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UNIDADE 3

Gil Vicente,
Farsa de Inês Pereira
Estátua em pedra lioz de Gil Vicente,
escultura de Francisco Assis
Rodrigues, 1842 (frontão do Teatro
Nacional D. Maria II).
1. Vida e obra de Gil Vicente
• 1465?-1536/1540?
• Oriundo de Guimarães ou da Beira.
• Dramaturgo, ator, encenador, organizador
de representações teatrais.
• Ourives?
• Frequentou as cortes de D. Manuel I e de D.
João III.
• Colaborou no Cancioneiro Geral de Garcia
de
Resende.

Custódia de Belém,
atribuída a Gil Vicente, ouro, 1506,
Museu Nacional de Arte Antiga.
• A sua primeira obra terá sido
Auto da Visitação ou
Monólogo do Vaqueiro (1502, em
castelhano), representada por
ocasião do nascimento do
• príncipe
Casou duasD. João (mais tarde, D.
vezes.
João III).
• Teve cinco filhos.
• Os textos do dramaturgo
circulavam em folhetos de
cordel.

Gil Vicente representando o


Monólogo
do Vaqueiro, aguarela de Roque
Gameiro.
• Luís e Paula Vicente, seus
filhos, são responsáveis pelas
edições póstumas das suas
obras: Copilaçam de todalas
obras de Gil Vicente (1562).
• Luís Vicente organizou as obras
em cinco tipos:
— obras de devoção;
— comédias;
— tragicomédias;
— farsas;
— obras miúdas.

Rosto da primeira edição da Copilaçam


de todalas obras de Gil Vicente, 1562,
Fundação Casa de Bragança, Vila Viçosa.
• Cronologia das principais obras:

1502 — Monólogo do Vaqueiro


1508 — Auto da Alma
1509 — Auto da Índia

Representação do Auto da Índia, perante


a Rainha D. Leonor, em Almada. Nas
representações teatrais da época,
utilizavam-se estrados de madeira, ao ar
livre, de maneira que a população rodeava
o palco e contactava quase
diretamente com os atores.
• Cronologia das principais obras:

1502 — Monólogo do Vaqueiro


1508 — Auto da Alma
1509 — Auto da Índia
1512 — O Velho da Horta
1517 — Auto da Barca do Inferno
1523 — Farsa de Inês Pereira
1525 — Farsa do Juiz da Beira
1528 — Auto da Feira
1534 — Auto de Mofina Mendes
1536 — Floresta de Enganos
Capa de Cristina Reis (http://www.teatro-
cornucopia.pt/v2/images/cartazes/074.cartaz.jpg) para
os textos de apoio da representação da peça
Amor/Enganos pelo Teatro da Cornucópia (2000),
adaptação das obras, escritas em castelhano por
Gil Vicente, Frágua de Amor e Floresta de Enganos.
• A classificação da obra de Gil Vicente é polémica.

• Os críticos preferem uma classificação diferente da que Luís


Vicente fez:
— moralidades;
— farsas (alegóricas e não alegóricas);
— comédias (alegóricas e romanescas).
2. O tempo de Gil Vicente

Pormenor de vista em perspetiva de Lisboa,


gravura em cobre, de Braun, meados do século XVI.
Lisboa no século XVI. Gravura de Braun e Hogenberg, 1572.
Mudanças políticas e sociais:

• Viagens de expansão marítima (novos territórios, novos produtos)


• Vida faustosa da corte (festividades e comemorações);
• Cisma religioso (Reforma Protestante/Contrarreforma);
• Transição entre o feudalismo e o mercantilismo;
• Estímulo do comércio intercontinental;
• Desenvolvimento de uma burguesia mercantil.

Mudanças culturais:

• Renascimento — introdução das formas artísticas greco-


latinas;
• Humanismo — valorização de tudo o que é humano;
• Antropocentrismo — elevação do Homem como figura central
no Universo
(em oposição ao teocentrismo da Idade Média);
• Classicismo — sujeição das formas artísticas a normas
rígidas de forma
Dramaturgo de transição

Faceta medieval Mentalidade humanista

• Temas religiosos • Crítica constante


• Utilização da alegoria à imoralidade da
• Vocabulário instituição Igreja Victor Couto, Gil Vicente
arcaizante (várias • Crítica social Escrevendo, retrato a sépia,
2009.
formas para um só • Referências à
vocábulo) mitologia greco-latina
Ridendo
• Sintaxe arcaizante • Referências à História
castigat mores
• Utilização da clássica
redondilha maior
• Utilização de cantigas
tradicionais Moralização
através da sátira
Gil Vicente viveu numa época de grandes marcos históricos da
Expansão.
A sua vida abrange sobretudo os reinados de:
D. João II (1481-1495)

• Feitorias na costa ocidental africana.

