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RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS:
UM PERCURSO PARA
EDUCADORES
Volume II
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e seus descendentes – uma estratégia de reação à escravidão
–, acrescida da contribuição de outros segmentos com os quais
interagiram em cada país, notoriamente alguns povos indígenas
(Reis & Gomes, 1996). Assim, não caberia falar de “sobrevivências
africanas”.
Os historiadores João José Reis e Flávio dos Santos Gomes
dizem que “onde houve escravidão, houve resistência” (Reis & Go-
mes, 1996, p. 9). Na esteira dessa afirmação, é possível dizer que,
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implantação de uma outra estrutura política na qual se
encontraram todos os oprimidos (Munanga, 1996, p. 60).
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No início do século XVII, a capitania de Sergipe e, princi-
palmente, a da Bahia constituíam empório de mocambos.
Há indícios de que os fugitivos dessas capitanias, no século
XVII, tenham se articulado aos vários mocambos de Palmares.
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alguns “palmaristas” dirigiram-se, no início do século XVIII, para
a capitania da Paraíba (Gomes, 2005).
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perseguidos pelas instituições coloniais, mas, por vezes, existiam
nas “brechas” do sistema escravista, sendo passíveis de várias
conotações:
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A memória, o esquecimento e o reaparecimento do
quilombo
Depois da abolição da escravidão e da proclamação da
República, com algumas exceções, o tema do quilombo cai no
esquecimento dos intelectuais, literatos e políticos brasileiros.
Havia uma ideia comum de que, com o fim do período escra-
vista, a população negra havia, compulsoriamente, se deslocado
para as áreas urbanas. No Brasil, em face do mito das três raças
harmônicas na formação do país, era muito forte a vontade de
esquecimento da escravidão e de tudo o que fosse relativo a ela,
como no Hino à Proclamação da República:
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o quilombo é relembrado como desejo de uma utopia.
A maior ou menor familiaridade com as teorias da resis-
tência popular marcam essa produção, que é, inclusive,
demonstrada em letras de samba. Muitas vezes, referidas
em instituições escolares (Nascimento, 1985, p. 45).
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reapropriação e atualização do sentido de quilombo pelos movi-
mentos negros, como vemos num trecho de Poema sobre Palmares:
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A lei brasileira e os “remanescentes de comunidades de
quilombos”
A mobilização em que estiveram envolvidos militantes, par-
lamentares e outros agentes sociais, por ocasião da Assembleia
Nacional Constituinte em 1987 e 1988, resulta na publicação de
um item e um artigo, na Constituição Federal, que se referem aos
quilombos:
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próprios de pertencimento; 3) coletividades que conformaram
diferentes modos de vida e de territorialidade, baseados, predo-
minantemente, no uso comum da terra (O’dwyer, 1995, p. 1-2).
Um debate intenso tem sido travado entre quilombolas,
pesquisadores(as) e juristas sobre os procedimentos para o re-
conhecimento e titulação das terras de quilombos. Depois de
muitos estudos, debates, conflitos locais, ações na justiça e pou-
quíssimas titulações, o governo brasileiro promulgou o decreto
no 4.887, de 20 de novembro de 2003, que
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à Fundação Cultural Palmares, órgão do Ministério da Cultura,
responsável por essa parte do processo de regularização fundiá-
ria. No mesmo sentido, no processo de identificação, delimitação
e demarcação das terras, a comunidade quilombola apresenta
sua própria posição acerca da área que ela almeja regularizar.
As comunidades negras rurais estabelecem alianças com va-
riados segmentos locais, regionais e nacionais, e essa outra face
da diversidade rural brasileira deve ser considerada por aqueles
que estão envolvidos nessa mobilização, que tem sido crescente.
Sejam como “terras de preto”, “terras de negro”, “remanescentes
de quilombo”, “quilombolas”, “mocambeiros” etc., as represen-
tações dos agrupamentos negros rurais, com base na memória,
no parentesco, no lugar que construíram, vêm “reaparecendo”
em contextos que lhes são, em grande parte, adversos.
