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TEORIA DA L ITERATURA:
ANATOMIA DE UM CONCEITO
ATRAVÉS DA LEITURA DE SEUS GRANDES MANUAIS
Abril, 2006
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TEORIA DA L ITERATURA:
ANATOMIA DE UM CONCEITO
ATRAVÉS DA LEITURA DE SEUS GRANDES MANUAIS
Niterói
Instituto de Letras da UFF
Abril de 2006
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TEORIA DA L ITERATURA:
ANATOMIA DE UM CONCEITO
ATRAVÉS DA LEITURA DE SEUS GRANDES MANUAIS
_____________________________________________
Prof. Dr. Roberto Acízelo Quelha de Souza - Orientador
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________________
Prof. Dr. Fernando Décio Muniz
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________________
Prof. Dr. Gustavo Bernardo Galvão Krause
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
_____________________________________________
Prof. Dr. José Luís Jobim de Sales Fonseca
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________________
Prof. Dr. Maria Conceição Monteiro
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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SUMÁRIO
RESUMO ............................................................................................................................................. 06
ABSTRACT ........................................................................................................................................ 07
1 - VESTÍGIOS DE UMA CRISE ...................................................................................................... 08
1.1 - UMA DISCIPLINA , MUITAS PERSPECTIVAS ............................................................................. 08
1.1.1 -“O que é Teoria Literária?”........................................................................................... 09
1.1.2 - “Para que serve a Teoria Literária?”............................................................................. 14
1.1.3 - “Como funciona nas universidades a Teoria Literária?”.............................................. 17
1.2 - SISTEMATIZANDO O PROBLEMA............................................................................................. 21
1.3 - O S ESTUDOS LITERÁRIOS ANTES DA TEORIA DA LITERATURA............................................... 28
1.4 - A ASCENSÃO DA TEORIA DA LITERATURA............................................................................. 37
1.5 - O S MANUAIS DE TEORIA DA LITERATURA ............................................................................. 40
2 - OS PRECURSORES....................................................................................................................... 44
2.1 - O ENCONTRO ENTRE O FORMALISMO ESLAVO E O NEW CRITICISM ........................................ 45
2.1.1 - O conceito de Literatura para Wellek & Warren ......................................................... 46
2.1.2 - Os limites dos Estudos Literários ................................................................................ 56
2.1.3 - Teoria, Crítica, História ............................................................................................... 68
2.1.4 - O capítulo esquecido ................................................................................................... 74
2.1.5 - Os pontos-chave do manual de Wellek & Warren ...................................................... 77
2.1.5.1 - O conceito de Literatura .................................................................................... 78
2.1.5.2 - A compreensão dos objetivos dos Estudos Literários ....................................... 79
2.1.5.3 - O que é a Teoria da Literatura? ......................................................................... 80
2.2 - O MANUAL DA CIÊNCIA DA LITERATURA ............................................................................. 81
2.2.1 - O conceito de Literatura em Kayser ............................................................................ 82
2.2.2 - Os objetivos do estudo da Literatura ........................................................................... 84
2.2.3 - O projeto teórico de Kayser ......................................................................................... 86
3 - ANOS 60 E 70: CONSTRUÇÃO OU RUÍNA? ............................................................................ 90
3.1 - O MANUAL DE A GUIAR E SILVA ............................................................................................ 96
3.1.1 - A relatividade do conceito de Literatura ..................................................................... 96
3.1.2 - A Teoria da Literatura e os Estudos Literários ............................................................ 100
3.2 - TEORIA, LATO SENSU ............................................................................................................. 103
4 - A ERA DAS CRÍTICAS ................................................................................................................ 111
4.1 - “LITERATURA”, NA FALTA DE UM TERMO MAIS ADEQUADO ................................................. 113
4.2 - NAS MALHAS DA IDEOLOGIA ................................................................................................. 118
4.3 - UMA TEORIA DOS DISCURSOS ................................................................................................ 122
5 - A ERA DAS REVISÕES ............................................................................................................... 130
5.1 - UMA TEORIA DE MUITOS OBJETOS ......................................................................................... 142
5.1.1 - Diversidade e complexidade ........................................................................................ 143
5.1.2 - A culturalização dos Estudos Literários ..................................................................... 145
5.1.3 - Uma teoria sem objeto? ............................................................................................... 146
5.2 - O QUE OS ESTUDOS LITERÁRIOS AINDA TERIAM PARA OFERECER ......................................... 151
5.2.1 - Do conceito de Literatura ........................................................................................... 151
5.2.2 - Os estudos literários e as armadilhas das dicotomias .................................................. 153
5.2.3 - Uma disciplina ambivalente ....................................................................................... 158
6 - OS MANUAIS DE TEORIA DA LITERATURA NO BRASIL .................................................. 163
6.1 - TEORIAS OITOCENTISTAS SOBREVIVENTES ............................................................................ 163
6.2 - A DÉCADA DOS MANUAIS ...................................................................................................... 167
6.3 - O RENASCIMENTO ................................................................................................................. 175
7 - OS TRÊS DESAFIOS DA REFLEXÃO TEÓRICA ..................................................................... 179
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................ 190
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RESUMO
ABSTRACT
Starting from a critical reading that aimed to understand the concepts within
Literature, Literary Studies and Literary Theory in the main handbooks, a summary of
both positive and negative aspects of the discipline was elaborated in an attempt to
project the conditions to the development of a theoretical thinking concerning Literature
in a historical moment that is marked by a deep relativism in Humanities.
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Há cerca de vinte anos atrás, a revista New Literary History realizou uma
enquete com um grupo de acadêmicos europeus e norte-americanos. Três foram as
questões formuladas: (i) Quais os objetivos e funções da Teoria 2 Literária no presente?
(ii) Quais conseqüências práticas teve a Teoria Literária em sua atividade de ensino da
Literatura e em seu trabalho de produção crítica? (iii) Quais seriam as deficiências, se
existentes, da Teoria Literária no ensino da pós-graduação? As perguntas foram
respondidas por mais de trinta scholars3 , entre eles alguns grandes nomes dos Estudos
Literários 4 contemporâneos, tais como Terry Eagleton, Hans Ulrich Gumbrecht,
Wolfgang Iser, Hans Robert Jauss, Adrian Marino e George Steiner.
Uma das primeiras impressões que se pode ter com a leitura das respostas ao
questionário é a amplitude de compreensão que o termo Literary Theory suscitava em
cada um dos professores entrevistados. Essa imprecisão semântica — fruto, por um
lado, de uma série de usos históricos do termo “teoria”, e, por outro lado, da própria
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“Quando o estudo da Literatura está sob ataque — como ocorre hoje em dia — torna-se mais do que
nunca necessário um tipo de discurso que tanto torne objetivo quanto justifique este esforço acadêmico
específico” [tradução minha].
2
Embora alguns autores estabeleçam diferenças conceituais entre "Teoria da Literatura" e "Teoria
Literária", não farei distinção entre os dois termos neste trabalho, por entender que, mesmo nos
específicos contextos argumentativos em que se postula a diferenciação, a alternância dos termos não
remete a disciplinas distintas, mas a diferentes modos de se entender a reflexão teórica sobre a Literatura.
3
Cinco estudantes de pós-graduação também responderam ao questionário. Como acredito que os pontos
de vista dos alunos e dos professores pressupõem diferenças importantes, e como a diferença quantitativa
entre os depoimentos era muito grande, optei por desconsiderar neste trabalho as opiniões dos alunos.
