhar estupidamente.
Um obuz explode j u n t o da porta do abrigo. Um estrondo
ensurdecedor. Caem sobre nós grandes torrões de terra. A
vela se apaga. Custa-me a crer que não estou ferido. A l g u é m
começa a g e m e r aqui dentro pedindo socorro. Nova explosão,
perto. Tento um m o v i m e n t o : t e n h o os m e m b r o s felizmente
desembaraçados, m a s não consigo e n x e r g a r nada. N ã o é só
a escuridão, m a s t a m b é m a poeira que me e n t r o u nos olhos.
Quero tirá-la com os dedos, m a s estes t a m b é m estão sujos.
Deixo-me cair n u m novo desfalecimento da vontade. Perco a
noção do tempo. Escuridão na casamata e escuridão dentro
de m i m . E de súbito, a t o r d o a d a m e n t e , t e n h o a consciência de
que o bombardeio terminou. Continuo a ouvir gemidos. A
voz do s a r g e n t o :
— O l á ! Q u e m e s t á v i v o q u e d i g a a l g u m a coisa.
Nenhuma resposta.
88 ERICO V E R Í S S I M O

— E h ! Rapazes!
U m a luz. A c h a m a d u m i s q u e i r o a i l u m i n a r a c a r a de
Áxel, muito pálida. Soergo-me e me a r r a s t o de joelhos p a r a
De Nicola a quem i n f o r m o :
— Há alguém ferido. E s t o u ouvindo gemidos.
F i c a m o s à e s c u t a . Silêncio. A p a n h a m o s a v e l a do c h ã o
e t o r n a m o s a a c e n d ê - l a . Os h o m e n s c o m e ç a m a b r o t a r d o s
cantos escuros. Green. Áxel. Sebastian. O polaco. J u n t o da
p o r t a e n c o n t r a m o s um soldado ferido na clavícula e na tes-
t a . T e m o r o s t o e o p e i t o c o b e r t o s de s a n g u e . A p o r t a e s t á
obstruída. Precisamos abrir caminho o quanto antes.
T o m a m o s de nossas f e r r a m e n t a s e pomo-nos a t r a b a l h a r .
U m a m a s s a feita de terra, sangue, pedras, sacos de areia e
pedaços de corpos h u m a n o s nos b a r r a a saída. E s t a m o s go-
t e j a n d o s u o r m a s n ã o c e s s a m o s d e t r a b a l h a r . A o c a b o d e al-
g u m t e m p o sentimos no rosto o vento fresco da noite.
E s t a m o s fora do abrigo. É u m a ressurreição. Os padio-
leiros levam o nosso ferido. Vejo corpos estendidos pelo chão.
Dizem que sobe a t r i n t a o n ú m e r o de baixas. P o r um mo-
m e n t o fico a o l h a r o s e s t r a g o s d o b o m b a r d e i o . O s o f i c i a i s
g r i t a m ordens. Temos de nos e m p r e g a r imediatamente na
reconstrução das casamatas e das trincheiras. Passamos o
resto da noite a t r a b a l h a r .
De torso nu, carregando um saco de areia, Sebastian
pára um instante e me diz:
— D e u s fez o céu, o sol, o m a r . Os h o m e n s f i z e r a m os
canhões.
— M a s D e u s fez o h o m e m — r e p l i c o . — E e s t o u c e r t o
de que se arrependeu.
E fico d e p o i s a p e n s a r : Q u e d i a b o e s p e r a v a eu e n c o n t r a r
na g u e r r a senão isto — destruição, s a n g u e i r a e m o r t e ?
11
O dia t r a n s c o r r e calmo. É n a t u r a l que o assunto dominan-
te sejam os acontecimentos da noite anterior. Garcia nos
aparece contando u m a história que provoca risos e comentá-
rios irônicos: E t t o r e Sarto teve um desmaio d u r a n t e o bom-
bardeio.
E s t o u d i a n t e d u m c a c o de e s p e l h o a f a z e r a b a r b a , à
porta da casamata. Tento desmontar o mecanismo do medo,
peça por peça, p a r a lhe descobrir o segredo. É curioso este
apego que t e m o s à vida. Teoricamente estou convencido de
q u e s ó s e m o r r e u m a vez, m a s n ã o e n c o n t r o a r g u m e n t o s q u e
me façam aceitar as explosões dos obuzes com a m e s m a na-
turalidade com que aceito as m o n t a n h a s , a água, as flores e
os homens.
E s t o u a g o r a t o m a d o p o r u m a d e s f a l e c i d a a l e g r i a d e con-
valescente e t e n h o a impressão de que de o n t e m p a r a cá n ã o
s e p a s s a r a m horas, m a s anos. N ã o sinto p o r m i m m e s m o des-
prezo n e m qualquer a u m e n t o da e s t i m a que m u i t o h u m a n a -
mente tenho pela minha própria pessoa. E s t o u simplesmente
contente p o r h a v e r escapado com vida. E a idéia de que m e u s
companheiros não viram nem sentiram o meu pavor não deixa
de ser reconfortante. Prometo a m i m mesmo que da próxima
vez s e r á d i f e r e n t e .
Hoje dão-nos munições em profusão. Green me m u r m u r a
os boatos que ouviu. N o s s a gente está prestes a a t r a v e s s a r
o rio.
— Que achas disso? — pergunto-lhe.
— A c h o okay. F u i c a m p e ã o d e n a t a ç ã o d a u n i v e r s i d a d e .
Paul Green é um h o m e m desconcertante. Eu quisera sa-
ber o que se passa no seu íntimo. A t é onde i r á o seu espírito
esportivo? E a capacidade de seus nervos? N ã o t e r á medo
da m o r t e ? A g ü e n t a r á até o fim?
Nota-se g r a n d e a g i t a ç ã o em nossas linhas. A m i n h a com-
panhia está de rigorosa prontidão, esperando ordens. Ao
meio-dia m a n d a m - n o s ocupar u m a posição no alto de u m a
colina f r o n t e i r a à p o v o a ç ã o d e M i r a v e t , c e r c a d e m e i o q u i l o -
90 ERICO VERÍSSIMO

m e t r o do rio, b e m no ponto em que o E b r o faz u m a curva.


A v i s t a m o s à direita a povoação de Ginestar, onde e s t á a q u a r -
telada uma companhia de internacionais.
E s t a m o s já no verão e faz calor. P a s s a m o s o resto do
dia a construir abrigos e trincheiras e a instalar o observa-
t ó r i o . E n t r a a n o i t e e f i c a m o s à e s p e r a do b o m b a r d e i o , p o i s
o nosso posto se acha muito descoberto. N ã o consigo p r e g a r
olho. O polaco não me abandona, segue-me os passos e me
f e s t e j a c o m u m s e r v i l i s m o c a n i n o . N ã o lhe q u e r o n e n h u m
mal. É um pobre sujeito que decerto sente falta do calor
duma amizade.
E s t o u d e o l h o s a b e r t o s q u a n d o o d i a d e s p o n t a . S ó en-
t ã o é q u e c o n s i g o d o r m i r , p a r a a c o r d a r c o m o sol a l t o .

Q u e m dá o a l a r m a é o t e n e n t e , q u e e s t á c o m o b i n ó c u l o
d e l o n g o a l c a n c e a l ç a d o p a r a o céu. S ã o t r ê s h o r a s e u m a
esquadrilha de aviões inimigos sobrevoa as nossas linhas.
A c h a m - s e eles a g o r a a m e n o s d e m i l m e t r o s d e a l t u r a . Sa-
bem decerto que não temos neste setor baterias antiaéreas.
Metemo-nos nos abrigos.
— Talvez estejam a p e n a s fotografando as nossas posi-
ções — diz-nos o t e n e n t e , q u e n ã o c e s s a de o b s e r v á - l o s c o m
o binóculo.
Passam-se os minutos. Os aviões desaparecem. Nossa
tensão nervosa afrouxa.
À t a r d e , porém, cerca de dezoito t r i m o t o r e s franquistas
atacam inesperadamente Ginestar. Em grupos de três em
formação triangular, aproximam-se da povoação, voando a
u n s o i t o c e n t o s m e t r o s d o solo. C o m e ç a o b o m b a r d e i o . P o d e -
mos seguir no ar a trajetória parabólica das bombas. Antes
mesmo das detonações chegarem a nossos ouvidos, vemos
erguerem-se violentos jatos escuros de fumo de dentro do
qual s a l t a m p a r a o alto, n u m a r r e m e s s o t r e m e n d o , fragmen-
t o s de pedra, ferro, m a d e i r a e vidro. U n s dois segundos de-
pois, as explosões. C a d a aparelho lança d u a s b o m b a s de cada
vez. O a t a q u e é um p r o d í g i o de p r e c i s ã o e m é t o d o . P o b r e
Ginestar! Tem-se a impressão de que suas casas crescem,
inflam p a r a depois desmoronarem n u m a nuvem de poeira e
fumaça. As explosões se sucedem ininterruptamente.
Penso na companhia de voluntários que se acha dentro
da aldeia. Na certa n e n h u m soldado conseguirá e s c a p a r com
vida.
SAGA 91

O b o m b a r d e i o d u r a u n s cinco m i n u t o s . O s a v i õ e s s e r e t i -
r a m na maior ordem e desaparecem por t r á s das linhas de
Franco. Ginestar é um montão de escombros.
O m a i s incrível é que poucas h o r a s depois s o m o s infor-
mados com segurança de que os internacionais que se acha-
v a m e m G i n e s t a r s e s a l v a r a m t o d o s : a p e n a s u m ficou f e r i d o
levemente. Ã a p r o x i m a ç ã o dos aviões — contam-nos — fugi-
r a m para o campo, deitaram-se nas canaletas de irrigação
d a s plantações de t r i g o ; outros m e t e r a m - s e nos poços dos
p á t i o s i n t e r n o s d a s c a s a s , d e i x a n d o - s e e s c o r r e g a r p e l a s cor-
d a s . Q u a n t o à p o p u l a ç ã o civil, e s s a h a v i a m u i t o t i n h a e v a -
cuado a povoação.
A o anoitecer n o s s a a r t i l h a r i a a b r e fogo. J á e r a t e m p o
duma reação qualquer! U m a cadência de quatro tiros por
m i n u t o e p o r peça. Deve ser a p r e p a r a ç ã o p a r a o a t a q u e .
E s t o u exausto m a s não consigo dormir. A noite entra
e os nossos canhões c o n t i n u a m a a t i r a r . Recebemos o r d e m
para deixar imediatamente o observatório.
Encontramo-nos de novo nas trincheiras à m a r g e m do
E b r o . O fogo de a r t i l h a r i a cessou. À meia-noite n o s s a s t r o -
p a s c o m e ç a m a t r a v e s s i a do r i o em c a n o a s . A e s c u r i d ã o é
q u a s e c o m p l e t a e o q u e m a i s a t e r r a é o silêncio em q u e se
prepara o ataque. E s t a m o s no parapeito da trincheira, agar-
r a d o s a o s n o s s o s fuzis, c a r r e g a d o s d e m u n i ç õ e s . S o m o s t r o -
pas de reserva. A g u a r d a m o s a hora de e n t r a r em ação.
Passam-se minutos trepidantes de expectativa. De re-
pente ouvimos detonações e o clarão da fuzilaria. N o s s o s ho-
mens a t a c a m de surpresa numa carga de baioneta e grana-
das de m ã o . A ação se desenvolve na escuridão a duzentos
metros m a i s ou menos de nossas trincheiras. O t e m p o se ar-
r a s t a , a nossa a n g ú s t i a a u m e n t a , não sabemos o que se está
passando do outro lado. Um dos nossos soldados a t r a v e s s a o
E b r o a n a d o e n o s v e m d i z e r q u e o a t a q u e foi b e m s u c e d i d o .
Ao r o m p e r do dia começam a chegar os primeiros prisionei-
ros. São todos espanhóis e estão muito bem uniformizados e
equipados.
A m a n h ã transcorre calma. Nossa engenharia começa a
improvisar u m a ponte sobre o rio. As m u q u i r a n a s passeiam
l i v r e s p e l o m e u c o r p o e eu já me v o u h a b i t u a n d o a e l a s . O
dia e s t á quente e m o r m a c e n t o e por t r á s do castelo de Mira-
vet se ergue u m a enorme nuvem cor de chumbo.
À t a r d e os aviões inimigos nos a t a c a m encarniçadamen-
te. Deixam cair grandes bombas sobre o rio para impedir o
92 ERICO V E R Í S S I M O

trabalho da construção da ponte. Metemo-nos nos abrigos. As


b o m b a s explodem. V o a m estilhaços. O ar se enche de poeira
e d u m cheiro ativo que tonteia. É o inferno.
Os aviões se r e t i r a m p a r a v o l t a r depois de dez m i n u t o s .
N u m dos intervalos vejo De Nicola precipitar-se p a r a o rio.
Perco-o de vista. N o v a onda de máquinas inimigas. Desta
vez as b o m b a s caem longe de nós, n u m outro b a t a l h ã o da
Brigada Garibaldi. Mais t a r d e nos afirmam que no mesmo
d i a e s s a u n i d a d e foi b o m b a r d e a d a c e r c a d e c i n q ü e n t a v e z e s .
P a r e c e que o n ú m e r o de b a i x a s é g r a n d e .
De s ú b i t o vejo o S a r g e n t o De Nicola e n t r a r precipitada-
mente no abrigo. A minha impressão, ao primeiro relance,
é a d e q u e ele t e m a s m ã o s d e c e p a d a s o u e n t ã o q u e t r a z n o s
braços um monte de membros mutilados. O prestidigitador
a t i r a as carnes s a n g r e n t a s em cima da mesa. O l h o . . . São
peixes, alguns inteiros, outros aos pedaços.
O s a r g e n t o limpa a t e s t a s u a d a com a m a n g a da camisa
e nos diz:
— A pesca milagrosa.
Conta-nos que a cada bomba que explode no rio sobem
à t o n a os peixes m o r t o s . Ele vai apanhá-los com á g u a pela
cintura. É incrível como este h o m e m t e m nervo p a r a pensar
em coisas assim nestes momentos de perigo e destruição.
Novo a t a q u e aéreo. O nosso tenente assesta o binóculo
para o alto e nos afirma que são aparelhos Heinkel e Junkers.
A s b o m b a s c o m e ç a m a c a i r . U m a , d u a s , cinco, d o z e . . . M e u s
músculos estão retesados. Tenho a impressão de que os tím-
panos vão estourar, de que as paredes de meu crânio vão
inflar e rebentar como as casas bombardeadas de Ginestar.
As bombas que caem no rio erguem t r o m b a s d'água a u m a
a l t u r a considerável e o vento as espalha n u m raio de quase
duzentos metros. Alguns dos abrigos se a c h a m completa-
m e n t e destruídos. D e s t a vez o n ú m e r o de b a i x a s deve ser
maior que nos ataques anteriores. Neste setor não temos
a v i a ç ã o e a f a l t a de a r t i l h a r i a a n t i a é r e a n o s d e i x a i n e r t e s e
à mercê desses possantes trimotores.
U m a calma súbita. Saímos das casamatas. O chão está
j u n c a d o d e c o r p o s . O s a n g u e e m p a p a a t e r r a . A l g u n s d o s fe-
ridos se rebolcam no chão, gemendo. Surgem os padioleiros.
De repente Sebastian solta um grito e aponta para um
lugar. Vejo Áxel caído ao chão, com as p e r n a s e as coxas
d e b a i x o d u m m o n t ã o d e p e d r a s e d e t e r r a . C o r r e m o s p a r a ele.
O s u e c o e s t á m o r t a l m e n t e p á l i d o . S e b a s t i a n e eu o a g a r r a -
SAGA 93

m o s p e l a s a x i l a s e c o m e ç a m o s a p u x á - l o . Ê um i n s t a n t e p a -
voroso. Parece que as pernas de Áxel se espicham, não se
a c a b a m m a i s . .. E finalmente, com horror, vejo que o rapaz
está com a m b a s as pernas quase decepadas. Continuamos a
a r r a s t á - l o . Tenho ímpetos de chorar, de g r i t a r . Meus olhos
e s t ã o fixos nesses dois tocos esfrangalhados, presos às coxas
apenas por u n s fiapos de nervos. Sebastian chora como u m a
criança. I n s e n s a t a m e n t e , n u m desespero, continuamos a pu-
x a r a pobre criatura, deixando na poeira um r a s t r o de san-
gue. U m a d a s p e r n a s se d e s p r e n d e do corpo e fica p a r a t r á s .
E o que e n t r e g a m o s a o s padioleiros é um corpo s e m s a n g u e
e já s e m vida.
M e t o - m e n o a b r i g o , a t i r o - m e a u m c a n t o , e n f u r n o a ca-
beça n a s m ã o s e quero chorar. Os soluços me estrangulam,
m a s o choro não vem. N ã o posso e s q u e c e r . . . O rosto duma
lividez e s v e r d e a d a , o s o l h o s e m b r a n c o , a s c a r n e s e s m i g a l h a -
das . . .
De Nicola e n t r a e me faz beber um gole de a g u a r d e n t e .
B a t e - m e no o m b r o e diz:
— N ã o é n a d a . Q u e o u t r a coisa v a i a g e n t e e s p e r a r da
guerra? Flores? Valsas? Vamos, vamos. Venha tomar um
pouco de ar.
P u x a - m e p a r a f o r a . D e i x o - m e l e v a r . G a r c i a n o s v e m con-
t a r que Mário Guarini e s t á g r a v e m e n t e ferido, talvez um
caso perdido.
O l h o e m t o r n o c o m o l h o s a p a r v a l h a d o s . N ã o sei p o r q u e
estou metido nesta miséria.

À noite m a n d a m - n o s a t r a v e s s a r o E b r o . O objetivo é
um castelo em ruínas. Três companhias vão t o m a r parte no
assalto.
E s t a m o s no meio do rio. Ouço o ruído mole da água es-
correndo dos remos. Sebastian acha-se a meu lado. N ã o t r o -
camos p a l a v r a ainda sobre a m o r t e de Áxel. Ê como se hou-
vesse e n t r e nós um tácito compromisso de não fazer a menor
referência a esse fato.
Estou tranqüilo, duma estranha tranqüilidade. Agora
desejo a ação. Ê horrível viver metido em covas como ani-
m a i s q u e t e m e m a luz d o d i a . A l u t a d e h o m e m c o n t r a h o -
m e m em igualdade de condições não me assusta.
Iniciamos o a t a q u e às cinco da m a n h ã . A m i n h a compa-
n h i a é a p r i m e i r a a e n t r a r em c o n t a t o c o m o i n i m i g o . S e b a s -
94 ERICO V E R Í S S I M O

tian, Garcia e o polaco l u t a m p e r t o de mim. Um ninho de


m e t r a l h a d o r a s está a nos castigar d u r a m e n t e . Após algumas
horas de combate temos já perto de trinta baixas. Poucos
são os homens que l u t a m conscientemente, obedecendo às
v o z e s d e c o m a n d o . M u i t o s f i c a m logo t o m a d o s d e p â n i c o ,
principalmente ante as rajadas das metralhadoras e não são
poucos os que fraquejam. A maioria, no entanto, segue n u m
estonteamento, lutando desordenadamente.
E s t a m o s a q u a t r o c e n t o s m e t r o s do castelo em r u í n a s e
há já quase quatro h o r a s que lutamos. De Nicola sai n u m a
sortida com oito h o m e n s e consegue fazer s a l t a r com g r a n a -
d a s d e m ã o o n i n h o d e m e t r a l h a d o r a s . É u m alívio. V a m o s
g a n h a n d o t e r r e n o aos poucos. As balas zunem por cima de
nossas cabeças, ou cravam-se no chão, perto de nós. Vejo
muitos companheiros tombarem. Ê assustador o som que pro-
duzem os projéteis ao e n t r a r no corpo d u m h o m e m : um som
fofo, r á p i d o , p a v o r o s o . A g e n t e n u n c a m a i s e s q u e c e .
Rastejando, aproximamo-nos duma cerca de pedra. Rom-
p e m o s n u m fogo violento. Sebastian m a n e j a u m fuzil-metra-
lhadora com g r a n d e perícia. S a l t a m estilhas de pedras. U m a
b a l a t i r a u m n a c o d a o r e l h a d o polaco, q u e c o m e ç a a s a n -
g r a r . M a s ele c o n t i n u a a l u t a r , c o m o s e n a d a l h e t i v e s s e a c o n -
tecido. Olho p a r a Garcia a meu lado: seu rosto está contor-
cido n u m a m á s c a r a d e ódio.
Tentamos a v a n ç a r mais. Impossível. Aos primeiros pas-
s o s , p e r d e m o s dez h o m e n s . R e t r o c e d e m o s e t o r n a m o s a n o s
e n t r i n c h e i r a r na cerca. O nosso t e n e n t e m a n d a um mensa-
geiro avisar o comando de que não podemos ir além, pois as
perdas são pesadas e os h o m e n s estão exaustos.
U m sol c o m b u r e n t e n o s c a s t i g a . O s u o r m e e s c o r r e pelo
r o s t o , d e s c e pelo p e s c o ç o ; t e n h o a c a m i s a e m p a p a d a , o s o l h o s
a r d i d o s e s u j o s de t e r r a , as f a c e s e s f o l a d a s e a g a r g a n t a seca.
As outras t r ê s companhias avançam, ao passo que nos
dão ordens p a r a m a n t e r a posição em que nos encontramos.
Ao meio-dia, n u m a t a q u e combinado, t o m a m o s conta do
castelo.
U m a violenta emoção ainda me está reservada.
S a í m o s a r e c o l h e r f e r i d o s e p r i s i o n e i r o s . De r e p e n t e ,
d u m â n g u l o s o m b r i o , c r e s c e u m v u l t o . É u m s o l d a d o mouro,,,
vem de braços erguidos implorando que lhe poupem a vida.
A n t e s q u e e u p o s s a f a z e r o m e n o r m o v i m e n t o , G a r c i a leva
o fuzil ao r o s t o e a t i r a n e l e à q u e i m a - r o u p a . Um e s t a m p i d o .
O pobre diabo t o m b a de costas com u m a bala no crânio.
SAGA 95

A c o m o ç ã o me t i r a a voz. P r i m e i r o , é um s e n t i m e n t o de
c h o q u e , d e p o i s d e r e v o l t a e f i n a l m e n t e d e r e p u l s a pelo c h i -
leno, p o r m i m e p o r t o d a e s t a s a n g u e i r a d o i d a e s e m p r o -
pósito.
Ao anoitecer v o l t a m o s p a r a as nossas posições do o u t r o
lado do rio. Deito-me e d u r m o um sono pesado e inexplica-
velmente despovoado de sonhos. Acordo com a sensação de
que de o n t e m p a r a cá envelheci dez anos.
Revejo P a u l Green, que t i n h a sido levado p a r a a reta-
g u a r d a p a r a t r a t a r u m f e r i m e n t o leve. T r a z a c a b e ç a e n v o l t a
em gases e está um pouco sombrio. Talvez a s o m b r a não es-
t e j a nele e s i m n o s m e u s o l h o s , n o m e u e s p í r i t o .
J u n t o ao p a r a p e i t o da t r i n c h e i r a , d e v o r a m o s o nosso al-
m o ç o . D e N i c o l a n o s m i n i s t r a d e s p r e t e n s i o s a m e n t e lições d e
coisas e nos ensina os seus e s t r a t a g e m a s de c o m b a t e n t e ve-
t e r a n o . G r e e n , q u e s e m p r e c o m e p o u q u í s s i m o , f u m a u m ci-
garro e Garcia, hoje excepcionalmente taciturno, m e r g u l h a no
vinho u m a fatia de pão. N ã o quero encará-lo de frente pois
temo descobrir que o detesto.
Corre de mão em mão um número do jornal "La Van-
guardia", de Barcelona. Traz notícias do último a t a q u e aéreo.
A C a t e d r a l foi a t i n g i d a p o r u m a d a s b o m b a s . M o r r e r a m m u -
lheres e crianças.
— Edificante, n ã o ? — m u r m u r a De Nicola por entre
dentes, olhando p a r a as fotografias das r u a s após o bombar-
deio.
— E s s a s m u l h e r e s e crianças não t ê m n a d a a ver com a
c o i s a . . . — diz P a u l G r e e n .
De Nicola lança-lhe um olhar rápido:
— Pois eu vou m a i s longe. A E s p a n h a inteira n a d a t e m
a ver com esta guerra.
P a s s a um voluntário cantando u m a cantiga feita nas
t r i n c h e i r a s e cuja l e t r a diz q u e "La pobre Inglaterra pierden-
dose está", p o r n ã o q u e r e r a j u d a r os r e p u b l i c a n o s e s p a n h ó i s .
A c o c o r a d o a p o u c o s p a s s o s de o n d e e s t o u , o p o l a c o me
contempla em silêncio. Q u a n d o nossos olhos se e n c o n t r a m ,
ele s o r r i . E s t á h o r r e n d o : e m a g r e c e u m u i t o u l t i m a m e n t e , a c e n -
t u o u - s e - l h e a e x p r e s s ã o s i m i e s c a e é c l a r o q u e a f e r i d a da
o r e l h a n ã o o t o r n a m e n o s feio.
E s t a m o s todos b a r b u d o s e sujos. Sinto que devo u m a
e x p l i c a ç ã o a m i m m e s m o , à p a r t e b o a e p u r a do m e u s e r —
se é que ela a i n d a existe. Preciso me j u s t i f i c a r p e r a n t e esse
outro eu que nos momentos mais sombrios da minha vida
96 ERICO V E R Í S S I M O

s e m p r e a n s i o u p o r s u b i r p a r a a luz, n u m d e s e j o d e beleza,
bondade e paz. Mas não encontro p a l a v r a s capazes de q u e b r a r
e s t e silêncio d e d e g r a d a ç ã o e m o r t e .
— H o m e n s e m u q u i r a n a s — diz De N i c o l a , c o m o se t i -
v e s s e lido m e u s p e n s a m e n t o s . — N ã o h á g r a n d e s d i f e r e n ç a s
e n t r e essas d u a s espécies animais, a não ser que as muqui-
r a n a s são muito mais honestas, pois não procuram inventar
palavras para justificar seus apetites. Simplesmente seguem
os instintos, chupam-nos o sangue sem remorso, sem pensar
e m céu o u i n f e r n o , n o b e m o u n o m a l . S ã o l i v r e s p o r q u e n ã o
t ê m problemas de consciência.
— I s s o é q u e v o c ê n ã o s a b e . . . — diz G a r c i a , a t i r a n d o
p o r cima da t r i n c h e i r a um f r a g m e n t o de p e d r a que encon-
t r o u na sopa.
Um camarada nos vem contar que vamos ser transferi-
dos p a r a um outro setor do E b r o , nas proximidades de seu
delta. Recebo a notícia com indiferença. Acho que sou um
homem perdido.

Em períodos alternados de fúria impetuosa e depressão,


de frieza e e n t u s i a s m o , m i s é r i a e e s p e r a n ç a , m a r a s m o e e x a l -
tação — os meus dias passam. Habituo-me aos poucos t a n t o
às c o i s a s i m u n d a s e á s p e r a s c o m o ao p e r i g o e à v i z i n h a n ç a
da morte. Já compreendi que no fim de contas m o r r e r não é
a p i o r c o i s a q u e me p o d e a c o n t e c e r .
Dia a dia vou descobrindo províncias inexploradas den-
t r o de m i m m e s m o . U m a noite, por ocasião d u m assalto a
baioneta, sou t o m a d o d u m desejo diabólico de crueldade. Mais
t a r d e , n a c a l m a , fico t o m a d o d e p a v o r d e m i m m e s m o a o
pensar nisso. N u m outro dia arrisco a vida p a r a t r a z e r p a r a
as nossas t r i n c h e i r a s um soldado ferido que eu nem sequer
conhecia. C e r t a m a n h ã t r a n q ü i l a m e v e m u m a súbita vontade
de d e s e r t a r e n e m sei se é o t e m o r do f u z i l a m e n t o ou a v e r -
gonha de parecer covarde que me detém. Há momentos em
q u e s i n t o u m d e s e j o d e l u t a , u m í m p e t o d e d e s t r u i ç ã o . É ge-
r a l m e n t e q u a n d o vejo u m companheiro t o m b a r o u quando
nos chegam notícias de novos bombardeios de cidades aber-
tas. À vista dos cadáveres mutilados ou de cenas de selvage-
ria, n ã o r a r o sou t o m a d o d u m a crise de t e r n u r a quase doen-
t i a a que se segue u m a fria r e p u g n â n c i a p o r t o d a a espécie
humana.
Tenho pensado constantemente no Brasil, nos amigos
SAGA 97

d i s t a n t e s e a l e m b r a n ç a de Clarissa e s t á c o n s t a n t e m e n t e
comigo e às vezes até m e s m o n a s h o r a s de combate. Mas
quando me vejo a f u n d a r muito nesta l a m a sangrenta, quando
a i n d a t e n h o n a s n a r i n a s o c h e i r o p ú t r i d o d o s c a d á v e r e s in-
sepultos, sua i m a g e m se me apaga da memória.
A vida neste setor é bastante irregular. Longos períodos
de inação e de relativo sossego. De repente, um bombardeio
aéreo, um ataque inesperado de infantaria. .. Saltamos p a r a
a t r i n c h e i r a ou p a r a as c a s a m a t a s . F a z e m o s já as coisas por
puro hábito, a u t o m a t i c a m e n t e . Creio até que a própria cora-
gem no fim passa a ser t a m b é m um hábito.
E eu sou s i m u l t â n e a ou a l t e r n a d a m e n t e um herói e um
poltrão, um anjo e um demônio. P o r felicidade, essas m u t a -
ções s e o p e r a m i n v i s í v e i s d e n t r o d e m i m m e s m o e m u i t o r a -
ramente têm reflexos exteriores.
U m a n o i t e d e c a l m a r i a fico a s ó s c o m D e N i c o l a e a o
cabo d u m a pausa b a s t a n t e larga, na conversação, digo-lhe
estas palavras:
— N ã o posso compreender. .. como é que você não t e m
nervos. Toda e s t a carnificina, e s t a s cenas de selvageria pa-
recem deixá-lo i n d i f e r e n t e . . .
O s a r g e n t o fica p o r a l g u n s s e g u n d o s calado, s e m me
olhar, como que a p e n s a r na resposta. Depois:
— N ã o t e n h o n e n h u m a necessidade de oferecer um es-
p e t á c u l o a o s m e u s c a m a r a d a s . N ã o a c h a n a t u r a l q u e u m ilu-
sionista consiga escamotear as suas emoções?
Sinto-o m a i s h u m a n o . N ã o resisto à t e n t a ç ã o de fazer-
lhe confidências. P r o c u r o t r a n s f o r m a r e m p a l a v r a s compre-
ensíveis o meu t u m u l t o íntimo. De Nicola me escuta com
paciência e, q u a n d o t e r m i n o , diz a p e n a s i s t o :
— O s o f r i m e n t o p o r q u e v o c ê e s t á p a s s a n d o n ã o v a i fi-
car perdido. Pense nisso. Você está tendo a r a r a oportunida-
de de fazer a sua reeducação sentimental diante do perigo.
Julgo compreender o sentido destas frases. O italiano
acrescenta:
— E se ao sair deste inferno você n ã o souber t i r a r pro-
veito do que viu, sentiu e descobriu, e n t ã o é m e l h o r a m a r r a r
u m a p e d r a ao pescoço e atirar-se no Mediterrâneo.
E s t a s palavras me causam u m a impressão profunda. Re-
almente, aqui todas as m i n h a s faculdades estão sendo postas
a d u r a prova. Tudo q u a n t o t e n h o de bom e de m a u no fundo
do s e r é a g i t a d o e t r a z i d o t u m u l t u o s a m e n t e à s u p e r f í c i e . V o u
conquistando palmo a palmo, com pesadas perdas, territórios
98 ERICO V E R Í S S I M O

interiores que ainda não domino. Quando esta guerra termi-


n a r h a v e r á n a t e r r a pelo m e n o s u m h o m e m n o v o .
Serão reflexões d u m a noite de luar sem bombardeios
n e m c o m b a t e s ? Talvez a n t e s m e s m o d e r a i a r u m o u t r o d i a
estejamos a nos estraçalhar uns aos outros, apagando toda
a esperança de salvação. N i n g u é m sabe o que e s t á p a r a vir.

À m e d i d a q u e se p a s s a m os d i a s e os c o m b a t e s , v o u co-
n h e c e n d o m e l h o r o s h o m e n s e m cujo m e i o v i v o . H á a l g u n s
t ã o s e r e n a m e n t e bravos, que diante deles chego a t e r vergo-
n h a d o m a i s leve s e n t i m e n t o d e h e s i t a ç ã o . o u f r a q u e z a . Co-
nheço muitos c a m a r a d a s que lutam com método e calmo he-
roísmo. Conservam a cabeça em perfeito funcionamento nos
m o m e n t o s d e m a i o r p e r i g o e c o n f u s ã o . S ã o v e t e r a n o s d e ou-
t r a s g u e r r a s e r e v o l u ç õ e s e às v e z e s t e n h o a i m p r e s s ã o de
q u e a m o r t e n ã o o s l e v a p e l a s i m p l e s r a z ã o d e q u e eles n ã o
a temem. H o m e n s tenho visto que parecem desprovidos de
nervos: avançam sorrindo e até cantando no meio das balas.
N o u t r o s vejo c l a r a m e n t e o esforço que fazem p a r a não fra-
q u e j a r : t ê m os músculos retesos, empalidecem, seus olhos
g r i t a m d e p a v o r . O c o m b a t e é p a r a eles u m a p r o l o n g a d a a g o -
n i a , m o r r e m m i l v e z e s n u m a s ó h o r a d e fogo e m i l v e z e s r e s -
s u s c i t a m , t r ê m u l o s , o f e g a n t e s , s u a n d o frio. E m m a i s d e u m
s o l d a d o t e n h o v i s t o o h e r o í s m o t e a t r a l , r u i d o s o e exibicio-
n i s t a . P o r o u t r o l a d o , e s t a n d o n ó s c e r t a v e z s o b v i o l e n t o fogo
de artilharia, um dos nossos teve j u n t o de m i m u m a crise de
c h o r o ; n ã o o b s t a n t e c o n t i n u o u f i r m e n o s e u p o s t o e foi a t é
o fim. N u n c a h e i d e m e e s q u e c e r d a q u e l a t a r d e e m q u e in-
v e s t í a m o s c o n t r a u m a p o s i ç ã o i n i m i g a . C a n t a l u p o i a conosco,
levando na m ã o direita u m a pistola automática. Incitava-nos
c o m p a l a v r a s . U m a b a l a a t r a v e s s o u - l h e o a n t e b r a ç o , q u e co-
meçou a sangrar. O comissário continuou a andar. Cantava
c o m t o d a a f o r ç a d o s p u l m õ e s . U m t i r o n o p e i t o fê-lo c a l a r -
se. M a s ele p r o s s e g u i u n o a v a n ç o , s a n g r a n d o , l a n ç a n d o b l a s -
fêmias, m o r r e n d o aos poucos. E n t e r r a m o - l o nas proximida-
des do castelo de Miravet.
P a u l Green parece ver a g u e r r a com os m e s m o s olhos com
q u e v i a as p a r t i d a s de rugby e n t r e a s u a u n i v e r s i d a d e e a de
Yale. T e m ímpeto, espírito de companheirismo, luta com u m a
inteligência instintiva e após cada combate, acha-se na obri-
gação de comemorar a vitória, mesmo que não haja vitória
nenhuma.
SAGA 99

Já Sebastian B r o w n parece lutar com um a r d o r quase


místico. E n c a r a a m o r t e e fala dela como se se t r a t a s s e d u m a
a m a n t e que ele ao m e s m o t e m p o deseja e t e m e . F i c a m u i t o
d e p r i m i d o d e p o i s de c a d a c o m b a t e e é s e m p r e o p r i m e i r o
que se oferece p a r a e n t e r r a r os cadáveres. P a r a cada a m i g o
m o r t o t e m u m a palavra de despedida. N ã o esquece Áxel.
Q u a n d o a j u d o u a a b r i r a c o v a d o a m i g o , fê-lo c o m u m a u n ç ã o
quase religiosa. E o mais singular é que agora o sueco pas-
sou a s e r p a r a ele u m a e s p é c i e d e n u m e t u t e l a r .
Na nossa c o m p a n h i a existe um jovem toscano de dezoito
anos que se porta com u m a b r a v u r a admirável. Imberbe, ros-
t o m u i t o liso e c o r a d o , p a r e c e u m a c r i a n ç a , n o m e i o d e s t e s
homens b a r b u d o s e meio embrutecidos. Dir-se-ia e s t a r brin-
cando de guerra. É um idealista e acredita em que não tar-
dará o advento de um mundo melhor.
Temos longos intervalos de paz. E n t r e g a m o - n o s ao des-
canso e a animadas palestras. O perigo nos aproxima uns
dos o u t r o s e e n t r e nós se fortalece cada vez m a i s o espírito
de camaradagem.
É curioso ver como estes homens encaram a vida e a
morte, o conceito que t ê m do b e m e do mal. A l g u n s revelam
isso e m p a l a v r a s c l a r a s e c o e r e n t e s , c o m u m c e r t o a r filosó-
fico — o s p o u c o s e r u d i t o s c o m a s t e o r i a s p a l a v r o s a s d o s li-
v r o s , m a s u m g r a n d e n ú m e r o d e l e s f a l a c o m a h u m a n a filo-
sofia q u e l h e s v e m d a e x p e r i ê n c i a d a v i d a . N ã o o b s t a n t e
muitos há que parecem ignorar até mesmo a existência de
tais problemas.
N e s t e s poucos meses de g u e r r a t e n h o vivido emocional-
m e n t e m u i t o s anos. T e n t o fazer um e x a m e de consciência.
Impossível. As á g u a s interiores estão ainda agitadas, turva-
das, o pó n ã o sentou no fundo.
E u m dia, e n x e r g a n d o o m e u p r ó p r i o r o s t o n o c a c o d e
espelho d i a n t e do qual faço a b a r b a , digo m e n t a l m e n t e p a r a
m i m m e s m o : "E eu que pensei que te conhecia?!"
C o m o ú n i c a r e s p o s t a o h o m e m do e s p e l h o se l i m i t a a
fazer u m a careta pessimista.
12
Tortosa. Este nome ficará para sempre na minha lembrança
v a g a m e n t e l i g a d o à i d é i a de d e s t i n o .
São bem estranhos os caminhos da vida.

Ê em J a c a r e c a n g a , pequena cidade do e x t r e m o sul do


B r a s i l . T e n h o doze a n o s e a n d o c o m a c a b e ç a c h e i a d a s h i s -
t ó r i a s d e Júlio V e r n e . U m a t a r d e d e c h u v a faço u m a p a u s a
na l e i t u r a de "A Volta ao Mundo em Oitenta Dias" e me a p r o -
ximo d u m grande mapa da E u r o p a que está pendurado na
p a r e d e , l e v a n t o a c a b e ç a e p r o c u r o m e t e r - m e na pele de P h i -
leas F o g g . A l g u é m se a p r o x i m a de mim. Olho, c o n t r a r i a d o .
V e j o a c a r a r e d o n d a e m o r e n a de C l a r i s s a , o n a r i z i n h o leve-
m e n t e arrebitado, as t r a n ç a s p r e t a s escorrendo pelos ombros.
— Q u e é q u e tu q u e r e s ? — i n d a g o , h o s t i l .
— Nada. A gente não pode olhar t a m b é m o m a p a ?
C l a r i s s a n ã o s a b e o q u e é um m a p a . C o m e ç o a e x p l i c a r -
lhe e acabo resumindo tudo a s s i m :
— Os m a p a s são os r e t r a t o s das nações.
— Ah...
Um silêncio em que m a l cabe a m i n h a sensação de im-
p o r t â n c i a e superioridade. T o m o a r e s p a t e r n a i s q u a n d o per-
gunto:
— Se pudesses viajar, p a r a onde querias i r ?
— P a r a a C h i n a . D i z e m q u e t u d o lá é m u i t o e n g r a ç a d o .
— É. D i z e m . ..
— E t u . . . para onde querias i r ?
— Espera...
T r e p o n u m a c a d e i r a , f e c h o o s olhos, a v a n ç o o i n d i c a d o r
da m ã o direita e espeto-o no m a p a ao acaso. A b r o os olhos.
M e u d e d o e s t á e m c i m a d a E s p a n h a e a p o n t a p a r a u m a ci-
d a d e . Tortosa. T ã o l o n g e . . . — p e n s o . E fico o l h a n d o c o m
certa melancolia p a r a as sete pequenas letras.
102 ERICO V E R Í S S I M O

Agora, quatorze anos depois, olho as ruínas da cidade de


Tortosa. Alguém se aproxima de mim. Volto a cabeça: é Se-
bastian Brown. Clarissa não compreendia o mapa. O que o
preto não compreende é a estupidez dos homens que bom-
bardeiam cidades e aldeias, mutilando mulheres, crianças,
estátuas e templos.
A parte antiga de Tortosa — com o castelo de San Juan,
a biblioteca pública, o museu municipal, os colégios e as ve-
lhas igrejas — fica do lado esquerdo do Ebro e está em po-
der de nossas tropas. Os soldados de Franco acham-se alo-
jados na parte nova da cidade, do outro lado do rio.
Os dias se passam numa quase monotonia. Tiroteios ra-
ros e ralos que às vezes dão a impressão dum combate sin-
gular entre contendores entrincheirados.
Chegam-nos notícias de que as tropas de Franco ganham
terreno na Estremadura. Murmura-se também que o gover-
no está estudando um plano para a retirada dos voluntários
estrangeiros.

Os soldados que por falta qualquer são passíveis de cas-


tigo — os insubordinados, os derrotistas, os que contra as
ordens superiores se entregam à pilhagem, etc. — são pos-
tos no famoso "batalhão disciplinar" de que t a n t o tenho ou-
vido falar, mas que só hoje encontro pela primeira vez. Ê
ele composto de homens tristes, esfarrapados e cadavéricos
cuja missão é cavar trincheiras na linha de fogo, abrir e s -
t r a d a s e e n t e r r a r cadáveres. Andam em sua maioria descal-
ços e dão a impressão de galés. Recebem uma ração redu-
zida de alimento e não têm direito a pão, vinho e cigarros.
Trabalham às vezes de sete a oito horas a fio, sob a chuva
ou sob o sol. É a unidade do t e r r o r e os seus soldados já
nem mais parecem homens.
Sentados à sombra duma árvore nós os vemos trabalhar
na soalheira. De Nicola faz um sinal na direção de um dos
condenados e me pergunta:
— E s t á vendo aquele tipo ali? O de calça r a s g a d a . . .
— O que agora parou para cuspir nas mãos?
— E s s e mesmo.
— Sim. Que há com e l e ?
— Lutou como um tigre em Guadalajara.
— Mas por que é que está aí?
— Portou-se como uma galinha num outro combate.
SAGA 103

— É incrível.
— Mistérios da natureza h u m a n a . F a z muito que desisti
de procurar desvendá-los...
Os h o m e n s s u a m e gemem. E s t ã o sujos e queimados de
sol. A o v ê - l o s n ã o p o s s o v e n c e r a s e n s a ç ã o d e m a l - e s t a r q u e
me d o m i n a . I m a g i n o o q u e eles f o r a m , e os s o n h o s e i d e a i s
q u e o s t r o u x e r a m p a r a cá. P e n s o n a s t r a i ç õ e s d o m e d o , n e s s a
hora desprevenida que todos temos, no instante perigoso em
que a vontade afrouxa ou nos falta e todo um passado de
firmeza e c o r a g e m se vai á g u a s abaixo. E sou b a s t a n t e hu-
m a n o p a r a estremecer à idéia de que um dia eu posso ser
t a m b é m soldado desse batalhão fantasma.

E s t ã o ligadas a T o r t o s a as m i n h a s recordações m a i s for-


tes e significativas de ex-combatente da Brigada Internacio-
nal.
D e i x o a q u i a l g u n s e p i s ó d i o s e n ã o sei s i n c e r a m e n t e s e o s
n a r r o com fidelidade ou pelo menos com isenção de ânimo.
Talvez eu t e n h a u m a visão e x a g e r a d a m e n t e artística da vida
e o m e u a m o r à p i n t u r a e à m ú s i c a f a ç a q u e eu e s t e j a a
p r o c u r a r no m u n d o composições p a r a quadros e t e m a s mu-
sicais. É b e m possível que ao n a r r a r u m a história eu altere ou
disponha seus elementos de modo a f o r m a r c o m eles u m a tela
cujo e f e i t o g e r a l t e n h a v a l o r p i c t ó r i c o , r i t m o m u s i c a l , s e n t i d o
simbólico. P o d e m o s escolher alguns elementos da realidade,
d e s p r e z a r o u t r o s e m e s m o desse modo conseguir no fim um
efeito m u i t o m a i s próximo da verdade. As histórias que pas-
so a n a r r a r , b e m como a maioria das que ficaram p a r a t r á s ,
são a p e n a s u m a espécie de reflexo da realidade. Depurei-as
um pouco do que elas t i n h a m originalmente de sórdido ou
trivial. E s t e pode ser um modo parcial de ver as coisas, m a s
é o meu m o d o e, s e j a c o m o f o r , e s t e é o meu l i v r o . P o r ou-
t r o lado, m e s m o quando desço a pormenores desagradáveis,
só descrevo aqui homens, acontecimentos e situações que me
impresionaram e t i v e r a m maior ou m e n o r influência na mi-
n h a reeducação sentimental. Eu podia repisar que entre u m a
e o u t r a p a u s a d u m d i á l o g o o s p a r a s i t a s n o s p a s s e a v a m pelo
corpo ou o vento m o r n o do verão nos t r a z i a às n a r i n a s o
cheiro dos cadáveres insepultos. Poderia falar na rotina da
g u e r r a , n a s n o s s a s longas h o r a s de e s t a g n a ç ã o física e moral,
na sujeira e no cansaço, na a m a r g u r a e na miséria da vida
nas t r i n c h e i r a s . E n e m por isso eu t e r i a atingido melhor o
104 ERICO V E R Í S S I M O

m e u objetivo. P o r q u e este livro t e m um objetivo. Quero dei-


x a r traçada aqui a vacilante trajetória duma alma em busca
de rumo.

U m a tarde de calmaria. Sebastian Brown aproxima-se de


m i m e p e r g u n t a em voz b a i x a :
— Você acredita em sonhos?
— Nos m a u s talvez a c r e d i t e . . .
O p r e t o fica u m i n s t a n t e n u m s i l ê n c i o p e n s a t i v o .
— Quase t o d a s as noites sonho com Áxel.
Fica olhando a t r a v é s da seteira as posições inimigas do
outro lado do rio, m a s decerto enxergando apenas as i m a g e n s
de seus pensamentos.
— E l e diz a l g u m a c o i s a ?
E f i c a a b r i n c a r d i s t r a í d o c o m a c o r r e i a do fuzil.
— Sonhos...
— S o n h o s ? Talvez. A g e n t e nunca sabe.
— N ã o . Q u a n d o Áxel e s t a v a vivo, n u n c a falávamos com
p a l a v r a s , s ó c o m s i n a i s . A g o r a ele t a m b é m faz s i n a i s d e n t r o
do meu sonho.
— Que sinais?
— N ã o sei. N ã o e n t e n d o . Ãs v e z e s ele a p a r e c e e fica só
fumando. ..
— Sonhos...
U m a expressão grave no rosto de Sebastian.
— S o n h o s , s i m . M a s e s t a ú l t i m a n o i t e ele a p a r e c e u e f a -
lou. F a l o u a l í n g u a d e l e m a s , é e n g r a ç a d o , eu c o m p r e e n d i
tudo.
— Q u e foi q u e ele d i s s e ?
— Só isto: "Sebastian, eu quero as m i n h a s pernas".
— E você?
— Quis me e r g u e r p a r a ir m o s t r a r o l u g a r em que o
e n t e r r a m o s . N ã o t i v e f o r ç a s , a l g u m a coisa m e p r e n d i a a o
chão.

E n t r e os novos voluntários que chegam p a r a o batalhão,


durante a nossa estadia em Tortosa, vêm vários judeus aus-
tríacos que t i v e r a m de deixar a Áustria depois de sua anexa-
ção ao Reich. De todos eles o m a i s i m p r e s s i o n a n t e é M a r c u s
Silberstein. Tem u m a t e s t a que avança alcantilada p a r a a
coroa da cabeça com o harmonioso ímpeto d u m a fuga de
SAGA 105

Bach. A i m a g e m me ocorre p o r q u e o h o m e m é músico. P o r


m a i s incrível que pareça, n a s h o r a s em que não somos cha-
m a d o s a c o m b a t e r , ele c o m p õ e s o n a t a s e n o t u r n o s . É um t i p o
a b s t r a t o de movimentos lentos e parece destituído de todo
o instinto de conservação. Expõe-se m u i t o às balas como se
n ã o tivesse n e n h u m a noção de perigo. Os c a m a r a d a s lhe di-
zem:
— M a r c u s Silberstein, nós te damos a p e n a s v i n t e e qua-
t r o h o r a s de vida.
O j u d e u e n c o l h e os o m b r o s e r e t r u c a :
— Q u e me i m p o r t a ? Q u a n d o o destino b a t e à nossa p o r t a
não há trincheira, não há cautela, não há casamata que nos
possa livrar da morte.
É o v e l h o f a t a l i s m o o r i e n t a l . G o s t o de c o n t e m p l a r Sil-
b e r s t e i n q u a n d o ele e s t á a c o c o r a d o a u m c a n t o a m o r d e r n e r -
v o s a m e n t e a p o n t a do lápis, com o papel de p a u t a musical
e m c i m a d o s j o e l h o s . N o d i a e m q u e ele d e s c o b r e o m e u in-
teresse pela música, não me abandona m a i s . Conta-me dos
concertos que ouvia ou em que t o m a v a p a r t e em Viena. F a -
la-me de condutores de orquestras e de compositores. A d o r a
B e e t h o v e n , " a q u e l e s e r feio e q u a s e d i s f o r m e q u e i n u n d o u o
m u n d o d e beleza e d e h a r m o n i a s e t e r n a s " .
M a r c u s S i l b e r s t e i n e eu e s t a m o s s e n t a d o s l a d o a l a d o e
de repente o judeu me p e r g u n t a :
— N u n c a ouviu a Quinta Sinfonia?
— M u i t a s vezes.
— Lembra-se daquelas notas iniciais?
Cantarola. F a ç o um sinal afirmativo com a cabeça. Ele
prossegue:
— "So pocht das Schicksal an der Pforte". A s s i m o des-
t i n o bate à porta. Q u a t r o pancadas agourentas que se repe-
tem. O h o m e m estremece. Algo vai acontecer e não há no
universo poder capaz de deter os passos do destino.
F i c a e m s i l ê n c i o a o u v i r n ã o sei q u e h a r m o n i a s i n t e r i o -
res. Depois:
— Um dia ouvi e s s a s b a t i d a s solenes à m i n h a p o r t a .
— O destino...
— A Gestapo.
— N e s s e c a s o u m travesti d o d e s t i n o .
— E x a t a m e n t e . E a m i n h a vida mudou. Eu e s t a v a em
P a r i s e no dia em que encontrei o Meyer de novo ouvi as
quatro pancadas. E r a a minha vida que ia t o m a r novo rumo.
A E s p a n h a . . . A B r i g a d a Internacional. ..
106 ERICO V E R Í S S I M O

Volta-se p a r a mim, examina-me de alto a baixo.


— Meu amigo, q u a n t a s vezes ouviu na sua vida as qua-
tro pancadas do destino?
Fico a pensar nos m o m e n t o s decisivos da m i n h a existên-
cia. O c o r r e - m e logo o m a i s r e c e n t e . N u m c a f é d e P o r t o A l e -
gre. O calor, a canseira, a exacerbação, notícias dos m a s s a -
cres d a s populações civis da E s p a n h a , i n a d a p t a ç ã o ao ambi-
ente, dificuldades financeiras, um desejo irreprimível de
aventura. De repente duas palavras começam a se desenhar
n a m i n h a m e n t e — Brigada Internacional. E r a m a s b a t i d a s
do destino.
Marcus Silberstein corta-me a corrente dos pensamentos:
— N e m todos os homens t ê m ouvidos p a r a perceber o
a v i s o d o d e s t i n o . C o i t a d o s ! P o r q u e n e m s e m p r e ele n o s t r a z
a m o r t e e o desespero. Muitas vezes está nos esperando à
p o r t a c o m u m a b r a ç a d a d e f l o r e s e d e felicidade.
E de repente, sem transição, o j u d e u faz u m a rígida
curvatura prussiana e diz:
— C o m licença, t e n h o d e i r t e r m i n a r o a d á g i o d a m i n h a
sonata.
E se vai.

Conversamos um dia sobre as crueldades desta guerra e


eu manifesto a minha estranheza por se usarem aqui balas
explosivas. E De Nicola, sem t i r a r o cachimbo da boca, m u r -
mura:
— N ã o a d m i r a que haja crueldade. Pois n ã o é u m a guer-
ra entre irmãos?

Eu tinha perdido de vista E t t o r e Sarto e para falar a


v e r d a d e ele a n d o u a u s e n t e d o s m e u s p e n s a m e n t o s d u r a n t e
aquele último mês.
U m dia saio com outros h o m e n s e m socorro d u m a p a t r u -
lha avançada de que não temos notícia e e n t r a m o s n u m a
velha casa, à beira d u m caminho, p a r a e n c o n t r a r lá dentro
os nossos companheiros massacrados. Desde a porta vamos
saltando por cima de cadáveres. E n u m a sala que devia ter
sido em o u t r o s t e m p o s um refeitório, depara-se-me de re-
p e n t e a l g o q u e m e faz g e l a r o s a n g u e .
Nu e dessangrado em cima d u m a mesa, os braços aber-
t o s e m cruz, a s m ã o s e o s p é s p r e g a d o s à m a d e i r a c o m e n o r -
SAGA 107

mes cravos enferrujados — E t t o r e Sarto. E s t á magríssimo,


v ê - s e - l h e n a pele r e s s e q u i d a e e s t i r a d a d o t o r s o o r e l e v o d a s
costelas e seus olhos estão arregalados p a r a o alto.
Os mouros crucificaram o Cristo Legionário.

N ã o sei o q u e t r o u x e e s t e s e v i l h a n o v i v o e e l á s t i c o a o
n o s s o c o n v í v i o . P a r e c e - n o s à s vezes q u e o g o v e r n o s e m e i a
e s p i õ e s pelo m e i o d o s i n t e r n a c i o n a i s p a r a v e r s e d e s c o b r e ,
entre estes, germes de derrotismo que possam contaminar a
Brigada.
Durante alguns dias Dom Rodrigo participa de nossas
conversas, de nosso r a n c h o e de nossos perigos. É um h o m e m
d e q u a r e n t a a n o s p r e s u m í v e i s , m a g r o , t o s t a d o d e sol e s e n h o r
de maneiras mundanas. Conta-nos histórias da velha Espa-
n h a , r e c i t a - n o s t r e c h o s d e n o v e l a s p i c a r e s c a s e f a z - n o s per-
g u n t a s difíceis q u e n o s a p a n h a m d e s p r e v e n i d o s . A s m u i t a s
histórias que ouvimos dos voluntários estrangeiros que foram
levados a conselho de g u e r r a , acusados de derrotismo, nos
fazem reservados. Pomos cautela e habilidade n a s respostas.
U m a noite conversamos sobre a grande desordem que
vai pelo m u n d o e D o m R o d r i g o , b a i x a n d o a voz, diz c o m u m a
inflexão u m pouco d r a m á t i c a :
— Nós os habitantes deste planeta somos como ratos no
p o r ã o d u m navio que p r e n d e u fogo e m alto m a r . P r e s s e n t i -
mos o perigo, queremos abandonar o barco mas não sabemos
p a r a o n d e ir. D u m l a d o o fogo, d o o u t r o o o c e a n o . Q u e r e m é -
dio t ê m o s p o b r e s r a t o s s e n ã o s e a g i t a r e m d o i d a m e n t e e s e
estraçalharem uns aos outros em lutas que dão a ilusão da
v i t ó r i a ? Só há d u a s alternativas e a m b a s levam ao sofri-
mento e à morte.
E s t a s p a l a v r a s s ã o r e c e b i d a s c o m u m silêncio d e d e s c o n -
fiança. Sinto que alguém precisa dizer a l g u m a coisa e a r r i s c o :
— N ã o acho que o problema deva ser posto apenas nes-
ses t e r m o s . P o r que não incluir u m a a l t e r n a t i v a m e n o s ne-
g r a ? P o r e x e m p l o . . . o fogo a i n d a n ã o d e s t r u i u t o t a l m e n t e
o navio e já se avista um porto de s a l v a m e n t o . . .
D o m Rodrigo me m i r a com a t e s t a e n r u g a d a e i n d a g a :
— Que porto é esse?
Todos os olhos se voltam p a r a mim. Respondo imediata-
mente :
— Se eu soubesse, por certo não estaria aqui.
108 ERICO V E R Í S S I M O

O sevilhano sorri, baixa a cabeça e começa a sacudi-la


d u m lado p a r a outro, devagarinho.
— O c o m u n i s m o ? O f a s c i s m o ? E s s e s p o r t o s já f o r a m m i -
n a d o s pelos seus próprios construtores. Tudo vai pelos ares.
Só nos r e s t a o m a r , q u e não t e m n e n h u m a piedade, e o navio
em chamas.
Dom Rodrigo ergue-se e nos abandona. Carlos Garcia
acompanha-o com os olhos e, quando o vê desaparecer, diz:
— Ou e s s e t i p o é um e s p i ã o e m e r e c e v e n e n o de r a t o
ou é um d e r r o t i s t a e v a i s e r f u z i l a d o .
No outro lado do rio e s t á entrincheirado um paciente
a t i r a d o r q u e p a s s a o d i a a c a ç a r i n t e r n a c i o n a i s c o m u m fuzil
de luneta. Acontece que Dom Rodrigo, na m a n h ã seguinte à
n o i t e d e n o s s a p a l e s t r a , n ã o sei p o r q u e r a z ã o , r e s o l v e d e s c e r
e m p l e n a luz d o sol a t é a b e i r a d o E b r o . O u v i m o s u m e s -
t a m p i d o e o z u n i d o da b a l a . D e p o i s o s i l ê n c i o — s i l ê n c i o que
se prolonga até a noite, quando alguns companheiros vão
em socorro do sevilhano e v o l t a m t r a z e n d o o seu cadáver.
Garcia lança-lhe um rápido olhar e m u r m u r a :
— Um r a t o de menos no navio.

E s t e velho catalão perdeu t u d o na g u e r r a — os filhos,


os netos, a velha casa, as v i n h a s e os t r i g a i s . T e m oitenta
anos e u m a expressão de pétrea energia no rosto pregueado
de r u g a s terrosas. Suas mãos parecem raízes tentaculares
— são enormes e nodosas e parecem trazer ainda a marca
da terra.
F a l a - n o s ele d a s c o l h e i t a s q u e a g u e r r a d e i t o u a p e r d e r
e diz-nos de s u a s esperanças na r e s s u r r e i ç ã o de s u a Catalu-
n h a invencível. Mostra-nos os campos r a s g a d o s pelas g r a n a -
das, as vinhas derribadas e os escombros de sua casa, que
h á m a i s d e q u a t r o s é c u l o s p a s s a d e p a i p a r a filho. A b a n a
as m ã o s impressionantes n u m frenesi e g r i t a p a r a nós as
s u a s p a l a v r a s d e fé, c o m o s e n o s q u i s e s s e m e t e r à f o r ç a n a
alma a sua confiança:
— Todos estes b á r b a r o s passarão, m a s a t e r r a há de
f i c a r c o m o ficou d e p o i s d a i n v a s ã o d o s m o u r o s e d a q u e l e
"perro de Napoleón".
Cala-se um i n s t a n t e e depois, com ar reflexivo, acres-
centa:
— A t e r r a é b o a , os h o m e n s é q u e s ã o m a u s .
SAGA 109

A t a c a m o s u m a q u i n t a e é i n d i s p e n s á v e l d e s a l o j a r o ini-
migo antes da noite. E s t a m o s suados, empoeirados e exaus-
t o s e n o s s a s p e r d a s s ã o b a s t a n t e p e s a d a s . G r e e n cai a m e u
lado com u m ferimento n a clavícula. E s t á perdendo m u i t o
s a n g u e e e u n ã o sei q u e f a z e r . N ã o t e n h o m e i o s p a r a s o c o r r ê -
lo e não quero ficar p a r a t r á s enquanto os outros avançam.
— Muito m a l ? — grito-lhe.
O americano sacode a cabeça negativamente. Encoraja-
me com um sorriso apagado. Tem a m ã o espalmada sobre
a f e r i d a e o s a n g u e l h e e s c o r r e p o r e n t r e os d e d o s .
Ao cabo de vinte minutos, a resistência do inimigo en-
fraquece. Transpomos n u m assalto fulminante o portão da
q u i n t a , a t r a v e s s a m o s o p a r q u e l a n ç a n d o g r a n a d a s . U m a de-
las e n t r a pela j a n e l a e explode dentro da casa.
U m súbito silêncio. P a s s a m - s e a l g u n s m i n u t o s . U m dos
n o s s o s h o m e n s g r i t a q u e eles e s t ã o f u g i n d o n a d i r e ç ã o d o r i o .
U m oficial d e s t a c a u m p e l o t ã o p a r a o s p e r s e g u i r .
E n t r a m o s na casa. V e m lá de cima o r u m o r de passos
precipitados. São os nossos camaradas que correm por todas
as dependências do piso superior.
Escurece. E s t o u esgotado. E n t r o n u m a sala e atiro-me
n a p r i m e i r a c a d e i r a . A g r a n a d a q u e a q u i e x p l o d i u fez e s t r a -
g o s . T r ê s c a d á v e r e s e s t e n d i d o s n o c h ã o , u m d e l e s b e m de-
baixo d u m velho piano escuro, providencialmente intato. O
tapete se acha empapado de sangue e u m a das paredes está
r e s p i n g a d a d o s m i o l o s d o s o l d a d o q u e t o m b o u a o p é dela,
com a cabeça aberta. É horrível m a s não t e n h o coragem
p a r a me erguer. Fecho os olhos por um instante.
Alguém me toca no ombro. É Sebastian Brown.
— A l g u m a n o v i d a d e ? — i n d a g a ele.
— G r e e n foi f e r i d o .
— Grave?
— Na c l a v í c u l a .
— E Garcia?
— N ã o sei.
E n t r a m o u t r o s homens. O polaco está p a r a d o à p o r t a
olhando p a r a os cadáveres com olhos vagos. E r g u e a cabeça
e de repente seu rosto g a n h a u m a expressão indescritível.
Precipita-se através da sala e p á r a junto do piano, ergue-lhe
a t a m p a e f i t a l o n g a m e n t e o t e c l a d o a m a r e l e n t o . S e n t a - s e na
banqueta e deixa cair as mãos pesadas sobre as teclas. Um
acorde dissonante que p a r a os m e u s nervos soa como u m a
e x p l o s ã o . M a s de s ú b i t o , i n e x p l i c a v e l m e n t e , é o p a r a í s o . B r o -
110 ERICO V E R Í S S I M O

ta do piano u m a melodia i n e s p e r a d a e doce que i n u n d a o ar,


f l u t u a n e s t e lusco-fusco, e n v o l v e o s m ó v e i s m u t i l a d o s , o s m o r -
tos e os vivos. A princípio cuido que t u d o não passe d u m
m i l a g r o s o acaso e que de um moimento p a r a outro a melodia
se vai quebrar. Mas não, ela perdura, o seu desenho delicado
se desdobra no ar, simples, p u r o e t r a n s p a r e n t e . A m ú s i c a
p a r e c e c o n t a r u m a h i s t ó r i a d e a m o r . Für Elise, d e B e e t h o v e n .
As notas p i n g a m n a s m i n h a s feridas íntimas como um bál-
s a m o — u m e s t r a n h o b á l s a m o q u e é a o m e s m o t e m p o se-
dativo e pungente. Os outros homens se fecham como eu n u m
mutismo embasbacado, enquanto aquele macaco obscuro de
m ã o s b r u t a i s ali fica e n c u r v a d o s o b r e o piano.
Silêncio. A s ú l t i m a s n o t a s s e e s v a e m n o a r . D e n o v o o
polaco começa a tocar. Chopin. Suas m ã o s são como asas
sobre o teclado. A melodia nos fala d u m m u n d o p a r a nós
perdido. C o n t a as delícias do céu p a r a q u e m está irremedia-
velmente condenado ao inferno.
T u d o i s t o é c o m o v e n t e , belo e a b s u r d o . O c r e p ú s c u l o . . .
os c a d á v e r e s . .. o t i r o t e i o longe. .. as m ã o s e n o r m e s do pia-
nista. ..
Agora é Bach. Algo de tumultuoso, u m a cavalgada para
a distância, um a r r e m e s s o , um desafio ao infinito e a Deus.
O piano vibra, a casa toda parece ficar t o m a d a d u m estre-
mecimento. Tenho a impressão de que os m o r t o s vão desper-
tar, quero g r i t a r ao pianista que p a r e p a r a não nos m a t a r . . .
Perco o domínio dos nervos e desato a chorar como u m a
criança.
O p o l a c o se p õ e de pé, f e c h a o p i a n o c o m c a r i n h o , a t r a -
v e s s a a s a l a s o m b r i a , a p a n h a o fuzil e s a i s e m d i z e r u m a
palavra.
13
realidade parece ter um secreto prazer em desmanchar os
elaborados desenhos de nossa imaginação. Fantasiei de
mil modos o m o m e n t o em que ia s e r ferido e no e n t a n t o t u d o
se passa da maneira mais gratuita e inesperada.
É um dia calmo de claridade d o u r a d a e eu saio a a n d a r
ao longo das trincheiras. Vou tão absorto na contemplação
d o s e f e i t o s de luz e s o m b r a q u e o sol p i n t a lá l o n g e no c a s -
telo de San J u a n , que q u a n d o caio em m i m me vejo a cami-
nhar por um terreno desabrigado. Acontece que do outro
lado do rio um insidioso caçador de h o m e n s divisa o m e u
v u l t o , f a z u m a p o n t a r i a c u i d a d o s a c o m o s e u fuzil d e l u n e t a
e dispara...
S i n t o u m s ú b i t o e n f r a q u e c i m e n t o d a p e r n a e s q u e r d a co-
m o s e u m c a m a r a d a g a i a t o e invisível m e t i v e s s e d a d o n a
curva u m a p a n c a d a seca com o lado da mão. Caio ao chão
e saio a r a s t e j a r na direção da trincheira. Vejo n a s calças,
p o u c o a c i m a d o j o e l h o , u m orifício e s c u r o q u e c o m e ç a a s a n -
grar. A princípio não sinto n e n h u m a dor. Dois h o m e n s me
levam n u m a padiola p a r a o posto de saúde. Sebastian me
acompanha, segurando-me a mão. Isso me dá um certo mal-
estar porque me parece que estão fazendo u m a encenação
muito grande por causa dum ferimento trivial.
— N ã o é nada, homem — tranqüilizo-o.
M a s a p e r n a c o m e ç a a d o e r e a d o r a u m e n t a de m i n u t o
para minuto.
— E r g a os b r a ç o s p a r a o céu, m o ç o — diz o m é d i c o
q u e me faz o p r i m e i r o c u r a t i v o . — O p r o j é t i l n ã o e r a e x p l o -
sivo. S e fosse, o s e u j o e l h o e s t a r i a e m c a c o s .
— A bala ainda está alojada, d o u t o r ? — pergunto.
— N ã o . E n t r o u por um lado e saiu pelo outro. Um pe-
queno túnel.
O médico se afasta, fica um m o m e n t o a c o n v e r s a r em
voz b a i x a c o m u m oficial.
— Você vai p a r a a r e t a g u a r d a — diz-me este último
112 ERICO V E R Í S S I M O

p o u c o d e p o i s , c o m u m a e x p r e s s ã o n ã o sei s e d e i n v e j a o u d e
rancor. — Mas o que merecia era p a s s a r um mês no bata-
lhão disciplinar.
A p a n h a com a m ã o r u d e um p u n h a d o de m e u s cabelos
e sacode-me a cabeça d u m lado p a r a outro com u m a raiva
não de todo destituída de ternura.
— M a r o t o ! — e x c l a m a . — I s s o é q u e se p o d e c h a m a r
um ferimento inteligente. N e n h u m perigo de vida e meia
dúzia de s e m a n a s com bonitas enfermeiras em Barcelona!
Metem-me n u m caminhão transformado em ambulância.
— A d e u s , v o l t e l o g o ! — g r i t a - m e S e b a s t i a n . M a s ao se
a p r o x i m a r p a r a me a p e r t a r a mão, m u r m u r a : — N ã o volte
m a i s p a r a cá. Q u a n d o s a r a r v á e m b o r a p a r a a s u a t e r r a .
— Adeus! — respondo.
F e c h a m a p o r t a da ambulância. Fico sozinho aqui den-
tro. F a z calor. O c a r r o se põe em movimento. R u m a m o s p a r a
T a r r a g o n a . Tenho u m m a u pressentimento que m e esforço
por a f a s t a r do espírito. O ferimento me está a doer de modo
insuportável. C o m e ç a m os solavancos: v a m o s por u m a péssi-
ma e s t r a d a a b e r t a há pouco e às p r e s s a s p a r a fins militares.
A padiola sacoleja d u m lado p a r a outro. A g a r r o - m e com
força às suas bordas p a r a não ser jogado contra os lados
do c a r r o . D ó i - m e a g o r a t o d a a p e r n a e a c o x a . P a i r a no ar
u m a p o e i r a f i n a e a m a r e l a d a . O s u o r m e e s c o r r e pelo r o s t o .
Tenho sede e m e u s lábios estão ressequidos. Deve ser já a
f e b r e . F e b r e . . . i n f e c ç ã o . S i m , é b e m p o s s í v e l . . . Um c u r a -
t i v o m a l f e i t o , a m a l d i t a a r e i a do E b r o — a a r e i a q u e c a í a
na nossa comida, que nos e n t r a v a n o s olhos, nos ouvidos, que
s e e n t r a n h a v a n a s n o s s a s n a r i n a s , n o s n o s s o s fuzis, n a n o s s a
pele, n a s n o s s a s a l m a s . I n f e c ç ã o . . . g a n g r e n a . . . a m u t i l a -
ç ã o . I m a g i n o - m e d e m u l e t a s . . . Mil v e z e s a m o r t e ! M a s . . .
por que falar em m o r t e ? Não, eu devo t e r calma, preciso ter
calma. Tudo isto vai passar, depende de um pouco de cora-
g e m e paciência. Sim. Eu vou ficar sereno e no fim tudo
e s t a r á b e m . C e r r o o s o l h o s . M a s a d o r n ã o cessa, p a r e c e a u -
m e n t a r sempre e sempre. Os solavancos continuam. Tenho
vontade de g r i t a r que andem m e n o s depressa, m a s penso t a m -
bém que se andarmos devagar não chegaremos nunca. Minha
c a b e ç a d o l o r i d a c o m e ç a a l a t e j a r e a s e d e e a f e b r e me
q u e i m a m a g a r g a n t a . Num, dado m o m e n t o , a um solavanco
m a i s f o r t e , a p e r n a f e r i d a é a r r e m e s s a d a c o m v i o l ê n c i a con-
t r a u m a t r a v a de ferro. Deixo escapar um u r r o de dor. As
l á g r i m a s me v ê m aos olhos e t e n h o de fazer um esforço de-
SAGA 113

sesperado para não continuar gritando. Sinto escorrer pela


p e r n a um l í q u i d o m o r n o . S o e r g o - m e c o m d i f i c u l d a d e e o l h o . . .
N ã o me e n g a n a v a : a gaze e s t á m a n c h a d a de v e r m e l h o e o
s a n g u e p i n g a n a lona d a padiola. P e n s o e m g r i t a r p o r so-
corro, m a s u m e s t r a n h o p u d o r m e impede d e fazer isso. T i r o
u m lenço d o b o l s o e a m a r r o - o f o r t e m e n t e p o r c i m a d a g a z e .
N a d a m a i s p o s s o f a z e r . T a l v e z t e n h a c h e g a d o o m e u fim.
A t i r o a c a b e ç a p a r a t r á s e me e n t r e g o . O c a r r o c o n t i n u a a
c o r r e r a o s c o r c o v o s , o u ç o o r u í d o e x p l o s i v o do m o t o r , o p e -
sado rolar das rodas e, dominando tudo, impetuosa também
e i g u a l m e n t e c h e i a de a l t o s e b a i x o s , de t r e p i d a ç õ e s e de
saltos bruscos — a dor. P a s s o a m ã o pela testa, que escalda.
N ã o há dúvida, estou com febre alta. U m a dormência alter-
n a d a m e n t e c á l i d a e g e l a d a me i n v a d e a o s p o u c o s o c o r p o e
me quebra a vontade. Torno a p e n s a r na gangrena. Daqui
a p o u c o v i r á a s e n s a ç ã o de e n v e n e n a m e n t o e os s o l u ç o s , q u e
se prolongarão até o último minuto. Um cheiro pútrido me
s u b i r á às n a r i n a s , a a g o n i a s e r á l e n t a e p a v o r o s a e q u a n d o
abrirem a porta desta ambulância em Tarragona encontrarão
aqui dentro apenas um cadáver. E s t a r e i verde, podre e aca-
b a d o . E l e s t o m a r ã o d a p a d i o l a c o m n o j o e a t i r a r ã o m e u cor-
po na vala comum.

Q u e foi q u e a c o n t e c e u ? E s s e r o s t o q u e h á p o u c o s e in-
clinou sobre o m e u era o r o s t o d u m m o r t o ou d u m v i v o ? Al-
g u é m e s t e v e a q u i d e n t r o c o m i g o o u t u d o foi a p e n a s u m s o -
nho? Quantas horas se passaram? Adormeci ou desmaiei?
U m a claridade forte me obriga a f e c h a r os olhos. Sinto
q u e m e t i r a m d a a m b u l â n c i a , q u e o sol m e b a t e n o r o s t o .
R e s p i r o a r m a i s f r e s c o e p u r o . A f e r i d a a i n d a dói s e m c e s s a r ,
se bem que de m a n e i r a menos aguda. Sinto-me fraco, devo
t e r perdido m u i t o sangue e tenho na cabeça um enorme vá-
cuo. Ouço a l g u é m p e r g u n t a r p e r t o d e m i m :
— C o m o se s e n t e ?
N ã o sei q u e r e s t o d e f e r o z o r g u l h o m e f a z r e s p o n d e r
n u m a voz q u e é a p e n a s um s o p r o :
— Bem.

Abandonam-me na estação de Tarragona. Muita gente


na p l a t a f o r m a : soldados e paisanos, m u l h e r e s , velhos e cri-
a n ç a s . A s c a r a s m e p a r e c e m l í v i d a s e c a n s a d a s a o sol d a
114 ERICO V E R Í S S I M O

t a r d i n h a ; é como se todos tivessem perdido t a m b é m muito


sangue. Ao redor de m i m vejo o u t r a s padiolas com feridos.
A poucos passos de onde estou, um homem geme baixinho
repetindo u m a palavra que não consigo entender: t e m a bar-
ba c r e s c i d a , a p e l e e s v e r d i n h a d a e a c a b e ç a e s t á e n v o l t a em
gaze suja e sanguinolenta. À m i n h a esquerda um rapaz mui-
to novo, com o g o r r o n u m a d a s m ã o s , e s p a n t a as m o s c a s
que lhe querem pousar no rosto. Parece que está com u m a
d a s p e r n a s a m p u t a d a . Talvez a m a n h ã eu t a m b é m esteja as-
sim. ..
A s p e s s o a s s e detêm, p a r a n o s c o n t e m p l a r c o m u m a r
em que há m u i t a piedade e u m a sombra de repugnância.
É-me desagradável ser objeto dessa piedade e dessa repulsa.
P u x o o g o r r o sobre os olhos e procuro esquecer t u d o q u a n t o
me cerca. Dói-me o corpo e ainda sinto m u i t a sede. A p e s a r
disso, n ã o quero pedir á g u a a n e n h u m a dessas c r i a t u r a s que
aí e s t ã o a n o s o l h a r . O m e u v i z i n h o da d i r e i t a c o n t i n u a a
g e m e r e, erguendo um pouco o gorro, vejo que ele a g o r a
p a s s a a s e r alvo da atenção dos curiosos. Um h o m e m se
a p r o x i m a da padiola, ajoelha-se e diz-lhe a l g u m a s p a l a v r a s .
O b o m s a m a r i t a n o ! — p e n s o , c o m s a r c a s m o , e ao m e s m o
tempo acho muito curioso que u m a pessoa no meu estado
d e fraqueza, a i n d a e n c o n t r e f o r ç a s p a r a a l i m e n t a r q u a l q u e r
s e n t i m e n t o de ódio. T o d a e s t a revolta v e m do fato de me
terem abandonado aqui sem nenhuma palavra.
Os minutos passam. Ouço duas badaladas, o apito de um
trem. P o r um momento todas as atenções se voltam p a r a o
outro lado da plataforma. Um comboio conduzindo t r o p a s vai
saindo da estação. Ouvem-se gritos, aclamações, cantos —
vozes q u e v ã o enfraquecendo à medida que o t r e m se afasta.
Diviso um h o m e m do posto de saúde.
— Olá!
O h o m e m p á r a e me dirige um olhar indiferente.
— Que h á ?
— N i n g u é m nos atende?
E l e e n c o l h e o s o m b r o s e diz s i m p l e s m e n t e :
— Há milhares de feridos. P e n s a m vocês que são os
únicos?
Volta-me as costas e eu lhe g r i t o :
— Cachorro!
Mentalmente é um berro de revolta, m a s na realidade a
p a l a v r a sai n u m débil sonido.
SAGA 115

O padioleiro se a f a s t a e desaparece na multidão. A g o r a


e s t o u s u a n d o f r i o e o e s t ô m a g o c o m e ç a a me d o e r v a g a -
mente. Lembro-me de que não como n a d a há oito horas. A o s
poucos a estação vai ficando deserta. A meu lado o h o m e m
continua a g e m e r e o r a p a z da p e r n a a m p u t a d a , c o m os b r a -
ços c a í d o s p a r a f o r a d a m a c a , p a r e c e a g o r a d o r m i r ; a s m o s -
cas passeiam-lhe livremente pelo r o s t o : seus lábios s o r r i e m
no sono.
E n t a r d e c e . Sinto que m i n h a febre sobe. T e n h o a cabeça
zonza. U m a m u l h e r a p r o x i m a - s e de m i m , detém-se a m e u s
pés e baixa os olhos p a r a o meu rosto. Vejo-a a t r a v é s da
névoa de m i n h a fraqueza: é um rosto familiar. E l a se ajoe-
lha a m e u lado e leva-me à t e s t a a s u a m ã o fresca. B a l b u c i o :
C l a r i s s a . E l a m e s o r r i , s a c u d i n d o a c a b e ç a , e c o m u m lenoo
começa a e n x u g a r o suor q u e me p o r e j a a t e s t a . N ã o com-
p r e e n d o n e m q u e r o c o m p r e e n d e r e s t e m i l a g r e . C o m o foi q u e
e l a v e i o a t r a v é s d o m a r e d a g u e r r a , c o m o foi q u e e l a v e i o
t e r comigo? A g o r a as m i n h a s feridas vão s a r a r e tudo es-
t a r á bem. Suas m ã o s me acariciam os cabelos. " Ã g u a " —
m u r m u r o . E l a m e d e i x a p o r u m i n s t a n t e e fico a l u t a r c o m
os pensamentos confusos da febre. Tudo deve t e r sido um
sonho. M a s de novo ela volta, me s o e r g u e a cabeça, leva-me
aos lábios um caneco, faz-me beber á g u a fresca. Se esta d o r
passasse, seria o paraíso. Vozes, p a s s o s . . . Um h o m e m se
inclina s o b r e m i m , brilha-lhe a l g u m a coisa na m ã o . "Olá, Dr.
Seixas., fez b o a v i a g e m ? " C r e i o q u e v o u s e r feliz d e n o v o .
Sinto algo gelado no b r a ç o ; depois, u m a picada. Doce, doce-
mente, desce sobre m i m u m a benéfica sonolência, um m a n s o
esquecimento, a paz, a p a z . . .
Quando t o r n o a a b r i r os olhos, estou no t r e m de feridos
que corre p a r a Barcelona. Ouço gemidos. As luzes elétricas
estão apagadas. Apenas as chamas frouxas e amarelentas de
algumas lamparinas alumiam o interior do vagão. Anda no
ar um cheiro ativo de água-da-guerra e iodofórmio, de mis-
t u r a com o f a r t u m de corpos suados. Só agora é que percebo
que a l g u é m me e s t á s e g u r a n d o a m ã o . V o l t o a cabeça e vejo
a meu lado u m a mulher. Deve s e r enfermeira — penso, tor-
n a n d o a f e c h a r o s o l h o s . M a s n ã o sei q u e m i s t e r i o s a i n t u i ç ã o
m e l e v a a a b r i - l o s d e n o v o . À luz m o r t i ç a e s t e r o s t o d e s c o -
nhecido t e m u m a beleza quase dolorosa. Dois olhos escuros
e de ar insone estão postos em mim. Um lado do rosto se
a c h a i l u m i n a d o , o o u t r o e m s o m b r a . A b o c a d e g r o s s o s lá-
bios está entreaberta. Suas m ã o s são quentes e macias. A i n d a
116 ERICO VERÍSSIMO

reluto um pouco antes de me e n t r e g a r a este aconchego ines-


p e r a d o . A m u l h e r n ã o diz u m a ú n i c a p a l a v r a e e u t e n h o m e d o
de fazer p e r g u n t a s . O t r e m rola e trepida. Os feridos gemem.
As c h a m a s das lamparinas vacilam. Os minutos se escoam e,
apesar do fragor d a s rodas do carro, eu posso sentir lá fora
na noite o silêncio do c a m p o e do m a r . A desconhecida me
põe sobre a t e s t a u m a compressa de á g u a fria. A l g u é m m u r -
m u r a palavras que não consigo entender. U m a e n f e r m a r a se
a p r o x i m a d e m i m e m e d á u m a i n j e ç ã o . T r a z e m - m e u m copo
c o m leite, q u e b e b o , e n q u a n t o a m i s t e r i o s a c o m p a n h e i r a m e
s e g u r a a cs b e ç a . O t r e m s o l t a um a p i t o l o n g o e t r ê m u l o co-
mo um choro de criança. E s e m p r e a cadência d a s r o d a s , o
c h e i r o e n j o a t i v o , os g e m i d o s e os v u l t o s s i l e n c i o s o s .
— P o r que não acendem a luz? — pergunto.
A m u l h e r m e olha por u m m o m e n t o " e depois responde:
— Os a v i õ e s .
T e m u m a voz greve, meio rouca.
— É enfermeira?
— Não.
— Por que é que está aqui?
— P o r sua causa.
— Mas nunca nos V i m o s . . .
— Não importa.
— O n d e foi q u e m e e n c o n t r o u ?
— Em Tanragona. Na estação.
A i n d a hão e n x e r g o claro em t u d o isto. A desconhecida
t i r a a compressa, e n x u g a - m e a testa com u m a t o a l h a e depois
c o m e ç a a p a s s a r a m ã o de leve p e l o s m e u s c a b e l o s .
— A g o r a você vai dormir.
F e c h o os olhos. A carícia continua. Dedos frescos me
p a s s e i a m pelo r o s t o , leves, l e n t o s , s e d a t i v o s ; c h e g o a o u v i r
o seu r a s c a r sobre a b a r b a meio crescida.
— C o m o é o s e u n o m e ? — p e r g u n t o , s e m a b r i r os o l h o s .
— J u a n a . M a s . . . d u r m a , n ã o fale m a i s .
A g o r a a m i n h a rendição é incondicional. Um t o r p o r me
t o m a c o n t a d o c o r p o e d o e s p í r i t o . J u a n a . . . o n d e foi q u e e u
ouvi este n o m e ? Talvez n u m sonho. As b a t i d a s d a s rodas do
trem, duras, n u m ritmo de ferro. N ã o . . . Devem ser as pan-
cadas musicais do destino. O destino. .. Marcus S i l b e r s t e i n . . .
J u a n a . . . T u d o c o n f u s o , e s f u m a d o . . . D e c e r t o foi m o r f i n a . . .
SAGA 117

Guardo muitas recordações do hospital de Vallcarca,


onde passei pouco m a i s de um mês. P a r a q u e m como eu vi-
n h a das trincheiras, aquilo era um paraíso. C a m a s limpas,
enfermeiras eficientes e atenciosas, repouso, boa alimentação,
a s o n h a d a o p o r t u n i d a d e de t o m a r bons, plenos e d e m o r a d o s
banhos de chuveiro, com á g u a limpa e sabonete perfumado,
podendo, além do mais, vestir depois r o u p a s d u m a b r a n c u r a
flamante.
Meu ferimento não t e v e complicações. A cicatrização se
p r o c e s s o u n o r m a l m e n t e . D e n t r o d e doze d i a s a p ó s a m i n h a
chegada ao hospital eu já a n d a v a pelos corredores e pelas
áreas apoiado em muletas.
U m a n o i t e , d a s o t é i a d o edifício, e m c o m p a n h i a d e ou-
t r o s convalescentes, assisto a um bombardeio aéreo. É u m a
t r a i ç o e i r a n o i t e d e céu l i m p o e l u a c h e i a . A s luzes d e B a r c e -
l o n a e s t ã o a p a g a d a s e a c i d a d e , m u i t o b r a n c a , p a r e c e u m ce-
mitério ao luar. Um ataque aéreo noturno é um espetáculo
de t r á g i c a beleza. T e m u m a qualidade pirotécnica e orna-
mental que chega a torná-lo fascinante. N ã o posso deixar
d e e n c a r á - l o d o â n g u l o a r t í s t i c o e a o m e s m o t e m p o m e odeio
por causa dessa atitude desumana. Troam os canhões anti-
aéreos e as balas traçam no ar sua trajetória luminosa. Os
f e i x e s d e luz v e r m e l h a d o s p r o j e t o r e s c r u z a m - s e n o céu à
procura das m á q u i n a s atacantes. Ouço o zunir das b o m b a s
que caem e, depois, as explosões, como r e l â m p a g o s que so-
bem dos telhados, das ruas, dos parques, dos pátios. ..
— Parece u m a festa — m u r m u r a j u n t o de m i m um es-
panhol mirrado que perdeu ambos os braços em Teruel.
É u m i n f e r n o colorido, u m q u a d r o f a n t a s t i c a m e n t e a n i -
mado. Dir-se-ia que n o s e s t ã o proporcionando este espetáculo
como u m a espécie de prêmio aos nossos sacrifícios de sangue.
D e p o i s q u e o s a v i õ e s s e r e t i r a m , faz-se u m b r u s c o s i l ê n -
cio d e n t r o d o q u a l a o s p o u c o s c o m e ç a m o s a o u v i r o s p r o l o n -
gados gemidos das sirenas das ambulâncias que saem a re-
colher feridos ou dos c a r r o s dos bombeiros que c o r r e m a
a p a g a r incêndios. E Barcelona, b r a n c a e enorme, sangra e
sofre ao luar.
Desço excitado p a r a o dormitório. Os que não p u d e r a m
s u b i r f a z e m - m e p e r g u n t a s . N ã o sei c o n t a r - l h e s n a d a . E s t o u
a n i q u i l a d o . D e i t o - m e e fico a p e n s a r na h o r r i p i l a n t e e d r a m á -
tica beleza da h o r a que nos tocou viver.
P e r t o da meia-noite começam a chegar as vítimas do
118 ERICO V E R Í S S I M O

bombardeio. O hospital e s t á superlotado. Fico o resto da


n o i t e de o l h o s a b e r t o s , a o u v i r o r u m o r de p a s s o s a b a f a d o s ,
soluços, c h o r o e g e m i d o s .

