Você está na página 1de 14

A DUBIEDADE DA PERSONA DE SAFO

Rafael Guimarães Tavares da SILVA


UFMG

Resumo: Partindo de uma reflexão sobre os motivos para que ainda


existam estudos clássicos hoje, avanço uma série de considerações
sobre uma ideia de ―clássico‖ e suas desastrosas implicações sociais,
pedagógicas e econômicas. Na sequência, proponho apontar
alternativas a esse modelo ―clássico‖ – argumentando pela
necessidade de uma reconsideração da forma como se lida com a
tradição – e desenvolvo uma dessas alternativas: retomando o
famoso fr. 31 de Safo, faço uma leitura crítica de sua tradição e
recepção, sugerindo uma série de desdobramentos práticos e
teóricos para a reflexão contemporânea (ou ainda, a partir dela).

Palavras-chave: Estudos de gênero; Estudos clássicos; Safo; Poética


clássica; Recepção.

Gostaria de começar com uma pergunta de ordem mais geral


e que se faz premente diante de nossas conjunturas políticas atuais:
por que estudar as clássicas?
A remissão é evidentemente ao texto de Italo Calvino,
originalmente publicado como artigo em 19811 e retomado como
título de um livro em 1995, Perché leggere i classici?. Nesse texto o
autor empregava um método argumentativo ―clássico‖ (ainda que
seja preciso indagar em profundidade o que está implicado por este
adjetivo ―clássico‖): Calvino propunha uma série de definições
daquilo que poderia ser chamado de uma obra ―clássica‖ e tecia
certas considerações e desdobramentos a partir daí. O

1
O título desse artigo era ―Italiani, vi esorto ai classici‖ e foi publicado em
L‘Espresso, no dia 28 de junho de 1981, p. 58-68.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
A dubiedade da persona de Safo

procedimento aparentemente tão tradicional, contudo, não o era de


forma absoluta, na medida em que suas definições eram
desenvolvidas a partir de suas próprias experiências de leitura e
tinham um sabor pessoal e contemporâneo. Nesse sentido, o frescor
e o caráter inusitado das próprias definições davam nova vida ao
método ―clássico‖ empregado pela argumentação do autor.
Não tenho o talento literário de Italo Calvino. Pretendo me
valer de procedimento análogo ao seu, mas ao invés de propor
minhas próprias definições de ―clássico‖, recorrerei a uma série de
autores ―clássicos‖, dicionários – esperando sair desse
procedimento tautológico tradicional com alguns apontamentos que
me permitam investigar ainda um caso ―clássico‖ do proceder dessa
tradição (na leitura de um poema especialmente famoso de Safo, o
fr. 31).
Começo com uma primeira definição básica e
contemporânea:

CLÁSSICO. [Do lat. classicu] Adj. 1. Relativo à arte, à


literatura ou à cultura dos antigos gregos e romanos. 2.
Que segue, em matéria de artes, letras, cultura, o padrão
desses povos. [...] 4. Cujo valor foi posto à prova do
tempo; tradicional; antigo: Às tendências modernas
preferem as formas clássicas da arte e da literatura. 5.
Que segue os cânones preestabelecidos; acorde com
eles. (FERREIRA, 1999, p. 484).

Trata-se de uma definição classificatória fundamentada na


procedência ou na precedência de certa cultura – de base greco-
romana – e tem toda a aparência de ser uma definição que apenas
constata uma relação de fato. Seja essa relação de origem, seja ela
de poder, ―clássico‖ afirma algum tipo de relação com a antiguidade
greco-romana.
Retomo aqui uma segunda definição:

CLÁSSICO, adj. (Gram.) Essa palavra se diz apenas dos


autores que são explicados nos colégios; as palavras e os
modos de falar desses autores servem de modelo aos
jovens. Dá-se particularmente esse nome aos autores
que viveram no tempo da república e àqueles que foram

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 429


Rafael Guimarães Tavares da SILVA

contemporâneos ou quase de Augusto [...]. (DIDEROT;