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Adotarei neste trabalho a terminologia de Roberto Acízelo de Souza, que chamará de Estudos Literários
“ao conjunto das disciplinas que historicamente concorreram para delimitar a área de fenômenos
constituídos pela linguagem verbal elaborada” (Souza , 1987:134).
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5
“Não é (ou não devia ser) da natureza da teoria crítica ser deslumbrante ou estimulante (a menos no
sentido em que qualquer nova idéia ou argumentação teórica, quando importante, é estimulante). A força
de uma teoria reside, sobretudo, na exatidão e na precisão com que é formulada” [tradução minha].
10
6
“O trabalho teórico deveria mostrar como e porquê nenhum grupo de acadêmicos e nenhuma disciplina
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Punter (ibid.:439-441), por exemplo, entendem que a teoria deve reafirmar o valor da
Literatura, legitimar sua presença e sua existência em nossa cultura como uma das mais
importantes atividades humanas. Procedendo assim, ela ofereceria um ponto de partida
para o combate contra a crise de valores, manteria viva a herança dos Estudos
Literários, ofereceria diretrizes para o estudo da Literatura e ajudaria a entender qual o
papel da Literatura no mundo contemporâneo.
O comprometimento político da teoria implica, em muitos casos, modificar as
condições de existência cultural de seu objeto, propagar valores e julgamentos,
estabelecer legitimidades e ilegitimidades, realizar exclusões, reafirmar o papel político
do intelectual. Para Watkins (ibid.:448-450) e Gossman (ibid.:420-422), não haveria
maiores problemas com esse aspecto normatizador, uma vez que é uma ilusão
positivista acreditar que se possam produzir discursos teóricos imaculados que
transcendam à ideologia. Os discursos humanos seriam sempre embebidos em desejo e
história. Teorias que se julgam puras agiriam de modo repressivo, enquanto os melhores
discursos teóricos reconheceriam que sua materialidade, longe de ser uma falha, é o que
lhes dá sentido, interesse e importância.
O engajamento tem, contudo, seus riscos. Teorias fortemente politizadas acabam
tendo pouco interesse na própria Literatura, comenta Alastair Fowler (ibid.:418-419). É
o que parece acontecer com as iniciativas que visam a aproximar a Teoria Literária do
campo dos Estudos Culturais. Muitos trabalhos nessa linha colocam-se como se
houvesse chegado a hora de os teóricos finalmente assumirem a responsabilidade pelas
conseqüências sociais de suas hipóteses e procedimentos (cf. Annette Kolodny,
ibid.:429-431), na aspiração de que assim são capazes de contribuir para a
transformação das instituições (cf. Bleich, ibid.:411-413). No juízo de Larsen (ibid.:
433-435), a Teoria Literária deveria se transformar definitivamente em teoria da
ideologia, o que só não ocorre porque ela teme abrir mão da exclusividade do campo do
literário, sem perceber que, enquanto isso, a Literatura vai-se esvaindo e, com ela, a
própria relevância da teoria.
Ainda sob a perspectiva de uma Teoria Literária que extrapole os domínios do
estudo da Literatura, há um tipo de visão — Eagleton, (ibid.:415-416), Gumbrecht
(ibid.:422-423) e Watkins (ibid.:448-450) — que atribui a ela a função de promover o
7
“Meus alunos de pós-graduação lêem Derrida antes de sequer tomarem conhecimento de Husserl; eles
sabem o que há de errado com Northrop Frye antes de serem capazes de encontrar seu nome nas fichas
catalográficas” [tradução minha].
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Abstraio aqui a posição de George Steiner, mas sua negativa da possibilidade de existir uma Teoria
Literária permanecerá como uma hipótese a ser considerada ao longo deste trabalho.
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teórica teria então por objetivo capacitar a leitura da mais ampla gama de textos,
atentando sempre para a multiplicidade e a complexidade dos processos de escrita e de
leitura em relação a seus contextos, opinião de Kolodny (ibid.:430), David Lodge
(ibid.:435) e Wallace Jackson (ibid.:426-427). A teoria seria um caminho para o livre
pensamento, uma alternativa à rigidez, ao dogmatismo e à ortodoxia de linhas de
investigação estritamente literárias (cf. Marino, ibid.:435).
9
“Criamos estranhas criaturas com uma enorme cabeça mas sem corpo, que falam um jargão
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teoria que subjaz a todo discurso sobre a Literatura —, o que implica, em tais casos, a
ausência de um ensino sistemático e coerente (cf. Lodge, ibid.:435). A posição teórica
que não se percebe como tal é naturalizada e acaba não sendo ensinada como “uma”
teoria. É a partir desta crítica que se aponta para a necessidade de se organizar a
disciplina, o que poderia ser feito começando-se por um estudo histórico da mesma (cf.
Krieger, ibid.:433), pela exploração das estruturas conceituais que resultaram na
multiplicidade concreta de práticas historicamente desenvolvidas e pelo conseqüente
questionamento dos interesses ideológicos que fundam suas práticas (cf. Watkins,
ibid.:449).
Marino (ibid.:436) lembra, contudo, que, como rareiam os trabalhos de grande
fôlego, como os de René Wellek, há uma falta de obras de referências, o que tornaria o
ensino da teoria fragmentado e incompleto, razão por que certamente não seria mais
possível se falar em um curso completo de Teoria Literária. Neste contexto, Leo Braudy
(ibid.:415) defende a necessidade de se avaliar, efetivamente, que teorias têm alguma
utilidade. Assim, como acontece em outras áreas, poder-se- iam estabelecer as teorias
sobre quais todos deveriam ter algum tipo de conhecimento, ficando as demais restritas
aos especialistas naquele tópico específico.
Apesar da grande quantidade de conhecimentos e da crescente multiplicidade de
práticas críticas, a Teoria Literária raramente se pergunta pelos fatores sociais e
culturais que a conduziram a esse estado. Com uma bibliografia muito compartimentada
e em constante expansão, o estudante costuma se sentir perdido, sem saber como os
temas e as abordagens chegaram a se tornar pontos relevantes. As idéias são descartadas
tão logo começam a ser disseminadas e não é possível coordenar ou redirecionar o que
sequer foi compreendido num primeiro momento.
A teoria deveria então encarar a hipótese de que a multiplicidade de práticas
críticas não resulta da ausência de modelos metodológicos organizados — aliás
existentes em um número suficiente para incrementar a confusão —, mas do
desenvolvimento histórico dos Estudos Literários na universidade e da posição anômala
dos seus cultores na sociedade contemporânea, incapazes de criticar tais modelos.
Nenhuma teoria pode seguir adiante sem ser também histórica, completa Watkins
(ibid.:450).
Bleich entende que qualquer idéia que surja e termine como estritamente teórica apenas
reduz o valor e a importância da teoria.
Göran Hermeren (ibid.:424) entende que a teoria é discutida isoladamente com
muita freqüência, porque a relação entre as atividades literária, teórica e acadêmica não
é explícita. Isso torna a relevância do trabalho teórico difícil de ser compreendida pelos
alunos. A grande dificuldade deles é exatamente entender as transições entre a teoria e a
interpretação, as poéticas e as descrições de obras concretas, as descrições e a
hermenêutica (cf. Glowinski, ibid.:419-420). Dissociado das outras práticas dos Estudos
Literários, o trabalho teórico arrisca-se a degenerar em meras palavras e criar uma teia
de abstrações que dizem respeito apenas ao próprio teórico, o que afasta o estudo da
Literatura de outras dimensões da cultura. E o que é pior, diz Norman Holland (ibid.:
424-425), torna a teoria insensível ao desprezo que lhe vota o senso comum.
