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ERICO VERÍSSIMO
SAGA
Introdução
Flávio Loureiro Chaves
20ª Edição
Copyright © 1987 by Herdeiros de Erico Veríssimo
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser uti-
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eletrônico, fotocópia, gravação etc. - nem apropriada ou estocada em
sistema de banco de dados, sem a expressa autorização da editora.
Impressão e acabamento:
RR Donnelley & Sons Company - EUA
ISBN 85-250-0281-X
87-1190 CDD-869.935
PREFACIO XI
I O CIRCULO DE GIZ, 1
II SÓRDIDO I N T E R L U D I O 59
III O D E S T I N O B A T E A PORTA 171
IV PASTORAL 329
A dois amigos:
HENRIQUE E LUIZA
Ao ex-combatente da Brigada Internacional
que me deu o roteiro de Vasco na jornada da Espanha,
além de muitas outras sugestões valiosas; e ao Sr. Jesus
Corona, a quem devo um punhado de notas sobre o
campo de concentração de Argelès-sur-Mer, a minha
homenagem e os meus agradecimentos.
E. V.
PREFÁCIO
ERICO VERÍSSIMO,
1966
SAGA: Um Testemunho Humanista
Ensaio Introdutório de
Flávio Loureiro Chaves
SAGA: UM T E S T E M U N H O HUMANISTA
O C I R C U L O DE GIZ
1
O h o m e m me p e d e f o g o . E r g o p a r a ele o i s q u e i r o a c e s o e
noto contrariado que m i n h a m ã o t r e m e um pouco. Seus
olhos cor de zinco se fixam nos meus dedos.
— Nervoso?
S a c u d o a c a b e ç a n e g a t i v a m e n t e , o d i a n d o - o c o m o se p o d e
odiar a pessoa que nos descobre o segredo que mais queremos
ocultar.
É verdade que meus nervos estão retesados. Mas não é
m e d o , n ã o . A p e n a s a â n s i a de e x p e c t a t i v a , o d e s e j o de q u e
esta espera acabe. Quero me atordoar na ação. Preciso apa-
g a r as doces e a m o l e n t a d o r a s visões da saudade, e s p a n t a r os
f a n t a s m a s f a m i l i a r e s , e s q u e c e r o s m o r n o s h á b i t o s d o con-
f o r t o — t u d o q u a n t o ficou p a r a t r á s . E s t o u t e n t a n d o p a s s a r
na memória u m a esponja embebida em vinagre. A vida é um
g r a n d e jogo e o destino, um parceiro temível que só aceita
grandes p a r a d a s . E s t á bem. P o n h o na mesa todos os m e u s
sonhos. N ã o b a s t a ? J o g o então a vida. Do outro lado daque-
l a s m o n t a n h a s f i c a m a E s p a n h a e a g u e r r a . C a m i n h o ao en-
contro de novas sensações. Ou da morte. Que i m p o r t a ? A
m o r t e t a m b é m é u m a aventura, a definitiva, a irremediável.
M a s o e s s e n c i a l é q u e a c o n t e ç a a l g u m a coisa.
O homem que se acha na minha frente está encarregado
de nos fazer p a s s a r a fronteira. Ê um tipo de e s t a t u r a me-
d i a n a e d e v e t e r p e r t o d e c i n q ü e n t a a n o s . A pele d o r o s t o
d e s c a r n a d o e o b l o n g o , d u m m o r e n o lívido, l h e cai e m p r e g a s
flácidas e melancólicas que l e m b r a m o focinho d u m perdi-
gueiro. Vejo na sua fisionomia desagradável a expressão de
permanente e mal-humorada vigilância que t ê m os cães dessa
raça.
Chama-se Rodriguez e é capitão das forças governistas
espanholas. T r a t a os o u t r o s voluntários com u m a afabilidade
que vai a t é onde lhe permite a m á s c a r a canina. Anima-os
com p a l a v r a s de entusiasmo em t o r n o da nobre missão dos
"internacionáles", f a l a - l h e s em v i t ó r i a e no a d v e n t o de um
4 ERICO V E R Í S S I M O
c r u z a d o s f u m a o s e u c a c h i m b o . C h a m a - s e Á x e l n ã o sei d e
q u e , e d e s d e q u e n o s e n c o n t r a m o s n ã o lhe o u v i m a i s d e m e i a
d ú z i a d e p a l a v r a s . É u m belo t i p o d e h o m e m . T e r á q u a n d o
m u i t o vinte e cinco anos e fala um francês h o r r e n d o .
O g u a r d a p l a n t a - s e - l h e na f r e n t e e p e r g u n t a :
— Y u s t e d , a m i g o , de d o n d e v i e n e ?
O s u e c o c o m e ç a a o l h a r d u m l a d o p a r a o u t r o , n u m si-
lêncio a t a r a n t a d o . O o u t r o r e p e t e a p e r g u n t a e Á x e l se l i m i t a
a s a c u d i r a c a b e ç a d e v a g a r i n h o , p o n d o à m o s t r a os d e n t e s
m u i t o brancos e a p o n t a n d o ao m e s m o tempo p a r a o nosso
g u i a com a h a s t e do cachimbo. Rodriguez fuma t r a n q ü i l o o
seu c i g a r r o e não lhe noto no rosto a m e n o r s o m b r a de
emoção. Os guardas-móveis sabem de tudo e vão nos deixar
p a s s a r : o que estão fazendo é p u r a brincadeira. O embaraço
d e Á x e l , p o r é m , a u m e n t a e e s s e h o m e m g r a n d a l h ã o ali e s t á
a p a s s e a r em t o r n o os olhos azuis de menino, a pedir um
s o c o r r o q u e n i n g u é m lhe p o d e p r e s t a r . O g u a r d a o c o n t e m p l a
com ar divertido e ao cabo de alguns s t g u n d o s cantarola,
sorridente:
— Tout va três bien, madame la marquise... Allez!
Risadas.
F a z c a l o r . O sol d e c l i n a e a s o m b r a d o s P i r e n s u s a v a n ç a
na nossa direção. A demora do t r e m nos deixa impacientes.
Meus companheiros conversam como podem: gestos, frases
soltas em francês, inglês e espanhol, sinais de cabeça, sor-
risos, movimentos de o m b r o s . .. Carlos Garcia me conta pas-
s a g e n s d e s u a v i d a n o Chile. N ã o c o n s i g o a c h a r i n t e r e s s e n a
n a r r a t i v a . Meu espírito já se encontra do o u t r o lado das
m o n t a n h a s . A ansiedade chega a me d a r ao corpo um ador-
mecimento de febre.
Ouço gritos. Volto-me brusco. Vejo u m a das refugiadas
a gesticular diante dum grupo de voluntários. E s t á agitada,
a e s p u m a lhe b r o t a d o s l á b i o s d e s c o r a d o s , o s o l h o s lhe s a l -
t a m das órbitas. A t i r a os braços p a r a o ar e exclama, cus-
pinhando :
— Ustedes estan locos, locos, locos!
O s g u a r d a s c o r r e m p a r a ela e a m u i t o c u s t o c o n s e g u e m
a c a l m á - l a . F a z - s e u m silêncio p r e s s a g o . M a s a voz d o l o r i d a
c o n t i n u a a e c o a r . d e n t r o de m i m . Estan locos, locos! Sim,
e s t a m o s t o d o s loucos. O m u n d o i n t e i r o é u m v a s t o h o s p í c i o .
O bom-senso desapareceu da t e r r a . Os homens se estraça-
lham. É a guerra.
L e m b r o - m e dos m e u s velhos sonhos pacifistas e há um
SAGA 7
leno. P o n h o - m e de pé n u m p u l o e s e g u r o - l h e o b r a ç o , i m p e -
d i n d o o g o l p e . S e b a s t i a n e Á x e l s a l t a m ao m e s m o t e m p o e
me a j u d a m a imobilizar o h o m e m . G a r c i a continua sentado
e a g o r a d e s p e j a de n o v o t o d o o s e u r e p e r t ó r i o de n o m e s
f e i o s . C o n s e g u i m o s a r r a s t a r o p r o p r i e t á r i o d a c a s a p a r a longe
d a l i e a m u i t o c u s t o o c o n v e n c e m o s de q u e G a r c i a n ã o d e v e
s e r l e v a d o a s é r i o . Q u a n d o v o l t a m o s p a r a a n o s s a m e s a , dez
minutos depois, encontramos lá u m a mulher. Ê u m a r a p a r i g a
n o v a q u e à p r i m e i r a v i s t a n ã o m e p a r e c e feia.
O chileno nos recebe recitando um verso de Dom Quixote:
Á x e l e e u t o r n a m o s a nos. s e n t a r . M a s S e b a s t i a n B r o w n
p e r m a n e c e d e p é , e m b a r a ç a d o e silencioso. T e n h o d e o b r i g á -
lo a o c u p a r a c a d e i r a a m e u l a d o .
— A m i g o s , e s t a é a D u l c i n é a del T o b o s o — diz G a r c i a
mostrando-nos a companheira.
Sorrio p a r a ela e aperto-lhe a m ã o franzina. N ã o me
parece u m a profissional experimentada. Terá no máximo
dezessete anos e nos seus olhos não descubro sensualidade
n e m malícia: a p e n a s u m a espécie de espantada resignação.
T r a z u m a flor v e r m e l h a enfiada nos cabelos. E s t o u apostan-
d o t o d a s a s m i n h a s p e s e t a s e m c o m o foi u m a c o m p a n h e i r a
m a i s s o l e n e que lhe s u g e r i u esse enfeite. A c r i a t u r i n h a t e m
um aspecto comovente. Neste momento não existe no mundo
inteiro coisa mais t r i s t e m e n t e convencional do que essa pobre
f l o r e n c a r n a d a . A m a n h ã t a n t o ela c o m o a r a p a r i g a e s t a r ã o
e s m a g a d a s e cobertas de poeira no chão de Portbou.
— C o m o é o t e u n o m e ? — p e r g u n t o p o r p u r a f a l t a de
assunto.
E l a sorri. Vejo que não me entendeu. Garcia lhe repete
a p e r g u n t a . A r e s p o s t a v e m p r o n t a , a colegial s a b e a lição
na ponta da língua:
— S o f i a M a r t i n e z da G a v i r i a .
T e m u m a voz f i n a e u m p o u c o f a n h o s a . S o r r i , m o s t r a n d o
dentes miúdos e limosos.
O o l h a r d e Á x e l p o u s a e m Sofia. V e j o n e l e s u m a r e m o t a
SAGA 15
luz d e c o m p a i x ã o . A d m i r o e s s a g e n t e q u e s a b e s e r s e n t i m e n -
t a l d u m a m a n e i r a seca, higiênica e discreta.
Bebemos à saúde da menina. E l a beberica a sua cidra,
sorri d a s macaquices de Garcia e de q u a n d o em quando olha,
curiosa, p a r a Brown.
O gramofone p á r a de repente. Ouvem-se os sons d u m a
g u i t a r r a . U m a voz q u e n t e e s e n t i d a enche a sala. U m a j o t a
aragonesa. A princípio há entre os homens um intervalo de
silêncio a t e n t o . D e p o i s r e c o m e ç a m a s c o n v e r s a s . M a s a v o z
do c a n t o r domina o zunzum geral. Olho p a r a Sebastian e
v e j o q u e ele e s t á m a r a v i l h a d o . Q u e l e m b r a n ç a s l h e p a s s a r ã o
pela m e n t e ?
Sinto-me deprimido. O vinho nada consegue contra o meu
e s t a d o d e e s p í r i t o . A s r e c o r d a ç õ e s b a t e m à p o r t a d o café.
N ã o devo deixá-las e n t r a r . Que fiquem lá fora! As b o m b a s
aéreas não lhes podem fazer mal, ao passo que aqui, neste
ar viciado, elas correm o perigo de se contaminar.
N ã o sei p o r que a g e n t e se e n t r e g a com t a n t a facilidade
a o s e n t i m e n t a l i s m o . Vício, t a l v e z . S e a o m e n o s e s s e t i p o
p a r a s s e de. c a n t a r . . . O l h o p a r a G a r c i a e n u m r e l a n c e j u l g o
descobrir-lhe o segredo. Ele não passa dum h o m e m que está
p r o c u r a n d o e s q u e c e r a l g u m a coisa. E s s a s u a a t i t u d e d e s l i g a -
da, os desabafos pornográficos, a p r e t e n s a falta de sensibi-
lidade n a d a m a i s são que um escudo. Neste m o m e n t o vejo-
lhe n o r o s t o a s o m b r a d e u m p e n s a m e n t o t r i s t e .
O c a n t o r se cala. E s t r a l a m p a l m a s . O g r a m o f o n e reco-
m e ç a . Agoira é u m a v a l s a . V o l t o a c a b e ç a e o l h o em t o r n o .
U m a a s s e m b l é i a difícil d e d e s c r e v e r . H o m e n s d e d i v e r s a s
r a ç a s e t i p o s , e n t r e o s q u a i s a g e n t e v ê logo q u e p r e d o m i n a m
os italianos. Um' espanhol com quem pouco depois entabula-
mos conversação mostra-nos ao redor de u m a mesa, um
g r u p o de e x - o f i c i a i s r u s s o s , f r a n c e s e s e a l e m ã e s . O g o v e r n o
espanhol precisa muito dos serviços de técnicos militares,
v i s t o c o m o a m e l h o r e a m a i o r p a r t e do e x é r c i t o e s t á c o m
F r a n c o . O n o v o c a m a r a d a é u m h o m e m d e pele c u r t i d a , t e s t a
i m p r e s s i o n a n t e m e n t e alta e cabelos grisalhos. Conta-nos que
no túnel m u l h e r e s e crianças m o r r e m à m í n g u a de recursos
médicos.
Um velho de b a r b a s b r a n c a s e sujas que anda de mesa
em mesa pedindo cigarros e dinheiro, aproxima-se de nós.
É um pobre f a r r a p o de vida. Dou-lhe u m a peseta. Garcia
o f e r e c e - l h e v i n h o : ele b e b e , l i m p a o s l á b i o s c o m a m a n g a d o
casaco seboso e poído e depois a p o n t a p a r a Sofia:
16 ERICO VERÍSSIMO
c a m p o s f é r t e i s q u e d ã o b e l o s f r u t o s c o m o o s q u e ela e n t ã o
nos oferecia.
S e b a s t i a n e s t e n d e a m ã o p a r a f o r a d o t r e m e , n u m a ale-
g r i a a l v o r o ç a d a , m e m o s t r a a l g u m a coisa. O l h o . N o a l t o d u m
outeiro, cercado de árvores, ergue-se um castelo de dois tor-
reões contra o céu d u m cinzento azulado. É sombrio e grave.
F i c a m o s a contemplá-lo em silêncio. Somos a m b o s de países
novos, sem tradições. E s t a visão t e m p a r a nós um encanto
particular. Se eu pudesse saltar do t r e m e correr na direção
daquelas pedras a n t i g a s . . . Seria o mesmo que voltar ao
passado, ir ao encontro de idades m o r t a s . Mas isto não pas-
sa d u m desejo de t u r i s t a . Sou a p e n a s um v o l u n t á r i o da Bri-
g a d a Internacional que viaja em péssimo t r e m p a r a destino
incerto. A m a n h ã talvez um Savoia-Marchetti de três moto-
r e s s e e n c a r r e g u e d e e l i m i n a r d a p a i s a g e m esse r o m â n t i c o
castelo, que virá abaixo com todos os seus espectros, glórias
e tradições. P r o n t o ! Já não o enxergo mais. U m a curva da
linha férrea acaba de roubá-lo ao campo de minha visão.
Parece que agora deixamos o m a r para t r á s e r u m a m o s p a r a
sudoeste. Adeus, Mediterrâneo!
Willy K u n z e s t u d a com frio interesse, no seu livro de
c a r a c t e r e s góticos, o m é t o d o m a i s rápido, b a r a t o e eficiente
de e s t r a ç a l h a r o próximo. Os italianos discutem, blasfemam
e p r a g u e j a m . E n t r e c e r r a n d o os o l h o s , e n t r e g o - m e a C l a r i s s a .
Ê u m a rendição incondicional, sem batalha. Sinto-a j u n t o de
mim, mostro-lhe as t e r r a s de Gênova, os vinhedos, as faias,
os álamos, os castanheiros, os velhos castelos. Lembro-lhe
as nossas conversas de um tempo perdido.
M a s a voz m a c i a d e S e b a s t i a n m e t i r a d e s s e d e v a n e i o
p a r a me precipitar depois n o u t r o :
— E n g r a ç a d o — diz e l e . — Em i n g l ê s q u a n d o q u e r e m o s
f a l a r d e p r o j e t o s loucos, s o n h o s i m p o s s í v e i s , n ó s d i z e m o s
"castelos em E s p a n h a " .
Sacudo a cabeça vagarosamente.
e s ã o c o r de s é p i a . C o m e ç a a c h u v i s c a r . A p a n h o o m e u s a c o
de roupas e olho em torno. Reaparece Rodriguez. C a m i n h a
gingando na nossa direção e suas botas de verniz reluzem
f r a c a m e n t e n a d e s m a i a d a luz d e s t e d i a c i n z e n t o . L e v a à b o c a
um apito. Ouve-se um trilo longo e desagradável.
— Los internacionales! — grita.
F o r m a m o s n u m a fila. E m p o u c a s p a l a v r a s e l capitán
nos dá instruções.
Saltamos para dentro de um caminhão de carga e em
breve estamos a r o d a r por u m a bela estrada asfaltada. O
chauffeur, u m c a t a l ã o d e c a r a e q ü i n a e g r o s s a s s o b r a n c e l h a s
eriçadas, nos conta que os aviões inimigos a n d a m voando
n a s p r o x i m i d a d e s d e F i g u e r a s . E r g o o s o l h o s p a r a o céu.
Pingos frescos de chuva me caem no rosto. Sinto um cheiro
de t e r r a m o l h a d a que me provoca lembranças de coisas dis-
tantes no tempo e no espaço. Os homens conversam alto,
riem, dizem b r a v a t a s . P a s s a por nós um caminhão cheio
de v o l u n t á r i o s f r a n c e s e s a c a n t a r a M a r s e l h e s a . G r i t a m e
acenam p a r a nós. A velocidade do carro a u m e n t a . T e n h o a
i m p r e s s ã o d e q u e e s t a m o s f u g i n d o d e a l g u m a coisa.
— E h ! para que essa pressa? — pergunta alguém.
E a r e s p o s t a do chauffeur se r e s u m e n e s t a s d u a s p a l a -
vras:
— Los aviones.
O c h u v i s q u e i r o c e s s a , a b r e - s e u m a c l a r e i r a n o céu, b r i -
l h a o sol. V a m o s t o d o s de p é , m u i t o a p e r t a d o s , e de m e u lu-
g a r m a l posso v e r a paisagem. Willy Kunz não e s t á conosco.
Subimos agora a encosta de um outeiro. Passamos por
um ônibus cheio de voluntários italianos que c a n t a m a "Ban-
diera Rossa".
Dois minutos depois nosso c a r r o diminui a m a r c h a e
pára. Saltamos para o chão. Ê singular. Achamo-nos diante
dos m u r o s d u m velho mosteiro. Dirigimo-nos p a r a u m p o r t ã o
severo e m o n u m e n t a l em cujo frontão se vêem e s t a s pala-
vras pintadas numa tabuleta:
CUARTEL DE LAS BRIGADAS INTERNACIONALES.
P o r c i m a d a c r u z e n f e r r u j a d a e r o í d a pelo t e m p o f l a m e j a
a estrela vermelha, distintivo da Brigada. Sebastian me puxa
pela m a n g a do c a s a c o e dizia:
— A c r u z é m a i s a n t i g a . ..
Concordo com um apressado sinal de cabeça, ao m e s m o
tempo que Garcia, a t r á s de nós, cochicha ao ouvido de
Brown:
24 ERICO VERÍSSIMO
— P e r g u n t e a o E s t a d o - M a i o r . E u s o u u m s i m p l e s sol-
dado.
A f a s t a - s e d e n ó s s&m d i z e r m a i s p a l a v r a .
— E h , V a s c o ! — e x c l a m a de r e p e n t e C a r l o s G a r c i a . —
V a m o s a F i g u e r a s ? N ã o seria m a u brincar um pouco com
as meninas. .. Ninguém sabe que vai ser de nós a m a n h ã .
S a i pelo p á t i o p o v o a d o d e s o m b r a s p a r a p r o c u r a r q u e m
lhe queira servir de guia n u m a excursão erótica ao povoado.
B r o w n , Á x e l e eu p o m o - n o s a a n d a r s e m d e s t i n o . N o s s o s
passos nos levam à p o r t a da capela. E n t r a m o s . A escuridão
aqui d e n t r o é completa. Áxel risca um fósforo. F l u t u a no
ar um cheiro de antiguidade. Vislumbro os vultos das ima-
gens nos nichos. O fósforo se a p a g a . F i c a m o s os t r ê s p a r a -
d o s , e m silêncio, c o m o q u e p e r d i d o s . P e l a s j a n e l a s o g i v a i s
e n t r a a nevoenta claridade da noite sem lua. Sento-me no
banco m a i s próximo. Meus dois companheiros fazem o mes-
m o . B r o w n n o s oferece c i g a r r o s . R i s c o o u t r o f ó s f o r o , q u e
o n o r u e g u ê s a p r o v e i t a p a r a a c e n d e r t a m b é m o seu c i g a r r o .
M a s o n e g r o h e s i t a q u a n d o eu v o l t o a c h a m a p a r a ele. E de-
pois, s o r r i n d o p a r a e s c o n d e r o e m b a r a ç o , a p a g a - a c o m u m
s o p r o e a c e n d e o s e u c i g a r r o na p o n t a do m e u . F i c a m o s a
f u m a r d u r a n t e a l g u n s i n s t a n t e s e m c o m p l e t o silêncio. Q u e m
nos visse agora diria que estamos orando.
T u d o n o s leva a f a l a r em D e u s . É i n e v i t á v e l . E ao c a b o
de longa conversa pontilhada de hesitações e reticências,
c h e g o à c o n c l u s ã o q u e o m e u D e u s n ã o é D e u s de Á x e l e
m u i t o m e n o s o d e S e b a s t i a n B r o w n . N o e n t a n t o , t o d o s temos
um Deus que d u m modo geral não se parece muito com o
dos beneditinos que viviam neste mosteiro.
B r o w n começa a recitar um sermão negro sobre a
C r i a ç ã o . S u a voz, q u e t ã o b e m s e c a s a c o m a e s c u r i d ã o d a
capela, nos envolve:
d e d o s , fez u m a b o l a — o sol, e d e p o i s l a n ç o u - o no e s p a ç o .
E D e u s t i n h a n u m a d a s m ã o s o sol e na o u t r a a l u a e s u a
cabeça estava t o d a cheia de astros. E a t e r r a jazia sob seus
pés. E Ele c a m i n h a v a sobre a t e r r a e seus pés i a m fazendo
os vales e as m o n t a n h a s . E e n t ã o D e u s viu que a t e r r a e r a
a r d e n t e e v a z i a e fez os s e t e m a r e s . P i s c o u os o l h o s e c r i o u
o relâmpago. Bateu palmas e reboou o trovão. E jorrou a
á g u a dos céus, n a s c e r a m os rios, b r o t o u a relva, v i e r a m m a i s
t a r d e as flores, e os rios c o r r e r a m p a r a o m a r . E Deus ex-
clamava: "Isso é b o m ! " Depois olhou p a r a a sua obra e
disse: " A i n d a sinto a solidão." Sentou-se ao pé d u m a colina
e ficou a. p e n s a r . P e n s o u e m a i s p e n s o u e no f i m r e s o l v e u :
" E u vou fazer p a r a m i m o h o m e m " . Do fundo do rio tirou
um p u n h a d o de l o d o e c o m ele fez o h o m e m à s u a p r ó p r i a
imagem.
M á r i o G u a r i n i é um n a p o l i t a n o melenudo e apoplético,
de olhos verdes e saltados. E r a sapateiro em Nápoles, jun-
tou e c o n o m i a s b a t e n d o s o l a d e b a i x o d u m a e s c a d a , c a s o u c o m
u m a s i c i l i a n a e fez a G u e r r a . N o s a n o s q u e s e s e g u i r a m a o
a r m i s t í c i o , foi p a r t i d á r i o f e r v o r o s o d e M a t t e o t i . Q u a n d o o
f a s c i s m o d o m i n o u a I t á l i a , t e v e de r e f r e a r a l í n g u a e r e c a l c a r
as mágoas. No primeiro ano da era fascista morreu-lhe a
mulher. Mário Guarini não chorou. Antes de fecharem o
caixão, disse b a i x i n h o : "Vai, C a r m e l a . Lá no o u t r o m u n d o
não e n c o n t r a r á s esse "schifoso" de Mussolini". Viveu daí por
d i a n t e c o m o p ô d e . E m 1 9 2 5 foi o b r i g a d o a t o m a r v i o l e n t a
dose d e óleo d e r í c i n o . P e r d e u t r ê s q u i l o s . S e n t i u - s e d e s m o -
r a l i z a d o , q u i s m o r r e r . M a s na I t á l i a — c o n t o u - m e ele — a
gente precisa de fazer um requerimento ao Duce até p a r a
m o r r e r . . . C o n t i n u o u a b a t e r sola, a c h o u no ó d i o um m o t i v o
para viver. Mas quando as t r o p a s de Mussolini a t a c a r a m a
A b i s s í n i a ele t e v e a i m p r e s s ã o d e q u e i a e s t o u r a r . A q u i l o
era d e m a i s . V i ú v o , s e m f i l h o s , n a d a m a i s o p r e n d i a à p á t r i a :
32 ERICO VERÍSSIMO
t i a n s e r e f a z d a s u r p r e s a , j á D e N i c o l a a v a n ç a p a r a ele, a c a -
r i c i a - l h e o r o s t o e p o r f i m t i r a - l h e u m ovo d a b o c a . R i s a d a s .
D e N i c o l a faz u m a leve c u r v a t u r a p a r a a e s q u e r d a , o u -
tra para a direita e exclama:
— Professor Marcantônio, ilusionista!
O h o m e m acaba de nos conquistar. F i c a m o s à sua mercê.
s a o r i o n a d i r e ç ã o d e Ollot. L a n ç a m o s g r a n a d a s , p e d r a s q u e
cortam o ar n u m a curva serena e caem dentro d'água. Um
bando de moleques v a d i o s . . .
à noite sentimo-nos exaustos. Felizmente nossos pensa-
mentos também estão cansados e querem repousar. Evitam-
se a s s i m as l e m b r a n ç a s incômodas e a volta da saudade. Dor-
mimos como c r i a t u r a s sem pecados.
Na segunda s e m a n a começam a nos d e i x a r em paz. Os
fuzis-metralhadoras e as metralhadoras russas não têm mais
segredos p a r a nós. A g o r a fazemos rápidos exercícios na fres-
ca da m a n h ã . Pouco antes do meio-dia ouvimos u m a prédica
de c a r á t e r p o l í t i c o e f i c a m o s em l i b e r d a d e o r e s t o do d i a .
d o e x é r c i t o i m p e r i a l , q u e c o n s e g u i u f u g i r d a R ú s s i a p o r oca-
s i ã o d a r e v o l u ç ã o b o l c h e v i s t a . P a s s o u p a r a a T u r q u i a e fi-
n a l m e n t e p a r a a F r a n ç a c o m a m u l h e r e o filho r e c é m - n a s -
cido. V i v e r a m r e l a t i v a m e n t e b e m e n q u a n t o d u r o u o d i n h e i r o
obtido com a venda das jóias da família. V i e r a m depois dias
c r u é i s e o ex-oficial do C z a r t e v e de g a n h a r a v i d a em e m -
p r e g o s m o d e s t o s e precários. Em 1925 e m b a r c o u com a l g u n s
e m i g r a n t e s p a r a a Argentina. A m u l h e r m o r r e u na viagem
e foi l a n ç a d a a o m a r . E m C a t a m a r c a p a i e f i l h o c o m e ç a r a m
v i d a n o v a . O r a p a z foi m a t r i c u l a d o n u m colégio d e B u e n o s
Aires e o velho lhe escrevia freqüentemente cartas saudosas
em que lhe falava de s u a s crescentes esperanças de que um
d i a f o s s e r e s t a b e l e c i d o o t r o n o n a R ú s s i a e eles p u d e s s e m
voltar para a pátria que "esses malditos bolcheviques agora
infelicitam".
Olho com s u r p r e s a p a r a o rapaz e lhe p e r g u n t o :
— Como se explica que t e n h a s vindo te alistar na "Bri-
gada Internacional"?
"El R u s i t o " fita em m i m os olhos muito azuis.
— Ê q u e d e s t e m o d o eu me s u b m e t o à p r o v a q u e me
f a r á conseguir a coisa que m a i s desejo na vida.
P o r u m i n s t a n t e f i c a e m silêncio, b r i n c a n d o c o m o g o r r o
que t e m n a s mãos. E depois conclui:
— A cidadania soviética.
6
Vejo e s t e s h o m e n s e m t o d a s a s p a r t e s , e n c o n t r o - o s n a s cir-
cunstâncias m a i s diversas. À h o r a d a s refeições com a
cabeça q u a s e m e r g u l h a d a n u m p r a t o de grão-de-bico. Com-
pletamente despidos a t o m a r b a n h o no rio. A n i m a d o s dessa
euforia q u e v e m dos primeiros copos de vinho. Acocorados,
de calças arriadas, n u m a posição grotesca em que é quase
impossível qualquer gesto de vaidade ou arrogância. Mudos
e silenciosos d i a n t e d u m p ô r - d e - s o l . . .
Tenho e n c o n t r a d o tipos t u r b u l e n t o s e palavrosos, sujei-
t o s s o c i á v e i s q u e s ó p o d e m v i v e r e m g r a n d e s g r u p o s . Co-
nheço m u i t o s contadores de histórias que não passam sem
u m a boa platéia. Avisto às vezes os solitários que a n d a m pe-
los c a n t o s s o m b r i o s o u q u e g o s t a m d e p a s s e a r p o r e n t r e o s
e s c o m b r o s d o c a s t e l o d a colina o u d a v e l h a i g r e j a d e S a n t a
M a r i a . Sei a i n d a d u m a c u r i o s a e s p é c i e — a d o s q u e t ê m a
obsessão do h e r o í s m o e a n s t i a m pela h o r a decisiva. A um
encontrei q u e é t o m a d o de súbitos p a v o r e s e crises de choro
quando se fala nos combates que h ã o de vir; m a s apesar
disso q u e r c o n t i n u a r porque na tortura em que vive, no medo
pânico da morte, parece a c h a r um prazer quase voluptuoso.
U m d o s i t a l i a n o s , h o m e n z a r r ã o v e r m e l h o d e c a b e ç a rap3da,
a n d a em e s t a d o de d e p r e s s ã o , r e c u s a - s e a c o m e r e á f a l a r ,
é como u m a s o m b r a a p a g a d a no meio dos outros. Há porém
um grande número de voluntários que atravessa as horas
numa atividade turbulentamente descuidosa e parece ver na
guerra o seu jogo predileto.
A n d a m por aqui numerosos refugiados judeus da Ale-
m a n h a e da Á u s t r i a e n ã o são poucos t a m b é m os que se alis-
t a r a m na Brigada Internacional para fugir a algum d r a m a
íntimo. Acabo de descobrir, por exemplo, que aquele homen-
z i n h o g r i s a l h o e t r a n q ü i l o q u e ali e s t á e n r o l a n d o o s e u ci-
garro, achou n a g u e r r a u m a forma d e suicídio.
Encontro t a m b é m aqui alguns homens que vieram por
puro espírito esportivo. N ã o estão desiludidos do mundo nem
44 ERICO VERÍSSIMO
f a l a m em ideal. A c h a m que a v i d a é u m a só e o h o m e m t e m
t o d o o d i r e i t o de usá-la ou perdê-la c o m o entender.
T r a v o relações c o m u m e x - e s t u d a n t e f r a n c ê s que adora
os l i v r o s de A l a i n Gerbault e as n o v e l a s de Jack London.
Fala-me do m a r com paixão. É um tipo baixo, de olhos doces
e z i g o m a s s a l i e n t e s . Vê a v i d a em t e r m o s de a v e n t u r a e de
a ç ã o . P a r a ele o m u n d o só v a l e pelo que pode oferecer ao
h o m e m de episódio e de e m o ç õ e s v i o l e n t a s .
T e m o s aqui o s i d e a l i s t a s puros. S ã o e m g e r a l m o ç o s que
d e s e j a m m o r r e r por a l g u m a coisa. T ê m u m corpo v i b r a n t e ,
u m a a l m a p r o n t a a se d e i x a r e m b a l a r à m ú s i c a d a s u t o p i a s :
q u e r e m d e s e s p e r a d a m e n t e oferecer a v i d a em sacrificio de
qualquer idéia. U n s f a l a m e m c o m u n i s m o , o u t r o s e m d e m o c r a -
c i a e a p a l a v r a h u m a n i d a d e a n d a em m u i t a s b o c a s . Eu qui-
s e r a s e r u m d e s s e s . À s v e z e s t e n t o iludir-me com p a l a v r a s .
N ã o adianta. J á procurei d a n ç a r a t o d a s e s s a s m ú s i c a s . N ã o
m e a d a p t o a s e u r i t m o . N o e n t a n t o , é curioso, n ã o s o u u m
céptico, n e m u m s u i c i d a e m u i t o m e n o s u m a p a i x o n a d o d a
g u e r r a . A n i m a - m e u m a esperança n e m e u m e s m o sei e m quê.
Sebastian B r o w n me assegura que eu tenho, embora não
s a i b a , o e s p i r i t o r e l i g i o s o e que e s s a i n t u i ç ã o v a g a é o prin-
cipio de fé. Ê m e l h o r n ã o cavocar. D i g o - l h e i s t o e o n e g r o
me retruca:
— C a v o c a r é b o m . No c o m e ç o a g e n t e encontra v e r m e s ,
c a d á v e r e s , d e t r i t o s . . . A t e r r a parece s ó encerrar c o i s a s s u -
jas. ..
Cala-se. N a s u a cara f o s c a abre-se u m sorriso.
— D e p o i s — c o n t i n u a ele — a g e n t e e n c o n t r a n a s ca-
m a d a s m a i s f u n d a s á g u a pura, fresca, boa. E t a l v e z ouro. O
o u r o d a fé.
— Palavras.
— Que importa que sejam palavras?
— Poesia.
— V o c ê t a m b é m é um poeta. N ã o a d i a n t a esconder.
— Q u e m foi q u e l h e d i s s e i s s o ?
— Eu sei. Eu s i n t o . V o c ê g o s t a de o l h a r p a r a o c é u e
ficar calado. A s p e s s o a s a s s i m n u n c a m e e n g a n a m . S ã o d i f e -
rentes das outras.
— Talvez.
U m silêncio. S e b a s t i a n B r o w n m e p e r g u n t a c o m o é q u e
se t r a d u z p a r a o p o r t u g u ê s a p a l a v r a "friend".
— A m i g o — respondo-lhe.
SAGA 45
O C o m i s s á r i o C a n t a l u p o é um r o m a n o b a i x o e g o r d o , de
rosto redondo e faces coradas. Seus lábios carnudos, d u m
v e r m e l h o ú m i d o , e s t ã o a c o n t a r s e g r e d o s de l u b r i c i d a d e e
gula. P a r e c e u m f r a d e d a I d a d e M é d i a , s a í d o d a s p á g i n a s d o
Decameron. A g o r d u r a não lhe e n t r a v a a ação. Gino Canta-
lupo é u m d o s h o m e n s m a i s a t i v o s q u e c o n h e ç o . M e t i d o n a
sua j a q u e t a de couro, calças de m o n t a r i a de veludo castanho,
b o i n a e n t e r r a d a n a c a b e ç a , a n d a ele p o r t o d o s o s c a n t o s d o
m o s t e i r o , p e l a s r u a s d e B e s a l u , c o n f a b u l a c o m oficiais, p r e -
dica s o l d a d o s e c a m p o n e s e s , e x a l t a - s e , s u a , g r i t a , e x o r t a , c a n -
t a . N u n c a o v e j o e m r e p o u s o . T e m u m a v o z u n t u o s a , leve-
mente feminina, m a s ao mesmo tempo vibrante e firme. Fala
com u m a eloqüência meridional e s u a s m ã o s g o r d a s e r o s a d a s
ora volitam t r ê m u l a s no ar como p á s s a r o s decorativos, o r a
se fecham ameaçadoras para esmagar cabeças imaginárias.
Nos m o m e n t o s de ira Cantalupo se t r a n s f i g u r a . Seus olhos
escuros despedem fagulhas, a papada lhe t r e m e e todo aquele
c o r p o m a c i ç o p a r e c e t r e p i d a r c o m o s e d e n t r o dele e s t i v e s s e
a funcionar um dínamo. T e m o h o m e m u m a tal eloqüência,
uma t a l força persuasiva que ao cabo de alguns instantes a
gente chega a esquecer-lhe a figura ridícula e precisa fazer
um esforço desesperado p a r a não se deixar levar por esse
cálido v e n t o d e e n t u s i a s m o q u e a r r a s t a o s o u t r o s h o m e n s ,
arrancando-lhes aclamações.
O e s t i l o o r a t ó r i o do C o m i s s á r i o C a n t a l u p o é p e s s o a l í s s i -
mo. Compõe-se duma combinação de doçura evangélica, pom-
bas líricas, i m a g e n s místicas, com visões apocalípticas e blas-
46 ERICO VERÍSSIMO
f ê m i a s i t a l i a n a s . À s vezes, d o a u g e d o e n t u s i a s m o ele c a i
n u m t e r r e n o g r o s s e i r a m e n t e cômico p a r a n ã o r a r o e n t r a r ino-
pinadamente no domínio da m a i s desbragada pornografia. Os
homens rompem então em gargalhadas e desse modo são
m a n t i d o s com a atenção em suspenso. Mas lá de novo está o
Comissário C a n t a l u p o s e r e n o e profético, a p i n t a r no qua-
d r o do f u t u r o o m a i s j u s t o e belo dos mundos.
O s u o r lhe escorre pelo rosto lustroso, pinga na j a q u e t a
de couro. O o r a d o r p e r o r a e n t r e vivas e aplausos.
C o n t a m - m e que C a n t a l u p o j á esteve m a i s d e u m a vez n a
frente de b a t a l h a e se portou com u m a coragem sobre-humana.
N ã o levava a r m a s e a s u a função e r a p r i n c i p a l m e n t e a de
incitar os homens ao combate. Fazia discursos, cantava hinos
e lançava o seu s a r c a s m o sobre o inimigo como g r a n a d a s
altamente explosivas.
Um dia Gino Cantalupo se aproxima de mim. Deve ter
no máximo um metro e sessenta de altura. Respira forte
como um touro. P e r g u n t a - m e o nome, a r a z ã o por que estou
aqui e acaba pedindo-me informações sobre o Brasil. Digo-
lhe apenas coisas v a g a s . O h o m e m se irrita. Quer dados
exatos.
— M a s c o m o ! — v o c i f e r a . — N ã o s a b e q u e é m e l h o r ca-
lar do que prestar informações erradas ou incompletas?
Bate nervoso com as palmas das mãos nas coxas nédias.
O l h o e s t a c a r a r e l u z e n t e e e x u b e r a n t e e s i n t o u m a r a i v a sú-
bita formigar-me no peito.
— E s c u t e — digo por entre dentes, n u m italiano estro-
p i a d o — eu n ã o sou n e n h u m a r e p a r t i ç ã o a m b u l a n t e de es-
tatística.
N ã o sei s e o r o m a n o m e c o m p r e e n d e , m a s s e u s o l h o s
piscam r e p e t i d a m e n t e ao m e s m o t e m p o que, de m ã o nos qua-
d r i s , ele p e r g u n t a :
— Valente, h e m ?
— P o i s é.
M i r a m o - n o s por a l g u n s s e g u n d o s em silencioso desafio.
Achamo-nos j u n t o de um dos m u r o s do convento e eu penso
— " A m a n h ã pela m a d r u g a d a um pelotão me p r e g a r á à b a l a
n e s t e m u r o " . O c o m i s s á r i o me o l h a de a l t o a b a i x o e v e j o
dissipar-se a nuvem da ira que p a i r a sobre o lustroso terri-
t ó r i o q u e é o r o s t o d e l e : em b r e v e o sol v o l t a a b r i l h a r n a s
rosadas m o n t a n h a s das bochechas. Creio que o perigo passou.
— Vasco Bruno, e h ? Sul-americano, e h ? Sabe que eu o
podia denunciar como insubordinado?
SAGA 47
— Sei.
— S a b e q u e d e n t r o de p o u c a s h o r a s v o c ê poderia e s t a r
diante d o p e l o t ã o d e f u z i l a m e n t o ?
— T a m b é m sei.
— E não tem medo?
— Não.
Os lábios do comissário se encrespam n u m sorriso de
desprezo.
— R i c o t i p o . . . — m u r m u r a ele. — S u l - a m e r i c a n o , e h ?
S a c o d e a cabeça, s o r r i n d o s e m p r e , e d e s f e r e - m e de sur-
presa um s o c o no peito. Q u a s e perco o equilíbrio. C a n t a l u p o
solta u m a risada, f a z m e i a - v o l t a e l á s e vai, n o s s e u s p a s s o s
bruscos, r á p i d o s e e l á s t i c o s .
U m h o m e m e x t r a o r d i n á r i o . A s s e g u r a m - m e que o b s e r v a
rigorosa c a s t i d a d e e, q u a n t o à m e s a , é d u m a f r u g a l i d a d e
espartana.
cer. A g e n t e só d e v e g u a r d a r é a l e m b r a n ç a d o s v e l h o s e r r o s ,
p a r a n ã o t o r n a r a c a i r neles. Q u a n t o à s r e c o r d a ç õ e s dopes,
s e m p r e a esponja ensopada de v i n a g r e e m a i s t a r d e , talvez,
u m a e s p o n j a e m b e b i d a e m s a n g u e . E s t o u d r a m á t i c o . Deve
ser a noite milenar de Besalu.
O b o r d e l fica ao pé da colina. E n t r a m o s . A s a l a p r i n c i -
pal está cheia de voluntários, ao redor de pequenas mesas.
As poucas mulheres do bordel a n d a m de grupo em grupo,
fazem o possível p a r a satisfazer à n u m e r o s a e t u r b u l e n t a
freguesia.
O s s o l d a d o s c a n t a m , f a l a m a l t o , q u e r e m v e n c e r o silên-
cio. I n ú t i l . A q u i e t u d e de B e s a l u é m u i t o a n t i g a , é o silêncio
d o t e m p o e d a m o r t e , o silêncio q u e m a n a d o s c a d á v e r e s
desses bispos que há séculos r e p o u s a m nos sepulcros d a s
i g r e j a s , s o b i n s c r i ç õ e s s o l e n e s . E s t a s c a n t i g a s v ã o p a s s a r co-
m o p a s s a r t a m b é m v ã o a s f r a s e s e e x c l a m a ç õ e s d e ódio q u e
o s g u e r r e i r o s d e h o j e e s c r e v e m c o m giz o u p i x e p o r c i m a d a s
v e t u s t a s legendas latinas. O nosso m o m e n t o é apenas um re-
lâmpago na eternidade de Besalu.
D u a s m u l h e r e s v ê m p a r a a nossa mesa. U m a loura, que
vai sentar-se j u n t o de Garcia, e o u t r a morena, que se aco-
m o d a perto de mim. A presença de a m b a s me desperta re-
cordações d u m mundo longínquo. P o r que estou a q u i ? — per-
g u n t o a m i m m e s m o , o d i a n d o - m e p o r t e r feito e s t a p e r g u n t a ,
que me soa como u m a espécie de traição. M a s t r a i ç ã o a que,
a quem?
— Q u e b e b e s ? — i n d a g a De N i c o l a .
— N ã o há senão v i n h o . . . — resmungo.
T a l v e z a s a l v a ç ã o e s t e j a m e s m o no álcool — c o n c l u o
interiormente. E em seguida u m a rapariga vestida de verde
s u r g e em meus pensamentos. "Alguém do outro lado do m a r
a e s t a h o r a decerto e s t á dizendo u m a prece por m i m " —
p e n s o . Q u e r o a f a s t a r e s s e a l g u é m d a l e m b r a n ç a e p a r a isso
c o m e ç o a f a l a r à t o a p a r a a m u l h e r q u e se a c h a a m e u l a d o .
Vejo agora que é um tipo b a s t a n t e bonito, de tez moçárabe,
olhos lânguidos e c a r n a ç ã o rija.
— Queres posar p a r a m i m ? — pergunto-lhe.
— Posar?
Explico-lhe. Desejo pintar-lhe o r e t r a t o . Com um cravo
v e r m e l h o n a b o c a o u e n f i a d o n o s c a b e l o s n e g r o s . E l a s e li-
m i t a a me dizer p o r cima do o m b r o :
— M i r a , que g r a c i a !
— E n t ã o , à t u a s a ú d e ! — d i g o , e r g u e n d o o copo.
SAGA 49
b a n d o u m a cadeira, a t r a v e s s a a s a l a em p a s s a d a s l a r g a s e sai
b a t e n d o c o m a porta.
— S e u a m i g o v i u f a s t a s m a ? — p e r g u n t a De N i c o l a , vol-
t a n d o a cabeça c o m pouco interesse.
E n c o l h o os ombros. E s t o u me h a b i t u a n d o à e s q u i s i t i c e
das criaturas.
A a r a g o n e s a se a p r o x i m a de m i m , o f e g a n t e , e p e r g u n t a -
me, n u m t o m d e d e s a f i o :
— Tu t a m b é m és de p e d r a ?
C o m o única r e s p o s t a ergo-a n o s b r a ç o s e levo-a para o
quarto.
7
É n u m a t a r d e de céu nublado. Vejo pela p r i m e i r a vez o
h o m e m que ali e s t á s e n t a d o j u n t o d o p o r t ã o d o mosteiro,
a esculpir a canivete u m a figura em madeira. Quem s e r á ?
Quero p a s s a r de largo e esquecê-lo m a s sinto um inexplicável
f a s c í n i o . E s g u i o , o s s u d o , t e m ele u m a c a b e ç a d e p r o f e t a , e
a b a r b a à nazarena, c a s t a n h a e crespa, forma belo contraste
c o m o r o s t o d u m a lividez a m a r e l a . P a r e c e u m C r i s t o p i n t a d o
por Van Gogh.
O c o r r e - m e u m a idéia. C o r r o a b u s c a r p a p e l e l á p i s e
s e m q u e o h o m e m m e v e j a — pois e s t á a b s o r t o e m s e u t r a -
balho — faço-lhe um rápido r e t r a t o . Ótimo p r e t e x t o p a r a me
a p r o x i m a r dele.
— Com licença...
E l e e r g u e o s o l h o s m a s n ã o diz p a l a v r a . E n t r e g o - l h e o
desenho, que ele olha d e m o r a d a m e n t e , m a s sem interesse, e
depois, c o m o q u e m q u e r p a g a r u m a g e n t i l e z a c o m o u t r a ,
mostra-me o t r a b a l h o que está fazendo. Acocoro-me ao lado
dele e t o m o n a s m ã o s a p e q u e n a e s c u l t u r a . É e v i d e n t e m e n t e
u m C r i s t o , m a s u m C r i s t o v e s t i d o c o m o e u e c o m o ele, u m
Cristo que t e m na cabeça um capacete de aço, na mão, u m a
c a r a b i n a e n o r o s t o , u m a e x p r e s s ã o d e ódio. N o s s o s o l h o s
s e e n c o n t r a m . O s m e u s d e v e m e x p r i m i r e s p a n t o . O s dele s ã o
apenas vagos e agora de perto eu lhe descubro nas pupilas
azuis curiosos p o n t i n h o s de fogo.
