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ORIGEM E PERMANÊNCIA DA CRÍTICA

Leandro Gama Junqueira

O presente texto é uma proposta de repensar as histórias da literatura a partir da correntes críticas

história da crítica, sobretudo a literária, visto que a crítica constitui um “modo de ver/ler interpretação

o mundo” e de construir história. Tomando por base o pensamento de que o mundo, a método

priori, não é o que vemos/lemos, mas o que acontece, apontamos que é preciso leitura

repensar a leitura crítica de modo que ela não imponha sua teoria, mas que dialogue
com a realidade/obra e permita que se manifeste seu vigor de realização.

Repensar as histórias da literatura é repensar a história da crí- ORIGIN AND PERMANENCE OF CRITICISM |
tica da literatura e da crítica como um todo. A crítica tensiona The current text is a proposal to rethink the
o homem e o real simultaneamente como leitor e texto. Nes- history of literature from the history of criti-
cism, especially, the literary, since criticism is
se sentido, então, criticar é ler. Como, porém, fazer da crítica “a way of seeing/reading the world” and of
uma leitura não tendenciosa, que não seja apenas mais uma building history. Taking into account the
fala sobre o real, mas um diálogo aberto em que o sentido se thought that the world, in principle, is not
manifeste como história e não historiografia? E a literatura, what we see/read, but what happens, we
point out that it is necessary to rethink criti-
essa não é sua principal questão; se legère, no grego, é tanto cal reading, so that it does not impose its the-
sua base etimológica como também do vocábulo leitura, em ory, but dialogues with reality/ works and per-
que os sentidos colher e recolher apontam para o fazer histó- mits the expression of its force of
ria não historicista, mas historial, assumindo acepção de co- achievement. | Critical currents, interpreta-
tion, method, reading.
lher, recolher e acolher a própria realidade? Por esses moti-
vos, entre outros, a que talvez nos devêssemos referir como questões nucleares, é que nos propusemos
repensar as histórias da literatura através da história da crítica.

O que é isto: a crítica?


Eduardo Coimbra
Todo ser humano tem como condição de existência a necessidade de ser crítico, o que equivale a dizer Nuvem
Instalação na Praça XV,
que já estamos lançados no horizonte da crítica. A crítica orienta nossas decisões e estabelece os princí- Rio de Janeiro, 2008
pios que regem nossas vidas. É ela que nos possibilita julgar o que quer que seja e assim fazer as opções pe- 470 x 470 x 48cm cada
elemento, 470 x 470 x
las quais trilharemos em nossa jornada. A realidade nos advém no criticar, que não é mera faculdade do in- 1180cm conjunto
telecto humano, mas forma de manifestação do real como linguagem. Foto Zeka Araujo

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Crítica deriva do verbo grego krinéin, que nos fala aparece em fins do século quarto antes de
mais diretamente da ação de criticar. Crítica desde Cristo. Filitas da ilha de Cós, que chegou a
sempre se reportou à poética, à retórica, à teoria Alexandria em 305 antes de Cristo para ser
literária, à exegese, à filosofia e à estética. professor do futuro Rei Ptolomeu II, era cha-
mado ‘poeta e crítico ao mesmo tempo’. A
O significado da palavra crítica, segundo a tradição,
escola de ‘críticos’ de Pérgamo, dirigida por
é arte ou habilidade de julgar a obra de um autor
Crates, fez questão de mostrar que era dife-
por meio de um exame racional, indiferente a pre-
rente da escola de ‘gramáticos’, dirigida por
conceitos, convenções ou dogmas, tendo em vista
Aristarco, em Alexandria. Sabemos que Gale-
algum juízo de valor. Na modernidade, crítica fir-
no, no segundo século depois de Cristo, es-
mou-se como atividade de examinar e avaliar mi-
creveu um tratado, hoje perdido, a respeito
nuciosamente tanto uma produção artística ou
da questão de poder alguém ser kritikós e, ao
científica quanto um costume ou um comporta- mesmo tempo, gramatikós. Mas ao que pa-
mento; nesse sentido, é sinônimo de análise, apre- rece a distinção desapareceu e o termo kriti-
ciação, exame, julgamento e juízo. Como produção kós caiu em desuso. Criticus parece ser raro
é um escrito resultante de atividade teórica, ideo- no latim clássico, embora possa ser encon-
lógica e/ou estética. Filológica e historicamente trado em Cícero e foi usado a respeito de
compreendida, é a análise de fatos e circunstâncias Longino por Hierão, nas suas Epístolas. Criti-
subjacentes a determinado texto e a avaliação pela cus era termo mais elevado que grammati-
qual se julga a fidedignidade ou a validade de um cus, mas evidentemente o criticus interessa-
documento. De acordo com as teorias do discur- va-se também pela interpretação de textos e
so, é o exame de um princípio ou ideia, fato ou per- palavras. Retóricos como Quintiliano e, sem
cepção, com a finalidade de produzir apreciação dúvida, filósofos como Aristóteles cultiva-
lógica, epistemológica, estética ou moral a respei- vam o que em vernáculo seria hoje chamado
to do objeto da investigação. Entre os pensadores de crítica literária.2
iluministas, é o questionamento racional de todas
as convicções, crenças e dogmas, mesmo se legiti- A crítica permeia a poética, retórica, teoria literária,
madas pela tradição ou impostas por autoridades exegese, filosofia, estética e também gramática
políticas ou religiosas. No kantismo,1corresponde sem estar a nenhuma delas subordinada. Criticar,
ao questionamento empreendido pela razão so- como atividade, é anterior a Cristo e nossa con-
temporânea. Poder-se-ia discorrer longamente
bre seus próprios limites, princípios, pretensões
sobre a relação entre crítica e cada uma das áreas
cognitivas e especulativas. E, no uso vulgar, é a ação
citadas; nosso objetivo, entretanto, é verificar
ou efeito de depreciar, censurar ou condenar me-
como se dá a crítica na diferenciação entre poéti-
diante opinião desfavorável.
ca, hermenêutica e demais correntes críticas com
O que foi dito é bem ilustrativo e pode ser verifica- respeito à interpretação das obras literárias. A refe-
do como essência de significações em bons dicio- rência às demais áreas faz-se necessária para a
nários, mas gostaríamos de recorrer a um pouco questão em voga, visto que, em essência, todas
da história da palavra crítica e fazer uma referência têm a crítica como origem e condição de vigência,
à história do pensamento da crítica: e em evidente relação com a interpretação.

