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A TRADUÇÃO COMO FONTE DA HISTÓRIA DA LITERATURA:

O caso de Horacio Quiroga no Brasil

Gustavo Melo Czekster (UFRGS)

Entre os estudos teóricos realizados sobre a tradução, ocupa um posto quase


periférico a importância que ela ocupa na área da História da Literatura.
Considerando-se que, na sua acepção mais básica, a tradução é o ato de pegar uma
obra no polissistema literário em que ela foi originalmente produzida e transferi-la para
um outro polissistema, para utilizarmos a classificação de polissistemas de Even-
Zohar (EVEN-ZOHAR, 1990), não resta dúvida de que existe a colisão e superposição
de duas Histórias da Literatura diferentes, assim como o fato de que o aparecimento
de uma obra traduzida também traz consequências para a construção da literatura de
outro local. A tradução de uma obra em um determinado contexto da história da
literatura de um país traz elementos da história de outro, representando uma forma
rica de ver a construção da literatura dita nacional, que deixa de ser vista como uma
linha reta evolutiva de autores locais e passa a ser uma sucessão de cortes e recortes
em uma linha básica, em que a produção literária é afetada por outras Histórias da
Literatura que se inserem no seu meio através da tradução, seguindo, assim, o
formato rizomático conforme analisado por Gilles Deleuze e Felix Guattari (DELEUZE,
2000).
Toda obra escrita tem a sua existência balizada em três variáveis, que são o
autor, o público e a obra. A tradução como reescritura sujeita-se às mesmas regras e
coerções de qualquer obra; não se pode olvidar que o tradutor também é uma forma
de expressão autoral, posto que suas decisões afetam o conteúdo do texto, sendo que
as questões ideológicas do tradutor na realização da sua tarefa levaram Hurtado Albir
a defender a impossibilidade de existir uma tradução neutra quando diz que “si el
traductor es um individuo condicionado ideológicamente, la traducción no puede ser
uma actividad neutra” (HURTADO ALBIR, 2001: 617). Por sua vez, o público leitor –
ou consumidor, em um termo que se popularizou nos últimos anos e que representa
uma dissociação entre dois tipos de público, aqueles que adquirem a obra e aqueles
que realmente a fruem - é para quem a obra se destina, regido por regras de mercado.
Lefevere menciona que o público tem participação de extrema relevância na escolha
da obra traduzida, representando tanto o amadurecimento da cultura de um país, o
reconhecimento de que está preparado para a inserção de obra estrangeira no seu
sistema literário próprio, quanto a necessidade de se colocar em uma tradição mundial
de veiculação de novas ideias e tendências (LEFEVERE, 2000).
O fato de um determinado livro ser traduzido obedeceria, assim, tanto às
regras do mercado quanto ao amadurecimento do público leitor e a possibilidade da
obra de fazer parte de uma História da Literatura estrangeira ao polissistema original
no qual ela se encontrava inserida. Lefevere exemplifica com Bertold Brecht: quando a
obra do dramaturgo alemão estava sendo apresentada e discutida na Europa, os
americanos acharam por bem traduzi-la a fim de participar do debate. No entanto, ela
foi originalmente produzida em um determinado contexto social, econômico e histórico
europeu, que não tinha sido vivido pelos Estados Unidos, o que demandou uma série
de transformações no texto original a fim de que o novo polissistema literário fosse
capaz de entendê-lo (LEFEVERE, 2000). Neste diapasão, a figura do tradutor foi de
suma importância para permitir a própria compreensão do texto, assim como a História
da Literatura norte-americana pode ter sido influenciada por esta decisão, permitindo
um maior acesso de leitores para um escritor que, se não fosse a tradução, talvez não
fosse lido e, se não fosse as escolhas tradutórias então realizadas, talvez não fosse
entendido.
Uma das correntes teóricas que estuda a História da Literatura afirma que ela
só pode existir quando associada a alguma forma de criticismo literário, seja como
ponto de origem, seja como objetivo final. Neste sentido, recordamos das palavras de
René Wellek:
Reciprocamente, a história literária é, por sua vez,
importantíssima para o criticismo literário, a partir do momento
em que este ultrapassa a afirmação puramente subjetiva do
“gosto” e do “não gosto”. Um crítico que se contentasse com
ser ignorante das relacionações históricas extraviar-se-ia
constantemente nos seus juízos. Não conseguiria saber se
uma obra é original ou derivativa; e, devido à sua ignorância
das condições históricas, enganar-se-ia a todo o momento na
compreensão de obras de arte específicas. O crítico que pouco
conheça de história, ou que a desconheça por completo, é
propenso a fazer toscos palpites ou a incorrer em
autobiográficas “aventuras no meio das obras primas” e, de um
modo geral, evitará preocupar-se com o passado mais remoto,
assunto que deixará para o estudioso das antiguidades e para
o filólogo. (WELLEK, 1971: 55)