Um grande número de acadêmicos — Bloomfield (ibid.:413-414), Borck (ibid.:
414), Paulson (ibid.:438-439) e Federman (ibid:417-418) — ressalta que os cursos de
Teoria Literária, ainda que importantes, não podem substituir o estudo de obras e o da
História Literária, tampouco se transformar no centro da formação de um estudante de
Literatura. O conhecimento estrito de obras teóricas, obviamente, não forma bons
professores e muito do mau uso que se faz da teoria se explicaria justamente pela falta
de conhecimento que os alunos têm dos textos literários. A solução estaria no melhor
equilíbrio entre a leitura de teoria e a de Literatura. Outros, porém, como Fowler
(ibid.:418-419) tratam o problema de modo mais radical, entendendo que aquilo que se
deve incentivar na pós-graduação é a familiaridade com a Literatura, com o contexto
histórico, com a periodização, não se devendo assim dissipar tempo com a teoria, nociva
porque incentivaria o abandono do estudo diacrônico.
A dicotomia entre texto teórico e texto literário é ironizada por Jacobs
(ibid.:427-428), para quem a suposição de que se possa optar entre Literatura e teoria,
como se fosse uma opção política e polêmica, é absurda. Escolher Literatura em
detrimento da teoria revelaria uma grande ignorância em relação ao seu objeto e ao
próprio empreendimento crítico, tanto quanto estudar Teoria Literária sem considerar a
Literatura seria, digo eu, no mínimo um nonsense. Os Estudos Literários, assim pensa
Ronald Paulson (ibid.:439), deveriam conduzir o estudante à reflexão teórica, mas
depois levá- lo de volta aos textos literários, então iluminados pela teoria.
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Uma crítica comum à posição (iv) pode ser resumida na postura de Vance
(ibid.:448), que entende ser o problema da Teoria Literária sua natureza híbrida: não é
pura história, nem pura filosofia, nem pura antropologia, nem puro estudo de Literatura,
razão pela qual ela é freqüentemente superficial e assistemática. Krieger (ibid.:432-433)
também concorda que o grande problema da teoria seja exatamente seu fracasso em
determinar seus próprios limites.
Entre as principais causas apontadas como responsáveis pela fluidez das
fronteiras da Teoria Literária está a aceitação franqueada dos modismos, que faz com
que qualquer novidade receba prioridade em relação aos métodos clássicos. Ignora-se,
deste modo, que muitas novidades são repetições ou redescobertas, opinião de Marino
(ibid.:436) e Morton Bloomfield (ibid.:414). Esse tipo de teoria, que desconhece as
reflexões sobre as linguagens anteriores a de, por exemplo, Derrida, bem como sobre a
própria história da disciplina, incentiva tendências narcisistas de crítica e oferece meios
de se evitar os desafios apresentados pela tradição e pela necessidade da prática da
confirmação e da refutação, ponto de vista com que concordam Fowler (ibid.:419) e
Ellis (ibid.:417).
Em muitos casos, a aceitação de uma perspectiva teórica se dá pelo fascínio
produzido pelo esplendor da imprecisão grandiosa, ao invés da clareza exigida de
qualquer pesquisa teórica autêntica, referindo-se Ellis (ibid.) à pretensão de algumas
correntes de que o comentário do texto seja tão importante quanto o próprio, a ponto de
poder substituí- lo, ponto de vista também de Alvin Sullivan (ibid.:446). A dependência
existencial-temporal do último em relação ao primeiro — isto é, do comentário em
relação ao texto — não é apenas uma questão de lógica elementar, enfatiza Steiner
(ibid.:445), mas também de percepção moral.
Uma análise preliminar das respostas à enquete da New Literary History pode
conduzir a uma primeira hipótese de trabalho: “Teoria da Literatura” não é uma noção
auto-evidente e muitas das discussões em torno do tema são prejudicadas pela ausência
de um acordo conceitual prévio. As compreensões muito diversificadas a respeito da
natureza, dos objetivos e das funções do trabalho teórico produzem diferenciados
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seu saber sobre a obra literária em, por exemplo, seu gosto individual? Não
terminaríamos igualando — democraticamente, é bem verdade — uma teoria do
romance ou um tratado de versificação a declarações tão peremptórias quanto
incontestáveis do tipo “gosto porque gosto”?
Para não acabar por se reconhecer que o resultado do estudo profissional da
Literatura é idêntico ao das muito mais agradáveis horas de leitura e de conversa
opiniática, deve-se admitir que a exigência simples de um discurso sobre a obra literária
fundamentado em qualquer pressuposto não é suficiente para que possamos entender o
que diferencia o saber do especialista do saber do não-especialista. Uma possível saída
estaria em admitir que devemos ser capazes de empreender uma crítica desses
fundamentos (e pseudofundamentos) dos discursos sobre a obra literária. Mas tal
empreendimento é possível na condições de pensamento do mundo atual?
O pensamento relativista, com a radicalidade que grassa hoje no meio dos
Estudos Literários, quase nos faz esquecer que estamos obrigados, em nossa existência,
a fazer escolhas e juízos. Sem algumas presunções temerárias, sem algumas certezas
operacionais, sem as pequenas decisões “autoritárias” do cotidiano, não somos sequer
capazes de atravessar uma rua. Em outras palavras, o relativismo, levado ao extremo,
paralisaria o homem numa sucessão interminável de aporias enquanto se persegue a
utópica igualdade na diferença, o provável ideal de justiça de nossos dias.
Não estou assumindo aqui uma posição pragmática, mas indicando que tomar o
relativismo como fundamento último tem autorizado comportamentos pragmáticos
diversos, muitos deles pouquíssimo afinados com as boas intenções democráticas dos
relativistas. O mundo não pára porque alguns homens têm dúvidas sobre a verdade
última das coisas e dos seres.
Os desafios de uma epistemologia relativista não podem ser tomados como
definitivamente aporéticos. A filosofia kantiana, para ficar num único e bastante
conhecido exemplo, com seu relativismo gnoseológico, mostra que a relatividade de
nosso conhecimento — tudo o que conhecemos, conhecemos em função de nossa razão
— pode ser, ao mesmo tempo, também a promessa e um projeto de universalidade;
afinal, todos os homens são racionais. Como não estamos dispostos a abandonar as
importantes e não poucas conquistas que uma consciência relativista tem proporcionado
ao homem, nem tampouco abrir mão de nossa capacidade crítica — a potência de
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Uma das metas deste trabalho é, em primeiro lugar, mostrar que o que parece ter
morrido no século passado foi um determinado projeto de teoria, não a necessidade e a
pertinência do estudo metódico e sistemático da Literatura. Além disso, creio que é
estratégico demonstrar que nenhuma Teoria da Literatura pode ser tomada como
substituta ideal de todas as possíveis abordagens do objeto literário, isto é, não pode ser
considerada “uma espécie de enciclopédia do saber sobre a Literatura, que incorpora,
como meros capítulos seus, todas as demais disciplinas historicamente discerníveis
nesse setor” (Souza, 1987:102). A reflexão teórica, assim, seria uma faceta do
movimento de compreensão da Literatura, juntamente com as abordagens
interpretativas, analíticas, históricas, judicativas e prescritivas, que constituem o
conjunto das atitudes possíveis — ao menos até este momento — diante de objetos
literários.