Em grego, krités significa ‘juiz’, krineín, ‘julgar’. Um aprofundamento historial da crítica se pode-
O termo kritikós, como ‘juiz de literatura’, já ria desdobrar em três momentos específicos em

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que – embora não formulada especificamente ticos, Kant faz a distinção entre o belo, o agradá-
como conceito, mas evidenciada de fato como vel e o útil. Por seu ponto de vista, nos dois últi-
questão imanente – se manifesta imbricada à in- mos a correspondência se dá entre o objeto e a
terpretação: o primeiro momento seria a Antigui- razão; já no sentimento do belo, o que importa é
dade clássica, tanto com os pensadores originá- a forma da representação na realização da har-
rios, na protogênese dialética, como com os monia plena entre as funções cognoscitiva, sen-
sofistas, na erística e na interpretação do nomos, sível e intelectual, equivalendo a dizer que o sen-
e, posteriormente, com o nascimento da filosofia, timento do belo é apriorístico e comunicável,
e, em Roma, com a estatização do direito. Na Idade apesar de não ser passível de demonstração, o
Média, a atividade crítica deu-se principalmente que fundamenta a validez universal e necessária
na escolástica, com a exegese das Escrituras Sa- dos juízos estéticos.
gradas pelos padres da Igreja católica apostólica Em Aristóteles, crítica é vista como “um modelo
romana e, mais tarde, já no final desse período, de bem julgar”. A crítica não tem método, mas já é
mas ainda em abordagem religiosa, pela releitura em si um caminho para a interpretação de algo;
dos credos religiosos e da própria Bíblia cristã pe- também não é conceito, mas o elã de todo ques-
los articuladores da Reforma protestante. O ter- tionar. A grande questão é que cada área do co-
ceiro momento baliza o nascimento nominal da nhecimento, de certo modo, reduziu a crítica a
crítica como atividade científica. Nascimento no- uma metodologia conceitual instituindo uma téc-
minal porque de fato a atividade crítica já existia, nica aplicada e intervencionista. Essa redução
ainda que não nominalizada nem definida concei- operacionalizou as diversas correntes críticas em
tualmente em suas bases. O “nascimento” da críti- que crítica passa a mero predicativo, mero adjeti-
ca e o nascimento da Modernidade são, filosofica- vo das correntes ideológicas. A tensão entre críti-
mente falando, tautócronos, pois é em Kant, o pai ca e ideologia é sintetizada na corrente que se vali-
da Modernidade, que o estudo da crítica mais se da eficazmente como metodologia aplicada, cuja
aprofunda e ganha corpo, sobretudo nas refle- intervenção engendra conceitos. René Wellek re-
xões em torno da questão da Aufklãrung, traduzi- gistra, na obra Conceitos de crítica, o seguinte:
da, grosso modo, por esclarecimento, elucidação.
A crítica é trazida para o cenário filosófico com a O termo Kritik, kritisch penetrou na Alemanha
publicação das obras Crítica da razão pura (1781), vindo da França nos começos do século 18 (...)
Mas na Alemanha algo aconteceu que baniu o
Crítica da razão prática (1788) e Crítica da faculda-
termo e o conceito e restringiu tanto seu senti-
de de julgar (1790), e suas reflexões giram em tor-
do a ponto de ele vir a significar apenas a resenha
no das questões “como é possível conhecer?”, “as
cotidiana, a opinião literária arbitrária. Ästhetik e
formas do espaço e do tempo”, “categorias do en-
o novo termo Literaturwissenschaft tomaram
tendimento”, “as antinomias da razão”, “o impera-
conta do antigo domínio (...) Hermann Hettner
tivo categórico” e “a crítica da faculdade de jul-
escreve em 1853 que “a crítica nada é senão esté-
gar”, entre outras.
tica da arte e as características das grandes
Em Crítica da faculdade de julgar (1790) Kant faz obras individuais e épocas, a história da arte e da
distinção entre dois tipos de juízos: o determi- literatura” (...) O divórcio entre a estética, disci-
nante e o reflexionante, este último apontando plina filosófica a que estava subordinada a poéti-
para a representação de um objeto por meio da ca, e a erudição literária, que era principalmente
subjetividade humana. Ao analisar os juízos esté- história literária, foi uma das características do

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cenário intelectual alemão no século 19. O críti- Na Antiguidade, o belo foi questão primaz para os
co tornou-se um mero intermediário, um jorna- pensadores Platão, Aristóteles e Plotino. Em Pla-
lista de significação efêmera. As razões para esta tão, o belo é uma ideia geral ou universal de beleza
restrição do termo na Alemanha parecem bas- como um produto do espírito – é a “beleza que,
tante óbvias: o prestígio esmagador do hegelia- acrescentando-se a um objeto qualquer, o torna
nismo tornou a estética assunto para o filósofo belo, seja pedra ou madeira, homem ou Deus,
acadêmico, ao passo que a história literária, es- ação ou ciência”.4 Em O banquete e em Fedro, a
pecializada nas tradições nacionais, tomou a si a questão da beleza é correlata à questão do amor;
discussão do passado. A crítica sucumbiu vítima já em A república, aparece ligada à mimésis. Em
do desprezo geral com que o Iluminismo e seu Aristóteles, a grandeza do belo se relaciona, tanto
ressurgimento, A Jovem Alemanha, foram em em Metafísica e Retórica quanto em Poética, com
breve tratados tanto pelos conservadores a ordem, a simetria e o limite. Plotino, em Eneades,
como pelos liberais idealistas.3 defende a ideia de que o belo se manifesta na or-
denação das múltiplas partes do ser em unidade
Wellek registra claramente que na Alemanha, no
harmônica.
século 18, a crítica à obra de arte passou a ser enca-
rada como estética e como uma espécie de ciência Sendo estabelecida ainda na Antiguidade a relação
da literatura, registrando o caráter formal ou a his- da arte com o belo, não é de estranhar que a pri-
toriografia da arte e da literatura. A crítica tornou- meira teorização da produção artística date desse
se, assim, um instrumento metodológico formal e período. A mais antiga definição da arte na filosofia
historiográfico. A crítica foi conceituada e classifi- ocidental foi identificada como mimésis, isto é, imi-
cada a partir de predicados e, na literatura, o predi- tação. Tal concepção de imitação artística se dá
cativo que se estabeleceu foi a crítica estética e pela reprodução total ou parcial da aparência do
suas respectivas variações formalistas em torno de objeto construído pelo artífice ou da própria natu-
uma técnica que articula forma e conteúdo até reza. A mimésis é a teoria mais discutida no Ociden-
mesmo nas chamadas literaturas engajadas. te e permeia praticamente todas as questões refe-
rentes à arte. O valor da arte deriva, então, do valor
do que é imitado. Ao artista é reservado o mérito
A crítica como estética
de escolha oportuna do objeto imitado; a imitação,
A estética surgiu no século 18 com a finalidade de porém, é passiva, ou seja, deve reproduzir o objeto
examinar a dimensão empírica das sensações des- com suas características próprias.
prezada pelo racionalismo, que exaltava o conhe-
Na Idade Média, a filosofia da arte não foi matéria
cimento teórico em detrimento do conhecimen-
de muito destaque e seguiu quase integralmente
to empírico. Aistesis, do grego, é a faculdade
as teorias de Platão e Aristóteles, acrescentando
perceptiva que se dá através dos sentidos. O ter-
apenas o caráter divino do belo, cujos requisitos
mo estética foi empregado pela primeira vez por
são a integridade ou unidade, a proporção ou har-
Alexander Baumgarten (1714-1762) com o sentido
monia e a clareza ou luminosidade.
de ciência da criação artística, ciência do belo ou
filosofia da arte. Segundo o autor, a estética é o co- A estética, como hoje entende a filosofia, só veio,
nhecimento do saber sensível, é a “ciência do pen- contudo, a se estabelecer conceitualmente com
sar belo ou correto”, que tem sua razão de ser no Kant, e, segundo ele, o prazer estético provocado
perfeito conhecimento da e pela sensibilidade. no homem pela obra de arte não está contido na

