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GIL VICENTE - FARSA DE INÊS PEREIRA

Farsa
Género teatral em que se representam cenas do quotidiano de forma caricatural e em tom cómico. Numa farsa,
a análise de aspetos de uma comunidade é feita com o propósito de criticar certos grupos sociais, a fim de
corrigir os com- portamentos reprováveis. Vários são os temas tratados neste género literário, mas o engano
desempenha frequentemente um papel central na ação.

Farsa de Inês Pereira


A farsa designa uma pequena peça cómica, com um número reduzido de personagens, em que
predominam situações ridículas que caricaturam a vida quotidiana, com o propósito evidente de crítica
social. A farsa tem, portanto, uma intenção satírica.
A Farsa de Inês Pereira é uma farsa com intriga, uma história completa, com princípio, meio e fim:
uma jovem mulher, Inês Pereira, embora da classe popular, sabe ler e escrever e rejeita a vida de
enclausuramento doméstico a que estavam sujeitas, na época, as mulheres solteiras da sua classe.
Deseja casar com um homem «avisado» e «discreto», isto é, inteligente e de espírito brilhante. A
alcoviteira Lianor Vaz propõe-lhe um camponês rico, mas antiquado e estúpido. Contra a vontade da
mãe, Inês rejeita-o e, perante a proposta para noivo de um escudeiro pobre, mas hábil no falar e no
tanger da viola, que dois judeus casamenteiros lhe apre sentam, Inês não pensa duas vezes. Casa com o
escudeiro, que em breve se revela um marido tirânico, que parte para a guerra em Marrocos, deixando a
mulher fechada em casa e vigiada por um criado. Por sorte do destino, o escudeiro morre em África e Inês
fica de novo livre para voltar a casar. Escolhe então o primeiro pretendente, o camponês Pero Marques,
que será um marido complacente e que lhe dará liberdade, inclusivamente para o adultério.
A Farsa de Inês Pereira foi representada no convento de Tomar, no ano de 1523, perante o rei D.
João IlI. Conforme consta na didascália inicial, Gil Vicente aceitou o desafio de escrever uma peça para
ilustrar um provérbio - «Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube.» - e, se havia
dúvidas sobre a originalidade das suas peças, ficou demonstrada a capacidade genial do dramaturgo.
Trata-se da melhor farsa vicentina.
Lê-se na didascália:
«A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei dom João, o terceiro
do nome em Portugal, no seu convento de Tomar. Era do Senhor de 1523. O seu argumento é que por
quanto duvidavam certos homens de bom saber se o autor fazia de si mesmo estas obras, ou se as
furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse um exemplo comum que dizem: mais
quero asno que me leve que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa. [...]»3•
No início da Farsa de Inês Pereira são enumeradas as seguintes personagens: Inês Pereira, Mãe,
Lianor Vaz, Pero Marques, Judeus: Latão e Vidal, Escudeiro, Moço, Ermitão, Luzia e Fernando,
designadas no seu conjunto por «figuras». Na verdade, as personagens, embora vivam situações e
tenham comportamentos e aspeto humanos, são ficcionais.
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ESTRUTURA EXTERNA
Ainda que o texto da farsa seja ininterrupto4, é possível detetar várias etapas na sua construção que se
pode fazer corresponder a atos e cenas, do seguinte modo:

4 A peça aparece na Compilaçam de toda/as obras de Gil Vicente, publicada por Luís Vicente, filho de Gil Vicente, em 1562, como Auto de Inês Pereira

Cena 1 - Situação inicial de Inês Pereira (inconformada com a sua vida recatada
e doméstica).
ATO 1
Do início até à Cena 2 - Diálogo entre Inês e a Mãe; queixas de Inês pelo seu enfadonho trabalho de
rejeição de costura e conselhos da Mãe sobre os predicados necessários para arranjar casamento.
Pero Marques Cena 3 - Chegada de Lianor Vaz e proposta de casamento com Pero Marques,
camponês rico, mas antiquado.
Cena 4 - Entrada e apresentação de Pero Marques que declara os seus bens e anuncia
o seu interesse por Inês, revelando-se rústico e imbecil.
Cena 5 - Saída de Pero Marques e chegada da Mãe; repúdio do casamento com
Pero Marques devido a aspirações a um consorte com outros atributos.

Cena 1 - Chegada dos Judeus casamenteiros e elogio do Escudeiro.


AT0 2 Cena 2 - Entrada do Escudeiro e revelação das suas capacidades de dissimulação em
Casamento
diálogo com o Moço.
de Inês Pereira
Cena 3 - Sedução de Inês pelo Escudeiro, concordância com este pretendente e
com o escudeiro
cerimónia de casamento.
Cena 4 - Festa de celebração do casamento.
Cena 5 - Condição de reclusão e de repressão das liberdades imposta pelo Escudeiro a
Inês, sua mulher, e partida deste para África.
Cena 6 - Arrependimento de Inês pelo casamento realizado.