— É o C r i s t o m o d e r n o — e x p l i c a ele c o m s u a v o z ca-
vernosa. — O Cristo Legionário.
N ã o sabendo que dizer, limito-me a s a c u d i r a cabeça,
n u m submisso acordo, como se estivesse diante de u m a cri-
a n ç a o u d e u m louco.
— O s h o m e n s a d o r a m ídolos f e i t o s p o r s u a s p r ó p r i a s
m ã o s . T a m b é m t e n h o d i r e i t o a f a z e r o m e u ídolo. A q u i e s t á .
F a l a sem me olhar, com a cabeça um pouco alçada p a r a
o céu.
— C r i s t o foi s u b l i m e q u a n d o e x p u l s o u os v e n d i l h õ e s do
t e m p l o — p r o s s e g u e e l e . — N e s s e d i a eu o a d o r e i . F o r a do
ódio n ã o h á s a l v a ç ã o .
52 ERICO V E R Í S S I M O
plo, p r o n t o p a r a s a c i a r a f o m e d u m b a n d o d e a v e n t u r e i r o s
irreverentes e em sua maioria hereges.
N ã o s e i s e foi p o r u m a n e c e s s i d a d e d e o r d e m p r á t i c a
ou por puro espírito de diabolismo que os administradores
do Batalhão escolheram esta igreja p a r a nela instalar o ran-
cho.
O s s o l d a d o s e n t r a m e m fila i n d i a n a p o r u m a d a s p o r t a s
laterais, com o p r a t o n u m a d a s m ã o s e o caneco na outra,
recebem logo à e n t r a d a um pedaço de pão, um pouco de vi-
nho, c h e g a m ao panelão onde se lhes e n c h e m o p r a t o de u m a
sopa de feijão b r a n c o onde b ó i a m descoloridos e r a r o s peda-
ços d e c a r n e e f i n a l m e n t e s a e m p e l a p o r t a c e n t r a l q u e d á
para a pequena praça.
E s t e é u m belo t e m p l o e m e s t i l o r o m â n i c o . A á b s i d e
central muito alta, está sustentada por colunas de capitéis
esculpidos de figuras de s a n t o s e folhas estilizadas. T e m
uma f a c h a d a s e r e n a m e n t e despida e a t o r r e do c a m p a n á r i o ,
relativamente baixa, é q u a d r a d a e de ar severo. A n t i g a m e n t e
era a fumaça do incenso que subia p a r a o altar-mor. Hoje
é o v a p o r da sopa q u e invade e s t e i n t e r i o r s o m b r i o e fresco
onde ecoam vozes internacionais. Dizem-se heresias e blasfê-
mias em mais de t r ê s línguas, m a s é ainda o idioma cantante
e p i t o r e s c o de C a n t a l u p o o q u e p r e d o m i n a .
Confesso que sinto um vago mal-estar quando entro
aqui. T e n h o na a l m a v á r i o s séculos de cristianismo. Mais de
uma vez q u a n d o adolescente proclamei aos q u a t r o ventos,
com a r i m p á v i d o , a m i n h a h e r e s i a . M a s u m a i g r e j a , s e m p r e
m e i m p õ e silêncio. É c o m o s e d e r e p e n t e s o b r e a s u p e r f í c i e
esfuziante da m i n h a a r r o g â n c i a caísse um véu opaco. É como
s e e u fosse d i m i n u í d o d e a l g u m a coisa, c o m o s e a a s a d u m
a n j o n e g r o d e r e p e n t e e s c u r e c e s s e o sol. S i n t o u m a e s p é c i e
d e frio interior, u m presságio. M a s . . . esqueçamos t u d o isso!
A v a n ç o com o m e u p r a t o de folha. A fome, sim, é u m a
coisa p o s i t i v a . A s o p a , a l g o d e p a l p á v e l . D e u s n ã o e x i s t e o u
se existe esqueceu-se do mundo, como disse aquele velho ma-
luco d e P o r t b o u .
Mário Guarini é um dos homens do r a n c h o : está encar-
r e g a d o do p a n e l ã o e q u a n d o c h e g a a m i n h a v e z o n a p o l i t a n o
pisca o o l h o e m o s t r a - s e g e n e r o s o n a r a ç ã o . A t r á s d e m i m
vêm Sebastian, Garcia e Áxel. Sebastian está meio assom-
brado e m b o r a n ã o o confesse. A c h a t u d o isso u m a p r o f a n a -
ção. N e m ele m e s m o s a b e q u e r e l i g i ã o t e m . Q u a l q u e r c o i s a
confusa, u m a m i s t u r a d e a d v e n t i s m o , p o e s i a e t e r r o r c ó s m i c o .
54 ERICO VERÍSSIMO
É um s u j e i t o f u n d a m e n t a l m e n t e bom. O n t e m à noite, c o m o
f a l á s s e m o s d a s razões que n o s t r o u x e r a m a lutar na E s p a n h a ,
ele m u r m u r o u n u m t o m d e v o z d e q u e m c o n t a u m s o n h o :
— E u e s t a v a e m Geórgia. U m dia u m jornal ilustrado
publicou f o t o g r a f i a s d a g u e r r a n a E s p a n h a . Crianças e s t e n -
d i d a s n a calçada, e n s a n g ü e n t a d a s , m u t i l a d a s , m o r t a s por
b o m b a s a t i r a d a s de a v i õ e s e s t r a n g e i r o s . C r i a n ç a s . . . Just
kids .. E n t ã o eu v i m .
S a í m o s para fora c o m n o s s o s p r a t o s . À frente da igreja
a m o n t o a - s e pequena m u l t i d ã o f o r m a d a d e v e l h o s , m u l h e r e s
e crianças. N a s r o u p a s predomina o preto, pois a maioria
e s t á de luto. N o s r o s t o s d o m i n a a n o t a da t r i s t e z a desalen-
t a d a . S ã o caras lívidas e descarnadas. As c r i a n ç a s é que dão
m a i s p e n a : descalços, o s p é s e n l a m e a d o s , o s o l h o s e s p a n t a d o s
de q u e m ainda n ã o compreendeu t o d a e s t a súbita e brutal
confusão.
P a r a m o s os q u a t r o à p o r t a da igreja. As m u l h e r e s e as
crianças e s t e n d e m para n ó s p r a t o s e p a n e l a s v a z i o s e um
coro de m u r m ú r i o s l a m e n t o s o s se e r g u e do grupo. Querem
comida. A l g u n s d o s s o l d a d o s r e p a r t e m c o m eles o que aca-
b a m d e g a n h a r . Outros p a s s a m d e largo. Garcia s e e s g u e i r a
dizendo:
— Considero-me um ó t i m o sujeito, m a s se me e n t r e g o à
caridade, c o m que f o r ç a s v o u c o m b a t e r o s f a s c i s t a s d e F r a n -
c o ? — E t o r n a a e v o c a r o t e s t e m u n h o de D o m Q u i x o t e —
. . . que el trábajo y peso de las armas no se puede llevar sin
el gobiemo de las tripas.
O s u e c o reflete um i n s t a n t e e depois, descendo calma-
m e n t e os degraus, a p r o x i m a - s e de u m a v e l h a e despeja-lhe
no prato a ração de sopa, g u a r d a n d o para si o pão e o vinho.
S e b a s t i a n e eu d a m o s t u d o q u e t e m o s e f i c a m o s de m ã o s
vazias.
— Eu não e s t a v a c o m f o m e . . . — minto.
O n e g r o a r r e g a n h a os d e n t e s :
— N a m i n h a terra negro quando t e m f o m e canta, s a b e ?
E começa a m u r m u r a r u m a c a n t i g a que fala d u m pais
m a r a v i l h o s o em q u e os p r e s u n t o s e os queijos b r o t a m n a s ár-
v o r e s c o m o frutos.
S a í m o s de b r a ç o s dados a caminhar.
S u b i m o s a colina onde ficava a a n t i g a B e s a l u e p o m o -
n o s a c a m i n h a r por e n t r e os e s c o m b r o s do castelo. Ao lado
dele e n c o n t r a m o s o s r e s t o s d u m a igreja. É a p e n a s u m frag-
m e n t o da ábside e u m a p a r t e da entrada. Sinto um e s t r a n h o
SAGA 55
f i e l . P o i s m u i t o bem. U m d i a ensinei-lhe o s m e u s t r u q u e s ,
f i z n ú m e r o s d e p r e s t i d i g i t a ç ã o e m m o v i m e n t o s l e n t o s , decom-
pus m u i t a s v e z e s a s m i n h a s m a i s e s p a n t o s a s m á g i c a s . . .
Cala-se. Olho p a r a ele, esperando.
— S a b e que foi que me a c o n t e c e u ? P e r d i a mulher. É
a velha h i s t ó r i a . E l a s querem ilusão. A s c r i a t u r a s g o s t a m
de m i s t é r i o . J o v e m a m i g o , n u n c a m o s t r e a s u a a l m a a nin-
guém.
No caminho da volta Marcantõnio me conta anedotas que
colheu n o s d i v e r s o s p a í s e s por onde a n d o u . F a l a c o m u m a
graça m u n d a n a e t e m o d e s e m b a r a ç o d u m b o m ator.
P a s s a m o s rindo o p o r t ã o do m o s t e i r o , m a s l o g o a o s pri-
meiros p a s s o s s e n t i m o s a a l m a b a f e j a d a por u m s o p r o 'pres-
aago. Há no ar q u a l q u e r e l e m e n t o e s t r a n h o e hostil. De N i c o l a
parece t e r s e n t i d o o m e s m o , porque e s t a c a de repente, p u x a -
me a m a n g a do casaco, f a z e n d o - m e p a r a r t a m b é m .
— A l g o de m a u a c o n t e c e u . . .—cicia ele.
D e onde n o s v e m e s s e p r e s s e n t i m e n t o e s c u r o ? D o s r o s t o s
fechados d e t r ê s h o m e n s q u e a c a b a m d e p a s s a r por n ó s ? O u
do silêncio e s p e s s o q u e p a i r a sobre e s t a c a s a e e s t e parque
de ordinário c h e i o s da balbúrdia d o s v o l u n t á r i o s ?
E n t r e o l h a m o - n o s , m u d o s , e ao c a b o d u m i n s t a n t e o s a r -
gento c o c h i c h a :
— E u nunca m e e n g a n o . S i n t o e s s a s c o i s a s a q u i . . .
E m o s t r a o coração. R e t o m a m o s a m a r c h a . No p á t i o
central os h o m e n s c a m i n h a m c a l a d o s e s e m g e s t o s , p a r e c e m
sombras. Q u e t e r á a c o n t e c i d o ? D i r i g i m o - n o s a um v o l u n t á r i o
d e aspecto i n c a r a c t e r i s t i c o que e s t á s e n t a d o s o b u m a d a s ar-
eadas da galeria. E e l e n o s i n f o r m a :
— U m soldado v i o l o u u m a menina. V a i s e r fuzilado da-
qui a u m a h o r a .
— C o m o se c h a m a e l e ? — indaga, rápido, De N i c o l a .
O o u t r o encolhe o s ombros. U m a idéia a s s u s t a d o r a m e
ocorre. S e b a s t i a n . . . M a s é impossível, quero t i r á - l a da m e n -
te, sacudo a c a b e ç a muitas, m u i t a s v e z e s c o m o p a r a a e s -
pantar. M a s e l a contínua aqui dentro, a v o l u m a - s e a cada s e -
cundo q u e p a s s a . F o i S e b a s t i a n . C o m e ç o a andar à t o a pelo
nosteiro, p r o c u r a n d o . . . N ã o e n c o n t r o n e n h u m d o s m e u s t r ê s
a m i g o s e isso a u m e n t a a m i n h a aflição. S e b a s t i a n . . N ã o há
dúvida. N u m m o m e n t o d e loucura, t o d a s a s f o r ç a s a n c e s t r a i s
surgindo d e repente, i r r e p r i m í v e i s . . . Entro no alojamento.
Ninguém. Corro p a r a o j a r d i m . À s o m b r a d u m a árvore Gua-
rini e Sebastian, acocorados, j o g a m d a d o s . Ao me v e r , o n e -
58 ERICO VERÍSSIMO
A p ó s o r a n c h o t e m o s a l g u n s m o m e n t o s de f o l g a e fica-
m o s a c o n v e r s a r e a f u m a r , s e n t a d o s n o s b a n c o s da p e q u e n a
praça.
Chega um grande caminhão empoeirado, que v e m de Fi-
g u e r a s c o m n o v o s v o l u n t á r i o s . S a l t a m dele u n s dez h o m e n s
e n t r e o s q u a i s v i s l u m b r o u m a v i s ã o surpreendente. U m h o -
m e m alto, esbelto, m e t i d o e m e l e g a n t í s s i m o dinner-jacket,
dirige-se p a r a nós. S e u s p a s s o s s ã o l a r g o s e decididos e n ã o
há nele o m e n o r ar de c o n s t r a n g i m e n t o . C a m i n h a c o m u m a
g r a ç a natural, é c o m o se a t r a v e s s a s s e a p i s t a d u m dancing
para c o n v i d a r u m a loura a d a n ç a r a rumba.
O s n o s s o s c a m a r a d a s que s e e n c o n t r a m n a s p r o x i m i d a -
SAGA 61
d e t o d a s a s c o i s a s . A c h a m o t r a b a l h o n ã o s ó u m f a r d o in-
suportável, como t a m b é m a pior das degradações. Gostam da
v i d a m a s p õ e m - s e em r i s c o a t o d o o i n s t a n t e e q u a s e s e m p r e
s e m o m e n o r p r o p ó s i t o . T i p o s d e s s a espécie, q u e m o s p o d e r á
classificar com j u s t e z a ? Eles se me afiguram nas mais das
vezes t r e m e n d o s e g o í s t a s , m a s n ã o r a r o s o u l e v a d o a c r e r
que são as criaturas mais desprendidas do mundo.
P a u l G r e e n p e r t e n c e a e s s e clã. S u a a t i t u d e n e s t e m o -
m e n t o é b a s t a n t e s i m b ó l i c a . V a i v i a j a n d o d e c o s t a s n e m ele
mesmo sabe p a r a onde. Talvez p a r a a morte. No e n t a n t o
parece despreocupado, sorri, procura entabular conversação
com os voluntários, que se m a n t ê m reservados, faz-nos sinais
humorísticos e a c a b a por se a p r o x i m a r de nós, depois de
u m a série de acrobacias incríveis.
— Quer f u m a r ? — pergunto, passando-lhe a m i n h a car-
teira.
— G r a n d e i d é i a — r e s p o n d e ele, a p a n h a n d o u m c i g a r r o .
S e n t a - s e a n o s s o l a d o , d e s a l o j a n d o u m i t a l i a n o , q u e lhe faz
lugar, r e s m u n g a n d o m a l - h u m o r a d o . E quando lhe p e r g u n t o
c o m o foi q u e v e i o p a r a r n a B r i g a d a I n t e r n a c i o n a l , ele f a z
um gesto que significa: "Oh! Isso não t e m importância".
E, como eu e B r o w n insistimos, o a m e r i c a n o nos r e s u m e
sua história. Tem vinte e q u a t r o anos e nunca trabalhou em
toda a vida. Fez estudos atabalhoados porque estava an-
sioso p o r d e i x a r a universidade e a r d e n d o por conhecer o
mundo. Herdou u m a fortuna apreciável — dinheiro e bsns
i m ó v e i s — d u m t i o q u e o a b o r r e c i a e q u e ele d e t e s t a v a .
T r a n s f o r m o u os i m ó v e i s em d ó l a r e s e s a i u a v a g a b u n d e a r
p e l a t e r r a . V i a j o u d u r a n t e d o i s a n o s . N ã o l e v a v a m a l a s . Mui-
t o a t r a v a n c a m e n t o , v o c ê s c o m p r e e n d e m , m u i t o i n c ô m o d o , co-
n h e c i m e n t o s , c a r r e g a d o r e s . . . u m t r a n s t o r n o ! T r a z i a n o bolso
cheques de t u r i s m o e ia c o m p r a n d o r o u p a s à medida que pre-
cisava. As que t i r a v a do corpo, jogava-as fora. Andou assim
p o r t o d a a E u r o p a , pelo O r i e n t e e foi t e r m i n a r o s ú l t i m o s
dois mil dólares em Barcelona. Certa noite, ao p a g a r n u m
café a l g u n s whiskeys a u m h o m e m q u e c o n h e c e r a h a v i a m e i a
hora, verificou que se lhe ia a última peseta. Disse isso ao
companheiro eventual e pediu-lhe um conselho. Que fazer?
E s t a v a quebrado e odiava o trabalho. O outro mirou-lhe o
dinner-jacket i m p e c á v e l e disse, i r ô n i c o :
— Aliste-se na B r i g a d a Internacional.
— Grande idéia!
Sempre aborrecera os conselhos sensatos e nunca se ar-
SAGA 65
C h e g a m o s a Ollot. U m t r e m e s t á à n o s s a e s p e r a p a r a
nos l e v a r n i n g u é m s a b e a i n d a p a r a o n d e . U n s d i z e m q u e p a r a
o m a r ; outros afirmam que nos m a n d a r ã o diretamente para
a frente de batalha. Boatos desencontrados.
A i n d a n ã o n o s d e r a m a r m a s . C o m e ç a m o s a f i c a r inquie-
tos por não saber a razão disso.
E m b a r c a m o s sob forte chuva. N ã o h á n a d a como u m
b o m a g u a c e i r o p a r a a r r e f e c e r o â n i m o d o s o l d a d o , dissolver-
lhe a v o n t a d e de l u t a r , levá-lo a um e s t a d o de a b a t i m e n t o .
O t r e m se põe em m a r c h a . O nosso v a g ã o cheira mal. E s t a -
mos deprimidos.
E m Ollot n o s c o n t a r a m q u e o s a v i õ e s i t a l i a n o s f a z e m
e x c u r s õ e s d i á r i a s p e l o s a r r e d o r e s , à c a ç a d o s t r e n s q u e con-
duzem t r o p a s governistas. A nossa composição é enorme, um
belo alvo, c e r t a m e n t e , e , m a i s q u e isso, u m a l v o indefeso. S ó
os o f i c i a i s e a l g u n s v e t e r a n o s é q u e t r a z e m p i s t o l a s a u t o m á -
ticas e fuzis-metralhadoras.
P a u l G r e e n c o n s e g u i u p e r m u t a r em Ollot o dinner-jacket
p o r u m a s v e l h a s c a l ç a s d e v e l u d o m u i t o c o ç a d a s e u m a ca-
misa g r o s s e i r a d e lã. E m t r o c a d o s s a p a t o s d e v e r n i z r e c e b e u
um p a r de a l p e r c a t a s velhas. D a d a s as circunstâncias, creio
q u e foi u m ó t i m o n e g ó c i o .
O t r e m r o l a . S e b a s t i a n s e g u r a u m p e q u e n o e s p e l h o à al-
t u r a do rosto de Green enquanto este se barbeia com o meu
aparelho de Gillette.
Hoje é primeiro de maio. Um dos voluntários que vão
no nosso carro está furioso p o r n ã o t e r m o s participado da
grande p a r a d a que se está realizando em Barcelona. Culpa
o c o m a n d o da B r i g a d a , p r o n u n c i a a p a l a v r a desorganização,
m a s acaba se calando, pois sabe que se falar m u i t o correrá
o r i s c o de t e r o m e s m o f i m de P e p i n o V e r g a .
O M e d i t e r r â n e o e s t á hoje d u m verde de e s m e r a l d a e
quando a b r o a janela u m a r a j a d a de vento fresco cheio de
sol e m a r e s i a , m e b a t e n o r o s t o . E n t r e g o - m e a p e n s a m e n t o s
líricos e p o r l a r g o i n s t a n t e esqueço q u e v i m à E s p a n h a p a r a
lutar.
Avistamos um amontoado de casas. Dentro de poucos
minutos o t r e m pára. Temos ordem de desembarcar. Ao pu-
lar do carro Garcia olha em t o r n o e diz:
— N ã o ficarei nada a d m i r a d o se estivermos em Lis-
boa. ..
— Perca a ilusão — grita alguém que passa. — Esta-
mos em Cambrills.
P a u l Green e r g u e no ar os alongados braços e saúda o
m a r . A v i s t a m o s De Nicola que nos faz sinais amistosos.
— S a r g e n t o ! — exclama o chileno. — F o m o s miseravel-
mente enganados, isto não é a frente.
Muito sereno, sem perder o aprumo, o prestidigitador
pede:
— Tenha calma. Vamos fazer agora u m a pequena esta-
ção b a l n e a r i a . . .
E com um gesto ágil t i r a u m a peseta do ouvido de Paul
Green.
9
C a m b r i l l s é u m a p e q u e n a v i l a da provincia de T a r r a g o n a .
N o s e u c a s t e l o , q u e s e a v i s t a d a praia onde e s t a m o s a c a m -
a
pados, a c h a - s e i n s t a l a d o o c o m a n d o da 4 5 . D i v i s ã o , que i n -
clui t r ê s b r i g a d a s internacionais.
O c e n á r i o m u d a e n o s s a vida t a m b é m . E n c o n t r a m o - n o s
a dois p a s s o s do m a r e a primeira n o i t e d o r m i m o s ao ar
livre. Os oficiais que n ã o f o r a m para o c a s t e l o , i n s t a l a r a m -
se nas cabanas dos pescadores. Temos de lançar mão dum
p r i m i t i v o t i p o d e h a b i t a ç ã o para n ã o c o n t i n u a r dormindo a o
relento. O s v e n t o s d a p r i m a v e r a m o v e m n o céu a s n u v e n s
c a r r e g a d a s de c h u v a e q u a n d o m e n o s se e s p e r a d e s a b a m s o -
bre n o s s a s c a b e ç a s f o r t e s a g u a c e i r o s . C a v a m o s t o c a s n o s
barrancos — "chavolas", c o m o l h e s c h a m a m os e s p a n h ó i s —
e em c a d a u m a d e l a s f i c a m a l o j a d o s t r ê s soldados.
N o s d i a s d e s o l t o m a m o s b a n h o s d e mar. Q u a n d o c h o v e
f i c a m o s m e t i d o s e m n o s s a s c a v e r n a s a o redor d u m f o g o , bar-
budos e t r u c u l e n t o s c o m o t r o g l o d i t a s .
Cada soldado g a n h a t r e z e n t a s e p o u c a s p e s e t a s e P a u l
Green m o s t r a - s e a n s i o s o por g a s t a r a s s u a s i m e d i a t a m e n t e .
T e m o s de contribuir para as l i s t a s de d o n a t i v o s d e s t i n a d o s a
"los n i ñ o s e s p a ñ o l e s " e a a u x í l i o s de r e t a g u a r d a , de s o r t e
que n o f i m d e c o n t a s n o s r e s t a m a p e n a s u m a s c i n q ü e n t a o u
sessenta pesetas.
Um dia n o s s u r g e m m u l h e r e s e c r i a n ç a s s u j a s e m a g r a s ,
pedindo e s m o l a s . D o u - l h e s o que t e n h o no b o l s o e Garcia,
que v e m correndo da praia, o n d e e s t e v e a j o g a r luta r o m a n a
com u m siciliano, brada d e l o n g e :
— A p o s t o c o m o lhe d e s t e t o d o o t e u dinheiro, n ã o ? O
famoso sentimentalismo sul-americano...
Fazemos diariamente exercícios militares, m a s continua-
m o s d e s a r m a d o s c o m o a n j o s . R a s t e j a m o s pela areia e m c o m -
b a t e s s i m u l a d o s , e n c o n t r a m o s na p r a i a p e i x e s e c a r a n g u e j o s
mortos, que e x a l a m um cheiro insuportável. F i c o a i m a g i n a r
c o m o s e r á n o d i a e m q u e e s t i v e r m o s a n o s a r r a s t a r por e n t r e
corpos h u m a n o s e m e s t a d o d e putrefação.
70 ERICO VERÍSSIMO
U m a noite, c o m o s e u h u m o r g e r m â n i c o , o i n s t r u t o r pre-
para-nos uma surpresa. Sem o menor aviso, na hora dum
a s s a l t o , m a n d a j o g a r g r a n a d a s d e m ã o d e v e r d a d e , que e x -
p l o d e m a p o u c o s p a s s o s na n o s s a frente. Ê u m a e m o ç ã o n o v a
e inesperada, m a s t u d o s e p a s s a s e m n o v i d a d e .
Os soldados aos poucos vão construindo as suas casas
c o m t r o n c o s e r a m o s de á r v o r e s t r a z i d o s do b o s q u e p r ó x i m o .
A l g u n s c o m habilidade e g o s t o e r g u e m b e l o s b a n g a l ô s . A
p r a i a se v a i e n c h e n d o de r a n c h o s . O m a i o r de t o d o s t o m a
o n o m e de "El Hogar dei Soldado". É u m a e s p é c i e de clube
d o s i n t e r n a c i o n a i s . T e m o s aqui o "jornal m u r a l " o n d e encon-
t r a m o s n o t i c i a s , p r o c l a m a ç õ e s , s u g e s t õ e s d e u m o u outro v o -
l u n t á r i o p a r a m e l h o r a r e s t e ou aquele s e r v i ç o , c o n v o c a ç õ e s e
c o n v i t e s p a r a f e s t a s . N o p r i m e i r o d o m i n g o s e r e a l i z a n a praia
u m a f e s t a c o m a p r e s e n ç a de o f i c i a i s e s o l d a d o s . Marcantô-
nio faz números de prestidigitação. Um italiano com ar de
b o x e a d o r toca á r i a s n u m v i o l i n o d e s a f i n a d o . U n s d o i s o u t r ê s
c a n t a m . D e quando e m q u a n d o s u r g e C a n t a l u p o , t r e p i d a n t e
c o m o s e m p r e , e r e ú n e os h o m e n s p a r a u m a preleção. E x p l i c a -
n o s o s "Treze P u n t o s d a N e g r i n " , que c o n t ê m a s f i n a l i d a d e s
d e s t a g u e r r a d o â n g u l o republicano.
Os banhos de mar me fazem bem. Sinto-me m a i s anima-
do, p o i s a n o s s a v i d a t o m a a g o r a u m r i t m o e s p o r t i v o .
P e r g u n t o u m dia a o c o m a n d a n t e d e n o s s a c o m p a n h i a :
— Quando teremos armas?
S e m p a r a r ele m e r e s p o n d e :
— A r m a s para q u ê ? P a r a m a t a r p a s s a r i n h o s ? O s fran-
q u i s t a s a i n d a e s t ã o longe.
C u r i o s a coincidência. N e s s a m e s m a t a r d e t r ê s a v i õ e s
i n i m i g o s p a s s a m e m v ô o b a i x o por c i m a d e n o s s a s cabeças.
T o m a d o s de p â n i c o os h o m e n s d e i t a m a correr para o bosque.
F e l i z m e n t e os S a v i o - M a r c h e t t i n ã o l a n ç a m b o m b a s e dentro
de p o u c o s m i n u t o s t o r n a m a desaparecer. À h o r a da r e v i s t a
u m d o s o f i c i a i s berra, f u r i o s o :
— Estúpidos! Correrem dessa maneira. P o d i a m ter mor-
rido como moscas.
E repreende-nos por n ã o t e r m o s p o s t o e m p r á t i c a a s
instruções recebidas com relação aos ataques aéreos.
U m a tarde de sol mandam-nos formar e marchar para
o c a s t e l o . S o m o s c o n d u z i d o s ao p á t i o c e n t r a l o n d e um oficial
francês nos ordena:
— Dispam-se todos!
Creio q u e n ã o ouvi b e m . O s h o m e n s p a r e c e m h e s i t a r .
SAGA 71
— T i r e m t o d o s as s u a s r o u p a s ! — i n s i s t e o oficial.
N ã o há dúvida. Querem que fiquemos nus. Entreolhamo-
nos n u m e m b a r a ç o cômico e começamos a nos despir. Em
menos de cinco minutos o pátio do velho castelo se transfor-
ma n u m a colônia nudista.
— Q u e diabo q u e r e r ã o de n ó s ? — indaga Sebastian com
um olhar desconfiado.
— C o n c u r s o de b e l e z a — diz P a u l G r e e n .
Passam-se os segundos. Os h o m t n s estão à vontade, pas-
seiam sós ou aos g r u p o s , conversam, f u m a m e esperam. É
u m e s p e t á c u l o s i n g u l a r . M a i s d e d u z e n t o s h o m e n s n u s a o sol
n u m castelo medieval da província de T a r r a g o n a . Vejo aqui
os mais variados tons de epiderme, os corpos de modelos
mais diversos. Indivíduos atléticos e raquíticos, apolíneos e
desengonçados, esplêndidos e ridículos. U n s são glabros como
adolescentes, outros peludos como símios. Sebastian parece
u m a f i g u r a t a l h a d a e m é b a n o e o c o n t r a s t e d e s u a pele n e g r a
com a b r a n c u r a d o u r a d a do corpo de Áxel chega a ser como-
vente. Ao redor destes homens as pedras escuras e antigas
do castelo que v i r a m t a n t a s cenas de glória e de miséria,
parecem t e r u m a r g r a v e m e n t e irônico. Descubro n u m dos
cantos do pátio E t t o r e Sarto. É de todas as figuras a mais
I m p r e s s i o n a n t e . S e u c o r p o d e s c a r n a d o , e m cujo t r o n c o a p a r e -
ce o relevo d a s costelas, e s t á m a i s do que nunca parecido
com o Cristo amarelo de V a n Gogh.
O u v i m o s u m a voz d e c o m a n d o . T e m o s d e f o r m a r n u m a
d u p l a fileira. Um s u j e i t o g o r d o e b a i x o de pince-nez c o m
corrente de ouro se a p r o x i m a de nós. Vêem-se a seu lado
mais dois h o m e n s de aspecto neutro, um dos quais t e m nas
m ã o s u m l á p i s e u m a c a d e r n e t a . M a n d a m - n o s d e s f i l a r pela
frente do h o m e m gordo, que examina os soldados com minú-
cia e r e p u g n â n c i a , d e u m e m u m . E m b r e v e s a b e m o s d o q u e
se t r a t a . Descobriram-se no batalhão vários casos de sarna e
os sarnosos vão ser recolhidos a um campo de isolamento.
N ã o posso fugir a u m a sensação de náusea. É esquisito como,
ao pensar na guerra, a gente nunca se lembra desses porme-
nores sórdidos ou então simplesmente triviais. Tem-se em
v i s t a a a ç ã o , a l u t a , o í m p e t o , as a r r e m e t i d a s c o r a j o s a s ou
então a silenciosa e s u b t e r r â n e a luta c o n t r a o medo. P o e t a s e
j o r n a l i s t a s , r o m a n c i s t a s e h i s t o r i a d o r e s , a n t e s de f i x a r a
g u e r r a em livros, r e v i s t a s e j o r n a i s p a s s a m - n a por u m a penei-
ra cuja t r a m a é feita de idealismo, r o m a n c e e clarinadas
gloriosas.
72 ERICO VERÍSSIMO
A q u i v o u eu, n u c o m o o p r i m e i r o h o m e m n o d i a d a c r i a -
ção. Acontece a p e n a s que levo n a s m ã o s a s m i n h a s r o u p a s
e na alma u m a sensação de repugnância que aquele remo-
tíssimo antepassado provavelmente ainda não conhecia na
m a n h ã da vida.
E s t a m o s nos vestindo j u n t o dos m u r o s do castelo. Chega
P a u l Green, de g o r r o na cabeça, o b u s t o coberto pela c a m i s a
d e lã, m a s n u d a c i n t u r a p a r a b a i x o .
— P a s s e i no e x a m e — d i z - n o s ele. — D i s t i n ç ã o .
Descemos depois os cinco p a r a a p r a i a e v a m o s c o m p r a r
sardinha aos pescadores. Ficamos a fritá-las em pratos de
barro.
O sol i r i s a a c o r o a de e s p u m a d a s o n d a s . S e m p r e é b o m
brincar com imagens poéticas depois d u m a cena como aquela
do pátio do castelo. S a r n a e poesia. Desses c o n t r a s t e s é que
se faz a vida. U m a coisa não t e r i a valor s e m a existência da
outra. Mas eu confesso que de bom grado dispenso a sarna.
Q u a n t o à poesia, ela às vezes é u m a espécie de janela que
se abre p a r a u m a paisagem repousante: cores e formas novas
para os olhos, ar p u r o p a r a a alma. Mas há m o m e n t o s em
que me revolto c o n t r a o que ela t e m de amolecedor e femi-
nino.
De qualquer modo as sardinhas fritas despedem um cheiro
apetitoso. C o m e m o s com voracidade e o vinho hoje me sabe
particularmente bem.
de p e d r a s m a r g e a n d o a e s t r a d a . Misturo as t i n t a s e ponho-
m e a t r a b a l h a r . S ã o dez h o r a s d a m a n h ã e o sol b r i l h a . E s -
queço me do m u n d o e m a n t e n h o um diálogo interior sobre a
:
p a r a t r e p a r . T i r a a c a m i s a e os s a p a t o s e c o m e ç a a s u b i r .
Ficamos aqui e m b a i x o n u m silêncio de a n g u s t i a . Chego a
sentir a m i n h a própria palidez e m e t o as m ã o s nos bolsos
p a r a lhes disfarçar o t r e m o r .
Garcia grita de cima:
— Lá vai!
E começa a a t i r a r p a r a baixo os m e m b r o s mutilados. As
postas de carne ensangüentada batem no chão com um ruí-
do fofo e h e d i o n d o — g r a n d e s f r u t o s p o d r e s q u e o v e n t o faz
t o m b a r . S i n t o n á u s e a s , u m gelo n o e s t ô m a g o , u m e n f r a q u e c i -
mento súbito.
Quando Garcia desce, com mãos, braços e torso salpica-
dos de sangue, a p o n t a p a r a o chão e me diz:
— Aí tens u m a bela natureza morta. P o r que não vais
buscar a t u a caixa de t i n t a ?
Dentro de meia h o r a estamos livres desse horror. F o r a m
a p u r a d a s com e x a t i d ã o as p e r d a s . Q u a t r o m o r t o s e o i t o fe-
ridos. Os mortos vão ser enterrados imediatamente dentro
de sacos de lona. N ã o há t e m p o p a r a fazer caixões.
No cemitério de Cambrills. Cantalupo em cima d u m tú-
m u l o diz u m d i s c u r s o d e d e s p e d i d a a o s m o r t o s . A l i t e r a t u r a
de costume. F a z e m o s continência enquanto dois catalães
musculosos e melancólicos descem os sacos p a r a o fundo da
cova. Soa um clarim.
São três horas da t a r d e quando descemos p a r a a praia,
taciturnos e opressos. Um voluntário me vem dizendo:
— E n g r a ç a d o . . . escolherem-me para comandar o grupo
que andou recolhendo os pedaços de c a d á v e r e s . . .
— E n g r a ç a d o por quê? — pergunto, desconhecendo a
m i n h a p r ó p r i a voz.
Ele acende um toco de c i g a r r o m u i t o q u e i m a d o e sujo,
fita em m i m os olhos miúdos e explica:
— Quando eu era rapaz gostava muito desses jogos de
armar, sabe? F i g u r a s que vêm nas revistas com os pedaci-
nhos separados para depois a gente j u n t a r tudo direito.
Solta u m a risada seca e r e m a t a :
— Este mundo t e m cada c o i s a . . .
Chego à m i n h a "chavola" e verifico que a p a i s a g e m que
a i n d a h á p o u c a s h o r a s e u p i n t a v a j á n ã o existe m a i s t a l co-
mo era. Os aviões na s u a passagem apocalíptica a mutilaram.
A estradinha serena agora apresenta em dois lugares enor-
m e s r o m b o s . O b o s q u e d e p i n h e i r o s foi a r r a s a d o . A c e r c a
SAGA 75
de p e d r a s v e i o abaixo. Minha p i n t u r a é já u m a i m a g e m do
passado.
S e n t o - m e à p o r t a da "chavola" e fico olhando na direção
do c a s t e l o . N ã o p o s s o e s q u e c e r os corpos e s t r a ç a l h a d o s . O
mar, o v e n t o , o sol s ã o ainda os m e s m o s , apesar de t o d a e s -
tupidez d o s h o m e n s e da inopinável incongruência da vida.
P r o c u r o o s c o m p a n h e i r o s . S e b a s t i a n e s t á abatido. Green,
um p o u c o pálido, e n u m g e s t o que a princípio n ã o compreen-
do b e m , v e m me a p e r t a r a m ã o c o m o se t i v e s s e de dar pêsa-
m e s a a l g u é m pelo que aconteceu. A p r o x i m o - m e de Á x e l que,
de b r a ç o s cruzados, c o n t e m p l a o mar. F i c a m o s lado a lado
por a l g u n s i n s t a n t e s s e m dizer palavra. V e j o n o r o s t o dele
u m a e x p r e s s ã o rígida, u m a pétrea t e n s ã o muscular. A o cabo
d e a l g u n s i n s t a n t e s ele m e d i z :
— S a n t o D e u s ! P o r que será q u e n ã o n o s m a n d a m lutar
duma v e z ? !
Garcia e De N i c o l a acocorados na praia, em t o r n o d u m
braseiro, f r i t a m s a r d i n h a s t r a n q ü i l a m e n t e .
C h e g a um t r e m de T a r r a g o n a c o m a r m a s e m u n i ç õ e s . O
dia g a n h a u m a s p e c t o f e s t i v o . A s carabinas e o s fuzis-metra-
Ihadoras s ã o distribuídos entre o s h o m e n s d o n o s s o b a t a l h ã o .
F a z e m - n o s m i l r e c o m e n d a ç õ e s e um oficial r u s s o n o s a s s e g u -
ra q u e um fuzil é t ã o precioso c o m o a vida d u m h o m e m . Os
i n t e r n a c i o n a i s n o primeiro m o m e n t o p a r e c e m crianças que
a c a b a m d e g a n h a r brinquedos n o v o s . D u r a n t e dois d i a s e n -
t r e g a m o - n o s a e x e r c í c i o s r e g u l a r e s de t i r o .
O C o m i s s á r i o Cantalupo f a z um discurso a propósito da
distribuição d a s a r m a s . É t ã o feliz que, m u i t o a c o n t r a g o s t o ,
c h e g o a ficar e n t u s i a s m a d o . A v e l h a h i s t ó r i a do h e r o í s m o . Os
i n t e r n a c i o n a i s t e r m i n a m c a n t a n d o o H i n o E s p a n h o l , a Mar-
selhesa e f i n a l m e n t e a "Bandiera R o s s a " .
C h e g a m - n o s h o j e n o v o s soldados. N o t a m o s c o m a l g u m a
e s t r a n h e z a que s ã o q u a s e t o d o s c a t a l ã e s . N ã o a t i n a m o s por
que m a n d a m n a t u r a i s d o p a í s lutar a o lado d o s soldados d a
B r i g a d a Internacional.
U m deles, t i p o m o ç o d e o l h o s e s p a n t a d o s , m e c o n f e s s a
que preferia o t i v e s s e m m a n d a d o para um corpo de s o l d a d o s
espanhóis.
— Por quê?
E l e h e s i t a p o r u m i n s t a n t e m a s acaba c o n f e s s a n d o :
— Na Brigada os homens são audaciosos demais. Vie-
76 ERICO VERÍSSIMO
c o m i g o . S i n t o - a v i r d a n o i t e p a r a a m i n h a cova, i m a g i n o q u e
seu h á l i t o m o r n o m e b a f e j a o r o s t o . E l a q u e r m e d i z e r al-
guma coisa que n ã o consigo ouvir. A l g u m segredo longamen-
te escondido, a l g u m a revelação salvadora. Mas é tarde, m u i t o
tarde, querida. E s t a m a d r u g a d a embarcamos para as trin-
cheiras. Tu te e n g a n a s . N ã o sou m a i s o teu companheiro de
b r i n q u e d o s , n ã o a n d a m o s d e s c a l ç o s pelo q u i n t a l . . . N ó s c r e s -
cemos, q u e r i d a , e o m u n d o d o s a d u l t o s t e m m i s t é r i o s a s s u s -
t a d o r e s . T o m a r a q u e n u n c a v e j a s o s q u a d r o s q u e e u v i on-
tem. Ê t a r d e agora. È preciso que voltes p a r a casa a n t e s que
os a v i õ e s t o r n e m a a p a r e c e r .
M a s Clarissa continua comigo, apega-se a m i m como
numa derradeira despedida e eu procuro ser forte para deixá-
l a i r t r a n q ü i l a . S i m , e u v i v e r e i p a r a u m dia a t r a v e s s a r o m a r
e ir de novo t e r contigo. V a i em paz. A d e u s ! N ã o chores,
menina, t u d o a c a b a r á bem. Talvez sejamos ainda crianças, e
isto n ã o p a s s e d e u m d e s s e s p e s a d e l o s a f l i t i v o s . A d e u s !
Sinto no peito q u a l q u e r coisa opressiva que me t o r n a
i n s u p o r t á v e l o f i c a r d e i t a d o . E r g o - m e e s a i o da " c h a v o l a " . A
noite e o m a r e s t ã o e n v o l t o s n u m a ú n i c a e h a r m o n i o s a t r a n -
q ü i l i d a d e . F i c o a c a m i n h a r p e l a p r a i a , f u m o u m c i g a r r o , de-
pois m e e s t e n d o n a a r e i a e e m b r e v e m e u s p e n s a m e n t o s e s t ã o
a se embalar ao ritmo das ondas.
E b e m c o m o u m r i o m a n s o e n t r a n o m a r , a d o c e cor-
rente de meu devaneio, sem que eu t e n h a consciência nítida
da m u d a n ç a , se e s p r a i a e f u n d e no s o n o .
A n t e s d e r a i a r o d i a t o r n a m o s a e m b a r c a r . D e s t a vez
parece não haver dúvida: vamos para a linha de frente. Nos-
sos caminhões se dirigem p a r a a m a r g e m do E b r o e e s t a m o s
prontos p a r a e n t r a r em ação imediatamente. Garcia a meu
SAGA 81
c h e g a a s e r p a r a d o x a l m e n t e deliciosa. A r r a s t a m o - n o s no c h ã o
fofo, m e t e m o s as m ã o s na t e r r a e c o m e ç a m o s a encher os
n o s s o s bornais. D e N i c o l a n o s recomenda calma. S o m o s e s -
t r a n h o s r é p t e i s d u m a e s t r a n h a fauna. S i n t o u m cheiro d e
t e r r a m o l h a d a e há um m o m e n t o de súbita e absurda fra-
queza em que t e n h o v o n t a d e de m e r g u l h a r a cara na t e r r a
e chorar. É preciso quebrar os t o m a t e i r o s para apanhar-lhes
o s f r u t o s : onde a n t e s e u c a r r e g a v a g r a n a d a s a g o r a v ã o t o m a -
t e s . Q u a n t o t e m p o f a z que e s t a m o s a r a s t e j a r na h o r t a ? Tal-
v e z u n s quinze m i n u t o s e m o c i o n a n t e s . Só a g o r a é que eu co-
m e ç o a t e r u m a consciência fria do perigo. Cravo a m ã o na
t e r r a ao acaso, d o e m - m e os dedos. A v i d a por u m a s a l a d a !
De N i c o l a n o s diz que d e v e m o s voltar. De n o v o o cami-
n h o penoso. Quando c h e g a m o s a um â n g u l o m o r t o respira-
m o s m a i s livremente. T e n h o o corpo t o d o dolorido. Os bor-
nais pesam.
S o m o s recebidos f e s t i v a m e n t e .
— Os h e r ó i s . . . — diz Garcia, irônico.
O polaco j n e o l h a c o m admiração. Prontifica-se a t r a z e r
um tacho com água para lavar os tomates e as batatas. No
dia s e g u i n t e De N i c o l a n o s prepara a salada c o m carinho.
Q u a n d o p a s s o um prato a Green, o a m e r i c a n o f a z um g e s t o
de r e p u g n â n c i a e d i z :
— Muito obrigado. D e t e s t o os l e g u m e s .
A l v o r o ç o n a s n o s s a s posições. U m b a t a l h ã o d e interna-
c i o n a i s v o l t a da linha de frente. Q u e r e m o s saber c o m o é a
vida nas trincheiras e eles nos assustam com histórias tene-
b r o s a s . E s t ã o m a g r o s , cansados, barbudos e sujos. O l h a m
c o m c e r t o desprezo para o n o s s o relativo a s p e c t o de frescura
e s o r r i e m c o m o q u e m diz: V o c ê s v ã o v e r o que é b o m . . .
R e c e b e m o s ordem d e marcha. A o anoitecer c h e g a m o s à s
m a r g e n s do E b r o e n o s i n s t a l a m o s n a s trincheiras. R e i n a
u m a calma absoluta. É e s q u i s i t a e s t a s e n s a ç ã o de saber que
a m a i s ou m e n o s d u z e n t o s m e t r o s à n o s s a f r e n t e o i n i m i g o
está à e s p r e i t a . . .
O s c o m b a t e n t e s n o s d e i x a r a m u m a herança inesquecível:
a s m u q u i r a n a s . S ã o r e p u g n a n t e s , cor d e m a r m e l a d a branca
(a definição é do S a r g e n t o De N i c o l a ) e a n d a m - n o s por t o d o
o corpo c o m o por u m a terra-de-ninguém. Os internacionais
l h e s c h a m a m "os t r i m o t o r e s " . S ã o m o t i v o d e riso, a s s u n t o
p a r a a n e d o t a s . Cá e s t o u eu d e i t a d o dentro de u m a c a s a m a t a ,
SAGA 85
a g a r r a d o a o fuzil, t o n t o d e s o n o m a s s e m c o n s e g u i r d o r m i r
por causa destes parasitas infernais.
O dia seguinte raia calmo. F a z e m o s a p r i m e i r a refeição
junto do parapeito da trincheira. Como com repugnância.
E s t o u sujo e m a l - h u m o r a d o . A t r a v é s d a s seteiras olho as
á g u a s do E b r o q u e o sol d o u r a , e fico a d e s e j a r a l u c i n a d a -
mente um banho. Chego à conclusão de que este estado de
espírito que g e r a a g u e r r a em ú l t i m a análise é sórdido e q u e
p o r t a n t o d e t e r m i n a u m a s u j e i r a física c o r r e s p o n d e n t e . M a s
a conclusão n ã o me t r a z consolo n e m alívio.
O dia passa sem acontecimentos dignos de menção. De
quando em quando um dos nossos homens, por puro desfas-
tio, m e t e a e s p i n g a r d a na s e t e i r a e a t i r a . V e m logo a r e s -
posta.
Ao meio-dia u m a forte descarga p a r t e das trincheiras
contrárias. Revidamos. Dou os meus primeiros tiros. Tenho
os nervos perfeitamente controlados. Como um homem que
e x p e r i m e n t a a á g u a f r i a c o m a p o n t a do p é , d e p o i s m e t e a
p e r n a , a c o x a e f i n a l m e n t e o c o r p o i n t e i r o d e n t r o do r i o , eu
vou mergulhando aos poucos na guerra.
N o s s o b a t a l h ã o é t r a n s f e r i d o p a r a u m a p o s i ç ã o q u e fica
a cinco quilômetros, rio acima. E s t a m o s defronte ao povoa-
do de Miravet, que se acha em poder das tropas de Franco.
Devemos t o m a r todo o cuidado, pois das seteiras do castelo
os inimigos dominam perfeitamente as nossas trincheiras.
Temos um dia relativamente tranqüilo, cortado apenas
de tiroteios ralos. D u r a n t e a t a r d e consigo dormir, pois é de
bom aviso fazer u m a provisão de sono. N i n g u é m sabe o que
e s t á p a r a vir. À noite sou d e s t a c a d o com m a i s cinco h o m e n s
para m o n t a r g u a r d a à beira do rio.