D‘ALEMBERT, 1751, p. 507)2

A definição da famosa Encyclopédie tem um caráter


descritivo e potencialmente pragmático. Segundo o que fica dito,
―clássico‖ é uma palavra basicamente empregada para remeter aos
autores lidos e estudados nos colégios (isto é, nas classes). Essa
relação entre o estudo em classe e a aquisição de um estatuto
―clássico‖ por determinados autores já estava, de certo modo,
pressuposta por uma das definições do Dicionário Aurélio – na
medida em que para sobreviver ―à prova do tempo‖ uma presença
constante, desde as primeiras etapas da educação, pode ter um
papel fundamental (como de fato teve, em inúmeros casos) –, mas
na definição da Encyclopédie tem-se a leve sugestão de que uma
tautologia possa subjazer ao entendimento de ―clássico‖: ―clássico‖
é aquilo que está presente nas classes. A quem cabe a escolha do
que há de estar nessas classes é algo que será preciso ainda
questionar.
Para isso, passo à terceira e última definição:

CLÁSSICO (adj.) circa 1610, ―da mais alta classe,


aprovado como um modelo‖ do francês classique (sec.
XVII), do latim classicus ―relacionado às (mais altas)
classes do povo romano‖, daí, ―superior‖, de classis.
Originalmente em inglês, ―da primeira classe‖; com o
significado de ―pertencente a autores tradicionais da
antiguidade greco-romana‖ é atestado desde circa 1620.
(HARPER, 2016)3

2
Tradução minha. No original: « CLASSIQUE, adj. (Gramm.) Ce mot ne se dit
que des auteurs que l‘on explique dans les colléges; les mots & les façons de
parler de ces auteurs servent de modele aux jeunes gens. On donne
particulierement ce nom aux auteurs qui ont vécu du tems de la république,
& ceux qui ont été contemporains ou presque contemporains d‘Auguste [...]
» (DIDEROT; D‘ALEMBERT, 1751, p. 507).
3
Tradução minha. No original: ―classic (adj.) 1610s, "of the highest class;
approved as a model," from French classique (17c.), from Latin classicus
"relating to the (highest) classes of the Roman people," hence, "superior,"
from classis (see class). Originally in English, "of the first class;" meaning
"belonging to standard authors of Greek and Roman antiquity" is attested
from 1620s.‖ (HARPER, 2016).
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 430
A dubiedade da persona de Safo

Essa definição – de base etimológica e voltada para o


desenvolvimento do adjetivo de mesmo radical em inglês – já
apresenta uma nuance que ultrapassa aquilo que se poderia julgar
meramente descritivo e pragmático. Se seu emprego tem a
pretensão de descrever, ou constatar, uma característica – na
medida em que remete ao que é ―da mais alta classe‖ –, por outro
lado, comporta uma dimensão prescritiva. Quando define ―clássico‖
como aquilo que é ―aprovado como modelo‖ envolve a noção de que
algo deva ser de certa forma. Trata-se, portanto, não apenas de uma
definição descritiva, mas também judicativa, ou seja, que sentencia
a partir de um determinado valor. Que esse valor tenha relação com
―as (mais altas) classes‖ mencionadas pelo verbete é algo que os
parênteses não conseguem escamotear.
Seria possível remontar ainda à definição do adjetivo
classicus, derivado do substantivo classis, em latim, e mostrar sua
relação com ―chamado ou convocação‖, em seguida, com ―o grupo
dos que são chamados ao combate‖ e finalmente com ―o grupo dos
cidadãos pertencentes à primeira das classes criadas por Sérvio
Túlio.‖ (ERNOUT; MEILLET, 1951, p. 223) – Mas não é preciso voltar
tanto no tempo e revisitar essas relações que sugeririam uma leitura
nietzscheana da cultura, à moda de sua Genealogia da moral.
Prefiro restringir-me a sugerir uma tessitura entre os pontos vistos
até aqui: clássico – antiguidade greco-romana – classe de aula –
classes altas. As relações entre esses pontos dispostos assim, quase
soltos, podem parecer de grande evidência para a maioria das
pessoas hoje e de uma pungência amarga justamente para aquelas
que se sentem excluídas do legado dessa ―antiguidade greco-
romana‖ e, por consequência, de tudo aquilo que vem sob a etiqueta
de ―clássico‖.
Isso parece fazer parte das razões não apenas para um
questionamento contemporâneo cada vez mais frequente do valor
dos ―clássicos‖ – dos autores e de suas obras -, mas também para
uma enorme perda do interesse pelas línguas em que muitas dessas
obras estão escritas: o grego e o latim. E outras acusações poderiam
ser somadas a um possível processo aberto contra o estudo das
clássicas hoje: para além de seu emprego ideológico (mais
estritamente ―de classe‖), seu papel na fundamentação de
identidades nacionais que levaram a uma série de desmandos ao

