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Um pensamento social negro

brasileiro, após os anos 1930


Mário Augusto Medeiros da Silva

Arte sobre foto de Domínio público/ Wikimedia Commons


resumo abstract

Tratarei de aspectos de estudos sobre um I will deal with aspects of studies on a social
pensamento social do Brasil angulado, thought in the angled Brazil, specifically in
especificamente no século XX, por the 20th century, by black intellectuals,
intelectuais negros e negras. São estudos both male and female. These are studies
sobre direitos dos sujeitos e da cidadania on the rights of subjects and on black
negra produzidos por intelectuais negras citizenship produced by black intellectuals,
e negros, em particular no século XX, particularly in the 20th century, creators of
criadores de um pensamento negro a black thought about the country, which
sobre o país, que o interpreta naquilo interprets it in what is iniquitous and
que possui de iníquo e o fabula a partir fables it from the black social experience.
da experiência social negra. A abordagem The approach I propose is based on the
que proponho se baseia na seleção de selection of common themes which a
temas comuns que uma perspectiva black intellectual perspective has faced at
intelectual negra tenha enfrentado em different times, to account for the black
diferentes momentos, para dar conta da Afro-Brazilian experience. This experience
experiência negra afro-brasileira. Essa has to do with the struggle for civil, social
experiência tem a ver com a luta por and political rights and is part of the history
Domínio público/ Wikimedia Commons

direitos civis, sociais e políticos e compõe of Brazilian citizenship.


a história da cidadania brasileira.
Keywords: black intellectuals; Brazilian
Palavras-chave: intelectuais negros; social thought; black citizenship; nation.
pensamento social brasileiro; cidadania
negra; nação.
T
ratarei de aspectos de estu- plano analítico, de fortuna crítica sobre suas
dos sobre um pensamento trajetórias e ideias, tendo suas contribuições,
social do Brasil angulado, por anos, sido secundarizadas ou invisibili-
especificamente no século zadas em cursos universitários, programas
XX, por intelectuais negros de cursos de graduação e pós-graduação,
e negras. Há insuficiên- congressos de pesquisa. Isso ocorreu, em
cias de autorias e mesmo diferentes casos, mesmo que, durante suas
de distribuição geográfica, vidas, vários desses intelectuais tenham tido
considerando as propor- suas obras editadas ou sua presença em ins-
ções continentais do país. tituições de ensino consagrada, além de um
Contudo, as/os intelectuais importante diálogo com associações negras e
que selecionei pensaram o movimentos negros de suas épocas. A dinâ-
Brasil, de maneira nacio- mica do racismo intelectual brasileiro é uma
nal ou em intenso diálogo com a circulação das possibilidades explicativas para tais fatos.
internacional de ideias e isso é importante E a luta antirracista no meio intelectual é
evidenciar. São estudos sobre direitos dos outra possibilidade para a compressão de
sujeitos e da cidadania negra produzidos por sua retirada de processos de invisibilização.
intelectuais negras e negros, em particular A abordagem que proponho aqui se baseia
no século XX, criadores de um pensamento na seleção de temas comuns que uma pers-
negro sobre o país, que o interpreta naquilo pectiva intelectual negra tenha enfrentado
que possui de iníquo e o fabula a partir da
experiência social negra.
Além disso, considerando a história do
pensamento social brasileiro e a história inte- MÁRIO AUGUSTO MEDEIROS DA SILVA
lectual institucional do país, não raro as e é professor do Departamento de
Sociologia da Unicamp e autor de
os intelectuais negras e negros selecionados A descoberta do insólito: literatura negra
ficaram, por anos, relegados a um segundo e periférica no Brasil (1960-2000) (Aeroplano).