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obra, mas na sensibilidade humana. Hegel foi ou- A primeira questão da estética gira em torno da
tro expositor da estética na Modernidade; em sua determinação sobre “o que é o belo?” e “como ele
opinião, o objeto da estética era o belo artístico, se manifesta em suas relações com a natureza e a
criado pelo homem, e não o natural, criado pela criação artística?”; a segunda diz respeito à carac-
natureza; assim, entende-se que o objetivo final da terização das formas artísticas particulares, ou
arte deverá ser o de revelar a verdade. Como seja, das obras; trata, pois, da classificação das
pode, porém, a arte revelar a verdade? A essência obras nos aspectos de matéria e forma que se des-
da filosofia estética propõe que o valor, o significa- dobram na análise de seu conteúdo e do gênero
do da arte, será proporcional ao grau de adequa- que ela constitui; a terceira corresponde à orde-
ção entre a ideia e a forma, e tal proporção será o nação sistemática das obras numa espécie de ca-
paradigma pelo qual se distinguirá e classificará a talogação, levando em consideração a paridade
arte. Sendo assim, cronológica e estilística.

A estética deve, pois, ocupar-se, primeiro, da O belo, em sua ideia, consiste na perfeita ade-
ideia do belo artístico como ideal e de suas rela- quação da ideia e da forma, e a ideia, quando rea-
ções com a natureza e a criação artística. Se- lizada conforme seu conceito, constitui o ideal.
gundo, da diferenciação do conceito na suces- Ora, se a ideia, sendo concreta, contém a forma
são das formas artísticas particulares e, de sua realização, a imperfeição da forma deve
terceiro, do processo de realização sensível resultar da imperfeição da própria ideia. Quando
dessas formas e da constituição do sistema a ideia é abstrata, a forma que reveste é exterior
que a todas compreende.5 ao seu conteúdo, não está predeterminada em

Eduardo Coimbra
Passos Silenciosos, 1994
Foto Vicente de Mello
Fonte: Eduardo Coimbra.
Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2004

COLABORAÇÕES | LEANDRO GAMA JUNQUEIRA 129


seu conceito. A ideia e sua forma sensível devem com vários teóricos, tais como Valéry, Denwey e
corresponder-se de um modo que “correspon- Pareyson; este último estudou a formação da
da à verdade” e a obra de arte será tanto mais obra de arte e delineou, em sua teoria, os caracte-
perfeita quanto mais profunda for a verdade a res da construção artística:
que corresponderem seu conteúdo e sua forma.
Fazer inventando ao mesmo tempo o modo de
A verdade da forma deve ser uma determinação
fazer; considerar a realização efetiva como crité-
da verdade do conteúdo ou, como diz Hegel, “a
rio para si mesma; produzir a obra inventando-lhe
ideia deve ser uma totalidade concreta que tem
a regra individual; fazer coincidir a invenção com
em si mesma o princípio de sua particularização
a produção; a ideação com a realização, a con-
e de seu modo de manifestação”.6
cepção com a execução; operar de modo que a
Seguindo a esteira da relação da arte com o belo, o obra de arte seja ao mesmo tempo a lei e o resul-
Romantismo (meado do século 18 e quase todo o tado da própria formação: eis muitas expressões
século 19) cunhou o conceito de arte como cria- equivalentes para designar o processo formativo
ção, que foi valorizado plenamente por Schelling. da arte e para indicar a coincidência de tentativa e
Nesse sentido, a arte não é a reprodução das coi- organização no processo artístico.9
sas, mas a produção de algo inteiramente novo,
Pareyson identifica a produção artística com sua
portanto, nada tem com a imitação, mas com a
respectiva técnica como característica da cons-
criação. O Romantismo difundiu a noção do gênio
trução, assim como a distinção radical entre técni-
criador elevando sobremodo a intervenção hu-
ca e produção caracteriza a concepção de arte
mana e, portanto, subjetiva, na produção artística.
como criação. A arte abstrata, mais do que as ou-
Outro conceito de arte é o de produção. Essa ideia tras, assinala radicalmente a identidade entre téc-
combate as teorias de que a arte seria pura criativi- nica e produção.
dade ou pura receptividade (imitação), mas assina-
A noção de belo que prevaleceu na Modernidade
la o encontro de natureza e homem. Tal é a essên-
é a de perfeita adequação entre ideia e forma, e é
cia do conceito de arte formulado por Kant, “que
dessa noção que deriva a verdade da obra. A ade-
concebeu a atividade estética como uma forma de
quação entre ideia e forma gerou o conceito de
juízo refletor, isto é, uma forma daquela faculdade
símbolo que permanece desde os primórdios das
que faz ver à subordinação das leis naturais à liber-
teorias artísticas. A noção de símbolo permeia a
dade humana ou o finalismo da natureza em rela-
questão da arte no que diz respeito tanto à gênese
ção ao homem”.7 A arte teria, então, caráter nem
da obra quanto a suas relações com o real.
imitativo nem criativo, mas construtivo através do
jogo, como atividade liberal e não mercenária; a Simbolicamente entendida, a relação da obra de
arte é “um simples jogo, isto é, uma ocupação de arte com o real se dá num certo grau de semelhan-
per si agradável que não necessita de outro objeti- ça e conformidade, e é dessa relação que surge a
vo”.8 Segundo Kant, estética é o juízo sobre a arte e verdade da arte. A obra de arte não é o real, mas,
sobre o belo; ele chama de estética transcendental, do ponto de vista linguístico, um significante que
em Crítica da razão pura, a doutrina das formas a aponta para um significado; daí o conceito de ale-
priori do conhecimento sensível. goria. Alegoria

