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Beatriz Ellen Roza e Higor Alcântara 1

Grada Kilomba em Ilusões Vol. I, Narciso e Eco, 2017.

“Narciso e Eco” faz parte da performance Illusions da Grada Kilomba. Essa


performance aconteceu no ano de 2017 na Bienal de Artes de Berlim.

A artista se apresenta cercada por meia dúzia de microfones. Durante a


performance, Grada é uma contadora de histórias e recria a tradição africana da
oralidade. A primeira história contada é o mito de Narciso e Eco. Grada estabelece
uma relação entre o mito e a sociedade centrada que vivemos; centrada no sentido
de direcionar todas as perspectivas ao “si”, onde existe a negação de todo espaço
ao redor, e a reprodução do mundo em uma imagem de si próprio. Esse fenômeno,
como Grada pontua, não é falta de conhecimento do exterior, mas, sim, um
exercício de poder consciente, que decide e que pode escolher não saber.

De acordo com Michel de Oliveira, no artigo “Reflexos de Narciso: traços do


arquétipo mítico-psicanalítico nos selfies”, Narciso é representado na mitologia
grega como um jovem de beleza fora do comum. Narciso, que cresceu indiferente
aos sentimentos alheios, rejeitou os sentimentos da ninfa Eco, que, revoltada pela
rejeição, rogou aos deuses que o castigassem por não ter correspondido seu amor.

Momentos depois, Narciso ao sentir sede foi em busca de água em um lago, e ao


debruçar, viu seu próprio reflexo. Apaixonado por sua imagem, tentou beijar a
superfície da água, mas o movimento turvou a imagem refletida. Para não perder a
figura que via, Narciso passou os dias a contemplá-la, sem comer nem descansar, e
como consequência, emagreceu até a morte.

Nos escritos de Ovídio, poeta romano de 17 d.C., Eco era retratada como uma ninfa
que ajudava o deus Júpiter a se safar da infidelidade que cometia contra a esposa
Juno. Eco retinha longas conversas com a deusa para que Júpiter pudesse fugir.
1
Beatriz Roza é graduanda em História da Arte pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e orientanda
voluntária no Programa de Bolsas de Iniciação Artística e Cultural. DRE: 118189314. E-mail:
beatrizellen17@icloud.com. / Higor Alcântara é graduando em Artes Visuais - Gravura pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro e bolsista no Programa de Bolsas de Iniciação Artística e Cultural. DRE: 119135300. E-mail:
ohigorm@gmail.com
Juno, revoltada com a ação de Eco, declarou: “a tua língua, que me iludiu tanto,
pouco poder terá, no uso parvo da voz” (OVÍDIO, 2010). E, então, Eco foi
amaldiçoada a apenas repetir, e não comunicar nada.

Ao fazer um paralelo do mito de Eco e a performance de Grada, é possível


relacionar a falta da fala de Eco com o simbolismo da artista ao falar utilizando
vários microfones. Para Grada Kilomba, no livro “Memórias de Plantação”, a boca é
um símbolo da fala e da enunciação e ela pode ser usada como ferramenta de
opressão racista. Porque ela representa o que os brancos querem e precisam
controlar e, por isso, é severamente censurada desde a colonização até os tempos
atuais.

Eco estaria para a mitologia grega, como o negro está para a sociedade: sem
produzir a propria fala, apenas comuninando o que é dito a ele. A importância da
performance de Grada ao se apresentar contando histórias e com microfones para
emancipar a voz está exatamente na necessidade de ser ouvida. Assim como
Frantz Fanon diz no início de seu livro “Peles Negras, Máscaras Brancas”, falar é
existir para o outro, e, se pessoas negras não têm a ferramenta da fala em uma
sociedade colonizadora, essas pessoas não existem nesses espaços.

No livro “Memórias de Plantação”, a artista e autora afirma que “existe um medo


apreensivo de que, se o sujeito colonial falar, o colonizador terá de ouvir. Seria
forçado a entrar em uma confrontação desconfortável com as verdades do Outro.”