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em diferentes momentos, para dar conta da bolas pelo país (Gomes, 2018, pp. 367-77)
experiência negra afro-brasileira. Essa expe- na redemocratização política após a última
riência tem a ver com a luta por direitos ditadura civil-militar.
civis, sociais e políticos e compõe a histó- Essa imaginação política da liberdade
ria da cidadania brasileira. Há um pensa- dos escravizados e seus descendentes foi
mento político negro sobre a insurreição/ importante ainda, ao longo do século XX,
liberdade escrava no Brasil que atravessa por ser inspiradora para diferentes movi-
décadas; há uma discussão longeva entre mentos negros, até que, na década de 1970,
intelectuais negros sobre a necessidade de o Grupo Palmares, liderado pelo poeta
reposicionar os estudos sobre as relações Oliveira Silveira, sugerisse a data de 20 de
raciais, investigando o polo branco; aparece novembro, em referência à morte de Zumbi
nesse pensamento o mundo negro brasileiro dos Palmares, como um dia de comemora-
e suas tentativas de relações atlânticas e ção alternativa e de luta à memória nacio-
afro-caribenhas, que têm concretude, por nal (Alberti & Pereira, 2007). Finalmente,
exemplo, no ativismo negro feminino. em 2003, por ação dos movimentos negros,
o Dia da Consciência Negra foi declarado
PENSAMENTO SOCIAL feriado em diferentes estados e municípios
da federação, em honra ao 20 de novem-
NEGRO SOBRE A LIBERDADE
bro de 1695. Além disso, tal imaginação
alcançou enorme impacto de publicação
A liberdade figura como uma força social para novas gerações, em premiações e tra-
imaginativa importante na agenda do pensa- duções recebidas a livros que a tematizam
mento social negro brasileiro, estando ali- (Salete, 2014, 2017).
cerçada em experiências concretas desde o Esse cenário somente foi possível, no
período colonial. A escravidão não impediu âmbito do pensamento social negro do
que africanos, escravizados, como sujeitos século XX, mocambos e quilombos terem
protagonizassem fugas e criassem suas orga- sido estudados em obras pioneiras como as
nizações, em mocambos e quilombos. Tam- do antropólogo Edison Carneiro (1912-1972)
pouco processos de insurreição e revoltas. e do historiador e sociólogo Clóvis Moura
Esses espaços e seus sujeitos aquilomba- (1925-2003). Tratando da guerra ou da paz
dos, revoltosos e insubordinados figuraram quilombola e seus acordos diplomáticos,
na imaginação política e nas lutas insurre- ainda na primeira metade do século, há o
cionais desde o final do século XVI até o esforço analítico desses autores em promo-
período da Abolição, no século XIX. Tal ver uma rotação de perspectivas através de
imaginação também alcançou, como chama revisão de fontes documentais conhecidas
a atenção o historiador Flávio Gomes, lugar e inéditas, tornando os escravizados, os
na Constituição Federal de 1988, tendo ope- fugidos, os aquilombados protagonistas de
racionalidade política para pensar os direitos uma história política da luta organizada pela
civis e sociais, os direitos à propriedade da liberdade ainda no Brasil colonial.
terra e o reconhecimento como patrimônio Carneiro finalizou em 1944 o estudo
de descendentes de comunidades quilom- sobre o Quilombo dos Palmares, que foi

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publicado primeiro no México e finalmente falecido em 2003. Moura publicou, entre
no Brasil (Carneiro, 1946). A obra teve dife- outros trabalhos, estudos sobre o associati-
rentes reedições, com acréscimos de docu- vismo negro, crítica ao pensamento social
mentos e sendo referenciada pela fortuna brasileiro no que tange à experiência negra
crítica crescente. A produção intelectual (Moura, 1988), historiografia brasileira e
de Carneiro foi consistente com os estudos questão racial, a imprensa negra paulista
sobre a vida negra, angulada pelo candomblé e, por fim, o dicionário da escravidão negra
e folclore, sendo ele um sistematizador de no Brasil (Moura, 2004).
dados sobre o assunto e parceiro importante
de pesquisas de autores nacionais e interna- REPOSICIONAMENTO DOS
cionais, como Ruth Landes, Arthur Ramos
ESTUDOS DE RELAÇÕES
e Lorenzo Turner, entre outros. Carneiro
atuou também na divulgação de documen- RACIAIS E A CIDADANIA NEGRA
tos que permitissem o estudo da população
afrodescendente no Brasil (Carneiro, 1964, É sincrônica à formulação de obras semi-
1988) e atuou nos estudos de folclore, entre nais sobre a liberdade dos escravizados, no
1961 e 1964, até ser cassado pelo golpe de pensamento social negro brasileiro, a pro-
Estado. Sua obra entrou em relativo silêncio, dução intelectual e ativismo sobre os cená-
sendo recuperada nos anos mais recentes rios da cidadania negra no século XX. Em
por autores e editoras que demonstram a 1945, a socióloga Virgínia Leone Bicudo
atualidade e importância de recuperação de (1910-2003) apresentaria a primeira tese
seus trabalhos (Rossi, 2015). sobre relações raciais no Brasil, acerca do
De outro ângulo, a partir de 1959, Clóvis que ela denominou como “estudo de ati-
Moura, com a publicação de Rebeliões da tudes de pretos e mulatos em São Paulo”.
senzala, evidencia o protagonismo da luta Por meio de entrevistas com interlocutores
pela liberdade por meio da ação política em diferentes estratos sociais, ela evidencia
dos escravizados e dos fugidos, construindo respostas distintas às discriminações racistas
argumentos que procuram tratar diferen- sofridas por pessoas pretas e mulatas, em
tes experiências coletivas de insurreições ambientes de trabalho, na cidade, em espaços
e confrontos contra o poder institucional, de sociabilidade, em relações afetivas, na
pensadas como lutas entre classes sociais escola e em outros ambientes educacionais.
opostas no modo de produção capitalista Além disso, Bicudo será pioneira ao
baseado no escravismo colonial. Outra obra analisar uma experiência coletiva contra a
que possuirá diferentes reedições, organi- discriminação racial, por entrevistar mem-
zando uma imaginação política para os bros e analisar a formação e dificuldades da
movimentos negros brasileiros no século Frente Negra Brasileira (1931-1937), a prin-
XX. E também outro autor cujo papel orga- cipal associação negra da primeira metade
nizador de documentos e dicionários sobre do século XX no Brasil, criada e dissolvida
a experiência negra merece destaque. num governo autoritário. Em razão disso,
Seu percurso nos campos da história e da trocou o nome na pesquisa: “A ‘Associa-
sociologia brasileira é mais longevo, tendo ção de Negros Brasileiros’ representou uma

