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Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente:

Contextualização histórico-literária:

Não há dados exatos quanto à data e local do nascimento de Gil Vicente, mas pensa-se que terá
nascido em Guimarães por volta de 1465.

Autor de uma obra variada, que ele próprio divide em comédias, farsas e moralidades, Gil
Vicente não teve apenas preocupações de realização literária. De facto, na sua obra “palpita de
modo espantosamente vivo a sociedade portuguesa do primeiro terço do século XVI, com as suas
classes, os seus vícios, os seus impulsos intelectuais e religiosos”, a qual critica através da sátira.

A sua crítica é profundamente mordaz, apresentando clérigos sem vocação, escudeiros


parasitas e ociosos, fidalgos corruptos e vaidosos, profissões liberais que assentam na exploração
das camadas populares, alcoviteiras que atuam sem escrúpulos para defender em os seus
interesses, e até o povo humilde que, passivamente, se deixa explorar pelos cobradores e frades.

Obras de Gil Vicente:

-1502: Monólogo do Vaqueiro, primeira peça;


- Auto da Barca do Inferno, Auto da Índia, Auto da Alma, Farsa de Inês Pereira, Auto da Feira;
-1536: Floresta de Enganos, última peça;
-1562: Copilaçam de Todalas Obras de Gil Vicente

Primeira metade do século XVI:


-Prosperidade e Expansão: Expansão ultramarina, Prosperidade económica, Estatuto
mediador de Portugal entre a Europa e o Novo Mundo, Procura de lucro no Oriente pelos nobres;

-Grandes transformações sociais / Dualidades no novo Portugal Quinhentista: Devoção


religiosa vs. hipocrisia social, Moralismo em público vs. devassidão em privado, Valorização do
dinheiro vs. diminuição da fé.

A Farsa inicia-se com um monólogo de Inês, uma rapariga solteira, que pretende alcançar a
liberdade através do casamento. De seguida, a mãe de Inês entra em cena e aconselha a filha a
não ser tão preguiçosa e a não ter pressa em casar.

Lianor Vaz, uma alcoviteira com o papel de casamenteira, entra em cena com o intuito de
apresentar a Inês uma proposta de casamento. Durante este diálogo, Lianor começa por relatar
um episódio que the terá sucedido e, de seguida, apresenta Pêro Marques como um marido ideal
para Inês.

Lianor Vaz entrega uma carta de Pêro Marques a Inês, através da qual este demonstra a sua
intenção de casar com a jovem. Pêro Marques, entretanto, dirige-se à casa de Inês, revelando ser
desajeitado e desconhecer as regras sociais.

Inês recusa-se a casar com um homem que, embora rico, não apresenta as qualidades que ela
aprecia. Assim, entram em cena os judeus casamenteiros que, a pedido de Inês, propor-lhe-ão um
pretendente de acordo com as suas pretensões.
O Escudeiro entra em cena com o seu Moço e revela alguma desilusão em relação aos
atributos de Inês, tendo em conta o que lhe haviam dito os Judeus. Contudo, quando se
apresenta, apesar de ser um nobre falido, finge ser galante, cortés e discreto, exatamente como se
pretendia que ele fosse.

Inês fica deslumbrada com o Escudeiro, casando-se com ele. Na festa do casamento, os jovens
cantam e dançam alegremente. No final, a Mãe abençoa o casal, deixando-lhes a sua casa.

Logo após o casamento, Inês passa a viver encarcerada e triste. Na verdade, o Escudeiro casou
por interesse e não por afeto. Inês revela-se desiludida por não viver a vida que ambicionava,
reconhecendo que escolheu mal o marido.

O Escudeiro, que tinha partido para combater no norte de África, acaba por morrer como um
cobarde. De imediato, Inês despede o Moço e fica feliz por ter recuperado a sua liberdade.
Entretanto, Lianor Vaz regressa a casa de Inês e propõe-lhe novamente Pêro Marques para seu
novo marido.

Inês, após ficar viúva, casa com Pêro Marques, tirando proveito da sua fortuna e da sua
ingenui-dade. Através deste casamento, alcança o estilo de vida que pretendia, bem como a
liberdade desejada.