Para que a teoria assuma o papel que lhe cabe no estudo especializado da
Literatura, proponho a observação de quatro princípios orientadores:
(i) O estudo da Literatura, para ser sistemático e metódico, não deve precisar
reproduzir fielmente métodos das ciências empíricas modernas ou repetir os caminhos
trilhados pelos Estudos Literários nos séculos XIX e XX, que se serviram de
metodologias importadas de outras ciências humanas e sociais, como a Antropologia, a
Sociologia, a Lingüística, a Psicanálise e a História.
(ii) A historicidade da experiência humana não pode redundar, necessariamente,
em que todo e qualquer sistema teórico esteja fadado a se realizar como absolutização
de concepções individuais ou históricas. Se o plano da experiência se revela aberto e
histórico, a teoria deverá ser aberta, para a contínua renovação de seus pressupostos —
sem que isso signifique formular uma teoria para cada obra literária particular ou
abandonar princípios teóricos a cada problema que o dinamismo e a diversidade dos
processos criativos da arte ve nha a apresentar —, e histórica — por ser concebida como
uma construção de pensamento que se dá em um tempo e espaço definidos —, sem ser
historicista, isto é, sem se restringir a concepções causais sobre a obra de arte.
(iii) O estudo especializado da Literatura precisa estar empenhado no
estabelecimento, aperfeiçoamento e conservação de uma linguagem conceitual
universal, com o objetivo de tornar os trabalhos teóricos inteligíveis entre si e passíveis
de serem comunicados.
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(iv) Uma Teoria da Literatura precisa realizar, como uma de suas preocupações
axiais, uma constante reflexão sobre o papel da Literatura na existência do homem, o
que implica possuir uma dimensão filosófica cujos postulados sejam ética, lógica e
epistemologicamente coerentes.
Atender os quatro princípios orientadores ora propostos exigirá, ao longo da
reflexão que nos propomos, uma talvez utópica e certamente ambiciosa aspiração de
compromisso com um novo caminho para as ciências humanas, fundado em novos
ideais de objetividade. Acredito que um esforço em se realizar uma reflexão rigorosa
possa permitir pensar o estudo da Literatura, em condições que superem o relativismo
permissivo que tem marcado o campo de Estudos Literários nos últimos anos. É
possível imaginar que o estudo especializado da Literatura possa ser legitimado, com
suas limitações, por ser um modo de compreensão da função do estudioso da Literatura
solidário com um determinado modo de compreensão da arte, um determinado modo de
compreender o conhecimento humano, um determinado modo de compreender o
homem, enfim.
palavra escrita. De disciplina dominante do Trivium, ela foi perdendo sua preeminência,
primeiro para a Gramática e depois para a Dialética. No Renascimento, quando a
redescoberta da Poética, de Aristóteles, deu nova vida aos estudos da arte literária, a
Retórica encontraria espaço apenas como disciplina escolar do ensino jesuítico.
Sob a capa da Eloqüência, a Retórica havia absorvido toda a cultura da palavra e
estava diretamente relacionada à idéia de Literatura como um “bem escrever”. Seu
esvaziamento está relacionado, nos termos de Acízelo, a um movimento que começa no
século XVIII e se consuma no XIX: em primeiro lugar, a nova ordem epistemológica
que deu lugar a uma nova forma de entendimento da linguagem, sob “uma perspectiva
racionalista (Gramática de Port-Royal), referencial (empirismo) ou sensualista
(Estética)” (ibid.:51); depois, a ascensão da ideologia romântica e sua incompatibilidade
com o caráter preceptístico assumido pelas duas disciplinas humanísticas; e, por fim, a
submissão das Humanidades aos ideais cientificistas, e a ascensão da História como
disciplina-chave das novas Ciências Humanas.
Em suas últimas versões, a Retórica, então já uma decadente e ridicularizada
disciplina, resumia-se a um conjunto de classificações. Seu declínio da condição de
metalinguagem predominante foi seguido, no plano teórico, por um vazio que seria
preenchido pelo impressionismo crítico. Escritores, críticos, historiadores e filósofos,
alternando biografismo, sociologismo e psicologismo, dominaram o ambiente dos
Estudos Literários.
Por permitir partir do termo classificatório para o exemplo — mas não o inverso,
do fato de língua ao nome da figura, o que caracterizaria um procedimento indutivo —,
a Retórica se aproximaria, mais do que qualquer outra investigação da Literatura, de
uma ciência empírica baseada na construção de uma teoria hipotético-dedutiva
(ibid.:32), conforme pode ser observado nas etapas caracterizadas por Acízelo:
(i) Observação dos enunciados: por exemplo, no enunciado “aurora de róseos
dedos” detectar-se-ia um fato de linguagem: a relação analógica entre “róseos dedos” e
“alongados e divergentes traços avermelhados” permitindo a substituição do termo
próprio pelo figurado.
(ii) Fixação de proposições singulares (descrições/nomeações): descrição do
fato detectado. No caso, a relação de analogia entre “róseos dedos” e “alongados e
divergentes traços avermelhados”.
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Por “teoria de nível baixo” deve-se entender “(...) um conjunto de proposições/conceitos coerentes
entre si, apto a permitir a dedução de novas generalizações, bem como dotado da capacidade de
funcionar, isto é, dotado de alcance técnico, ainda que incapaz de desvendar a profundidade do próprio
funcionamento” (ibid.:32).
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Por estas mesmas razões, curiosamente, a Filologia também será acolhida no âmbito da Teoria da
Literatura. A severidade no trato do documento e a metodologia rigorosa de pesquisa, apoiada na crença
sobre sua neutralidade científica, fez a Filologia compatível com os ideais da nova disciplina, tornando-se
uma espécie de preâmbulo operacional do trabalho teórico em si (cf. Souza, id.:82).
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como pode ser observado, no ensino médio, na importância dada à periodização e aos
estilos de época, e, no ensino superior, às Literaturas nacionais.
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Antes que o termo “Teoria da Literatura” dominasse a cena dos Estudos Literários no século XX,
houve tentativas de se conceber a Literatura, ainda sob a perspectiva historicista, como algo que escapa à
compreensão da razão analítica. Por essa orientação, todo o esforço metodológico possível aos Estudos
Literários residia no trabalho preliminar da Filologia. Vossler, Spitzer e Auerbach foram os principais
nomes desta suposta fase intermediária entre a história e a teoria, chamada de Ciência da Literatura.
Também por esse termo, entende-se uma denominação genérica dos estudos sistemáticos da Literatura,
muito comum em língua alemã — Literaturwissenschaft (cf. ibid.:96-98).