O conceito de arte como construção domina o do latim allegorìa, derivado do grego, allégoría,
campo na estética contemporânea, contando que é formado de állos, na acepção de outro,

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mais o radical do verbo grego agoreú, que signi- A alegoria mantém o conceito de um lado e a ima-
fica ‘falar numa assembleia, falar em público, dis- gem de outro e estabelece entre ambos correla-
correr oralmente em público’, mais ‘-ia’, sufixo ção semântica da qual eclode a verdade da obra
formador de substantivo abstrato; significa dizer de arte. Alegoria e símbolo se referem a algo que
outra coisa além do sentido literal das palavras; o contém a semelhança de outro, isto é, da realida-
termo allegoría veio substituir, entre os gregos de. Esse conter a semelhança de outro recebeu
da era cristã, na época de Plutarco (46-120), o an- dos escolásticos medievais o nome e a formula-
tigo termo hupónoia, que queria dizer ‘significa- ção teórico-conceitual de representação.
ção encoberta’.10
Ockham distinguia três significações fundamen-
Alegoria aponta para uma instrumentalidade lin- tais. “Representar”, dizia, “tem vários sentidos.
guística que concebe a verdade na forma de ima- Em primeiro lugar, entende-se por este termo
gens poéticas de modo que se esconda sob a su- aquilo por meio de que se conhece algo e nesse
perfície a essência do sentido: “alegórico é o que sentido o conhecimento é representativo e re-
se esconde sob o manto destas fábulas, é uma ver- presentar significa ser aquilo por meio de que se
dade oculta sob bela mentira”.11 A alegoria é consi- conhece alguma coisa. Em segundo lugar, enten-
derada modo de expressão ou interpretação nos de-se por representar o fato de se conhecer al-
âmbitos artístico e intelectual, de modo que pen- guma coisa, conhecida a qual conhece-se outra
samentos, ideias e qualidades são representados coisa; e neste sentido a imagem, no ato da lem-
de forma figurada; os dicionários geralmente são brança. Em terceiro lugar entende-se por repre-
correlatos quanto ao significado e registram ale- sentar causar o conhecimento, da maneira
goria como o fenômeno linguístico como o objeto causa conhecimento” (Quodl.,
em que cada elemento funciona como disfarce IV, q.3). No primeiro sentido a representação é a
dos elementos da ideia representada (...) por ideia no sentido mais geral; no segundo sentido é
meio do qual se pretendia descobrir ideias ou a imagem; no terceiro, é o próprio objeto.13
concepções filosóficas embutidas figurativa- Aplicando esses conceitos à arte, poderíamos di-
mente nas narrativas mitológicas (...) método de zer que a arte é símbolo, alegoria e, por fim, repre-
interpretação das sagradas escrituras usada por sentação do real. A arte é um modo de represen-
teólogos cristãos antigos e medievais, em que se tar a realidade, contendo em si a semelhança e a
almejava a descoberta de significações morais,
conformidade com o real. Ela não é o real, mas
doutrinárias, normativas etc., ocultas sob o texto
sua representação sensível em linguagem abstra-
literal (...) texto filosófico escrito de maneira sim-
ta, ou seja, simbólica e alegórica. A representação,
bólica, utilizando-se de imagens e narrativas com
apesar de seu fulgor na Modernidade, remonta à
intuito de apresentar tropologicamente ideias e
teoria da Antiguidade que entendia a arte como
concepções intelectuais (...) simbolismo que
mimésis.
abrange o conjunto de uma obra, num processo
em que o acordo entre os elementos do plano O conceito de representação foi muito utilizado
concreto e aqueles do plano abstrato se dá tra- na Modernidade e no que diz respeito à experiên-
ço a traço (...) obra que utiliza os recursos da figu- cia cognitiva do sujeito sobre um objeto cognos-
ração ou simbolismo alegórico (...) sequência lo- cível. A razão estabelece uma relação de determi-
gicamente ordenada de metáforas que nação do sujeito sobre o objeto e a consequente
exprimem ideias diferentes das enunciadas.12 necessidade de representar racionalmente essa

COLABORAÇÕES | LEANDRO GAMA JUNQUEIRA 131


Eduardo Coimbra
Asteroide #3, 1999
Foto André Galhardo
Fonte: Eduardo Coimbra.
Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2004

experiência(ção), operacionalizando os produtos tes e na metodologia científica de Francis Bacon, e


da razão, a saber: o raciocínio, o juízo e o conceito, tem como base a crença de que
de modo que os objetos sejam acomodados ao
Os fenômenos complexos podiam ser sempre
método cognitivo. O método perde sua essência
entendidos desde que os reduzisse a seus
originária de sentido – meta-hodós, caminho para,
componentes básicos e se investigasse os me-
entre – e passa a uma metodologia interventiva
que, antes que os objetos sejam dados, já possui as canismos através dos quais esses componen-
regras de intelegibilidade e os conceitos a priori tes interagem. Essa atitude, conhecida como
pelos quais se deve apreender e compreender. As reducionismo, ficou tão profundamente arrai-
condições de possibilidade dos objetos da expe- gada em nossa cultura, que tem sido frequen-
riência são prepostos pelos conceitos puros ou a temente identificada com o método científi-
priori, como categorias cognitivas do entendi- co. As outras ciências aceitaram os pontos de
mento, e pelas formas da sensibilidade. A base da vista mecanicista e reducionista da física clás-
cultura funda-se em visão de mundo e sistema de sica como a descrição correta da realidade,
valores formulados em suas linhas essenciais nos adotando-se como modelos para suas pró-
séculos 16, 17, 18 e 19, que têm de ser cuidadosa- prias teorias. Os psicólogos, sociólogos e eco-
mente reexaminados. O viés crítico estabelecido nomistas, ao tentarem ser científicos, sempre
foi o mecanicismo, apoiado nas teorias matemáti- se voltam naturalmente para os conceitos bá-
cas de Issac Newton, na filosofia de René Descar- sicos da física newtoniana.14