L o n g a s são as h o r a s e os pensamentos vêm e se vão,


t o r n a m a vir a c o m p a n h a d o s de o u t r o s — são como p á s s a r o s
q u e f a z e m p o u s o na, m i n h a i m o b i l i d a d e d e á r v o r e . P e l a p r i -
m e i r a vez e m q u a t r o m e s e s e n c o n t r o c a l m a p a r a m e e n t r e g a r
a um e x a m e de c o n s c i ê n c i a . C h e g o à c o n c l u s ã o de q u e o
V a s c o B r u n o q u e e m f i n s d e m a r ç o e n t r o u n a E s p a n h a pelo
túnel de Cerbère não é o m e s m o que aqui se a c h a estendido
numa cama de hospital em Barcelona. Alguma mudança se
operou dentro de mim. Nestes últimos meses tenho visto a
v i d a n o q u e ela t e m d e m a i s c r u e b r u t a l . N o f i m d e c o n t a s ,
e u q u e r i a q u e a c o n t e c e s s e a l g u m a c o i s a e m i n h a v o n t a d e foi
satisfeita. Conheci as m u i t a s formas do medo e vi as diver-
sas faces do h o r r o r . Convivi com h o m e n s cujos atos e pala-
v r a s m e d e c e p c i o n a r a m o u s u r p r e e n d e r a m , m e d e i x a r a m in-
t r i g a d o , r e v o l t a d o o u i n d i f e r e n t e . V i c o m o eles s e p o r t a r a m
d i a n t e d a m o r t e . A l g u n s m e f i z e r a m confissões, o u t r o s , p e l a
f r e s t a d e uma, p a l a v r a o u d e u m g e s t o , p e r m i t i r a m q u e e u
lhes vislumbrasse territórios interiores. As surpresas que ti-
v e c o m i g o m e s m o n ã o f o r a m p e q u e n a s . N ã o sei q u e p r o v e i t o
t i r a r d a s d u r a s lições q u e a v i d a m e d e u . T a l v e z s e j a a i n d a
m u i t o c e d o para, q u e e s s a s e x p e r i ê n c i a s f r u t i f i q u e m . S ó s i n t o
que estou diferente. P a r a melhor? P a r a pior? Mas pior ou
melhor com relação a que p a d r ã o m o r a l ?
Nestas longas horas de hospital tomo e retomo as mi-
n h a s l e m b r a n ç a s e bem como um menino que b r i n c a com
esses cubos de madeira em cujas faces estão colados fragmen-
t o s simétricos d u m quadro, p r o c u r o f o r m a r com m i n h a s ex-
periências um painel que t e n h a sentido revelador. Viro e re-
v i r o o s blocos c o l o r i d o s ; t e n t o a s m a i s d i v e r s a s c o m b i n a ç õ e s ,
fico a l v o r o ç a d o , p e n s a n d o q u e c h e g u e i a a l g u m r e s u l t a d o
c l a r o , p a r a n o f i m v e r i f i c a r q u e t u d o n ã o p a s s a d u m a calei-
doscópica confusão sem pé n e m cabeça. Desisto do jogo. Mas
fico c o m a s e c r e t a e s p e r a n ç a d e q u e c o m o s e l e m e n t o s d e q u e
d i s p o n h o , u m d i a a i n d a hei d e r e s o l v e r o p r o b l e m a .

Perdi J u a n a de vista na estação de Barcelona, Só torno


a e n c o n t r á - l a u m a s e m a n a depois, q u a n d o ela m e v e m v i s i t a r
n o h o s p i t a l . V e j o - a e n t ã o p e l a p r i m e i r a vez à luz d o sol. V a i -
SAGA 119

se um pouco do m i s t é r i o que a envolvia aquela noite no trem.


à luz d a l a m p a r i n a n ã o s e v i a m a s s a r d a s q u e l h e p i n t a l g a m
de leve o r o s t o , ao r e d o r d o s olhos, n e m a pequena, c i c a t r i z
q u e e l a t e m p o u c o a b a i x o d a o r e l h a e s q u e r d a . M a s , s e j a co-
m o for, g o s t o d e s u a b e l e z a l â n g u i d a e u m p o u c o f a n a d a . E
desse ar de r e s i g n a d a fadiga de q u e m m u i t o viveu e sofreu
e n a d a mais espera do mundo.
Quando J u a n a entra, a princípio não a reconheço, pois
ela c a m i n h a p a r a m i m c o n t r a u m f u n d o r ú t i l o , a g r a n d e j a -
n e l a p o r o n d e j o r r a a luz d o sol. É a p e n a s u m v u l t o s e m
fisionomia. O t a p e t e abafa-lhe o ruído dos passos. Depois
ela s a i d a z o n a d e c l a r i d a d e i n t e n s a e f i c a p a r a d a a o p é d a
c a m a . E s t á vestida, d e p r e t o e t r a z u m a b r a ç a d a d e r o s a s
vermelhas. Vejo-lhe a figura nitidamente contornada contra
o b r a n c o e s m a l t a d o da p a r e d e . J u a n a é m o r e n a e s e u s o l h o s
castanhos t ê m um lustro tristonho. E s t á sem chapéu: julgo
ver-lhe nos cabelos negros vagos reflexos azulados. Ou t u d o
será obra de m i n h a f a n t a s i a ? Porque já começo a encará-la
em t e r m o s de pintura. Fico a fazer-lhe o r e t r a t o , b e m nessa
postura. Desejo v i v a m e n t e que este m i n u t o se prolongue. Ê
m e l h o r q u e ela n ã o fale, n ã o s e m o v a . V a m o s f i x a r n a t e l a
esta i m a g e m de h u m a n a e profunda beleza. N ã o só a desco-
nhecida de preto, com u m a braçada de rosas vermelhas, não
a p e n a s a m u l h e r q u e s e c h a m a J u a n a e v e i o v i s i t a r u m sol-
dado ferido. É indispensável que o quadro sugira todo o mis-
tério d u m a v i d a dolorosa, t o d o o silencioso d r a m a dessa a l m a
extraviada pela guerra — o g r a t u i t o milagre deste encontro
que é belo porque é absurdo e não pode p e r d u r a r .
M a s o e n c a n t o se q u e b r a . O m o d e l o se m o v e , a e n f e r -
m e i r a t o m a d a s f l o r e s e v a i c o l o c á - l a s n u m v a s o à m i n h a ca-
beceira. Pouco depois J u a n a e s t á a p e r g u n t a r pela m i n h a
s a ú d e e a me f a l a r da v i d a de B a r c e l o n a , m u i t o d u r a e t r i s t e ,
a g o r a q u e os a l i m e n t o s s ã o r a c i o n a d o s e a c i d a d e v i v e s o b
a constante ameaça dos ataques aéreos.
J u a n a se oferece p a r a me fazer a b a r b a . T e m u m a m ã o
leve e eu c e r r o os o l h o s e n q u a n t o a gillette me d e s l i z a pelo
rosto, produzindo um ruído crepitante e sonolento. Depois
J u a n a me passa n a s faces u m a toalha umedecida, penteia-me
os cabelos, afasta-se um pouco, m i r a - m e com ar apreciador
e por fim diz: "Eso es."
A o s a i r b e i j a - m e a t e s t a e p r o m e t e v o l t a r d o i s d i a s de-
pois. Fico a s e n t i r um ponto vivo e q u e n t e no l u g a r em que
s e u s l á b i o s p o u s a r a m . N ã o sei q u e p e n s a r d e t u d o i s t o e o
120 ERICO V E R Í S S I M O

melhor m e s m o talvez seja não pensar. As s u r p r e s a s que a


g u e r r a m e p r o p o r c i o n o u d e c e r t o m o d o m e p r e p a r a r a m o es-
pírito para esta aventura.
Quem é J u a n a ? Que terá visto em m i m ? Qualquer pare-
cença com algum amigo querido que a m o r t e levou?
P a r a o d i a b o a m i n h a c u r i o s i d a d e ! S e m p r e desejei u m
episódio assim. Um encontro fortuito de d u a s pessoas de sexo
oposto que sentem repentinamente u m a atração mútua. Apro-
ximam-se, unem-se, como se n ã o tivessem p a s s a d o e o t e m p o
fizesse u m a r e p e n t i n a p a r a d a n o p r e s e n t e . U m m á g i c o m i n u -
to roubado à eternidade. N e n h u m compromisso. N e n h u m a
explicação,
De dois em dois dias J u a n a aparece. Traz-me revistas
e j o r n a i s . S e n t a - s e a m e u l a d o , t o m a - m e da m ã o e f a l a - m e de
assuntos quotidianamente triviais.
Pergunto-lhe d u m a feita se não acha que está perdendo
o s e u t e m p o c o m i g o e ela r e s p o n d e q u e n ã o t e m m a i s n a d a
a perder. Digo-lhe que provavelmente dentro de pouco m a i s
de duas semanas terei de voltar para as trincheiras. Ela me
contempla com ar absorto e por fim diz:
— Seja o que Deus quiser.
E c o m o q u e m p õ e o a s s u n t o de l a d o p a r a o e s q u e c e r
d e f i n i t i v a m e n t e , c o m e ç a a me e n s a b o a r o r o s t o . F i c a m o s em
silêncio p o r a l g u n s m i n u t o s . E e n q u a n t o a l â m i n a v a i e v e m
n o m e u r o s t o , fico a p e n s a r n o q u e s e r á d e m i n h a v i d a de-
pois que eu d e i x a r o hospital.
J u a n a me l a v a o r o s t o , a b o t o a - m e a c a m i s a , p a s s a - m e o
p e n t e nos cabelos e m u r m u r a : " E s o es."
I n c l i n a - s e para, m e b e i j a r a t e s t a . N u m í m p e t o s e g u r o -
lhe o s b r a ç o s , p u x o - a p a r a m i m e beijo-a n o s l á b i o s . E l a n ã o
o f e r e c e r e s i s t ê n c i a n e m d á o . m e n o r s i n a l d e s u r p r e s a o u de-
s a g r a d o . A p a n h a , o c h a p é u e, c o m o s e m p r e , diz adiós t r a n -
q ü i l a m e n t e e se v a i .
De o u t r a s c a m a s p a r t e m risadas maliciosas. A enfer-
m e i r a q u e passa, e t u d o viu, l a n ç a - m e u m o l h a r d e c e n s u r a .
O o c u p a n t e da c a m a q u e fica à m i n h a d i r e i t a l i m i t a - s e a sor-
r i r com benevolência.

N o s a l ã o e m q u e m e e n c o n t r o , a c h a m - s e i n ú m e r o s sol-
d a d o s f e r i d o s e m d i v e r s o s s e t o r e s d a l u t a e a l g u n s civis t o m -
bados por ocasião dos constantes bombardeios aéreos. Nos-
sas noites n e m sempre são tranqüilas. Ainda ontem morreu
SAGA 121

o r a p a z l o u r o q u e t e v e de a m p u t a r a p e r n a : o c o r a ç ã o e s t a v a
f r a c o — o m í s e r o n ã o r e s i s t i u ao c h o q u e o p e r a t o r i o .
à s vezes, q u a n d o n ã o p o s s o d o r m i r , fico a o u v i r q u e i x a s
e g e m i d o s ou e n t ã o a c o n v e r s a a r r a s t a d a e c o n f u s a de a l g u é m
que fala dormindo. Um s a r g e n t o que quebrou a m b a s as per-
n a s às vezes b e r r a ordens de c o m a n d o na calada da noite.
Há instantes em que o hospital mergulha n u m a quietude de
mausoléu. Na meia-luz do salão p a s s a m os vultos das enfer-
meiras. Fico a olhar p a r a a janela fronteira, a t r a v é s de cuja
v i d r a ç a v e j o o céu d a n o i t e v a r a d o d e q u a n d o e m q u a n d o
p e l a luz v e r m e l h a d o s h o l o f o t e s d a s b a t e r i a s a n t i a é r e a s .
O m e u vizinho da esquerda é um homenzinho extraordi-
nário. T e r á quando muito um m e t r o e cinqüenta de altura, e
p o u c o m a i s de s e s s e n t a a n o s . Ê d e s i n q u i e t o e i m p e t u o s o co-
m o u m colegial d e q u i n z e . E s m a g o u o s d e d o s d e a m b o s o s
pés por ocasião d u m desmoronamento n u m subúrbio de Bar-
celona e p a s s a as h o r a s a m o n t a r e a d e s m o n t a r um v e l h o
relógio ou a m e x e r no mecanismo de u m a pequena caixa-de-
m ú s i c a . C h a m a - s e A l f o n s o N a v a r r o e é n a t u r a l de C a d i z .
M o r a h á v i n t e a n o s e m B a r c e l o n a , o n d e e x e r c i a o ofício d e
relojoeiro. Tem u m a g r a n d e p a i x ã o : a mecânica, e um g r a n -
d e ó d i o : "los c u r a s " . É m u i t o p a l r a d o r , m a s j á n o t e i q u e
ele s e d i v e r t e m u i t o m a i s q u a n d o f a l a c o n s i g o m e s m o ; fica
h o r a s a r e s m u n g a r coisas p a r a "sus adentros". Dir-se-ia que
c o n v e r s a c o m a s m o l a s e p a r a f u s o s q u e fica a r e v i r a r n o s
dedos de p o n t a s q u e i m a d a s de ácido e cheias de pequenos
alhos escuros. De quando em quando Alfonso puxa conversa
c o m i g o . J á m e p e r g u n t o u m a i s d e u m a vez o n d e n a s c i e p o r
que razão me e n c o n t r o aqui, e se ainda não sabe é p o r q u e
q u a n d o l h e d o u a r e s p o s t a ele j á s e a c h a d i s t r a í d o , a r e s -
m u n g a r p a r a s i m e s m o . M a g r o , o s s u d o , e n c u r v a d o , ali e s t á o
velhote s e n t a d o na cama, com os óculos de a r o de m e t a l aca-
valados na ponta do nariz. Tem um rosto miúdo, a boca
m u i t o r a s g a d a e u m q u e i x o p r o g n a t a q u e lhe d á u m g r a n d e
c a r á t e r à fisionomia. A b a r b a de t r ê s dias b r a n q u e i a híspida
c o n t r a o m o r e n o d a pele r u g o s a .

Depois de a l g u m t e m p o Alfonso N a v a r r o me concede a


g r a ç a d e lhe c h a m a r s i m p l e s m e n t e Alfonsito, m a s a p e s a r
disso continua a me t r a t a r com u m a hostilidade positivamen-
t e c ô m i c a . P a r e c e t e r c i ú m e s d e s t a g u e r r a q u e , s e g u n d o ele,
d e v e s e r f e i t a " e n t r e n o s o t r o s los e s p a ñ o l e s " , s e m a i n t e r f e -
rência de estrangeiros.
122 ERICO V E R Í S S I M O

É a n a r c o - s i n d i c a l i s t a e no f u n d o , c o n f e s s a , n ã o a c r e d i t a
em nada. Queixa-se dos médicos, das enfermeiras, do hospi-
t a l e d a v i d a . Não é l a m u r i e n t o n e m a s s u m e a r e s d e m á r t i r ;
pelo c o n t r á r i o , m o s t r a - s e á s p e r o e a g r e s s i v o . A c h a A l f o n s i t o
q u e t o d o s o s m a l e s d o m u n d o v ê m d u m m o d o g e r a l d a idio-
tice irremediável do gênero h u m a n o e da malévola esperteza
dos padres. Amaldiçoa Franco, que desencadeou a guerra, e
odeia os italianos, cujos aviões lhe d e i t a r a m abaixo a casa,
l h e m a t a r a m a f i l h a , l h e d e s t r u í r a m a l o j a e l h e f e r i r a m os
pés.
E o mais engraçado é que quando algum doente espirra,
s e j a a q u e h o r a for, A l f o n s i t o s e j u l g a n a o b r i g a ç ã o d e g r i -
t a r com s u a voz rouca e m a l - h u m o r a d a , e r g u e n d o um pouco
a cabeça:
— Salud!
14
Meu vizinho da direita, D o m Miguel, é um h o m e m t r a n q ü i l o
e simpático, que passa as s u a s h o r a s lendo os clássicos
espanhóis. T e m u m a bela cabeça, e sua longa cabeleira pa-
rece de torçal cor de p r a t a , n u m agradável c o n t r a s t e com a
pele r e q u e i m a d a . C o n t a - m e q u e e r a p r o f e s s o r n u m liceu e
q u e foi f e r i d o n a r u a p o r o c a s i ã o d u m b o m b a r d e i o a é r e o .
Chegou aqui u m a s e m a n a depois de m i m e passou os primei-
ros dias agoniado de dor. É um h o m e m de grande energia,
p o i s n ã o l h e o u v i o m e n o r g e m i d o , a m a i s leve q u e i x a . C o n -
t i n u a a acreditar nos homens e na possibilidade de um mun-
do melhor. E quando, com s u a voz g r a v e e c a n s a d a , se põe
a t r a n s f o r m a r sonhos e e s p e r a n ç a s em p a l a v r a s , Alfonsito se
agita na cama e b r a d a que antes de mais n a d a é preciso
m a n d a r f u z i l a r " t o d o s los m a l d i t o s c u r a s " . E c o m o D o m Mi-
guel, s o r r i n d o com tolerância, lhe replica que a violência n ã o
só é d e s a g r a d á v e l c o m o i m p r o d u t i v a , o r e l o j o e i r o p õ e a f u n -
c i o n a r a c a i x i n h a - d e - m ú s i c a . O u v e - s e u m v e l h o m i n u e t o in-
gênuo e melancólico que soa de m a n e i r a b e m e s t r a n h a nesta
vasta sala branca.
— A q u i e s t á ! — exclama Alfonsito b a t e n d o na caixa.
— Suas p a l a v r a s são como esta musiquinha. P u r a conversa
para ninar crianças. Abaixo os padres! Viva E s p a n h a !

E n e s t e s compridos dias e às vezes n a s i n t e r m i n á v e i s


noites em que o sono se esquece de nos fazer a visita habi-
t u a l , D o m M i g u e l e eu f i c a m o s a c o n v e r s a r s o b r e a v i d a e
os homens.
A p r o p ó s i t o d o s c l á s s i c o s , o v e l h o p r o f e s s o r me f a l a
"nesse beleza das coisas a n t i g a s que r e s i s t i r a m à g r a n d e pro-
va do t e m p o — b e l e z a f e i t a de e q u i l í b r i o , solidez e r e p o u s o ,
a m á l g a m a de sonhos, sofrimentos, paixão, sacrifício e fé."
U m a n o i t e ele m e p e d e q u e l h e c o n t e a l g u m a c o i s a d o
Brasil. Começo a falar com a alegria de q u e m descobre u m a
124 ERICO V E R Í S S I M O

c r i a t u r a que se interessa por algo que está próximo de nosso


coração. Ao cabo de alguns instantes surpreendo-me a pairar
com tal entusiasmo, que Alfonsito larga o t r a b a l h o que e s t á
f a z e n d o e fica d e b r a ç o s c r u z a d o s , e s c u t a n d o . C o n t o - l h e s d u m
p a í s g r a n d e e belo, d a s a l e g r i a s d u m a t e r r a d e p a z e b o a
v o n t a d e onde não há conflitos de r a ç a e onde se joga a ri-
queza pela janela. Digo-lhes da índole d u m povo que cultiva
o e s p í r i t o de g e n t i l e z a e h o s p i t a l i d a d e ; d u m p o v o q u e p a r e c e
n ã o t e r a m e n o r pressa ou â n s i a de c o n s t r u i r u m a civilização
mecânica. Falo-lhes no Rio de Janeiro, onde nascem as ane-
dotas mais saborosas do mundo. E em breve estou como um
pintor maluco a m i s t u r a r as cores alucinadamente n u m a tela
fantástica. Mas de repente calo-me, à beira d u m a revelação. ..
Ê que de certo m o d o eu acabo de descobrir o Brasil p a r a
mim mesmo.
Alfonsito estende na m i n h a direção um dedo a c u s a d o r :
— Que é que está fazendo a q u i ? N ã o t i n h a na sua t e r r a
u m r e l ó g i o p a r a c o n s e r t a r . . . u m p e d a ç o d e t e r r a p a r a la-
vrar?
O l h o p a r a ele n u m silêncio e m b a r a ç a d o . O u ç o a voz d e
D o m Miguel.
— É r e a l m e n t e bastante, e s t r a n h á v e l que com t a n t a coisa
a c o n s t r u i r n u m p a í s n o v o c o m o o seu, v o c ê t e n h a v i n d o p a r a
cá a j u d a r esses pobres loucos a d e s t r u i r a velha E s p a n h a .
E m a i s t a r d e , a o f a l a r m o s n a r e v o l u ç ã o d e F r a n c o , ele
diz:
— A E s p a n h a n a o p a s s a d u m a c o b a i a . . . ou d u m b o d e -
expiatório. O problema é mais profundo, mais complexo e
l a r g o . N ã o é a p e n a s a l u t a do f a s c i s m o c o n t r a o c o m u n i s m o .
N ã o se iluda. N ã o há n a d a m a i s parecido com o comunismo
do q u e o f a s c i s m o . E q u e é o f a s c i s m o s e n ã o um m o n s t r o
construído pelo F r a n k e n s t e i n da plutocracia p a r a fazer fren-
te ao perigo soviético? A g o r a o m o n s t r o g a n h o u força e vida
próprias e se ergue n u m a a m e a ç a contra o próprio criador.
N ã o pense que você deu o seu sangue como protesto c o n t r a
a m a t a n ç a de m u l h e r e s e c r i a n ç a s . A q u e s t ã o n ã o é t ã o s i m -
p l e s a s s i m , m e u a m i g o ; s e fosse, o s p r o b l e m a s d a v i d a s e
resolveriam com a maior facilidade. Pense no que está por
t r á s de t u d o isso: interesses comerciais da City, o balanço
d a s fábricas de a r m a m e n t o , a estabilidade de Stalin, Hitler
e M u s s o l i n i no p o d e r . É um e m a r a n h a m e n t o d o s d i a b o s . E
um jovem idealista atravessa o Atlântico, mete-se na Espa-
nha, alista-se na Brigada Internacional e de carabina em
SAGA 125

p u n h o s a i a d a r t i r o s , a m a t a r e a c o r r e r o p e r i g o de s e r
m o r t o , convencido de que e s t á v i n g a n d o o m a s s a c r e dos ino-
centes . . . Seria melhor que tivesse ficado na sua p á t r i a t r a -
t a n d o de evitar com t o d a s as suas forças que ela seja v í t i m a
da m e s m a traição que feriu a E s p a n h a .
E s c u t o - o n u m silêncio m e l a n c ó l i c o . E D o m M i g u e l p r o s -
s e g u e c o m a s u a voz l e n t a e f a t i g a d a :
— Os homens complicaram m u i t o a vida. V e j a . . . Rádio,
jornais sensacionalistas, televisão, aviões. Pressa, m u i t a pres-
sa. Vive-se depressa, morre-se depressa, come-se depressa,
ama-se depressa. É como se quiséssemos c h e g a r o q u a n t o
antes a um ponto determinado. No fim veremos que não há
n e n h u m o b j e t i v o s é r i o . E os h o m e n s , c a n s a d o s e g a s t o s , ví-
t i m a s d a s m á q u i n a s e d o s m i t o s q u e eles m e s m o s c r i a r a m ,
c h e g a r ã o à certeza de que é preciso p r o c u r a r o u t r a coisa. ..
E c o m o e u l h e p e r g u n t e d e s u a filosofia d a v i d a , D o m
Miguel me responde com u m a frase de F r e i Luís de L e o n :
— A beleza da v i d a e s t á em q u e cada um proceda de
a c o r d o c o m a s u a n a t u r e z a e o s e u ofício.
E, antes de p u x a r a coberta p a r a o queixo, p r e p a r a n d o -
s e p a r a d o r m i r , ele m e d i z c o m v o z s o n h a d o r a :
— Sabe o que eu faria se por um milagre pudesse t e r
de novo vinte a n o s ? Voltava p a r a a t e r r a , p a r a o convívio
d a s coisas simples. O m a l do nosso t e m p o é que os h o m e n s
se afastaram demais da natureza.
E s t a noite n ã o consigo conciliar o sono. Meus pensa-
m e n t o s estão em t u m u l t o . E n t r e g o - m e à s a u d a d e e ao desejo
d e v o l t a r a o B r a s i l . E n o silêncio d o h o s p i t a l , C l a r i s s a v e m
conversar c o m i g o . . .

N u m a o u t r a n o i t e , q u a n d o t u d o e s t á s i l e n c i o s o , ouço p i n -
gar inesperadamente a melodia do velho minueto. Já sabemos
q u e é a c a i x i n h a - d e - m ú s i c a de A l f o n s i t o . A e n f e r m e i r a de
plantão aproxima-se da c a m a do m e u vizinho e n u m cochicho
z a n g a d o repreende-o, ameaçando-o de lhe a r r e b a t a r p a r a
s e m p r e " o b r i n q u e d o " . E n r o s c a d o e q u i e t o d e b a i x o d o s co-
b e r t o r e s , o v e l h o fica m u i t o c a l a d o , c o m o u m a c r i a n ç a obe-
diente. A música cessa. M a s continua na m i n h a imaginação
— a g o r a é o Für Elise q u e o p o l a c o t o c a c o m s u a s m ã o s
enormes no piano da quinta invadida. Vejo os cadáveres no
chão -sangrento, e, sobre o fundo musical, desfilam-me na
memória as negras imagens desta guerra. Apodera-se de mim
126 ERICO V E R Í S S I M O

o h o r r o r de v o l t a r p a r a a trincheira. D u m modo confuso


penso nas obrigações de c a m a r a d a g e m que tenho para com
S e b a s t i a n , G a r c i a , De N i c o l a e os o u t r o s . . . M a s s i n t o a g o r a ,
mais do que nunca, a s a u d a d e do Brasil. Sem a m e n o r rea-
ção, com u m a fraqueza e um t o r p o r de convalescente, e n t r e -
g o - m e à r e c o r d a ç ã o de p e s s o a s , p a i s a g e n s e c o i s a s de m i n h a
pátria. E l a s me b r o t a m na mente como estranhos cogumelos
à u m i d a d e de m i n h a s l á g r i m a s interiores. Quem com mais
freqüência e s t á comigo é Clarissa. T o r n a m o s a bater, de m ã o s
dadas, as velhas e s t r a d a s do passado, v a m o s revendo cená-
rios a m i g o s e p a r a cada um deles t e m o s um " t u te l e m b r a s ? "
E a q u i d e i t a d o e de o l h o s c e r r a d o s v e j o os v u l t o s de C l a r i s s a
e Vasco a caminhar, muito juntos, por u m a longa estrada
q u e s e p e r d e n o h o r i z o n t e . À m e d i d a q u e s e a f a s t a m v ã o fi-
c a n d o c a d a vez m e n o r e s — s ã o a p e n a s d o i s p o n t o s n e g r o s e
minúsculos que e s m a e c e m lenta e misteriosamente, dissolven-
do-se n o m e u s o n o .

M o r r e u esta m a d r u g a d a um rapaz de dezoito anos que


foi f e r i d o n o s i n t e s t i n o s . D o i s e n f e r m e i r o s c a r r e g a m - l h e o
c o r p o n u m a p a d i o l a , c o b e r t o d a c a b e ç a a o s p é s p o r u m lençol.
Atravessam lentamente o salão.
— Lá v a i o P e r e z . . . — m u r m u r a a l g u é m .
O u t r a voz.
— Era uma criança...
S e n t a d o na c a m a A l f o n s i t o fica a a c o m p a n h a r a p a d i o l a
a t é vê-la d e s a p a r e c e r na porta, e depois vocifera:
— A m o r t e é u m a d e s a v e r g o n h a d a q u e d e p o i s de v e l h a
deu p a r a a n d a r m e t i d a com r a p a z i n h o s . . . P r o s t i t u t a caduca!

V i n t e d i a s d e p o i s d e e n t r a r n o h o s p i t a l e s t o u e m con-
dições d e a n d a r s e m o a u x í l i o d a s m u l e t a s . E n s a i o o s p r i m e i -
r o s p a s s o s e m c i m a d o t r i l h o d e linóleo. A s a r t i c u l a ç õ e s d a
perna esquerda estão ainda um pouco d u r a s e ao caminhar
claudico um pouco. O médico me assegura que d e n t r o de me-
nos d u m a quinzena estarei em condições de voltar p a r a a
frente.
C o n s i g o l i c e n ç a p a r a s a i r e o d i r e t o r do h o s p i t a l me en-
t r e g a a l g u m a s pesetas. Saio em c o m p a n h i a de J u a n a . Sou
um h o m e m novo e é n a t u r a l que esteja alegre. M a s nas r u a s
centrais de Barcelona, no meio dos t r a n s e u n t e s que vão e
SAGA 127

vêm em t o d a s as direções, dos veículos que p a s s a m rodando,


do r u í d o d o s p r e g õ e s e do b u z i n a r d o s a u t o m ó v e i s — c o m e ç o
a ficar tonto.
A vida desta cidade parece correr n o r m a l m e n t e . Dir-se-
ia que a população já encara os bombardeios como parte da
rotina quotidiana.
T o m a m o s um bonde que nos deixa na Plaza de Cataluña.
É u m a v a s t a e bela praça, ponto de ligação da cidade antiga
com a nova. F i c a m o s a c a m i n h a r p o r e n t r e os canteiros de
relva verde, e p a r a m o s um instante p a r a olhar um chafariz,
cujo r e p u x o o sol i r i s a . T u d o i s t o p a r a m i m e s t á m u i t o con-
fuso. Deve ser a t o n t u r a da convalescença. C u s t a - m e c r e r
que estou em Barcelona, n u m dia de verão, ao lado d u m a
m u l h e r que entrou i n e s p e r a d a m e n t e na m i n h a vida e cujo
passado ignoro de maneira absoluta.

E n t r a m o s no Paseo de Gracia, u m a larga avenida com


q u a t r o fileiras de plátanos que t e r m i n a n u m horizonte de
montanhas.
Sugiro um cinema. J u a n a aceita a idéia e e n t r a m o s no
p r i m e i r o q u e s e n o s d e p a r a . S a í m o s n a m e t a d e d o filme, p o i s
sentimo-nos a m b o s inquietos e meio enervados.
Ao e n t a r d e c e r e s t a m o s a a n d a r pela R a m b l a de las Flo-
res. A idéia de que d e n t r o de d u a s s e m a n a s t e n h o de v o l t a r
para as trincheiras me enche d u m a angústia que a tristeza
da hora acentua. J u a n a t a m b é m está um pouco taciturna e
procura esconder qualquer preocupação por t r á s dum muro
feito de conversa fútil.
De repente ouvimos o som das sirenas de alarma, anun-
ciando um ataque aéreo. Os alto-falantes b e r r a m ordens, re-
c o m e n d a m a o s civis q u e c o r r a m p a r a o s a b r i g o s .
J u a n a e eu d e s c e m o s p a r a o r e f ú g i o m a i s p r ó x i m o , o
porão d u m a casa, e ficamos à espera. D e n t r o de alguns mi-
n u t o s a s b a t e r i a s a n t i a é r e a s r o m p e m fogo.
O l u g a r em que nos e n c o n t r a m o s , sombrio e fresco, e s t á
guarnecido de sacos de areia. Há aqui dentro outras pessoas.
U m a rapariga que chora baixinho. U m a velha que desde o
princípio está a rezar. Um jovem pálido que m a s t i g a frené-
tico um pau de fósforo. E um senhor de grossos bigodes que
l ê c o m c a l m a u m j o r n a l à e s c a s s a luz d o a m b i e n t e .
Ouvem-se as explosões d a s primeiras bombas. O h o m e m
do jornal nos assegura que elas estão caindo p a r a as b a n d a s
128 ERICO V E R Í S S I M O

do p o r t o . De pé j u n t o da p a r e d e do a b r i g o , o m o ç o p á l i d o
m u r m u r a qualquer coisa que não consigo ouvir com clareza.
Passam-se os minutos. As explosões continuam, mais
f o r t e s e f r e q ü e n t e s . O f o g o da a r t i l h a r i a r e d o b r a .
E s t o u cansado, estendo-me no chão. P o r entre as frestas
dos sacos passa um r a t o . A moça solta um grito histérico e
o senhor de bigodes afirma que prefere enfrentar os r a t o s
às bombas dos aviões.
O cheiro deste porão me evoca recordações que eu jul-
gava perdidas. Lá em casa (e ao pensar nestas coisas sinto
u m a grande e esquisita doçura) no meu tempo de menino
havia um porão a que atribuíamos grandes m i s t é r i o s . . .
J u a n a e s t á deitada a m e u l a d o : vejo-lhe o rosto ansioso
junto do meu.
— Assustada?
— N ã o . Só p e n s a n d o . ..
— Em quê?
— Tu t e n s de v o l t a r . Lá é p i o r . . .
— Nem sempre.
— Quando é q u e e m b a r c a s ?
— Dentro de u n s quinze dias, a c h o . . .
U m a p a u s a . O o l h o d u m r a t o , a r i s c o e a s s u s t a d o , luci-
lando n u m desvão escuro. O f a r f a l h a r do j o r n a l que se do-
bra. O moço pálido boceja longamente. A senhora que está
ajoelhada desfia as c o n t a s de seu rosário. Lá fora, os es-
trondos.
Sem que eu chegue a perceber c l a r a m e n t e a m u d a n ç a ,
faz-se silêncio n a c i d a d e . P a s s a - s e u m m i n u t o , dois, c i n c o . . .
T o r n a m a s o a r as sirenas. Os alto-falantes a n u n c i a m que o
perigo passou.
O h o m e m de b i g o d e s d o b r a c u i d a d o s a m e n t e o j o r n a l e
sai.
O m o ç o p á l i d o ( q u a n d o l e v a a m ã o a o s c a b e l o s pode-se
ver que seus dedos t r e m e m ) retira-se t a m b é m . As d u a s mu-
l h e r e s s ã o as ú l t i m a s a d e i x a r o a b r i g o : o u v i m o s - l h e s os
passos na escada de madeira, passos que morrem lá em cima
nos últimos d e g r a u s . O ruído d u m a p o r t a que se fecha.
D e i x a m o - n o s f i c a r o n d e e s t a m o s . O silêncio a q u i é t ã o
grande, que eu julgo ouvir as batidas de nossos corações. Os
seios d e J u a n a s o b e m e d e s c e m . N u m g e s t o i n s t i n t i v o m i n h a s
m ã o s o s a c a r i c i a m d o c e m e n t e . J u a n a n ã o faz o m e n o r m o -
vimento, m a s seus olhos a g o r a e s t ã o velados por u m a b r u m a
de desejo. É c o m o se e s t i v é s s e m o s s ó s no m u n d o — ú n i c o s
SAGA 129

sobreviventes dum mortífero bombardeio. Mundo fantástico,


estúpido, belo e incerto — e s t e em que vivemos. A m a n h ã
J u a n a e eu estaremos separados. Ela talvez esmagada sob as
r u í n a s d u m a casa d e r r i b a d a pelos aviões. Meu corpo a apo-
drecer em alguma parte às margens do Ebro. Mas por ora
nosso s a n g u e corre t u m u l t u o s o , e os seios de J u a n a t ê m o
palpitante calor da vida. Sim, estamos vivos! E s t a idéia dá
um novo ritmo a m i n h a s carícias, que deixam de ser suaves
p a r a começarem a ser furiosas.
Nunca pensei que o corpo de J u a n a fosse t ã o branco
n e m t ã o desesperado o nosso desejo.
Quando subimos p a r a a r u a é noite e a lua brilha por entre
os plátanos da Rambla de las Flores.

Minha última semana em Barcelona.


J u a n a e eu no pequeno q u a r t o d u m modesto hotel, na
p r o x i m i d a d e do cais. As nossas cálidas noites c o r t a d a s do
gemido d a s s i r e n a s de a l a r m a e às vezes do fogo da a r t i l h a -
r i a . G o s t a m o s d e o l h a r o céu n o t u r n o v a r a d o p e l o s f e i x e s lu-
minosos dos holofotes.
Dificilmente hei de esquecer este pequeno q u a r t o som-
brio. O j a r r o de louça branco aninhado na g r a n d e bacia trin-
cada, em cima do lavatório antigo. U m a cadeira de palhinha
com o m e u casaco estendido em seu respaldo. O papel desbo-
t a d o da parede — cravos que já f o r a m v e r m e l h o s — o guar-
da-roupa com um desses espelhos ordinários que deformam
as i m a g e n s refletidas, o bidê com p r a n c h a de m á r m o r e , a
cama de f e r r o . . .
É e s t r a n h o como as coisas acontecem. Aqui e s t a m o s nós
dois e n a d a t e m o s p a r a oferecer um ao o u t r o senão os nossos
c o r p o s e d e s e j o s . S o m o s u m a i l h a no e s p a ç o e no t e m p o —
u m a ilha quente, tempestuosa e efêmera.
J u a n a aos poucos me vai contando trechos de sua vida.
U m a h i s t ó r i a vulgar. Seria mil vezes preferível que ela ti-
vesse g u a r d a d o o mistério. Mas é que p a s s a m o s longas horas
j u n t o s e quando o desejo está saciado vem um período de
extenuada calma propício às confidências.
J u a n a ainda não me p e r g u n t o u se a amo. É melhor que
n u n c a p e r g u n t e nada. O que sinto p o r ela é u m a s i n g u l a r
m i s t u r a d e p i e d a d e e d e s e j o . Sei q u e n ã o t e n h o c o r a g e m d e
lhe m e n t i r . . . e m u i t o m e n o s de lhe dizer a verdade.
130 ERICO V E R Í S S I M O

As noites de B a r c e l o n a . . .
Muitas vezes desperto de m a d r u g a d a em sobressalto.
J u a n a d o r m e a meu lado e sua respiração é tranqüila. Fico
a pensar nas trincheiras e — barro e muquiranas, sangue e
suor, m e d o e m i s é r i a — t o d a a sordícia da g u e r r a aos poucos
me toma conta da memória.
U m a vez a s s i s t o i n s o n e d a j a n e l a d o q u a r t o a o r a i a r d e u m
d i a . Um c a l a f r i o me v i a j a pelo c o r p o e eu c o m e ç o a t i r i t a r . O
horizonte clareia aos poucos. E m m u i t a s casas h á luzes des-
m a i a d a s n a s janelas. Olho na direção do cais. Vejo na clari-
dade pálida da m a d r u g a d a as extremidades dos m a s t r o s
b o i a n d o na b r u m a c i n z e n t a . F i c o a p e n s a r no B r a s i l . . . —
T a l v e z e u n u n c a m a i s t o r n e a vê-lo.
Volto-me. J u a n a ainda dorme. Começo a me vestir vaga-
r o s a m e n t e com um negro presságio, como se esta fosse a
m a d r u g a d a de m i n h a execução.

Despeço-me dos amigos no hospital, a p a n h o o m e u saco


de r o u p a s e me vou. Alfonsito faz f u n c i o n a r a caixa-de-mú-
s i c a e a m e l o d i a i n o c e n t e do m i n u e t o me a c o m p a n h a a t é a
porta, como u m a música de adeus.
J u a n a m e espera n a estação. Odeio a s despedidas. A t r a -
sei-me no caminho propositadamente p a r a diminuir estes mo-
mentos de espera. E s t a m o s frente a frente e Juana, d u m a
p a l i d e z i m p r e s s i o n a n t e , p a r e c e t e r a l g o a m e d i z e r . S i n t o isso
desde ontem. É um pressentimento que não saberia explicar.
A estação regurgita de gente. Muito barulho. P a s s a m
troles com b a g a g e n s . Os soldados estão às janelas dos car-
ros. Na plataforma mulheres velhas e moças choram desa-
tadamente ou apenas sorriem por entre lágrimas.
N ã o t e n h o n a d a a dizer. Q u a l q u e r p a l a v r a aqui seria
inútil e tola. Limito-me a olhar para Juana. Neste momento
n ã o t e n h o c o m r e l a ç ã o a ela o m e n o r d e s e j o . A p e n a s p i e d a -
de. P i e d a d e dela, de m i m , de t o d a a h u m a n i d a d e n e s t a h o r a
doida. H á u m a g r a n d e tristeza e m quase todos estes rostos.
Creio que ninguém mais acredita na vitória. As últimas no-
tícias que vêm da frente do E b r o são desanimadoras. A
ofensiva de F r a n c o prossegue com violência.
O s l á b i o s d e J u a n a s e d e s c e r r a m , m a s ela c o n t i n u a ca-
l a d a , a b o c a e n t r e a b e r t a , os o l h o s a q u e r e r e m d i z e r a l g u m a
coisa que n ã o consigo entender. Olho o relógio. P a r t i m o s
d e n t r o de cinco m i n u t o s . Ouvem-se d u a s b a d a l a d a s de sino.
SAGA 131

J u a n a estremece e de repente, n u m ímpeto, me envolve nos


braços, encosta com força a cabeça no meu peito e começa
a soluçar. N ã o e n c o n t r o p a l a v r a s de consolo ou despedida.
Ao cabo de a l g u n s i n s t a n t e s os soluços cessam.
— N ã o sei s e d e v o t e d i z e r . . . — b a l b u c i o u ela.
Cala-se, hesitante.
— Que é?
Mais t r ê s minutos e o t r e m e s t a r á em movimento.
— Vamos, Juana, diga o que é . . .
E l a meneia a cabeça, n u m a n e g a ç ã o silenciosa. Segu-
r o - a p e l o s o m b r o s e s a c u d o - a d e leve. S e u s o l h o s e s t ã o fa-
lando, estão contando o segredo que os lábios r e c u s a m re-
velar. De repente, n u m a sensação de desfalecimento, u m a
idéia me ocorre. Talvez ela queira me dizer que e s t á grávida.
Impossível! Mas n ã o . . . n ã o é impossível. Em nosso eston-
t e a m e n t o n u n c a p e n s a m o s na probabilidade de um filho. E
a g o r a q u e m t e m m e d o d e s a b e r d a v e r d a d e s o u eu.
O sino t o r n a a soar. O t r e m apita. Hesito à beira duma
p e r g u n t a . Vejo no rosto de J u a n a o desespero que vem d u m a
s i t u a ç ã o sem remédio. A b r a ç a m o - n o s em silêncio e depois,
c o m o t r e m j á e m m a r c h a , d e s p r e n d o - m e dela e s a l t o p a r a
um vagão.
Volto a cabeça e a i n d a diviso p o r alguns segundos o
vulto claro de Juana, que depois se some no meio da mul-
tidão.
E o segredo que ela n ã o me disse vai aqui comigo, pe-
sa-me no peito, assombra-me os pensamentos, confunde-se
com e s t a sensação geral de desalento e incerteza.
15
Setembro. E s t o u de novo com o meu batalhão, agora na
Serra de Caballs. Dos antigos companheiros só encontro
Sebastian Brown, Garcia e o polaco. N i n g u é m sabe notícias
c e r t a s d e G r e e n . C o n t a m - m e q u e D e N i c o l a foi m o r t o h á
menos de u m a semana, com o peito rasgado por um esti-
lhaço de obuz.
Sinto-me deprimido e meio tonto. E s t e é o setor mais
d u r o da frente do E b r o . Os bombardeios e os ataques de
infantaria são repetidos, violentos e nossas baixas sobem a
cifras assustadoras.
Quando p e r g u n t o a Carlos Garcia que é que há de novo,
ele m e r e s p o n d e s i m p l e s m e n t e q u e a s p u l g a s e a s m u q u i r a -
nas estão mais a s s a n h a d a s do que nunca. Pede-me um cigar-
ro. Dou-lhe o último que t e n h o no bolso. Tudo aqui t e m
e s t a d o m u i t o difícil n e s t e ú l t i m o m ê s . C o m e - s e p o u c o , m a l
e irregularmente. As rações de vinho escasseiam e m i n g u a m
e não se distribuem cigarros há mais de u m a semana.
— D i v e r t i u - s e em B a r c e l o n a ? — i n d a g a ele s e m me
olhar.
N ã o sei q u e r e s p o n d e r . M a s q u a l q u e r p a l a v r a s e r v e ,
porque daqui a dois m i n u t o s é possível que a m b o s esteja-
mos mortos.
— Muito — respondo.
— T e m o s roído um osso d u r o n e s t a posição.
E em voz baixa, olhando p a r a os lados:
— Sabes que fuzilaram o americano?
— Green?
O c h i l e n o f a z um s i n a l a f i r m a t i v o c o m a c a b e ç a .
— V o l t o u do h o s p i t a l e p a r e c e q u e a n d o u p o r aí c o n v i -
dando outros voluntários americanos para assinar um me-
morial ou coisa parecida ao cônsul dos E s t a d o s U n i d o s em
Barcelona, pedindo para serem retirados da Brigada.
C u s t a - m e a c r e d i t a r e m q u e G r e e n t e n h a t i d o t a l idéia.
— Mas você t e m certeza disso?
134 ERICO V E R Í S S I M O

Garcia encolhe os ombros.


— C e r t e z a ? A única coisa certa neste inferno é que a
q u a l q u e r h o r a eles e s t ã o e m c i m a d e n ó s o u t r a vez. N ã o t e -
m o s t e m p o n e m de nos coçar.
Na noite m e s m a de minha chegada entro em combate.
O inimigo nos a t a c a de rijo e nós resistimos com todas as
f o r ç a s . É u m a f u z i l a r i a d e s e s p e r a d a . P r o l o n g a - s e c o m pe-
quenos intervalos noite a dentro. A m a d r u g a d a nos encon-
t r a ainda em ação. Perdemos muitos homens. Ficam por aí
a t i r a d o s na lama, n i n g u é m t e m t e m p o n e m paz p a r a os en-
terrar.
O novo dia e n t r a em relativa calma. Creio que os fran-
quistas se reorganizam p a r a um novo assalto. N ã o tenho
i l u s õ e s : n o s s a p o s i ç ã o é difícil e n ã o p o d e m o s a g ü e n t a r p o r
muito tempo aqui.
A p r o v e i t a m o s a p a u s a p a r a e n t e r r a r os mortos. Sou
destacado com outros camaradas para abrir sepulturas. O
sol b r i l h a . E s t a m o s s e m c a m i s a e n o s s o s t o r s o s n u s e ú m i -
dos de suor reluzem. Abrimos na terra covas compridas e
largas, não muito profundas, e depois a t i r a m o s os cadáve-
res p a r a dentro delas u n s por cima dos outros. À claridade
solar estes corpos apresentam um aspecto hediondo. Alguns
e s t ã o m u t i l a d o s . C a e m n a s a t i t u d e s m a i s g r o t e s c a s . U m de-
les t e m os d e n t e s a r r e g a n h a d o s n u m ríctus canino, os olhos
desmesuradamente abertos. É um entrelaçamento de mem-
bros, u m a promiscuidade nojentamente trágica, um quadro
c o m o e u n u n c a t i n h a i m a g i n a d o . E ali f i c a m d e m i s t u r a ,
hirtos e imóveis, s a n g r e n t o s e repelentes — espanhóis, ita-
lianos, franceses, polacos, americanos, h ú n g a r o s , i n g l e s e s . . .
Dos sonhos que tiveram, das coisas que pensaram, fizeram
e disseram, só r e s t a m esses m o n t õ e s de carne fria e em pro-
cesso de decomposição. N ã o estou comovido porque a náusea
d o m i n a t o d a s as o u t r a s sensações. E quando, com a pá, jo-
g o t e r r a s o b r e a cova, v ê m - m e à m e m ó r i a a s p a l a v r a s d e
Dom Miguel: "... que cada um proceda de acordo com sua
natureza e seu ofício". S i m , e s s a é a b e l e z a da v i d a . No e n -
t a n t o não há n a d a m a i s contrário à m i n h a natureza do que
e s t e l ô b r e g o q u a d r o , n e n h u m ofício m a i s d i v e r s o d o m e u d o
que esta torva tarefa de enterrar mortos.
Os homens suam. A t e r r a caindo sobre os corpos pro-
d u z u m r u í d o s u r d o e fofo. A i n d a a s p a l a v r a s d e D o m Mi-
guel : "... voltaria para a terra, para o convívio das coisas
simples". Sim, esta mesma terra que envolve os defuntos,
SAGA 135

esta m e s m a t e r r a que as g r a n a d a s r a s g a m é a t e r r a boa e


a m i g a que produz as árvores e os trigais.
A noite cai s e m m a i o r e s acontecimentos. Creio que hoje
podemos dormir. Trazem-nos u m a sopa que sabe à água
suja, e a l g u n s p e d a ç o s d e p ã o d u r o . N ã o t e n h o f o m e . Q u e -
ro dormir, d o r m i r p a r a esquecer. Talvez no sono eu consiga
fugir p a r a u m a t e r r a de paz e ar puro. Recuso-me obstina-
d a m e n t e a me e n t r e g a r a esta escura realidade. Dentro de
m i m e x i s t e a i n d a u m a luz de e s p e r a n ç a . A b e l e z a e a p a z a i n d a
não d e s a p a r e c e r a m do mundo. Ê preciso t e r coragem — não
a p e n a s a c o r a g e m de l u t a r c o n t r a a m o r t e , m a s a l e n t a , p a -
c i e n t e e o b s c u r a c o r a g e m de e s p e r a r , r e s i s t i n d o à d e s a g r e g a -
ção moral. T e n h o um desejo imenso de viver. E a vida p a r a
m i m s e c o n c e n t r a n u m a i m a g e m — C l a r i s s a . P o r ela e pelo
que ainda r e s t a no meu íntimo de decência e bondade, é pre-
ciso m a i s d o q u e n u n c a t e r c o r a g e m .
Um sargento anda escolhendo homens p a r a u m a sortida.
Trata-se de r e t o m a r n u m golpe fulminante e de s u r p r e s a
u m a posição inimiga. V a m o s aproveitar a escuridão da noite.
O s a r g e n t o p á r a na m i n h a frente e p e r g u n t a :
— Veterano?
Posso dizer-lhe que não, explicar-lhe que acabo de che-
g a r do hospital e ainda não me readaptei à rotina dos com-
b a t e s . M a s n ã o sei q u e e s t r a n h o o r g u l h o , q u e e s t ú p i d o p u d o r
me leva a d i z e r :
— Veterano.

Meia-noite. E s t a m o s a t r a v e s s a n d o a t e r r a de ninguém,
c a m i n h a m o s h á j á cinco m i n u t o s , d e s c e n d o d a s n o s s a s p o s i -
ções, e a i n d a n ã o o u v i m o s n e n h u m d i s p a r o .
V e m a g o r a a p a r t e m a i s difícil d a e m p r e s a . T r a t a - s e d e
s u b i r a e n c o s t a q u e leva à c o t a q u e q u e r e m o s t o m a r . V a m o s
g a n h a n d o t e r r e n o l e n t a m e n t e , a g a c h a d o s e e m silêncio. O m a i s
d r a m á t i c o é que não sabemos com precisão onde está o ini-
migo. É um a s s a l t o cego. C o m p r e e n d e m o s isto desde o pri-
meiro instante, m a s é inútil e perigoso tentar, fazer a menor
objeção aos comandantes. O remédio é prosseguir.
D e s ú b i t o n a t r e v a r e l a m p a g u e i a a f u z i l a r i a , a u m a cen-
tena de metros à nossa frente. As balas passam zunindo em
t o r n o de nós. A m e u lado um h o m e m cai gemendo. É u m a
loucura continuar o avanço. Mas Juarez, o nosso tenente, um
sujeito calmo e tenaz, g r i t a : "Adelante!" R e b e n t a m g r a n a d a s
136 ERICO V E R Í S S I M O

a pequena distância. Despedem um cheiro ativo e acre, que


tonteia. Atiramos a esmo. Encontramo-nos desabrigados, à
m e r c ê d o i n i m i g o . A o c l a r ã o d a s e x p l o s õ e s , vejo o s c a m a r a -
das. A l g u n s t o m b a m . O u t r o s hesitam. Ouvem-se vozes desen-
c o n t r a d a s de c o m a n d o . É a d e s o r d e m . " A d e l a n t e ! " c o n t i n u a a
g r i t a r o tenente. M a s reina o pânico e n t r e os internacionais.
Precipitam-se encosta abaixo numa debandada desordenada. O
oficial t e n t a d e t e r o s m a i s p r ó x i m o s , a m e a ç a n d o - o s c o m a
pistola automática. N ã o consegue. Cegos e alucinados, lar-
g a n d o os fuzis, eles s a e m a r o l a r c o l i n a a b a i x o . A f u z i l a r i a
continua. As g r a n a d a s explodem. Atiro-me ao chão e começo
a r o l a r t a m b é m pela encosta, resfolegando como um animal,
a o u v i r g r i t o s de p a v o r ou de d o r , o z u n i r d a s b a l a s , o m a -
traquear das metralhadoras. Chegando ao pé do outeiro, ergo-
me e deito a correr através da t e r r a de ninguém, r u m o das
nossas posições.
Ao clarear do dia vemos a extensão da nossa derrota.
D o s cento e vinte h o m e n s que s a í r a m p a r a o assalto, só vol-
t a r a m cinqüenta e oito. O tenente J u a r e z se a c h a entre os
desaparecidos.

H á d o i s d i a s q u e e s t a m o s s o b o fogo d a a r t i l h a r i a ini-
miga. Eles a t i r a m com u m a grande precisão. Perdemos em
n o s s o b a t a l h ã o d e d e z a v i n t e h o m e n s p o r dia. E s t a m o s m e -
t i d o s em t o c a s , e o n o s s o a s p e c t o é l a m e n t á v e l . N ã o p o d e m o s
d e i x a r o a b r i g o e a c a d a m o m e n t o e s t a m o s s u j e i t o s a ir p e l o s
ares. A l g u n s dos c a m a r a d a s j o g a m cartas. Eu me deixo ficar
a um c a n t o e n t r e g u e a m e u s p e n s a m e n t o s .
Olho p a r a os rostos dos companheiros. E s t ã o serenos e
resignados. Muitos ainda acreditam na vitória. Quando en-
t r a r a m n i s t o e s t a v a m r e s o l v i d o s a n ã o v o l t a r . P a r a eles a
vida pouco vale e a m o r t e t a n t o pode chegar-lhes hoje como
d a q u i a v i n t e a n o s , é-lhes c o m p l e t a m e n t e i n d i f e r e n t e . S ã o
b r a v o s e f o r t e s e ao vê-los s i n t o o b r i g a ç õ e s de s o l i d a r i e d a d e
p a r a c o m eles. V e n h a o q u e vier, é p r e c i s o t e r c o r a g e m e lu-
t a r . E é p o r isso q u e à s v e z e s c h e g o a t e r p u d o r a t é d o s i m -
ples desejo de ir embora.

Cessa o bombardeio. Saímos. O q u a d r o é desolador. Ca-


s a m a t a s destruídas, árvores a r r a n c a d a s do chão, cadáveres
de homens e animais. E s t a confusão de destroços sangrentos
e e n l a m e a d o s o f e r e c e m u m a s p e c t o r e p u g n a n t e . T e m o s d e fa-
SAGA 137

zer as nossas refeições aqui j u n t o destas carnes decompostas


que ninguém mais pensa em sepultar.
No dia seis de s e t e m b r o pela m a n h ã recomeça o fogo de
a r t i l h a r i a c o m u m a v i o l ê n c i a e n o r m e . U m oficial n o s a s s e -
g u r a que os t i r o s vêm n u m a cadência de seis mil por h o r a
contra u m a frente de um quilômetro.
A c h a m o - n o s de novo enfurnados. Todas as t r i n c h e i r a s
estão sendo d u r a m e n t e b a t i d a s pelos obuzes. As comunicações
telefônicas, cortadas. Impossível a remoção dos feridos p a r a
a retaguarda.
De súbito calam-se os canhões e t e m o s de correr ao pa-
rapeito p a r a repelir um ataque das tropas mouras. E l a s se
a p r o x i m a m muito das nossas trincheiras, m a s são repelidas
depois de meia hora de luta. E s t a m o s cobertos de t e r r a e
exaustos.
N e s t a m e s m a t a r d e assistimos a um combate entre aviões
italianos e espanhóis por cima de nossas cabeças. São alguns
m i n u t o s de emoção. Ouvimos o r a - t a - t a das m e t r a l h a d o r a s e
ficamos a o l h a r as doidas evoluções dos aparelhos. Um dos
italianos se precipita, incendiado, e vai cair p a r a além das
linhas inimigas. A luta prossegue. Os aviões republicanos, em
inferioridade numérica, põem-se em fuga ao cabo de algum
t e m p o . V e m o s um deles s u b i r a g r a n d e a l t u r a com a c a u d a
em chamas. De repente destaca-se um ponto escuro do corpo
do aparelho. O aviador. V e m o s o vulto precipitar-se p a r a
baixo. N ã o a b r i u o p á r a - q u e d a s . E s t á p e r d i d o . . . Mas de sú-
b i t o , a p o u c a s c e n t e n a s de m e t r o s do solo, o p á r a - q u e d a s se
a b r e e o piloto desce s e r e n a m e n t e . C o m e ç a m o s a g r i t a r . O
vento impele o p a r a q u e d i s t a p a r a o lado das forças de F r a n c o .
São m i n u t o s de ansiedade. O aviador está a cem m e t r o s do
solo, t a l v e z s e s a l v e . . . D a s t r i n c h e i r a s i n i m i g a s r o m p e a fu-
zilaria. As m e t r a l h a d o r a s a l v e j a m o p a r a q u e d i s t a que cai
perto de nossas posições crivado de balas.

Acordo no meio da noite com a impressão de que estou


sendo v í t i m a d u m a alucinação auditiva. C h e g a - m e aos ouvi-
d o s a m e l o d i a d o Bolero d e R a v e l . I m p o s s í v e l . . . E s f r e g o o s
olhos, ergo-me ainda sonolento e começo a p r o c u r a r . . . N ã o
há dúvida. A n d a u m a música no ar. Levanto-me. P e r t o de
m i m o u t r o s c a m a r a d a s d o r m e m . V e j o luz n u m a d a s c a s a m a -
t a s . É de lá que v e m a melodia. A p r o x i m o - m e dela. Da en-
t r a d a vejo q u a t r o soldados s e n t a d o s ao redor d u m a mesa, em
138 ERICO VERÍSSIMO

cima da qual está a funcionar um gramofone portátil. Os


h o m e n s e s c u t a m e m silêncio. E a q u i fico e u c o m o q u e p a r a d o
na fronteira de dois m u n d o s : o abrigo cheio de sons musi-
c a i s e a g r a n d e n o i t e p o v o a d a de d e s t r o ç o s e c a d á v e r e s . O
Bolero s o a t r a g i c a m e n t e . E l e a g o r a c o m o q u e s e a s s o c i a à
n o s s a v i d a d e i m u n d í c i e e p a v o r , fica p a r a s e m p r e m a n c h a d o
de s a n g u e , l a m a e aflição. A m e l o d i a s e g u e n u m c r e s c e n d o
enervante, e seu r i t m o t e m u m a beleza p r e s s a g a .
0 d i s c o t e r m i n a . No s i l ê n c i o o u ç o o c h i a r da a g u l h a a
passar pelas estrias sem música. Convidam-me p a r a entrar.
— De o n d e s a i u i s s o ? — p e r g u n t o , a p o n t a n d o p a r a o
gramofone.
— O G a m b i n i q u e v o l t o u a n t e o n t e m do h o s p i t a l e n c o n -
t r o u essa coisa n u m a casa a b a n d o n a d a — explica-me um
d o s h o m e n s . — T i n h a só e s s e d i s c o .
— P o r d e s g r a ç a — o b s e r v a o u t r o . — Eu p r e f e r i a q u e
fosse q u a l q u e r á r i a p e l o S c h i p a .
— O S c h i p a é um c a r n e i r o . T e n o r m á s c u l o é o M a r t i n e l l i .
— Q u e M a r t i n e l l i ! N ã o seja i d i o t a .
A discussão se acalora. Um dos soldados põe o g r a m o -
f o n e a f u n c i o n a r . O u t r a vez o Bolero.
No dia seguinte pela m a n h ã t o r n o a ouvir a m e s m a me-
lodia. U m a , d u a s , t r ê s , c i n c o v e z e s s e g u i d a s . A s a g u l h a s s e
gastam. O gramofone está rouco.
Novo bombardeio. Corremos p a r a as casamatas. E no
meio das explosões ouço trechos da música de Ravel — se-
rena no meio do caos, recusando-se com feroz orgulho a se-
guir o r i t m o irregular dos estrondos.
E s t á ainda a rouquejar d e n t r o do abrigo, parece um de-
safio, u m p r o t e s t o d o s h o m e n s e n f u r n a d o s c o n t r a a f ú r i a d o s
canhões. E depois que o canhoneio t e r m i n a , ouvimos ainda o
Bolero, c a d a vez m a i s á s p e r o e o b s t i n a d o . E a s e u r i t m o os
feridos sofrem, g e m e m e m o r r e m .
Um catalão cujos nervos os constantes bombardeios aba-
laram, precipita-se p a r a dentro da casamata, investe furioso
c o n t r a o f o n ó g r a f o , a g a r r a o d i s c o e p a r t e - o em c a c o s .
M a s o Bolero c o n t i n u a a s o a r na m i n h a c a b e ç a , n o s m e u s
nervos.

Nos dias que se seguem a nossa situação piora. Os ata-


ques das tropas mouras se t o r n a m mais freqüentes e impe-
t u o s o s . E s t a m o s h á v i n t e e q u a t r o h o r a s s e m c o m e r . O ini-
SAGA 139

migo se precipita contra nós em cargas cerradas. Nossos


fuzis e m e t r a l h a d o r a s d e s p e j a m f o g o e , m o r r e n d o c o m o m o s -
cas, os m o u r o s avançam, c h e g a m a u m a centena de m e t r o s
de nossas trincheiras, surgindo de todos os pontos, tão nu-
merosos e decididos que fatalmente acabarão por nos desa-
lojar.
Vejo t o m b a r meus companheiros. Alguns dão mostras de
i n d e c i s ã o e e n f r a q u e c i m e n t o . Um o f i c i a l p e r c o r r e a l i n h a a n i -
mando-os. Um comissário político, espanhol r e t a c o de olhos
selvagens, começa a c a n t a r u m a canção talvez improvisada
n o m o m e n t o e d a q u a l m e f i c a m a p e n a s e s t a s p a l a v r a s : *'No
me muevo de aqui, no me muevo de aqui. .." E n ã o se m o v e
mesmo. U m a bala na t e s t a derruba-o no mesmo lugar, de
o n d e s ó o r e t i r a m , m o r t o , a o a n o i t e c e r , q u a n d o o t i r o t e i o ces-
sa e os mouros, m a i s u m a vez repelidos, v o l t a m às s u a s po-
sições.
C o m l a n t e r n a s d e luz a z u l s a í m o s a r e c o l h e r o s f e r i d o s .
P a s s a m o s de l a r g o pelos cadáveres, alguns dos quais estão
aí atirados desde ontem. Ouvimos gemidos. E de poucos em
p o u c o s p a s s o s , à luz d a m i n h a l a n t e r n a , s u r g e u m q u a d r o d e
horror. Sangue e pulgas. Ratos e carnes dilaceradas. E por
mais que eu me esforce não consigo afastar da memória a
m e l o d i a do Bolero.
Só temos descanso pouco depois da meia-noite. Vemos
luzes n a s t r i n c h e i r a s franquistas. Olho a t r a v é s do p a r a p e i t o
p a r a a extensão de t e r r a que nos separa do inimigo. Tudo
escuro. U m a escuridão povoada de horrores.
O t e m p o passa. As estrelas brilham. Os cadáveres apo-
drecem.

Nossa companhia recebe ordem p a r a ir ocupar u m a das


posições m a i s perigosas deste setor, ê um l u g a r relativamen-
te baixo, cercado de morros mais altos e por conseguinte
m u i t o e x p o s t o a o f o g o d o i n i m i g o . C h a m a m - l h e " l a c o t a dei
i n f i e r n o " . N e n h u m a c o m p a n h i a c o n s e g u e m a n t e r - s e ali p o r
muito tempo.
Ao c h e g a r m o s à nova posição, depois de penosa t r a v e s -
sia em que perdemos muitos homens, t r a t a m o s de melhorar
as t r i n c h e i r a s e os abrigos.
P a s s a m - s e inexplicavelmente dois dias s e m que sejamos
a t a c a d o s u m a ú n i c a vez. A c h a m o - n o s t ã o p r ó x i m o s d o i n i m i -
go que q u a n d o a noite é silenciosa podemos o u v i r as vozes
140 ERICO V E R Í S S I M O

que v ê m do o u t r o lado. C h e g a m a nossos ouvidos pedaços de


canções italianas. Em breve começa um curioso duelo de pa-
lavras.
— Viva F r a n c o ! — berra alguém.
— V i v a a R e p ú b l i c a ! — r e t r u c a um d o s n o s s o s h o m e n s .
São vozes que p a r t e m da sombra. Em breve começam os
p a l a v r õ e s e as m ã e s dos g u e r r e i r o s são i m e d i a t a m e n t e en-
volvidas na questão.
— R o j i l l o s dei i n f i e r n o , t e n e i s l a s p i e r n a s l i s t a s p a r a
correr?
— C o r r e r e m o s d e t r á s d e v o s o t r o s , m e r c e n á r i o s dei d i a b l o !
U m i n t e r n a c i o n a l m u i t o v e r m e l h o infla o p e i t o e b e r r a ,
de olhos e s b u g a l h a d o s e chispantes de ódio:
— T i s p a c c h e r e i i l c u o r e con u n p u g n a l e u n t o d ' a g l i o !
— Figlio duna troia!
— Sccelerati!
E o d u e l o se p r o l o n g a n o i t e a d e n t r o . É s i n g u l a r c o m o
até mesmo nestas circunstâncias as simples palavras t ê m
a i n d a f o r ç a c o n t u n d e n t e . U m d o s m e u s c a m a r a d a s , u m sici-
liano barbudo, fica e s p u m a n d o de raiva q u a n d o alguém lá do
o u t r o l a d o p õ e em d ú v i d a a s u a h e t e r o s s e x u a l i d a d e . T e n h o a
i m p r e s s ã o de q u e ele v a i s a l t a r o p a r a p e i t o e p r e c i p i t a r - s e
encosta abaixo p a r a ir p a r t i r o coração do inimigo com um
punhal untado de alho.

Às sete da m a n h ã do terceiro dia o ar é de súbito r a s -


g a d o pelo a t r o a r d o s c a n h õ e s . U m r o n c o m e d o n h o q u e n o s a p a -
n h a ainda meio e s t r e m u n h a d o s . As g r a n a d a s p a s s a m sibilan-
do por cima de nossas posições e vão r e b e n t a r na r e t a g u a r d a .
A cada m i n u t o que p a s s a o b o m b a r d e i o cresce em intensida-
de. C o r r e m o s p a r a o s a b r i g o s . C o m e ç a m a s e x p l o s õ e s n a c o t a .
E s t o u c o m p l e t a m e n t e zonzo. N a d a m a i s podemos fazer senão
esperar. Começam a cair g r a n a d a s incendiárias sobre o bos-
q u e q u e fica à d i r e i t a d o l u g a r e m q u e n o s e n c o n t r a m o s .
Cada obuz que explode levanta u m a n u v e m de poeira. O ar
está escuro. U m a de nossas c a s a m a t a s acaba de ser comple-
t a m e n t e d e s t r u í d a . Ouço gemidos e p r a g a s no meio d a s ex-
plosões. Creio q u e desta vez é o fim.
E s t r a n h o . . . N ã o sinto o menor medo. O destino me bate
de n o v o à p o r t a . É i n ú t i l l u t a r c o n t r a ele. B a i x o a c a b e ç a
dolorida e espero.
SAGA 141

Onze h o r a s . O bombardeio continua. Sebastian B r o w n


m o r r e aos poucos dentro da c a s a m a t a , com o t ó r a x crivado
de estilhaços de g r a n a d a . N a d a podemos fazer. O posto mé-
dico f i c a l o n g e e n ã o p o d e m o s s a i r .
O negro está deitado no chão, os olhos parados, fitos no
m e u rosto, e seu pulso vai ficando cada vez m a i s fraco. P a -
r e c e q u e r e r d i z e r - m e a l g u m a coisa, m o v e o s l á b i o s , m a s d a
boca lhe sai a p e n a s s a n g u e . A p r e s s ã o de seus dedos na mi-
n h a m ã o a o s p o u c o s a f r o u x a . E s t a m o s t o d o s e m silêncio c o m
os olhos postos no moribundo. Pora, a trovoada continua.
P a r a Sebastian B r o w n t e r m i n o u a g u e r r a . Seus olhos
parados, vidrados e vazios ainda estão fitos nos meus. Mas
já não querem falar. O m o r t o t e m um aspecto quase hostil,
é como se fosse um novo inimigo. Cruzo-lhe as m ã o s sobre
o peito ensangüentado.
L o g o que o b o m b a r d e i o cessa, o silêncio súbito c h e g a a
s e r doloroso. Deixamos a c a s a m a t a e corremos p a r a o p a r a -
peito. O comandante aparece e começa a g r i t a r ordens. E s -
t a m o s terrivelmente dizimados. A infantaria m o u r a começa
u m a t a q u e pelo f l a n c o e s q u e r d o : c e n t e n a s d e s o l d a d o s s e p r e -
cipitam contra nós. É um encontro desigual. O tenente orde-
na a retirada. Mas tentar a t r a v e s s i a da zona b a t i d a pela
a r t i l h a r i a é q u a s e um suicídio. Há um m o m e n t o de indecisão.
Nossos h o m e n s a t i r a m ao c h ã o bornais e mochilas e
p r e c i p i t a m - s e e n c o s t a a b a i x o , l e v a n d o n a m ã o a p e n a s o fuzil.
Outros despojam-se de t u d o q u a n t o lhes possa e m b a r a ç a r a
fuga e deitam a correr alucinados.
Aproximo-me do parapeito. Os m o u r o s se encontram a
menos de u m a centena de m e t r o s da cota. N ã o há tempo
para pensar. Sinto-me repentinamente tomado por u m a doida
esperança, que me dá u m a impetuosidade diabólica. Lanço-me
m o r r o abaixo e saio a rolar cegamente por e n t r e pedras e
arbustos. Vejo de modo obscuro os outros internacionais que
correm e v i r a m c a m b a l h o t a s em t o r n o de mim. Ao cabo de
u n s dez m i n u t o s c o m e ç o a o u v i r o s i b i l a r d a s b a l a s q u e s e
c r a v a m no chão a m e u lado ou p e n e t r a m no corpo dos fugi-
tivos.
Arde-me a g a r g a n t a , t e n h o as m ã o s esfoladas, os olhos
turvos, as roupas rasgadas. Mas continuo a rolar, arquejan-
do, suando, gemendo, desejando m a i s do que n u n c a viver,
viver, viver!
É c o m a r e s p i r a ç ã o r o u c a e c a n s a d a de f e r a p e r s e g u i d a ,
142 ERICO VERÍSSIMO

chego a um ângulo m o r t o e detenho-me p a r a descansar um


i n s t a n t e . O l h o e e s t r e m e ç o . Os o b u z e s c o n t i n u a m a e x p l o d i r
na m i n h a frente. E n c h e m o ar de clarões, estilhaços e nuvens
de f u m a ç a e poeira. Se eu conseguir a t r a v e s s a r essa zona
com vida, estou salvo. Acho-me a u n s seiscentos m e t r o s de
nossas linhas.
Vejo o chão juncado de cadáveres mutilados. As árvores
s a l t a m o u s e q u e b r a m , p a r t i d a s pela m e t r a l h a . A b r e m - s e
g r a n d e s b u r a c o s n o solo. A p o e i r a cai s o b r e m i m , e n t r a - m e
n o s olhos, nos ouvidos, no nariz. Meu coração pula d e n t r o
do peito. Tenho a impressão de que as veias do pescoço vão
rebentar.
P o r e n t r e o f u m o e o pó a v i s t o , d e s c e n d o u m a e n c o s t a ,
longe, t r ê s c a r r o s blindados inimigos que se dirigem p a r a as
nossas t r i n c h e i r a s despejando fogo. Se espero mais um mi-
n u t o , fico c o m o c a m i n h o c o r t a d o e t u d o e s t a r á p e r d i d o .
N a c e g u e i r a d o d e s e s p e r o d e i t o a c o r r e r . A l g u m a s cen-
t e n a s de m e t r o s m a i s adiante, atiro-me ao chão. U m a explo-
são e u m a nuvem de poeira que me encobre. Nova corrida,
d e s t a vez m a i s c u r t a . T o r n o a m e l a n ç a r a o solo. E s t o u c o m
a c a r a m e t i d a na t e r r a , a b o c a a b e r t a a b a b u j a r o p ó . . . O
simples r e s p i r a r me chega a ser doloroso. T e n h o a sensação
de que m e u corpo se vai d e s m a n c h a r d u m m o m e n t o p a r a ou-
t r o , a c o m e ç a r pelo c r â n i o , c u j a s p a r e d e s p a r e c e m f e n d i d a s ,
a b a l a d a s , p r e s t e s a s e d e s f a z e r e m e m c a c o s . A p o e i r a m e su-
foca. O c h e i r o de p ó l v o r a e e n x o f r e me a t o r d o a . T e n h o v o n -
t a d e d e g r i t a r . G r i t o m a s n ã o ouço m i n h a p r ó p r i a voz e c o m
o e s f o r ç o q u e f a ç o d ó i - m e o t ó r a x , a c a b e ç a , a g a r g a n t a , os
dentes.
M a s eu quero viver. . . T o m a n d o novo alento ponho-me
de pé. Dou alguns passos. Um obuz explode no ar por cima
de m i n h a cabeça. Tenho consciência a p e n a s d u m clarão ver-
m e l h o e c e g a n t e . D e p o i s p e r c o a n o ç ã o de t u d o .
Quando t o r n o a recobrar os sentidos estou deitado no
f u n d o d u m v a l o . O b o m b a r d e i o c o n t i n u a . S i n t o u m a d o r di-
acerante na perna direita e q u a n d o vou r e s p i r a r t e n h o a
ensação de que m ã o s poderosas me c o m p r i m e m o t ó r a x . A
r e s p i r a ç ã o m e é i r r e g u l a r e difícil. S i n t o n a b o c a u m l í q u i d o
quente e de e s t r a n h o sabor. Levo os dedos aos lábios e tiro-
os manchados de sangue.
A o s poucos, vencendo a t o n t u r a , vou compreendendo a
s i t u a ç ã o . F u i a t i n g i d o p o r u m e s t i l h a ç o d e o b u z . M a s é sin-
SAGA 143

g u i a r . .. A d o r é na p e r n a e no e n t a n t o me v e m s a n g u e à
boca e m i n h a respiração é penosa. De súbito, n u m susto, eu
c o n c l u o : e s t o u f e r i d o no p u l m ã o . C o m e ç o a a p a l p a r o p e i t o
n u m frenesi e encontro finalmente do lado esquerdo, e n t r e
d u a s c o s t e l a s , u m p e q u e n o orifício d o t a m a n h o d u m g r ã o d e
m i l h o . A p e r n a c o n t i n u a a d o e r i n t e n s a m e n t e e as c a l ç a s ,
pouco acima do tornozelo, acham-se m a n c h a d a s de vermelho.
Meus olhos se t u r v a m , o sangue me escorre das feridas,
a s f o r ç a s m e f a l t a m , e s t o u cego, f r a c o , m u i t o f r a c o . . .
16
Outubro. Encontro-me recolhido a um hospital em Mataró,
n a s p r o x i m i d a d e s d e B a r c e l o n a . S ó fui a t e n d i d o c o n v e n i -
e n t e m e n t e vinte h o r a s depois de cair ferido e a v i a g e m de
t r e m d o E b r o a t é a q u i foi l o n g a , l e n t a e p e n o s a . A p e s a r d e
todos os sofrimentos estou contente, porque escapei com vida
e t e n h o e s p e r a n ç a s d e s a r a r . Q u e m m e o p e r o u foi o D r .
A n d r e w M a r t i n , um canadense b a i x o e m a g r o , de rosto com-
p r i d o e r o s a d o . S e u n a r i z em sela, c o m p r i d o e a f i l a d o , o l u s -
t r o de s u a s faces b e m e s c a n h o a d a s e da calva oval; o frio
a z u l de s e u s o l h o s , o a s p e c t o a s s é p t i c o e os m o v i m e n t o s r á -
p i d o s e d e c i d i d o s — t u d o i s s o me leva a c o m p a r á - l o a um
bisturi. Mas a um bisturi não de todo destituído de u m a dis-
creta dose de t e r n u r a h u m a n a .
Sinto-me bem quando ele aparece. N ã o é p r o p r i a m e n t e
desses médicos de presença sedativa e ares paternais, que
sabem nos b a t e r no ombro no m o m e n t o preciso e dizer jus-
t a m e n t e as coisas que desejamos ouvir. Mas, p o r o u t r o lado,
n ã o se pode dizer que s u a atitude diante dos doentes seja fria
e puramente técnica.
Fazemos boa c a m a r a d a g e m e aos poucos, à medida que
v o u m e l h o r a n d o , ele t r a n s f e r e o s e u i n t e r e s s e p o r m i m d o
t e r r e n o m é d i c o p a r a o h u m a n o . A t é h á p o u c o e u e r a p a r a ele
a p e n a s u m e m p i e m a . A g o r a j á p e r g u n t o u o n d e n a s c i e fi-
cou m u i t o e s p a n t a d o p o r saber que sou brasileiro.
— Q u a n t o tempo t e n h o de ficar de cama, d o u t o r ? —
pergunto-lhe u m dia.
O h o m e m t i r a o s óculos, l i m p a - l h e s a s l e n t e s c o m u m
lenço d e s e d a , f i t a e m m i m o s o l h o s c l a r o s e p e r g u n t a :
— T e m muita pressa em voltar p a r a a frente?
Sorrio e respondo sem titubear:
— O s e n h o r é capaz de g u a r d a r um g r a n d e s e g r e d o ?
— Claro que sou.
— Pois então e s c u t e . . . Não tenho nenhuma vontade de
sair daqui.
146 ERICO V E R Í S S I M O

O D r . M a r t i n t o r n a a p ô r os óculos e me a s s e g u r a , n u m
a r d e c o n s p i r a ç ã o , q u e o s f e r i m e n t o s , s e j a c o m o for, m e p r e -
g a r ã o à c a m a pelo m e n o s p o r t r ê s m e s e s .

M i n h a p r i m e i r a q u i n z e n a a q u i foi n e g r a . N o s p e s a d e l o s
da febre eu me via jogado vivo p a r a d e n t r o da vala comum,
s e n t i a o c o n t a t o frio, v i s c o s o e p ú t r i d o d o s c a d á v e r e s , cujo
sangue me e n t r a v a pela boca e pelas narinas, sufocando-me.
D u m modo confuso eu e r a o coveiro de m i m mesmo, eu me
v i a e n t e r r a n d o e e n t e r r a d o . M ã o s e s c u r a s c o b e r t a s d u m a la-
ma a v e r m e l h a d a me s u r g i a m diante dos olhos e os canhões
martelavam-me as paredes do crânio.
M i n h a s noites n ã o t i n h a m m a i s fim. E às vezes — dor-
mindo, acordado ou em m a d o r n a ? — eu t i n h a a impressão
d e s e n t i r d e n o v o a s e m a n a ç õ e s f é t i d a s e a d o c i c a d a s d o s ca-
dáveres apodrecidos. E r a como se esse cheiro nunca mais me
fosse s a i r d a s n a r i n a s .
E m d e l í r i o v i a feições f a m i l i a r e s , a m i g o s d o B r a s i l , ca-
m a r a d a s da trincheira. Depois já e r a m seres horrendos e eu
v i v i a a m e a g i t a r n u m p a í s d e p e s a d e l o , n u m m u n d o s e m ló-
gica e em contínuas m u t a ç õ e s f a n t á s t i c a s . Às vezes confun-
dia as enfermeiras com os m o n s t r o s de m e u delírio e t i n h a -
lhes pavor. U m a noite me ergui da c a m a ardendo em febre
e dei a l g u n s p a s s o s c e g o s p e l a s a l a . A e n f e r m e i r a de p l a n t ã o
a m u i t o c u s t o me fez v o l t a r p a r a a c a m a . Q u a n d o a f e b r e
b a i x o u , ela m e c o n t o u a h i s t ó r i a . E u n ã o m e l e m b r a v a d e
nada.

As noites do hospital de M a t a r ó são longas e quase quie-


tas, agora que os monstros desertaram meu sono. Fico a re-
l e m b r a r com mórbida volúpia j u s t a m e n t e as coisas que m a i s
desejo esquecer.
O t u m u l t o i n t e r i o r a i n d a n ã o cessou. Ê p r e c i s o q u e d e s ç a
p a r a o chão a poeira que as explosões l e v a n t a r a m p a r a que
o ar se t o r n e o u t r a vez l í m p i d o e eu p o s s a v e r o a z u l do
céu. N o céu e s t á a m i n h a a l m a . P e n s o q u e s e m p r e l á e s t e v e
nos m o m e n t o s em que o corpo refocilava na lama d a s trin-
c h e i r a s . É p a r a o céu q u e s e m p r e o l h a m o s q u e s e j u l g a m
perdidos, os que querem fugir, os que se a t o l a m na miséria.
Ê no céu q u e m o r a a e s p e r a n ç a .
SAGA 147

E s t a é a única indicação que t e n h o da existência de


Deus. Mas q u a n t a s coisas vi que são a negação d'Èle?
Pelo dreno se vai o p u s do empiema. A s s i m se fosse
com ele t o d a a a m a r g u r a que t e n h o dentro de mim. Torno
a r e t o m a r os cubos coloridos d a s m i n h a s experiências e ten-
to de novo f o r m a r o quadro. N e s t a s lentas h o r a s de hospital
meus pensamentos correm como um rio preguiçoso sob um
sol d e m a r a s m o . S i n t o - m e p r i s i o n e i r o d a c a m a e d u m p u n h a -
do de m e m ó r i a s . N ã o há fuga possível. M u i t a s vezes ouço
em p e n s a m e n t o a voz estridula de Alfonsito ou as p a l a v r a s
g r a v e s c a n s a d a s de D o m Miguel.
Atravessei o oceano p a r a vir ao encontro j u s t a m e n t e das
c o i s a s q u e m a i s odeio. N ã o p o s s o c u l p a r n i n g u é m d o q u e m e
aconteceu. Q u a n d o eu vivia no Brasil a m i n h a vida de sonhos
i n s a t i s f e i t o s , c o m p a r a v a - m e a o p e r u q u e , s e g u n d o s e diz, m e -
t i d o n o c e n t r o d u m c í r c u l o t r a ç a d o a giz n o c h ã o , s e j u l g a
i r r e m e d i a v e l m e n t e p r i s i o n e i r o dele. U m d i a a c h e i q u e d e v i a
c o r r e r p a r a a l i b e r d a d e , s a l t a n d o o r i s c o d e giz. C o r t e i a s
a m a r r a s que me p r e n d i a m a t o d a s as convenções sociais e a
esse m a n s o c o m o d i s m o d o s h á b i t o s . D e i o s a l t o . . . E a g o r a ,
moendo e remoendo experiências recentes, comparando-as
com as a n t i g a s , chego à conclusão de que a vida não p a s s a
d u m a s é r i e n u m e r o s a de c í r c u l o s de giz c o n c ê n t r i c o s . A gen-
te salta por cima de um apenas p a r a verificar depois que
e s t á p r i s i o n e i r o de o u t r o e a s s i m p o r d i a n t e . É a c o n d i ç ã o
humana.

Os c u r a t i v o s s ã o dolorosos m a s a t é a eles me vou h a b i -


t u a n d o . A alegria de e s t a r vivo e longe da frente de b a t a l h a
compensa as tristezas e dores que porventura insistam em
se alojar no m e u corpo.
J á e s t o u e m c o n d i ç õ e s d e ler. P e ç o l i v r o s d a b i b l i o t e c a
do hospital. E n c h o a g o r a as h o r a s com novelas policiais, m a s
estou p a r t i c u l a r m e n t e ansioso p a r a ler q u a l q u e r história em
torno dum h o m e m que viva próximo da t e r r a e das coisas
simples e tranqüilas.
T r a z e m - m e t a m b é m j o r n a i s . C r e i o q u e eles e s c o n d e m a
verdadeira situação das tropas governistas. O Dr. Martin me
assegura que a causa do governo está quase perdida. As tro-
pas de Franco avançam. Dentro de poucos meses estarão em
Madrid. Os jornais falam t a m b é m que o governo dentro de
poucos dias vai r e t i r a r os combatentes da B r i g a d a Interna-
148 ERICO V E R Í S S I M O

cional. A l e g r a - m e a idéia de q u e ao me e r g u e r da c a m a pos-


sa sair da Espanha.
À m e d i d a que vou melhorando, m a i s a g u d a se faz a mi-
n h a s a u d a d e da p á t r i a . Sonho freqüentemente que voltei. E
a noite passada estive em J a c a r e c a n g a com velhos amigos da
meninice. Mas a imagem pálida de Áxel atravessou estranha-
mente o meu sonho.
À s v e z e s o D r . M a r t i n v e m s e n t a r - s e j u n t o d e m i n h a ca-
ma e ficamos a conversar por a l g u m tempo. F a l a m o s um dia
em D e u s e o c a n a d e n s e me d i z :
— De c e r t o m o d o D e u s e x i s t e . O e r r o é p e n s a r m o s q u e
Ele tenha de ser necessariamente bondoso e justo. Deus está
a c i m a do b e m e do m a l . A l i á s bem e mal s ã o i d é i a s q u e
existem apenas no tempo. No plano da eternidade elas se
dissolvem como um grão de sal no o c e a n o . . . com o perdão
da pobreza da imagem.
— E que vem a ser a Eternidade?
— N ã o p e r g u n t e isso a um h o m e m finito. A eternidade
talvez seja simplesmente u m a idéia na m e n t e de Deus.
— E Deus?
— U m a projeção do nosso medo da m o r t e e de nosso
anseio de eternidade.
— Círculo vicioso.
— Que o u t r a coisa é a vida senão essa e t e r n a r o n d a ?
A n d a m o s a g i r a r em torno dos m e s m o s apetites, hábitos e
preocupações, desde o primeiro até o último momento.
— Filosofando, hem, doutor?
— Que remédio, se aqui não posso j o g a r o meu g o l f ?
D o u t r a f e i t a lhe c o n t o a m i n h a h i s t ó r i a e a s m i n h a s dú-
vidas e descobertas diante da vida. O Dr. M a r t i n escuta em
silêncio, olhando p a r a a p a r e d e e n ã o p a r a m i m ; e q u a n d o
me calo, ele s i m p l e s m e n t e t i r a os ó c u l o s e c o m e ç a a l i m p á -
los c o m o l e n ç o , a t e s t a f r a n z i d a e o o l h a r v a g o .
— E n f i m — p e r g u n t o — q u a l a c o n d u t a a s e g u i r na
vida?
Ele franze os lábios antes de responder.
— Eu. sempre sigo o meu nariz.
Sorrio e o Dr. A n d r e w Martin me olha com um ar de
cômica desconfiança.
— E u sei o q u e v o c ê e s t á i n s i n u a n d o c o m e s s e s o r r i s o .
N a r i z é coisa que não me f a l t a . . .
B o t a os óculos, mete-me um t e r m ô m e t r o na boca e pros-
segue:
SAGA 149

— Pois eu sigo as m i n h a s inclinações. F a ç o o que gosto.