No entanto, como se pode perceber, a necessidade do estudo de História da


Literatura ser decisivo para a afirmação da qualidade intrínseca de uma literatura
passa longe dos estudos tradutórios. Existe um hiato nesta questão, como se obras
traduzidas fossem um sistema apartado de uma literatura local. Ainda assim, elas
fazem parte desta mesma História da Literatura, mesmo não tendo seu ponto de
criação em tal polissistema. O tradutor realiza uma reescritura da obra para sua
adequação a uma História da Literatura para a qual ela não foi formatada pelo autor, e
a sua ideologia acaba por afetar o próprio fazer tradutório, equiparando-o ao
surgimento de um livro novo. A disseminação por um público leitor acaba por influir na
crítica literária e, por conseguinte, no surgimento de novas obras que farão parte de
uma outra História da Literatura. Em tal contexto, a análise da tradução como uma das
fontes da História da Literatura merece especial destaque, inclusive para entender
melhor a sua formação. Tal fato foi inclusive salientado pela pesquisadora Florencia
Garramuño:
El primer rasgo de ese cambio puede notarse en un
desplazamiento de la preocupación espacial de la traducción
(la traducción como traslado de un lenguaje a outro,
preocupada por la correspondecia exacta a la verdad de un
“original”) a una preocupación más histórica y temporal. Más
que una preocupación estrictamente linguística o filológica, los
trabajos más recientes sobre la traducción incluyen, suponen y
demandan “densas descripciones” de las negociaciones
históricas y culturales que definen a un texto y sus
subsiguientes interpretaciones y traducciones (Berman y Wood,
2005:5). (GARRAMUÑO, 2012: 166-167)

Entre os inúmeros casos que poderiam ser usados para investigar a relação
estreita que a tradução das obras literárias de outros polissistemas guarda na História
da Literatura, escolheu-se o escritor uruguaio Horacio Quiroga (1879-1937) e a forma
com que a sua obra foi traduzida no Brasil.
No polissistema literário do Uruguai, a obra de Horacio Quiroga, desde o
momento da sua produção, atingiu um certo sucesso de público (ROCCA, 2007). No
início, tal interesse era motivado pelas suas circunstâncias de vida, eis que o autor
abandonou os núcleos urbanos e foi residir em meio à selva, mandando contos para
periódicos e estabelecendo comunicações por meio de cartas com outros escritores da
época, fazendo com que, em um primeiro instante, o exotismo da selva fosse um fator
de atração para conquistar leitores. Foi após o seu suicídio que a obra de Quiroga
passou a ser analisada com maior atenção pela crítica literária e, aos poucos, ele se
inscreveu no cânone literário do Uruguai, tornando-se um dos seus escritores mais
representativos por causa do realismo fantástico, do sobrenatural e da violência das
suas histórias, nas quais a morte convive com a loucura em uma relação de mútua
dependência.
No Brasil, a primeira obra de Horacio Quiroga a ser traduzida foi uma
coletânea de contos, Anaconda, publicada pela Rocco em 1987, tradução esta feita
por Angela Melim. Ainda que Horacio Quiroga tenha um livro com este mesmo nome,
os contos que formam esta tradução contêm acréscimos em relação ao original:
enquanto que, na sua versão original, o livro tinha 09 contos, na edição brasileira, ele
contém estes nove contos e mais dez de outros livros, totalizando 19 contos.
Para um texto migrar de um polissistema para outro, não se pode ignorar o
público leitor. Antes de ser assimilado e incorporado ao novo sistema literário, ele
necessitará manter relação com o público, e tal fato ocorre desde a escolha da obra a
ser traduzida pela editora (por exemplo, seria inviável traduzir obras menos
importantes de um autor desejado sob pretexto de preservar a sua evolução
estilística), passando pelo tradutor (a escolha do tradutor ideal para uma determinada
obra é fator de extrema importância para a sua disseminação) e até mesmo na forma
com que o livro é entregue ao público, visando a cativar a sua atenção.
Nestas condições, o estudos dos paratextos editoriais, seguindo as teorias de
Genette (GENETTE, 2009), se revela de crucial importância. No caso de Horacio
Quiroga, a capa de Anaconda remete especificamente para uma selva brasileira que,
pela forma das árvores, se refere àquelas típicas da Região Amazônica. O texto da
contracapa reforça este pensamento:
São muitos os mistérios da Amazônia, muitas as lutas do
homem quando defrontado com a imensidão da natureza, a
prepotência animal e a impiedade dos elementos.