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 431


Rafael Guimarães Tavares da SILVA

longo da história (tal como no caso do cesarismo napoleônico e do


cesarismo fascista, além do filo-helenismo germânico)4, sua
influência sobre concepções acerca de democracia e república (não
excludentes da mão-de-obra escrava, por exemplo), de questões de
gênero, comportamento sexual, entre outros. Mas essas seriam
razões suficientes para se condenar o estudo das clássicas sem
direito a uma apelação ou recurso?
Exemplos históricos precisos sugerem que uma abordagem
dicotômica da questão pode levar a imensos riscos ao se condenar
toda uma tradição e romper completamente com ela. Riscos tão
grandes quanto (ou ainda maiores que) os problemas envolvidos por
uma abordagem tradicional do estudo das clássicas. Movimentos de
rompimento drástico com essa tradição humanística – de base
―clássica‖ – frequentemente descambam para o irracionalismo, a
violência e a recusa dos valores por meio da destruição simples
daquilo que é sumariamente julgado como ―errado‖ (o erro muitas
vezes consistindo apenas em diferenças pontuais)5. Assim sendo,
haveria uma forma alternativa para se proceder com relação a isso?
Admitir o emprego distorcido das ―clássicas‖ para
imposturas culturais é importante, mas não é porque acontecem
incêndios que se deve banir o uso do fogo. É preciso antes
desenvolver as maneiras mais interessantes de empregá-lo de forma
responsável e efetivamente empregá-lo assim, afinal, a iluminação
de ambientes, o aquecimento dos corpos, o cozimento de alimentos,
a fabricação de instrumentos seriam alguns dos benefícios perdidos
se ele fosse condenado sumariamente. É preciso evocar o papel das
―clássicas‖ para a constituição de vários campos epistemológicos,
tanto os mais tradicionais quanto os contemporâneos (desde a física
quântica até a genética e a sociologia), além de sua renovada
influência – ainda que por contraste – em inúmeras discussões em
andamento hoje. Para ficar num único exemplo: os estudos de

4
Para informações básicas – e sugestões bibliográficas – acerca desses
processos de apropriação cultural, cf. HARTOG, 2003, p. 155-186.
5
Em matéria artística, tais características se manifestaram de forma
exemplar no futurismo italiano. Os manifestos e a poesia de Marinetti são
especialmente extremistas (cf. TELES, 1973, p. 59-77).
Contemporaneamente, a atuação de grupos radicais – no Brasil e fora dele –
reforçam a relação entre rompimento com a história, recusa da tradição,
intolerância cultural, violência e irracionalismo.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 432
A dubiedade da persona de Safo

