Você está na página 1de 4

Auto- Designação genérica para peças em um ato.

Farsa: Género teatral caracterizado por:


- Intriga curta e concentrada;
- Número reduzido de personagens;
- Verosimilhança de situações;
- Temática do engano.

e. A representação do quotidiano
Uma das características da farsa, enquanto género, é representar flagrantes da vida
quotidiana. Daí que na Farsa de Inês Pereira seja possível identificar vários episódios que
espelham os hábitos, os costumes, as crenças, os modos de vida das pessoas daquela época,
em especial aqueles que diziam respeito:
 ao casamento — o texto Vicentino dá-nos a conhecer as conceções antagónicas de
Inês Pereira, da Mãe e de Lianor Vaz em relação a este assunto, para além de todo um
conjunto de aspetos relaciona- dos com o casamento: a intervenção da Alcoviteira e
dos Judeus, os encontros com os pretendentes, as regras, o dote, a festa, a vida em
casal;
 ao estatuto da mulher, sobretudo da mulher solteira - os casamentos eram, regra
geral, combinados, funcionando como um negócio entre duas partes, sem que a jovem
solteira tivesse qualquer participação. Neste caso, apesar de haver intermediários
entre Inês Pereira e os pretendentes, a última palavra é da protagonista, que, no
entanto, não consegue, com o primeiro casamento, alcançar aquilo que tanto
desejava: libertar-se do "cativeiro" da vida doméstica e ascender socialmente;
 à vida doméstica — acompanhamos a protagonista nos seus afazeres domésticos,
assumindo a postura típica da mulher do povo que trata da casa. No seu monólogo
inicial, Inês está em casa, a costurar; depois, já casada e fechada em casa, também
costura;
 à vida palaciana — apesar da vida de aparências que existia na corte e que está bem
espelhada no comportamento do Escudeiro, muitos eram os que ambicionavam fazer
parte desse mundo, como Inês. Ela quer "ouvir e folgar" e, por isso, pretende
inicialmente casar com um homem "discreto", "avisado", que saiba "tanger" viola;
 à vida do campo, simples, autêntica, mas pouco considerada - Pêro Marques
representa esse tipo de vida, em oposição à vida fútil, falsa da corte. Curiosamente,
esta vida simples, de trabalho, garante mais sustento que a vida ociosa dos fidalgos
pelintras;
 à vida do clero — o encontro de Lianor Vaz com um clérigo devasso e o de Inês Pereira
com um Ermitão devoto de Cupido denunciam comportamentos imorais da parte de
elementos do clero.
f. A dimensão satírica
O teatro de Gil Vicente é eminentemente satírico. Na realidade, um dos principais objetivos do
dramaturgo, ao escrever e encenar as suas peças, era chamar a atenção para as mudanças que
afetavam a sociedade de quinhentos e que, na sua perspetiva, a corrompiam, traduzindo-se
em comportamentos viciosos como, por exemplo, o desejo de promoção social das camadas
mais baixas, o parasitismo da nobreza, o adultério, a devassidão e a imoralidade do clero.
Estes comportamentos são denunciados, essencialmente, através das personagens-tipo e do
cómico. Efetivamente, a representação do quotidiano ganha uma outra projeção graças às
personagens-tipo. Na verdade, na sua individualidade de personagem, elas incorporam modos
de estar, de pensar e de sentir específicos de um grupo social elou profissional que, assim,
adquire mais impacto. Na Farsa de lnês Pereira, podemos reconhecer os seguintes tipos:
• a Alcoviteira (Lianor Vaz) e os Judeus (Latão e Vidal) - figuras gananciosas que agem com um
fim económico;
• o Vilão (isto é, o homem do povo), lavrador (Pêro Marques) - personagem rústica, serve para
fazer rir a gente da corte, com a sua ignorância e simplicidade;
• o Escudeiro (Brás da Mata) — género de parasita, ocioso e vadio, que imita os padrões da
nobreza - toca guitarra, verseja, faz serenatas, finge ser bravo, mas é medroso e explorador do
Moço. Não trabalha e passa fome;
• o Ermitão — há uma desconformidade entre os atos e os ideais, pois, em lugar de praticar a
austeridade, a pobreza e a renúncia ao mundo, busca a riqueza e os prazeres mundanos.

Em última análise podemos ainda dizer que cada uma destas personagens ilustra um
determinado conjunto de defeitos e vícios que Gil Vicente, através do seu olhar perspicaz,
queria criticar. Daí que as personagens-tipo sejam cruciais para a sátira social que o
dramaturgo pretendeu concretizar.

As personagens-tipo ajudam a compor o quadro do quotidiano e da sociedade da época de Gil


vicente, permitindo ao dramaturgo expor e satirizar atitudes e valores, muitas vezes através do
riso. Então as personagens-tipo também podem contribuir para o cómico.