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O método científico em questão matematiza as estabelece o justo valor do que merece a esti-
formas de conhecimento humano fazendo com ma e o reconhecimento do sujeito.15
que a matematização e o racionalismo predomi-
Krinein perde seu valor originário e é transforma-
nem sobre a experiência do real. O observado é
do em metodologia crítica. É sob esses funda-
uma categoria como forma a priori capaz de cons-
mentos que os séculos 18, 19 e 20 se embasam
tituir os objetos do conhecimento. O real é expli-
para produzir as diversas correntes críticas da Mo-
cado por meio de fórmulas e formulações mate-
dernidade que vão mensurar o valor de toda e
máticas cientificamente construídas, os fatos se
qualquer coisa que se apresente diante de si, redu-
identificam com os sistemas teóricos prepostos e
zindo tudo a objeto, ou seja, aquilo que pode ser
estrategicamente produzidos e preparados para
medido, calculado e avaliado, enfim, analisado
serem experimentados. O todo é, então, atomiza-
pelo sujeito. Daí o objetivo principal em desven-
do e analisado por essa metodologia que já sabe o dar, e não desvelar, o sentido oculto na
que vai encontrar porque já sabe “o que quer en- estrutura(ção) da coisa. Dominando princípio de
contrar”. Nesse sentido, criticar é analisar, ou seja, articulação de sua estrutura desvenda-se o misté-
separar o todo em suas partes ou componentes, rio de seu funcionamento. Opondo a res cogitans
dissecando-os e decompondo-os em seus ele- à res extensa, o sujeito ao objeto, temos um ‘entre’
mentos constitutivos a fim de examinar minucio- ambos, esse ‘entre’ dinamiza sujeito e objeto; ele é,
samente e, por fim, descrevê-los e classificá-los. ao mesmo tempo o elo e o impulso de separação
Essa análise, desdobrada sobre a forma e o con- que sobrepõe um ao outro de modo que o objeto
teúdo, constitui verdadeira metodologia capaz de responda às determinações do sujeito, cujo alvo é
extrair a verdade das coisas e do próprio real, e, a estrutura do objeto, ratificando a equação: des-
além disso, é capaz de transformar essa verdade, montar = conhecer. O ‘entre’, que deveria ser o es-
reificada, em conceitos passiveis de serem trans- paço de diálogo não entre sujeito e objeto, mas
mitidos racional e cognoscivelmente, de acordo como diálogo, como doação peculiar do real, tor-
com as categorias de seu fundamento. Nesse sen- nou-se metodologia crítica intervencionista e ins-
tido, pensar é tomado como a capacidade de ra- trumental que existe a priori e independente do
ciocinar, isto é, calcular, medir e avaliar criteriosa- suposto objeto da análise.
mente e de modo correto e acertado,
determinando a verdade e a validade do real. Pen- Foi seguindo essa orientação metodológica que
sar é julgar e sempre pensar um objeto. “explodiu” nos séculos 19 e 20, na teoria literária,
uma gama variadíssima de correntes críticas. Nas
Krinein e cernere traduzem o ato de joeirar e primeiras décadas do século 19, com o Romantis-
peneirar, de eliminar as impurezas, de realizar a mo, surgiu o método biográfico, que procurava
catarse intelectualmente compatibilizada com explicar a obra e seus elementos a partir da biogra-
a exigência matemática de vigor racional e de fia do autor; a obra seria fortemente influenciada
rigor conceptual. Por isso e para isso é que as por sua vida. Seguindo-se à crítica biográfica, sur-
coisas captadas e capturadas pela mensuração ge a determinista, firmada no positivismo de Au-
cogitativa são cogitadas e coagidas a se com- gusto Comte, de fundo naturalista, que procurava
parecerem disponíveis e submissas ao mando explicar os indícios psicológicos por meio da críti-
e comando da cogitatio ponderativa. Somente ca científica, buscando suas causas em três fato-
é verdadeiro o objeto que se deduz do acerto e res determinantes: a raça, o meio e o momento
do concerto com o projeto que previamente histórico. No final do século 19, surge perspectiva

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oposta à determinista, centrada na subjetividade das pela organização do conjunto e pelas leis que
do leitor, a quem cabia a transmissão de suas im- regem sua estruturação. A finalidade da crítica es-
pressões resultantes do contato com as obras, truturalista era criar uma gramática geral da narra-
trata-se da crítica impressionista. tiva, extremamente útil à análise do discurso literá-
rio, dos gêneros e das funções da linguagem.
No início do século 20, surgem o Círculo Linguísti-
co de Moscou e a Associação para o Estudo da Fazendo a relação entre obra literária e fatores e
Linguagem Poética, que propunham investigação condicionamentos sociais, a crítica sociológica vê
literária fixada na própria obra, recusando os ele- a obra como uma espécie de reprodução ou refle-
mentos extratextuais, utilizando método descriti- xo ideológico da sociedade. A semiótica literária
vo e morfológico, procurando, no próprio texto, se debruça sobre os discursos como instâncias
sua literariedade; trata-se da crítica formalista ou fundadoras do processo literário, bem como so-
do formalismo russo, como é muito conhecido. O bre a estrutura imaginária da ficção. A psicanálise
objetivo principal era analisar os princípios linguís- literária se apoia nas teorias psicanalíticas e procu-
ticos de estruturação da obra e a decomposição ra as delimitações dos campos psíquicos imanen-
das unidades temáticas. tes tanto no processo de composição da obra
quanto na composição psicológica dos persona-
Outra tendência crítica, sustentada sobre bases
gens e suas relações intradiegéticas. As eclosões
psicologistas e linguísticas, é a estilística, que con-
psicológicas da obra são, de certo modo, um refle-
sidera a obra uma estrutura orgânica e bem enca-
xo das complexidades psíquicas dos indivíduos. A
deada semanticamente. O New Criticism ou Nova
estética da recepção se define como uma pesqui-
Crítica, de origem norte-americana, assinala a pas-
sa sobre a recepção da literatura e seus efeitos no
sagem literária para o âmbito universitário, carac-
leitor e, de certo modo, como um meio de supera-
terizando a crítica científica ou metodológica e
ção do marxismo e do formalismo. Além dessas
epistemológica do século 20. A Nova Crítica rom-
críticas, podemos citar, a título de referência, a fe-
pe com a hermenêutica, com a ontologia, com a fi-
nomenologia da arte, o desconstrucionismo, os
lologia e com a leitura do texto que leva em consi-
estudos culturais, o realismo crítico, a teoria críti-
deração a “intenção do autor” ou se interessa por
ca ou escola de Frankfurt, a crítica feminista, os es-
seu perfil biográfico, propondo uma análise dos
tudos neocoloniais e pós-coloniais, os estudos de
aspectos imanentes do texto. A análise é levada a
gênero e etnia, o pós-estruturalismo, a pragmáti-
seus extremos metodológicos e epistemológicos
ca, a teoria empírica, a teoria dos polissistemas, a
visando à descrição dos significados denotativos
poética linguística, a estética e os gêneros discur-
e conotativos, os sintagmas, ambiguidades, metá-
sivos e textuais, a hermenêutica e a poética. Essas
foras, tensões de vocábulos, símbolos e proces-
são algumas das correntes críticas mais conheci-
sos retóricos da composição dos gêneros e de-
das; há as que já foram superadas, e existem mui-
mais componentes da estrutura textual.
tas outras em operação.
O estruturalismo traz em si a herança do formalis-
mo russo aliada à influência dos estudos linguísti-
A crítica como hermenêutica-poética
cos e tem como fundamento a visão da obra
ou poética-hermenêutica
como estrutura, ou seja, um sistema de relações
que forma um todo solidário cujas partes são im- Geralmente as correntes críticas da arte se divi-
bricadas, dependentes e funcionais, determina- dem em três blocos ou grupos: um centralizado

