O teatro de Gil Vicente é eminentemente satírico. Na realidade, Farsa: Género teatral caracterizado por: - Intriga curta e um dos principais objetivos do dramaturgo, ao escrever e concentrada; - Número reduzido de personagens; - encenar as suas peças, era chamar a atenção para as Verosimilhança de situações; - Temática do engano mudanças que afetavam a sociedade de quinhentos e que, na sua perspetiva, a corrompiam, traduzindo-se em Representação do quotidiano comportamentos viciosos como, por exemplo, o desejo de promoção social das camadas mais baixas, o parasitismo da nobreza, o adultério, a devassidão e a imoralidade do clero. A representação do quotidiano Uma das características da farsa, Estes comportamentos são denunciados, essencialmente, através enquanto género, é representar flagrantes da vida quotidiana. das personagens-tipo e do cómico. Efetivamente, a Daí que na Farsa de Inês Pereira seja possível identificar vários representação do quotidiano ganha uma outra projeção graças episódios que espelham os hábitos, os costumes, as crenças, às personagens-tipo. Na verdade, na sua individualidade de os modos de vida das pessoas daquela época, em especial personagem, elas incorporam modos de estar, de pensar e de aqueles que diziam respeito: sentir específicos de um grupo social elou profissional que, • ao casamento — o texto Vicentino dá-nos a conhecer as assim, adquire mais impacto. Na Farsa de lnês Pereira, podemos conceções antagónicas de Inês Pereira, da Mãe e de Lianor Vaz reconhecer os seguintes tipos: em relação a este assunto, para além de todo um conjunto de • a Alcoviteira (Lianor Vaz) e os Judeus aspetos relaciona- dos com o casamento: a intervenção da (Latão e Vidal) - figuras gananciosas que agem com um Alcoviteira e dos Judeus, os encontros com os pretendentes, as fim económico; • ~ regras, o dote, a festa, a vida em casal; o Vilão (isto é, o homem do povo), lavrador • ao estatuto da mulher, sobretudo da (Pêro Marques) - personagem rústica, serve para fazer mulher solteira - os casamentos eram, regra geral, rir a gente da corte, com a sua ignorância e simplicidade; combinados, funcionando como um negócio entre duas partes, sem que a jovem solteira tivesse qualquer participação. Neste • o Escudeiro (Brás da Mata) — género de caso, apesar de haver intermediários entre Inês Pereira e os parasita, ocioso e vadio, que imita os padrões da nobreza - pretendentes, a última palavra é da protagonista, que, no toca guitarra, verseja, faz serenatas, finge ser bravo, mas é entanto, não consegue, com o primeiro casamento, alcançar medroso e explorador do Moço. Não trabalha e passa fome; aquilo que tanto desejava: libertar-se do "cativeiro" da vida doméstica e ascender socialmente; • o Ermitão — há uma desconformidade entre os atos e os ideais, pois, em lugar de praticar a austeridade, a pobreza e a • à vida doméstica — acompanhamos a protagonista renúncia ao mundo, busca a riqueza e os prazeres mundanos. nos seus afazeres domésticos, assumindo a postura típica da mulher do povo que trata da casa. No seu monólogo inicial, Inês Em última análise podemos ainda dizer que cada uma destas está em casa, a costurar; depois, já casada e fechada em casa, personagens ilustra um determinado conjunto de defeitos e também costura; vícios que Gil Vicente, através do seu olhar perspicaz, queria criticar. Daí que as personagens-tipo sejam cruciais para a sátira • à vida palaciana — apesar da vida de aparências que social que o dramaturgo pretendeu concretizar. As personagens- existia na corte e que está bem espelhada no comportamento do tipo ajudam a compor o quadro do quotidiano e da sociedade Escudeiro, muitos eram os que ambicionavam fazer parte desse da época de Gil vicente, permitindo ao dramaturgo expor e mundo, como Inês. Ela quer "ouvir e folgar" e, por isso, pretende satirizar atitudes e valores, muitas vezes através do riso. inicialmente casar com um homem "discreto", "avisado", que saiba Então as personagens-tipo também podem contribuir para o "tanger" viola; cómico. O cómico é outro instrumento de que o dramaturgo se • à vida do campo, simples, autêntica, mas serve para criticar os seus contemporâneos. A função do cómico está explícita na expressão «ridendo, castigat mores», ou seja, pouco considerada - Pêro Marques representa esse tipo a rir corrigem-se os costumes. Na Farsa de Inês Pereira, de vida, em oposição à vida fútil, falsa da corte. Curiosamente, podemos encontrar cómico de linguagem (resulta da esta