Essa temática, complexa porque sempre a um passo do


meramente documental, é a característica principal de Horacio
Quiroga, sem dúvida um dos autores mais originais da ficção
latino-americana.

Nos dezenove contos que formam esta coletânea, Quiroga fala


de vampiros, cobras venenosas, solidão, plantas de dimensões
surreais e de febres. O clima é sufocante, como o calor das
regiões que a prosa tenta recriar; o humor é delicado; o
resultado é, a um só tempo, exótico, rico e instigante.
(QUIROGA, 1987: contra capa)

Como se vê pela sua biografia, Horacio Quiroga morou na selva que separa
Uruguai, Argentina e Brasil, não na Floresta Amazônica. Percebe-se um forte desejo
de vincular a literatura feita pelo escritor uruguaio ao exotismo típico da Selva
amazônica. Em termos de História do Brasil, em 1987 existia uma grande curiosidade
sobre o que existia nas florestas ainda inexploradas da região Norte, o que incluía a
construção da Transamazônica, rodovia que cortava a região e começou a ser feita
dez anos antes. Além disso, em 1987 a Amazônia passou a ser considerada como um
“pulmão do mundo” por conta da sua diversidade biológica, inclusive com discussões
sobre a interferência de outros países na região, o que ativou uma luta pelo próprio
conceito de soberania nacional. Todas estas circunstâncias externas afetaram a
chegada de Horacio Quiroga ao polissistema literário brasileiro, e acabaram sendo
decisivas não só na capa e na contracapa do livro como forma de atrair um leitor novo,
mas também nas escolhas de contos que compuseram a coletânea, tendo sido dada
especial ênfase para os “contos de mato”, assim chamados pela crítica literária
uruguaia aqueles contos que Horacio Quiroga fez com tal temática (QUIROGA, 1994:
16-17).
Após um longo intervalo de tempo sem novas edições dos contos de Horacio
Quiroga no Brasil, surge a coletânea Vozes da Selva em 1994, lançada pela editora
Mercado Aberto e com tradução de Sergio Faraco. Além de tradutor, Faraco também
se notabiliza por ser um escritor gaúcho com contos que se destacam na própria
historiografia literária brasileira. A forma com que esta tradução de Horacio Quiroga
surgiu foi sui generis, pois distorceu a maneira em que a relação tradutória
normalmente se estabelece, com uma editora interessada pelo trabalho de um autor
estrangeiro procurando um tradutor. Em 20 de agosto de 2013, foi realizada uma
breve entrevista por e-mail com Sergio Faraco. Questionado sobre as razões de
traduzir Quiroga, responde:
Comecei a traduzir os contos de Quiroga por sugestão de
Mario Arregui, que conhecia profundamente a obra dele e o
tinha na conta de um dos maiores contistas da América, ao
lado de Onetti. A leitura e o trabalho continuados me levaram a
considerar Quiroga um grande autor de um número pequeno
de grandes contos. Sua hemorrágica produção no gênero é
bastante irregular. Mas quando acerta, empolga. Tanto a
Editora Mercado Aberto como a L&PM o publicaram por
indicação minha.

