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Faculdade de Letras
Universidade de Lisboa
2º Semestre 2023
Aticismo, Asianismo, e posicionamentos discursivos em Luciano e
Pseudo-Longino
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apreciadores a partir do século II EC, tornando-se popular durante a Segunda Sofística, ainda
que dissociada do cânon clássico.
Retomando agora o outro termo, Aticismo, também ele não está isento de
problemáticas. Kim sugere que se distinga dois fenômenos diferentes sob o mesmo nome: o
primeiro seria o qual já mencionei, um aticismo estilístico, que se opõe ao Asianismo; e o
segundo, um aticismo linguístico. O primeiro, o Aticismo estético, por vezes parece ser um
rótulo insuficientemente abrangente, pois é aplicado frequentemente a autores que proclamam
e executam a imitação não só de autores áticos, mas também de outros modelos clássicos,
como Homero e Heródoto, por exemplo.
Quanto à segunda vertente, o Aticismo linguístico, poderia ser definida como a
tentativa de resgatar a linguagem ateniense dos séculos V e IV AEC, ou seja, a reprodução da
ortografia, morfologia, vocabulário e sintaxe de uma variante que há muito tinha morrido
como língua falada. Restringindo-se à linguagem, esse Aticismo não era mutuamente exclusivo
com o Asianismo, podendo existir obras de estilo asiático e linguagem ática.
Esse policiamento dos hábitos linguísticos estava amplamente difundido no período
da Segunda Sofística, e, como atesta a existência de obras prescritivas quanto ao uso de
palavras Áticas no século II, era mais que um recurso literário, na verdade, um requisito
linguístico cotidiano das elites. Por exemplo, a obra de Frínico intitulada “Seleção de palavras
áticas” apresenta quais palavras são aprovadas ou não, e defende que as pessoas de cultura
evitem pronunciar certos léxicos do grego coloquial sob o risco de parecerem “ignorantes” ou
“bárbaras”.
Quanto à motivação desse fenômeno, me parece que numa sociedade em que a
retórica era um aspecto central para a circulação de poder e performance do papel de cidadão,
é natural que os discursos estivessem sempre sobre escrutínio social, nas diversas esferas
públicas, e não só em obras literárias. Como é comum a todas as épocas e sociedades, a
linguagem serve como um marcador social, e emergem normas cultas que são requisitos para
aceder ao prestígio social. Também hoje presenciamos no âmbito das línguas modernas o
desprestígio da variante popular em oposição à norma culta, que é considerada a variante
apropriada ao discurso literário e político.
Acredito que desde a Antiguidade, uma importante força motriz para esse fenômeno
seja a questão de classe e poder, visto que a minoria que tem capital social e cultural para ditar
o que é certo e errado na língua é, não coincidentemente, favorecida pelo prestígio das normas
que domina. Assim, me parece que o Aticismo seja um exemplo extremo, de anacronismo
deliberado, em que as elites preferiam falar no dialeto há muito extinto, para não se confundir
com as massas.
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Não se poderia dizer, no entanto, que o Aticismo é apenas uma vertente antiga de
fenômenos sociolinguísticos que ainda existem, porque, além do contexto histórico muito
particular no qual surgiu, a emulação de um dialeto antigo é muito diferente de uma norma
culta que emerge mais ou menos organicamente em línguas que ainda são faladas. Esse resgate
é, não por acaso, da variante falada em Atenas durante seu auge político e cultural. O que está
em questão é uma hierarquização temporal e cultural, do passado como modelo superior. Esse
paradigma cultural que eleva Atenas antiga como modelo pode revelar uma certa ansiedade
quanto ao rumo histórico de um povo. Me parece também uma resposta à situação política de
um povo que não mais tem total autonomia para se gerir, estando agora sob o domínio do
império romano, que eles retomem uma época passada que represente a epítome da sua
hegemonia política e cultural.