• Viagens de Diogo Cão.

• Passagem do cabo da Boa

Esperança.

• Viagem de Cristóvão Colombo.

• Tratado de Tordesilhas.
D. Manuel I (1495-1521)

• Viagem de Vasco da Gama.

• Descoberta do Brasil.

• Afonso de Albuquerque na Índia.

• Publicação das Teses de Martinho

Lutero.
D. João III (1521-1557)

• Publicação de obras de Sá de Miranda,

Bernardim

Ribeiro, João de Barros, Fernão de Oliveira

e Pedro

Nunes.

• Saque de Roma pelo imperador Carlos V.

• Estabelecimento da Inquisição em

Portugal.
3. O teatro português anterior a Gil
Vicente
Representações Representações Representações
de carácter religioso de carácter satírico de carácter profano

• Mistérios — cenas da • Farsas — episódios Representados


vida de Cristo cómicos e críticos em festas
(Natal) • Sotties — farsas palacianas
• Milagres — milagres curtas com a • Arremedilhos —
dos santos ou presença de imitações cómicas
da «Parvos» (Carnaval) • Momos — números
Virgem Maria • Sermões burlescos — mímicos e alegóricos
(Páscoa) ator disfarçado de • Entremezes —
• Moralidades — sacerdote representa representações
personagens um monólogo mímicas de episódios
alegóricas (Corpo de sarcástico (festas cómicos
Em igrejasDeus)
e mosteiros. Em igrejas e noutros
religiosas) Na corte, no Palácio e
locais. nas ruas.
4. A farsa no teatro de Gil Vicente
• Peça dramática de carácter profano (herdeira dos fabliaux
franceses, narrativas breves de intenção moralizadora).
• Peça cómica curta, com um escasso número de
personagens.
• Peça com uma intriga bastante simples, sem necessidade de
marcar a unidade de tempo ou de espaço ou de
estabelecer uma divisão cénica.
• Peça com a intenção de ridicularizar e criticar a sociedade,
retratando cenas da vida popular ou burguesa de forma
realista.
«Reproduzindo o ambiente popular e burguês da época, ou apenas
plasmando um episódio cómico flagrante da vida quotidiana da personagem,
apresenta em conflito, geralmente com uma grande economia de recursos,
as forças da autoridade convencional e as forças da rebeldia. Não raro se
trata da luta pelo poder entre duas forças opostas, no âmbito das relações
sociais, por exemplo entre pais e filhos, amos e criados, marido e mulher,
etc.»
In E-Dicionário de Termos Literários (dir. Carlos Ceia), http://www.edtl.com.pt (consultado em14 de
5. As personagens-tipo vicentinas
Tipos sociais
fixos

Tipos Personificaçõ Personagens Figuras


humanos es alegóricas bíblicas e teológicas
míticas

Roma, Quatro Profetas, Diabo, Anjo,


Pastor/lavrado Estações, Sibilas ou Alma
r, moça, Tempo Deuses
alcoviteira,
juiz/magistrad
o, frade,
escudeiro,
• Denunciar instituições ou grupos
usurário,
sociais
parvo
• Criticar a dissolução dos costumes
Jan Vermeer, A Alcoviteira Quentin Metsys, O Usurário e Sua Mulher
(1656). (1516).
6. Farsa de Inês Pereira

«Mais quero asno que me leve que cavalo que me


derrube.»

marido ingénuo e que aceda marido violento e orgulhoso


simples às suas vontades (Escudeiro Brás da Mata)
(Pero Marques)

Comédia de
costumes

Crítica à leviandade das raparigas que desejam


ascender socialmente através do casamento
As personagens e a sua caracterização

Inês Pereira; Mãe de Inês; Lianor Vaz (alcoviteira)  Pero Marques; Latão e Vidal
(judeus);
Escudeiro; Moço; Ermitão  Moças e mancebos que cantam no casamento de Inês
Inês Pereira