Neste caso, impossível não notar a relevância do papel do tradutor na própria


formação da História da Literatura, eis que, por meio da escolha do texto a traduzir,
tornou-se o responsável por, pelo menos, dois compromissos: conferir sobrevida ao
texto traduzido e formar o cânone estrangeiro dentro do sistema receptor. Quando se
investiga a relação que Sergio Faraco possui com a tradução de partes da obra de
Horacio Quiroga, percebe-se que, acima do desejo de trazer a obra para um novo
sistema, está a vontade de apresentar a obra de um escritor regularmente
desconhecido para um novo mercado e ver como ela se desenvolve nele. Em um
misto de curiosidade e desafio ao próprio sistema literário em que a sua obra está
inserida, Faraco aceita a indicação de Mario Arregui (ele próprio um escritor de
destaque no polissistema literário do Uruguai), traduz o outro e o leva para publicação
na editora com a qual possui laços de amizade. Mais do que o desejo de permanecer
fiel ao original, a preocupação primeira de Sergio Faraco era fazer a obra de Quiroga
surgir no polissistema literário do Brasil.
Tendo em conta que as traduções de Quiroga, assim como as traduções de
Arregui e outros uruguaios, não resultaram de uma “encomenda”, mas de um projeto
apresentado pelo escritor-tradutor ao editor amigo, é possível constatar o papel
fundamental de Sergio Faraco na composição de um cânone latinomericano no Brasil.
Editoras influentes na formação de opinião sobre literatura, como Companhia das
Letras, Nova Fronteira e Cosac Naify, tão presentes nas críticas e nos eventos
literários, salvo raríssimas exceções, costumam passar ao largo de escritores platinos,
sobretudo os de temática rural, dando preferência para outros centros literários.
Não há, porém, que se diminuir a visão de mercado presente no caso: é
preciso considerar que, no sistema literário dos gaúchos, em função de sua forte
aproximação com os pampas argentinos e uruguaios, há, em tese, leitores ávidos por
obras como essas, e isso talvez tenha sido tão ou mais determinante na escolha do
autor a traduzir que a sua qualidade literária.
Por ser uma coletânea de contos representativos das obras de Horacio
Quiroga, e por ter sido “levada” para a editora que a publicou pelo tradutor, cumpriu a
ele, Sergio Faraco, a escolha do corpus do livro. No entanto, como a tradução partiu
da sua própria iniciativa e sem influência de um eventual público em mente, Faraco
decidiu concentrar-se no critério técnico da própria noção de conto, escolhendo, com
base na sua apreensão crítica do que seria um conto perfeito, aqueles textos que, no
seu entendimento, apresentavam tal condição. Ainda assim, foi uma decisão do seu
mais absoluto arbítrio, o que explica as diferentes temáticas dos contos escolhidos de
fases diferentes da produção do escritor uruguaio, sem representar necessariamente
uma evolução de estilo ou ordem cronológica.
A maioria das edições traduzidas por Faraco trazem ao público brasileiro uma
seleção mais representativa dos temas quiroguianos. Por e-mail, Sergio Faraco
esclarece: “Não traduzi livros integrais de contos, mas contos escolhidos de diversos
livros, com os quais quis demarcar dois importantes rumos de sua literatura: em Vozes
da selva estão os contos missioneiros, em A galinha degolada aqueles relatos
sombrios, de terror”. Observa-se que a escolha do tradutor representou um
rompimento da alegada neutralidade que os teóricos buscam no ato de traduzir. Ao
invés de buscar a tradução de livros específicos sem influências valorativas, Faraco
optou por escolher os contos a serem traduzidos em dois eixos temáticos, dividindo as
fases do trabalho de Horacio Quiroga com base na fortuna crítica que já existia sobre
o trabalho do uruguaio. A ideologia do tradutor torna-se visível, mas é uma ideologia
calcada no aspecto técnico da produção da obra alheia, baseando-se na análise crítica
pré-existente.
Em 1998, a Mercado Aberto publica a novela Historia de um louco amor, obra
que, em 2008, recebe uma segunda edição pela L&PM em formato pocket book, desta
feita com o título Historia de um louco amor seguido de Passado amor. A tradução de
outra novela, Uma estação de amor, é publicada em 1999, pela L&PM A galinha
degolada e outros contos e Heroísmos (biografias exemplares), ambas de 2001, serão
compiladas, em 2002, na edição A galinha degolada e outros contos seguido de
Heroísmos (biografias exemplares), também no formato pocket book.
Após o momento inicial, quando se tratava de apresentar a obra de um
escritor inédito para o público leitor brasileiro enfatizando aspectos que aproximavam
as suas temáticas próprias da realidade de um estrangeiro, percebe-se que Quiroga