Inês revela-se mais astuta, após a experiência negativa do primeiro casamento, sendo infiel a
Pêro Marques e manipulando-o. Pêro torna-se uma vítima da vingança da Inês.

Personagens (Caraterização Direta e Indireta):

Inês Pereira: - Jovem cativa das suas tarefas domésticas, e embora perguiçosa, está convicta de
que o casamento é um modo de alcançar liberdade.
- Apesar de relação de confidência com a mãe, existem divergências entre ambas.
- Personagens psicologicamente dinâmica devido à mudança do seu paradigma de vida e da
forma como ela traça as suas convicções.
- Aceita um casamento mais calmo longe das suas expetativas iniciais e acaba com uma atitude
adúltera e infiél após o seu relacionamento com o Ermitão.

Mãe: Direta (falas, indicações cénicas) Indireta (intervenções, personalidade e ações)


- Deseja sempre o que ela entende ser o melhor para o futuro da sua filha, embora a confronte
em muitos aspetos. - Pouco educada mas mesmo assim bastante perspicaz.
- Confidente e representa também um ligeiro apoio na nova etapa da vida da sua filha.

Alcoviteira (Lianor Vaz): - Tem um papel intermediário entre relações amorosas.


- Lianor Vaz apresenta-se como amiga e ajudante da mãe na procura de um bom pretendente
para Inês
- Tem a capacidade de fazer desenrolar o enredo, ao conseguir conectar com Pêro Marques.

Pêro Marques: - Contribuiu imenso para os tipos de cómico da farsa devido à sua educação
campestre, que constrasta com a etiqueta social de Inês. - Trabalhador rural nato.
- Tem imensas posses e meios de sustentar Inês a um longo prazo e por isso é indicado por
Lianor e preferido pela mãe.
Escudeiro, Brás da Mata: - Apresentado a Inês por parte dos Judeus.
- Satisfaz, num primeiro momento as expetativas de Inês na procura de um "homem ideal".
Sabe seduzir Inês, através das palavras e da música.
- Revela ter sido uma péssima escolha, por parte de Inês, demonstrou ser tirano, opressivo,
pretensioso e insensível. - Morre tragicamente, mas contribuindo para o cómico.

Judeus: introduziram Brás da Mata a Inês

Moço: criado do escudeiro alvo de bastantes tarefas, algumas desumanas, no entanto, era um
homem bastante fiel e verdadeiro.

Ermitão: pertencente do clero que irá ser o amante de Inês servindo como crítica à sociedade
religiosa da altura.

Relações entre as personagens

Mãe e Inês
O desabafo da jovem, inconformada com o aprisionamento de que se considera vítima, é
interrompido pela chegada da Mãe, vinda da missa, para logo prosseguir na azeda troca de
palavras que torna evidente o conflito que interesses e conceções de vida diferentes instalaram
entre elas. A intervenção inicial da Mãe comenta ironicamente a inatividade da filha.

Lianor, Mãe, Inês e Pêro


Lianor, que insiste em chamar Inês à razão, encontra na Mãe uma aliada. E a moça acaba por
aceitar a visita de Pêro Marques, ainda que o faça apenas para se divertir à custa dele.

Lianor Vaz, alcoviteira, aparece aqui desempenhando o seu papel junto da moça casadoira,
procurando insinuar-se e defender os interesses do pretendente, que seguramente explora, apesar
de nadano texto o dizer de modo explícito. A sua figura é matizada. Perante Inês ela comporta-se
como amiga, dá-lhe conselhos que parecem bem intencionados, mostra-se solidária.

Pêro procura conformar a sua conduta a uma norma que contraria a sua ansiedade, denunciada
pelo momentâneo desnorte de que o monólogo inicial dá conta. Chegado a casa de Inês, as suas
palavras e gestos desajeitados confirmam o que a carta deixava supor. Rústico, Pêro Marques
interpreta erradamente o que lhe dizem.

Inês, o Escudeiro e o Moço


O encontro da moça fantesiosa com o Escudeiro gabarola constitui, nas suas várias fases, o
episódio nuclear da farsa: marca ilusoriamente a emancipação da protagonista (terminada a festa
do casamento, a Mãe parte para não mais voltar a aparecer) e está na origem do seu posterior
desencanto e da viragem a que este conduz.