Início da peça:
• indolente / não cumpre as tarefas
• sonhadora e romântica

Pretende casar-se para…


• se libertar da sua vida
• se unir ao homem ideal

Mostra ser rebelde e determinada:


• não ouve os conselhos da Mãe
• desposa o pretendente que deseja

Casamento com o Escudeiro:


• submetida a um tratamento cruel
• desencantada e desiludida

Casamento com o Lavrador:


• sente-se livre; comete adultério Jan Vermeer, A Carta de Amor (1670).
Mãe

Voz da experiência

Pragmática
(afirma que um casamento
implica sustento material)
e prudente

Mostra o seu afeto


maternal por Inês
(pede ao Escudeiro
que seja afetuoso
com a filha)

Rogier van der Weyden,


Retrato de Mulher com Véu Alado (1430)
Lianor Vaz

Alcoviteira
(propõe a Inês o
casamento
com Pero Marques)

Astuta e determinada

Pragmática
(sugere que Inês
case com Pero
Marques,
pois ele pode
sustentá-la)

Michiel Sweerts,
Jovem e a Alcoviteira (1660).
Os pretendentes de
Inês

Pero Marques Escudeiro

Lavrador abastado Fanfarrão e mentiroso

Ingénuo, ignorante e um pouco Interesseiro


grosseiro
Determinado (não desiste Autoritário, despótico
do seu desejo de casar com Inês) (humilha e oprime Inês após o
casamento)
Cruel para com o Moço que o serve

Cobarde (é morto por um pastor


quando fugia da batalha)

Camponês,
Livro de Horas Giorgione,
de Maître Guerreiro
de l’Échevinage com Escudeiro
de Rouen (c. 1475). (c. 1509), pormenor.
Moço Latão e Vidal,
os judeus
casamenteiros
Funciona como
contraponto do
Astuciosos
Escudeiro (através
e eloquentes
dos comentários do
Moço, sabe-se a
condição miserável Têm uma função semelhante
em que vive o à de Lianor Vaz (persuadir Inês)
Irónico
Escudeiro)

Ermitão

Sedutor

Tem um comportamento imoral,


semelhante
ao do clérigo referido no início da
farsa
A estrutura da ação

Sequência de episódios
unicamente
ligados pela personagem central:
Inês
Inês
fantasiosa

Apresentação
das ambições
e sonhos de Inês
(casar com um homem
avisado)

Proposta de Pero
Marques, que Inês
considera
desinteressante
Recusa da proposta
de Pero Marques José Ruy, Farsa de Inês Pereira, vinheta
(1988).
A estrutura da ação

Sequência de episódios
unicamente
ligados pela personagem central:
Inês
Inês Inês Inês quite
fantasiosa malmaridada e desforrada

Apresentação A proposta do Nova proposta


das ambições Escudeiro, de Pero Marques
e sonhos de Inês Brás da Mata,
(casar com um homem corresponde O casamento
avisado) às suas expectativas traz-lhe liberdade
(quer afidalgar-se e conforto
através do casamento)
Proposta de Pero
Marques, que Inês Desilusão com a vida
Aventuras
considera matrimonial agressiva
extraconjugais
desinteressante
com o ermitão
Recusa da proposta Liberdade: morte do
de Pero Marques marido
O tempo e o espaço

Apenas uma referência concreta:


Tempo o Moço refere que o Escudeiro partira há
três meses
para o norte de África quando Inês recebe a
carta

«Inês «Inês «Inês quite


fantasiosa» Malmaridada» e desforrada»

Espaço Espaços interiores: Espaço interior:


interior: casa de Inês residência
casa de Inês e residência do Espaço exterior:
Escudeiro peregrinação até à
ermida

Confinamento de Liberdade de
Inês movimentos
à área doméstica
Os temas

Questões sociais
da época de Gil
Vicente

Duplicidade e aparências
As personagens aparentam ser algo que não são:
• o Escudeiro finge ser galanteador, distinto e valente (revela
ser autoritário,
arrogante e cobarde)
• o clérigo e o Ermitão fingem ser celibatários (revelam-se
licenciosos)
Dissolução dos costumes
Ambição sem escrúpulos
Valorização excessiva do dinheiro
Imoralidade do clero
Decadência dos comportamentos: Inês torna-se adúltera
O casamento encarado como um negócio
Casamento
Projeto de vida de Inês:
• ter um marido «discreto»
• ascender na escala social
• libertar-se da condição em que vivia
• tornar-se independente
Primeiro casamento: ilusão e desilusão com a violência a que é
sujeita
Segundo casamento: pragmatismo, liberdade e adultério