D o céu f o s c o cai u m a g a r o a e s f a r e l a d a . E s t a m o s a g a c h a -
d o s e m silêncio p o r e n t r e a r b u s t o s . O l h o p a r a o o u t e i r o , l á
do o u t r o lado do rio, e vejo a s i l h u e t a do castelo de M i r a v e t .
O vento nos t r a z fiapos de m ú s i c a e de vozes alegres. Curiosa
coisa é a g u e r r a : n u n c a vi as c a r a s de m e u s "inimigos".
O tempo passa. N ã o podemos fumar. Os companheiros
c o n v e r s a m aos cochichos. Um deles, que esteve em G u a d a -
lajara, conta proezas e h o r r o r e s . Sinto no r o s t o o c o n t a t o
úmido dos r a m o s d u m arbusto. Tento descobrir a l g u m a be-
leza o u a l g u m a s i g n i f i c a ç ã o n e s t e m o m e n t o , m a s n ã o e n c o n -
t r o n e m u m a coisa n e m outra. D e r e p e n t e m e p a s s a u m a
86 ERICO V E R Í S S I M O
m i n h a c a b e ç a , do m e u p e i t o . Ê o f i m . O c h ã o e s t r e m e c e .
Passam-se segundos, Minha razão parece vacilar como a cha-
ma do toco de vela que a r d e em cima da m e s a do abrigo.
Mas o trágico m o m e n t o de pavor e névoa não d u r a muito.
D o f u n d o d e m e u s e r , n ã o sei d e q u e s e c r e t a s r e s e r v a s , m e
vem um milagroso reavivamento da vontade e em breve to-
das as forças do espírito estão a l u t a r contra o animal. Os
o b u z e s c o n t i n u a m a r e b e n t a r e eu q u e r o c o n v e n c e r a m i m
m e s m o , c o m u m a i n s i s t ê n c i a feroz, u m a t e n a c i d a d e d e s e s p e -
r a d a de que é preciso eu me h a b i t u a r a esta nova realidade,
de que nada em essência mudou, de que tudo, em suma, não
passa d u m fenômeno sonoro.
Q u a n t o t e m p o j á s e p a s s o u ? L e v a n t o , a c a b e ç a e olho e m
t o r n o . À luz m o r t i ç a e o s c i l a n t e l o b r i g o v u l t o s . Á x e l se e n -
contra a m e u lado e mais longe um pouco vejo alguém que
me parece Green. T e n h o as m ã o s t r ê m u l a s e um suor frio
m e e s c o r r e pelo r o s t o . N a b o c a , u m g o s t o d e t e r r a .
O b o m b a r d e i o n ã o c e s s a . E s t o u a e s p e r a r o i n s t a n t e em
q u e um obuz n o s a p a n h e em cheio. Chego a desejar esse mo-
m e n t o . N ã o ! O q u e e u q u e r o é q u e o b o m b a r d e i o finde. L u t o
com o t r e m o r dos m e m b r o s e com o enfraquecimento que
me q u e b r a n t a o corpo, e soergo-me um pouco.
— Deite-se, imbecil!
Obedeço a u t o m a t i c a m e n t e . A voz do S a r g e n t o De Nicola.
De novo estou colado à t e r r a .
Um vulto r a s t e j a na m i n h a direção. O polaco. T e m os
olhos espavoridos. F i c a m o s d e i t a d o s lado a lado, c a r a c o n t r a
cara, a nos entreolhar estupidamente.
Um obuz explode j u n t o da porta do abrigo. Um estrondo
ensurdecedor. Caem sobre nós grandes torrões de terra. A
vela se apaga. Custa-me a crer que não estou ferido. A l g u é m
começa a g e m e r aqui dentro pedindo socorro. Nova explosão,
perto. Tento um m o v i m e n t o : t e n h o os m e m b r o s felizmente
desembaraçados, m a s não consigo e n x e r g a r nada. N ã o é só
a escuridão, m a s t a m b é m a poeira que me e n t r o u nos olhos.
Quero tirá-la com os dedos, m a s estes t a m b é m estão sujos.
Deixo-me cair n u m novo desfalecimento da vontade. Perco a
noção do tempo. Escuridão na casamata e escuridão dentro
de m i m . E de súbito, a t o r d o a d a m e n t e , t e n h o a consciência de
que o bombardeio terminou. Continuo a ouvir gemidos. A
voz do s a r g e n t o :
— O l á ! Q u e m e s t á v i v o q u e d i g a a l g u m a coisa.
Nenhuma resposta.
88 ERICO V E R Í S S I M O
— E h ! Rapazes!
U m a luz. A c h a m a d u m i s q u e i r o a i l u m i n a r a c a r a de
Áxel, muito pálida. Soergo-me e me a r r a s t o de joelhos p a r a
De Nicola a quem i n f o r m o :
— Há alguém ferido. E s t o u ouvindo gemidos.
F i c a m o s à e s c u t a . Silêncio. A p a n h a m o s a v e l a do c h ã o
e t o r n a m o s a a c e n d ê - l a . Os h o m e n s c o m e ç a m a b r o t a r d o s
cantos escuros. Green. Áxel. Sebastian. O polaco. J u n t o da
p o r t a e n c o n t r a m o s um soldado ferido na clavícula e na tes-
t a . T e m o r o s t o e o p e i t o c o b e r t o s de s a n g u e . A p o r t a e s t á
obstruída. Precisamos abrir caminho o quanto antes.
T o m a m o s de nossas f e r r a m e n t a s e pomo-nos a t r a b a l h a r .
U m a m a s s a feita de terra, sangue, pedras, sacos de areia e
pedaços de corpos h u m a n o s nos b a r r a a saída. E s t a m o s go-
t e j a n d o s u o r m a s n ã o c e s s a m o s d e t r a b a l h a r . A o c a b o d e al-
g u m t e m p o sentimos no rosto o vento fresco da noite.
E s t a m o s fora do abrigo. É u m a ressurreição. Os padio-
leiros levam o nosso ferido. Vejo corpos estendidos pelo chão.
Dizem que sobe a t r i n t a o n ú m e r o de baixas. P o r um mo-
m e n t o fico a o l h a r o s e s t r a g o s d o b o m b a r d e i o . O s o f i c i a i s
g r i t a m ordens. Temos de nos e m p r e g a r imediatamente na
reconstrução das casamatas e das trincheiras. Passamos o
resto da noite a t r a b a l h a r .
De torso nu, carregando um saco de areia, Sebastian
pára um instante e me diz:
— D e u s fez o céu, o sol, o m a r . Os h o m e n s f i z e r a m os
canhões.
— M a s D e u s fez o h o m e m — r e p l i c o . — E e s t o u c e r t o
de que se arrependeu.
E fico d e p o i s a p e n s a r : Q u e d i a b o e s p e r a v a eu e n c o n t r a r
na g u e r r a senão isto — destruição, s a n g u e i r a e m o r t e ?
11
O dia t r a n s c o r r e calmo. É n a t u r a l que o assunto dominan-
te sejam os acontecimentos da noite anterior. Garcia nos
aparece contando u m a história que provoca risos e comentá-
rios irônicos: E t t o r e Sarto teve um desmaio d u r a n t e o bom-
bardeio.
E s t o u d i a n t e d u m c a c o de e s p e l h o a f a z e r a b a r b a , à
porta da casamata. Tento desmontar o mecanismo do medo,
peça por peça, p a r a lhe descobrir o segredo. É curioso este
apego que t e m o s à vida. Teoricamente estou convencido de
q u e s ó s e m o r r e u m a vez, m a s n ã o e n c o n t r o a r g u m e n t o s q u e
me façam aceitar as explosões dos obuzes com a m e s m a na-
turalidade com que aceito as m o n t a n h a s , a água, as flores e
os homens.
E s t o u a g o r a t o m a d o p o r u m a d e s f a l e c i d a a l e g r i a d e con-
valescente e t e n h o a impressão de que de o n t e m p a r a cá n ã o
s e p a s s a r a m horas, m a s anos. N ã o sinto p o r m i m m e s m o des-
prezo n e m qualquer a u m e n t o da e s t i m a que m u i t o h u m a n a -
mente tenho pela minha própria pessoa. E s t o u simplesmente
contente p o r h a v e r escapado com vida. E a idéia de que m e u s
companheiros não viram nem sentiram o meu pavor não deixa
de ser reconfortante. Prometo a m i m mesmo que da próxima
vez s e r á d i f e r e n t e .
Hoje dão-nos munições em profusão. Green me m u r m u r a
os boatos que ouviu. N o s s a gente está prestes a a t r a v e s s a r
o rio.
— Que achas disso? — pergunto-lhe.
— A c h o okay. F u i c a m p e ã o d e n a t a ç ã o d a u n i v e r s i d a d e .
Paul Green é um h o m e m desconcertante. Eu quisera sa-
ber o que se passa no seu íntimo. A t é onde i r á o seu espírito
esportivo? E a capacidade de seus nervos? N ã o t e r á medo
da m o r t e ? A g ü e n t a r á até o fim?
Nota-se g r a n d e a g i t a ç ã o em nossas linhas. A m i n h a com-
panhia está de rigorosa prontidão, esperando ordens. Ao
meio-dia m a n d a m - n o s ocupar u m a posição no alto de u m a
colina f r o n t e i r a à p o v o a ç ã o d e M i r a v e t , c e r c a d e m e i o q u i l o -
90 ERICO VERÍSSIMO
Q u e m dá o a l a r m a é o t e n e n t e , q u e e s t á c o m o b i n ó c u l o
d e l o n g o a l c a n c e a l ç a d o p a r a o céu. S ã o t r ê s h o r a s e u m a
esquadrilha de aviões inimigos sobrevoa as nossas linhas.
A c h a m - s e eles a g o r a a m e n o s d e m i l m e t r o s d e a l t u r a . Sa-
bem decerto que não temos neste setor baterias antiaéreas.
Metemo-nos nos abrigos.
— Talvez estejam a p e n a s fotografando as nossas posi-
ções — diz-nos o t e n e n t e , q u e n ã o c e s s a de o b s e r v á - l o s c o m
o binóculo.
Passam-se os minutos. Os aviões desaparecem. Nossa
tensão nervosa afrouxa.
À t a r d e , porém, cerca de dezoito t r i m o t o r e s franquistas
atacam inesperadamente Ginestar. Em grupos de três em
formação triangular, aproximam-se da povoação, voando a
u n s o i t o c e n t o s m e t r o s d o solo. C o m e ç a o b o m b a r d e i o . P o d e -
mos seguir no ar a trajetória parabólica das bombas. Antes
mesmo das detonações chegarem a nossos ouvidos, vemos
erguerem-se violentos jatos escuros de fumo de dentro do
qual s a l t a m p a r a o alto, n u m a r r e m e s s o t r e m e n d o , fragmen-
t o s de pedra, ferro, m a d e i r a e vidro. U n s dois segundos de-
pois, as explosões. C a d a aparelho lança d u a s b o m b a s de cada
vez. O a t a q u e é um p r o d í g i o de p r e c i s ã o e m é t o d o . P o b r e
Ginestar! Tem-se a impressão de que suas casas crescem,
inflam p a r a depois desmoronarem n u m a nuvem de poeira e
fumaça. As explosões se sucedem ininterruptamente.
Penso na companhia de voluntários que se acha dentro
da aldeia. Na certa n e n h u m soldado conseguirá e s c a p a r com
vida.
SAGA 91
O b o m b a r d e i o d u r a u n s cinco m i n u t o s . O s a v i õ e s s e r e t i -
r a m na maior ordem e desaparecem por t r á s das linhas de
Franco. Ginestar é um montão de escombros.
O m a i s incrível é que poucas h o r a s depois s o m o s infor-
mados com segurança de que os internacionais que se acha-
v a m e m G i n e s t a r s e s a l v a r a m t o d o s : a p e n a s u m ficou f e r i d o
levemente. Ã a p r o x i m a ç ã o dos aviões — contam-nos — fugi-
r a m para o campo, deitaram-se nas canaletas de irrigação
d a s plantações de t r i g o ; outros m e t e r a m - s e nos poços dos
p á t i o s i n t e r n o s d a s c a s a s , d e i x a n d o - s e e s c o r r e g a r p e l a s cor-
d a s . Q u a n t o à p o p u l a ç ã o civil, e s s a h a v i a m u i t o t i n h a e v a -
cuado a povoação.
A o anoitecer n o s s a a r t i l h a r i a a b r e fogo. J á e r a t e m p o
duma reação qualquer! U m a cadência de quatro tiros por
m i n u t o e p o r peça. Deve ser a p r e p a r a ç ã o p a r a o a t a q u e .
E s t o u exausto m a s não consigo dormir. A noite entra
e os nossos canhões c o n t i n u a m a a t i r a r . Recebemos o r d e m
para deixar imediatamente o observatório.
Encontramo-nos de novo nas trincheiras à m a r g e m do
E b r o . O fogo de a r t i l h a r i a cessou. À meia-noite n o s s a s t r o -
p a s c o m e ç a m a t r a v e s s i a do r i o em c a n o a s . A e s c u r i d ã o é
q u a s e c o m p l e t a e o q u e m a i s a t e r r a é o silêncio em q u e se
prepara o ataque. E s t a m o s no parapeito da trincheira, agar-
r a d o s a o s n o s s o s fuzis, c a r r e g a d o s d e m u n i ç õ e s . S o m o s t r o -
pas de reserva. A g u a r d a m o s a hora de e n t r a r em ação.
Passam-se minutos trepidantes de expectativa. De re-
pente ouvimos detonações e o clarão da fuzilaria. N o s s o s ho-
mens a t a c a m de surpresa numa carga de baioneta e grana-
das de m ã o . A ação se desenvolve na escuridão a duzentos
metros m a i s ou menos de nossas trincheiras. O t e m p o se ar-
r a s t a , a nossa a n g ú s t i a a u m e n t a , não sabemos o que se está
passando do outro lado. Um dos nossos soldados a t r a v e s s a o
E b r o a n a d o e n o s v e m d i z e r q u e o a t a q u e foi b e m s u c e d i d o .
Ao r o m p e r do dia começam a chegar os primeiros prisionei-
ros. São todos espanhóis e estão muito bem uniformizados e
equipados.
A m a n h ã transcorre calma. Nossa engenharia começa a
improvisar u m a ponte sobre o rio. As m u q u i r a n a s passeiam
l i v r e s p e l o m e u c o r p o e eu já me v o u h a b i t u a n d o a e l a s . O
dia e s t á quente e m o r m a c e n t o e por t r á s do castelo de Mira-
vet se ergue u m a enorme nuvem cor de chumbo.
À t a r d e os aviões inimigos nos a t a c a m encarniçadamen-
te. Deixam cair grandes bombas sobre o rio para impedir o
92 ERICO V E R Í S S I M O
m o s p e l a s a x i l a s e c o m e ç a m o s a p u x á - l o . Ê um i n s t a n t e p a -
voroso. Parece que as pernas de Áxel se espicham, não se
a c a b a m m a i s . .. E finalmente, com horror, vejo que o rapaz
está com a m b a s as pernas quase decepadas. Continuamos a
a r r a s t á - l o . Tenho ímpetos de chorar, de g r i t a r . Meus olhos
e s t ã o fixos nesses dois tocos esfrangalhados, presos às coxas
apenas por u n s fiapos de nervos. Sebastian chora como u m a
criança. I n s e n s a t a m e n t e , n u m desespero, continuamos a pu-
x a r a pobre criatura, deixando na poeira um r a s t r o de san-
gue. U m a d a s p e r n a s se d e s p r e n d e do corpo e fica p a r a t r á s .
E o que e n t r e g a m o s a o s padioleiros é um corpo s e m s a n g u e
e já s e m vida.
M e t o - m e n o a b r i g o , a t i r o - m e a u m c a n t o , e n f u r n o a ca-
beça n a s m ã o s e quero chorar. Os soluços me estrangulam,
m a s o choro não vem. N ã o posso e s q u e c e r . . . O rosto duma
lividez e s v e r d e a d a , o s o l h o s e m b r a n c o , a s c a r n e s e s m i g a l h a -
das . . .
De Nicola e n t r a e me faz beber um gole de a g u a r d e n t e .
B a t e - m e no o m b r o e diz:
— N ã o é n a d a . Q u e o u t r a coisa v a i a g e n t e e s p e r a r da
guerra? Flores? Valsas? Vamos, vamos. Venha tomar um
pouco de ar.
P u x a - m e p a r a f o r a . D e i x o - m e l e v a r . G a r c i a n o s v e m con-
t a r que Mário Guarini e s t á g r a v e m e n t e ferido, talvez um
caso perdido.
O l h o e m t o r n o c o m o l h o s a p a r v a l h a d o s . N ã o sei p o r q u e
estou metido nesta miséria.
À noite m a n d a m - n o s a t r a v e s s a r o E b r o . O objetivo é
um castelo em ruínas. Três companhias vão t o m a r parte no
assalto.
E s t a m o s no meio do rio. Ouço o ruído mole da água es-
correndo dos remos. Sebastian acha-se a meu lado. N ã o t r o -
camos p a l a v r a ainda sobre a m o r t e de Áxel. Ê como se hou-
vesse e n t r e nós um tácito compromisso de não fazer a menor
referência a esse fato.
Estou tranqüilo, duma estranha tranqüilidade. Agora
desejo a ação. Ê horrível viver metido em covas como ani-
m a i s q u e t e m e m a luz d o d i a . A l u t a d e h o m e m c o n t r a h o -
m e m em igualdade de condições não me assusta.
Iniciamos o a t a q u e às cinco da m a n h ã . A m i n h a compa-
n h i a é a p r i m e i r a a e n t r a r em c o n t a t o c o m o i n i m i g o . S e b a s -
94 ERICO V E R Í S S I M O
A c o m o ç ã o me t i r a a voz. P r i m e i r o , é um s e n t i m e n t o de
c h o q u e , d e p o i s d e r e v o l t a e f i n a l m e n t e d e r e p u l s a pelo c h i -
leno, p o r m i m e p o r t o d a e s t a s a n g u e i r a d o i d a e s e m p r o -
pósito.
Ao anoitecer v o l t a m o s p a r a as nossas posições do o u t r o
lado do rio. Deito-me e d u r m o um sono pesado e inexplica-
velmente despovoado de sonhos. Acordo com a sensação de
que de o n t e m p a r a cá envelheci dez anos.
Revejo P a u l Green, que t i n h a sido levado p a r a a reta-
g u a r d a p a r a t r a t a r u m f e r i m e n t o leve. T r a z a c a b e ç a e n v o l t a
em gases e está um pouco sombrio. Talvez a s o m b r a não es-
t e j a nele e s i m n o s m e u s o l h o s , n o m e u e s p í r i t o .
J u n t o ao p a r a p e i t o da t r i n c h e i r a , d e v o r a m o s o nosso al-
m o ç o . D e N i c o l a n o s m i n i s t r a d e s p r e t e n s i o s a m e n t e lições d e
coisas e nos ensina os seus e s t r a t a g e m a s de c o m b a t e n t e ve-
t e r a n o . G r e e n , q u e s e m p r e c o m e p o u q u í s s i m o , f u m a u m ci-
garro e Garcia, hoje excepcionalmente taciturno, m e r g u l h a no
vinho u m a fatia de pão. N ã o quero encará-lo de frente pois
temo descobrir que o detesto.
Corre de mão em mão um número do jornal "La Van-
guardia", de Barcelona. Traz notícias do último a t a q u e aéreo.
A C a t e d r a l foi a t i n g i d a p o r u m a d a s b o m b a s . M o r r e r a m m u -
lheres e crianças.
— Edificante, n ã o ? — m u r m u r a De Nicola por entre
dentes, olhando p a r a as fotografias das r u a s após o bombar-
deio.
— E s s a s m u l h e r e s e crianças não t ê m n a d a a ver com a
c o i s a . . . — diz P a u l G r e e n .
De Nicola lança-lhe um olhar rápido:
— Pois eu vou m a i s longe. A E s p a n h a inteira n a d a t e m
a ver com esta guerra.
P a s s a um voluntário cantando u m a cantiga feita nas
t r i n c h e i r a s e cuja l e t r a diz q u e "La pobre Inglaterra pierden-
dose está", p o r n ã o q u e r e r a j u d a r os r e p u b l i c a n o s e s p a n h ó i s .
A c o c o r a d o a p o u c o s p a s s o s de o n d e e s t o u , o p o l a c o me
contempla em silêncio. Q u a n d o nossos olhos se e n c o n t r a m ,
ele s o r r i . E s t á h o r r e n d o : e m a g r e c e u m u i t o u l t i m a m e n t e , a c e n -
t u o u - s e - l h e a e x p r e s s ã o s i m i e s c a e é c l a r o q u e a f e r i d a da
o r e l h a n ã o o t o r n a m e n o s feio.
E s t a m o s todos b a r b u d o s e sujos. Sinto que devo u m a
e x p l i c a ç ã o a m i m m e s m o , à p a r t e b o a e p u r a do m e u s e r —
se é que ela a i n d a existe. Preciso me j u s t i f i c a r p e r a n t e esse
outro eu que nos momentos mais sombrios da minha vida
96 ERICO V E R Í S S I M O
s e m p r e a n s i o u p o r s u b i r p a r a a luz, n u m d e s e j o d e beleza,
bondade e paz. Mas não encontro p a l a v r a s capazes de q u e b r a r
e s t e silêncio d e d e g r a d a ç ã o e m o r t e .
— H o m e n s e m u q u i r a n a s — diz De N i c o l a , c o m o se t i -
v e s s e lido m e u s p e n s a m e n t o s . — N ã o h á g r a n d e s d i f e r e n ç a s
e n t r e essas d u a s espécies animais, a não ser que as muqui-
r a n a s são muito mais honestas, pois não procuram inventar
palavras para justificar seus apetites. Simplesmente seguem
os instintos, chupam-nos o sangue sem remorso, sem pensar
e m céu o u i n f e r n o , n o b e m o u n o m a l . S ã o l i v r e s p o r q u e n ã o
t ê m problemas de consciência.
— I s s o é q u e v o c ê n ã o s a b e . . . — diz G a r c i a , a t i r a n d o
p o r cima da t r i n c h e i r a um f r a g m e n t o de p e d r a que encon-
t r o u na sopa.
Um camarada nos vem contar que vamos ser transferi-
dos p a r a um outro setor do E b r o , nas proximidades de seu
delta. Recebo a notícia com indiferença. Acho que sou um
homem perdido.
d i s t a n t e s e a l e m b r a n ç a de Clarissa e s t á c o n s t a n t e m e n t e
comigo e às vezes até m e s m o n a s h o r a s de combate. Mas
quando me vejo a f u n d a r muito nesta l a m a sangrenta, quando
a i n d a t e n h o n a s n a r i n a s o c h e i r o p ú t r i d o d o s c a d á v e r e s in-
sepultos, sua i m a g e m se me apaga da memória.
A vida neste setor é bastante irregular. Longos períodos
de inação e de relativo sossego. De repente, um bombardeio
aéreo, um ataque inesperado de infantaria. .. Saltamos p a r a
a t r i n c h e i r a ou p a r a as c a s a m a t a s . F a z e m o s já as coisas por
puro hábito, a u t o m a t i c a m e n t e . Creio até que a própria cora-
gem no fim passa a ser t a m b é m um hábito.
E eu sou s i m u l t â n e a ou a l t e r n a d a m e n t e um herói e um
poltrão, um anjo e um demônio. P o r felicidade, essas m u t a -
ções s e o p e r a m i n v i s í v e i s d e n t r o d e m i m m e s m o e m u i t o r a -
ramente têm reflexos exteriores.
U m a n o i t e d e c a l m a r i a fico a s ó s c o m D e N i c o l a e a o
cabo d u m a pausa b a s t a n t e larga, na conversação, digo-lhe
estas palavras:
— N ã o posso compreender. .. como é que você não t e m
nervos. Toda e s t a carnificina, e s t a s cenas de selvageria pa-
recem deixá-lo i n d i f e r e n t e . . .
O s a r g e n t o fica p o r a l g u n s s e g u n d o s calado, s e m me
olhar, como que a p e n s a r na resposta. Depois:
— N ã o t e n h o n e n h u m a necessidade de oferecer um es-
p e t á c u l o a o s m e u s c a m a r a d a s . N ã o a c h a n a t u r a l q u e u m ilu-
sionista consiga escamotear as suas emoções?
Sinto-o m a i s h u m a n o . N ã o resisto à t e n t a ç ã o de fazer-
lhe confidências. P r o c u r o t r a n s f o r m a r e m p a l a v r a s compre-
ensíveis o meu t u m u l t o íntimo. De Nicola me escuta com
paciência e, q u a n d o t e r m i n o , diz a p e n a s i s t o :
— O s o f r i m e n t o p o r q u e v o c ê e s t á p a s s a n d o n ã o v a i fi-
car perdido. Pense nisso. Você está tendo a r a r a oportunida-
de de fazer a sua reeducação sentimental diante do perigo.
Julgo compreender o sentido destas frases. O italiano
acrescenta:
— E se ao sair deste inferno você n ã o souber t i r a r pro-
veito do que viu, sentiu e descobriu, e n t ã o é m e l h o r a m a r r a r
u m a p e d r a ao pescoço e atirar-se no Mediterrâneo.
E s t a s palavras me causam u m a impressão profunda. Re-
almente, aqui todas as m i n h a s faculdades estão sendo postas
a d u r a prova. Tudo q u a n t o t e n h o de bom e de m a u no fundo
do s e r é a g i t a d o e t r a z i d o t u m u l t u o s a m e n t e à s u p e r f í c i e . V o u
conquistando palmo a palmo, com pesadas perdas, territórios
98 ERICO V E R Í S S I M O
À m e d i d a q u e se p a s s a m os d i a s e os c o m b a t e s , v o u co-
n h e c e n d o m e l h o r o s h o m e n s e m cujo m e i o v i v o . H á a l g u n s
t ã o s e r e n a m e n t e bravos, que diante deles chego a t e r vergo-
n h a d o m a i s leve s e n t i m e n t o d e h e s i t a ç ã o . o u f r a q u e z a . Co-
nheço muitos c a m a r a d a s que lutam com método e calmo he-
roísmo. Conservam a cabeça em perfeito funcionamento nos
m o m e n t o s d e m a i o r p e r i g o e c o n f u s ã o . S ã o v e t e r a n o s d e ou-
t r a s g u e r r a s e r e v o l u ç õ e s e às v e z e s t e n h o a i m p r e s s ã o de
q u e a m o r t e n ã o o s l e v a p e l a s i m p l e s r a z ã o d e q u e eles n ã o
a temem. H o m e n s tenho visto que parecem desprovidos de
nervos: avançam sorrindo e até cantando no meio das balas.
N o u t r o s vejo c l a r a m e n t e o esforço que fazem p a r a não fra-
q u e j a r : t ê m os músculos retesos, empalidecem, seus olhos
g r i t a m d e p a v o r . O c o m b a t e é p a r a eles u m a p r o l o n g a d a a g o -
n i a , m o r r e m m i l v e z e s n u m a s ó h o r a d e fogo e m i l v e z e s r e s -
s u s c i t a m , t r ê m u l o s , o f e g a n t e s , s u a n d o frio. E m m a i s d e u m
s o l d a d o t e n h o v i s t o o h e r o í s m o t e a t r a l , r u i d o s o e exibicio-
n i s t a . P o r o u t r o l a d o , e s t a n d o n ó s c e r t a v e z s o b v i o l e n t o fogo
de artilharia, um dos nossos teve j u n t o de m i m u m a crise de
c h o r o ; n ã o o b s t a n t e c o n t i n u o u f i r m e n o s e u p o s t o e foi a t é
o fim. N u n c a h e i d e m e e s q u e c e r d a q u e l a t a r d e e m q u e in-
v e s t í a m o s c o n t r a u m a p o s i ç ã o i n i m i g a . C a n t a l u p o i a conosco,
levando na m ã o direita u m a pistola automática. Incitava-nos
c o m p a l a v r a s . U m a b a l a a t r a v e s s o u - l h e o a n t e b r a ç o , q u e co-
meçou a sangrar. O comissário continuou a andar. Cantava
c o m t o d a a f o r ç a d o s p u l m õ e s . U m t i r o n o p e i t o fê-lo c a l a r -
se. M a s ele p r o s s e g u i u n o a v a n ç o , s a n g r a n d o , l a n ç a n d o b l a s -
fêmias, m o r r e n d o aos poucos. E n t e r r a m o - l o nas proximida-
des do castelo de Miravet.
P a u l Green parece ver a g u e r r a com os m e s m o s olhos com
q u e v i a as p a r t i d a s de rugby e n t r e a s u a u n i v e r s i d a d e e a de
Yale. T e m ímpeto, espírito de companheirismo, luta com u m a
inteligência instintiva e após cada combate, acha-se na obri-
gação de comemorar a vitória, mesmo que não haja vitória
nenhuma.
SAGA 99
— É incrível.
— Mistérios da natureza h u m a n a . F a z muito que desisti
de procurar desvendá-los...
Os h o m e n s s u a m e gemem. E s t ã o sujos e queimados de
sol. A o v ê - l o s n ã o p o s s o v e n c e r a s e n s a ç ã o d e m a l - e s t a r q u e
me d o m i n a . I m a g i n o o q u e eles f o r a m , e os s o n h o s e i d e a i s
q u e o s t r o u x e r a m p a r a cá. P e n s o n a s t r a i ç õ e s d o m e d o , n e s s a
hora desprevenida que todos temos, no instante perigoso em
que a vontade afrouxa ou nos falta e todo um passado de
firmeza e c o r a g e m se vai á g u a s abaixo. E sou b a s t a n t e hu-
m a n o p a r a estremecer à idéia de que um dia eu posso ser
t a m b é m soldado desse batalhão fantasma.
N ã o sei o q u e t r o u x e e s t e s e v i l h a n o v i v o e e l á s t i c o a o
n o s s o c o n v í v i o . P a r e c e - n o s à s vezes q u e o g o v e r n o s e m e i a
e s p i õ e s pelo m e i o d o s i n t e r n a c i o n a i s p a r a v e r s e d e s c o b r e ,
entre estes, germes de derrotismo que possam contaminar a
Brigada.
Durante alguns dias Dom Rodrigo participa de nossas
conversas, de nosso r a n c h o e de nossos perigos. É um h o m e m
d e q u a r e n t a a n o s p r e s u m í v e i s , m a g r o , t o s t a d o d e sol e s e n h o r
de maneiras mundanas. Conta-nos histórias da velha Espa-
n h a , r e c i t a - n o s t r e c h o s d e n o v e l a s p i c a r e s c a s e f a z - n o s per-
g u n t a s difíceis q u e n o s a p a n h a m d e s p r e v e n i d o s . A s m u i t a s
histórias que ouvimos dos voluntários estrangeiros que foram
levados a conselho de g u e r r a , acusados de derrotismo, nos
fazem reservados. Pomos cautela e habilidade n a s respostas.
U m a noite conversamos sobre a grande desordem que
vai pelo m u n d o e D o m R o d r i g o , b a i x a n d o a voz, diz c o m u m a
inflexão u m pouco d r a m á t i c a :
— Nós os habitantes deste planeta somos como ratos no
p o r ã o d u m navio que p r e n d e u fogo e m alto m a r . P r e s s e n t i -
mos o perigo, queremos abandonar o barco mas não sabemos
p a r a o n d e ir. D u m l a d o o fogo, d o o u t r o o o c e a n o . Q u e r e m é -
dio t ê m o s p o b r e s r a t o s s e n ã o s e a g i t a r e m d o i d a m e n t e e s e
estraçalharem uns aos outros em lutas que dão a ilusão da
v i t ó r i a ? Só há d u a s alternativas e a m b a s levam ao sofri-
mento e à morte.
E s t a s p a l a v r a s s ã o r e c e b i d a s c o m u m silêncio d e d e s c o n -
fiança. Sinto que alguém precisa dizer a l g u m a coisa e a r r i s c o :
— N ã o acho que o problema deva ser posto apenas nes-
ses t e r m o s . P o r que não incluir u m a a l t e r n a t i v a m e n o s ne-
g r a ? P o r e x e m p l o . . . o fogo a i n d a n ã o d e s t r u i u t o t a l m e n t e
o navio e já se avista um porto de s a l v a m e n t o . . .
D o m Rodrigo me m i r a com a t e s t a e n r u g a d a e i n d a g a :
— Que porto é esse?
Todos os olhos se voltam p a r a mim. Respondo imediata-
mente :
— Se eu soubesse, por certo não estaria aqui.
108 ERICO V E R Í S S I M O
A t a c a m o s u m a q u i n t a e é i n d i s p e n s á v e l d e s a l o j a r o ini-
migo antes da noite. E s t a m o s suados, empoeirados e exaus-
t o s e n o s s a s p e r d a s s ã o b a s t a n t e p e s a d a s . G r e e n cai a m e u
lado com u m ferimento n a clavícula. E s t á perdendo m u i t o
s a n g u e e e u n ã o sei q u e f a z e r . N ã o t e n h o m e i o s p a r a s o c o r r ê -
lo e não quero ficar p a r a t r á s enquanto os outros avançam.
— Muito m a l ? — grito-lhe.
O americano sacode a cabeça negativamente. Encoraja-
me com um sorriso apagado. Tem a m ã o espalmada sobre
a f e r i d a e o s a n g u e l h e e s c o r r e p o r e n t r e os d e d o s .
Ao cabo de vinte minutos, a resistência do inimigo en-
fraquece. Transpomos n u m assalto fulminante o portão da
q u i n t a , a t r a v e s s a m o s o p a r q u e l a n ç a n d o g r a n a d a s . U m a de-
las e n t r a pela j a n e l a e explode dentro da casa.
U m súbito silêncio. P a s s a m - s e a l g u n s m i n u t o s . U m dos
n o s s o s h o m e n s g r i t a q u e eles e s t ã o f u g i n d o n a d i r e ç ã o d o r i o .
U m oficial d e s t a c a u m p e l o t ã o p a r a o s p e r s e g u i r .
E n t r a m o s na casa. V e m lá de cima o r u m o r de passos
precipitados. São os nossos camaradas que correm por todas
as dependências do piso superior.
Escurece. E s t o u esgotado. E n t r o n u m a sala e atiro-me
n a p r i m e i r a c a d e i r a . A g r a n a d a q u e a q u i e x p l o d i u fez e s t r a -
g o s . T r ê s c a d á v e r e s e s t e n d i d o s n o c h ã o , u m d e l e s b e m de-
baixo d u m velho piano escuro, providencialmente intato. O
tapete se acha empapado de sangue e u m a das paredes está
r e s p i n g a d a d o s m i o l o s d o s o l d a d o q u e t o m b o u a o p é dela,
com a cabeça aberta. É horrível m a s não t e n h o coragem
p a r a me erguer. Fecho os olhos por um instante.
Alguém me toca no ombro. É Sebastian Brown.
— A l g u m a n o v i d a d e ? — i n d a g a ele.
— G r e e n foi f e r i d o .
— Grave?
— Na c l a v í c u l a .
— E Garcia?
— N ã o sei.
E n t r a m o u t r o s homens. O polaco está p a r a d o à p o r t a
olhando p a r a os cadáveres com olhos vagos. E r g u e a cabeça
e de repente seu rosto g a n h a u m a expressão indescritível.
Precipita-se através da sala e p á r a junto do piano, ergue-lhe
a t a m p a e f i t a l o n g a m e n t e o t e c l a d o a m a r e l e n t o . S e n t a - s e na
banqueta e deixa cair as mãos pesadas sobre as teclas. Um
acorde dissonante que p a r a os m e u s nervos soa como u m a
e x p l o s ã o . M a s de s ú b i t o , i n e x p l i c a v e l m e n t e , é o p a r a í s o . B r o -
110 ERICO V E R Í S S I M O
p o u c o d e p o i s , c o m u m a e x p r e s s ã o n ã o sei s e d e i n v e j a o u d e
rancor. — Mas o que merecia era p a s s a r um mês no bata-
lhão disciplinar.
A p a n h a com a m ã o r u d e um p u n h a d o de m e u s cabelos
e sacode-me a cabeça d u m lado p a r a outro com u m a raiva
não de todo destituída de ternura.
— M a r o t o ! — e x c l a m a . — I s s o é q u e se p o d e c h a m a r
um ferimento inteligente. N e n h u m perigo de vida e meia
dúzia de s e m a n a s com bonitas enfermeiras em Barcelona!
Metem-me n u m caminhão transformado em ambulância.
— A d e u s , v o l t e l o g o ! — g r i t a - m e S e b a s t i a n . M a s ao se
a p r o x i m a r p a r a me a p e r t a r a mão, m u r m u r a : — N ã o volte
m a i s p a r a cá. Q u a n d o s a r a r v á e m b o r a p a r a a s u a t e r r a .
— Adeus! — respondo.
F e c h a m a p o r t a da ambulância. Fico sozinho aqui den-
tro. F a z calor. O c a r r o se põe em movimento. R u m a m o s p a r a
T a r r a g o n a . Tenho u m m a u pressentimento que m e esforço
por a f a s t a r do espírito. O ferimento me está a doer de modo
insuportável. C o m e ç a m os solavancos: v a m o s por u m a péssi-
ma e s t r a d a a b e r t a há pouco e às p r e s s a s p a r a fins militares.
A padiola sacoleja d u m lado p a r a outro. A g a r r o - m e com
força às suas bordas p a r a não ser jogado contra os lados
do c a r r o . D ó i - m e a g o r a t o d a a p e r n a e a c o x a . P a i r a no ar
u m a p o e i r a f i n a e a m a r e l a d a . O s u o r m e e s c o r r e pelo r o s t o .
Tenho sede e m e u s lábios estão ressequidos. Deve ser já a
f e b r e . F e b r e . . . i n f e c ç ã o . S i m , é b e m p o s s í v e l . . . Um c u r a -
t i v o m a l f e i t o , a m a l d i t a a r e i a do E b r o — a a r e i a q u e c a í a
na nossa comida, que nos e n t r a v a n o s olhos, nos ouvidos, que
s e e n t r a n h a v a n a s n o s s a s n a r i n a s , n o s n o s s o s fuzis, n a n o s s a
pele, n a s n o s s a s a l m a s . I n f e c ç ã o . . . g a n g r e n a . . . a m u t i l a -
ç ã o . I m a g i n o - m e d e m u l e t a s . . . Mil v e z e s a m o r t e ! M a s . . .
por que falar em m o r t e ? Não, eu devo t e r calma, preciso ter
calma. Tudo isto vai passar, depende de um pouco de cora-
g e m e paciência. Sim. Eu vou ficar sereno e no fim tudo
e s t a r á b e m . C e r r o o s o l h o s . M a s a d o r n ã o cessa, p a r e c e a u -
m e n t a r sempre e sempre. Os solavancos continuam. Tenho
vontade de g r i t a r que andem m e n o s depressa, m a s penso t a m -
bém que se andarmos devagar não chegaremos nunca. Minha
c a b e ç a d o l o r i d a c o m e ç a a l a t e j a r e a s e d e e a f e b r e me
q u e i m a m a g a r g a n t a . Num, dado m o m e n t o , a um solavanco
m a i s f o r t e , a p e r n a f e r i d a é a r r e m e s s a d a c o m v i o l ê n c i a con-
t r a u m a t r a v a de ferro. Deixo escapar um u r r o de dor. As
l á g r i m a s me v ê m aos olhos e t e n h o de fazer um esforço de-
SAGA 113
Q u e foi q u e a c o n t e c e u ? E s s e r o s t o q u e h á p o u c o s e in-
clinou sobre o m e u era o r o s t o d u m m o r t o ou d u m v i v o ? Al-
g u é m e s t e v e a q u i d e n t r o c o m i g o o u t u d o foi a p e n a s u m s o -
nho? Quantas horas se passaram? Adormeci ou desmaiei?
U m a claridade forte me obriga a f e c h a r os olhos. Sinto
q u e m e t i r a m d a a m b u l â n c i a , q u e o sol m e b a t e n o r o s t o .
R e s p i r o a r m a i s f r e s c o e p u r o . A f e r i d a a i n d a dói s e m c e s s a r ,
se bem que de m a n e i r a menos aguda. Sinto-me fraco, devo
t e r perdido m u i t o sangue e tenho na cabeça um enorme vá-
cuo. Ouço a l g u é m p e r g u n t a r p e r t o d e m i m :
— C o m o se s e n t e ?
N ã o sei q u e r e s t o d e f e r o z o r g u l h o m e f a z r e s p o n d e r
n u m a voz q u e é a p e n a s um s o p r o :
— Bem.
N o s a l ã o e m q u e m e e n c o n t r o , a c h a m - s e i n ú m e r o s sol-
d a d o s f e r i d o s e m d i v e r s o s s e t o r e s d a l u t a e a l g u n s civis t o m -
bados por ocasião dos constantes bombardeios aéreos. Nos-
sas noites n e m sempre são tranqüilas. Ainda ontem morreu
SAGA 121
o r a p a z l o u r o q u e t e v e de a m p u t a r a p e r n a : o c o r a ç ã o e s t a v a
f r a c o — o m í s e r o n ã o r e s i s t i u ao c h o q u e o p e r a t o r i o .
à s vezes, q u a n d o n ã o p o s s o d o r m i r , fico a o u v i r q u e i x a s
e g e m i d o s ou e n t ã o a c o n v e r s a a r r a s t a d a e c o n f u s a de a l g u é m
que fala dormindo. Um s a r g e n t o que quebrou a m b a s as per-
n a s às vezes b e r r a ordens de c o m a n d o na calada da noite.
Há instantes em que o hospital mergulha n u m a quietude de
mausoléu. Na meia-luz do salão p a s s a m os vultos das enfer-
meiras. Fico a olhar p a r a a janela fronteira, a t r a v é s de cuja
v i d r a ç a v e j o o céu d a n o i t e v a r a d o d e q u a n d o e m q u a n d o
p e l a luz v e r m e l h a d o s h o l o f o t e s d a s b a t e r i a s a n t i a é r e a s .
O m e u vizinho da esquerda é um homenzinho extraordi-
nário. T e r á quando muito um m e t r o e cinqüenta de altura, e
p o u c o m a i s de s e s s e n t a a n o s . Ê d e s i n q u i e t o e i m p e t u o s o co-
m o u m colegial d e q u i n z e . E s m a g o u o s d e d o s d e a m b o s o s
pés por ocasião d u m desmoronamento n u m subúrbio de Bar-
celona e p a s s a as h o r a s a m o n t a r e a d e s m o n t a r um v e l h o
relógio ou a m e x e r no mecanismo de u m a pequena caixa-de-
m ú s i c a . C h a m a - s e A l f o n s o N a v a r r o e é n a t u r a l de C a d i z .
M o r a h á v i n t e a n o s e m B a r c e l o n a , o n d e e x e r c i a o ofício d e
relojoeiro. Tem u m a g r a n d e p a i x ã o : a mecânica, e um g r a n -
d e ó d i o : "los c u r a s " . É m u i t o p a l r a d o r , m a s j á n o t e i q u e
ele s e d i v e r t e m u i t o m a i s q u a n d o f a l a c o n s i g o m e s m o ; fica
h o r a s a r e s m u n g a r coisas p a r a "sus adentros". Dir-se-ia que
c o n v e r s a c o m a s m o l a s e p a r a f u s o s q u e fica a r e v i r a r n o s
dedos de p o n t a s q u e i m a d a s de ácido e cheias de pequenos
alhos escuros. De quando em quando Alfonso puxa conversa
c o m i g o . J á m e p e r g u n t o u m a i s d e u m a vez o n d e n a s c i e p o r
que razão me e n c o n t r o aqui, e se ainda não sabe é p o r q u e
q u a n d o l h e d o u a r e s p o s t a ele j á s e a c h a d i s t r a í d o , a r e s -
m u n g a r p a r a s i m e s m o . M a g r o , o s s u d o , e n c u r v a d o , ali e s t á o
velhote s e n t a d o na cama, com os óculos de a r o de m e t a l aca-
valados na ponta do nariz. Tem um rosto miúdo, a boca
m u i t o r a s g a d a e u m q u e i x o p r o g n a t a q u e lhe d á u m g r a n d e
c a r á t e r à fisionomia. A b a r b a de t r ê s dias b r a n q u e i a híspida
c o n t r a o m o r e n o d a pele r u g o s a .
É a n a r c o - s i n d i c a l i s t a e no f u n d o , c o n f e s s a , n ã o a c r e d i t a
em nada. Queixa-se dos médicos, das enfermeiras, do hospi-
t a l e d a v i d a . Não é l a m u r i e n t o n e m a s s u m e a r e s d e m á r t i r ;
pelo c o n t r á r i o , m o s t r a - s e á s p e r o e a g r e s s i v o . A c h a A l f o n s i t o
q u e t o d o s o s m a l e s d o m u n d o v ê m d u m m o d o g e r a l d a idio-
tice irremediável do gênero h u m a n o e da malévola esperteza
dos padres. Amaldiçoa Franco, que desencadeou a guerra, e
odeia os italianos, cujos aviões lhe d e i t a r a m abaixo a casa,
l h e m a t a r a m a f i l h a , l h e d e s t r u í r a m a l o j a e l h e f e r i r a m os
pés.
E o mais engraçado é que quando algum doente espirra,
s e j a a q u e h o r a for, A l f o n s i t o s e j u l g a n a o b r i g a ç ã o d e g r i -
t a r com s u a voz rouca e m a l - h u m o r a d a , e r g u e n d o um pouco
a cabeça:
— Salud!
14
Meu vizinho da direita, D o m Miguel, é um h o m e m t r a n q ü i l o
e simpático, que passa as s u a s h o r a s lendo os clássicos
espanhóis. T e m u m a bela cabeça, e sua longa cabeleira pa-
rece de torçal cor de p r a t a , n u m agradável c o n t r a s t e com a
pele r e q u e i m a d a . C o n t a - m e q u e e r a p r o f e s s o r n u m liceu e
q u e foi f e r i d o n a r u a p o r o c a s i ã o d u m b o m b a r d e i o a é r e o .
Chegou aqui u m a s e m a n a depois de m i m e passou os primei-
ros dias agoniado de dor. É um h o m e m de grande energia,
p o i s n ã o l h e o u v i o m e n o r g e m i d o , a m a i s leve q u e i x a . C o n -
t i n u a a acreditar nos homens e na possibilidade de um mun-
do melhor. E quando, com s u a voz g r a v e e c a n s a d a , se põe
a t r a n s f o r m a r sonhos e e s p e r a n ç a s em p a l a v r a s , Alfonsito se
agita na cama e b r a d a que antes de mais n a d a é preciso
m a n d a r f u z i l a r " t o d o s los m a l d i t o s c u r a s " . E c o m o D o m Mi-
guel, s o r r i n d o com tolerância, lhe replica que a violência n ã o
só é d e s a g r a d á v e l c o m o i m p r o d u t i v a , o r e l o j o e i r o p õ e a f u n -
c i o n a r a c a i x i n h a - d e - m ú s i c a . O u v e - s e u m v e l h o m i n u e t o in-
gênuo e melancólico que soa de m a n e i r a b e m e s t r a n h a nesta
vasta sala branca.
— A q u i e s t á ! — exclama Alfonsito b a t e n d o na caixa.
— Suas p a l a v r a s são como esta musiquinha. P u r a conversa
para ninar crianças. Abaixo os padres! Viva E s p a n h a !
p u n h o s a i a d a r t i r o s , a m a t a r e a c o r r e r o p e r i g o de s e r
m o r t o , convencido de que e s t á v i n g a n d o o m a s s a c r e dos ino-
centes . . . Seria melhor que tivesse ficado na sua p á t r i a t r a -
t a n d o de evitar com t o d a s as suas forças que ela seja v í t i m a
da m e s m a traição que feriu a E s p a n h a .