Nietzsche, tão pautados em sua formação filológica, estão na base


tanto da teoria freudiana do inconsciente quanto da crítica
foucaultiana aos discursos de poder6. Imensas são as influências
desse debate, hoje felizmente clássico, na luta antimanicomial, na
descriminalização do homossexualismo, na reconsideração do
sistema penal e carcerário, entre outros. Seria possível citar
inúmeros casos comparáveis (contemporâneos, modernos,
medievais e antigos): Simone de Beauvoir, em seu Le Deuxième Sexe,
faz longas análises das imagens e dos mitos construídos
culturalmente, admitindo esse retorno aos ―clássicos‖ como um
procedimento inevitável; Marx escreve uma dissertação de
doutorado sobre a diferença entre a filosofia natural de Demócrito e
a de Epicuro; Darwin; Kant; Rousseau; Montesquieu; Newton; Galileu;
etc... E a lista poderia se prolongar ad infinitum.
O procedimento de muitos desses autores com relação aos
―clássicos‖ – o que envolve também, consequentemente, um
posicionamento para com as ―clássicas‖ – parece envolver uma
leitura da tradição, mas uma leitura crítica. Para compreender a si
mesmos, para compreender a própria cultura e – desse modo,
compreender também os outros e suas culturas –, eles se voltam a
um estudo profundo daquilo que os constitui: sua história, sua
cultura, seus valores, suas projeções, suas imposturas e tudo aquilo
que forem capazes de discernir a partir de seu próprio ponto de
vista. Esse trabalho de discernimento oferece algumas das
ferramentas possíveis – entre inúmeras outras, passíveis de serem
desenvolvidas por outras vias – a um questionamento radical de
muitas das consequências que apontei como presentes nas relações
implicadas pelos seguintes pontos: clássico – antiguidade greco-
romana – classe de aula – classes altas. Talvez a partir dessa
perspectiva crítica seja possível desenvolver novas considerações e
propor alternativas ao estado de crise presente: alternativas
axiológicas, culturais, pedagógicas e econômicas.
Com esse intuito pretendo retomar um caso emblemático da
literatura clássica – de matriz helênica arcaica – em seus

6
Isso sem mencionar que os dois autores têm trabalhos específicos sobre
textos e assuntos relacionados diretamente à antiguidade clássica, como se
vê na Interpretação dos sonhos, no Complexo de Édipo e em Totem e Tabu –
de Freud -, ou na História da sexualidade e na Coragem da Verdade – de
Foucault.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 433
Rafael Guimarães Tavares da SILVA

desdobramentos culturais, hermenêuticos e de história da recepção.


Trata-se do célebre fr. 31 de Safo. As duas principais leituras para
esse poema encontram seu ponto de inflexão no pronome relativo
[isso], do quinto verso, que com seu valor demonstrativo parece
ter uma abertura larga o bastante para compreender dois referentes
diversos igualmente possíveis – a depender da interpretação dada à
totalidade do poema -, ainda que não sejam compossíveis (ou seja,
possíveis ambos ao mesmo tempo).
É preciso conferir o poema em sua íntegra para delinear em
seguida as tendências gerais da questão:

Parece-me ser par dos deuses ele,


o homem, que oposto a ti
senta e de perto tua doce
fala escuta,

e tua risada atraente. Isso, certo,


no peito atordoa meu coração;
pois quando te vejo por um instante, então
falar não posso mais,

mas se quebra minha língua, e ligeiro


fogo de pronto corre sob minha pele,
e nada veem meus olhos, e
zumbem meus ouvidos,

e água escorre de mim, e um tremor


de todo me toma, e mais verde que a relva
estou, e bem perto de estar morta
pareço eu mesma. (trad. Giuliana Ragusa)7