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na atividade do artista, outro na materialidade da poética-hermenêutica, doravante HP/PH; essa ar-
obra ou no contexto histórico. Os três deixam im- ticulação é importante para diferenciar tais pro-
pensado aquilo de onde e através do que artista e postas originárias da hermenêutica filosófica, que
obra surgem, a saber, deixam impensada a essên- é apenas uma síntese das correntes artísticas an-
cia da própria arte. É comum as correntes críticas teriores.
separarem o sentido do suporte da obra, de
Tanto a hermenêutica quanto a poética se opõem
modo que a obra seja identificada como alegoria e
à epistemologia e substituem a análise descritiva
se torne símbolo que representa o real. Embora a
pela interpretação, partindo do próprio texto
hermenêutica e a poética sejam relacionadas
rumo à reflexão sobre a essência humana.
como correntes da crítica literária, elas diferem
das demais em propósito e aplicação. Ambas têm Para a HP/PH quanto menos a obra for documen-
suas atividades iniciadas ainda na Antiguidade to do meio, da raça e do momento histórico,
clássica grega e persistem até hoje; o termo her- como defendiam os positivistas, ou instrumento
menêutica tem sua origem ligada ao deus Hermes, didático de persuasão de verdades regidas por
porta-voz dos destinos dos mortais designados cronologias, doutrinas ou ideologias, será mais li-
pelos deuses. O questionamento em torno da terária. Uma postura estritamente epistemológi-
imagem de Hermes, bem como todo o sentido ca privilegia dimensão humana única; na HP/PH,
que ele manifesta como linguagem, deu origem à pelo contrário, o crítico indaga na obra o sentido
palavra hermenêutica, que significa interpretação da humanidade do homem.
ou vigor manifestante do real: “Hermeneuein, in-
A HP/PH assinala a irrupção de uma nova concep-
terpretar, não diz conduzir alguma coisa para a cla-
ção de poesia e pensamento que escapam à racio-
ridade da razão e o discurso da língua, mas recon-
nalização técnica em suas realizações modernas.
duzi-la a seu lugar de origem no mistério da
Quando HP/PH se volta para a ‘questão’ do acon-
linguagem”.16
tecer poético abre-se também o espaço para se
O vocábulo poética ficou muito mais conhecido questionar o sentido da vida e do homem. A con-
quando deu título a uma das mais famosas obras templação do acontecer poético como questão
do filósofo grego da Antiguidade Aristóteles. En- manifesta a força poética da obra, que continua
tretanto, seu uso era muito anterior, designando desafiando nossa interpretação, diferente da con-
um dos sentido do verbo “fazer” em grego. A pala- cepção clássica de literariedade. Os intercursos
vra poética está relacionada desde o início de seu entre pensamento e poesia fazem com que a
uso com o fazer artístico. Muitas vezes foi ligada à HP/PH se radique como “hermenêutica existen-
técnica de composição das obras, mas, em seu cial” que problematiza a própria vida, e seu interes-
sentido originário, refere-se à manifestação do se é pensar a relação verdade/poesia. O que mani-
real como linguagem. A relação da poética com a festa a palavra-poética é o apelo, mas não
hermenêutica é profunda, pois, se poética é o qualquer apelo. Apelo aqui é entendido como um
operar da linguagem enquanto arte, a hermenêu- ‘inter-esse’. “Inter-esse quer dizer: ser sob, entre e
tica cuida do desvelamento da linguagem como no meio das coisas; estar numa coisa de permeio e
arte. Poética passou a designar o estudo da obra junto dela assim persistir.”17 Assim, a fala da HP/PH
de arte como manifestação da linguagem. Falar se manifesta à medida que habita, ou seja, à medi-
em poética e hermenêutica é quase tautologia, da que se demora junto à ‘coisa’. Quanto ao poeta
por isso propusemos hermenêutica-poética ou e sua atividade, é preciso entender que ele habita a

