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► Contextualização histórico-literária
• Tendo vivido entre 1460-70 e 1540, a sua obra foi organizada por dois dos seus filhos,
que editaram a Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente.
• Foi no ambiente da corte que produziu a sua obra dramática, tendo a primeira – o Auto
da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro – sido representada em 1502.
• Até 1536, ou seja, ao longo de 34 anos, Gil Vicente terá escrito cerca de 50 peças (1).
De entre a sua vasta produção, centraremos a nossa atenção em duas obras, a saber:
a Farsa de Inês Pereira e o Auto da Feira.
Nota
• O Programa prevê a abordagem de apenas uma das peças vicentinas mencionadas: Farsa de Inês Pereira ou Auto da Feira.
O “pai do teatro literário português” colheu inspiração nas manifestações teatrais pré-
vicentinas, como os momos, os mistérios, as moralidades e os milagres, com as suas
temáticas profanas e religiosas. A Farsa de Inês Pereira é um exemplo de um auto
profano e o Auto da Feira é um exemplo de um auto religioso.
Deste elenco, constatamos que as obras dramáticas de Gil Vicente podem ser
agrupadas sob a designação de comédias, farsas ou moralidades. Trata-se de
uma classificação tripartida deixada pelo próprio Gil Vicente, mas que “não significa
que as obras incluídas em cada grupo apresentem uma perfeita homogeneidade entre
si” (1).
Gil Vicente viveu num tempo de mudança e as peças estudadas são um testemunho da
sociedade portuguesa do século XVI.
Se a época de ouro das Descobertas trouxe novos conhecimentos, novas culturas, novos
hábitos, trouxe igualmente novos problemas, pois à volta da corte gravitam muitos
parasitas da sociedade, para além de a pequena nobreza não trabalhar (porque considera
que o trabalho é indigno) e por isso estar cada vez mais pobre, ainda que mantenha uma
postura de arrogância.
A farsa, presidida pelo mote já referido, pode ser resumida da seguinte forma:
“Inês Pereira, uma jovem caprichosa e ambiciosa, vê-se pressionada a casar com Pêro
Marques, o “asno”, lavrador simples e sem cultura, mas está encantada pelo galante
combatente Brás da Mata, que encarna o “cavalo”. É neste momento de escolha de
pretendentes (e suas consequências) que se centra a mais famosa farsa escrita por Gil
Vicente e, sem dúvida, uma das mais divertidas e satíricas da vida quotidiana do seu
tempo.”
Sendo Gil Vicente um artista da corte, esta farsa tinha como fito divertir o rei, a sua
família e, naturalmente, os cortesãos.
Características do género
Farsa de Inês Pereira
farsa
• Curta extensão – • O texto vicentino não é muito extenso (1116 versos) e,
normalmente, a peça apresenta quanto à sua estrutura externa, não está dividido nem
apenas um ato e não tem em atos nem em cenas, embora exista uma estrutura
divisão cénica tripartida (introdução, desenvolvimento, conclusão.
• Representação de “cenas da • O texto vicentino apresenta, através da sátira,
vida profana” através da várias cenas da vida profana, tais como:
sátira
› a realização de trabalhos domésticos, nomeadamente a
costura, atividade de que Inês não gosta;
• as características (qualidades, defeitos, modo de ser e de agir) que lhe podem ser
atribuídas, em função de uma caracterização:
› direta – feita de modo explícito pela própria personagem, por outra(s) ou por
informação apresentada nas didascálias;
Relativamente ao papel que cada personagem desempenha, convém referir que muitas
das figuras desta farsa, à semelhança do que se verifica em outros textos vicentinos,
representam um determinado grupo social e/ou profissional, naquilo que ele tem de sui
generis, de particular, em termos de comportamento. São, por isso,
consideradas personagens-tipo, figuras que encarnam uma maneira de ser comum ao
grupo a que pertencem e que, por essa razão, não expressam densidade psicológica nem
dinamismo. São personagens planas, com uma vida interior estática. No entanto, são
fundamentais para a dimensão satírica de que se reveste esta obra de Gil Vicente, como
veremos posteriormente.
Inês Pereira:
Logo de início, esta figura feminina surge-nos como alguém muito descontente com a
vida que leva:
(1) Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira, Porto: Porto Editora, 2014
Inês sente-se “cativa” da vida doméstica que leva e gostaria de ter a mesma vida que
outras jovens, que têm uma vida mais folgada. Nessa medida, representa um grupo
social com uma forma de estar, de pensar e de se comportar típica. No entanto, como
veremos, é uma personagem que apresenta densidade psicológica e que vai evoluir ao
longo da peça.