A primeira interpretação – que tem menos aceitação hoje em


dia desde críticas desenvolvidas ao longo das últimas décadas –,

7
Para a tradução, cf. SAFO DE LESBOS, 2011, p. 105-106. Em grego:
ςἴσ ς σ / ἔ ' ρ, ςἐ ς / ἰσ
π σ ἆ ω -/ σ ςὐπ // σ ςἰ ρ , ' ἦ /
ρ ἐ σ σ ἐπ σ ·/ ς ρἔςσ' ἴ ω ρ χ ', ς ώ -/ σ' ὐ ' ἒ ἔ '
ἴ ,// ἀ σσ †ἔ †, π / ' χρ πῦρὐπ ρ ,/
ππ σσ ' ὐ ' ἒ ρ ', ἐπ ρρ -/ σ ' ἄ ,// ' ἴ ρως χ ,
ρ ς / π ῖσ ἄ ρ , χ ωρ ρ π ς/ ἔ , ' ω 'π ς/
'ἔ ' ᾳ.// ἀ π , ἐπ † π †...
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 434
A dubiedade da persona de Safo

apesar de seu prestígio tradicional, é a que vê no pronome [isso] a


intimidade com que um homem real escuta a doce fala e a risada
atraente da garota amada pela narradora8. Esse fato real seria a
causa para um ataque de ciúmes cujo quadro clínico – descrito nas
estrofes seguintes – daria detalhes exagerados justamente para
sugerir o exagero dos sentimentos dessa narradora.
A segunda interpretação do fr. 31, cada vez mais aceita hoje
em dia (embora já existisse desde a antiguidade)9 sugere que o
pronome [isso] estaria se referindo ao pensamento de que
quando a narradora por ventura estivesse numa posição comparável
à daquele homem, ou seja, próxima da doce fala e da risada atraente
da garota amada, não conseguiria manter a mesma indiferença que
ele – indiferença evocada justamente com uma expressão homérica,
―ísos théoisin [par dos deuses]‖ –, mas sofreria conforme a descrição
patológica das estrofes seguintes deixam ver. A figura ―daquele
homem‖ na estrofe inicial, portanto, desempenharia apenas um
papel de contraste (RACE, 1983, p. 97).
Para simplificar, é possível compreender as leituras que se
orientam pela primeira interpretação como relacionadas ao ciúme
da narradora, enquanto as que se orientam pela segunda como
relacionadas à sua paixão. A ideia do ciúme tem encontrado
resistência na bibliografia recente sobre o assunto, pois
supervaloriza a figura masculina – figura ausente nas estrofes que
se seguem à primeira. Eu me alinho a tal crítica e compreendo esse
poema como uma projeção – imaginativa – realizada pela narradora
a fim de ressaltar a profundidade de sua paixão. Com essa leitura,
―aquele homem‖ é colocado em seu devido lugar, por meio de uma
interpretação que nem ignora sua menção na primeira estrofe, nem
a supervaloriza –
como nas propostas que fariam dele a razão principal da
existência do poema. Graças aos estudos de gênero, as
interpretações de muitos dos poemas de Safo – e de demais artistas
– se veem cada vez mais livres de certas suposições falocêntricas
características de uma cultura eminentemente masculina10.

8
As concordâncias da primeira pessoa com adjetivos e particípios no
feminino indicam claramente que se trata de uma persona feminina.
9
Conforme Lidov (1993, p. 527).
10
Para uma crítica às abordagens sexistas que Page e Devereux haviam
oferecido em suas leituras do fr. 31 de Safo, cf. LEFKOWITZ, 1996, p. 29-32.
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 435
Rafael Guimarães Tavares da SILVA