A c i r u r g i a é o m e u hobby, o m e u p a s s a t e m p o e o m e u ofício.
F i c a u m i n s t a n t e e m silêncio, a p a n h a o t e r m ô m e t r o , e x a -
mina-o e diz:
— N a d a de febre. Vai t u d o bem. — E q u a s e sem m u d a r
d e v o z : — N ã o t e n h o a m b i ç õ e s d e s m e d i d a s n e m s o n h o s ir-
realizáveis. N a s h o r a s v a g a s gosto de ler bons livros e ouvir
música.
— Beethoven? — arrisco.
— Sim, m a s p r i n c i p a l m e n t e Mozart, que a j u d a a repou-
sar e nos proporciona um prazer musical quimicamente puro.
Beethoven está s a t u r a d o de sofrimento e de intenções dema-
s i a d o h u m a n a s . N ã o n o s o f e r e c e a m e n o r p o s s i b i l i d a d e d e fu-
g a . . . A h . . . e p o r falar em fuga, B a c h t a m b é m é o m e u
homem. E a propósito, a perna t e m doído?
— Um pouco. .. não muito — respondo, sem saber que
conexão possa h a v e r entre m i n h a perna ferida e João Sebas-
tião Bach.
O Dr. M a r t i n se ergue p a r a sair m a s eu o detenho com
uma pergunta:
— E . . . a respeito de sexo?
O médico me lança um o l h a r oblíquo.
— Padre confessor?
— B o m , se n ã o q u i s e r r e s p o n d e r . . .
— N ã o tenho n e n h u m a superstição nesse assunto. Ouça
lá. M e s m o nisso e u s i g o a s m i n h a s i n c l i n a ç õ e s e v i t a n d o q u e
elas e n t r e m em conflito com as inclinações alheias.
— E p o r que deixa de segui-las q u a n d o elas podem ferir
o p r ó x i m o ? N ã o s e r á o s e n t i m e n t o de bem e de mal, a v e l h a
idéia do pecado?
O Dr. M a r t i n fica por alguns segundos de t e s t a franzida
e olhos perdidos.
— No fundo pode s e r . . . Tive u m a educação religiosa.
M e u p a i e r a p a s t o r p r o t e s t a n t e . E m m i n h a c a s a lia-se o b r i -
g a t o r i a m e n t e a B í b l i a e f a l a v a - s e m u i t o em céu, i n f e r n o ,
castigo e recompensa. E s s a s idéias me i m p r e g n a r a m a cons-
ciência. Q u a n d o m a i s t a r d e com o auxílio d a s leituras, da
e x p e r i ê n c i a e da m a l í c i a eu p r o c u r e i e s v a z i a r o e s p í r i t o d e s s e
c o n t e ú d o m e d i e v a l , foi p a r a v e r i f i c a r n o f i m q u e f i c a v a nele
a l g u m a c o i s a q u e j á p e r t e n c i a à m i n h a n a t u r e z a , e q u e difi-
cilmente ou nunca desapareceria de t o d o . . .
— M a s , de um m o d o p r á t i c o , q u a l é o s e u c o n c e i t o de
bem e de mal?
150 ERICO VERÍSSIMO

— Mal p a r a m i m é tudo q u a n t o fere o m e u sentimento


de beleza e h a r m o n i a . B e m é t u d o q u a n t o me satisfaz esse
mesmo sentimento. E s t á claro?
— Quase.
— Que é que falta ainda?
— D i g a - m e u m a coisa. O s e n h o r a m a o s s e u s s e m e l h a n -
tes?
— Alguns.
— E quanto à humanidade dum modo geral?
O Dr. M a r t i n encolhe os o m b r o s ossudos.
— O homem nem sempre é mau. A humanidade quase
s e m p r e o é.
Faço nova investida.
— M a s o s e u a m o r p e l a c i r u r g i a é de c a r á t e r p u r a m e n t e
técnico e recreativo ou t e m a l g u m a relação com o desejo de
s e r ú t i l e de p r a t i c a r o b e m ?
— Ê c l a r o q u e t e m r e l a ç ã o c o m o d e s e j o de s e r ú t i l ,
porque no fim de contas todos nós e s t a m o s d e n t r o do mesmo
b a r c o e a idéia d e q u e s a l v a m o s u m a v i d a é g r a t a a o m e u
s e n t i m e n t o de beleza e h a r m o n i a .
— M e s m o q u a n d o s a l v a u m a c r i a t u r a p a r a devolvê-la a
u m a vida de miséria e sofrimento?
O d o u t o r faz u m a c a r e t a .
— Meu c a r o , e u p a r t o d o p r i n c í p i o s e g u n d o o q u a l t o d o s
os h o m e n s a m a m a vida e t u d o fazem p a r a sobreviver.
T e n h o o u t r a p e r g u n t a a f a z e r a o D r . M a r t i n , m a s ele
corta a palestra com um gesto.
— E p o r falar em próximo, lembro-me de que, e n q u a n t o
estou aqui a c o n v e r s a r fiado, os outros doentes e s t ã o me es-
perando. A t é à v i s t a !

R e a t a m o s a p a l e s t r a n a m a n h ã s e g u i n t e q u a n d o ele p a s -
sa na sua visita habitual. Depois das perguntas de costume,
do e x a m e da papeleta com o gráfico da febre, lanço-lhe a
pergunta:
— Mas enfim, doutor, qual é a solução p a r a e s t a velha
humanidade doída?
O D r . M a r t i n s o r r i e me o l h a i n t e n s a m e n t e .
— E s t e v e r u m i n a n d o a nossa conversa de o n t e m ?
L a r g a a p a p e l e t a e s e n t a - s e à b e i r a da c a m a .
— S o l u ç ã o ? — r e p e t e ele. — T o l i c e ! Um p a r de s a p a t o s
único p a r a todos os p é s ? A b s u r d o . O que pode h a v e r é u m a
SAGA 151

solução p a r a cada indivíduo de acordo com as s u a s glându-


l a s , o a m b i e n t e e m q u e vive, a s s u a s p o s s i b i l i d a d e s e c o n ô m i -
cas e e s p i r i t u a i s . . .
— P a r a o D r . M a r t i n , a c i r u r g i a , os b o n s l i v r o s e M o z a r t .
— Isso d u m modo grosso. Há ainda u m a série intermi-
nável de detalhes que m u i t a s vezes d e i t a m a perder as nossas
inclinações fundamentais. Tudo depende de t e r m o s a coragem
de s a c r i f i c a r os pequenos desejos em benefício dos g r a n d e s .
— De s o r t e q u e o h o m e m q u e s e g u e o s e u n a r i z m a i s
t a r d e ou m a i s cedo e n c o n t r a o seu r u m o . . .
— Claro. N ã o vejo r a z ã o p a r a que você renuncie aos
s e u s i d e a i s de beleza, à s u a p i n t u r a e ao s e u B e e t h o v e n .
T e n h o o p u d o r d o s g e s t o s d r a m á t i c o s , odeio a s e f u s õ e s
s e n t i m e n t a i s . F a z m u i t o que desejo dizer a l g u m a coisa real-
m e n t e i m p o r t a n t e ao Dr. Martin, m a s não encontro jeito.
Hoje chego a ela p o r um caminho indireto.
— E s t o u pensando n u m a história muito engraçada, dou-
t o r . .. — digo-lhe.
A n d r e w M a r t i n acha-se p a r a d o ao lado de m i n h a cama.
— V a m o s lá. P o n h a isso p a r a f o r a . . .
— C o n t a r a m - m e q u e o s e n h o r a n d a v a n a l i n h a d e fogo,
no meio da fuzilaria, ajudando a recolher os f e r i d o s . . .
Faço u m a pausa.
— E que t e m isso? — r e s m u n g a o médico.
— Disseram-me mais u m a c o i s a . . . Os padioleiros que
me recolheram, n u m certo m o m e n t o ficaram tomados de pa-
v o r e q u i s e r a m me a b a n d o n a r no c a m p o . . . e o senhor, de
revólver em punho, obrigou-os a c o n t i n u a r . . . .
— E q u e t e m i s s o ? — r e p e t e ele q u a s e h o s t i l .
— Ê que parece u m a ação um pouco diferente da sua
filosofia...
— N ã o vejo diferença n e n h u m a . Mesmo nesse m o m e n t o
segui o meu nariz.
— Grande nariz, b r a v o nariz. N ã o me esquecerei nunca
q u e a ele devo a m i n h a vida.
O Dr. M a r t i n suspira baixinho, com ar c o n t r a r i a d o e
quando, constrangido, começo a p e n s a r em palavras de agra-
d e c i m e n t o , ele s e i n c l i n a s o b r e m i m e d i z :
— A c h a q u e eu lhe salvei a vida, n ã o é? Pois eu só
g o s t a r i a de s a b e r q u e vai você fazer com essa v i d a . . .
E sem esperar a resposta, afasta-se calmamente e sai a
visitar os outros doentes.
152 ERICO V E R Í S S I M O

Em fins de n o v e m b r o deixo a c a m a e passo os dias sen-


t a d o n u m a p r e g u i ç o s a . F a z j á m u i t o frio.
Consigo um caderno de desenho e um lápis. Fico-me às
vezes a r a b i s c a r r e t r a t o s . Um dia t e n t o d e s e n h a r de memó-
ria a cara de Sebastian e Áxel. N ã o acerto os traços. No
e n t a n t o eles estão vivos, nítidos na m i n h a lembrança.
O meu vizinho de cama, um sevilhano de barba hirsuta,
f i c a i n d i g n a d o ao v e r o r e t r a t o q u e fiz d e l e . J u l g o a p r i n c í p i o
que caçoa, m a s verifico depois, espantado, que o h o m e m está
c o m a v a i d a d e f e r i d a , p o i s f a z i a d e s i m e s m o u m a idéia m a i s
lisonjeira.
— Eu não tenho essa cara.
— É o que você pensa — replico.
— Vá a p r e n d e r a d e s e n h a r , o u v i u ?
A g a r r a o papel e amassa-o, com raiva. Viro-lhe as costas
e começo a fazer um r e t r a t o imaginário de mulher.
Os homens são engraçados. Na "cota del infierno" m e u s
c a m a r a d a s ficavam furiosos quando alguém lá do outro lado
lhes lançava u m a p a l a v r a ofensiva. E este pobre diabo ma-
c i l e n t o e p e l u d o j u l g a - s e um A d ó n i s e se e n f u r e c e c o m i g o
porque os t r a ç o s de m e u lápis não correspondem à i m a g e m
i d e a l q u e ele t e m d o s e u p r ó p r i o físico.
17
Faço amizades, adquiro hábitos. Lentamente as forças me
voltam e as feridas do corpo e da a l m a se vão aos poucos
c i c a t r i z a n d o . N ã o sei c o m q u e s e n t i d o a g e n t e a u f e r e o t e m p o ,
m a s , s e j a c o m o for, e s s e a p a r e l h o a u f e r i d o r e m m i m n ã o e s t á
f u n c i o n a n d o b e m . À s v e z e s t e n h o a i m p r e s s ã o d e q u e m e en-
contro aqui há quase um ano. Doutras, parece-me que entrei
ontem e q u e a i n d a t e n h o a ecoar nos corredores do cérebro
o ribombo dos canhões.
Dezembro e n t r a com um frio intenso e céus nublados.
U m a g r a n d e melancolia baixa sobre o hospital. E s t o u abatido.
Ouço o vento lá fora e penso nos h o m e n s que a i n d a se a c h a m
na frente de batalha. Peço mais um cobertor. A enfermeira
me satisfaz ao desejo e me t r a z t a m b é m u m a botija quente
p a r a os pés. Ao cabo de a l g u m t e m p o descubro que m e u en-
regelamento é interior, não é u m a questão de m a i s botijas ou
cobertores.
Os homens aqui dentro inventam brinquedos e festas
p a r a s e d i v e r t i r e m . U m d e l e s t o c a acórdeon, o d a t e r c e i r a
cama da direita é tenor (sempre há um tenor) e em certas
h o r a s d o d i a o s a l ã o d o s c o n v a l e s c e n t e s p a r e c e u m music-hall.
V e j o h o j e u m e s p e t á c u l o q u e à m a i o r i a d o s h o m e n s faz r i r
m a s que a m i m causa grande mal-estar. Um jovem catalão
que perdeu u m a das pernas no E b r o ouve u m a rumba e vai
p a r a o m e i o d o s a l ã o e c o m e ç a a p u l a r n u m a p e r n a só, p r o -
c u r a n d o a c o m p a n h a r o r i t m o da música. Seu r o s t o e x a n g u e
e chupado t e m u m a expressão de selvagem e grotesca alegria.
Na segunda s e m a n a de dezembro concedem-me alta. Con-
s i g o licença p a r a i r p a s s a r u n s d i a s e m B a r c e l o n a . D ã o - m e
u m a s boas centenas de pesetas, u m a fatiota, um sobretudo
e u m a boina. T o r n o a calçar sapatos, depois dos m u i t o s me-
ses em que andei com os pés metidos em alpercatas.
Estou na frente do espelho a dar um nó na horrenda
g r a v a t a cor de m o r a n g o que o destino me reservou. Volto-
me e vejo o Dr. M a r t i n a t r á s de mim. Faz-me a l g u m a s re-
comendações de c a r á t e r médico e deseja-me boa viagem.
154 ERICO V E R Í S S I M O

— Doutor...
— Que é que h á ?
— F a l e c o m f r a n q u e z a . . . E s t a h i s t ó r i a . . . q u e r o di-
z e r . . . o p u l m ã o . N ã o h a v e r á c o m p l i c a ç õ e s no f u t u r o ?
Ele sacode a cabeça negativamente.
— N ã o creio. Você é moço. P r o c u r e levar u m a vida sã,
f a ç a g i n á s t i c a r e s p i r a t ó r i a , t o m e sol.
A p a l a v r a sol e v o c a u m a r e c o r d a ç ã o d o B r a s i l . A g o r a l á
é v e r ã o — p e n s o . — Em b r e v e e s t a r ã o f e s t e j a n d o o N a t a l .
Despeço-me dos c a m a r a d a s , das enfermeiras e emprega-
dos do hospital.
O d o u t o r me a c o m p a n h a a t é a porta. Com o m e u emba-
r a ç a n t e h o r r o r ao m e l o d r a m a r e p r i m o o desejo de a p e r t a r
contra o peite esse homenzinho. Toda a m i n h a g r a t i d ã o por
ele s e r e s u m e n u m a p e r t o d e m ã o e n u m :
— Obrigado, doutor.
No meio da escada me volto p a r a g r i t a r :
— Adeus!
O D r . A n d r e w M a r t i n faz u m s i n a l a m i s t o s o e d i z :
— Até à vista! O mundo é muito pequeno.

Barcelona vive sob a c o n s t a n t e a m e a ç a dos bombardeios.


Os víveres escasseiam. A cidade t e m um aspecto de miséria
e catástrofe. E s t e inverno t e m sido duro e cruel. A prosti-
tuição a u m e n t a assustadoramente e por um cartão de racio-
namento que dá direito a um prato de lentilhas, há mulheres
que e n t r e g a m o corpo ao primeiro desconhecido.
H o s p e d o - m e n u m h o t e l d o c e n t r o . N o p r i m e i r o d i a sou
c h a m a d o à polícia, p o i s s u s p e i t a m - m e de e s p i o n a g e m . A fa-
mosa "Quinta Coluna" anda espalhada por todo o território
a i n d a em p o d e r do g o v e r n o , e a s u a f u n ç ã o é e s p a l h a r b o a -
t o s , s e m e a r o d e s â n i m o e o d e r r o t i s m o . S u b m e t e m - m e a um
interrogatório, m a s a caderneta militar que t r a g o comigo
evita t o d a s as dificuldades. M a n d a m - m e e m b o r a em paz.
C a m i n h o a g o r a pela R a m b l a de las Flores, p e n s a n d o em
J u a n a . Que fim t e r á levado? P a s s o por curiosidade pelo ho-
t e l o n d e e s t i v e m o s j u n t o s d u r a n t e u m a q u i n z e n a . N ã o encon-
tro mais que um montão de ruínas.
S i n t o m u i t o frio e a r r e p e n d o - m e d e t e r v i n d o . N ã o t e n h o
a m i g o s n e s t a c i d a d e e os h o m e n s a q u e m d i r i j o a p a l a v r a na
r u a m i r a m - m e com desconfiança e com um certo ar de hos-
tilidade.
SAGA 155

Os últimos bombardeios aéreos causaram muitos danos


p e s s o a i s e m a t e r i a i s . Os h o s p i t a i s e s t ã o c h e i o s . O p o r t e i r o
de m e u hotel conta-me que as operações de g u e r r a estão pre-
sentemente paralisadas e ainda há tênues esperanças de paz.
Diz isto n u m cochicho medroso, olhando p a r a os lados.
Um dia, ao anoitecer, encontro u m a m u l h e r p a r a d a a
u m a esquina. É bonita e de aspecto sadio. Acha-se encostada
a u m p o s t e e , q u a n d o p a s s o , n o t o q u e e l a m e o l h a c o m in-
sistência, como se me quisesse falar. Detenho-me e sorrio.
E l a corresponde ao sorriso e eu lhe p e r g u n t o :
— Quer t o m a r alguma coisa?
— É estrangeiro?
— Americano. Da B r i g a d a Internacional.
— T e m cartão de racionamento?
— T e n h o . É do m e u h o t e l . Q u e r ir c o m i g o ?
Tomo-lhe do braço, n u m a alegre antecipação da aventu-
r a . E l a f i c a u m i n s t a n t e p e n s a t i v a , a s m ã o s m e t i d a s n o ca-
sacão, e depois:
— P o d e m e c o n s e g u i r d u a s l a t a s d e leite c o n d e n s a d o ?
— Claro. E alguma coisa mais.
— E s t á b e m . V á b u s c a r t u d o . E u m o r o ali. S e g u n d o
andar, a primeira porta.
E mostra-me u m a casa.
Dentro de vinte minutos estou de volta. Bato à porta
i n d i c a d a e é a p r ó p r i a m u l h e r q u e m ma v e m a b r i r .
— Entre.
Um a p a r t a m e n t o modesto, m a s limpo e bem arranjado.
P o n h o as coisas que t r a g o em cima da mesa e tiro a
boina e o sobretudo.
A desconhecida me olha com um ar de g r a t i d ã o e vai
buscar um abridor de lata. Ê u m a bela mulher de corpo forte
e h a r m o n i o s o . S e u s c a b e l o s s ã o c o r de c a s t a n h a e s u a pele
tem uma tonalidade de marfim.
C o m e ç a a a b r i r a l a t a de leite c o n d e n s a d o .
— Deixe q u e eu abro.
— O b r i g a d o — diz e l a , p a s s a n d o - m e o a b r i d o r .
Ouço ruídos de passos no q u a r t o contíguo. A porta se
a b r e e d u a s c r i a n ç a s d e cinco e s e i s a n o s p r e s u m í v e i s e n t r a m
dizendo em catalão palavras que não compreendo.
— E l e s q u e r e m p ã o e óleo — t r a d u z - m e a m u l h e r . —
H á m u i t o t e m p o que não c o m e m o u t r a coisa.
D i a n t e d o s p e q u e n o s fico d e s c o n c e r t a d o , e , c o m u m j e i t o
de q u e m se desculpa, a desconhecida explica:
156 ERICO VERÍSSIMO

— S ã o m e u s filhos.
Um m e n i n o e u m a menina. Pálidos, e m a g r e c i d o s e de
olhos g r a ú d o s e cintilantes.
— Viúva?
E l a sacode a cabeça n e g a t i v a m e n t e e me f a z um sinal
na direção de um consolo. Olho e v e j o o r e t r a t o d u m h o m e m .
— É o m e u marido. D e s a p a r e c e u há s e i s m e s e s . E s t a v a na
frente do Ebro.
— T e m e s p e r a n ç a de que e l e v o l t e ?
— Tenho.
B a i x o a c a b e ç a e c o n t i n u o a abrir a lata.
E n q u a n t o a m u l h e r se põe a preparar o leite, s e n t o - m e
n u m a poltrona, invadido por u m g r a n d e m a l - e s t a r . E s t e a m -
b i e n t e m o r n o me convida a ficar, pois lá f o r a faz frio e a
rua e s t á c h e i a d e a l m a s s e m rumo.
A s crianças f a z e m g r a n d e alvoroço quando a m ã e l h e s
d á u m a x í c a r a d e l e i t e q u e n t e c o m g r o s s a s f a t i a s d e pão.
V o l t a - s e ela depois para m i m e diz:
— I s t o para eles é um banquete.
P a s s a m - s e a l g u n s m i n u t o s . O s p e q u e n o s e s t ã o lambendo
a x í c a r a g u l o s a m e n t e , o r o s t o a p i n g a r leite.
— V a m o s ! — diz-lhes a m u l h e r c o m u m a doce alegria.
— F á - l o s p a s s a r para o q u a r t o c o n t í g u o e f e c h a a p o r t a à
chave. C a m i n h a na direção do quarto de d o r m i r e, s e m m a -
lícia n e n h u m a , c o m u m a naturalidade melancólica m e d i z :
— P o d e vir.
O s o l h o s d o marido, n o retrato, p a r e c e m f i t o s e m m i m .
Um invencível a c a n h a m e n t o e uma e s p é c i e de r e p u g n â n c i a
por m i m m e s m o e pelos m e u s a p e t i t e s carnais me d o m i n a m
de tal f o r m a que eu apanho boina e sobretudo c o m fúria,
abro a porta e precipito-me e s c a d a s abaixo, c o m o que a f u -
gir de um perigo de morte.

Na véspera de Natal chegam a Barcelona notícias de


que a p ó s t r é g u a de um m ê s as h o s t i l i d a d e s t o r n a m a se rea-
tar. Os c a n h õ e s e s t ã o de n o v o roncando e n o s v a l e s nevoa-
d o s d o R i o S e g r e o s dois e x é r c i t o s i n i m i g o s s e a c h a m e m p e -
nhados n u m a g r a n d e b a t a l h a .
P a s s o a v i g í l i a de N a t a l n u m café q u a s e deserto, na
frente d u m t r i s t o n h o cálice d e conhaque. A s s a l t a m - m e m e m ó -
r i a s doces e a m a r g a s . L e m b r o - m e de p e s s o a s queridas e para
SAGA 157

os meus camaradas mais recentes tenho t a m b é m um pensa-


mento de ternura.
Áxel... Brown... Gresn... Martin... De Nicola...
J u a n a . . . D o m M i g u e l . . . A l f o n s i t o . S e j a c o m o for, e s t a g u e r r a
p a r a m i m n ã o foi d e t o d o p e r d i d a , p o r q u e e u v o s c o n h e c i .
Levo o cálice aos lábios n u m silencioso b r i n d e aos com-
panheiros extraviados.

Janeiro de um novo ano. O governo está derrotado. Os


e x é r c i t o s d e F r a n c o p r o s s e g u e m v i t o r i o s o s n a g r a n d e ofen-
siva. Cai T a r r a g o n a . G r a n d e s multidões começam a deixar
Barcelona em demanda da fronteira francesa.
Faço p a r t e d u m batalhão de recuperação que está encar-
regado de recolher o material de g u e r r a abandonado pelas
forças que se r e t i r a m e p r e s t a r assistência às populações
civis f u g i t i v a s .
Julguei que os horrores tinham acabado para mim. Mas
o que vejo a g o r a é cem vezes m a i s t r á g i c o do que a g u e r r a
nas trincheiras.
Milhares e milhares de c r i a t u r a s , n u m a fileira intermi-
nável, c a m i n h a m pelas e s t r a d a s c o b e r t a s de neve na direção
dos P i r e n e u s . Q u e r e m fugir aos bombardeios, à s t r o p a s mou-
ras que se aproximam, aos tanques italianos — anseiam por
atingir u m a t e r r a onde p o s s a m viver longe do f a n t a s m a da
g u e r r a . A l g u n s v i a j a m e m c a r r o ç a s , o u t r o s m o n t a d o s e m ca-
v a l o s o u m u l a s , m a s a g r a n d e m a i o r i a s e g u e a pé, c o m t r o u -
x a s à s costas. N u n c a v i t a n t a s c a r a s a p a v o r a d a s n e m ouvi
t a n t o s c h o r o s e l a m e n t a ç õ e s . Ê um q u a d r o de m i s é r i a e d e -
solação. Os r e t i r a n t e s vivem n u m p a v o r constante. Muitas
vezes os aviões inimigos descem à pequena a l t u r a p a r a os
metralhar. Os caminhos ficam juncados de cadáveres que
ninguém pensa em sepultar. São marcos sinistros da estrada
mais sombria que eu já trilhei em toda a minha vida.
A g o r a a m a r c h a se faz de preferência na escuridão da
noite, pois d u r a n t e o dia os fugitivos se m e t e m nos m a t o s ,
com p a v o r dos aviões.
Nos nossos caminhões atestados de material de guerra, re-
colhemos os feridos e os velhos na m e d i d a do possível. F a z e -
m o s r e p e t i d a s v i a g e n s d e i d a e v o l t a e n t r e u m a e o u t r a loca-
lidade dos Pireneus.
B a n d o s a r m a d o s a n d a m pelas e s t r a d a s alucinados pela
fome e entregam-se a pilhagens e violências. C o n t r a m u i t o s
158 ERICO V E R Í S S I M O

deles t e m o s de v o l t a r as nossas m e t r a l h a d o r a s . O morticínio


c o n t i n u a . E s t o u a b a t i d o e a m a r g u r a d o . N ã o sei q u e s u b t e r r â -
nea força conspira contra m i m e se obstina perversamente
e m m e p u x a r p a r a o lodo, c o r t a n d o - m e t o d a a p o s s i b i l i d a d e
de fuga.
O f r i o é i n t e n s o . Os c a m i n h o s c o b e r t o s de n e v e se t i n -
gem do s a n g u e dos feridos e dos m o r t o s .
Pálidos de medo e de fome, os fugitivos prosseguem. Al-
guns caem sem forças. As m u l h e r e s correm p a r a o nosso
c a m i n h ã o e e r g u e m p a r a n ó s o s filhos, s u p l i c a n d o q u e o s
l e v e m o s conosco. C h o r a m e g u i n c h a m , e s c a b e l a d a s e m e i o
loucas. N a d a podemos fazer.
Em Figueras há uma grande concentração de retirantes.
Conduzo hoje dez feridos e doentes p a r a um hospital impro-
v i s a d o o n d e f a l t a t u d o , a c o m e ç a r pelos l e i t o s . P e l a s r u a s d a
povoação a n d a m mulheres gritando em desespero, à procura
dos filhos extraviados. Todos os l u g a r e s - c o m u n s da t r a g é d i a
surgem aqui em carne e sangue.
As r u a s r e g u r g i t a m de gente. Temos de m a t a r cavalos
p a r a d a r d e c o m e r a o s r e f u g i a d o s . A n d a no. a r u m m a u c h e i r o
insuportável. E como se todas essas desgraças não bastassem,
os a v i õ e s i n i m i g o s v i n d o s de M a j o r c a b o m b a r d e i a m à n o i t e a
povoação. Figueras assume o aspecto d u m fantástico açougue
de carne humana. Os cadáveres entulham as ruas. Temos de
q u e i m á - l o s c o m m e d o da. p e s t e , p o i s n ã o h á t e m p o p a r a o s
enterrar.
E olhando essas c r i a t u r a s esfarrapadas, lívidas e acossa-
das, que mais parecem animais; contemplando as multidões
que se p r e c i p i t a m a d o i d a d a s pelos c a m i n h o s ásperos e gela-
dos, r u m o da fronteira francesa, um de m e u s companheiros
fica a m u r m u r a r :
— N ã o sei p o r q u e é q u e e l e s se a p e g a m t a n t o à v i d a .
S a b e m q u e e s t ã o c o n d e n a d o s ao s o f r i m e n t o e à m i s é r i a . E
assim m e s m o q u e r e m viver.
F i c o a o l h a r p e n s a t i v o p a r a u m a c r i a n ç a q u e b r i n c a ale-
gre n u m montinho de areia.
Sinto-me envelhecido, c a n s a d o e t r i s t e . E r g o os olhos
p a r a a m a s s a azulada dos Pireneus n u m a última esperança.
II
SÓRDIDO INTERLUDIO
Cavo na areia com m i n h a s p r ó p r i a s mãos, u m a cova p a r a
o meu corpo. Quando a m o r t e vier já me e n c o n t r a r á deita-
do nesta sepultura rasa, e os meus companheiros não terão
outro trabalho senão o de a t i r a r um pouco de t e r r a em cima
de meu cadáver.
Mas eu quero viver! Grito estas palavras para mim mes-
mo. Busco no fundo de m e u eu r e s e r v a s de c o r a g e m e de
calor. E d e i t a d o de c o s t a s s o b r e a a r e i a m o l h a d a f i t o os o l h o s
n o céu f e c h a d o d e c h u m b o . O v e n t o f u r i o s o q u e v e m d o m a r
ergue u m a t e m p e s t a d e de a r e i a e neve. E s t e b u r a c o é a m i n h a
trincheira, o meu abrigo, a m i n h a casa e o meu túmulo. E n -
c o l h o - m e d e n t r o dele, de o l h o s c e r r a d o s , e e s p e r o . T e n h o o
corpo enregelado, doem-me os dentes, que b a t e m s e m cessar,
e e s t a u m i d a d e gélida me vai aos poucos p e n e t r a n d o nos
ossos. O v e n t o u i v a . T a l v e z eu n u n c a m a i s t o r n e a v e r o sol.

Fevereiro. E s t a m o s num campo de concentração de


Argelès-sur-Mer, nos Pireneus Orientais. E s t a s são t e r r a s de
F r a n ç a e p a r a chegar até aqui c a m i n h a m o s mais de cinqüen-
ta q u i l ô m e t r o s a p é , s o f r e n d o f r i o e f o m e . S o m o s c e r c a de
cento e oitenta mil h o m e n s encurralados como a n i m a i s e n t r e
o m a r e u m a cerca de a r a m e s farpados g u a r d a d a por t r o p a s
senegalesas. Na fronteira as mulheres e as crianças refugia-
das foram separadas dos homens e m a n d a d a s p a r a outro
campo.
A neve dá a e s t a praia um aspecto de desolação. N ã o
temos casas nem barracas, dormimos ao relento, amontoados
uns por cima dos outros, n u m a espécie de fétida cooperativa
de c a l o r .
E n c o n t r o - m e no c a m p o n.° 7, b i s . T e m o s à f r e n t e o Me-
diterrâneo e às costas, a m u r a l h a dos P i r e n e u s .
S u j o s , p e l u d o s , e s f a r r a p a d o s e lívidos, o s h o m e n s f o r m i -
g a m sobre a areia. Tenho a i m p r e s s ã o de que são defuntos
162 ERICO V E R Í S S I M O

desenterrados e reunidos aqui por algum deus perverso p a r a


desígnios ainda mais sórdidos e temerosos que a morte. Não
vejo nestas caras m a c e r a d a s o m e n o r t r a ç o de bondade. O
sofrimento as animaliza. Sinto que em m i m a piedade morreu.
M o r r e u de f r i o e de m i s é r i a .

S u r g e o sol. E r g o - m e da s e p u l t u r a e s a i o a p u l a r e a
b a t e r com os braços para me aquecer.
Multidões se precipitam p a r a os carros e caminhões que
v i e r a m da E s p a n h a e c o m e ç a m a destruí-los freneticamente.
T i r a m d e l e s p r a n c h a s d e m a d e i r a , d e p ó s i t o s d e g a s o l i n a , es-
t o f o s de b a n c o , h o l o f o t e s , p n e u m á t i c o s e p l a c a s de m e t a l . Com
essas coisas começam a construir abrigos, e a improvisar
utensílios de cozinha.
As autoridades francesas intervêm a tempo p a r a evitar
que todos os veículos sejam depredados. Os soldados senega-
leses investem b r u t a i s c o n t r a os prisioneiros. E s t e s se encon-
t r a m demasiadamente enfraquecidos e desmoralizados para
reagir. De resto, que resistência poderiam opor a u m a força
a r m a d a d e fuzis e m e t r a l h a d o r a s ?
Os alto-falantes, colocados de cem em cem m e t r o s a t r a -
v é s do c a m p o , e s t ã o c o n s t a n t e m e n t e a n o s a d v e r t i r q u e , a
qualquer d e m o n s t r a ç ã o de indisciplina, os culpados serão
"sancionados no ato pelas tropas senegalesas."

Recebemos rações frias de alimentos: carne congelada de


M a d a g á s c a r , l e n t i l h a s e p ã o b r a n c o . O c o z i n h e i r o de n o s s o
g r u p o é u m g a l e g o r e t a c o d e feições g r o s s e i r a s . U t i l i z a c o m o
panela o t a n q u e de gasolina d u m caminhão. Um holofote de
automóvel nos serve de bacia e às vezes de prato.
Dão-nos um dia carne apodrecida. Atiro o meu pedaço ao
m a r e um velho espanhol me olha furioso e vocifera:
— E s t ú p i d o ! P o r que não deu a sua ração a um compa-
nheiro ?
Encolho os ombros e me afasto sem dizer palavra. Sinto
dores quase constantes no estômago. A única água que temos
p a r a beber nos é fornecida por bombas cravadas na areia
ao longo da praia, de vinte em vinte metros. Ê escassa, suja
e salobra. E p a r a obter um bocado desse líquido repelente
e s p e r a m o s l o n g o t e m p o n a fileira, c o m u m c a n e c o n a m ã o .
Reina aqui g r a n d e desordem. A distribuição de víveres
SAGA 163

é muito irregular. C e r t a noite, um grupo de homens exacer-


b a d o s p e l a f o m e e pelo f r i o , m a t a u m c a v a l o p a r a l h e c o m e r
a carne. C h a m u s c a m - n a às pressas n u m braseiro e t e m p e r a m -
na com borrifos de á g u a do mar. Pela m a n h ã encontramos
na p r a i a a carcaça do animal.
As autoridades francesas se apossam do material que
veio d a E s p a n h a — c a m i n h õ e s , a u t o m ó v e i s , a m b u l â n c i a s , ca-
v a l o s , m u l a s — e e m p r e g a m - n o n o s s e r v i ç o s do c a m p o .
P a s s a m - s e os dias. A miséria da condição h u m a n a me
parece infinita. Manifesta-se de mil modos grotescos ou t r á -
gicos. E às vezes, sobre as n o s s a s noites de sujeira e desa-
lento, b r i l h a m as estrelas distantes.

V a m o s sendo comidos e sugados aos poucos. P o r dentro


pelos bacilos da colite e p o r fora, pelos p a r a s i t a s .
O vento do m a r nos castiga as carnes. Um vento de
desespero nos enregela a alma.
A disenteria faz dezenas de vítimas. N ã o t e m o s recursos
para os medicar. Há homens que caem e se entregam. Ficam
a g e m e r e a se r e t o r c e r de d o r . P a r a e s s e s p o b r e s d i a b o s o
único remédio e a única dieta que p o d e m o s d a r é c a r n e v e l h a
de M a d a g á s c a r e á g u a salobra.
E x i s t e m neste campo t r ê s médicos. São os que vivem em
maior desespero, pois compreendem m a i s f u n d a m e n t e a ex-
tensão desta calamidade e vêem-se impotentes p a r a lhe fazer
frente. U m deles consegue c h e g a r a t é a s a u t o r i d a d e s france-
sas e pede recursos. Fornecem-lhe bismuto, m a s em quanti-
dades t ã o pequenas, que de pouco ou de nada serve.
Os alto-falantes dão constantemente notícias da situação.
Berram que as fronteiras de E s p a n h a estão abertas para os
que q u i s e r e m v o l t a r à p á t r i a . E s t a s p a l a v r a s são recebidas
com e x c l a m a ç õ e s d e ódio o u i r o n i a . M a s a l g u n s h o m e n s r e -
solvem a p r e s e n t a r - s e às a u t o r i d a d e s do campo, declarando-se
dispostos a voltar. Vão-se de cabeça baixa no meio de vaias
e gritos.

E do meio desta população ignóbil de v e r m e s , deste nó


imenso de l o m b r i g a s — c o m e ç a m a s u r g i r h o m e n s , persona-
lidades, c r i a t u r a s q u e s e d e s t a c a m d a m a s s a , q u e r e v e l a m
ânimo forte, espírito organizador. São vozes lúcidas e cheias
de esperança no meio da desordem.
164 ERICO V E R Í S S I M O

Tornam-se chefes de grupos, p r o m o v e m reuniões, fazem-


se porta-vozes de reivindicações perante os administradores
do campo...
No nosso setor há homens encarregados do policiamento,
do serviço de correios, do cuidado aos doentes e da distribui-
ção de víveres.
C o n s i g o p a p e l , l á p i s e e n v e l o p e e e s c r e v o u m a c a r t a ao
embaixador brasileiro em Paris, contando-lhe minha situação
e as dificuldades que t e n h o e n c o n t r a d o p a r a s a i r daqui, ape-
s a r de meus papéis e s t a r e m em ordem. Consigo que m i n h a
c a r t a seja posta no correio e, nas h o r a s que se seguem, sinto-
me animado por u m a esperança t ã o grande de liberdade que
chego a t e r u m a sensação física de calor. D u r a n t e o resto
da s e m a n a continuo a e s p e r a r o correio com u m a ansiedade
t r e p i d a n t e . M a s n ã o r e c e b o a m a i s leve n o t í c i a , o m e n o r r e -
cado. P o n h o - m e a i m a g i n a r que a c a r t a se e x t r a v i o u ou que
a c e n s u r a n ã o c o n s e n t i u q u e ela c h e g a s s e a o d e s t i n a t á r i o .

A c o l i t e me a n i q u i l a . P a s s o a m ã o pelo r o s t o b a r b u d o e
sinto-o descarnado.
D u r a n t e h o r a s e h o r a s fico a p e n s a r no B r a s i l e às v e z e s ,
na névoa da fraqueza, descubro aflito e miserável que não me
c o n s i g o l e m b r a r c o m n i t i d e z d o s t r a ç o s f i s i o n ô m i c o s d e Cla-
rissa. Acho-me tão debilitado e sem vontade, que as lágrimas
me vêem aos olhos com u m a facilidade e m b a r a ç a n t e .
E o m a i s c u r i o s o é q u e do f u n d o da m i n h a a b j e ç ã o a i n d a
t e n h o olhos e alma p a r a apreciar os crepúsculos de inverno
p o r t r á s d o s P i r e n e u s . O s r e f l e x o s a l a r a n j a d o s d o ú l t i m o sol
na neve dos cimos, a v a g a b r u m a cor de violeta que envolve
as m o n t a n h a s , s ã o o ú n i c o i n d í c i o de q u e a b e l e z a e a p a z
a i n d a n ã o d e s e r t a r a m d o m u n d o e a c e r t e z a d e q u e n o final
de contas ainda não estou morto.

Morreu hoje um h o m e m de nosso grupo. Foi horrível o


que a pobre c r i a t u r a sofreu. Q u a n d o seu coração cessou de
b a t e r , o a m i g o q u e o a s s i s t i u a t é o ú l t i m o m i n u t o , em v e z
de desatar o choro, rompeu em gritos de triunfante alegria.
E r a c o m o se e s t i v e s s e a a g r a d e c e r a D e u s a l i b e r t a ç ã o do
companheiro.
Os outros refugiados se a p r o x i m a r a m do cadáver e bai-
x a r a m p a r a ele u m o l h a r g r a v e . E e m m u i t a s c a r a s j u l g u e i
vislumbrar u m a expressão de inveja.
SAGA 165

D o m J o s é , o c h e f e d e n o s s o g r u p o , u m v a l e n c i a n o d e ca-
b e l o s g r i s a l h o s e feições b e m m a r c a d a s , n ã o s e c a n s a d e d i -
zer aos companheiros da sua esperança de que o Presidente
C a r d e n a s a b r a as p o r t a s do México aos refugiados espanhóis.
Os alto-falantes atroam os ares. "As fronteiras da E s p a n h a
estão abertas p a r a aqueles que desejarem voltar a seus lares."
De quando em quando um refugiado é reclamado no
c a m p o p o r a l g u m p a r e n t e , a m i g o o u pelo c ô n s u l d e s e u p a í s .
P e r t o de m i n h a cova m o r a um velho encurvado e melan-
cólico q u e s e r e c u s a a t o m a r q u a l q u e r a l i m e n t o . E x t r a v i o u - s e
d a f a m í l i a a o s a i r d e B a r c e l o n a e n ã o s a b e s e o s filhos e o s
netos e s t ã o vivos ou m o r t o s . N ã o fala, n ã o se m o v e e q u a n d o
lhe q u e r o m e t e r o s a l i m e n t o s n a b o c a à f o r ç a , ele c e r r a o s
l á b i o s e os d e n t e s , o b s t i n a d o , e s a c o d e a c a b e ç a n u m a n e g a -
tiva frenética. Creio que em breve e s t a r á morto.

E s t a noite um h o m e m teve um acesso de loucura. F o m o s


obrigados a a m a r r á - l o fortemente com m a n t a s e cintas. Al-
guém sugeriu que o a t i r a s s e m ao m a r , como remédio. A idéia
encontrou adeptos entre estes homens irritados e obnubilados
pelo s o f r i m e n t o . E se o chefe do g r u p o n ã o i n t e r v i e s s e , o p o -
bre diabo teria morrido gelado.
Os casos de loucura aqui não são poucos. Conheço um
rapaz que p a s s a as h o r a s a c a t a r piolhos e a metê-los n u m
pequeno vidro com p a i x ã o de colecionador. A s s e g u r o u - m e ele
que vai fazer f o r t u n a vendendo estes " a n i m a l i t o s " ao governo
francês, que os e m p r e g a r á como a m a i s mortífera das a r m a s
na próxima guerra.

O h u m o r sarcástico dos espanhóis se revela aqui em mui-


tos aspectos. Um a s t u r i a n o silencioso e soturno construiu um
r a n c h o com t r o n c o s e r a m o s de á r v o r e s e p r e g o u à s u a p o r t a
de aniagem uma tabuleta com estes dizeres: "Grande Hotel
Savoy-Platz". D i á r i a 1.000 p e s e t a s , c o m d i r e i t o a b a n h o s
quentes.
Um grupo de ex-funcionários da municipalidade de Ma-
d r i d i m p r o v i s o u u m a broadcasting a o a r l i v r e , e m q u e u m
velho farol de a u t o m ó v e l na p o n t a d u m cabo de v a s s o u r a faz
a s v e z e s d e m i c r o f o n e . " I r r a d i a m " eles u m g r a n d e p r o g r a m a
"em b e n e f í c i o d o s r e f u g i a d o s d e A r g e l è s - s u r - M e r " . Um ara-
gonês enorme, de construção tosca, c a n t a j o t a s com voz b a s -
166 ERICO V E R Í S S I M O

t a n t e a g r a d á v e l e o speaker, c o m a z e d a i r o n i a , d i v u l g a as
maravilhas da praia de Les Pins.
— S e n h o r e s e s e n h o r a s , é e x t r a o r d i n á r i a e s t e a n o a aflu-
ê n c i a de t u r i s t a s a e s t a b e l a e a p r a z í v e l p r a i a . Os h o t é i s
são de primeira ordem e, nos seus cardápios finíssimos, nunca
f a l t a u m b o m p r a t o d e colibacilo à m i l a n e s a o u u m a s a l a d a
de percevejos frescos. Os esportes m a i s esquisitos se prati-
cam aqui e entre eles devemos salientar a caça aos piolhos
e o difícil j o g o q u e é c o r r e r p e l a p r a i a s e m p i s a r n a s g r a c i o -
s a s i n c r u s t a ç õ e s q u e c i n q ü e n t a mil t u r i s t a s c o m i n c l i n a ç õ e s
a r t í s t i c a s ali d e i x a m d i a r i a m e n t e . S e n h o r a s e s e n h o r e s d e
t o d o o m u n d o , e s q u e c e i os v o s s o s c u i d a d o s e as n u v e n s da
guerra que pairam sobre o mundo e vinde todos a esta mara-
vilhosa praia do Mediterrâneo. Nós vos esperaremos de bra-
ços a b e r t o s !

F a z quinze dias que cheguei a este chiqueiro onde mais


de cento e cinqüenta mil c r i a t u r a s refocilam. Os senegaleses
são b r u t a i s e se fazem surdos aos nossos pedidos. Se lhes
p e r g u n t a m o s a l g u m a coisa, l i m i t a m - s e a d i z e r c o m v o z g u -
t u r a l "Allez! Allez!"
O meu mundo, o meu território, a minha nação neste
campo compõe-se a g o r a de cinqüenta e poucos homens, alguns
d o s q u a i s j á c o n h e ç o pelos n o m e s . T e m o s u m c h e f e e , p a r a
efeitos de aconchego, e s t a m o s divididos em pequenos grupos.
Abolimos as tocas individuais e cavamos buracos maiores em
q u e c a b e m seis o u s e t e h o m e n s . C o b r i m o s e s s a s v a l a s - c o m u n s
c o m m a n t a s , r a m o s de á r v o r e s e c e r c á m o - l a s de p e d r a s . À
n o i t e n o s d e i t a m o s u n s a g a r r a d o s a o s o u t r o s , n u m desejo
m ú t u o d e calor.
S e m p r e pensei que houvesse solidariedade no sofrimento
e que na h o r a de provação os h o m e n s a p a g a s s e m um pouco
o e g o í s m o e t r a t a s s e m de a j u s t a r as d i f e r e n ç a s p e s s o a i s em
benefício d a c o m u n i d a d e . P u r o e n g a n o . E s t a s c r i a t u r a s s u j a s
q u e e x a l a m u m c h e i r o f é t i d o , q u e s o f r e m física e m o r a l m e n -
te, conservam aqui os mesmos característicos que na vida
social n o r m a l p r o v o c a m o s c o n f l i t o s e s p i r i t u a i s e m a t e r i a i s
e, dum certo modo, são a causa das g u e r r a s entre as nações.
Quando, noite alta, estamos aqui amontoados nesta troca
d e calor, b a s t a q u e u m d o s h o m e n s p o r d e s c u i d o b a t a c o m o
c a l c a n h a r na canela de o u t r o p a r a que de repente comece
u m a discussão violenta, áspera e cheia de ofensas pessoais.
SAGA 167

E como as p a l a v r a s aqui c o n t i n u a m a t e r o m e s m o v a l o r
que lá fora no m u n d o dos vivos, m a i s de u m a vez a discus-
s ã o d e g e n e r a e m l u t a física e o s c o n t e n d o r e s , e n g a l f i n h a d o s
como feras, s a e m a rolar pela neve.
Observo t a m b é m que o instinto de posse nestas c r i a t u r a s
n ã o a d o r m e c e u e m u i t o m e n o s se a n u l o u . O u ç o d i z e r — a
minha r a ç ã o , o meu p r a t o , o meu l u g a r — e há p o u c o s d i a s
vi um sujeito m o r d e r a orelha do outro na disputa d u m sim-
ples caco de espelho.
Muitos dos refugiados t r o u x e r a m dinheiro, relógios, u m a
ou o u t r a jóia ou objeto de valor. As pesetas a n d a m de mão
em mão em c u r i o s a s t r a n s a ç õ e s . C o n h e ç o um t i p o — é de
Cadiz e parece t e r s a n g u e m o u r o — que vendeu o sobretudo
p o r c e m p e s e t a s e ficou p o r a í t i r i t a n d o d e f r i o m a s c o n t e n t e
por t e r feito " u m bom negócio". P a s s a o t e m p o com a m ã o
no bolso fazendo t i l i n t a r as moedas.
U m a noite dois catalães de nosso g r u p o se a t r a c a m a
s o c o s p o r c a u s a d u m a d ú v i d a n o poker e u m d e l e s a b r e o s
i n t e s t i n o s do o u t r o c o m u m a f a c a . O f e r i d o t o m b a e a n e v e
se t i n g e de v e r m e l h o . T u m u l t o . O n o s s o m é d i c o é c h a m a d o
às p r e s s a s , m a s n a d a pode fazer. O f e r i m e n t o é m o r t a l e em
pouco t e m p o o pobre diabo expira. D o m José p r o c u r a escon-
d e r o c r i m e à s a u t o r i d a d e s , p o i s s a b e q u e ele p o d e d a r l u g a r
a r e p r e s á l i a s , p r i n c i p a l m e n t e pelo f a t o d e s e t e r d e s c o b e r t o
uma faca e n t r e os h o m e n s . F i c a c o m b i n a d o que o m o r t o deve
ser e n t e r r a d o em segredo d u r a n t e a noite. Quando estamos
n o s p r e p a r a n d o p a r a l e v a r a c a b o o p l a n o , s u r g e u m oficial
acompanhado de soldados. Ê evidente que houve um delator.
Não há remédio senão prestar um depoimento exato sobre o
caso. O m o r t o é l e v a d o p a r a f o r a d o c a m p o n u m a c a r r o ç a
e q u a n d o o o f i c i a l s a i c o m os s o l d a d o s à p r o c u r a do a s s a s s i n o
é p a r a v e r i f i c a r q u e ele d e s a p a r e c e u e n t r e e s t e s m i l h a r e s e
m i l h a r e s de a l m a s perdidas que e n c h e m o c a m p o de concen-
tração.
N ã o consigo p r e g a r olho o r e s t o da noite. E s t o u satu-
rado de sangue, violência e miséria. N ã o me lembro m a i s
d a s feições d e m e u s a m i g o s q u e e s t ã o d o o u t r o l a d o d o m a r .
Deitado na vala comum, no meio de meus companheiros
sujos m a s q u e n t e s , v e j o o dia r a i a r n o h o r i z o n t e d o m a r .
C o m ele m e v e m u m a g é l i d a , t r ê m u l a e a b s u r d a e s p e r a n ç a .
O inverno continua d u r o e todos os dias t e m o s notícias
de n o v a s m o r t e s . A á g u a e s t á cada vez m a i s i n t r a g á v e l e
tenho a impressão de que o líquido que os h o m e n s v e r t e m na
168 ERICO V E R Í S S I M O

p r a i a é a b s o r v i d o p e l a areia e v o l t a - n o s d e p o i s p e l a s b o m b a s
na água que bebemos.
É e s t r a n h o e s t a r d i a n t e d o m a r e n ã o p o d e r t o m a r ba-
n h o ; é d o l o r o s o e a o m e s m o t e m p o a n i m a d o r p e n s a r e m que
a a l g u n s q u i l ô m e t r o s d e o n d e n o s e n c o n t r a m o s e x i s t e m cida-
des onde as c r i a t u r a s vivem normalmente, bebem á g u a pura.
comem alimentos sãos, ouvem música e sabem sorrir.
As pessoas que vejo a m e u redor, quando não se entre-
g a m ao d e s â n i m o e à a p a t i a , d e s a n d a m a p r a g u e j a r . A c h a m
sempre um culpado p a r a a situação em que se encontram.
Franco. Negrin. A Inglaterra. O capitalismo. O fascismo. O
comunismo. E a t é Deus. Os p r ó p r i o s a t e u s culpam Deus da
miséria em que se arrastam.

E n t r a m o s n a n o s s a t e r c e i r a s e m a n a d e m a r t í r i o . A si-
t u a ç ã o p i o r a d e d i a p a r a d i a . J á n ã o s e o u v e m c a n t i g a s . Ca-
lou-se a v i t r o l a q u e r o u q u e j a v a n ã o sei o n d e t a n g o s e p a s o -
dobles. N ã o t e m o s dinheiro p a r a c o m p r a r cigarros. O velhote
francês de sobrecasaca sebosa que v e m d u a s vezes p o r sema-
n a c o m u m c a m i n h ã o c h e i o d e b u g i g a n g a s — l a t a s d e con-
s e r v a , c a r t e i r a s de c i g a r r o , s a b o n e t e s — já l i m p o u a n o s s a
s o c i e d a d e d e s u a s ú l t i m a s p e s e t a s . E n t r e n ó s j á h a v i a capi-
t a l i s t a s e p r o l e t á r i o s : d u m l a d o , h o m e n s q u e s a b i a m fazer
n e g ó c i o e t i n h a m s e n s o e c o n ô m i c o ; e de o u t r o , c r i a t u r a s q u e
mesmo nesta situação de penúria niveladora "descobriram"
um meio de ficar ainda abaixo do nível geral. D o m José. o
n o s s o chefe, e r g u e o s b r a ç o s e g r i t a :
— Meus amigos, estamos livres da influência nefasta do
dinheiro! Libertamo-nos da m á q u i n a e do regime capitalista.
Somos os h o m e n s novos. Voltemos p a r a a t e r r a , comecemos
u m a n o v a i d a d e d e a r t e s a n a t o , u m a s o c i e d a d e ideal. Meu*
irmãos, vós não compreendeis o que isto significa.
Os outros o ridicularizam. Mas Dom José continua a
p r e g a r . E s t á m a g r í s s i m o e s e u s o l h o s s ã o d o i s c a r v õ e s acesos.
D e p o i s d e a l g u m t e m p o v e j o q u e o infeliz v e l h o e s t á a r d e n d o
e m f e b r e e q u e s u a s p a l a v r a s s ã o d i t a d a s pelo delírio.
E n t a n g u i d o s d e frio, e s f a r r a p a d o s , d o e n t e s , s e m v i n t é m
no b o l s o — e s t e s h o m e n s c o n t i n u a m a a l i m e n t a r e r r o s e ilu-
sões, d e s e j o s d o i d o s e s u p e r s t i ç õ e s , e g o í s m o e ó d i o s .
E u m e considero u m m o n s t r o porque, miserável como o s
o u t r o s e como os o u t r o s condenado t a m b é m à m o r t e , surpre-
endo-me no insensato desejo de t e r aqui tela, pincel e tinta
SAGA 169

p a r a p i n t a r e s s e q u a d r o d e h o r r e n d a beleza, a f i m d e q u e
amanhã, quando estivermos todos mortos, e h o m e n s indiferen-
tes v i e r e m e n t e r r a r nossos cadáveres, um deles possa encon-
t r a r o e s t r a n h o q u a d r o e v e r a um c a n t o dele o m e u n o m e .
Sou um h o m e m como os outros e não mereço n e m a com-
paixão de m i m mesmo.

Aquele crepúsculo vermelho e dourado por t r á s dos Pi-


reneus é como que um misterioso sinal. Fico a contemplá-lo
tomado de secreta esperança.
E a n t e s m e s m o q u e ele d e s a p a r e ç a , o a l t o - f a l a n t e co-
meça a b e r r a r o m e u nome. Alguém me procura no escritório
da a d m i n i s t r a ç ã o do campo. "Vasco B r u n o deve apresentar-se
com s e u s p a p é i s . . . "
E s t a s palavras como que me m a r t e l a m violentamente o
peito. S i n t o u m a t o n t u r a , n ã o sei q u e f a z e r , o l h o e m t o r n o
atarantado.
O ú l t i m o v e s t í g i o d e sol d e s a p a r e c e d o c i m o b r a n c o d a s
m o n t a n h a s . N o céu a p o n t a m a s p r i m e i r a s e s t r e l a s .
Começo a c a m i n h a r com passos incertos, levando no pei-
to u m a alegria dolorosa.
III
O DESTINO BATE À PORTA
1
E t a m b é m com u m a alegria dolorosa que desço do vapor
p a r a o cais, onde u m a r a p a r i g a vestida de verde-jade me
espera. L a r g o a m a l a no chão e t o m o Clarissa nos braços
com u m a violência cheia de t e r n u r a . E s t r e i t o - a c o n t r a o peito
e, a s e n t i r as pulsações d e s o r d e n a d a s de seu coração, beijo-
lhe o s c a b e l o s , a t e s t a , o s o l h o s , a s f a c e s . . . N ã o t e n h o p a -
l a v r a s p a r a e s t e m o m e n t o d o c e e g r a v e , e c o m o ela t a m b é m
permanece no seu silêncio ofegante — ficamos unidos os dois
num prolongado abraço. F a ç o um tremendo esforço p a r a re-
primir as l á g r i m a s e percebo a g o r a q u e o r i t m o de m e u co-
ração t a m b é m se acelerou como naqueles dias das trincheiras
do Ebro, quando recebíamos ordens p a r a um assalto. P a r a
essas memórias a m a r g a s , u m a esponja embebida em esque-
cimento! Sou um fugitivo do inferno e t o d a a m i n h a v o n t a d e
de viver se concentra na m o r n a e t r ê m u l a c r i a t u r i n h a que
tenho agora em m e u s braços. Creio q u e sou um h o m e m novo.
No subsolo de m e u ser em que cada provação vale por mui-
tos anos, h a v i a um pedaço de carvão b r u t o e negro que, t r a -
balhado de sofrimentos, se cristalizou n u m pequeno diamante.
Custou a vida de m u i t o s h o m e n s , de m u i t a s ilusões e espe-
r a n ç a s : a g o r a ele cintila p u r o e límpido e eu q u e r o dá-lo de
presente ao único coração que neste vasto m u n d o vário pa-
rece a i n d a p u l s a r por m i m . M a s p o r m u i t o que eu p r o c u r e
não o encontro em m e u s bolsos onde há apenas um pente,
um lápis, um p u n h a d o de papéis, u m a carteira de cigarros
e u m a cédula de v i n t e m i l - r é i s . A f o r a a feia e s u r r a d a r o u p a
que t r a g o n o c o r p o e n a v e l h a m a l a a m e u s p é s , a i s s o s e
resumem os meus bens materiais.
Seguro Clarissa pelos braços e afasto-a um pouco de
mim p a r a lhe v e r o rosto. Os m e s m o s olhos pretos, lustrosos
e levemente oblíquos. A velha e x p r e s s ã o de ansiosa t e r n u r a
diante do primo maluco de quem está sempre a esperar um
gesto áspero que p a r a ela signifique inquietação, cuidado,
sofrimento. Sinto-a agora mais mulher, mais amadurecida, e
esse a r d e a f l i t a t r i s t e z a n ã o l h e f i c a n a d a m a l . S e u s lábios
t r e m e m e ela b a l b u c i a :
174 ERICO V E R Í S S I M O

— V a s c o . . . tu sempre com a g r a v a t a t o r t a . . .
— E t u . . . sempre com o nariz a r r e b i t a d o . . .
F i c a m o s a nos m i r a r , de m ã o s d a d a s , frente a frente.
É a b s u r d o e ao m e s m o t e m p o c o m o v e n t e q u e e s t e j a m o s a
dizer e x a t a m e n t e e s t a s coisas, que s e j a m e s t a s as nossas pri-
meiras palavras um para o outro.
A nosso redor u m a pequena multidão se agita, barulhen-
ta. Exclamações de alegria, palavras sôfregas, gritos, ruídos
metálicos. O rolar surdo d u m trole atestado de bagagens,
carregadores que p a s s a m com m a l a s à costas.
— Botei este vestido porque me lembrei que g o s t a s de
verde. Fizeste boa viagem?
— Ótima.
— Mas Vasco. . . estás m a i s m a g r o . A n d a s doente? Que
foi q u e t e a c o n t e c e u ?
— N a d a , m i n h a filha. Sou como c a c h o r r o : engordo e
e m a g r e ç o d e p r e s s a . É b e m c o m o diz a t u a m ã e .
C l a r i s s a m e o l h a i n t e n s a m e n t e p o r a l g u n s s e g u n d o s , co-
mo se quisesse p e n e t r a r com os olhos na m i n h a alma. E de
súbito, r o m p e n d o no choro, t o r n a a d e s c a n s a r a cabeça no
m e u peito.
— Ora, não faças assim. P a r a que c h o r a r ? O r a . . .
A s l á g r i m a s d e C l a r i s s a m e e m p a p a m a c a m i s a e nos
m e u s b r a ç o s o s e u c o r p o f r e m e , s a c u d i d o d e soluços.
Na a m u r a d a do vapor o cozinheiro de bordo, um nortista
amarelo de ar doentio, nos contempla sorrindo maliciosamen-
te. E s t a m o s ao pé da arcada dum grande guindaste e, atra-
vés dessa m o l d u r a de ferro vejo a perspectiva multicolorida
do cais: os outros guindastes com s u a s t o r r e s metálicas, o
casco negro dos vapores, u m a floresta de m a s t r o s e cordas,
a p l a t a f o r m a do c a i s c o m z o n a s de s o m b r a e de s o l ; logo
a t r á s de Clarissa, no primeiro plano, q u a t r o fileiras de tonéis
c o r d e l a r a n j a , c o m o u m p e l o t ã o d e s o l d a d o s b a i x o s e obesos.
S ã o onze h o r a s d a m a n h ã . A n d a n o a r e n f u m a ç a d o u m c h e i r o
d e óleo c r u . U m a g a s o l i n a b a r u l h e n t a s i n g r a a s á g u a s , r u m o
de u m a ilha. A g u a p é s f l u t u a m no rio que cintila no seu pardo
c h a m a l o t a d o c o m r e f l e x o s d e u m c i n z a - a z u l a d o d e aço.
C l a r i s s a e m p e r t i g a o c o r p o e c o m e ç a a e n x u g a r os o l h o s .
Ergue p a r a mim o rosto desanuviado, tocado agora de uma
l u m i n o s i d a d e l í q u i d a , c o m o u m céu d e p o i s d a c h u v a . T o m a -
me do braço e diz:
— Vamos?
— Vamos.
SAGA 175

— E a tua bagagem?
— N ã o tenho bagagem. Só esta mala.
— A h . . . E s t á bem. — E, noutro t o m : — Mamãe, Fer-
nanda e Noel não vieram te esperar porque tu pediste na
c a r t a q u e só eu v i e s s e ao c a i s . . .
— P o i s é. Tu c o m p r e e n d e s . D e t e s t o d e s p e d i d a s e r e -
cepções. A g e n t e f i c a c o m u m a c a r a d e i d i o t a e t e m d e d i z e r
c o i s a s q u e n ã o s e n t e . . . e n ã o s a b e c o m o d i z e r as q u e s e n -
t e . . . pois n ã o é ?
Clarissa me a p e r t a o braço t e r n a m e n t e e m u r m u r a :
— Gato-do-mato!
E r a a s s i m que ela m e c h a m a v a q u a n d o é r a m o s crianças.
G a t o - d o - m a t o . Arisco, agressivo, selvagem e orgulhoso.
A p a n h o a m a l a e s a í m o s a c a m i n h a r d e v a g a r i n h o na d i -
reção da p o r t a de um dos a r m a z é n s do cais.
— O a u t o de F e r n a n d a está lá fora nos esperando.
— A u t o ? É e n g r a ç a d o . . . Eu ainda não tinha pensado
numa coisa...
— Que é ?
— N ã o sei a i n d a p a r a onde vou. T e n h o de c o m e ç a r t u d o
de novo. Sou como um i m i g r a n t e que chega com a sua t r o u x a
e u m m o n t ã o d e e s p e r a n ç a s . S ó sei c o m c e r t e z a d e u m a c o i s a :
quero viver. O resto é mistério.
Clarissa estaca e puxa-me do braço, fazendo-me p a r a r
também.
— Vasco! Mas o t e u q u a r t o lá em casa e s t á bem como
deixaste. A t u a c a m a . . . os teus l i v r o s . . . os t e u s q u a d r o s . . .
— N ã o sei, m i n h a filha, m a s a c h o q u e n ã o v o l t o p r a
lá...
— Gato-do-mato!
A t e s t a de Clarissa se franze, seus olhos se e s t r e i t a m
e turvam. Acho que vamos ter mais choro.
— B o m . . . b o m . . . N ã o quero discutir.
E l a encosta a cabeça no m e u braço e com a m b a s as
mãos me s e g u r a os pulsos, como p a r a me impedir a fuga. E
assim docemente algemados, saímos a a n d a r lado a lado.
Eu n ã o e s t a v a m a i s h a b i t u a d o a e s t a deliciosa, m o r n a e
humana sensação de aconchego. N ã o tenho argumentos a
opor. O q u e s i n t o é v o n t a d e d e g r i t a r : V o u p a r a o n d e m e
levares! E s t a carne de canhão que sobrou da g u e r r a agora
te p e r t e n c e . S o u t e u , só t e u , e a a l e g r i a de e s t a r v i v o e de
voltar à p á t r i a me sufoca. T e n h o um presente p a r a ti, s a b e s ?
O mais puro d i a m a n t e . Tem t o d a s as cores do arco-íris. O
176 ERICO V E R Í S S I M O

s e u ú n i c o d e f e i t o é s e r invisível. M a s e u t e a s s e g u r o q u e ele
existe. Eu o sinto, eu o vejo faiscar d e n t r o de m i m . H a v e m o s
d e c o m p r a r c o m ele a l g u m a c o i s a m a r a v i l h o s a p a r a n ó s . T a l -
v e z a f e l i c i d a d e . Tu m e r e c e s .
Á x e l . . . Dom Miguel... Alfonsito... Brown. .. G r e e n . . .
De N i c o l a . . . Martin, se vocês pudessem me ver! Aqui vai
um ressuscitado, um h o m e m que, sendo senhor de um tesou-
ro, jogou-o fora e correu a t r á s d u m sonho doido. Um pobre
p e r u ébrio que volta v o l u n t a r i a m e n t e p a r a o seu círculo de
giz. O s m o r t o s a p o d r e c e m d e b a i x o d a t e r r a à s m a r g e n s d o
E b r o . N i n g u é m sabe onde e n t e r r a r a m o corpo de Pepino Ver-
g a , o p a l h a ç o . Os m o u r o s c r u c i f i c a r a m o C r i s t o L e g i o n á r i o .
Em algum lugar da Espanha uma mulher chamada Juana
t a l v e z leve n o v e n t r e o filho d u m c o m b a t e n t e d a B r i g a d a
Internacional a quem um dia se entregou no fundo dum abri-
g o a n t i a é r e o . O u t e r á ela m o r r i d o e s t r a ç a l h a d a p o r u m a
b o m b a ? A v i d a é a b s u r d a . A v i d a é h o r r e n d a m e n t e bela.
Meus pobres companheiros mortos, perdoai-me por eu estar
vivo!
— V o u t e f a z e r u m p e d i d o , C l a r i s s a . V a m o s a pé, s i m ?
Pelo menos u m a s duas ou t r ê s q u a d r a s . . . Ê t ã o bom estar
n o B r a s i l , n ã o o u v i r t i r o s n e m v e r c a d á v e r e s pelo c h ã o . . .
— A g o r a que estás comigo, n a d a m a i s importa. Vamos
como quiseres.
Enlaço-lhe a cintura. Atravessamos o armazém sombrio.
— N a d a de t r i s t e z a s — d i g o . — F a z de c o n t a q u e vol-
tamos àquele tempo em que eras a Princesa do Figo Bichado
e eu o G a t o - d o - m a t o . V a m o s nos m e t e r n u m a g r a n d e traves-
sura. Feito?
— Feito.
E pelo meio de sacos e caixas, envolvidos p o r um cheiro
ativo e grosseiro de x a r q u e , Clarissa e eu c a m i n h a m o s den-
tro de nosso sonho mais querido.
Quando saímos do armazém, dois homens se aproximam
de n ó s e n o s b a r r a m a m a r c h a . S ã o a m b o s j o v e n s e e s t ã o
b e m vestidos. U m deles m e p e r g u n t a :
— O s e n h o r se c h a m a V a s c o B r u n o ?
— É esse o m e u nome.
O d e s c o n h e c i d o v i r a a l a p e l a do c a s a c o , p o n d o à m o s t r a
u m d i s t i n t i v o d a polícia.
— F a ç a o f a v o r de n o s a c o m p a n h a r — diz ele.
— Já?
— Já.
SAGA 177

— N ã o posso ir a n t e s a t é a c a s a ?
— Não.
— Que é que há contra m i m ?
— Na delegacia o s e n h o r s e r á i n f o r m a d o .
V o l t o - m e p a r a C l a r i s s a e m cujo r o s t o v e j o u m a e x p r e s -
são de doloroso espanto.
— N ã o é n a d a — t r a n q ü i l i z o u eu. — V a i no c a r r o da
Fe r n an d a. Depois nos encontraremos em casa.
— M a s , V a s c o . . . — t a r t a m u d e i a ela.
Curioso: neste m o m e n t o estão a me m a r t e l a r na cabeça
a s q u a t r o n o t a s i n i c i a i s d a Q u i n t a S i n f o n i a d e B e e t h o v e n . Tal-
vez o D e s t i n o e s t e j a a g o r a b a t e n d o à m i n h a p o r t a .
— E s t o u pronto — digo secamente.
Um dos investigadores me a r r e b a t a a mala das mãos. Ã
porta do automóvel, novamente em lágrimas, Clarissa me
a b r a ç a e beija. M u r m u r o - l h e ao ouvido:
— C o r a g e m . Um b o m b a r d e i o é m u i t o p i o r e eu e s c a p e i
de muitos com vida.
E n t r o no c a r r o da polícia e sento-me e n t r e os dois agen-
tes. Consola-me a idéia de que n e m s e m p r e o Destino nos
v i s i t a p a r a t r a z e r a m o r t e e o s o f r i m e n t o . B a t e às v e z e s à
nossa casa e quando vamos abrir-lhe a porta e perguntar-lhe
que deseja, ele responde com u m a r c a s u a l :
— N a d a de i m p o r t a n t e . Eu só vim v e r como você vai
passando.

M a n d a m - m e e s p e r a r o delegado n u m a sala triste que


c h e i r a a s a r r o de c i g a r r o e a p a p é i s v e l h o s . T u d o i s t o é m u i -
to curioso e novo depois desta m i n h a ausência de um ano.
(Ou dez?) Vejo um r e t r a t o de Júlio de Castilhos — figura
familiar p a r a m i m desde a escola p r i m á r i a — e um b u s t o de
bronze de B o r g e s de Medeiros. Lembro-me de J a c a r e c a n g a , a
pequena cidade onde passei a maior parte de minha vida. No
edifício d a I n t e n d ê n c i a M u n i c i p a l h a v i a u m r e t r a t o e u m b u s t o
como os que vejo aqui. Eu os associava sempre aos homens e
à s c o i s a s d a t o r v a p o l í t i c a local. O g e n e r a l C a m p o l a r g o , d e g o -
lador e d e s p ó t i c o . . . C a p a n g a s mal-encarados, de b o m b a c h a s e
chapelões de abas l a r g a s . . . E l e i ç õ e s . . . Tiroteios n a s noites
silenciosas... Cadáveres no barro da r u a . . . Enterros graves
e m i s t e r i o s o s . . . Manifestações com foguetes, b a n d a de mú-
sica, d i s c u r s o s e v i v a s . . . Os l o n g o s i n v e r n o s de r e v o l u ç ã o . . .
Lenços verdes, lenços v e r m e l h o s . . . B r a v a t a s . .. L e n d a s . . .
Ó d i o s . . . Silveira M a r t i n s . . . Júlio de C a s t i l h o s . . . F r a s e s . . .
178 ERICO V E R Í S S I M O

Idéias não são. metais que se f u n d e m . . . Inimigo não se pou-


p a . . . Minuano. .. Revolução.. . Rio Grande.
E s t a s recordações me assaltam a cidadela interior, to-
m a m conta da praça. Eu me rendo incondicionalmente ao
invasor. Mas em breve elas se vão, pois não p a s s a m de um
exército de f a n t a s m a s , soldados inconsistentes que n ã o se en-
t r e g a m à p i l h a g e m n e m à violência. Vão-se m a s d e i x a m u m a
v a g a s a u d a d e n e m e u m e s m o sei d e q u ê .
Caminho até a janela e envolvo a m i n h a cidade n u m
olhar quase amoroso. E s t a paz me adormenta e embala. Os
telhados vermelhos e escuros parecem em madorna ao morno
sol o u t o n a l . O l h o a r u a . E s t a s c a s a s i n c a r a c t e r í s t i c a s e s e m
h i s t ó r i a — t ã o d i f e r e n t e s d a s v e l h a s c a s a s m u i t a s v e z e s cen-
t e n á r i a s d a s c i d a d e s d e E s p a n h a , edifícios c o m c a r á t e r , d i g n i -
d a d e e t e m p o — t ê m um ar quase infantil em s u a s fisiono-
m i a s b r a n c a s sem a m a r c a dos séculos. Ao vê-las chego a
me comover e a sentir um inexplicável desejo de protegê-las,
como se o simples fato de t e r andado por g u e r r a s e t e r r a s
mais antigas me tivesse conferido mais idade, sabedoria e
força.
Às d o z e e v i n t e s o u l e v a d o à p r e s e n ç a do d e l e g a d o . Ê um
h o m e m moço, de aspecto simpático. O l h a r claro. Começa por
me fazer as perguntas de costume. Mostro-lhe meu passa-
porte. Depois:
— E s t e v e combatendo na E s p a n h a , não é v e r d a d e ?
— É verdade.
— Ao lado dos comunistas, n ã o ?
— Ao lado dos governistas.
O d e l e g a d o p a s s a a m ã o pelo q u e i x o e me diz n o u t r o
tom:
— Eu p r e f e r i a q u e o s e n h o r me r e s p o n d e s s e sim ou não.
N ã o posso reprimir um sorriso.
— Permita então uma pergunta preliminar...
— Faça-a.
— O s e n h o r quer esclarecer u m a s i t u a ç ã o ou deseja ape-
nas que eu confirme as suas suspeitas?
O h o m e m baixa a cabeça, sorrindo, e começa a brincar
com um corta-papel de osso.
— C o m o foi q u e c o n s e g u i u e n t r a r n a E s p a n h a ?
Respondo sem pestanejar:
— P e l o t ú n e l de C e r b è r e - P o r t b o u .
— N ã o é isso. O s e n h o r b e m que e n t e n d e u a m i n h a per-
g u n t a . R e s p o n d a e n ã o me d i f i c u l t e o i n t e r r o g a t ó r i o .
SAGA 179

Os olhos de bronze do busto de Borges de Medeiros pa-


recem e s t a r fitos em mim. Quando menino eu t i n h a medo
desse olhar vazio que do saguão da Intendência Municipal
d o m i n a v a a p r a ç a de J a c a r e c a n g a .
— E s t o u dizendo a p u r a verdade — afirmo.
— E s t á bem. M a s . . . m e d i g a u m a coisa. H a v i a o u n ã o
muitos comunistas nas tropas do governo?
— H a v i a muitos comunistas. E m u i t o s católicos t a m b é m .
O h o m e m ergue p a r a m i m os olhos incrédulos.
— Q u e r a z õ e s o l e v a r a m a l u t a r na E s p a n h a ?
— Simples espírito de a v e n t u r a .
— Só i s s o ?
E n c o l h o o s o m b r o s d e leve.
— B o m . . . Um pouco de idealismo, talvez.
— Razões ideológicas. . . não é o que quer dizer?
— Não. Refiro-me a ideais que nada t ê m a ver com as-
suntos de camisaria.
— Camisaria? Não entendo.
— E s s a h i s t ó r i a de p a r t i d o s ligados a camisas de cor
hoje em dia parece u m a questão que pode ser resolvida com
u m a visita ao camiseiro.
— O senhor é muito simplista.
— Simplório t a l v e z s e j a o t e r m o .
E completo a frase p a r a m i m m e s m o : Só um simplório
é que vai t e n t a r resolver os problemas da p á t r i a alheia antes
de t e r resolvido os da t e r r a onde nasceu, cresceu e vive.
— M a s . . . que pretende fazer a g o r a ?
— Viver.
— Sim, m a s de que m o d o ?
— D e c e n t e m e n t e . E em p a z , se p o s s í v e l .
— O s e n h o r está procurando me i r r i t a r g r a t u i t a m e n t e .
De que meios materiais de vida dispõe no m o m e n t o ?
— Dos da m i n h a profissão. Sou desenhista.
O meu interlocutor l a r g a o corta-papel em cima da mesa,
reclina-se na cadeira e me diz:
— E s t á bem. Estou satisfeito.
— Posso ir?
— Um m o m e n t o . . .
Inclina-se de novo sobre a m e s a e t o m a d u m a folha de
papel.
— Conhece a Sra. Fernanda Madeira?
— Conheço. E m i n h a comadre.
— O senhor está caçoando outra vez?
180 ERICO VERÍSSIMO

— E s t o u f a l a n d o s é r i o . A l i á s n ã o fiz o u t r a c o i s a d e s d e
que entrei aqui.
— Pois bem. E s s a senhora veio interceder em seu favor.
P a r a todos os efeitos o s e n h o r é um elemento suspeito. Dona
F e r n a n d a M a d e i r a vai ficar sendo p e r a n t e a polícia a fiadora
moral e material de sua conduta daqui por diante.
— F a r e i o possível p a r a não a decepcionar.
O delegado l a r g a o papel e s u s p i r a com um ar de quem
pinga um ponto final n u m a questão aborrecida.
— A g o r a p o d e ir. F a ç o v o t o s p a r a q u e n ã o t e n h a d e
aparecer mais por aqui.
— Amém!
A p a n h o a mala, faço um breve cumprimento com um
g e s t o de cabeça e c a m i n h o p a r a a p o r t a .
Na sala de espera encontro Clarissa e Fernanda.
— E n t r a em cena o h e r ó i ! — exclama e s t a ú l t i m a ao me
ver surgir.
— Fernanda!
Abraçamo-nos e q u a n d o saio dos braços dela é p a r a cair
nos de Clarissa. E s t o u desabituado a estes carinhos. Real-
mente, a vida é b a s t a n t e boa, senhores patriarcas, estadistas
e h e r ó i s — p e n s o eu, o l h a n d o p a r a o s r e t r a t o s q u e s e e n f i -
l e i r a m n e s t a s t r i s t e s p a r e d e s e m g r o s s a s e i m p o n e n t e s mol-
duras douradas.
— E n t ã o o m a t a - m o u r o s e s t á d e v o l t a ? — diz F e r n a n d a
tomando-me do braço esquerdo. E Clarissa, que está agarra-
da ao direito, me puxa docemente na direção da porta.
D e i x o - m e l e v a r m e i o e s t o n t e a d o , n ã o sei s e d e f o m e o u
de felicidade.
— Tenho de pensar n u m h o t e l . . . — balbucio sem muita
convicção.
— N ã o seja bobo — r e a g e F e r n a n d a . — O que você pre-
cisa é comer. V a m o s lá p a r a casa.
— N i n g u é m ainda almoçou, Vasco — explica Clarissa.
— Estão todos te e s p e r a n d o . . .
— M a t a m o s u m a vitela g o r d a p a r a o filho pródigo.
— E já p r e p a r a r a m o a n e l p a r a o m e u d e d o ? — p e r -
gunto, ao descermos p a r a a calçada.
E Fernanda:
— O anel quem vai c o m p r a r é você m e s m o . . . U m a
aliança de noivado p a r a Clarissa, senhor Dom Quixote!
Diz isto e me e m p u r r a p a r a d e n t r o do automóvel.
2
Esatamos reunidos em t o r n o da mesa, na casa de Noel e Fer-
nanda. Encontro-me quase n u m ê x t a s e místico diante des-
te bom e farto almoço brasileiro. Faz mais de um ano que
não me sento a u m a mesa assim bem a r r a n j a d a e limpa para
comer t r a n q ü i l a m e n t e , sem sobressaltos n e m restrições. Di-
zem que o jejum e a maceração são caminhos p a r a Deus.
Mas eu prefiro chegar ao Criador p o r o u t r a s veredas menos
ásperas. E depois é preciso ver que um perfumado p r a t o de
comida pode t r a z e r um sorriso à face dos famintos, u m a es-
perança ao coração dos miseráveis. P o r q u e é u m a certeza de
calor, d e p r a z e r , d e v i d a . E s e n d o e x p r e s s ã o d o m u n d o m a -
t e r i a l , é d u m a i m p o r t â n c i a t ã o g r a n d e q u e s e m ela n ã o p o d e
f u n c i o n a r e s s a f á b r i c a de s o n h o s e i d e a i s q u e é o h o m e m .
Lembro-me de Barcelona e dos cartões de racionamento. As
raparigas vendiam sua virgindade por um prato de lentilhas.
P e r t o d i s s o , c o m o é i n o c e n t e a h i s t ó r i a b í b l i c a de E s a ú e
J a c ó . .. Olho em torno. Desconfio que estou comovido.
— P o r que não começa, capitão? — indaga F e r n a n d a ,
apontando p a r a os pratos. — Em que é que está pensando?
— É q u e . . . eu queria saber se todos os brasileiros com-
preendem a grande bênção que é t e r paz e u m a mesa farta
como e s t a . . .
Dona Eudóxia, mãe de Fernanda, deixa escapar um sus-
piro dolorido. Seu rosto t e m um ar de dor e m a r t í r i o . P a r e c e
uma daquelas velhas que se a r r a s t a v a m pelas e s t r a d a s neva-
das, fugindo de Barcelona sob a a m e a ç a dos aviões.
F a z - s e u m c u r t o silêncio.
— Come, Vasco — diz Clarissa com doçura. — P r e c i s a s
engordar. O talharim está tão g o s t o s o . . .
Belas palavras, grandes palavras. Quero t e r sempre jun-
to de mim alguém que me diga coisas assim, simples e pró-
x i m a s d a t e r r a e d a paz. P o n h o - m e a c o m e r q u a s e c o m u n ç ã o
religiosa. E , p o r u m desses i n q u i e t a n t e s caprichos d a m e m ó -
ria, c o m e ç a m a m e d e s f i l a r p e l a m e n t e o s f a n t a s m a s d o c a m p o
182 ERICO V E R Í S S I M O

d e c o n c e n t r a ç ã o . O l h a m - m e c o m i n v e j a e ódio, e s t e n d e m - m e
a s m ã o s e s q u e l é t i c a s , p e d i n d o . . . N a d a p o s s o f a z e r p o r eles,
n e m m e s m o esquecê-los.
A luz d o sol, d u m a m a r e l o d e â m b a r , i n u n d a e s t a s a l a
d e m ó v e i s s e v e r o s e e s c u r o s , e m e s t i l o colonial e s p a n h o l . A s
cortinas cor de vinho e os tapetes d u m pardo profundo dão
ao ambiente um ar de calma familiar tépida e amiga.
E r g o o s o l h o s p a r a N o e l . R e t r a t o d u m elfo — p e n s o .
U m a c a r a a l o n g a d a e p á l i d a , de feições f i n a s e m e i o
v a g a s , olhos de expressão cândida e cabelos loiros. Um dia
ainda hei de p i n t a r essa cabeça contra um fundo de s o n h o :
paisagem do país das fadas, com gnomos e gênios bons, ár-
vores azuis e céus verdes. Olho p a r a F e r n a n d a , que t e m no
rosto de expressão impávida, um resplendor de vida — um
verniz que parece vir do fundo da personalidade p a r a cintilar
na superfície da epiderme — e penso no a m o r dos contrários.
N ã o conheço no m u n d o p a r m a i s desigual não só m o r a l como
fisicamente.
Poucas semanas antes de eu embarcar para Espanha
operou-se u m a grande e súbita transformação na vida do
casal. Faleceu o pai de Noel e este se viu d u m m o m e n t o p a r a
outro herdeiro de quase mil contos de réis. A m ã e recebeu
a p a r t e q u e l h e t o c a v a e e m b a r c o u p a r a o R i o , o n d e foi m o -
r a r . Noel voltou com a m u l h e r e a filha p a r a a casa onde
n a s c e r a . F u i vê-los n a v é s p e r a d e e m b a r c a r . E s t a v a m a b a -
lados e perplexos. L e m b r o - m e de t e r dito a F e r n a n d a :
— Mil c o n t o s . . . Q u e r e s p o n s a b i l i d a d e p a r a u m a i d e a l i s t a .
Ela sacudiu a cabeça lentamente, concordando.
— Há d o i s p e r i g o s — d i s s e ela. — O p r i m e i r o é o de eu
descobrir de repente que não havia idealismo n e n h u m em
m i m . Nesse caso t r a t a r e m o s de multiplicar o dinheiro sem
escolher meios. Seremos duros, egoístas e esqueceremos os
nossos decantados ideais. ..
— Disso vocês e s t ã o livres — afirmei. — Tenho a plena
certeza.
— O o u t r o p e r i g o é o de t o m a r m o s os n o s s o s s o n h o s
m u i t o ao pé da letra. J o g a r e m o s então o dinheiro pela janela
e m benefícios a b s u r d o s . E m b r e v e e s t a r e m o s d e n o v o p o b r e s
e em dificuldades, sem que isso t e n h a trazido v a n t a g e m a
ninguém.
— T a m b é m não acredito que h a j a esse perigo.
— A s c r i a t u r a s r e v e l a m o q u e r e a l m e n t e s ã o q u a n d o en-
riquecem ou sobem p a r a u m a posição de mando.
SAGA 183

— T e n h o c o n f i a n ç a em você. É só o q u e sei dizer.