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2 – OS PRECURSORES
13
Embora o ano de publicação da obra não seja de fácil identificação, em virtude dos problemas já
notados por Roberto Acízelo de Souza (1999:107) — a tríplice datação que aparece na imprenta (1942,
1947 e 1949) —, adotarei neste trabalho o ano de 1949, em razão do prefácio da edição original estar
assinada como maio de 1948, ano posterior às outras datas. Além disso, na bibliografia que aparece no
fim da 1a edição norte-americana, pode-se ver referência a obras publicadas em 1947 e 1948, o que
inviabilizaria a possibilidade de sua edição ser anterior a estes anos. Contra minha escolha, entretanto,
poderia pesar o prefácio à segunda edição, onde os autores se referem à publicação do capítulo extirpado
da 1a edição como tendo sido publicada em 1946. Acredito, porém, que Wellek se referia à publicação do
mesmo sob a forma de artigo e sob o titulo “The graduate study of literature” no periódico Sewanne
Review, o que faz com que o ano de 1949 seja o mais provável.
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A etimologia da palavra leva-nos à língua latina e a Quintiliano, litteratura, provavelmente de littera,
letra do alfabeto, passando pelo século XIV quando literato indicava tanto o alfabeto quanto o homem de
saber laico, como também qualquer coisa escrita com letras. O sentido de pessoa culta é conservado
durante o Renascimento e será somente entre os séculos XVII e XIX, com o advento da cultura
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ou impressa, o que sugeriria, de modo errôneo, que as literaturas orais não fariam parte
desse conjunto.
Uma segunda definição recorrente relacionada por Wellek costuma identificar a
Literatura às grandes obras, aos livros cuja forma ou cujo tema são notadamente de
excelente qualidade. O inconveniente de tal critério é que ele seria dependente de um
juízo de valor, cuja fundamentação escaparia das fronteiras da Literatura. Além do mais,
um cânone baseado em “grande obras” não consideraria diferenças entre obras
filosóficas, científicas, históricas ou literárias, o que novamente inviabilizaria a
especificidade do termo.
Qual seria, pois, para os autores, o estatuto ontológico de uma obra de arte
literária, qual seu modo particular de existência? Wellek dedicou um capítulo à questão.
Em seu método característico de exposição, ele apresenta as respostas tradicionais à
pergunta e avalia a pertinência de cada uma delas: a primeira considera a arte literária
como um artefato, assim como a pintura ou a escultura. A essa possibilidade o autor
contrapõe o problema da Literatura oral: que espécie de materialidade ela possuiria?
Como alternativa a essa objeção, haveria a possibilidade de se considerar então toda
obra literária como uma seqüência de sons. Wellek então observa que uma seqüência de
sons é apenas a execução da obra, e não a obra em si. Ele compara a atualização oral de
uma obra com a execução de uma sinfonia, para dizer que tal concepção importaria para
os Estudos Literários um problema enfrentado pelo campo dos estudos da música: onde
estaria a existência efetiva da obra de arte — na execução ou na partitura, na leitura ou
no texto impresso? Wellek ainda faz notar que supor que a existência de um poema é
restrita a sua atualização oral levaria à estranha conclusão de que ele inexistiria quando
não recitado, e que seria recriado de novo a cada leitura (ibid.: 184-5).
Uma terceira linha de reposta consiste em identificar a obra de arte literária com
a experiência do leitor. Wellek acredita que o caráter individual e idiossincrático da
experiência invalidaria a possibilidade de que ela venha a ser identificada como o modo
de existência da obra literária. Ter-se-ia de admitir, novamente, que o modo de ser do
poema é recriado a cada experiência de leitura. Seu comentário é certeiro e permanece
válido para o atual estatuto dos Estudos Literários:
Esse não será o único alerta que ele faz, ao longo do livro, sobre os perigos que o
relativismo extremo representa para os Estudos Literários. Ele defende que, por mais
interessantes que possam ser os estudos sobre a recepção de uma obra, eles não
deveriam integrar os objetivos do estudo da Literatura, pois seriam incapazes de lidar
com aspectos fundamentais da obra literária, como, por exemplo, sua estrutura e seu
valor.
Um quarto encaminhamento de resposta é propugnar que a obra literária consiste
na experiência do autor. Tal proposição envolveria pensar tanto no caráter consciente da
criação quanto no inconsciente. O primeiro caso levaria ao risco da “falácia da
intenção”, uma vez que o autor pode ser um mau “leitor” de sua obra e, além do mais,
na grande maioria dos casos, só temos acesso ao legado da obra em si:
O segundo caso nos conduziria a um objetivo inatingível, uma vez que seria
impossível ter acesso os componentes inconscientes da criação — ao menos naquela
época, quando ainda não se atribuía à psicanálise a potência que lhe seria conferida nas
décadas seguintes. Além do mais, um estudo de tal tipo atrave ssaria a temporalidade de
uma obra, ao remeter a experiências do passado do autor, anteriores à obra concreta.
A quinta resposta relacionaria o modo de existência da obra à sua recepção
coletiva, o que, para Wellek, seria o mesmo que dizer que “o poema reside no estado de
espírito do leitor, multiplicado ao infinito” (ibid.:192): haveria tantos poemas quanto
leitores, quantos estados de espírito. No caso de se procurar na recepção coletiva os
elementos de uma experiência comum, isto é, os pontos de interseção entre as
experiências individuais, estar-se- ia, para Wellek, empobrecendo a obra de arte15 .
15
Ao desqualificar, nos estudos de recepção, os pontos de interseção entre as experiências de leitura por
empobrecer a possibilidade de múltiplas experiências proporcionadas pela obra literária, Wellek contradiz
49
seu postulado da necessidade de haver teorias generalistas para o estudo da Literatura (conforme será
discutido mais adiante). Além disso, ele vai de encontro à sua constante preocupação de conter o
subjetivismo exacerbado nas leituras das obras.
16
A formação filosófica de Wellek é de orientação fenomenológica. No campo dos estudos literários, por
exemplo, ele conhecia e endossava a teoria dos estratos de Roman Ingarden. (cf. Wellek, 2003:193).
17
Poéticas que pretendam defender a originalidade intransigente e a individualidade irredutível da obra de
arte, a ponto de pretender lhe negar qualquer vínculo com a tradição, acabam por isolá-la em algo
incomunicável ou incompreensível (ibid.:193).
50
conta das leituras que dela são feitas e pode vir a perecer, pois depende de algum
veículo ou mecanismo que possibilite sua preservação:
(...) não se poderia negar que há [na Ilíada] uma substancial identidade de
“estrutura”, que permaneceu a mesma ao longo de todo o processo de
história, passando, ao mesmo tempo pelas mentes de seus leitores, críticos e
colegas artistas. Assim, o sistema de normas está se desenvolvendo e
mudando e permanecerá, em algum sentido, sempre incompleto e
imperfeitamente realizado (ibid.: 200).
Não sendo o material da Literatura uma matéria bruta20 , mas um dado cultural e
complexo, Wellek precisa especificar em que consiste o uso literário da língua. As
distinções fundamentais propostas por ele são entre os usos literário, científico e
18
O manual fo i composto a quatro mãos, mas os capítulos, com exceção do último da primeira edição
americana, são assinados pelos autores isoladamente. Por esta razão eu me refiro ora a um, ora a outro,
conforme a autoria da passagem em questão.
19
A atenção especial dada à necessidade de se valorizar a Literatura de acordo com sua natureza é uma
observação diretamente direcionada aos estudos que instrumentalizam a Literatura, tornando-a exemplo
de alguma outra coisa que se queira afirmar. A grande preocupação de Warren se justifica porque não há
como evitar que isso ocorra, pois “(...) as coisas podem ser mal usadas ou usadas inadequadamente, isto é,
em funções que não têm relevância central para as suas naturezas” (ibid.:326).