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tentativa de pretos conscientes para lutar sões sobre administração pública, análise da
contra as restrições do branco, despertando produção sociológica nacional e um debate
a consciência de grupo, desenvolvendo um crítico sobre os estudos de relações raciais
programa definido de reivindicações referen- elaborados no país. Neste último aspecto,
tes ao aspecto econômico, social e político. vejam-se suas discussões sobre “O problema
As dificuldades para conseguir reuni-los e a do negro na sociologia” (1954) e “Patologia
indiferença de pretos e mulatos das classes social do ‘branco’ brasileiro” (1957). O pri-
sociais intermediárias revelam a intensidade meiro é uma revisão crítica dos estudos sobre
com que o preto incorporou os ideais e con- o negro brasileiro, desde o final do século
ceitos do branco” (Bicudo, 2010, p. 161). XIX até meados dos anos 1950, indicando
Sua tese demorou 65 anos para ser publi- pontos negativos nas abordagens de Sílvio
cada, embora ela tenha sido uma intelectual Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres,
distintiva, professora da Universidade de São Oliveira Vianna, Nina Rodrigues, alcançando
Paulo e da Escola de Sociologia e Política, seus contemporâneos como Gilberto Freyre,
participante da pesquisa Unesco sobre rela- Arthur Ramos, entre outros. Nele o autor já
ções raciais nos anos 1950, além de uma das anuncia suas críticas relativas à “sociologia
primeiras psicanalistas brasileiras (Bicudo, do negro” no Brasil como uma “ideologia
2010; Gomes, 2013). A produção social da da brancura”, o tratamento do negro como
invisibilidade intelectual negra também é um mero “tema” de pesquisa.
uma componente que precisa estar presente O segundo texto implica um reposiciona-
nas análises sobre os estudos afro-brasileiros. mento, a partir disso, dos estudos de “rela-
Tal aspecto também acompanhará a traje- ções raciais” que tinham como enfoque o
tória do sociólogo Alberto Guerreiro Ramos negro, visto como um problema ou parte
(1915-1982). Formado em Ciências Sociais na dele no Brasil. Guerreiro Ramos sugere que
então Universidade do Brasil (hoje UFRJ), isso seria reducionista, uma oposição entre
por duas vezes teve recusada sua entrada o “negro-tema”, objeto das ciências sociais,
como professor na mesma instituição, pas- e o “negro-vida”, onde este sujeito social
sando a trabalhar no Departamento de Admi- era muito mais complexo do que, em sua
nistração do Serviço Federal (1943-1951). opinião, até então operavam os estudos de
Além da administração pública, esteve envol- relações raciais. Além disso, o autor sugere
vido em diferentes campos de atuação: nos a necessidade de se estudar o “branco” e
debates sobre o desenvolvimento nacional; na a valorização estética e política da “bran-
sua colaboração ativa com o Teatro Experi- cura” em sua patologia social, através das
mental do Negro no Rio de Janeiro, formado respostas dadas ao Censo de 1940. Alberto
por Abdias do Nascimento; e também interes- Guerreiro Ramos pode figurar assim como
sado nas lutas por independência anticolonial um dos precursores brasileiros do que ficou
dos países africanos e asiáticos e o Terceiro posteriormente conhecido como “estudos
Mundo, entre os anos 1950 e começo dos sobre branquitude”.
anos 1960. Guerreiro Ramos produziu um A brancura configurava-se como um
conjunto significativo de artigos e livros que problema a ser estudado como estruturante
trata de temas teóricos da sociologia, discus- das relações sociais brasileiras, colocando