O cómico é outro instrumento de que o dramaturgo se serve para criticar os seus


contemporâneos. A função do cómico está explícita na expressão «ridendo, castigat mores»,
ou seja, a rir corrigem-se os costumes. Na Farsa de Inês Pereira, podemos encontrar cómico de
linguagem (resulta da desadequação do que é dito ou do modo como é dito relativamente ao
contexto envolvente), de carácter (assenta na personalidade, modo de ser da personagem) e
de situação (baseia-se na intriga, no desenrolar dos episódios, ações que provocam o riso).

Personagens - Caracterização e relações entre elas

Inês pereira
Protagonista, ocupa o núcleo da ação, movimentando-se as restantes personagens à sua i
volta. Evolui ao longo da ação, de acordo com a sua perceção e as suas decisões em relação
ao casamento.
Antes do casamento
• É «muito fantesiosa» e preguiçosa, rejeitando as tarefas domésticas impostas pela mãe.
• Concebe o casamento como a libertação do «cativeiro» em que se sente viver.
• Sonhadora, idealiza um marido «avisado» e «discreto em falar», mesmo que «mal feito, feio,
pobre, sem feição».
• Opõe-se ao desejo da mãe de a ver casada com um seu «igual», alguém da mesma condição
social.
• Recusa a intermediação de Lianor Vaz e a proposta que esta lhe apresenta de casamento
com Pêro Marques, a quem considera um «parvo vilão».
Durante o casamento com o Escudeiro
• Vítima dos «desvarios» do marido, anseia, uma vez mais, pela libertação e alegra-se com a
notícia da morte de Brás da Mata.
• Depois de ser maltratada pelo Escudeiro e vítima da sua prepotência, reconhece que
«experiência dá lição» e procura novamente «escolher marido», mas agora «à boa fé, sem
mau engano, pacífico todo o ano» e que ande a seu «mandar», para «boa vida gozar».
Durante o casamento com Pêro Marques
• Aceita Pêro Marques como esposo, vislumbrando-o como o «asno» que lhe pode garantir a
vida tranquila que deseja.
• Ansiosa por «folgar», dissimulada e astuta, abusa da confiança do marido e torna-se
adúltera.

Mãe
É uma «mulher de baixa sorte», que procura educar a filha segundo o princípio de que «moça
sisuda é uma perla pera amar», instruindo-a sobre a vida doméstica e os comportamentos
adequados perante os pretendentes.
• Opõe-se ao desejo da filha de procurar um «marido avisado» e adverte-a para que case com
um seu «igual», preferindo o «asno que [...] leva» ao «cavalo de sela» que «mata».
• Sensata e pragmática, recomenda «siso» a Inês e aconselha-a a casar com um homem de
«boa simpreza», como Pêro Marques.
• Resigna-se à vontade de Inês, aceita o marido que escolheu e oferece a sua casa ao casal,
desaparecendo da ação depois do casamento.

Lianor Vaz
 Representa a figura da alcoviteira, intermediando o casamento de Inês e Pêro
Marques
 ponderada e objetiva, sem nunca referir o seu interesse no processo, aconselha a
jovem a casar com quem a «adore» e não com «quem faça com que chore».
 serve a crítica ao clero, através do episódio em que relata o ataque de um

Pêro Marques
 É apresentado a Inês por Lianor Vaz como «rico, honrado, conhecido».
 Simples e rústico, assume-se «de bem» e revela-se desconhecedor das convenções
sociais, respeitador, honesto e sincero.
 Ingénuo e crédulo, torna-se o «marido amigo» de Inês, que lhe consente a liberdade
desejada, e o «asno» que a leva, mesmo no sentido literal, «em romaria» até ao
Ermitão.

Escudeiro
 É caracterizado de forma direta (nas suas próprias palavras e nas dos Judeus) como
bem-falante, culto, educado e galanteador.
 Subverte, de acordo com o modo como age (caracterização indireta), o retrato de
marido «discreto», revelando-se hipócrita, pelintra, autoritário e abusivo (face ao
Moço e a Inés).
 Depois do casamento com Inês, mostra-se tirano e violento, assumindo o papel do
«cavalo folão» que oprime a esposa (e que contrasta com o modelo de marido
personificado por Pêro Marques).
 Morre cobardemente no norte de África, fugindo da guerra e às mãos de um pastor
mouro.
Judeus
 Interesseiros e astutos, conseguem a Inês o marido que deseja, sendo recompensados
por isso
Moço
 crítico do amo (o Escudeiro), expõe as suas contradições e denuncia a sua real
condição económica.
Ermitão
 Clérigo dissimulado, possibilita a Inês a concretização do adultério e a transformação
de Pêro Marques no «asno» (literal e metafórico) que a carrega.
 Permite a denúncia da imoralidade do clero.

Você também pode gostar