E a g o r a a q u i e s t o u eu, p a s s a d o m a i s d e u m a n o , n a c a s a
em que H o n o r a t o Madeira, gordalhufo e tranqüilo, passou a
vida a s o n h a r os s e u s sólidos s o n h o s de negociante de cere-
a i s ; — a m e s m a c a s a em q u e N o e l n a s c e u , c r e s c e u e e d i f i c o u
o seu m u n d o de "faz-de-conta". P o r estas salas Virgínia Ma-
deira a r r a s t o u os seus caprichos e a s u a a n g ú s t i a de enve-
lhecer.
— Major, você e s t á p e n s a t i v o . . . — observa F e r n a n d a .
— E n q u a n t o v o c ê s f a l a m eu c o m o — r e t r u c o .
D. Clemência, m ã e de Clarissa, conversa com D. Eudóxia.
Receitas de tricô. Doenças. Roupas.
Inclino-me p a r a F e r n a n d a , que está a m e u lado e, fazen-
do um sinal com os olhos na direção de D. Eudóxia, pergun-
to-lhe :
— C o m o v a i a M u s a da T r a g é d i a ?
— G u a p a . As d e s g r a ç a s a t r a z e m de p é .
— O n d e é q u e e l a b u s c a m o t i v o s de t r i s t e z a , a g o r a q u e
vocês se l i v r a r a m das dificuldades f i n a n c e i r a s ?
— P r e o c u p a - s e c o m os p r o b l e m a s a l h e i o s e v i v e a i m a g i -
n a r p a r a nós desastres, fracasso nos negócios, histórias te-
nebrosas. ..
Olho p a r a D. Eudóxia. É u m a c r i a t u r a que sempre obser-
vei c o m i n t e r e s s e . T e m a v o l ú p i a d a d e s g r a ç a , u m p e r m a n e n t e
agravo contra a vida. É um tipo de m a t r o n a bem caracterís-
t i c o d o R i o G r a n d e . C h e g u e i , a r e s p e i t o dela, a u m a t e o r i a
s e g u n d o a q u a l a n o s s a v i d a á s p e r a e c o r t a d a de r e v o l u ç õ e s
é a r e s p o n s á v e l p e l a e x i s t ê n c i a d e s s a a t m o s f e r a de t r i s t e z a ,
pessimismo e negro presságio que envolve essas mulheres.
I m a g i n o - a s m e t i d a s n a s f a z e n d a s , e m c a s a s s e m c o n f o r t o , en-
c h e n d o l i n g ü i ç a , t i r a n d o leite, f a z e n d o q u e i j o , t e n d o s o b r e o s
o m b r o s os t r a b a l h o s pesados da c a s a e cuidando dos filhos.
M a l d e s p e j a v a m o q u e l h e s o c u p a v a o v e n t r e , lá f i c a v a m g r á -
vidas de novo, n u m a competição com as v a c a s e as g a t a s .
Viviam peadas aos compromissos domésticos, seus motivos
de a l e g r i a e r a m p o u c o s e r a r o s e as f o n t e s de i n c ô m o d o e
dor, m u i t a s . N a s c i a m e se c r i a v a m d e n t r o do t a b u da s a g r a -
da dignidade do t r a b a l h o e e r a à s o m b r a dessa m e s m a su-
perstição que educavam as filhas. Lá v i n h a m um dia as re-
voluções ou as g u e r r a s p a r a lhes levar m a r i d o s e filhos. As
c a m p a n h a s p l a t i n a s . . . A g u e r r a do P a r a g u a i . . . T r i n t a e
c i n c o . . . N o v e n t a e t r ê s . . . E a s s i m , a t r a v é s d o s a n o s , se foi
f o r m a n d o u m a tradição de tristeza, luto e apreensão. E r a a
184 ERICO V E R Í S S I M O

s e n s a ç ã o do p e r i g o i m i n e n t e . O m a r i d o ou o filho q u e ia p a r a
as carreiras podia voltar a qualquer momento nos braços dos
amigos, coberto de sangue, agonizante ou morto.
A vida no Rio Grande mudou. Vieram os tempos moder-
nos, o progresso, um m a i o r conforto n a s fazendas, o cresci-
m e n t o das cidades e o advento de u m a nova mentalidade.
Mas a tristeza está no sangue dessas senhoras de mais de
cinqüenta anos que continuam a esperar desgraças. . .
Clarissa me criva de perguntas sobre a E s p a n h a . Fica
m u i t o e s p a n t a d a q u a n d o l h e c o n t o q u e fui f e r i d o d u a s vezes.
L a r g a o t a l h e r , d e r e s p i r a ç ã o c o r t a d a , a r r e g a l a o s o l h o s e seu
rosto revela u m a expressão tão m a r c a d a de susto que parece
até que acabo de ser ferido neste momento.
— M a s isso t u d o passou. N ã o fiques com essa cara.
P e d e m - m e p o r m e n o r e s . É d e s a g r a d á v e l m a s tenho de dá-
los.
— Você n e m e s c r e v e u p r a n ó s — c e n s u r a - m e D. C l e m ê n -
cia. — E s s e m e n i n o p o d i a a t é t e r m o r r i d o .
Aqui está outro tipo muito encontradiço no Rio Grande.
A mulher que sabe querer bem sem alarde, sem carícias nem
perguntas. Escondem a t e r n u r a por t r á s de u m a certa secura
de p a l a v r a s e gestos. São eficientes, p r e s t a t i v a s , n a s noites
de inverno nos põem u m a botija nos pés, r e m e n d a m as nos-
s a s m e i a s o u n o s d ã o u m c h á q u e n t e c o m l i m ã o q u a n d o des-
confiam que vamos a p a n h a r um resfriado. Mas quem as vê
p a r a d a s e de rosto inexpressivo, á s p e r a s no repreender, sem-
p r e com restrições ao nosso c o m p o r t a m e n t o e com limitações
aos nossos movimentos; quem as vê serenas e sem choro
quando alguma pessoa da família está gravemente enferma
— fica a dizer i n t e r i o r m e n t e : "Ali e s t á u m a a l m a fria. N ã o
t e m afeição por n i n g u é m . "
Sei o j u í z o q u e D . Clemência, faz d e m i m . P a r a ela sou
um rapaz malcriado e meio maluco "que hoje está aqui e
a m a n h ã e s t á na China. N i n g u é m pode com a vida dele. . ."
A p r o v a o m e u c a s a m e n t o com Clarissa, m a s t e m no fundo da
a l m a u m a s e c r e t a d e s c o n f i a n ç a d e q u e a f i l h a v a i s e r infeliz
comigo. Há pouco, ao me d a r o seu abraço seco ( s e m beijo)
as primeiras palavras que me disse f o r a m :
— E s s a história de ir p a r a a E s p a n h a só m e s m o dessa
t u a cabeça de vento. Tu te esqueceste de levar aquela cami-
s e t a q u e e u fiz p r a t i . D i z e m q u e c a i n e v e l á n a E u r o p a .
E agora, com t o d a a candura, afirma que eu podia ter
morrido. . .
SAGA 185

N o e l , c o m o d e h á b i t o , e s t á s i l e n c i o s o : A t é h o j e n ã o con-
segui descobrir seus verdadeiros sentimentos p a r a comigo.
P o u c a coisa d i s s e d e s d e q u e n o s s e n t a m o s a e s t a m e s a . N ã o
sei q u e p e n s a m e n t o s l h e e s t a r ã o c r u z a n d o a m e n t e , m a s i m a -
gino que continua a se debater em grandes problemas morais.
Tenho a intuição de que foram vãos os esforços de F e r n a n d a
p a r a t r a z ê - l o a o m u n d o r e a l e m a t a r nele o m e d o d a v i d a .
— Que notícias me d á s de teu livro? — p e r g u n t o .
Ele encolhe os ombros.
— T e v e o d e s t i n o de q u a s e t o d o s os l i v r o s q u e n ã o ofe-
r e c e m a l i t e r a t u r a de q u e o p ú b l i c o g o s t a .
Fernanda intervém:
— T e n h o t e n t a d o e x p l i c a r a o N o e l q u e o f a t o d e u m li-
vro ficar n a s prateleiras d a s livrarias não deve constituir
motivo de desencorajamento p a r a o autor.
— Claro.
— De r e s t o — c o n t i n u a ele, b r i n c a n d o c o m o g u a r d a n a -
po — p a r a que e s c r e v e r ? Pensei que escrevendo pudesse en-
c o n t r a r a l i b e r t a ç ã o q u e p r o c u r a v a . V e j o a g o r a q u e ela n ã o
está na literatura.
— T a l v e z e s t e j a na v i d a — d i g o .
Noel se limita a fazer um gesto de dúvida.
Clarissa lança u m a pergunta:
— Um e s c r i t o r d e v e a g r a d a r o p ú b l i c o ou a g r a d a r a si
mesmo?
E Noel:
— Nesse particular não tenho a menor dúvida. Um es-
c r i t o r d e v e s e r fiel a s i m e s m o .
— S i m — d i z F e r n a n d a . — M a s e s s a f i d e l i d a d e p o d e ir
a e x a g e r o s em que se t r a n s f o r m a n u m a espécie de auto-in-
dulgência.
— E x p l i q u e isso — peço.
— M u i t o b e m . V a m o s a um e x e m p l o g r o s s e i r o . O p o e t a
gosta muito da b r u m a azulada. Em todas as suas paisagens
há b r u m a s azuladas, em todas as almas há névoas azulíneas
e o s s e u s c é u s s ã o d u m a z u l b r u m o s o . P a r a s e r fiel a s i
m e s m o o poeta fica a e s p a l h a r as s u a s b r u m a s azuis p o r to-
d o s o s s e u s p o e m a s , p o r q u e ele g o s t a d i s s o d e m o d o m ó r b i d o ,
bem como u m a criança gosta de c h u p a r o polegar. Com essa
autocomplacência preguiçosa n ã o h a v e r á p r o g r e s s o e a poe-
sia s e r á um círculo vicioso.
Noel sorri.
— O exemplo é quase bom, m a s muito capcioso.
186 ERICO V E R Í S S I M O

— Eu disse que era grosseiro. P o r é m não poderemos


chegar a n e n h u m a conclusão se não estabelecermos prelimi-
n a r m e n t e a s i n t e n ç õ e s d o a r t i s t a q u a n d o ele p e g a d a p e n a o u
d o p i n c e l p a r a p i n t a r o u e s c r e v e r . É p r e c i s o s a b e r s e ele e s -
creve ou pinta p a r a satisfação íntima ou para t r a n s m i t i r aos
o u t r o s m e n s a g e n s de beleza.
— E u e s c r e v o p a r a m e p r o p o r c i o n a r u m a s a t i s f a ç ã o ín-
t i m a — declara Noel. — P o r u m a necessidade de expressão.
— Eu pinto porque gosto.
— Sem pensar em que alguém mais possa gostar de seus
quadros? — indaga Fernanda.
— A t é certo ponto, sim.
— Que ponto?
— O p o n t o da c o i n c i d ê n c i a de g o s t o . M i n h a t e o r i a é e s t a .
Gostou? Muito bem. N ã o gostou? Não coma. Mais me sobra.
F e r n a n d a sacode a cabeça.
— E s s e individualismo não nos levará nunca a um mun-
do melhor. É preciso que os capazes, os bons e os talentosos
espalhem pela t e r r a coisas belas, boas e úteis.
— A a r t e é inútil — a v a n ç a Noel.
— Só sei q u e é b e l a — d i g o eu.
— P o i s se é b e l a é ú t i l — i n t e r v é m F e r n a n d a . — Se
m i l h a r e s de p e s s o a s l e r e m o s e u l i v r o e v i b r a r e m à s u a lei-
t u r a , você d i a n t e disso s e n t i r á u m a e n o r m e alegria interior
e ao mesmo tempo t e r á realizado um trabalho nobre e pro-
veitoso.
Noel:
— Mas como é possível a g r a d a r a m a s s a senão descendo
ao n í v e l d e l a ? E c o m o é p o s s í v e l f a z e r c o i s a s b e l a s n e s s e
nível baixo e v u l g a r ?
Os olhos de Clarissa d a n ç a m d u m lado p a r a outro, bri-
lhantes, atentos, ansiosos.
F e r n a n d a volta-se para mim.
— Qual é a sua opinião, coronel?
Faço um gesto de paquiderme.
— Estou empanturrado.
A n a b e l a , f i l h a d e N o e l e F e r n a n d a , e n t r a n a s a l a cor-
rendo. L e v a n t o - m e e tomo-a nos braços, beijo-lhe as boche-
c h a s coradas. E l a me olha um pouco espantada, e arisca.
— N ã o conhece então o seu p a d r i n h o ?
Lembro-me de que a última criança que tive nos braços
foi u m m e n i n o d e q u a t r o a n o s , e s q u e l é t i c o e s u j o . I s s o s e
passou naqueles dias terríveis em que as multidões se retira-
SAGA 187

v a m de Barcelona em demanda da fronteira francesa. En-


c o n t r e i - o à b e i r a d a e s t r a d a a t i r a d o n a n e v e , t i r i t a n d o d e frio.
A o l a d o dele, a m ã e a g o n i z a v a . D e i x a m o - l a p a r a t r á s e leva-
mos o pequeno. Atirei-o p a r a cima dum caminhão carregado
de carabinas, pneumáticos, cunhetes de munições e sacos.
A g a s a l h e i - o b e m c o m u m a v e l h a m a n t a d e lã, e n t r e g u e i - o a o s
c u i d a d o s d o c o n d u t o r d o c a r r o , u m s e v i l h a n o b a r b u d o d e pele
r e q u e i m a d a , e continuei no meu t r a b a l h o . Em F i g u e r a s lem-
b r e i - m e da p o b r e c r i a t u r i n h a e s a í a p r o c u r a r o h o m e m a
quem a confiara.
— Onde e s t á aquele pequeno que eu lhe e n t r e g u e i ?
— O q u e estava em cima da b a g a g e m ?
— Sim, esse mesmo.
— O c a r r o ia a t o d a a v e l o c i d a d e . D a v a s o l a v a n c o s , v o c ê
sabe...
— S i m . . . e depois?
— As m u l h e r e s a v a n ç a v a m para. o c a m i n h ã o , q u e r e n d o
s u b i r . O s a v i õ e s a n d a v a m r o n d a n d o o s f u g i t i v o s . E r a u m in-
ferno, ninguém se e n t e n d i a . . .
— P o r a m o r de Deus, conte d u m a vez onde e s t á o me-
nino.
E l e me olhou com u m a expressão fria e disse:
— Acho que caiu na estrada.
— E v o c ê diz i s s o c o m u m a i n d i f e r e n ç a . . .
— Que quer que eu faça? Milhares de crianças m o r r e -
r a m pelo c a m i n h o . O m e n i n o e r a s e u f i l h o ? E r a s e u p a r e n t e ?
— Não.
— E n t ã o para que tanto alvoroço?
Olho p a r a Anabela e penso que talvez a nossa obrigação
m a i s séria no Brasil seja a de fazer que estas nossas crianças
fiquem p a r a sempre livres de perigos e h o r r o r e s como os
que vi na Espanha.
— V e n h a c o m a m a d r i n h a — diz C l a r i s s a . E A n a b e l a
estende os b r a ç o s p a r a ela.
Torno a me sentar. Lembro-me de repente do irmão de
Fernanda.
— Como vai P e d r i n h o ?
D. E u d ó x i a responde com um suspiro e u m a t r i s t e ex-
pressão no olhar.
L e m b r o - m e que u m a t r a v e s s u r a sexual levou o r a p a z a
um c a s a m e n t o compulsório, apressado e precoce. N ã o creio
que essa união t e n h a fugido à r e g r a geral e posso b e m ima-
g i n a r o que aconteceu.
188 ERICO V E R Í S S I M O

— V o c ê n ã o p o d e c a l c u l a r — d i z F e r n a n d a — no q u e
d e u a q u e l e c a s a m e n t o e r r a d o . — E, b a i x a n d o a voz, a c r e s -
centa: — E s t ã o m o r a n d o todos aqui em casa, lá no a n d a r de
baixo. P e d r i n h o , a E r n e s t i d e s , m u l h e r dele, o velho B r a g a ,
pai da Ernestides, a mãe da Ernestides e as duas irmãs da
Ernestides...
— Mas é fantástico! — exclamo.
D. E u d ó x i a , com voz d o r i d a :
— Tudo n a s costas da gente.
— M a s o sogro de P e d r i n h o não t i n h a e m p r e g o ?
— E r a f u n c i o n á r i o p ú b l i c o , foi a t i n g i d o p e l o 177 e a p o -
sentado com vencimentos reduzidos.
— V o c ê s e m p r e f a z e n d o o E x é r c i t o de S a l v a ç ã o . . .
F e r n a n d a encolhe os ombros, sorrindo.
— Dos males o menor.
— M a s o p i o r — i n t e r v é m N o e l — é q u e e l e s n ã o se
m a n t ê m dentro do território que nós lhe concedemos. Inva-
dem o nosso, sobem, metem-se na nossa vida.
— Q u e g e n t e ! — diz D. E u d ó x i a . E D. C l e m ê n c i a s a c o d e
a cabeça devagarinho, numa. solidariedade muda.
— A f i l h a m a i s m o ç a c a n t a n o r á d i o . C h a m a - s e Modes-
tina. — F e r n a n d a segura, no b r a ç o do m a r i d o , sorrindo. —
I m a g i n a você, Vasco, q u e o velho B r a g a obriga o Noel a
a b a n d o n a r o s e u D e b u s s y , o s e u R a v e l ou a l e i t u r a de s e u s
livros p a r a ir ouvir a Modestina c a n t a r s a m b a s e marchinhas.
Noel franze a testa, contrariado.
— O lar d u m h o m e m é o seu refúgio, a sua fortaleza.
A g o r a i m a g i n e v o c ê c o m o é h o r r í v e l q u a n d o o i n i m i g o con-
segue p e n e t r a r nessa fortaleza. A c a b a o resto de liberdade
de que gozávamos. E s t a m o s perdidos, c o m p l e t a m e n t e perdi-
dos.
— O Noel t e m u m a p a c i ê n c i a . . . — observa Clarissa.
— S e u B r a g a o b r i g a - o a l e r a t é a s c a r t a s q u e ele e s c r e v e
parai a s Q u e i x a s d o P ú b l i c o , n o j o r n a l .
E s t e s pequenos desencontros e conflitos domésticos t ê m
p a r a m i m u m s a b o r q u a s e n o v o . E u j á o s e s q u e c e r a p o r com-
pleto. Vejo que Noel está r e a l m e n t e c o n t r a r i a d o e que esta
s i t u a ç ã o é p a r a ele um p r o b l e m a q u e o p r e o c u p a e t o r t u r a .
A palestra se desenvolve em t o r n o da família Modesto
B r a g a . D. E u d ó x i a critica a m a r g a m e n t e a nora. U m a perdu-
lária, u m a desfrutável que vive na r u a fazendo compras ou
m e t i d a e m c i n e m a s e c a s a s - d e - c h á . Q u a l q u e r d i a e s t á n a boca
d o p o v o . T a m b é m o P e d r i n h o é c u l p a d o , p o r q u e n ã o põe u m
SAGA 189

freio n a E r n e s t i d e s . É o q u e a c o n t e c e q u a n d o u m r a p a z c a s a
m u i t o m o ç o . P a s s a d a a lua-de-mel, ele a b o r r e c e a m u l h e r e
depois vive encafuado n a s salas de bilhar, nos cafés ou em
lugares piores. É p o r isso que a Shirley Teresinha a n d a p o r
aí a t i r a d a . . .
— Cruzes! — exclamo. — Quem é Shirley Teresinha?
— A f i l h a de P e d r i n h o .
— De q u e m foi a i d é i a ?
— C o i s a lá de b a i x o . . . — a f i r m a D. E u d ó x i a .
— De s o r t e — d i g o eu — q u e d e s s e m o d o eles a c e n d e m
u m a vela a R o m a e o u t r a a Hollywood.
E F e r n a n d a , erguendo-se da m e s a :
— Sinais dos tempos.
Noel:
— Tristes tempos.
— Belos tempos — m u r m u r a Clarissa, aproximando-se
de mim. — V a m o s com F e r n a n d a a t é a janela.
— A cidade está m e r g u l h a d a n u m a b r u m a azul — digo,
voltando-me p a r a Fernanda. E acrescento: — Como diria o
teu poeta.
V e j o l o n g e o v u l t o do E d i f í c i o M e g a t é r i o , d o m i n a n d o a
cidade.
— V a s c o — diz F e r n a n d a . — P r e c i s o de v o c ê .
— Diga.
— A i n d a não lhe disse o que e s t a m o s fazendo.
— Sim...
— P r o c u r a m o s e m p r e g a r da m a n e i r a menos egoísta o
dinheiro que Noel herdou. P a r a principiar construímos um
pequeno hospital para crianças pobres. Foi-se só nisso u m a
boa p a r t e do dinheiro, m a s você sabe como s e m p r e me im-
pressionou a assistência às crianças doentes sem recursos.
— E c o m o é q u e o h o s p i t a l se m a n t é m ?
— C o m contribuições mensais de a l g u m a s pessoas de
boa v o n t a d e e com u m a pequena subvenção do governo. E
n ó s . . . t a p a m o s os buracos do orçamento.
O que F e r n a n d a me e s t á contando é mais fantasticamen-
te maravilhoso que os contos de fadas que povoam o espírito
de Noel.
— O diretor é o Dr. E u g ê n i o F o n t e s — prossegue ela
— u m n o v o a m i g o n o s s o , u m m o ç o q u e c o n h e c e m o s p o r in-
termédio do Dr. Seixas. Excelente sujeito. M a n d a m o s o E u -
gênio fazer um curso de especialização nos E s t a d o s Unidos.
M a s . . . isso não é t u d o . Você e s t á vendo o M e g a t é r i o ?
190 ERICO V E R Í S S I M O

— Estou.
— P o i s b e m . N o a n d a r t é r r e o d o edifício f i c a o " C i n e m a
A q u a r i u m " , a m a i o r casa de espetáculos da cidade. N ó s a
a r r e n d a m o s p o r cinco anos.
— A última coisa que podia me p a s s a r pela cabeça. ..
— F a z e m o s p r o g r a m a s com filmes educativos e escolhe-
mos de preferência as fitas que t e n h a m um sentido otimista
e construtor, c o m p r e e n d e ? Aos domingos d a m o s funções pela
m a n h ã e à t a r d e p a r a as crianças. Desenhos, jornais, comé-
dias. E gratuitas, note b e m !
— F e r n a n d a , você é d a s A r á b i a s !
E l a sorri sem vaidade. Vejo-lhe o perfil nítido, que dá
u m a idéia de arremesso, ímpeto e vitória.
— Há a i n d a m a i s u m a coisa — continua F e r n a n d a . —
U m d e n o s s o s g r a n d e s s o n h o s foi r e a l i z a d o . N o e l e e u fun-
d a m o s u m a revista infantil. C h a m a - s e " A v e n t u r a " , e é im-
pressa em cores. Um sucesso em todo o p a í s ! — U m a pausa.
F e r n a n d a volta-se p a r a m i m e me olha de frente. — Vasco,
você quer t r a b a l h a r conosco?
— Não pergunte duas v e z e s . . .
— V o c ê d e s e n h a , e s c r e v e , t e m e n t u s i a s m o . .. e n f i m , é
um dos nossos. Pago-lhe um ordenado decente. Pode começar
quando quiser. A c e i t a ?
E s t o u meio estonteado. Sinto no braço a suave pressão
dos dedos de Clarissa. As únicas p a l a v r a s que encontro p a r a
dizer s ã o :
— Fernanda, você não existe.
Fico a pensar em que a esta hora eu podia e s t a r morto,
enterrado em alguma parte da Espanha.
3
Passei a p r i m e i r a quinzena de m a i o a escrever as p á g i n a s
que ficaram p a r a t r á s . Se me fosse possível, eu contaria
as m i n h a s a n d a n ç a s na E s p a n h a por meio de desenhos ani-
m a d o s e interpretaria os meus estados de espírito em termos
de música. Acho a palavra um pobre instrumento de expres-
são. Dir-se-ia um vidro — às vezes deformador, quase sem-
p r e e m b a c i a d o , q u a n d o n ã o e x a g e r a d a m e n t e c o l o r i d o e cin-
t i l a n t e — q u e o a u t o r coloca e n t r e o f a t o e o l e i t o r .
E s c r e v i este livro talvez m a i s p a r a m i m m e s m o e p a r a
Clarissa (com quem quero ser absolutamente sincero) do
q u e p a r a os o u t r o s , e se o d i v u l g o é l e v a d o p e l a e s p e r a n ç a de
que alguém m a i s possa t i r a r a l g u m proveito de m i n h a s ex-
periências.
Desde que cheguei ao Brasil a t é o dia em que o destino
me bateu o u t r a vez à porta, dando um novo r u m o à m i n h a
vida, m a n t i v e um diário com a r e g u l a r i d a d e que um t e m -
p e r a m e n t o impetuoso e avesso ao método permitiu. Dele
passo a transcrever daqui por diante os trechos que se me
a f i g u r a m mais i m p o r t a n t e s . Deixei de lado as anotações de
c a r á t e r p u r a m e n t e artístico, algumas reflexões sobre a paisa-
gem e vários colóquios que, se bem fossem interessantes em
si, n a d a a c r e s c e n t a r i a m a o e s p í r i t o d a h i s t ó r i a .

16 de maio

Encontro na r u a o Dr. Seixas. P a r a m o s bem defronte ao


M e g a t é r i o e ele me d i z c o m a s u a voz f e l p u d a , m e i o a m o r -
der os bigodes grisalhos:
— E s s a c a s a foi e r g u i d a e m c i m a d o c a d á v e r d e u m a
menina.
E c o m o p e r m a n e ç o e m silêncio, s e m s a b e r q u e s e n t i d o
d a r a essas p a l a v r a s , o Dr. Seixas me conta a h i s t ó r i a do
h o m e m que construiu o Megatério. Sacrificou à sua ambição
192 ERICO V E R Í S S I M O

de e n r i q u e c e r e à s u a s e d e de m o n u m e n t a l o q u e t i n h a de
m a i s h u m a n o . Obcecado pelos g r a n d e s negócios pôs neles t o -
das as suas forças, deu-lhes todos os pensamentos, t o d a a
alma. Negligenciou de t a l f o r m a a família que a m u l h e r aca-
b o u n o s b r a ç o s de o u t r o h o m e m e a filha, s e m o a m p a r o d o s
p a i s , foi e n v o l v i d a n u m e n r e d o s ó r d i d o e m o r r e u e s v a í d a
em sangue nas mãos d u m a parteira sem escrúpulos.
— Há h o m e n s l o u c o s . . . — d i g o , p e n s a n d o m a i s n o s
meus fantasmas da guerra que no construtor do Megatério.
Seixas me olha com o r a b o dos olhos e r e s m u n g a :
— E v o c ê é um d e l e s . T ã o louco q u e foi se m e t e r n a -
quela embrulhada da E s p a n h a .
— Talvez n ã o fosse loucura.
— Por quê?
— A experiência me serviu de muito. A l g u m a coisa a m a -
dureceu dentro de mim.
— A g e n t e consegue esse a m a d u r e c i m e n t o t a m b é m no
cabo d u m a enxada. P o r falar nisso, como vai o p u l m ã o ? Você
ficou d e a p a r e c e r l á n o c o n s u l t ó r i o . . .
— O D r . E u g ê n i o me e x a m i n o u a s e m a n a p a s s a d a .
— O D r . E u g ê n i o é um c h a r l a t ã o s e m v e r g o n h a .
É deste modo que Seixas d e m o n s t r a a sua afeição às
p e s s o a s : o f e n d e n d o - a s , d i z e n d o - l h e s n o m e s feios o u e n t ã o a t r i -
buindo-lhes vícios e defeitos detestáveis.
Grandalhão, meio encurvado, b a r b a eriçada e aspecto
selvagem, parece à p r i m e i r a vista um ogro devorador de cri-
anças. Creio que nunca t i r o u do corpo essa roupa cor de
chumbo, de calças lustrosas nos fundilhos e nos cotovelos
nem nunca meteu na cabeçorra, para cobrir a juba escura
riscada de prata, outro chapéu senão esse de tipo-carteira,
p r e t o e q u a s e i n f o r m e . P e n s o q u e é o ú n i c o civil em t o d a a
c i d a d e q u e a i n d a u s a b o t i n a s d e e l á s t i c o e u m d o s r a r o s ci-
d a d ã o s q u e c o n s e r v a m n o v o c a b u l á r i o a t i v o p a l a v r a s q u e caí-
r a m em desuso há mais de vinte anos.
Vejo-o a g o r a d e s c a r n a d o e a b a t i d o . E u g ê n i o m e a s s e g u -
r o u q u e seu v e l h o a m i g o n ã o t e m v i d a p a r a m u i t o t e m p o .
T e n t o u levá-lo p a r a u m s a n a t ó r i o o u p a r a u m a c h á c a r a o n d e
ele p u d e s s e r e p o u s a r e f a z e r u m t r a t a m e n t o a d e q u a d o . O h o -
m e m ficou t o d o a b e s p i n h a d o e v o c i f e r o u :
— E q u e m é q u e v a i d a r de c o m e r à m i n h a f a m í l i a en-
quanto eu estiver sem t r a b a l h a r ?
— O r a , d o u t o r — r e t o r q u i u E u g ê n i o — n ó s , os s e u s
amigos, nos e n c a r r e g a m o s disso.
SAGA 193

— C a r i d a d e , h e i n ? Q u a s e q u e t e m a n d o p a r a a q u e l e lu-
gar. C a r i d a d e ! E s s a é m u i t o boa. H a v i a de t e r g r a ç a que
agora, no fim da vida, eu visse D. Dodó e n t r a r na m i n h a
casa com um balaio cheio de comida e a g a s a l h o , assim com
ar de S a n t a Isabel. Comigo não, Genoca!
E a s s i m o Dr. Seixas c o n t i n u a a se a r r a s t a r na s u a ro-
t i n a , b e m c o m o t e m f e i t o n e s t e s ú l t i m o s t r i n t a e cinco a n o s .
T r a b a l h a da m a n h ã à noite e com freqüência é t i r a d o da
cama altas h o r a s da m a d r u g a d a p a r a ir ver algum caso de
emergência. S u a clientela em geral é pobre, quando não mi-
serável, e os seus doentes mais favorecidos da fortuna são
p e q u e n o s e m p r e g a d o s de b a n c o e do c o m é r c i o e v e l h o s f u n -
cionários públicos a p o s e n t a d o s que v i v e m (pelo m e n o s a gen-
te t e m a impressão disso) na cidade baixa. A maioria de
seus clientes, porém, é f o r m a d a de operários de São J o ã o e
Navegantes ou pobres diabos que m o r a m em casebres na
Colônia Africana ou no A r r a i a l da B a r o n e s a . Pelas r u a s es-
curas da ilhota passa às vezes à noite o vulto d u m h o m e m
grande que os moradores da zona quase todos reconhecem
pela tosse e pelo fogo do grosso cigarro.
— O Dr. Seixas n ã o e s t á hoje de b o a veneta.
— Por quê?
— P a s s o u p o r m i m e n ã o m e d i s s e n e n h u m n o m e feio.
Lá se vai o vulto familiar com a m a l e t a na mão, os
passos arrastados. Se é um caso de parto, já da porta da rua
ele c o m e ç a a g r i t a r :
— Mulheres sem v e r g o n h a ! N ã o criam juízo. Vivem pa-
rindo todos os anos. Parecem g a t a s !
No fim de cada mês sua féria é m a g r a . Mal dá para
p a g a r o aluguel da casa, a conta do a r m a z é m , as o u t r a s des-
pesas h a b i t u a i s e p a r a cobrir a nudez da família, que por
sinal deve ser u m a nudez b e m triste, porque t a n t o a mulher
c o m o a f i l h a s ã o c r i a t u r a s m a g r a s , f e i a s e m e l a n c ó l i c a s , de
formas angulosas e bustos rasos como t á b u a .
S e i x a s t o r n a a o l h a r o M e g a t é r i o de c i m a a b a i x o .
— E você t a m b é m e s t á a g o r a envolvido nessa engenho-
ca, n ã o ?
L i m i t o - m e a s o r r i r e o l h a r p a r a o velho, que enrola um
cigarro.
— C o i s a s de c i n e m a — p r o s s e g u e ele. — A r r a n h a - c é u s ,
automóveis, gramofones, rádios, m a n i a s de grandeza. .. Olhe
só aquele idiota do C a m b a r á .
A p o n t a p a r a u m a g r a n d e t a b u l e t a que a b r a n g e oito ja-
194 ERICO V E R Í S S I M O

nelas no décimo a n d a r . Lê-se nela, em c a r a c t e r e s vermelhos,


estas palavras: "ERGA — (Empresas Reunidas Cambará)".
Seixas lambe as b o r d a s do papel do cigarro e depois, cus-
pinhando, acrescenta:
— Q u e r a b a r c a r o m u n d o c o m as p e r n a s . C o n h e c i o p a i
desse menino. Um índio ignorante que n e m sabia a n d a r de
botinas. A g o r a o filho a n d a p o r aí com j e i t ã o de g r a n d e ho-
m e m de negócios. Metido em tudo q u a n t o é bandalheira.
Trust d e c i n e m a , n e g ó c i o s d e t e r r e n o s , c o n s t r u ç ã o d e c a s a s
e n e m sei q u a n t a b e s t e i r a m a i s . C h ô é g u a !
— Conheci o A l m i r o C a m b a r á em J a c a r e c a n g a quando
ele t i n h a u n s d e z o i t o a n o s . N ó s s o m o s d a m e s m a i d a d e .
— Q u a l q u e r d i a dá c o m os b u r r o s na á g u a . E é m u i t o
b e m f e i t o . A s s i m ele v a i a p r e n d e r c o m q u a n t o s p a u s s e faz
u m a canoa.
— Naquele t e m p o o Almiro parecia um sujeito sonhador.
Preocupava-se muito com a imortalidade da a l m a . . .
— S a r a m p o , d o r e s de b a r r i g a , o n a n i s m o e s o n e t o s ã o
coisas de que um menino brasileiro não se livra desde que nasce
até os dezoito. M a s o pior em geral v e m depois.
E, mudando de tom:
— C o m o v a i a l u t a dele c o m a F e r n a n d a ?
— C a d a vez m a i s séria. N ã o há r e c u r s o sujo de que o
Cambará não lance m ã o . . .
— M a s no f i m de c o n t a s q u e é q u e o d i a b o do r a p a z
quer?
— Q u e ela l h e c e d a o c o n t r a t o de a r r e n d a m e n t o do
Aquarium p o r q u e é o ú n i c o c i n e m a da c i d a d e q u e e l e n ã o
controla.
Seixas sacode a cabeça a b a n d o n a d a m e n t e :
— E u n ã o d i g o ? E s t ã o b r i n c a n d o d e f i t a d e gángster.
Esses fedelhos que ainda cheiram a cueiros!
Mete e n t r e os lábios o c i g a r r o apagado. Olha p a r a a
fachada do cinema, bem na nossa frente: toda de granito
a z u l a d o , t e n d o s o b r e a marquise u m e n o r m e a q u á r i o d e c r i s -
t a l onde peixes o r n a m e n t a i s passeiam p o r e n t r e p l a n t a s aquá-
ticas.
— Que é que parece aquilo? Que é que cinema tem a ver
c o m p e i x e ? É ou n ã o é m a c a q u e a ç ã o ?
Q u a n d o ele f a l a , o c i g a r r o , p r e s o a o s l á b i o s , s o b e e d e s c e
em movimentos bruscos.
— E q u e é q u e a F e r n a n d a diz a t o d a s e s s a s ?
— A F e r n a n d a e s t á firme e n ã o cede.
SAGA 195

— Aí está u m a menina de valor que anda perdendo tem-


po com bobagens. Devia t e r e s t u d a d o medicina ou coisa q u e
o valha. T e m a m a n i a de s a l v a r a h u m a n i d a d e . Eu s e m p r e
digo: Fernanda, sossega, a humanidade não quer ser salva.
V o c ê v a i a c a b a r g a s t a n d o t u d o q u e t e m . E l a d á r i s a d a , diz
que eu estou caducando.
F a z u m a p a u s a reflexiva e depois a c r e s c e n t a :
— T a l v e z e s t e j a . . . Me dê o f o g o . S e m p r e e s q u e ç o a
caixa de fósforos na casa do último cliente.
Seixas acende o cigarro. Separamo-nos com um aperto
de m ã o .

18 de maio

Oito da m a n h ã . N u m dos elevadores do Megatério en-


contro Gedeão Belém, diretor do jornal "A O r d e m " . Um tipo
q u e v e n h o o b s e r v a n d o c o m i n t e r e s s e . V e s t e - s e c o m u m a ele-
gância exagerada, toda feita de amido e enchimentos.
Seu rosto m u i t o sanguíneo e gordalhufo, ornado d u m
bigode sempre bem aparado, como relva de j a r d i m de luxo,
tem u m a expressão que não inspira s i m p a t i a n e m confiança.
H á nele q u a l q u e r c o i s a d e v i s c o s o e o b l í q u o .
O elevador vai subindo. Muito perfilado j u n t o do ascen-
sorista preto, ali e s t á o Dr. Gedeão Belém no seu casaco de
tweed e m t o m beige, n u m g r a c i o s o c o n t r a s t e c o m a s c a l ç a s
de flanela m a r r o m .
Subir! E i s o verbo m a i s i m p o r t a n t e da vida desse aven-
tureiro municipal. Subir a qualquer preço. N ã o apenas subir
ao vigésimo segundo a n d a r do Megatério, onde fica a redação
d e s e u j o r n a l . M a s s u b i r n a s o c i e d a d e , n a s e s f e r a s oficiais,
no mundo das finanças e das pequenas vaidades quotidianas.
Ultimamente o Dr. Belém deu a seu jornal u m a orientação
católica. Quer fazer d a I g r e j a u m t r a m p o l i m p a r a o s seus
saltos espetaculares, r u m o d a s boas posições e dos negócios
v a n t a j o s o s . É d e m a g o g o e p o l i t i q u e i r o . Do p a i , v e l h o c a u d i l h o
e político decaído, parece t e r h e r d a d o o a m o r à i n t r i g a e à
chicana.
N o s s e u s a r t i g o s d e f u n d o o lobo v e s t e pele d e c o r d e i r o
e, com um estilo florido e falso como as s u a s r o u p a s , ele
a d u l a a clã d e D . D o d ó , e x a l t a o A r c e b i s p o e , s e g u i n d o u m a
técnica que já se vai fazendo sediça, classifica indiscrimina-
d a m e n t e d e c o m u n i s t a s t o d o s q u a n t o s n ã o s ã o a d e p t o s decla-
196 ERICO VERÍSSIMO

rados da Igreja. "A O r d e m " já começou a sua c a m p a n h a sur-


da contra F e r n a n d a , pois Gedeão Belém é m u i t o chegado a
A l m i r o C a m b a r á e a m b o s t ê m i n t e r e s s e s c o m e r c i a i s e m co-
mum.
Se me pedissem u m a definição desse curioso exemplar
h u m a n o e u d i r i a q u e ele é u m " p e q u e n o M a q u i a v e l e m i m i -
tação de Sloper". Sua presença me causa um vago mal-estar.
Gedeão Belém me olha com insistência e, n u m m o m e n t o
e m q u e d e s p r e v e n i d a m e n t e p a s s o o s o l h o s p e l o s e u r o s t o ele
lança na m i n h a direção um t í m i d o sorriso aliciador de com-
panheiro de viagem que deseja estabelecer conversação. Man-
tenho u m a seriedade rígida, e ignoro-o.
S e r á q u e j á c o m e ç o a o d i á - l o ? C r e i o q u e n ã o sei o l h a r a
vida desapaixonadamente. Os inimigos de m e u s amigos são
meus inimigos. Q u e m é que vendo u m a víbora passear por
um j a r d i m da infância lhe poupa a vida na franciscana espe-
r a n ç a de que ela não vá picar as crianças?
Só desejo que nunca m a i s me veja na contingência de-
s a g r a d á v e l d e e s m a g a r i n i m i g o s . . . E s t o u c a n s a d o d e violên-
cia.
— É o v i n t e ! — diz g a i a t a m e n t e o ascensorista, abrindo
a porta para mim.
Sorrio p a r a o negrinho e saio.

A r e d a ç ã o de " A v e n t u r a " . S i m p l e s , s ó b r i a e c o n f o r t á v e l .
A luz e s b r a n q u i ç a d a d a s m a n h ã s j o r r a p e l a s l a r g a s j a n e l a s .
E n c o n t r o F e r n a n d a à sua mesa a ler um jornal.
— Bom dia!
— Olá, c a p i t ã o !
A p r o x i m o - m e dela.
— Q u e é q u e há de n o v o ?
— Leia isto.
F e r n a n d a m o s t r a com o dedo u m a coluna do jornal. In-
c l i n o - m e s o b r e o o m b r o d e l a e leio. É o a r t i g o de f u n d o de
"A O R D E M " , firmado com as iniciais G. B. " P r o p a g a n d a Ne-
f a s t a " — é o t í t u l o . "Guardiães da Pátria, sentinelas da or-
dem social e paladinos da grande causa do espírito, não po-
demos ficar indiferentes ante essa nefasta propaganda bol-
chevista que se vem insinuando através de revistas, livros e
filmes tendentes a abalar os sagrados alicerces da sociedade
cristã. .." M a i s a d i a n t e : "Chamamos a atenção da polícia para
certas revistas intituladas de educação infantil que publicam
SAGA 197

em suas páginas, onde se nota a visível influência do judeu


internacional e do ouro de Moscou, histórias de caráter niti-
damente materialista, nas quais é absoluta a ausência dos sa-
lutares princípios cristãos e das nobres finalidades que tor-
nam digna e bela a existência do homem".
Sento-me na beira da mesa. Fernanda cruza os braços,
reclina-se p a r a t r á s na sua giratória, e me olha sorrindo.
— Que é que você diz?
— Encontrei há pouco no elevador essa jóia do Gedeão
Belém. Corado e fresco como u m a rosa rorejada de orvalho.
Que patife!
— E a c o i s a t e n d e a p i o r a r de h o r a p a r a h o r a . O C a m -
b a r á e s t á cada vez m a i s encanzinado. Hoje o Goldstein, da
"Triangle", a única companhia i m p o r t a n t e que exibe filmes
no " A q u a r i u m " , me telefonou, todo cheio de desculpas, p a r a
dizer que no p r ó x i m o a n o não pode r e n o v a r o contrato.
— E como vai s e r ?
F e r n a n d a encolhe os ombros.
— F i c a r sem filmes.
— M a s e a W a r n e r ? — pergunto. — A Metro? A Twen-
tieth Century, as outras?
— Que é que você q u e r ? F o r a m nos deixando a o s pou-
cos. E i s s o é m u i t o n a t u r a l . T o d o s os c i n e m a s da c i d a d e
acham-se nas mãos do Cambará. P a r a essas companhias está
claro que é m a i s vantajoso ficar com a E R C A . Eu não os
censuro.
— N ã o se t r a t a de censurar ou não. Eu quero saber se
um cinema pode funcionar sem filmes.
— Talvez possa. Em último caso levarei t e a t r o p a r a o
A q u a r i u m . O m e l h o r teatro, n e m que seja preciso eu m e s m o
formar u m a companhia, m o n t a r peças, fazer artistas.
— F e r n a n d a , v o c ê é i m p o s s í v e l . M a s p e n s e só n u m a coi-
sa. T u d o t e m u m limite. A t é m e s m o a s s u a s forças.
F e r n a n d a sacode a cabeça:
— S i m , m a s t a l v e z o m e u e n t u s i a s m o e a m i n h a fé s e -
j a m menos limitados do que você imagina.
Da sala contígua vem o ra-ta-tá das m á q u i n a s de escre-
ver. E n t r a u m e m p r e g a d o d e t i p o g r a f i a com p r o v a s d e p á g i n a
para Fernanda examinar.
— C o r a g e m , c a p i t ã o ! — e x c l a m a ela, b a i x a n d o os o l h o s
para as provas.
— C o r a g e m eu t e n h o — r e p l i c o . — O q u e me f a l t a é
ar, c o m o d i s s e o h o m e m . . .
198 ERICO V E R Í S S I M O

C a m i n h o p a r a a j a n e l a . O G u a í b a e s t á s e r e n o s o b o sol.
S e r e n a s t a m b é m e s t ã o a s m o n t a n h a s q u e a z u l a m , l á lon-
ge. Ê que elas não participam das angústias h u m a n a s . Os
Pireneus se m a n t i n h a m impassíveis enquanto em t e r r a s de
E s p a n h a os homens se espedaçavam uns aos outros. Vêm-me
à memória as palavras daquele camponês catalão: "A terra
é b o a , os h o m e n s é q u e s ã o m a u s " .
C o n t e m p l o a z o n a do G a s ó m e t r o : foi ali q u e a c i d a d e
começou há m a i s ou menos duzentos anos. P o n h o - m e a ima-
g i n a r os c a s e b r e s d o s c a s a i s a ç o r i a n o s , a r e f l e t i r s o b r e o
m i s t é r i o d o t e m p o e d a s c r i a t u r a s , a p e n s a r n a p a s s a g e m dos
a n o s , no f l u x o e r e f l u x o de s o n h o s e i d é i a s , t r a b a l h o s , sofri-
m e n t o s , a m b i ç õ e s e e s p e r a n ç a s q u e , c o m o e s c o a r de dois
séculos, r e s u l t a r a m neste estado de coisas de que o Megatério
e a l u t a de F e r n a n d a s ã o s í m b o l o s p u n g e n t e s . V i s l u m b r o o
q u e h á d e f a l s o n o m u n d o e m q u e a g o r a n o s m o v e m o s e fico
com a e s t r a n h a i m p r e s s ã o de que, b e m como me disse o Dr.
Seixas, nós somos crianças que estão brincando de gente
g r a n d e . F a l t a - n o s tempo n a s n o s s a s c a s a s , n a s n o s s a s cida-
des, nos nossos desejos, na nossa memória, na nossa alma.
S e n t o - m e à m e s a . C o m e ç o a t r a b a l h a r na i l u s t r a ç ã o d u -
m a h i s t ó r i a q u e N o e l e s c r e v e u p a r a a r e v i s t a . T r a t a - s e , como
era de esperar, de um conto de fadas. Um menino louro e
sonhador que consegue e n t r a r m i l a g r o s a m e n t e n u m livro de
h i s t ó r i a s m a r a v i l h o s a s , c o m g r a v u r a s c o l o r i d a s , e p a s s a a vi-
v e r d e n t r o dele, d e m i s t u r a c o m a s c l á s s i c a s p e r s o n a g e n s
B r a n c a de N e v e , a B e l a A d o r m e c i d a , o G a t o de B o t a s . . .
— Em q u a n t a s cores queres as ilustrações? — g r i t o pa-
ra a F e r n a n d a .
— De q u a n t a s p r e c i s a s ? — r e s p o n d e - m e ela lá do o u t r o
lado desta g r a n d e e clara sala.
— De cinco.
— N ã o seja perdulário. P e n s e na crise e contente-se com
três.
Solto um suspiro de resignação.
— Você manda.
P o n h o - m e a d e s e n h a r o m e n i n o l o u r o d i a n t e do l i v r o de
h i s t ó r i a s . A o c a b o d e a l g u n s m i n u t o s F e r n a n d a e r g u e a ca-
beça e p e r g u n t a :
— Não sabe trabalhar sem assobiar?
— E u e s t a v a a s s o b i a n d o ? N e m dei p o r isso.
— S i m s e n h o r . E p o r s i n a l e r a o " B o l e r o " de R a v e l .
Curioso. O Bolero. As trincheiras do E b r o d u r a n t e os
SAGA 199

d i a s d a q u e l e p a v o r o s o s e t e m b r o . S i n t o u m leve m a l - e s t a r .
A f a s t o de m i m o esboço começado, t o m o d u m novo papel e,
furiosamente, como se de repente o espírito de um a r t i s t a
diabólico se tivesse apoderado de m i m , desenho em t r a ç o s
n e r v o s o s e s t e q u a d r o : S e b a s t i a n e V a s c o a r r a s t a n d o pela
p o e i r a o c o r p o d e Á x e l c o m a s p e r n a s d e c e p a d a s . E n ã o sei
por que me sinto t o m a d o d u m súbito aborrecimento por Noel.
A vida e s t á cheia de d r a m a s e m i s é r i a s e ele se o b s t i n a em
escrever doces histórias impossíveis, p r o m e t e n d o às crianças
um mundo que elas nunca hão de encontrar na realidade.
R a s g o o desenho e a t i r o os pedacinhos de papel na cesta ao
lado da mesa.
— O N o e l n ã o v e i o ? — p e r g u n t o , n e m eu m e s m o sei p o r
quê.
— V e i o , s i m — r e s p o n d e F e r n a n d a , f a z e n d o c o m a ca-
beça u m s i n a l n a d i r e ç ã o d e u m a d a s p o r t a s . — E s t á m e t i d o
lá dentro com o P a d r e Rubim.
— A e s t a h o r a da m a n h ã ?
— Q u e é q u e v o c ê q u e r ? A fé m a d r u g a . . .
Noel e s t á convertido ao catolicismo. Chegou à igreja se-
guindo um curioso t r a j e t o : Contos de F a d a s — G. K. Ches-
t e r t o n - M a r i t a i n . O P a d r e R u b i m foi o s e u g u i a .
— Q u e é q u e v o c ê diz à c o n v e r s ã o de N o e l ? — p e r g u n t e i ,
faz p o u c o s d i a s , à F e r n a n d a .
— D i g o q u e fé r e l i g i o s a é a s s u n t o í n t i m o . De r e s t o , a c h o
que s e m fé em alguém ou a l g u m a coisa não se pode viver
com serenidade e alegria.
— E a c h a que Noel encontrou paz em D e u s ?
— Acho. Seu espírito e s t a v a t a l h a d o p a r a o catolicismo.
A p r i n c í p i o t e n t e i levá-lo p a r a o u t r o s c a m i n h o s , n ã o p o r q u e
detestasse a religião, m a s simplesmente porque julguei que
ele pudesse e n c o n t r a r na simples aceitação da vida de s u a s
l u t a s e n u m d e s e j o de b e l e z a e h a r m o n i a a c o m p r e e n s ã o de
si m e s m o e a p a z de e s p í r i t o q u e t o d o s n ó s b u s c a m o s .
— Vocês são diferentes. A g u a e azeite.
— R a z ã o b a s t a n t e p a r a que cada um fique d e n t r o de seu
c o n t i n e n t e . E de r e s t o — p r o s s e g u i u e l a c o m a n i m a ç ã o — eu
q u e v i v o a f a l a r c o n t r a a i n t o l e r â n c i a , c a i r i a em r i d í c u l a con-
tradição se me mostrasse intolerante nesse particular.
V i m depois a s a b e r que Noel vive a t o r m e n t a d o à idéia
de que sua m ã e leva no Rio u m a vida dissoluta e escanda-
losa, n u m a g r o t e s c a p r o s t i t u i ç ã o , a e n c h e r d e p r e s e n t e s g i g o -
lôs j o v e n s e e s p o r t i v o s . N ã o f a l t a q u e m , p o r m e i o d e c a r t a s
200 ERICO VERÍSSIMO

a n ô n i m a s , v e n h a c o n t a r a o rapaz que V i r g í n i a Madeira t e m


u m a p a r t a m e n t o e m Copacabana, j o g a d e s b r a g a d a m e n t e n o
Cassino da U r c a , e que certa noite, no A s s í r i o . . .
A ferida de N o e l e s t a v a aberta e s a n g r a n d o dolorosa-
m e n t e q u a n d o o P a d r e R u b i m apareceu. E contra a carne v i v a
o s a c e r d o t e aplicou o primeiro t a m p ã o da fé. P a c i e n t e , per-
s u a s i v o , m a n s o e a m i g o , ele foi m e d i c a n d o a ferida.
— S a b e s ? — diz Fernanda. — N o e l v a i t o m a r a primeira
c o m u n h ã o d o m i n g o que v e m .
— É ?
N a d a m a i s e n c o n t r o p a r a dizer. N ã o sei se o invejo ou
se o deploro.
Cinco m i n u t o s depois a porta se abre e o P a d r e R u b i m
aparece a c o m p a n h a d o de N o e l . É um h o m e m b a i x o e v i v o ,
de e x p r e s s ã o alegre. T e m o l h o s a z u i s de criança, lábios finos
e nariz m u i t o v e r m e l h o e lustroso. C a m i n h a de m ã o erguida
na direção de F e r n a n d a e v a i dizendo c o m s u a v o z m a c i a e
nasalada:
— E n t ã o , quando é que a m e n i n a F e r n a n d a t a m b é m vai
s e g u i r o e x e m p l o de s e u m a r i d o ?
— T e n h a paciência, padre — responde F e r n a n d a a sorrir.
N o e l v e m olhar o m e u t r a b a l h o . O P a d r e Rubim, brin-
cando c o m a p a s t a de couro que t e m debaixo do braço, per-
gunta:
— P o r que é que não cria na s u a revista u m a pequena
s e c ç ã o c a t ó l i c a ? f i u m a s u g e s t ã o z i n h a , espero que n ã o s e zan-
g u e . A senhora sabe que a m a i o r i a d a s f a m í l i a s brasileiras
s ã o católicas. F i c a r i a t ã o b o n i t o u m a p á g i n a religiosa, com
f i g u r a s , u m pouco d e doutrina, h i s t o r i e t a s e d i f i c a n t e s . . . N ã o
é mesmo?
— Ora, padre, é m u i t o difícil de responder. P o r que não
fazer u m a p á g i n a espírita, u m a p á g i n a p r o t e s t a n t e , u m a pá-
g i n a budista, u m a p á g i n a . . . e s o t é r i c a ?
O P a d r e R u b i m v o l t a - s e para N o e l , sorrindo e a sacudir
a cabeça:
— A dona F e r n a n d a s e m p r e c o m as s u a s . . . O h ! m a s eu
sei que no fundo, b e m no f u n d o ela é u m a b o a c a t ó l i c a !
P a r a d e s c o n v e r s a r F e r n a n d a contorna a m e s a e c a m i n h a
n a m i n h a direção.
— Padre, eu quero l h e a p r e s e n t a r o a m i g o de que lhe
falei. V a s c o , este é o P a d r e R u b i m .
E r g o - m e e aperto a m ã o que se e s t e n d e p a r a m i m .
SAGA 201

— A h ! O s e n h o r é o m o ç o q u e e s t e v e l u t a n d o na E s p a -
nha?
Fica a me contemplar, meio abstrato.
E depois i n g e n u a m e n t e :
— N ã o é c o m u n i s t a , é?
— N ã o , senhor. Sou desenhista.
Ele ri, m o s t r a n d o os dentes desiguais e amarelados. Mas
é um sorriso sem malícia. Sacudindo o dedo no ar, como um
bondoso professor que ameaça, por p u r a brincadeira, o seu
aluno predileto, ele d i z :
— Eu p r e c i s o f a l a r c o m o s e n h o r . . . P r e c i s o m e s m o f a -
l a r muito c o m o s e n h o r .
— Quando quiser, p a d r e . . .
— E s t á b e m . Q u a l q u e r d i a eu a p a r e ç o . . . B o m . C o m li-
cença, v o u a n d a n d o .
Q u a n d o ele s a i c o m N o e l , F e r n a n d a fica o l h a n d o p a r a a
porta.
— Um s u j e i t o d e c e n t e , s i n c e r o e d u m a p u r e z a r a r a —
c o m e n t a ela. — O m a l do c a t o l i c i s m o é q u e p a r a c a d a P a d r e
Rubim existem duzentos Gedeões.
4
22 de maio

P o u c o d e p o i s d o meio-dia. V o u l e v a r C l a r i s s a a t é a p o r t a
d o colégio o n d e ela leciona.
— J o ã o z i n h o e M a r i a — m u r m u r a ela, o l h a n d o p a r a as
nossas s o m b r a s na calçada.
— Q u a l ! A p e n a s C l a r i s s a e V a s c o , d o i s s e r e s de c a r n e
e o s s o . N a d a d e c o n t o s d e f a d a s . D e i x e m o s isso p a r a o N o e l .
— Oh, Vasco, a gente não pode n e m b r i n c a r ?
T o m o - l h e d o b r a ç o c a r i n h o s a m e n t e e s u s s u r r o - l h e a o ou-
vido:
— Não precisamos brigar. Dentro de t r ê s meses estare-
mos casados e vamos t e r o resto da vida para as nossas rixas.
E é b e m possível que um dia a m a n h e ç a s e s t r a n g u l a d a .
Clarissa ergue os olhos p a r a mim, sorrindo.
— N ó s n ã o v a m o s ser como os outros, não é? — per-
g u n t a e l a f r a n z i n d o o n a r i z e p i s c a - p i s c a n d o de leve.
— Que outros?
— Por exemplo... o Pedrinho e a Ernestides.
— Claro que não.
— Vivem como cão e gato.
P a r a m o s a u m a vitrina onde se expõem objetos de cerâ-
mica.
— Que lindo v a s o ! — exclama Clarissa, m o s t r a n d o com
o dedo. — Q u a n t o c u s t a r á ?
— V a m o s embora. C o m p r a r é o verbo que vocês mulhe-
res m a i s u s a m .
P u x o - a pelo b r a ç o . E n t r a m o s e m o u t r a r u a .
— C l a r i s s a . . . se tu soubesses o que eu sei. ..
— Q u e é q u e tu s a b e s ?
— U m a coisa que eu vi.
— Q u e é ? D i z logo, V a s c o !
— E u n ã o i a t e dizer. É u m a s s u n t o d e s a g r a d á v e l . M a s
204 ERICO V E R Í S S I M O

preciso contar a alguém e é bom a gente começar a não t e r


segredos um p a r a o outro.
— Diz logo!
— Tu sabes que eu estou pintando o r e t r a t o da Roberta
Erasmo...
— Sei, s i m .
— H o j e d e m a n h ã s u b i a o 25.° a n d a r p a r a i r à c a s a
d e l a . . . Imagina quem vi no c o r r e d o r . . . A Ernestides.
— E que t e m isso?
— Ia entrando toda arisca por u m a porta, olhando para
o s l a d o s c o m a r a s s u s t a d o . F i q u e i c u r i o s o , fui v e r . E r a o
a p a r t a m e n t o do Manoel Pedrosa.
— Não diga!
S a c u d o a c a b e ç a . C l a r i s s a p á r a e fica a me o l h a r e s p a n -
tada, a boca entreaberta, a sobrancelha direita mais alta que
a esquerda.
Continuamos a andar mais devagar.
— V a i s c o n t a r à F e r n a n d a ? — p e r g u n t a ela.
— Q u e é q u e tu a c h a s ?
— N . . . n ã o sei. É h o r r í v e l .
Não acho horrível. Acho tolo. Sem graça. Triste.
É um doce e repousado dia de outono. Fico um pouco
aflito por n ã o e n c o n t r a r um meio de levar p a r a a tela esta
luz coi de m e l , o céu d i s t a n t e e n e v o e n t o , as s o m b r a s de t o n s
misteriosos e sobretudo certos insituáveis e esfumados toques
de azul que são como que os f a n t a s m a s da p a i s a g e m . E i s um
dia em que o h o m e m não se sente s e p a r a d o da n a t u r e z a mas
se i n t e g r a nela, com h u m i l d e alegria. Talvez a m a i o r home-
n a g e m q u e u m a r t i s t a p o s s a p r e s t a r a u m m o m e n t o como
este seja a de n ã o t e n t a r a b s o l u t a m e n t e descrevê-lo ou pintá-
lo. A s i m p l e s a c e i t a ç ã o de s u a beleza s e r á p r o v a v e l m e n t e a
atitude mais sensata e natural.
— A m o e s t e o u t o n o do R i o G r a n d e — d i g o a C l a r i s s a .
— E u t a m b é m . T u t e l e m b r a s d a n o s s a p a i n e i r a e m Ja-
c a r e c a n g a ? A g o r a ela d e v e e s t a r f l o r i d a .
— Se n ã o a d e r r u b a r a m . . .
C l a r i s s a fica u m i n s t a n t e p e n s a t i v a .
— É m e s m o . . . Vasco, por que será que a gente nunca
esquece o lugar onde nasceu e cresceu?
Minha resposta t a m b é m é u m a p e r g u n t a que eu passo
adiante a u m a terceira pessoa invisível:
— P o r que s e r á ?
A v i s t a m o s o colégio. P o r c i m a d o m u r o a o l o n g o d o q u a l
SAGA 205

agora caminhamos, pendem para a rua os galhos duma gran-


de magnólia com g r a ú d a s flores cremes e folhas de um verde
escuro e oleoso.
Anda no ar um cheiro de folhas secas que me lembra
esquisitamente de a r c a s antigas, com segredos e t e r n a s re-
cordações.
— O outono é a estação que t e m m a i s dignidade — digo.
— S u a beleza possui equilíbrio, m a t u r i d a d e e calma. S a b e s
d u m a pessoa que pode b e m simbolizar o o u t o n o ? R o b e r t a
Erasmo.
Clarissa me olha de viés.
— V a s c o , é a s e g u n d a v e z q u e tu d i z e s e s s e n o m e h o j e .
— E que t e m isso?
— Nada...
E em silêncio a n d a m o s m a i s a l g u n s passos. Depois, su-
b i t a m e n t e ela p e r g u n t a :
— Tu sabes que falam muito dela?
— E que t e m isso?
— Nada.
N a f r e n t e d o colégio, a o n o s d e s p e d i r m o s , C l a r i s s a m e
faz u m a p e r g u n t a , esforçando-se p o r d a r à voz um t o m de
indiferença.
— Quanto tempo falta para terminares o r e t r a t o ?
Finjo não entender.
— Que r e t r a t o ?
— O dessa s e n h o r a . . . E r a s m o .
— Mais u n s dez dias talvez. P o r q u ê ?
— N a d a . . . N ã o posso p e r g u n t a r ?
Seguro-lhe o queixo.
— Ciumenta.
C l a r i s s a m e v o l t a a s c o s t a s e s o b e a s e s c a d a s d o colégio,
correndo.

26 de maio

Eugênio nos telefona p a r a dizer que o Dr. Seixas está


passando muito mal no "Hospital Metropolitano." Ao entar-
decer vou visitá-lo em c o m p a n h i a de Clarissa e F e r n a n d a e
encontramo-lo um pouco melhor, especado entre travesseiros,
m u i t o lívido, a r e s p i r a r c o m a l g u m a d i f i c u l d a d e .
— Vieram ver o velho morrer, h e m ?
— N e m fale n i s s o , D r . S e i x a s ! — diz F e r n a n d a , a p e r -
206 ERICO V E R Í S S I M O

tando-lhe a m ã o . — N ó s ainda v a m o s festejar o seu cente-


nário.
Seixas m i r a - a por longo t e m p o e depois diz:
— Viver m a i s q u a r e n t a anos neste e s t a d o ? N ã o desejo
esse castigo a ninguém.
S e n t a d a a o p é d o leito, c o m a s m a g r a s m ã o s p o u s a d a s
n a s coxas, e n c u r v a d a , ossuda, feia e resignada, s u a m u l h e r
olha e e s c u t a em silêncio.
— M a s e n t ã o , q u e foi isso, d o u t o r ? — p e r g u n t o .
— O velho c o r a ç ã o . . . — r e s p o n d e ele.
— O culpado é o s e n h o r — diz Clarissa. — Usou-o de-
mais.
Ficamos a conversar por alguns instantes. Seixas nos
conta um curioso sonho que teve a noite passada. E s t a v a no
meio d u m a vasta planície a m a r r a d o a um palanque e via
desfilar um enorme rebanho de elefantes negros. Tudo muito
confuso. O s a n i m a i s c o r r i a m e m tropel campo e m fora n u m
r u m o desconhecido. Ele sentia vontade de seguir o rebanho,
m a s não podia, e isso lhe c a u s a v a a n g ú s t i a .
— Q u e b e s t e i r a ! — diz ele. — A t r o c o de q u e eu h a v i a
d e s o n h a r l o g o c o m e l e f a n t e ? O ú l t i m o q u e e u v i foi u m
que a n d a v a na r u a ainda o o u t r o dia, fazendo reclame d u m
circo.
Retiramo-nos ao anoitecer. Seixas p e r g u n t a a Clarissa
quando é que vai "botar o Gato-do-mato n u m a jaula". E ela:
— Acho que nunca, doutor.
N o c o r r e d o r E u g ê n i o n o s c o n t a q u e o h o m e m e s t á liqui-
dado. Talvez não d u r e u m a s e m a n a .

27 de maio

Chinita P e d r o s a há vários dias vem insistindo p a r a que


eu lhe pinte o r e t r a t o . Encontro-a esta m a n h ã na rua. Eu
v o u a n d a n d o p e l a c a l ç a d a e ela faz p a r a r o s e u c a r r o j u n t o
de m i m :
— B o m dia, Vasco. E n t ã o , q u a n d o é que sai o nosso re-
trato?
A p r o x i m o - m e dela, e n t r o n a s u a zona d e a t r a ç ã o m a r -
cada por u m a aura de perfume.
— Quando você quiser.
— T e m a l g u m compromisso s e g u n d a ? As q u a t r o da t a r -
de. .. serve?
SAGA 207

— Serve.
E l a descerra os lábios n u m sorriso que se esforça por
ser ingênuo. É morena e d u m bonito agrestemente provocan-
t e . P e n a é q u e n ã o s a i b a s e p i n t a r . E s p a l h a o rouge s e m a r t e
n e m m e d i d a e t e m o m a u g o s t o d e p a s s a r crayon n a s p á l p e -
bras.
— Bom. Já sabes o m e u endereço. Edifício Glória, apar-
t a m e n t o 19.
— E s t á combinado.
— Okay.
O u t r a vez o sorriso de Louise Rainer. (A ú l t i m a vez que
a vi, f a z u m a n o , e r a J o a n C r a w f o r d ) .
O automóvel se vai. Fica nas m i n h a s mãos um perfume de
Nuit de Noel. N ã o sei q u e m a u p r e s s e n t i m e n t o me e m b a c i a
o s p e n s a m e n t o s q u a n d o o s foco n e s s a v i s i t a .
O m u n d o é m u i t o e n g r a ç a d o . C h i n i t a diz okay e s e g u e ,
n a s r o u p a s e nas atitudes, os figurinos de Hollywood. O avô
dela, u m c a b o c l o a n a l f a b e t o e r u d e , c o m e ç o u a v i d a c o m o
ladrão de cavalos e creio que nunca chegou a e n t r a r n u m
cinema. Ao m o r r e r deixou p a r a o filho único, Zé Maria, d u a s
léguas de campo e alguns milhares de cabeças de gado. Va-
dio e i n á b i l , a m i g o d a c i d a d e , Z é M a r i a foi a o s p o u c o s p e r -
dendo a fazenda, n u m a sucessão de m a u s negócios. Com o
a u x í l i o da m u l h e r — c r i a t u r a e c o n ô m i c a e t e n a z — c o n s e g u i u
mais t a r d e refazer-se financeiramente e estabelecer-se em
J a c a r e c a n g a c o m u m a m o d e s t a e p e q u e n a c a s a d e secos e
molhados. Foi lá que o conheci em m a n g a s de camisa; a t r á s
do balcão, pitando cigarros de palha e discutindo política ou
rinha-de-galos com os fregueses. Lembro-me de Chinita, dos
tempos em que ela ainda u s a v a carpins e fita nos cabelos e
ia passear com as a m i g a s na calçada da praça, nas t a r d e s de
r e t r e t a . Manoel, o irmão, a n d a v a p o r esse t e m p o pelas salas
de bilhar, com o chapéu no cocuruto e um ar arrogante. E s -
t a v a nessa idade impossível em que o r a p a z engrossa a voz
e o b u ç o e p e n s a q u e é d o n o do m u n d o só p o r q u e já f u m a
insolentemente o seu cigarro na frente dos mais velhos e em
m a t é r i a de sexo já u s a o a r t i g o legítimo e não m a i s o seu
melancólico sucedâneo manual.
Certo dia o pai de Chinita ganhou u m a sorte g r a n d e e
resolveu m u d a r de vida. Veio com a família m o r a r em P o r t o
Alegre, onde construiu um palacete no bairro residencial e
passou a levar g r a n d e vida. Chinita e n t r o u na sociedade, me-
teu-se em bailes, casas-de-chá elegantes, p e n u m b r o s a s e dis-
208 ERICO V E R Í S S I M O

c r e t a m e n t e eróticas. A c a b o u n u m a suave prostituição, que


começou com o r a p a z a q u e m se e n t r e g o u decerto por a m o r
m i s t u r a d o com curiosidade, e que depois continuou, sempre
v e l a d a , e m o u t r a s a v e n t u r a s d e q u e a g e n t e a p e n a s t e m no-
tícias a t r a v é s de comentários maliciosos.
Em pouco mais de três anos Zé Maria perdeu quase tudo
q u a n t o t i n h a . U m sócio d e s o n e s t o , n u m n e g ó c i o t a m b é m pou-
co limpo, levou-lhe m a i s de duzentos contos. Teve Zé Maria
P e d r o s a de voltar p a r a a sua Jacarecanga, r e t o r n a n d o à vida
humilde de antigamente. Manoel e Chinita preferiram ficar
e m P o r t o A l e g r e , e l e a p r e t e x t o d e c o n t i n u a r o s e s t u d o s ; ela,
n ã o sei p o r q u ê . T o m a a r e s d e m e n i n a c i n e m a t o g r á f i c a m e n t e
moderna, t e m a sua baratinha, os seus bons vestidos, as suas
jóias, o seu a p a r t a m e n t o e n ã o creio que possa m a n t e r essa
situação com a modesta m e s a d a que o pai lhe m a n d a . Fala-se
p o r a í q u e e l a t e m u m a m a n t e c a s a d o e r i c o . N ã o sei n e m
me interessa saber se isso é verdade. O caso de Chinita p a r a
m i m s ó t e m i m p o r t â n c i a pelo q u e v a l e c o m o s í m b o l o . R e -
flexões em torno de um tropeiro gaúcho e de Greta Garbo.
Hollywood e J a c a r e c a n g a . A h i s t ó r i a social da A m é r i c a de
1 9 1 4 p a r a cá. P a r a l e l o s , p r o f e c i a s e o m a i s q u e s e g u e .

29 de maio

Dez d a m a n h ã . N o v a v i s i t a a o D r . S e i x a s . D . Q u i n o t a ,
a m u l h e r dele, é q u e m me a b r e a p o r t a : e s t á c o m os olhos
pisados — choro ou noite mal d o r m i d a ? Conta-me que o ma-
rido passou u m a noite horrível, com m u i t a falta de ar.
Aproximo-me da cama, seguro uma das mãos do doente
e i n c l i n o - m e s o b r e éle. S e i x a s f i t a e m m i m o s o l h o s a n s i a d o s
e balbucia:
— Sonhei de novo com os elefantes pretos.
Sorrindo lhe digo:
— Se e s t a v a m de t r o m b a e r g u i d a é sinal de boa sorte.
Ê que o senhor vai ficar bom.
Ele sacode a cabeça sobre o travesseiro, d u m lado p a r a
outro. Sento-me ao lado da cama e quando D. Quinota e n t r a
no compartimento contíguo, sussurro:
— Sabe que tenho u m a teoria sobre o seu sonho?
Seixas me olha: Seus olhos b r i l h a m e é com u m a volta
d a v e l h a e n e r g i a a g r e s s i v a q u e ele m e a t i r a e s t a s p a l a v r a s :
— N ã o me venhas com essas bobagens de Freud, que eu
SAGA 209

n u n c a a c r e d i t e i n i s s o . P a s s e i m u i t o b e m t r i n t a e cinco a n o s
sem precisar desse charlatão.
F a ç o u m gesto conciliador.
— Escute a q u i . . . Lembra-se daquele nosso encontro, na
véspera de minha partida para a E s p a n h a ?
— No corredor da casa da F e r n a n d a . . . me lembro, sim.
— O s e n h o r se q u e i x o u de d o e n t e e d i s s e q u e os h o m e n s
deviam fazer como os elefantes que se escondem p a r a mor-
rer. N ó s ficamos imaginando o que seria u m a colônia de
velhos moribundos a esperar a morte, u n s com v e r g o n h a dos
o u t r o s . . . É que o s e n h o r no fundo t e m o seu orgulho e pre-
feria que ninguém o visse d o e n t e . . . Acha que está incomo-
dando os outros, q u e . . .
C a l o - m e t e m e n d o s e r c r u e l . S i n t o q u e n ã o d e v i a t e r co-
meçado. Seixas e s t á em silêncio e nos seus olhos de escleró-
tica a m a r e l a d a b r o t a m lágrimas.
Ele volta a cabeça p a r a o outro lado e e n x u g a disfarça-
d a m e n t e o s o l h o s c o m a p o n t a d o lençol. F i c a p o r a l g u n s i n s -
t a n t e s com a cabeça v i r a d a p a r a a parede. Depois, t o r n a a
me olhar de frente e diz:
— E s t o u escangalhado e t e n h o sofrido muito. F a z dois
dias que vivo à c u s t a de injeções. Eu já disse p a r a o E u g ê n i o
q u e n ã o a d i a n t a . É m e l h o r e u i r e m b o r a d u m a vez. M e l h o r
para m i m e p a r a os outros.
Quero dizer a l g u m a coisa m a s não encontro n e n h u m a
p a l a v r a de e s p e r a n ç a ou consolo.
O Dr. Seixas prossegue:
— A v i d a é t r i s t e , a m a r g a e s a f a d a . Há m u i t a c o i s a r u i m
neste mundo. — F a z u m a pausa. Seu rosto se a n i m a um
p o u c o . — M a s você q u e r s a b e r d e u m a c o i s a ? S e e u p u d e s s e
c o m e ç a r d e n o v o c o m v i n t e a n o s . . . n ã o s e i . . . a c h o q u e fa-
zia m a i s o u t r a t e n t a t i v a . — E p o r fim, c o m v o z c a n s a d a :
— Sou um velho m u i t o d e s m o r a l i z a d o . .
E s o r r i u m i n e x p l i c á v e l s o r r i s o , q u e fica q u a s e e n c o b e r t o
pelos b i g o d õ e s a m a r e l e c i d o s pelo f u m o .

Q u a t r o h o r a s d a t a r d e . N o a p a r t a m e n t o d e Chinita. Mó-
veis f i n o s m a s d e m a u g o s t o . C o n f o r t o n o v o - r i c o . B i b e l ô s
d e s s e engraçadinho c o n v e n c i o n a l e f ú t i l .
C h i n i t a m e r e c e b e m e t i d a n u m robe-de-chambre d e s e d a
azul. Q u a n d o e l a c a m i n h a p a r a m i m , a p e r n a m e t i d a e m
meia de seda cor-de-carne se escapa pela a b e r t u r a do roupão
210 ERICO V E R Í S S I M O

e c o m ela v e m u m p e d a ç o d e c o x a n u a e m o r e n a . D o c e e
m o r n o choque. Fico com a v a g a desconfiança de que a his-
t ó r i a do r e t r a t o n ã o p a s s a d u m p r e t e x t o . .. P o n h o o rolo de
p a p e l e a c a i x a de t i n t a s em c i m a da m e s a e de r e p e n t e me
ocorre o e s t r a n h o d e s t a situação. P e n s o n u m a t a r d e de re-
t r e t a e m J a c a r e c a n g a . A b a n d a d o 8.° R e g i m e n t o d e I n f a n -
taria tocando um "fox" "O Mano de Minas", a Chinita de
treze anos, a m o v e r as p e r n a s esbeltas e muito queimadas,
saltitando na calçada com as amiguinhas, em passo de dança.
E u , c o m a r e s d e g ê n i o , o s o l h o s n o céu, c a m i n h a n d o com
a n d a r duro ao lado de Almiro C a m b a r á , muito preocupados
a m b o s com a existência da alma, os mistérios da m o r t e e os
livros de F l a m m a r i o n .
Sento-me numa poltrona. Diálogo tolo.
— E n t ã o ? Bem instalada, não?
— P o i s é.
Silêncio. P a s s e i o o o l h a r e m t o r n o . V e j o n a p a r e d e u m a
fileira de r e t r a t o s de a r t i s t a s de cinema. Clark Gable sorri
p a r a m i m maliciosamente: decerto t a m b é m já desconfiou de
a l g u m a coisa. M a s L o u i s e R a i n e r l á e s t á c o m a q u e l e s e u a r
de espcsa ingênua que ainda acredita que os bebês são tra-
zidos pelas cegonhas.
A o l a d o d e l a , G r e t a G a r b o d e p e s c o ç o e s t i c a d o e lábios
de comissuras m u i t o caídas e n t r e c e r r a as pálpebras com ar
de quem diz: "I w a n t to be alone".
Chinita:
— T e m sabido de J a c a r e c a n g a ?
— Não. Não tenho.
— Quer fumar?
— Aceito.
Q u a n d o ela s e i n c l i n a p a r a a f r e n t e p a r a m e o f e r e c e r a
c i g a r r e i r a , a s p o n t a s d o r o u p ã o e s c o r r e g a m p a r a o c h ã o , dei-
xando-lhe as coxas à m o s t r a . E l a n ã o se dá p r e s s a em escon-
der essa parte dos m e m b r o s inferiores que u m a misteriosa
convenção d e t e r m i n a que só se pode m o s t r a r com c e r t a im-
punidade nas praias de banho.
A c e n d o o i s q u e i r o e a p r o x i m o - o do c i g a r r o de C h i n i t a .
T i r a m o s a s p r i m e i r a s b a f o r a d a s e m silêncio. U m a m u l h e r re-
vela a s u a r a ç a no jeito como leva o c i g a r r o aos lábios. Em
v ã o t e n t o descobrir nesta r a p a r i g a a chinoca rude que pita
u m c i g a r r o d e p a l h a s e n t a d a n u m cepo n a frente d o rancho.
A neta do ladrão de cavalos t e m inegavelmente u m a certa
elegância. E belas pernas t a m b é m .
SAGA 211

— C o m o se foi de E s p a n h a ? — i n d a g a e l a .
— B e m . . . Voltei vivo, como vê.
— Foi ferido alguma vez?
— Fui.
— Onde?
— No setor do Ebro.
— Hem?
Chinita ergue a m b a s as sobrancelhas e e n r u g a a t e s t a
numa expressão de surpresa. Pensará que setor do E b r o é
alguma p a r t e do corpo ou que eu estou u s a n d o um eufemis-
mo para esconder alguma região vergonhosa da anatomia
humana?
— F u i ferido d u a s vezes na p e r n a e u m a no pulmão.
— No p u l m ã o ? Credo! Doeu m u i t o ?
— Não.
D i á l o g o ocioso. N o f i m d e c o n t a s e u v i m p a r a p i n t a r u m
retrato...
— B o m . Como é que você q u e r esse r e t r a t o , C h i n i t a ?
C a b e ç a só ou c o r p o i n t e i r o ?
— Que é que você a c h a ?
— Cabeça.
— Okay.
Desenrolo o papel de desenho. Escolho p a r a Chinita u m a
p o s i ç ã o e m q u e a luz l h e b a t a e m c h e i o d u m l a d o d o r o s t o .
T o m o do l á p i s e c o m e ç o .
— Como vai a Clarissa?
— Bem, obrigado. Mas não se mexa agora.
P a s s a m - s e os minutos. Creio que o q u a r t o vai ficando
mais quente à medida que o t e m p o passa. Coados pela altura
chegam abafados até nós os ruídos da rua.
C h i n i t a f a z u m a o b s e r v a ç ã o q u e m e d e s c o n c e r t a u m pou-
co:
— Vasco, você e s t á d e s e n h a n d o as m i n h a s p e r n a s ou a
minha cara?
E r g o vivamente os olhos.
— É proibido olhar p a r a isso? — indago, meio brusco.
— Claro que não. Ficou queimado?
— Ora...
E m dez m i n u t o s t e n h o o e s b o ç o p r o n t o . F i c o u h o r r í v e l .
Chinita se ergue e vem olhar. Posta-se a t r á s de mim, passa
a m ã o p e l o m e u o m b r o e eu s i n t o c o n t r a o b r a ç o a r i j e z a
elástica de seu corpo.
— P o i s e u a c h o q u e ficou b e m . . .
212 ERICO V E R Í S S I M O

— N ã o me agrada. A m ã o hoje está ruim.


— N ã o h á d e s e r n a d a . V a m o s b e b e r q u a l q u e r coisa.
T r a z u m a g a r r a f a d e whisky, d o i s c o p o s e u m j a r r o d e
á g u a . E q u a n d o se inclina p a r a me servir a bebida, seus seios
m e r o ç a m pelo r o s t o n u m a p r o v o c a ç ã o .
O Vasco que conheci u n s t e m p o s a t r á s já se teria arre-
m e s s a d o selvagemente c o n t r a essa r a p a r i g a p a r a e x t r a i r dela
t o d o o p r a z e r q u e ela f o s s e c a p a z d e l h e p r o p o r c i o n a r . M a s
eu a n d o à p r o c u r a do e q u i l í b r i o e d e s c o b r i q u e o h o m e m q u e
t r a z o sexo exclusivamente na cabeça nunca poderá ser bem
sucedido nessa busca. Só há u m a coisa m a i s a b s u r d a e tola
q u e a c o n t i n ê n c i a s e x u a l : é o a b u s o . A t r i n c h e i r a me e n s i -
nou m u i t a coisa em m a t é r i a de castidade. N ã o t e n h o escrú-
p u l o s d e c a r á t e r r e l i g i o s o , — m a s o m e u s e n t i m e n t o d e fide-
l i d a d e à s c o i s a s b e l a s e h a r m o n i o s a s s e r e v o l t a c o n t r a a for-
nicação indiscriminada.
— Salve! — digo, e r g u e n d o o copo e bebendo.
— S a l v e — r e s p o n d e ela, f a z e n d o o m e s m o .
Ficamos depois a nos entreolhar estupidamente.
— E n t ã o , Vasco, você a g o r a virou s a n t o ?
— E u ? Por quê?
E l a e n c o l h e o s o m b r o s . Seu s o r r i s o é u m d e s a f i o . J o a n
Crawford nos seus dias gloriosos. B a t e com a palma da m ã o
no assento do sofá.
— Sente aqui comigo.
R e c u s a r s e r á ridículo. Obedeço.
— P o r q u e n ã o d i s s e logo q u e e s s a h i s t ó r i a d e r e t r a t o
era um simples pretexto?
E l a me joga nos olhos u m a baforada de fumo.
— Como você e s t á besta, rapaz.
— C o n v e r s a r n ã o a d i a n t a . . . — d i g o , m e i o às t o n t a s .
— Tem medo que a Clarissa saiba?
Tomo-a nos braços e beijo-a v i o l e n t a m e n t e na boca. E m -
p u r r o - a depois c o n t r a o respaldo do sofá e me e r g o rápido,
dizendo:
— V o c ê é m u i t o b o n i t a , m u i t o a p e t i t o s a . . . m a s isso n ã o
t e m sentido nenhum.
C o m e ç o a f e c h a r a c a i x a de t i n t a s e a e n r o l a r os p a p é i s
d e d e s e n h o , d e c o s t a s v o l t a d a s p a r a ela. N o f i m d e c o n t a s ,
e u j á dei m u i t a s c a b e ç a d a s n a v i d a e é t e m p o d e p r i n c i p i a r
a t e r j u í z o . C l a r i s s a j á s o f r e u d e m a i s c o m a s m i n h a s loucu-
r a s . Q u e r o a g o r a s e r - l h e fiel. M a s n a d a d i s s o p o r é m p o d e
a p a g a r esta verdade escaldante: o meu desejo, as t ê m p o r a s
SAGA 213

latejando, o ritmo do coração alterado, um certo t r e m o r de


p e r n a s . E, s e j a c o m o f o r , a s i t u a ç ã o é g r o t e s c a .
— Adeus, Chinita. V a m o s esquecer o que aconteceu.
V o l t o - m e p a r a ela. C h i n i t a e s t á d e pé, s é r i a .
— Vasco, você é um tipo muito convencido. ..
Bette Davis n u m m o m e n t o de cinismo. Como o cinema
t e m feito mal a e s t a c r i a t u r i n h a ! E l a podia e s t a r em J a c a r é -
canga, casada com um prático de farmácia, excelente esposa,
d o c e s d e leite, m a c a r r o n a d a a o s d o m i n g o s , f i l h o s , t r i c ô . . .
C a m i n h o p a r a a saída furioso comigo mesmo e com o
m u n d o . E l a me a c o m p a n h a em silêncio e, a n t e s de fechar a
porta, m u r m u r a :
— A g o r a não vá sair por aí se gabando de mim.
A única coisa que lhe digo é:
— Tome um b a n h o frio.
E caminho p a r a o elevador.
5

30 de maio

O Dr. Seixas m o r r e u pouco antes d a s t r ê s da m a d r u g a d a .


C o n s e r v o u a lucidez a t é o ú l t i m o m o m e n t o . A n t e s d a m e i a -
noite u m a das i r m ã s de caridade lhe pediu p a r a receber os
s a n t o s óleos. C o m voz e s t e r t o r o s a , q u e e r a p o u c o m a i s q u e
um sopro, o doente p e r g u n t o u :
— Para quê?
E a enfermeira, mansamente ingênua:
— Ora, d o u t o r . . . N ó s sabemos que o senhor vai sarar.
Mas sempre é bom e s t a r prevenido.
Seixas olhou-a b e m nos olhos por alguns segundos.
— Prevenido? Mas eu sempre andei na vida despreveni-
d o . . . e me d e i . . . m u i t o b e m . D e p o i s . . . lá em c i m a . . . eles
me conhecem...
A i r m ã se retirou. Seixas c h a m o u E u g ê n i o e p e r g u n t o u :
— E a Quinota?
— Mandei-a descansar um pouco.
— E u g ê n i o . . . não d e i x e . . . não deixe elas v i r e m . . . na
h o r a . . . na h o r a . . . sabe?
Eugênio sacudiu a cabeça afirmativamente. Seixas pe-
d i u - m e q u e e s c a n c a r a s s e a j a n e l a . Obedeci. O ar f r e s c o da
m a d r u g a d a invadiu o quarto.
A agonia começou pouco depois d a s duas. A i r m ã rezava
ao pé da c a m a j u n t o da i m a g e m do Crucificado. Seixas mor-
reu a p e r t a n d o a m i n h a m ã o e querendo dizer qualquer coisa
a E u g ê n i o que, com l á g r i m a s a lhe e s c o r r e r e m dos olhos,
a c a r i c i a v a a c a b e ç a do a m i g o . No silêncio só se o u v i a a r e s -
p i r a ç ã o a r q u e j a n t e d o m o r i b u n d o . D e p o i s o c o r p o dele s e i m o -
bilizou, a p r e s s ã o de s u a m ã o a f r o u x o u e a v i d a se l h e a p a -
gou do corpo m a n s a m e n t e como a c h a m a d u m a vela soprada
pelo v e n t o d a m a d r u g a d a .
E u g ê n i o auscultou-lhe o coração e depois, com todo o
216 ERICO VERÍSSIMO

c a r i n h o , t r a n ç o u - l h e a s m ã o s s o b r e o peito., E r g u e u o s o l h o s
p a r a m i m e disse simplesmente:
— O s u j e i t o m a i s d e c e n t e q u e eu c o n h e c i .
C a m i n h o a t é a janela. E u g ê n i o se a p r o x i m a de m i m e
diz:
— Vou avisar a mulher.
Sem me voltar, digo-lhe:
— P o r que não a deixa d o r m i r ? Seja como for não há
m a i s r e m é d i o e é m e l h o r q u e ela r e c e b a o c h o q u e q u a n d o
estiver mais repousada.
— Você t e m razão.
F i c a m o s a m b o s o l h a n d o a n o i t e e m silêncio. U m silêncio
cheio de a n g ú s t i a e de interrogações. L e m b r o - m e de nossas
m a d r u g a d a s n a s trincheiras. Que p e n s a m e n t o s e s t a r ã o cru-
zando a m e n t e de E u g ê n i o ?
— U m a l u t a t ã o g r a n d e — m u r m u r a ele — p a r a a c a b a r
nisso...
S a c u d o a c a b e ç a . V e m de l o n g e o c a n t o de um g a l o e o
rolar dum bonde solitário.
— Valerá a pena? — pergunto, mais para mim mesmo
do que para Eugênio.
— De q u a l q u e r m o d o — r e s p o n d e ele — a g e n t e t e m de
i r a t é o fim.
— Mas onde é o fim?
— A l i . . . — M o s t r a o c a d á v e r . — Ou m a i s a l é m . —
F a z um sinal p a r a a noite. — Quem sabe?
— Ê indispensável que exista um m a i s a l é m ?
Eugênio hesita.
— N ã o é d o l o r o s a a c e r t e z a de q u e n u n c a , n u n c a m a i s
vamos t o r n a r a encontrar as pessoas amadas que m o r r e m ?
O l h a n d o p a r a a l a n t e r n a d e luz a m a r e l a , n a p o n t a d o
m a s t r o d u m n a v i o , l á longe n o c a i s , r e p l i c o :
— E n ã o s e r á i n q u i e t a n t e a i d é i a de q u e a n o s s a cons-
ciência v a i c o n t i n u a r e com ela possivelmente o sofrimento,
a d ú v i d a , o d e s e j o de p e r f e i ç ã o ?
Silêncio. S i n t o n o o m b r o a p r e s s ã o d o s d e d o s d e E u g ê n i o .
E o u ç o a s u a v o z j u n t o de m e u o u v i d o .
— Q u e é q u e a g e n t e s a b e ? E, d e p o i s , n ã o f a z n e n h u m
mal t e r esperança.
R u í d o s n o q u a r t o . E n t r a m dois e n f e r m e i r o s p a r a l a v a r
e v e s t i r o c o r p o . E u g ê n i o faz m e i a - v o l t a e se a p r o x i m a deles
p a r a d a r instruções.
O l h o p a r a o céu fosco da n o i t e e i m a g i n o o r e b a n h o de
SAGA 217

elefantes n e g r o s a correr, a c o r r e r ferido de m o r t e p a r a al-


g u m refúgio misterioso, levando consigo não só a alma do
Dr. Seixas, m a s t o d a s as a l m a s que neste v a s t o m u n d o so-
frem e s o n h a m n u m a busca de libertação e paz.