20
O comentário sobre a língua como material que reage ao escritor e constrange suas possibilidades de
criação reaparece no capítulo sobre as relações entre a Literatura e as demais artes: “(...) o ‘veículo’ de
uma obra de arte (...) não é meramente um obstáculo técnico a ser superado pelo artista para expressar a
sua personalidade, mas um fator pré-formado pela tradição e que tem um poderoso caráter determinante,
que molda e modifica a abordagem e a expressão do artista individual. O artista não concebe em termos
mentais gerais, mas em termos de material concreto, e o veículo concreto tem sua própria história, muitas
vezes bem diferente da de qualquer outro veículo” (ibid.:165). Ou ainda, mais adiante: “Toda obra
literária, poderíamos dizer, é meramente uma seleção extraída de uma determinada língua, do mesmo
52
cotidiano da língua. Ele descarta que a emoção ou o sentimento sejam responsáveis por
diferenciar linguagem literária e linguagem científica, mas afirma que a segunda
aspiraria a um ideal de pura denotação que a aproximasse de alguma linguagem
universal, como a matemática ou a lógica. Já a linguagem literária seria altamente
conotativa, porque se basearia, em diferentes graus, em uma língua histórica, cheia de
ambigüidades, homônimos, irracionalidades, além de também produzir significados
através da própria materialidade do signo.
Já a distinção entre as linguagens cotidiana e literária seria mais difícil. A
começar porque “linguagem cotidiana” não é um conceito simples. Não haveria como
se distinguir, em termos qualitativos, os usos cotidiano e literário da língua, mas apenas
quantitativamente, pois, no seu uso literário, os “recursos da linguagem são explorados
de modo muito mais deliberado e sistemático” (ibid.:16). Ele se vale de uma distinção
que, nos termos de Pareyson (1997), seria entre arte e artisticidade — ou seja, em
qualquer objeto pode haver elementos estéticos, mas o fato de serem produzidos de
“modo artístico”, isto é, com “artisticidade”, não o tornam, necessariamente, obras de
arte. Wellek remete a Jakobson21 — embora a citação, curiosamente, não esteja
explícita em seu texto — ao entender que se deva considerar como literária apenas as
obras em que a função estética é dominante. A Literatura refere-se, portanto, a obras de
arte literárias, a obras que se pretendem, pela força de sua constituição, artísticas.
modo que uma obra de escultura é descrita como um bloco de mármore do qual se retiraram alguns
pedaços” (ibid.:226).
21
Embora a primeira versão em inglês do artigo “A dominante” seja de 1970, o original checo é de 1935
(cf. Jakobson, Roman. Language in literature. Cambridge: Harvard University Press, 1987. p.507). É
53
Uma de suas hipóteses é de que haveria dois tipos básicos de conhecimento, que
utilizariam sistemas lingüísticos diferentes: as ciências, que empregariam um modo
discursivo, e a arte, que se valeria de um representativo. A obra literária teria, contudo,
como referência um mundo ficcional, inventivo, imaginativo 22 . E com esse passo ele faz
a distinção chave entre uma classificação descritiva e uma classificação judicativa da
Literatura, elevando a ficcionalidade a um critério de distinção entre o que é e o que não
é Literatura:
Não faz nenhum mal renegar uma obra importante e influente à retórica, à
filosofia, ao panfletarismo político, todos os quais podem colocar problemas
de análise estética, de estilística e composição, similares ou idênticos aos
apresentados pela Literatura, mas onde a qualidade central da ficcionalidade
estará ausente. Essa concepção, portanto, incluirá nela todos os tipos de
ficção, mesmo o pior romance, a pior peça teatral. A classificação da arte
deve ser distinguida da avaliação (ibid.:20).
Ao diferenciar os dois juízos sobre a obra literária — ser ou não ser Literatura,
ser boa ou má Literatura —, Wellek tem consciência de que toda e qualquer distinção
entre Literatura e não-Literatura revela aspectos da obra literária, mas é precária por
nunca ser completamente satisfatória em si: uma obra “não é um objeto simples mas,
antes, uma organização altamente complexa, de caráter estratificado, com múltiplos
significados e relações” (ibid.:22). Muitas são — acrescentará Warren no quarto
capítulo, “A função da Literatura” — as possibilidades de uso e entendimento dos textos
literários. A natureza da Literatura transforma-se ao longo do tempo, o que pode ser
muito pouco provável que Wellek tendo se formado na antiga Tchecoslováquia e participado do Círculo
Lingüístico de Praga, não conhecesse o referido trabalho de Jakobson.
22
Wellek faz notar que a Literatura imaginativa não deve ser entendida estritamente como produtora de
imagens. As imagens não são essenciais para o enunciado ficcional. Mesmo a metáfora, muitas vezes
associada à essência da poesia, se faz presente ostensivamente em nossa linguagem cotidiana, na gíria e
nos provérbios (Wellek & Warren, 2003:21).
54
23
Warren cita uma conhecida passagem de T. S. Eliot, quando o poeta diz que em uma obra de
Shakespeare, “para os ouvintes mais simples há o enredo; para os mais pensativos, o personagem e o
conflito do personagem; para os mais literários, as palavras e a fraseologia; para os que têm mais
55
A questão conseqüente passa a ser então se a Literatura tem apenas uma função
(ou várias), e se essa(s) função — ou funções — diz(em) respeito a algo que somente a
Literatura faz ou a algo que outras atividades, além da Literatura, também fazem. Seria
a Literatura uma atividade realmente única e específica, ou “um amálgama de filosofia,
história, música e imagens que, em uma economia realmente moderna, seria
distribuído?” (ibid.:27).
A defesa da Literatura passaria por propor “que ela não é um sobrevivente
arcaico, mas uma permanência” (ibid.:30), o que implica garantir- lhe a condição de
oferecer uma experiência absolutamente singular. Essa experiência singular é entendida
de modo diverso por diferentes correntes de pensamento, como fonte de um
conhecimento ora além, ora aquém do racional. Na tradição do famoso dito aris totélico
— a poesia seria mais “verdadeira” do que a História, por tratar do universal, e não do
particular —, a Literatura seria algo maior do que outras formas de conhecimento.
Todas as vezes em que a Literatura — e a disciplina que estruturou seu estudo no século
XIX, a História — parece fragilizada diante de outros modos de saber, diz-se que ela dá
conta exatamente daquilo que escapa à Ciência e à Filosofia, como forma de resguardar
a sua importância:
literária, não faria sentido se atribuir valor a uma obra pela excelência de seu conteúdo
filosófico.
Wellek conclui afirmando que a verdade filosófica não tem valor artístico para a
obra literária. Uma poesia que supostamente conseguisse fundir imagens e conceitos em
um nível de excelência filosófica não seria, necessariamente, melhor poesia, mas apenas
um tipo de poesia. O que interessa, para um estudioso de Literatura, na relação entre
pensamento e Literatura, é estudar as idéias quando se tornam constitutivas da textura
da obra de arte, isto é, “quando deixam de ser idéias no sentido comum de conceitos e
tornam-se símbolos ou mesmo mitos” (ibid.:156).