Essa forma de saudosismo e ideia de declínio cultural, na qual os poetas e oradores
atuais nunca poderiam ser comparados à grandeza dos antigos, pode ser entrevista na obra de
Longino, na fala de um filósofo que dá voz a discursos correntes, de que se teria
universalizado a esterilidade literária no seu tempo. Daí também surge um purismo com a
linguagem, que, considerada um bem em si mesma, símbolo representante de um povo, deve
ser preservada da “degradação”. Por isso escreviam-se, além de dicionários de palavras áticas a
serem usadas, manuais de palavras gregas a serem banidas da linguagem.
Apesar de esse anacronismo deliberado ser esperado na linguagem das elites, era
possível aticizar em excesso, o que é chamado por alguns autores de hiperaticismo. A imitação
de um dialeto que não é mais falado implica por vezes a opacidade do discurso, quando
palavras que não são de conhecimento geral são usadas, ou mesmo ambiguidades e
truncamento de sentido quando as mesmas palavras ganham sentidos diferentes ao longo do
tempo. Como é normal das línguas naturais, elas modificam-se com o tempo, e o que estava
em questão era a tentativa de fossilização da língua, uma fixação no tempo anterior ao seu.
Isso fica claro na obra de Luciano, que, apesar de demonstra domínio do dialeto Ático,
satiriza o seu uso desmedido. “Lexífanes” é justamente uma sátira sobre a pretensão
linguística, e nela podemos ver como essa tentativa rende grande artificialidade e por vezes
distorções na reconstrução arqueológica. O personagem Licino, que é comumente identificado
com o autor, critica a mais recente obra de Lexífanes, que ao aspirar a parecer erudito, acaba
por ser inconsistente. Luciano engaja no debate sobre o hiperaticismo, critica o exemplo dos
sofistas, e elenca um corpus de léxicos ridículos, seja por serem obsoletos, ou como ele diz,
“desenterradas sabe-se lá donde”, seja por serem neologismos. Dessa forma, entrevê-se pelo
texto, que, mais que a restauração de um dialeto anterior, estava em questão a recriação
artificial de algo que deveria soar como o dialeto Ático, mas nunca poderia sê-lo.
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Licino encara essa questão linguística como uma doença médica, e defende a
necessidade de um expurgo linguístico. Entrevê-se então nessa obra um panorama histórico
em que as pessoas cultas, como diz Licino, julgariam ridículos esses excessos, verdadeiras
“distorções”, ao que seria preferível priorizar a “moeda corrente da língua” a soar tão arcaico
como “há mil anos atrás”.
Essa obra parece parece, apesar de tudo isso, exprimir uma visão moderadamente
otimista, ao conceber a viabilidade de uma reeducação linguística e literária. A solução
prescrita a Lexífanes, que parece ecoar a opinião do autor, seria a leitura de bons poetas, sob a
orientação de bons mestres. Além disso, sua visão sobre a linguagem é que se deve priorizar a
graça e a clareza, colocando as ideias em primeiro plano, e não o floreado lexical.
De forma semelhante, “O mestre da retórica” também põe em cena conselhos
linguísticos, dessa vez a um jovem que quer iniciar seus estudos em retórica, mas o tom é
muito diferente. O narrador diz que há dois caminhos para se alcançar a retórica: a educação
tradicional, que é um percurso árduo que poucos percorrem nos seus dias, ou novos métodos
fáceis que garantem o sucesso e a fama rapidamente.
Apesar de o narrador sugerir esse caminho mais simples, existe uma crítica pela
negativa, que se alinha com a recomendação dada a Lexífanes. O autor parece descontente
com o abandono da imitação dos modelos tradicionais, que, como Platão e Demóstenes,
teriam deixado pegadas maiores que quaisquer contemporâneos nesse caminho da retórica.
Essa retórica estaria mais voltada à teatralidade, e aparências exteriores, que ao
compromisso com o debate sério de ideias. Dessa forma, o hiperaticismo seria uma
ferramenta performática, e os sofistas contemporâneos os exemplos dessa superficialidade.