31 de maio

Cinco da t a r d e . No cemitério. E s t a m o s reunidos em pe-


queno grupo diante do carneiro onde a c a b a m de alojar o
caixão com o corpo do Dr. Seixas. Um pedreiro de ar indi-
f e r e n t e e s t á b a r r a n d o d e t i j o l o s a a b e r t u r a d o t ú m u l o . Cla-
rissa de braço dado com F e r n a n d a , soluça convulsivamente.
Ao lado delas, Noel brinca com o chapéu, de cabeça baixa.
A esta mesma hora Chinita decerto mostra ao amante
as suas coxas morenas. Em alguma casa da cidade o P a d r e
R u b i m e s t á f a l a n d o a a l g u é m e m Santo T o m a z d e A q u i n o .
Gedeão Belém compra u m a g r a v a t a com listas verdes e ver-
melhas, que vai ficar muito bem com a sua última roupa
azul elétrico. A l m i r o C a m b a r á assina u m c o n t r a t o . D . Dodó
entra na casa de um de seus pobrezinhos, levando cobertores
p a r a o inverno e roupinhas p a r a as crianças. Alguém em
a l g u m q u a r t o silencioso — p r o v a v e l m e n t e u m a m e n i n a de
óculos — está escrevendo u m a c a r t a de a m o r a R o b e r t Taylor,
a o p a s s o q u e n ã o m u i t o l o n g e dela, e m o u t r a c a s a , u m m o ç o
do comércio está sonhando com a aviação sem motor. Quan-
t a s coisas diversas, absurdas, terríveis, grotescas, belas ou
simplesmente quotidianas estão acontecendo no mundo neste
mesmo instante?
O pedreiro t e r m i n a o seu trabalho. Pôs entre o caixão
do D r . S e i x a s e o r e s t o do m u n d o u m a p a r e d e de t i j o l o s . O
tempo t e r m i n a r á o trabalho de isolamento erguendo vaga-
rosa e implacavelmente u m a m u r a l h a muito maior de esque-
cimento.
O g r u p o s e d i s p e r s a e m silêncio.
V a m o s c a m i n h a n d o os cinco por e n t r e os t ú m u l o s .
— E a vida continua — diz F e r n a n d a .
E Eugênio:
— O l í v i a c o s t u m a v a d i z e r q u e a v i d a c o m e ç a t o d o s os
dias.
— N o s s a r e s e r v a de esperança parece s e r inesgotável —
acrescento eu.
218 ERICO V E R Í S S I M O

Eugênio se separa de nós pouco antes de chegarmos ao


portão do cemitério:
— B o m . . . Eu a i n d a fico. A t é l o g o à n o i t e , F e r n a n d a .
Vou hoje à sua casa p a r a resolvermos aquele assunto do hos-
pital.
Afasta-se vagarosamente.
Acompanho-o por um m o m e n t o com os olhos e depois
digo:
— É curioso como u m a pessoa m o r t a pode exercer t a n t a
i n f l u ê n c i a na v i d a d u m h o m e m . . .
Noel:
— T a l v e z O l í v i a n ã o e s t e j a morta.
Fernanda toma-lhe do braço:
— E q u e m foi q u e d i s s e q u e ela e s t a v a ?
Clarissa se aproxima de mim como quem pede socorro
e abrigo. E s t á com os olhos vermelhos de t a n t o chorar.
E n t r a m o s no automóvel. Ficamos por alguns instantes
e m t r i s t o n h o silêncio. A o c a b o d e a l g u m t e m p o , j á e m c a m i -
nho da cidade, F e r n a n d a começa a c o n t a r h i s t ó r i a s sobre o
Dr. Seixas. Anedotas. Esquisitices. Manias. Coisas que antes
n o s p r o v o c a v a m g a r g a l h a d a s m a s q u e a g o r a a p e n a s n o s fa-
zem s o r r i r com certa melancolia.
— Que grande tipo!
— C o n h e c e a q u e l e c a s o d a m u l h e r q u e t i n h a u m lobinho
na cabeça? N ã o ? A h ! Ê ótima.
E lá v e m a h i s t ó r i a . E n q u a n t o os o u t r o s f a l a m , i m a g i n o
o D r . S e i x a s a c r u z a r as e s t r a d a s do céu, r e s m u n g a n d o , de
m a l e t a n a m ã o , a p e d i r f o g o à s e s t r e l a s p a r a a c e n d e r o ci-
g a r r o de palha que a garoa apagou.

5 de junho

Dez d a m a n h ã . M i s t u r o n a p a l h e t a d o i s t o n s d e azul p a r a
p i n t a r os o l h o s de R o b e r t a E r a s m o . I m ó v e l e r e p o u s a d a , o
b u s t o e r e t o , e l a e s t á p o s a n d o p a r a m i m , s e n t a d a n u m a ca-
deira de j a c a r a n d á de respaldo alto. T e m um belo sorriso
q u e l h e a c e n t u a os z i g o m a s e o o b l í q u o d o s o l h o s . N ã o foi
fácil o b t e r o t o m e x a t o d e s e u s cabelos, d u m c a s t a n h o e s c u r o
quase negro, com reflexos de cobre. Já estou pensando na
dificuldade que vou e n c o n t r a r quando quiser t r a z e r p a r a a
t e l a o m a r f i m p á l i d o d e s u a pele. T e m e s t a u m a q u e n t e pai-
SAGA 219

pitação de vida, u m a espécie de resplendor que v e m de den-


tro p a r a fora como se no interior do crânio dessa m u l h e r de
quase quarenta anos estivesse acesa u m a lâmpada. Se me pe-
dissem p a r a dar um nome ao quadro que estou pintando eu
não hesitaria um segundo: chamar-lhe-ia "Plenitude".
R o b e r t a a g i t a u m lenço b r a n c o .
— P e ç o p a z ! — diz ela.
L a r g o palheta e pincéis.
— A p a z foi a c e i t a s e m c o n d i ç õ e s .
— Um aperitivo?
— Nada mau.
Sinto-me b e m nesta sala de móveis escuros e rústicos,
de cujas paredes pendem cópias de Cézanne, Manet, Gaughin
e Degas. Lá está a "Olímpia" t o d a n u a em cima do divã,
com aquela detestável fita de veludo ao r e d o r do pescoço —
d e t a l h e q u e v a l e p o r u m r e t r a t o p s i c o l ó g i c o . E c o m o é deli-
cioso a q u e l e s e u g e s t o de p u d o r — a m ã o s o b r e o s e x o —
quando a única coisa v e r g o n h o s a que ela devia esconder é a
c a r a . . . Já na m i n h a segunda visita R o b e r t a dizia:
— Você já r e p a r o u nessa coisa curiosa que se pode cha-
m a r a "localização do p u d o r ? "
E s s a s palavras nos levaram a distâncias inesperadas nos
domínios da religião, do sexo e de conduta na vida. E s t a b e -
leceu-se a o s p o u c o s e n t r e n ó s u m a s u a v e e n a t u r a l c o n f i a n ç a
que nos permitia t r a t a r de assuntos delicados d u m ponto de
vista menos eufemístico e impessoal. E, levados pela onda
embaladora duma conversação tranqüila e rara, n u m ambien-
te agradável, avançamos ambos desprevenidos e quando des-
p e r t a m o s foi p a r a v e r q u e e s t á v a m o s a o p é d a f r o n t e i r a d e s s e
t e r r i t ó r i o q u a s e proibido onde h a b i t a m as n o s s a s convicções
íntimas sobre ética sexual. Houve pequena hesitação, entre-
olhamo-nos por alguns s e g u n d o s e, depois, com p u d o r do pu-
dor, s a l t a m o s ao mesmo t e m p o p a r a o outro lado com passo
decidido (e com que g r a ç a ela o f e z ! ) . E n t r a m o s n u m m u n d o
d e r e v e l a ç õ e s s u a v e e e s q u i s i t a m e n t e i n t o x i c a n t e s q u e n o s le-
v a r a m n u m a espécie de m a n s a embriaguez até os m u r o s da
cidade fechada, dentro da qual se a c h a m entesouradas as nos-
sas experiências sexuais efetivas, a lembrança das nossa'
ações s e c r e t a s — às vezes t ã o diferentes de nossas convicções
— os n o s s o s d e s e j o s r e c a l c a d o s e a m e m ó r i a d o s d e s e j o s s a -
tisfeitos. Parei diante desses muros com a certeza de que
não podia nem devia ir além. Sabia que Roberta não me viria
e n t r e g a r v o l u n t a r i a m e n t e a chave da cidade vedada, cujos
220 ERICO V E R Í S S I M O

segredos eu só conseguiria vislumbrar em rápidos vôos da


intuição.
A c r i a d a t r a z o s a p e r i t i v o s . D e p o i s q u e ela s e r e t i r a R o -
berta me diz:
— S a b e p o r q u e e s t i m o você, V a s c o ?
— N ã o faço a m e n o r i d é i a . . .
— P o r q u e é dos poucos h o m e n s que se a p r o x i m a r a m de
m i m e n ã o s e j u l g a r a m n a o b r i g a ç ã o d e m e l e v a r p a r a a ca-
ma . . .
A n t e s d e f a l a r t o m o u m b o m g o l e d e whisky. Ê e s q u i s i t o
ouvir essas palavras de u m a mulher treze anos mais velha
q u e eu e m ã e de u m a filha de v i n t e e de um filho de dezoito.
— E eu g o s t o de v o c ê — r e s p o n d o — p o r v á r i a s r a z õ e s
e t a m b é m porque você n ã o parece ofendida por eu não t e r
feito t e n t a t i v a s p a r a conquistá-la.
Desvio os olhos do r o s t o dela p a r a fixá-los no " R e t r a t o
do Dr. Gachet" de V a n Gogh. Lá e s t á o velho médico com
ar aborrecido, a face pousada na mão, a p e n s a r decerto nos
problemas da vida.
— N a t u r a l m e n t e você sabe que se c o n t a m a m e u respeito
as histórias mais fantásticas... Atribuem-me um a m a n t e . .
Sacudo a cabeça afirmativamente. Ela continua:
— Vocês homens em m a t é r i a de a m o r são muito engra-
çados. Dividem as mulheres em d u a s categorias: as honestas
e as prostitutas. N ã o admitem n u a n ç a s . . . Fica tão esquemá-
tico, t ã o elementar, t ã o t o l o . . . E, depois, t e n h o a impressão
de que quase todos vocês t r a z e m o sexo na cabeça.
— E as m u l h e r e s . . . o n d e o c a r r e g a m ?
— N ó s ? Em todo o corpo.
— E há v a n t a g e m n i s s o ? . . .
R o b e r t a sorri. Os zigomas crescem, e s p r e m e n d o os olhos,
que cintilam de malícia.
— Não será mais harmonioso?
F a ç o um gesto n e u t r o e, levado p o r esta v a g a de per-
g u n t a s a u d a c i o s a s que se v a i a pouco e pouco avolumando,
pergunto:
— E o s e u m a r i d o ? A t é o n d e a c r e d i t a ele n a s lendas a
seu r e s p e i t o ? . . . se é que as conhece.
Roberta t i r a um cigarro da cigarreira e começa a b a t e r
a p o n t a dele na g u a r d a da poltrona. E s t o u m u i t o esquecido
do pouco que sabia d a s boas m a n e i r a s sociais, de sorte que
deixo de s a l t a r p a r a oferecer-lhe o isqueiro aceso, como te-
ria feito qualquer mancebo galante.
SAGA 221

— Se o u v i u f a l a r a l g u m a c o i s a — r e s p o n d e e l a — n ã o
deixa perceber isso. Talvez não t e n h a t e m p o p a r a cuidar des-
ses assuntos. Vive d e m a s i a d a m e n t e ocupado com os negócios
da c o m p a n h i a de petróleo e n a s h o r a s de folga anda a t r á s
das caixeirinhas do Sloper ou e n t ã o vai p a r a as casas de c h á
ou p a r a a arcada da Galeria Chaves flertar com essas me-
n i n a s d e v i n t e a n o s q u e t ê m u m f r a c o p e l o s c a v a l h e i r o s cin-
qüentões com cabelos grisalhos n a s frontes. . .
— Tenho outra teoria.
— Q u a l é?
— Ele sabe e finge n ã o saber. U m a vez que t u d o se m a n -
t é m d e n t r o de limites m a i s ou menos discretos. . . p a r a que
fazer b a r u l h o ? Nele o comodismo e a ambição parecem do-
minar-lhe o a m o r - p r ó p r i o de h o m e m . E, depois, sente orgulho
da esposa. É-lhe agradável a idéia de ser apontado como
marido de u m a mulher a d m i r a d a e cobiçada.
R o b e r t a franze a testa, séria. Seu olhar p o r um instante
é inescrutável. C o m o lhe fica b e m e s t a e x p r e s s ã o !
— M a s v o c ê e s t á f a l a n d o c o m o se houvesse mesmo um
amante...
— E não h á ?
F i t o os olhos intensamente no rosto dela procurando os
efeitos de m i n h a s p a l a v r a s . Vejo a fisionomia s e r e n a e m a -
d u r a de alguém seguro de si mesmo e dos outros.
— Q u e é que você p e n s a ?
Encolho os ombros.
— Penso que não há razão para que não h a j a . . .
— E por quê?
— P o r q u e você é bonita, t e m um corpo que suponho
cheio de desejos e p a r e c e n ã o t e r e n c o n t r a d o no c a s a m e n t o
a felicidade que e s p e r a v a . . . e merecia.
— Lírico?
— N ã o . Cínico.
— E a p e s a r de t e r idéias como essa vai se c a s a r ?
— Acontece que não tenho idéias padronizadas e essas
n ã o s ã o p r o p r i a m e n t e o s minhas idéias. Na m i n h a opinião
c a d a p e s s o a t e m a s u a r e a l i d a d e . A s u a é . . . e s s a . A d e Cla-
rissa, p o r exemplo, já é diferente. Todos nós somos ao mesmo
tempo muito parecidos e muito diferentes u n s dos outros. Na
Catalunha encontrei um velho que gostava apaixonadamente
de comer caracóis. Eu compreendo e justifico esse gosto den-
t r o da realidade daquele catalão, m a s n e m p o r isso me sinto
inclinado a comer caracóis.
222 ERICO V E R Í S S I M O

R o b e r t a s o r r i , e r g u e u m p o u c o a c a b e ç a e s o l t a u m a leve
baforada para o teto.
— S e x o e c a r a c ó i s da C a t a l u n h a . V o c ê é i m p a g á v e l . F i -
q u e c e r t o d e q u e e u a c h o u m a delícia e n c o n t r a r d e v e z e m
quando u m a pessoa com as suas idéias.
— E m o n t a d o s n u m caracol lá v a m o s nós fugindo do
assunto. A sorte é que as lesmas se a r r a s t a m muito devagar.
— Faço u m a pausa intencional. — E n t ã o . . . quer a t a c a r os
f u g i t i v o s e o b r i g á - l o s a v o l t a r ao a s s u n t o ?
— P o r q u e n ã o ? S e a l g u é m f u g i u foi v o c ê . E s t o u o n d e
estava. Como é que você explica o seu c a s a m e n t o b u r g u ê s
à luz d e s s a s i d é i a s c í n i c a s e m t o r n o d o q u e v o c ê c h a m a a
minha "realidade?"
— Ê que não acredito n u m a solução única, n u m a salva-
ção em m a s s a m a s sim em soluções e salvações individuais.
— E q u e m foi q u e l h e d i s s e q u e n o c a s a m e n t o n ã o e n -
contrei a felicidade que e s p e r a v a ?
— D e s c o b r i . T e n h o o c o m p l e x o de S h e r l o c k H o l m e s .
— D e d u ç ã o ou i n d u ç ã o ?
— Ambas.
— Pensei que Sherlock Holmes só se interessava em
crimes.
— Mas há c r i m e . . . E s t r a n g u l a m e n t o de desejos, dilace-
r a m e n t o de ideais, u m a espécie m u i t o sutil de infanticídio:
sonhos que são asfixiados antes mesmo de nascer.
— Você é romântico.
— N ã o nego, m a s isso n ã o altera a situação.
— S e n h o r detetive, p r e c i s o d e u m o u t r o detetive p a r a
decifrar os seus enigmas.
— Q u e r que eu fale c l a r o ?
— N ã o lhe peço o u t r a coisa. Diga a que conclusão che-
gou a meu respeito. E s t o u curiosíssima.
E de repente eu t e n h o consciência duma situação singu-
lar em que a f r a n q u e z a chegou p a r a d o x a l m e n t e a n t e s da fa-
miliaridade.
— Talvez seja melhor não falar.
— A g o r a é t a r d e . V o c ê já m e t e u o o m b r o na p o r t a . . .
fica feio d e s i s t i r , n ã o a c h a ? E d e r e s t o . . . n ã o s o m o s a m i g o s ?
— F a l t a - m e saber se depois disto continuaremos amigos
como antes.
— T a l v e z m a i s . A s l i m i t a ç õ e s d a h i p o c r i s i a e d a s con-
venções sociais me causam irritação. Se as pessoas pudessem
ser sinceras ao menos aos s á b a d o s . . .
SAGA 223

U m a pausa breve.
— E s t á bem, — concluo. — Você, o seu m a r i d o , a N o r m a
e o A n t o n i u s f o r m a m o q u e eu c h a m o de " q u a r t e t o d o s d e -
sencontros". C a d a qual toca a sua música p a r a seu lado, n u m a
espécie de a u t a r q u i a espiritual. N ã o são u m a família no sen-
tido patriarcal, m o r a m apenas na m e s m a casa e u s a m o mes-
mo nome. Estou exagerando?
R o b e r t a a m a s s a a p o n t a d o c i g a r r o n o cinzeiro, a p e r -
t a n d o os olhos à fumaça que lhe sobe espiralada p a r a o rosto.
— Continue.
— A n e n h u m a d a s d u a s p a r t e s convém o divórcio, mes-
mo porque não se aborrecem nem se odeiam suficientemente
p a r a isso. Há a i n d a o p r o b l e m a dos filhos. D e p o i s . . . o Dr.
Aldo t e m e que a situação de divorciado lhe prejudique a bela
c a r r e i r a social e financeira. No fundo, ainda não dominou
as a m b i ç õ e s e e s p e r a n ç a s p o l í t i c a s . A l é m do m a i s , ele a r e s -
peita e admira. Você não o respeita, não o a d m i r a n e m o
ama...
R o b e r t a me olha com olhos vagos por um instante.
— Q u a n t o à N o r m a . . . Bom, você deu a ela t u d o que
provavelmente n ã o lhe d e r a m q u a n d o você t i n h a a idade
d e s s a m e n i n a . A c o n s c i ê n c i a de s e u c o r p o , a l i b e r d a d e de
idéias e de movimentos. E l a lê os livros que deseja, t e m as
a m i g a s e os a m i g o s q u e e s c o l h e e v o c ê p o r p r i n c í p i o e s e u
m a r i d o p o r c o m o d i s m o n ã o i n t e r f e r e m n a v i d a dela. P o r
que é que está sorrindo?
— N a d a . Ê que eu n u n c a imaginei que os E r a s m o es-
tivessem sendo objeto de t ã o cuidadosa análise.
— V o c ê me f o r ç o u a f a l a r . . .
— Continue. Estou gostando.
— Ainda há mais. N o r m a tem ciúme da mãe.
— Ciúme?
— Ê que quando a m b a s saem j u n t a s os homens olham
de preferência p a r a você.
R o b e r t a se ergue, aproxima-se do cavalete, contempla
o seu retrato incompleto e m u r m u r a :
— Pode ir f a l a n d o . . .
— Antonius... bom... o rapaz...
E l a se volta para mim,
— Q u e é que há com ele?
Hesito.
— D e v o q u e b r a r o s i g i l o do c o n f e s s i o n á r i o ?
— N ã o acredito que o A n t o n i u s se t e n h a confessado.
224 ERICO V E R Í S S I M O

— Você s a b e . . . N ó s c o n v e r s a m o s às vezes.
— E ele lhe disse a l g u m a coisa. . . a m e u respeito?
— N a d a de m u i t o s é r i o . . . Confessou a p e n a s q u e fica de
c e r t o m o d o o f e n d i d o q u a n d o e n c o n t r a o q u e ele c h a m a d e
" O team d e e u n u c o s d a m a m ã e " . D i s s e i s s o c o m u m a c e r t a
ironia entre a m a r g a e esportiva. Referia-se à sua e s c o l t a . . .
— Que escolta?
— Esses rapazinhos espigados e vagamente homosse-
x u a i s q u e a c e r c a m , q u e a a c o m p a n h a m a o t e a t r o o u à s ca-
s a s de chá, que lhe dizem galanteios, que lhe elogiam os ves-
tidos, lhe t r a z e m livros de A n d r é Gide, c o m e n t a m p i n t u r a s
de Matisse e recitam versos surrealistas em francês.
R o b e r t a t o r n a a sentar-se. Desconfio que me estou por-
t a n d o r u d e m e n t e c o m ela. Q u a n t o s a n t e p a s s a d o s c a m p o n e s e s
serão responsáveis por este m e u gesto de f r a n q u e z a ? Seja
c o m o for, n ã o m e a r r e p e n d o , e , j á q u e c o m e c e i , s ó m e r e s t a
uma alternativa — continuar.
— Que é que Antonius lhe disse deles?
— Parece que já ouviu alguém comentar maliciosamen-
te a história e teve de b r i g a r . . . Ouviu decerto entre os
a m i g o s d o clube a l g u m c o m e n t á r i o m a l i c i o s o . V o c ê c o m p r e -
ende. Ele é esportivo, campeão de n a t a ç ã o . U s a cabelo à m o -
da dos oficiais p r u s s i a n o s e t e m o delírio da velocidade. Vai
às a u l a s de catch e u s a e a b u s a do a d j e t i v o macho. N ã o p o d e
compreender nem aceitar os seus amiguinhos.
— Mais um aperitivo?
— Não, muito obrigado.
U m a p a u s a . O D r . G a c h e t c o n t i n u a a b o r r e c i d o : a s lou-
curas de Vincent V a n G o g h lhe d ã o que pensar.
— C o n c l u s õ e s . . . — pede Roberta.
— Uma moral para a fábula?
— Se t e m a l g u m a , q u e r o o u v i r . . .
— V á l á ! S e e m vez d e A l d o E r a s m o s e t i v e s s e a p r e -
sentado aos seus dezesseis anos um h o m e m com o u t r a s qua-
lidades de alma e i n t e l e c t o . . . hoje t u d o seria diferente.
— Diferente em que s e n t i d o ?
— No sentido h u m a n o . H a v e r i a nesta- casa m a i s calor.
E v o c ê s e r i a feliz, a o p a s s o q u e a g o r a e s t e q u a r t e t o d o s de-
sencontros t e m apenas um valor literário. Mas de literatura
falsa, d e s s a a o s a b o r d o s s e u s m o c i n h o s e s p i g a d o s q u e a m a m
o s u r r e a l i s m o e o a d j e t i v o exquise.
— De s o r t e que você a c h a falsa a nossa s i t u a ç ã o .
— Falsíssima.
SAGA 225

Roberta me contempla com expressão enigmática. E,


como se tivesse ficado t o d o o t e m p o a f a l a r n u m a espécie de
estado sonambúlico, desperto. .. Um grande embaraço se
apodera de mim. É a sensação de q u e m e n t r o u com coturnos
de ferro n u m a casa de bonecas e s m a g a n d o seres delicados e
violando intimidades. Só a g o r a avalio a que profundidades de
i n d i s c r i ç ã o d e s c i e a q u e e m b r i a g u e z n o s p o d e l e v a r a volú-
pia da franqueza.
Olho o relógio.
— U p a ! Quase m e i o - d i a . . . — Levanto-me e começo a
a r r u m a r as m i n h a s coisas. — Acho que hoje não temos mais
tempo para continuar o t r a b a l h o . . .
R o b e r t a t a m b é m se e r g u e . C a m i n h a m o s p a r a o hall. À
saída lhe digo:
— Quero que me desculpe.
E l a me envolve com um tépido o l h a r azul.
— Desculpar por quê?
— P o r q u e fui i n d e l i c a d o .
— Q u a l ! O q u e v o c ê fez foi a p e n a s b r i n c a r u m p o u c o
de Sherlock Holmes. Fique certo de que achei divertido.
N ã o vejo a m e n o r s o m b r a de r e s s e n t i m e n t o neste belo
rosto sazonado.
— A c h a e n t ã o que n ã o desvendei o mistério?
— N ã o há nenhum mistério.
— Quero d i z e r . . . n ã o andei na pista c e r t a ?
Roberta E r a s m o encolhe os ombros.
— Quem é que sabe a verdade das criaturas e das coisas?
T e n h o de repente um a b s u r d o e comovente desejo de
beijá-la. Um beijo de t e r n u r a e de a r r e p e n d i m e n t o , de g r a -
tidão e (por que n ã o confessar?) de suave desejo. Mas u m a
e s t r a n h a sensação de respeitosa inferioridade me tolhe. Na-
d a m a i s f a ç o d o q u e a p e r t a r r a p i d a m e n t e a m ã o q u e ela m e
estende.
6
16 de junho

Oito da noite. Descemos do bonde à frente da casa de


F e r n a n d a e Noel. No j a r d i m as m u r t a s umedecidas de sereno
d e s p r e n d e m u m c h e i r o a d o c i c a d o e a g r a d á v e l . F a z f r i o e Cla-
rissa, m u i t o j u n t o de m i m enfiou a m b a s as m ã o s n u m dos
bolsos de meu sobretudo. E n t r a m o s sem bater. No vestíbulo
ouvimos vozes e x a l t a d a s que v ê m do r e d u t o dos B r a g a . P a -
ramos um instante.
Ernestides: — . . . não queres me levar ao cinema, não
é? Tu vais te meter com a t u a v a g a b u n d a . . . pensas que eu
não sei? Pois sim, cheiroso. .. N ã o sou cega.
P e d r i n h o : — C a l a a b o c a , n ã o me a m o l a .
— O que tu merecias era um bom p a r de g u a m p a s . . .
— Pois experimenta, engraçadinha. Experimenta s ó . . .
M u r m u r o p a r a Clarissa, que está de respiração suspensa
e olhos p a r a d o s :
— Que casal d i s t i n t o . . .
— Psiu!
E r n e s t i d e s g r i t a qualquer coisa que não consigo ouvir e
e m s e g u i d a a voz d e P e d r i n h o eleva-se s o b r e a d a m u l h e r :
— O l h a s ó q u e m q u e r f a l a r ! T u v i v e s n a r u a e n o s ci-
n e m a s e n e m te i m p o r t a s com a t u a f i l h a . . . Se não fosse
a v e l h a A d é l i a ela a n d a v a p o r a í s u j a c o m o u m a p o r q u i n h a .
— A f i l h a é t a n t o m i n h a c o m o t u a , f i c a tu s a b e n d o .
— O r a . . . vá p a r a . . .
E s o l t a u m p a l a v r ã o . C l a r i s s a fica d e r e p e n t e m u i t o v e r -
melha e começa a me p u x a r pela m a n g a .
— É a t u a mãe, ouviste? — berra Ernestides.
C o m e ç a m o s a s u b i r a e s c a d a . A p o r t a d o s B r a g a se
abre e Pedrinho aparece.
— U é . . . v o c ê s e s t a v a m aí ? — p e r g u n t a e l e .
Paramos:
— Boa noite, — c u m p r i m e n t a Clarissa. P o r puro emba-
raço, muito contrafeita, p e r g u n t a : — Como vais, P e d r i n h o ?
— Vai-se indo. . . como vocês v ê e m . . .
228 ERICO VERÍSSIMO

P e d r i n h o é um r a p a z de v i n t e e d o i s a n o s , a l t o e e s b e l t o .
Veste-se com u m a elegância um pouco s u b u r b a n a O bigode
fino e e s c u r o , o r o s t o m o r e n o de g r a n d e s o l h o s c a s t a n h o s e
os cabelos m u i t o crespos lhe dão um ar de galã de filme ar-
gentino.
A p a n h a o c h a p é u no c a b i d e e f i c a a a j e i t á - l o na c a b e ç a ,
diante do espelho, fazendo m u i t o s trejeitos com a boca.
Subimos mais alguns degraus. Vestindo a gabardine, a
cabeça erguida p a r a nós, P e d r i n h o g r i t a :
— C a s e - s e , V a s c o , p a r a v e r c o m q u a n t o s p a u s s e faz
u m a canoa.
Cá em cima v a m o s e n c o n t r a r Noel lendo e F e r n a n d a
e x a m i n a n d o u n s papéis. Na vitrola, um disco de Mozart em
surdina.
— A s s i s t i m o s ao fim d u m p u g i l a t o . . . — digo fazendo
um sinal p a r a baixo.
F e r n a n d a se ergue p a r a beijar Clarissa, e Noel fecha o
livro com u m a r u g a de c o n t r a r i e d a d e na testa.
— É s e m p r e a s s i m . . . — diz ela, ao me a p e r t a r a m ã o .
S e n t a m o - n o s . A luz a q u i é s u a v e : u m q u e b r a - l u z j u n t o
da poltrona de Noel, p e r t o do fonógrafo, e outra lâmpada
velada em cima da mesa de Fernanda.
— E como é que você vai resolver esse problema? —
indago.
Fernanda dá de ombros.
— É a d i f i c u l d a d e m a i s t o l a e s e m g r a ç a de t o d a s as
que eu t e n h o no m o m e n t o . A i n d a n ã o achei solução. Talvez
não tenha.
F i c a m o s um i n s t a n t e a e s c u t a r a música.
— Mozart t a m b é m teve dificuldades tolas e sem g r a ç a . ..
— digo.
Saltamos de Mozart p a r a Gedeão Belém e Almiro Cam-
bará. Dentro de alguns instantes estou contando histórias
d a s t r i n c h e i r a s . Do E b r o pulamos p a r a o a s s u n t o Mussolini-
Hitler. E a " S o n a t a dos A d e u s e s " de Beethoven f o r m a a g o r a
um fundo musical p a r a as nossas palavras.
P e r t o das nove h o r a s Dejanira, filha de Modesto Braga,
sobe p a r a nos dizer que "o papai m a n d o u pedir p a r a todos
d e s c e r e m , q u e a M o d e s t i n a v a i c a n t a r n o r á d i o d a q u i a pou-
quinho". É u m a r a p a r i g a de dezoito anos, r o b u s t a e b e m feita
de corpo. Tem no rosto essa estupidez corada e fornida de
carnes que vêm d u m excesso de saúde animal e d u m a ausên-
cia a b s o l u t a d e p r o b l e m a s m o r a i s .
SAGA 229

Q u a n d o ela s e r e t i r a Noel lança p a r a F e r n a n d a u m o l h a r


de súplica.
— S e r á que t e m o s de descer m e s m o ? Já que n ã o há ou-
t r o r e m é d i o . . . n ã o p o d í a m o s o u v i r e s s a m e n i n a a q u i e m ci-
ma, no nosso rádio?
— N ã o a d i a n t a — r e s p o n d e F e r n a n d a — p o r q u e os p a i s
fazem q u e s t ã o é de v e r a n o s s a c a r a e n q u a n t o a m e n i n a es-
t i v e r cantando. Se nós não descermos eles sobem. P r e c i s a m o s
aceitar o convite p a r a evitar a invasão dos bárbaros.
Noel a t i r a o livro em cima da mesa, agoniado. Tenho
piedade dele e d i g o :
— O Noel pode ficar. Eu digo q u e ele e s t á indisposto.
— G r a n d e idéia! F a ç a isso, Vasco, p o r favor.
Descemos. No caminho vou dizendo:
— N ã o há de ser pior que um ataque aéreo com bombas
de quinhentos q u i l o s . . .
— A gente nunca s a b e . . . — m u r m u r a Fernanda.
E, sorridentes e atenciosos, como convém às pessoas que
s e p r e z a m d e t e r b o a e d u c a ç ã o , e n t r a m o s n o a r r a i a l d e Mo-
desto Braga.

R e t r a t o d u m a família d a classe m é d i a inferior. N ã o b a s -


ta u m a tela, t i n t a e pincéis. N e m m e s m o u m a boa objetiva
fotográfica. Eu quisera u m a c â m a r a cinematográfica que pu-
desse a p a n h a r esta gente em plena atividade, que seguisse os
m o v i m e n t p s d e c a d a m e m b r o d a clã, q u e o a c o m p a n h a s s e p o r
todas as peças da c a s a . . . O ideal seria u m a c â m a r a mágica
que lhes pudesse f o t o g r a f a r os p e n s a m e n t o s m a i s íntimos.
Os móveis são os do estilo conhecido. É claro que não
falta a cadeira de balanço, nem um almofadão de cetim com
a E s f i n g e e as p i r â m i d e s p i n t a d a s a óleo, n e m g u a r d a n a p o s
de croché. Em cima da mesinha redonda vermelhejam rosas
de papel, meio embaciadas de poeira.
A f a m í l i a B r a g a se c o m p õ e de M o d e s t o , o c h e f e , de D.
Adélia, a mulher, e d a s f i l h a s : E r n e s t i d e s , Dejanira e Mo-
destina, a caçula. V a m o s e n c o n t r a r Dejanira sentada no sofá
da sala, m u i t o a g a r r a d a ao noivo, q u e é s a r g e n t o do exército
e u s a óculos, cabelos ondulados e costeletas. O que vejo n u m
relance indiscreto, ao p a s s a r pela p o r t a da sala de visitas, é
um estranho m o n s t r o de duas cabeças coladas u m a na o u t r a
e um e m a r a n h a m e n t o de m e i a s de seda e p e r n e i r a s , veludo
e b r i m oliva, d e n t e s de o u r o , d i v i s a s e b a l a n g a n d ã s .
E r n e s t i d e s n o s r e c e b e c o m frieza, C o n t a r a m - m e q u e on-
230 ERICO V E R Í S S I M O

t e m ou anteontem teve uma discussão com Fernanda em tor-


no de a s s u n t o s d o m é s t i c o s e c o n d u t a i n d i v i d u a l . A c o i s a t e r -
minou com o clássico: "Você não t e m n a d a com a m i n h a
vida, o u v i u ? "
S e n t o - m e ao l a d o de C l a r i s s a e o l h o a c e n a . M o d e s t o ,
um h o m e m b a i x o e e n c u r v a d o , c a l v o e de p i n c e - n e z — e s t á
j u n t o d o r á d i o " m a n o b r a n d o o a p a r e l h o " , c o m o ele m e s m o
diz n u m a t e n t a t i v a d e h u m o r i s m o .
— É na R á d i o C o n t i n e n t a l q u e a M o d e s t i n a v a i c a n t a r
— e x p l i c a ele c o m s u a voz a f l a u t a d a . — M a n d e i ela c o m as
m e n i n a s do s e u A l c í b i o , p o r q u e eu e a A d é l i a g o s t a m o s m a i s
de ouvir de casa.
D. Adélia, paquidérmica no t a m a n h o e na pachorra, acha-
se escarrapachada n u m a cadeira, junto da mesa, e lança para
nós um olhar de simpatia por cima de seus vastos seios, que
sobem e descem n u m compasso lento, farto e m a t r i a r c a l .
P l a n t a d a na cadeira de balanço ( m a s sem se balançar)
D. Eudóxia, que foi obrigada a descer antes de nós, m a n -
t é m - s e n u m m u t i s m o e n u m a s e r i e d a d e de t r a g é d i a . E o s e u
silêncio e a s u a c a r r a n c a s ã o o ú n i c o p r o t e s t o q u e ela l a n ç a
contra os Braga.
E r n e s t i d e s folheia r e v i s t a s com u m a indiferença u m t a n -
to nervosa. É u m a r a p a r i g a esgalgada, de r o s t o m i ú d o e pin-
tado com exagero. T e m esse bonitinho adocicado e comum
q u e é p e c u l i a r à s m o c i n h a s q u e g a n h a m c o n c u r s o s d e beleza
n a s vesperais dos cinemas de arrabalde.
Modesto B r a g a consulta o relógio e diz:
— F a l t a m s ó dez m i n u t o s . É n o p r o g r a m a d o X a r o p e
Bronquialívio.
E r g u e - s e e c a m i n h a p a r a m i m com um n ú m e r o do "Cor-
reio do P o v o " n u m a das mãos.
— Seu Vasco, vou lhe m o s t r a r u m a c a r t a que escrevi
p a r a as "Queixas". Saiu hoje. N ã o leu?
— Não, senhor.
— A q u i e s t á . É a s e g u n d a c o l u n a . S o b r e os b o n d e s da
Carris.
T o m o do j o r n a l com a a l m a em agonia e passo os olhos
pela coluna indicada. B r a g a julga que estou lendo, m a s na
verdade estou vendo apenas os meus pensamentos.
P o b r e s e m e l a n c ó l i c o s , o s p r o b l e m a s d e u m a f a m í l i a co-
mo esta. P a s s a m os dias com seus desejos, ansiedades e sus-
t o s concentrados no fim do mês. P r o b l e m a s : p a g a r as contas
p r i n c i p a i s , v e s t i r a f a m í l i a , i n v e n t a r d e s c u l p a s p a r a o s cre-
SAGA 231

dores impacientes, c a s a r as filhas. Além desses, há ainda a


necessidade de satisfazer os pequenos desejos, a l i m e n t a r ine-
lutáveis vaidades, t e r a esperança na sorte grande. A m u l h e r
se preocupa com o tricô, com fazer doces, r e m e n d a r as m e i a s
do marido, cuidar da a r r u m a ç ã o da casa. O m a r i d o por sua
vez decifra p a l a v r a s cruzadas n a s h o r a s v a g a s , dá palpite
sobre as c o r r i d a s no p r a d o ou sobre a política, vive a e s p e r a r
d u r a n t e a s e m a n a o almoço melhorado dos domingos e du-
r a n t e os a n o s , a a p o s e n t a d o r i a e u m a v e l h i c e t r a n q ü i l a —
v e n c i m e n t o s r a z o á v e i s , os filhos c a s a d o s , o d e s c a n s o , a p a z . . .
M o d e s t o e a m u l h e r e n c o r a j a r a m o n a m o r o de P e d r i n h o
com Ernestides, pouco lhes i m p o r t a n d o que o r a p a z tivesse
apenas dezoito anos e um emprego abaixo de medíocre. Ele
vinha conversar com a namorada à janela: fizeram-no entrar
p a r a que a brincadeira tomasse um c a r á t e r sério de compro-
misso. Consciente ou inconscientemente prepararam-lhe u m a
a r m a d i l h a t e m p e r a d a c o m c a f e z i n h o s , d o c e s d e coco e i n d i r e -
t a s . D a v a m ao p a r t o d a a liberdade. Pedrinho e Ernestides,
com essa sensualidade fogosa e t r e p i d a n t e da adolescência,
m u i t o cheia de pruridos frenéticos e de curiosidades formi-
g a n t e s , e n t r e g a v a m - s e a t o d a s as espécies de m a s t u r b a ç õ e s a
dois na p e n u m b r a dos cinemas ou da sala de visitas da casa
dos B r a g a , onde um quebra-luz de c e t i m azul a m a c i a v a a
claridade da lâmpada de cem velas, n u m a cumplicidade ao
mesmo tempo romântica e safada. Houve um momento em
que a sofreguidão dos jovens não se satisfez m a i s com os
prazeres de superfície e, n u m a fúria, procurou os de profun-
d i d a d e . C a s a r a m - s e à s p r e s s a s . N o n o n o m ê s n a s c e u a filha.
Deram-lhe o nome de Shirley Teresinha, contentando desse
m o d o o c i n e m i s m o da m ã e , e o c a t o l i c i s m o de u m a d a s a v ó s .
M o d e s t o B r a g a foi u m d i a a p o s e n t a d o c o m p u l s o r i a m e n t e
e ficou c o m v e n c i m e n t o s r e d u z i d í s s i m o s . C o m o p o d i a s u s t e n -
t a r a família com t r e z e n t o s e cinqüenta mil r é i s - m e n s a i s ?
Pedrinho por seu lado t a m b é m ganhava p o u c o . . . E r a u m a
s i t u a ç ã o difícil. M a s a m o r t e d e H o n o r a t o M a d e i r a v e i o r e -
solver o problema. E aqui está t o d a a família B r a g a sob a
t u t e l a (pelo m e n o s econômica) de F e r n a n d a , que ao bando
dá c a s a e c o m i d a e a P e d r i n h o um o r d e n a d o q u e s e u t r a b a l h o
n ã o vale.
Dobro o jornal. Clarissa m u r m u r a :
— Aposto como não l e s t e . . .
— Fica firme.
Modesto a v a n ç a p a r a m i m , com os óculos a fuzilar.
232 ERICO V E R Í S S I M O

— E n t ã o . . . g o s t o u ? N ã o acha que é isso m e s m o ? A


gente anda como sardinha em lata nesses bondes da Carris.
O público t e m direito de ser bem t r a t a d o . P a g a m o s ou não
p a g a m o s a nossa p a s s a g e m ? Esses americanos, seu Vasco, es-
ses a m e r i c a n o s ! . . .
O u v e - s e a v o z do speaker:
— V a m o s a g o r a a p r e s e n t a r aos nossos ouvintes a "Peque-
na Prodígio". — E, com u m a ênfase pernóstica, destacando
b e m as sílabas: Mo-des-ti-na Bra-ga, n u m p r o g r a m a do Xa-
rope Bronquialívio, o melhor remédio contra a tosse. Preza-
dos ouvintes, n ã o se e s q u e ç a m : Quando R o m e u subiu ao
balcão de sua a m a d a n u m a noite de inverno e apanhou tre-
mendo resfriado, teve suas declarações de a m o r interrompi-
d a s v á r i a s vezes por um acesso de tosse. E a bela Julieta
l h e m u r m u r o u a o o u v i d o : "Meu a m o r , p o r q u e n ã o t o m a s
B r o n q u i a l í v i o ? " — C o m voz m a i s f o r t e e g l o r i o s a c o n c l u i :
— Bronquialívio, o remédio que podia merecer um poema de
Shakespeare!
Ouve-se no fundo a o r q u e s t r a t o c a r em surdina u m a val-
sa l e n t a . De n o v o o speaker, em t o m d i a l o g a l :
— M o d e s t i n a , você n ã o q u e r d i z e r a l g u m a c o i s a a o s s e u s
ouvintes?
— C u m p r i m e n t o os m e u s queridos fãs. P a r a papai e ma-
mãe que estão me ouvindo, m a n d o beijinhos.
Modesto B r a g a nos lança um olhar de orgulho e seu ros-
to se abre n u m sorriso de dentes postiços. D. Adélia sorri
sonolenta por cima dos úberes. Dejanira e o sargento surgem
à porta, de m ã o s dadas.
De novo o speaker:
— Diga aos nossos ouvintes, Modestina, que é que você
vai cantar.
— V o u c a n t a r o s a m b a " N o i t e de O r g i a " . — E n u m d e n -
g u e : — Sapeca, m a e s t r o !
A o r q u e s t r a r o m p e . E a voz de M o d e s t i n a flui do a l t o -
falante e se e s p r a i a na sala, amplificada, quente, pretensiosa
e adulta:
Ai, ai, meu bem
Requebra
Rebola
Me quebra
Me aperta
Ai que bola!
Ai, ai, meu bem...
SAGA 233

Modestina t e m dez a n o s e um p a r de olhos g r a ú d o s e


maliciosos. U s a ainda carpins e vestidinho curto, m a s quem
n ã o a conhece é incapaz de i m a g i n a r que é da boca de u m a
c r i a n ç a q u e sai essa voz safada, erótica, que às vezes se que-
b r a s i n c o p a d a n u m t r e m o r d e a g o n i a e d e gozo, a i n s i n u a r
espasmos e sensações lúbricas. Porque a menina c a n t a como
u m a m u l h e r z i n h a d e p r a v a d a , n ã o p o r q u e conheça a m a l d a d e
e o vício, m a s p o r q u e a s o u t r a s , a s m u l a t a s d o m o r r o , a s e s -
t r e l a s d e r á d i o q u e e l a o u v e c o m delícia, c a n t a m a s s i m , e
p o r q u e p a p a i e m a m ã e q u e r e m q u e ela s e j a a " A r a c y d e A l -
meida dos P a m p a s " . Modestina t e m dez anos. Aos treze es-
t a r á u m a m u l h e r feita. N ã o t e r á adolescência como não teve
infância. As letras dos s a m b a s canalhas aos poucos lhe tira-
r ã o a virgindade espiritual. A l g u m cantor de valsas depois
s e e n c a r r e g a r á d o r e s t o . M a s , s e j a c o m o for, o o r g u l h o p a -
terno estará satisfeito, o r e t r a t o da Pequena Prodígio apa-
recerá nos jornais e n a s revistas, despertando a inveja dos
outros pais n e s t a curiosa época de delírio shirley-templista.
T e r m i n a o samba. P a l m a s no estúdio.
— G o s t a r a m ? — pergunta Modesto Braga, olhando para
nós.
Que remédio senão sacudir a cabeça afirmativamente?
Quando Modestina a t a c a o segundo número de seu pro-
g r a m a , ouve-se no q u a r t o contíguo um choro de criança.
— É a Shirley Teresinha — m u r m u r a Clarissa.
O c h o r o a u m e n t a d e i n t e n s i d a d e . M o d e s t o B r a g a , con-
t r a r i a d o , v o l t a - s e p a r a E r n e s t i d e s e o l h a - a p o r c i m a d o s ócu-
los.
— Vá v e r o q u e é q u e a c r i a n ç a t e m . . .
— É m a n h a , p a p a i — r e s p o n d e E r n e s t i d e s , de má v o n -
tade.
E como ela n ã o faz o m e n o r m o v i m e n t o , D. Adélia se
ergue, gemendo, e sai a c a m i n h a r p e s a d a m e n t e na direção
do quarto da neta.
A e s t a h o r a — penso — P e d r i n h o está na casa da a m a n -
te, a quem deve d a r a melhor p a r t e de seu ordenado. E r n e s -
t i d e s pensa decerto em Manoel, com q u e m provavelmente
marcou um encontro no cinema: daí a sua irritação por t e r
f i c a d o e m c a s a . D . E u d ó x i a o d e i a o s B r a g a n o s q u a i s v ê in-
t r u s o s , e x p l o r a d o r e s s e m e s c r ú p u l o s que, n ã o c o n t e n t e s d e
t e r e m fisgado Pedrinho, vêm ainda viver nesta casa à custa
d e F e r n a n d a . L á e m c i m a ficou N o e l c o m o s s e u s s o n h o s .
Mundo doido! Como podem viver debaixo do mesmo telhado
234 ERICO VERÍSSIMO

t a n t a s a l m a s diferentes, t a n t o s d e s e j o s d e s e n c o n t r a d o s ? Com-
paremos, por e x e m p l o , os ideais de F e r n a n d a c o m os de Mo-
desto B r a g a , o s d e P e d r i n h o c o m o s d e Noel, o s d e E r n e s t i -
des c o m o s d e sua própria m ã e . N ã o h á conciliação possível.
N o e l quer o u v i r D e b u s s y o u Chopin, a o p a s s o q u e Modesto
B r a g a t e l e f o n a a v i d a m e n t e p a r a a s e s t a ç õ e s d e rádio, pedindo
q u e t r a n s m i t a m na hora do ouvinte, "O Ébrio", de V i c e n t e
Celestino. Que e s t r a n h o s e n t i m e n t o d e d e v e r m o v e r á F e r n a n -
da, obrigando-a a ficar aqui a s a t i s f a z e r as v a i d a d e s da f a -
mília B r a g a ? P o r que m a n t e r unida u m a t r i b o t ã o desigual
e d e s o r d e n a d a ? P e d r i n h o não a m a E r n e s t i d e s . E r n e s t i d e s n ã o
a m a Pedrinho. F e r n a n d a a m a o i r m ã o m a s n ã o e s t i m a a
cunhada e m u i t o m e n o s a família da cunhada. No e n t a n t o ,
no s e u incompreensível s a l v a c i o n i s m o , reúne-os t o d o s à sua
s o m b r a protetora.
N o e l n ã o e n t e n d e D. E u d ó x i a e a s o g r a por s u a v e z n ã o
e n t e n d e o genro. N o fundo t a l v e z s e d e t e s t e m s e m m e s m o
t e r e m d i s s o consciência nítida. F e r n a n d a merecia outro m a -
rido. E por f a l a r nisso, o u t r a mãe. N i n g u é m se e n t e n d e e
t o d o s c o n t i n u a m a m o r a r na m e s m a casa.
É a vida. N ã o serei eu q u e m a vá mudar. Refiro-me à
vida d o s outros. M a s . . . e q u a n t o à m i n h a ? Terei achado o
m e u r u m o ? Cavado o m e u n i c h o no u n i v e r s o — um n i c h o
em que eu me s i n t a à vontade, abrigado e livre, c o n t e n t e e
realizado? U m n i c h o que e m nada lembre aquelas sórdidas
c o v a s e m que n o s m e t í a m o s n o c a m p o d e concentração para
n o s defender d a s t e m p e s t a d e s de areia e n e v e ?

20 de junho

E s t o u de n o v o na t r i n c h e i r a e o v e n t o me t r a z às nari-
n a s o cheiro dos c a d á v e r e s p u t r e f a t o s . V e j o - o s e s t e n d i d o s no
campo, reconheço-os t o d o s : E u g ê n i o . . . N o e l . . . F e r n a n d a . . .
B r o w n . . . Saio alucinado a procurar Clarissa. O Dr. S e i x a s
c a m i n h a a m e u lado c o m u m a lanterna na m ã o e ao m e s m o
t e m p o eie não é m a i s o Dr. S e i x a s e s i m o Dr. A n d r e w Mar-
t i n . . . V e j o Clarissa ( o u J u a n a ? ) a m e acenar d o outro lado
do E b r o e u m a força e s t r a n h a me prende à terra, quero me
mover e não c o n s i g o . . .
A c o r d o a n g u s t i a d o . A luz do luar se filtra pela vidraça.
É s i n g u l a r : o cheiro e n j o a t i v o continua fora do s o n h o . A c e n -
do a luz e olho o r e l ó g i o : t r ê s da madrugada. Ouço um g a l o
SAGA 235

cantar. A t i r o os pés p a r a fora da cama e procuro vencer o


t o r p o r do sono. A g o r a compreendo. Cheiro de gás. Tomei um
b a n h o m o r n o a n t e s de d e i t a r . . . E n f i o os c h i n e l o s e o r o u -
p ã o e caminho p a r a o q u a r t o de banho. R e a l m e n t e : está
m e i o a b e r t a a v á l v u l a do a q u e c e d o r . F e c h o - a e v o l t o p a r a a
cama.
T o r n o a m e d e i t a r . A p a g o a luz. F i c o p e n s a n d o n o s o n h o .
É com freqüência que m e u s amigos da E s p a n h a me voltam
à m e m ó r i a ou povoam o m e u sonho. Âs vezes p a r e c e m a p e n a s
f a n t a s m a s d e u m r e m o t o pesadelo; e m o u t r a s ocasiões t o r n o
a sentir o horror e a ansiedade daqueles dias duma maneira
t ã o pungente, que m i n h a s horas ficam como que embaciadas
d u m a t r i s t e z a difícil d e v e n c e r .

22 de junho

— Q u e é q u e você q u e r q u e eu f a ç a ? — p e r g u n t a N o r m a
com os olhos cálidos postos em mim. — Que vá p a r a um
convento? Que fique filha-de-Maria?
— Você sabe que não quero nada d i s s o . . .
E s t a m o s n o f u n d o d a Marajoara, u m a c a s a - d e - c h á s i t u a -
da n u m a d a s lojas do Megatério. Cinco h o r a s da t a r d e . Con-
versamos sobre essa fúria que parece ter-se apoderado das
criaturas, que não t ê m fé em mais nada e que correm avida-
mente p a r a o prazer, como n u m a véspera de fim-de-mundo.
— Já lhe disse que não acredito em n a d a . . . m a s em
n a d a m e s m o ! — repete N o r m a , com um crispar de seus lábios
b e m d e s e n h a d o s . — S ó t e n h o c e r t e z a d e u m a coisa. Ê d e q u e
um dia a gente m o r r e . . . e adeus, meu b e m ! . . . tudo se acaba.
— Você está certa de que não acredita mesmo em n a d a ?
— P o r que é que n ã o hei de e s t a r ? De que é q u e e s t á
rindo?
N o r m a f r a n z e a t e s t a ao f a z e r a p e r g u n t a . C o n t i n u o a
s o r r i r e e l a se i r r i t a .
— Q u e tolice é essa, V a s c o ?
— Se na realidade você n ã o acreditasse em nada, não
estaria com essa cartolinha no cocuruto, só porque um bando
de imbecis em P a r i s decretou que é de bom-tom u s a r essas
caricaturas de chapéu.
— Ora! Isso não é argumento.
— E p r o v a de fé em a l g u m a coisa, de r e s p e i t o a a l g u m a
convenção.
236 ERICO V E R Í S S I M O

— N ã o me r e f i r o a isso. O em q u e n ã o a c r e d i t o é n e s s a s
histórias de renúncia, oração, dedicação ao próximo, altruís-
mo e o m a i s q u e s e g u e . A m a i o r i a d a s m u l h e r e s r e c a l c a os
s e u s d e s e j o s . Ê o q u e eu p r o c u r o n ã o f a z e r . Aí e s t á .
N o r m a E r a s m o leva u m a t o r r a d a à boca e trinca-a com
os belos d e n t e s e s m a l t a d o s e parelhos. O s o m d a s conversas
abafadas flutua no ar m o r n o e sonolento, de m i s t u r a com a
música d u m disco em surdina. Bebo o r e s t o de meu chá.
— A q u e c o n c l u s ã o v o c ê c h e g o u em m a t é r i a de c o n d u t a
i n d i v i d u a l ? — p e r g u n t a ela l i m p a n d o a p o n t a d o s d e d o s n u m
g u a r d a n a p o de papel.
— A g e n t e a c r e d i t a ou n ã o na c h a m a d a " v i d a de a l é m -
t ú m u l o . " S e a c r e d i t a , d e v e p a s s a r esta v i d a a s e p r e p a r a r
p a r a a outra, d e a c o r d o c o m o s m a n d a m e n t o s d a s u a i g r e j a ,
m e s m o que eies impliquem em sacrifício da m a i o r p a r t e ou
da totalidade de nossas inclinações naturais. P o r q u e a nossa
p a s s a g e m pela t e r r a é c o n t a d a em t e m p o e a o u t r a vida está
no plano da eternidade. No segundo caso o remédio é pro-
curar um jogo divertido que nos ajude a passar esta tempo-
rada terrena da maneira mais agradável, de acordo com as
nossas tendências.
N o r m a E r a s m o tira um cigarro da cigarreira e bate-o na
m e s a , n u m g e s t o q u e m e faz l e m b r a r R o b e r t a .
— Pois o meu caso é o último.
— E a c h a q u e e n c o n t r o u o j o g o , o p a s s a t e m p o q u e lhe
convém?
C o m a p e r g u n t a passo-lhe t a m b é m o isqueiro aceso. E l a
aproxima da chama a ponta do cigarro, tira u m a baforada
com os olhos postos em m i m e depois diz:
— Claro que encontrei.
— N ã o creio. É cedo d e m a i s p a r a você t e r a certeza
disso.
N o r m a fita os olhos agora sérios no meu rosto.
— C u r i o s o . . . Já me d i s s e r a m e x a t a m e n t e essas pala-
vras.
— Quem?
— Fernanda.
— Você a conhece?
— Talvez m a i s do que ela i m a g i n a . . .
Acendo o meu cigarro.
— E que pensa dela?
— Penso que está jogando fora a vida e o corpo que a
n a t u r e z a lhe deu. Convencida de que t e m u m a missão, passa
SAGA 237

c t e m p o preocupada em ajudar os outros e n ã o se lembra de


a j u d a r a si m e s m a .
— Quem sabe?
— N ã o acredito em histórias da carochinha.
Inclina-se sobre a mesa, avança a cabeça e pergunta, n u m
sussurro entre gaiato e dramático:
— V o c ê a c h a q u e N o e l é homem p a r a e l a ?
Fico meio desconcertado, d u r a n t e alguns segundos, m a s
tenho de acabar confessando:
— Não acho.. . m a s . . .
— P o i s t o d a a c a p a c i d a d e de a m o r físico q u e e l a t e m é
t r a n s f e r i d a p a r a o u t r a s a t i v i d a d e s . A q u e l e s o l h o s n ã o m e en-
g a n a m . F e r n a n d a p o d e a m a r N o e l c o m o u m a m ã e a m a o fi-
lho, m a s n ã o com u m a m o r d e m u l h e r p a r a a m a n t e . M a s d e
que é que você está r i n d o ?
— Da s u a p r e c o c i d a d e .
— N ã o há precocidade. Tenho vinte anos e não acredito
n a s cegonhas que t r a z e m bebês. Você é que está t o m a n d o
ares de conselheiro, de geração amadurecida na trincheira,
só porque andou metido naquela revolução boba.
— Sabe o que estou pensando? É que decerto a sua bi-
savó era u m a tranqüila senhora gorda que todas as m a n h ã s
ia à m a n g u e i r a t i r a r leite de u m a v a c a m a l h a d a . Depois vol-
t a v a p a r a a casa da estância p a r a fazer bolinhos de polvilho
p a r a o s e u b i s a v ô e p a r a os f i l h o s .
— E v o c ê a c h a q u e eu t e n h o de l e v a r a m e s m a v i d a ?
Sem responder, prossigo:
— Seu i r m ã o , q u e t e m o d e l í r i o da v e l o c i d a d e e é o q u e
os jornais chamam um "ás do volante", talvez não se lembre
que o avô podia t e r sido um lento e paciente carreteiro.
— C h i i . . . Quanta besteira, Vasco!
E l a m e olha, séria, p o r u m i n s t a n t e .
— O u v o c ê e s t á l o u c o o u e n t ã o veio d a g u e r r a c o m a l -
g u m d e f e i t o físico.
— Por quê?
— Um h o m e m que encontra u m a m u l h e r sã e m o ç a e
fica a filosofar diante d e l a . . . dá p a r a fazer a gente descon-
fiar. ..
— Q u e r i a q u e eu c o n v i d a s s e v o c ê p a r a ir a um rendez-
vous?
— N ã o digo que queria, m a s . . . esperava.
O l h a o r e l ó g i o de p u l s e i r a e a c r e s c e n t a :
238 ERICO V E R Í S S I M O

— Tenho um encontro. P o r castigo você vai p a g a r o chá.


Adeusinho.
Dá-me t r ê s palmadas rápidas na mão, ergue-se e sai.
A c o m p a n h o - a com os olhos. É u m a r a p a r i g a esbelta, de om-
bros largos, quadris um pouco escorridos e pernas bem mo-
deladas.
Fico ainda por um instante entregue ao cigarro e aos
p e n s a m e n t o s . O m e u desejo de c o m p r e e n d e r a n a t u r e z a hu-
m a n a , de descobrir o que é que há de e r r a d o nesta nossa
p s e u d o c i v i l i z a ç ã o me leva a e s s a s c o n v e r s a s e s p e c u l a t i v a s e
aparentemente doutrinárias. Porque a paz me t e m estonteado
quase t a n t o como a guerra. Dentro de algum tempo estarei
c a s a d o . " A v e n t u r a " m e p a g a u m o r d e n a d o d e c e n t e q u e pelo
m e n o s m e l i v r a d e p r e o c u p a ç õ e s f i n a n c e i r a s . M a s e u n ã o con-
sigo o l h a r as pessoas e as coisas com o m e s m o que-me-impor-
tismo de o u t r o s tempos. Vi que a fúria desordenada com
q u e e u a n d a v a p e l a v i d a n ã o c o n d u z a coisa a l g u m a . N ã o
tenho a vocação salvacionista de Fernanda, m a s por outro
lado não me conformo com ficar em u m a atitude céptica e
cínica diante do m u n d o . N ã o t e n h o a fé religiosa de Noel
o u C l a r i s s a , m a s a c h o c a d a vez m a i s á r i d o s e s o m b r i o s o s
caminhos do materialismo.
O p e r f u m e d e N o r m a E r a s m o ficou c o m i g o , é u m a p r e -
sença espectral, envolvente e suave. Talvez t o d a s as palavras
que eu lhe disse tivessem o subterrâneo intento de t u r v a r as
m i n h a s á g u a s interiores, e n g a n a r o m e u desejo de possuí-la,
e s c o n d e r e s s a r e a l i d a d e p e r i g o s a de q u e e l a é b e l a e d i a b ó l i -
camente desejável.
A ú l t i m a v e z q u e c o n v e r s e i c o m R o b e r t a , levei o a s s u n t o
habilmente p a r a as a n d a n ç a s a m o r o s a s da filha. E antes
m e s m o d e e u i n s i n u a r a p e r g u n t a , ela m e r e s p o n d i a :
— A N o r m a é s e n h o r a de s e u c o r p o .
P a g o a d e s p e s a , a p a n h o o c h a p é u e s a i o . A n o i t e c e . Os
peixes do " A q u a r i u m " fazem s e r e n a s evoluções na á g u a va-
r a d a d e f e i x e s d e luz m u l t i c o r e s . A s c a l ç a d a s e a r u a e s t ã o
a p i n h a d a s d e g e n t e . F a z frio. N o c e n t r o d a p r a ç a o s q u a t r o
jactos da fonte são como árvores cónicas de poeira luminosa
e colorida.
O perfume de N o r m a vai ainda comigo. Na m i n h a m ã o . . .
o u a p e n a s n a m e m ó r i a ? N ã o sei. T a l v e z o m e l h o r s e j a n ã o
pensar. F u r o a multidão.
Atravesso a praça p a r a e n t r a r n u m a r u a mais sossegada.
Ao c h e g a r à calçada vejo a b a r a t i n h a de Manoel Pedrosa,
SAGA 239

irmão de Chinita. U m a mulher vestida de escuro sai apres-


s a d a de d e n t r o dela e c a m i n h a na direção da p a r a d a de bon-
de. E r n e s t i d e s . F i n j o que n ã o a vejo e continuo o m e u ca-
minho.
Áxel t i n h a razão. A vida é a m a i s e s t r a n h a de t o d a s as
sagas.

26 de junho

Nove da manhã. Redação de "Aventura". Fernanda re-


preende Pedrinho:
— Isso n ã o se faz. F o i um abuso, t e u s vales u l t r a p a s s a -
r a m o o r d e n a d o . Vou dizer ao caixa que n ã o te dê m a i s di-
nheiro sem ordem minha.
— Deixa disso, m a n a . Hoje em dia q u e m é que pode
viver com um conto de réis ? Ainda mais c a s a d o . . . — Volta-
se para mim. — N ã o achas, Vasco?
— O q u e eu a c h o t a m b é m , P e d r i n h o , é q u e em p a r t e a l -
g u m a do mundo encontrarias quem te pagasse esse ordenado.
Talvez n e m a m e t a d e . . .
— N ã o seja b e s t a ! Se eu q u i s e s s e . . . não me f a l t a v a m
bons empregos. F a z i a um concurso p a r a fiscal de consumo e
estava a r r u m a d o para o resto da vida.
— É — r e t r u c o — m a s a n t e s p r e c i s a v a s a p r e n d e r a ler.
E l e m e l a n ç a u m o l h a r h o s t i l e v a i debruçaV-se à j a n e l a .
Fernanda, porém, não o deixa em paz:
— E s t á c l a r o q u e p a r a q u e m s u s t e n t a duas f a m í l i a s u m
c o n t o de r é i s é p o u c o . . . — i n s i n u a ela.
Pedrinho volta-se, brusco.
— Já estás de novo te metendo na minha vida?
Fernanda contempla-o sem rancor, sorrindo. Esse meni-
no de pouco mais de vinte anos t e m já todos os problemas
d u m h o m e m m a d u r o . M u l h e r , f i l h a , a m a n t e , d i f i c u l d a d e s fi-
nanceiras e um certo pessimismo com raízes apenas no fato
d e ele n ã o p o s s u i r u m a u t o m ó v e l , n e m p o d e r d a r p e l e s e j ó i a s
p a r a a s u a " n e g a " . A l i e s t á ele a f u m a r c o m u m a d a s m ã o s
a s e g u r a r a r r o g a n t e m e n t e o c i g a r r o e a o u t r a m e t i d a no b o l -
so. J o g a no p r a d o , discute futebol e m a r c a s de automóvel,
c u l t i v a o b i g o d i n h o c i n e m a t o g r á f i c o e t o d o s os s e u s s o n h o s
e s t ã o focados em a s s u n t o s de sexo, vaidade e nessa exibicio-
nice de belas r o u p a s e fumos de riqueza. A p e s a r de t o d o s os
esforços, F e r n a n d a nunca conseguiu que o r a p a z t e r m i n a s s e
240 ERICO V E R Í S S I M O

s e q u e r o c u r s o g i n a s i a l . F i c o d e n o v o a p e n s a r q u e ela m e r e -
cia o u t r a m ã e , o u t r o i r m ã o , o u t r o m a r i d o . . . e t a l v e z o u t r o s
amigos. Lembro-me das palavras de N o r m a E r a s m o e agora,
olhando p a r a F e r n a n d a , pela p r i m e i r a vez me ocorre que o
diabo da r a p a r i g a talvez tenha razão. E n q u a n t o Fernanda
discute com P e d r i n h o a necessidade de m u d a r de vida, de
a b a n d o n a r a a m a n t e e p r e o c u p a r - s e m a i s c o m a f a m í l i a , fico
a observá-la. N ã o é possível que u m a m u l h e r forte e cheia
de vida como esta se satisfaça com o a m o r tíbio de elfo que
o m a r i d o lhe dá.
P o r que será que as c r i a t u r a s em geral renunciam àquilo
que m a i s a m a m ? P o r muito a m a r a vida, F e r n a n d a não goza
de seus p r a z e r e s m a i s efetivos e f o r t e s : dissolve-se nesse sal-
vacionismo quase inútil — pois não conseguiu incutir no ma-
r i d o s u a filosofia d a v i d a , n e m d a r u m r u m o s e g u r o a o i r m ã o ,
n e m v e n c e r o f a t a l i s m o d e r r o t i s t a d a m ã e , n e m p ô r u m freio
na cunhada. P o r querer auxiliar os o u t r o s ela se sacrifica a
si m e s m a n u m a mutilação injusta. Vi-lhe no rosto um dia
a s o m b r a d u m a n u v e m a q u e n ã o ousei d a r n o m e . D ú v i d a ?
Tristeza? A n g ú s t i a ? Cansaço? Foi um momento perigoso em
que algum sentimento que e s t a v a escondido na camada m a i s
f u n d a de s e u s e r s u b i u t r a i ç o e i r a m e n t e à t o n a , e s p i o u a v i d a ,
ficou d e b r u ç a d o n o s o l h o s c o m o u m p r i s i o n e i r o q u e e n c o s t a
o r o s t o n a s g r a d e s d a cela e o l h a a n s i o s o p a r a o s c a m p o s
v e r d e s , p a r a o céu l i v r e . . . O u e s t a r e i f a n t a s i a n d o ?
P e d r i n h o a t i r a o cigarro pela janela, a t r a v e s s a a sala
pisando duro e fecha a p o r t a com estrondo.
Noel e n t r a com um n ú m e r o de "A O r d e m " na m ã o e v e m
m e m o s t r a r u m poema d e Gedeão Belém, n a "Coluna Social".
Leio-o em voz a l t a :

Onde estão as cantigas doutrora


Que os meninos da minha rua cantavam?
Onde os brinquedos inocentes?
E as cirandas da ilusão?
Um vento mau levou a minha infância.
ô Deus, dai-me outra vez a pureza dos seis anos!

Comentário de Noel:
— A c h o q u e ele t e m a n o s t a l g i a d a b o n d a d e . . . u m de-
sejo de poesia.
Sacudo a cabeça numa negativa vigorosa:
SAGA 241

— Na m i n h a opinião o desejo de poesia nesse espécime


h u m a n o é algo de superficial como a necessidade d u m a g r a -
v a t a colorida ou d u m a flor na botoeira.
N o m e s m o n ú m e r o leio u m e d i t o r i a l p e r v e r s o a s s i n a d o
p o r G. B., em t o r n o "dum certo cinema de nossa capital que
exibe de preferência filmes tendenciosos, solapadores do edi-
fício cristão. Achamos que a polícia devia tomar as necessá-
rias providências, a fim de que..."
E r g o - m e , a m a s s o o j o r n a l e j o g o - o no c e s t o :
— Ó Deus, dai-me o u t r a vez a p u r e z a dos seis a n o s !
Que salafrário!
7
1.° de julho

Onze h o r a s da m a n h ã . C a m b a r á me telefona convidan-


d o - m e p a r a u m a p e r i t i v o n o " M a r a j o a r a " . E s t r a n h o o con-
v i t e e o t o m c o r d i a l da voz, m a s a c e i t o e d e s ç o .
U m a p e r t o d e m ã o : d e s c o n f i a d o d a m i n h a p a r t e , deci-
d i d o e c a l o r o s o da p a r t e dele. S e n t a m o - n o s f r e n t e a f r e n t e .
— Martini. . . cubano? Que é que queres?
D e p o i s q u e e s c o l h e m o s , m u d a n d o o t o m d e voz, e l e m e
diz:
— E n t ã o , h o m e m ? Parece m e n t i r a que a gente t r a b a -
l h a n o m e s m o edifício e p a s s a m e s e s s e m s e v e r . . . Q u e é
que tens feito?
— Desenha-se, p i n t a - s e . . .
— Ouvi dizer que te e n c o m e n d a r a m um r e t r a t o de D.
Dodó Leitão Leiria p a r a ser i n a u g u r a d o na "Creche da San-
tíssima Trindade". É fato?
— É...
— E n t ã o q u e r dizer que a coisa vai dando, n ã o ?
— N ã o posso me queixar.
U m a pausa. O garçon t r a z os aperitivos. Começamos a
beber.
— Escuta a q u i . . . Estão te pagando bem na "Aventu-
ra?"
— M a i s do q u e v a l h o .
Ele me olha sério.
— N ã o digas i s s o . . . Sabes por que p e r g u n t o ? Ê por-
que, se quisesses, lá no escritório eu t i n h a um l u g a r formi-
dável p a r a t i . . . Chefe d a publicidade. Dois pacotes p o r m ê s
pra começar...
Sacudo a cabeça.
— Obrigado, Almiro.
— Pensa bem.
244 ERICO V E R Í S S I M O

— Se você me c h a m o u p a r a i s t o . . . perdeu o seu t e m p o .


— Que diabo, r a p a z ! A c h o que n ã o vais ficar ofendido
s ó porque t e ofereci u m e m p r e g o . . .
Encolho os ombros.
— A coisa n ã o é t ã o simples assim. Você faz g u e r r a à
Fernanda.
— G u e r r a ! O q u e a c o n t e c e é q u e eles s ã o m e u s c o n c o r -
rentes. P r o p u s um negócio decente, v a n t a j o s o . . . não aceita-
ram, paciência.. . Querem abrir luta? Pois está bem. Aceito.
E m b o r c a o c o p o n u m s ó gole. F a ç o o m e s m o .
— G a r ç o n ! — g r i t a ele. — Mais u m . Q u e r e s t a m b é m ?
— Não.
Fico olhando p a r a Almiro C a m b a r á . Acho-o um pouco
envelhecido, m a i s gordo e com ar preocupado. Com algum
esforço de imaginação vejo por t r á s do desconhecido que
t e n h o na m i n h a frente um velho c a m a r a d a dos dezoito anos
— um r a p a z e l h o e s p i g a d o e d e s i n q u i e t o q u e lia F l a m m a r i o n
e V i c t o r H u g o e que queria saber se depois desta vida "a
gente continua no imenso universo ou t u d o apodrece com o
c o r p o . " S i n t o u m a p o n t a d e t e r n u r a q u e m e faz m u d a r u m
p o u c o a a t i t u d e r í g i d a q u e a s s u m i d e s d e o p r i n c í p i o do coló-
quio.
— Escute, Almiro, como é que um h o m e m pode m u d a r
t a n t o como você?
Me me contempla por alguns segundos com o sobrolho
franzido.
— M u d a r ? Tu achas que eu mudei muito?
O l h o p a r a a l é m dele, p a r a a l é m d a p a r e d e d e s t a s a l a
com decoração em estilo m a r a j o a r a . Vejo dois r a p a z e s que
sonhavam e as ruas duma pequena c i d a d e . . .
— N a q u e l e t e m p o v o c ê f a l a v a e m "vil m e t a l " . . .
A l m i r o s e r e c o s t a n a c a d e i r a e t i r a u m c h a r u t o d o bolso.
— Coisas dos dezoito anos. A c h o que não querias que
eu p a s s a s s e a v i d a a a c r e d i t a r n e s s a s b e s t e i r a s .
— Talvez não sejam b e s t e i r a s . . .
— No mundo de hoje esses sonhos não passam de bes-
teiras. Que é que tu pensas que os outros fazem? G a n h a m
d i n h e i r o , f i r m a m - s e na v i d a . O s o n h o é p a r a os coiós.
Sacudo a cabeça lentamente n u m aceno não de acordo
mas sim de quem lamenta um amigo morto.
— E n f i m , A l m i r o , c a d a um s a b e de s u a v i d a e faz o q u e
e n t e n d e . M a s e u g o s t a r i a q u e o s s o n h o s d e a n t i g a m e n t e lhe
servissem ao menos para uma c o i s a . . .
SAGA 245

— Para quê?
— P a r a você escolher a r m a s m a i s decentes n e s s a l u t a . . .
Ele me olha com repentino rancor. Lembro-me de que
Almiro Cambará era um rapaz de sangue quente e que por
m a i s d e u m a vez e s t i v e m o s p r e s t e s a n o s a t r a c a r a s o p a p o s
por causa da imortalidade da alma ou do livre-arbítrio.
— V i r a s t e m o r a l i s t a , a g o r a ? — diz ele c o m um e s g a r
de desprezo.
— N ã o virei coisa n e n h u m a .
C a m b a r á acende o seu c h a r u t o e, após breve pausa, como
q u e p a s s a n d o u m a e s p o n j a e m t u d o q u e ficou p a r a t r á s , a m a -
cia a v o z :
— Vasco, eu quero um favor t e u . . .
— Fale.
— C o n v e n ç a a F e r n a n d a a me c e d e r o a r r e n d a m e n t o do
A q u a r i u m . D o u u m a l u v a de c i n q ü e n t a c o n t o s se esta semana
ela m e p a s s a r o c o n t r a t o .
Faço um gesto negativo com a cabeça. Ele insiste:
— Cinqüenta contos, homem, de m ã o beijada. A m a n h ã
talvez eu não ofereça n e m vinte.
— É escusado, Almiro, não perca o seu tempo.
— Olha aqui, rapaz, tu levas cinco na t r a n s a ç ã o . P a s s o -
te a nota no dia em que estiver com o c o n t r a t o no bolso.
— No seu m u n d o n ã o se fala o u t r a língua a n ã o ser a
do dinheiro?
C a m b a r á faz u m g e s t o d e i m p a c i ê n c i a :
— Ora, n ã o sejas idiota! N ã o me v e n h a s com idealis-
mos, que eu não nasci ontem. Conheço bem essas atitudes.
Sacudo os ombros.
— O que posso dizer é que F e r n a n d a n ã o cede o c o n t r a t o
por dinheiro algum.
— Pois vai se arrepender. Ano que vem não t e r á nenhu-
ma companhia que lhe alugue filmes. Será obrigada a fechar
o cinema com um prejuízo danado.
— E s t á bem, m a s você n ã o t e r á o A q u a r i u m . O contrato
só se vence daqui a q u a t r o anos.
— No fim v a m o s ver quem pode mais.
F i c a m o s a l g u m t e m p o em silêncio e há um i n s t a n t e em
q u e n o s s o s o l h o s se e n c o n t r a m , se f i x a m , e o r o s t o de C a m -
bará se alarga num sorriso.
— Q u e m h a v i a d e dizer, h e m ? E u e t u a q u i t r a n s f o r m a -
dos e m h o m e n s d e n e g ó c i o . . .
E com essa deixa passamos a outros assuntos. O tempo.
246 ERICO V E R Í S S I M O

As construções da cidade. Mulheres. Projetos. E finalmente,


as agitações da Europa.
— L e s t e e s s a h i s t ó r i a de D a n t z i g ? — i n d a g a ele, b a t e n d o
a c i n z a do c h a r u t o no p i r e s . — T o m a r a q u e r e b e n t e a g u e r r a .
Q u e r o v e r s e d e s t a v e z e u g a n h o a l g u m a c o i s a c o m ela. N a
outra eu era muito p e q u e n o . . .
O l h o p a r a ele a t r a v é s d a c o r t i n a d e f u m a ç a d e s e u c h a -
ruto:
— E r a ? Não. Você ainda é pequeno, Almiro, t ã o pequeno
que n ã o avalia a b a r b a r i d a d e que a c a b a de dizer.
Ele se inclina p a r a a frente:
— N ã o s e j a s i n g ê n u o . A g u e r r a é i n e v i t á v e l e se e l a s a i
a culpa n ã o é m i n h a . Muitos v ã o t i r a r proveito dela, a t r o c o
de que santo vou eu ficar de braços cruzados?
P e r m a n e ç o e m silêncio p o r a l g u n s m i n u t o s . D e p o i s m e
l e v a n t o e, a p e r t a n d o a m ã o do desconhecido, d i g o - l h e :
— F a ç o votos p a r a que um dia não nos e n c o n t r e m o s em
trincheiras contrárias.. .
Ele e r g u e os olhos é sem t i r a r o c h a r u t o da boca me diz:
— A c h o que já e s t a m o s em t r i n c h e i r a s c o n t r á r i a s . . .
Lanço-lhe um o l h a r rápido e vazio, faço m e i a - v o l t a e
m e vou.

10 de julho

O P a d r e R u b i m é um sacerdote t ã o humilde e cheio de


b o a s i n t e n ç õ e s , a s u a fé é t ã o g r a n d e , s i m p l e s e s i n c e r a q u e
eu a t é t e n h o ímpetos de lhe pedir desculpas por n ã o ser ca-
tólico. C á e s t á ele s e n t a d o n a m i n h a f r e n t e c o m o s s e u s o l h o s
de criança, a s u a t í m i d a palidez de s e m i n a r i s t a a c o n t r a s t a r
singularmente com o nariz vermelho e lustroso, todo pintal-
gado de e s p i n h a s e cravos.
— M a s o s e n h o r , um a r t i s t a — me diz o b o m h o m e m
— tem todos os elementos para acreditar em Deus. ..
— Mas eu acredito, p a d r e . . . Acontece a p e n a s que às
vezes eu d e s c o n f i o . . .
— D e s c o n f i a de q u ê ?
— De que Ele n ã o existe.
— N ã o blasfeme.
E s t a m o s fechados no escritório de Noel e é n u m a linda
m a n h ã de inverno. Pela janela e n t r a o vento que cheira a
o r v a l h o , a c a f é t o r r a d o e à f u m a ç a de c a r v ã o de p e d r a .
SAGA 247

Há u m a pausa curta em que os olhos do P a d r e R u b i m


se detêm no meu rosto, num escrutínio manso e amigo. De
repente:
— Q u a l é a s u a o p i n i ã o s o b r e o m i l a g r e ? — p e r g u n t a ele.
— É q u e ele n u n c a me a c o n t e c e u .
O j e s u í t a s o r r i e s a c o d e a c a b e ç a c o m o se a c a b a s s e de
presenciar a t r a v e s s u r a duma criança.
— M a s n e m d i g a i s s o ! — e x c l a m a ele, d e s t a c a n d o b e m
as sílabas. — O senhor atravessou um campo bombardeado,
um verdadeiro inferno de fogo e morte, esteve d u a s vezes em
camas de hospital e hoje se encontra aqui vivo e s ã o . . . Isso
n ã o foi u m m i l a g r e d e D e u s ?
Olho-o i n t e n s a m e n t e e l h e d i g o e s t a s p a l a v r a s :
— Aqueles milhares de criaturas m o r t a s estendidas no
c a m p o a a p o d r e c e r . . . as c i d a d e s b o m b a r d e a d a s . . . as m u -
lheres e crianças estraçalhadas pelas bombas a é r e a s . . . tudo
isso não seria por acaso um m i l a g r e de D e u s ?
P o n h o - m e de pé b r u s c a m e n t e e vou a t é a j a n e l a como se
precisasse de ar, de muito ar p u r o p a r a afastar da memória
a lembrança pestilencial da guerra. Em breve o P a d r e R u b i m
e s t á a m e u l a d o e s u a m ã o m i n ú s c u l a e leve p o u s a a m i g a n o
meu ombro:
— N ã o foi u m m i l a g r e d e D e u s , n ã o , m e u a m i g o . F o i o
resultado da insensatez dos h o m e n s que não seguem os man-
damentos do Senhor.
— T e n h a paciência, padre, m a s o seu a r g u m e n t o não
s e r v e . T u d o q u e é b o m e belo se a t r i b u i a D e u s . T u d o q u e
é m a u e hediondo se joga p a r a cima do Diabo. É um raciocí-
nio muito simplista.
E l e s u s p i r a b a i x i n h o , e fica u m i n s t a n t e c a l a d o .
— O s e n h o r é m u i t o m o ç o . T e m a i n d a m u i t o que. a p r e n -
der. — P a u s a . — Já pensou na s u a a l m a ?
— Já.
— P o r que não t r a t a da salvação dela?
— Estou t r a t a n d o . . . mas à minha maneira.
— Só há u m a maneira.
— Há milhares, padre.
— Já pensou na morte?
— M u i t a s vezes.
— E não t e m medo do destino que está reservado p a r a
a sua a l m a ?
— Não.
Ele faz um gesto quase de desamparo.
248 ERICO V E R Í S S I M O

— E n t ã o O senhor deve ser uma criatura excepcional.


Não sente inquietação. Não tem medo da morte.
— Padre, às vezes eu tenho medo é dos homens. . . Leia
os jornais. . . Veja o que está se preparando na Europa. Lá
só se fala a linguagem da d e s t r u i ç ã o . . . Há povos que se pri-
vam de manteiga para comprar canhões. . . canhões para des-
truir. O senhor poderá d a r a isso o nome de milagre?
Torno a me sentar. O Padre Rubim me segue como uma
sombra.
— Se acha brutal esta vida, renuncie a ela e prepare-se
para a outra.
Tomo dum lápis e começo a fazer rabiscos distraídos
numa folha de papel em branco.
— Mas no fim de contas — pergunto, após alguns mo-
mentos — por que atribuir t a n t a nobreza e altruísmo ao
homem que renuncia a esta vida, que é passageira, em bene-
fício da outra, que é eterna? No fundo não passa duma troca
comercial e muito vantajosa, em que a gente dá o efêmero
para receber o eterno.
Parado a t r á s da cadeira, com as mãos segurando a guar-
da desta, o padre responde:
— Esse argumento, meu filho, é tão velho como o cris-
tianismo, mas se esboroa contra a muralha da fé.
— Sabe duma coisa, padre? Eu podia a m a r e servir a
Deus por Ele ter inventado as cores, os sons e t e r criado as
circunstâncias que t o r n a r a m possível o nascimento de Rem-
brandt, de Beethoven, da estátua de Davi e da nona sinfo-
nia . . . Muito mais por isso do que por Ele poder me dar em
troca de meu amor e da minha obediência a vida eterna.
O jesuíta sorri com os olhos postos na janela como se
estivesse a ver uma aparição beatífica para mim invisível.
— Por que é que está sorrindo? — indago.
— Porque o senhor já se encontra na metade do cami-
nho. Tenho encontrado ateus empedernidos que acabaram se
convertendo à Igreja.
— Pois creia que vontade não me falta.
— E isso é quase tudo, fique certo. O Espírito Santo
há de descer um dia sobre a sua alma.
— Será recebido com festa, padre. Ninguém ficará mais
alegre do que eu. . . Poder olhar as misérias do mundo com
resignação. . . achar que nada, nada importa. . . Só isso já
é o céu.
— Vou orar pelo senhor. Todas as noites antes de dormir
SAGA 249

hei de pedir a Deus que lhe conceda a Sua graça. Há meses


que venho fazendo isso pela F e r n a n d a .
E r g o os olhos do papel.
— Padre...
— Sim...
— Que l o g r o . . . se Deus existe mesmo, h e m ?
Com o chapéu na m ã o e já a c a m i n h o da p o r t a ele p á r a ,
volta-se e lança para m i m um olhar de espantada incompre-
ensão.