Por fim, Warren observará, de modo arguto, que a pergunta pela função da
Literatura não é, em geral, uma questão que seja formulada pelo poeta ou pelo
apreciador da Literatura, mas quase sempre “por utilitaristas e moralistas, ou por
estadistas e filósofos, isto é, pelos representantes de outros valores especiais ou pelos
árbitros especulativos de todos os valores” (ibid.:34). Mas a resposta a essa questão
sempre acabaria sendo de responsabilidade dos poetas e dos amantes da Literatura, que
precisariam pensá-la nos termos da dimensão social e humana em que ela é colocada,
chamados, “como cidadãos moral e intelectualmente responsáveis, a dar alguma
resposta racional à comunidade” (ibid.:35). Sob tais circunstâncias, é natural que as
respostas tendam a enfatizar a utilidade em detrimento do deleite. E os Estudos
Literários refletem tal circunstância, tendo dificuldades em lidar com o específico prazer
da Literatura:
Ele toma um quadro, descreve-o a seu modo, faz ele próprio um quadro
encantador, mas não fez um ato de verdadeira crítica, contanto que consiga
fazer reluzir, cintilar as expressões macarrônicas que ele acha com um prazer
às vezes convincente. (...) ele fica contente, atinge seu objetivo de escritor
curioso (...). (Delacroix, Journal, 17/06/1855, 11, 341, Ed. Joubin, apud
Richard, 1988:17).
58
poderiam ser, portanto, rigorosos e metódicos, ainda que seus métodos nem sempre
coincidam com os das ciências naturais:
Que nenhuma obra de arte pode ser inteiramente “singular”, já que, se fosse,
seria completamente incompreensível. (...) Mesmo um monte de lixo (...) é
singular no sentido de que suas exatas proporções, posição e combinações
químicas não podem ser reproduzidas exatamente (ibid.:8).
24
Atribuir ao “Folklore” a responsabilidade de estudar a Literatura popular revela como a idéia de
Literatura de Wellek não se baseia tanto em diferenciações lingüísticas, mas é extremamente dependente
de uma noção de “estética” que nunca chega a ser francamente discutida no livro. Essa é, por sinal, a
grande crítica que Costa Lima (1975) fará ao manual.
25
Nos termos de Goethe, a “Literatura mundial” (Weltliteratur) refere-se a um momento em que todas as
Literaturas estariam unificadas e a Literatura de cada nação desempenharia seu papel como em uma
sinfonia (cf. Goethe, 1994:224-228).
26
O eurocentrismo de Wellek é explícito, por exemplo, quando ele coloca a dúvida retórica de se saber se
o ossianismo seria um caso de Literatura nacional ou universal (Wellek & Warren, id:51). Ora, o
62
ossianismo sob nenhuma circunstância é um caso de Literatura universal, sendo, quando muito, de
63
(...) são quase que os únicos métodos sobre os quais a maioria das faculdades
americanas fornece algum tipo de instrução sistemática. Ainda assim,
qualquer que seja a sua importância, deve-se reconhecer que esse tipo de
estudo apenas lança as fundações para uma análise e interpretação efetivas,
assim como para a explicação casual da Literatura. Eles se justificam pelo
uso que se dá aos seus resultados (ibid.:79).
Literatura européia.
27
Para Wellek, esse tipo de estudo extrínseco da Literatura, que se ocupa das relações periféricas da obra
literária e que busca uma ordem causal, não deveria ser confundido com o estudo histórico, orientado para
64
a observação das alterações temporais da arte literária, e que possui um lugar importante no modelo de
estudos literários proposto pelo autor, conforme será melhor demonstrado no tópico seguinte.
28
De modo geral, Warren admite que a Psicologia tenha alguma capacidade de esclarecer aspectos da
criação literária, mas parece duvidar de sua eficiência no plano hermenêutico e no de juízo sobre um
texto. Mesmo os esforços de crítica textual (crítica genética) que se empenham em reconstruir o processo
de criação da obra, teriam importância periférica para o exame da obra finalizada. (cf. ibid.:109). Warren
acha que não há nada suficientemente generalizado, apenas quase depoimentos individuais de criadores
65
sociólogo, do antropólogo. A obra de arte não deve ser encarada, pois, como pura auto-
expressão ou apêndice de uma individualidade, nem o autor pode ser confundido como
possuidor de certos graus de excepcionalidade (o gênio, o louco, o possuído, o dotado
de uma deficiência e de um dom compensatório etc.), o que sempre deu margens a
interpretações que viam na Literatura de um certo papel terapêutico. É fundamental,
sobretudo, entender que em todas as situações tais conclusões não têm valor crítico e
não podem ser fonte para atribuição de valor à obra.
Merece maior atenção o capítulo em que Wellek aborda as questões relativas às
relações entre Literatura e sociedade. Trata-se de uma argumentação direcionada contra
a crítica marxista e a crítica de orientação sociológica. A propalada aversão da Teoria da
Literatura às questões de representação social da obra literária parece ter origem nas
muitas reservas que os teóricos têm em relação às abordagens sociologizantes da obra
literária. Há, entretanto, uma enorme distância entre perceber que a teoria é
intensamente crítica da presença dos estudos “sociais” na Literatura e afirmar que a
teoria ignora tais aspectos. Muitos são os problemas da disciplina teoria, mas entre eles
certamente não está a aversão às questões de representação social. A teoria, ao menos
no que se refere aos momentos iniciais da formação da disciplina, é bastante atenta a
estes problemas, e acusá- la em relação a tal aspecto revela no mínimo ignorância de
seus postulados teóricos.
Por entender que essa má compreensão da Teoria da Literatura é uma das causas
de seu desprestígio, relacionei, a título de exemplificação, uma série de afirmações de
Wellek sobre o caráter social da Literatura:
(i) “A Literatura é uma instituição social que usa como veículo a linguagem,
uma criação social” (ibid.:113);
(ii) Processos literários tradicionais (os símbolos, as imagens, a métrica) têm
natureza social, isto é, são normas e convenções sociais, assim como grande número das
questões suscitadas pelos Estudos Literários é de natureza social: tradição, convenção,
normas, gêneros, mitos;
(iii) “(...) a Literatura ‘representa’ a ‘vida’, em grande medida, é uma realidade
social” (ibid.:113);
sobre o processo criativo, para ser objeto de uma teoria. Ele percebe que a Psicanálise e os conceitos de
consciente e inconsciente teriam papel importante nesse tipo de estudo.
66
Wellek (2003:131) adverte que mesmo Marx estaria ciente de quão oblíquas são
as relações entre Literatura e sociedade. Assim, defender que o autor deve expressar a
vida de seu tempo, ou exigir dele a consciência de determinadas situações sociais, ou
ainda, em diversas ocasiões, o compartilhamento de posturas ideológicas do crítico é um
critério de avaliação específico e, embora Wellek não use o termo, ideológico. A
exigência de representatividade social atende aos desígnios de uma poética 29 , mas não
pode ser considerado um componente essencialmente estético da obra literária:
29
Faço valer aqui uma útil distinção proposta por Luigi Pareyson (1997), para quem uma Poética é a
proposição, programática ou implícita, de um programa de arte, em que um dado ideal de arte é expresso.