Segundo os relatos citados pela artista, a mulher escravizada do retrato “Escrava


Anastácia", feito em 1839, foi obrigada a usar um colar de ferro que, além de
impossibilitá-la de comer, a impedia de falar. De acordo com Kilomba, algumas
fontes defendem que esse castigo foi dado pela resistência de Anastácia às
investidas sexuais do senhor de engenho, outras dizem que teria sido causado por
uma sinhá que invejava a beleza de Anastacia. Outra versão, entretanto, relata
ativismo político e auxílio em fugas de outros negros escravizados.
Independente da razão do castigo, o que intriga é a escolha dele. Para além da
alimentação, que já era negada aos povos escravizados, tapar a boca representa,
assim como Grada pontua, o medo do colonizador de ouvir o Outro.

Quanto a percepção do Outro, Maria Aparecida Silva Bento, psicóloga e ativista,


decorre em sua tese “Pactos Narcísicos no Racismo" :

A percepção da alteridade é um fenômeno universal e é certo que


todas as culturas constroem categorias para conhecer, classificar e
pensar o Outro. No entanto, estudos vêm indicando que uma das
particularidades dos esquemas de pensamento ocidental é conceber
o Outro como inferior, com a finalidade específica de submetê-lo.
(BENTO, 2002)

Ainda segundo a autora, Freud (1996) identifica o narcisismo como elemento que
produz a preservação do indivíduo, mas também sendo este o que cria aversões
sobre o Outro. Ela destaca outro fator fundamental, baseado nas relações raciais no
Brasil, que está na gênese desse processo: o medo. A idealização da branquitude
acontece por meio do medo do diferente e a manutenção de um sistema que
privilegia seus iguais. Ou seja, neste sentido, Narciso. Grada em sua performance
faz alusão a Narciso como a memória de um passado colonial que só se reproduz a
si mesmo.

Não somente, Bento também desenvolve a teoria da descriminação com base no


interesse. A autora acredita que a discriminação acontece, muitas vezes, com a
função de um grupo manter seus privilégios. Ou seja, desejo de se perpetrar o
privilégio da branquitude aliado, ou não, à um sentimento de repulsão aos negros,
gera a descriminação. Como um pacto inconsciente, se manter alheio a
determinadas questões sociais é uma forma de não pôr em risco os interesses do
grupo privilegiado. É sob esta ótica que se torna possível analisar e diferenciar
acerca da descriminação provocada pelo preconceito e a descriminação provocada
pelo interesse.

A tese de Bento vai ao encontro da fala da Grada na seguinte passagem:


A máscara vedando a boca do sujeito negro impede-o de revelar tais
verdades, das quais o senhor branco quer ‘se desviar’, ‘manter à
distancia’, nas margens, invisiveis e ‘quietas’. Por assim dizer, esse
método protege o sujeito branco de reconhecer o conhecimento do
‘Outro’. Uma vez confrontado com verdades desconfortáveis dessa
história muito suja, o sujeito branco comumente argumenta ‘não
saber…’, ‘não entender…’, ‘não se lembrar….’, ‘não acreditar…’, ou
‘não estar convencido...”. Essas são expressões desse processo de
repressão, no qual o sujeito resiste tornando consciente a informação
inconsciente, ou seja, alguém quer fazer (e manter) o conhecido
desconhecido. (GRADA, 2019)

Ainda sobre a performance Narciso e Eco da Kilomba, o artista visual brasileiro


Sidney Amaral, em 2014, produziu a obra “Gargalheira – quem falará por nós?”. A
aquarela sobre papel retrata o próprio artista de perfil, com pose confiante. Na obra,
ele se apresenta nú com uma gargalheira no pescoço. A gargalheira é uma espécie
de coleira feita de metal ou madeira, com corrente, para prender o sujeito
escravizado, muitas vezes como punição por tentativa de fuga. Entretanto, na
gargalheira do artista há quatro microfones, que parecem aguardar a fala do
homem.

