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Entre os inúmeros casos que poderiam ser usados para investigar a relação
estreita que a tradução das obras literárias de outros polissistemas guarda na História
da Literatura, escolheu-se o escritor uruguaio Horacio Quiroga (1879-1937) e a forma
com que a sua obra foi traduzida no Brasil.
No polissistema literário do Uruguai, a obra de Horacio Quiroga, desde o
momento da sua produção, atingiu um certo sucesso de público (ROCCA, 2007). No
início, tal interesse era motivado pelas suas circunstâncias de vida, eis que o autor
abandonou os núcleos urbanos e foi residir em meio à selva, mandando contos para
periódicos e estabelecendo comunicações por meio de cartas com outros escritores da
época, fazendo com que, em um primeiro instante, o exotismo da selva fosse um fator
de atração para conquistar leitores. Foi após o seu suicídio que a obra de Quiroga
passou a ser analisada com maior atenção pela crítica literária e, aos poucos, ele se
inscreveu no cânone literário do Uruguai, tornando-se um dos seus escritores mais
representativos por causa do realismo fantástico, do sobrenatural e da violência das
suas histórias, nas quais a morte convive com a loucura em uma relação de mútua
dependência.
No Brasil, a primeira obra de Horacio Quiroga a ser traduzida foi uma
coletânea de contos, Anaconda, publicada pela Rocco em 1987, tradução esta feita
por Angela Melim. Ainda que Horacio Quiroga tenha um livro com este mesmo nome,
os contos que formam esta tradução contêm acréscimos em relação ao original:
enquanto que, na sua versão original, o livro tinha 09 contos, na edição brasileira, ele
contém estes nove contos e mais dez de outros livros, totalizando 19 contos.
Para um texto migrar de um polissistema para outro, não se pode ignorar o
público leitor. Antes de ser assimilado e incorporado ao novo sistema literário, ele
necessitará manter relação com o público, e tal fato ocorre desde a escolha da obra a
ser traduzida pela editora (por exemplo, seria inviável traduzir obras menos
importantes de um autor desejado sob pretexto de preservar a sua evolução
estilística), passando pelo tradutor (a escolha do tradutor ideal para uma determinada
obra é fator de extrema importância para a sua disseminação) e até mesmo na forma
com que o livro é entregue ao público, visando a cativar a sua atenção.
Nestas condições, o estudos dos paratextos editoriais, seguindo as teorias de
Genette (GENETTE, 2009), se revela de crucial importância. No caso de Horacio
Quiroga, a capa de Anaconda remete especificamente para uma selva brasileira que,
pela forma das árvores, se refere àquelas típicas da Região Amazônica. O texto da
contracapa reforça este pensamento:
São muitos os mistérios da Amazônia, muitas as lutas do
homem quando defrontado com a imensidão da natureza, a
prepotência animal e a impiedade dos elementos.
Como se vê pela sua biografia, Horacio Quiroga morou na selva que separa
Uruguai, Argentina e Brasil, não na Floresta Amazônica. Percebe-se um forte desejo
de vincular a literatura feita pelo escritor uruguaio ao exotismo típico da Selva
amazônica. Em termos de História do Brasil, em 1987 existia uma grande curiosidade
sobre o que existia nas florestas ainda inexploradas da região Norte, o que incluía a
construção da Transamazônica, rodovia que cortava a região e começou a ser feita
dez anos antes. Além disso, em 1987 a Amazônia passou a ser considerada como um
“pulmão do mundo” por conta da sua diversidade biológica, inclusive com discussões
sobre a interferência de outros países na região, o que ativou uma luta pelo próprio
conceito de soberania nacional. Todas estas circunstâncias externas afetaram a
chegada de Horacio Quiroga ao polissistema literário brasileiro, e acabaram sendo
decisivas não só na capa e na contracapa do livro como forma de atrair um leitor novo,
mas também nas escolhas de contos que compuseram a coletânea, tendo sido dada
especial ênfase para os “contos de mato”, assim chamados pela crítica literária
uruguaia aqueles contos que Horacio Quiroga fez com tal temática (QUIROGA, 1994:
16-17).
Após um longo intervalo de tempo sem novas edições dos contos de Horacio
Quiroga no Brasil, surge a coletânea Vozes da Selva em 1994, lançada pela editora
Mercado Aberto e com tradução de Sergio Faraco. Além de tradutor, Faraco também
se notabiliza por ser um escritor gaúcho com contos que se destacam na própria
historiografia literária brasileira. A forma com que esta tradução de Horacio Quiroga
surgiu foi sui generis, pois distorceu a maneira em que a relação tradutória
normalmente se estabelece, com uma editora interessada pelo trabalho de um autor
estrangeiro procurando um tradutor. Em 20 de agosto de 2013, foi realizada uma
breve entrevista por e-mail com Sergio Faraco. Questionado sobre as razões de
traduzir Quiroga, responde:
Comecei a traduzir os contos de Quiroga por sugestão de
Mario Arregui, que conhecia profundamente a obra dele e o
tinha na conta de um dos maiores contistas da América, ao
lado de Onetti. A leitura e o trabalho continuados me levaram a
considerar Quiroga um grande autor de um número pequeno
de grandes contos. Sua hemorrágica produção no gênero é
bastante irregular. Mas quando acerta, empolga. Tanto a
Editora Mercado Aberto como a L&PM o publicaram por
indicação minha.
REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs. V. 1. São Paulo: editora 34,
2000.
EVEN-ZOHAR, Itamar. Polysystem Studies. Poetics Today, v. 11, n. 1, 1990.
Disponível em: <http://www.tau.ac.il/~itamarez/works/books/ez-pss1990.pdf>.
Acesso em: 03 mar 2014.