Ainda que a interpretação do poema não esteja encerrada, é


certo que prefiro interpretar seus versos finais como a descrição
exagerada de sintomas virtuais que afetariam a narradora se ela
fosse posta à prova da mesma forma que ―aquele homem‖. É preciso
notar que, além dos argumentos e paralelos já traçados para se
defender essa ideia, o tópos retórico em que a indiferença de uma
pessoa não afetada pela beleza da pessoa amada é comparada à
afecção hiperbólica daquele que ama adquiriu uma importância
considerável entre poetas líricos posteriores quando cantam o amor
(como Íbico e Píndaro, por exemplo) (RACE, 1983, p. 98).
Outro argumento importante, sem formulação explícita
dentre a bibliografia consultada, poderia ser proposto a partir de
uma constatação comum entre estudiosos do poema: um dos
sintomas patológicos mais perigosos para um poeta de tradição oral
(tal como é o caso de Safo) é o silêncio. Se a poeta consegue resistir
e lançar um poema que a perpetua para além de toda e qualquer
morte da voz é porque os sintomas patológicos descritos por ela
são apenas virtuais (ou seja, imaginados). Ainda que se possa
admitir a sugestão de que o emprego do termo ―ἔ [se quebra]‖
reproduza uma perturbação na voz da poeta (por meio do emprego
de um hiato) (O‘HIGGINS, 1990, p. 159), é certo que a descrição
exagerada dessa afecção profunda é meramente fantasiosa. Do
contrário, a potência com que as palavras desse poema são
articuladas e emitidas contradiria a profundidade da afecção
sugerida, diminuindo assim seu impacto poético.
É de se notar o intrincado jogo proposto por essa poesia a
partir de conjugações do verbo [aparecer], numa estrutura
anelar: esse verbo aparece conjugado na terceira pessoa do singular
no primeiro verso, [parece], ligado à figura ―daquele
homem‖ e é retomado na primeira pessoa do singular no v. 16,
[pareço], ligado portanto à figura da narradora. A mudança
de sentido por que passa o radical desse verbo nos séculos
seguintes sugere que as considerações desse poema – desde a
presença ―daquele homem‖ até a manifestação dos sintomas
patológicos – seriam produto da phantasía [fantasia; imaginação]
dessa poeta (LEFKOWITZ, 1996, p. 33).
Além disso, seria possível apontar o jogo estabelecido por
Safo com o vocabulário homérico – predominante em sua tradição
poética helênica. A posição dúbia dessa poeta – inserida no seio de
uma cultura falocêntrica, ainda que ela própria fosse originária de
uma cultura alternativa – é o que torna sua poesia tão múltipla e

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 436


A dubiedade da persona de Safo

rica. É como se, tendo que dominar a linguagem empregada por


aqueles que prevalecem na sociedade – ou seja, a linguagem
masculina típica dos poemas homéricos –, Safo também pudesse
desenvolver uma linguagem própria – restrita ao universo feminino,
apartado no interior daquela sociedade – e se valesse dele para
compor uma obra multifacetada (WINKLER, 1995, p. 95). Nesse
sentido, ela ocupa um entre-lugar delicado, mas profundamente
instigante, na medida em que pode empregar os mesmos recursos
―clássicos‖ – acrescidos de recursos desenvolvidos a partir de outras
fontes – a fim de exprimir não apenas os anseios daqueles que
prevalecem socialmente, mas, aparentando fazê-lo (por meio do
recurso à linguagem prestigiada pela sociedade), pode também
arruiná-lo por dentro e de forma dificilmente detectável (na medida
em que apenas de certa perspectiva – normalmente pouco atraente
para aqueles que têm precedência social – suas estratégias poderiam
ser efetivamente compreendidas).
Safo ocupa um lugar único e exemplar na história da poesia
―clássica‖ e de sua recepção, igualmente ―clássica‖. Acredito que
esse retorno às leituras de seu fr. 31, com um esboço daquilo que é
possível propor quando certos pressupostos culturais são (pelo
menos parcialmente) colocados de lado, possa indicar uma das vias
possíveis de acesso aos estudos clássicos de forma renovada. Talvez
não seja possível se livrar totalmente de tais pressupostos, mas
atentar para as imposturas mencionadas no começo deste texto é
certamente uma das maneiras de se despertar a atenção para isso.
Em todo caso, acredito ter demonstrado que há mais de um modo
de retornar aos textos ―clássicos‖ e de relê-los à luz do tempo
presente (e, quem sabe?, do tempo futuro), a fim de esboçar
alternativas à crise presente – crise que tem relações profundas com
a herança de um passado marcado por violência, silêncio e revolta
velada.

Referências

ANNIS, William. ―Sappho: Fragment 31‖. In: Aoidoi.org (July 18, 2004).
Disponível em: http://www.aoidoi.org/poets/sappho/sappho-31.pdf .

