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Português 10ºAno

Farsa de Inês Pereira

Farsa:
Género teatral em que se caracteriza pelo tom cómico e satírico. A farsa é um tipo de peça
curta em que se encenam situações do quotidiano a fim de representar e criticar
comportamentos e grupos socias de uma comunidade.

Estruturas externa e interna da obra:


Estrutura externa: Apesar da farsa não ter qualquer divisão em atos e cenas e,
consequentemente, de não existir uma estrutura externa assinalada explicitamente, é possível
estabelecer várias “cenas” com a estrada e saída de personagens em palco

Estrutura interna: A farsa estrutura-se a partir de quadros que podem ser organizados da
seguinte forma:

 Vida de Inês, ainda solteira, com a mãe;


 Conselhos de Lianor Vaz sobre o casamento;
 Apresentação e entrada de Pero Marques;
 Recusa da proposta de casamento por Inês;
 Anúncio e proposta de um novo pretendente;
 Casamento de Inês com Escudeiro;
 Desencanto com o casamento;
 Viuvez de Inês Pereira;
 Nova vida de casada com Pero Marques;
 Concretização do desejo de Inês;

Exposição Conflito Desenlace


Desejo de Inês Proposta e Novo Casamento com Concretização
de se libertar, recusa de pretendente e Pero Marques do desejo de
pelo casamento, casamento com cansamento Inês
da vida de Pero Marques infeliz com
solteira Escudeiro

Características do género da Farsa vs Farsa de Inês Pereira:


A farsa, enquanto género, apresenta características próprias e que estão presentes no auto
vicentino:

Características do género farsa Farsa de Inês Pereira


 Curta extensão – normalmente,  O texto vicentino não é muito extenso (1116
a peça apresenta apenas um ato versos) e, quanto à sua estrutura externa, não
não tem divisão cénica está dividido nem em atos nem em cenas,
embora exista uma estrutura tripartida
(introdução, desenvolvimento, conclusão).

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 Representação de “cenas da vida  O texto vicentino apresenta, através da satírica,


profana” através da satírica várias cenas da vida profana tais como:
 realização de trabalhos domésticos,
nomeadamente a costura, atividade de que
Inês não gosta;
 a intervenção de uma Alcoviteira, que dá a
conhecer a Inês Pereira um possível marido
(Pêro Marques);
 o casamento de Inês Pereira com o
Escudeiro e os festejos que então
ocorreram;
 a ida do Escudeiro para guerra;
 o casamento de Inês Pereira com o lavrador
Pêro Marques;

 Reprodução do “ambiente  A Mãe de Inês Perira é referida como uma


popular” da época e de “mulher de baixa sorte” e as restantes
flagrantes da vida quotidiana personagens integram-se claramente nesse
ambiente (a Alcoviteira, os Judeus, o Lavrador, o
Escudeiro, o Moço, o Ermitão).
 Apresentação de um conflito  A peça revela um conflito entre forças opostas,
entre “forças opostas”, no entre mãe e filha – Quando Inês quer casar e a
âmbito das relações sociais (pais mãe (experiente) lhe dá alguns conselhos,
e filhos; amos e criados; marido porém Inês replica e mostra alguma aspereza
e mulher) com a Mãe.
 Estrutura que pode ir da mais  A intigra desta peça tem um princípio, um meio
simples intigra à ”justaposição e um fim, sendo, por isso, mais complexa,
de episódios”, ou até uma intigra quando comparada com a de outras farsas.
mais complexa “com princípio,
meio e fim”
 Número reduzido de  Em cena, há um número muito reduzido de
personagens – podendo estás personagens, algumas das quais consideradas
ser o retrato vivo de certos tipos personagens-tipo, isto é, personagens que
sociais ou personagens que representam um determinado grupo social e/ou
apresentam já “uma vivência profissional, o seu modo de agir, os seus
psicológica acentuada” comportamentos, como é o caso da Alcoviteira,
dos Judeus, do Escudeiro, do Moço
 Porém, nesta farsa, encontramos também uma
personagem com uma vivência psicológica mais
densa e cujo comportamento sofre, inclusive,
alguma variação – Inês Pereira

Argumento da Farsa:
“Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube”

Marido ingénuo e simples Marido “avisado” e Que lhe tire a liberdade e


(Pêro Marques) “discreto” (Escudeiro) a ameace e maltrate.