Relação mãe-filha
Relação condicionada pelas regras sociais da época
Inês vive na dependência e sob autoridade da Mãe
Relação com momentos de tensão e conflito: Inês não cumpre
as suas tarefas
Relação com momentos de afeto e proteção: conselhos que a
Mãe dá à filha sobre o pretendente a escolher
A sátira na Farsa de Inês Pereira

• Função pedagógica e edificante: corrigir a ação da


sociedade.

Processos de
sátira

Caracterização Ironia Cómico Caricatura


das
personagens
Caracterização
das
personagens

Inês Pereira
Não é uma personagem-tipo, mas o seu comportamento tem
traços do estereótipo da jovem sonhadora e ambiciosa.

Pero Marques
Representa o rústico lavrador.
A sua linguagem, ignorância, simplicidade e postura ridícula
transformam-no numa caricatura.

Escudeiro
Crítica à pequena nobreza sem recursos próprios.
Crítica às suas dependências, à parasitagem, à cobardia.
Lianor Vaz

Representa os alcoviteiros: promove casamentos de


conveniência a troco de dinheiro.

Judeus casamenteiros
Representam os alcoviteiros: promovem casamentos a troco
de dinheiro.
Crítica à avareza e à mentira.

Ermitão
Crítica à imoralidade do clero.
Crítica à hipocrisia com que os membros do clero encaram a
sua vocação.
Estilo e linguagem

Língua em Presença de arcaísmos medievais e inovações


transição renascentistas.

Registos de
língua variados

Linguagem dos lavradores rústicos: Pero Marques não respeita


a estrutura frásica.
Linguagem dos judeus casamenteiros: introdução de fórmulas
hebraicas no discurso.

Linguagem familiar: o registo popular que a Mãe e Lianor Vaz


partilham.
Linguagem cortês do Escudeiro: discurso elaborado, utiliza
fórmulas corteses, mostrando o seu estatuto social.

Coloquialidade Expressões populares, provérbios, interjeições; ironia e


sarcasmo.
Cómicos

Cómico de Cómico de Cómico de


situação carácter linguagem

Pero Marques senta-se Pero Marques, Linguagem de


na cadeira ao contrário deslocado Pero Marques
e de costas para Inês e no contexto em que é
sua Mãe colocado Discurso repetitivo
As interrupções e O Escudeiro, de Vidal e Latão
repetições constantes dissimulado, com o seu
de Vidal e Latão, com a discurso elaborado e o Ironia do Moço que
pressa de persuadirem seu talento para cantar serve
Inês e tocar o Escudeiro
Pero Marques, descalço,
transporta Inês às
costas
para o encontro
amoroso desta com o
Ermitão
e canta enquanto o faz
Bibliografia

CAMÕES, José (dir. cient.) (2002) – As obras de Gil Vicente, vol. I. Lisboa: CET e
INCM.

COELHO, Nelly Novaes (1963) – «As alcoviteiras vicentinas», in Alfa — Revista de


Linguística 4. São Paulo: FCLA-UNESP, pp. 83-105.

NUNES, Patrícia et alii (2008) – Enciclopédia do Estudante, vol. 10. Carnaxide:


Santillana-Constância, pp. 68-69; 66-67; 70-73; 88-89.

OSÓRIO, Jorge A. (2005) – «Solteiras e Casadas em Gil Vicente», in Península —


Revista de Estudos Ibéricos, n.º 2. Porto: FLUP, pp. 113-136.

RIBEIRO, Cristina Almeida (1991) – Inês. Lisboa: Quimera.


_______________________ (1992) – Auto de Inês Pereira de Gil Vicente. Lisboa: Editorial
Comunicação.

SARAIVA, António José (1979) – História da Literatura Portuguesa — das origens a


1970. Amadora: Livraria Bertrand.

SARAIVA, António José; LOPES, Óscar (s. d.) – História da Literatura Portuguesa,
16.ª ed. Porto: Porto Editora.

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