18 de julho

Três da tarde. Vou ver Eugênio no Hospital Infantil que


fica n u m a d a s m a i s a l t a s c o l i n a s d e P e t r ó p o l i s . Ê u m belo
edifício e m e s t i l o c a l i f o r n i a n o , t o d o b r a n c o c o m p e r s i a n a s
verdes.
S u b o o o u t e i r o a o m a n s o sol d e s t a t a r d e d e i n v e r n o d e
a r p a r a d o e céu l i m p o d u m a z u l e s m a l t a d o .
— O D r . E u g ê n i o ? — p e r g u n t o na p o r t a r i a .
Informam-me:
— Oltima porta à direita.
D i r i j o - m e p a r a lá. B a t o e m a n d a m - m e e n t r a r .
De m a n g a s arregaçadas e avental branco, Eugênio vem
a meu encontro.
— Olá, V a s c o . . . V o c ê c h e g o u m e s m o n a h o r a .
— Não vim a t r a p a l h a r ? Diga com franqueza. ..
— Claro que não. Quero lhe m o s t r a r o hospital. E s p e r e
um instante.
Senta-se a u m a pequena mesa e começa a escrever qual-
q u e r coisa n u m bloco d e p a p e l d e r e c e i t a s .
É um s u j e i t o s i m p á t i c o , de t e s t a a l t a e o l h o s e s c u r o s e
um pouco triste. T e r á no m á x i m o t r i n t a e t r ê s anos e n ã o é
p r e c i s o s e r m u i t o a g u d o p a r a v e r logo q u e e m s u a v i d a e x i s t e
um drama.
— V e n h a v e r i s t o . . . — diz ele e r g u e n d o - s e e me p u x a n -
d o pelo b r a ç o .
P a s s a m o s p a r a a sala de espera onde u m a s vinte mulhe-
r e s c o m c r i a n ç a s a o colo o u p e l a m ã o c o n v e r s a m e s e a g i t a m .
São criaturas pobres e t r i s t o n h a s cuja pobreza se evidencia
n o s olhos, n a c o r d o s r o s t o s e m a c i a d o s , n a s r o u p a s q u e t r a -
zem e neste cheiro desagradável que enche o ambiente. Quan-
d o v ê e m E u g ê n i o a p a r e c e r à p o r t a , p r e c i p i t a m - s e p a r a ele
250 ERICO V E R Í S S I M O

e r g u e n d o os filhos ou a m ã o com um papel. Exclamações


c r u z a d a s : D o u t o r ! . . . me a t e n d a . . . olhe a receita, d o u t o r ! . . .
o m e n i n o p i o r o u . . . a q u i , d o u t o r ! . . . p o d e me a t e n d e r ?
Eugênio acalma-as com um gesto.
— T e n h a m paciência, um m o m e n t i n h o . . .
E n t r a m o s n u m a pequena sala. U m dos assistentes está
examinando u m a criança.
— Q u e i d a d e você d á p a r a e s t e p e q u e n o ? — p e r g u n t a
Eugênio, mostrando-me u m a criaturinha miúda, de rosto chu-
pado e enormes olhos pretos.
— Seis m e s e s . . . — a r r i s c o .
— Dois anos.
— Mas como!?
O m e n i n o e s t á n o colo d a m ã e , u m a m u l h e r z i n h a b a i x a ,
d e r o s t o c h u p a d o e pele m u i t o m a n c h a d a .
— Dispa o pequeno — ordena-lhe o médico.
A m u l h e r obedece. E u g ê n i o t o m a da c r i a n ç a e coloca-a
em cima da mesa.
— V e j a só o e s t a d o d e s t a c r i a t u r i n h a . . .
Olho com u m a sensação de pena. O t ó r a x inchado, as per-
n a s e braços m u i t o descarnados, a criança l e m b r a esses bo-
necos que se fazem espetando palitos n u m a b a t a t a - i n g l e s a .
A pele l í v i d a e s t á t o d a c o b e r t a d e e m p o l a s v e r m e l h a s .
— Q u e é i s s o ? — p e r g u n t o . — A l g u m a d o e n ç a de p e l e ?
— N ã o — diz E u g ê n i o . — P e r c e v e j o s .
— E de q u e é q u e s o f r e e s s e p e q u e n o ?
— Verminose e miséria.
— E n ã o há r e m é d i o ?
— H a v e r i a se a m ã e q u i s e s s e d e i x á - l o no h o s p i t a l .
A m u l h e r nos contempla com olhos fundos e espantados.
— A s e n h o r a n ã o q u e r q u e s e u filho s a r e ? — p e r g u n t o .
— Quero, sim senhor.
— Por que não o deixa então aqui?
E l a b a i x a a cabeça e m a n t é m - s e n u m silêncio obstinado.
— Não quer?
E l a continua imóvel e m u d a .
— M e s m o q u e s a i b a q u e e m c a s a ele p o d e m o r r e r ?
Silêncio. E E u g ê n i o :
— Ê inútil. Já tentei mil vezes convencê-la. N ã o adian-
t a . N ã o q u e r s e p a r a r - s e d o filho. V i v e n a m i s é r i a . O h o s p i t a l
lhe d á o s r e m é d i o s q u e e u r e c e i t o , m a s ela n ã o t e m d i n h e i r o
p a r a comprar as farinhas que precisa p a r a o regime alimen-
t a r da criança.
SAGA 251

T o r n o a e x a m i n a r o pequeno. Ele fita em m i m os olhos


parados, fundos, d u m a expressão quase adulta, olhos de quem
já conhece o sofrimento.
P a s s a m o s p a r a outra sala.
— I n t o x i c a ç ã o a l i m e n t a r . . . — diz E u g ê n i o m o s t r á n d o -
me u m a criança que m a i s parece um feto. — Sempre a falta
de recursos. N ã o é u m a nem duas. Há milhares de crianças
assim.
S a í m o s pelo c o r r e d o r . S u b i m o s a o a n d a r s u p e r i o r e co-
m e ç a m o s a c a m i n h a r por e n t r e os leitos de u m a d a s enfer-
marias.
— A q u i estão os r a p a z e s . . . — explica Eugênio.
Pára junto de uma das camas.
— Veja só esta f i g u r a . . .
Mostra-me um menino gordo, de dois anos de idade, que
de pé, s e g u r a n d o a g r a d e da cama, sorri p a r a ele.
— E s c r o f u l o s o — diz E u g ê n i o . — E s t á q u a s e b o m . . .
m a s n i n g u é m s a b e o n d e a n d a m o s p a i s dele. T r o u x e r a m - n o
a q u i logo q u e o h o s p i t a l s e i n a u g u r o u e a t é h o j e n i n g u é m
veio reclamá-lo. Como este, h á m a i s u n s s e i s . . .
— Sempre a miséria.
C o n t i n u a m o s a a n d a r . D u m lado e de o u t r o vejo c a r a s
de crianças sem infância — t o d a s d u m a cor de marfim, baça
e t r i s t o n h a . A l g u n s sorriem. O u t r o s se l i m i t a m a olhar com
u m a expressão estuporada ou apenas vaga.
P a s s a m por nós i r m ã s de caridade. E u g ê n i o faz-lhes per-
guntas, examina papeletas.
— V e r m i n o s e — diz ele, a p o n t a n d o p a r a u m a d a s c a m a s .
P a s s a m o s p a r a a secção dos lactentes, onde se a l i n h a m
uns t r i n t a berços.
— U m a corja! — e x c l a m a E u g ê n i o . — Dão-nos um t r a -
balho danado. E n f i m . . . pode ser que daqui saia algum gran-
de h o m e m . T u d o é p o s s í v e l .
— O velho Madeira nunca sonhou que o dinheiro que
ele g a n h o u c o m f e i j ã o e m i l h o t i v e s s e e s t e d e s t i n o . . .
Eugênio me olha por um instante e diz:
— Devemos tudo à Fernanda.
E no c o r r e d o r a c r e s c e n t a :
— O q u e ela fez, V a s c o , é q u a l q u e r c o i s a de r a r o . O di-
nheiro empregado neste hospital vai muito além da metade
da fortuna que o Noel h e r d o u . . . Só F e r n a n d a é que podia t e r
u m gesto d e s s e s . . .
Andamos alguns passos.
252 ERICO V E R Í S S I M O

— E O l í v i a . . . — C a l a - s e de r e p e n t e e me o l h a , c o m o se
e x a t a m e n t e neste m o m e n t o lhe ocorresse u m a idéia. — Você
q u e r s a b e r d u m a coisa? Eu às vezes chego a a c h a r u m a pa-
recida com a outra. A t é f i s i c a m e n t e . . . É extraordinário.
Como se fossem i r m ã s . . .
C o n t i n u a m o s a a n d a r pelo h o s p i t a l . E u g ê n i o m e a p r e s e n -
ta a o u t r o s m é d i c o s , a a l g u m a s e n f e r m e i r a s e ao a d m i n i s t r a -
d o r . D e s c e m o s à c o z i n h a e à a d e g a , e q u a n d o c h e g a m o s à la-
v a n d e r i a , m e u c o m p a n h e i r o m e diz b a i x i n h o :
— Minha m ã e pagava os meus estudos no ginásio lavan-
do a r o u p a do i n t e r n a t o . . . E r a u m a m u l h e r corajosa.
P i c a um i n s t a n t e em silêncio, o r o s t o t r i s t e , como se a
m ã e estivesse sepultada aqui.
No elevador me pergunta:
— P o r q u e s e r á q u e a g e n t e só c o m p r e e n d e o v a l o r d a s
pessoas depois que as perde?
A n t e s q u e e u a c h e u m a r e s p o s t a , o e l e v a d o r p á r a , ele
a b r e a p o r t a , s a í m o s a c a m i n h a r e eu me l i v r o da p e r g u n t a
fazendo o u t r a :
— Você não t e m parentes vivos?
— Só um i r m ã o . T a l v e z vivo n ã o s e j a b e m o t e r m o . . .
N ã o c o m p r e e n d o b e m m a s fico c a l a d o .
— V a m o s ao m e u e s c r i t ó r i o . — E ao p a s s a r p o r um
dos serventes, diz-lhe: — Juca, traz-nos dois cafezinhos.
Quando nos instalamos n a s confortáveis poltronas de
couro do gabinete de Eugênio, ele esclarece:
— Levei anos a p r o c u r a r um i r m ã o que t i n h a fugido de
c a s a . . . E r a um rapaz que gostava de beber, que vivia me-
tido em b a d e r n a s . . . Naquele tempo eu andava envaidecido
c o m a m i n h a q u a l i d a d e de e s t u d a n t e de m e d i c i n a e c o m a
cabeça cheia de projetos orgulhosos. Um dia discutimos em
c a s a . E u l h e d i s s e c o i s a s d u r a s . . . q u e ele e s t a v a m e e n v e r -
gonhando, que não podíamos ficar sob o mesmo teto, que se
ele n ã o f o s s e e m b o r a , q u e m ia e r a e u . . .
E u g ê n i o inclina-se p a r a a frente, apoia os cotovelos nos
joelhos e entrelaça as mãos. Sem me olhar, continua:
— E r n e s t o desapareceu e nunca mais ninguém soube
dele. A n t e s d a m i n h a m ã e m o r r e r p r o m e t i q u e i a p r o c u r a r
o Ernesto. Encontrei-o há menos de um ano aí n u m desses
lugarejos do interior, n u m estado miserável. Inchado de tan-
to b e b e r , b a r b u d o , e n v e l h e c i d o , a c a b a d o . . . T r o u x e - o p a r a cá,
fiz-lhe u m t r a t a m e n t o r i g o r o s o , i n t e r n e i - o n u m s a n a t ó r i o . O
rapaz saiu de lá curado, parecia outro. Arranjei-lhe um em-
SAGA 253

prego. T u d o correu b e m d u r a n t e dois meses. Um dia o E r -


nesto a p a r e c e u cheirando a cachaça e daí por d i a n t e t u d o se
foi á g u a s a b a i x o .
— E não tem remédio?
E u g ê n i o faz u m gesto d e s e s p e r a n ç a d o :
— A c h o d i f í c i l . . . T o r n e i a i n t e r n á - l o e ele de n o v o s a i u
a p a r e n t e m e n t e c u r a d o . M a s n u n c a f a l t a u m a m i g o q u e o con-
vide p a r a beber. E a s s i m vive o rapaz. P a s s a períodos de
relativa sobriedade, m a s lá um dia bebe até cair.
— E n f i m , v o c ê fez o p o s s í v e l . . .
— N ã o acho que isso seja consolo.
— Há coisas superiores à n o s s a v o n t a d e .
E l e s e e r g u e , e n f i a a s m ã o s n o s b o l s o s d a s c a l ç a s , ca-
m i n h a d u m lado p a r a o u t r o p o r alguns i n s t a n t e s e depois
diz:
— T u d o isso é conseqüência d u m a série de e r r o s . . . Eu
sou um pouco culpado do que aconteceu.
— N ã o c r e i o . N i n g u é m é c u l p a d o de n a d a .
Ele p á r a na minha frente:
— A gente nunca se livra do passado, em vão q u e r re-
começar u m a vida nova e decente. Mas o passado não nos
deixa, é como se vivêssemos cercados de f a n t a s m a s .
Sacudo a cabeça l e n t a m e n t e :
— E como eu sinto esses f a n t a s m a s . . . Acontece a p e n a s
q u e eles m e c e r c a m e i n f l u e m n o s m e u s g e s t o s e n o s m e u s
p e n s a m e n t o s , m a s n ã o m e d e i x a m n e n h u m s e n t i m e n t o d e cul-
pa.
E n t r a o servente com os cafezinhos, depõe a b a n d e j a em
cima da pequena mesa circular e se retira. Servimo-nos.
— A sua vida é diferente. . . o seu t e m p e r a m e n t o é ou-
tro. ..
— P o r q u e é q u e se s e n t e c u l p a d o do q u e a c o n t e c e u a
seu i r m ã o ?
E l e me olha, c o m a x í c a r a a m e i o c a m i n h o da b o c a e d i z :
— P o r q u e q u a n d o devia compreendê-lo e ajudá-lo disse-
l h e p a l a v r a s de ódio e o b r i g u e i - o a f u g i r de c a s a .
— M a s se hoje você não consegue emendá-lo com um
t r a t a m e n t o m é d i c o , c o m o p o d e r i a e n t ã o d e s v i á - l o d o vício s ó
com p a l a v r a s ?
— É q u e n a q u e l e t e m p o t u d o s e r i a m a i s fácil. F a z i a
pouco que ele t i n h a começado a beber. Depois, eu s e m p r e
fui o f i l h o p r e d i l e t o : o m e l h o r e r a p a r a m i m , t i v e o p o r t u n i -
dades que ele n ã o t e v e . . .
254 ERICO VERÍSSIMO

— B o m , s e j a c o m o for, v o c ê e s t á s e r e a b i l i t a n d o .
E u g ê n i o fez u m g e s t o d e i m p a c i ê n c i a .
— Triste reabilitação. Agora é tarde.
Ponho-me de pé e vou olhar as lombadas de livros n u m
armário. Sem me voltar, digo:
— S e v o c ê faz m u i t a q u e s t ã o d e s e r c u l p a d o d e a l g u m a
coisa, eu n ã o o c o n t r a r i o .
E u g ê n i o c a m i n h a p a r a mim. Vejo-lhe o rosto refletido
no vidro do armário.
— É m u i t o fácil e n c a r a r a s a n g ú s t i a s a l h e i a s c o m e s s e
desprendimento, Vasco. Eu não lhe desejo os problemas de
consciência que me a t o r m e n t a m .
V o l t o - m e p a r a ele, t o m o - l h e d o b r a ç o c o m u m c a r i n h o
que a m i m mesmo surpreende, e arrasto-o p a r a a cadeira.
— Olhe, E u g ê n i o — digo-lhe — t e n h o dado t r e m e n d a s
cabeçadas na vida. M a s u m a coisa eu lhe afirmo com t o d a
a sinceridade: não me arrependo de nada. Todos os erros que
c o m e t i m e s e r v i r a m d e a l g u m a coisa. V o c ê j á p e n s o u e m
quantos soldados espanhóis, mouros, italianos e alemães eu
posso t e r m a t a d o naquela g u e r r a estúpida com a qual eu de
certo modo n a d a t i n h a a v e r ? Pois bem. Às vezes de noite
fico p e n s a n d o e m q u e c a d a u m a d a q u e l a s c r i a t u r a s t i n h a u m a
mãe, irmãs, mulher, filhos e que eu cortei vidas que podiam
ser preciosas. Isso é horrível m a s agora irremediável. O es-
sencial é que eu n ã o t o r n e a c o m e t e r os m e s m o s erros.
F a ç o u m a pausa. E u g ê n i o me olha, com a t e s t a franzida.
— Nós somos simplesmente arrastados — continuo —
e n ã o s a b e m o s n a d a de n a d a . E se a q u e s t ã o é de p r o c u r a r
culpados, vamos ver primeiro quem é o culpado desta grande
monstruosidade que se c h a m a vida, e s t a m i s t u r a de coisas
belas e medonhas, p u r a s e sórdidas, cândidas e perversas.
— P a l a v r a s . . . — diz E u g ê n i o . — P a l a v r a s c o m q u e a
g e n t e t e n t a a p a z i g u a r a consciência, a t o r d o a r os remorsos,
m a s q u a n d o elas c e s s a m e v e m o silêncio, vemos que n ã o
passavam de poeira...
Bato-lhe no joelho.
— Olha, homem, no fundo eu sou u m a vaca sentimental
e se dependesse de m i m o m u n d o seria um vasto parque de
diversões em que todos os homens confraternizassem sem pre-
conceitos de raça, religião e crenças de qualquer o u t r a espé-
cie. M a s n ã o d e v e m o s c o n f u n d i r a r e a l i d a d e c o m o s n o s s o s
s o n h o s . O m u n d o é o q u e é. O r e m é d i o é a g e n t e p r o c u r a r
SAGA 255

satisfazer as s u a s inclinações da melhor m a n e i r a possível s e m


ferir os outros.
— F á c i l de d i z e r .
— S i m , r e a l i z a r e s s e p r o g r a m a é difícil m a s n ã o i m p o s -
sível. D e p e n d e d a g e n t e r e n u n c i a r a u m a b o a q u a n t i d a d e d e
pequenos desejos p a r a satisfazer de preferência os fundamen-
tais. No fundo somos u n s covardes. E d a m o s à nossa covar-
dia nomes como renúncia, ascetismo, desprendimento e assim
por diante. Já cheguei à conclusão de que, quando eu digo
que não posso, p o r exemplo, p e g a r u m a tela e a caixa de
t i n t a s n u m dia como hoje e ir p i n t a r paisagens ou tipos, de
acordo com os m e u s desejos, é simplesmente porque não te-
n h o coragem de sacrificar a pseudonecessidade de c o m p r a r
u m a gravata, um chapéu, um p a r de s a p a t o s . . .
C a m i n h o na direção da m e s a em cima da qual vejo n u m a
m o l d u r a c r o m a d a o r e t r a t o d u m a mulher. Olho p a r a E u g ê n i o
e m silêncio. E l e s e a p r o x i m a d e m i m e s u s s u r r a :
— É ela.
F i c a m o s os dois a olhar p a r a o r e t r a t o . Um rosto more-
no e c o m p r i d o , de o l h o s p e n s a t i v o s .
— N ã o achas parecida com F e r n a n d a ?
— Sinceramente, não a c h o . — E olhando-o b e m nos olhos
com u m a fixidez de que depois me arrependo, p e r g u n t o : —
Você n ã o e s t á p r o c u r a n d o se iludir?
E u g ê n i o fica m u i t o v e r m e l h o e d e s v i a o o l h a r d e m e u
rosto.

25 de julho

No último número de " A v e n t u r a " apareceu o primeiro


episódio de u m a biografia do Dr. Seixas que eu estou escre-
v e n d o e i l u s t r a n d o p a r a a s c r i a n ç a s . N ã o sei s e a h i s t ó r i a
está interessante, m a s o que posso g a r a n t i r é que a escrevi
com paixão.
Ao chegar esta m a n h ã na redação, Fernanda me mostra
"A Ordem".
— O l h e só e s t e suelto. . .
É de lamentar que se conte às crianças a história de um
materialista, de um homem que em toda a sua vida nunca
entrou numa igreja e que nos seus últimos momentos se re-
cusou conscientemente a tomar os Santos Óleos.
Achamos que ê um erro e, mais que isso, um crime trans-
formar, em heróis aos olhos das crianças..."
256 ERICO VERÍSSIMO

F e r n a n d a e s t á n a m i n h a f r e n t e , s o r r i n d o . S i n t o u m ca-
lor no rosto, a volta da velha fúria que eu julgava p a r a
s e m p r e extinta. A m a s s o o jornal e atiro-o pela janela.
— Calma, capitão!
C o r r o p a r a o telefone, p r o c u r o um n ú m e r o e disco.
Noel se aproxima:
— Que é que vais fazer?
— A g o r a você vai v e r — respondo, meio engasgado.
— Alô! Redação da O r d e m ? Quero falar com o diretor.
— P a u s a . Ruído d u m a nova ligação. U m a voz: " F a l a Gedeão
B e l é m . " E eu, m o r d e n d o a s p a l a v r a s , c o m u m a c a l m a t r e p i -
d a n t e : Aqui fala Vasco, ouviu? Da redação da " A v e n t u r a " .
E s c u t a , canalha, se disseres m a i s a l g u m a coisa sobre o Dr.
S e i x a s , m e s m o q u e s e j a elogio, a m a s s o - t e a c a r a , o u v i s t e ?
C o r t a m b r u s c a m e n t e a l i g a ç ã o . P o n h o o r e c e p t o r no lu-
g a r com um gesto violento. Noel e F e r n a n d a a v a n ç a m para
mim.
— Você n ã o devia t e r feito isso, Vasco — censura-me
ela. — P a r a e s s a g e n t e a i n d i f e r e n ç a é a m e l h o r a r m a . . .
— Cada qual luta com as a r m a s de que dispõe.
— M a s é p r e c i s o q u e e s s e G e d e ã o B e l é m n ã o p e n s e que
r e a l m e n t e está nos fazendo p e r d e r o sono. Seria d a r u m a
ração gorda demais à sua vaidade.
F i c o e m silêncio, m e i o o f e g a n t e .
— V o c ê p r o c e d e u m a l . . . — diz N o e l c o m u m a e x p r e s s ã o
dolorosa no rosto.
— Quem procede mal é v o c ê . . .
E s t a s palavras me escapam sem que eu sinta.
— Vasco! — intervém Fernanda.
L e v a n t o - m e e, já que comecei, acho que devo acabar.
Volto-me p a r a Noel e digo:
— Você parece não compreender que F e r n a n d a se acha
envolvida n u m a luta desigual e a t a c a d a por t o d o s os lados
por gente sem escrúpulos. E está fazendo j u s t a m e n t e o jogo
que convém ao adversário.
— C a l e a b o c a , V a s c o ! — o r d e n a - m e ela.
— F e r n a n d a , você e s t á perdendo o seu tempo, a s u a mo-
cidade, a sua v i d a . . .
P a r a d o no meio da sala, com um maço de papéis nas
mãos, Noel t e m no rosto u m a expressão que dá pena.
Calo-me de repente, sentindo que me excedi. F e r n a n d a
me volta as costas e vai sentar-se à s u a escrivaninha.
SAGA 257

A t r a v e s s o a sala meio estonteado, e n t r o no elevador e


subo até a sotéia.
D e b r u ç o - m e ao p a r a p e i t o e fico a o l h a r p a r a a c i d a d e ,
p a r a o rio, p a r a as ilhas, p a r a as m o n t a n h a s . Tudo isto é
belo e estúpido. As paixões e as fraquezas daqueles estra-
n h o s a n i m a i s que vejo lá na rua, p r e t o s e minúsculos como
formigas. As c a s a s . . . Os bondes e os a u t o s . . . Os vapores
no c a i s . . . Os anúncios e as á r v o r e s . . . E s s a m i s t u r a de so-
n h o e de miséria, de inquietação e de m a r a s m o , de alegria
e tristeza, de gozo e de dor. Dir-se-ia um m u n d o de brin-
quedo a que um Deus excêntrico tivesse dado corda e posto
em m o v i m e n t o p a r a seu exclusivo deleite.
O vento frio me b a t e no rosto, me despenteia, me re-
fresca a cabeça.
Já é t e m p o de t e r juízo — penso. Recordo-me de meus
dias na frente do Ebro, dos momentos em que eu pensava no
B r a s i l e fazia votos de t r a n q ü i l i d a d e e paz. V i m aqui encon-
t r a r o u t r a f o r m a de g u e r r a . T ã o desleal e i n s e n s a t a como
a o u t r a . T e r e i de me h a b i t u a r a e l a c o m o me h a b i t u e i à r o -
tina das trincheiras?
Eu não devia t e r feito aquela cena. Em atenção a F e r -
nanda. No final de contas, que sou eu no meio deles senão
um intruso? A g o r a o remédio é não voltar mais à redação.
Sinto que alguém e s t á a meu lado. F e r n a n d a . Acha-se
t a m b é m debruçada ao parapeito. Volta a cabeça p a r a mim,
sorri e pergunta:
— Olhando a paisagem?
— E...
— Ou p e n s a n d o em suicídio?
— E s c u t e , F e r n a n d a , q u e r o q u e v o c ê m e d e s c u l p e pelo
q u e e u d i s s e e fiz l á e m b a i x o . . .
— E v o c ê e n t ã o p e n s a q u e eu n ã o c o m p r e e n d i a s u a
intenção?
— M a s é q u e fui c r u e l c o m o s e u m a r i d o .
— Você não disse que cada um u s a das a r m a s de que
dispõe? Temos de nos compreender e tolerar uns aos outros
se quisermos viver em sociedade.
— Sou um sujeito meio selvagem.
— Selvagem não é bem a palavra.
— Mal-educado...
— Q u a l ! V o c ê s i m p l e s m e n t e é o q u e é. V a m o s v o l t a r
como se n a d a tivesse a c o n t e c i d o . . . s i m ?
8
27 de julho

Duas da tarde. D. Dodó me recebe com sorrisos e sequi-


lhos.
— Coma, que estão muito gostosos. F u i eu m e s m a que
fiz.
S i r v o - m e d u m b i s c o i t o e ela m a n d a m e t r a z e r u m cálice
de v i n h o doce.
— Como vai a noivinha?
— Vai bem, muito obrigado.
— P r e c i s a t r a z e r a Clarissa aqui em casa q u a l q u e r dia
d e s t e s . F i q u e i m u i t o c o n t e n t e p o r s a b e r q u e ela é c a t ó l i c a
praticante.
E s t a sala é dum pesado conforto sem bom-gosto. J a r r õ e s
bojudos com pinturas chinesas, grandes poltronas maciças de
couro escuro, que l e m b r a m h o m e n s gordos sentados de per-
nas abertas. N a s paredes, maus quadros de autores mais ou
m e n o s famosos. O que m a i s aflige n e s t a sala são as cortinas
de veludo cor de m u s g o —, sufocam e dão arrepios.
— Podemos começar? — pergunto.
— P o d e m o s , s i m , m e u filho.
D. Dodó vai sentar-se na sua cadeira, com um dos bra-
ços a p o i a d o n a m e s a . E s t á m e t i d a n u m q u i m o n o d e s e d a a z u l
com r a m a g e n s verdes e flores vermelhas. É u m a senhora
g o r d a e b a i x a , m u i t o a m á v e l e m a t e r n a l . O h á b i t o da c a r i -
dade conferiu-lhe esse ar protetor, de sorte que ela dá sem-
p r e a cordial impressão de q u e nos quer levar p a r a a sua
creche. Preocupa-se muito com a sorte dos pobrezinhos no
inverno (e no verão t a m b é m , é claro) e um dia destes me
afirmou que q u a s e s e m p r e à h o r a das refeições m a l belisca
os alimentos, subitamente enfastiada ao pensar nos milhões
de c r i a t u r a s que através do mundo p a s s a m fome. Mas Vera,
com o seu h u m o r ácido, me assegurou ainda o n t e m que a
m ã e não come porque está fazendo dieta p a r a emagrecer.
260 ERICO VERÍSSIMO

Vou ajeitar o r o s t o do modelo e m e u s dedos c o m p r i m e m


por um instante o duplo queixo da Sra. Leitão Leiria.
— Fique nessa posição. Tenha paciência.
Começo a pintar. Devo fazer um r e t r a t o acadêmico desta
m a t r o n a , p o i s d o c o n t r á r i o a s " D a m a s P i e d o s a s " , q u e m e en-
comendaram o trabalho, não o aceitarão. Enquanto pinto o
c a s t a n h o d o s o l h o s d e D . D o d ó , fico a p e n s a r n o q u e s e r i a
u m a interpretação surrealista dessa dama de caridade. Ve-
jo-a no primeiro plano, pairando no ar com asas de anjo e
v e s t e s b r a n c a s , t e n d o p o r c i m a d o o m b r o u m a renard argentée
( a i n d a c o m a e t i q u e t a e p r e ç o ) e s e g u r a n d o c o m a m b a s as
m ã o s gorduchas e faiscantes de anéis, u m a cornucópia de
onde j o r r a m moedinhas de tostões e palavras de esperança
e fé. E s t a s c a e m p a r a a s m ã o s e s q u á l i d a s e m i s e r á v e i s q u e s e
e r g u e m na p a r t e de baixo da tela, brotando da t e r r a como
e s t r a n h a s plantas h u m a n a s . No seio esquerdo, u m a janela
aberta, deixando ver o enorme coração enrolado num jornal
e m q u e a p a r e c e o r e t r a t o d a p r ó p r i a Dodó, c o m u m a l e g e n d a
elogiosa. No fundo do quadro, Leitão Leiria, o marido, de
fraque, colarinho de p o n t a v i r a d a e plastrão, tendo na cabeça
u m c h a p é u n a p o l e ó n i c o d e d o i s b i c o s . E s t á èle j u n t o d u m a
m á q u i n a caça-níqueis, piscando o olho p a r a o observador.
A v o z de D. D o d ó :
— N ã o há c o m o s e r m o ç o e e s t a r a p a i x o n a d o . . .
— Por quê?
— F a z t e m p o que o senhor e s t á s o r r i n d o . . . Aposto como
nem t i n h a percebido.
V e r a e n t r a na sala e vem o l h a r o r e t r a t o .
— V o c ê é m u i t o c í n i c o . . . — m u r m u r a ela.
— Por quê?
— E s t á protegendo a velha escandalosamente. A s s i m ti-
v e s s e ela e s s e s o l h o s p a r a u m d i a d e f e s t a . . .
Dodó intervém:
— Que é que e s t á s dizendo, V e r i n h a ?
— Nada.
A r a p a r i g a d á a l g u n s p a s s o s n a d i r e ç ã o d e u m a d a s ja-
nelas. É fina de corpo, t e m as p e r n a s longas e o b u s t o raso.
Seus olhos verdes, d u m a dureza fria e p e n e t r a n t e , emitem
u m a luz q u e p o s i t i v a m e n t e n ã o p e r t e n c e a o m u n d o d a s coisas
n o r m a i s . D e r e s t o , n ã o s e faz m i s t é r i o e m t u r n o d a s incli-
nações lésbicas de V e r a Leitão Leiria. Custa-me crer que nas
r e s p e i t á v e i s e n t r a n h a s d e D . D o d ó p o s s a t e r s e f o r m a d o esse
c u r i o s o s e r . E d e p o i s , t e m o s de p e n s a r a i n d a no p a i . . . Teo-
SAGA 261

tônio Leitão Leiria é um homenzinho baixo, empertigado,


vaidoso, amigo dos colarinhos e punhos engomados, das jóias
e das idéias grandiosas. Julga-se autoridade principalmente
em duas matérias: economia e História Universal. Adora
Napoleão e por todos os cantos da casa encontramos teste-
m u n h o s desse culto: um busto na sua mesa de trabalho,
"Napoleão em Santa Helena"; u m a oleogravura da sala de
j a n t a r , " A R e t i r a d a d a R ú s s i a " , u m a á g u a - f o r t e n o hall, e
assim por diante até o cãozinho de estimação de D. Dodó
que se chama Cambrone. Teotónio Leitão Leiria, apesar de
seus cento e sessenta centímetros de altura, ou talvez por
isso mesmo, cultiva os objetos e as p a l a v r a s g r a n d e s . Seu
tinteiro de g r a n i t o rosado é de proporções monumentais, os
c h a r u t o s que fuma são dos maiores e os vocábulos "formi-
dando", "colossal", "incomensurável", "dignidade", " h o n r a " e
outros do m e s m o calibre lhe saem com freqüência dos lábios
f i n o s . O r g u l h a - s e d e s u a " f a n t á s t i c a " b i b l i o t e c a e d e s e u co-
nhecimento da "epopéia napoleónica". D u r a n t e os últimos
anos do velho regime, viveu acariciando um sonho de depu-
t a ç ã o . A d o r a as i n s í g n i a s e a p o m p a , e c r e i o q u e s e r i a feliz
se tivesse vivido no clima do Segundo Império. T r a t a os seus
empregados com u m a disciplina prussiana e já me a f i r m a r a m
q u e a n d o u m u i t o i n c l i n a d o pelo i n t e g r a l i s m o .
C a d a vez compreendo menos que desse casal pudesse t e r
nascido Vera.
Fiz com ela boa c a m a r a d a g e m . Começou por me t r a t a r
agressivamente.
— Sabe que não simpatizo com a sua c a r a ? — disse-me
u m dia.
— Q u e c o i n c i d ê n c i a ! — r e t r u q u e i . — Eu t a m b é m n ã o
g o s t o n a d a da m i n h a c a r a . . . m a s é a ú n i c a q u e t e n h o .
Desde esse momento passamos a nos entender perfeita-
mente. E u m a t a r d e em que D. Dodó faltou à pose por t e r
sido obrigada a s a i r às pressas, i n e s p e r a d a m e n t e , no interesse
da creche, fiquei a conversar com Vera.
E l a vê os pais com um olho sarcástico. Disse-me que a
m ã e t e m feito os m a i s desesperados esforços p a r a trazê-la ao
c a t o l i c i s m o : s o f r e p o r vê-la i n d i f e r e n t e à r e l i g i ã o e a m i g a
dos hábitos livres. F a l o u - m e de s u a s convicções e de seu
absoluto desprezo pelos h o m e n s — que a c h a d u m modo geral
vãos, desengraçados e m a i s ou menos repugnantes. Animado
por esse "elogio", lancei-lhe um d a r d o :
— Já me t i n h a m dito que você prefere as mulherio
262 ERICO VERÍSSIMO

A luz v e r d e d e s e u s o l h o s c a i u g e l a d a s o b r e m i m .
— E que é que t e m isso? Você é moralista?
— Não. N e m amoralista. Apenas um sujeito que cada
vez fica m a i s e n c a n t a d o c o m o g ê n e r o h u m a n o .
— Que bisca!
Após u m a breve pausa, perguntou-me:
— N ã o a c h a que cada um t e m o direito de saciar os
a p e t i t e s q u e a n a t u r e z a lhe d e u ?
— Resolvi n ã o a c h a r m a i s coisa n e n h u m a .
— É u m a atitude cômoda que no fundo não passa de
covardia.
— Upa!
P a s s a m o s a c o n v e r s a r sobre o u t r o s a s s u n t o s . E l a me pin-
tou um r e t r a t o m u i t o divertido da família. E eu notei no seu
sarcasmo u m a certa ponta de condescendência adulta p a r a
com as t r a v e s s u r a s infantis. E r e m a t o u :
— V i v e m o s a q u i à s o m b r a de N a p o l e ã o B o n a p a r t e e
Santa Teresinha.
Preparando-me p a r a u m a reação violenta, acrescentei:
— E de S a f o .
E l a me olhou d u r a m e n t e , entrefechando os olhos de ga-
ta, e depois m u r m u r o u com os lábios a p e r t a d o s :
— Cretino!

D. Dodó suspira, meio impaciente.


— E s t á cansada? — pergunto.
Ela sorri.
— Não, estava só pensando. .. Temos a s e m a n a que vem
a q u e l e b e n e f í c i o no S ã o P e d r o . . . A Q u i n i n h a T e i x e i r a n ã o
tomou n e n h u m a providência p a r a p a s s a r as e n t r a d a s . . . —
Sacode a cabeça, n u m a censura resignada. — Se eu não me
mexo, não sai nada. É s e m p r e assim.
O l h o p a r a V e r a . L á d a j a n e l a ela m e s o r r i c o m o s o l h o s
verdes e mordazes.

30 de julho

Onze da noite. A caminho de casa encontro Eugênio às


v o l t a s com o i r m ã o , à p o r t a d u m café. E r n e s t o e s t á terrivel-
m e n t e e m b r i a g a d o a dizer incoerências com u m a voz a r r a s t a -
da e lamurienta. É um espetáculo lamentável. O rosto inchado
SAGA 263

com u m a b a r b a de t r ê s dias, os olhos amortecidos, a boca


mole a e s c o r r e r baba, o r a p a z m a l se pode m a n t e r de pé.
Ajudo Eugênio a meter o irmão n u m automóvel e sigo com
ambos.
— Você me desculpe, Vasco. N ã o pretendia dar-lhe e s t e
incômodo.
A cabeça a t i r a d a p a r a t r á s no banco, E r n e s t o cantarola
e as p a l a v r a s incompreensíveis lhe saem da boca envoltas
n u m bafio de cachaça. E u g ê n i o e s t á deprimido. F i c a m o s em
silêncio d u r a n t e t o d o o t r a j e t o .
Em casa t r a t a m o s de fazer a l g u m a coisa por E r n e s t o .
E u g ê n i o v a i p r o c u r a r u m v i d r o d e a m o n í a c o e q u a n d o ele
volta eu lhe d i g o :
— D e v í a m o s m a s e r a d a r u m b a n h o frio n e s s e h o m e m . . .
Ele me olha sério.
— E r a capaz de m o r r e r gelado.
— E não seria melhor?
Mal pronuncio estas palavras, arrependo-me. Mas arre-
pendo-me de tê-las dito e não de tê-las pensado. No fim de
contas, o que i m p o r t a n ã o é a p e n a s viver, m a s viver decen-
temente.
Eugênio me olha por um instante e m u r m u r a :
— N ã o a c r e d i t o q u e você t e n h a d i t o i s s o s i n c e r a m e n t e . . .
— Claro que não, homem.
— O l í v i a s e m p r e dizia q u e n a d a e s t á p e r d i d o . A v i d a
começa todos os dias.
Sacudo a cabeça vagarosamente.

4 de agosto

C o n h e ç o h o j e M a r k O p p e n h e i m , e x i l a d o a l e m ã o q u e foi
obrigado a deixar a t e r r a onde nasceu, a t e r r a que a m a apai-
xonadamente. Como t e m meio sangue judeu, a vida na Ale-
m a n h a se lhe t o r n o u insuportável. É um h o m e m g r a n d e e
melancólico, de rosto comprido e olhos d u m azul aguado. Tem
a pele m u i t o b r a n c a e oleosa e h á n a s u a f i s i o n o m i a u m a
expressão fixa de desânimo e t r i s t e presságio.
A l g u é m o recomendou a F e r n a n d a e esta lhe t e m dado
algum serviço avulso na redação, pois o h o m e m é um aqua-
relista bastante apreciável.
— Os senhores nem podem imaginar que bênção de Deus
é t e r n a s c i d o no B r a s i l . . . — d i z - m e ele.
264 ERICO V E R Í S S I M O

Hoje ele nos aparece m a i s deprimido que nunca. N ã o se


adapta, sente falta de sua casa, de seus livros, de seus mó-
veis, r e l í q u i a d e v á r i a s g e r a ç õ e s d e O p p e n h e i m . F a l a n o s
amigos que ficaram, na mulher, ariana pura, que, fanatizada
pelo n a z i s m o , n ã o o q u i s a c o m p a n h a r .
Mark Oppenheim entra como u m a nuvem, contagia-nos
c o m a s u a t r i s t e z a e d e p o i s se v a i . O ar fica m a i s e s c u r o . E
p o r m a i s que eu me esforce não posso e v i t a r u m a série de
pensamentos pessimistas.

5 de agosto

Chove desde ontem à noite. F a z m u i t o frio. O gerente


de " A v e n t u r a " está desolado porque t r ê s boas firmas cance-
laram os seus anúncios. Trabalho subterrâneo de Cambará.
— Q u e é q u e você diz a isso, F e r n a n d a ? — p e r g u n t o .
— D i g o q u e o m u n d o n ã o v a i se a c a b a r .
A chuva continua a cair sobre a cidade cinzenta.

8 de agosto

A p a r e c e o sol p e l a p r i m e i r a vez n e s t e s t r ê s ú l t i m o s d i a s .
Ganho alma nova. F e r n a n d a vem t r o ç a r comigo porque em
"A O r d e m " v e m publicado o edital de meu casamento.

12 de agosto

Nestes últimos tempos t e n h o convivido m a i s intimamen-


te com Eugênio Fontes. Saímos às vezes em longas vaga-
b u n d a g e n s n o t u r n a s pelo c a i s , p e l a s r u a s d a C i d a d e B a i x a o u
pelos Moinhos de Vento.
S ã o onze h o r a s d a n o i t e . A c h a m o - n o s a g o r a s e n t a d o s n o
parapeito da P o n t e do Riacho, olhando o reflexo da lua na
á g u a p a r a d a e falando na vida, de um ângulo impessoal. Em
dado momento percebo que meu companheiro se encontra à
b e i r a d e u m a c o n f i d ê n c i a . B a s t a q u e e u f a ç a u m s i m p l e s ges-
t o p a r a ele s e p r e c i p i t a r . . . F a ç o e s s e g e s t o , n ã o p o r u m
sentimento de maliciosa curiosidade, m a s levado por um
q u e n t e s o p r o d e c o r d i a l i d a d e h u m a n a . E ele m e c o n t a . . .
SAGA 265

F i l h o d e p a i s p o b r e s , foi h u m i l h a d o d e s d e a e s c o l a . F e z
o c u r s o g i n a s i a l p o r e n t r e d i f i c u l d a d e s de t o d a a o r d e m e
matriculou-se depois na Faculdade de Medicina. A n s i a v a por
"ser alguém", p o r sair da sua condição anônima, poder gozar
a v i d a n o q u e e l a t e m d e belo e c o n f o r t á v e l , s u b i r n a e s c a l a
social e l i v r a r - s e p a r a s e m p r e d o d e p r i m e n t e s e n t i m e n t o d e
i n f e r i o r i d a d e q u e o a t o r m e n t a v a . N a a c a d e m i a c o n h e c e u Olí-
via, u m a e s t u d a n t e p o u c o m a i s m o ç a q u e ele. N a s c e u e n t r e
a m b o s u m a a m i z a d e q u e foi c r e s c e n d o c o m o t e m p o . A n d a v a m
s e m p r e j u n t o s e ela o a n i m a v a e assistia como u m a espécie
d e i r m ã m a i s v e l h a . D e c e r t o m o d o foi p a r a ele o q u e F e r -
n a n d a t e m s i d o p a r a N o e l . U m a n o i t e (foi e m o u t u b r o d e
30, a r e v o l u ç ã o t i n h a d e f l a g r a d o e o u v i a - s e em t o d a a c i d a d e
o f r a g o r da fuzilaria) ele teve de fazer u m a operação sob
g r a n d e t e n s ã o de nervos. N ã o conseguiu s a l v a r o paciente, e
isso lhe a u m e n t o u a sensação da d e r r o t a e miséria. N e s s a m e s -
ma noite subiu ao q u a r t o de Olívia onde, com a cumplicidade
do silêncio, da solidão, e g u i a d o pelo seu desejo de calor
humano, teve pela primeira vez a consciência a g u d a de que
O l í v i a e r a u m a mulher e p o r s i n a l b a s t a n t e a t r a e n t e . C o m a
mesma naturalidade com que daria n u m paciente torturado
de dores u m a injeção sedativa, Olívia se e n t r e g o u ao compa-
nheiro. Daí p o r d i a n t e a vida de a m b o s m u d o u . M a s ela acei-
t a v a serenamente a nova situação s e m nunca falar em casa-
mento: evitava qualquer comentário ao novo r u m o que ha-
viam tomado as relações entre ambos.
O t e m p o p a s s o u . O l í v i a foi c o n v i d a d a p a r a t r a b a l h a r
n u m hospital n a região colonial italiana. N a s u a ausência
E u g ê n i o c o n h e c e u E u n i c e C i n t r a , m e n i n a r i c a e snob, q u e
tomou por ele um inesperado e inexplicável interesse. P a s s o u
a p r o c u r á - l o c o m i n s i s t ê n c i a , a levá-lo a f e s t a s , a a p r e s e n t á - l o
a s e u s a m i g o s , a p r o j e t á - l o e n f i m no m u n d o c o m o q u a l e l e
sempre sonhara. Em poucos meses, n u m estonteamento, E u -
gênio e s t a v a noivo de E u n i c e e c o m a perspectiva de m u d a r
c o m p l e t a m e n t e d e v i d a . E s c r e v e u a Olívia, c o n t a n d o t u d o : e r a
m a i s fácil do que lhe f a l a r f r e n t e a frente. Q u a n d o a a m i g a
v o l t o u , ele s o f r e u a g o n i a s n a n o i t e e m q u e s e e n c o n t r a r a m a
sós no q u a r t o dela.
— Recebeste a minha carta?
— Recebi, sim. Tu me deste u m a e x p l i c a ç ã o . . . b a s t a v a
um aviso. Seja como for, o b r i g a d a .
Foi fazer um chá p a r a ambos, b e m como nos velhos
tempos. Eugênio achava a situação insuportável. Balbuciou
266 ERICO V E R Í S S I M O

desculpas. N ã o a m a v a verdadeiramente Eunice Cintra. O que


simplesmente acontecia era que ela t i n h a dinheiro e posição
s o c i a l e ele e s t a v a c a n s a d o d a q u e l a v i d a d e h u m i l h a ç õ e s , p o -
breza, empregos medíocres e dificuldades financeiras.
— E s t á t u d o b e m . N ã o t e a f l i j a s — d i s s e Olívia.
E a i n d a n e s s a n o i t e se e n t r e g o u ao a m i g o . E ele n o t o u
em suas carícias um a r d o r desesperado de despedida.
No c a s a m e n t o E u g ê n i o n ã o e n c o n t r o u a f e l i c i d a d e e a
paz que esperava. A mulher pertencia a um outro mundo.
Surgiram diferenças de temperamento. Ele se sentia tutela-
do, n ã o se podia livrar da impressão de que era um intruso
n a c a s a d o s C i n t r a . T i n h a u m c a r r o , b o a s r o u p a s , u m con-
sultório de luxo (os médicos de renome o p r o t e g i a m em aten-
ç ã o a o s o g r o ) , n ã o s e p r e o c u p a v a m a i s c o m q u e s t õ e s d e di-
n h e i r o . . . m a s a s e n s a ç ã o de i n f e r i o r i d a d e a i n d a o a c o m p a -
nhava.
E u m a n o i t e , l e v a d o p o r g r a n d e n o s t a l g i a , foi p r o c u r a r
Olívia. E n c o n t r o u - a n a m e s m a c a s a , n o m e s m o q u a r t o . E l a
o r e c e b e u s o r r i n d o , c o m e s t a s p a l a v r a s : " E u s a b i a q u e t u vi-
n h a s . . . " E p e l a p r i m e i r a vez n a q u e l e s d o i s a n o s E u g ê n i o
s e n t i u o c o n f o r t o d u m a p r e s e n ç a a m i g a , a c e r t e z a de q u e
no m u n d o a i n d a existia alguém que o a m a v a e compreendia.
Contou o que t i n h a sido a s u a vida de casado — um e n o r m e
e r r o já a g o r a irremediável. E como lhe dissesse de seu arre-
pendimento, do desejo de começar u m a vida nova, sobre ba-
ses m a i s h u m a n a s , ela lhe m u r m u r o u :
— Eu nunca deixei de t e r esperança em ti.
E n e s s a o c a s i ã o E u g ê n i o t e v e u m a r e v e l a ç ã o q u e o dei-
xou todo trêmulo e alvoroçado. Daquela última noite de amor
( c o m q u e a b a n d o n o ela s e l h e e n t r e g a r a ! ) h a v i a n a s c i d o u m a
criança. E s t a v a agora a dormir no outro q u a r t o . . .
— C h a m a - s e A n a m a r i a — d i s s e Olívia. — E já f r a n z e
a testa e o n a r i z . . . bem como tu.

E u g ê n i o a t i r a n a á g u a o c i g a r r o a c e s o . O v e n t o frio
cheira a folhagens úmidas. Cães ladram n u m a r u a próxima.
— A m o r t e de O l í v i a e e s s a c r i a n ç a m u d a r a m d e f i n i t i -
v a m e n t e o r u m o da m i n h a v i d a — p r o s s e g u i u E u g ê n i o . —
Que era que me restava fazer?
— Escolher entre Anamaria e a sua m u l h e r . . .
— Preferi ficar com m i n h a filha. A h . . . n ã o pense que
i s s o foi fácil. M a s O l í v i a m e s m o m o r t a m e a j u d o u .
SAGA 267

— Eu compreendo. Deixar u m a vida confortável e rica


para voltar a ser médico de gente p o b r e . . .
— E d e p o i s , e n f r e n t a r os m e x e r i c o s , os c o m e n t á r i o s m a -
liciosos. . .
Saímos a c a m i n h a r na direção do centro da cidade. A n -
d a m o s a l g u n s p a s s o s a f u m a r e m silêncio.
— A g o r a felizmente t u d o está bem — continua Eugênio.
— Eu encontrei a p a z . . .
Diz isto sem m e olhar. V a m o s a n d a n d o sob a s á r v o r e s
d u m a r u a d e s e r t a e sombria. Ê como se em t o d o o vasto
m u n d o fôssemos as únicas p e s s o a s vivas. N ã o sei que demô-
nio malicioso me faz m u r m u r a r .
— E n c o n t r o u a p a z ? N ã o creio.
Ele volta vivamente a cabeça p a r a o meu lado.
— P o r q u e diz i s s o ?
Arrependo-me de t e r falado. N ã o quero abrir feridas que
se e s t ã o cicatrizando. Mas eu sinto, eu vejo que E u g ê n i o
não encontrou a sonhada tranqüilidade. E s t á apenas procu-
r a n d o iludir-se. Atordoa-se de t r a b a l h o , julga e n c o n t r a r na
c e r t e z a d e e s t a r f a z e n d o o q u e Olívia q u i s e r a q u e ele fizesse,
u m a f o n t e d e a l e g r i a e d e s e r e n i d a d e . M a s Olívia é u m f a n -
t a s m a . E ele t e m t r i n t a e t r ê s anos e um corpo acicatado de
desejos.
E como o meu amigo não t o r n a a repetir a pergunta,
c o n t i n u a m o s a m a r c h a r em silêncio.

Na m e s m a noite. No a p a r t a m e n t o de Eugênio.
— E r a a q u i q u e e l a m o r a v a . . . — d i z - m e ele, l o g o q u e
entramos.
Ê um interior simpático, d u m bom-gosto confortável e
apaziguante. Sente-se aqui dentro um certo ar de intimidade
e recolhimento. Vejo um r e t r a t o de Olívia em cima d u m a
mesa, com um vaso de flores ao lado. C r o m o s pelas paredes.
U m a poltrona, u m a lâmpada com quebra-luz. U m a pequena
prateleira com livros.
— Sente, Vasco. T o m a alguma coisa?
— N ã o se incomode.
— Vou fazer um chá para n ó s . . .
A b r e a gaveta da escrivaninha e t i r a de dentro dela u m a
caixa.
— Q u e r o lhe m o s t r a r u m a coisa que só F e r n a n d a e Noel
conhecem.
268 ERICO VERÍSSIMO

S e n t a - s e a m e u l a d o , no sofá, e a b r e a c a i x a .
— S ã o c a r t a s d a O l í v i a — diz, a p a n h a n d o u m m a ç o d e
papéis. — E s t a ela me escreveu antes de morrer. As outras
f o r a m escritas lá em Nova Itália. Quando estou muito triste
ou um pouco desanimado, venho aqui p a r a esta poltrona,
a c e n d o e s t a l â m p a d a e fico l e n d o . Ás v e z e s c h e g o a t e r a i m -
p r e s s ã o de que Olívia e s t á a m e u lado, viva, conversando
comigo.
Ergue-se e me põe as cartas nas minhas mãos.
— P i q u e l e n d o e n q u a n t o eu v o u p r e p a r a r o c h á .
São belas cartas, cheias de u m a grande fé na humani-
dade, no espírito de gentileza e no destino das criaturas. Há
nelas trechos que dificilmente esquecerei.
"De que serve construir arranha-céus se não há mais al-
mas humanas para morar neles?"

"Os homens deviam ler esse trecho da Bíblia em que


Jesus fala dos lírios do campo que não trabalham nem fiam
e no entanto nem Salomão em toda a sua glória jamais se
vestiu como um deles."

"Se soubesses como tenho confiança em ti, como tenho


certeza na tua vitória final...

"Dia virá em que em alguma volta de teu caminho hás


de encontrar Deus".

Eugênio volta após algum tempo trazendo u m a bandeja


com um bule de chá, duas xícaras e um p r a t o de biscoitos.
S e n t a - s e e c o m e ç a a d e s p e j a r o c h á na m i n h a x í c a r a .
— Deixo-te Anamaria e fico tranqüila — d i z ele, c i t a n d o
um trecho da última carta, como se estivesse a pronunciar
u m a o r a ç ã o . — Já estou vendo vocês dois juntos e muito ami-
gos, caminhando de mãos dadas...
T o m o a x í c a r a e s i r v o - m e de a ç ú c a r .
— Em alguma volta de teu caminho encontrarás D e u s . . .
Já chegou a esse ponto, E u g ê n i o ?
Ele olha p a r a o r e t r a t o de Olívia e m u r m u r a :
— Talvez Deus seja u m a idéia de bondade, assim como
a m e m ó r i a de O l í v i a . . .
— Talvez. M a s você n ã o respondeu à m i n h a pergunta.
Já encontrou Deus?
SAGA 269

Ele sacode a cabeça com o ar d u m h o m e m atordoado que


t e n t a l e m b r a r - s e d e a l g u m a coisa.
— N ã o s e i . . . Certos dias t e n h o a impressão de que es-
tou mais perto d'Ele do que a n t e s . .. O u t r a s veies me volta
a v e l h a d e s c o n f i a n ç a , a i n c a p a c i d a d e de a c r e d i t a r . V e j o p o r
e x e m p l o o P a d r e R u b i m t ã o s e r e n o n a s u a fé. N o e l p a r e c e
ter achado t a m b é m o caminho de Deus. Mas por o u t r o lado
vejo F e r n a n d a t ã o s e g u r a de si m e s m a nessa sua curiosa es-
pécie de m a t e r i a l i s m o que às vezes me parece m a i s a l t r u i s t a
e nobre que muito espiritualismo fechado e egoísta.. . Não
sei...
— F e r n a n d a t a m b é m não sabe.
— O h . . . Não diga isso!
— E por que não?
— Você é cruel, Vasco.
— Todos somos cruéis.
Ele não responde. Seus olhos buscam os meus, meio an-
s i o s o s . E eu p r o s s i g o :
— Você, F e r n a n d a , Noel, e u . . . somos todos cruéis u n s
com os o u t r o s e principalmente conosco mesmos. N ã o vive-
m o s com t o d o o corpo, a c h a m o s p r a z e r n u m a espécie de a u t o -
mutilação. T e m o s a volúpia do sacrifício, narcotizamo-nos
com idéias de altruísmo, ascetismo e renúncia. Em m a t é r i a
de felicidade nunca u s a m o s o a r t i g o legítimo e sim um m u n -
do de p o b r e s sucedâneos. É p o r isso q u e e s t a m o s a s s i m de-
formados.
Ele me olha quase com rancor.
— T e r á você descoberto u m a m a n e i r a de viver com todo
o corpo?
— Não. Porque antes de mim centenas de gerações atra-
vés dos séculos e s t i v e r a m e m p e n h a d a s nesse t r a b a l h o lento
e d i a b ó l i c o de d e f o r m a ç ã o , r e p r e s s ã o e l i m i t a ç ã o . De s o r t e
que não podemos nos livrar n e m da m e t a d e desses laços que
nos prendem.
Sorvo o meu chá e n q u a n t o E u g ê n i o vai fazer funcionar
o rádio.
E s t o u furioso comigo m e s m o . Tenho adquirido ultimamen-
te o p é s s i m o h á b i t o da e s p e c u l a ç ã o . E q u a n d o fico a c a v o c a r
nas feridas alheias é porque nessa diversão perversa achei um
meio indireto, m a s sempre pungente, de mexer nas m i n h a s
próprias chagas. Porque eu sinto que chegou o momento de
escolher um caminho.
A melodia d u m violino se r e t r a ç a no ar.
270 ERICO VERÍSSIMO

— Onde e s t á a A n a m a r i a ? — pergunto, para d e s v i a r a


conversa de terrenos perigosos.
Mas, c o m o s e n ã o m e t i v e s s e ouvido, E u g ê n i o c a m i n h a
para m i m p e r g u n t a n d o :
— C o m o s e r á q u e d u a s c r i a t u r a s t ã o parecidas física e
m o r a l m e n t e c o m o F e r n a n d a e Olívia p o d e m t i r a r a m e s m a
força e o m e s m o s o n h o de f o n t e s t ã o d i f e r e n t e s ?
C o m m e d o de s e r n o v a m e n t e rude, l i m i t o - m e a e x p r i m i r
a m i n h a ignorância n u m l e n t o s a c u d i r de cabeça.
E u g ê n i o — eu o s i n t o há m u i t o t e m p o — e s t á na órbita
de influência de F e r n a n d a e c o m p l e t a m e n t e f a s c i n a d o por ela.
P e r c e b o i s s o n a s s u a s p a l a v r a s , n a m a n e i r a c o m o a contem-
p l a q u a n d o e s t ã o j u n t o s . N ã o s e i a t é onde irá e s s a adoração.
Só sei q u e para Olívia a l u t a é desigual. P o r q u e ela e s t á
m o r t a . D e l a r e s t a m e s t e s m ó v e i s , a l g u n s o b j e t o s , e s s a s car-
t a s q u e ali e s t ã o e m c i m a d a m e s a e u m a lembrança q u e s e
v a i e s m a e c e n d o c o m o p a s s a r do t e m p o , u m a m e m ó r i a a que
E u g ê n i o t e n t a d e s e s p e r a d a m e n t e dar c o r e s n o v a s .

14 de agosto

Mark Oppenheim suicidou-se o n t e m à noite. A b r i u as


v e i a s do pulso c o m a m e s m a n a v a l h a c o m q u e e s t i v e r a a se
barbear, deitou-se na c a m a c o m a m ã o t o m b a d a dentro d u m
balde e d e i x o u o s a n g u e escorrer.
F o m o s h o j e a o s e u enterro. U m a dúzia d e a c o m p a n h a n -
t e s , n o m á x i m o . V o l t a m o s d o c e m i t é r i o m u i t o deprimidos.
N ã o c o n h e c í a m o s b e m o pobre h o m e m n e m t í n h a m o s por ele
qualquer e s t i m a especial. M a s a e n o r m i d a d e de s e u d r a m a n o s
c o m o v e e abate. A t r a v é s dele s e n t i m o s o horror d e s s a i m e n s a
e s o m b r i a c o m p l i c a ç ã o em q u e os h o m e n s se m e t e r a m e da
qual parecem n ã o poder m a i s sair.
A o c h e g a r m o s a o c e n t r o d a cidade e n c o n t r a m o s o jornal
da t a r d e c h e i o de n o t í c i a s a l a r m a n t e s . A E u r o p a em pé de
guerra por c a u s a da q u e s t ã o de D a n t z i g . E c o m o o c é u por
c i m a d e n o s s a s c a b e ç a s e s t á t a m b é m nublado, t u d o t o m a u m
a s p e c t o de d r a m a e m a u p r e s s á g i o .
— P a r e c e o f i m do m u n d o . . . — m u r m u r a N o e l . E no
s e u r o s t o eu v e j o o m e n i n o a s s u s t a d o .
E u g ê n i o t e n t a pronunciar u m a palavra d e e s p e r a n ç a :
— P o d e s e r q u e t u d o s e a r r a n j e . . . q u e n ã o s a i a guerra.
— A g u e r r a européia c o m e ç o u na E s p a n h a em 1836 —
SAGA 271

d i g o e u . — O u t a l v e z a d e 1914-1918 n ã o t e n h a t e r m i n a d o
ainda.
Eugênio me convidou p a r a j a n t a r em sua companhia no
"Edelweiss", um r e s t a u r a n t e em estilo tirolês. E a p r i m e i r a
coisa que me diz q u a n d o nos i n s t a l a m o s a u m a m e s a :
— E r a a q u i que Olívia e eu c o s t u m á v a m o s v i r logo de-
pois que nos formamos. S e n t á v a m o s b e m neste lugar.
U m a senhora gorda que se acha junto da caixa registra-
d o r a a t i r a um beijo p a r a Eugênio, que lhe faz um sinal amis-
toso com a m ã o . F i c a m o s a falar em M a r k e no d r a m a dos
exilados.
— Sabes d u m a coisa? — p e r g u n t a E u g ê n i o . — Eu que-
ria t e r fé como Noel ou como o P a d r e Rubim. P o r q u e este
m u n d o e s t á se t o r n a n d o i n a b i t á v e l e g r a n d e coisa é a g e n t e
ter esperança em outro mundo.
N ã o t e n h o m a i s que u m silêncio s o t u r n o p a r a t o d a s essas
p a l a v r a s de i n q u i e t a ç ã o e a n g ú s t i a . E e s t e silêncio me fica
a roer interiormente.
— O l í v i a t i n h a fé — a c r e s c e n t a E u g ê n i o . — M o r r e u
tranqüila e confiante.
N u m a q u á r i o de vidro, peixes decorativos n a d a m sere-
n a m e n t e . A v i t r o l a c o m e ç a a t o c a r u m a v a l s a v i e n e n s e e os
olhos de E u g ê n i o se velam n u m a expressão de saudade.

16 de agosto

Nove da noite. D. Clemência na cozinha, fazendo um


bolo. Aqui na sala, s e n t a d o s à mesa, um na frente do outro,
C l a r i s s a e eu. E n t r e a m b o s , u m a l â m p a d a v e l a d a q u e p i n t a
na m e s a um círculo luminoso d e n t r o do qual nós dois nos
abrigamos como náufragos n u m a ilha perdida. De resto nós
não passamos de sobreviventes do naufrágio de u m a família.
Os Albuquerque e r a m senhores de latifúndios, de milhares
de cabeças de gado e de m u i t a s casas; ninguém tinha mais
prestígio e f o r t u n a que eles no município de J a c a r e c a n g a .
H a v i a em redor desse n o m e lendas de coragem, bondade, re-
tidão de c a r á t e r e t r a d i ç ã o gaúcha. O avô de Clarissa, tio
da m i n h a m ã e — como me lembro dele! — e r a um desses
v e l h o s p a t r i a r c a i s , c h e f e d e clã, d i r i m i d o r d e t o d a s a s q u e s -
tões que s u r g i a m na cidade, p r o t e t o r dos pobres e coluna-
m e s t r a d a f a m í l i a A l b u q u e r q u e . Q u a n d o ele m o r r e u , t u d o s e
foi á g u a s a b a i x o . D e d e s c a l a b r o e m d e s c a l a b r o o s f i l h o s fo-
272 ERICO VERÍSSIMO

r a m perdendo os campos e os prédios, n u m a sucessão de hi-


potecas. E o casarão tradicional dos Albuquerque caiu nas
mãos d u m imigrante italiano que havia vinte anos chegara
a Jacarecanga, praticamente na miséria. Anos mais tarde,
q u a n d o m a i s d u r o s e r a m o s t e m p o s , o p a i d e C l a r i s s a foi
a s s a s s i n a d o p o r u m b a n d i d o p r o f i s s i o n a l , a m a n d a d o d o chefe
p o l í t i c o local. U m d o s i r m ã o s m o r r e u n u m s a n a t ó r i o , p a r a
o n d e f o r a l e v a d o e m e s t a d o d e p l o r á v e l , p a r a s e c u r a r d o ví-
c i o da c o c a í n a . O o u t r o , b e b e r r ã o e i n ú t i l , ficou a a r r a s t a r
u m a v i d a a n i m a l i z a d a e ociosa, m o r r e n d o e m p r e s t a ç ã o , la-
m u r i e n t o e saudoso dos "bons tempos da família". Foi desse
naufrágio que um dia pretendi salvar Clarissa. É r a m o s jo-
vens e p a r a nós havia esperança. Eu vivia asfixiado em Ja-
carecanga, t i n h a a i m p r e s s ã o de que se continuasse lá por
m a i s t e m p o acabaria t a m b é m a r r a s t a d o pela e n x u r r a d a . Cus-
t o u - n o s c o n v e n c e r D. C l e m ê n c i a a d e i x a r o s e u c h ã o . V i e m o s
p a r a P o r t o Alegre onde, depois de m u i t a s t e n t a t i v a s frustra-
das, Clarissa conseguiu a sua nomeação de professora. Quan-
to a mim, n u m a fúria informe, andei n u m a série de ocupa-
ç õ e s p r e c á r i a s a t é q u e u m d i a r e s o l v i s a l t a r o r i s c o d e giz,
n u m desejo d e a v e n t u r a . . .
Sim, somos náufragos. Poderemos nos considerar salvos?
P a r a q u e r u m o fica a t e r r a f i r m e ? H a v e r á continentes na
vida ou apenas ilhas perdidas?
D e n t r o da ilha l u m i n o s a Clarissa lê e eu faço rabiscos
n u m papel — nomes, perfis, animais fantásticos. De quando
e m q u a n d o e l a e r g u e o s o l h o s p a r a m i m e e u j u l g o v e r neles
u m a e x p r e s s ã o d e a n s i e d a d e . P a r e c e q u e e l a m e q u e r dizer
a l g u m a coisa e hesita.
O silêncio, p o r é m , c o n t i n u a e, d e n t r o dele, o t i q u e - t a q u e
do relógio e o chiar m a n s o da chuva lá fora. Meu lápis t r a ç a
n o p a p e l i n e s p e r a d a m e n t e o p e r f i l d e u m s o l d a d o q u e conheci
em B e s a l u — o n a r i z a b a t a t a d o , o q u e i x o p r o g n a t a , um ca-
lombo na t e s t a : lembro-me de que o perfil me impressionou
no m o m e n t o em que o vi, m a s depois me fugiu da memória
c o m p l e t a m e n t e e só a g o r a , m e s e s e m e s e s d e p o i s , e m e r g e do
f u n d o do i n c o n s c i e n t e e pela p o n t a do l á p i s d e s c e p a r a o p a p e l .
T o r n o a e r g u e r a cabeça. Os olhos de Clarissa estão postos
e m m i m . E s p i c h o o b r a ç o e t o m o - l h e d a m ã o . S e u s lábios
tremem.
— Q u e é q u e t e n s p a r a me d i z e r ? — p e r g u n t o .
E l a fica u m i n s t a n t e s e m f a l a r e d e p o i s , q u a s e n u m cicio:
— Vasco, tenho medo de te perder outra v e z . . .
SAGA 273

— Mas tu nunca me p e r d e s t e . . .
— P o r m a i s q u e eu faça n ã o consigo t i r a r isso da cabeça.
E u sei, e u s i n t o q u e n ã o a n d a s c o n t e n t e .
Vou sentar-me ao lado de Clarissa. Puxo-a p a r a m i m e
beijo-lhe os cabelos.
— E tu s a b e s . . . tu sabes que se eu te p e r d e r . . . —
c o n t i n u a ela. N ã o c o n s e g u e t e r m i n a r . A v o z s e l h e q u e b r a .
— N a d a de choro. Deves t e r confiança em mim.
— M a s é um p r e s s e n t i m e n t o . . . m a i s f o r t e q u e eu.
N ã o e n c o n t r o p a l a v r a s p a r a a t r a n q ü i l i z a r . E c o m o fico
calado, Clarissa levanta o rosto p a r a mim, e p e r g u n t a :
— G a t o - d o - m a t o , fala com sinceridade. Tu nunca me
mentiste. Que é que t e n s ?
— Nada. Fica descansada.
— Tu andas inquieto, eu n o t o . . .
Acaricio-lhe a cabeça. Quisera t e r p a l a v r a s p a r a lhe dizer
da m i n h a t e r n u r a e do desejo que t e n h o de levá-la p a r a longe,
p a r a a l g u m lugar em que possamos viver vidas limpas e de-
centes, sem sermos compelidos a nos a t u f a r nessa luta irri-
t a n t e d e t o d o o dia, n a b u s c a d e d i n h e i r o e p o s i ç õ e s , c e g o s
e e m p e d e r n i d o s , a c o t o v e l a n d o a m u l t i d ã o , e s p e z i n h a n d o os
m a i s fracos, oferecendo, por o u t r o lado, aos outros h o m e n s
t a m b é m cegamente agressivos, a superfície vulnerabilíssima
de n o s s a sensibilidade e de nossos sonhos.
D. C l e m ê n c i a e n t r a c o m o b o l o e n o s diz c o m o s e u ar
terra-a-terra e casual:
— Que é isso, m e n i n o s ? Deixem essas coisas p a r a depois
do casamento.

22 de agosto

F e r n a n d a sabe de t u d o a respeito de E r n e s t i d e s e Ma-


nuel. C h a m a - m e em p a r t i c u l a r e me expõe o caso.
— Eu já sabia.
— P o r que não me contou?
— Achei inútil. Você já t e m p r o b l e m a s e dificuldades
de sobra.
— Mas acontece que temos de d a r um jeito nisso. Re-
conheço que P e d r i n h o t e m um pouco de culpa.
— N i n g u é m t e m culpa. As coisas acontecem. E r n e s t i d e s
tinha essa história escrita na cara.
— Você conhece esse tal Manuel P e d r o s a ?
274 ERICO VERÍSSIMO

— Conheço. É i r m ã o da Chinita.
F e r n a n d a fica u m i n s t a n t e pensativa.
— Quer me prestar um serviço?
— Diga.
— F a l e c o m o r a p a z . C o n v e n ç a - o de d e i x a r a E r n e s t i d e s
e eu d e p o i s me e n c a r r e g o d e l a e do r e s t o . O c a s a m e n t o do
Pedrinho j á começou e r r a d o . . .
— A c h o que é i n ú t i l . . . m a s já que você me p e d e . . .
— Quando vai procurar o Manuel?
— Hoje mesmo.

Cinco h o r a s . P r o c u r o Manuel no a p a r t a m e n t o m a s não


o e n c o n t r o . Ás s e i s , p o r é m , vejo-o e n t r a r no " M a r a j o a r a " e
vou sentar-me à sua mesa. O rapaz não esconde a surpresa:
— U é . . . Q u e m i l a g r e é e s s e ? P e n s e i q u e n ã o m e co-
nhecesses m a i s . . .
— N ã o é milagre. A p e n a s um assunto besta.
Ao lado da mesa o garçon espera.
— Que é que t o m a s ?
— Cianureto.
— Um M a r t i n i seco p a r a m i m e um copo de cianureto
p a r a ele.
— T r a g a dois Martinis.
— Mas que é que h á ?
Moreno, de cabelos p r e t o s e corridos, boca c a r n u d a e
olhos sonolentos, Manuel t r a z no rosto a m a r c a de grandes
e contínuas f a r r a s . T e r á no m á x i m o vinte e dois anos, mas
a p a r e n t a t r i n t a e cinco.
— Ê esse t e u a s s u n t o com E r n e s t i d e s . ..
— Que assunto?
— N ã o a d i a n t a fingir. Eu vi a r a p a r i g a e n t r a r no teu
apartamento.
— A h . . . Viraste investigador?
— N ã o m u d e s de assunto.
O g a r ç o n t r a z os M a r t i n i s .
— T a m b é m andas metido com ela?
— N ã o é i s s o . F e r n a n d a , a c u n h a d a , me p e d i u q u e te
f a l a s s e . S a b e de t u d o e q u e r a j e i t a r a coisa.
Manuel bebe o seu aperitivo, calmamente.
— E q u e é q u e eu t e n h o c o m i s s o ?
— Ê q u e se tu d e i x a s s e s a r a p a r i g a . . .
Ele me corta a p a l a v r a :
SAGA 275

— N ã o fui e u q u e m p r o c u r o u . . .
— Esse detalhe não interessa. O importante é acabar.
— Achas?
— P a r a m i m pouco importa. Mas é que o m a r i d o pode
vir a s a b e r . . .
— Pois o m a r i d o que v e n h a : quero q u e b r a r - l h e os cor-
nos.
— N ã o se t r a t a de q u e b r a r coisa n e n h u m a . N ã o acredito
que estejas apaixonado pela E r n e s t i d e s . . .
Manuel faz um gesto de indiferença.
— Mas que a d i a n t a eu n ã o procurar, se ela me p r o c u r a ?
Eu seria muito bobo se não aproveitasse.
E n c o l h o os o m b r o s e e m b o r c o o cálice.
— Quer dizer que não te interessas por t e r m i n a r a his-
tória?. ..
— Tu sabes como são as c o i s a s . . .
— E se o P e d r i n h o v i e r a s a b e r ?
— Se ele vier, e n c o n t r a h o m e m .
— E s t á bem.
Levanto-me e saio, um pouco e n v e r g o n h a d o do papel que
fui o b r i g a d o a f a z e r .
9
24 de agosto

Foi F e r n a n d a q u e m me convenceu a v i r à reunião com


q u e os E r a s m o f e s t e j a m o a n i v e r s á r i o do dono da casa.
Na véspera Roberta me havia explicado:
— I d é i a s do A l d o , que leva a sério e s s a s c o i s a s . . . E
c o m o ele convidou os s e u s a m i g o s , que por sinal s ã o u n s
t e r r í v e i s c a c e t e s , eu quero convidar os m e u s para equilibrar.
E s p e r o q u e v o c ê n ã o falte.
N o v e da noite. C o n f e s s o que me s i n t o pouco à v o n t a d e no
m e i o de t a n t a g e n t e e de t a n t a luz. O m e u desconforto au-
m e n t a quando v e j o G e d e ã o B e l é m j u n t o d e u m a d a s portas,
t o d o m e t i d o n u m a roupa d u m i n t e n s o azul, a f u m a r c o m su-
p r e m a e l e g â n c i a o s e u cigarro n u m a a t i t u d e de anúncio norte-
americano.
Lá no fundo da biblioteca, sentado n u m a poltrona ore-
lhuda de v e l u d o cor de v i n h o , a c h a - s e A l m i r o C a m b a r á
conversar c o m L e i t ã o Leiria.
N o r m a me t o m a do braço e me p u x a a t r a v é s da sala
direção d u m v u l t o verde.
— Gracinda, e s t e é o V a s c o .
U m aperto d e m ã o e a s p a l a v r a s convencionais.
Gracinda A v e i r o , c u j a crônica não desconheço, é u m a
criatura vivaz, de cabelos cor de f o g o , olhos escuros, narinas
d i l a t a d a s e lábios arregaçados. A l g u é m já ma h a v i a descrito
c o m o um t i p o rabelaiseano, vibrátil, e x p l o s i v o e de a p a i x o n a -
d a s a n e d o t a s p i c a n t e s . O n o s s o primeiro d i á l o g o é breve, d e s -
cosido e há de a m b o s os lados u m a espécie de cautelosa d e s -
confiança.
A l d o E r a s m o me a v i s t a e c a m i n h a a m e u encontro.
— Ó V a s c o ! E n t ã o , c o m o é ? V e n h a cá, quero lhe apre-
sentar a uns a m i g o s . . .
A r r a s t a - m e consigo.
278 ERICO VERÍSSIMO

— Já conhecias o Dr. Gedeão Belém? U m a bela cultu-


r a . . . Já conhecias o Vasco, Gedeão ?
O diretor de "A O r d e m " está vermelho como um t o m a t e .
— Já nos conhecemos — m u r m u r o , enquanto Aldo E r a s -
mo, com a mão protetora sobre o meu ombro, vai dizendo:
— O V a s c o é um p i n t o r m u i t o i n t e r e s s a n t e . Já v i u o r e -
t r a t o d a R o b e r t a que ele p i n t o u ? E s t á n a o u t r a s a l a . . .
Gedeão Belém n a d a mais faz que sacudir a cabeça repe-
tidamente, n u m gesto nervoso.
Passamos adiante:
— Cambará, vou te a p r e s e n t a r . . . A h . . . já se conhe-
c e m ? A q u i é o Sr. L e i t ã o L e i r i a . . . Pelo que vejo você conhe-
ce todo o m u n d o . . .
O m a r i d o de D. Dodó me estende a s u a m ã o de menino
r o s a d a e f r e s c a , e faz u m a c u r v a t u r a p r u s s i a n a .
— S e n t a , V a s c o — diz A l d o E r a s m o , a p o n t a n d o p a r a
u m a cadeira.
C a m b a r á e L e i t ã o Leiria r e a t a m a conversa. Monopólios.
E m p r e g o s de capital. Aldo E r a s m o faz um sinal à criada
que entra trazendo u m a bandeja com taças de champanha.
Servimo-nos.
— E s s a s leis d e t r a b a l h o s ã o a b s u r d a s . . . — d i z L e i t ã o
Leiria, mordiscando o charuto. — A g o r a o patrão trabalha
para o empregado. E s t á tudo subvertido.
Aldo E r a s m o bebe um gole de c h a m p a n h a e, depondo a
t a ç a no braço da poltrona, inclina um pouco o b u s t o p a r a a
frente e diz:
— N ã o h á d ú v i d a q u e e x i s t e m a b s u r d o s , m a s n ã o dei-
x e m o s de reconhecer que os t e m p o s m u d a r a m . . . N ó s pode-
m o s n o s g a b a r d a n o s s a l e g i s l a ç ã o social, q u e é u m a d a s m a i s
avançadas do mundo.
Olha p a r a m i m como a pedir aplauso. Já descobri que
ele t e m a v o l ú p i a d e a g r a d a r . Q u a n d o e s t á e n t r e a s m e n i n a s ,
fala em R o b e r t Taylor e A n n Sheridan p a r a se m o s t r a r mo-
derno. N a s rodas de Antonius discute Joe Louis, Leônidas,
m a r c a s d e a u t o m ó v e i s e records d e v e l o c i d a d e . S e m p r e q u e m e
e n c o n t r a põe-se a c i t a r p i n t o r e s e a i n d a u m d i a d e s t e s con-
fundiu Manet com Monet. A g o r a está fazendo o papel de ho-
m e m de idéias a v a n ç a d a s .
— C o i s a s d o c o m u n i s m o — diz L e i t ã o L e i r i a c o m u m a
s a n t a i n d i g n a ç ã o a b r i l h a r - l h e n o s o l h o s . — N ã o sei a o n d e
v a m o s p a r a r com essas idéias. F r a n c a m e n t e , eu às vezes che-
go a ficar com vonta de de t r o c a r a posição de p a t r ã o pela
SAGA 279

de empregado. — F a z u m a p a u s a p a r a b a t e r a cinza do cha-


ruto. — Prepare-se, C a m b a r á , porque qualquer dia vou lhe
pedir um emprego.
A conversa resvala para o petróleo, salta depois p a r a
Dantzig e acaba por se deter no E s t a d o Novo.
Roberta vem em meu socorro.
— S a i a daí, V a s c o — d i z - m e ela c o m o s e u s o r r i s o c a t i -
vante. — Você está em má companhia.
E s s e v e s t i d o p r e t o lhe fica m u i t o b e m . N ã o p o s s o s a b e r
c o m o foi q u e A l d o E r a s m o p e r d e u u m a m u l h e r t ã o e n c a n -
tadora.
Vera caminha a nosso encontro, sorrindo ( n u m traje
branco de c a r á t e r um pouco masculino) e fuzilando raios
verdes sobre nós, diz:
— E s s e h o m e m é p e r i g o s o , R o b e r t a . C u i d a d o c o m ele.
Roberta sacode a cabeça:
— E u j á sei, n ã o s e i m p r e s s i o n e .
Dirigimo-nos p a r a um grupo de senhoras que conversam
a um canto. D. Dodó se espalha n u m sorriso acolhedor, quan-
do me vê.
— O l h a o m e u f i l h o ! — E me m o s t r a às a m i g a s , c o m
um orgulho que me comove. — E s s e é o Vasco. P i n t o r , sa-
b e m ? O q u e fez o m e u r e t r a t o p a r a a c r e c h e . E n t ã o , c o m o
vai?
E s t e n d e a m ã o , q u e a p e r t o c o m u m a v o n t a d e q u a s e ir-
reprimível de beijá-la e dizer: "A bênção, m i n h a m a d r i n h a . "
— Você chegou bem a propósito, Vasco. Nós estávamos
falando no Tito Schipa.
— Ah!
— Ele passou por Porto Alegre de avião um dia destes.
R o b e r t a faz u m aceno d e cabeça n a direção d u m h o m e m
que se acha à porta da sala e me abandona. U m a das amigas
de D. Dodó segue-a com o rabo dos olhos, ao passo que sorri
um apagado sorriso de malícia p a r a a companheira a seu
lado.
— Pois quando passa um desses negros jogadores de
f u t e b o l , o a e r ó d r o m o fica a p i n h a d i n h o d e g e n t e . Q u a n d o s e
t r a t a de um artista como Schipa não vai ninguém. Ê u m a
vergonha p a r a a nossa capital, não a c h a ?
— Pois é . . . — concordo.
— O p o v o g o s t a m a s é de c i r c o — a f i r m a , p e s s i m i s t a ,
u m a das a m i g a s de D. Dodó. — Eu sempre digo ao Domingos.
— Q u a n t o s anos faz que n ã o t e m o s lírico no São P e d r o ?
280 ERICO V E R Í S S I M O

— pergunta a senhora Leitão Leiria. — Tenho loucura por


ópera. Os senhores que são a r t i s t a s — acrescenta, olhando-
m e b e m n o s o l h o s — é q u e d e v i a m e s c r e v e r a l g u m a coisa
p a r a os j o r n a i s a esse respeito.
— Q u a l é a s u a ó p e r a p r e d i l e t a ? — i n d a g o , n u m a dolo-
rosa falta de assunto.
— A h , m e u filho, g o s t o d e t o d a s . P r i n c i p a l m e n t e d a
T r a v i a t a e do R i g o l e t t o . — E b r u s c a m e n t e , s e m m u d a r de v o z :
— P o r que não t r o u x e a noivinha?
— A h . . . A C l a r i s s a n ã o g o s t a de f e s t a . . .
E a n t e s que ela enverede por o u t r o a s s u n t o peço licença
e me r e t i r o .
R o b e r t a me a p r e s e n t a o Dr. Abel — um sujeito de qua-
r e n t a e c i n c o a n o s p r e s u m í v e i s , a l t o , de r o s t o c o m p r i d o e
testa alta. Simpático, d u m a maneira talvez um t a n t o sombria
e sonolenta. Veste-se com u m a agradável elegância despre-
t e n s i o s a . É m e i o c a l a d ã o — v e r i f i c o , ao c a b o de a l g u n s i n s -
t a n t e s . L e m b r o - m e de que se fala que o Dr. Abel é a m a n t e
de R o b e r t a . Deixo-os em paz logo que encontro um p r e t e x t o
para me afastar. Tropeço em V e r a :
— Você não a c h a isto um pouco d e s a n i m a d o ? — per-
gunto.
E ela:
— Deixe os fósseis s a í r e m . . . V a i v e r que f a r r a .
— Que fósseis?
— Mamãe, papai, essas senhoras, o Cambará, aquele belo
B r u m m e l d e b i g o d i n h o . . . n ã o s e i c o m o é o n o m e dele.
N o r m a está sentada no sofá ao lado de um rapaz m a g r o
e pálido, de gestos um pouco efeminados. A m b o s se riem
convulsivamente.
E s t o u meio desamparado. Olho em torno. A um canto da
sala maior vejo t r ê s jovens a soltar risadinhas nervosas, na
frente duma poltrona na qual se acha sentado um homem
f o r t e , v e l h u s c o e m a l v e s t i d o , d e c a r a e n o r m e , feições a n g u -
l o s a s e q u e i x o p r o g n a t a . T e n h o a i m p r e s s ã o de q u e o c o n h e ç o
de alguma parte.
R o b e r t a m e t r a z u m c o p o d e whisky c o m s o d a .
— Q u e m é a q u e l e t i p o ? — p e r g u n t o , f a z e n d o um s i n a l
com a cabeça na direção da poltrona.
— É o Cel. J a n g o J o r g e . N u n c a o u v i u f a l a r n e l e ?
— O "Chacal da Serra", como lhe c h a m a v a m os jornais
da oposição?
— Em pessoa.
SAGA 281

E depois, como quem lava as mãos, a c r e s c e n t a :


— Devo avisar que são relações do Aldo. ..
Dá-me duas palmadas ligeiras no braço e se afasta na
direção das damas-de-caridade.
T o m e u m g r a n d e g o l e d e whisky. N o r m a a c e n d e o r á d i o :
a melodia d u m a m a r c h i n h a brasileira inunda o ar, que pare-
ce ficar d u m m o m e n t o p a r a o u t r o m a i s brilhante.
O s m o ç o s e s p i g a d o s a b a n d o n a m o Cel. J a n g o J o r g e , q u e
fica a e n r o l a r um c i g a r r o de palha. Obedecendo a um im-
p u l s o , q u e n ã o p r o c u r o a n a l i s a r , a p r o x i m o - m e dele e , a p r e -
sentando-lhe a c a r t e i r a de cigarros, ofereço:
— N ã o quer um feito?
Ele ergue os olhos p a r a m i m e r e s p o n d e :
— Não, gracias. Prefiro fazer um crioulo.
E depois de u m a p a u s a :
— D o n d e é q u e lhe c o n h e ç o , m o ç o ?
Arrasto u m a cadeira e sento-me.
— A c h o que de p a r t e n e n h u m a .
Seus olhos cor de mel queimado se fixam em mim, meio
vagos. A cara tostada, d u m lustroso avermelhado, se destaca
contra o estofo claro da poltrona. Parece t a l h a d a toscamen-
te em madeira. E de repente os lábios g r e t a d o s do coronel
se abrem, deixando aparecer os dentes g r a ú d o s e escuros.
F a z com a cabeça um sinal na direção dos rapazes, que a g o r a
cercam N o r m a , e me diz:
— E s t i v e contando u m a s lorotas p a r a aqueles moci-
nhos. ..
Baixa os olhos p a r a o côncavo da m ã o onde vão caindo
a s l a s c a s d e f u m o q u e eis t i r a c u i d a d o s a m e n t e c o m a f o l h a
do canivete:
— C o m o é m e s m o o seu n o m e ? — p e r g u n t a .
— Vasco Bruno.
— B r u n o . . . Donde é a sua família?
— De J a c a r e c a n g a .
— A h . . . C o n h e c e lá os M o u r a , os A l b u q u e r q u e , os T e i -
xeira ?
— Conheço, sim. Sou dos A l b u q u e r q u e .
— Da g e n t e do velho Olivério?
Sacudo a cabeça afirmativamente.
A m a s s a n d o o f u m o n a p a l m a d a m ã o , J a n g o J o r g e diz
com s u a v o z p a u s a d a e s e c a :
— G e n t e d i r e i t a . T i v e m u i t o n e g ó c i o c o m o v e l h o Olivé-
r i o . H o m e n s c o m o e s s e e x i s t e m p o u c o s , h o j e . — M o s t r a com
282 ERICO V E R Í S S I M O

o b e i ç o os a m i g u i n h o s de N o r m a . — O n d e é q u e o p a í s v a i
p a r a r com u m a gentinha como essa, toda afrescalhada e cheia
de p u l s e i r i n h a s ? — E, t i r a n d o u m a palha do bolso, n u m súbi-
to entusiasmo, exclama: — Os homens estão se acabando, seu!
— E na s u a opinião — p e r g u n t o , como q u e m a t i r a u m a
isca — p o r q u e é q u e o s h o m e n s s e a c a b a m ? . . .
Ele me contempla por um momento, com olhos sem emo-
ção, e d e p o i s r e s p o n d e :
— Modernices. .. Cinemas, m á q u i n a s , p i n t u r a s , moleza,
conforto. No t e m p o da e s c r a v a t u r a não havia negro bodoso
que não tivesse o seu pé-de-meia cheio de patacões. Hoje
quase não se encontra branco endinheirado, q u a n t o mais ne-
g r o . .. São esses calhambeques, m á q u i n a p a r a fazer tudo.
N i n g u é m sabe m a i s a n d a r a cavalo. É automóvel p a r a tudo,
aeroplano, t r e m . . . Você viu aquele desastre o o u t r o dia com
o T a n c r e d o Osório? O avião se espatifou no chão. Pois eu
c o n h e c i o p a i dele, o C h i c o O s ó r i o . E r a c a r r e t e i r o , n u n c a t e v e
pressa em c h e g a r . . . e chegou sempre. Morreu na cama.
— Mas m o r r e u . . .
— Todos morrem, moço.
T e r m i n a de e n r o l a r o c i g a r r o e l e v a - o à b o c a . O f e r e ç o -
lhe o i s q u e i r o , q u e n e g a f o g o , u m a , d u a s , t r ê s v e z e s .
E o Cel. J a n g o J o r g e , m a l i c i o s o :
— Os meus avios de fogo nunca falharam.
A o s p o u c o s m e v ê m à m e m ó r i a a s h i s t ó r i a s q u e ouvi
c o n t a r d e s s e c a u d i l h o t e n o s t e m p o s a n t e r i o r e s a 30. M a n d o -
nices, a r b i t r a r i e d a d e s , v i o l ê n c i a s , c r i m e s . . .
Um dos a m i g u i n h o s de R o b e r t a a t r a v e s s a a sala, bam-
boleando, e vai a p a n h a r um croquete no p r a t o de vidro azul
em cima da mesa. Vera e Gracinda somem-se n u m a das por-
t a s . A voz exaltada de Leitão Leiria chega até nós e, sor-
rindo p a r a D. Dodó, Aldo E r a s m o c a m i n h a na nossa direção:
— M a s q u e é isso, c o r o n e l ? Já e s t á c o m s o n o ? — E,
v o l t a n d o - s e p a r a m i m : — Q u e foi q u e ele e s t e v e l h e c o n t a n -
do, V a s c o ?
Tirando u m a baforada de seu cigarro de palha, com a
sua voz cadenciada J a n g o J o r g e diz:
— Ind'agorinha estive ensinando àqueles meninos como é
que se degola um h o m e m . — P a u s a . Conclusivo e sério, acres-
centa: — F i c a r a m b r a n c o s de susto. São u n s pés-frios. T a m -
b é m . . . q u a n t o t e m p o faz q u e n ã o t e m o s u m a r e v o l u ç ã o z i n h a
das boas?
SAGA 283

A s e g u i r p a s s a a n o s c o n t a r " c a u s o s " — c e n a s da r e v o -
lução de 93, da de 23. São histórias em torno de atos de
coragem e dedicação; em m u i t a s delas nota-se a intenção de
cercar de u m a aura de simpatia os bandidos e de respingar
o pó dourado da lenda na figura dos degoladores.