Cena 1 - Carta do irmão de Inês anunciando a morte do Escudeiro no norte de África.


AT0 3 Cena 2 - Reaparecimento de Lianor Vaz e nova proposta de casamento com Pero
Morte do escudeiro e
Marques.
casamento com Pero
Cena 3 - Casamento de Inês com Pero Marques e obtenção da desejada condição de
Marques
liberdade.
Cena 4 - Chegada de um Ermitão a pedir esmola.
Cena 5 - Reconhecimento do Ermitão como antigo pretendente e promessa de
reencontro.
Cena 6 - Preparação da romaria ao ermitério e insinuação de adultério.

CARACTERIZAÇÃO DAS PERSONAGENS


Nas peças vicentinas, as personagens são normalmente tipos sociais, isto é, personagens-tipo. Os tipos
encarnam características de um coletivo, de um grupo, aparecendo, embora, como figuras individuais. Podem
representar uma classe, uma profissão ou uma mentalidade e apresentam sinais exteriores daquilo que
representam, através da linguagem, do vestuário, de objetos que transportam consigo, de gestos, etc.
Gil Vicente, de acordo com o pensamento medieval, pretende apresentar e criticar situações gerais e, por
tanto, abrangentes, em vez de situações individuais e particulares. Assim, os tipos sociais criticam um coletivo
e a sua função moralizadora dos costumes da sociedade torna-se mais eficaz.
Na Farsa de Inês Pereira, pode considerar-se todas as personagens como tipos sociais, à exceção da
protagonista Inês Pereira e das figurantes Moças e Mancebos, de que faz parte Luzia, que acorrem para
dançar e bailar na festa de casamento de Inês com o Escudeiro. Inês Pereira apresenta características
nitidamente individualizadas.
GIL VICENTE - FARSA DE INÊS PEREIRA

 Inês Pereira é apresentada na didascália inicial, através do processo de caracterização direta,


como sendo “filha de uma mulher de baixa sorte», «muito fantesiosa» e que «está lavrando em sua
casa». Trata-se, portanto, de uma rapariga com poucos recursos económicos, mas sonhadora e
imaginativa, a quem está destinado o doméstico, «lavrar», isto é, costurar. No entanto, logo no seu
primeiro monólogo (caracterização indireta), ficamos a saber que não aceita a sua condição. Deduzimos
que se trata de uma personagem ambiciosa, que vive inconformada e recusa a vida de dedicação aos
trabalhos domésticos e de enclausuramento na sua própria casa («Inês - Renego deste lavrar/ e do
primeiro que o usou/ ó diabo que o eu dou, / que tam mau é d’aturar»). Inês deseja divertir-se e viver em
liberdade («Todas folgam e eu não, /todas vem e todas vão/ onde querem, senam eu.»). É inteligente e
sabe ler e escrever, o que era raro naquele tempo. A personagem Inês Pereira vai crescendo à medida
que os acontecimentos vão ocorrendo: aprende com um primeiro casamento desastroso que a vida, por
vezes, é diferente do sonho e, através dessa aprendizagem, transforma o seu projeto de vida. Acaba
por aceitar um casamento que lhe dará estabilidade social, mas em que ela dominará e, usando
manhas e enganos, terá a vida que deseja. «Marido cuco me levades / e mais duas lousas», canta Inês
no final da farsa, sugerindo o marido enganado e o seu comportamento de mulher infiel.

 Pero Marques corresponde ao Vilão, como tipo social. «Viste tão parvo vilão?», diz Inês ao ler a
carta em que Pero Marques se declara seu pretendente. A alcoviteira Lianor Vaz diz a Inês: «Eu vos trago
um bom marido, / rico, honrado, conhecido; / diz que em camisa vos quer.». Para além desta
heterocaracterização, esta personagem revela as suas características sempre através das suas atitudes e
das suas falas, isto é, de forma indireta. Trata-se de um camponês rico e honrado, que não está interessado
em mulher com dotes, mas rude e estúpido. É o «asno» que leva Inês, na encenação do provérbio.
Antiquado e desconhecedor dos hábitos da vida urbana, não sabe usar uma cadeira («Mãe - Tomai aquela
cadeira. / Pero - E que vai aqui uma destas?»). Não vê nem percebe nada e, portanto, no final da peça,
carrega a mulher às costas para que esta se vá encontrar com o Ermitão e também as duas «lousas» que a
mulher transporta. A sua característica dominante é uma simplicidade néscia.