O Judeu empenha-se no elogio obscuro do Escudeiro em moldes que, a avaliar pelas palavras
iniciais deste último, não andarão longe dos utilizados para gabar Inês aos olhos dele.
Brás da Mata imagina a moça com quem se propõe casar, troçando dela de uma forma próxima
da que ela própria utilizara ao caricaturar o seu pretendente Pêro Marques.
O Moço não se deixa impressionar pelas promessas do amo, de quem conhece bem a pelintrice e
as manias de grandeza, as privações e o sonho de uma situação economicamente confortável que
acredita poder vir a encontrar no casamento.
A dimensão satírica
Nota-se por todo o auto um contraste entre o mundo da corte e o ambiente rústico, porque todas
as personagens pertencem a um ou a outro, excetuando talvez os casamenteiros judeus. O
contraste entre os dois mundos é também essencial em (Farsa de] Inês Pereira.

O tipo mais insistentemente observado e satirizado por Gil Vicente é sem dúvida o clérigo, e
especialmente o frade, presente em todos os setores da sociedade portuguesa, na corte e no povo,
na cidade e na aldeia. Gil Vicente censura nele a desconformidade entre os atos e os ideais, pois,
em lugar de praticar a austeridade, a pobreza e a renúncia ao mundo, busca a riqueza e os
prazeres

Outro tipo insistente nos autos vicentinos é o Escudeiro, género de parasita ocioso e vadio. Imita
os padrões da nobreza, toca guitarra, verseja, faz serenatas, mas não trabalha ....

"Ridendo castigat mores" "A rir se castigam os costumes" Através de comédia e


do riso, Gil Vicente pretendia corrigir as atitudes e os maus hábitos da sociedade Portuguesa.

Cómico de Caráter: é representado pela personalidade e pela forma de ser de cada personagem,
muitas das vezes manifesta-se na sua incapacidade para socializar, ou na sua trapalhice.
(por exemplo a falta de instruidade de Perô Marques)

Cómico de Situação: Resulta do enredo e das ações que cada personagem toma ou cria no
desenrolar de episódios. (um exemplo disto é a morte de Brás da Mata)

Cómico de Linguagem: Baseia-se na desadequação e naquilo que é efetivamente dito nos


diálogos e interações entre personagens. Pode ser ironia, sarcasmo, trocadilhos, expressões
populares, ou simplesmente uma certa desadequação na utilização de certas expressões.
(A forma como o Perô falava e as suas expressões camponesas)

A representação do quotidiano:
Veja-se ainda o caso de Ines Pereira. Tida como a farsa mais trabalhada do autor, nela se
verifica, desde logo, um invulgar desenvolvimento narrativo: Inês aparece-nos, no início, como
uma rapariga do povo que aspira ao casamento, vendo nele uma forma de emancipação. Deseja
obstinadamente um marido de maneiras corteses, que saiba cantar e dedilhar viola. Num
primeiro momento, é vítima das suas próprias ilusões, sendo enganada por dois judeus
casamenteiros que lhe vendem o produto por que tanto anseia: um Escudeiro hipócrita que a
seduz com falas mansas para, logo após o casamento, se transformar em marido autoritário,
subtraindo-lhe ironicamente a pouca liberdade de que desfrutava em solteira.

Depois de ficar viúva, Inês aceita agora casar com um lavrador beirão (que antes recusara por lhe
parecer "parvo"). Acima de tudo, o novo marido encarna, na perfeição, o papel de ingénuo,
dispondo-se a cumprir todos os caprichos da mulher. A cena final é emblemática: Pêro Marques,
com sua mulher, atravessam um ribeiro; Inês tem encontro erótico marcado com um ermitão e,
para que a água fria lhe não afete a fertilidade, o rústico carrega-a às costas, ao mesmo tempo
que, dócil e ingenuamente, participa no refrão da cantiga entoada pela esposa, enfim realizada
nos seus anseios de mulher: "Marido cuco me levades […] Assi se fazem as cousas".

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