E s c u t o - o n u m silêncio m e l a n c ó l i c o . E D o m M i g u e l p r o s -
s e g u e c o m a s u a voz l e n t a e f a t i g a d a :
— Os homens complicaram m u i t o a vida. V e j a . . . Rádio,
jornais sensacionalistas, televisão, aviões. Pressa, m u i t a pres-
sa. Vive-se depressa, morre-se depressa, come-se depressa,
ama-se depressa. É como se quiséssemos c h e g a r o q u a n t o
antes a um ponto determinado. No fim veremos que não há
n e n h u m o b j e t i v o s é r i o . E os h o m e n s , c a n s a d o s e g a s t o s , ví-
t i m a s d a s m á q u i n a s e d o s m i t o s q u e eles m e s m o s c r i a r a m ,
c h e g a r ã o à certeza de que é preciso p r o c u r a r o u t r a coisa. ..
E c o m o e u l h e p e r g u n t e d e s u a filosofia d a v i d a , D o m
Miguel me responde com u m a frase de F r e i Luís de L e o n :
— A beleza da v i d a e s t á em q u e cada um proceda de
a c o r d o c o m a s u a n a t u r e z a e o s e u ofício.
E, antes de p u x a r a coberta p a r a o queixo, p r e p a r a n d o -
s e p a r a d o r m i r , ele m e d i z c o m v o z s o n h a d o r a :
— Sabe o que eu faria se por um milagre pudesse t e r
de novo vinte a n o s ? Voltava p a r a a t e r r a , p a r a o convívio
d a s coisas simples. O m a l do nosso t e m p o é que os h o m e n s
se afastaram demais da natureza.
E s t a noite n ã o consigo conciliar o sono. Meus pensa-
m e n t o s estão em t u m u l t o . E n t r e g o - m e à s a u d a d e e ao desejo
d e v o l t a r a o B r a s i l . E n o silêncio d o h o s p i t a l , C l a r i s s a v e m
conversar c o m i g o . . .
N u m a o u t r a n o i t e , q u a n d o t u d o e s t á s i l e n c i o s o , ouço p i n -
gar inesperadamente a melodia do velho minueto. Já sabemos
q u e é a c a i x i n h a - d e - m ú s i c a de A l f o n s i t o . A e n f e r m e i r a de
plantão aproxima-se da c a m a do m e u vizinho e n u m cochicho
z a n g a d o repreende-o, ameaçando-o de lhe a r r e b a t a r p a r a
s e m p r e " o b r i n q u e d o " . E n r o s c a d o e q u i e t o d e b a i x o d o s co-
b e r t o r e s , o v e l h o fica m u i t o c a l a d o , c o m o u m a c r i a n ç a obe-
diente. A música cessa. M a s continua na m i n h a imaginação
— a g o r a é o Für Elise q u e o p o l a c o t o c a c o m s u a s m ã o s
enormes no piano da quinta invadida. Vejo os cadáveres no
chão -sangrento, e, sobre o fundo musical, desfilam-me na
memória as negras imagens desta guerra. Apodera-se de mim
126 ERICO V E R Í S S I M O
V i n t e d i a s d e p o i s d e e n t r a r n o h o s p i t a l e s t o u e m con-
dições d e a n d a r s e m o a u x í l i o d a s m u l e t a s . E n s a i o o s p r i m e i -
r o s p a s s o s e m c i m a d o t r i l h o d e linóleo. A s a r t i c u l a ç õ e s d a
perna esquerda estão ainda um pouco d u r a s e ao caminhar
claudico um pouco. O médico me assegura que d e n t r o de me-
nos d u m a quinzena estarei em condições de voltar p a r a a
frente.
C o n s i g o l i c e n ç a p a r a s a i r e o d i r e t o r do h o s p i t a l me en-
t r e g a a l g u m a s pesetas. Saio em c o m p a n h i a de J u a n a . Sou
um h o m e m novo e é n a t u r a l que esteja alegre. M a s nas r u a s
centrais de Barcelona, no meio dos t r a n s e u n t e s que vão e
SAGA 127
do p o r t o . De pé j u n t o da p a r e d e do a b r i g o , o m o ç o p á l i d o
m u r m u r a qualquer coisa que não consigo ouvir com clareza.
Passam-se os minutos. As explosões continuam, mais
f o r t e s e f r e q ü e n t e s . O f o g o da a r t i l h a r i a r e d o b r a .
E s t o u cansado, estendo-me no chão. P o r entre as frestas
dos sacos passa um r a t o . A moça solta um grito histérico e
o senhor de bigodes afirma que prefere enfrentar os r a t o s
às bombas dos aviões.
O cheiro deste porão me evoca recordações que eu jul-
gava perdidas. Lá em casa (e ao pensar nestas coisas sinto
u m a grande e esquisita doçura) no meu tempo de menino
havia um porão a que atribuíamos grandes m i s t é r i o s . . .
J u a n a e s t á deitada a m e u l a d o : vejo-lhe o rosto ansioso
junto do meu.
— Assustada?
— N ã o . Só p e n s a n d o . ..
— Em quê?
— Tu t e n s de v o l t a r . Lá é p i o r . . .
— Nem sempre.
— Quando é q u e e m b a r c a s ?
— Dentro de u n s quinze dias, a c h o . . .
U m a p a u s a . O o l h o d u m r a t o , a r i s c o e a s s u s t a d o , luci-
lando n u m desvão escuro. O f a r f a l h a r do j o r n a l que se do-
bra. O moço pálido boceja longamente. A senhora que está
ajoelhada desfia as c o n t a s de seu rosário. Lá fora, os es-
trondos.
Sem que eu chegue a perceber c l a r a m e n t e a m u d a n ç a ,
faz-se silêncio n a c i d a d e . P a s s a - s e u m m i n u t o , dois, c i n c o . . .
T o r n a m a s o a r as sirenas. Os alto-falantes a n u n c i a m que o
perigo passou.
O h o m e m de b i g o d e s d o b r a c u i d a d o s a m e n t e o j o r n a l e
sai.
O m o ç o p á l i d o ( q u a n d o l e v a a m ã o a o s c a b e l o s pode-se
ver que seus dedos t r e m e m ) retira-se t a m b é m . As d u a s mu-
l h e r e s s ã o as ú l t i m a s a d e i x a r o a b r i g o : o u v i m o s - l h e s os
passos na escada de madeira, passos que morrem lá em cima
nos últimos d e g r a u s . O ruído d u m a p o r t a que se fecha.
D e i x a m o - n o s f i c a r o n d e e s t a m o s . O silêncio a q u i é t ã o
grande, que eu julgo ouvir as batidas de nossos corações. Os
seios d e J u a n a s o b e m e d e s c e m . N u m g e s t o i n s t i n t i v o m i n h a s
m ã o s o s a c a r i c i a m d o c e m e n t e . J u a n a n ã o faz o m e n o r m o -
vimento, m a s seus olhos a g o r a e s t ã o velados por u m a b r u m a
de desejo. É c o m o se e s t i v é s s e m o s s ó s no m u n d o — ú n i c o s
SAGA 129
As noites de B a r c e l o n a . . .
Muitas vezes desperto de m a d r u g a d a em sobressalto.
J u a n a d o r m e a meu lado e sua respiração é tranqüila. Fico
a pensar nas trincheiras e — barro e muquiranas, sangue e
suor, m e d o e m i s é r i a — t o d a a sordícia da g u e r r a aos poucos
me toma conta da memória.
U m a vez a s s i s t o i n s o n e d a j a n e l a d o q u a r t o a o r a i a r d e u m
d i a . Um c a l a f r i o me v i a j a pelo c o r p o e eu c o m e ç o a t i r i t a r . O
horizonte clareia aos poucos. E m m u i t a s casas h á luzes des-
m a i a d a s n a s janelas. Olho na direção do cais. Vejo na clari-
dade pálida da m a d r u g a d a as extremidades dos m a s t r o s
b o i a n d o na b r u m a c i n z e n t a . F i c o a p e n s a r no B r a s i l . . . —
T a l v e z e u n u n c a m a i s t o r n e a vê-lo.
Volto-me. J u a n a ainda dorme. Começo a me vestir vaga-
r o s a m e n t e com um negro presságio, como se esta fosse a
m a d r u g a d a de m i n h a execução.
Meia-noite. E s t a m o s a t r a v e s s a n d o a t e r r a de ninguém,
c a m i n h a m o s h á j á cinco m i n u t o s , d e s c e n d o d a s n o s s a s p o s i -
ções, e a i n d a n ã o o u v i m o s n e n h u m d i s p a r o .
V e m a g o r a a p a r t e m a i s difícil d a e m p r e s a . T r a t a - s e d e
s u b i r a e n c o s t a q u e leva à c o t a q u e q u e r e m o s t o m a r . V a m o s
g a n h a n d o t e r r e n o l e n t a m e n t e , a g a c h a d o s e e m silêncio. O m a i s
d r a m á t i c o é que não sabemos com precisão onde está o ini-
migo. É um a s s a l t o cego. C o m p r e e n d e m o s isto desde o pri-
meiro instante, m a s é inútil e perigoso tentar, fazer a menor
objeção aos comandantes. O remédio é prosseguir.
D e s ú b i t o n a t r e v a r e l a m p a g u e i a a f u z i l a r i a , a u m a cen-
tena de metros à nossa frente. As balas passam zunindo em
t o r n o de nós. A m e u lado um h o m e m cai gemendo. É u m a
loucura continuar o avanço. Mas Juarez, o nosso tenente, um
sujeito calmo e tenaz, g r i t a : "Adelante!" R e b e n t a m g r a n a d a s
136 ERICO V E R Í S S I M O
H á d o i s d i a s q u e e s t a m o s s o b o fogo d a a r t i l h a r i a ini-
miga. Eles a t i r a m com u m a grande precisão. Perdemos em
n o s s o b a t a l h ã o d e d e z a v i n t e h o m e n s p o r dia. E s t a m o s m e -
t i d o s em t o c a s , e o n o s s o a s p e c t o é l a m e n t á v e l . N ã o p o d e m o s
d e i x a r o a b r i g o e a c a d a m o m e n t o e s t a m o s s u j e i t o s a ir p e l o s
ares. A l g u n s dos c a m a r a d a s j o g a m cartas. Eu me deixo ficar
a um c a n t o e n t r e g u e a m e u s p e n s a m e n t o s .
Olho p a r a os rostos dos companheiros. E s t ã o serenos e
resignados. Muitos ainda acreditam na vitória. Quando en-
t r a r a m n i s t o e s t a v a m r e s o l v i d o s a n ã o v o l t a r . P a r a eles a
vida pouco vale e a m o r t e t a n t o pode chegar-lhes hoje como
d a q u i a v i n t e a n o s , é-lhes c o m p l e t a m e n t e i n d i f e r e n t e . S ã o
b r a v o s e f o r t e s e ao vê-los s i n t o o b r i g a ç õ e s de s o l i d a r i e d a d e
p a r a c o m eles. V e n h a o q u e vier, é p r e c i s o t e r c o r a g e m e lu-
t a r . E é p o r isso q u e à s v e z e s c h e g o a t e r p u d o r a t é d o s i m -
ples desejo de ir embora.
g u i a r . .. A d o r é na p e r n a e no e n t a n t o me v e m s a n g u e à
boca e m i n h a respiração é penosa. De súbito, n u m susto, eu
c o n c l u o : e s t o u f e r i d o no p u l m ã o . C o m e ç o a a p a l p a r o p e i t o
n u m frenesi e encontro finalmente do lado esquerdo, e n t r e
d u a s c o s t e l a s , u m p e q u e n o orifício d o t a m a n h o d u m g r ã o d e
m i l h o . A p e r n a c o n t i n u a a d o e r i n t e n s a m e n t e e as c a l ç a s ,
pouco acima do tornozelo, acham-se m a n c h a d a s de vermelho.
Meus olhos se t u r v a m , o sangue me escorre das feridas,
a s f o r ç a s m e f a l t a m , e s t o u cego, f r a c o , m u i t o f r a c o . . .
16
Outubro. Encontro-me recolhido a um hospital em Mataró,
n a s p r o x i m i d a d e s d e B a r c e l o n a . S ó fui a t e n d i d o c o n v e n i -
e n t e m e n t e vinte h o r a s depois de cair ferido e a v i a g e m de
t r e m d o E b r o a t é a q u i foi l o n g a , l e n t a e p e n o s a . A p e s a r d e
todos os sofrimentos estou contente, porque escapei com vida
e t e n h o e s p e r a n ç a s d e s a r a r . Q u e m m e o p e r o u foi o D r .
A n d r e w M a r t i n , um canadense b a i x o e m a g r o , de rosto com-
p r i d o e r o s a d o . S e u n a r i z em sela, c o m p r i d o e a f i l a d o , o l u s -
t r o de s u a s faces b e m e s c a n h o a d a s e da calva oval; o frio
a z u l de s e u s o l h o s , o a s p e c t o a s s é p t i c o e os m o v i m e n t o s r á -
p i d o s e d e c i d i d o s — t u d o i s s o me leva a c o m p a r á - l o a um
bisturi. Mas a um bisturi não de todo destituído de u m a dis-
creta dose de t e r n u r a h u m a n a .
Sinto-me bem quando ele aparece. N ã o é p r o p r i a m e n t e
desses médicos de presença sedativa e ares paternais, que
sabem nos b a t e r no ombro no m o m e n t o preciso e dizer jus-
t a m e n t e as coisas que desejamos ouvir. Mas, p o r o u t r o lado,
n ã o se pode dizer que s u a atitude diante dos doentes seja fria
e puramente técnica.
Fazemos boa c a m a r a d a g e m e aos poucos, à medida que
v o u m e l h o r a n d o , ele t r a n s f e r e o s e u i n t e r e s s e p o r m i m d o
t e r r e n o m é d i c o p a r a o h u m a n o . A t é h á p o u c o e u e r a p a r a ele
a p e n a s u m e m p i e m a . A g o r a j á p e r g u n t o u o n d e n a s c i e fi-
cou m u i t o e s p a n t a d o p o r saber que sou brasileiro.
— Q u a n t o tempo t e n h o de ficar de cama, d o u t o r ? —
pergunto-lhe u m dia.
O h o m e m t i r a o s óculos, l i m p a - l h e s a s l e n t e s c o m u m
lenço d e s e d a , f i t a e m m i m o s o l h o s c l a r o s e p e r g u n t a :
— T e m muita pressa em voltar p a r a a frente?
Sorrio e respondo sem titubear:
— O s e n h o r é capaz de g u a r d a r um g r a n d e s e g r e d o ?
— Claro que sou.
— Pois então e s c u t e . . . Não tenho nenhuma vontade de
sair daqui.
146 ERICO V E R Í S S I M O
O D r . M a r t i n t o r n a a p ô r os óculos e me a s s e g u r a , n u m
a r d e c o n s p i r a ç ã o , q u e o s f e r i m e n t o s , s e j a c o m o for, m e p r e -
g a r ã o à c a m a pelo m e n o s p o r t r ê s m e s e s .
M i n h a p r i m e i r a q u i n z e n a a q u i foi n e g r a . N o s p e s a d e l o s
da febre eu me via jogado vivo p a r a d e n t r o da vala comum,
s e n t i a o c o n t a t o frio, v i s c o s o e p ú t r i d o d o s c a d á v e r e s , cujo
sangue me e n t r a v a pela boca e pelas narinas, sufocando-me.
D u m modo confuso eu e r a o coveiro de m i m mesmo, eu me
v i a e n t e r r a n d o e e n t e r r a d o . M ã o s e s c u r a s c o b e r t a s d u m a la-
ma a v e r m e l h a d a me s u r g i a m diante dos olhos e os canhões
martelavam-me as paredes do crânio.
M i n h a s noites n ã o t i n h a m m a i s fim. E às vezes — dor-
mindo, acordado ou em m a d o r n a ? — eu t i n h a a impressão
d e s e n t i r d e n o v o a s e m a n a ç õ e s f é t i d a s e a d o c i c a d a s d o s ca-
dáveres apodrecidos. E r a como se esse cheiro nunca mais me
fosse s a i r d a s n a r i n a s .
E m d e l í r i o v i a feições f a m i l i a r e s , a m i g o s d o B r a s i l , ca-
m a r a d a s da trincheira. Depois já e r a m seres horrendos e eu
v i v i a a m e a g i t a r n u m p a í s d e p e s a d e l o , n u m m u n d o s e m ló-
gica e em contínuas m u t a ç õ e s f a n t á s t i c a s . Às vezes confun-
dia as enfermeiras com os m o n s t r o s de m e u delírio e t i n h a -
lhes pavor. U m a noite me ergui da c a m a ardendo em febre
e dei a l g u n s p a s s o s c e g o s p e l a s a l a . A e n f e r m e i r a de p l a n t ã o
a m u i t o c u s t o me fez v o l t a r p a r a a c a m a . Q u a n d o a f e b r e
b a i x o u , ela m e c o n t o u a h i s t ó r i a . E u n ã o m e l e m b r a v a d e
nada.
R e a t a m o s a p a l e s t r a n a m a n h ã s e g u i n t e q u a n d o ele p a s -
sa na sua visita habitual. Depois das perguntas de costume,
do e x a m e da papeleta com o gráfico da febre, lanço-lhe a
pergunta:
— Mas enfim, doutor, qual é a solução p a r a e s t a velha
humanidade doída?
O D r . M a r t i n s o r r i e me o l h a i n t e n s a m e n t e .
— E s t e v e r u m i n a n d o a nossa conversa de o n t e m ?
L a r g a a p a p e l e t a e s e n t a - s e à b e i r a da c a m a .
— S o l u ç ã o ? — r e p e t e ele. — T o l i c e ! Um p a r de s a p a t o s
único p a r a todos os p é s ? A b s u r d o . O que pode h a v e r é u m a
SAGA 151
— Doutor...
— Que é que h á ?
— F a l e c o m f r a n q u e z a . . . E s t a h i s t ó r i a . . . q u e r o di-
z e r . . . o p u l m ã o . N ã o h a v e r á c o m p l i c a ç õ e s no f u t u r o ?
Ele sacode a cabeça negativamente.
— N ã o creio. Você é moço. P r o c u r e levar u m a vida sã,
f a ç a g i n á s t i c a r e s p i r a t ó r i a , t o m e sol.
A p a l a v r a sol e v o c a u m a r e c o r d a ç ã o d o B r a s i l . A g o r a l á
é v e r ã o — p e n s o . — Em b r e v e e s t a r ã o f e s t e j a n d o o N a t a l .
Despeço-me dos c a m a r a d a s , das enfermeiras e emprega-
dos do hospital.
O d o u t o r me a c o m p a n h a a t é a porta. Com o m e u emba-
r a ç a n t e h o r r o r ao m e l o d r a m a r e p r i m o o desejo de a p e r t a r
contra o peite esse homenzinho. Toda a m i n h a g r a t i d ã o por
ele s e r e s u m e n u m a p e r t o d e m ã o e n u m :
— Obrigado, doutor.
No meio da escada me volto p a r a g r i t a r :
— Adeus!
O D r . A n d r e w M a r t i n faz u m s i n a l a m i s t o s o e d i z :
— Até à vista! O mundo é muito pequeno.
— S ã o m e u s filhos.
Um m e n i n o e u m a menina. Pálidos, e m a g r e c i d o s e de
olhos g r a ú d o s e cintilantes.
— Viúva?
E l a sacode a cabeça n e g a t i v a m e n t e e me f a z um sinal
na direção de um consolo. Olho e v e j o o r e t r a t o d u m h o m e m .
— É o m e u marido. D e s a p a r e c e u há s e i s m e s e s . E s t a v a na
frente do Ebro.
— T e m e s p e r a n ç a de que e l e v o l t e ?
— Tenho.
B a i x o a c a b e ç a e c o n t i n u o a abrir a lata.
E n q u a n t o a m u l h e r se põe a preparar o leite, s e n t o - m e
n u m a poltrona, invadido por u m g r a n d e m a l - e s t a r . E s t e a m -
b i e n t e m o r n o me convida a ficar, pois lá f o r a faz frio e a
rua e s t á c h e i a d e a l m a s s e m rumo.
A s crianças f a z e m g r a n d e alvoroço quando a m ã e l h e s
d á u m a x í c a r a d e l e i t e q u e n t e c o m g r o s s a s f a t i a s d e pão.
V o l t a - s e ela depois para m i m e diz:
— I s t o para eles é um banquete.
P a s s a m - s e a l g u n s m i n u t o s . O s p e q u e n o s e s t ã o lambendo
a x í c a r a g u l o s a m e n t e , o r o s t o a p i n g a r leite.
— V a m o s ! — diz-lhes a m u l h e r c o m u m a doce alegria.
— F á - l o s p a s s a r para o q u a r t o c o n t í g u o e f e c h a a p o r t a à
chave. C a m i n h a na direção do quarto de d o r m i r e, s e m m a -
lícia n e n h u m a , c o m u m a naturalidade melancólica m e d i z :
— P o d e vir.
O s o l h o s d o marido, n o retrato, p a r e c e m f i t o s e m m i m .
Um invencível a c a n h a m e n t o e uma e s p é c i e de r e p u g n â n c i a
por m i m m e s m o e pelos m e u s a p e t i t e s carnais me d o m i n a m
de tal f o r m a que eu apanho boina e sobretudo c o m fúria,
abro a porta e precipito-me e s c a d a s abaixo, c o m o que a f u -
gir de um perigo de morte.
S u r g e o sol. E r g o - m e da s e p u l t u r a e s a i o a p u l a r e a
b a t e r com os braços para me aquecer.
Multidões se precipitam p a r a os carros e caminhões que
v i e r a m da E s p a n h a e c o m e ç a m a destruí-los freneticamente.
T i r a m d e l e s p r a n c h a s d e m a d e i r a , d e p ó s i t o s d e g a s o l i n a , es-
t o f o s de b a n c o , h o l o f o t e s , p n e u m á t i c o s e p l a c a s de m e t a l . Com
essas coisas começam a construir abrigos, e a improvisar
utensílios de cozinha.
As autoridades francesas intervêm a tempo p a r a evitar
que todos os veículos sejam depredados. Os soldados senega-
leses investem b r u t a i s c o n t r a os prisioneiros. E s t e s se encon-
t r a m demasiadamente enfraquecidos e desmoralizados para
reagir. De resto, que resistência poderiam opor a u m a força
a r m a d a d e fuzis e m e t r a l h a d o r a s ?
Os alto-falantes, colocados de cem em cem m e t r o s a t r a -
v é s do c a m p o , e s t ã o c o n s t a n t e m e n t e a n o s a d v e r t i r q u e , a
qualquer d e m o n s t r a ç ã o de indisciplina, os culpados serão
"sancionados no ato pelas tropas senegalesas."
A c o l i t e me a n i q u i l a . P a s s o a m ã o pelo r o s t o b a r b u d o e
sinto-o descarnado.
D u r a n t e h o r a s e h o r a s fico a p e n s a r no B r a s i l e às v e z e s ,
na névoa da fraqueza, descubro aflito e miserável que não me
c o n s i g o l e m b r a r c o m n i t i d e z d o s t r a ç o s f i s i o n ô m i c o s d e Cla-
rissa. Acho-me tão debilitado e sem vontade, que as lágrimas
me vêem aos olhos com u m a facilidade e m b a r a ç a n t e .
E o m a i s c u r i o s o é q u e do f u n d o da m i n h a a b j e ç ã o a i n d a
t e n h o olhos e alma p a r a apreciar os crepúsculos de inverno
p o r t r á s d o s P i r e n e u s . O s r e f l e x o s a l a r a n j a d o s d o ú l t i m o sol
na neve dos cimos, a v a g a b r u m a cor de violeta que envolve
as m o n t a n h a s , s ã o o ú n i c o i n d í c i o de q u e a b e l e z a e a p a z
a i n d a n ã o d e s e r t a r a m d o m u n d o e a c e r t e z a d e q u e n o final
de contas ainda não estou morto.
D o m J o s é , o c h e f e d e n o s s o g r u p o , u m v a l e n c i a n o d e ca-
b e l o s g r i s a l h o s e feições b e m m a r c a d a s , n ã o s e c a n s a d e d i -
zer aos companheiros da sua esperança de que o Presidente
C a r d e n a s a b r a as p o r t a s do México aos refugiados espanhóis.
Os alto-falantes atroam os ares. "As fronteiras da E s p a n h a
estão abertas p a r a aqueles que desejarem voltar a seus lares."
De quando em quando um refugiado é reclamado no
c a m p o p o r a l g u m p a r e n t e , a m i g o o u pelo c ô n s u l d e s e u p a í s .
P e r t o de m i n h a cova m o r a um velho encurvado e melan-
cólico q u e s e r e c u s a a t o m a r q u a l q u e r a l i m e n t o . E x t r a v i o u - s e
d a f a m í l i a a o s a i r d e B a r c e l o n a e n ã o s a b e s e o s filhos e o s
netos e s t ã o vivos ou m o r t o s . N ã o fala, n ã o se m o v e e q u a n d o
lhe q u e r o m e t e r o s a l i m e n t o s n a b o c a à f o r ç a , ele c e r r a o s
l á b i o s e os d e n t e s , o b s t i n a d o , e s a c o d e a c a b e ç a n u m a n e g a -
tiva frenética. Creio que em breve e s t a r á morto.
t a n t e a g r a d á v e l e o speaker, c o m a z e d a i r o n i a , d i v u l g a as
maravilhas da praia de Les Pins.
— S e n h o r e s e s e n h o r a s , é e x t r a o r d i n á r i a e s t e a n o a aflu-
ê n c i a de t u r i s t a s a e s t a b e l a e a p r a z í v e l p r a i a . Os h o t é i s
são de primeira ordem e, nos seus cardápios finíssimos, nunca
f a l t a u m b o m p r a t o d e colibacilo à m i l a n e s a o u u m a s a l a d a
de percevejos frescos. Os esportes m a i s esquisitos se prati-
cam aqui e entre eles devemos salientar a caça aos piolhos
e o difícil j o g o q u e é c o r r e r p e l a p r a i a s e m p i s a r n a s g r a c i o -
s a s i n c r u s t a ç õ e s q u e c i n q ü e n t a mil t u r i s t a s c o m i n c l i n a ç õ e s
a r t í s t i c a s ali d e i x a m d i a r i a m e n t e . S e n h o r a s e s e n h o r e s d e
t o d o o m u n d o , e s q u e c e i os v o s s o s c u i d a d o s e as n u v e n s da
guerra que pairam sobre o mundo e vinde todos a esta mara-
vilhosa praia do Mediterrâneo. Nós vos esperaremos de bra-
ços a b e r t o s !
E como as p a l a v r a s aqui c o n t i n u a m a t e r o m e s m o v a l o r
que lá fora no m u n d o dos vivos, m a i s de u m a vez a discus-
s ã o d e g e n e r a e m l u t a física e o s c o n t e n d o r e s , e n g a l f i n h a d o s
como feras, s a e m a rolar pela neve.
Observo t a m b é m que o instinto de posse nestas c r i a t u r a s
n ã o a d o r m e c e u e m u i t o m e n o s se a n u l o u . O u ç o d i z e r — a
minha r a ç ã o , o meu p r a t o , o meu l u g a r — e há p o u c o s d i a s
vi um sujeito m o r d e r a orelha do outro na disputa d u m sim-
ples caco de espelho.
Muitos dos refugiados t r o u x e r a m dinheiro, relógios, u m a
ou o u t r a jóia ou objeto de valor. As pesetas a n d a m de mão
em mão em c u r i o s a s t r a n s a ç õ e s . C o n h e ç o um t i p o — é de
Cadiz e parece t e r s a n g u e m o u r o — que vendeu o sobretudo
p o r c e m p e s e t a s e ficou p o r a í t i r i t a n d o d e f r i o m a s c o n t e n t e
por t e r feito " u m bom negócio". P a s s a o t e m p o com a m ã o
no bolso fazendo t i l i n t a r as moedas.
U m a noite dois catalães de nosso g r u p o se a t r a c a m a
s o c o s p o r c a u s a d u m a d ú v i d a n o poker e u m d e l e s a b r e o s
i n t e s t i n o s do o u t r o c o m u m a f a c a . O f e r i d o t o m b a e a n e v e
se t i n g e de v e r m e l h o . T u m u l t o . O n o s s o m é d i c o é c h a m a d o
às p r e s s a s , m a s n a d a pode fazer. O f e r i m e n t o é m o r t a l e em
pouco t e m p o o pobre diabo expira. D o m José p r o c u r a escon-
d e r o c r i m e à s a u t o r i d a d e s , p o i s s a b e q u e ele p o d e d a r l u g a r
a r e p r e s á l i a s , p r i n c i p a l m e n t e pelo f a t o d e s e t e r d e s c o b e r t o
uma faca e n t r e os h o m e n s . F i c a c o m b i n a d o que o m o r t o deve
ser e n t e r r a d o em segredo d u r a n t e a noite. Quando estamos
n o s p r e p a r a n d o p a r a l e v a r a c a b o o p l a n o , s u r g e u m oficial
acompanhado de soldados. Ê evidente que houve um delator.
Não há remédio senão prestar um depoimento exato sobre o
caso. O m o r t o é l e v a d o p a r a f o r a d o c a m p o n u m a c a r r o ç a
e q u a n d o o o f i c i a l s a i c o m os s o l d a d o s à p r o c u r a do a s s a s s i n o
é p a r a v e r i f i c a r q u e ele d e s a p a r e c e u e n t r e e s t e s m i l h a r e s e
m i l h a r e s de a l m a s perdidas que e n c h e m o c a m p o de concen-
tração.
N ã o consigo p r e g a r olho o r e s t o da noite. E s t o u satu-
rado de sangue, violência e miséria. N ã o me lembro m a i s
d a s feições d e m e u s a m i g o s q u e e s t ã o d o o u t r o l a d o d o m a r .
Deitado na vala comum, no meio de meus companheiros
sujos m a s q u e n t e s , v e j o o dia r a i a r n o h o r i z o n t e d o m a r .
C o m ele m e v e m u m a g é l i d a , t r ê m u l a e a b s u r d a e s p e r a n ç a .
O inverno continua d u r o e todos os dias t e m o s notícias
de n o v a s m o r t e s . A á g u a e s t á cada vez m a i s i n t r a g á v e l e
tenho a impressão de que o líquido que os h o m e n s v e r t e m na
168 ERICO V E R Í S S I M O
p r a i a é a b s o r v i d o p e l a areia e v o l t a - n o s d e p o i s p e l a s b o m b a s
na água que bebemos.
É e s t r a n h o e s t a r d i a n t e d o m a r e n ã o p o d e r t o m a r ba-
n h o ; é d o l o r o s o e a o m e s m o t e m p o a n i m a d o r p e n s a r e m que
a a l g u n s q u i l ô m e t r o s d e o n d e n o s e n c o n t r a m o s e x i s t e m cida-
des onde as c r i a t u r a s vivem normalmente, bebem á g u a pura.
comem alimentos sãos, ouvem música e sabem sorrir.
As pessoas que vejo a m e u redor, quando não se entre-
g a m ao d e s â n i m o e à a p a t i a , d e s a n d a m a p r a g u e j a r . A c h a m
sempre um culpado p a r a a situação em que se encontram.
Franco. Negrin. A Inglaterra. O capitalismo. O fascismo. O
comunismo. E a t é Deus. Os p r ó p r i o s a t e u s culpam Deus da
miséria em que se arrastam.
E n t r a m o s n a n o s s a t e r c e i r a s e m a n a d e m a r t í r i o . A si-
t u a ç ã o p i o r a d e d i a p a r a d i a . J á n ã o s e o u v e m c a n t i g a s . Ca-
lou-se a v i t r o l a q u e r o u q u e j a v a n ã o sei o n d e t a n g o s e p a s o -
dobles. N ã o t e m o s dinheiro p a r a c o m p r a r cigarros. O velhote
francês de sobrecasaca sebosa que v e m d u a s vezes p o r sema-
n a c o m u m c a m i n h ã o c h e i o d e b u g i g a n g a s — l a t a s d e con-
s e r v a , c a r t e i r a s de c i g a r r o , s a b o n e t e s — já l i m p o u a n o s s a
s o c i e d a d e d e s u a s ú l t i m a s p e s e t a s . E n t r e n ó s j á h a v i a capi-
t a l i s t a s e p r o l e t á r i o s : d u m l a d o , h o m e n s q u e s a b i a m fazer
n e g ó c i o e t i n h a m s e n s o e c o n ô m i c o ; e de o u t r o , c r i a t u r a s q u e
mesmo nesta situação de penúria niveladora "descobriram"
um meio de ficar ainda abaixo do nível geral. D o m José. o
n o s s o chefe, e r g u e o s b r a ç o s e g r i t a :
— Meus amigos, estamos livres da influência nefasta do
dinheiro! Libertamo-nos da m á q u i n a e do regime capitalista.
Somos os h o m e n s novos. Voltemos p a r a a t e r r a , comecemos
u m a n o v a i d a d e d e a r t e s a n a t o , u m a s o c i e d a d e ideal. Meu*
irmãos, vós não compreendeis o que isto significa.
Os outros o ridicularizam. Mas Dom José continua a
p r e g a r . E s t á m a g r í s s i m o e s e u s o l h o s s ã o d o i s c a r v õ e s acesos.
D e p o i s d e a l g u m t e m p o v e j o q u e o infeliz v e l h o e s t á a r d e n d o
e m f e b r e e q u e s u a s p a l a v r a s s ã o d i t a d a s pelo delírio.
E n t a n g u i d o s d e frio, e s f a r r a p a d o s , d o e n t e s , s e m v i n t é m
no b o l s o — e s t e s h o m e n s c o n t i n u a m a a l i m e n t a r e r r o s e ilu-
sões, d e s e j o s d o i d o s e s u p e r s t i ç õ e s , e g o í s m o e ó d i o s .
E u m e considero u m m o n s t r o porque, miserável como o s
o u t r o s e como os o u t r o s condenado t a m b é m à m o r t e , surpre-
endo-me no insensato desejo de t e r aqui tela, pincel e tinta
SAGA 169
p a r a p i n t a r e s s e q u a d r o d e h o r r e n d a beleza, a f i m d e q u e
amanhã, quando estivermos todos mortos, e h o m e n s indiferen-
tes v i e r e m e n t e r r a r nossos cadáveres, um deles possa encon-
t r a r o e s t r a n h o q u a d r o e v e r a um c a n t o dele o m e u n o m e .
Sou um h o m e m como os outros e não mereço n e m a com-
paixão de m i m mesmo.
— V a s c o . . . tu sempre com a g r a v a t a t o r t a . . .
— E t u . . . sempre com o nariz a r r e b i t a d o . . .
F i c a m o s a nos m i r a r , de m ã o s d a d a s , frente a frente.
É a b s u r d o e ao m e s m o t e m p o c o m o v e n t e q u e e s t e j a m o s a
dizer e x a t a m e n t e e s t a s coisas, que s e j a m e s t a s as nossas pri-
meiras palavras um para o outro.
A nosso redor u m a pequena multidão se agita, barulhen-
ta. Exclamações de alegria, palavras sôfregas, gritos, ruídos
metálicos. O rolar surdo d u m trole atestado de bagagens,
carregadores que p a s s a m com m a l a s à costas.
— Botei este vestido porque me lembrei que g o s t a s de
verde. Fizeste boa viagem?
— Ótima.
— Mas Vasco. . . estás m a i s m a g r o . A n d a s doente? Que
foi q u e t e a c o n t e c e u ?
— N a d a , m i n h a filha. Sou como c a c h o r r o : engordo e
e m a g r e ç o d e p r e s s a . É b e m c o m o diz a t u a m ã e .
C l a r i s s a m e o l h a i n t e n s a m e n t e p o r a l g u n s s e g u n d o s , co-
mo se quisesse p e n e t r a r com os olhos na m i n h a alma. E de
súbito, r o m p e n d o no choro, t o r n a a d e s c a n s a r a cabeça no
m e u peito.
— Ora, não faças assim. P a r a que c h o r a r ? O r a . . .
A s l á g r i m a s d e C l a r i s s a m e e m p a p a m a c a m i s a e nos
m e u s b r a ç o s o s e u c o r p o f r e m e , s a c u d i d o d e soluços.
Na a m u r a d a do vapor o cozinheiro de bordo, um nortista
amarelo de ar doentio, nos contempla sorrindo maliciosamen-
te. E s t a m o s ao pé da arcada dum grande guindaste e, atra-
vés dessa m o l d u r a de ferro vejo a perspectiva multicolorida
do cais: os outros guindastes com s u a s t o r r e s metálicas, o
casco negro dos vapores, u m a floresta de m a s t r o s e cordas,
a p l a t a f o r m a do c a i s c o m z o n a s de s o m b r a e de s o l ; logo
a t r á s de Clarissa, no primeiro plano, q u a t r o fileiras de tonéis
c o r d e l a r a n j a , c o m o u m p e l o t ã o d e s o l d a d o s b a i x o s e obesos.
S ã o onze h o r a s d a m a n h ã . A n d a n o a r e n f u m a ç a d o u m c h e i r o
d e óleo c r u . U m a g a s o l i n a b a r u l h e n t a s i n g r a a s á g u a s , r u m o
de u m a ilha. A g u a p é s f l u t u a m no rio que cintila no seu pardo
c h a m a l o t a d o c o m r e f l e x o s d e u m c i n z a - a z u l a d o d e aço.
C l a r i s s a e m p e r t i g a o c o r p o e c o m e ç a a e n x u g a r os o l h o s .
Ergue p a r a mim o rosto desanuviado, tocado agora de uma
l u m i n o s i d a d e l í q u i d a , c o m o u m céu d e p o i s d a c h u v a . T o m a -
me do braço e diz:
— Vamos?
— Vamos.
SAGA 175
— E a tua bagagem?
— N ã o tenho bagagem. Só esta mala.
— A h . . . E s t á bem. — E, noutro t o m : — Mamãe, Fer-
nanda e Noel não vieram te esperar porque tu pediste na
c a r t a q u e só eu v i e s s e ao c a i s . . .
— P o i s é. Tu c o m p r e e n d e s . D e t e s t o d e s p e d i d a s e r e -
cepções. A g e n t e f i c a c o m u m a c a r a d e i d i o t a e t e m d e d i z e r
c o i s a s q u e n ã o s e n t e . . . e n ã o s a b e c o m o d i z e r as q u e s e n -
t e . . . pois n ã o é ?
Clarissa me a p e r t a o braço t e r n a m e n t e e m u r m u r a :
— Gato-do-mato!
E r a a s s i m que ela m e c h a m a v a q u a n d o é r a m o s crianças.
G a t o - d o - m a t o . Arisco, agressivo, selvagem e orgulhoso.
A p a n h o a m a l a e s a í m o s a c a m i n h a r d e v a g a r i n h o na d i -
reção da p o r t a de um dos a r m a z é n s do cais.
— O a u t o de F e r n a n d a está lá fora nos esperando.
— A u t o ? É e n g r a ç a d o . . . Eu ainda não tinha pensado
numa coisa...
— Que é ?
— N ã o sei a i n d a p a r a onde vou. T e n h o de c o m e ç a r t u d o
de novo. Sou como um i m i g r a n t e que chega com a sua t r o u x a
e u m m o n t ã o d e e s p e r a n ç a s . S ó sei c o m c e r t e z a d e u m a c o i s a :
quero viver. O resto é mistério.
Clarissa estaca e puxa-me do braço, fazendo-me p a r a r
também.
— Vasco! Mas o t e u q u a r t o lá em casa e s t á bem como
deixaste. A t u a c a m a . . . os teus l i v r o s . . . os t e u s q u a d r o s . . .
— N ã o sei, m i n h a filha, m a s a c h o q u e n ã o v o l t o p r a
lá...
— Gato-do-mato!
A t e s t a de Clarissa se franze, seus olhos se e s t r e i t a m
e turvam. Acho que vamos ter mais choro.
— B o m . . . b o m . . . N ã o quero discutir.
E l a encosta a cabeça no m e u braço e com a m b a s as
mãos me s e g u r a os pulsos, como p a r a me impedir a fuga. E
assim docemente algemados, saímos a a n d a r lado a lado.
Eu n ã o e s t a v a m a i s h a b i t u a d o a e s t a deliciosa, m o r n a e
humana sensação de aconchego. N ã o tenho argumentos a
opor. O q u e s i n t o é v o n t a d e d e g r i t a r : V o u p a r a o n d e m e
levares! E s t a carne de canhão que sobrou da g u e r r a agora
te p e r t e n c e . S o u t e u , só t e u , e a a l e g r i a de e s t a r v i v o e de
voltar à p á t r i a me sufoca. T e n h o um presente p a r a ti, s a b e s ?
O mais puro d i a m a n t e . Tem t o d a s as cores do arco-íris. O
176 ERICO V E R Í S S I M O
s e u ú n i c o d e f e i t o é s e r invisível. M a s e u t e a s s e g u r o q u e ele
existe. Eu o sinto, eu o vejo faiscar d e n t r o de m i m . H a v e m o s
d e c o m p r a r c o m ele a l g u m a c o i s a m a r a v i l h o s a p a r a n ó s . T a l -
v e z a f e l i c i d a d e . Tu m e r e c e s .
Á x e l . . . Dom Miguel... Alfonsito... Brown. .. G r e e n . . .
De N i c o l a . . . Martin, se vocês pudessem me ver! Aqui vai
um ressuscitado, um h o m e m que, sendo senhor de um tesou-
ro, jogou-o fora e correu a t r á s d u m sonho doido. Um pobre
p e r u ébrio que volta v o l u n t a r i a m e n t e p a r a o seu círculo de
giz. O s m o r t o s a p o d r e c e m d e b a i x o d a t e r r a à s m a r g e n s d o
E b r o . N i n g u é m sabe onde e n t e r r a r a m o corpo de Pepino Ver-
g a , o p a l h a ç o . Os m o u r o s c r u c i f i c a r a m o C r i s t o L e g i o n á r i o .
Em algum lugar da Espanha uma mulher chamada Juana
t a l v e z leve n o v e n t r e o filho d u m c o m b a t e n t e d a B r i g a d a
Internacional a quem um dia se entregou no fundo dum abri-
g o a n t i a é r e o . O u t e r á ela m o r r i d o e s t r a ç a l h a d a p o r u m a
b o m b a ? A v i d a é a b s u r d a . A v i d a é h o r r e n d a m e n t e bela.
Meus pobres companheiros mortos, perdoai-me por eu estar
vivo!
— V o u t e f a z e r u m p e d i d o , C l a r i s s a . V a m o s a pé, s i m ?
Pelo menos u m a s duas ou t r ê s q u a d r a s . . . Ê t ã o bom estar
n o B r a s i l , n ã o o u v i r t i r o s n e m v e r c a d á v e r e s pelo c h ã o . . .
— A g o r a que estás comigo, n a d a m a i s importa. Vamos
como quiseres.
Enlaço-lhe a cintura. Atravessamos o armazém sombrio.
— N a d a de t r i s t e z a s — d i g o . — F a z de c o n t a q u e vol-
tamos àquele tempo em que eras a Princesa do Figo Bichado
e eu o G a t o - d o - m a t o . V a m o s nos m e t e r n u m a g r a n d e traves-
sura. Feito?
— Feito.
E pelo meio de sacos e caixas, envolvidos p o r um cheiro
ativo e grosseiro de x a r q u e , Clarissa e eu c a m i n h a m o s den-
tro de nosso sonho mais querido.
Quando saímos do armazém, dois homens se aproximam
de n ó s e n o s b a r r a m a m a r c h a . S ã o a m b o s j o v e n s e e s t ã o
b e m vestidos. U m deles m e p e r g u n t a :
— O s e n h o r se c h a m a V a s c o B r u n o ?
— É esse o m e u nome.
O d e s c o n h e c i d o v i r a a l a p e l a do c a s a c o , p o n d o à m o s t r a
u m d i s t i n t i v o d a polícia.
— F a ç a o f a v o r de n o s a c o m p a n h a r — diz ele.
— Já?
— Já.
SAGA 177
— N ã o posso ir a n t e s a t é a c a s a ?
— Não.
— Que é que há contra m i m ?
— Na delegacia o s e n h o r s e r á i n f o r m a d o .
V o l t o - m e p a r a C l a r i s s a e m cujo r o s t o v e j o u m a e x p r e s -
são de doloroso espanto.
— N ã o é n a d a — t r a n q ü i l i z o u eu. — V a i no c a r r o da
Fe r n an d a. Depois nos encontraremos em casa.
— M a s , V a s c o . . . — t a r t a m u d e i a ela.
Curioso: neste m o m e n t o estão a me m a r t e l a r na cabeça
a s q u a t r o n o t a s i n i c i a i s d a Q u i n t a S i n f o n i a d e B e e t h o v e n . Tal-
vez o D e s t i n o e s t e j a a g o r a b a t e n d o à m i n h a p o r t a .
— E s t o u pronto — digo secamente.
Um dos investigadores me a r r e b a t a a mala das mãos. Ã
porta do automóvel, novamente em lágrimas, Clarissa me
a b r a ç a e beija. M u r m u r o - l h e ao ouvido:
— C o r a g e m . Um b o m b a r d e i o é m u i t o p i o r e eu e s c a p e i
de muitos com vida.
E n t r o no c a r r o da polícia e sento-me e n t r e os dois agen-
tes. Consola-me a idéia de que n e m s e m p r e o Destino nos
v i s i t a p a r a t r a z e r a m o r t e e o s o f r i m e n t o . B a t e às v e z e s à
nossa casa e quando vamos abrir-lhe a porta e perguntar-lhe
que deseja, ele responde com u m a r c a s u a l :
— N a d a de i m p o r t a n t e . Eu só vim v e r como você vai
passando.
— E s t o u f a l a n d o s é r i o . A l i á s n ã o fiz o u t r a c o i s a d e s d e
que entrei aqui.
— Pois bem. E s s a senhora veio interceder em seu favor.
P a r a todos os efeitos o s e n h o r é um elemento suspeito. Dona
F e r n a n d a M a d e i r a vai ficar sendo p e r a n t e a polícia a fiadora
moral e material de sua conduta daqui por diante.
— F a r e i o possível p a r a não a decepcionar.
O delegado l a r g a o papel e s u s p i r a com um ar de quem
pinga um ponto final n u m a questão aborrecida.
— A g o r a p o d e ir. F a ç o v o t o s p a r a q u e n ã o t e n h a d e
aparecer mais por aqui.
— Amém!
A p a n h o a mala, faço um breve cumprimento com um
g e s t o de cabeça e c a m i n h o p a r a a p o r t a .
Na sala de espera encontro Clarissa e Fernanda.
— E n t r a em cena o h e r ó i ! — exclama e s t a ú l t i m a ao me
ver surgir.
— Fernanda!
Abraçamo-nos e q u a n d o saio dos braços dela é p a r a cair
nos de Clarissa. E s t o u desabituado a estes carinhos. Real-
mente, a vida é b a s t a n t e boa, senhores patriarcas, estadistas
e h e r ó i s — p e n s o eu, o l h a n d o p a r a o s r e t r a t o s q u e s e e n f i -
l e i r a m n e s t a s t r i s t e s p a r e d e s e m g r o s s a s e i m p o n e n t e s mol-
duras douradas.
— E n t ã o o m a t a - m o u r o s e s t á d e v o l t a ? — diz F e r n a n d a
tomando-me do braço esquerdo. E Clarissa, que está agarra-
da ao direito, me puxa docemente na direção da porta.
D e i x o - m e l e v a r m e i o e s t o n t e a d o , n ã o sei s e d e f o m e o u
de felicidade.
— Tenho de pensar n u m h o t e l . . . — balbucio sem muita
convicção.