Que aceda às 2
suas vontades
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Resumo:

Inês Pereira é uma moça bonita e solteira que se vê obrigada a passar o dia nas tarefas
domésticas e encara o casamento como a oportunidade de se livrar dessa vida. Por isso
idealiza o noivo como sendo um moço bem-educado, cavalheiro, que soubesse cantar e
dançar, enfim, que fosse um fidalgo capaz de lhe dar uma vida feliz.

Um dia, Lianor Vaz, a casamenteira, chega a casa de Inês dizendo que tinha sido atacada por
um clérigo, mas que conseguira escapar. Porém, isto não passava de uma desculpa pois só
pretendia dizer a Inês que Pero Marques, um rico camponês, queria casar com ela.

A moça lê a carta que Pero escreveu com as suas intenções de casamento, mas não se
conforma com a rusticidade do moço e concorda em recebe-lo só para se rir da cara dele.

Lianor vai então buscar Pero e, enquanto isso, a mãe de Inês aconselha-a a receber bem o
pretendente. Quando o rapaz chega comporta-se de modo ridículo e demonstra não ter
nenhum traquejo social e, vendo-se à sós com ele, Inês desencoraja-o quanto ao casamento e
o moço vai embora. Logo de seguida informa a mãe de que tinha contratado dois judeus
casamenteiros para encontrar um noivo que tivesse boas maneiras.

Entram em cena Latão e Vidal, os dois judeus casamenteiros, que vieram oferecer Brás da
Mata, um escudeiro. Armado o encontro entre os dois jovens, Brás da Mata planeja ir à casa
de Inês acompanhado de seu criado, o Moço, e os dois combinam contar uma série de
mentiras para enganar a moça e conseguirem dar o “golpe do baú”. Já na casa de Inês, Brás da
Mata age conforme ela queria: trata-a de modo distinto com belas palavras, pega na viola e
canta. Ele pede-a em casamento, mas a mãe diz que a moça não deve fazê-lo, ao que os judeus
contra-argumentam elogiando Brás de todas as formas.

Os dois casam-se e a mãe presenteia os noivos com a casa. A sós com Brás, Inês começa a
cantar de felicidade, mas ele irrita-se e manda-a calar-se. Brás começa, então, a impor uma
série de regras e exige que a moça fique trancada o dia inteiro em casa, proibindo-a até
mesmo de olhar pela janela e de ir à missa. Pouco tempo depois, Brás informa ao Moço que
partiria para a guerra, ordenando que ele vigiasse Inês e que ela deveria ficar trancada à chave
dentro de casa. Trancada em casa e não fazendo nada além de costurar, Inês lamenta a sua
sorte e deseja a morte do marido para que pudesse mudar seu destino.

Passado algum tempo, o Moço aparece com uma carta do irmão de Inês onde ele informa que
Brás havia morrido covardemente tentando fugir do combate. Feliz, Inês despede Moço, que
vai embora lamentando seu azar. Então, sabendo que Inês tinha ficado viúva, Lianor Vaz
retorna oferecendo novamente Pero Marques como novo marido. Dessa vez Inês aceita e os
dois casam.

Com a ampla liberdade que o marido lhe dava, Inês parecia levar a vida que sempre desejou.
Um dia, chega em sua casa um Ermitão a pedir esmola e Inês vai atendê-lo. Porém, este é um
falso padre e o deus que ele venerava, na realidade, era Cupido. Inês reconhece o moço, que
tinha sido um antigo namorado seu e ele diz que só se tinha tornado ermitão porque ela o
havia abandonado. Começa então a insinuar-se para Inês, acariciando-a e pedindo um
encontro entre os dois. Ela aceita e os dois marcam um encontro.

No dia marcado, Inês pede a Pero Marques que a leve à ermida dizendo que era por devoção
religiosa. O marido consente e os dois partem de imediato. Para atravessar um rio que havia

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no meio do caminho, Pero Marques carrega a mulher nas costas e essa vai cantando uma
canção alusiva à infidelidade dela ao marido e à mansidão dele. Pero segue cantando o refrão,
terminando como um tolo enganado.

Caracterização das personagens:


Inês Pereira – figura central da peça; pode classificar-se como personagem modelada, já que
sofre uma evolução psicológica, decorrente da experiência e, reconsiderando a sua posição
inicial, aceita um segundo casamento completamente fora das suas expetativas (“sobre
quantos mestres são/experiência dá lição”), mas também com personagem plana, pois, o final
da peça mostra-nos, novamente, o carácter leviano de Inês, característica principal, enquanto
personagem-tipo.