São mais de 2.200 comunidades, situadas em quase todos os
estados brasileiros, como indica o mapa a seguir, feito de acordo
com levantamento do geógrafo Rafael Sanzio Araújo dos Anjos
(2005):
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Terra, território e ambiente nos quilombos rurais e urbanos
Como dissemos, os quilombos não se reduzem a comuni-
dades formadas por remanescentes de escravizados fugitivos
que se apropriaram de uma porção de terra. Há diversos tipos
de comunidade negra – rurais e urbanas – que se identificam
e são reconhecidas como quilombolas. Há comunidades em
que seus antepassados, ex-escravizados, receberam a terra de
um fazendeiro, mas cujo documento não existe ou “se perdeu
no tempo”. Há terras compradas por ex-escravos em cuja área
outras pessoas residem, irregularmente. Existem muitas comu-
nidades que perderam terra em processos desiguais de venda
ou de grilagem. Portanto, a questão da terra, mais precisamente
da regularização fundiária, é uma das principais demandas dos
quilombolas brasileiros.
Da mesma forma que não se reduzem a descendentes de
escravizados fugitivos, as comunidades quilombolas podem ter
problemas de acesso a sua área, embora não sejam localidades
isoladas, atrasadas, fora da sociedade. É comum que alguns mo-
radores, às vezes mais os homens que as mulheres, tenham uma
relativa mobilidade nas regiões onde vivem. No entanto, nosso
senso comum continua construindo uma imagem de isolamento.
Um senhor cearense, morador da comunidade de Água Pre-
ta, situada a 6 km da sede do município de Tururu, nasceu, em
1900, em Manaus, quando seu pai trabalhava como “soldado da
borracha”, atividade pela qual ele – seu pai – angariou recursos
para adquirir as terras onde a família reside:
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por lá uns três anos ou quatro. Teve um saldinho, desceu,
veio aqui. Chegou aqui, comprou esse terreno. Casou-se,
quando foi no novecentos [1900], foi seco aqui. Andamos
passando fome. Da primeira vez que ele veio, ele comprou
esse terreno e veio. Quando foi novecentos [1900], foi seco.
Ele entregou pro sogro dele, o Paizinho Chagas, deixou ele
tomando de conta da terra e voltou. Nessa volta foi que eu
nasci lá. Veio, no 1901. Veio com toda a família. A terra tinha
comprado da vez que tinha vindo” (João Bertoso, Água
Preta, 1997).2
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Figura 4 Quilombo de Conceição dos Caetano, Tururu, Ceará.
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Figura 5 Idelfonso, Naíde e Hosana – Conceição dos Caetano, Tururu, Ceará.
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Goiás, e no da mata atlântica nos quilombos do Vale do Ribeira,
em São Paulo.
Vejamos o que diz a geógrafa e historiadora Lourdes de Fáti-
ma Bezerra Carril (2006):
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a histórica exclusão social do negro brasileiro, no tocante a
comunidades com identidades próprias. [...]
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Carmelita, no município de São Roque, na região metropolitana
de São Paulo, também área de expansão urbana e de valorização
imobiliária, que está em processo de identificação e de reconhe-
cimento como quilombo.
Palavras finais
Por tudo o que vimos, observamos como os quilombos foram
e são uma realidade multifacetada que permite refazer nossas
interpretações da formação étnico-racial e territorial do Brasil.
Como parte da população negra, ainda que abriguem pessoas
de outros segmentos étnico-raciais, os(as) quilombolas enfrentam
o problema do racismo, particularmente o institucional, quando
não são reconhecidos ou atendidos diferenciadamente em suas
demandas territoriais, educacionais, ambientais e culturais pelos
órgãos públicos e privados, locais, regionais ou federais.
Um caso em discussão é o da educação quilombola, que
se situa nos desdobramentos da Lei no 10.639/2003, instituindo
a obrigatoriedade do ensino da História e da Cultura Africana
e Afro-brasileira, mas que apresenta uma dinâmica própria, seja
quando há escolas nos quilombos, seja quando os(as) quilombo-
las têm que se dirigir a estabelecimentos educacionais fora de
suas áreas. Além disso, há, ainda, a necessidade de formação de
professores(as) quilombolas para atuar nessas comunidades.
Nos anos de 1995, na rememoração dos 300 anos da morte
de Zumbi dos Palmares, o bloco Afro Akomabu, do Centro de
Cultura Negra do Maranhão, fez seus cortejos tradicionais, nos
bairros populares e no centro histórico de São Luís, com o tema
Terra de quilombos. O compositor e cantor Paulo Henrique Nasci-
mento Aguiar, conhecido como Paulinho Akomabu, fez uma can-
ção chamada Terra de preto, da qual deixamos, como as últimas
palavras, mas não menos importantes, alguns versos:
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Para saber mais
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Notas
1 Trabalho baseado em artigo anterior (R atts, 2000), revisto e ampliado.
2, 3 Entrevistas transcritas integral e originalmente, não tendo sido submeti-
das a nenhum tipo de correção.
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