— N ã o seja bobo — r e a g e F e r n a n d a . — O que você pre-
cisa é comer. V a m o s lá p a r a casa.
— N i n g u é m ainda almoçou, Vasco — explica Clarissa.
— Estão todos te e s p e r a n d o . . .
— M a t a m o s u m a vitela g o r d a p a r a o filho pródigo.
— E já p r e p a r a r a m o a n e l p a r a o m e u d e d o ? — p e r -
gunto, ao descermos p a r a a calçada.
E Fernanda:
— O anel quem vai c o m p r a r é você m e s m o . . . U m a
aliança de noivado p a r a Clarissa, senhor Dom Quixote!
Diz isto e me e m p u r r a p a r a d e n t r o do automóvel.
2
Esatamos reunidos em t o r n o da mesa, na casa de Noel e Fer-
nanda. Encontro-me quase n u m ê x t a s e místico diante des-
te bom e farto almoço brasileiro. Faz mais de um ano que
não me sento a u m a mesa assim bem a r r a n j a d a e limpa para
comer t r a n q ü i l a m e n t e , sem sobressaltos n e m restrições. Di-
zem que o jejum e a maceração são caminhos p a r a Deus.
Mas eu prefiro chegar ao Criador p o r o u t r a s veredas menos
ásperas. E depois é preciso ver que um perfumado p r a t o de
comida pode t r a z e r um sorriso à face dos famintos, u m a es-
perança ao coração dos miseráveis. P o r q u e é u m a certeza de
calor, d e p r a z e r , d e v i d a . E s e n d o e x p r e s s ã o d o m u n d o m a -
t e r i a l , é d u m a i m p o r t â n c i a t ã o g r a n d e q u e s e m ela n ã o p o d e
f u n c i o n a r e s s a f á b r i c a de s o n h o s e i d e a i s q u e é o h o m e m .
Lembro-me de Barcelona e dos cartões de racionamento. As
raparigas vendiam sua virgindade por um prato de lentilhas.
P e r t o d i s s o , c o m o é i n o c e n t e a h i s t ó r i a b í b l i c a de E s a ú e
J a c ó . .. Olho em torno. Desconfio que estou comovido.
— P o r que não começa, capitão? — indaga F e r n a n d a ,
apontando p a r a os pratos. — Em que é que está pensando?
— É q u e . . . eu queria saber se todos os brasileiros com-
preendem a grande bênção que é t e r paz e u m a mesa farta
como e s t a . . .
Dona Eudóxia, mãe de Fernanda, deixa escapar um sus-
piro dolorido. Seu rosto t e m um ar de dor e m a r t í r i o . P a r e c e
uma daquelas velhas que se a r r a s t a v a m pelas e s t r a d a s neva-
das, fugindo de Barcelona sob a a m e a ç a dos aviões.
F a z - s e u m c u r t o silêncio.
— Come, Vasco — diz Clarissa com doçura. — P r e c i s a s
engordar. O talharim está tão g o s t o s o . . .
Belas palavras, grandes palavras. Quero t e r sempre jun-
to de mim alguém que me diga coisas assim, simples e pró-
x i m a s d a t e r r a e d a paz. P o n h o - m e a c o m e r q u a s e c o m u n ç ã o
religiosa. E , p o r u m desses i n q u i e t a n t e s caprichos d a m e m ó -
ria, c o m e ç a m a m e d e s f i l a r p e l a m e n t e o s f a n t a s m a s d o c a m p o
182 ERICO V E R Í S S I M O
d e c o n c e n t r a ç ã o . O l h a m - m e c o m i n v e j a e ódio, e s t e n d e m - m e
a s m ã o s e s q u e l é t i c a s , p e d i n d o . . . N a d a p o s s o f a z e r p o r eles,
n e m m e s m o esquecê-los.
A luz d o sol, d u m a m a r e l o d e â m b a r , i n u n d a e s t a s a l a
d e m ó v e i s s e v e r o s e e s c u r o s , e m e s t i l o colonial e s p a n h o l . A s
cortinas cor de vinho e os tapetes d u m pardo profundo dão
ao ambiente um ar de calma familiar tépida e amiga.
E r g o o s o l h o s p a r a N o e l . R e t r a t o d u m elfo — p e n s o .
U m a c a r a a l o n g a d a e p á l i d a , de feições f i n a s e m e i o
v a g a s , olhos de expressão cândida e cabelos loiros. Um dia
ainda hei de p i n t a r essa cabeça contra um fundo de s o n h o :
paisagem do país das fadas, com gnomos e gênios bons, ár-
vores azuis e céus verdes. Olho p a r a F e r n a n d a , que t e m no
rosto de expressão impávida, um resplendor de vida — um
verniz que parece vir do fundo da personalidade p a r a cintilar
na superfície da epiderme — e penso no a m o r dos contrários.
N ã o conheço no m u n d o p a r m a i s desigual não só m o r a l como
fisicamente.
Poucas semanas antes de eu embarcar para Espanha
operou-se u m a grande e súbita transformação na vida do
casal. Faleceu o pai de Noel e este se viu d u m m o m e n t o p a r a
outro herdeiro de quase mil contos de réis. A m ã e recebeu
a p a r t e q u e l h e t o c a v a e e m b a r c o u p a r a o R i o , o n d e foi m o -
r a r . Noel voltou com a m u l h e r e a filha p a r a a casa onde
n a s c e r a . F u i vê-los n a v é s p e r a d e e m b a r c a r . E s t a v a m a b a -
lados e perplexos. L e m b r o - m e de t e r dito a F e r n a n d a :
— Mil c o n t o s . . . Q u e r e s p o n s a b i l i d a d e p a r a u m a i d e a l i s t a .
Ela sacudiu a cabeça lentamente, concordando.
— Há d o i s p e r i g o s — d i s s e ela. — O p r i m e i r o é o de eu
descobrir de repente que não havia idealismo n e n h u m em
m i m . Nesse caso t r a t a r e m o s de multiplicar o dinheiro sem
escolher meios. Seremos duros, egoístas e esqueceremos os
nossos decantados ideais. ..
— Disso vocês e s t ã o livres — afirmei. — Tenho a plena
certeza.
— O o u t r o p e r i g o é o de t o m a r m o s os n o s s o s s o n h o s
m u i t o ao pé da letra. J o g a r e m o s então o dinheiro pela janela
e m benefícios a b s u r d o s . E m b r e v e e s t a r e m o s d e n o v o p o b r e s
e em dificuldades, sem que isso t e n h a trazido v a n t a g e m a
ninguém.
— T a m b é m não acredito que h a j a esse perigo.
— A s c r i a t u r a s r e v e l a m o q u e r e a l m e n t e s ã o q u a n d o en-
riquecem ou sobem p a r a u m a posição de mando.
SAGA 183
s e n s a ç ã o do p e r i g o i m i n e n t e . O m a r i d o ou o filho q u e ia p a r a
as carreiras podia voltar a qualquer momento nos braços dos
amigos, coberto de sangue, agonizante ou morto.
A vida no Rio Grande mudou. Vieram os tempos moder-
nos, o progresso, um m a i o r conforto n a s fazendas, o cresci-
m e n t o das cidades e o advento de u m a nova mentalidade.
Mas a tristeza está no sangue dessas senhoras de mais de
cinqüenta anos que continuam a esperar desgraças. . .
Clarissa me criva de perguntas sobre a E s p a n h a . Fica
m u i t o e s p a n t a d a q u a n d o l h e c o n t o q u e fui f e r i d o d u a s vezes.
L a r g a o t a l h e r , d e r e s p i r a ç ã o c o r t a d a , a r r e g a l a o s o l h o s e seu
rosto revela u m a expressão tão m a r c a d a de susto que parece
até que acabo de ser ferido neste momento.
— M a s isso t u d o passou. N ã o fiques com essa cara.
P e d e m - m e p o r m e n o r e s . É d e s a g r a d á v e l m a s tenho de dá-
los.
— Você n e m e s c r e v e u p r a n ó s — c e n s u r a - m e D. C l e m ê n -
cia. — E s s e m e n i n o p o d i a a t é t e r m o r r i d o .
Aqui está outro tipo muito encontradiço no Rio Grande.
A mulher que sabe querer bem sem alarde, sem carícias nem
perguntas. Escondem a t e r n u r a por t r á s de u m a certa secura
de p a l a v r a s e gestos. São eficientes, p r e s t a t i v a s , n a s noites
de inverno nos põem u m a botija nos pés, r e m e n d a m as nos-
s a s m e i a s o u n o s d ã o u m c h á q u e n t e c o m l i m ã o q u a n d o des-
confiam que vamos a p a n h a r um resfriado. Mas quem as vê
p a r a d a s e de rosto inexpressivo, á s p e r a s no repreender, sem-
p r e com restrições ao nosso c o m p o r t a m e n t o e com limitações
aos nossos movimentos; quem as vê serenas e sem choro
quando alguma pessoa da família está gravemente enferma
— fica a dizer i n t e r i o r m e n t e : "Ali e s t á u m a a l m a fria. N ã o
t e m afeição por n i n g u é m . "
Sei o j u í z o q u e D . Clemência, faz d e m i m . P a r a ela sou
um rapaz malcriado e meio maluco "que hoje está aqui e
a m a n h ã e s t á na China. N i n g u é m pode com a vida dele. . ."
A p r o v a o m e u c a s a m e n t o com Clarissa, m a s t e m no fundo da
a l m a u m a s e c r e t a d e s c o n f i a n ç a d e q u e a f i l h a v a i s e r infeliz
comigo. Há pouco, ao me d a r o seu abraço seco ( s e m beijo)
as primeiras palavras que me disse f o r a m :
— E s s a história de ir p a r a a E s p a n h a só m e s m o dessa
t u a cabeça de vento. Tu te esqueceste de levar aquela cami-
s e t a q u e e u fiz p r a t i . D i z e m q u e c a i n e v e l á n a E u r o p a .
E agora, com t o d a a candura, afirma que eu podia ter
morrido. . .
SAGA 185
N o e l , c o m o d e h á b i t o , e s t á s i l e n c i o s o : A t é h o j e n ã o con-
segui descobrir seus verdadeiros sentimentos p a r a comigo.
P o u c a coisa d i s s e d e s d e q u e n o s s e n t a m o s a e s t a m e s a . N ã o
sei q u e p e n s a m e n t o s l h e e s t a r ã o c r u z a n d o a m e n t e , m a s i m a -
gino que continua a se debater em grandes problemas morais.
Tenho a intuição de que foram vãos os esforços de F e r n a n d a
p a r a t r a z ê - l o a o m u n d o r e a l e m a t a r nele o m e d o d a v i d a .
— Que notícias me d á s de teu livro? — p e r g u n t o .
Ele encolhe os ombros.
— T e v e o d e s t i n o de q u a s e t o d o s os l i v r o s q u e n ã o ofe-
r e c e m a l i t e r a t u r a de q u e o p ú b l i c o g o s t a .
Fernanda intervém:
— T e n h o t e n t a d o e x p l i c a r a o N o e l q u e o f a t o d e u m li-
vro ficar n a s prateleiras d a s livrarias não deve constituir
motivo de desencorajamento p a r a o autor.
— Claro.
— De r e s t o — c o n t i n u a ele, b r i n c a n d o c o m o g u a r d a n a -
po — p a r a que e s c r e v e r ? Pensei que escrevendo pudesse en-
c o n t r a r a l i b e r t a ç ã o q u e p r o c u r a v a . V e j o a g o r a q u e ela n ã o
está na literatura.
— T a l v e z e s t e j a na v i d a — d i g o .
Noel se limita a fazer um gesto de dúvida.
Clarissa lança u m a pergunta:
— Um e s c r i t o r d e v e a g r a d a r o p ú b l i c o ou a g r a d a r a si
mesmo?
E Noel:
— Nesse particular não tenho a menor dúvida. Um es-
c r i t o r d e v e s e r fiel a s i m e s m o .
— S i m — d i z F e r n a n d a . — M a s e s s a f i d e l i d a d e p o d e ir
a e x a g e r o s em que se t r a n s f o r m a n u m a espécie de auto-in-
dulgência.
— E x p l i q u e isso — peço.
— M u i t o b e m . V a m o s a um e x e m p l o g r o s s e i r o . O p o e t a
gosta muito da b r u m a azulada. Em todas as suas paisagens
há b r u m a s azuladas, em todas as almas há névoas azulíneas
e o s s e u s c é u s s ã o d u m a z u l b r u m o s o . P a r a s e r fiel a s i
m e s m o o poeta fica a e s p a l h a r as s u a s b r u m a s azuis p o r to-
d o s o s s e u s p o e m a s , p o r q u e ele g o s t a d i s s o d e m o d o m ó r b i d o ,
bem como u m a criança gosta de c h u p a r o polegar. Com essa
autocomplacência preguiçosa n ã o h a v e r á p r o g r e s s o e a poe-
sia s e r á um círculo vicioso.
Noel sorri.
— O exemplo é quase bom, m a s muito capcioso.
186 ERICO V E R Í S S I M O
— V o c ê n ã o p o d e c a l c u l a r — d i z F e r n a n d a — no q u e
d e u a q u e l e c a s a m e n t o e r r a d o . — E, b a i x a n d o a voz, a c r e s -
centa: — E s t ã o m o r a n d o todos aqui em casa, lá no a n d a r de
baixo. P e d r i n h o , a E r n e s t i d e s , m u l h e r dele, o velho B r a g a ,
pai da Ernestides, a mãe da Ernestides e as duas irmãs da
Ernestides...
— Mas é fantástico! — exclamo.
D. E u d ó x i a , com voz d o r i d a :
— Tudo n a s costas da gente.
— M a s o sogro de P e d r i n h o não t i n h a e m p r e g o ?
— E r a f u n c i o n á r i o p ú b l i c o , foi a t i n g i d o p e l o 177 e a p o -
sentado com vencimentos reduzidos.
— V o c ê s e m p r e f a z e n d o o E x é r c i t o de S a l v a ç ã o . . .
F e r n a n d a encolhe os ombros, sorrindo.
— Dos males o menor.
— M a s o p i o r — i n t e r v é m N o e l — é q u e e l e s n ã o se
m a n t ê m dentro do território que nós lhe concedemos. Inva-
dem o nosso, sobem, metem-se na nossa vida.
— Q u e g e n t e ! — diz D. E u d ó x i a . E D. C l e m ê n c i a s a c o d e
a cabeça devagarinho, numa. solidariedade muda.
— A f i l h a m a i s m o ç a c a n t a n o r á d i o . C h a m a - s e Modes-
tina. — F e r n a n d a segura, no b r a ç o do m a r i d o , sorrindo. —
I m a g i n a você, Vasco, q u e o velho B r a g a obriga o Noel a
a b a n d o n a r o s e u D e b u s s y , o s e u R a v e l ou a l e i t u r a de s e u s
livros p a r a ir ouvir a Modestina c a n t a r s a m b a s e marchinhas.
Noel franze a testa, contrariado.
— O lar d u m h o m e m é o seu refúgio, a sua fortaleza.
A g o r a i m a g i n e v o c ê c o m o é h o r r í v e l q u a n d o o i n i m i g o con-
segue p e n e t r a r nessa fortaleza. A c a b a o resto de liberdade
de que gozávamos. E s t a m o s perdidos, c o m p l e t a m e n t e perdi-
dos.
— O Noel t e m u m a p a c i ê n c i a . . . — observa Clarissa.
— S e u B r a g a o b r i g a - o a l e r a t é a s c a r t a s q u e ele e s c r e v e
parai a s Q u e i x a s d o P ú b l i c o , n o j o r n a l .
E s t e s pequenos desencontros e conflitos domésticos t ê m
p a r a m i m u m s a b o r q u a s e n o v o . E u j á o s e s q u e c e r a p o r com-
pleto. Vejo que Noel está r e a l m e n t e c o n t r a r i a d o e que esta
s i t u a ç ã o é p a r a ele um p r o b l e m a q u e o p r e o c u p a e t o r t u r a .
A palestra se desenvolve em t o r n o da família Modesto
B r a g a . D. E u d ó x i a critica a m a r g a m e n t e a nora. U m a perdu-
lária, u m a desfrutável que vive na r u a fazendo compras ou
m e t i d a e m c i n e m a s e c a s a s - d e - c h á . Q u a l q u e r d i a e s t á n a boca
d o p o v o . T a m b é m o P e d r i n h o é c u l p a d o , p o r q u e n ã o põe u m
SAGA 189
freio n a E r n e s t i d e s . É o q u e a c o n t e c e q u a n d o u m r a p a z c a s a
m u i t o m o ç o . P a s s a d a a lua-de-mel, ele a b o r r e c e a m u l h e r e
depois vive encafuado n a s salas de bilhar, nos cafés ou em
lugares piores. É p o r isso que a Shirley Teresinha a n d a p o r
aí a t i r a d a . . .
— Cruzes! — exclamo. — Quem é Shirley Teresinha?
— A f i l h a de P e d r i n h o .
— De q u e m foi a i d é i a ?
— C o i s a lá de b a i x o . . . — a f i r m a D. E u d ó x i a .
— De s o r t e — d i g o eu — q u e d e s s e m o d o eles a c e n d e m
u m a vela a R o m a e o u t r a a Hollywood.
E F e r n a n d a , erguendo-se da m e s a :
— Sinais dos tempos.
Noel:
— Tristes tempos.
— Belos tempos — m u r m u r a Clarissa, aproximando-se
de mim. — V a m o s com F e r n a n d a a t é a janela.
— A cidade está m e r g u l h a d a n u m a b r u m a azul — digo,
voltando-me p a r a Fernanda. E acrescento: — Como diria o
teu poeta.
V e j o l o n g e o v u l t o do E d i f í c i o M e g a t é r i o , d o m i n a n d o a
cidade.
— V a s c o — diz F e r n a n d a . — P r e c i s o de v o c ê .
— Diga.
— A i n d a não lhe disse o que e s t a m o s fazendo.
— Sim...
— P r o c u r a m o s e m p r e g a r da m a n e i r a menos egoísta o
dinheiro que Noel herdou. P a r a principiar construímos um
pequeno hospital para crianças pobres. Foi-se só nisso u m a
boa p a r t e do dinheiro, m a s você sabe como s e m p r e me im-
pressionou a assistência às crianças doentes sem recursos.
— E c o m o é q u e o h o s p i t a l se m a n t é m ?
— C o m contribuições mensais de a l g u m a s pessoas de
boa v o n t a d e e com u m a pequena subvenção do governo. E
n ó s . . . t a p a m o s os buracos do orçamento.
O que F e r n a n d a me e s t á contando é mais fantasticamen-
te maravilhoso que os contos de fadas que povoam o espírito
de Noel.
— O diretor é o Dr. E u g ê n i o F o n t e s — prossegue ela
— u m n o v o a m i g o n o s s o , u m m o ç o q u e c o n h e c e m o s p o r in-
termédio do Dr. Seixas. Excelente sujeito. M a n d a m o s o E u -
gênio fazer um curso de especialização nos E s t a d o s Unidos.
M a s . . . isso não é t u d o . Você e s t á vendo o M e g a t é r i o ?
190 ERICO V E R Í S S I M O
— Estou.
— P o i s b e m . N o a n d a r t é r r e o d o edifício f i c a o " C i n e m a
A q u a r i u m " , a m a i o r casa de espetáculos da cidade. N ó s a
a r r e n d a m o s p o r cinco anos.
— A última coisa que podia me p a s s a r pela cabeça. ..
— F a z e m o s p r o g r a m a s com filmes educativos e escolhe-
mos de preferência as fitas que t e n h a m um sentido otimista
e construtor, c o m p r e e n d e ? Aos domingos d a m o s funções pela
m a n h ã e à t a r d e p a r a as crianças. Desenhos, jornais, comé-
dias. E gratuitas, note b e m !
— F e r n a n d a , você é d a s A r á b i a s !
E l a sorri sem vaidade. Vejo-lhe o perfil nítido, que dá
u m a idéia de arremesso, ímpeto e vitória.
— Há a i n d a m a i s u m a coisa — continua F e r n a n d a . —
U m d e n o s s o s g r a n d e s s o n h o s foi r e a l i z a d o . N o e l e e u fun-
d a m o s u m a revista infantil. C h a m a - s e " A v e n t u r a " , e é im-
pressa em cores. Um sucesso em todo o p a í s ! — U m a pausa.
F e r n a n d a volta-se p a r a m i m e me olha de frente. — Vasco,
você quer t r a b a l h a r conosco?
— Não pergunte duas v e z e s . . .
— V o c ê d e s e n h a , e s c r e v e , t e m e n t u s i a s m o . .. e n f i m , é
um dos nossos. Pago-lhe um ordenado decente. Pode começar
quando quiser. A c e i t a ?
E s t o u meio estonteado. Sinto no braço a suave pressão
dos dedos de Clarissa. As únicas p a l a v r a s que encontro p a r a
dizer s ã o :
— Fernanda, você não existe.
Fico a pensar em que a esta hora eu podia e s t a r morto,
enterrado em alguma parte da Espanha.
3
Passei a p r i m e i r a quinzena de m a i o a escrever as p á g i n a s
que ficaram p a r a t r á s . Se me fosse possível, eu contaria
as m i n h a s a n d a n ç a s na E s p a n h a por meio de desenhos ani-
m a d o s e interpretaria os meus estados de espírito em termos
de música. Acho a palavra um pobre instrumento de expres-
são. Dir-se-ia um vidro — às vezes deformador, quase sem-
p r e e m b a c i a d o , q u a n d o n ã o e x a g e r a d a m e n t e c o l o r i d o e cin-
t i l a n t e — q u e o a u t o r coloca e n t r e o f a t o e o l e i t o r .
E s c r e v i este livro talvez m a i s p a r a m i m m e s m o e p a r a
Clarissa (com quem quero ser absolutamente sincero) do
q u e p a r a os o u t r o s , e se o d i v u l g o é l e v a d o p e l a e s p e r a n ç a de
que alguém m a i s possa t i r a r a l g u m proveito de m i n h a s ex-
periências.
Desde que cheguei ao Brasil a t é o dia em que o destino
me bateu o u t r a vez à porta, dando um novo r u m o à m i n h a
vida, m a n t i v e um diário com a r e g u l a r i d a d e que um t e m -
p e r a m e n t o impetuoso e avesso ao método permitiu. Dele
passo a transcrever daqui por diante os trechos que se me
a f i g u r a m mais i m p o r t a n t e s . Deixei de lado as anotações de
c a r á t e r p u r a m e n t e artístico, algumas reflexões sobre a paisa-
gem e vários colóquios que, se bem fossem interessantes em
si, n a d a a c r e s c e n t a r i a m a o e s p í r i t o d a h i s t ó r i a .
16 de maio
de e n r i q u e c e r e à s u a s e d e de m o n u m e n t a l o q u e t i n h a de
m a i s h u m a n o . Obcecado pelos g r a n d e s negócios pôs neles t o -
das as suas forças, deu-lhes todos os pensamentos, t o d a a
alma. Negligenciou de t a l f o r m a a família que a m u l h e r aca-
b o u n o s b r a ç o s de o u t r o h o m e m e a filha, s e m o a m p a r o d o s
p a i s , foi e n v o l v i d a n u m e n r e d o s ó r d i d o e m o r r e u e s v a í d a
em sangue nas mãos d u m a parteira sem escrúpulos.
— Há h o m e n s l o u c o s . . . — d i g o , p e n s a n d o m a i s n o s
meus fantasmas da guerra que no construtor do Megatério.
Seixas me olha com o r a b o dos olhos e r e s m u n g a :
— E v o c ê é um d e l e s . T ã o louco q u e foi se m e t e r n a -
quela embrulhada da E s p a n h a .
— Talvez n ã o fosse loucura.
— Por quê?
— A experiência me serviu de muito. A l g u m a coisa a m a -
dureceu dentro de mim.
— A g e n t e consegue esse a m a d u r e c i m e n t o t a m b é m no
cabo d u m a enxada. P o r falar nisso, como vai o p u l m ã o ? Você
ficou d e a p a r e c e r l á n o c o n s u l t ó r i o . . .
— O D r . E u g ê n i o me e x a m i n o u a s e m a n a p a s s a d a .
— O D r . E u g ê n i o é um c h a r l a t ã o s e m v e r g o n h a .
É deste modo que Seixas d e m o n s t r a a sua afeição às
p e s s o a s : o f e n d e n d o - a s , d i z e n d o - l h e s n o m e s feios o u e n t ã o a t r i -
buindo-lhes vícios e defeitos detestáveis.
Grandalhão, meio encurvado, b a r b a eriçada e aspecto
selvagem, parece à p r i m e i r a vista um ogro devorador de cri-
anças. Creio que nunca t i r o u do corpo essa roupa cor de
chumbo, de calças lustrosas nos fundilhos e nos cotovelos
nem nunca meteu na cabeçorra, para cobrir a juba escura
riscada de prata, outro chapéu senão esse de tipo-carteira,
p r e t o e q u a s e i n f o r m e . P e n s o q u e é o ú n i c o civil em t o d a a
c i d a d e q u e a i n d a u s a b o t i n a s d e e l á s t i c o e u m d o s r a r o s ci-
d a d ã o s q u e c o n s e r v a m n o v o c a b u l á r i o a t i v o p a l a v r a s q u e caí-
r a m em desuso há mais de vinte anos.
Vejo-o a g o r a d e s c a r n a d o e a b a t i d o . E u g ê n i o m e a s s e g u -
r o u q u e seu v e l h o a m i g o n ã o t e m v i d a p a r a m u i t o t e m p o .
T e n t o u levá-lo p a r a u m s a n a t ó r i o o u p a r a u m a c h á c a r a o n d e
ele p u d e s s e r e p o u s a r e f a z e r u m t r a t a m e n t o a d e q u a d o . O h o -
m e m ficou t o d o a b e s p i n h a d o e v o c i f e r o u :
— E q u e m é q u e v a i d a r de c o m e r à m i n h a f a m í l i a en-
quanto eu estiver sem t r a b a l h a r ?
— O r a , d o u t o r — r e t o r q u i u E u g ê n i o — n ó s , os s e u s
amigos, nos e n c a r r e g a m o s disso.
SAGA 193
— C a r i d a d e , h e i n ? Q u a s e q u e t e m a n d o p a r a a q u e l e lu-
gar. C a r i d a d e ! E s s a é m u i t o boa. H a v i a de t e r g r a ç a que
agora, no fim da vida, eu visse D. Dodó e n t r a r na m i n h a
casa com um balaio cheio de comida e a g a s a l h o , assim com
ar de S a n t a Isabel. Comigo não, Genoca!
E a s s i m o Dr. Seixas c o n t i n u a a se a r r a s t a r na s u a ro-
t i n a , b e m c o m o t e m f e i t o n e s t e s ú l t i m o s t r i n t a e cinco a n o s .
T r a b a l h a da m a n h ã à noite e com freqüência é t i r a d o da
cama altas h o r a s da m a d r u g a d a p a r a ir ver algum caso de
emergência. S u a clientela em geral é pobre, quando não mi-
serável, e os seus doentes mais favorecidos da fortuna são
p e q u e n o s e m p r e g a d o s de b a n c o e do c o m é r c i o e v e l h o s f u n -
cionários públicos a p o s e n t a d o s que v i v e m (pelo m e n o s a gen-
te t e m a impressão disso) na cidade baixa. A maioria de
seus clientes, porém, é f o r m a d a de operários de São J o ã o e
Navegantes ou pobres diabos que m o r a m em casebres na
Colônia Africana ou no A r r a i a l da B a r o n e s a . Pelas r u a s es-
curas da ilhota passa às vezes à noite o vulto d u m h o m e m
grande que os moradores da zona quase todos reconhecem
pela tosse e pelo fogo do grosso cigarro.
— O Dr. Seixas n ã o e s t á hoje de b o a veneta.
— Por quê?
— P a s s o u p o r m i m e n ã o m e d i s s e n e n h u m n o m e feio.
Lá se vai o vulto familiar com a m a l e t a na mão, os
passos arrastados. Se é um caso de parto, já da porta da rua
ele c o m e ç a a g r i t a r :
— Mulheres sem v e r g o n h a ! N ã o criam juízo. Vivem pa-
rindo todos os anos. Parecem g a t a s !
No fim de cada mês sua féria é m a g r a . Mal dá para
p a g a r o aluguel da casa, a conta do a r m a z é m , as o u t r a s des-
pesas h a b i t u a i s e p a r a cobrir a nudez da família, que por
sinal deve ser u m a nudez b e m triste, porque t a n t o a mulher
c o m o a f i l h a s ã o c r i a t u r a s m a g r a s , f e i a s e m e l a n c ó l i c a s , de
formas angulosas e bustos rasos como t á b u a .
S e i x a s t o r n a a o l h a r o M e g a t é r i o de c i m a a b a i x o .
— E você t a m b é m e s t á a g o r a envolvido nessa engenho-
ca, n ã o ?
L i m i t o - m e a s o r r i r e o l h a r p a r a o velho, que enrola um
cigarro.
— C o i s a s de c i n e m a — p r o s s e g u e ele. — A r r a n h a - c é u s ,
automóveis, gramofones, rádios, m a n i a s de grandeza. .. Olhe
só aquele idiota do C a m b a r á .
A p o n t a p a r a u m a g r a n d e t a b u l e t a que a b r a n g e oito ja-
194 ERICO V E R Í S S I M O
18 de maio
A r e d a ç ã o de " A v e n t u r a " . S i m p l e s , s ó b r i a e c o n f o r t á v e l .
A luz e s b r a n q u i ç a d a d a s m a n h ã s j o r r a p e l a s l a r g a s j a n e l a s .
E n c o n t r o F e r n a n d a à sua mesa a ler um jornal.
— Bom dia!
— Olá, c a p i t ã o !
A p r o x i m o - m e dela.
— Q u e é q u e há de n o v o ?
— Leia isto.
F e r n a n d a m o s t r a com o dedo u m a coluna do jornal. In-
c l i n o - m e s o b r e o o m b r o d e l a e leio. É o a r t i g o de f u n d o de
"A O R D E M " , firmado com as iniciais G. B. " P r o p a g a n d a Ne-
f a s t a " — é o t í t u l o . "Guardiães da Pátria, sentinelas da or-
dem social e paladinos da grande causa do espírito, não po-
demos ficar indiferentes ante essa nefasta propaganda bol-
chevista que se vem insinuando através de revistas, livros e
filmes tendentes a abalar os sagrados alicerces da sociedade
cristã. .." M a i s a d i a n t e : "Chamamos a atenção da polícia para
certas revistas intituladas de educação infantil que publicam
SAGA 197
C a m i n h o p a r a a j a n e l a . O G u a í b a e s t á s e r e n o s o b o sol.
S e r e n a s t a m b é m e s t ã o a s m o n t a n h a s q u e a z u l a m , l á lon-
ge. Ê que elas não participam das angústias h u m a n a s . Os
Pireneus se m a n t i n h a m impassíveis enquanto em t e r r a s de
E s p a n h a os homens se espedaçavam uns aos outros. Vêm-me
à memória as palavras daquele camponês catalão: "A terra
é b o a , os h o m e n s é q u e s ã o m a u s " .
C o n t e m p l o a z o n a do G a s ó m e t r o : foi ali q u e a c i d a d e
começou há m a i s ou menos duzentos anos. P o n h o - m e a ima-
g i n a r os c a s e b r e s d o s c a s a i s a ç o r i a n o s , a r e f l e t i r s o b r e o
m i s t é r i o d o t e m p o e d a s c r i a t u r a s , a p e n s a r n a p a s s a g e m dos
a n o s , no f l u x o e r e f l u x o de s o n h o s e i d é i a s , t r a b a l h o s , sofri-
m e n t o s , a m b i ç õ e s e e s p e r a n ç a s q u e , c o m o e s c o a r de dois
séculos, r e s u l t a r a m neste estado de coisas de que o Megatério
e a l u t a de F e r n a n d a s ã o s í m b o l o s p u n g e n t e s . V i s l u m b r o o
q u e h á d e f a l s o n o m u n d o e m q u e a g o r a n o s m o v e m o s e fico
com a e s t r a n h a i m p r e s s ã o de que, b e m como me disse o Dr.
Seixas, nós somos crianças que estão brincando de gente
g r a n d e . F a l t a - n o s tempo n a s n o s s a s c a s a s , n a s n o s s a s cida-
des, nos nossos desejos, na nossa memória, na nossa alma.
S e n t o - m e à m e s a . C o m e ç o a t r a b a l h a r na i l u s t r a ç ã o d u -
m a h i s t ó r i a q u e N o e l e s c r e v e u p a r a a r e v i s t a . T r a t a - s e , como
era de esperar, de um conto de fadas. Um menino louro e
sonhador que consegue e n t r a r m i l a g r o s a m e n t e n u m livro de
h i s t ó r i a s m a r a v i l h o s a s , c o m g r a v u r a s c o l o r i d a s , e p a s s a a vi-
v e r d e n t r o dele, d e m i s t u r a c o m a s c l á s s i c a s p e r s o n a g e n s
B r a n c a de N e v e , a B e l a A d o r m e c i d a , o G a t o de B o t a s . . .
— Em q u a n t a s cores queres as ilustrações? — g r i t o pa-
ra a F e r n a n d a .
— De q u a n t a s p r e c i s a s ? — r e s p o n d e - m e ela lá do o u t r o
lado desta g r a n d e e clara sala.
— De cinco.
— N ã o seja perdulário. P e n s e na crise e contente-se com
três.
Solto um suspiro de resignação.
— Você manda.
P o n h o - m e a d e s e n h a r o m e n i n o l o u r o d i a n t e do l i v r o de
h i s t ó r i a s . A o c a b o d e a l g u n s m i n u t o s F e r n a n d a e r g u e a ca-
beça e p e r g u n t a :
— Não sabe trabalhar sem assobiar?
— E u e s t a v a a s s o b i a n d o ? N e m dei p o r isso.
— S i m s e n h o r . E p o r s i n a l e r a o " B o l e r o " de R a v e l .
Curioso. O Bolero. As trincheiras do E b r o d u r a n t e os
SAGA 199
d i a s d a q u e l e p a v o r o s o s e t e m b r o . S i n t o u m leve m a l - e s t a r .
A f a s t o de m i m o esboço começado, t o m o d u m novo papel e,
furiosamente, como se de repente o espírito de um a r t i s t a
diabólico se tivesse apoderado de m i m , desenho em t r a ç o s
n e r v o s o s e s t e q u a d r o : S e b a s t i a n e V a s c o a r r a s t a n d o pela
p o e i r a o c o r p o d e Á x e l c o m a s p e r n a s d e c e p a d a s . E n ã o sei
por que me sinto t o m a d o d u m súbito aborrecimento por Noel.
A vida e s t á cheia de d r a m a s e m i s é r i a s e ele se o b s t i n a em
escrever doces histórias impossíveis, p r o m e t e n d o às crianças
um mundo que elas nunca hão de encontrar na realidade.
R a s g o o desenho e a t i r o os pedacinhos de papel na cesta ao
lado da mesa.
— O N o e l n ã o v e i o ? — p e r g u n t o , n e m eu m e s m o sei p o r
quê.
— V e i o , s i m — r e s p o n d e F e r n a n d a , f a z e n d o c o m a ca-
beça u m s i n a l n a d i r e ç ã o d e u m a d a s p o r t a s . — E s t á m e t i d o
lá dentro com o P a d r e Rubim.
— A e s t a h o r a da m a n h ã ?
— Q u e é q u e v o c ê q u e r ? A fé m a d r u g a . . .
Noel e s t á convertido ao catolicismo. Chegou à igreja se-
guindo um curioso t r a j e t o : Contos de F a d a s — G. K. Ches-
t e r t o n - M a r i t a i n . O P a d r e R u b i m foi o s e u g u i a .
— Q u e é q u e v o c ê diz à c o n v e r s ã o de N o e l ? — p e r g u n t e i ,
faz p o u c o s d i a s , à F e r n a n d a .
— D i g o q u e fé r e l i g i o s a é a s s u n t o í n t i m o . De r e s t o , a c h o
que s e m fé em alguém ou a l g u m a coisa não se pode viver
com serenidade e alegria.
— E a c h a que Noel encontrou paz em D e u s ?
— Acho. Seu espírito e s t a v a t a l h a d o p a r a o catolicismo.
A p r i n c í p i o t e n t e i levá-lo p a r a o u t r o s c a m i n h o s , n ã o p o r q u e
detestasse a religião, m a s simplesmente porque julguei que
ele pudesse e n c o n t r a r na simples aceitação da vida de s u a s
l u t a s e n u m d e s e j o de b e l e z a e h a r m o n i a a c o m p r e e n s ã o de
si m e s m o e a p a z de e s p í r i t o q u e t o d o s n ó s b u s c a m o s .
— Vocês são diferentes. A g u a e azeite.
— R a z ã o b a s t a n t e p a r a que cada um fique d e n t r o de seu
c o n t i n e n t e . E de r e s t o — p r o s s e g u i u e l a c o m a n i m a ç ã o — eu
q u e v i v o a f a l a r c o n t r a a i n t o l e r â n c i a , c a i r i a em r i d í c u l a con-
tradição se me mostrasse intolerante nesse particular.
V i m depois a s a b e r que Noel vive a t o r m e n t a d o à idéia
de que sua m ã e leva no Rio u m a vida dissoluta e escanda-
losa, n u m a g r o t e s c a p r o s t i t u i ç ã o , a e n c h e r d e p r e s e n t e s g i g o -
lôs j o v e n s e e s p o r t i v o s . N ã o f a l t a q u e m , p o r m e i o d e c a r t a s
200 ERICO VERÍSSIMO
— A h ! O s e n h o r é o m o ç o q u e e s t e v e l u t a n d o na E s p a -
nha?
Fica a me contemplar, meio abstrato.
E depois i n g e n u a m e n t e :
— N ã o é c o m u n i s t a , é?
— N ã o , senhor. Sou desenhista.
Ele ri, m o s t r a n d o os dentes desiguais e amarelados. Mas
é um sorriso sem malícia. Sacudindo o dedo no ar, como um
bondoso professor que ameaça, por p u r a brincadeira, o seu
aluno predileto, ele d i z :
— Eu p r e c i s o f a l a r c o m o s e n h o r . . . P r e c i s o m e s m o f a -
l a r muito c o m o s e n h o r .
— Quando quiser, p a d r e . . .
— E s t á b e m . Q u a l q u e r d i a eu a p a r e ç o . . . B o m . C o m li-
cença, v o u a n d a n d o .
Q u a n d o ele s a i c o m N o e l , F e r n a n d a fica o l h a n d o p a r a a
porta.
— Um s u j e i t o d e c e n t e , s i n c e r o e d u m a p u r e z a r a r a —
c o m e n t a ela. — O m a l do c a t o l i c i s m o é q u e p a r a c a d a P a d r e
Rubim existem duzentos Gedeões.
4
22 de maio
P o u c o d e p o i s d o meio-dia. V o u l e v a r C l a r i s s a a t é a p o r t a
d o colégio o n d e ela leciona.
— J o ã o z i n h o e M a r i a — m u r m u r a ela, o l h a n d o p a r a as
nossas s o m b r a s na calçada.
— Q u a l ! A p e n a s C l a r i s s a e V a s c o , d o i s s e r e s de c a r n e
e o s s o . N a d a d e c o n t o s d e f a d a s . D e i x e m o s isso p a r a o N o e l .
— Oh, Vasco, a gente não pode n e m b r i n c a r ?
T o m o - l h e d o b r a ç o c a r i n h o s a m e n t e e s u s s u r r o - l h e a o ou-
vido:
— Não precisamos brigar. Dentro de t r ê s meses estare-
mos casados e vamos t e r o resto da vida para as nossas rixas.
E é b e m possível que um dia a m a n h e ç a s e s t r a n g u l a d a .
Clarissa ergue os olhos p a r a mim, sorrindo.
— N ó s n ã o v a m o s ser como os outros, não é? — per-
g u n t a e l a f r a n z i n d o o n a r i z e p i s c a - p i s c a n d o de leve.
— Que outros?
— Por exemplo... o Pedrinho e a Ernestides.
— Claro que não.
— Vivem como cão e gato.
P a r a m o s a u m a vitrina onde se expõem objetos de cerâ-
mica.
— Que lindo v a s o ! — exclama Clarissa, m o s t r a n d o com
o dedo. — Q u a n t o c u s t a r á ?
— V a m o s embora. C o m p r a r é o verbo que vocês mulhe-
res m a i s u s a m .
P u x o - a pelo b r a ç o . E n t r a m o s e m o u t r a r u a .
— C l a r i s s a . . . se tu soubesses o que eu sei. ..
— Q u e é q u e tu s a b e s ?
— U m a coisa que eu vi.
— Q u e é ? D i z logo, V a s c o !
— E u n ã o i a t e dizer. É u m a s s u n t o d e s a g r a d á v e l . M a s
204 ERICO V E R Í S S I M O
26 de maio
27 de maio
— Serve.
E l a descerra os lábios n u m sorriso que se esforça por
ser ingênuo. É morena e d u m bonito agrestemente provocan-
t e . P e n a é q u e n ã o s a i b a s e p i n t a r . E s p a l h a o rouge s e m a r t e
n e m m e d i d a e t e m o m a u g o s t o d e p a s s a r crayon n a s p á l p e -
bras.
— Bom. Já sabes o m e u endereço. Edifício Glória, apar-
t a m e n t o 19.
— E s t á combinado.
— Okay.
O u t r a vez o sorriso de Louise Rainer. (A ú l t i m a vez que
a vi, f a z u m a n o , e r a J o a n C r a w f o r d ) .
O automóvel se vai. Fica nas m i n h a s mãos um perfume de
Nuit de Noel. N ã o sei q u e m a u p r e s s e n t i m e n t o me e m b a c i a
o s p e n s a m e n t o s q u a n d o o s foco n e s s a v i s i t a .
O m u n d o é m u i t o e n g r a ç a d o . C h i n i t a diz okay e s e g u e ,
n a s r o u p a s e nas atitudes, os figurinos de Hollywood. O avô
dela, u m c a b o c l o a n a l f a b e t o e r u d e , c o m e ç o u a v i d a c o m o
ladrão de cavalos e creio que nunca chegou a e n t r a r n u m
cinema. Ao m o r r e r deixou p a r a o filho único, Zé Maria, d u a s
léguas de campo e alguns milhares de cabeças de gado. Va-
dio e i n á b i l , a m i g o d a c i d a d e , Z é M a r i a foi a o s p o u c o s p e r -
dendo a fazenda, n u m a sucessão de m a u s negócios. Com o
a u x í l i o da m u l h e r — c r i a t u r a e c o n ô m i c a e t e n a z — c o n s e g u i u
mais t a r d e refazer-se financeiramente e estabelecer-se em
J a c a r e c a n g a c o m u m a m o d e s t a e p e q u e n a c a s a d e secos e
molhados. Foi lá que o conheci em m a n g a s de camisa; a t r á s
do balcão, pitando cigarros de palha e discutindo política ou
rinha-de-galos com os fregueses. Lembro-me de Chinita, dos
tempos em que ela ainda u s a v a carpins e fita nos cabelos e
ia passear com as a m i g a s na calçada da praça, nas t a r d e s de
r e t r e t a . Manoel, o irmão, a n d a v a p o r esse t e m p o pelas salas
de bilhar, com o chapéu no cocuruto e um ar arrogante. E s -
t a v a nessa idade impossível em que o r a p a z engrossa a voz
e o b u ç o e p e n s a q u e é d o n o do m u n d o só p o r q u e já f u m a
insolentemente o seu cigarro na frente dos mais velhos e em
m a t é r i a de sexo já u s a o a r t i g o legítimo e não m a i s o seu
melancólico sucedâneo manual.
Certo dia o pai de Chinita ganhou u m a sorte g r a n d e e
resolveu m u d a r de vida. Veio com a família m o r a r em P o r t o
Alegre, onde construiu um palacete no bairro residencial e
passou a levar g r a n d e vida. Chinita e n t r o u na sociedade, me-
teu-se em bailes, casas-de-chá elegantes, p e n u m b r o s a s e dis-
208 ERICO V E R Í S S I M O
29 de maio
Dez d a m a n h ã . N o v a v i s i t a a o D r . S e i x a s . D . Q u i n o t a ,
a m u l h e r dele, é q u e m me a b r e a p o r t a : e s t á c o m os olhos
pisados — choro ou noite mal d o r m i d a ? Conta-me que o ma-
rido passou u m a noite horrível, com m u i t a falta de ar.
Aproximo-me da cama, seguro uma das mãos do doente
e i n c l i n o - m e s o b r e éle. S e i x a s f i t a e m m i m o s o l h o s a n s i a d o s
e balbucia:
— Sonhei de novo com os elefantes pretos.
Sorrindo lhe digo:
— Se e s t a v a m de t r o m b a e r g u i d a é sinal de boa sorte.
Ê que o senhor vai ficar bom.
Ele sacode a cabeça sobre o travesseiro, d u m lado p a r a
outro. Sento-me ao lado da cama e quando D. Quinota e n t r a
no compartimento contíguo, sussurro:
— Sabe que tenho u m a teoria sobre o seu sonho?
Seixas me olha: Seus olhos b r i l h a m e é com u m a volta
d a v e l h a e n e r g i a a g r e s s i v a q u e ele m e a t i r a e s t a s p a l a v r a s :
— N ã o me venhas com essas bobagens de Freud, que eu
SAGA 209
n u n c a a c r e d i t e i n i s s o . P a s s e i m u i t o b e m t r i n t a e cinco a n o s
sem precisar desse charlatão.
F a ç o u m gesto conciliador.
— Escute a q u i . . . Lembra-se daquele nosso encontro, na
véspera de minha partida para a E s p a n h a ?
— No corredor da casa da F e r n a n d a . . . me lembro, sim.
— O s e n h o r se q u e i x o u de d o e n t e e d i s s e q u e os h o m e n s
deviam fazer como os elefantes que se escondem p a r a mor-
rer. N ó s ficamos imaginando o que seria u m a colônia de
velhos moribundos a esperar a morte, u n s com v e r g o n h a dos
o u t r o s . . . É que o s e n h o r no fundo t e m o seu orgulho e pre-
feria que ninguém o visse d o e n t e . . . Acha que está incomo-
dando os outros, q u e . . .
C a l o - m e t e m e n d o s e r c r u e l . S i n t o q u e n ã o d e v i a t e r co-
meçado. Seixas e s t á em silêncio e nos seus olhos de escleró-
tica a m a r e l a d a b r o t a m lágrimas.
Ele volta a cabeça p a r a o outro lado e e n x u g a disfarça-
d a m e n t e o s o l h o s c o m a p o n t a d o lençol. F i c a p o r a l g u n s i n s -
t a n t e s com a cabeça v i r a d a p a r a a parede. Depois, t o r n a a
me olhar de frente e diz:
— E s t o u escangalhado e t e n h o sofrido muito. F a z dois
dias que vivo à c u s t a de injeções. Eu já disse p a r a o E u g ê n i o
q u e n ã o a d i a n t a . É m e l h o r e u i r e m b o r a d u m a vez. M e l h o r
para m i m e p a r a os outros.
Quero dizer a l g u m a coisa m a s não encontro n e n h u m a
p a l a v r a de e s p e r a n ç a ou consolo.
O Dr. Seixas prossegue:
— A v i d a é t r i s t e , a m a r g a e s a f a d a . Há m u i t a c o i s a r u i m
neste mundo. — F a z u m a pausa. Seu rosto se a n i m a um
p o u c o . — M a s você q u e r s a b e r d e u m a c o i s a ? S e e u p u d e s s e
c o m e ç a r d e n o v o c o m v i n t e a n o s . . . n ã o s e i . . . a c h o q u e fa-
zia m a i s o u t r a t e n t a t i v a . — E p o r fim, c o m v o z c a n s a d a :
— Sou um velho m u i t o d e s m o r a l i z a d o . .