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o negro em condições de inferioridade e, e político da “brancura”, bem como uma
inclusive, criando uma memória coletiva, ferramenta de profissionalização de artistas
organizando uma “tradição da brancura” que negros (revelando grandes nomes das artes
estaria, de acordo com Guerreiro Ramos, cênicas nacionais), de treinamento do negro
sendo enfrentada e ultrapassada pela luta à luta antirracista e também de importante
social do negro, pelo negro-vida. “O ideal mecanismo de valorização da cultura afro-
da brancura […] é uma sobrevivência que -brasileira. Além disso, por meio do TEN e
embaraça o processo de maturidade psico- suas atividades, há uma produção intelectual
lógica do brasileiro, e, além disso, contribui importante de Nascimento nessa primeira
para enfraquecer a integração social dos ele- fase, que será documentada em criações de
mentos constitutivos da sociedade nacional” jornais, livros e peças autorais.
(Guerreiro Ramos, 1957, p. 187). Aí reside Trata-se de um ativismo intelectual negro
também a necessidade do ativismo antirra- que, naqueles anos, dialogará com a recep-
cista e anticolonial, ao qual Guerreiro Ramos ção da ideia transnacional de negritude no
também se vincularia, junto ao Teatro Expe- Brasil, ao mesmo tempo que colocará Nas-
rimental do Negro. Importa recordar que o cimento e o TEN em intenso diálogo com
autor foi alvo de perseguições políticas (após a produção histórica e sociológica mais
o golpe de Estado de 1964, tendo de se exilar crítica dos anos 1950-1960, que denunciou
nos EUA), discriminações e ostracismo no o “mito da democracia racial brasileira” e
campo das ideias, até seu falecimento no o protagonismo negro na luta antirracista.
exterior, em 1982 (Oliveira, 1995). Produções como o jornal Quilombo (1948)
Abdias do Nascimento (1914-2011), desde e livros como Drama para negros, prólogo
os anos 1930, com a participação em um para brancos (1961) e TEN: testemunhos
Congresso Afro-Brasileiro no interior de São (1966) dão conta de expressar, respectiva-
Paulo e a viagem com o grupo La Santa mente, esses diálogos com o movimento
Hermandad, que o levou a assistir no Peru, da negritude francófona e as aspirações do
em 1941, a um ator branco em cena com o negro brasileiro nos anos 1950; a produção
rosto pintado de preto, configura-se como autoral de Nascimento e a colaboração com
um ativista antirracista relevante. Uma das dramaturgos negros e brancos nacionais e
consequências desse ativismo foi a criação estrangeiros (Rosário Fusco, Romeu Cru-
e existência do Teatro Experimental do soé, Lúcio Cardoso, Eugene O’Neill, Albert
Negro (TEN) por mais de duas décadas Camus, Nelson Rodrigues, entre outros); e
(1944-1968), atuando nos palcos do Rio de o diálogo com a crítica teatral e sociológica
Janeiro, liderado por Nascimento e com a sobre os sentidos do TEN, que, no limite,
colaboração de intelectuais negros e não davam conta dos sentidos da arte negra, da
negros, com protagonismo de artistas negras arte afro-brasileira e do ativismo político de
e negros. O TEN foi organizado por Abdias intelectuais e artistas negros.
do Nascimento, Ruth de Sousa, Léa Garcia “Prólogo para brancos” é um texto de
e Ironides Rodrigues, com a participação posicionamento intelectual e estudo de recep-
de Alberto Guerreiro Ramos, entre outros, ção das possibilidades da negritude enquanto
como uma ação de enfrentamento estético ideia de enfrentamento da “ideologia da bran-

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cura”, base sustentadora, estética e politica- Ideias como “ujamaa”, “kwanzaa”, “pan-
mente, das relações raciais brasileiras. Há -africanismo” e intelectuais negros interna-
um diálogo interessante com as ideias de cionais como Molefi Asanti figuram nos tex-
Guerreiro Ramos, sem dúvida, na busca dos tos na mesma frequência que uma plataforma
alicerces do mito das discriminações brasi- política quilombista para o negro brasileiro,
leiras e da negação racial do que o país via que mescla memória coletiva, projeto eco-
no espelho censitário, nas ruas cotidianas ou nômico e reivindicação de direitos:
no palco artístico. “Mas o nosso trabalho
antológico do drama negro no Brasil revela “[…] se configura como um problema de
outra dimensão, na qual surge a voz autêntica direitos humanos, direitos de soberania, de
do negro, como raça e como homem de cor: autodeterminação e de protagonismo histó-
a vida social. Ser e viver como negro não rico. […] No Brasil, como maioria da popu-
é uma peripécia comum na vida ocidental. lação, vamos além: temos o direito e a obri-
[…] o Teatro Experimental do Negro vem gação de assumir o poder em nosso país e de
procurando restaurar, valorizar e exaltar a construir a sociedade nacional quilombista.
contribuição dos africanos à formação bra- […] O quilombismo e seus vários equivalentes
sileira, desmascarando a ideologia da bran- em todas as Américas – cimarronismo (Cuba
cura” (Nascimento, 1961, pp. 9 e 19). e México), palenquismo (Colômbia), cubismo
Nascimento se exilou em 1968, após o (Venezuela), maroonismo (Jamaica e Estados
golpe de Estado no Brasil e censuras sofri- Unidos) – significam hoje uma alternativa
das. Seguiu para os EUA, desenvolvendo internacional para a organização das massas
carreira como professor universitário e artista afro-americanas de todo esse Novo Mundo”
plástico, tomando contato com o pan-afri- (Nascimento, 1982, pp. 32 e 34).
canismo (Nascimento, 1982). Retornou ao
Brasil em 1978, num momento decisivo de Nascimento organiza um conjunto de
rearticulação do movimento negro brasileiro, princípios e propósitos políticos, apre-
condensada na criação do Movimento Negro sentados em discussão histórica e pontos
Unificado (MNU) que evidenciaria uma outra gerais, tais como: “O quilombismo é um
geração de ativistas e intelectuais negros, movimento político dos negros brasileiros
com a qual estabelecerá, aos poucos, diá- [...] inspirado na República dos Palmares,
logo (Alberti & Pereira, 2007). Nesse ano, no século XVI, e em outros quilombos
publica um livro que denuncia o genocídio que existiram e existem no país. […] O
do negro brasileiro (Nascimento, 1978). E, quilombismo considera a terra uma pro-
na sequência, documenta seu contato com o priedade nacional de uso coletivo […] A
pan-africanismo e uma proposição, baseada revolução quilombista é fundamentalmente
nisso, de organização política para o povo antirracista, anticapitalista, antilatifundiá-
negro, o Quilombismo (1980), retomada na ria, anti-imperialista e anti-neocolonialista
segunda edição de O negro revoltado (1982). […]” (Nascimento, 1980, pp. 275-7); entre
A denúncia do mito da democracia racial e outras proposições, mas que não encontram
o combate da brancura como valor estético imediatamente eco em portadores sociais
e político ganhariam novas forças. capazes de efetivar suas ideias.