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linguagem, mas nesse habitar também há um cui- como questão e, abrindo-se, faz surgir o caminho
dar. Cuidar da linguagem é pensar. Esse cuidado para si mesma, isto é, seu próprio ‘método inter-
não é algo que o homem propõe, ele só acontece pretativo’. O crítico precisa estar de “permeio”
quanto o homem ‘co-responde’ ao apelo, quando nesse caminho para que chegue ao e enxergue o
surge um ‘inter-esse’ e ele se move entre a coisa e acontecimento da verdade proporcionado por
junto dela persiste, habita. Poesia e pensamento essa abertura da obra. O caminho a que nos referi-
se dão na linguagem. Então o homem atende ao mos nasce da própria obra e para ela se volta. O ca-
apelo e principia por pensar a coisa, ele se rende à minho é o entreabrir da obra e do real em senti-
escuta do real, da linguagem. Por esse motivo, a dos. O vigor do caminho está justamente no
obra de arte não é uma “criação” humana, mas ‘entre-abrir’ que, dinamizando fala e escuta da lin-
uma fala que manifesta o real; nesse sentido en- guagem, opera como uma HP/PH.
tendemos que “a linguagem fala”, e “o homem fala A HP/PH põe a tensão palavra/pensamento em
apenas e somente à medida que co-responde à questão, e o vigor da linguagem se manifesta mais
linguagem, à medida que escuta e pertence ao abertamente ao ser (arte/real) do que à razão. A
apelo da linguagem”.18 razão estabelece uma classificação conceitual das
Por muito tempo a crítica literária tem-se manifes- coisas; então, o real passa a ser algo, além de racio-
tado como produto de um exercício profundo de nal, racionalizável. O conceito se interpõe entre o
raciocínio; desde então, empreende-se um esfor- homem e o real como concepção e enunciação
ço para conceituar, segmentar, classificar e orde- do real, e o sentido surge como uma representa-
nar as obras literárias em períodos ou estilos de ção do real. Na HP/PH, a linguagem assume dimen-
modo que o perfil do pensamento do autor e a es- são pensante real-em-si e não mais como referen-
trutura da obra tenham contornos bem definidos cial de representação entre significante e
e possam ser decodificados com precisão e inseri- significado, de modo que haja livre encontro de
dos num momento histórico que corresponda à homem e real. O livre encontro não se refere a um
cronologia e à ideologia da obra. O todo da obra li- aspecto sensorial, mas de um acontecer no ho-
terária tem sido submetido desde sempre a crite- mem que se dá enquanto a coisa acontece como
riosa análise metodológica e, a partir desse pro- eclosão de mundo e sentido, ou seja, o livre en-
cesso, foram estabelecidos seus princípios de contro se dá à medida que a arte se afasta de re-
interpretação sob a égide historiográfica, biográ- presentação e deixa o real acontecer como lin-
fica e formal, de modo que ela seja delineada defi- guagem. A arte passa a ser a realidade se
manifestando como linguagem e não apenas por
nitivamente. Assim, a obra pode ser exegetica-
meio dela. Assim, a arte se torna ‘questão’, e a ten-
mente “interpretada”, de modo que o que vier
são, poiesis, e o pensamento se revela superando
depois não possua novidade alguma e seja apenas
a relação sujeito/objeto, matéria/forma. A arte é o
uma “resenha literária” ou assinale o surgimento
lugar privilegiado do acontecimento do real, por
de novas terminologias para antigos significados,
isso a HP/PH nos remete sempre à poesia como
engrossando o caldo do viés crítico estabelecido.
tensão originária da manifestação da verdade/rea-
Entretanto, a questão essencial que deve mover a
lidade como velamento e desvelamento.
crítica é “(...) o que na obra está em obra: a abertu-
ra do ente em seu ser: o acontecimento da verda- Enquanto aprendizagem, a HP/PH não é um
de”.19 Tal questão, como toda questão, possui seu amontoado de conhecimentos. Nela não importa
caminho próprio, ou seja, a obra de arte se abre a quantidade de coisas que se conhece, mas a in-

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tensidade da ‘experienciação’ da aprendizagem. a linguagem viva, livre de toda e qualquer instru-
Nesse sentido, a HP/PH revela que a tarefa do pen- mentalização; portanto, poética como uma her-
samento não é racionalizar o real, mas pô-lo em menêutica da vida.
questão e como questão.
O método não deve instituir ou determinar o falar
Toda leitura originária de uma obra de arte deve da obra; em outras palavras, a obra não deve ter
levar em consideração, inicialmente, o acontecer sua fala acondicionada ao método; não é ele que
da obra como arte. As questões da obra poética deve fazer a obra falar. Antes, o método deve advir
devem ser vistas como questões da arte. A ques- da escuta como diálogo. A escuta é mais impor-
tão da arte é a questão da verdade como manifes- tante do que qualquer fala prévia. A pretensão de
tação do real eclodindo como linguagem. O que fazer a obra falar de acordo com uma técnica in-
distingue obra de arte das demais obras é o fato terpretativa institui epistemologia metodológica,
de que, na obra de arte, a verdade está posta em constituindo um conjunto de conhecimentos
obra. A verdade de que aqui se fala não pode ser que têm por objeto a aplicação de técnicas cientí-
entendida se levada no sentido que a modernida- ficas, visando à explicação da ocorrência do fenô-
de lhe atribui; antes se deve fazer um retrocesso meno poético-literário; assinala, ainda, analogica-
ao modo como era compreendia nos primórdios mente, certos condicionamentos, sejam eles
Eduardo Coimbra
da história do pensamento, isto é, antes da consti- técnicos, históricos, sociais, lógico-matemáticos Istmo, 1992
ou linguísticos, sistematizando suas relações, es- Foto André Galhardo
tuição do sistema metafísico. Não se trata tam- Fonte: Eduardo Coimbra.
bém de explicação filosófica da poesia nem de clarecendo seus vínculos, e avaliando seus resulta- Rio de Janeiro: Casa da
poematização da filosofia. A HP/PH funda-se en- dos e aplicações. Palavra, 2004

tão no diálogo. O diálogo, originariamente enten-


dido, não instrumentaliza a linguagem; sua atitude
é antes de escuta que de fala e, quando fala, ‘fala-
com’, e não ‘sobre’ e não ‘de’; também não se vale
de técnicas exteriores para analisar o real, ele nem
mesmo o analisa, por meio dele torna-se possível
uma leitura a partir daquilo que o próprio real doa
como questão. No diálogo, a linguagem nos ofere-
ce um método (meta-hodós), um caminho para si
mesma; o diálogo abre esse caminho e, assim, per-
mite que se percorra o caminho indicado. No diá-
logo, “a linguagem fala, o homem só fala à medida
que corresponde à linguagem”. ‘Co-responder’ é
‘responder com’, só responde quem antes ouviu
ou viu algo; responde-se a um apelo, a um aceno, a
uma ‘pro-vocação’, a um desafio, a uma ‘pro-cura’.
A linguagem desafia o homem a conhecê-la, a pe-
netrá-la, a ouvi-la. Só ouvindo a linguagem é que o
homem pode falar e assim estabelecer um diálo-
go. A literatura é, nesse sentido, o acontecer da lin-
guagem como fundação e ampliação de sentido. É