J u c a D e n t e - d e - O u r o foi c h a m a d o u m a n o i t e à c a s a d o
Cel. R a m ã o .
— Olha, Juca, tenho um trabalhinho p a r a v o c ê . . .
— Diga, patrão.
— Quero que você faça o serviço no Manuel T a r u m ã . Eu
lhe passo cem mil-réis. E s t á aqui o dinheiro.
— E s t á bem, coronel, o s e n h o r pode confiar na m i n h a
palavra. F a ç o serviço limpo, o senhor vai ficar satisfeito.
O tempo passou. Juca Dente-de-Ouro rondava Manuel
Tarumã, entretanto nunca o apanhava desprevenido para pas-
s a r - l h e a f a c a . M a s c o m as i d a s e v i n d a s da p o l i t i c a local o
Cel. R a m ã o f e z a s p a z e s c o m o s e u i n i m i g o e u m d i a c h a m o u
J u c a Dente-de-Ouro em particular e lhe disse:
— Olha, Juca, desista daquele negócio. N ã o faça n a d a
para Tarumã. Já somos amigos outra vez!
O bandido sacudiu a cabeça.
— Não s e n h o r . E u l h e g a r a n t i q u e m a t a v a e m a t o m e s -
mo. P a l a v r a é palavra. E d e p o i s . . . já gastei os cem mil-réis.
— M a s eu já disse que não quero, h o m e m ! N ã o precisa
me devolver o dinheiro.
O c a p a n g a e s t a v a e m p e d e r n i d o . E o Cel. R a m ã o d e i x o u - o
ir em paz, na esperança de que ele pensasse no a s s u n t o e visse
o a b s u r d o de s u a obstinação.
N e s t e p o n t o d a n a r r a t i v a o Cel. J a n g o J o r g e f a z u m a
pausa para dar uma "tragada".
— E q u e foi q u e a c o n t e c e u , c o r o n e l ? — p e r g u n t o .
Ele deixa o olhar a g u a d o p a s s e a r pela sala, p a c h o r r e n t o ,
e, deitando fumaça pelas narinas, r e m a t a a história a s s i m :
— O Manuel T a r u m ã e s t á e n t e r r a d o no cemitério de
Santa Rita, b e m à direita de quem e n t r a . . .
E a n t e o n o s s o s i l ê n c i o a c r e s c e n t a , c o m u m a r q u a s e so-
nhador:
— Juca D e n t e - d e - O u r o . . . H o m e m de palavra.
284 ERICO V E R Í S S I M O

— O Cel. J a n g o J o r g e é b e m o s í m b o l o de um m o m e n t o
que p a s s o u — d i g o m a i s t a r d e ao Dr. Abel, quando ficamos
a sós, j u n t o de u m a janela a beber e a fumar.
— P a s s o u . . . m a s c o n t i n u a de certo modo, — replica o
médico.
— De q u e m o d o ?
— C o n h e c e o filho do J a n g o J o r g e ? P o i s é advogado. U s a
na advocacia dos m e s m o s m é t o d o s que o pai u s a v a na poli-
tica. O caudilho e r a u m a e s p é c i e de gangster, e gangster é
t a m b é m o Dr. Miguel Jorge. E m p r e g a a fraude, a coação, o
suborno. V i v e de g o l p e s de audácia e dé n e g o c i a t a s . T e m uma
o r g a n i z a ç ã o m u i t o bem feita, u m a e s p é c i e de s i n d i c a t o da
p a t i f a r i a : nada lhe escapa. É u m pequeno A l Capone d a advo-
cacia.
A v i s ã o que o Dr. Abel t e m do m u n d o é b a s t a n t e céptica.
N ã o acredita q u e a t o l e i m a h u m a n a tenha remédio. A c h a
que o melhor é cada qual t r a t a r de a t r a v e s s a r a vida da
m a n e i r a m a i s cômoda, a g r a d á v e l e fácil.
O a m b i e n t e a o s poucos fica m a i s cálido. A música. As
bebidas. E s t e s corpos desprendendo calor. A lembrança da
noite fria lá fora, a se denunciar p e l a s v i d r a ç a s embaciadas.
— V e j a só e s s a curiosa d a n ç a . . . — s u s s u r r a o Dr. Abel
abrangendo a s a l a c o m um g e s t o da m ã o peluda. — Procure
penetrar no espírito de c a d a u m a d e s s a s p e s s o a s que estão
aqui dentro. Seria divertido descobrir s u a s i n t e n ç õ e s e dese-
j o s . P a r a começar, A l d o E r a s m o quer vender a ç õ e s de petró-
leo a o L e i t ã o L e i r i a . . .
— E o Cambará?
— I n t e r e s s a d o na c o m p a n h i a de petróleo e por sua vez
querendo v e n d e r um terreno ao E r a s m o e outro ao Leiria.
— O Gedeão B e l é m apojando D. Dodó para que e l a pense
que ele é um católico sincero e faça b o a s referências dele ao
Arcebispo.
— E D. D o d ó por s u a v e z agradando o Gedeão para que
ele continue a publicar no s e u jornal r e p o r t a g e n s sobre os
s e u s a t o s de caridade e a r t i g o s e l o g i o s o s em t o r n o do casal
L e i t ã o Leiria.
— E o Coronel J a n g o J o r g e ?
— V e i o do interior t r a t a r de a s s u n t o s de s e u interesse
na Secretaria da Fazenda. E c o m o s a b e que o A l d o E r a s m o
t e m b o a s relações c o m o S e c r e t á r i o . . .
— C o m o é que v o c ê pode e s t a r t ã o b e m i n f o r m a d o ?
— N ã o é que eu seja p e n e t r a n t e . . . E l e s é que s ã o t r a n s -
SAGA 285

p a r e n t e s . E d e p o i s o clínico, seja c o m o f o r , n ã o p a s s a d e u m a
espécie de detetive...
Vera vai ao encontro da criada que e n t r a com pratos de
frios n u m a bandeja.
— E Vera? — indago.
— Posso lhe afiançar que não t e m interesses comer-
c i a i s . . . m a s tem i n t e r e s s e s .
— N o r m a ? . . . — arrisco.
Abel ergue as g r o s s a s sobrancelhas, fita os olhos em m i m
e d e p o i s , s o r r i n d o , s a c o d e a c a b e ç a d e v a g a r i n h o , n u m a con-
firmação.
— E quanto a nós? — pergunto.
O m é d i c o t o m a u m g o l e d e whisky, p õ e o c o p o e m c i m a
duma pequena mesa e conclui:
— Nós devemos t e r t a m b é m os nossos interesses. Bom.
Até j á . . .

Depois que se vão os Leitão Leiria (deixando V e r a p a r a


t r á s ) Gedeão Belém, J a n g o Jorge, C a m b a r á , a m u l h e r e mais
as companheiras de D. Dodó, a festa t o m a outro r u m o .
R o b e r t a senta-se n u m a poltrona e os seus a m i g u i n h o s a
cercam. Um deles se acomoda e n t r e almofadas, no chão, a-
poiando as costas no sofá. Abel fica s e n t a d o a p e q u e n a dis-
tância da dona da casa, fumando indolentemente um cigarro.
O m e u s e x t o c o p o de whisky f a z q u e o n e v o e i r o q u e
começa a erguer-se no m e u cérebro passe p a r a o exterior.
Ouço o z u n z u m d a s conversas. T u d o m u i t o confuso. P a r e c e
que um dos moços e s t á recitando baixinho em francês. Detes-
t o - m e . S i n t o q u e n a d a t e n h o a f a z e r n e s t a c a s a . M a s v o u fi-
cando. Olho o relógio. Vejo os ponteiros desmaiados no meio
da névoa. D u a s horas. Risadas.
— C o m sono, V a s c o ?
— N . . . não.
Q u e m foi q u e f a l o u c o m i g o ? V e r a o u N o r m a ? C e r r o o s
olhos. P o r que não me v o u ? Tudo isto é estúpido. A cabeça
m e p e s a , c a i , tonta..
Um período de esquecimento. Terei dormido?
Gracinda vai p a r a o piano e começa a c a n t a r u m a can-
ção rasgada, gemida, indecente. P o r que não me deixam dormir
em paz? B a t e m palmas. Sinto a pressão duns dedos no meu
braço.
286 ERICO V E R Í S S I M O

— Vasco, que é que você t e m ?


E n t r e a b r o os olhos.
— N . . . nada.
N o r m a m e diz a o o u v i d o :
— Venha comigo, rapaz.
P u x a - m e pelo b r a ç o .
— N a d a de e s c â n d a l o — g a g u e j o . — R e s p e i t e a m i n h a
inocência.
— N ã o seja bobo. V a m o s .
A é r e o , c o m o s e c a m i n h a s s e n a s m o n t a n h a s d a lua, e u
me deixo levar.
N o r m a me conduz à cozinha, onde me dá u m a x í c a r a de
café b e m forte.
— V o c ê é f r a c o p a r a b e b i d a . Já t o m e i seis whiskys e
t r ê s t a ç a s de c h a m p a n h a e estou aqui, firme.
— Isso é prosa.
— P a s s a um cigarro.
F i c a m o s a f u m a r s e n t a d o s à m e s a da c o p a . A v o z r o u c a
e canalha de Gracinda Aveiro chega até nós.
— T u a a m i g a é u m a v a c a . . . A q u e l a s v e n t a s d e l a me
f a z e m m a l . O n d e foi q u e v o c ê s d e s c o b r i r a m e s s a m a r a v i l h a
da natureza?
N o r m a me olha dum modo estranho, como se nunca me
tivesse visto.
— N u n c a me v i u ? — p e r g u n t o
— C o m e s s a c a r a , n u n c a . O o u t r o d i a v o c ê e s t a v a fa-
z e n d o o m o r a l i s t a . C o m o o whisky m u d a as p e s s o a s ! U m a
b o a d o s e de Old Parr é o s u f i c i e n t e p a r a d e r r e t e r e s s a s m á s -
c a r a s . ..
Deixo cair a cinza do c i g a r r o na x í c a r a de café. Gracin-
da c o n t i n u a a m u g i r . O m u n d o é i n d e c e n t e . O l h o p a r a a c a r a
maliciosa de N o r m a . N ã o : o m u n d o é deliciosamente absurdo.
Decerto o Destino me poupou a vida na E s p a n h a , só para
que e s t a noite eu pudesse e s t a r aqui s e n t a d o na frente dessa
rapariga.
Erguemo-nos p a r a voltar ao salão. No corredor N o r m a
m e faz p a r a r :
— Você está todo despenteado. P a r e c e um selvagem.
P a s s o a m ã o p e l o s c a b e l o s . P u x a n d o - m e pelo b r a ç o , ela
me diz:
— Vamos ver um pente no quarto do Antonius.
E n t r a m o s n u m a das portas no fundo do corredor.
N o r m a a c e n d e a luz. U m a c a m a d e s o l t e i r o , u m p e q u e n o
S A G A 287

a r m á r i o c o m l i v r o s , q u a d r o s p e l a s p a r e d e s . T u d o m e i o esfu-
mado.
Norma apanha um pente de cima de uma mesinha e,
p o n d o - s e na p o n t a d o s p é s , c o m e ç a a me p e n t e a r . O c a l o r e
o perfume de seu corpo me envolvem e p e n e t r a m . Meus bra-
ços p o r b r e v e s i n s t a n t e s f i c a m c a í d o s a o l o n g o d o c o r p o . M a s
d e n t r o d e a l g u n s s e g u n d o s , o b e d e c e n d o a u m a m i s t e r i o s a or-
d e m , eles s e e r g u e m e e n l a ç a m N o r m a p e l a c i n t u r a . O u ç o o
ruído do pente que cai. E as m ã o s dela n ã o q u e r e m m a i s pen-
t e a r e sim a r r a n c a r m e u s cabelos. Nossos lábios se procuram,
se a c h a m , se e s m a g a m . O bafo cálido do inferno nos envolve,
e eu sinto u m a fúria ofegante e dilaceradora a p o d e r a r - s e de
mim.
A p o r t a se abre de repente e um vulto branco aparece.
Vera. Separamo-nos.
— A h ! Vocês estavam a í ? . . .
N o r m a f a z m e i a - v o l t a e c a m i n h a p a r a ela. T r ê m u l o e
desconcertado deixo-me ficar onde estou.
V o l t a m o s p a r a o s a l ã o e m silêncio. A t m o s f e r a e n f u m a ç a -
da e t é p i d a .
A criada sonolenta a n d a d u m lado p a r a o u t r o com u m a
g a r r a f a d e whisky e m c i m a d e u m a b a n d e j a . A l d o E r a s m o ,
grisalho, empertigado e impecavelmente vestido, como o Lewis
Stone dos bons tempos, acha-se recostado ao piano, dizendo
n ã o sei q u e a o o u v i d o d e G r a c i n d a A v e i r o , q u e s o l t a r i s a d a s
convulsivas, ao mesmo t e m p o que tira do teclado acordes
dissonantes que são como a c o m p a n h a m e n t o s p a r a as suas
gargalhadas.
Um dos mocinhos encontra-se deitado de todo o compri-
mento em cima do tapete, ressonando, ao passo que outro
deles cita t r e c h o s do "Obrydon" de Gide p a r a o Dr. Abel e
Roberta, q u e estão s e n t a d o s no sofá.
V e r a a r r a s t a N o r m a p a r a o hall e e u m e v o u i n s t a l a r
n u m a das extremidades da sala.
P o u c o d e p o i s s o a a c a m p a i n h a da p o r t a . E A n t o n i u s ,
d e s c a b e l a d o e p á l i d o , c o m a g r a v a t a d e s a m a r r a d a , e q u a s e em
estado de coma, é t r a z i d o p a r a d e n t r o por dois amigos. Aldo
limita-se a olhar p a r a Roberta com ar contrariado e, afas-
t a n d o - s e d o p i a n o , v a i a j u d a r o s r a p a z e s a l e v a r o filho a t é
o q u a r t o . Pouco depois R o b e r t a o segue. Voltando a cabeça
e d a n d o c o m i g o , o D r . A b e l e r g u e - s e e se a p r o x i m a de m i m .
— Com s o n o ? — p e r g u n t a .
Faço um sinal afirmativo.
288 ERICO V E R Í S S I M O

— A R o b e r t a e s t e v e me f a l a n d o em v o c ê . . .
— Sim?...
— Quero que pinte o meu retrato. Não é vaidade, não.
p a r a m a n d a r a u m a tia velha que me quer bem e que t e m
ilusões a meu respeito.
Sacudo a cabeça, sem entusiasmo, ao m e s m o tempo que
a b a f o um bocejo. E f i c a m o s a c o m b i n a r a d a t a da p r i m e i r a
pose.
Os a m i g o s de A n t o n i u s v o l t a m p a r a a s a l a e a d e r e m à
festa, a t r a v é s do whisky e da p a l e s t r a . F i c a m a d i s c u t i r n ã o
sei q u e c o m G r a c i n d a A v e i r o . O j o v e m a d m i r a d o r d e A n d r é
Gide se e n c a m i n h a p a r a nós e sem o m e n o r prelúdio começa
a f a z e r a d e f e s a da p e d e r a s t i a . E s t á c o m a voz um p o u c o a r -
r a s t a d a e seus olhos são lânguidos. O belo-adormecido acor-
da, l e v a n t a - s e e , e s t r e m u n h a d o e e s g a l g o , v e m r e t o m a r u m a
d i s c u s s ã o i n t e r r o m p i d a pelo s o n o . E diz, p r o v o c a n t e , n a c a r a
do nosso interlocutor:
— O Gide é u m a b e s t a .
G r a c i n d a começa a c a n t a r u m a r u m b a lúbrica e s u a s an-
cas dançam em cima da banqueta do piano, suas narinas
inflam e, de cabeça erguida, olhos revirados, o m b r o s a subir,
a d e s c e r e a c o l e a r , ao r i t m o da m ú s i c a , e l a fica a m u g i r em
espanhol.
E quando os dois rapazes nos d e i x a m em paz, o Dr. Abel,
oferecendo-me um de seus ótimos cigarros, p e r g u n t a :
— Q u e é q u e a c h a da f e s t a ?
— A c h o q u e é a, m e l h o r i m a g e m do m u n d o m o d e r n o .
N i n g u é m a c r e d i t a em n a d a . A o r d e m do d i a é — g o z a r , go-
zar a qualquer preço. Todos querem aproveitar o momento
que passa, cada q u a l se m o v e levado pelos apetites, pouco
i m p o r t a n d o o q u e possa v i r depois.
O D r . A b e l s a c o d e a c a b e ç a l e n t a m e n t e . S e u s o l h o s so-
nolentos brilham fracamente sob as sobrancelhas espessas.
— E o q u e a c h o m a i s e s t r a n h o — diz ele, p a u s a d a m e n t e
— é e s s e s m e n i n o s e s t a r e m aí a b e b e r , a d i s c u t i r " C o r y d o n " ,
Gide, M a t i s s e e o s u r r e a l i s m o , c o m o se r e p r e s e n t a s s e m um
fim de raça, n u m a t e r r a em que a r a ç a ainda n e m principiou.
— É de b o m - t o m d i s c u t i r p r o b l e m a s f r a n c e s e s , p r i n c i -
palmente os de a r t e e l i t e r a t u r a . . .
— E nós, com t a n t o s problemas palpáveis por a í . . .
Roberta t o r n a a e n t r a r na sala.
— N ã o v i r a m a V e r a e a N o r m a ? — p e r g u n t a ela.
E c o m o r e s p o n d e m o s n e g a t i v a m e n t e , a d o n a da c a s a se
SAGA 289

a f a s t a d e n ó s n a d i r e ç ã o d o hall, d i z e n d o c o m a c a b e ç a vol-
tada para trás:
— A p o s t o c o m o f o r a m lá p a r a a s o t é i a .
E s t o u cansado, com a boca e a alma a m a r g a s . N ã o posso
esquecer o que se passou e n t r e m i m e N o r m a no q u a r t o de
A n t o n i u s . A c h e g a d a d e V e r a t a l v e z m e t e n h a s a l v o d e fu-
t u r a s complicações. M a s apesar disso eu sinto a irritação que
v e m do d e s e j o s ú b i t a e v i o l e n t a m e n t e d e s p e r t a d o e n ã o s a -
tisfeito.
Às q u a t r o e m e i a d e i x o a c a s a d o s E r a s m o . S a i o a ca-
m i n h a r pela r u a fria e deserta. Ao atravessar u m a praça
julgo v i s l u m b r a r um vulto familiar. Um choque. . . Alto,
encurvado, passos arrastados, a maleta na m ã o . . . Impossí-
vel. O D r . S e i x a s e s t á m o r t o e o s m o r t o s n ã o v o l t a m . S e j a
como for sinto que o r i t m o de m e u coração se altera e eu
paro. Ilusão. Foi a sombra duma árvore. Continuo a andar.
E p e n s o : Q u e f a r i a eu se e n c o n t r a s s e a a l m a do D r . S e i x a s ?
P r o v a v e l m e n t e seguiríamos os dois lado a lado a t r a v é s desta
m a d r u g a d a d e a g o s t o , e e u lhe c o n t a r i a d a s m i n h a s d ú v i d a s ,
d a s m i n h a s i n q u i e t a ç õ e s , e d o m e u g r a n d e desejo d e e n c o n -
t r a r um c a m i n h o firme na vida — um c a m i n h o de beleza e
de bondade, livre dos velhos e r r o s e dos velhos ódios.
Venta. E r g o a gola do sobretudo. O céu está enfuma-
çado e plúmbeo. As folhagens farfalham. E um a um os meus
espectros vêm chegando. Amigos mortos de Jacarecanga. Os
companheiros d a s t r i n c h e i r a s . M a r c h a m a m e u lado encolhi-
d o s e c a l a d o s , c o m o s e t a m b é m s e n t i s s e m frio, c o m o s e t a m -
b é m l e v a s s e m c o n s i g o o p e s o de r e m o r s o s e d e c e p ç õ e s .
1O

25 de agosto

A m a n h e c e r a m s o m b r i o s o s h o r i z o n t e s d o m é s t i c o s . Cla-
r i s s a s a b e d a h o r a e m q u e c h e g u e i à c a s a o n t e m e e s t á en-
ciumada. Principiou por não q u e r e r que eu fosse à festa.
N ã o d i s s e isso c l a r a m e n t e , m a s i n s i n u o u a t r a v é s d e p e r g u n -
t a s isoladas, feitas com ar casual "Será que a festa t e r m i n a
m u i t o t a r d e ? " — " A c h a s que vais te d i v e r t i r ? " — "Dizem"
que essa Roberta é muito g r ã - f i n a . . . Tu te sentirás bem
no meio daquele pessoal?". Tratei de convencê-la com os mes-
mos a r g u m e n t o s que F e r n a n d a usou comigo. F a z e n d o rela-
ções com os a m i g o s dos E r a s m o eu podia conseguir a enco-
m e n d a de a l g u n s r e t r a t o s . . .
Saio da c a m a às dez e meto-me n u m b a n h o m o r n o . Quan-
d o e n t r o n a s a l a d e j a n t a r e n c o n t r o a m e s a p o s t a p a r a o café.
— C o m leite ou s e m l e i t e ? — p e r g u n t a C l a r i s s a c o m
voz u m p o u c o v e l a d a , s e m m e o l h a r .
— Sem leite. E sem ciúme t a m b é m .
E l a se fecha n u m m u t i s m o sombrio.
S e n t o - m e à m e s a . C l a r i s s a m e d e s p e j a o café n a x i c a r a .
Ê u m a m a n h ã cinzenta de chuva.
— A F e r n a n d a t e l e f o n o u p e r g u n t a n d o se e s t á s d o e n t e . . .
— A h . .. sim ?
— Eu disse que não, que estavas dormindo porque ti-
n h a s chegado a casa quase de manhã.
— Cinco h o r a s — corrijo-a. — O dia não t i n h a clareado
ainda.
E l a faz m e i a - v o l t a , séria e c a m i n h a até a janela. Fica
ali c o m o r o s t o e n c o s t a d o n a v i d r a ç a , e n q u a n t o e u t o m o o
m e u café. E r g o - m e e m e a p r o x i m o d e l a .
— Zangada?
Clarissa sacode a cabeça n e g a t i v a m e n t e , sem se voltar.
— N ã o t e m confiança no G a t o - d o - m a t o ?
292 ERICO V E R Í S S I M O

E l a t o r n a a sacudir a cabeça.
— N ã o quero ir embora sem te ver sorrir.
Silêncio.
— Vamos, Clarissa, não há razão para ficares assim. ..
E l a continua imóvel.
— E s t á b e m . . . — digo, com ar conclusivo.
E n f i o o i m p e r m e á v e l e a p a n h o o c h a p é u . T o r n o a me
a p r o x i m a r dela e com a voz m a i s d r a m á t i c a que m e u t a l e n t o
teatral permite, m u r m u r o :
— Terás remorsos quando souberes que a c h a r a m o meu
cadáver boiando no rio.
Atravesso a sala quase correndo na direção da porta.
Ganho o p a t a m a r e q u a n d o me p r e p a r o p a r a descer a escada,
ouço r u í d o de passos a p r e s s a d o s a t r á s de m i m e a voz de
Clarissa:
— Vasco!
V o l t o - m e . A b r o o s b r a ç o s p a r a r e c e b ê - l a . S i n t o seu co-
ração b a t e r descompassado contra o m e u peito.
— Oh, Vasco, p o r q u e é que tu fazes a s s i m ? P o r que é?
H á u m t o m d e f u n d a q u e i x a e m s u a voz. A c a r i c i o - l h e
os cabelos e lhe m u r m u r o ao ouvido:
— P e n s a s t e que eu estava falando sério?
— A gente. . . a gente contigo nunca sabe. Pode ser
b r i n q u e d o . .. e p o d e s e r s é r i o . — E c o m v e e m ê n c i a , me a p e r -
t a n d o os b r a ç o s : — E eu não quero te perder!
A g o r a q u e m e s t á e m o c i o n a d o e a r r e p e n d i d o s o u e u . Co-
mecei um brinquedo que quase t e r m i n a em lágrimas. E é
c o m voz p e r t u r b a d a q u e e u l h e d i g o :
— Tu não me perderás. .. Nunca.
E l a se a f a s t a um pouco, ergue o rosto p a r a m i m e diz:
— Já ias sair com a g r a v a t a t o r t a , Vasco. Pareces u m a
criança que a gente tem de andar sempre arrumando.

Dez e q u a r e n t a . N a r e d a ç ã o . F e r n a n d a e N o e l d i s c u t e m
os destinos de " A v e n t u r a " cujas t i r a g e n s a u m e n t a m de nú-
mero p a r a número. Centenas de pequenos leitores escrevem
c a r t a s dizendo de s u a s preferências. A l g u n s pedem as proe-
zas de Popeye, outros de F l a s h Gordon, Mickey Mouse, B r a n -
ca de Neve e os 7 A n õ e s i n h o s . U m a sensível m a i o r i a prefere
as histórias de g u e r r a e as aventuras fantásticas. Noel está
decepcionado diante do desamor que as crianças de hoje re-
v e l a m pelos c o n t o s d e f a d a . S ó p a r e c e m a c e i t á - l o s q u a n d o eles
SAGA 293

são reavivados, adaptados ao gosto moderno por um Disney


ou um Fleischer.
— Já começaste as ilustrações p a r a a Vida de Cristo?
— p e r g u n t a - m e Noel, logo que me vê.
— Já. Fiz uma imitação de gravura em madeira. Não
sei se v a i s g o s t a r .
C a m i n h o a t é a mesa, a b r o a g a v e t a e tiro dela um pu-
n h a d o de desenhos em p r e t o e branco, que m o s t r o a Noel.
Ele os e x a m i n a longamente, com o sobrolho franzido e, de-
pois de visível relutância, me diz:
— N ã o achas um p o u c o . . . como é que vou d i z e r ? . . .
um pouco realista demais?
F e r n a n d a t o m a dos desenhos.
— N ã o s e i . . . Acho que estão muito bem.
Noel faz um gesto vago.
— F a l t a . . . falta espiritualidade. Não te zangues, Vasco,
eu não digo que n ã o estejam b e m desenhados. E s t ã o , sim.
Sob o posto de vista p u r a m e n t e artístico, acho-os admiráveis.
Mas eu preferia u m a ilustração colorida em m e i o s - t o n s . E
q u a n t o ao r o s t o de J e s u s , q u e r i a que fizesses u m a fisionomia
menos macerada, menos pálida e dolorosa. Esse J e s u s aqui
por exemplo. .. que expressão de tristeza, de sofrimento, de
decepção...
A p a n h o um jornal de cima da m e s a e olho os cabeçalhos.
Os alemães ameaçam Dantzig. A E u r o p a está em pé de guerra.
— P r o v a v e l m e n t e J e s u s e s t á a s s i m d e p r i m i d o p o r q u e leu
os jornais de h o j e . . .
E p a s s a m o s a f a l a r na s i t u a ç ã o e u r o p é i a . E de n o v o vol-
tamos aos temas das histórias infantis.
— E s t a m o s r e s p i r a n d o v i o l ê n c i a e ódio — diz F e r n a n d a .
— Há vinte anos que o m u n d o se p r e p a r a m o r a l e m a t e r i a l -
m e n t e p a r a a g u e r r a . P o r isso n ã o a d m i r a que essas pobres
c r i a n ç a s p r e f i r a m a s h i s t ó r i a s d e gangsters, c o n q u i s t a d o r e s e
guerreiros. A culpa é dos m a i s velhos.
E Noel, depondo os desenhos em cima de sua m e s a :
— Eu sempre achei que as histórias de fadas não lhes
fariam nenhum mal.
— M a s é p r e c i s o n ã o a b u s a r do m a r a v i l h o s o — a v a n ç a
F e r n a n d a . — Refiro-me ao fantástico arbitrário. P a r a quê,
se a cada passo na vida real estamos encontrando maravilhas
sem precisar recorrer às fadas e ao sobrenatural?
O p r o g r a m a de F e r n a n d a é bem claro. E l a deseja d a r aos
pequenos leitores de "Aventura", através de histórias a t r a -
294 ERICO VERÍSSIMO

e n t e s , o q u e h á d e belo e d e r o m a n e s c o n a r e a l i d a d e : o s
m i s t é r i o s d a física, d a q u í m i c a , d a b i o l o g i a . O m u n d o q u e
e x i s t e n u m a s i m p l e s g o t a d e á g u a , o fino t a p e t e d e c o r e s e
b o r d a d u r a s fantásticas que é a a s a duma mosca vista ao mi-
croscópio. A vida das abelhas e d a s formigas. A sabedoria
dos animais. A g r a n d e e comovente a v e n t u r a do h o m e m na
terra. Acha que é um erro acenar para os espíritos infantis
com fantasias que são u m a contrafação da realidade. Isso só
p o d e t o r n a r m a i o r e m a i s c o n t u n d e n t e o c h o q u e q u e eles v ã o
ter com o mundo quando se puserem em contato mais direto
c o m ele.
— M a s m a t a r a s f a d a s — diz N o e l e m d a d o m o m e n t o
— é o m e s m o q u e m a t a r a p o e s i a e s e m p o e s i a a v i d a se
t o r n a intolerável.
— De a c o r d o , m e u filho — r e p l i c a F e r n a n d a . — M a s é
um e r r o p e n s a r que só existe poesia nos contos de fadas ou
no reino da p u r a imaginação. A g r a n d e e profunda poesia
encontra-se na vida. É a única d u r a d o u r a e fecunda. Nós
a c e i t a m o s , p o r e x e m p l o , a c h u v a , os a s t r o s , a m u d a n ç a d a s
estações, o crescimento d a s p l a n t a s , a r e g e n e r a ç ã o dos teci-
dos, o sistema solar como sendo p a r t e s d u m a realidade pro-
s a i c a , m a t e r i a l e q u o t i d i a n a e a c h a m o s q u e a p o e s i a m o r a no
r e i n o d o s g n o m o s d e B r a n c a d e N e v e e d a M e n i n a d o Cha-
pelinho Vermelho. Que é a radiotelefonia senão p u r a magia \
E a t e l e v i s ã o ? E a célula f o t e l é t r i c a ?
De contos de fadas saltamos p a r a a literatura chamada
s é r i a . F i c a m o s a i n d a a d a n ç a r em t o r n o d o s t e r m o s real e irreal.
Noel refere-se ao seu livro no qual, a conselho de F e r n a n d a ,
p r o c u r o u f u g i r d o m u n d o ideal, d e s c e n d o p a r a a t e r r a .
— A v e r o s s i m i l h a n ç a — diz ele, b a t e n d o de leve c o m um
l á p i s na p a l m a da m ã o — é o m a i o r o b s t á c u l o p a r a o a r t i s t a .
E eu, q u e e s t o u a g o r a a d e s e n h a r J e s u s n a c e n a d a r e s -
surreição de Lázaro, detenho-me p a r a dizer:
— Q u a n d o a g e n t e diz q u e u m a p e r s o n a g e m ou s i t u a ç ã o
d e r o m a n c e é i m p o s s í v e l , f a l a d e s e u â n g u l o i n d i v i d u a l limi-
tado. Cada h o m e m tende a achar impossível t u d o a u a n t o se
encontra fora do campo de sua experiência.
— A v i d a é l i m i t a d a . .. — diz N o e l .
— N ã o d i g a isso — r e t r u c o . — T a l v e z a s u a e x p e r i ê n c i a
que seja estreita.
— N ã o digo o contrário. M a s . . . t o m e m o s por exemplo
pedaço da nossa realidade quotidiana. A família do Mo
SAGA 295

desto B r a g a . 0 velho s e n t a d o j u n t o do r á d i o ou lendo o


jornal, D. Adélia fazendo tricô, Dejanira conversando com o
n o i v o n a s a l a , E m e s t i d e s a m u d a r o s c u e i r o s d a f i l h a , Mo-
destina ensaiando no piano do vizinho um samba p a r a c a n t a r
na sua próxima audição no rádio. Isso é realidade.
F e r n a n d a salta de seu c a n t o :
— P a s s e a u n h a nessa c a m a d a superficial de tranqüili-
d a d e e v e j a o q u e é q u e a p a r e c e . O p a s s a d o do v e l h o B r a g a ,
as suas a n g ú s t i a s e inquietudes, a preocupação de c a s a r as
filhas. Que é que há por t r á s desse p a s s a t e m p o inocente de
escrever c a r t a s às "queixas do público" senão um desejo mui-
to natural de afirmação? O homem que quando moço sonhou
c o m a l i t e r a t u r a . . . ou c o m a p r e f e i t u r a m u n i c i p a l . V e j a a
história de E r n e s t i d e s e o que r e p r e s e n t a aquela pobre criança,
a Shirley Teresinha, que vai c a r r e g a r pela vida em fora não
só esse n o m e como t a m b é m o e r r o dos pais. A c o m p a n h e o
sargento até o quartel, t r a t e de averiguar seu passado, de
descobrir seus sonhos. N ã o , Noel, a realidade não é t ã o limi-
t a d a como você pensa.
E, resolvido a e s m a g a r as t e o r i a s de Noel, proponho-me
a contar u m a história que t e m todos os característicos de
coisa a r r a n j a d a , p r e p a r a d a e falsa.
— Ouça esta, Noel. Um dia na minha companhia lá no
E b r o descobri um polaco horroroso, com cara de macaco, que
era um notável pianista. Pois bem. Passávamos ao anoitecer
pela r u a de u m a pequena cidade b o m b a r d e a d a , q u a n d o de
r e p e n t e vi o p o l a c o l a r g a r o fuzil e p r e c i p i t a r - s e na d i r e ç ã o
de u m a casa em ruínas.
E r a u m edifício d e d o i s p i s o s e a f a c h a d a e s t a v a c o m -
pletamente destruída. Via-se o a n d a r superior, com o soalho
pendido, cai não cai e, n u m a d a s salas, um p i a n o . . . O diabo
d o p o l a c o s u b i u p e l a e s c a d a q u e a i n d a e s t a v a intacta e s e a p r o -
ximou do piano. Gritamos-lhe que descesse, pois havia o pe-
r i g o do d e s a b a m e n t o . M a s o h o m e m e s t a v a q u a s e louco. A b r i u
o p i a n o e c o m e ç o u a t o c a r , a t o c a r f u r i o s a m e n t e a Polonaise
Militaire d e C h o p i n . E r a i m p r e s s i o n a n t e . A c i d a d e d e s t r u í d a
e d e s e r t a , ao a n o i t e c e r , e os s o n s do v e l h o p i a n o e s p a l h a n d o -
se no ar. O soalho rangeu. Desça! — g r i t á v a m o s nós. Mas
o h o m e m e s t a v a como que cego e surdo. Continuava a b a t e r
no piano. E de r e p e n t e u m a coisa horrível aconteceu. Ouviu-
se um estalo m a i s forte, as t á b u a s do soalho se q u e b r a r a m
e lá se v e i o o p i a n o r o l a n d o , l e v a n d o o p o l a c o p o r d i a n t e .
296 ERICO V E R Í S S I M O

C a i u c o m u m b a q u e n a s p e d r a s d o c a l ç a m e n t o , u m b a q u e seco
e ao m e s m o t e m p o e s t r a n h a m e n t e musical. C o r r e m o s . . .
Noel e F e r n a n d a me olham, interessados, esperando.
Concluo:
— O corpo do polaco achava-se intato, n ã o t i n h a um
único a r r a n h ã o . . . Mas sua cabeça estava e s m a g a d a debaixo
do piano.

27 de agosto

M a n h ã de domingo no j a r d i m da casa de Noel. Quando


entro, Anabela vem correndo para m i m de braços abertos e
com os olhos cheios de lágrimas. Acocoro-me p a r a a abraçar
e aperto-a contra o peito.
— Que é isso, q u e r i d a ? — p e r g u n t o .
Com a voz e n t r e c o r t a d a de soluços, m i n h a afilhada apon-
ta p a r a Shirley Teresinha que está sentada n u m dos degraus
do a l p e n d r e e d i z :
— P a . . . p a d r i n h o . . . e . . . e l a t i r o u o m . . . m e u . . . ca-
chorro.
— N ã o é n a d a , A n a b e l a , eu v o u f a l a r c o m a S h i r l e y .
C o m o é o n o m e do t e u c a c h o r r o ?
— T o . . .totó.
— Tu gostas m u i t o dele?
— Gosto.
De olhos arregalados, Shirley Teresinha nos contempla
meio a s s u s t a d a . E Anabela, puxando-me pela orelha, o nariz
f r a n z i d o , o b e i c i n h o t r ê m u l o , as l á g r i m a s a l h e e s c o r r e r e m
pelo r o s t o , s u p l i c a :
— P e . . . p e d e p r a ela m e . . . m e d a r o T o t ó .
O p r o b l e m a é g r a v e . Q u e f a r i a o s á b i o r e i S a l o m ã o no
meu l u g a r ? P o r q u e a dificuldade m a i o r é que esse Totó não
existe, é um ser imaginário criado pela fantasia de Anabela.
No seu mundo de "faz-de-conta" existem muitos outros habi-
t a n t e s . A Geni, u m a m e n i n i n h a de cachos que t o d o s os dias
vem brincar de comadre. Um elefante sem t r o m b a que se
c h a m a P i p a . U m n e g r i n h o d e c a r a p i n h a a z u l q u e a t e n d e pelo
nome de Mingau. São t o d o s seres invisíveis e um dia destes
eu ia c a m i n h a n d o distraído pela sala da casa de F e r n a n d a
quando Anabela se pôs a, chorar sentidamente, exclamando:
— O p a d r i n h o p i s o u na G e n i . O p a d r i n h o m a c h u c o u a
Geni.
SAGA 297

Sinto-me perdido no m u n d o de A n a b e l a . E c o m o e l a ain-


da soluça, pedindo o s e u Totó, e r g o - m e , a p r o x i m o - m e da ou-
tra criança, inclino-me sobre ela, finjo a g a r r a r a l g u m a coisa
do chão, e v o l t o para a m i n h a afilhada, trazendo-lhe o animal-
zinho imaginário.
— E s t á aqui o Totó. A g o r a não chore m a i s .
E l a me estende os braços, sorrindo, c o m as l á g r i m a s a
f a i s c a r e m n o s olhos m u i t o pretos, e fica a acariciar o s e u
a m i g o peludo e invisível, e n q u a n t o eu c a m i n h o para o alpen-
dre, a p i s a r m u i t o de leve, c o m m e d o de e s m a g a r a l g u m ha-
b i t a n t e d o reino f a n t á s t i c o d a m e n i n a A n a b e l a .

31 de agosto

Quatro e m e i a da t a r d e , na c a s a do Dr. Abel. A p r o v e i t o


e s t e r e s t o de luz para esboçar-lhe o retrato.
— N ã o pinte os m e u s p é s - d e - g a l i n h a — r e c o m e n d a - m e
ele. — E procure dar ao m e u r o s t o u m a e x p r e s s ã o angélica.
A v e l h o t a f i c a r á s a t i s f e i t a , porque f a z de m i m u m a i m a g e m
m u i t o lisonjeira.
— O que n ã o parece acontecer c o m v o c ê m e s m o .
E l e encolhe o s ombros.
— N ã o acredito e m m i m . N e m nos outros.
— É curioso. " N ã o acredito" é a e x p r e s s ã o que m a i s t e -
n h o ouvido. P a r e c e que n i n g u é m m a i s t e m fé.
— E é pena, porque n ã o se pode n e g a r que as c o i s a s
m a i s belas d a t e r r a f o r a m e r g u i d a s pela fé.
O Dr. A b e l e s t á b e m instalado. N o t a - s e que é a m i g o do
conforto. H á n e s t a s a l a d e e s t a r u m a boa quantidade d e pol-
t r o n a s f o f a s , r e c a n t o s c o m l â m p a d a s v e l a d a s , t a p e t e s , peque-
n a s e s t a n t e s com livros e r e v i s t a s .
— L e u os j o r n a i s ? — p e r g u n t a ele. — A A l e m a n h a vai
invadir a Polônia, n ã o t e n h o a m e n o r dúvida a e s s e respeito.
Ê o princípio d u m a t r e m e n d a g u e r r a . . . — E, depois d u m a
c u r t a pausa, acrescenta c o m um ar meio s o n h a d o r : — Eu
s o u do avant-guerre.
— Que avant-guerre? N ã o se e s q u e ç a que a g o r a e s t a m o s
noutro...
— R e f i r o - m e ao anterior a 1914. Eu t i n h a dezessete a n o s
m a s senti b e m e s s a época. E s t a v a e s t u d a n d o e m P a r i s . . . A s
c r i a t u r a s v i v i a m despreocupadas. H a v i a ainda carros p u x a d o s
por c a v a l o s e h o m e n s que s a b i a m f a z e r g a l a n t e i o s . Ia-se a o s
298 ERICO V E R Í S S I M O

t e a t r o s , a o s c a f é s - c o n c e r t o , lia-se l i t e r a t u r a d e boulevard.
Vocês r a p a z e s de hoje n ã o c o m p r e e n d e m isso. O " m e u " mun-
do e s t a v a apenas em lua-de-mel com o progresso mecânico.
A aviação ainda se achava na primeira infância. Havia tem-
p o p a r a v i v e r . H o j e n ã o h á . N ã o h á t e m p o p a r a n a d a . Veio
a g u e r r a e depois o m u n d o e n t r o u n u m r i t m o acelerado. Pa-
recia que e s t a v a c a m i n h a n d o para a l g u m a coisa decente. P u r o
engano. E s t a v a mas era correndo para outra guerra. Para
e s s a q u e v a i e s t o u r a r d e n t r o d e p o u c o s d i a s . N ã o sei o q u e
virá depois da catástrofe. A c h o que a derrocada de tudo.
— Q u e m s a b e ? T a l v e z d a s r u í n a s s u r j a a l g u m a coisa
nova e decente.
Penso no m u n d o socialista com que sempre sonhei.
Meu c a r v ã o continua a p a s s e a r na tela, deixando nela o
seu r a s t r o negro, que vai t o m a n d o a meu ver a semelhança
do Dr. Abel.
— N ã o s e i . .. — S u s p i r a ele. — Se d e p e n d e r de m i m , o
mundo está perdido.
E, remexendo-se um pouco na cadeira, confessa:
— V o u lhe d i z e r o q u e se passa^ c o m i g o . No f u n d o o que
sou é um grande preguiçoso. Quando rapaz, t i n h a planos. Ia
m e f o r m a r e m m e d i c i n a e d e p o i s d e d i c a r o m e u t e m p o a pes-
quisas bacteriológicas. Talvez descobrisse algum micróbio
e n g r a ç a d o e essa descoberta pudesse ser de a l g u m a utilidade
p a r a o m u n d o . M a s q u a l ! Mal me pilhei com o diploma, ati-
rei-me a u m a vida descansada. Livros, conforto, mulheres.
F u i u m a vez mais à E u r o p a . Sabe o que me aconteceu? Quan-
d o e s t a v a v i a j a n d o t i n h a v o n t a d e d e v o l t a r , v o l t a r p a r a ficar
parado, p e n s a n d o . . .
— Um c o n t e m p l a t i v o . . .
— E s s a p a l a v r a é bonita. M a s preguiçoso é o adjetivo
exato. U m bom cigarro, u m a boa poltrona, u m b o m livro o u
então u m a boa prosa fiada.
— Ainda bem que tem recursos para i s s o . . .
— A v e r d a d e é q u e eu t e n h o m a i s d i n h e i r o do q u e de-
sejava e merecia.
— Ê a p r i m e i r a v e z em t o d a a m i n h a v i d a q u e o u ç o
a l g u é m d i z e r i s s o . R e s t a s a b e r s e e s t á f a l a n d o c o m since-
ridade.
— E s t o u , s i m . S e r i n s i n c e r o d á m a i s t r a b a l h o d o q u e ser
sincero.
— Alguma herança?
— E x a t a m e n t e . Vários antepassados meus se esfalfaram
SAGA 299

no trabalho do campo, conduziram tropas, domaram potros,


l a v r a r a m a t e r r a e fizeram rigorosas economias durante anos
e anos, só p a r a que um descendente vadio e inútil pudesse
l e v a r e s t a v i d a fácil.
— Meus avós t a m b é m foram homens do campo.
— No fundo nós somos u n s renegados. Fugimos da terra.
L a r g o o c a r v ã o e me l e v a n t o .
— Sabe que t e n h o pensado muito nisso u l t i m a m e n t e ?
Acendemos cigarros.
— O n o s s o m a l — diz A b e l — é q u e v i v e m o s a m o n t o a -
dos n a s cidades, a nos a g i t a r n e s t a civilização i m i t a t i v a de
a r r a n h a - c é u s e m á q u i n a s . S o m o s u m p o v o s e m r a í z e s n o solo.
O l h e a n o s s a s o c i e d a d e . Q u e é q u e v e m o s p o r t r á s d e s s a os-
t e n t a ç ã o de renards argentées, a u t o m ó v e i s de luxo, p a l a c e t e s ,
j ó i a s e o m a i s q u e s e g u e ? N a d a m a i s n a d a m e n o s q u e fa-
zendas hipotecadas, l e t r a s vencidas e u m a fuga da t e r r a , a
renegação d u m passado que podia ser um princípio de tradi-
ção.
Pouco a n t e s d a s seis levanto-me p a r a ir e m b o r a e o Dr.
Abel me diz:
— Você j a n t a comigo. E s p e r e um pouco, que eu vou me
vestir.
Quando descemos p a r a a rua os combustores se acendem.
H á t o n s d e v e r d e n o c é u d e c r i s t a l frio, n a f a c h a d a d a s ca-
sas, n a s pedras da rua e na cara dos transeuntes.
A b e l e n f i a o b r a ç o no m e u e d i z :
— V a m o s ali n o " J a m a i c a " . Ê o n d e s e j a n t a m e l h o r .
N ã o sei s e j á l h e d i s s e . G o s t o m u i t o d e c o m e r b e m .
— Pois eu gosto de gente que não t e m o m e n o r cons-
t r a n g i m e n t o em confessar que se preocupa com a mesa.
De r e p e n t e o Dr. Abel me faz p a r a r :
— S a b e o n d e é q u e e s t á o m a l da v i d a m o d e r n a , a f o n t e
principal de inquietação de t o d a essa pobre gente que vemos
na r u a , a c o r r e r e a b r i g a r , a s s o m b r a d a pelo r e l ó g i o e con-
vencida de que tempo é mesmo ouro?
O l h o p a r a o m e u i n t e r l o c u t o r e m silêncio, e s p e r a n d o q u e
ele m e s m o d ê r e s p o s t a à p e r g u n t a q u e f o r m u l o u . O D r . A b e l
a p o n t a p a r a a p a r e d e d u m a l t o edifício o n d e s e v ê p i n t a d o
um refrigerador de proporções gigantescas encimado por es-
t a s p a l a v r a s : "ACME, O Campeão dos Refrigeradores.". L o g o
a b a i x o , em l e t r a s v e r m e l h a s : Adquira hoje mesmo o novo mo-
delo, agora com fecho de metal cromado!
— T e m o s ali u m s í m b o l o d a n o s s a é p o c a , V a s c o . Agora
300 ERICO VERÍSSIMO

com fecho de metal cromado. E s t a s p a l a v r a s d i z e m b e m da


temível e habilíssima organização comercial moderna que
a b a r c a o m u n d o e q u e de c e r t o m o d o é r e s p o n s á v e l pelo de-
lírio a q u i s i t i v o q u e s e a p o d e r o u d a s c r i a t u r a s . O s i n d u s t r i a -
l i s t a s p o r m e i o d e s e u s a g e n t e s d e p u b l i c i d a d e c r i a m neces-
sidades artificiais. P o r exemplo, o Anacleto t e m em casa um
b o m r e f r i g e r a d o r c o m p r a d o h á d o i s a n o s . O s a n ú n c i o s pu-
blicados nos jornais, berrados nos rádios ou pessoalmente por
meio de vendedores renitentes convencem a esposa de Ana-
c l e t o d e q u e ela p r e c i s a t e r u m novo r e f r i g e r a d o r com fecho
de metal cromado. I n v e n t a m u m a n o v a e s p é c i e de v e r g o n h a :
a de n ã o t e r em casa um r e f r i g e r a d o r com esse "novo dis-
positivo". Ora, m a d a m e Anacleto acaba vencida e passa a
azucrinar os ouvidos do marido. Eu quero um refrigerador
com fecho de m e t a l cromado. F u l a n a t e m . Todo o m u n d o
t e m . O n o s s o e s t á feio, a n t i q u a d o , é m o d e l o a n t i g o . E lá sai
o nosso Anacleto desesperado p a r a a r u a . . . Precisa arranjar
dinheiro p a r a c o m p r a r o novo Acme. Hipoteca a alma ao
diabo e p a s s a a viver no f u t u r o a t r a v é s d a s prestações, ator-
m e n t a d o d e c o m p r o m i s s o s q u e lhe r o u b a m t o d o o p u r o p r a z e r
de v i v e r . . .
E n t r a m o s no r e s t a u r a n t e e vamos nos s e n t a r a u m a mesa
q u e fica a o f u n d o , e n t r e d o i s b i o m b o s . O g a r ç o n , q u e p a r e c e
ser velho conhecido do Dr. Abel, vem trazer-lhe o cardápio,
sorrindo. Deixo a escolha ao meu companheiro, que parece
ser um técnico em assuntos de culinária.
— M a s . . . v o l t a n d o ao n o s s o A n a c l e t o . N ã o é só o caso
do r e f r i g e r a d o r . O m e s m o se p a s s a c o m o r á d i o , c o m o a s -
p i r a d o r d e pó, c o m o a u t o m ó v e l . . .
— Bom. Você está lidando com t e r m o s de caricatura,
m a s no fundo t e m razão. Ê isso mesmo.
— E note m a i s o seguinte. Quem está falando aqui não
t e m d i f i c u l d a d e s d e d i n h e i r o . M a s a c o n t e c e q u e n o m e u con-
sultório de moléstias nervosas aparecem homens cansados,
d e p r i m i d o s . .. Q u a n d o n ã o são de fundo sexual, todos esses
distúrbios t ê m s u a origem em questões de dinheiro, excesso
de t r a b a l h o , preocupações com o fim do mês, desejos não
s a t i s f e i t o s , n o i t e s m a l d o r m i d a s . H á s e m p r e n o f u n d o d a cons-
ciência d u m h o m e m d a classe média u m refrigerador Acme.
P r e s t e atenção nisso.
— E q u a n d o o p o b r e A n a c l e t o t e r m i n a de p a g a r o r e f r i -
g e r a d o r — d i g o . . . — lá s u r g e à p o r t a de s u a c a s a o u t r o
v e n d e d o r a lhe o f e r e c e r u m a n o v a e s p é c i e d e e s c r a v i d ã o . . .
SAGA 301

— . . . q u e ele aceita — c o n t i n u a Abel — p o r q u e já acre-


dita piamente nessas necessidades artificiais. Depois, o ex-
cesso de conforto nos amolece a v o n t a d e . N ã o dispensamos
mais a bebida gelada n e m o cinema quase diário, nem o rá-
dio, as b o a s r o u p a s e as b e l a s g r a v a t a s , o a u t o m ó v e l e os
perfumes e s t r a n g e i r o s . E u , p o r exemplo, estou lhe dizendo
estas coisas e sou incapaz de a b r a ç a r u m a vida mais simples.
E sabe por quê?
— Preguiça.
— Exatamente.
O garçon chega com o primeiro prato. O Dr. Abel pede
um vinho e fica depois a me fazer u m a preleção de s a b o r
literário sobre o Borgonha.
A m a s t i g a r com gosto o seu frango feito com um molho
e s q u i s i t o , ele c o n f e s s a p o u c o d e p o i s :
— S o u um s u j e i t o p e r f e i t a m e n t e i n ú t i l p a r a a coletivi-
dade. E o pior é que não tenho n e n h u m remorso d i s s o . . .
— A p r i m e i r a vez q u e eu vi você, j u l g u e i - o um poseur.
As s u a s p r i m e i r a s p a l a v r a s f o r a m as de um céptico, a d u m
h o m e m que olha a vida com cinismo, n u m a atitude a que
ele f a c e i r a m e n t e dá o n o m e de anatóleana.
— Continua achando que sou um céptico?
— Sim, m a s u m a espécie m u i t o e s t r a n h a de cepticismo.
Uma pausa.
— Você é solteiro?
Minhas palavras me saem da boca tintas de vinho:
— P o r pouco tempo. Caso-me dentro de duas semanas.
Abel sorri por cima do p r a t o de risoto.
— P a s s a r á o resto da vida t r a b a l h a n d o p a r a os acionis-
t a s d a A c m e Co. d e N e w Jersey. S u a m u l h e r h á d e q u e r e r
sempre o último modelo.
Olho o reflexo das l â m p a d a s na superfície vermelha do
Borgonha.
— Quem sabe?
— Por que não reage enquanto é tempo? É u m a pena
que você com m e n o s de t r i n t a a n o s vá e n g r o s s a r o exército
cinzento dos h o m e n s melancólicos e apressados que a n d a m
pela r u a a t r á s do dinheiro. D e n t r o de a l g u m t e m p o e s t a r á
desenhando bonecos horrendamente vulgares para anúncios de
sabonetes ou b a n h a de porco. Deixará de pintar quadros a
seu gosto p a r a satisfazer o gosto do anunciante. Em menos
de dez anos e s t a r á velho, cansado, t r i s t e e t e r á perdido todo
o prazer de viver. Um dia irá ao meu consultório p a r a dizer:
302 ERICO VERÍSSIMO

D r . A b e l , v o c ê t i n h a razão. E eu porei a s u a cabeça no


r a i o - X e descobrirei lá n u m a de s u a s circunvoluções, rádios,
refrigeradores, a s p i r a d o r e s de pó, f a t i o t a s , a u t o m ó v e i s , sapa-
tos. ..
F i c o em silêncio p o r a l g u m t e m p o . O Dr. A b e l bebe o
s e u s e g u n d o cálice de v i n h o . O g a r ç o n t r a z outro prato.
C o m e ç o a f a l a r n a s m i n h a s e x p e r i ê n c i a s da E s p a n h a e
do que eu j u l g o t e r s i d o a m i n h a reeducação sentimental.
— A q u e c o n c l u s ã o c h e g o u ? — p e r g u n t a o m e u compa-
nheiro.
S a c u d o a cabeça, m e i o indeciso.
— P a r a principiar, c h e g u e i à conclusão de que o m e u
l u g a r e r a aqui e n ã o lá. Se eu t i n h a c o r a g e m para a luta,
d e v i a l u t a r as l u t a s de m i n h a t e r r a e n ã o comprar b r i g a s
alheias.
-- N ã o há a m e n o r dúvida. M a s o risoto e s t á esfriando.
E depois?
— O D r . Martin, g r a ç a s a q u e m e s t o u aqui v i v o na s u a
frente, d e v a s t a n d o e s t e prato, m e d i s s e p a l a v r a s reveladoras.
N ã o h á u m a s o l u ç ã o geral, u m a s a l v a ç ã o para t o d o s o s ho-
mens. ..
— Claro. P o d e m o s m a s s a c r a r o s h o m e n s e m m a s s a m a s
é difícil oferecer-lhes u m a s a l v a ç ã o em m a s s a .
— C a d a um de n ó s t e m de procurar o s e u c a m i n h o de
acordo c o m a s s u a s inclinações.
O z u n z u m d a s c o n v e r s a s no ar enfumaçado. O calor re-
confortante do vinho.
— N o h o s p i t a l conheci u m v e l h o p r o f e s s o r espanhol que
m e c i t o u a s p a l a v r a s d u m c l á s s i c o d e s u a terra. M a i s o u me-
n o s a s s i m : " A beleza d a v i d a e s t á e m cada u m proceder d e
acordo c o m a s u a natureza e o s e u oficio".
O D r . A b e l me olha c o m ar interessado.
— Q u a n t o ás m i n h a s observações, verifiquei que dentro
d e m i m t e n h o a l g o d e inviolado, u m território que s e m a n t e v e
puro a p e s a r de t o d a a sujeira da g u e r r a e do c a m p o de con-
c e n t r a ç ã o . . . U m desejo d e beleza, d e bondade, d e harmonia.
É um território de esperança, a l g o que a g e n t e pode compa-
rar c o m a luz d u m a lanterna na proa d u m n a v i o desarvorado
em alto mar, n u m a noite escura de t e m p e s t a d e . O sinal de
que a i n d a pode h a v e r s a l v a ç ã o . . .
O m e u interlocutor s a c o d e a cabeça d e v a g a r i n h o . E des-
c a s c a n d o c o m ar m e i o a b s t r a t o o rótulo da g a r r a f a , diz:
SAGA 303

— E se v o c ê quiser c o n s e r v a r i n t a t o e s s e território de
esperança, beleza e n ã o sei m a i s q u e . . . . salve-se e n q u a n t o é
tempo.
— S i m . . . R e u n i n d o a s p a l a v r a s d o D r . Martin, c o m a s
de D o m Miguel e c o m as m i n h a s o b s e r v a ç õ e s , creio q u e p o s s o
f o r m a r u m quadro n í t i d o . . .
— E que é que v o c ê vê n e s s e q u a d r o ?
E eu lhe respondo s i m p l e s m e n t e :
— A velha terra.
11
3 de setembro

Domingo à t a r d e , na casa de Noel e F e r n a n d a . Acaba-


m o s d e o u v i r pelo r á d i o a s ú l t i m a s n o t í c i a s d a E u r o p a . A
g u e r r a foi d e c l a r a d a . E s t a m o s d e p r i m i d o s . S e t e c a r a s s o m -
brias. F e r n a n d a , Noel, Clarissa, D. Eudóxia, D. Clemência,
E u g ê n i o e eu. Mas cada qual exibe um t o m diferente de som-
bra. O rosto de D. E u d ó x i a parece e s t a r velado pela sombra
das asas do anjo da morte. E l a sofre e ao mesmo t e m p o
goza e s t r a n h o gozo. H á u m pouco d e v i t ó r i a n a s u a tristeza,
e u m e l e m e n t o d e e x a l t a ç ã o n o seu a b a t i m e n t o . N o f i m d e
c o n t a s , o p i o r s e m p r e a c o n t e c e e q u e m t e m r a z ã o s o u eu —
deve p e n s a r a m ã e de F e r n a n d a . Tenho visto m u i t a desgraça.
B r i g a s e revoluções, desastres e mortes. Eu s e m p r e digo que
a gente deve desconfiar quando tudo anda muito calmo. É
q u e a l g u m a d e s g r a ç a e s t á s e preparando. V a i h a v e r g u e r r a ,
m o r t a n d a d e , p e s t e e f o m e . Q u e m s e m p r e t e m r a z ã o s o u eu.
Mas Fernanda luta por desanuviar o rosto, quer esconder
a s u a p r e o c u p a ç ã o , os s e u s t e m o r e s , a d o l o r o s a d e c e p ç ã o da
idealista que sempre sonhou com um mundo de ordem e jus-
tiça. E l a vive a se ralar, e m p e n h a d a em salvar meia dúzia
de pessoas que não querem ser salvas e, no entanto, agora
milhões de c r i a t u r a s vão m o r r e r a m a i s estúpida e h o r r e n d a
das mortes. De que serviu a propaganda da paz? Os livros
que se escreveram em torno dos horrores da g u e r r a ? E as
filosofias p a c i f i s t a s ? E a L i g a d a s N a ç õ e s ? E a m e m ó r i a
da carnificina p a s s a d a ? M u n d o dos desacertos, de ódios e vio-
lências! E é nesse m u n d o que Anabela vai crescer. Que hor-
rores o futuro lhe r e s e r v a r á ? F e r n a n d a me contempla, grave,
e há um m o m e n t o em que julgo ler u m a pergunta a n g u s t i a d a
nos seus olhos. Vejo s u r p r e s a , d o r e pânico no r o s t o de Noel.
Decerto descobriu de repente que não só t e m e a vida como
t a m b é m a odeia. Á s p e r o e á r i d o m u n d o , e s s e e m q u e n o s s o s
melhores sonhos não podem florescer! Crescemos e nos faze-
mos h o m e n s no meio de m e n t i r a s e ilusões. Os m a i s velhos
306 ERICO VERÍSSIMO

f a l a m à n o s s a i n f â n c i a em justiça e liberdade, c o n t a m - n o s
h i s t ó r i a s que t ê m u m a moral, f á b u l a s e m que n o f i m o mau
é c a s t i g a d o e o b o m premiado. E n c h e m - n o s a cabeça de pa-
l a v r a s e idéias g r a n d i o s a s e nobres, p r o m e t e m - n o s um mundo
h a r m o n i o s o e limpo, e, no e n t a n t o , nada m a i s f a z e m do que
n o s preparar p a v o r o s a armadilha. A t i r a m - n o s de o l h o s ven-
d a d o s contra o s c a n h õ e s .
D. Clemência n ã o compreende b e m a guerra. T e m um
a r g u m e n t o s i m p l i s t a : "Guerra é coisa de g e n t e louca". E l a
s e l e m b r a d e 9 3 , d e 2 3 . Quando m e n i n a v i u u m h o m e m de-
g o l a d o perto d u m p o ç o . . . A i m a g e m de horror n ã o lhe saiu
m a i s d a memória. E l a s e lembra t a m b é m d a s g r a v u r a s d a
outra guerra. E na s u a t r i s t e z a há m u i t o de e s t o n t e a m e n t o
e i n c o m p r e e n s ã o . C o m o é que os h o m e n s q u e r e m v i v e r e v ã o
para a g u e r r a ?
Clarissa n ã o t i r a o s o l h o s d e m i m . Todos o s s e u s t e m o -
r e s s e c o n c e n t r a m decerto n o G a t o - d o - m a t o , c u j o s g e s t o s
"a g e n t e n u n c a sabe". E se ele "inventa" de ir para e s t a
g u e r r a c o m o foi para a da E s p a n h a ? Õ m e u D e u s , eu t e n h o
confiança em v ó s , fazei que o V a s c o t e n h a juízo, que essa
g u e r r a horrível a c a b e l o g o , q u e n ã o morra m u i t a gente, e
que a s cidades n ã o s e j a m b o m b a r d e a d a s . Ó m e u Deus, e u
t e n h o esperança e m v ó s .
E t r ê m u l a e silenciosa e l a aperta a minha m ã o e — ver-
dade ou i l u s ã o ? — fico a e s c u t a r as b a t i d a s d e s c o m p a s s a d a s
d e s e u coração.
E u g ê n i o t a l v e z e s t e j a pensando e m Olívia, n o s s e u s so-
n h o s de paz e bondade, no que há de d o l o r o s a m e n t e absurdo
no t r a b a l h o dos m é d i c o s q u e p r o t e g e m a s a ú d e d a s crianças,
f a z e m t u d o para que e l a s c r e s ç a m s a d i a s e b e l a s só para
q u e u m dia, n u m c a m p o d e b a t a l h a s i r v a m d e alvo à s me-
tralhadoras. N ã o s e r á m e l h o r fazer c o m o e s s a s criaturas des-
preocupadas que só p e n s a m no m o m e n t o que p a s s a e se en-
t r e g a m f r e n e t i c a m e n t e a o s prazeres d o s s e n t i d o s ? U m mé-
dico s o f r e quando n ã o pode s a l v a r a v i d a de um octogenário,
e no e n t a n t o a e s t a h o r a na Polônia m o r r e m a o s m i l h a r e s
j o v e n s de v i n t e anos. E n a s r u a s de V a r s ó v i a bombardeada
pelos a v i õ e s a l e m ã e s c a e m m u l h e r e s e crianças. De que ser-
v e m a p a l a v r a e o e x e m p l o dos idealistas se o que triunfa
é a f o r ç a ? E D e u s ? D e u s onde e s t á ?
Q u a n t o a m i m e s t o u pensando e m Áxel, D e N i c o l a , Green,
S e b a s t i a n B r o w n , n a q u e l e s c a d á v e r e s que ajudei a enterrar,
n o s m i l h a r e s d e h o m e n s que v i t o m b a r e m . . .
SAGA 307

A vida, a m a i s estúpida de t o d a s as sagas. M a s fasci-


nante, a p e s a r de t u d o . E o u t r a vez sinto dentro de m i m ar-
d e r u m n o v o ódio, u m ó d i o s e m n o m e , u m a f o r ç a a g r e s s i v a
e i m p e t u o s a q u e n ã o sei c o n t r a q u e m d i r i g i r . T e n h o v o n t a d e
d e s a i r c o r r e n d o p e l a r u a g r i t a n d o c o n t r a o s h o m e n s e con-
tra, o c é u . . .
O silêncio pesa n e s t a sala d a s sete c a r a s sombrias.

6 de setembro

Duas da tarde. Vou andando pela calçada, perdido nos


meus pensamentos, quando o súbito trombetear da buzina
d u m a u t o m ó v e l r a s g a o m e u d e v a n e i o d e a l t o a b a i x o . So-
b r e s s a l t o . U m a limonsine p á r a j u n t o d a c a l ç a d a a m e u l a d o .
Volto a cabeça. A n t o n i u s e N o r m a . F a ç o alto e ficamos a
conversar. Ê a primeira vez que encontro a r a p a r i g a depois
da festa dos E r a s m o e ela se porta como se entre nós n a d a
tivesse havido. O irmão me conta que vai t o m a r parte no
C i r c u i t o do C r i s t a l e q u e a s u a B u g a t t i — o P á s s a r o de A l u -
mínio — já está n u m dos armazéns do cais.
— Ou eu levanto o p r ê m i o ou me e s b o r r a c h o .
S u a s m ã o s f i n a s e p á l i d a s a p e r t a m o g u i d o n do c a r r o e
s e u s o l h o s s e p r o j e t a m p a r a a f r e n t e , n u m s o n h o d e veloci-
dade.
P a s s a m o s a falar da g u e r r a e A n t o n i u s n ã o pode escon-
der a sua admiração por Hitler e seus métodos:
— I s s o é q u e é m a c h o . C o m ele é só na p a n c a d a r i a . E n -
quanto o P a r l a m e n t o inglês toma u m a resolução, Hitler t o m a
um país. Democracia é conversa mole p a r a boi dormir.
N o r m a me olha a g o r a d u m modo muito estranho. A prin-
cípio j u l g o v e r e m s e u s o l h o s u m l u s t r o d e d e s e j o . D e p o i s ,
um fulgor de malícia e finalmente u m a expressão que se
avizinha da piedade.
— Eu não te disse? P a r a que todas essas besteiras de
sonhos e ideais, quando o m u n d o v e m a b a i x o ? V a m o s apro-
veitar e n q u a n t o é t e m p o . Mete o pé no fundo, Antonius, deixa
esse anjo.
Dá duas pancadinhas breves nas costas das minhas mãos
q u e s e g u r a m a p o r t a do c a r r o . E a limousine a r r a n c a . F i c o a
a c o m p a n h á - l a c o m o s o l h o s , c o m u m a s e n s a ç ã o n ã o sei s e d e
inferioridade, de orgulho ou de pena.
308 ERICO V E R Í S S I M O

11 de setembro

A c a m p a n h a de C a m b a r á contra F e r n a n d a t e m recru-
d e s c i d o n e s t e s ú l t i m o s d i a s . O n t e m , a o v o l t a r d a m i s s a , es-
c a n d a l i z a d a e t r i s t e , C l a r i s s a me c o n t o u q u e logo a p ó s o ser-
m ã o o p a d r e a c o n s e l h o u a o s c a t ó l i c o s a l e i t u r a a s s í d u a de "A
O r d e m " , " j o r n a l q u e d e f e n d e o s i n t e r e s s e s c r i s t ã o s " e reco-
mendou veementemente aos chefes de família que não dêem
a ler aos filhos "A A v e n t u r a " , revista que está a serviço das
forças do mal".
Ê fácil d e s c o b r i r n i s s o o d e d o de G e d e ã o B e l é m , que
a i n d a o n t e m e s c r e v e u um f l o r i d o a r t i g o s o b o t í t u l o — "A
Redação de Aventura é um Ninho de Comunistas".
F e r n a n d a continua impávida. Noel se debate n u m a tre-
m e n d a luta de consciência. M a s u m a visita do P a d r e Rubim
o deixa apaziguado. O b o m h o m e m r e p r o v a os métodos de
B e l é m , q u e r e p u t a d e a n t i c r i s t ã o s , m a s d á a e n t e n d e r que
nada procurará fazer p a r a não "criar casos".
— Q u e D e u s p e r d o e a e s s e m a u c a t ó l i c o — conclui ele.
D e p o i s q u e ele s a i d i g o a F e r n a n d a :
— Isso não resolve nada. Precisamos reagir.
— Mas como? — indaga Noel com olhos assombrados.
— Ê u m a luta desigual. E depois, devemos ser j u s t o s . . . —
F a z u m a pausa, como quem reluta. F e r n a n d a e eu fitamos
o s o l h o s nele, e s p e r a n d o . D e c a b e ç a b a i x a , ele m u r m u r a : —
Não quero dizer que F e r n a n d a deva desistir.. . m a s é q u e . . .
é q u e n ã o p o d e m o s n e g a r q u e a n o s s a r e v i s t a d e c e r t a ma-
neira vai contra os interesses c a t ó l i c o s . . .
A b r o a b o c a p a r a d i z e r e n t ã o alguma" c o i s a v i o l e n t a e
a g r e s s i v a , m a s F e r n a n d a m e faz u m s i n a l . C o n t e n h o - m e .

12 de setembro

Os j o r n a i s estão cheios do que aconteceu o n t e m à noite


no C i n e m a A q u a r i u m . A s e g u n d a s e s s ã o ia em m e i o e a pla-
téia estava completamente cheia. De repente alguém g r i t a :
Ratos! Z u n z u m de v o z e s e um g r i t o . . . O u t r o s g r i t o s . Os
e s p e c t a d o r e s se e r g u e m e no e s c u r o c o m e ç a o t u m u l t o . V o -
zes d e s e n c o n t r a d a s , a r r a s t a r d e p é s , g e n t e q u e p r o c u r a a p r e s -
s a d a m e n t e a s a í d a , a t r o p e l o s , p r a g a s . Q u a n d o a luz acende,
o p â n i c o é g e r a l . O p o v o se p r e c i p i t a p e l o s c o r r e d o r e s , força
SAGA 309

as portas laterais, se acotovela e espezinha, n u m a nevrose


pavorosa ante um perigo que ninguém sabe de onde vem.
N ã o h á m a i s contê-lo.
Resultado: cinqüenta pessoas feridas, sendo que duas
bastante seriamente. Vários desmaios. Crianças extraviadas.
P a s s a m o s e s t a m a n h ã , F e r n a n d a , N o e l , o g e r e n t e d o ci-
n e m a e e u à s v o l t a s c o m a polícia. F o i a b e r t o u m i n q u é r i t o
e i n t e r r o g a d a s cerca de t r i n t a pessoas. A maioria, no fim
de contas, n ã o sabe p o r que deitou a fugir. Quase todos pen-
s a v a m que se t r a t a s s e de incêndio. "Julguei que era b r i g a "
— afirmou um senhor de meia-idade, desses que gostam de
v e r filmes em que G i n g e r R o g e r s aparece de costume de ba-
nho. Um "fã" furioso de Greta Garbo afirmou que na rea-
lidade t i n h a visto um r a t o p a s s a r por baixo de sua cadeira.
U m a rapariga oxigenada, dessas que escrevem cartas a Ty-
rone Power, pedindo retrato, j u r a que sentiu " u m a coisa"
p a s s a r - l h e r o ç a n d o pelo t o r n o z e l o .
Funcionários do Departamento de Saúde varejaram todo
o cinema e n ã o e n c o n t r a r a m o m e n o r vestígio dos famosos
r a t o s nem lugar de onde pudessem t e r saído, pois se t r a t a
d u m edifício n o v o , d e c i m e n t o a r m a d o .
Perdemos todo o dia nessa agitação vã. Noel está abatido
e aflito. F e r n a n d a , apreensiva. Q u a n d o s a í m o s da C h e f a t u r a
de Polícia e e n t r a m o s no carro eu e x c l a m o :
— I s s o foi c o i s a do C a m b a r á .
A t i r a d o no banco, com a cabeça recostada no respaldo,
Noel responde sem me olhar:
— N ã o se pode fazer u m a afirmação dessas sem provas.
E como F e r n a n d a permanece silenciosa eu r e s m u n g o :
— Nunca ninguém achava provas contra Al Capone. Por
i s s o o g o v e r n o f e d e r a l n o r t e - a m e r i c a n o c r i o u os G-men.
— Que é que você quer dizer com isso? — p e r g u n t a
F e r n a n d a olhando-me com desconfiança.
— Nada.
Q u a n d o c h e g a m o s à redação, ao anoitecer, o g e r e n t e vem
nos m o s t r a r o jornal da t a r d e que t r a z um anúncio de pá-
gina inteira d a s casas de C a m b a r á . P r o c l a m a a excelência
d o s c i n e m a s d a "famosa, l i n h a E R C A " , q u e e x i b e m f i l m e s
d a s principais c o m p a n h i a s n o r t e - a m e r i c a n a s e européias, "ci-
n e m a s higiênicos onde as e x m a s . famílias e cavalheiros po-
dem ir sem perigo de suas vidas".
Noel e eu ficamos lendo o anúncio p o r cima dos o m b r o s
de Fernanda.
310 ERICO V E R Í S S I M O

— Q u e é q u e v o c ê s d i z e m ? — p e r g u n t a ela, m u i t o c a l m a .
Noel atira-se n u m a poltrona e suspira:
— D i g o q u e é p e r d e r t e m p o , d i n h e i r o e e n e r g i a em con-
tinuar com esse c i n e m a . . .
Fernanda se volta para m i m :
— E a s u a opinião, V a s c o ?
Encolho os ombros.
— E u s o u G-man. N ã o t e n h o o p i n i ã o . E s p e r o o r d e n s .
E l a sacode a cabeça, sorrindo.
— Mas fique certo de que não darei ordem p a r a nenhum
a t o de violência.
Noel se empertiga na cadeira.
— Vasco, por favor, n ã o nos comprometa.

Seis e m e i a . C l a r i s s a , D. C l e m ê n c i a e eu e s t a m o s r e u n i -
dos em torno da mesa do jantar.
— P o r que é que e s t á s t ã o sério, V a s c o ? — pergunta
a primeira.
— Nada.
— M a s é q u e . . . é q u e tu e s t á s c a l a d o , t r i s t e . . .
E, servindo-se de tutu, D. Clemência me olha com o r a b o
d o s o l h o s e diz c o m o s e u c e p t i c i s m o s e r e n o e f a m i l i a r :
— Decerto está planejando uma das d e l e . . .
C l a r i s s a d e i x a c a i r o s t a l h e r e s e , d e t e s t a e n r u g a d a , fiem
a me olhar n u m a expressão de súplica.

13 de setembro

Nove da m a n h ã . O telefone tilinta. F e r n a n d a pega do


f o n e e e u n o t o q u e h á u m a m u d a n ç a b r u s c a n a s u a fisiono-
mia. Noel está fechado na outra sala com o P a d r e Rubim.
— S i m . . . — r e s p o n d e F e r n a n d a . E h á u m a p a u s a longa
em q u e ela e s c u t a . — D i g a . .. — O u t r a p a u s a . — S a b e d u m a
c o i s a ? M a i s u m a v e z a m i n h a r e s p o s t a é não. .. Q u ê ?
V o c ê p e r d e o seu l a t i m . . . N ã o a d i a n t a . . . P o i s f a ç a . . . Não
t e m o s m e d o . . . Quê? N ã o seja ingênuo.
B o t a o f o n e no l u g a r , d e c i d i d a .
— O Cambará? — pergunto.
Ela sacode a cabeça afirmativamente.
— Q u e foi q u e ele d i s s e ?
— Tolices. F e z n o v a o f e r t a . Diz q u e é a ú l t i m a . R e p e t i a
SAGA 311

as a m e a ç a s . . . Que eu não posso lutar, que tenho de a c a b a r


me e n t r e g a n d o . . . Um b o b o .
Tento r e t o m a r o m e u t r a b a l h o . J e s u s no S e r m ã o da Mon-
t a n h a : é a i l u s t r a ç ã o p r i n c i p a l p a r a a h i s t ó r i a s e r i a d a de
Noel em torno da vida do Salvador. Lembro-me das palavras
d e J e s u s r e p e t i d a s p o r O l í v i a e m s u a c a r t a a E u g ê n i o : Olhai
os lírios do campo. S i m , é um b e l o p r o g r a m a de v i d a . O u t r a
coisa não queria eu fazer senão viver vida despreocupada
de paixões e bens mundanos. A n d a r por aí ao acaso, sem
cuidados, a t r o c a r sorrisos e gestos de bondade com as o u t r a s
c r i a t u r a s . M a s isso é um sonho. E n q u a n t o olhamos os lírios
d e s a r m a d o s e i n e r m e s , os l o b o s v ê m e n o s d e v o r a m . É p r e -
ciso p r i m e i r o d a r c o m b a t e s e m t r é g u a à s f e r a s p a r a q u e d e -
pois os homens de boa vontade possam olhar o que há de
belo e p u r o na n a t u r e z a . Odeio a violência, talvez t a n t o quan-
to a odeiam F e r n a n d a , Noel ou Eugênio. Mas como não exer-
cê-la c o n t r a a q u e l e s q u e n ã o c o n h e c e m o u t r o s m e i o s s e n ã o
os da agressão e da b r u t a l i d a d e ?
N ã o posso t r a b a l h a r . Tenho de fazer a l g u m a coisa com
r e l a ç ã o a A l m i r o C a m b a r á . N a d a p o s s o e s p e r a r d e N o e l , se-
n ã o a o r a ç ã o , a d ú v i d a ou o p u r o " d e s e j o " de p a z . Q u a n t o
à Fernanda, prosseguirá na sua m a r c h a desassombrada, ape-
s a r de tudo, m a s c o n t i n u a r á a oferecer p a r a o seu adversário
u m a l v o d e s a b r i g a d o e fácil.
Levanto-me e apanho o chapéu.
— A o n d e v a i ? — p e r g u n t a F e r n a n d a . — O l h e lá, c a p i -
t ã o . . . — a d v e r t e ela. — N a d a de c r i a n c i c e s .

O s e s c r i t ó r i o s d a E R C A f i c a m n o 10.° a n d a r . A p r o x i m o -
me do guiché e digo a um funcionário que desejo falar com
A l m i r o C a m b a r á . E l e me faz sinal na direção de u m a p o r t a .
E n t r o . Sala d e e s p e r a . J u n t o d e p e q u e n a m e s a u m a r a p a r i g a .
Q u a n d o entro, ela se l e v a n t a e p e r g u n t a :
— Que é que o senhor deseja?
— Quero falar com o Cambará.
— Tem hora marcada?
— Não.
— Como é a sua g r a ç a ?
Digo-lhe o meu nome e acrescento:
— Pode dizer que é urgente.
312 ERICO V E R Í S S I M O

A m o ç a d i r i g e - s e p a r a a s a l a c o n t í g u a e v o l t a d e p o i s de
alguns instantes dizendo que posso e n t r a r .
Cambará se encontra entrincheirado atrás de um grande
e p e s a d o bureau d e m a d e i r a p r e t a l a v r a d a , e m c i m a d o q u a l
se vêem dois telefones, um tinteiro de bronze e papéis em
desordem. Pelas janelas e n t r a a algazarra das crianças e dos
pardais da praça fronteira.
— Então, Vasco?
Felizmente não me estende a mão. Aproximo-me da me-
sa, seguro-lhe as b o r d a s , inclino-me um pouco p a r a a frente
e pergunto:
— Q u a n d o é q u e v o c ê v a i d e i x a r a F e r n a n d a em p a z ?
C a m b a r á b r i n c a com a corrente do relógio s e m me res-
p o n d e r . E c o m o m e u s o l h o s n ã o d e i x a m o s s e u s , ele t e n t a
desconversar:
— Q u e s e r i e d a d e é e s s a , r a p a z ? S e n t e aí, n ã o s e j a b o ô o .
Torno a perguntar, mordendo as sílabas:
— Q u a n d o é q u e v o c ê v a i d e i x a r a F e r n a n d a em p a z ?
C a m b a r á f r a n z e a t e s t a , e n d i r e i t a o b u s t o na c a d e i r a e
engrossa a voz:
— V o c ê s e m p r e foi d e s o r d e i r o , V a s c o . M a s c o m i g o a
c o i s a é d i f e r e n t e . O l h e q u e eu p o s s o m a n d á - l o p a r a a c a d e i a .
— Os da s u a laia a c h a m que t u d o na vida se pode resol-
v e r n a polícia.
Cambará se ergue.
— O m e l h o r é v o c ê ir e m b o r a a n t e s q u e eu p e r c a a p a -
ciência.
U m a pausa ofegante.
— E u vou. M a s a n t e s q u e r o d i z e r o q u e h á m u i t o e u
tenho atravessado na g a r g a n t a . Tenho conhecido tipos baixos,
sujos e i n d e c e n t e s . . . m a s você, C a m b a r á , é único em seu
gênero. Merece um lugar no m u s e u dos salafrários.
C o m a c a r a c o n g e s t a e os o l h o s c h i s p a n t e s , ele c o n t o r n a
a m e s a , e, i n v e s t i n d o c o n t r a m i m , p r o c u r a a g a r r a r - m e a
lapela do casaco, nesse gesto clássico das b r i g a s a respeito
das quais o herói mais t a r d e conta — "Abotoei o patife e
disse-lhe meia dúzia de desaforos na cara." Com um forte
e m p u r r ã o faço C a m b a r á cair de costas sobre a mesa. Mas
ele t o r n a a se p ô r de pé e, o r o s t o c o n t o r c i d o de r a i v a , faz
um g e s t o h e r e d i t á r i o — l e v a a m ã o à c a v a do c o l e t e e t i r a
o punhal.
— E u t e m o s t r o , c a p a n g a s e m v e r g o n h a ! — r o s n a ele.
SAGA 313

E precipita-se na minha direção. Quebro o corpo num movi-


mento instintivo, ao mesmo tempo que sinto o braço esquer-
do rasgado por uma dor aguda. Desfecho um soco na man-
díbula de Cambará, que tomba de todo o comprimento dei-
xando cair o punhal. Atiro-me em cima dele, cego de dor e
de ódio.
O sangue quente me escorre pelo braço, não vejo diante
de meus olhos mais do que u m a mancha informe, minhas
mãos apertam com força a g a r g a n t a de Cambará. . . Mas de
súbito eu sinto o horror de tudo quanto está acontecendo. A
pressão de meus dedos afrouxa e eu me levanto, arquejante,
tonto. A porta se abre e duas caras humildemente assustadas
aparecem.

Eugênio termina o curativo.