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NOVAS LUTAS E ENQUADRAMENTOS: veira e Oliveira (1923-1980) nesses espaços,
especialmente nos EUA. Ambos cientistas
VIOLÊNCIA, MEMÓRIA,
sociais com ação intelectual, dentro e fora
REDEMOCRATIZAÇÃO, FEMINISMO dos espaços institucionalizados (como uni-
versidades, associações e partidos políticos).
No final dos anos 1970 e início da Foram intelectuais e ativistas ligados a
década seguinte articula-se a luta pela associações e movimentos sociais negros,
cidadania negra e a imaginação política especialmente nesse final dos anos 1970.
da liberdade em cenários que conectam o Oliveira e Oliveira foi o último presidente
passado do combate antirracista, proposto da Associação Cultural do Negro (ACN,
por intelectuais e associações negros, como 1954-1976), importante coletivo de ativis-
já exposto, com demandas daquele novo tas e intelectuais negros paulistanos (Silva,
tempo, cujos enfrentamentos passam por: 2012; 2017), e também o responsável pela
1) combate à ditadura civil-militar ainda preservação da memória daquela associa-
vigente; 2) denúncia da crescente violên- ção. González, naquele momento, tem par-
cia de Estado contra pessoas negras; 3) ticipação no Movimento Negro Unificado
permanente combate à discriminação e ao (MNU), criado em 1978, com o qual Oliveira
preconceito, demandando-se legislação ofi- e Oliveira também manterá contato. Ambos
cial contra o racismo; 4) aposta na memória estão imersos na luta pela redemocratização
coletiva e seu papel na luta antirracista; e 5) contra a ditadura civil-militar, compondo
paulatina organização de mulheres negras, parte da história cívica brasileira, da qual o
em combate contra a estrutura patriarcal e movimento negro contemporâneo faz parte.
capitalista, a invisibilidade nos espaços de Ambos também são responsáveis por arti-
luta do feminismo branco e do movimento cular, ao final dos anos 1970, um projeto
negro mais amplo, naquilo que culminaria político e intelectual que envolve a já conhe-
na configuração de um feminismo negro cida crítica à democracia racial brasileira,
brasileiro, articulado transnacionalmente. mas em espaços acadêmicos (em congressos
Essa articulação internacional das pautas nacionais e estrangeiros) e em diálogo com
chamava a atenção de Abdias do Nascimento a efervescência do movimento negro.
ao final do seu exílio: “A partir dos fins de É muito significativo observar Eduardo
1977 já não compareci sozinho aos encontros de Oliveira e Oliveira atuando em frentes
negros internacionais. […] O processo de como a organização da ACN e cursos de
internacionalização da luta afro-brasileira história afro-brasileira, aproximando aquela
ampliava-se, fortalecido desde 1979 pela associação da população negra de um bairro
atuação de Lélia González em várias con- pobre paulistano (a Casa Verde), com seus
ferências nos Estados Unidos e na Europa, colegas da Universidade de São Paulo (USP),
sobretudo levando a palavra da mulher negra entre 1968 e 1976. E também confrontando a
brasileira aos foros estrangeiros e internacio- produção acadêmica por meio de, ao menos,
nais” (Nascimento, 1982, pp. 20-1). Além de três iniciativas: a organização da Quinzena
González (1935-1994), Nascimento chama a do Negro na USP, em 1977; a escrita e ence-
atenção para a presença de Eduardo de Oli- nação, em parceria com a teatróloga e ati-