Mãe – personagem secundária, que, em estreita ligação com Inês, representa o contraponto
da sua fantasia e irresponsabilidade. Moderada, prudente e pragmática, a Mãe manifesta a
sua descrença em relação ao casamento com o Escudeiro, antecipando alguns problemas que
virão a acontecer. Contudo, quando a filha opta por casar com Brás da Mata, a Mãe
desaparece, discretamente, sem discussões, censuras ou vinganças, e ainda lhe oferece a
casa onde viviam. A filha aprenderá à sua custa.

Pêro Marques – outra figura intimamente ligada a Inês: representa na peça o papel de asno
que leva a mulher às costas; de visita a um antigo pretendente (o ermitão). É um lavrador,
ingénuo e bronco, trabalhador e honesto, que tem alguns bens. Oriundo do meio rural e
desconhecedor de algumas regras de convivência, cai no ridículo, não só pela maneira como
se veste, mas também pela maneira de falar e agir. É a personagem cómica da peça, que
contrasta com Inês (por quem é ridicularizado) e com o escudeiro.

Lianor Vaz – é quem apresenta Pêro Marques a Inês, através de uma carta. Mostra grande
capacidade de persuasão, experiência e oportunidade no desempenho do seu papel de
comadre casamenteira, quando, após a morte do Escudeiro, regressa para relembrar Inês do
seu anterior pretendente.

Escudeiro (Brás da Mata) – é uma figura muito importante, que contrasta flagrantemente
com Pêro Marques (compara-se a carta e o comportamento de Pêro Marques com o discurso
do Escudeiro, quando apresentado a Inês). Mostra-se elegante, culto e astuto. É uma
personagem com grande influência no desenrolar da história, já que é o seu comportamento
tirânico que vai fazer com que Inês venha a aceitar Pêro Marques para se vingar das
frustrações do primeiro casamento que ela idealizou e falhou. O Escudeiro, pobre e covarde,
ostenta perante Inês qualidades que não tem. Antes de casar, apresenta-se como um grande
senhor, rico, culto e bem-falante. Depois de casar, revela-se um tirano mesquinho que deixa a
esposa à guarda do criado e parte para África com o objetivo de ser armado cavaleiro, onde
acaba por ser morto por um mouro pastor, quando desertava de uma batalha.

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Moço – personagem que contribui para a denúncia do verdadeiro caráter do Escudeiro e da


sua condição financeira.

Judeus casamenteiros (Latão e Vidal) – são quem apresenta o Escudeiro a Inês. Preocupados
em receber o seu dinheiro, empenham-se em elogiar os méritos do Escudeiro perante Inês e as
qualidades desta perante aquele. São desonestos, falsos e materialistas.

Personagens-tipo:
Inês: moça do povo, casadoira, que pretende ascender socialmente; preguiçosa; ambiciosa;
fantasiosa e leviana;

Mãe: pragmática e materialista, quer ver a filha bem “arrumada” com um marido com
estabilidade económica, desprezando ideias de amor, sonhos ou caprichos;

Lianor Vaz: alcoviteira;

Pêro Marques: homem do campo com pouca educação; o asno, o inadaptado à sociedade:
objeto de vingança de Inês;

Escudeiro: a baixa nobreza em degradação, faminta e pelintra;

Moço: classe servente

Cómico:
Cómico de Caráter - associado à personalidade e às características da personagem.

Ex: concretiza-se nas figuras de Pêro Marques (provinciano e bronco nitidamente deslocado
junto de Inês e da Mãe) e do Escudeiro pobre e cobarde, mas dissimulando na elegância do
seu discurso, na variedade das suas prendas (canta e toca) e na fanfarronice solene todas as
suas fraquezas.

Cómico de Situação – produzido por uma circunstância que causa o riso.

Ex: quando Pêro Marques se senta na cadeira ao contrário e de costas para Inês e para a Mãe;
na fala dos Judeus casamenteiros, que, na sua sofreguidão e calculismo para conseguirem
casar Inês com o Escudeiro, se interrompem, repetem e atropelam constantemente; e no
episódio final quando Pêro Marques, descalço, transporta Inês às costas, e para cúmulo, aceita
cantar uma cantiga que o apelida de “marido cuco”.

Cómico de linguagem – relacionado com discurso da personagem.

Ex: quando Pêro Marques entra com a sua linguagem recheada de termos e expressões
provincianas; quando os Judeus produzem o seu discurso repetitivo e arrastado; quando Inês

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se refere a Pêro Marques dizendo “Ei-lo se vem penteando/será com algum ancinho?”; na
ironia do Moço desmascarando a pelintrice do Escudeiro.