encontrou o seu espaço próprio no mercado. Ainda assim, as escolhas tradutórias que
caracterizavam o recorte dos contos escolhidos para as coletâneas continuava sendo
norteada pelo exotismo e pelo sobrenatural, desconsiderando parte significativa dos
seus outros contos em benefício deste temática.
A partir de 2001, no entanto, as editoras passaram a investir em livros
completos de Horacio Quiroga, e não mais em coletâneas. Ainda assim, apesar da
produção do escritor totalizar 13 livros, somente um deles passou a ser traduzido.
Considerado pela crítica como a sua obra máxima, Cuentos de amor de locura y de
muerte foi traduzido, em 2001, por Eric Nepomuceno para a Editora Record; em 2010,
foi igualmente traduzido por Eric Nepomuceno para a Editora Abril, onde passou a
fazer parte da Coleção Clássicos Abril; por fim, em 2013, foi traduzido por John
O’Kuinghttons para a Editora Hedra. O fato das editoras privilegiarem este livro em
detrimento do restante da obra do escritor uruguaio demonstra tanto que ele encontrou
seu espaço no meio da História da Literatura brasileira, eis que é lido por sucessivas
gerações de leitores, como adquire um caráter de exclusão das demais obras, que
seguem sendo sonegadas ao leitor brasileiro por uma questão editorial. De certa
forma, as escolhas tradutórias – que migraram de coletâneas com temática da selva
ou escolhidas pelo tradutor para a tradução de livros inteiros – representam um
amadurecimento na própria recepção crítica do autor sul-americano, cuja obra acaba
sendo conhecida como um exemplar antecipatório do realismo fantástico, além de
permitir uma comparação com Edgar Allan Poe, muito admirado por Quiroga, que
transplantou seus temas góticos para a catedral das selvas latino-americanas.
Importante realizar uma ressalva neste movimento que trouxe (e ainda traz) a
obra de Quiroga para as fronteiras brasileiras. Ao mesmo tempo em que é conhecido
como um escritor de terror, no Brasil ele também possui um alcance fora da área em
que a crítica acabou lhe consagrando. No decorrer da sua vida, Horacio Quiroga
também escreveu histórias infantis, visando primordialmente o seu sustento. Esta obra
foi trazida para o Brasil nos últimos anos, deixando o escritor uruguaio na dúplice
posição de ser conhecido como autor infanto-juvenil e adulto. O público infanto-juvenil
foi brindado com obras como A história dos dois filhotes de quati e dos dois filhotes de
homem, com tradução de Zé Rodrix e ilustrações de Mariana Massarani, lançado em
2010, pela Mercuryo Jovem. Wilson Alves-Bezerra lançou pela Iluminuras, em 2007,
as traduções Cartas de um caçador e Contos da selva. Andrea Ponte adaptou para o
português A pequena cerva e o caçador e As meias do flamingo, ambos publicados
pela Larousse Escala (2009). Sem entrar no mérito das traduções anteriores, o público
brasileiro poderia ter construído a imagem de um Quiroga infantil, didático, com lições
sobre o campo, os animais e a vida, ao invés de se defrontar com a selva sombria, o
fantástico assustador, a loucura e a morte dos contos que realmente o representam e
justificam sua inclusão no cânone.
O caso das traduções de Horacio Quiroga para o mercado brasileiro ainda é
uma história que está sendo escrita. No entanto, ela serve de baliza para as
afirmações constantes neste estudo. As traduções de uma obra representam um
importante papel dentro da História da Literatura de um país., posto que a sua
participação no polissistema literário estranho ao da sua produção acaba gerando
reflexos tanto na literatura quanto na sociedade, na economia, na política e até mesmo
na História. Na sua introdução ao livro Tradução, reescrita e manipulação da fama
literária, André Lefevere afirma:
A tradução é, certamente, uma reescritura de um texto original. Toda
reescritura, qualquer que seja sua intenção, reflete uma certa ideologia
e uma poética e, como tal, manipula a literatura para que ela funcione
dentro de uma sociedade determinada e de uma forma determinada.
Reescritura é manipulação, realizada a serviço do poder, e em seu
aspecto positivo pode ajudar no desenvolvimento de uma literatura e de
uma sociedade. Reescrituras podem introduzir novos conceitos, novos
gêneros, novos artifícios e a história da tradução é também a da
inovação literária, do poder formador de uma cultura sobre outra. Mas a
reescritura pode reprimir a inovação, distorcer e conter, e, em uma era
de crescente manipulação de todos os tipos, o estudo dos processos de
manipulação da literatura, exemplificados pela tradução, poderá nos
ajudar a nos tornarmos mais atentos ao mundo em que vivemos.
(LEFEVERE, 2007: 11-12)