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vista negra Thereza Santos, da peça E agora ria as diferenças na diferença (a pele mais
falamos nós (Santos, 2008); e, por último, clara ou mais escura dos afrodescendentes
por meio de seu projeto acadêmico de pes- não brancos), mas que tornaria o racismo e
quisa, de investigação das relações raciais seu combate comum aos “negros” algo mais
brasileiras na USP, sua aproximação com complexo. Como afirma o autor:
os african american studies e o projeto de
uma black sociology nos EUA (Trapp, 2020). “O mulato racial existiu e existe tanto no
Além disso, em 1974, o autor antecipa, Brasil como nos Estados Unidos. Mas o
em uma contundente resenha ao livro de mulato social, apenas no Brasil […] o lugar
Carl Degler, Neither black nor white, um social a que se atribui esta mistura, e é aqui
problema inóspito das relações raciais no que se deve buscar a razão desta classifica-
Brasil e que hoje soa como algo novo (apa- ção. […] Da mesma forma que nos Estados
recendo como debate estadunidense sobre Unidos encontramos o passing, entre nós
colorismo), embora, como demonstrou Oli- encontramos o “trânsfuga”, racial e social.
veira e Oliveira, esteja colocado na matriz […] Afinal, que foram os movimentos sociais
das nossas relações sociais racializadas dos meios negros iniciados em São Paulo
desde a colonização: o lugar sociológico na década de 20 senão um movimento de
do “mulato” e da mestiçagem nos estudos congregação de todos os negros do Brasil em
de relações raciais (no Brasil e nos EUA) busca de uma consciência histórica, tendo à
e também na organização política afro-bra- frente José Correia Leite (mulato), Arlindo
sileira. Ele recordava que: Veiga dos Santos (mulato) […] Foi precisa-
mente através da palavra negro que buscou
“Também no Brasil, para nós, as relações congregar os descendentes de africanos que
raciais são oposições polares, não sendo os agastasse do esvaziamento fenotípico –
porém polares antagônicas. […] Aqui gos- o mulato – socialmente e mais predisposto
taríamos de fazer um apelo à semântica a beneficiar-se das manifestações de hie-
e sugerir um outro ângulo de visão pos- rarquização econômico-social dos grupos”
sível para o mulatto escape hatch. Sua (Oliveira e Oliveira, 1974, pp. 71-2).
tradução em português seria alçapão, pala-
vra que comporta diferentes significados: Essa discussão sobre o lugar social dos
tanto pode ser saída de emergência, como sujeitos nas relações racializadas brasileiras
armadilha preparada” (Oliveira e Oliveira, é fundamental nas reflexões de Oliveira e
1974, pp. 69-70). Oliveira, levando-o a discutir, nesse texto, o
mulato (mestiço) como um “obstáculo epis-
Ademais, havia uma historicidade política, temológico”, complexo e desafiador para os
ignorada por Degler, segundo Oliveira e Oli- estudiosos das relações raciais e também
veira, promovida pelos movimentos sociais para os ativistas, historicamente: “[...] todo
antirracistas brasileiros, da incorporação homem negro (e aqui pensamos no amplo
dos “mulatos”, “mestiços” à construção da spectrum em que ele pode colocar-se ou ser
ideia de “negro” no Brasil – portanto, cons- colocado) tem em comum sua precária, sua
truindo uma força política que não apaga- inexprimível relação com o mundo branco.

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Fanon acrescenta: ‘Sentimento de inferio- Lélia González foi a intelectual negra que
ridade? Não. Sentimento de inexistência’” refletiu sobre essas dimensões contextuais e
(Oliveira e Oliveira, 1974, p. 73). O autor o significado político da luta negra, angu-
parece ter seguido esse programa de pesquisa lada pela organização de mulheres negras
e de intervenção no debate público por meio em diferentes ocasiões. Vários de seus textos
da Quinzena do Negro e da peça explici- dispersos ou esgotados nas edições originais
tamente denominada E agora falamos nós. foram recentemente organizados em livro.
A produção intelectual de Oliveira e Destaque-se sua análise, desde dentro, sobre
Oliveira sofreu uma série de reveses, em o MNU (González, 1982), a articulação entre
nível pessoal e institucional, documentados racismo, sexismo e cultura brasileira (Gonzá-
na única pesquisa de fôlego feita sobre sua lez, 1983) e a discussão sobre um feminismo
obra até hoje, do historiador Rafael Trapp afro-latino-americano (González, 1988). Ao
(2020). Por essa razão, para além de relató- lado de Abdias do Nascimento e Eduardo
rios de pesquisas e intervenções em jornais, de Oliveira e Oliveira, ela é uma referência
há pouco material publicado de sua autoria. incontornável nesse momento e ajudará a
Sua inserção institucional na universidade foi moldar muito do pensamento social negro
por pouco tempo, como professor da Uni- brasileiro nas décadas subsequentes.
versidade Federal de São Carlos (UFSCar), A avaliação que González fez do MNU
entre 1977 e 1980. Contudo, seu projeto de colocava o movimento negro, após o golpe de
estudo de relações raciais, se não finalizado Estado de 1964 e no começo dos anos 1980,
de forma esperada, foi colocado em ato e na luta social pela redemocratização, para
influenciador de uma geração de ativistas e além de suas dinâmicas específicas. Ape-
intelectuais negros que compareceram à sede sar da repressão policial, torturas e arrocho
da ACN, à Quinzena do Negro e também econômico, o negro lutava contra a domi-
às reuniões do MNU. nação e o “lugar natural” que a sociedade
Os debates sobre o lugar social dos brasileira racista lhe impunha. Avançava a
negros têm diferentes contornos, no final discussão ao dizer que as respostas foram de
dos anos 1970, e são importantes para os vários “movimentos negros”, não os tratando
estudos afro-brasileiros. Tanto para discutir numa univocidade e mostrando a eferves-
uma nova agenda dos movimentos negros, cência da cena política negra, especialmente
que pauta o debate sobre violência racial e no Sudeste. Nesse cenário, González flagra
o coloca em praça pública, em 1978, com a emergência do movimento de mulheres
a criação do Movimento Negro Unificado negras. “Chegou a um ponto que as mulheres
(MNU, 1988; Alberti & Pereira, 2007); o passaram a se reunir separadamente para,
genocídio do negro brasileiro (Nascimento, depois, todos se reunirem numa sala maior,
1978); ou, ainda, para a organização de onde se discutia problemas comuns. É claro
movimentos de mulheres negras, explicitando que pintou machismo e paternalismo, mas
uma agenda própria, crítica ao racismo, ao também solidariedade e entendimento” (Gon-
capitalismo, ao feminismo branco e também zález, 1982, pp. 34-5).
aos movimentos negros majoritariamente A autora explicitou algo que seria cada
masculinos até então. vez mais pujante em termos de atuação