Se parece irônico que, tendo em vista seu posicionamento em “Lexífanes”, alguém que
percorreu o caminho árduo tradicional recomende à juventude que persiga o caminho mais
curto, ao qual o autor parece ter muitas críticas, não é nada irônica a sua desilusão. Nesse texto
ele exprime que apesar de todo seu esforço, não teve frutos, e a sua maior crítica à retórica
contemporânea é que o caminho sem escrúpulos e princípios morais é aquele que de fato gera
recompensas. No entanto, também a sua visão sobre a formação tradicional não é sem críticas.
Os tutores clássicos são retratados como velhos antiquados, e mercenários, que só ensinam
após receberem um bom pagamento.
Dessa forma, diferentemente de “Lexífanes”, em que há um remédio, aqui o poeta
encerra dizendo que desiste da retórica, e assume a derrota, ainda que perante a uma formação
de qualidade inferior, tão facilmente percorrível como um terreno em declínio.
Quando comparada à visão de Pseudo-Longino, expressa no tratado “Do Sublime”, é
possível traçar alguns paralelos. O primeiro é a importância dada ao conhecimento do assunto
e a necessidade de uma longa experiência para adquirir a capacidade de ajuizar sobre
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composições literárias. Um segundo é a crítica ao tom pretensioso que advém de uma
expressão empolada e artificiosa, a qual ele censura, principalmente em discursos que tem a
ver com coisas reais. Um outro aspecto em comum é a defesa da imitação dos grandes
escritores do passado, ainda que esses não estejam isentos de falhas. Ele também enfatiza a
importância da inteligibilidade, defendendo que o uso do termo corrente é melhor que um
ornamento, pois é mais credível.
Por outro lado, enquanto Luciano prioriza a clareza da transmissão da mensagem,
existe um enfoque maior dado ao estilo por Longino. No entanto, ainda que as figuras e o
patético sejam dispositivos encorajados na busca do sublime, elas devem parecer emergir de
forma natural. Além disso, não só um longo treinamento é necessário para atingir a excelência,
mas uma grandeza inata. Ele não acredita ser possível a quem passou sua vida entregue a
pensamentos mesquinhos produza algo digno de fama. Assim, ambos autores compartilham
da opinião que a arte discursiva já não tinha o primor de outrora, e, de certa forma, para
ambos, a ambição e o amor pela riqueza seriam motivos para esse declínio.
Referências
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France. 2007, p. 259-318.
CRIBIORE, R. “Lucian, Libanius, and the Short Road to Rhetoric”, Greek, Roman, and Byzantine
Studies 47, 2007, p. 71–86.
GOLDHILL, S. “Rhetoric and the Second Sophistic”, in Gunderson, E. (org.), The Cambridge
Companion to Ancient Rhetoric. Cambridge, 2009, p. 228–242.
PORTER, James I. ‘What is classical about “classical” antiquity? Eight propositions’. Arion, 13.1, 2005.
SCARPA, Elena. “Luciano di Samosata, prolegomena al Lessifane.” Tese, Università Ca’ Foscari
Venezia, 2014.
VÁRZEAS, Marta Isabel de Oliveira (trad.), Dionísio Longino, “Do Sublime”. Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2015.
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Aticismo,
Asianismo, e
posicionamentos
discursivos
EM LUCIANO E PSEUDO-LONGINO
Aticismo
retomada clássica
moderação
Asianismo
"inovador"
extrava ante
musicalidade
PROBLEMÁTICAS
DO "ASIANISMO"
sem relação com etnicidade ou proveniência
eo rá ica
rótulo depreciativo
usado até o século I
dois tipos:
aticismo estilístico
oposto ao Asianismo
CRIBIORE, R. “Lucian, Libanius, and the Short Road to Rhetoric”, Greek, Roman,
and Byzantine Studies 47, 2007, p. 71–86.
GOLDHILL, S. “Rhetoric and the Second Sophistic”, in Gunderson, E. (or .), The
Cambrid e Companion to Ancient Rhetoric. Cambrid e, 2009, p. 228–242.
VÁRZEAS, Marta Isabel de Oliveira (trad.), Dionísio Lon ino, “Do Sublime”.
Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015.