E s o r r i u m i n e x p l i c á v e l s o r r i s o , q u e fica q u a s e e n c o b e r t o
pelos b i g o d õ e s a m a r e l e c i d o s pelo f u m o .
Q u a t r o h o r a s d a t a r d e . N o a p a r t a m e n t o d e Chinita. Mó-
veis f i n o s m a s d e m a u g o s t o . C o n f o r t o n o v o - r i c o . B i b e l ô s
d e s s e engraçadinho c o n v e n c i o n a l e f ú t i l .
C h i n i t a m e r e c e b e m e t i d a n u m robe-de-chambre d e s e d a
azul. Q u a n d o e l a c a m i n h a p a r a m i m , a p e r n a m e t i d a e m
meia de seda cor-de-carne se escapa pela a b e r t u r a do roupão
210 ERICO V E R Í S S I M O
e c o m ela v e m u m p e d a ç o d e c o x a n u a e m o r e n a . D o c e e
m o r n o choque. Fico com a v a g a desconfiança de que a his-
t ó r i a do r e t r a t o n ã o p a s s a d u m p r e t e x t o . .. P o n h o o rolo de
p a p e l e a c a i x a de t i n t a s em c i m a da m e s a e de r e p e n t e me
ocorre o e s t r a n h o d e s t a situação. P e n s o n u m a t a r d e de re-
t r e t a e m J a c a r e c a n g a . A b a n d a d o 8.° R e g i m e n t o d e I n f a n -
taria tocando um "fox" "O Mano de Minas", a Chinita de
treze anos, a m o v e r as p e r n a s esbeltas e muito queimadas,
saltitando na calçada com as amiguinhas, em passo de dança.
E u , c o m a r e s d e g ê n i o , o s o l h o s n o céu, c a m i n h a n d o com
a n d a r duro ao lado de Almiro C a m b a r á , muito preocupados
a m b o s com a existência da alma, os mistérios da m o r t e e os
livros de F l a m m a r i o n .
Sento-me numa poltrona. Diálogo tolo.
— E n t ã o ? Bem instalada, não?
— P o i s é.
Silêncio. P a s s e i o o o l h a r e m t o r n o . V e j o n a p a r e d e u m a
fileira de r e t r a t o s de a r t i s t a s de cinema. Clark Gable sorri
p a r a m i m maliciosamente: decerto t a m b é m já desconfiou de
a l g u m a coisa. M a s L o u i s e R a i n e r l á e s t á c o m a q u e l e s e u a r
de espcsa ingênua que ainda acredita que os bebês são tra-
zidos pelas cegonhas.
A o l a d o d e l a , G r e t a G a r b o d e p e s c o ç o e s t i c a d o e lábios
de comissuras m u i t o caídas e n t r e c e r r a as pálpebras com ar
de quem diz: "I w a n t to be alone".
Chinita:
— T e m sabido de J a c a r e c a n g a ?
— Não. Não tenho.
— Quer fumar?
— Aceito.
Q u a n d o ela s e i n c l i n a p a r a a f r e n t e p a r a m e o f e r e c e r a
c i g a r r e i r a , a s p o n t a s d o r o u p ã o e s c o r r e g a m p a r a o c h ã o , dei-
xando-lhe as coxas à m o s t r a . E l a n ã o se dá p r e s s a em escon-
der essa parte dos m e m b r o s inferiores que u m a misteriosa
convenção d e t e r m i n a que só se pode m o s t r a r com c e r t a im-
punidade nas praias de banho.
A c e n d o o i s q u e i r o e a p r o x i m o - o do c i g a r r o de C h i n i t a .
T i r a m o s a s p r i m e i r a s b a f o r a d a s e m silêncio. U m a m u l h e r re-
vela a s u a r a ç a no jeito como leva o c i g a r r o aos lábios. Em
v ã o t e n t o descobrir nesta r a p a r i g a a chinoca rude que pita
u m c i g a r r o d e p a l h a s e n t a d a n u m cepo n a frente d o rancho.
A neta do ladrão de cavalos t e m inegavelmente u m a certa
elegância. E belas pernas t a m b é m .
SAGA 211
— C o m o se foi de E s p a n h a ? — i n d a g a e l a .
— B e m . . . Voltei vivo, como vê.
— Foi ferido alguma vez?
— Fui.
— Onde?
— No setor do Ebro.
— Hem?
Chinita ergue a m b a s as sobrancelhas e e n r u g a a t e s t a
numa expressão de surpresa. Pensará que setor do E b r o é
alguma p a r t e do corpo ou que eu estou u s a n d o um eufemis-
mo para esconder alguma região vergonhosa da anatomia
humana?
— F u i ferido d u a s vezes na p e r n a e u m a no pulmão.
— No p u l m ã o ? Credo! Doeu m u i t o ?
— Não.
D i á l o g o ocioso. N o f i m d e c o n t a s e u v i m p a r a p i n t a r u m
retrato...
— B o m . Como é que você q u e r esse r e t r a t o , C h i n i t a ?
C a b e ç a só ou c o r p o i n t e i r o ?
— Que é que você a c h a ?
— Cabeça.
— Okay.
Desenrolo o papel de desenho. Escolho p a r a Chinita u m a
p o s i ç ã o e m q u e a luz l h e b a t a e m c h e i o d u m l a d o d o r o s t o .
T o m o do l á p i s e c o m e ç o .
— Como vai a Clarissa?
— Bem, obrigado. Mas não se mexa agora.
P a s s a m - s e os minutos. Creio que o q u a r t o vai ficando
mais quente à medida que o t e m p o passa. Coados pela altura
chegam abafados até nós os ruídos da rua.
C h i n i t a f a z u m a o b s e r v a ç ã o q u e m e d e s c o n c e r t a u m pou-
co:
— Vasco, você e s t á d e s e n h a n d o as m i n h a s p e r n a s ou a
minha cara?
E r g o vivamente os olhos.
— É proibido olhar p a r a isso? — indago, meio brusco.
— Claro que não. Ficou queimado?
— Ora...
E m dez m i n u t o s t e n h o o e s b o ç o p r o n t o . F i c o u h o r r í v e l .
Chinita se ergue e vem olhar. Posta-se a t r á s de mim, passa
a m ã o p e l o m e u o m b r o e eu s i n t o c o n t r a o b r a ç o a r i j e z a
elástica de seu corpo.
— P o i s e u a c h o q u e ficou b e m . . .
212 ERICO V E R Í S S I M O
30 de maio
c a r i n h o , t r a n ç o u - l h e a s m ã o s s o b r e o peito., E r g u e u o s o l h o s
p a r a m i m e disse simplesmente:
— O s u j e i t o m a i s d e c e n t e q u e eu c o n h e c i .
C a m i n h o a t é a janela. E u g ê n i o se a p r o x i m a de m i m e
diz:
— Vou avisar a mulher.
Sem me voltar, digo-lhe:
— P o r que não a deixa d o r m i r ? Seja como for não há
m a i s r e m é d i o e é m e l h o r q u e ela r e c e b a o c h o q u e q u a n d o
estiver mais repousada.
— Você t e m razão.
F i c a m o s a m b o s o l h a n d o a n o i t e e m silêncio. U m silêncio
cheio de a n g ú s t i a e de interrogações. L e m b r o - m e de nossas
m a d r u g a d a s n a s trincheiras. Que p e n s a m e n t o s e s t a r ã o cru-
zando a m e n t e de E u g ê n i o ?
— U m a l u t a t ã o g r a n d e — m u r m u r a ele — p a r a a c a b a r
nisso...
S a c u d o a c a b e ç a . V e m de l o n g e o c a n t o de um g a l o e o
rolar dum bonde solitário.
— Valerá a pena? — pergunto, mais para mim mesmo
do que para Eugênio.
— De q u a l q u e r m o d o — r e s p o n d e ele — a g e n t e t e m de
i r a t é o fim.
— Mas onde é o fim?
— A l i . . . — M o s t r a o c a d á v e r . — Ou m a i s a l é m . —
F a z um sinal p a r a a noite. — Quem sabe?
— Ê indispensável que exista um m a i s a l é m ?
Eugênio hesita.
— N ã o é d o l o r o s a a c e r t e z a de q u e n u n c a , n u n c a m a i s
vamos t o r n a r a encontrar as pessoas amadas que m o r r e m ?
O l h a n d o p a r a a l a n t e r n a d e luz a m a r e l a , n a p o n t a d o
m a s t r o d u m n a v i o , l á longe n o c a i s , r e p l i c o :
— E n ã o s e r á i n q u i e t a n t e a i d é i a de q u e a n o s s a cons-
ciência v a i c o n t i n u a r e com ela possivelmente o sofrimento,
a d ú v i d a , o d e s e j o de p e r f e i ç ã o ?
Silêncio. S i n t o n o o m b r o a p r e s s ã o d o s d e d o s d e E u g ê n i o .
E o u ç o a s u a v o z j u n t o de m e u o u v i d o .
— Q u e é q u e a g e n t e s a b e ? E, d e p o i s , n ã o f a z n e n h u m
mal t e r esperança.
R u í d o s n o q u a r t o . E n t r a m dois e n f e r m e i r o s p a r a l a v a r
e v e s t i r o c o r p o . E u g ê n i o faz m e i a - v o l t a e se a p r o x i m a deles
p a r a d a r instruções.
O l h o p a r a o céu fosco da n o i t e e i m a g i n o o r e b a n h o de
SAGA 217
31 de maio
5 de junho
Dez d a m a n h ã . M i s t u r o n a p a l h e t a d o i s t o n s d e azul p a r a
p i n t a r os o l h o s de R o b e r t a E r a s m o . I m ó v e l e r e p o u s a d a , o
b u s t o e r e t o , e l a e s t á p o s a n d o p a r a m i m , s e n t a d a n u m a ca-
deira de j a c a r a n d á de respaldo alto. T e m um belo sorriso
q u e l h e a c e n t u a os z i g o m a s e o o b l í q u o d o s o l h o s . N ã o foi
fácil o b t e r o t o m e x a t o d e s e u s cabelos, d u m c a s t a n h o e s c u r o
quase negro, com reflexos de cobre. Já estou pensando na
dificuldade que vou e n c o n t r a r quando quiser t r a z e r p a r a a
t e l a o m a r f i m p á l i d o d e s u a pele. T e m e s t a u m a q u e n t e pai-
SAGA 219
— Se o u v i u f a l a r a l g u m a c o i s a — r e s p o n d e e l a — n ã o
deixa perceber isso. Talvez não t e n h a t e m p o p a r a cuidar des-
ses assuntos. Vive d e m a s i a d a m e n t e ocupado com os negócios
da c o m p a n h i a de petróleo e n a s h o r a s de folga anda a t r á s
das caixeirinhas do Sloper ou e n t ã o vai p a r a as casas de c h á
ou p a r a a arcada da Galeria Chaves flertar com essas me-
n i n a s d e v i n t e a n o s q u e t ê m u m f r a c o p e l o s c a v a l h e i r o s cin-
qüentões com cabelos grisalhos n a s frontes. . .
— Tenho outra teoria.
— Q u a l é?
— Ele sabe e finge n ã o saber. U m a vez que t u d o se m a n -
t é m d e n t r o de limites m a i s ou menos discretos. . . p a r a que
fazer b a r u l h o ? Nele o comodismo e a ambição parecem do-
minar-lhe o a m o r - p r ó p r i o de h o m e m . E, depois, sente orgulho
da esposa. É-lhe agradável a idéia de ser apontado como
marido de u m a mulher a d m i r a d a e cobiçada.
R o b e r t a franze a testa, séria. Seu olhar p o r um instante
é inescrutável. C o m o lhe fica b e m e s t a e x p r e s s ã o !
— M a s v o c ê e s t á f a l a n d o c o m o se houvesse mesmo um
amante...
— E não h á ?
F i t o os olhos intensamente no rosto dela procurando os
efeitos de m i n h a s p a l a v r a s . Vejo a fisionomia s e r e n a e m a -
d u r a de alguém seguro de si mesmo e dos outros.
— Q u e é que você p e n s a ?
Encolho os ombros.
— Penso que não há razão para que não h a j a . . .
— E por quê?
— P o r q u e você é bonita, t e m um corpo que suponho
cheio de desejos e p a r e c e n ã o t e r e n c o n t r a d o no c a s a m e n t o
a felicidade que e s p e r a v a . . . e merecia.
— Lírico?
— N ã o . Cínico.
— E a p e s a r de t e r idéias como essa vai se c a s a r ?
— Acontece que não tenho idéias padronizadas e essas
n ã o s ã o p r o p r i a m e n t e o s minhas idéias. Na m i n h a opinião
c a d a p e s s o a t e m a s u a r e a l i d a d e . A s u a é . . . e s s a . A d e Cla-
rissa, p o r exemplo, já é diferente. Todos nós somos ao mesmo
tempo muito parecidos e muito diferentes u n s dos outros. Na
Catalunha encontrei um velho que gostava apaixonadamente
de comer caracóis. Eu compreendo e justifico esse gosto den-
t r o da realidade daquele catalão, m a s n e m p o r isso me sinto
inclinado a comer caracóis.
222 ERICO V E R Í S S I M O
R o b e r t a s o r r i , e r g u e u m p o u c o a c a b e ç a e s o l t a u m a leve
baforada para o teto.
— S e x o e c a r a c ó i s da C a t a l u n h a . V o c ê é i m p a g á v e l . F i -
q u e c e r t o d e q u e e u a c h o u m a delícia e n c o n t r a r d e v e z e m
quando u m a pessoa com as suas idéias.
— E m o n t a d o s n u m caracol lá v a m o s nós fugindo do
assunto. A sorte é que as lesmas se a r r a s t a m muito devagar.
— Faço u m a pausa intencional. — E n t ã o . . . quer a t a c a r os
f u g i t i v o s e o b r i g á - l o s a v o l t a r ao a s s u n t o ?
— P o r q u e n ã o ? S e a l g u é m f u g i u foi v o c ê . E s t o u o n d e
estava. Como é que você explica o seu c a s a m e n t o b u r g u ê s
à luz d e s s a s i d é i a s c í n i c a s e m t o r n o d o q u e v o c ê c h a m a a
minha "realidade?"
— Ê que não acredito n u m a solução única, n u m a salva-
ção em m a s s a m a s sim em soluções e salvações individuais.
— E q u e m foi q u e l h e d i s s e q u e n o c a s a m e n t o n ã o e n -
contrei a felicidade que e s p e r a v a ?
— D e s c o b r i . T e n h o o c o m p l e x o de S h e r l o c k H o l m e s .
— D e d u ç ã o ou i n d u ç ã o ?
— Ambas.
— Pensei que Sherlock Holmes só se interessava em
crimes.
— Mas há c r i m e . . . E s t r a n g u l a m e n t o de desejos, dilace-
r a m e n t o de ideais, u m a espécie m u i t o sutil de infanticídio:
sonhos que são asfixiados antes mesmo de nascer.
— Você é romântico.
— N ã o nego, m a s isso n ã o altera a situação.
— S e n h o r detetive, p r e c i s o d e u m o u t r o detetive p a r a
decifrar os seus enigmas.
— Q u e r que eu fale c l a r o ?
— N ã o lhe peço o u t r a coisa. Diga a que conclusão che-
gou a meu respeito. E s t o u curiosíssima.
E de repente eu t e n h o consciência duma situação singu-
lar em que a f r a n q u e z a chegou p a r a d o x a l m e n t e a n t e s da fa-
miliaridade.
— Talvez seja melhor não falar.
— A g o r a é t a r d e . V o c ê já m e t e u o o m b r o na p o r t a . . .
fica feio d e s i s t i r , n ã o a c h a ? E d e r e s t o . . . n ã o s o m o s a m i g o s ?
— F a l t a - m e saber se depois disto continuaremos amigos
como antes.
— T a l v e z m a i s . A s l i m i t a ç õ e s d a h i p o c r i s i a e d a s con-
venções sociais me causam irritação. Se as pessoas pudessem
ser sinceras ao menos aos s á b a d o s . . .
SAGA 223
U m a pausa breve.
— E s t á bem, — concluo. — Você, o seu m a r i d o , a N o r m a
e o A n t o n i u s f o r m a m o q u e eu c h a m o de " q u a r t e t o d o s d e -
sencontros". C a d a qual toca a sua música p a r a seu lado, n u m a
espécie de a u t a r q u i a espiritual. N ã o são u m a família no sen-
tido patriarcal, m o r a m apenas na m e s m a casa e u s a m o mes-
mo nome. Estou exagerando?
R o b e r t a a m a s s a a p o n t a d o c i g a r r o n o cinzeiro, a p e r -
t a n d o os olhos à fumaça que lhe sobe espiralada p a r a o rosto.
— Continue.
— A n e n h u m a d a s d u a s p a r t e s convém o divórcio, mes-
mo porque não se aborrecem nem se odeiam suficientemente
p a r a isso. Há a i n d a o p r o b l e m a dos filhos. D e p o i s . . . o Dr.
Aldo t e m e que a situação de divorciado lhe prejudique a bela
c a r r e i r a social e financeira. No fundo, ainda não dominou
as a m b i ç õ e s e e s p e r a n ç a s p o l í t i c a s . A l é m do m a i s , ele a r e s -
peita e admira. Você não o respeita, não o a d m i r a n e m o
ama...
R o b e r t a me olha com olhos vagos por um instante.
— Q u a n t o à N o r m a . . . Bom, você deu a ela t u d o que
provavelmente n ã o lhe d e r a m q u a n d o você t i n h a a idade
d e s s a m e n i n a . A c o n s c i ê n c i a de s e u c o r p o , a l i b e r d a d e de
idéias e de movimentos. E l a lê os livros que deseja, t e m as
a m i g a s e os a m i g o s q u e e s c o l h e e v o c ê p o r p r i n c í p i o e s e u
m a r i d o p o r c o m o d i s m o n ã o i n t e r f e r e m n a v i d a dela. P o r
que é que está sorrindo?
— N a d a . Ê que eu n u n c a imaginei que os E r a s m o es-
tivessem sendo objeto de t ã o cuidadosa análise.
— V o c ê me f o r ç o u a f a l a r . . .
— Continue. Estou gostando.
— Ainda há mais. N o r m a tem ciúme da mãe.
— Ciúme?
— Ê que quando a m b a s saem j u n t a s os homens olham
de preferência p a r a você.
R o b e r t a se ergue, aproxima-se do cavalete, contempla
o seu retrato incompleto e m u r m u r a :
— Pode ir f a l a n d o . . .
— Antonius... bom... o rapaz...
E l a se volta para mim,
— Q u e é que há com ele?
Hesito.
— D e v o q u e b r a r o s i g i l o do c o n f e s s i o n á r i o ?
— N ã o acredito que o A n t o n i u s se t e n h a confessado.
224 ERICO V E R Í S S I M O
— Você s a b e . . . N ó s c o n v e r s a m o s às vezes.
— E ele lhe disse a l g u m a coisa. . . a m e u respeito?
— N a d a de m u i t o s é r i o . . . Confessou a p e n a s q u e fica de
c e r t o m o d o o f e n d i d o q u a n d o e n c o n t r a o q u e ele c h a m a d e
" O team d e e u n u c o s d a m a m ã e " . D i s s e i s s o c o m u m a c e r t a
ironia entre a m a r g a e esportiva. Referia-se à sua e s c o l t a . . .
— Que escolta?
— Esses rapazinhos espigados e vagamente homosse-
x u a i s q u e a c e r c a m , q u e a a c o m p a n h a m a o t e a t r o o u à s ca-
s a s de chá, que lhe dizem galanteios, que lhe elogiam os ves-
tidos, lhe t r a z e m livros de A n d r é Gide, c o m e n t a m p i n t u r a s
de Matisse e recitam versos surrealistas em francês.
R o b e r t a t o r n a a sentar-se. Desconfio que me estou por-
t a n d o r u d e m e n t e c o m ela. Q u a n t o s a n t e p a s s a d o s c a m p o n e s e s
serão responsáveis por este m e u gesto de f r a n q u e z a ? Seja
c o m o for, n ã o m e a r r e p e n d o , e , j á q u e c o m e c e i , s ó m e r e s t a
uma alternativa — continuar.
— Que é que Antonius lhe disse deles?
— Parece que já ouviu alguém comentar maliciosamen-
te a história e teve de b r i g a r . . . Ouviu decerto entre os
a m i g o s d o clube a l g u m c o m e n t á r i o m a l i c i o s o . V o c ê c o m p r e -
ende. Ele é esportivo, campeão de n a t a ç ã o . U s a cabelo à m o -
da dos oficiais p r u s s i a n o s e t e m o delírio da velocidade. Vai
às a u l a s de catch e u s a e a b u s a do a d j e t i v o macho. N ã o p o d e
compreender nem aceitar os seus amiguinhos.
— Mais um aperitivo?
— Não, muito obrigado.
U m a p a u s a . O D r . G a c h e t c o n t i n u a a b o r r e c i d o : a s lou-
curas de Vincent V a n G o g h lhe d ã o que pensar.
— C o n c l u s õ e s . . . — pede Roberta.
— Uma moral para a fábula?
— Se t e m a l g u m a , q u e r o o u v i r . . .
— V á l á ! S e e m vez d e A l d o E r a s m o s e t i v e s s e a p r e -
sentado aos seus dezesseis anos um h o m e m com o u t r a s qua-
lidades de alma e i n t e l e c t o . . . hoje t u d o seria diferente.
— Diferente em que s e n t i d o ?
— No sentido h u m a n o . H a v e r i a nesta- casa m a i s calor.
E v o c ê s e r i a feliz, a o p a s s o q u e a g o r a e s t e q u a r t e t o d o s de-
sencontros t e m apenas um valor literário. Mas de literatura
falsa, d e s s a a o s a b o r d o s s e u s m o c i n h o s e s p i g a d o s q u e a m a m
o s u r r e a l i s m o e o a d j e t i v o exquise.
— De s o r t e que você a c h a falsa a nossa s i t u a ç ã o .
— Falsíssima.
SAGA 225
P e d r i n h o é um r a p a z de v i n t e e d o i s a n o s , a l t o e e s b e l t o .
Veste-se com u m a elegância um pouco s u b u r b a n a O bigode
fino e e s c u r o , o r o s t o m o r e n o de g r a n d e s o l h o s c a s t a n h o s e
os cabelos m u i t o crespos lhe dão um ar de galã de filme ar-
gentino.
A p a n h a o c h a p é u no c a b i d e e f i c a a a j e i t á - l o na c a b e ç a ,
diante do espelho, fazendo m u i t o s trejeitos com a boca.
Subimos mais alguns degraus. Vestindo a gabardine, a
cabeça erguida p a r a nós, P e d r i n h o g r i t a :
— C a s e - s e , V a s c o , p a r a v e r c o m q u a n t o s p a u s s e faz
u m a canoa.
Cá em cima v a m o s e n c o n t r a r Noel lendo e F e r n a n d a
e x a m i n a n d o u n s papéis. Na vitrola, um disco de Mozart em
surdina.
— A s s i s t i m o s ao fim d u m p u g i l a t o . . . — digo fazendo
um sinal p a r a baixo.
F e r n a n d a se ergue p a r a beijar Clarissa, e Noel fecha o
livro com u m a r u g a de c o n t r a r i e d a d e na testa.
— É s e m p r e a s s i m . . . — diz ela, ao me a p e r t a r a m ã o .
S e n t a m o - n o s . A luz a q u i é s u a v e : u m q u e b r a - l u z j u n t o
da poltrona de Noel, p e r t o do fonógrafo, e outra lâmpada
velada em cima da mesa de Fernanda.
— E como é que você vai resolver esse problema? —
indago.
Fernanda dá de ombros.
— É a d i f i c u l d a d e m a i s t o l a e s e m g r a ç a de t o d a s as
que eu t e n h o no m o m e n t o . A i n d a n ã o achei solução. Talvez
não tenha.
F i c a m o s um i n s t a n t e a e s c u t a r a música.
— Mozart t a m b é m teve dificuldades tolas e sem g r a ç a . ..
— digo.
Saltamos de Mozart p a r a Gedeão Belém e Almiro Cam-
bará. Dentro de alguns instantes estou contando histórias
d a s t r i n c h e i r a s . Do E b r o pulamos p a r a o a s s u n t o Mussolini-
Hitler. E a " S o n a t a dos A d e u s e s " de Beethoven f o r m a a g o r a
um fundo musical p a r a as nossas palavras.
P e r t o das nove h o r a s Dejanira, filha de Modesto Braga,
sobe p a r a nos dizer que "o papai m a n d o u pedir p a r a todos
d e s c e r e m , q u e a M o d e s t i n a v a i c a n t a r n o r á d i o d a q u i a pou-
quinho". É u m a r a p a r i g a de dezoito anos, r o b u s t a e b e m feita
de corpo. Tem no rosto essa estupidez corada e fornida de
carnes que vêm d u m excesso de saúde animal e d u m a ausên-
cia a b s o l u t a d e p r o b l e m a s m o r a i s .
SAGA 229
t a n t a s a l m a s diferentes, t a n t o s d e s e j o s d e s e n c o n t r a d o s ? Com-
paremos, por e x e m p l o , os ideais de F e r n a n d a c o m os de Mo-
desto B r a g a , o s d e P e d r i n h o c o m o s d e Noel, o s d e E r n e s t i -
des c o m o s d e sua própria m ã e . N ã o h á conciliação possível.
N o e l quer o u v i r D e b u s s y o u Chopin, a o p a s s o q u e Modesto
B r a g a t e l e f o n a a v i d a m e n t e p a r a a s e s t a ç õ e s d e rádio, pedindo
q u e t r a n s m i t a m na hora do ouvinte, "O Ébrio", de V i c e n t e
Celestino. Que e s t r a n h o s e n t i m e n t o d e d e v e r m o v e r á F e r n a n -
da, obrigando-a a ficar aqui a s a t i s f a z e r as v a i d a d e s da f a -
mília B r a g a ? P o r que m a n t e r unida u m a t r i b o t ã o desigual
e d e s o r d e n a d a ? P e d r i n h o não a m a E r n e s t i d e s . E r n e s t i d e s n ã o
a m a Pedrinho. F e r n a n d a a m a o i r m ã o m a s n ã o e s t i m a a
cunhada e m u i t o m e n o s a família da cunhada. No e n t a n t o ,
no s e u incompreensível s a l v a c i o n i s m o , reúne-os t o d o s à sua
s o m b r a protetora.
N o e l n ã o e n t e n d e D. E u d ó x i a e a s o g r a por s u a v e z n ã o
e n t e n d e o genro. N o fundo t a l v e z s e d e t e s t e m s e m m e s m o
t e r e m d i s s o consciência nítida. F e r n a n d a merecia outro m a -
rido. E por f a l a r nisso, o u t r a mãe. N i n g u é m se e n t e n d e e
t o d o s c o n t i n u a m a m o r a r na m e s m a casa.
É a vida. N ã o serei eu q u e m a vá mudar. Refiro-me à
vida d o s outros. M a s . . . e q u a n t o à m i n h a ? Terei achado o
m e u r u m o ? Cavado o m e u n i c h o no u n i v e r s o — um n i c h o
em que eu me s i n t a à vontade, abrigado e livre, c o n t e n t e e
realizado? U m n i c h o que e m nada lembre aquelas sórdidas
c o v a s e m que n o s m e t í a m o s n o c a m p o d e concentração para
n o s defender d a s t e m p e s t a d e s de areia e n e v e ?
20 de junho
E s t o u de n o v o na t r i n c h e i r a e o v e n t o me t r a z às nari-
n a s o cheiro dos c a d á v e r e s p u t r e f a t o s . V e j o - o s e s t e n d i d o s no
campo, reconheço-os t o d o s : E u g ê n i o . . . N o e l . . . F e r n a n d a . . .
B r o w n . . . Saio alucinado a procurar Clarissa. O Dr. S e i x a s
c a m i n h a a m e u lado c o m u m a lanterna na m ã o e ao m e s m o
t e m p o eie não é m a i s o Dr. S e i x a s e s i m o Dr. A n d r e w Mar-
t i n . . . V e j o Clarissa ( o u J u a n a ? ) a m e acenar d o outro lado
do E b r o e u m a força e s t r a n h a me prende à terra, quero me
mover e não c o n s i g o . . .
A c o r d o a n g u s t i a d o . A luz do luar se filtra pela vidraça.
É s i n g u l a r : o cheiro e n j o a t i v o continua fora do s o n h o . A c e n -
do a luz e olho o r e l ó g i o : t r ê s da madrugada. Ouço um g a l o
SAGA 235
22 de junho
— Q u e é q u e você q u e r q u e eu f a ç a ? — p e r g u n t a N o r m a
com os olhos cálidos postos em mim. — Que vá p a r a um
convento? Que fique filha-de-Maria?
— Você sabe que não quero nada d i s s o . . .
E s t a m o s n o f u n d o d a Marajoara, u m a c a s a - d e - c h á s i t u a -
da n u m a d a s lojas do Megatério. Cinco h o r a s da t a r d e . Con-
versamos sobre essa fúria que parece ter-se apoderado das
criaturas, que não t ê m fé em mais nada e que correm avida-
mente p a r a o prazer, como n u m a véspera de fim-de-mundo.
— Já lhe disse que não acredito em n a d a . . . m a s em
n a d a m e s m o ! — repete N o r m a , com um crispar de seus lábios
b e m d e s e n h a d o s . — S ó t e n h o c e r t e z a d e u m a coisa. Ê d e q u e
um dia a gente m o r r e . . . e adeus, meu b e m ! . . . tudo se acaba.
— Você está certa de que não acredita mesmo em n a d a ?
— P o r que é que n ã o hei de e s t a r ? De que é q u e e s t á
rindo?
N o r m a f r a n z e a t e s t a ao f a z e r a p e r g u n t a . C o n t i n u o a
s o r r i r e e l a se i r r i t a .
— Q u e tolice é essa, V a s c o ?
— Se na realidade você n ã o acreditasse em nada, não
estaria com essa cartolinha no cocuruto, só porque um bando
de imbecis em P a r i s decretou que é de bom-tom u s a r essas
caricaturas de chapéu.
— Ora! Isso não é argumento.
— E p r o v a de fé em a l g u m a coisa, de r e s p e i t o a a l g u m a
convenção.
236 ERICO V E R Í S S I M O
— N ã o me r e f i r o a isso. O em q u e n ã o a c r e d i t o é n e s s a s
histórias de renúncia, oração, dedicação ao próximo, altruís-
mo e o m a i s q u e s e g u e . A m a i o r i a d a s m u l h e r e s r e c a l c a os
s e u s d e s e j o s . Ê o q u e eu p r o c u r o n ã o f a z e r . Aí e s t á .
N o r m a E r a s m o leva u m a t o r r a d a à boca e trinca-a com
os belos d e n t e s e s m a l t a d o s e parelhos. O s o m d a s conversas
abafadas flutua no ar m o r n o e sonolento, de m i s t u r a com a
música d u m disco em surdina. Bebo o r e s t o de meu chá.
— A q u e c o n c l u s ã o v o c ê c h e g o u em m a t é r i a de c o n d u t a
i n d i v i d u a l ? — p e r g u n t a ela l i m p a n d o a p o n t a d o s d e d o s n u m
g u a r d a n a p o de papel.
— A g e n t e a c r e d i t a ou n ã o na c h a m a d a " v i d a de a l é m -
t ú m u l o . " S e a c r e d i t a , d e v e p a s s a r esta v i d a a s e p r e p a r a r
p a r a a outra, d e a c o r d o c o m o s m a n d a m e n t o s d a s u a i g r e j a ,
m e s m o que eies impliquem em sacrifício da m a i o r p a r t e ou
da totalidade de nossas inclinações naturais. P o r q u e a nossa
p a s s a g e m pela t e r r a é c o n t a d a em t e m p o e a o u t r a vida está
no plano da eternidade. No segundo caso o remédio é pro-
curar um jogo divertido que nos ajude a passar esta tempo-
rada terrena da maneira mais agradável, de acordo com as
nossas tendências.
N o r m a E r a s m o tira um cigarro da cigarreira e bate-o na
m e s a , n u m g e s t o q u e m e faz l e m b r a r R o b e r t a .
— Pois o meu caso é o último.
— E a c h a q u e e n c o n t r o u o j o g o , o p a s s a t e m p o q u e lhe
convém?
C o m a p e r g u n t a passo-lhe t a m b é m o isqueiro aceso. E l a
aproxima da chama a ponta do cigarro, tira u m a baforada
com os olhos postos em m i m e depois diz:
— Claro que encontrei.
— N ã o creio. É cedo d e m a i s p a r a você t e r a certeza
disso.
N o r m a fita os olhos agora sérios no meu rosto.
— C u r i o s o . . . Já me d i s s e r a m e x a t a m e n t e essas pala-
vras.
— Quem?
— Fernanda.
— Você a conhece?
— Talvez m a i s do que ela i m a g i n a . . .
Acendo o meu cigarro.
— E que pensa dela?
— Penso que está jogando fora a vida e o corpo que a
n a t u r e z a lhe deu. Convencida de que t e m u m a missão, passa
SAGA 237
26 de junho
s e q u e r o c u r s o g i n a s i a l . F i c o d e n o v o a p e n s a r q u e ela m e r e -
cia o u t r a m ã e , o u t r o i r m ã o , o u t r o m a r i d o . . . e t a l v e z o u t r o s
amigos. Lembro-me das palavras de N o r m a E r a s m o e agora,
olhando p a r a F e r n a n d a , pela p r i m e i r a vez me ocorre que o
diabo da r a p a r i g a talvez tenha razão. E n q u a n t o Fernanda
discute com P e d r i n h o a necessidade de m u d a r de vida, de
a b a n d o n a r a a m a n t e e p r e o c u p a r - s e m a i s c o m a f a m í l i a , fico
a observá-la. N ã o é possível que u m a m u l h e r forte e cheia
de vida como esta se satisfaça com o a m o r tíbio de elfo que
o m a r i d o lhe dá.
P o r que será que as c r i a t u r a s em geral renunciam àquilo
que m a i s a m a m ? P o r muito a m a r a vida, F e r n a n d a não goza
de seus p r a z e r e s m a i s efetivos e f o r t e s : dissolve-se nesse sal-
vacionismo quase inútil — pois não conseguiu incutir no ma-
r i d o s u a filosofia d a v i d a , n e m d a r u m r u m o s e g u r o a o i r m ã o ,
n e m v e n c e r o f a t a l i s m o d e r r o t i s t a d a m ã e , n e m p ô r u m freio
na cunhada. P o r querer auxiliar os o u t r o s ela se sacrifica a
si m e s m a n u m a mutilação injusta. Vi-lhe no rosto um dia
a s o m b r a d u m a n u v e m a q u e n ã o ousei d a r n o m e . D ú v i d a ?
Tristeza? A n g ú s t i a ? Cansaço? Foi um momento perigoso em
que algum sentimento que e s t a v a escondido na camada m a i s
f u n d a de s e u s e r s u b i u t r a i ç o e i r a m e n t e à t o n a , e s p i o u a v i d a ,
ficou d e b r u ç a d o n o s o l h o s c o m o u m p r i s i o n e i r o q u e e n c o s t a
o r o s t o n a s g r a d e s d a cela e o l h a a n s i o s o p a r a o s c a m p o s
v e r d e s , p a r a o céu l i v r e . . . O u e s t a r e i f a n t a s i a n d o ?
P e d r i n h o a t i r a o cigarro pela janela, a t r a v e s s a a sala
pisando duro e fecha a p o r t a com estrondo.
Noel e n t r a com um n ú m e r o de "A O r d e m " na m ã o e v e m
m e m o s t r a r u m poema d e Gedeão Belém, n a "Coluna Social".
Leio-o em voz a l t a :
Comentário de Noel:
— A c h o q u e ele t e m a n o s t a l g i a d a b o n d a d e . . . u m de-
sejo de poesia.
Sacudo a cabeça numa negativa vigorosa:
SAGA 241
— Para quê?
— P a r a você escolher a r m a s m a i s decentes n e s s a l u t a . . .
Ele me olha com repentino rancor. Lembro-me de que
Almiro Cambará era um rapaz de sangue quente e que por
m a i s d e u m a vez e s t i v e m o s p r e s t e s a n o s a t r a c a r a s o p a p o s
por causa da imortalidade da alma ou do livre-arbítrio.
— V i r a s t e m o r a l i s t a , a g o r a ? — diz ele c o m um e s g a r
de desprezo.
— N ã o virei coisa n e n h u m a .
C a m b a r á acende o seu c h a r u t o e, após breve pausa, como
q u e p a s s a n d o u m a e s p o n j a e m t u d o q u e ficou p a r a t r á s , a m a -
cia a v o z :
— Vasco, eu quero um favor t e u . . .
— Fale.
— C o n v e n ç a a F e r n a n d a a me c e d e r o a r r e n d a m e n t o do
A q u a r i u m . D o u u m a l u v a de c i n q ü e n t a c o n t o s se esta semana
ela m e p a s s a r o c o n t r a t o .
Faço um gesto negativo com a cabeça. Ele insiste:
— Cinqüenta contos, homem, de m ã o beijada. A m a n h ã
talvez eu não ofereça n e m vinte.
— É escusado, Almiro, não perca o seu tempo.
— Olha aqui, rapaz, tu levas cinco na t r a n s a ç ã o . P a s s o -
te a nota no dia em que estiver com o c o n t r a t o no bolso.
— No seu m u n d o n ã o se fala o u t r a língua a n ã o ser a
do dinheiro?
C a m b a r á faz u m g e s t o d e i m p a c i ê n c i a :
— Ora, n ã o sejas idiota! N ã o me v e n h a s com idealis-
mos, que eu não nasci ontem. Conheço bem essas atitudes.
Sacudo os ombros.
— O que posso dizer é que F e r n a n d a n ã o cede o c o n t r a t o
por dinheiro algum.
— Pois vai se arrepender. Ano que vem não t e r á nenhu-
ma companhia que lhe alugue filmes. Será obrigada a fechar
o cinema com um prejuízo danado.
— E s t á bem, m a s você n ã o t e r á o A q u a r i u m . O contrato
só se vence daqui a q u a t r o anos.
— No fim v a m o s ver quem pode mais.
F i c a m o s a l g u m t e m p o em silêncio e há um i n s t a n t e em
q u e n o s s o s o l h o s se e n c o n t r a m , se f i x a m , e o r o s t o de C a m -
bará se alarga num sorriso.
— Q u e m h a v i a d e dizer, h e m ? E u e t u a q u i t r a n s f o r m a -
dos e m h o m e n s d e n e g ó c i o . . .
E com essa deixa passamos a outros assuntos. O tempo.
246 ERICO V E R Í S S I M O
10 de julho
18 de julho
— E O l í v i a . . . — C a l a - s e de r e p e n t e e me o l h a , c o m o se
e x a t a m e n t e neste m o m e n t o lhe ocorresse u m a idéia. — Você
q u e r s a b e r d u m a coisa? Eu às vezes chego a a c h a r u m a pa-
recida com a outra. A t é f i s i c a m e n t e . . . É extraordinário.
Como se fossem i r m ã s . . .
C o n t i n u a m o s a a n d a r pelo h o s p i t a l . E u g ê n i o m e a p r e s e n -
ta a o u t r o s m é d i c o s , a a l g u m a s e n f e r m e i r a s e ao a d m i n i s t r a -
d o r . D e s c e m o s à c o z i n h a e à a d e g a , e q u a n d o c h e g a m o s à la-
v a n d e r i a , m e u c o m p a n h e i r o m e diz b a i x i n h o :
— Minha m ã e pagava os meus estudos no ginásio lavan-
do a r o u p a do i n t e r n a t o . . . E r a u m a m u l h e r corajosa.
P i c a um i n s t a n t e em silêncio, o r o s t o t r i s t e , como se a
m ã e estivesse sepultada aqui.
No elevador me pergunta:
— P o r q u e s e r á q u e a g e n t e só c o m p r e e n d e o v a l o r d a s
pessoas depois que as perde?
A n t e s q u e e u a c h e u m a r e s p o s t a , o e l e v a d o r p á r a , ele
a b r e a p o r t a , s a í m o s a c a m i n h a r e eu me l i v r o da p e r g u n t a
fazendo o u t r a :
— Você não t e m parentes vivos?
— Só um i r m ã o . T a l v e z vivo n ã o s e j a b e m o t e r m o . . .
N ã o c o m p r e e n d o b e m m a s fico c a l a d o .
— V a m o s ao m e u e s c r i t ó r i o . — E ao p a s s a r p o r um
dos serventes, diz-lhe: — Juca, traz-nos dois cafezinhos.
Quando nos instalamos n a s confortáveis poltronas de
couro do gabinete de Eugênio, ele esclarece:
— Levei anos a p r o c u r a r um i r m ã o que t i n h a fugido de
c a s a . . . E r a um rapaz que gostava de beber, que vivia me-
tido em b a d e r n a s . . . Naquele tempo eu andava envaidecido
c o m a m i n h a q u a l i d a d e de e s t u d a n t e de m e d i c i n a e c o m a
cabeça cheia de projetos orgulhosos. Um dia discutimos em
c a s a . E u l h e d i s s e c o i s a s d u r a s . . . q u e ele e s t a v a m e e n v e r -
gonhando, que não podíamos ficar sob o mesmo teto, que se
ele n ã o f o s s e e m b o r a , q u e m ia e r a e u . . .
E u g ê n i o inclina-se p a r a a frente, apoia os cotovelos nos
joelhos e entrelaça as mãos. Sem me olhar, continua:
— E r n e s t o desapareceu e nunca mais ninguém soube
dele. A n t e s d a m i n h a m ã e m o r r e r p r o m e t i q u e i a p r o c u r a r
o Ernesto. Encontrei-o há menos de um ano aí n u m desses
lugarejos do interior, n u m estado miserável. Inchado de tan-
to b e b e r , b a r b u d o , e n v e l h e c i d o , a c a b a d o . . . T r o u x e - o p a r a cá,
fiz-lhe u m t r a t a m e n t o r i g o r o s o , i n t e r n e i - o n u m s a n a t ó r i o . O
rapaz saiu de lá curado, parecia outro. Arranjei-lhe um em-
SAGA 253
— B o m , s e j a c o m o for, v o c ê e s t á s e r e a b i l i t a n d o .
E u g ê n i o fez u m g e s t o d e i m p a c i ê n c i a .
— Triste reabilitação. Agora é tarde.
Ponho-me de pé e vou olhar as lombadas de livros n u m
armário. Sem me voltar, digo:
— S e v o c ê faz m u i t a q u e s t ã o d e s e r c u l p a d o d e a l g u m a
coisa, eu n ã o o c o n t r a r i o .
E u g ê n i o c a m i n h a p a r a mim. Vejo-lhe o rosto refletido
no vidro do armário.
— É m u i t o fácil e n c a r a r a s a n g ú s t i a s a l h e i a s c o m e s s e
desprendimento, Vasco. Eu não lhe desejo os problemas de
consciência que me a t o r m e n t a m .
V o l t o - m e p a r a ele, t o m o - l h e d o b r a ç o c o m u m c a r i n h o
que a m i m mesmo surpreende, e arrasto-o p a r a a cadeira.
— Olhe, E u g ê n i o — digo-lhe — t e n h o dado t r e m e n d a s
cabeçadas na vida. M a s u m a coisa eu lhe afirmo com t o d a
a sinceridade: não me arrependo de nada. Todos os erros que
c o m e t i m e s e r v i r a m d e a l g u m a coisa. V o c ê j á p e n s o u e m
quantos soldados espanhóis, mouros, italianos e alemães eu
posso t e r m a t a d o naquela g u e r r a estúpida com a qual eu de
certo modo n a d a t i n h a a v e r ? Pois bem. Às vezes de noite
fico p e n s a n d o e m q u e c a d a u m a d a q u e l a s c r i a t u r a s t i n h a u m a
mãe, irmãs, mulher, filhos e que eu cortei vidas que podiam
ser preciosas. Isso é horrível m a s agora irremediável. O es-
sencial é que eu n ã o t o r n e a c o m e t e r os m e s m o s erros.
F a ç o u m a pausa. E u g ê n i o me olha, com a t e s t a franzida.
— Nós somos simplesmente arrastados — continuo —
e n ã o s a b e m o s n a d a de n a d a . E se a q u e s t ã o é de p r o c u r a r
culpados, vamos ver primeiro quem é o culpado desta grande
monstruosidade que se c h a m a vida, e s t a m i s t u r a de coisas
belas e medonhas, p u r a s e sórdidas, cândidas e perversas.
— P a l a v r a s . . . — diz E u g ê n i o . — P a l a v r a s c o m q u e a
g e n t e t e n t a a p a z i g u a r a consciência, a t o r d o a r os remorsos,
m a s q u a n d o elas c e s s a m e v e m o silêncio, vemos que n ã o
passavam de poeira...
Bato-lhe no joelho.
— Olha, homem, no fundo eu sou u m a vaca sentimental
e se dependesse de m i m o m u n d o seria um vasto parque de
diversões em que todos os homens confraternizassem sem pre-
conceitos de raça, religião e crenças de qualquer o u t r a espé-
cie. M a s n ã o d e v e m o s c o n f u n d i r a r e a l i d a d e c o m o s n o s s o s
s o n h o s . O m u n d o é o q u e é. O r e m é d i o é a g e n t e p r o c u r a r
SAGA 255
25 de julho
F e r n a n d a e s t á n a m i n h a f r e n t e , s o r r i n d o . S i n t o u m ca-
lor no rosto, a volta da velha fúria que eu julgava p a r a
s e m p r e extinta. A m a s s o o jornal e atiro-o pela janela.
— Calma, capitão!
C o r r o p a r a o telefone, p r o c u r o um n ú m e r o e disco.
Noel se aproxima:
— Que é que vais fazer?
— A g o r a você vai v e r — respondo, meio engasgado.
— Alô! Redação da O r d e m ? Quero falar com o diretor.
— P a u s a . Ruído d u m a nova ligação. U m a voz: " F a l a Gedeão
B e l é m . " E eu, m o r d e n d o a s p a l a v r a s , c o m u m a c a l m a t r e p i -
d a n t e : Aqui fala Vasco, ouviu? Da redação da " A v e n t u r a " .
E s c u t a , canalha, se disseres m a i s a l g u m a coisa sobre o Dr.
S e i x a s , m e s m o q u e s e j a elogio, a m a s s o - t e a c a r a , o u v i s t e ?
C o r t a m b r u s c a m e n t e a l i g a ç ã o . P o n h o o r e c e p t o r no lu-
g a r com um gesto violento. Noel e F e r n a n d a a v a n ç a m para
mim.
— Você n ã o devia t e r feito isso, Vasco — censura-me
ela. — P a r a e s s a g e n t e a i n d i f e r e n ç a é a m e l h o r a r m a . . .
— Cada qual luta com as a r m a s de que dispõe.
— M a s é p r e c i s o q u e e s s e G e d e ã o B e l é m n ã o p e n s e que
r e a l m e n t e está nos fazendo p e r d e r o sono. Seria d a r u m a
ração gorda demais à sua vaidade.
F i c o e m silêncio, m e i o o f e g a n t e .
— V o c ê p r o c e d e u m a l . . . — diz N o e l c o m u m a e x p r e s s ã o
dolorosa no rosto.
— Quem procede mal é v o c ê . . .
E s t a s palavras me escapam sem que eu sinta.
— Vasco! — intervém Fernanda.
L e v a n t o - m e e, já que comecei, acho que devo acabar.
Volto-me p a r a Noel e digo:
— Você parece não compreender que F e r n a n d a se acha
envolvida n u m a luta desigual e a t a c a d a por t o d o s os lados
por gente sem escrúpulos. E está fazendo j u s t a m e n t e o jogo
que convém ao adversário.