Dimensão satírica:
Objetivos da satírica

 A dimensão satírica está associada aos temas da peça: dissolução de costumes, a


dissimulação, o casamento e a condição feminina.
 A satírica de denuncia, em tom humorístico, as práticas sociais condenáveis e a
degradação dos valores de uma comunidade para levar o leitor a tomar consciência desses
erros e das consequências que têm.
 A expressão ridendo castigat mores (a rir se censuram os costumes) sugere que a
comicidade deve ter um papel moralizante de censura dos erros de uma sociedade.

Alvos da crítica da Farsa de Inês Pereira

Jovens Como outras jovens casadoiras, a sonhadora Inês vê o casamento como um


casadoiras meio de ganhar independência e de ascender socialmente.
Alcoviteiro São materialistas e fazem do sacramento do matrimónio um negócio.
s Lianor Vaz e os judeus casamenteiros simulam preocupar-se com a felicidade
de Inês, mas o que os move, no caso dos segundos, é o dinheiro que irão
receber.
Figuras As figuras religiosas destacam-se por serem devassas e por não cumprirem as
religiosas suas obrigações. Tanto o clérigo que terá tentado seduzir Lianor como o
Ermitão quebram os votos que tinham feito.
Rústicos Pero Marques representa o rústico ingénuo, que não está preparado para as
manhas do meio urbano e fica exposto ao engano e ao ridículo.
Escudeiros Brás da Mata, com algum estatuto social, revela-se dissimulado e hipócrita,
pois faz-se passar por homem elegante, mas é um pelintra e um cobarde que
trata com desdém os de condição social inferior.

Recursos expressivos:
Tratando-se de um texto literário, está permeado de recursos expressivos que lhe conferem
novos sentidos, para além do óbvio. Assim, nesta farsa, podemos identificar, entre outros, os
seguintes recursos expressivos:

Ex: “I-vos vós embora à guerra, / que eu vos guardarei


oitavas.” (Moço)

Ironia – manifestação através A “oitava” era a prestação que os lavradores pagavam ao


da qual se dá a entender o proprietário das terras. Só os grandes proprietários
contrário do que se diz; por recebiam. Ao proferir estas frase, o Moço está a ser,
exemplo, o aparente elogio é, naturalmente, irônico, pois o Escudeiro não tem terras,
verdade, uma crítica. logo, não pode receber nada.

Ex: “Bem sabedes vós, marido, quanto vos amos.” (Inês)

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Inês profere estas palavras, mas vai encontrar-se com o


Ermitão.
Ex: “Coitada, assi hei de estar / encerrada nesta casa /
como panela sem asa, / que sempre está num lugar?”
(Inês)

Comparação – relação de Inês lamenta a sua sorte, comparando-se a um objeto


semelhança entre duas inútil.
entidades/ realidades,
estabelecida por uma expressão Ex: “Estareis aqui encerrada / nesta casa tão fechada, /
comparativa. como freira d’Odivelas” (Escudeiro)

Brás da Mata compara a situação de Inês – estar fechada


em casa – à clausura de uma freira, o que acentua a
“violência da sua decisão
Ex: “E assi hão de ser logrados / dous dias
amargurados, / que posso durar vida?” (Inês)

Interrogação retórica – A pergunta de Inês Pereira é uma mera forma de ela


formulação de uma pergunta continuar a expressar o descontentamento pela vida que
para a qual, na verdade, não se leva.
pretende uma resposta, mas
apenas dar ênfase ao que se Ex: “E nasceu-te algum unheiro / ou cuidas que é dia
enuncia. santo?” (Mãe)

Esta pergunta tem um tom irónico, pois a Mãe pretende


apenas que Inês abandone o seu ócio.
Ex: “porque a moça sisuda / é uma perla pera amar”
(Mãe)

A Mãe, procurando ajudar a filha a causar boa impressão


ao Escudeiro, aconselha-a a mostrar-se séria e reservada,
para assim ser digna de louvor, apreciada e valorizada, tal
Metáfora – relação de como uma pérola.
semelhança, entre dois termos,
sem a presença explícita do Ex: “Marido cuco me levades” “Sempre fostes percebido /
elemento comparativo (como, pera cervo” (Inês)
parecido com, etc.).
Inês refere-se a Pêro Marques como marido “cuco”, pois,
tal como a ave, ele repete a mesma frase – “Pois assi se
fazem as cousas”. Apelida-o também de “cervo”,
aproximando-o deste animal que tem ramificações. Estas
duas metáforas salientam, portanto, a sua condição de
marido traído.

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