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 437


Rafael Guimarães Tavares da SILVA

Consulta em: 2 de novembro de 2015.


CALAME, Claude. ―Sappho‘s Group: An Initiation into Womanhood‖
(translated by Janice Orion and Derek Collins) [orig. published in 1994]. In:
GREENE, Ellen (ed.). Reading Sappho – Contemporary Approaches. Berkeley:
University of California Press, 1996, p. 113-124.

CALVINO, Italo. Perché leggere i classici?. Milano: Oscar Mondadori, 1995.

DIDEROT, Denis; D‘ALEMBERT, Jean le Rond. L‘Encyclopédie. Tome 3. 1re


édition. Dix-sept volumes. Paris: 1751.

ERNOUT, A.; MEILLET, A. Dictionnaire Etymologique de la Langue Latine:


Histoire des Mots. 3ème édition. Paris : Librairie C. Klincksieck, 1951.

FERREIRA, A. B. H. Aurélio século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa. 3.


ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

HARPER, Douglas. Online etymology dictionary. Disponível em:


http://www.etymonline.com/index.php?term=classic. Acesso em: 02 de
novembro de 2016.

HARTOG, François. Fazer a viagem a Atenas: a recepção francesa de Johann


Joachim Winckelmann. In: ______. Os antigos, o passado e o presente. Org.
José Otávio Guimarães. Tradução de Sonia Lacerda, Marcos Veneu e José
Otávio Guimarães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003, p. 155-
186.

LANATA, Giuliana. ―Sappho‘s Amatory Language‖ (translated by William


Robins) [orig. published as ―Sul linguagio amoroso di Saffo‖, in 1966]. In:
GREENE, Ellen (ed.). Reading Sappho – Contemporary Approaches. Berkeley:
University of California Press, 1996, p. 11-25.

LEFKOWITZ, Mary. ―Critical Stereotypes and the Poetry of Sappho‖ [orig.


published in 1974]. In: GREENE, Ellen (ed.). Reading Sappho – Contemporary
Approaches. Berkeley: University of California Press, 1996, p. 26-34.

LIDOV, Joel B. ―The Second Stanza of Sappho 31 - Another Look‖, American


Journal of Philology 114 (1993), p. 503-535.

MARCOVICH, M. ―Sappho, Fr. 31: Anxiety Attack or Love Declaration?‖


Classical Quarterly 66 (1972), p. 19-32.

MCEVILLEY, Thomas. ―Sappho, Fragment Thirty One: The Face behind the
Mask‖, Phoenix 32 (1978), p. 1-18.

O‘HIGGINS, Dolores. ―Sappho‘s Splintered Tongue: Silence in Sappho 31 and

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 438


A dubiedade da persona de Safo

Catullus 51‖, American Journal of Philology 111 (1990), p. 156- 67.

RACE, William H. ―‗That Man‘ in Sappho fr. 31 L-P‖, Classical Antiquity, vol.
2, nº1 (April, 1983), p. 92-101.

SAFO DE LESBOS. Hino a Afrodite e outros poemas. Org. e trad. de Giuliana


Ragusa. São Paulo: Hedra, 2011.

SEGAL, Charles. ―Eros and Incantation: Sappho and Oral Poetry‖. In:
GREENE, Ellen (ed.). Reading Sappho – Contemporary Approaches. Berkeley:
University of California Press, 1996, p. 58-78.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro:
Apresentação crítica dos principais manifestos, prefácios e conferências
vanguardistas, de 1857 até hoje. 2. Edição. Petrópolis: Editora Vozes, 1973.

WINKLER, James. ―Gardens of Nymphs: Public and Private in Sappho‘s


Lyrics‖ [orig. published in 1981]. In: GREENE, Ellen (ed.). Reading Sappho –
Contemporary Approaches. Berkeley: University of California Press, 1996, p.
89-112.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 439

Você também pode gostar