— C a l e a b o c a , V a s c o ! — o r d e n a - m e ela.
— F e r n a n d a , você e s t á perdendo o seu tempo, a s u a mo-
cidade, a sua v i d a . . .
P a r a d o no meio da sala, com um maço de papéis nas
mãos, Noel t e m no rosto u m a expressão que dá pena.
Calo-me de repente, sentindo que me excedi. F e r n a n d a
me volta as costas e vai sentar-se à s u a escrivaninha.
SAGA 257
A luz v e r d e d e s e u s o l h o s c a i u g e l a d a s o b r e m i m .
— E que é que t e m isso? Você é moralista?
— Não. N e m amoralista. Apenas um sujeito que cada
vez fica m a i s e n c a n t a d o c o m o g ê n e r o h u m a n o .
— Que bisca!
Após u m a breve pausa, perguntou-me:
— N ã o a c h a que cada um t e m o direito de saciar os
a p e t i t e s q u e a n a t u r e z a lhe d e u ?
— Resolvi n ã o a c h a r m a i s coisa n e n h u m a .
— É u m a atitude cômoda que no fundo não passa de
covardia.
— Upa!
P a s s a m o s a c o n v e r s a r sobre o u t r o s a s s u n t o s . E l a me pin-
tou um r e t r a t o m u i t o divertido da família. E eu notei no seu
sarcasmo u m a certa ponta de condescendência adulta p a r a
com as t r a v e s s u r a s infantis. E r e m a t o u :
— V i v e m o s a q u i à s o m b r a de N a p o l e ã o B o n a p a r t e e
Santa Teresinha.
Preparando-me p a r a u m a reação violenta, acrescentei:
— E de S a f o .
E l a me olhou d u r a m e n t e , entrefechando os olhos de ga-
ta, e depois m u r m u r o u com os lábios a p e r t a d o s :
— Cretino!
30 de julho
4 de agosto
C o n h e ç o h o j e M a r k O p p e n h e i m , e x i l a d o a l e m ã o q u e foi
obrigado a deixar a t e r r a onde nasceu, a t e r r a que a m a apai-
xonadamente. Como t e m meio sangue judeu, a vida na Ale-
m a n h a se lhe t o r n o u insuportável. É um h o m e m g r a n d e e
melancólico, de rosto comprido e olhos d u m azul aguado. Tem
a pele m u i t o b r a n c a e oleosa e h á n a s u a f i s i o n o m i a u m a
expressão fixa de desânimo e t r i s t e presságio.
A l g u é m o recomendou a F e r n a n d a e esta lhe t e m dado
algum serviço avulso na redação, pois o h o m e m é um aqua-
relista bastante apreciável.
— Os senhores nem podem imaginar que bênção de Deus
é t e r n a s c i d o no B r a s i l . . . — d i z - m e ele.
264 ERICO V E R Í S S I M O
5 de agosto
8 de agosto
A p a r e c e o sol p e l a p r i m e i r a vez n e s t e s t r ê s ú l t i m o s d i a s .
Ganho alma nova. F e r n a n d a vem t r o ç a r comigo porque em
"A O r d e m " v e m publicado o edital de meu casamento.
12 de agosto
F i l h o d e p a i s p o b r e s , foi h u m i l h a d o d e s d e a e s c o l a . F e z
o c u r s o g i n a s i a l p o r e n t r e d i f i c u l d a d e s de t o d a a o r d e m e
matriculou-se depois na Faculdade de Medicina. A n s i a v a por
"ser alguém", p o r sair da sua condição anônima, poder gozar
a v i d a n o q u e e l a t e m d e belo e c o n f o r t á v e l , s u b i r n a e s c a l a
social e l i v r a r - s e p a r a s e m p r e d o d e p r i m e n t e s e n t i m e n t o d e
i n f e r i o r i d a d e q u e o a t o r m e n t a v a . N a a c a d e m i a c o n h e c e u Olí-
via, u m a e s t u d a n t e p o u c o m a i s m o ç a q u e ele. N a s c e u e n t r e
a m b o s u m a a m i z a d e q u e foi c r e s c e n d o c o m o t e m p o . A n d a v a m
s e m p r e j u n t o s e ela o a n i m a v a e assistia como u m a espécie
d e i r m ã m a i s v e l h a . D e c e r t o m o d o foi p a r a ele o q u e F e r -
n a n d a t e m s i d o p a r a N o e l . U m a n o i t e (foi e m o u t u b r o d e
30, a r e v o l u ç ã o t i n h a d e f l a g r a d o e o u v i a - s e em t o d a a c i d a d e
o f r a g o r da fuzilaria) ele teve de fazer u m a operação sob
g r a n d e t e n s ã o de nervos. N ã o conseguiu s a l v a r o paciente, e
isso lhe a u m e n t o u a sensação da d e r r o t a e miséria. N e s s a m e s -
ma noite subiu ao q u a r t o de Olívia onde, com a cumplicidade
do silêncio, da solidão, e g u i a d o pelo seu desejo de calor
humano, teve pela primeira vez a consciência a g u d a de que
O l í v i a e r a u m a mulher e p o r s i n a l b a s t a n t e a t r a e n t e . C o m a
mesma naturalidade com que daria n u m paciente torturado
de dores u m a injeção sedativa, Olívia se e n t r e g o u ao compa-
nheiro. Daí p o r d i a n t e a vida de a m b o s m u d o u . M a s ela acei-
t a v a serenamente a nova situação s e m nunca falar em casa-
mento: evitava qualquer comentário ao novo r u m o que ha-
viam tomado as relações entre ambos.
O t e m p o p a s s o u . O l í v i a foi c o n v i d a d a p a r a t r a b a l h a r
n u m hospital n a região colonial italiana. N a s u a ausência
E u g ê n i o c o n h e c e u E u n i c e C i n t r a , m e n i n a r i c a e snob, q u e
tomou por ele um inesperado e inexplicável interesse. P a s s o u
a p r o c u r á - l o c o m i n s i s t ê n c i a , a levá-lo a f e s t a s , a a p r e s e n t á - l o
a s e u s a m i g o s , a p r o j e t á - l o e n f i m no m u n d o c o m o q u a l e l e
sempre sonhara. Em poucos meses, n u m estonteamento, E u -
gênio e s t a v a noivo de E u n i c e e c o m a perspectiva de m u d a r
c o m p l e t a m e n t e d e v i d a . E s c r e v e u a Olívia, c o n t a n d o t u d o : e r a
m a i s fácil do que lhe f a l a r f r e n t e a frente. Q u a n d o a a m i g a
v o l t o u , ele s o f r e u a g o n i a s n a n o i t e e m q u e s e e n c o n t r a r a m a
sós no q u a r t o dela.
— Recebeste a minha carta?
— Recebi, sim. Tu me deste u m a e x p l i c a ç ã o . . . b a s t a v a
um aviso. Seja como for, o b r i g a d a .
Foi fazer um chá p a r a ambos, b e m como nos velhos
tempos. Eugênio achava a situação insuportável. Balbuciou
266 ERICO V E R Í S S I M O
E u g ê n i o a t i r a n a á g u a o c i g a r r o a c e s o . O v e n t o frio
cheira a folhagens úmidas. Cães ladram n u m a r u a próxima.
— A m o r t e de O l í v i a e e s s a c r i a n ç a m u d a r a m d e f i n i t i -
v a m e n t e o r u m o da m i n h a v i d a — p r o s s e g u i u E u g ê n i o . —
Que era que me restava fazer?
— Escolher entre Anamaria e a sua m u l h e r . . .
— Preferi ficar com m i n h a filha. A h . . . n ã o pense que
i s s o foi fácil. M a s O l í v i a m e s m o m o r t a m e a j u d o u .
SAGA 267
Na m e s m a noite. No a p a r t a m e n t o de Eugênio.
— E r a a q u i q u e e l a m o r a v a . . . — d i z - m e ele, l o g o q u e
entramos.
Ê um interior simpático, d u m bom-gosto confortável e
apaziguante. Sente-se aqui dentro um certo ar de intimidade
e recolhimento. Vejo um r e t r a t o de Olívia em cima d u m a
mesa, com um vaso de flores ao lado. C r o m o s pelas paredes.
U m a poltrona, u m a lâmpada com quebra-luz. U m a pequena
prateleira com livros.
— Sente, Vasco. T o m a alguma coisa?
— N ã o se incomode.
— Vou fazer um chá para n ó s . . .
A b r e a gaveta da escrivaninha e t i r a de dentro dela u m a
caixa.
— Q u e r o lhe m o s t r a r u m a coisa que só F e r n a n d a e Noel
conhecem.
268 ERICO VERÍSSIMO
S e n t a - s e a m e u l a d o , no sofá, e a b r e a c a i x a .
— S ã o c a r t a s d a O l í v i a — diz, a p a n h a n d o u m m a ç o d e
papéis. — E s t a ela me escreveu antes de morrer. As outras
f o r a m escritas lá em Nova Itália. Quando estou muito triste
ou um pouco desanimado, venho aqui p a r a esta poltrona,
a c e n d o e s t a l â m p a d a e fico l e n d o . Ás v e z e s c h e g o a t e r a i m -
p r e s s ã o de que Olívia e s t á a m e u lado, viva, conversando
comigo.
Ergue-se e me põe as cartas nas minhas mãos.
— P i q u e l e n d o e n q u a n t o eu v o u p r e p a r a r o c h á .
São belas cartas, cheias de u m a grande fé na humani-
dade, no espírito de gentileza e no destino das criaturas. Há
nelas trechos que dificilmente esquecerei.
"De que serve construir arranha-céus se não há mais al-
mas humanas para morar neles?"
14 de agosto
d i g o e u . — O u t a l v e z a d e 1914-1918 n ã o t e n h a t e r m i n a d o
ainda.
Eugênio me convidou p a r a j a n t a r em sua companhia no
"Edelweiss", um r e s t a u r a n t e em estilo tirolês. E a p r i m e i r a
coisa que me diz q u a n d o nos i n s t a l a m o s a u m a m e s a :
— E r a a q u i que Olívia e eu c o s t u m á v a m o s v i r logo de-
pois que nos formamos. S e n t á v a m o s b e m neste lugar.
U m a senhora gorda que se acha junto da caixa registra-
d o r a a t i r a um beijo p a r a Eugênio, que lhe faz um sinal amis-
toso com a m ã o . F i c a m o s a falar em M a r k e no d r a m a dos
exilados.
— Sabes d u m a coisa? — p e r g u n t a E u g ê n i o . — Eu que-
ria t e r fé como Noel ou como o P a d r e Rubim. P o r q u e este
m u n d o e s t á se t o r n a n d o i n a b i t á v e l e g r a n d e coisa é a g e n t e
ter esperança em outro mundo.
N ã o t e n h o m a i s que u m silêncio s o t u r n o p a r a t o d a s essas
p a l a v r a s de i n q u i e t a ç ã o e a n g ú s t i a . E e s t e silêncio me fica
a roer interiormente.
— O l í v i a t i n h a fé — a c r e s c e n t a E u g ê n i o . — M o r r e u
tranqüila e confiante.
N u m a q u á r i o de vidro, peixes decorativos n a d a m sere-
n a m e n t e . A v i t r o l a c o m e ç a a t o c a r u m a v a l s a v i e n e n s e e os
olhos de E u g ê n i o se velam n u m a expressão de saudade.
16 de agosto
— Mas tu nunca me p e r d e s t e . . .
— P o r m a i s q u e eu faça n ã o consigo t i r a r isso da cabeça.
E u sei, e u s i n t o q u e n ã o a n d a s c o n t e n t e .
Vou sentar-me ao lado de Clarissa. Puxo-a p a r a m i m e
beijo-lhe os cabelos.
— E tu s a b e s . . . tu sabes que se eu te p e r d e r . . . —
c o n t i n u a ela. N ã o c o n s e g u e t e r m i n a r . A v o z s e l h e q u e b r a .
— N a d a de choro. Deves t e r confiança em mim.
— M a s é um p r e s s e n t i m e n t o . . . m a i s f o r t e q u e eu.
N ã o e n c o n t r o p a l a v r a s p a r a a t r a n q ü i l i z a r . E c o m o fico
calado, Clarissa levanta o rosto p a r a mim, e p e r g u n t a :
— G a t o - d o - m a t o , fala com sinceridade. Tu nunca me
mentiste. Que é que t e n s ?
— Nada. Fica descansada.
— Tu andas inquieto, eu n o t o . . .
Acaricio-lhe a cabeça. Quisera t e r p a l a v r a s p a r a lhe dizer
da m i n h a t e r n u r a e do desejo que t e n h o de levá-la p a r a longe,
p a r a a l g u m lugar em que possamos viver vidas limpas e de-
centes, sem sermos compelidos a nos a t u f a r nessa luta irri-
t a n t e d e t o d o o dia, n a b u s c a d e d i n h e i r o e p o s i ç õ e s , c e g o s
e e m p e d e r n i d o s , a c o t o v e l a n d o a m u l t i d ã o , e s p e z i n h a n d o os
m a i s fracos, oferecendo, por o u t r o lado, aos outros h o m e n s
t a m b é m cegamente agressivos, a superfície vulnerabilíssima
de n o s s a sensibilidade e de nossos sonhos.
D. C l e m ê n c i a e n t r a c o m o b o l o e n o s diz c o m o s e u ar
terra-a-terra e casual:
— Que é isso, m e n i n o s ? Deixem essas coisas p a r a depois
do casamento.
22 de agosto
— Conheço. É i r m ã o da Chinita.
F e r n a n d a fica u m i n s t a n t e pensativa.
— Quer me prestar um serviço?
— Diga.
— F a l e c o m o r a p a z . C o n v e n ç a - o de d e i x a r a E r n e s t i d e s
e eu d e p o i s me e n c a r r e g o d e l a e do r e s t o . O c a s a m e n t o do
Pedrinho j á começou e r r a d o . . .
— A c h o que é i n ú t i l . . . m a s já que você me p e d e . . .
— Quando vai procurar o Manuel?
— Hoje mesmo.
— N ã o fui e u q u e m p r o c u r o u . . .
— Esse detalhe não interessa. O importante é acabar.
— Achas?
— P a r a m i m pouco importa. Mas é que o m a r i d o pode
vir a s a b e r . . .
— Pois o m a r i d o que v e n h a : quero q u e b r a r - l h e os cor-
nos.
— N ã o se t r a t a de q u e b r a r coisa n e n h u m a . N ã o acredito
que estejas apaixonado pela E r n e s t i d e s . . .
Manuel faz um gesto de indiferença.
— Mas que a d i a n t a eu n ã o procurar, se ela me p r o c u r a ?
Eu seria muito bobo se não aproveitasse.
E n c o l h o os o m b r o s e e m b o r c o o cálice.
— Quer dizer que não te interessas por t e r m i n a r a his-
tória?. ..
— Tu sabes como são as c o i s a s . . .
— E se o P e d r i n h o v i e r a s a b e r ?
— Se ele vier, e n c o n t r a h o m e m .
— E s t á bem.
Levanto-me e saio, um pouco e n v e r g o n h a d o do papel que
fui o b r i g a d o a f a z e r .
9
24 de agosto
o b e i ç o os a m i g u i n h o s de N o r m a . — O n d e é q u e o p a í s v a i
p a r a r com u m a gentinha como essa, toda afrescalhada e cheia
de p u l s e i r i n h a s ? — E, t i r a n d o u m a palha do bolso, n u m súbi-
to entusiasmo, exclama: — Os homens estão se acabando, seu!
— E na s u a opinião — p e r g u n t o , como q u e m a t i r a u m a
isca — p o r q u e é q u e o s h o m e n s s e a c a b a m ? . . .
Ele me contempla por um momento, com olhos sem emo-
ção, e d e p o i s r e s p o n d e :
— Modernices. .. Cinemas, m á q u i n a s , p i n t u r a s , moleza,
conforto. No t e m p o da e s c r a v a t u r a não havia negro bodoso
que não tivesse o seu pé-de-meia cheio de patacões. Hoje
quase não se encontra branco endinheirado, q u a n t o mais ne-
g r o . .. São esses calhambeques, m á q u i n a p a r a fazer tudo.
N i n g u é m sabe m a i s a n d a r a cavalo. É automóvel p a r a tudo,
aeroplano, t r e m . . . Você viu aquele desastre o o u t r o dia com
o T a n c r e d o Osório? O avião se espatifou no chão. Pois eu
c o n h e c i o p a i dele, o C h i c o O s ó r i o . E r a c a r r e t e i r o , n u n c a t e v e
pressa em c h e g a r . . . e chegou sempre. Morreu na cama.
— Mas m o r r e u . . .
— Todos morrem, moço.
T e r m i n a de e n r o l a r o c i g a r r o e l e v a - o à b o c a . O f e r e ç o -
lhe o i s q u e i r o , q u e n e g a f o g o , u m a , d u a s , t r ê s v e z e s .
E o Cel. J a n g o J o r g e , m a l i c i o s o :
— Os meus avios de fogo nunca falharam.
A o s p o u c o s m e v ê m à m e m ó r i a a s h i s t ó r i a s q u e ouvi
c o n t a r d e s s e c a u d i l h o t e n o s t e m p o s a n t e r i o r e s a 30. M a n d o -
nices, a r b i t r a r i e d a d e s , v i o l ê n c i a s , c r i m e s . . .
Um dos a m i g u i n h o s de R o b e r t a a t r a v e s s a a sala, bam-
boleando, e vai a p a n h a r um croquete no p r a t o de vidro azul
em cima da mesa. Vera e Gracinda somem-se n u m a das por-
t a s . A voz exaltada de Leitão Leiria chega até nós e, sor-
rindo p a r a D. Dodó, Aldo E r a s m o c a m i n h a na nossa direção:
— M a s q u e é isso, c o r o n e l ? Já e s t á c o m s o n o ? — E,
v o l t a n d o - s e p a r a m i m : — Q u e foi q u e ele e s t e v e l h e c o n t a n -
do, V a s c o ?
Tirando u m a baforada de seu cigarro de palha, com a
sua voz cadenciada J a n g o J o r g e diz:
— Ind'agorinha estive ensinando àqueles meninos como é
que se degola um h o m e m . — P a u s a . Conclusivo e sério, acres-
centa: — F i c a r a m b r a n c o s de susto. São u n s pés-frios. T a m -
b é m . . . q u a n t o t e m p o faz q u e n ã o t e m o s u m a r e v o l u ç ã o z i n h a
das boas?
SAGA 283
A s e g u i r p a s s a a n o s c o n t a r " c a u s o s " — c e n a s da r e v o -
lução de 93, da de 23. São histórias em torno de atos de
coragem e dedicação; em m u i t a s delas nota-se a intenção de
cercar de u m a aura de simpatia os bandidos e de respingar
o pó dourado da lenda na figura dos degoladores.
J u c a D e n t e - d e - O u r o foi c h a m a d o u m a n o i t e à c a s a d o
Cel. R a m ã o .
— Olha, Juca, tenho um trabalhinho p a r a v o c ê . . .
— Diga, patrão.
— Quero que você faça o serviço no Manuel T a r u m ã . Eu
lhe passo cem mil-réis. E s t á aqui o dinheiro.
— E s t á bem, coronel, o s e n h o r pode confiar na m i n h a
palavra. F a ç o serviço limpo, o senhor vai ficar satisfeito.
O tempo passou. Juca Dente-de-Ouro rondava Manuel
Tarumã, entretanto nunca o apanhava desprevenido para pas-
s a r - l h e a f a c a . M a s c o m as i d a s e v i n d a s da p o l i t i c a local o
Cel. R a m ã o f e z a s p a z e s c o m o s e u i n i m i g o e u m d i a c h a m o u
J u c a Dente-de-Ouro em particular e lhe disse:
— Olha, Juca, desista daquele negócio. N ã o faça n a d a
para Tarumã. Já somos amigos outra vez!
O bandido sacudiu a cabeça.
— Não s e n h o r . E u l h e g a r a n t i q u e m a t a v a e m a t o m e s -
mo. P a l a v r a é palavra. E d e p o i s . . . já gastei os cem mil-réis.
— M a s eu já disse que não quero, h o m e m ! N ã o precisa
me devolver o dinheiro.
O c a p a n g a e s t a v a e m p e d e r n i d o . E o Cel. R a m ã o d e i x o u - o
ir em paz, na esperança de que ele pensasse no a s s u n t o e visse
o a b s u r d o de s u a obstinação.
N e s t e p o n t o d a n a r r a t i v a o Cel. J a n g o J o r g e f a z u m a
pausa para dar uma "tragada".
— E q u e foi q u e a c o n t e c e u , c o r o n e l ? — p e r g u n t o .
Ele deixa o olhar a g u a d o p a s s e a r pela sala, p a c h o r r e n t o ,
e, deitando fumaça pelas narinas, r e m a t a a história a s s i m :
— O Manuel T a r u m ã e s t á e n t e r r a d o no cemitério de
Santa Rita, b e m à direita de quem e n t r a . . .
E a n t e o n o s s o s i l ê n c i o a c r e s c e n t a , c o m u m a r q u a s e so-
nhador:
— Juca D e n t e - d e - O u r o . . . H o m e m de palavra.
284 ERICO V E R Í S S I M O
— O Cel. J a n g o J o r g e é b e m o s í m b o l o de um m o m e n t o
que p a s s o u — d i g o m a i s t a r d e ao Dr. Abel, quando ficamos
a sós, j u n t o de u m a janela a beber e a fumar.
— P a s s o u . . . m a s c o n t i n u a de certo modo, — replica o
médico.
— De q u e m o d o ?
— C o n h e c e o filho do J a n g o J o r g e ? P o i s é advogado. U s a
na advocacia dos m e s m o s m é t o d o s que o pai u s a v a na poli-
tica. O caudilho e r a u m a e s p é c i e de gangster, e gangster é
t a m b é m o Dr. Miguel Jorge. E m p r e g a a fraude, a coação, o
suborno. V i v e de g o l p e s de audácia e dé n e g o c i a t a s . T e m uma
o r g a n i z a ç ã o m u i t o bem feita, u m a e s p é c i e de s i n d i c a t o da
p a t i f a r i a : nada lhe escapa. É u m pequeno A l Capone d a advo-
cacia.
A v i s ã o que o Dr. Abel t e m do m u n d o é b a s t a n t e céptica.
N ã o acredita q u e a t o l e i m a h u m a n a tenha remédio. A c h a
que o melhor é cada qual t r a t a r de a t r a v e s s a r a vida da
m a n e i r a m a i s cômoda, a g r a d á v e l e fácil.
O a m b i e n t e a o s poucos fica m a i s cálido. A música. As
bebidas. E s t e s corpos desprendendo calor. A lembrança da
noite fria lá fora, a se denunciar p e l a s v i d r a ç a s embaciadas.
— V e j a só e s s a curiosa d a n ç a . . . — s u s s u r r a o Dr. Abel
abrangendo a s a l a c o m um g e s t o da m ã o peluda. — Procure
penetrar no espírito de c a d a u m a d e s s a s p e s s o a s que estão
aqui dentro. Seria divertido descobrir s u a s i n t e n ç õ e s e dese-
j o s . P a r a começar, A l d o E r a s m o quer vender a ç õ e s de petró-
leo a o L e i t ã o L e i r i a . . .
— E o Cambará?
— I n t e r e s s a d o na c o m p a n h i a de petróleo e por sua vez
querendo v e n d e r um terreno ao E r a s m o e outro ao Leiria.
— O Gedeão B e l é m apojando D. Dodó para que e l a pense
que ele é um católico sincero e faça b o a s referências dele ao
Arcebispo.
— E D. D o d ó por s u a v e z agradando o Gedeão para que
ele continue a publicar no s e u jornal r e p o r t a g e n s sobre os
s e u s a t o s de caridade e a r t i g o s e l o g i o s o s em t o r n o do casal
L e i t ã o Leiria.
— E o Coronel J a n g o J o r g e ?
— V e i o do interior t r a t a r de a s s u n t o s de s e u interesse
na Secretaria da Fazenda. E c o m o s a b e que o A l d o E r a s m o
t e m b o a s relações c o m o S e c r e t á r i o . . .
— C o m o é que v o c ê pode e s t a r t ã o b e m i n f o r m a d o ?
— N ã o é que eu seja p e n e t r a n t e . . . E l e s é que s ã o t r a n s -
SAGA 285
p a r e n t e s . E d e p o i s o clínico, seja c o m o f o r , n ã o p a s s a d e u m a
espécie de detetive...
Vera vai ao encontro da criada que e n t r a com pratos de
frios n u m a bandeja.
— E Vera? — indago.
— Posso lhe afiançar que não t e m interesses comer-
c i a i s . . . m a s tem i n t e r e s s e s .
— N o r m a ? . . . — arrisco.
Abel ergue as g r o s s a s sobrancelhas, fita os olhos em m i m
e d e p o i s , s o r r i n d o , s a c o d e a c a b e ç a d e v a g a r i n h o , n u m a con-
firmação.
— E quanto a nós? — pergunto.
O m é d i c o t o m a u m g o l e d e whisky, p õ e o c o p o e m c i m a
duma pequena mesa e conclui:
— Nós devemos t e r t a m b é m os nossos interesses. Bom.
Até j á . . .
a r m á r i o c o m l i v r o s , q u a d r o s p e l a s p a r e d e s . T u d o m e i o esfu-
mado.
Norma apanha um pente de cima de uma mesinha e,
p o n d o - s e na p o n t a d o s p é s , c o m e ç a a me p e n t e a r . O c a l o r e
o perfume de seu corpo me envolvem e p e n e t r a m . Meus bra-
ços p o r b r e v e s i n s t a n t e s f i c a m c a í d o s a o l o n g o d o c o r p o . M a s
d e n t r o d e a l g u n s s e g u n d o s , o b e d e c e n d o a u m a m i s t e r i o s a or-
d e m , eles s e e r g u e m e e n l a ç a m N o r m a p e l a c i n t u r a . O u ç o o
ruído do pente que cai. E as m ã o s dela n ã o q u e r e m m a i s pen-
t e a r e sim a r r a n c a r m e u s cabelos. Nossos lábios se procuram,
se a c h a m , se e s m a g a m . O bafo cálido do inferno nos envolve,
e eu sinto u m a fúria ofegante e dilaceradora a p o d e r a r - s e de
mim.
A p o r t a se abre de repente e um vulto branco aparece.
Vera. Separamo-nos.
— A h ! Vocês estavam a í ? . . .
N o r m a f a z m e i a - v o l t a e c a m i n h a p a r a ela. T r ê m u l o e
desconcertado deixo-me ficar onde estou.
V o l t a m o s p a r a o s a l ã o e m silêncio. A t m o s f e r a e n f u m a ç a -
da e t é p i d a .
A criada sonolenta a n d a d u m lado p a r a o u t r o com u m a
g a r r a f a d e whisky e m c i m a d e u m a b a n d e j a . A l d o E r a s m o ,
grisalho, empertigado e impecavelmente vestido, como o Lewis
Stone dos bons tempos, acha-se recostado ao piano, dizendo
n ã o sei q u e a o o u v i d o d e G r a c i n d a A v e i r o , q u e s o l t a r i s a d a s
convulsivas, ao mesmo t e m p o que tira do teclado acordes
dissonantes que são como a c o m p a n h a m e n t o s p a r a as suas
gargalhadas.
Um dos mocinhos encontra-se deitado de todo o compri-
mento em cima do tapete, ressonando, ao passo que outro
deles cita t r e c h o s do "Obrydon" de Gide p a r a o Dr. Abel e
Roberta, q u e estão s e n t a d o s no sofá.
V e r a a r r a s t a N o r m a p a r a o hall e e u m e v o u i n s t a l a r
n u m a das extremidades da sala.
P o u c o d e p o i s s o a a c a m p a i n h a da p o r t a . E A n t o n i u s ,
d e s c a b e l a d o e p á l i d o , c o m a g r a v a t a d e s a m a r r a d a , e q u a s e em
estado de coma, é t r a z i d o p a r a d e n t r o por dois amigos. Aldo
limita-se a olhar p a r a Roberta com ar contrariado e, afas-
t a n d o - s e d o p i a n o , v a i a j u d a r o s r a p a z e s a l e v a r o filho a t é
o q u a r t o . Pouco depois R o b e r t a o segue. Voltando a cabeça
e d a n d o c o m i g o , o D r . A b e l e r g u e - s e e se a p r o x i m a de m i m .
— Com s o n o ? — p e r g u n t a .
Faço um sinal afirmativo.
288 ERICO V E R Í S S I M O
— A R o b e r t a e s t e v e me f a l a n d o em v o c ê . . .
— Sim?...
— Quero que pinte o meu retrato. Não é vaidade, não.
p a r a m a n d a r a u m a tia velha que me quer bem e que t e m
ilusões a meu respeito.
Sacudo a cabeça, sem entusiasmo, ao m e s m o tempo que
a b a f o um bocejo. E f i c a m o s a c o m b i n a r a d a t a da p r i m e i r a
pose.
Os a m i g o s de A n t o n i u s v o l t a m p a r a a s a l a e a d e r e m à
festa, a t r a v é s do whisky e da p a l e s t r a . F i c a m a d i s c u t i r n ã o
sei q u e c o m G r a c i n d a A v e i r o . O j o v e m a d m i r a d o r d e A n d r é
Gide se e n c a m i n h a p a r a nós e sem o m e n o r prelúdio começa
a f a z e r a d e f e s a da p e d e r a s t i a . E s t á c o m a voz um p o u c o a r -
r a s t a d a e seus olhos são lânguidos. O belo-adormecido acor-
da, l e v a n t a - s e e , e s t r e m u n h a d o e e s g a l g o , v e m r e t o m a r u m a
d i s c u s s ã o i n t e r r o m p i d a pelo s o n o . E diz, p r o v o c a n t e , n a c a r a
do nosso interlocutor:
— O Gide é u m a b e s t a .
G r a c i n d a começa a c a n t a r u m a r u m b a lúbrica e s u a s an-
cas dançam em cima da banqueta do piano, suas narinas
inflam e, de cabeça erguida, olhos revirados, o m b r o s a subir,
a d e s c e r e a c o l e a r , ao r i t m o da m ú s i c a , e l a fica a m u g i r em
espanhol.
E quando os dois rapazes nos d e i x a m em paz, o Dr. Abel,
oferecendo-me um de seus ótimos cigarros, p e r g u n t a :
— Q u e é q u e a c h a da f e s t a ?
— A c h o q u e é a, m e l h o r i m a g e m do m u n d o m o d e r n o .
N i n g u é m a c r e d i t a em n a d a . A o r d e m do d i a é — g o z a r , go-
zar a qualquer preço. Todos querem aproveitar o momento
que passa, cada q u a l se m o v e levado pelos apetites, pouco
i m p o r t a n d o o q u e possa v i r depois.
O D r . A b e l s a c o d e a c a b e ç a l e n t a m e n t e . S e u s o l h o s so-
nolentos brilham fracamente sob as sobrancelhas espessas.
— E o q u e a c h o m a i s e s t r a n h o — diz ele, p a u s a d a m e n t e
— é e s s e s m e n i n o s e s t a r e m aí a b e b e r , a d i s c u t i r " C o r y d o n " ,
Gide, M a t i s s e e o s u r r e a l i s m o , c o m o se r e p r e s e n t a s s e m um
fim de raça, n u m a t e r r a em que a r a ç a ainda n e m principiou.
— É de b o m - t o m d i s c u t i r p r o b l e m a s f r a n c e s e s , p r i n c i -
palmente os de a r t e e l i t e r a t u r a . . .
— E nós, com t a n t o s problemas palpáveis por a í . . .
Roberta t o r n a a e n t r a r na sala.
— N ã o v i r a m a V e r a e a N o r m a ? — p e r g u n t a ela.
E c o m o r e s p o n d e m o s n e g a t i v a m e n t e , a d o n a da c a s a se
SAGA 289
a f a s t a d e n ó s n a d i r e ç ã o d o hall, d i z e n d o c o m a c a b e ç a vol-
tada para trás:
— A p o s t o c o m o f o r a m lá p a r a a s o t é i a .
E s t o u cansado, com a boca e a alma a m a r g a s . N ã o posso
esquecer o que se passou e n t r e m i m e N o r m a no q u a r t o de
A n t o n i u s . A c h e g a d a d e V e r a t a l v e z m e t e n h a s a l v o d e fu-
t u r a s complicações. M a s apesar disso eu sinto a irritação que
v e m do d e s e j o s ú b i t a e v i o l e n t a m e n t e d e s p e r t a d o e n ã o s a -
tisfeito.
Às q u a t r o e m e i a d e i x o a c a s a d o s E r a s m o . S a i o a ca-
m i n h a r pela r u a fria e deserta. Ao atravessar u m a praça
julgo v i s l u m b r a r um vulto familiar. Um choque. . . Alto,
encurvado, passos arrastados, a maleta na m ã o . . . Impossí-
vel. O D r . S e i x a s e s t á m o r t o e o s m o r t o s n ã o v o l t a m . S e j a
como for sinto que o r i t m o de m e u coração se altera e eu
paro. Ilusão. Foi a sombra duma árvore. Continuo a andar.
E p e n s o : Q u e f a r i a eu se e n c o n t r a s s e a a l m a do D r . S e i x a s ?
P r o v a v e l m e n t e seguiríamos os dois lado a lado a t r a v é s desta
m a d r u g a d a d e a g o s t o , e e u lhe c o n t a r i a d a s m i n h a s d ú v i d a s ,
d a s m i n h a s i n q u i e t a ç õ e s , e d o m e u g r a n d e desejo d e e n c o n -
t r a r um c a m i n h o firme na vida — um c a m i n h o de beleza e
de bondade, livre dos velhos e r r o s e dos velhos ódios.
Venta. E r g o a gola do sobretudo. O céu está enfuma-
çado e plúmbeo. As folhagens farfalham. E um a um os meus
espectros vêm chegando. Amigos mortos de Jacarecanga. Os
companheiros d a s t r i n c h e i r a s . M a r c h a m a m e u lado encolhi-
d o s e c a l a d o s , c o m o s e t a m b é m s e n t i s s e m frio, c o m o s e t a m -
b é m l e v a s s e m c o n s i g o o p e s o de r e m o r s o s e d e c e p ç õ e s .
1O
25 de agosto
A m a n h e c e r a m s o m b r i o s o s h o r i z o n t e s d o m é s t i c o s . Cla-
r i s s a s a b e d a h o r a e m q u e c h e g u e i à c a s a o n t e m e e s t á en-
ciumada. Principiou por não q u e r e r que eu fosse à festa.
N ã o d i s s e isso c l a r a m e n t e , m a s i n s i n u o u a t r a v é s d e p e r g u n -
t a s isoladas, feitas com ar casual "Será que a festa t e r m i n a
m u i t o t a r d e ? " — " A c h a s que vais te d i v e r t i r ? " — "Dizem"
que essa Roberta é muito g r ã - f i n a . . . Tu te sentirás bem
no meio daquele pessoal?". Tratei de convencê-la com os mes-
mos a r g u m e n t o s que F e r n a n d a usou comigo. F a z e n d o rela-
ções com os a m i g o s dos E r a s m o eu podia conseguir a enco-
m e n d a de a l g u n s r e t r a t o s . . .
Saio da c a m a às dez e meto-me n u m b a n h o m o r n o . Quan-
d o e n t r o n a s a l a d e j a n t a r e n c o n t r o a m e s a p o s t a p a r a o café.
— C o m leite ou s e m l e i t e ? — p e r g u n t a C l a r i s s a c o m
voz u m p o u c o v e l a d a , s e m m e o l h a r .
— Sem leite. E sem ciúme t a m b é m .
E l a se fecha n u m m u t i s m o sombrio.
S e n t o - m e à m e s a . C l a r i s s a m e d e s p e j a o café n a x i c a r a .
Ê u m a m a n h ã cinzenta de chuva.
— A F e r n a n d a t e l e f o n o u p e r g u n t a n d o se e s t á s d o e n t e . . .
— A h . .. sim ?
— Eu disse que não, que estavas dormindo porque ti-
n h a s chegado a casa quase de manhã.
— Cinco h o r a s — corrijo-a. — O dia não t i n h a clareado
ainda.
E l a faz m e i a - v o l t a , séria e c a m i n h a até a janela. Fica
ali c o m o r o s t o e n c o s t a d o n a v i d r a ç a , e n q u a n t o e u t o m o o
m e u café. E r g o - m e e m e a p r o x i m o d e l a .
— Zangada?
Clarissa sacode a cabeça n e g a t i v a m e n t e , sem se voltar.
— N ã o t e m confiança no G a t o - d o - m a t o ?
292 ERICO V E R Í S S I M O
E l a t o r n a a sacudir a cabeça.
— N ã o quero ir embora sem te ver sorrir.
Silêncio.
— Vamos, Clarissa, não há razão para ficares assim. ..
E l a continua imóvel.
— E s t á b e m . . . — digo, com ar conclusivo.
E n f i o o i m p e r m e á v e l e a p a n h o o c h a p é u . T o r n o a me
a p r o x i m a r dela e com a voz m a i s d r a m á t i c a que m e u t a l e n t o
teatral permite, m u r m u r o :
— Terás remorsos quando souberes que a c h a r a m o meu
cadáver boiando no rio.
Atravesso a sala quase correndo na direção da porta.
Ganho o p a t a m a r e q u a n d o me p r e p a r o p a r a descer a escada,
ouço r u í d o de passos a p r e s s a d o s a t r á s de m i m e a voz de
Clarissa:
— Vasco!
V o l t o - m e . A b r o o s b r a ç o s p a r a r e c e b ê - l a . S i n t o seu co-
ração b a t e r descompassado contra o m e u peito.
— Oh, Vasco, p o r q u e é que tu fazes a s s i m ? P o r que é?
H á u m t o m d e f u n d a q u e i x a e m s u a voz. A c a r i c i o - l h e
os cabelos e lhe m u r m u r o ao ouvido:
— P e n s a s t e que eu estava falando sério?
— A gente. . . a gente contigo nunca sabe. Pode ser
b r i n q u e d o . .. e p o d e s e r s é r i o . — E c o m v e e m ê n c i a , me a p e r -
t a n d o os b r a ç o s : — E eu não quero te perder!
A g o r a q u e m e s t á e m o c i o n a d o e a r r e p e n d i d o s o u e u . Co-
mecei um brinquedo que quase t e r m i n a em lágrimas. E é
c o m voz p e r t u r b a d a q u e e u l h e d i g o :
— Tu não me perderás. .. Nunca.
E l a se a f a s t a um pouco, ergue o rosto p a r a m i m e diz:
— Já ias sair com a g r a v a t a t o r t a , Vasco. Pareces u m a
criança que a gente tem de andar sempre arrumando.
Dez e q u a r e n t a . N a r e d a ç ã o . F e r n a n d a e N o e l d i s c u t e m
os destinos de " A v e n t u r a " cujas t i r a g e n s a u m e n t a m de nú-
mero p a r a número. Centenas de pequenos leitores escrevem
c a r t a s dizendo de s u a s preferências. A l g u n s pedem as proe-
zas de Popeye, outros de F l a s h Gordon, Mickey Mouse, B r a n -
ca de Neve e os 7 A n õ e s i n h o s . U m a sensível m a i o r i a prefere
as histórias de g u e r r a e as aventuras fantásticas. Noel está
decepcionado diante do desamor que as crianças de hoje re-
v e l a m pelos c o n t o s d e f a d a . S ó p a r e c e m a c e i t á - l o s q u a n d o eles
SAGA 293
e n t e s , o q u e h á d e belo e d e r o m a n e s c o n a r e a l i d a d e : o s
m i s t é r i o s d a física, d a q u í m i c a , d a b i o l o g i a . O m u n d o q u e
e x i s t e n u m a s i m p l e s g o t a d e á g u a , o fino t a p e t e d e c o r e s e
b o r d a d u r a s fantásticas que é a a s a duma mosca vista ao mi-
croscópio. A vida das abelhas e d a s formigas. A sabedoria
dos animais. A g r a n d e e comovente a v e n t u r a do h o m e m na
terra. Acha que é um erro acenar para os espíritos infantis
com fantasias que são u m a contrafação da realidade. Isso só
p o d e t o r n a r m a i o r e m a i s c o n t u n d e n t e o c h o q u e q u e eles v ã o
ter com o mundo quando se puserem em contato mais direto
c o m ele.
— M a s m a t a r a s f a d a s — diz N o e l e m d a d o m o m e n t o
— é o m e s m o q u e m a t a r a p o e s i a e s e m p o e s i a a v i d a se
t o r n a intolerável.
— De a c o r d o , m e u filho — r e p l i c a F e r n a n d a . — M a s é
um e r r o p e n s a r que só existe poesia nos contos de fadas ou
no reino da p u r a imaginação. A g r a n d e e profunda poesia
encontra-se na vida. É a única d u r a d o u r a e fecunda. Nós
a c e i t a m o s , p o r e x e m p l o , a c h u v a , os a s t r o s , a m u d a n ç a d a s
estações, o crescimento d a s p l a n t a s , a r e g e n e r a ç ã o dos teci-
dos, o sistema solar como sendo p a r t e s d u m a realidade pro-
s a i c a , m a t e r i a l e q u o t i d i a n a e a c h a m o s q u e a p o e s i a m o r a no
r e i n o d o s g n o m o s d e B r a n c a d e N e v e e d a M e n i n a d o Cha-
pelinho Vermelho. Que é a radiotelefonia senão p u r a magia \
E a t e l e v i s ã o ? E a célula f o t e l é t r i c a ?
De contos de fadas saltamos p a r a a literatura chamada
s é r i a . F i c a m o s a i n d a a d a n ç a r em t o r n o d o s t e r m o s real e irreal.
Noel refere-se ao seu livro no qual, a conselho de F e r n a n d a ,
p r o c u r o u f u g i r d o m u n d o ideal, d e s c e n d o p a r a a t e r r a .
— A v e r o s s i m i l h a n ç a — diz ele, b a t e n d o de leve c o m um
l á p i s na p a l m a da m ã o — é o m a i o r o b s t á c u l o p a r a o a r t i s t a .
E eu, q u e e s t o u a g o r a a d e s e n h a r J e s u s n a c e n a d a r e s -
surreição de Lázaro, detenho-me p a r a dizer:
— Q u a n d o a g e n t e diz q u e u m a p e r s o n a g e m ou s i t u a ç ã o
d e r o m a n c e é i m p o s s í v e l , f a l a d e s e u â n g u l o i n d i v i d u a l limi-
tado. Cada h o m e m tende a achar impossível t u d o a u a n t o se
encontra fora do campo de sua experiência.
— A v i d a é l i m i t a d a . .. — diz N o e l .
— N ã o d i g a isso — r e t r u c o . — T a l v e z a s u a e x p e r i ê n c i a
que seja estreita.
— N ã o digo o contrário. M a s . . . t o m e m o s por exemplo
pedaço da nossa realidade quotidiana. A família do Mo
SAGA 295
C a i u c o m u m b a q u e n a s p e d r a s d o c a l ç a m e n t o , u m b a q u e seco
e ao m e s m o t e m p o e s t r a n h a m e n t e musical. C o r r e m o s . . .
Noel e F e r n a n d a me olham, interessados, esperando.
Concluo:
— O corpo do polaco achava-se intato, n ã o t i n h a um
único a r r a n h ã o . . . Mas sua cabeça estava e s m a g a d a debaixo
do piano.
27 de agosto
31 de agosto
t e a t r o s , a o s c a f é s - c o n c e r t o , lia-se l i t e r a t u r a d e boulevard.
Vocês r a p a z e s de hoje n ã o c o m p r e e n d e m isso. O " m e u " mun-
do e s t a v a apenas em lua-de-mel com o progresso mecânico.
A aviação ainda se achava na primeira infância. Havia tem-
p o p a r a v i v e r . H o j e n ã o h á . N ã o h á t e m p o p a r a n a d a . Veio
a g u e r r a e depois o m u n d o e n t r o u n u m r i t m o acelerado. Pa-
recia que e s t a v a c a m i n h a n d o para a l g u m a coisa decente. P u r o
engano. E s t a v a mas era correndo para outra guerra. Para
e s s a q u e v a i e s t o u r a r d e n t r o d e p o u c o s d i a s . N ã o sei o q u e
virá depois da catástrofe. A c h o que a derrocada de tudo.
— Q u e m s a b e ? T a l v e z d a s r u í n a s s u r j a a l g u m a coisa
nova e decente.
Penso no m u n d o socialista com que sempre sonhei.
Meu c a r v ã o continua a p a s s e a r na tela, deixando nela o
seu r a s t r o negro, que vai t o m a n d o a meu ver a semelhança
do Dr. Abel.
— N ã o s e i . .. — S u s p i r a ele. — Se d e p e n d e r de m i m , o
mundo está perdido.
E, remexendo-se um pouco na cadeira, confessa:
— V o u lhe d i z e r o q u e se passa^ c o m i g o . No f u n d o o que
sou é um grande preguiçoso. Quando rapaz, t i n h a planos. Ia
m e f o r m a r e m m e d i c i n a e d e p o i s d e d i c a r o m e u t e m p o a pes-
quisas bacteriológicas. Talvez descobrisse algum micróbio
e n g r a ç a d o e essa descoberta pudesse ser de a l g u m a utilidade
p a r a o m u n d o . M a s q u a l ! Mal me pilhei com o diploma, ati-
rei-me a u m a vida descansada. Livros, conforto, mulheres.
F u i u m a vez mais à E u r o p a . Sabe o que me aconteceu? Quan-
d o e s t a v a v i a j a n d o t i n h a v o n t a d e d e v o l t a r , v o l t a r p a r a ficar
parado, p e n s a n d o . . .
— Um c o n t e m p l a t i v o . . .
— E s s a p a l a v r a é bonita. M a s preguiçoso é o adjetivo
exato. U m bom cigarro, u m a boa poltrona, u m b o m livro o u
então u m a boa prosa fiada.
— Ainda bem que tem recursos para i s s o . . .
— A v e r d a d e é q u e eu t e n h o m a i s d i n h e i r o do q u e de-
sejava e merecia.
— Ê a p r i m e i r a v e z em t o d a a m i n h a v i d a q u e o u ç o
a l g u é m d i z e r i s s o . R e s t a s a b e r s e e s t á f a l a n d o c o m since-
ridade.
— E s t o u , s i m . S e r i n s i n c e r o d á m a i s t r a b a l h o d o q u e ser
sincero.
— Alguma herança?
— E x a t a m e n t e . Vários antepassados meus se esfalfaram
SAGA 299
— E se v o c ê quiser c o n s e r v a r i n t a t o e s s e território de
esperança, beleza e n ã o sei m a i s q u e . . . . salve-se e n q u a n t o é
tempo.
— S i m . . . R e u n i n d o a s p a l a v r a s d o D r . Martin, c o m a s
de D o m Miguel e c o m as m i n h a s o b s e r v a ç õ e s , creio q u e p o s s o
f o r m a r u m quadro n í t i d o . . .
— E que é que v o c ê vê n e s s e q u a d r o ?
E eu lhe respondo s i m p l e s m e n t e :
— A velha terra.
11
3 de setembro
f a l a m à n o s s a i n f â n c i a em justiça e liberdade, c o n t a m - n o s
h i s t ó r i a s que t ê m u m a moral, f á b u l a s e m que n o f i m o mau
é c a s t i g a d o e o b o m premiado. E n c h e m - n o s a cabeça de pa-
l a v r a s e idéias g r a n d i o s a s e nobres, p r o m e t e m - n o s um mundo
h a r m o n i o s o e limpo, e, no e n t a n t o , nada m a i s f a z e m do que
n o s preparar p a v o r o s a armadilha. A t i r a m - n o s de o l h o s ven-
d a d o s contra o s c a n h õ e s .