O estudo da tradução de obras dentro da História da Literatura torna-se de


extrema importância para que se perceba, com a maior nitidez possível, o quanto tais
traduções afetam e refletem o polissistema literário para o qual se destinam. Segundo
Walter Benjamin, o objetivo principal de qualquer tradução deve ser a elevação do
original, ainda que de forma fugaz, conferindo-lhe sobrevida em meio a um outro
público leitor (BENJAMIN, 2008: 33). Para atingir tal objetivo, o estudo da História da
Literatura é um dos pontos capazes de perceber eventuais manipulações ideológicas
das escolhas tradutórias adotadas em determinado caso, que vão desde a escolha
das obras a serem traduzidas até os termos escolhidos pelos tradutores, evidenciando
a importância dos estudos da tradução dentro da História da Literatura de um
determinado local.

REFERÊNCIAS

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tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções ao português. Belo
Horizonte: FALE / UFMG, 2008.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs. V. 1. São Paulo: editora 34,
2000.
EVEN-ZOHAR, Itamar. Polysystem Studies. Poetics Today, v. 11, n. 1, 1990.
Disponível em: <http://www.tau.ac.il/~itamarez/works/books/ez-pss1990.pdf>.
Acesso em: 03 mar 2014.

GARRAMUÑO, Florencia. La literatura y sus fronteras. In: ADAMO, Gabriela.


La traducción literaria en América Latina. Buenos Aires: Paidós, 2012.

GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

HURTADO ALBIR, Amparo. Traducción y traductología. Madri: Ediciones


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LEFEVERE, André. Tradução, reescrita e manipulação da fama literária. Bauru,


Edusc, 2007.

_______. Mother Courage’s cucumbers: text, system and refraction on a theory


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London: Routledge, 2000.
QUIROGA, Horacio. A galinha degolada e outros contos seguido de
Heroísmos: biografias exemplares. Porto Alegre: L&PM, 2002.

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_______. Contos de amor, de loucura e de morte. São Paulo: Abril, 2010.

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ROCCA, Pablo. Horacio Quiroga: el escritor y el mito. Montevideo: Ediciones


de La Banda Oriental, 2007.

WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura. Lisboa: Publicações


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