 Brás da Mata, o Escudeiro, é também um tipo social. Começa por ser descrito pelo Judeu Viciai:
«Soube mos d'um escudeiro/ de feição d'atafoneiro, / que virá logo essora, / que fala, e como fala, / que
estrugirá esta sala!». E ele próprio se autocaracteriza: «Sei bem ler, / e muito bem escrever, / e bom jogador
de bola, / e quanto a tanger viola, / logo me vereis tanger.». Inteligente, seguro de si, sabe falar e tocar
viola. No entanto, é, no decorrer da ação, através dos seus comportamentos e falas, que evidencia melhor
as suas características. Pobre, mas com aspirações de ascensão social, comporta-se como um fanfarrão, é
mentiroso e hipócrita. Aparenta ser o oposto de Pero Marques, correspondendo ao homem «avisado» e
«discreto» que Inês deseja. Diz Inês: «Porém, não hei de casar/ senão com homem avisado/ ainda que
pobre e pelado, / seja discreto em falar.”. No entanto, uma vez casado, revela-se tirânico e proíbe a mulher
de sair de casa. Em Marrocos, para onde partira em serviço militar, acaba, porém, morto por um pastor,
como um cobarde. No provérbio, corresponde ao «ca valo», que tanto irá desiludir Inês Pereira.

 A Mãe é o tipo social que representa a sensatez, a prudência. A Mãe é a voz da experiência, que
aconselha a filha e a elogia quando é necessário («Mãe - Ui e ela sabe latim/ e gramática, e alfaqui / e tudo
quanto ela quer.»). No entanto, também a avisa dos perigos que pode correr («Mãe - Inês, guar-te de rascão
/ escudeiro queres tu?»).

 Lianor Vaz corresponde à alcoviteira como tipo social, mulher que servia de intermediária nas relações
amorosas. Esperta e persuasiva, pretende convencer Inês das vantagens de Pero Marques para seu marido
(«Lianor - Eu vos trago um casamento/ em nome do anjo bento/ filha, nam sei se vos praz.»).

 Latão e Vidal são os judeus casamenteiros, um tipo social com uma função semelhante à da
alcoviteira. Mostram que foram incansáveis na tarefa que Inês lhes encomendou: encontrar um marido que
falasse bem e soubesse tocar viola («Latão - Eu, e este/ pola lama e polo pó/que era pera haver dó, / com
chuiva, sol e noroeste. / Foi a coisa de maneira/tal friúra e tal canseira, / que trago as tripas maçadas/ assi
me fadem boas fadas/ que me saltou caganeira.»). Fazem deste trabalho um negócio de que querem obter
lucro. Por isso, exageram no discurso como forma de persuasão.

 O Moço, tipo social, é o criado do Escudeiro, que mantém um constante discurso crítico em relação a
este. Apesar de ser obediente e cumpridor, é, no entanto, através dele que ficamos a conhecer a real situação
eco nómica do Escudeiro, bem como a hipocrisia que se esconde por detrás das suas atitudes.

 O Ermitão, tipo social, vive na pobreza, no ermitério, longe dos homens, dedicando-se à penitência e
à oração. Porém, o Ermitão desta farsa serve o deus Cupido, isto é, o deus do amor. Sendo ele um «ermita rio de
Copido», logo se depreende que deverá ser uma personagem de moral duvidosa.
RELAÇÕES ENTRE AS PERSONAGENS
Na Farsa de Inês Pereira, de acordo com a sua relevância na ação, poder-se-á hierarquizar as personagens
do seguinte modo:
• protagonista (personagem principal) - Inês Pereira;
• personagens secundárias (com participação direta na ação) - Pero Marques e Escudeiro;
• personagens secundárias (com participação indireta na ação) - Mãe, Lianor Vaz, Judeus Casamenteiros e
Ermitão;
• figurantes - Luzia e outras Moças e Mancebos.

Todas as personagens gravitam em volta de Inês. A Mãe procura aconselhar e ajudar Inês. Pero Marques e
o Escudeiro constituem as duas alternativas que se apresentam a Inês, para que, através do casamento, possa
transformar e melhorar a sua vida de rapariga solteira recatada e entregue a tarefas enfadonhas. Lianor Vaz
esforça-se por convencer Inês de que Pero Marques será o melhor partido. Os Judeus Casamenteiros
encontram o marido que corresponde aos anseios de Inês. Inês decide casar com o Escudeiro para satisfazer
os seus sonhos, mas arrepende-se e, por sorte do destino, acaba por poder escolher Pero Marques para o
segundo casamento, com quem poderá ter uma vida que lhe permita ser feliz. Assim, a farsa demonstra a
sabedoria popular contida no provérbio «Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube». O Ermitão
surge no desenlace para mostrar que o adultério, a infidelidade, será a fuga para a felicidade desejada.

MÃE

ESCUDEIRO
PERO MARQUES
(CAVALO)
(ASNO)
JUDEUS
LIANORVAZ
CASAMENTEIROS

ERMITÃO

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