D. Clemência n ã o compreende b e m a guerra. T e m um
a r g u m e n t o s i m p l i s t a : "Guerra é coisa de g e n t e louca". E l a
s e l e m b r a d e 9 3 , d e 2 3 . Quando m e n i n a v i u u m h o m e m de-
g o l a d o perto d u m p o ç o . . . A i m a g e m de horror n ã o lhe saiu
m a i s d a memória. E l a s e lembra t a m b é m d a s g r a v u r a s d a
outra guerra. E na s u a t r i s t e z a há m u i t o de e s t o n t e a m e n t o
e i n c o m p r e e n s ã o . C o m o é que os h o m e n s q u e r e m v i v e r e v ã o
para a g u e r r a ?
Clarissa n ã o t i r a o s o l h o s d e m i m . Todos o s s e u s t e m o -
r e s s e c o n c e n t r a m decerto n o G a t o - d o - m a t o , c u j o s g e s t o s
"a g e n t e n u n c a sabe". E se ele "inventa" de ir para e s t a
g u e r r a c o m o foi para a da E s p a n h a ? Õ m e u D e u s , eu t e n h o
confiança em v ó s , fazei que o V a s c o t e n h a juízo, que essa
g u e r r a horrível a c a b e l o g o , q u e n ã o morra m u i t a gente, e
que a s cidades n ã o s e j a m b o m b a r d e a d a s . Ó m e u Deus, e u
t e n h o esperança e m v ó s .
E t r ê m u l a e silenciosa e l a aperta a minha m ã o e — ver-
dade ou i l u s ã o ? — fico a e s c u t a r as b a t i d a s d e s c o m p a s s a d a s
d e s e u coração.
E u g ê n i o t a l v e z e s t e j a pensando e m Olívia, n o s s e u s so-
n h o s de paz e bondade, no que há de d o l o r o s a m e n t e absurdo
no t r a b a l h o dos m é d i c o s q u e p r o t e g e m a s a ú d e d a s crianças,
f a z e m t u d o para que e l a s c r e s ç a m s a d i a s e b e l a s só para
q u e u m dia, n u m c a m p o d e b a t a l h a s i r v a m d e alvo à s me-
tralhadoras. N ã o s e r á m e l h o r fazer c o m o e s s a s criaturas des-
preocupadas que só p e n s a m no m o m e n t o que p a s s a e se en-
t r e g a m f r e n e t i c a m e n t e a o s prazeres d o s s e n t i d o s ? U m mé-
dico s o f r e quando n ã o pode s a l v a r a v i d a de um octogenário,
e no e n t a n t o a e s t a h o r a na Polônia m o r r e m a o s m i l h a r e s
j o v e n s de v i n t e anos. E n a s r u a s de V a r s ó v i a bombardeada
pelos a v i õ e s a l e m ã e s c a e m m u l h e r e s e crianças. De que ser-
v e m a p a l a v r a e o e x e m p l o dos idealistas se o que triunfa
é a f o r ç a ? E D e u s ? D e u s onde e s t á ?
Q u a n t o a m i m e s t o u pensando e m Áxel, D e N i c o l a , Green,
S e b a s t i a n B r o w n , n a q u e l e s c a d á v e r e s que ajudei a enterrar,
n o s m i l h a r e s d e h o m e n s que v i t o m b a r e m . . .
SAGA 307
6 de setembro
11 de setembro
A c a m p a n h a de C a m b a r á contra F e r n a n d a t e m recru-
d e s c i d o n e s t e s ú l t i m o s d i a s . O n t e m , a o v o l t a r d a m i s s a , es-
c a n d a l i z a d a e t r i s t e , C l a r i s s a me c o n t o u q u e logo a p ó s o ser-
m ã o o p a d r e a c o n s e l h o u a o s c a t ó l i c o s a l e i t u r a a s s í d u a de "A
O r d e m " , " j o r n a l q u e d e f e n d e o s i n t e r e s s e s c r i s t ã o s " e reco-
mendou veementemente aos chefes de família que não dêem
a ler aos filhos "A A v e n t u r a " , revista que está a serviço das
forças do mal".
Ê fácil d e s c o b r i r n i s s o o d e d o de G e d e ã o B e l é m , que
a i n d a o n t e m e s c r e v e u um f l o r i d o a r t i g o s o b o t í t u l o — "A
Redação de Aventura é um Ninho de Comunistas".
F e r n a n d a continua impávida. Noel se debate n u m a tre-
m e n d a luta de consciência. M a s u m a visita do P a d r e Rubim
o deixa apaziguado. O b o m h o m e m r e p r o v a os métodos de
B e l é m , q u e r e p u t a d e a n t i c r i s t ã o s , m a s d á a e n t e n d e r que
nada procurará fazer p a r a não "criar casos".
— Q u e D e u s p e r d o e a e s s e m a u c a t ó l i c o — conclui ele.
D e p o i s q u e ele s a i d i g o a F e r n a n d a :
— Isso não resolve nada. Precisamos reagir.
— Mas como? — indaga Noel com olhos assombrados.
— Ê u m a luta desigual. E depois, devemos ser j u s t o s . . . —
F a z u m a pausa, como quem reluta. F e r n a n d a e eu fitamos
o s o l h o s nele, e s p e r a n d o . D e c a b e ç a b a i x a , ele m u r m u r a : —
Não quero dizer que F e r n a n d a deva desistir.. . m a s é q u e . . .
é q u e n ã o p o d e m o s n e g a r q u e a n o s s a r e v i s t a d e c e r t a ma-
neira vai contra os interesses c a t ó l i c o s . . .
A b r o a b o c a p a r a d i z e r e n t ã o alguma" c o i s a v i o l e n t a e
a g r e s s i v a , m a s F e r n a n d a m e faz u m s i n a l . C o n t e n h o - m e .
12 de setembro
— Q u e é q u e v o c ê s d i z e m ? — p e r g u n t a ela, m u i t o c a l m a .
Noel atira-se n u m a poltrona e suspira:
— D i g o q u e é p e r d e r t e m p o , d i n h e i r o e e n e r g i a em con-
tinuar com esse c i n e m a . . .
Fernanda se volta para m i m :
— E a s u a opinião, V a s c o ?
Encolho os ombros.
— E u s o u G-man. N ã o t e n h o o p i n i ã o . E s p e r o o r d e n s .
E l a sacode a cabeça, sorrindo.
— Mas fique certo de que não darei ordem p a r a nenhum
a t o de violência.
Noel se empertiga na cadeira.
— Vasco, por favor, n ã o nos comprometa.
Seis e m e i a . C l a r i s s a , D. C l e m ê n c i a e eu e s t a m o s r e u n i -
dos em torno da mesa do jantar.
— P o r que é que e s t á s t ã o sério, V a s c o ? — pergunta
a primeira.
— Nada.
— M a s é q u e . . . é q u e tu e s t á s c a l a d o , t r i s t e . . .
E, servindo-se de tutu, D. Clemência me olha com o r a b o
d o s o l h o s e diz c o m o s e u c e p t i c i s m o s e r e n o e f a m i l i a r :
— Decerto está planejando uma das d e l e . . .
C l a r i s s a d e i x a c a i r o s t a l h e r e s e , d e t e s t a e n r u g a d a , fiem
a me olhar n u m a expressão de súplica.
13 de setembro
O s e s c r i t ó r i o s d a E R C A f i c a m n o 10.° a n d a r . A p r o x i m o -
me do guiché e digo a um funcionário que desejo falar com
A l m i r o C a m b a r á . E l e me faz sinal na direção de u m a p o r t a .
E n t r o . Sala d e e s p e r a . J u n t o d e p e q u e n a m e s a u m a r a p a r i g a .
Q u a n d o entro, ela se l e v a n t a e p e r g u n t a :
— Que é que o senhor deseja?
— Quero falar com o Cambará.
— Tem hora marcada?
— Não.
— Como é a sua g r a ç a ?
Digo-lhe o meu nome e acrescento:
— Pode dizer que é urgente.
312 ERICO V E R Í S S I M O
A m o ç a d i r i g e - s e p a r a a s a l a c o n t í g u a e v o l t a d e p o i s de
alguns instantes dizendo que posso e n t r a r .
Cambará se encontra entrincheirado atrás de um grande
e p e s a d o bureau d e m a d e i r a p r e t a l a v r a d a , e m c i m a d o q u a l
se vêem dois telefones, um tinteiro de bronze e papéis em
desordem. Pelas janelas e n t r a a algazarra das crianças e dos
pardais da praça fronteira.
— Então, Vasco?
Felizmente não me estende a mão. Aproximo-me da me-
sa, seguro-lhe as b o r d a s , inclino-me um pouco p a r a a frente
e pergunto:
— Q u a n d o é q u e v o c ê v a i d e i x a r a F e r n a n d a em p a z ?
C a m b a r á b r i n c a com a corrente do relógio s e m me res-
p o n d e r . E c o m o m e u s o l h o s n ã o d e i x a m o s s e u s , ele t e n t a
desconversar:
— Q u e s e r i e d a d e é e s s a , r a p a z ? S e n t e aí, n ã o s e j a b o ô o .
Torno a perguntar, mordendo as sílabas:
— Q u a n d o é q u e v o c ê v a i d e i x a r a F e r n a n d a em p a z ?
C a m b a r á f r a n z e a t e s t a , e n d i r e i t a o b u s t o na c a d e i r a e
engrossa a voz:
— V o c ê s e m p r e foi d e s o r d e i r o , V a s c o . M a s c o m i g o a
c o i s a é d i f e r e n t e . O l h e q u e eu p o s s o m a n d á - l o p a r a a c a d e i a .
— Os da s u a laia a c h a m que t u d o na vida se pode resol-
v e r n a polícia.
Cambará se ergue.
— O m e l h o r é v o c ê ir e m b o r a a n t e s q u e eu p e r c a a p a -
ciência.
U m a pausa ofegante.
— E u vou. M a s a n t e s q u e r o d i z e r o q u e h á m u i t o e u
tenho atravessado na g a r g a n t a . Tenho conhecido tipos baixos,
sujos e i n d e c e n t e s . . . m a s você, C a m b a r á , é único em seu
gênero. Merece um lugar no m u s e u dos salafrários.
C o m a c a r a c o n g e s t a e os o l h o s c h i s p a n t e s , ele c o n t o r n a
a m e s a , e, i n v e s t i n d o c o n t r a m i m , p r o c u r a a g a r r a r - m e a
lapela do casaco, nesse gesto clássico das b r i g a s a respeito
das quais o herói mais t a r d e conta — "Abotoei o patife e
disse-lhe meia dúzia de desaforos na cara." Com um forte
e m p u r r ã o faço C a m b a r á cair de costas sobre a mesa. Mas
ele t o r n a a se p ô r de pé e, o r o s t o c o n t o r c i d o de r a i v a , faz
um g e s t o h e r e d i t á r i o — l e v a a m ã o à c a v a do c o l e t e e t i r a
o punhal.
— E u t e m o s t r o , c a p a n g a s e m v e r g o n h a ! — r o s n a ele.
SAGA 313
diz F e r n a n d a c o m a s m ã o s n o v o l a n t e e o s o l h o s n a e s t r a d a .
— Vão passar um mês na nossa granja lá na serra e na
v o l t a a s u a c a b e ç a e s t a r á d e s a n u v i a d a p a r a r e c o m e ç a r a lu-
ta. ..
U m a breve pausa.
— E u e s t i v e p e n s a n d o n u m a coisa, F e r n a n d a . . .
— Sim...
— Em não v o l t a r . . . Ficar junto da terra, n u m a vida
m a i s s i m p l e s . . . — E l a me olha com a t e s t a franzida e eu
prossigo. — Eu já lhe disse u m a v e z . . . Aquela a v e n t u r a na
E s p a n h a serviu p a r a que eu me conhecesse melhor, para que
eu visse o que t e n h o de b o m e de m a u d e n t r o de m i m . . .
— E que é que isso t e m a v e r com a s u a ida p a r a a
terra?
— É q u e eu c h e g u e i à c o m p r e e n s ã o de q u e a v i d a na
c i d a d e , c o m a s s u a s c o m p l i c a ç õ e s , faz q u e a t o d o m o m e n t o
e s t e j a s u b i n d o à t o n a e s s e lodo q u e d o r m e n o f u n d o d e c a d a
um de nós, ao p a s s o que n u m a vida simples e n a t u r a l eu po-
derei conservar em estado de pureza as qualidades boas que
sinto existirem e m m i m . . .
F e r n a n d a m e e s c u t a e m silêncio. E n t r a m o s n a R u a d a
Independência. A g a r o a cessou. P a r a os lados do poente se
a b r e u m a c l a r e i r a a z u l n o céu.
— Você v ê . . . — continuo. — Que fazemos t o d o s nós,
senão viver n u m a constante renúncia das coisas que mais
a m a m o s ? Ás vezes t e n h o vontade de sair com os m e u s petre-
c h o s e i r p i n t a r a s b a r c a s d e f r u t a s q u e v ê m d a s i l h a s e fi-
cam a t r a c a d a s nos cais menores ou então desenhar tipos da
r u a , t u d o pelo p u r o p r a z e r a r t í s t i c o . . . No e n t a n t o n ã o faço
isso porque preciso ir p i n t a r um r e t r a t o acadêmico e bem
l a m b i d i n h o d e D . D o d ó p o r q u e t r a b a l h o s a s s i m m e d ã o di-
nheiro. .. dinheiro p a r a comprar essas bugigangas que a
v i d a m o d e r n a t o r n o u i n d i s p e n s á v e i s . O r a , c o n t r a r i a n d o esse
meu desejo de liberdade artística e me obrigando a m i m
m e s m o a u m t r a b a l h o d e s a g r a d á v e l , e u r e c a l c o a l g u m a coisa,
cometo u m a espécie de a u t o t o r t u r a . Ao cabo de algum tempo,
fico p o r a í c h e i o d e m u t i l a ç õ e s e a l e i j õ e s i n t e r i o r e s , c o m r e -
flexos exteriores na cara, n a s m ã o s , nos gestos, n a s palavras.
O trabalho sem alegria envelhece. .. Acha que estou exage-
rando?
F e r n a n d a sacode a cabeça.
— Claro que não e s t á . . .
— Q u a n t o t e m p o faz que n ã o ouço m ú s i c a ? Há q u a n t a s
s e m a n a s não pego n u m bom livro p a r a ler? E, pior que tudo
SAGA 315
A s c o i s a s e s t ú p i d a s s e m p r e acontecem. U m a s o m b r a d e
repente escureceu n o s s a s v i d a s d e u m m o d o t ã o inesperada-
m e n t e absurdo, que n o s d e i x o u atordoados.
É noite e na c a s a de N o e l e s t a m o s velando um morto.
P e d r i n h o foi a s s a s s i n a d o e s t a m a n h ã por Manuel Pedrosa.
Tudo s e p a s s o u c o m u m a simplicidade cruel. N ã o podendo
sufocar o ódio pela nora n e m g u a r d a r por m a i s t e m p o um
segredo que lhe ardia no p e i t o — D. E u d ó x i a c o n t o u ao filho
da l i g a ç ã o de E r n e s t i d e s c o m Manuel. O r a p a z m a l t r a t o u a
m u l h e r e s a i u em s e g u i d a para a rua à procura do a m a n t e
para a clássica "satisfação". E n c o n t r o u - o dentro de um café
e, depois d u m a troca e x a l t a d a de palavras, esbofeteou-o. Co-
mo única resposta Manuel t i r o u do r e v ó l v e r e m e t e u - l h e u m a
bala no p e i t o à queima-roupa. P e d r i n h o baqueou m o r t o .
Ê n o s m e u s braços que s e u corpo e n t r a na c a s a de Noel.
Sempre ansiei pelo dia em que p u d e s s e dar a l g u m a coisa a
F e r n a n d a c o m o prova de r e c o n h e c i m e n t o por t u d o q u a n t o ela
t e m f e i t o por Clarissa e por m i m . P o i s b e m . O d e s t i n o deu-
s e p r e s s a e m m e s a t i s f a z e r e s s e desejo. A q u i e s t o u e u para
entregar à amiga este presente e n s a n g ü e n t a d o . . .
D . E u d ó x i a a c h a - s e parada n o m e i o d o vestíbulo, o s o l h o s
s e c o s e de e x p r e s s ã o dura. E quando, m u d o e aflito, eu me
detenho a s e u lado, ela c o n t e m p l a l o n g a m e n t e o filho s e m o
menor g e s t o e depois, c o m o se ele a p u d e s s e escutar, balbucia:
— U m t i r o n o p e i t o . . . B e m c o m o o t e u pai, b e m como
o teu p a i . . .
S e u s o l h o s t r á g i c o s se e r g u e m para m i m e se f i x a m no
m e u r o s t o cheios de ódio, c o m o se eu f o s s e o culpado de t u d o
quanto aconteceu. A q u i e s t o u eu com o c a d á v e r de P e d r i n h o
n o s braços, cercado d o c l a m o r lamuriento d o s B r a g a , d o s
g r i t o s h i s t é r i c o s de E r n e s t i d e s , que abraça e beija o marido
f r e n e t i c a m e n t e , n u m desespero adoidado.
318 ERICO V E R Í S S I M O
D. E u d ó x i a se e n c a m i n h a p a r a a escada e, voltando-se
p a r a m i m , diz c o m v o z s u r d a :
— O l u g a r do P e d r i n h o é lá em c i m a . E l e n ã o t e m n a d a
que fazer aqui embaixo.
Começa a subir a escada devagar. Sigo-a penosamente,
zonzo e a r q u e j a n t e , o s b r a ç o s d o l o r i d o s , o s p a s s o s p e s a d o s .
Lá e m b a i x o o choro e as l e m b r a n ç a s continuam.
Dez m i n u t o s d e p o i s c h e g a F e r n a n d a e s u a r e a ç ã o d i a n t e
d o c o r p o d o i r m ã o é p a r a m i m i n e s p e r a d a . J u l g u e i q u e ela
se contivesse, como em t a n t a s o u t r a s ocasiões igualmente
d i f í c e i s . . . M a s a o v e r P e d r i n h o e s t i r a d o n a c a m a , ela r o m p e
n u m choro desatado e convulsivo, que se prolonga por muito
tempo. Creio que F e r n a n d a não chora apenas o i r m ã o perdi-
do, m a s t a m b é m t o d a s as a n t i g a s dores recalcadas. É como
se de repente se partisse a r e p r e s a da v o n t a d e e as á g u a s
adormecidas, retomando o ímpeto de outros tempos, se pre-
cipitassem t a m b é m pela brecha. De súbito tenho a impressão
de que o m u n d o t r e m e , de que a l g u m a coisa no universo se
quebra, só porque F e r n a n d a chora. Tenho vontade de descer
as escadas correndo, g a n h a r a r u a e fugir. .. Mas Noel está
abatido e inerme. D. E u d ó x i a se m a n t é m n u m a imobilidade de
pedra. Lá embaixo Ernestides continua a g r i t a r e os B r a g a
dão largas ao talento histriónico, entregando-se a teatrais
e x i b i ç õ e s de p e s a r . É i n d i s p e n s á v e l q u e a l g u é m c o n s e r v e a
c a b e ç a f r i a , d o m i n e os n e r v o s e a s i t u a ç ã o . F i c o .
A l b u q u e r q u e , e m J a c a r e c a n g a . U m m o m e n t o p a r a m i m deci-
sivo e i n e s q u e c í v e l .
Imóvel ao pé do caixão, D. Eudóxia parece u m a e s t á t u a
t a l h a d a em g r a n i t o n e g r o e c i n z a . M a s n ã o . . . A g o r a a d u r e z a
desapareceu-lhe do rosto e nos olhos foscos há u m a tristeza
profunda — m a s u m a tristeza sem orgulho, submissa, deses-
perançada, v i l . . .
Modesto B r a g a desempenha as funções de m e s t r e - d e - c e -
r i m ô n i a s . É ele q u e m a c o l h e e a c o m p a n h a os q u e c h e g a m .
Recebe os pêsames com o devido ar penalizado. Dir-se-ia que
esta m o r t e lhe confere u m a certa importância. Neste mo-
m e n t o ele é a l g u é m : o s o g r o d a v í t i m a . U m a p e r s o n a l i d a d e
antes apagada m a s posta de súbito em destaque por u m a
moldura fúnebre.
Clarissa e D. Clemência acham-se na o u t r a sala fazendo
c o m p a n h i a a N o e l e F e r n a n d a . M o d e s t i n a , os o l h o s m a l i c i o -
sos a s a l t a r d u m lado p a r a outro, presta-se a pequenos ser-
viços e parece m u i t o contente por e s t a r envolvida n u m assun-
to de adultos. D. Adélia, que t e m prática de muitos outros
velórios, m a n d a s e r v i r cafezinhos. C h e g a m até aqui as risa-
d a s h i s t é r i c a s d e E r n e s t i d e s e m q u e m E u g ê n i o h á p o u c o foi
aplicar u m a injeção calmante. Dejanira e o seu s a r g e n t o
a c h a m - s e s e n t a d o s a u m c a n t o d a s a l a , d e m ã o s d a d a s e ca-
beças muito juntas.
O l h o em t o r n o — o c a i x ã o c o b e r t o de f l o r e s , os c í r i o s
ardendo e despedindo um cheiro nauseante, os "convivas"
bebericando g o s t o s a m e n t e o cafezinho, os noivos m u i t o agar-
rados — e começo a a c h a r este conjunto v a g a m e n t e porno-
gráfico. A morte é indecente — penso — indecente e vulgar;
não t e m a m e n o r dignidade. Digo isto ao P a d r e R u b i m , que
e s t á a m e u l a d o . I n c l i n a n d o a c a b e ç a ele m u r m u r a :
— P o d e ser, q u a n d o a g e n t e olha a p e n a s o aspecto m a -
t e r i a l da m o r t e . S i m , o c o r p o a p o d r e c e , é c o m i d o p e l o s v e r -
mes, m a s existe algo de puro e luminoso que não perece com
a carne, m a s sobe p a r a o céu onde t o d a a fealdade e todo
o sofrimento do mundo desaparecem p a r a sempre.
— P a d r e , se ao m e n o s eu p u d e s s e a c r e d i t a r - . . .
Ele sorri:
— M a s você pode, Vasco. Talvez o seu orgulho seja o
único empecilho. A hora da revelação divina há de chegar
t a m b é m p a r a a sua inteligência, p a r a o seu coração.
Fica a contemplar o caixão.
— Eu e n c a r o e s s a s c o i s a s c o m a m a i o r s e r e n i d a d e —
320 ERICO V E R Í S S I M O
p r o s s e g u e ele. — N ã o h á r a z ã o p a r a c h o r o s , foi o q u e e s t i v e
d i z e n d o h á p o u c o a o N o e l . O s q u e m o r r e m s ã o felizes. T e n h o
p e n a é dos que ficam neste m u n d o de pecado e maldade.
E c o m o e u m e m a n t e n h o n u m silêncio r e f l e x i v o , ele
acrescenta:
— O m a l de q u a s e t o d o s os v i v e n t e s é q u e eles d ã o de-
masiado apreço à vida terrena. — Volta-se para m i m e aper-
t a - m e o b r a ç o . — M e u filho, p e n s e b e m , a r r e p e n d a - s e e n -
q u a n t o é t e m p o . A m a n h ã p o d e s e r t a r d e d e m a i s . . . E u lhe
peço, e u . . . e u . . .
No seu rosto há u m a expressão de ânsia, de urgência,
de p e r i g o i m i n e n t e . . . D e p o i s , m a i s c a l m o , t o r n a a f a l a r : —
P o n h a a s u a mocidade, a sua força, a sua arte, o seu cora-
ção a serviço de Deus. F o r a da religião n ã o há paz possível.
Fico calado. Modestina vem me oferecer u m a xícara de
café. D i g o q u e n ã o , c o m u m m o v i m e n t o d e c a b e ç a . D u m m o -
do m i s t e r i o s o eu a s s o c i o o café ao v e l ó r i o , ao d e f u n t o , à m o r -
te. E me recuso desesperadamente a e n t r a r em comunhão
com esses elementos sombrios de destruição. Mais do que
nunca eu quero viver.
D e n t r o de dois m i n u t o s s u r g e E u g ê n i o e me convida p a r a
sair.
E s t a m o s no j a r d i m a c a m i n h a r de um lado p a r a outro,
f u m a n d o em silêncio.
— T u d o i s s o é t ã o e s t ú p i d o — diz E u g ê n i o , a p ó s a l g u m
tempo — que a gente n e m a c h a jeito de comentar.
S a c u d o a c a b e ç a n u m s i l e n c i o s o a c o r d o . P a s s a m o s o por-
t ã o e saímos a a n d a r lentamente pela calçada. P a s s a um
bonde iluminado e barulhento. A l g u m a s crianças brincam na
p r a ç a fronteira. Sentimos no r o s t o a b r i s a fresca da noite,
c a r r e g a d a do perfume de flores de laranjeira.
— É b o m r e s p i r a r ar p u r o — d i g o . — Há p o u c o lá den-
t r o estive pensando no que a morte t e m de v u l g a r . . .
— C o m o foi v u l g a r t a m b é m o q u e a c o n t e c e u . . . — a c r e s -
centa Eugênio. — O t i p o da história tola, do l u g a r - c o m u m . . .
— O m a i s h o r r í v e l e ao m e s m o t e m p o o m a i s b e s t a é
q u e t a n t o o M a n u e l c o m o o P e d r i n h o n ã o p a s s a v a m d e cri-
anças que e s t a v a m brincando de gente grande.
— Mas como u s a v a m das mesmas a r m a s que os adultos
usam, o que podia ser apenas u m a comédia se transformou
numa tragédia.
SAGA 321
— E M a n u e l , p o r s u a vez, t i n h a s i d o e d u c a d o n a m e s m a
escola. Cresceu ouvindo dizer que " h o m e m n ã o t r a z desaforo
p a r a c a s a " , " h o m e m q u e leva u m t a p a n a c a r a r e s p o n d e c o m
um t i r o ou u m a p u n h a l a d a " . É um código primitivo em t o r n o
do q u a l p o e t a s e e s c r i t o r e s t ê m f e i t o p o e m a s e r o m a n c e s , e
dito palavras de exaltação. Como se masculinidade dependes-
se apenas dessa coragem animal de d a r ou receber tiros.
— T o d o s n ó s f o m o s e d u c a d o s n e s s a escola. S ó n o s ensi-
n a r a m essa espécie de coragem.
— P e d r i n h o e Manuel são p r o d u t o s da m e s m a fábrica,
feitos do mesmo material, vítimas dos mesmos erros.
— N a d a m a i s fizeram que r e p r e s e n t a r na vida um papel
que os m a i s velhos lhes m e t e r a m na cabeça, influenciados
p o r s u a vez p e l o s f a n t a s m a s d e q u e v o c ê fala.
— Isso! R e p e t i r a m no palco, como pobres papagaios, as
p a l a v r a s que um ponto invisível lhes ditava. E n ã o compre-
enderam, pobres diabos, que e s t a v a m representando um dra-
m a v e l h o , sediço, b a t i d o e t r i s t e .
— O r e s u l t a d o foi e s s a s i t u a ç ã o . . . D u a s v i d a s c o r t a d a s .
— D u a s ? Pense em Ernestides e na posição de F e r n a n d a
com relação a ela e à família Braga, principalmente por
causa da filha de Pedrinho. Como resolver o problema?
Eugênio sacode a cabeça lentamente, olhando p a r a a
p r ó p r i a s o m b r a na calçada.
— T u d o c o m e ç o u no c a s a m e n t o e r r a d o — s u s s u r r a ele.
— O p r i n c í p i o do e r r o — r e p l i c o — e s t á m u i t o m a i s
longe, tão longe que se perdeu no tempo.
— E o pior é que outros d r a m a s como esse continuarão
a se r e p r e s e n t a r . . .
— E n e n h u m espectador t e r á c o r a g e m de se e r g u e r na
platéia p a r a vaiar, p a r a m o s t r a r que na peça não há lugar
p a r a t i r o s n e m mortes, que t u d o é u m a questão de bom-senso.
— É q u e eles s ã o f e i t o s do m e s m o e s t o f o d o s a r t i s t a s . . .
— E p o r s u a vez s ã o a t o r e s de o u t r o s d r a m a s .
V o l t a m o s sobre nossos passos. As colinas estão tranqüi-
l a s a o l u a r . P e n s o n a c a l m a d o s c a m p o s , d a s m o n t a n h a s e dos
vales e sinto um desejo de c o n t a t o s p u r o s e simples.
— Dentro de um mês espero m u d a r de vida. ..
E Eugênio, que sabe de meus planos, m u r m u r a :
— Invejo a sua c o r a g e m . . .
— C o r a g e m ? E s t i v e p e n s a n d o e m s e isso n ã o s e r á a p e -
nas covardia, u m a f u g a . . .
Ele sacode a cabeça.
SAGA 323
10 de outubro
E s t i v e f a z e n d o r e f l e x õ e s s o b r e o t e m p o . C h e g u e i à con-
c l u s ã o d e q u e ele t e m u m a c u r i o s a s e m e l h a n ç a c o m a á g u a .
S ã o a m b o s i n c o l o r e s e i n o d o r o s e se q u i s e r m o s l e v a r m a i s
longe a f a n t a s i a poderemos dizer que, como a á g u a , o t e m p o
t o m a a f o r m a do vaso que o contém. No caso do t e m p o o
continente pode ser o nosso espírito, os nossos desejos, os
324 ERICO V E R Í S S I M O
21 de outubro
— Só um p o u q u i n h o . .. — t r a n q ü i l i z o - a . — P a r a a g e n t e
pensar u m pouco.
— P e n s a r em q u ê ?
— Em n a d a . . . Só saborear melhor este momento.
Eugênio volta-se, lá embaixo, e g r i t a :
— Alô! Vocês não v ê m ?
E r g o a m ã o e sacudo-a no ar, n u m gesto negativo.
Noel e n t r a no automóvel. D. Clemência se volta p a r a nós
a f a z e r s i n a i s i n t e r r o g a t i v o s . M a s F e r n a n d a , s a c u d i n d o a ca-
beça, c o m p r e e n s i v a , p u x a a m ã e de C l a r i s s a p a r a o c a r r o . O
b a n d o s e v a i . E a q u i e s t a m o s n ó s n a f r e n t e d a i g r e j a , sozi-
nhos e casados.
— V a m o s fazer u m a viagem de n ú p c i a s . . .
— Viagem?
— A t é o P a r q u e da Redenção. F e i t o ?
— Feito.
— De a u t o m ó v e l ?
— Oh, V a s c o , já c o m e ç a s a g a s t a r d i n h e i r o à toa!
— M a s hoje é um g r a n d e d i a !
Puxo-a pela m ã o e descemos a escadaria quase a correr.
T e n h o u m a p l a n t a ç ã o de a c á c i a e g i r a s s o l . A a c á c i a t e m
g r a n d e p r o c u r a p a r a fins industriais. D e n t r o de q u a t r o anos
as árvores estarão todas crescidas. Dão pouco t r a b a l h o : a
t e r r a se e n c a r r e g a de t u d o . O e s s e n c i a l é q u e o p l a n t a d o r
c o m b a t a as f o r m i g a s e o c u p i m . D e s e n c a d e i o c o n t r a os for-
m i g u e i r o s u m a v i o l e n t a g u e r r a q u í m i c a , m a s s e m p r e q u e em-
p u n h o o fole n ã o p o s s o f u g i r a um s e n t i m e n t o de p i e d a d e ao
SAGA 333
p e n s a r n o m u n d o s o c i a l i s t a d a s f o r m i g a s l a b o r i o s a s , n a ci-
d a d e e x e m p l a r que vou destruir. Sinto-me b e m como u m gi-
gante perverso, quando estou derramando gases asfixiantes
pelo b u r a c o de um formigueiro. E n f i m , concluo, essa parece
s e r a lei d o m u n d o : a s c r i a t u r a s v i v e m u m a s d a m o r t e d a s
outras...
Em q u a t r o meses os girassóis estão crescidos e flamejam
à claridade deste magnífico verão. Logo que deitei as semen-
tes à terra, um vizinho me advertiu, pessimista:
— Olhe, moço, p l a n t a r girassol não é negócio. P l a n t e
o u t r a coisa que dê m a i o r resultado.
Encolhi os ombros.
— O r e s u l t a d o n ã o me i n t e r e s s a t a n t o c o m o o efeito d e -
corativo das flores — retruquei. — Planto girassol porque
acho bonito. O r e s t o . . . pouco se me dá.
E o colono ficou a me m i r a r c o m ar d e s c o n f i a d o . . .
Cheguei à conclusão de que na vida devemos fazer coisas
úteis, sim, m a s s e m p r e que possível de u m a m a n e i r a a g r a d á -
vel.
E u p o d e r i a , p o r e x e m p l o , u s a r d u m a r a d o m a i s leve e
moderno, puxado apenas p o r um cavalo. Prefiro, porém, um
a r a d o de tipo primitivo t i r a d o por u m a j u n t a de bois, por-
q u e a c h o n i s s o u m s a b o r r ú s t i c o e bíblico, q u e m e d á u m a
serena e benéfica alegria.
quila. As m a m i c a s r o s a d a s e l u s t r o s a s e s t ã o s e m i m e r g u l h a d a s
n a á g u a d o c h a r c o e m q u e o sol p õ e c i n t i l a ç õ e s d e o u r o . U m
pintainho arrepiado, que mais parece u m a pluma de algodão
a m a r e l o c o m d u a s p e r n a s , a p r o x i m a - s e p i p i l a n d o , b i c a o lodo
por um instante e depois se v a i . . .
F i c o a c o n t e m p l a r a p o r c a a d o r m e c i d a , e a e x p r e s s ã o de
imbecil e a b a n d o n a d a calma de seu focinho me dá u m a súbi-
ta e inexplicável esperança nos destinos do m u n d o e u m a
profunda fé na vida.
N o a l t o d u m a colina, a d o i s q u i l ô m e t r o s d e n o s s o s í t i o ,
n u m chalé em estilo bávaro, m o r a um alemão alto, louro,
b a r b u d o e silencioso, q u e vive solitário e n t r e seus livros e
seus cães de raça. É um apaixonado da música e m u i t a s ve-
z e s pela m a n h ã o u a o e n t a r d e c e r , q u a n d o o v e n t o s o p r a d o
sul, c h e g a m a t é nós os sons de seu ó r g ã o . E é b e m e s t r a n h o
s e n t i r a g e n t e q u e a a l m a d e B a c h a n d a p e r d i d a pelo v a l e
de Águas Claras, assombrando e s t a s m o n t a n h a s e florestas,
p e n e t r a n d o os chalés dos colonos e e n t r a n d o pelos ouvidos
dessas c r i a t u r a s simples, encardidas e de olhos vazios.
O m ê s p a s s a d o fiz r e l a ç õ e s c o m o m e u v i z i n h o s o l i t á r i o ,
que é um h o m e m b a s t a n t e cultivado. Trouxe-o à m i n h a casa
e mostrei-lhe meus livros e quadros. Ele gostou t a n t o de u m a
n a t u r e z a m o r t a , que acabei dando-lhe a tela de presente. O
336 ERICO V E R Í S S I M O
U m a d a s m i n h a s m e l h o r e s t e l a s : C l a r i s s a n o m e i o dos
g i r a s s ó i s . E l a t e m u m a flor v e r m e l h a e n f i a d a n o s c a b e l o s ne-
g r o s e e s t á s o r r i n d o . P o r t r á s dela, o s d i s c o s a m a r e l o s c o n t r a
o f u n d o d u m a z u l m e t á l i c o , i n t e n s o e liso. E s t e é o m i n u t o
g l o r i o s o d o s g i r a s s ó i s . P o r q u e a m a n h ã eles e s t a r ã o e s m a g a -
dos, a n d a r ã o pelo m u n d o e m f o r m a d e a z e i t e e d e f o r r a g e m .
A vida é bela!
Só a g o r a é q u e v o u d e s c o b r i n d o a o s p o u c o s a delícia p r o -
funda que certos atos e coisas simples nos podem proporcio-
n a r . C r e i o q u e f e l e s c o m p e n s a m p l e n a m e n t e a f a l t a d o s pe-
SAGA 337
T e n h o lido m u i t o s l i v r o s e p i n t a d o m u i t o s q u a d r o s . V o u
p r o g r e d i n d o n a s lições d e h a r m o n i a e c o n t r a p o n t o . M a n d e i
buscar um concerto de Tchaikowsky para piano e grande
orquestra. Mas não vivo entregue apenas a coisas de arte.
Pelo contrário. Ocupo a m a i o r p a r t e de m e u t e m p o com t r a -
balho braçal. É um prazer l a r g a r os pincéis ou fechar um
l i v r o e ir, p o r e x e m p l o , e n t e r r a r o s p é s n o lodo d o c h i q u e i r o ,
pegar n u m a enxada, sujar as mãos na terra do pomar ou
e n t ã o e m p u n h a r o m a c h a d o p a r a r a c h a r l e n h a . C o m isso
faço u m a como que m o l d u r a r ú s t i c a e sólida p a r a a música,
a p i n t u r a , a l e i t u r a e os o u t r o s p r a z e r e s do e s p í r i t o .
Q u a n d o o o u t o n o c h e g a c o m p r o um dog-cart e um ca-
v a l o . T o d a s a s m a n h ã s v o u l e v a r C l a r i s s a à escola. É c u r i o s o
observar as crianças que se reúnem nesta sala a c a n h a d a e
p o b r e . M e n i n o s e m e n i n a s de s e t e a q u i n z e a n o s , f i l h o s de
b r a s i l e i r o s e de c o l o n o s i t a l i a n o s , a l e m ã e s e p o l a c o s . Cabeci-
n h a s loiras, ruivas, castanhas, negras, r u ç a s . .. Olhos tam-
b é m em v á r i a s tonalidades de azul, verde e pardo. Tipos
n ó r d i c o s , m e r i d i o n a i s , i n d i á t i c o s , m u l a t o s e n e g r o s p u r o s . Ali
está p o r exemplo u m a c a r a p i n h a de moleque j u n t o da cabe-
leira d u m b r a n c o quase p r a t e a d o de u m a coloninha polaca.
SAGA 339
E Clarissa, e n t u s i a s m a d a no s e u t r a b a l h o de nacionalização,
f a z que t o d a s as m a n h ã s e s s e pequeno bando, que lembra a
B r i g a d a Internacional, se p o n h a de pé e c a n t e o H i n o B r a -
sileiro. S ã o v o z e s d e s a f i n a d a s e c o m o v e n t e s . Olhando e s s a s
c r i a t u r i n h a s fico a p e n s a r no f u t u r o do B r a s i l e da A m é r i c a
c o m inquietação, t e r n u r a e cálida fé.
V o l t o para o s í t i o a p e n s a r ainda n e s s a s coisas. Sim, a l g o
de g r a n d i o s o e belo há de a c o n t e c e r no f u t u r o n e s t e m u n d o
novo. P o r e s s e t e m p o e s t a r e i m o r t o d e b a i x o da t e r r a e do
m e u peito s a i r ã o d e c e r t o a s raízes d u m a g r a n d e árvore
copada, a c u j a s o m b r a o m e u filho m o r e n o e forte, ao v o l t a r
d o t r a b a l h o s e h á d e s e n t a r u m i n s t a n t e para descansar. E s s a
idéia me e n c h e d u m a e x a l t a ç ã o que é a um t e m p o g l o r i o s a
e melancólica.
U m o b s e r v a d o r indiferente c l a s s i f i c a r a c o m displicência
o quadro — "uma m e d í o c r e n a t u r e z a morta". V e m o s u m a
m e s a t o s c a e m c i m a d a qual s e a c h a u m g r a n d e p r a t o d e
barro c o m f r u t a s . M a s a c o n t e c e que não s e t r a t a d e u m
p r a t o e de f r u t a s c o m u n s , c o m p r a d o s e s e m h i s t ó r i a : o p r a t o
foi m o d e l a d o por m i m , a s f r u t a s s ã o d e n o s s o pomar, n a s -
c e r a m d u m a t e r r a que Clarissa e eu a m a m o s . Q u e m t i v e r
o l h o s para v e r a l é m da superfície colorida, perceberá que
e l a s t ê m u m a a l m a , e s t ã o e n v o l t a s n u m a a t m o s f e r a d e pro-
m e s s a , s o n h o e d e s e j o s . F a l a m de paz e esperança, de bon-
dade e graça. C h e g a m a t e r u m a qualidade q u a s e h u m a n a .
N ã o sei s e c o n s e g u i f a z e r que o quadro diga t o d a s e s s a s
c o i s a s . Mas n ã o importa. Ele e s t á pendurado na parede da
n o s s a sala, e C l a r i s s a s a b e do s e g r e d o . E quando a l g u é m
olhar indiferente para a t e l a e p a s s a r de l a r g o , n ó s dois t r o -
c a r e m o s o l h a r e s s i g n i f i c a t i v o s e s o r r i r e m o s um para o outro,
c o m o q u e m diz: "O pobre h o m e m p a s s o u por um t e s o u r o e
não c o m p r e e n d e u . . . "
C o q u e i r o " . A á g u a ali é p a r a d a , v e r d e e l í m p i d a — t ã o t r a n s -
parente que a gente chega a ver os peixes n a d a n d o no fundo.
 cascata t e m quinze m e t r o s de altura, a á g u a cai como um
véu feito de poeira branca, contra as rochas limosas e par-
das, onde a gente descobre, como incrustações móveis e vi-
vas, pequenas r ã s que t o m a m de tal modo a cor da pedra,
que nela se t o r n a m quase invisíveis. O poço e s t á cercado de
m a t o e as avencas, as corticeiras, os salgueiros e os j a c a r a n -
d á s inclinam os seus galhos e folhas sobre a superfície t r a n -
qüila e polida da laguna. A á g u a aqui e s t á s e m p r e m u i t o
f r i a e é um p r a z e r m e r g u l h a r e n a d a r , o u v i n d o o r u í d o s o n o -
lento da cascata.
Gosto de ficar boiando à superfície d'água, com os m ú s -
c u l o s r e l a x a d o s , o l h a n d o o céu, p e n s a n d o e m c o i s a s p a s s a d a s ,
ou a conversar com Clarissa que s e n t a d a n u m a pedra à beira
d o p o ç o f a z t r i c ô o u lê.
I m a g e n s e s c u r a s a t r a v e s s a m o m e u sono. A b r o os olhos
com u m a sensação de angústia. Sonhei que Clarissa tinha
morrido e que h a v i a g u e r r a e devastação no vale de Á g u a s
Claras. Da t e r r a b r o t a v a m fontes de sangue e eu andava no
meio dos destroços a p r o c u r a r m e u filho.
A opressão que t e n h o no peito é t ã o grande, que não
p o s s o c o n t i n u a r d e i t a d o . . . S a l t o d a c a m a , enfio o s c h i n e l o s
d e lã, v i s t o o r o u p ã o e m e d i r i j o n a p o n t a d o s p é s p a r a a
s a l a d e e s t a r . A c e n d o u m c i g a r r o . O s o n o s e foi.
Olho o relógio: cinco e meia. O dia n ã o t a r d a a r a i a r . O
r e m é d i o é f i c a r l e n d o , à e s p e r a d o sol. A p a n h o u m l i v r o m a s
em breve verifico q u e m i n h a atenção e s t á vaga e a sensação
de a n g ú s t i a c o n t i n u a . S a i o p a r a o a l p e n d r e e o ar f r i o da
m a d r u g a d a me envolve. A cerração esconde o cimo de montes
e o u t e i r o s e p a r a as b a n d a s do n a s c e n t e o h o r i z o n t e c o m e ç a
a empalidecer.
P o n h o - m e a c a m i n h a r a t r a v é s do j a r d i m . U m a aflição
gelada me toma conta do corpo e do espírito e em vão eu
l u t o p a r a r e c o b r a r a t r a n q ü i l i d a d e . T a l v e z o m e l h o r s e j a vol-
t a r p a r a c a s a e a c e n d e r o f o g o . . . M a s n ã o sei q u e f o r ç a m e
i m p e l e e eu c o n t i n u o a a n d a r . P a s s o o p o r t ã o , g a n h o a es-
trada. Nesta hora cinzenta é que eu sinto com mais pungên-
cia o m i s t é r i o d a v i d a . É o m o m e n t o d o s m o r t o s . U m a u m
os meus amigos que se foram começam a surgir das sombras,
a d e s c e r d a s n u v e n s , a e m e r g i r do n e v o e i r o , e em b r e v e e s t o u
c e r c a d o d e e s p e c t r o s . E l e s n ã o f a l a m , a p e n a s c a m i n h a m co-
SAGA 345
m i g o e m s i l ê n c i o e m u i t o s d e s t e s r o s t o s pálidos n ã o t ê m fi-
s i o n o m i a . A q u i a m e u lado c a m i n h a J o ã o de D e u s , pai de
Clarissa, c o m o o l h o s a n g r a n d o . S e b a s t i a n B r o w n arrasta o
pobre Á x e l s e m pernas. Q u e m é aquele a f o g a d o que ali v a i
com o r o s t o carcomido e as m ã o s enredadas em a l g a s ?
E r g o a gola do roupão, s i n t o no r o s t o e n a s m ã o s u m a
u m i d a d e fria. P a r a onde v a m o s n ó s ? E s t a é a p e r g u n t a que
m i l h õ e s de c r i a t u r a s e s t ã o fazendo em todo o m u n d o n e s t e
momento.
E de s ú b i t o u m a v o z h u m a n a corta o ar da m a d r u g a d a .
— V a s c o ! Onde e s t á s ? V a s c o !
S ã o g r i t o s d e s g a r r a d o s . V o l t o - m e e v e j o um v u l t o no
alpendre da casa. C l a r i s s a . . . S a i o a correr na direção dela.
— Vasco!
— M i n h a filha, que é que t e n s ?
E n v o l v o - a n o s m e u s b r a ç o s e toda t r ê m u l a ela c o n t a :
— Sonhei q u e e s t a v a s na E u r o p a . . . na guerra. E de
repente t u . . . t u n ã o e r a s s ó t u , m a s t a m b é m o n o s s o fi-
l h o . . . Acordei a f l i t a . . . n ã o t e v i n a c a m a . . . p e n s e i . . .
p e n s e i . . . n e m s e i que foi que p e n s e i . . .
Cala-se, ofegante. Acaricio-lhe o s cabelos.
— Será que o n o s s o f i l h o . . . — balbucia ela. — Será
que o n o s s o filho. . . v a i v i v e r n u m m u n d o m e l h o r ?
É c o m voz incerta que eu lhe d i g o :
— É impossível que o s o f r i m e n t o e o sacrifício d e s s e s
m i l h õ e s e m i l h õ e s de c r i a t u r a s s e j a inútil, fique e s q u e c i d o . . .
O s h o m e n s t ê m d e compreender, t ê m d e compreender. . . E u
tenho fé na A m é r i c a . . . — acrescento, apertando Clarissa
contra o peito.
Godofredo cocorica no quintal. Outros g a l o s respondem
longe. A o s p o u c o s um calor de confiança e de c o r a g e m se
apodera de m i m . É a l g o de profundo e essencial que me v e m
de Clarissa, da criatura que ela t e m n a s entranhas, algo que
s u r g e d a s p l a n t a s e d o s a n i m a i s domésticos, que brota da
terra...
O ar e s t á m a i s claro. Os b i c o s d o s s e i o s da v i r g e m dei-
t a d a e s t ã o e m p l u m a d o s de n u v e n s e por t r á s dos morros g ê -
m e o s o céu v a i g a n h a n d o a o s p o u c o s u m a tonalidade dourada.
I m ó v e i s e abraçados, Clarissa e eu aqui f i c a m o s em s i -
lêncio, c o m os o l h o s p o s t o s no horizonte, a esperar o n o v o
dia c o m um s e c r e t o t e m o r e u m a s e c r e t a esperança.