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política e intelectual negra: a presença das maior importância: o caráter multirracial


mulheres negras na cena pública, saindo do e pluricultural das sociedades da região.
duplo lugar de dominação imposta, inclusive Lidar, por exemplo, com a divisão sexual do
entre seus pares homens negros. González trabalho sem articulá-la com a correspon-
reflete sociologicamente sobre isso em ao dente no nível racial é cair em uma espécie
menos dois textos fundamentais, afirmando de racionalismo universal abstrato, típico
provocativamente o protagonismo dessa voz de um discurso masculinizante e branco.
negra: “[...] o lixo vai falar, e numa boa” Falar de opressão à mulher latino-americana
(González, 2020, p. 78). Com o debate sobre é falar de uma generalidade que esconde,
racismo e sexismo na sociedade brasileira, enfatiza, que tira de cena a dura realidade
ela criticou interpretações consagradas sobre vivida por milhões de mulheres que pagam
o país, que pensavam o negro como subal- um preço muito alto por não serem bran-
terno (especialmente Caio Prado Jr. e Gil- cas” (González, 2020, p. 142).
berto Freyre), retomava a discussão sobre a
naturalização do lugar da dominação e expli- “Nós somos invisíveis nos três aspectos
citava que, em verdade, racismo, sexismo do movimento de mulheres […] somos
e violência são os valores corrompidos da descoloridas ou desracializadas e colo-
formação da sociedade brasileira, com os cadas na categoria popular” (González,
quais homens negros e mulheres negras, 2020, p. 148). A autora explicita uma
especialmente, tiveram de lidar para viver. agenda na qual ela estava imersa, arti-
Curiosamente, a influência e a presença culada com o movimento transnacional
maciça da experiência negra nesta socie- de mulheres e com a organização do
dade a levavam a perguntar: “Por que vivem movimento de mulheres negras e seus
dizendo pra gente se pôr no lugar da gente? encontros na década de 1980. Esse texto
Que lugar é esse?” (González, 2020, p. 90). é publicado no mesmo ano em que seria
Considerando sua trajetória e trânsito fundado o Instituto da Mulher Negra –
internacional, a discussão ganha contor- Geledés, tendo entre suas precursoras,
nos transnacionais, levando a um outro dentre outras, uma “discípula” direta das
texto importante da autora, sobre um femi- análises e movimentos de Lélia e Thereza
nismo afro-latino-americano. Ela já vinha Santos: Sueli Carneiro, referência contem-
perseguindo teoricamente a ideia de uma porânea do feminismo negro brasileiro.
“Améfrica” e uma “amefricanidade”, cuja Também no contexto dos anos 1970,
duplicidade (ser americano e africano simul- torna-se parte da agenda intelectual e
taneamente) remete à conhecida discussão ativista negra a discussão sobre os qui-
sociológica de Du Bois sobre raça, moder- lombos e suas continuidades como expe-
nidade e dupla consciência (Du Bois, 1999); riências negras. É um tema que acompa-
no entanto, acrescida de gênero. Seu argu- nha a reflexão de autores negros como
mento é incisivo: Édison Carneiro e Clóvis Moura, mas
passa a ser reposicionado pela historia-
“[…] o feminismo latino-americano perde dora Beatriz Nascimento (1942-1995) e por
muito de sua força abstraindo um fato da sua atuação junto ao Grupo de Trabalho