A Mãe e a Alcoviteira, Lianor Vaz, tentam orientá-la, mas Inês mostra-se decidida e
irredutível nas suas opiniões: “Folgaste vós na verdade / casar à vossa vontade? / Eu
quero casar à minha”.
Assim, Inês acabará por aprender às suas custas, como, aliás, a própria o
afirmara: “Que tendes de ver co isso? / Todo o mal há de ser meu”. De facto, numa
primeira fase, enganada pelo Escudeiro Brás da Mata e pela sua aparência, Inês opta
pelo pretendente mais galante, que representa o “cavalo” do mote inicial da peça.
Depressa, porém, percebe a má escolha que fizera e arrepende-se.
Constata-se, pois, uma mudança de atitude da parte da protagonista, que revela,
inclusive, um plano futuro a fim de se vingar do sucedido.
Depois de ter sido “derrubada” pelo “cavalo”, Brás da Mata, Inês escolhe a
personagem que representa o “asno”, o Lavrador Pêro Marques, pois, tendo aprendido
por experiência própria – “Sobre quantos mestres são / experiência dá lição” –,
reconhece que:
Mãe
A Mãe quer ajudar Inês, daí que, ao saber da proposta da Alcoviteira, elogie a filha,
caindo mesmo no exagero de dizer – “Hui! E ela sabe latim, / e gramática e
alfaqui (sábio muçulmano – a Mãe pensa que esta palavra designa uma ciência difícil,
por isso não a utiliza adequadamente), / e tudo quanto ela quer.”
Por outro lado, dá conselhos a Inês, sempre que um dos pretendentes a vai visitar,
mostrando, assim, o seu cuidado, a sua preocupação. Outras vezes, coloca perguntas à
filha, esperando dessa forma levá-la a refletir e a ponderar melhor sobre o seu futuro,
fazendo referência à necessidade de garantir um futuro seguro em termos monetários e
aludindo à vantagem de ter um marido trabalhador, do mesmo nível social.
A Mãe, porém, é mais realista e interessa-se pela condição económica do Lavrador, daí
o cómico de linguagem na referência ao morgadio – “De morgado (7) é vosso estado? /
Isso viria dos céus!”. Ainda assim, Inês decide casar com o Escudeiro, pelo que, à Mãe,
nada mais resta senão aceitar e abençoar a união, preparando uma festa e deixando a
filha entregue ao marido.
A partir do casamento, a Mãe não volta a aparecer, como se a sua missão já tivesse sido
concluída e “todo o mal” fosse agora responsabilidade da escolha que Inês fez.
Lianor Vaz:
Esta personagem-tipo, uma Alcoviteira, é uma mulher cujo ofício consistia também em
“arranjar” casamentos, apresentando pretendentes. Assim, é ela quem dá a conhecer
Pêro Marques a Inês e à sua Mãe, considerando-o “um bom marido, / rico, honrado,
conhecido” e esse casamento abençoado – “Eu vos trago um casamento / em nome do
Anjo bento”.
Lianor Vaz partilha das opiniões da Mãe quanto à escolha que Inês devia fazer e
expressa-o através de expressões populares: “Filha, ‘No Chão do Couce, / quem não
puder andar choute.’ / ‘Mais quero eu quem m’adore, / que quem faça com que
chore’”.
Porém, tal como a Mãe, a Alcoviteira não consegue, inicialmente, convencer Inês a
optar pelo Lavrador e é só após a morte do primeiro marido de Inês que Lianor Vaz
aparece e aconselha-a novamente, chamando a atenção para as vantagens económicas de
tal união.
Pêro Marques:
Esta, aliás, não hesita em caracterizá-lo de uma forma bastante negativa e sarcástica,
tecendo comentários pejorativos sobre ele quer às outras personagens quer ao público,
através de apartes:
• “Viste tão parvo vilão? / Eu nunca tal coisa vi / nem tanto fora de mão.”
Para além disso, Pêro Marques também se autocaracteriza como sendo um homem de
bem (“eu de bem er também”) e sério, decente (“como homem de bom pecado”). No
entanto, para Inês, estas qualidades não são de valorizar, antes pelo contrário. Atente-se,
por exemplo, na ridicularização que ela faz quando se apercebe do desconforto que Pêro
Marques sente ao estar sozinho com ela.