De acordo com o próprio artista, pessoas negras lidam com a questão de “dar a
voz”. “Quem dá voz para o negro?”, ele questiona. “As pessoas sempre te
estereotipam, mas nunca colocam você como protagonista, para falar.”. Tanto na
performance de Grada e a aquarela de Sidney, a necessidade da fala se faz
presente.

Apesar da diferente nacionalidade dos artistas, eles apresentam questões em


comum. Isso aponta que apesar da hierarquia histórica dos países, a condição do
sujeito negro é compartilhada. Portugal é um país com histórico imperialista,
colonizador e racista, e o Brasil, que foi colonizado, também é estruturalmente
racista.

Assim como Grada afirma no capítulo "Políticas espaciais” de seu livro, ser
observada e questionada quanto a sua existencia em um território é uma forma de
controle, porque esperam que o sujeito negro justifique sua presença em um
território branco. Apesar do Brasil ter a maior parte da população composta por
negros e pardos, a terra brasileira teve a narrativa invertida, logo, colonizadores
interpretam que a terra pertencem à eles, e, portanto, devem cuidar para que os
Outros não tomem o que eles dizem ser deles.
Ou seja, tanto Grada quanto Sidney, em suas obras, experienciam a prática da fala
em espaços que sempre os negaram tal direito.

Por fim, a relevância da performance da Grada, desde a escolha do nome até o


tema apresentado está na atualidade da pauta, pois apesar de serem questões
históricas, se fazem presentes nos dias atuais e atravessam questões territorias
quando se trata do corpo negro na sociedade racista. Essas pautas abrem
discussões para feridas coloniais que devem ser expostas com a finalidade de uma
solução, uma cura, e, deste modo, mapeiam caminhos para um pensamento e ação
decolonial.

Referências bibliográficas:

BENTO, Cida. Pactos Narcísicos no Racismo: Branquitude e poder nas


organizações empresariais e no poder público. 2002. Tese (Doutorado em
Psicologia) - Universidade de São Paulo, [S. l.], 2002. Disponível em:
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-18062019-181514/publico/bento
_do_2002.pdf. Acesso em: 22 maio 2021.

CARVALHO, Raimundo. Metamorfoses em Tradução. 2010. Trabalho de


conclusão (Pós-Doutorado em Letras Clássicas) - Universidade de São Paulo, [S. l.],
2010. Disponível em:
http://www.usp.br/verve/coordenadores/raimundocarvalho/rascunhos/metamorfoses
ovidio-raimundocarvalho.pdf. Acesso em: 22 maio 2021.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução: Renato da Silveira.


Salvador: EDUFBA, 2008.

GRADA Kilomba: desobediências poéticas. Pinacoteca de São Paulo [s. n.], 2019.
Disponível em:
http://pinacoteca.org.br/wp-content/uploads/2019/07/AF06_gradakilomba_miolo_bai
xa.pdf. Acesso em: 23 maio 2021.
JÚNIOR, Nabor. MEU PASSADO (NÃO) ME CONDENA: MEMÓRIA, RAÇA E
IDENTIDADE NAS PINTURAS DE SIDNEY AMARAL. O menelick 2º ato, [S. l.], p.
1-2, 25 nov. 2021. Disponível em:
http://www.omenelick2ato.com/artes-plasticas/meu-passado-nao-me-condena#:~:tex
t=Produzida%20ao%20longo%20de%202014,pregos%20e%20que%20durantes%2
0s%C3%A9culos. Acesso em: 22 maio 2021.

KILOMBA , Grada. Memórias de Plantação: Episódios de racismo cotidiano.


Tradução: Jess Oliveira. 1. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

PERFORMANCE "Illusions" de Grada Kilomba. [S. l.: s. n.], 2016. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=1bm8hI9xtf0&t=19s&ab_channel=ARTE%21Bras
ileiros. Acesso em: 22 maio 2021.

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