— Doeu muito? — pergunta.
— Não.
— O talho é largo mas pouco profundo.
De braços cruzados na minha frente, Fernanda me cen-
sura:
— Vasco, você é impossível.
Sem olhar para ela, respondo sombrio:
— Sinto muito, Fernanda. Foi uma estupidez o que acon-
teceu. Mas não me arrependo. Peça também ao Noel que me
desculpe.
Ergo-me e visto o casaco manchado de sangue.
— Já avisaram Clarissa? — pergunto. — Se eu chego a
casa assim de surp.esa ela vai se assustar.
— Eu já a avisei — declara Fernanda. — Ela está cal-
ma.
Sacudo a cabeça e caminho para a porta. Enxugando
as mãos, Eugênio nos segue até o corredor.
— O Cambará não irá explorar essa história? — per-
gunta ele.
— Não creio. No fim de contas ele me agrediu armado
de punhal. É bastante hábil para não se meter em apuros.
Despedimo-nos de Eugênio e entramos no carro.
— Fernanda, não posso t r a b a l h a r mais com vocês. . .
— Deixe de dizer tolices. Essa história não tem impor-
tância. Você pensa que fiquei muito zangada? Qual!
O auto rola. Cai do céu cinzento uma garoa esfarelada e
fria. O vento sacode as folhagens, move as nuvens.
— Dentro de alguns dias mais vocês se casam. . . —
314 ERICO V E R Í S S I M O

diz F e r n a n d a c o m a s m ã o s n o v o l a n t e e o s o l h o s n a e s t r a d a .
— Vão passar um mês na nossa granja lá na serra e na
v o l t a a s u a c a b e ç a e s t a r á d e s a n u v i a d a p a r a r e c o m e ç a r a lu-
ta. ..
U m a breve pausa.
— E u e s t i v e p e n s a n d o n u m a coisa, F e r n a n d a . . .
— Sim...
— Em não v o l t a r . . . Ficar junto da terra, n u m a vida
m a i s s i m p l e s . . . — E l a me olha com a t e s t a franzida e eu
prossigo. — Eu já lhe disse u m a v e z . . . Aquela a v e n t u r a na
E s p a n h a serviu p a r a que eu me conhecesse melhor, para que
eu visse o que t e n h o de b o m e de m a u d e n t r o de m i m . . .
— E que é que isso t e m a v e r com a s u a ida p a r a a
terra?
— É q u e eu c h e g u e i à c o m p r e e n s ã o de q u e a v i d a na
c i d a d e , c o m a s s u a s c o m p l i c a ç õ e s , faz q u e a t o d o m o m e n t o
e s t e j a s u b i n d o à t o n a e s s e lodo q u e d o r m e n o f u n d o d e c a d a
um de nós, ao p a s s o que n u m a vida simples e n a t u r a l eu po-
derei conservar em estado de pureza as qualidades boas que
sinto existirem e m m i m . . .
F e r n a n d a m e e s c u t a e m silêncio. E n t r a m o s n a R u a d a
Independência. A g a r o a cessou. P a r a os lados do poente se
a b r e u m a c l a r e i r a a z u l n o céu.
— Você v ê . . . — continuo. — Que fazemos t o d o s nós,
senão viver n u m a constante renúncia das coisas que mais
a m a m o s ? Ás vezes t e n h o vontade de sair com os m e u s petre-
c h o s e i r p i n t a r a s b a r c a s d e f r u t a s q u e v ê m d a s i l h a s e fi-
cam a t r a c a d a s nos cais menores ou então desenhar tipos da
r u a , t u d o pelo p u r o p r a z e r a r t í s t i c o . . . No e n t a n t o n ã o faço
isso porque preciso ir p i n t a r um r e t r a t o acadêmico e bem
l a m b i d i n h o d e D . D o d ó p o r q u e t r a b a l h o s a s s i m m e d ã o di-
nheiro. .. dinheiro p a r a comprar essas bugigangas que a
v i d a m o d e r n a t o r n o u i n d i s p e n s á v e i s . O r a , c o n t r a r i a n d o esse
meu desejo de liberdade artística e me obrigando a m i m
m e s m o a u m t r a b a l h o d e s a g r a d á v e l , e u r e c a l c o a l g u m a coisa,
cometo u m a espécie de a u t o t o r t u r a . Ao cabo de algum tempo,
fico p o r a í c h e i o d e m u t i l a ç õ e s e a l e i j õ e s i n t e r i o r e s , c o m r e -
flexos exteriores na cara, n a s m ã o s , nos gestos, n a s palavras.
O trabalho sem alegria envelhece. .. Acha que estou exage-
rando?
F e r n a n d a sacode a cabeça.
— Claro que não e s t á . . .
— Q u a n t o t e m p o faz que n ã o ouço m ú s i c a ? Há q u a n t a s
s e m a n a s não pego n u m bom livro p a r a ler? E, pior que tudo
SAGA 315

isso, estou c a n s a d o d e v e r t a n t a m á q u i n a , t a n t a pedra, t a n t o


metal. Sinto saudade do campo, d u m bom banho na s a n g a . . .
Acho que t e n h o sangue de bugre. Você compreende. . . N ã o
a d i a n t a eu c o n v e r s a r , e x p l i c a r . . .
— E Clarissa?
— A d o r a o c a m p o . C r i o u - s e na f a z e n d a e s e u s a n t e p a s -
sados, t a n t o do lado m a t e r n o como do paterno, nunca foram
gente de cidade.
— M a s v o c ê e s t á c e r t o d e q u e a c h o u m e s m o o s e u ca-
minho ?
— Sem dúvida.
— E se um d i a l h e v o l t a r a f ú r i a , o d e s e j o de l u t a , de
a g i t a ç ã o ? N ã o creio que você seja h o m e m p a r a a p a z . . .
— Mas n ã o h a v e r á paz nesse sentido de m a r a s m o , sono-
lência e inatividade. E m p r e g a r e i t o d o o meu ímpeto comba-
tivo c o n t r a os formigueiros, no t r a b a l h o da terra, na cons-
trução d u m a represa, na derrubada dum m a t o . . . em traba-
lhos assim.
— E s t á bem, capitão, está bem. F a ç a a experiência. Vá
e veja se n ã o se enganou. Depois conversaremos.

Desço do automóvel na frente de casa e me despeço de


Fernanda.
— E n ã o se e s q u e ç a de d e i x a r c r e s c e r a b a r b a , S r . R o -
b i n s o n C r u s o é ! — g r i t a - m e ela q u a n d o o c a r r o s e p õ e d e
novo em movimento.
Subo as escadas alvoroçado. Clarissa se acha à minha
espera no p a t a m a r . Felizmente e s t á serena. Tenho de lhe
contar com minúcias o que aconteceu.
D. Clemência a p a r e c e em meio do r a c o n t o e só q u e r sa-
ber se n ã o há perigo de o t a l h o " a r r u i n a r " . Como lhe digo
q u e o f e r i m e n t o n ã o t e m a m e n o r i m p o r t â n c i a , ela f i c a a m e
olhar com u m a expressão e s t r a n h a .
— Já s e i . . . — r e s m u n g o . — Já sei o q u e a s e n h o r a e s t á
p e n s a n d o . Que eu sou um sujeito impossível, maluco e inco-
modativo que acabo de fazer m a i s u m a das m i n h a s . . .
Mas ela sacode a cabeça, s o r r i n d o :
— N ã o estou pensando n a d a disso. A c h o q u s esse me-
nino a n d a v a inticando m u i t o com a pobre da F e r n a n d a . O
que ele merecia era m e s m o u m a sova.
Diz i s t o e a n u n c i a q u e v a i m e f a z e r u m b o m c a f é .
12
25 de setembro

A s c o i s a s e s t ú p i d a s s e m p r e acontecem. U m a s o m b r a d e
repente escureceu n o s s a s v i d a s d e u m m o d o t ã o inesperada-
m e n t e absurdo, que n o s d e i x o u atordoados.
É noite e na c a s a de N o e l e s t a m o s velando um morto.
P e d r i n h o foi a s s a s s i n a d o e s t a m a n h ã por Manuel Pedrosa.
Tudo s e p a s s o u c o m u m a simplicidade cruel. N ã o podendo
sufocar o ódio pela nora n e m g u a r d a r por m a i s t e m p o um
segredo que lhe ardia no p e i t o — D. E u d ó x i a c o n t o u ao filho
da l i g a ç ã o de E r n e s t i d e s c o m Manuel. O r a p a z m a l t r a t o u a
m u l h e r e s a i u em s e g u i d a para a rua à procura do a m a n t e
para a clássica "satisfação". E n c o n t r o u - o dentro de um café
e, depois d u m a troca e x a l t a d a de palavras, esbofeteou-o. Co-
mo única resposta Manuel t i r o u do r e v ó l v e r e m e t e u - l h e u m a
bala no p e i t o à queima-roupa. P e d r i n h o baqueou m o r t o .
Ê n o s m e u s braços que s e u corpo e n t r a na c a s a de Noel.
Sempre ansiei pelo dia em que p u d e s s e dar a l g u m a coisa a
F e r n a n d a c o m o prova de r e c o n h e c i m e n t o por t u d o q u a n t o ela
t e m f e i t o por Clarissa e por m i m . P o i s b e m . O d e s t i n o deu-
s e p r e s s a e m m e s a t i s f a z e r e s s e desejo. A q u i e s t o u e u para
entregar à amiga este presente e n s a n g ü e n t a d o . . .
D . E u d ó x i a a c h a - s e parada n o m e i o d o vestíbulo, o s o l h o s
s e c o s e de e x p r e s s ã o dura. E quando, m u d o e aflito, eu me
detenho a s e u lado, ela c o n t e m p l a l o n g a m e n t e o filho s e m o
menor g e s t o e depois, c o m o se ele a p u d e s s e escutar, balbucia:
— U m t i r o n o p e i t o . . . B e m c o m o o t e u pai, b e m como
o teu p a i . . .
S e u s o l h o s t r á g i c o s se e r g u e m para m i m e se f i x a m no
m e u r o s t o cheios de ódio, c o m o se eu f o s s e o culpado de t u d o
quanto aconteceu. A q u i e s t o u eu com o c a d á v e r de P e d r i n h o
n o s braços, cercado d o c l a m o r lamuriento d o s B r a g a , d o s
g r i t o s h i s t é r i c o s de E r n e s t i d e s , que abraça e beija o marido
f r e n e t i c a m e n t e , n u m desespero adoidado.
318 ERICO V E R Í S S I M O

D. E u d ó x i a se e n c a m i n h a p a r a a escada e, voltando-se
p a r a m i m , diz c o m v o z s u r d a :
— O l u g a r do P e d r i n h o é lá em c i m a . E l e n ã o t e m n a d a
que fazer aqui embaixo.
Começa a subir a escada devagar. Sigo-a penosamente,
zonzo e a r q u e j a n t e , o s b r a ç o s d o l o r i d o s , o s p a s s o s p e s a d o s .
Lá e m b a i x o o choro e as l e m b r a n ç a s continuam.
Dez m i n u t o s d e p o i s c h e g a F e r n a n d a e s u a r e a ç ã o d i a n t e
d o c o r p o d o i r m ã o é p a r a m i m i n e s p e r a d a . J u l g u e i q u e ela
se contivesse, como em t a n t a s o u t r a s ocasiões igualmente
d i f í c e i s . . . M a s a o v e r P e d r i n h o e s t i r a d o n a c a m a , ela r o m p e
n u m choro desatado e convulsivo, que se prolonga por muito
tempo. Creio que F e r n a n d a não chora apenas o i r m ã o perdi-
do, m a s t a m b é m t o d a s as a n t i g a s dores recalcadas. É como
se de repente se partisse a r e p r e s a da v o n t a d e e as á g u a s
adormecidas, retomando o ímpeto de outros tempos, se pre-
cipitassem t a m b é m pela brecha. De súbito tenho a impressão
de que o m u n d o t r e m e , de que a l g u m a coisa no universo se
quebra, só porque F e r n a n d a chora. Tenho vontade de descer
as escadas correndo, g a n h a r a r u a e fugir. .. Mas Noel está
abatido e inerme. D. E u d ó x i a se m a n t é m n u m a imobilidade de
pedra. Lá embaixo Ernestides continua a g r i t a r e os B r a g a
dão largas ao talento histriónico, entregando-se a teatrais
e x i b i ç õ e s de p e s a r . É i n d i s p e n s á v e l q u e a l g u é m c o n s e r v e a
c a b e ç a f r i a , d o m i n e os n e r v o s e a s i t u a ç ã o . F i c o .

A g o r a aqui e s t a m o s n u m silêncio de tristeza, desânimo


e d e c e p ç ã o . E u q u i s e v i t a r t o d a a h a b i t u a l e n c e n a ç ã o d o s ve-
l ó r i o s , m a s u m t e r r o r s u p e r s t i c i o s o fez q u e t o d a e s t a g e n t e ,
a p r i n c i p i a r p o r Noel, s e v o l t a s s e c o n t r a m i m . F e r n a n d a
a c h o u q u e n ã o d e v í a m o s i n t e r f e r i r . . . Q u e se fizesse a von-
t a d e da maioria. Assim, nada falta nesta sala onde ainda
ontem F e r n a n d a e Noel e s c u t a v a m Mozart, liam e faziam
alegres planos otimistas. O caixão rico, os longos círios nos
castiçais prateados, o grande pano negro com franjaduras
de o u r o , flores, m u i t a s f l o r e s e c o r o a s . E m a i s os v i z i n h o s
e c o n h e c i d o s q u e v ê m t r a z e r p ê s a m e s , e a s c o n v e r s a s meio
c o c h i c h a d a s q u e f o r m a m e s s a e s p é c i e d e a l e g r e t r i s t e z a que
é em geral o t o m p r e d o m i n a n t e dos velórios.
Fico a me l e m b r a r da noite em que o corpo do pai de
Clarissa estava sendo velado na sala g r a n d e do casarão dos
SAGA 319

A l b u q u e r q u e , e m J a c a r e c a n g a . U m m o m e n t o p a r a m i m deci-
sivo e i n e s q u e c í v e l .
Imóvel ao pé do caixão, D. Eudóxia parece u m a e s t á t u a
t a l h a d a em g r a n i t o n e g r o e c i n z a . M a s n ã o . . . A g o r a a d u r e z a
desapareceu-lhe do rosto e nos olhos foscos há u m a tristeza
profunda — m a s u m a tristeza sem orgulho, submissa, deses-
perançada, v i l . . .
Modesto B r a g a desempenha as funções de m e s t r e - d e - c e -
r i m ô n i a s . É ele q u e m a c o l h e e a c o m p a n h a os q u e c h e g a m .
Recebe os pêsames com o devido ar penalizado. Dir-se-ia que
esta m o r t e lhe confere u m a certa importância. Neste mo-
m e n t o ele é a l g u é m : o s o g r o d a v í t i m a . U m a p e r s o n a l i d a d e
antes apagada m a s posta de súbito em destaque por u m a
moldura fúnebre.
Clarissa e D. Clemência acham-se na o u t r a sala fazendo
c o m p a n h i a a N o e l e F e r n a n d a . M o d e s t i n a , os o l h o s m a l i c i o -
sos a s a l t a r d u m lado p a r a outro, presta-se a pequenos ser-
viços e parece m u i t o contente por e s t a r envolvida n u m assun-
to de adultos. D. Adélia, que t e m prática de muitos outros
velórios, m a n d a s e r v i r cafezinhos. C h e g a m até aqui as risa-
d a s h i s t é r i c a s d e E r n e s t i d e s e m q u e m E u g ê n i o h á p o u c o foi
aplicar u m a injeção calmante. Dejanira e o seu s a r g e n t o
a c h a m - s e s e n t a d o s a u m c a n t o d a s a l a , d e m ã o s d a d a s e ca-
beças muito juntas.
O l h o em t o r n o — o c a i x ã o c o b e r t o de f l o r e s , os c í r i o s
ardendo e despedindo um cheiro nauseante, os "convivas"
bebericando g o s t o s a m e n t e o cafezinho, os noivos m u i t o agar-
rados — e começo a a c h a r este conjunto v a g a m e n t e porno-
gráfico. A morte é indecente — penso — indecente e vulgar;
não t e m a m e n o r dignidade. Digo isto ao P a d r e R u b i m , que
e s t á a m e u l a d o . I n c l i n a n d o a c a b e ç a ele m u r m u r a :
— P o d e ser, q u a n d o a g e n t e olha a p e n a s o aspecto m a -
t e r i a l da m o r t e . S i m , o c o r p o a p o d r e c e , é c o m i d o p e l o s v e r -
mes, m a s existe algo de puro e luminoso que não perece com
a carne, m a s sobe p a r a o céu onde t o d a a fealdade e todo
o sofrimento do mundo desaparecem p a r a sempre.
— P a d r e , se ao m e n o s eu p u d e s s e a c r e d i t a r - . . .
Ele sorri:
— M a s você pode, Vasco. Talvez o seu orgulho seja o
único empecilho. A hora da revelação divina há de chegar
t a m b é m p a r a a sua inteligência, p a r a o seu coração.
Fica a contemplar o caixão.
— Eu e n c a r o e s s a s c o i s a s c o m a m a i o r s e r e n i d a d e —
320 ERICO V E R Í S S I M O

p r o s s e g u e ele. — N ã o h á r a z ã o p a r a c h o r o s , foi o q u e e s t i v e
d i z e n d o h á p o u c o a o N o e l . O s q u e m o r r e m s ã o felizes. T e n h o
p e n a é dos que ficam neste m u n d o de pecado e maldade.
E c o m o e u m e m a n t e n h o n u m silêncio r e f l e x i v o , ele
acrescenta:
— O m a l de q u a s e t o d o s os v i v e n t e s é q u e eles d ã o de-
masiado apreço à vida terrena. — Volta-se para m i m e aper-
t a - m e o b r a ç o . — M e u filho, p e n s e b e m , a r r e p e n d a - s e e n -
q u a n t o é t e m p o . A m a n h ã p o d e s e r t a r d e d e m a i s . . . E u lhe
peço, e u . . . e u . . .
No seu rosto há u m a expressão de ânsia, de urgência,
de p e r i g o i m i n e n t e . . . D e p o i s , m a i s c a l m o , t o r n a a f a l a r : —
P o n h a a s u a mocidade, a sua força, a sua arte, o seu cora-
ção a serviço de Deus. F o r a da religião n ã o há paz possível.
Fico calado. Modestina vem me oferecer u m a xícara de
café. D i g o q u e n ã o , c o m u m m o v i m e n t o d e c a b e ç a . D u m m o -
do m i s t e r i o s o eu a s s o c i o o café ao v e l ó r i o , ao d e f u n t o , à m o r -
te. E me recuso desesperadamente a e n t r a r em comunhão
com esses elementos sombrios de destruição. Mais do que
nunca eu quero viver.
D e n t r o de dois m i n u t o s s u r g e E u g ê n i o e me convida p a r a
sair.

E s t a m o s no j a r d i m a c a m i n h a r de um lado p a r a outro,
f u m a n d o em silêncio.
— T u d o i s s o é t ã o e s t ú p i d o — diz E u g ê n i o , a p ó s a l g u m
tempo — que a gente n e m a c h a jeito de comentar.
S a c u d o a c a b e ç a n u m s i l e n c i o s o a c o r d o . P a s s a m o s o por-
t ã o e saímos a a n d a r lentamente pela calçada. P a s s a um
bonde iluminado e barulhento. A l g u m a s crianças brincam na
p r a ç a fronteira. Sentimos no r o s t o a b r i s a fresca da noite,
c a r r e g a d a do perfume de flores de laranjeira.
— É b o m r e s p i r a r ar p u r o — d i g o . — Há p o u c o lá den-
t r o estive pensando no que a morte t e m de v u l g a r . . .
— C o m o foi v u l g a r t a m b é m o q u e a c o n t e c e u . . . — a c r e s -
centa Eugênio. — O t i p o da história tola, do l u g a r - c o m u m . . .
— O m a i s h o r r í v e l e ao m e s m o t e m p o o m a i s b e s t a é
q u e t a n t o o M a n u e l c o m o o P e d r i n h o n ã o p a s s a v a m d e cri-
anças que e s t a v a m brincando de gente grande.
— Mas como u s a v a m das mesmas a r m a s que os adultos
usam, o que podia ser apenas u m a comédia se transformou
numa tragédia.
SAGA 321

— Que f i c a ainda m a i s t r á g i c a — c o m p l e t o eu — quan-


do a g e n t e p e n s a no que ela t e m de g r a t u i t o , de i m a t u r o e
absurdo.
Paramos a u m a esquina.
— V e j a b e m a s i t u a ç ã o . . . — digo, a p e r t a n d o o braço
de m e u c o m p a n h e i r o . — P e d r i n h o não l i g a v a a m e n o r im-
portância à mulher, e n g a n a v a - a s e m p r e que podia, t i n h a u m a
a m a n t e c o m quem g a s t a v a a m a i o r parte do ordenado. Ma-
nuel, por s u a vez, n ã o s e n t i a n e n h u m a a f e i ç ã o especial por
E r n e s t i d e s , v i a nela a p e n a s "mais u m a c o n q u i s t a " que n e s s e
c a s o t i n h a o sabor da c o i s a proibida: e r a a m u l h e r de ou-
tro. ..
— Ai e s t ã o t o d o s os d a d o s de u m a farsa. Como foi que
i s s o v i r o u d r a m a d e u m a hora para o u t r a ?
— N e s s e ponto entram os fantasmas.
— Os f a n t a s m a s ?
— S i m , t o d o s os n o s s o s a n t e p a s s a d o s , os que n o s prece-
deram, a q u e l e s cujo s a n g u e corre n a s n o s s a s v e i a s , c u j o s er-
r o s e s t ã o na n o s s a carne e c u j a s s u p e r s t i ç õ e s se a r r a i g a r a m
no nosso espirito.
C o n t i n u a m o s a andar, c o m o se q u i s é s s e m o s a m b o s nos
a f a s t a r o m a i s possível da c a s a do m o r t o . A v i s t a m o s as co-
l i n a s d e P e t r ó p o l i s , c o m s u a s v i v e n d a s d e j a n e l a s iluminadas.
U m a lua c h e i a a m a r e l a d a e g r a n d e s o b e no h o r i z o n t e e à luz
fluida e f r i a o verde d o s o u t e i r o s g a n h a u m a tonalidade m i s -
teriosa.
— Em p r i m e i r o l u g a r — p r o s s i g o — h a v i a em Pedrinho
e s s a coisa a que p o d e m o s dar o n o m e de "a v e r g o n h a de ser
corno", que é a pior d a s h u m i l h a ç õ e s para q u e m t e m o or-
g u l h o d a masculinidade. É u m s e n t i m e n t o h u m a n o , n ã o h á
dúvida, m a s m u i t o e s t r a n h o q u a n d o a g e n t e p e n s a em que
P e d r i n h o n ã o t i n h a v e r g o n h a de e n g a n a r a s u a m u l h e r ou de
"ornamentar" os outros maridos.
— E depois, a idéia p r i m i t i v a de que e s s a v e r g o n h a só
s e pode a p a g a r c o m u m a a g r e s s ã o f í s i c a . . .
— E x a t a m e n t e . P e d r i n h o f e z o que a n t e s dele f i z e r a m
ou teriam feito em igualdade de circunstâncias dezenas de
a n t e p a s s a d o s s e u s . É que foi educado, c o m o você, eu e mi-
l h a r e s d e o u t r o s h o m e n s , n u m m e i o e m que t o d a s a s q u e s t õ e s
d e s s a n a t u r e z a s ã o r e s o l v i d a s a f a c a d a s ou a t i r o s .
— E s b o f e t e o u o Manuel t a l v e z m a i s para d a r u m a s a t i s -
f a ç ã o a o s outros, que p o d i a m j u l g á - l o u m p u s i l â n i m e , d o que
para a p a z i g u a r a l g u m s e n t i m e n t o íntimo.
322 ERICO V E R Í S S I M O

— E M a n u e l , p o r s u a vez, t i n h a s i d o e d u c a d o n a m e s m a
escola. Cresceu ouvindo dizer que " h o m e m n ã o t r a z desaforo
p a r a c a s a " , " h o m e m q u e leva u m t a p a n a c a r a r e s p o n d e c o m
um t i r o ou u m a p u n h a l a d a " . É um código primitivo em t o r n o
do q u a l p o e t a s e e s c r i t o r e s t ê m f e i t o p o e m a s e r o m a n c e s , e
dito palavras de exaltação. Como se masculinidade dependes-
se apenas dessa coragem animal de d a r ou receber tiros.
— T o d o s n ó s f o m o s e d u c a d o s n e s s a escola. S ó n o s ensi-
n a r a m essa espécie de coragem.
— P e d r i n h o e Manuel são p r o d u t o s da m e s m a fábrica,
feitos do mesmo material, vítimas dos mesmos erros.
— N a d a m a i s fizeram que r e p r e s e n t a r na vida um papel
que os m a i s velhos lhes m e t e r a m na cabeça, influenciados
p o r s u a vez p e l o s f a n t a s m a s d e q u e v o c ê fala.
— Isso! R e p e t i r a m no palco, como pobres papagaios, as
p a l a v r a s que um ponto invisível lhes ditava. E n ã o compre-
enderam, pobres diabos, que e s t a v a m representando um dra-
m a v e l h o , sediço, b a t i d o e t r i s t e .
— O r e s u l t a d o foi e s s a s i t u a ç ã o . . . D u a s v i d a s c o r t a d a s .
— D u a s ? Pense em Ernestides e na posição de F e r n a n d a
com relação a ela e à família Braga, principalmente por
causa da filha de Pedrinho. Como resolver o problema?
Eugênio sacode a cabeça lentamente, olhando p a r a a
p r ó p r i a s o m b r a na calçada.
— T u d o c o m e ç o u no c a s a m e n t o e r r a d o — s u s s u r r a ele.
— O p r i n c í p i o do e r r o — r e p l i c o — e s t á m u i t o m a i s
longe, tão longe que se perdeu no tempo.
— E o pior é que outros d r a m a s como esse continuarão
a se r e p r e s e n t a r . . .
— E n e n h u m espectador t e r á c o r a g e m de se e r g u e r na
platéia p a r a vaiar, p a r a m o s t r a r que na peça não há lugar
p a r a t i r o s n e m mortes, que t u d o é u m a questão de bom-senso.
— É q u e eles s ã o f e i t o s do m e s m o e s t o f o d o s a r t i s t a s . . .
— E p o r s u a vez s ã o a t o r e s de o u t r o s d r a m a s .
V o l t a m o s sobre nossos passos. As colinas estão tranqüi-
l a s a o l u a r . P e n s o n a c a l m a d o s c a m p o s , d a s m o n t a n h a s e dos
vales e sinto um desejo de c o n t a t o s p u r o s e simples.
— Dentro de um mês espero m u d a r de vida. ..
E Eugênio, que sabe de meus planos, m u r m u r a :
— Invejo a sua c o r a g e m . . .
— C o r a g e m ? E s t i v e p e n s a n d o e m s e isso n ã o s e r á a p e -
nas covardia, u m a f u g a . . .
Ele sacode a cabeça.
SAGA 323

— E s t o u certo de que é um ato de coragem. Eu, m a i s


q u e n i n g u é m , c o m p r e e n d o isso. P o r q u e u m d i a s a c r i f i q u e i o
q u e t i n h a d e m e l h o r e m m i m p e l a p o s s e d e t o d o s e s s e s con-
f o r t o s a r t i f i c i a i s d o p r o g r e s s o . E u s ó desejo q u e v o c ê e n c o n -
tre a paz que procura.
A n d a m o s a l g u n s p a s s o s e m silêncio. N o s s o s p é s e s m a -
g a m b r o t o s verdes e flores na calçada. A n d a no ar um cheiro
v e r n a l d e s e i v a . Ê b o m e s t a r vivo.
— F e r n a n d a diz q u e a s u a l u t a é a q u i . . . — d i z E u g ê n i o ,
após a l g u n s i n s t a n t e s . — P a r e c e a c h a r que a procura de
q u a l q u e r s o l u ç ã o i n d i v i d u a l n a v i d a é u m a t o d e m a s i a d o egoís-
ta. T e m a esperança de que v e n h a m melhores dias p a r a a
humanidade.
— Mas eu t a m b é m tenho, Eugênio. U m a secreta e absur-
da e s p e r a n ç a , a p e s a r de t o d a a m i s é r i a q u e p r e s e n c i e i e da
vaga desconfiança que me inspiram os homens.
À m e d i d a q u e s o b e no céu, o d i s c o da l u a d i m i n u i de t a -
m a n h o e e m p a l i d e c e . O p e r f u m e d a s f l o r e s se faz m a i s p u n -
g e n t e a g o r a que p a s s a m o s ao longo do m u r o de um pomar.
— M a s o n o s s o t r a b a l h o n ã o é só na c i d a d e , E u g ê n i o .
P r e c i s a m o s c o n q u i s t a r a t e r r a , povoá-la, cultivá-la. E n q u a n -
to não fizermos isso ela não nos pertencerá, seremos a p e n a s
f o r a s t e i r o s nela. É n e c e s s á r i o d e i t a r r a í z e s n e s t e solo p a r a
que p o s s a m o s um dia dizer com um singelo orgulho "a nossa
terra".
T o r n a m o s a e n t r a r no j a r d i m da casa de Noel. Vemos
d o i s v u l t o s à s o m b r a de um p i n h e i r o . D e j a n i r a e o n o i v o ,
enlaçados n u m abraço, lábios colados n u m prolongado beijo.
E u g ê n i o me olha com u m a expressão e n t r e s u r p r e s a e diver-
t i d a e eu lhe d i g o :
— Q u e é q u e q u e r e s ? A v i d a t e m de c o n t i n u a r .
J o g a m o s fora os nossos cigarros e e n t r a m o s em casa.

10 de outubro

E s t i v e f a z e n d o r e f l e x õ e s s o b r e o t e m p o . C h e g u e i à con-
c l u s ã o d e q u e ele t e m u m a c u r i o s a s e m e l h a n ç a c o m a á g u a .
S ã o a m b o s i n c o l o r e s e i n o d o r o s e se q u i s e r m o s l e v a r m a i s
longe a f a n t a s i a poderemos dizer que, como a á g u a , o t e m p o
t o m a a f o r m a do vaso que o contém. No caso do t e m p o o
continente pode ser o nosso espírito, os nossos desejos, os
324 ERICO V E R Í S S I M O

nossos sonhos. Como a água, o t e m p o é dissolvente, purifi-


c a n t e e c r i s t a l i z a n t e e se p o d e c o m p a r a r o p a s s a r do t e m p o
com o c o r r e r de um rio.
P a s s a m - s e q u i n z e d i a s a p ó s a m o r t e de P e d r i n h o e a o s
poucos se vai dissipando a n u v e m que obscurecia o nosso t e r -
ritório sentimental. Nossas vidas voltam a seguir o seu curso
normal. F e r n a n d a retomou o seu t r a b a l h o com a serenidade
e a esperança de sempre. Os B r a g a m u d a r a m - s e p a r a outra
casa e quanto ao destino de Shirley Teresinha ainda nada
está resolvido em definitivo.
E s t i v e m o s o n t e m à n o i t e — C l a r i s s a e eu — v i s i t a n d o
F e r n a n d a e N o e l . Lá e s t a v a o v e l h o M o z a r t a f a l a r a t r a v é s
da v i t r o l a a s u a l i n g u a g e m c o n s o l a d o r a e de s e r e n a beleza.
D. Eudóxia, como protesto ao fato de estarem ouvindo mú-
s i c a a p e n a s q u i n z e d i a s a p ó s a m o r t e d o filho, f e c h o u - s e n o
quarto e não apareceu d u r a n t e duas sonatas e um concerto.
F a l a m o s pouco, deixamos que a música ocupasse quase
todo o tempo e todo o espaço t a n t o interior com exterior.
E n t r e um disco e o u t r o F e r n a n d a nos contou:
— Sabem da ú l t i m a ? M a m ã e virou e s p í r i t a . .
Clarissa a r r e g a l o u os olhos.
— Mas como?
— Coisas d u m a v i z i n h a . . . F a z e m sessões aí na casa ao
l a d o . C o n t o u - m e ela q u e o n t e m c o n v e r s o u c o m p a p a i e c o m
Pedrinho.
— E q u e é q u e v o c ê diz a i s s o ? — p e r g u n t o .
— N ã o digo nada. Que cada qual siga o seu r u m o .
E u m e p r e p a r e i p a r a r e p l i c a r , m a s l á e s t a v a m o s violi-
nos com s u a voz consoladora e sábia. Calei-me. M a s ao
r i t m o d o a d á g i o fiquei a p e n s a r n a e s t r a n h a s i t u a ç ã o da-
quela casa. Noel católico, D. E u d ó x i a espírita, F e r n a n d a
céptica, q u a n t o aos destinos da alma, m a s crente nos desti-
n o s h u m a n o s n a t e r r a . . . I m p o s s í v e l q u e e l a n ã o t e n h a qual-
quer fé e x t r a t e r r e n a !
Q u a n d o o d i s c o t e r m i n o u e N o e l se e r g u e u p a r a o s u b s -
tituir, abri a boca com intenção de fazer u m a pergunta m a s
Fernanda se antecipou na resposta:
— O m u n d o t e m d e s e r a s s i m , V a s c o . R e p a r e n e s s a or-
q u e s t r a . C a d a g r u p o d e i n s t r u m e n t o s t e m a s u a voz, a s u a
n a t u r e z a , a s u a m i s s ã o . P o d e o oboé r e v o l t a r - s e pelo f a t o de
os violinos n ã o s e r e m i n s t r u m e n t o s de s o p r o ? N ã o se esqueça
de que a h a r m o n i a é feita t a m b é m de um pouco de tolerân-
cia...
SAGA 325

21 de outubro

Clarissa e eu nos c a s a m o s com t o d a a simplicidade no


cartório e na I g r e j a d a s Dores. F e r n a n d a , Noel, D. Clemência
e E u g ê n i o são nossos padrinhos. P o r m a i s que eu me queira
convencer de que estamos agora diante de um padre de ver-
dade, não consigo. Tenho a impressão de que esta cerimônia
não passa de mais uma das nossas brincadeiras do quintal
do casarão de J a c a r e c a n g a em que o negro Xexé botava um
c o b e r t o r v e l h o n a s c o s t a s e f a z i a a s v e z e s d e s a c e r d o t e , en-
q u a n t o C l a r i s s a c o m o s c a b e l o s e n f e i t a d o s d e f l o r e s d e la-
ranjeira e eu com um bigodinho pintado a carvão, ficávamos
ajoelhados na sua frente.
Quando chega o m o m e n t o de enfiar as alianças, vejo que
os dedos da noiva estão trêmulos. Clarissa e r g u e p a r a m i m
os olhos m u i t o escuros e lustrosos e eu de repente, m a i s que
n u n c a , a c r e d i t o n a v i d a . N ã o sei q u e é q u e o p a d r e e s t á r e s -
m u n g a n d o , m a s desconfio que estou comovido.
à p o r t a d a i g r e j a , F e r n a n d a m e diz a o o u v i d o :
— Capitão, aconteceu um d e s a s t r e . . . eu vi na h o r a em
que você se ajoelhou.
Sinto um pequeno desfalecimento:
— E s t o u com as calças r a s g a d a s ? — cochicho, e n q u a n t o
a noiva sai dos b r a ç o s da mãe, que está com os olhos úmidos,
para receber os parabéns de Eugênio.
— N ã o . . . — r e s p o n d e F e r n a n d a . — Os s e u s c a r p i n s
e s t ã o t r o c a d o s , um é b e g e e o o u t r o m a r r o m .
Olho p a r a baixo e puxo um pouco as calças.
— O h ! Isso é grave.
Saímos. E s t a m o s agora no alto da grande escadaria. É
u m d i a d e sol, d e a r p a r a d o e céu l í m p i d o . Q u a n d o t o m o d o
braço de Clarissa ela diz:
— A g o r a em Jacarecanga os pessegueiros devem estar
floridos.. .
Sacudo a cabeça. Os outros vão descendo. N ó s n o s dei-
x a m o s ficar.
— V a m o s s e n t a r um p o u c o ? — convido.
— Sentar?- Onde?
— O r a . . . aqui na escada.
C l a r i s s a me olha, surpreendida, m a s como eu me sento
no degrau de pedra ela me imita, resignada.
326 ERICO V E R Í S S I M O

— Só um p o u q u i n h o . .. — t r a n q ü i l i z o - a . — P a r a a g e n t e
pensar u m pouco.
— P e n s a r em q u ê ?
— Em n a d a . . . Só saborear melhor este momento.
Eugênio volta-se, lá embaixo, e g r i t a :
— Alô! Vocês não v ê m ?
E r g o a m ã o e sacudo-a no ar, n u m gesto negativo.
Noel e n t r a no automóvel. D. Clemência se volta p a r a nós
a f a z e r s i n a i s i n t e r r o g a t i v o s . M a s F e r n a n d a , s a c u d i n d o a ca-
beça, c o m p r e e n s i v a , p u x a a m ã e de C l a r i s s a p a r a o c a r r o . O
b a n d o s e v a i . E a q u i e s t a m o s n ó s n a f r e n t e d a i g r e j a , sozi-
nhos e casados.
— V a m o s fazer u m a viagem de n ú p c i a s . . .
— Viagem?
— A t é o P a r q u e da Redenção. F e i t o ?
— Feito.
— De a u t o m ó v e l ?
— Oh, V a s c o , já c o m e ç a s a g a s t a r d i n h e i r o à toa!
— M a s hoje é um g r a n d e d i a !
Puxo-a pela m ã o e descemos a escadaria quase a correr.

E s t a m o s j u n t o do lago do p a r q u e dando de comer às car-


pas que surgem, às centenas, na superfície da á g u a parda.
A b r e m as bocas rosadas, e s p a d a n a m , c h a p i n h a m , saltam, dis-
p u t a n d o as pipocas que lhes a t i r a m o s . Lisos, viscosos, d u m
v e r d e s u j o e frio, e s s e s p e i x e s s e m p r e e x e r c e r a m s o b r e m i m
u m e s q u i s i t o f a s c í n i o . G o s t o d e v e r c o m o eles s e p r e c i p i t a m
uns contra os outros na disputa das migalhas que os homens
lhes lançam. Fico a pensar na absoluta falta de hierarquia
q u e p a r e c e h a v e r e n t r e eles, a t r e m e n d a p r o m i s c u i d a d e e m
que os p a i s n ã o conhecem os filhos e os filhos n ã o conhecem
os pais. U m a força m i s t e r i o s a os impele e o que eles "que-
r e m " é durar. Bem como aquelas carpas da praia de Argelès-
sur-Mer. M a s . . . p a r a o diabo as reflexões filosóficas ou
a m a r g a s ! Estou festejando o meu casamento.
— Vamos embora, Clarissa!
Um g a r o t o descalço e esfarrapado dorme estendido em
cima d u m banco ao lado do pequeno quiosque onde se alugam
b a r c o s e b i c i c l e t a s . T o m o d u m a c é d u l a d e d e z m i l - r é i s , do-
bro-a e ponho cuidadosamente no bolso do g a r o t o , sem des-
pertá-lo.
— Q u a n d o ele a c o r d a r . . . q u e s u r p r e s a !
SAGA 327

— V a i s e r l i n d o ! — e x c l a m a Clarissa. — Quando eu era


m e n i n a s e m p r e t i v e d e s e j o s a s s i m . . . A b r i r o s olhos e v e r
n o s p é s da c a m a o p r e s e n t e c o m que eu s o n h a v a .
— Eu t a m b é m . . . Meter a m ã o no bolso e encontrar u m a
prata d e d o i s m i l - r é i s . . .
— C o m o é b o m o milagre, n ã o é m e s m o ?
E n l a ç o - l h e a cintura e d i g o - l h e b a i x i n h o :
— I s t o é um m i l a g r e . O dia calmo, n ó s dois casados,
juntos, l i v r e s . . .
D e repente Clarissa t e m u m e s t r e m e c i m e n t o , a f a s t a - s e
d e m i m , s e g u r a - m e a m b o s o s b r a ç o s com força.
— V a s c o ! Tive u m a idéia. V a m o s andar de b i c i c l e t a !
Como ú n i c a r e s p o s t a puxo-a pela m ã o e precipitamo-nos
para o quiosque. D e n t r o de a l g u n s m i n u t o s e s t a m o s a peda-
lar ao redor do lago.
— P a z m e s e s que n ã o ando n i s t o ! — g r i t a Clarissa.
— E e u . . . anos!
— A n o s s a v i a g e m de n ú p c i a s !
S e u s cabelos e s v o a ç a m ao v e n t o e ela t e m no r o s t o um
resplendor de felicidade. A o s p o u c o s v o u sentindo a volúpia
da velocidade e em b r e v e é como se as r o d a s da bicicleta
não t i v e s s e m m a i s c o n t a t o c o m o chão.
— P r i n c e s a do F i g o B i c h a d o ! — grito. — Mais d e p r e s s a !
— V a m o s embora, G a t o - d o - m a t o !
C o m e ç a m o s a g r i t a r c o m o s e l v a g e n s . Arvores, m o i t a s ,
g e n t e , cercas, bancos, c a s a s , cachorros, flores e v e í c u l o s —
tudo rodopia. F a z e m o s a primeira volta. P e d a l a m o s desespe-
r a d a m e n t e . É u m m o m e n t o v e r t i g i n o s o e g r a v e . D e repente
Clarissa g r i t a :
— Vasco! Sabes duma coisa?
— Não.
— E s t o u c o m v o n t a d e de c h o r a r . . .
— Por quê?
— De c o n t e n t e .
— Boba!
— T e n h o m e d o de p a r a r . . . s a b e s ?
— Por quê?
— P a r a n d o . . . t u d o m u d a . . . t e m o s d e v o l t a r . . . pode
acontecer... alguma c o i s a . . .
— Ooooh!
S e g u n d a volta. O l a g o lampeja, frio. A p a i s a g e m conti-
nua a girar. O v e n t o me provoca l á g r i m a s . De súbito com-
preendo, Clarissa t e m razão. Quando a corrida c e s s a r t e m o s
328 ERICO V E R Í S S I M O

de r e m e r g u l h a r na vida. Voltar p a r a a t e r r a firme. P a r a o


convívio d a s o u t r a s c r i a t u r a s . P a r a um m u n d o de g u e r r a s e
v i o l ê n c i a s . P a r a a e x p e c t a t i v a a n s i o s a d o f u t u r o . P a r a a s di-
f i c u l d a d e s d o f u t u r o . P a r a a s d i f i c u l d a d e s e aflições d e t o d a s
as horas.
Mas que importa, se e s t e m o m e n t o é b o m e e s t o n t e a n t e ?
E, l a d o a lado, e s c a b e l a d o s e v i t o r i o s o s , c o n t i n u a m o s
pedalando, pedalando. ..
IV
PASTORAL
O a r a d o é o m e u c a r r o de v i t ó r i a , e q u e m m a r c a o r i t m o
desta m a r c h a triunfal são dois lerdos e plácidos bois
oscos, b o n s e v i g o r o s o s c o m o o c h ã o q u e e s t a m o s a p r e p a r a r
para as próximas sementeiras.
Fevereiro de um novo ano. O verão vai forte, m a s o sol
é d o u r a d o e b e n i g n o no v a l e de Á g u a s C l a r a s , a q u a s e o i t o -
c e n t o s m e t r o s a c i m a d o nível d o m a r .
Aqui estou eu de t o r s o nu e cabeça descoberta, a s e g u r a r
orgulhosamente a rabiça de um velho arado, virando a t e r r a
que já a m o e que um dia há de ser m i n h a e de m e u s filhos.
Todos os t o n s imagináveis de verde e azul parece t e r e m
marcado encontro neste recanto do Rio Grande, para minha
delícia e t o r t u r a . V i v o n a a l v o r o ç a d a â n s i a d e q u e r e r l e v a r
p a r a a t e l a o azul d e s s a s m o n t a n h a s , c é u s , s o m b r a s e l a g u -
n a s ; o verde dessas árvores, colinas, roças, relvas e florestas;
a transparência dessas águas, distâncias e neblinas; e o té-
p i d o o u r o d e s t e sol.
Os bois m a r c h a m . Meus pés descalços a f u n d a m na t e r r a
a v e r m e l h a d a , fofa e f r e s c a . O v e n t o c h e i r a a m a t o e a lon-
j u r a s l í m p i d a s . A s m o n t a n h a s longe, c o n t r a o p o e n t e , s ã o
sutis pinceladas d u m violeta desmaiado, l e m b r a m a pintura
dum biombo chinês. P a r a as bandas do nascente se erguem
d o i s m o r r o s g ê m e o s , d e c u m e s p o n t u d o s — p a r e c e m o s seios
empinados de u m a virgem deitada. Pelas encostas dos outei-
r o s o s m i l h a r a i s s e e s t e n d e m e m o n d u l a ç õ e s d u m v e r d e oleoso
e gaio, as h o r t a s e as p a s t a g e n s são r e m e n d o s rútilos cor de
limão ou de esmeralda no verde escuro dos m a t a g a i s onde aqui
e ali a p o n t a m t e l h a d o s de t e l h a v e r m e l h a ou zinco. E a u n s
cem m e t r o s de onde me encontro agora, lá e m b a i x o j u n t o
da sanga, a corticeira t o d a coberta de flores cor de coral
m a r c a o l i m i t e de n o s s o s d o m í n i o s .
M o r a m o s no s í t i o de v e r a n e i o de N o e l e F e r n a n d a , a d u a s
h o r a s de carro-motor de P o r t o Alegre, n u m a bela casa r ú s -
332 ERICO V E R Í S S I M O

tica em estilo missão-espanhola, com horta, pomar, j a r d i m e


boa aguada.
C l a r i s s a l e c i o n a d u r a n t e a s m a n h ã s n a escola d a colônia
p r ó x i m a ; à t a r d e cuida da casa, d a s nossas roupas, d a s ga-
l i n h a s , d o s p a t o s , d o s p i n t o s e de m i m . D. C l e m ê n c i a é q u e m
n o s f a z a c o m i d a ; o r d e n h a a s v a c a s d e m a n h ã b e m cedo e p a s s a
o r e s t o do d i a e n t r e t i d a na c o z i n h a a f a z e r b o l o s , doces, quei-
jo, m a n t e i g a ou a e n c h e r l i n g ü i ç a . S e u A n t ô n i o , q u e e r a o
c a s e i r o d e F e r n a n d a , a n t e s d e v i r m o s p a r a cá, t o m a c o n t a d o
p o m a r e da h o r t a . Q u a n t o a m i m , d i v i d o o m e u t e m p o e n t r e
o t r a b a l h o da r o ç a , o c u i d a d o d o s b i c h o s do q u i n t a l , a pesca,
a p i n t u r a , a leitura, a m ú s i c a e u m a coisa que a g o r a r e p u t o
de i m p o r t â n c i a c a p i t a l — a c o n t e m p l a ç ã o . P o r q u e d e s c o b r i
q u e n ã o b a s t a v i v e r i n t e n s a m e n t e e fazer coisas — é neces-
sário t a m b é m pensar em calma nas coisas feitas, r u m i n a r as
emoções experimentadas para melhor apreciá-las e compre-
e n d ê - l a s . O ócio i n t e l i g e n t e e n r i q u e c e a a l m a .
A g o r a , sim, eu sinto que vivo plenamente com o corpo
e c o m o e s p í r i t o , e t e n h o a consciência s e g u r a de q u e m e u s
dias não m a i s se escoam vazios e perdidos.

O p r a z e r de fazer coisas com as nossas p r ó p r i a s m ã o s ..


Cercas, peraus, cestos, galinheiros, esteiras, p o r t e i r a s . . .
Aprendi agora uma nova arte — a cerâmica. Em parte num
m a n u a l e m u i t o c o m o v e l h o i n s t i n t o . Modelo em a r g i l a , va-
s o s , b i l h a s , p r a t o s e o u t r o s o b j e t o s , q u e d e p o i s p i n t o e decoro.
Tento um dia as primeiras figuras com um êxito medíocre
m a s animador. N a s h o r a s de folga vou p a r a baixo de um
t o l d o o n d e i n s t a l e i o m e u " e s t ú d i o " e ali fico e n t r e t i d o a
b r i n c a r c o m o b a r r o e a d a r - l h e f o r m a ou cor. E às vezes
me l e m b r o da q u a d r a de O m a r K h a y y a m : "A argila segredou
baixinho ao oleiro que a trabalha: Não esqueças que já fui
como tu... Não me maltrates."

T e n h o u m a p l a n t a ç ã o de a c á c i a e g i r a s s o l . A a c á c i a t e m
g r a n d e p r o c u r a p a r a fins industriais. D e n t r o de q u a t r o anos
as árvores estarão todas crescidas. Dão pouco t r a b a l h o : a
t e r r a se e n c a r r e g a de t u d o . O e s s e n c i a l é q u e o p l a n t a d o r
c o m b a t a as f o r m i g a s e o c u p i m . D e s e n c a d e i o c o n t r a os for-
m i g u e i r o s u m a v i o l e n t a g u e r r a q u í m i c a , m a s s e m p r e q u e em-
p u n h o o fole n ã o p o s s o f u g i r a um s e n t i m e n t o de p i e d a d e ao
SAGA 333

p e n s a r n o m u n d o s o c i a l i s t a d a s f o r m i g a s l a b o r i o s a s , n a ci-
d a d e e x e m p l a r que vou destruir. Sinto-me b e m como u m gi-
gante perverso, quando estou derramando gases asfixiantes
pelo b u r a c o de um formigueiro. E n f i m , concluo, essa parece
s e r a lei d o m u n d o : a s c r i a t u r a s v i v e m u m a s d a m o r t e d a s
outras...
Em q u a t r o meses os girassóis estão crescidos e flamejam
à claridade deste magnífico verão. Logo que deitei as semen-
tes à terra, um vizinho me advertiu, pessimista:
— Olhe, moço, p l a n t a r girassol não é negócio. P l a n t e
o u t r a coisa que dê m a i o r resultado.
Encolhi os ombros.
— O r e s u l t a d o n ã o me i n t e r e s s a t a n t o c o m o o efeito d e -
corativo das flores — retruquei. — Planto girassol porque
acho bonito. O r e s t o . . . pouco se me dá.
E o colono ficou a me m i r a r c o m ar d e s c o n f i a d o . . .
Cheguei à conclusão de que na vida devemos fazer coisas
úteis, sim, m a s s e m p r e que possível de u m a m a n e i r a a g r a d á -
vel.
E u p o d e r i a , p o r e x e m p l o , u s a r d u m a r a d o m a i s leve e
moderno, puxado apenas p o r um cavalo. Prefiro, porém, um
a r a d o de tipo primitivo t i r a d o por u m a j u n t a de bois, por-
q u e a c h o n i s s o u m s a b o r r ú s t i c o e bíblico, q u e m e d á u m a
serena e benéfica alegria.

Sete da m a n h ã . Clarissa vai p a r a a escola m o n t a d a n u m


b u r r i c o . P a r e c e u m a colona. Q u a n d o s e i n c l i n a p a r a m e b e i -
jar, digo-lhe ao ouvido:
— Toma cuidado com os solavancos. A g o r a t e n s de pen-
s a r no nosso rapaz.
E l a sacode a cabeça e as a m p l a s a b a s de seu chapéu de
p a l h a bamboleiam, fazendo mover-se a s o m b r a que lhe pro-
jetam no rosto.
Lá se vai o burrico no seu t r o t e manso, levantando a
p o e i r a d a e s t r a d a . U m a c i g a r r a c a n t a n o p o m a r . U m a libé-
lula de a s a s de um azul-elétrico e n t r a no j a r d i m e fica a
voejar em torno de u m a dália amarela. Da chaminé da casa
s o b e p a r a o c é u u m fio t ê n u e d e f u m a ç a : D . C l e m ê n c i a e s t á
f a z e n d o p ã o . C a l m a e sol n o v a l e d e Á g u a s C l a r a s .
P e n s o e m m e u filho, q u e v a i c h e g a r l o g o a p ó s a s p r i m e i -
r a s geadas.
334 ERICO V E R Í S S I M O

Pela p r i m e i r a vez compreendo a profunda beleza de u m a


h o r t a . D e i x e m o s d e l a d o p o r u m m o m e n t o a s v i t a m i n a s cien-
tíficas e detenhamo-nos n a s formas, n a s cores, nos contras-
t e s , e na h u m i l d e e m i s t e r i o s a p o e s i a d o s l e g u m e s e d a s v e r -
d u r a s . O q u a d r i l á t e r o de t e r r a e s c u r a e ú m i d a , o c e t i n o s o
verde-esmeralda dos pimentões, o verde-aguado dos chuchus, o
c i n z e n t o - e s v e r d e a d o d o s r e p o l h o s , c o m v a g o s t o q u e s d e azul,
o vermelho dos tomates, o amarelo-alaranjado das cenouras,
o pardo-avermelhado das berinjelas e assim por diante. Esse
conjunto l e m b r a a poesia da vida b r o t a n d o p u r a da t e r r a , ao
alcance de todos os homens.
A s e m a n a passada pintei u m a t e l a : D. Clemência na
horta, de chapéu de palha e n t e r r a d o na cabeça, e n c u r v a d a
s o b r e u m p é d e a l f a c e . S e u v u l t o b r a n c o c o n t r a o céu a z u l -
d a - p r ú s s i a . E f e i t o s d e luz e s o m b r a . N o p r i m e i r o p l a n o , u m a
g r a n d e abóbora, imóvel, t r a n q u i l a e pesada, como u m a m a -
trona grávida.
Tenho pensado freqüentemente n a s coisas belas e m a i s
o u m e n o s i n ú t e i s , q u e a p r e n d e m o s n a escola. P a l a v r a s s o b r e
hipotenusa e cateto, informações sobre Júlio César e Alexan-
dre, figuras e histórias da mitologia. E n s i n a m - n o s cantigas,
fórmulas, fazem-nos decorar poemas e nomes de cabos da
Escandinávia, m a s se esquecem de nos revelar coisas simples
como e s t a s :
Para conseguir repolhos de cabeças graúdas devemos
plantá-los em janeiro ou fevereiro. O tomate, o chuchu e os pi-
mentões são plantas de verão. Podemos cultivar em nossa
horta três variedades de cebola: a cebolinha de-todo-o-ano, o
cebola das Canárias e a cebola chata da Madeira...
E s t á claro que frases como essas têm um áspero sabor
prosaico p a r a o adolescente, que n a t u r a l m e n t e prefere erguer-
se na a u l a , i n f l a r o p e i t o e d e c l a m a r :

Waterloo, Waterloo, lição sublime,


Esse nome revela à Humanidade
Um oceano de pó, de fogo e fumo...

E i s um q u a d r o que me deixa e s t r a n h a m e n t e comovido.


D e i t a d a n u m a p o ç a d e lodo, n o f u n d o d o q u i n t a l , u m a p o r c a
d o r m e à claridade do meio-dia. D u a s moscas azuis lhe esvoa-
ç a m em t o r n o do focinho. O v e n t r e do animal peludo e cor
de r a t ã o , sobe e desce ao compasso d u m a respiração t r a n -
SAGA 335

quila. As m a m i c a s r o s a d a s e l u s t r o s a s e s t ã o s e m i m e r g u l h a d a s
n a á g u a d o c h a r c o e m q u e o sol p õ e c i n t i l a ç õ e s d e o u r o . U m
pintainho arrepiado, que mais parece u m a pluma de algodão
a m a r e l o c o m d u a s p e r n a s , a p r o x i m a - s e p i p i l a n d o , b i c a o lodo
por um instante e depois se v a i . . .
F i c o a c o n t e m p l a r a p o r c a a d o r m e c i d a , e a e x p r e s s ã o de
imbecil e a b a n d o n a d a calma de seu focinho me dá u m a súbi-
ta e inexplicável esperança nos destinos do m u n d o e u m a
profunda fé na vida.

Um divertimento adoravelmente simples: contemplar o


b r i n q u e d o d a s n u v e n s n o céu. E l a s t o m a m a c o n f i g u r a ç ã o d e
icebergs, c a s t e l o s , p á s s a r o s , p e r f i s h u m a n o s , b a l õ e s , c i d a d e s
fantásticas e veleiros.
— O c é u é a n o s s a t e l a de c i n e m a — d i z C l a r i s s a .
S e n t a d o s n o a l p e n d r e d o s f u n d o s d a c a s a f i c a m o s à s ve-
z e s a o l h a r o céu do c r e p ú s c u l o c o n t r a o q u a l se r e c o r t a a
nítida silhueta dos pinheiros. Nessa hora o horizonte ganha
u m a fresca limpidez de vidro, sugerindo coisas hígidas, má-
g i c a s e i n t o c á v e i s . À s v e z e s ele t e m a q u e l e v e r d e i m p o s s í v e l
que a gente encontra em certos impressionistas — um verde
a g u a d o e c r i s t a l i n o . U m dia, d e p o i s d e a s s i s t i r a o e s p e t á -
culo c r o m á t i c o d o o c a s o , v o l t o - m e p a r a C l a r i s s a e m u r m u r o ,
ofendido:
— Diante dum pobre troca-tintas, essa exibição de côres
chega a ser até u m a provocação!

N o a l t o d u m a colina, a d o i s q u i l ô m e t r o s d e n o s s o s í t i o ,
n u m chalé em estilo bávaro, m o r a um alemão alto, louro,
b a r b u d o e silencioso, q u e vive solitário e n t r e seus livros e
seus cães de raça. É um apaixonado da música e m u i t a s ve-
z e s pela m a n h ã o u a o e n t a r d e c e r , q u a n d o o v e n t o s o p r a d o
sul, c h e g a m a t é nós os sons de seu ó r g ã o . E é b e m e s t r a n h o
s e n t i r a g e n t e q u e a a l m a d e B a c h a n d a p e r d i d a pelo v a l e
de Águas Claras, assombrando e s t a s m o n t a n h a s e florestas,
p e n e t r a n d o os chalés dos colonos e e n t r a n d o pelos ouvidos
dessas c r i a t u r a s simples, encardidas e de olhos vazios.
O m ê s p a s s a d o fiz r e l a ç õ e s c o m o m e u v i z i n h o s o l i t á r i o ,
que é um h o m e m b a s t a n t e cultivado. Trouxe-o à m i n h a casa
e mostrei-lhe meus livros e quadros. Ele gostou t a n t o de u m a
n a t u r e z a m o r t a , que acabei dando-lhe a tela de presente. O
336 ERICO V E R Í S S I M O

h o m e m relutou em aceitá-la, m a s como eu insistisse, acabou


c e d e n d o . Q u a n d o l h e falei e m B e e t h o v e n c o m e n t u s i a s m o , a
s u a r e n d i ç ã o foi c o m p l e t a .
Fomos um dia retribuir-lhe a visita. Quando entramos
n o c h a l é , foi c o m o s e e n t r á s s e m o s n a A l e m a n h a . O s m ó v e i s ,
os tapetes, os objetos e até o cheiro que andava no ar t i n h a m
um toque m a r c a d a m e n t e germânico. Fiquei a a d m i r a r u m a
grande Bíblia antiga, com iluminuras. N a s paredes havia re-
t r a t o s de L u t h e r o , Bismarck, Goethe e Schilling.
Resolvi aprender música com o Dr. Winkler e espero
poder um dia compor a l g u m a coisa. O desconhecimento técni-
co da a r t e musical é u m a de m i n h a s m a i o r e s deficiências.
P o r q u e n ã o c h e g u e i a i n d a ( n e m desejo c h e g a r ) a o e s t a d o d e
simplicidade em que o h o m e m aceita o mundo como um bom
a n i m a l q u e n ã o p r o c u r a f i x a r n a t e l a a s c o r e s d o céu n e m
t r a n s f o r m a r em melodia os seus sentimentos íntimos. Acho
q u e a v i d a só v a l e p e l a s i m p r e s s õ e s de b e l e z a e b o n d a d e q u e
nos pode proporcionar.

E por falar n i s s o . . . Fernanda nos mandou um presente


precioso: a " P a s t o r a l " em discos de gramofone. Creio que
nunca ninguém deu ao m u n d o m a i s bela m e n s a g e m do que
Beethoven na Sexta Sinfonia.
À n o i t e f a ç o a n o s s a v i t r o l a f u n c i o n a r . C l a r i s s a fica a
f a z e r t r i c ô a u m c a n t o , e u m e e n r o s c o e m c i m a d o s o f á de-
p o i s d e a p a g a r a luz. E n a p e n u m b r a n a s c e u m m u n d o . P a r a
m i m é esse o m o m e n t o que m a i s se a p r o x i m a da perfeição.
F e l i z m e n t e ele d u r a p o u c o e a i n d a e x i s t e m os c h i q u e i r o s e os
queijos.

U m a d a s m i n h a s m e l h o r e s t e l a s : C l a r i s s a n o m e i o dos
g i r a s s ó i s . E l a t e m u m a flor v e r m e l h a e n f i a d a n o s c a b e l o s ne-
g r o s e e s t á s o r r i n d o . P o r t r á s dela, o s d i s c o s a m a r e l o s c o n t r a
o f u n d o d u m a z u l m e t á l i c o , i n t e n s o e liso. E s t e é o m i n u t o
g l o r i o s o d o s g i r a s s ó i s . P o r q u e a m a n h ã eles e s t a r ã o e s m a g a -
dos, a n d a r ã o pelo m u n d o e m f o r m a d e a z e i t e e d e f o r r a g e m .
A vida é bela!

Só a g o r a é q u e v o u d e s c o b r i n d o a o s p o u c o s a delícia p r o -
funda que certos atos e coisas simples nos podem proporcio-
n a r . C r e i o q u e f e l e s c o m p e n s a m p l e n a m e n t e a f a l t a d o s pe-
SAGA 337

quenos confortos e divertimentos que o progresso mecânico


criou.
Aqui vai u m a pequena lista dos novos prazeres que des-
cobri:

Pescar... Atirar a linha e ficar sentado à beira d'água,


pensando na vida, imaginando coisas, recordando ou simples-
mente preguiçando ao sol...
Beber no côncavo da mão ou através duma flauta de
bambu (com um verde gosto de seiva) a água que nasce na
serra e escorre cantante pela rocha.
Ficar estendido numa rede, à hora da sesta, olhando as
cores das sombras — azuladas, morenas, esverdeadas, lilazes,
negras — e ouvindo o inhé-inhé preguiçoso duma cigarra ou
lendo uma boa novela em cujas páginas dança a silhueta mó-
vel e recortada das folhas e ramos da árvore que nos dá
sombra.
Ver a lua nova surgir por trás dos morros gêmeos, como
uma jóia luminosa a enfeitar os seios da virgem. Ou então
ir para o alpendre à noite, olhar para o vulto dos pinheiros
contra o céu escuro e imaginar que eles são enormes árvores
de natal e que as estrelas são enfeites pendurados nas extre-
midades de seus galhos.
Erguer Clarissa nos braços para atravessar um córrego
ou banhado 0 pensar nesse momento em que dentro dela está
germinando a semente de uma alma.
Comer frutas frescas deitado na relva a conversar sobre
coisas simples abstratas e concretas. (As concretas: os bichos
do quintal, as árvores do pomar, os bolinhos de coalhada de
D. Clemência, a vaca brasina, as flores do jardim. As abstra-
tas: as colheitas do futuro, a cor dos olhos de nosso filho,
os nossos sonhos).
Sair a andar ao sol da manhã nu da cintura para cima,
cantando qualquer coisa absurda ou compondo mentalmente
uma sinfonia e ao mesmo tempo pedindo humildemente des-
culpas a Beethoven, Mozart, Bach.
Imaginar que os amigos mortos voltaram para o nosso
lado e ficar conversando com eles sobre coisas do presente
como se eles estivessem vivos, pudessem ver os frutos do nos-
so pomar, sentir o perfume de nossas flores e provar do nosso
pão. (D. Clemência, que me surpreendeu mais de uma vez
nesses diálogos fantásticos, afirma que estou ficando louco).
Deitar no sofá, após um dia de trabalho braçal cansa-
338 ERICO VERÍSSIMO

tivo, repousar a cabeça no colo de Clarissa (o que já agora


não é mais possível, porque outra criatura vai aos poucos
tomando conta desse colo) e ficar de olhos cerrados, num
estado de madorna, ouvindo todos os ruídos da casa e os
murmúrios da noite lá fora — grilos, aves noturnas, a chuva
ou o vento.
Termino outro quadro. A guardadora de patos. Quem me
serve de modelo é Angelina, u m a m e n i n a de quinze anos, a
filha d u m colono italiano vizinho. A composição da tela é
m u i t o simples. É de m a n h ã e pela e s t r a d a cor de ocre cami-
n h a u m a r a p a r i g a d e s c a l ç a , v e s t i d a d e b r a n c o , c o m u m lenço
vermelho passado em torno da cabeça e a m a r r a d o debaixo
d o q u e i x o . N a f r e n t e d e l a m a r c h a m cinco p a t o s b r a n c o s c o m
bicos e p a t a s cor-de-laranja. A e s t r a d a e s t á orlada de pinhei-
ros d u m verde grave. As cores do fundo são esfumadas e
i n g ê n u a s , h á m u i t o sol e a m e n i n a v a i c a n t a n d o .
Minúcias que d e r a m t r a b a l h o : p i n t a r a s o m b r a dos pa-
tos e da guardadora no chão. P ô r distância entre as figuras
e os p i n h e i r o s e e n t r e os p i n h e i r o s e o ú l t i m o p l a n o .

T e n h o lido m u i t o s l i v r o s e p i n t a d o m u i t o s q u a d r o s . V o u
p r o g r e d i n d o n a s lições d e h a r m o n i a e c o n t r a p o n t o . M a n d e i
buscar um concerto de Tchaikowsky para piano e grande
orquestra. Mas não vivo entregue apenas a coisas de arte.
Pelo contrário. Ocupo a m a i o r p a r t e de m e u t e m p o com t r a -
balho braçal. É um prazer l a r g a r os pincéis ou fechar um
l i v r o e ir, p o r e x e m p l o , e n t e r r a r o s p é s n o lodo d o c h i q u e i r o ,
pegar n u m a enxada, sujar as mãos na terra do pomar ou
e n t ã o e m p u n h a r o m a c h a d o p a r a r a c h a r l e n h a . C o m isso
faço u m a como que m o l d u r a r ú s t i c a e sólida p a r a a música,
a p i n t u r a , a l e i t u r a e os o u t r o s p r a z e r e s do e s p í r i t o .

Q u a n d o o o u t o n o c h e g a c o m p r o um dog-cart e um ca-
v a l o . T o d a s a s m a n h ã s v o u l e v a r C l a r i s s a à escola. É c u r i o s o
observar as crianças que se reúnem nesta sala a c a n h a d a e
p o b r e . M e n i n o s e m e n i n a s de s e t e a q u i n z e a n o s , f i l h o s de
b r a s i l e i r o s e de c o l o n o s i t a l i a n o s , a l e m ã e s e p o l a c o s . Cabeci-
n h a s loiras, ruivas, castanhas, negras, r u ç a s . .. Olhos tam-
b é m em v á r i a s tonalidades de azul, verde e pardo. Tipos
n ó r d i c o s , m e r i d i o n a i s , i n d i á t i c o s , m u l a t o s e n e g r o s p u r o s . Ali
está p o r exemplo u m a c a r a p i n h a de moleque j u n t o da cabe-
leira d u m b r a n c o quase p r a t e a d o de u m a coloninha polaca.
SAGA 339

E Clarissa, e n t u s i a s m a d a no s e u t r a b a l h o de nacionalização,
f a z que t o d a s as m a n h ã s e s s e pequeno bando, que lembra a
B r i g a d a Internacional, se p o n h a de pé e c a n t e o H i n o B r a -
sileiro. S ã o v o z e s d e s a f i n a d a s e c o m o v e n t e s . Olhando e s s a s
c r i a t u r i n h a s fico a p e n s a r no f u t u r o do B r a s i l e da A m é r i c a
c o m inquietação, t e r n u r a e cálida fé.
V o l t o para o s í t i o a p e n s a r ainda n e s s a s coisas. Sim, a l g o
de g r a n d i o s o e belo há de a c o n t e c e r no f u t u r o n e s t e m u n d o
novo. P o r e s s e t e m p o e s t a r e i m o r t o d e b a i x o da t e r r a e do
m e u peito s a i r ã o d e c e r t o a s raízes d u m a g r a n d e árvore
copada, a c u j a s o m b r a o m e u filho m o r e n o e forte, ao v o l t a r
d o t r a b a l h o s e h á d e s e n t a r u m i n s t a n t e para descansar. E s s a
idéia me e n c h e d u m a e x a l t a ç ã o que é a um t e m p o g l o r i o s a
e melancólica.

U m o b s e r v a d o r indiferente c l a s s i f i c a r a c o m displicência
o quadro — "uma m e d í o c r e n a t u r e z a morta". V e m o s u m a
m e s a t o s c a e m c i m a d a qual s e a c h a u m g r a n d e p r a t o d e
barro c o m f r u t a s . M a s a c o n t e c e que não s e t r a t a d e u m
p r a t o e de f r u t a s c o m u n s , c o m p r a d o s e s e m h i s t ó r i a : o p r a t o
foi m o d e l a d o por m i m , a s f r u t a s s ã o d e n o s s o pomar, n a s -
c e r a m d u m a t e r r a que Clarissa e eu a m a m o s . Q u e m t i v e r
o l h o s para v e r a l é m da superfície colorida, perceberá que
e l a s t ê m u m a a l m a , e s t ã o e n v o l t a s n u m a a t m o s f e r a d e pro-
m e s s a , s o n h o e d e s e j o s . F a l a m de paz e esperança, de bon-
dade e graça. C h e g a m a t e r u m a qualidade q u a s e h u m a n a .
N ã o sei s e c o n s e g u i f a z e r que o quadro diga t o d a s e s s a s
c o i s a s . Mas n ã o importa. Ele e s t á pendurado na parede da
n o s s a sala, e C l a r i s s a s a b e do s e g r e d o . E quando a l g u é m
olhar indiferente para a t e l a e p a s s a r de l a r g o , n ó s dois t r o -
c a r e m o s o l h a r e s s i g n i f i c a t i v o s e s o r r i r e m o s um para o outro,
c o m o q u e m diz: "O pobre h o m e m p a s s o u por um t e s o u r o e
não c o m p r e e n d e u . . . "

F i c o m u i t o t e m p o n o quintal a observar o s bichos. B e m


curioso, e s t e m u n d o h a b i t a d o por g a l o s e g a l i n h a s , f r a n g o s ,
p i n t a i n h o s , p a t o s , a n g o l i s t a s , perus, bois, v a c a s e porcos. Ca-
da animal t e m c a r a c t e r í s t i c a s e s p e c i a i s e a t o d o o i n s t a n t e
e s t ã o a lembrar o m u n d o d o s h u m a n o s .
Quando Clarissa, v e n d o - m e e n t r e t i d o e m m e i o d o terrei-
ro, p e r g u n t a se perdi m e u a n j o da g u a r d a , respondo-lhe que
e s t o u "observando tipos".
340 ERICO V E R Í S S I M O

Continuo a m a n d a r t r a b a l h o s p a r a " A v e n t u r a " , a ilus-


t r a r h i s t ó r i a s q u e F e r n a n d a m e e n v i a d e lá, e a e s c r e v e r
contos em torno dos animais domésticos. As aventuras do
Galo Godofredo, da V a c a Genoveva, do L e i t ã o Ganimedes e
do B u r r o Indalécio a n d a m por m u i t o s jornais do Pais, n u m a
s é r i e d i s t r i b u í d a p o r " A v e n t u r a " . I s s o m e t r a z u m b o m di-
nheiro que, somando ao que espero obter com a venda de
algumas telas, irá e n g r o s s a r as economias com que dentro
de dois anos pretendo c o m p r a r estas terras.
E n t r e t e n h o diálogos imaginários com o Galo Godofredo,
que de t o d a s as m i n h a s p e r s o n a g e n s parece t e r sido a que
conseguiu maior popularidade. É um galo preto muito gordo
q u e l e m b r a e s s e s s e n h o r e s p a n ç u d o s e g r a v e s , q u e u s a m cor-
r e n t e d e o u r o n o r e l ó g i o , flor n o p e i t o a o s d o m i n g o s , b e n g a l a
e colarinho de ponta virada. Vaidoso, suficiente, a m i g o de
p o m p a s e e x i b i ç õ e s , G o d o f r e d o se j u l g a a f i g u r a m a i s i m -
portante do terreiro. Apesar de madurão, tem-se na conta de
ótimo partido e i m a g i n a que t o d a s as f r a n g u i n h a s o querem
p a r a m a r i d o . U m d i a d e s t e s m e d i s s e o h e r ó i c o m a s u a voz
conspícua:
— Q u e é q u e v o c ê p e n s a , s e u V a s c o ? S o u um self-made-
man.
Conta-me que quando menino ganhou a vida vendendo
de p o r t a em p o r t a os ovos da s u a p r o g e n i t o r a . E como eu
l h e p e r g u n t a s s e s e ele n ã o t i n h a e s c r ú p u l o s d e v e n d e r o s p r ó -
prios irmãos, respondeu-me simplesmente:
— Eu era maltusiano.
E um dia, como eu pusesse em dúvida a boa qualidade
de s e u pedigree, G o d o f r e d o a l ç o u a c r i s t a de l a c r e e e x c l a -
mou soberbo:
— Quer saber d u m a coisa? Minha família é muito dis-
t i n t a , m o ç o ! S o u d e s c e n d e n t e d o Ovo d e C o l o m b o .
Fico longo t e m p o acocorado a dizer coisas p a r a "seu"
Godofredo, e n q u a n t o Genoveva, a vaca, nos lança seus olha-
r e s m a t e r n o s e o b u r r o Indalécio sacode as orelhas espan-
tando as m u t u c a s . . .
S o u feliz n o m e i o d o s b r u t i n h o s d o m e u q u i n t a l .

Creio que tenho mesmo sangue de bugre, porque à hora


d o b a n h o n o p o ç o fico t o m a d o d u m a a l e g r i a s e l v a g e m .
B a n h o - m e à s cinco d a t a r d e e à s v e z e s p o u c o a n t e s d o m e i o -
d i a , n a p e q u e n a b a c i a q u e fica logo a b a i x o d a " C a s c a t a d o
SAGA 341

C o q u e i r o " . A á g u a ali é p a r a d a , v e r d e e l í m p i d a — t ã o t r a n s -
parente que a gente chega a ver os peixes n a d a n d o no fundo.
 cascata t e m quinze m e t r o s de altura, a á g u a cai como um
véu feito de poeira branca, contra as rochas limosas e par-
das, onde a gente descobre, como incrustações móveis e vi-
vas, pequenas r ã s que t o m a m de tal modo a cor da pedra,
que nela se t o r n a m quase invisíveis. O poço e s t á cercado de
m a t o e as avencas, as corticeiras, os salgueiros e os j a c a r a n -
d á s inclinam os seus galhos e folhas sobre a superfície t r a n -
qüila e polida da laguna. A á g u a aqui e s t á s e m p r e m u i t o
f r i a e é um p r a z e r m e r g u l h a r e n a d a r , o u v i n d o o r u í d o s o n o -
lento da cascata.
Gosto de ficar boiando à superfície d'água, com os m ú s -
c u l o s r e l a x a d o s , o l h a n d o o céu, p e n s a n d o e m c o i s a s p a s s a d a s ,
ou a conversar com Clarissa que s e n t a d a n u m a pedra à beira
d o p o ç o f a z t r i c ô o u lê.

Trecho duma carta de F e r n a n d a :

"O Galo Godofredo parece ter conquistado o público. Já


se diz por aí "É o tipo do Godofredo" — "Conheces a última
do Godofredo?" Isso é a glória, rapaz! Mas eu sei que você
agora está exclusivamente bucólico e não se interessa por
essas coisas.
Como já contei em outra carta, o Aquarium não exibe
mais filmes, mas em breve (talvez no fim deste outono) va-
mos ter lá bom teatro. Meu plano é manter permanentemente,
com exceção dos três meses de verão, uma boa companhia de
comédias. Estamos organizando uma coisa inédita no Brasil,
uma associação que se chamará "Clube dos Amigos do Tea-
tro". Já temos perto de mil sócios e tudo me leva a crer que
a idéia já está vitoriosa.
Cambará ultimamente nos tem deixado em paz, anda me-
tido agora em grandes negócios.
Outro grande acontecimento: aumentamos a tiragem de
"Aventura". A única dificuldade com que lutamos no momen-
to diz respeito ao papel, agora muito escasso por causa da
guerra.
A propósito: Estive ainda ontem conversando com o Noel,
que anda triste por causa do rumo que os acontecimentos es-
tão tomando na Europa. Acha que os cristãos ainda vão ser
obrigados a voltar para as catacumbas. Procurei tirar-lhe da
342 ERICO V E R Í S S I M O

cabeça essa idéia negra. O que sinto, meus amigos, é que


algo de novo está para vir. Porque ninguém em bom juízo
pode afirmar que o mundo tal como tem sido até agora é
um mundo decente, justo e belo. É preciso fazer uma melhor
distribuição da riqueza, uma organização mais racional da
produção. Os horizontes estão negros neste momento de san-
gueira e destruição, mas por trás das nuvens a gente pode
pressentir o novo sól. E eu me sinto orgulhosa por estar viva
numa hora grandiosa como esta. Receberei com coragem o
sofrimento que no momento nos possa vir, porque estou cer-
ta de que o mundo de D. Dodó e de Teotónio Leitão Leiria
está prestes a ruir. Quero ajudar com o meu pouco, contri-
buir com o meu tijolo para o erguimonto do novo edifício. E
vocês aí em Aguas Claras, de certo modo estão contribuindo
também para esse trabalho. Porque é preciso conquistar ou,
melhor, reconquistar essa terra que é nossa e que será de
nossos filhos. Vou terminar porque estou ficando tão retórica
como aqueles deputados e senadores do velho regime. Vocês
se lembram? Talvez não, pois isso se passou na pré-história".

Na última c a r t a que escrevi à F e r n a n d a eu lhe dizia:

"Sim, eu espero e desejo uma nova ordem de coisas, um


mundo reorganizado sobre bases socialistas, um mundo de
justiça e harmonia em que não haja mais lugar para a cari-
dade exibicionista de D. Dodó e para as vélhacarias político-
comerciáis de Teotónio Leitão Leiria ou Almiro Cambará.
Mas devo dizer também que não posso acreditar em qualquer
reforma que venha dos adoradores da violência e da guerra,
dos frios exaltadores da máquina e do racismo.
Por outro lado não levo tão longe os meus ideais coleti-
vistas, que chegue a esquecer que a maioria dos benefícios
tanto morais como materiais de que a humanidade hoje goza
foram obra de indivíduos isolados que quase sempre tiveram
de lutar contra a incompreensão da massa e a intolerância
das instituições.
Acho que dentro de cada homem existem territórios in-
violáveis em que o Estado não deve procurar intervir.
Não creio que na vida tudo se possa reduzir a uma ques-
tão de comer, vestir e procriar. A bondade, a poesia e a to-
lerância são elementos que não devem faltar na construção
do "novo edifício". Um mundo de máquinas e idéias estan-
dardizadas só pode ser um mundo rígido e triste.
SAGA 343

Falamos com demasiado orgulho nas "conquistas do pro-


gresso" e já encontramos por ai quem cante hinos de glória
à moral do lobo e pregue com impiedosa veemência a extinção
dos cordeiros, a fim de que a terra se transforme num imenso
campo de parada onde haja lugar apenas para heróis e atle-
tas, bandeiras, clarins, tambores e arrogância.
Li não me lembro onde os versos duma canção hindu
milenar cujo espirito devemos ter sempre em mente: "As na-
ções vêm e se vão, os reis sobem e tombam, os milionários
se fazem e são destruídos da noite para o dia, mas nós, a
Terra e o povo, continuamos para sempre."
F o i em m e a d o s de m a i o e os n o s s o s s e r õ e s ao pé do f o g o
e r a m cálidos e c a l m o s . M a s u m a noite t o d o o horror da guer-
ra nos e n t r o u em c a s a e na a l m a a t r a v é s do noticiário do
rádio e d o s jornais.
A H o l a n d a e a B é l g i c a i n v a d i d a s e d o m i n a d a s . . . O rolo
compressor germânico a avançar esmagador e i n v e n c í v e l . . .
Cidades b o m b a r d e a d a s e m c h a m a s . . . P o p u l a ç õ e s civis e m
f u g a pelos c a m i n h o s e m e t r a l h a d a s i m p i e d o s a m e n t e . . . A
F r a n ç a à beira do m a i o r colapso de s u a h i s t ó r i a . . . Os para-
q u e d i s t a s t o m b a n d o d o s céus, c o m o a n j o s d a m o r t e . . . A v i õ e s
a o s m i l h a r e s e s c u r e c e n d o o céu, a lembrar os g a f a n h o t o s de
aço d o A p o c a l i p s e . . .
Os olhos de Clarissa e de D. Clemência e s t ã o f i t o s em
m i m . F o r a m os h o m e n s que i n v e n t a r a m a g u e r r a ; s ã o os ho-
m e n s que s e m a t a m n a E u r o p a ; e u s o u h o m e m , l o g o cabe a
m i m dar-lhes u m a e x p l i c a ç ã o . . . F e c h o - m e n u m silêncio d e
c o n s t r a n g i m e n t o e v e r g o n h a . N a d a m a i s p o s s o f a z e r senão
j o g a r no f o g o os j o r n a i s e arrancar e quebrar as l â m p a d a s
do rádio. Ao m e n o s a paz deste vale deve ser preservada. De
nada s e r v e para os que s o f r e m e m o r r e m a n o s s a aflição ou
a n o s s a piedade. N ã o deixarei que os j o r n a i s c o n t i n u e m en-
t r a n d o n e s t a casa ou que o rádio t o d o s os d i a s aí e s t e j a a
narrar os horrores da guerra. P o r q u e n ã o quero que o m e u
filho a n t e s de n a s c e r c o m e c e já a s o f r e r a t r a v é s da m ã e , as
dores de um m u n d o s o m b r i o e doido.

Onze da noite. A m o r n a penumbra do quarto. Clarissa


dorme a m e u lado, s i n t o no rosto o s e u b a f o quente e úmido.
T e n h o a m ã o e s p a l m a d a em c i m a de s e u ventre roliço que
d e quando e m quando s e a g i t a n u m a ondulação d e vida. F i c o
a pensar no que será o n o s s o filho e ligo-o m i s t e r i o s a m e n t e
344 ERICO V E R Í S S I M O

às árvores que vão nascer no pomar, às flores que estão p a r a


d e s a b r o c h a r no j a r d i m . E pela p r i m e i r a vez me ocorre que
C l a r i s s a é c o m o a t e r r a . Os h o m e n s m a l t r a t a m a t e r r a , d e s -
p r e z a m - n a , e s q u e c e m - n a , m a s ela s e m p r e e s t á p r o n t a a r e c e -
bê-los d e v o l t a : g u a r d a p a r a o s f i l h o s p r ó d i g o s t e s o u r o s d e
beleza e bondade. E n q u a n t o eu a n d a v a em m i n h a s a v e n t u r a s
insensatas, Clarissa esperava e sofria em silêncio: quando
voltei, d e r r o t a d o e arrependido, encontrei-a de braços abertos
p a r a m i m , c o m d á d i v a s d e t e r n u r a , c o m p r e e n s ã o e p a z . Cla-
rissa dorme. Lá fora a t e r r a t a m b é m está adormecida. Se eu
e n c o s t a s s e o o u v i d o n o solo t a l v e z s e n t i s s e t a m b é m o r u m o r
s u b t e r r â n e o d a s p l a n t a s q u e d e n t r o d e l a g e r m i n a m . Sim, Cla-
rissa é a terra. Fecundei-a com o meu desejo e o meu sonho
e d e n t r o dela a g o r a se a g i t a o princípio de um m u n d o . Beijo-
lhe a t e s t a d e m a n s i n h o e c e r r o o s o l h o s , h u m i l d e m e n t e feliz.

I m a g e n s e s c u r a s a t r a v e s s a m o m e u sono. A b r o os olhos
com u m a sensação de angústia. Sonhei que Clarissa tinha
morrido e que h a v i a g u e r r a e devastação no vale de Á g u a s
Claras. Da t e r r a b r o t a v a m fontes de sangue e eu andava no
meio dos destroços a p r o c u r a r m e u filho.
A opressão que t e n h o no peito é t ã o grande, que não
p o s s o c o n t i n u a r d e i t a d o . . . S a l t o d a c a m a , enfio o s c h i n e l o s
d e lã, v i s t o o r o u p ã o e m e d i r i j o n a p o n t a d o s p é s p a r a a
s a l a d e e s t a r . A c e n d o u m c i g a r r o . O s o n o s e foi.
Olho o relógio: cinco e meia. O dia n ã o t a r d a a r a i a r . O
r e m é d i o é f i c a r l e n d o , à e s p e r a d o sol. A p a n h o u m l i v r o m a s
em breve verifico q u e m i n h a atenção e s t á vaga e a sensação
de a n g ú s t i a c o n t i n u a . S a i o p a r a o a l p e n d r e e o ar f r i o da
m a d r u g a d a me envolve. A cerração esconde o cimo de montes
e o u t e i r o s e p a r a as b a n d a s do n a s c e n t e o h o r i z o n t e c o m e ç a
a empalidecer.
P o n h o - m e a c a m i n h a r a t r a v é s do j a r d i m . U m a aflição
gelada me toma conta do corpo e do espírito e em vão eu
l u t o p a r a r e c o b r a r a t r a n q ü i l i d a d e . T a l v e z o m e l h o r s e j a vol-
t a r p a r a c a s a e a c e n d e r o f o g o . . . M a s n ã o sei q u e f o r ç a m e
i m p e l e e eu c o n t i n u o a a n d a r . P a s s o o p o r t ã o , g a n h o a es-
trada. Nesta hora cinzenta é que eu sinto com mais pungên-
cia o m i s t é r i o d a v i d a . É o m o m e n t o d o s m o r t o s . U m a u m
os meus amigos que se foram começam a surgir das sombras,
a d e s c e r d a s n u v e n s , a e m e r g i r do n e v o e i r o , e em b r e v e e s t o u
c e r c a d o d e e s p e c t r o s . E l e s n ã o f a l a m , a p e n a s c a m i n h a m co-
SAGA 345

m i g o e m s i l ê n c i o e m u i t o s d e s t e s r o s t o s pálidos n ã o t ê m fi-
s i o n o m i a . A q u i a m e u lado c a m i n h a J o ã o de D e u s , pai de
Clarissa, c o m o o l h o s a n g r a n d o . S e b a s t i a n B r o w n arrasta o
pobre Á x e l s e m pernas. Q u e m é aquele a f o g a d o que ali v a i
com o r o s t o carcomido e as m ã o s enredadas em a l g a s ?
E r g o a gola do roupão, s i n t o no r o s t o e n a s m ã o s u m a
u m i d a d e fria. P a r a onde v a m o s n ó s ? E s t a é a p e r g u n t a que
m i l h õ e s de c r i a t u r a s e s t ã o fazendo em todo o m u n d o n e s t e
momento.
E de s ú b i t o u m a v o z h u m a n a corta o ar da m a d r u g a d a .
— V a s c o ! Onde e s t á s ? V a s c o !
S ã o g r i t o s d e s g a r r a d o s . V o l t o - m e e v e j o um v u l t o no
alpendre da casa. C l a r i s s a . . . S a i o a correr na direção dela.
— Vasco!
— M i n h a filha, que é que t e n s ?
E n v o l v o - a n o s m e u s b r a ç o s e toda t r ê m u l a ela c o n t a :
— Sonhei q u e e s t a v a s na E u r o p a . . . na guerra. E de
repente t u . . . t u n ã o e r a s s ó t u , m a s t a m b é m o n o s s o fi-
l h o . . . Acordei a f l i t a . . . n ã o t e v i n a c a m a . . . p e n s e i . . .
p e n s e i . . . n e m s e i que foi que p e n s e i . . .
Cala-se, ofegante. Acaricio-lhe o s cabelos.
— Será que o n o s s o f i l h o . . . — balbucia ela. — Será
que o n o s s o filho. . . v a i v i v e r n u m m u n d o m e l h o r ?
É c o m voz incerta que eu lhe d i g o :
— É impossível que o s o f r i m e n t o e o sacrifício d e s s e s
m i l h õ e s e m i l h õ e s de c r i a t u r a s s e j a inútil, fique e s q u e c i d o . . .
O s h o m e n s t ê m d e compreender, t ê m d e compreender. . . E u
tenho fé na A m é r i c a . . . — acrescento, apertando Clarissa
contra o peito.
Godofredo cocorica no quintal. Outros g a l o s respondem
longe. A o s p o u c o s um calor de confiança e de c o r a g e m se
apodera de m i m . É a l g o de profundo e essencial que me v e m
de Clarissa, da criatura que ela t e m n a s entranhas, algo que
s u r g e d a s p l a n t a s e d o s a n i m a i s domésticos, que brota da
terra...
O ar e s t á m a i s claro. Os b i c o s d o s s e i o s da v i r g e m dei-
t a d a e s t ã o e m p l u m a d o s de n u v e n s e por t r á s dos morros g ê -
m e o s o céu v a i g a n h a n d o a o s p o u c o s u m a tonalidade dourada.
I m ó v e i s e abraçados, Clarissa e eu aqui f i c a m o s em s i -
lêncio, c o m os o l h o s p o s t o s no horizonte, a esperar o n o v o
dia c o m um s e c r e t o t e m o r e u m a s e c r e t a esperança.

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