O segundo pretendente de Inês Pereira parece corresponder ao perfil que ela tinha em
mente para marido. Com efeito, fazendo jus aos rasgados elogios dos Judeus, o
Escudeiro, também ele personagem-tipo, parece ser um homem encantador, hábil com
as palavras e com os instrumentos musicais, como se autocaracteriza:
• “Sei bem ler, / e muito bem escrever, / e bom jogador de bola, / e quanto a tanger
viola, / logo me vereis tanger.”
(O Diabo me tomou:
• É fiel, contudo, ao seu senhor, fazendo o que este lhe pede – por
exemplo, antes de partir para Marrocos, o Escudeiro ordena ao Moço
que vigie Inês Pereira. Este, embora a contragosto, cumpre o pedido.
Ermitão • É um ermitão que se distingue dos eremitas ou monges que viviam
isolados (num ermo) para se dedicarem inteiramente a Deus e que
viviam da fé e da caridade das pessoas que os ajudavam e os
Personagens Caracterização e relações estabelecidas
alimentavam; o seu Deus é Cupido, como ele próprio afirma.
► A representação do quotidiano
► A dimensão satírica
Em última análise, podemos ainda dizer que cada uma destas personagens ilustra um
determinado conjunto de defeitos e de vícios que Gil Vicente, através do seu olhar
perspicaz, queria criticar. Daí que as personagens-tipo sejam cruciais para a sátira social
que o dramaturgo pretendeu concretizar.
O cómico é, aliás, outro instrumento de que Mestre Gil se serve para criticar os seus
contemporâneos. Com efeito, o teatro de Gil Vicente é o melhor exemplo da
máxima “ridendo castigat mores”, isto é, a rir castigam-se, corrigem-se os costumes.
Nesse sentido, ao criar personagens, situações ou discursos que fazem o público rir, o
dramaturgo pretende, com algum distanciamento e de uma forma divertida, pôr a
descoberto, muitas vezes ridicularizando, um comportamento, uma ação, um valor que,
na sua ótica, é moralmente condenável.
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► Linguagem e estilo
• Pêro Marques fala como lavrador que é, ou seja, de forma simples, provinciana e, por
vezes, até confusa, visto que não era instruído.
• Inês Pereira, a Mãe e Lianor Vaz falam como as mulheres do povo, recorrendo a
expressões populares e a provérbios (“ante a Páscoa vêm os Ramos”, “maior é o ano
que o mês”, “Mata o cavalo de sela / e bom é o asno que me leva”, “No Chão de
Couce, / quem não puder andar choute”, “Quem bem tem e mal escolhe, / por mal que
lhe venha não s’anoje”, “Antes lebre que leão”).
• Brás da Mata, como pretende enganar Inês, fala com ela de um modo galante, sendo
o seu discurso rebuscado e em tom hiperbólico (“Senhora, eu me contento / receber-vos
como estais; / se vós não vos contentais, / o vosso contentamento / pode falecer no
mais”); porém, com o Moço, já usa uma linguagem mais coloquial e agressiva (“Faria
bem de t’a quebrar / na cabeça, bem migada”), tal como fará com Inês, depois do
casamento (“Juro ao corpo de Deus / que esta seja a derradeira! / Se vos eu vejo
cantar, / eu vos farei assoviar…”).
• Os Judeus recorrem a uma linguagem de cariz popular e, a dada altura, para criar um
efeito de verosimilhança, usam mesmo fórmulas macarrónicas dos rituais judaicos
(“Alça manim dona, ó dona, ha, / arrea espeçulá, / bento o Deu de Jacob, / bento o
Deu que a Faraó / espantou e espantará”).
Por outro lado, tratando-se de um texto literário, está permeado de recursos expressivos
que lhe conferem novos sentidos, para além do óbvio. Assim, nesta farsa, podemos
identificar, entre outros, os seguintes recursos expressivos:
Emprego de um termo que, por uma O termo “lavrar”, neste contexto, é sinónimo de
relação semântica ou de proximidade, costurar. Ora, com esta afirmação assertiva, Inês
pode designar outro, através de uma está não só a manifestar o seu profundo
relação entre a parte e o todo, o desagrado relativamente à costura (a “parte”),
continente e o conteúdo, o signo e o mas a toda a vida doméstica (“todo”) de que a
que ele significa, entre outras. costura é apenas um exemplo.
Ex.: “que não m’hei de contentar / de casar com
parvoíce.” (Inês)