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André Rebouças, na Universidade Federal mentar as ações dos movimentos negros
Fluminense. Os textos dispersos da histo- ao longo dos anos 1970 e 1980. No caso
riadora têm sido reeditados, nos últimos do projeto de investigação, ela afirmou no
anos, especialmente graças ao trabalho de texto “Kilombo e memória comunitária:
investigação do cientista social Alex Ratts um estudo de caso”, de 1982:
(2007, 2021). Beatriz procurou articular
diferentes projetos de pesquisa em arquivos “Dizendo isto, estou tentando transmitir
históricos, regiões em diferentes estados minha experiência na pesquisa sobre os
que eram identificadas como localidades quilombos brasileiros, pesquisa que tomou
em espaços de antigos quilombos, pautar no projeto o título de ‘Sistemas sociais alter-
o tema em eventos acadêmicos e ques- nativos organizados pelos negros – dos qui-
tionar a maneira como cientistas sociais lombos ou favelas’. Este projeto é também
e historiadores, ao longo dos anos 1970 um grande sonho. Cientificamente falando,
e 1980, viam a questão dos quilombos e pretendemos demonstrar que os homens e
aquilombamentos na história brasileira. seus grupamentos, que formaram no passado
Além disso, ambicionou um longo debate o que se convencionou chamar ‘quilombos’,
de conexão analítica entre os quilombos ainda podem e procuram fazê-los” (Ratts,
e as favelas surgidas ainda no final do 2007, p. 109).
século XIX, tornando-se uma realidade
habitacional e cultural da população negra. Isso foi uma contribuição importante para
Infelizmente, teve uma carreira acadêmica uma agenda de investigação a respeito dos
com interrupções, assassinada vítima de “remanescentes de quilombos”, tema dos
violência ao proteger uma amiga em 1995. movimentos e da ação política negra na
Na visão de Beatriz, os quilombos década de 1980, que ganharia, como ressal-
expressavam uma experiência vital negra tou o já citado texto de Flávio Gomes, texto
brasileira, que ia além do importante na Constituição Federal de 1988. Além disso,
debate sociológico ou mesmo histórico de também foi um projeto intelectual influente
seu tempo. Para além da luta de classes, para uma nova geração de pesquisadores
resistência, ou forma de guerra, reconhe- negros e negras.
cendo tudo isso, a historiadora sugeriu,
no texto “Por uma história do homem PROTAGONISMO POLÍTICO
negro” (1974): “[…] Não se estuda, no
AFRO-BRASILEIRO E OS
negro que está vivendo, a História vivida.
Somos a História Viva do Preto, não núme- ESTUDOS AFRO-BRASILEIROS
ros” (Ratts, 2007, p. 97). Tal perspectiva
recorda a de Alberto Guerreiro Ramos. E Pesquisas recentes têm explicitado que
a autora buscou conferir operacionalidade a agenda política da década de 1980, pau-
política e intelectual a essa visada, fosse tada pela ação e pensamento social negro,
num projeto de pesquisa ou na colaboração protagonizada por intelectuais e ativistas
ao filme Ori, de 1989, em parceria com negras e negros, foi decisiva para recon-
Raquel Gerber, com o intuito de docu- figurar tanto a percepção pública sobre

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as relações raciais no Brasil como polí- âmbito do Estado em seus diferentes níveis,
ticas públicas de combate ao racismo e por meio de governos democraticamente
à discriminação racial. Seja na luta pela eleitos. As ideias têm força social, com
redemocratização política, por meio dos portadores capazes de torná-las reivindi-
movimentos e organizações negros; a pauta cações e movimentos públicos, a depender
da memória social afro-brasileira, promo- dos recursos, adversidades e forças polí-
vendo a Serra da Barriga como Memorial a ticas envolvidas. Meu argumento aqui é
Zumbi dos Palmares e patrimônio cultural, que o pensamento social negro brasileiro,
bem como a demarcação, titulação e patri- no século XX, produzido por intelectuais
monialização das “terras de pretos”, terri- negras e negros brasileiros, sintonizados
tórios quilombolas; ações públicas contra com questões locais e globais de seus tem-
a discriminação racial, atos e movimentos pos, foi responsável por um longo caminho
pela criminalização do racismo, que culmi- de disputas intelectuais, com alcances e
nariam na Lei 7.716/1989 (a “Lei Caó”); a limites concretos em diferentes aspectos
denúncia da “farsa da Abolição” na come- da sociedade, capazes de moldar aspec-
moração crítica do Centenário de 1988; a tos da cidadania brasileira. Neste texto,
participação ativa da Assembleia Nacional enquadrei alguns desses aspectos, por meio
Constituinte culminando na inclusão de de estudos fundamentais, de autoria afro-
pautas do movimento negro na Constitui- -brasileira, focados nos temas da insurgên-
ção Federal de 1988 (Alberti & Pereira, cia, liberdade, cidadania e direitos. Não é
2007; Rios, 2014; Néris, 2018). possível uma história crítica da cidadania
Esses pontos serão decisivos nas con- no Brasil sem que afro-brasileiros homens
quistas públicas dos movimentos negros e mulheres tenham destaque. Tampouco
e seus intelectuais orgânicos brasileiros, uma história do pensamento social sobre
acerca das políticas públicas de ações afir- o país, sob pena de discriminação racista
mativas ou a paulatina representação no e um retrato mal-apresentado.

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