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Experiência e aprendizado da vida, e não concei- buscou equacionar a literatura de modo que o diá-
tos, eclodem na HP/PH. É comum as correntes crí- logo se tornou monólogo, fundando o corolário
ticas separarem o sentido do suporte da obra, de da crítica tradicional. Tal procedimento se estabe-
modo que a obra seja identificada como alegoria e leceu como um conjunto de proposições que deri-
se torne símbolo que representa o real. A visão da va em encadeamento dedutivo de uma asserção
HP/PH não faz coro com tais definições da arte. precedente, produzindo um acréscimo de conhe-
cimento por meio da explicitação (exegese) de as-
A obra de arte possui autotelicamente seu méto-
pectos que, supostamente, se mantêm latentes ou
do interpretativo implícito e imanente em si mes-
obscuros nas obras literárias. Em síntese, o literário
ma. O método interpretativo de uma obra é o ca-
passou a ser julgado e determinado pelo sistema
minho que ela faz para descortinar a realidade em
metafísico-filosófico imanente às correntes críti-
sua fala. A obra é a linguagem do real. É a fala da
cas. É preciso repensar os fundamentos da crítica,
vida, da realidade. Como fala da realidade, a obra
sobretudo na Modernidade.
não se pode dela separar. A fala da realidade não é
uma fala qualquer, mas a realidade se doando A HP/PH assinala a obra literária como mais do que
como linguagem. Toda a poética assinala seu lugar uma produção humana favorecida por uma técni-
de origem na própria obra, de modo que cada ca, indicando o poder inaugural da arte literária.
grande obra literária se estabelece por sua origi- Não é a técnica que produz a obra. A arte é uma re-
nalidade, mesmo ao dialogar, nos planos da “for- quisição do real como linguagem; a técnica aten-
ma” e do “conteúdo”, com outras obras literárias. de a essa requisição. A HP/PH é um apelo da lingua-
gem à libertação da interpretação técnica e
Nesse sentido, em relação à constituição e propó-
formalista da poesia e do pensamento, sobretudo
sitos das correntes críticas, pergunta-se: qual viés
no que se refere ao estudo da crítica. A Tech-
epistemológico de interpretação é capaz de dar
né 20/mímesis,21 que se expõe como força de mani-
conta da complexidade da dinâmica de constru-
festação do fenômeno literário, surge diretamen-
ção das obras de arte? Como a ciência e a técnica
te da obra, e não dos conceitos filosóficos. Isso
impõem e expõem os princípios de criatividade da
possibilita uma releitura de alguns conceitos teó-
obra e qual a validade de seus pressupostos? O
ricos de modo que o sentido advenha da própria
sentido da obra pode expressar-se e, consequen-
obra e não de algum outro elemento exógeno.
temente, ser identificado metodologicamente?
Há alguma outra forma pela qual a mímesis e a
techné possam se dar e que amplie a dinâmica lite- Referências bibliográficas
rária e altere os clássicos conceitos de representa- ABAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo:
ção e identidade fundados na subjetividade? Mestre Jou, 1982.
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação: a ciência, a socieda-
A origem da crítica assinala o encontro e o suposto
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CASTRO, Manuel Antônio de. Poética: permanência e
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atualidade. Tempo Brasileiro, n. 171, Rio de Janeiro, 2007:
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ferença entre obra de arte e filosofia. Antes, um Vozes, 1974.
ramo da filosofia, a metafísica e respectivos prede- HOUAISS. Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa.
cessores, com seus princípios epistemológicos, 2006.

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HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. 2. ed. Pe- 9 Pareyson, 1954: 126.
trópolis: Vozes, 2004.
10 Houaiss, verbete alegoria, com algumas adaptações.
__________. Ensaios e conferências. Tradução de Em- 11 Abbagnano, 1982:.22, verbete alegoria, citando Dan-
manuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Márcia Sá Caval-
te Alighieri
cante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002.
12 Houaiss, verbete alegoria, com algumas adaptações.
_________. A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70,
1977. 13 Abbagnano, 1982: 821, verbete representação.
KANT. Immanuel. Crítica da razão pura. Rio de Janeiro: 14 Capra, 1982: 44.
Editora Nova Cultural, 2005. Coleção Os Pensadores. 15 Souza, 1987: 40.
_________. Crítica da razão prática. Rio de Janeiro: Edito- 16 Leão, 1977: 248.
ra Nova Cultural, 2005. Coleção Os Pensadores.
17 Heidegger, 2002: 113.
_________. Crítica da faculdade de julgar. Rio de Janeiro:
Editora Nova Cultural, 2005. Coleção Os Pensadores. 18 Heidegger, 2004: 26.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aristóteles e as questões da 19 Heidegger, 1977: § 60.


arte. In CASTRO, Manuel Antônio de (org.). A arte em 20 A ação das palavras que se manifesta no poema
questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7Letras, constitui o que os gregos denominavam originariamen-
2005: 107-125. te techné), no sentido de deixar-aparecer algo deste ou
_________. Aprendendo a pensar II. Petrópolis: Vozes, daquele modo em seu desencobrimento e, ao mesmo
1996. tempo, permitir que ele se recolha subitamente em seu
encobrimento. A techné é uma questão nas obras de
_________.Aprendendo a pensar. Petrópolis: Vozes, arte, seja no modo que a linguagem se dá ou como o
1977. sentido se manifesta e a escuta faz-nos apropriarmo-
_________. Os pré-socráticos: Fragmentos, doxografia e nos do que somos; seja na ritualização do mistério da
comentários. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural. 1978. Cole- travessia em que o ser se desvela ou, ainda, como a poie-
ção Os Pensadores. sis se revela no e através do poeta.
PAREYSON, Luigi. Estética: Teoria da Formatividade. Pe- 21 Mímesis, aqui é entendida não no sentido conceitual
trópolis: Vozes, 1993. que lhe atribui a tradição metafísica, mas como um ‘ges-
to de mundo’, em que as coisas eclodem em seu ser-coi-
PLATÃO, O banquete. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
sas, não como ‘coisa-representante’ das ‘coisas-que-são
SOUZA, Ronaldes de Melo e. Teorema kantiano da obje- (coisa-representante e coisas-que-são’ – termos cunha-
tividade. Tempo Brasileiro.v 91. Rio de Janeiro, 1987. dos por nós, o primeiro para nomear tanto o ‘ato de re-
presentar’ o real como ‘o que representa’, o segundo, o
WELLEK, René. Conceitos de crítica. São Paulo: Editora
próprio real, o que é).
Cultrix. 1963.

NOTAS
1 Por ‘kantismo’ entendemos a doutrina gerada a par-
tir da leitura metafísica das obras do filósofo e de seus Leandro Gama Junqueira é professor titular de teoria
seguidores sobre forma filosofemas. da literatura e literatura brasileira na Faculdade de Filo-
sofia Ciências e Letras de Duque de Caxias e leciona tam-
2 Wellek, René. 1963: 30.
bém nas redes estadual e municipal do Rio de Janeiro,
3 Id., ibid.: 36-38. além de em outras instituições do ensino médio; mestre
4 Corbisier, 1974: 44. em literatura brasileira e poética, e doutorando em ciên-
cia da literatura (poética), ambos os cursos pela UFRJ, e
5 Id., ibid., 50. pesquisador de poéticas e estudos literários. Publicou
6 Idem. Literatura: magia da linguagem ou linguagem da magia
na revista Letra, da UFRJ, e A terceira margem do cami-
7 Abbagnano, 1982: 351, verbete estética.
nho em Drummond, na revista do Programa de Pós-
8 Kant, 2005: § 43. Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ.

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