vida simples, de trabalho, garante mais sustento que a vida ociosa dos fidalgos pelintras; desadequação do que é dito ou do modo como é dito relativamente ao contexto envolvente), de carácter (assenta na • à vida do clero — o encontro de Lianor Vaz com um personalidade, modo de ser da personagem) e de situação clérigo devasso e o de Inês Pereira com um Ermitão devoto de (baseia-se na intriga, no desenrolar dos episódios, ações que Cupido denunciam comportamentos imorais da parte de elementos provocam o riso). do clero. Lianor Vaz Representa a figura da alcoviteira, intermediando o casamento de Inês e Pêro Marques ponderada e objetiva, sem nunca referir o seu Personagens – interesse no processo, aconselha a jovem a casar com quem a «adore» e não com «quem faça com que chore». serve a crítica ao clero, através do episódio em que Caracterização e relações entre elas relata o ataque de um
Inês pereira Protagonista, ocupa o núcleo da ação, Pêro Marques
movimentando-se as restantes personagens à sua i volta. Evolui É apresentado a Inês por Lianor Vaz como «rico, ao longo da ação, de acordo com a sua perceção e as suas honrado, conhecido». decisões em relação ao casamento. Antes do casamento Simples e rústico, assume-se «de bem» e revela-se É «muito fantesiosa» e preguiçosa, rejeitando as desconhecedor das convenções sociais, respeitador, tarefas domésticas impostas pela mãe. honesto e sincero. Concebe o casamento como a libertação do «cativeiro» Ingénuo e crédulo, torna-se o «marido amigo» de Inês, em que se sente viver. que lhe consente a liberdade desejada, e o «asno» que Sonhadora, idealiza um marido «avisado» e «discreto em a leva, mesmo no sentido literal, «em romaria» até ao falar», mesmo que «mal feito, feio, pobre, sem feição». Ermitão. Opõe-se ao desejo da mãe de a ver casada com um seu Escudeiro «igual», alguém da mesma condição social. Recusa a intermediação de Lianor Vaz e a proposta que É caracterizado de forma direta (nas suas próprias esta lhe apresenta de casamento com Pêro Marques, a palavras e nas dos Judeus) como bem-falante, culto, quem considera um «parvo vilão». Durante o casamento educado e galanteador. com o Escudeiro Subverte, de acordo com o modo como age Vítima dos «desvarios» do marido, anseia, uma vez mais, (caracterização indireta), o retrato de marido «discreto», pela libertação e alegra-se com a notícia da morte de revelando-se hipócrita, pelintra, autoritário e abusivo Brás da Mata. (face ao Moço e a Inés). Depois de ser maltratada pelo Escudeiro e vítima da Depois do casamento com Inês, mostra-se tirano e sua prepotência, reconhece que «experiência dá lição» violento, assumindo o papel do «cavalo folão» que e procura novamente «escolher marido», mas agora «à oprime a esposa (e que contrasta com o modelo de boa fé, sem mau engano, pacífico todo o ano» e que marido personificado por Pêro Marques). ande a seu «mandar», para «boa vida gozar». Morre cobardemente no norte de África, fugindo da Durante o casamento com Pêro Marques • Aceita Pêro guerra e às mãos de um pastor mouro. Marques como esposo, vislumbrando-o como o «asno» que lhe pode garantir a vida tranquila que deseja. Judeus Ansiosa por «folgar», dissimulada e astuta, abusa da confiança do marido e torna-se adúltera. Interesseiros e astutos, conseguem a Inês o marido que deseja, sendo recompensados por isso Mãe Moço É uma «mulher de baixa sorte», que procura educar a filha segundo o princípio de que «moça sisuda é uma crítico do amo (o Escudeiro), expõe as suas perla pera amar», instruindo-a sobre a vida doméstica contradições e denuncia a sua real condição e os comportamentos adequados perante os económica. pretendentes. Opõe-se ao desejo da filha de procurar um «marido Ermitão avisado» e adverte-a para que case com um seu «igual», Clérigo dissimulado, possibilita a Inês a concretização preferindo o «asno que [...] leva» ao «cavalo de sela» do adultério e a transformação de Pêro Marques no que «mata». «asno» (literal e metafórico) que a carrega. Sensata e pragmática, recomenda «siso» a Inês e Permite a denúncia da imoralidade do clero. aconselha-a a casar com um homem de «boa simpreza», como Pêro Marques. Resigna-se à vontade de Inês, aceita o marido que escolheu e oferece a sua casa ao casal, desaparecendo da ação depois do casamento.
Pororó, por outro lado, é o palhaço mais baixo e rechonchudo. Ele usa roupas igualmente coloridas, um sorriso contagiante e adora fazer palhaçadas ao lado de Piriri. Pororó é o lado mais inocente