Uma poética, portanto, expressa um dado gosto. A Estética, por outro lado, teria uma preocupação
filosófica e especulativa. Quando se toma uma proposição de uma poética, particular e histórica, como
uma assertiva estética, que precisa pretender ser geral e universal, deturpa-se “aquilo que é legítimo
quando entendido como programa de arte”, mas absurdo quando “se pretende valer como conceito de
arte” (Pareyson, 1997:15). Quando uma poética aspira a ser uma teoria estética, o que era apenas um
programa passa a sustentar uma concepção excludente de arte. Aquilo que vinha sendo proposto como
elemento inspirador de um fazer artístico é transformado no próprio princípio de seu valor. A reflexão
estética não pode se envolver numa polêmica relacionada a gostos. É claro que o filósofo é também
portador de um gosto, mas é inerente a sua prática o empenho em não permitir que seu gosto particular
fundamente os princípios de sua teoria. Para a Estética, todas as poéticas são igualmente legítimas. Não
importa ao pensamento estético de que tipo de arte se trata, importa que seja arte. A multiplicidade das
67
poéticas existentes pode fomentar a existência de uma multiplicidade de teorias estéticas, mas essa
possível pluralidade não pode implicar a perda do caráter especulativo e universalista da Estética.
30
É notável, porém, a grande quantidade de exemplos e de descrições sociológicas feitas por Wellek ao
longo do manual, um indicativo de como era — e é — forte a presença das abordagens extrínsecas nos
estudos literários.
31
Alguns exemplos de possíveis estudos derivados desse tipo de abordagens — “A relação entre senhorio
e arrendatário na ficção americana do século XIX”, “O marinheiro na ficção e no teatro inglês” ou “Os
hiberno-americanos na ficção do século XX” (cf. Wellek, 2003:127) — revelaram-se uma previsão
impressionantemente acertada sobre o rumos desta vertente dos estudos literários.
68
32
Na tradução portuguesa, “erudição literária” (Wellek, s.d.:43), na brasileira, “estudos literários”
(Wellek, 2003:36). Penso que as duas traduções são inadequadas: a primeira em virtude do sentido quase
pejorativo que a palavra erudição possui hoje em dia no ambiente dos estudos literários, onde é usada
muitas vezes para indicar um conhecimento extenso mas estéril; a segunda porque no termo “estudos
literários”, atualmente, está contemplado o conjunto das práticas de estudo do objeto literário, o que não
aconteceria com o termo literacy scholarship, uma vez que Wellek reclama que o termo excluiria a crítica
literária em favor da ênfase no estudo acadêmico.
33
Wellek parece não ter muita simpatia pelo nome que deu a seu livro e que acabaria sendo adotado para
designar uma disciplina acadêmica. No prefácio à primeira edição, ele reconhece a dificuldade de se
escolher um título, e chega a sugerir que talvez fosse mais adequado Teoria da Literatura e metodologia
69
dos estudos literários, título que será recuperado pela recente edição brasileira da obra. Já no “Prefácio à
3a edição americana”, de setembro de 1962, ele se refere ao desenvolvimento de suas idéias em dois livros
posteriores: o Conceitos de crítica e o História da crítica moderna, o que parece indicar que teria perdido
o interesse pelo termo “theory of literature”, passando a se referir ao “criticism” como a totalidade dos
estudos literários. È curioso notar que, em língua inglesa, a expressão theory of literature foi quase que
completamente suplantada por literary theory.
70
tal afirmativa representa uma inadequação que já havia sido notada por Roberto Acízelo
de Souza:
Wellek afirma que a teoria deveria ser “um órganon dos métodos” e que era “a
grande necessidade da pesquisa literária hoje” (ibid.:9). Se tomada ao pé da letra, essa
afirmação obriga a se admitir que a disciplina geral dos Estudos Literários, para Wellek,
seria a Teoria — da qual a História e a Crítica seriam dependentes. Isso, porém,
inviabilizaria a distinção que ele mesmo defende como fundamental, entre teoria,
história e crítica. A situação se torna ainda mais confusa se considerarmos sua definição
de crítica em um livro posterior, a História da crítica moderna:
(...) os métodos assim designados não podem ser usados isoladamente, que
estão de tal maneira entrelaçados que tornam inconcebíveis a Teoria Literária
sem a crítica ou a história, a crítica sem a teoria e a história ou a história sem
a teoria e a crítica. Obviamente, a Teoria Literária é impossível, exceto com
base em um estudo de obras literárias concretas. Não podemos chegar a
critérios, categorias e esquemas in vacuo. Inversamente, porém, nenhuma
crítica ou história é possível sem algum conjunto de questões, algum sistema
71
34
Artigo publicado na importante revista New Criticism, Scrutiny, IV, 1935, pp. 181-5.
72
Como tais estudos não podem senão nos convencer de que períodos
diferentes nutriam concepções e convenções críticas diferentes, concluiu-se
que cada época é uma unidade contida em si mesma, expressada através do
seu próprio tipo de poesia, incomensurável com qualquer outra (ibid.:40).
Devemos poder relacionar uma obra de arte aos valores de seu tempo e de
todos os períodos subseqüentes ao seu. Uma obra de arte é tanto “eterna”
(isto é, preserva certa identidade) como “histórica” (isto é, passa por um
processo de desenvolvimento que pode ser investigado). O relativismo reduz
a História de Literatura a uma série de fragmentos distintos e, portanto,
descontínuos, ao passo que a maioria dos absolutismos serve apenas uma
situação transitória do presente ou se baseia (como os padrões dos novos
humanistas, dos marxistas e neotomistas) em algum ideal abstrato não-
literário, injusto para com a variedade histórica da Literatura.
“Perspectivismo” significa que reconhecemos a existência de uma poesia,
uma Literatura comparável em todas as épocas, desenvolvendo-se, mudando,
74
35
Wellek e Warren escrevem num momento em que o estudo, por exemplo, de autores contemporâneos
ainda não está plenamente estabelecido.
36
Não era apenas a formação dos professores que recebia a atenção dos autores. Wellek e Warren
(1949:286), ao compararem o ensino universitário nos Estados Unidos e na Europa, percebem a diferença
que a formação anterior dos alunos acarreta para o ensino da Literatura.
37
“The teacher of literature should himself be a literary man, as professors of philosophy are, still,
expected to be philosophers, not merely historians of philosophy. Whether a practicing poet or novelist or
a critic or theorist, he should be a man who has experienced, and who values, literature as an art. In the
traditional sense, he should be an “apologist” for literature.”.
77
(i) Wellek e Warren tomam a Literatura como uma arte. Como tal, a obra
literária possui uma particular posição ontológica. Não é real (no sentido de que não tem
uma existência física), nem exclusivamente mental (pois possui uma contrapartida
material), nem ideal (não pode ser descrita em termos lógicos, como a noção de um
triângulo). É um sistema de normas implícitas, intersubjetiva s, acessíveis apenas através
de experiências individuais orientadas pela estrutura sonora de suas sentenças.
(ii) O conjunto de normas e estruturas da obra de arte literária age sobre a língua,
matéria da Literatura. A Literatura se constituiria, pois, como um determinado uso da
língua, que se distinguiria dos demais usos (científico e cotidiano), por ser altamente
conotativa e por produzir significados através da própria materialidade do signo.
(iii) A obra literária possui vida, no sentido de que tem uma origem no tempo,
transforma-se por conta das leituras que dela são feitas e lhe acrescentam sentidos, e
pode vir a perecer, pois é dependente de algum veículo ou mecanismo que possibilite
sua preservação.
(iv) A leitura de uma obra literária é um processo cognitivo sui generis, pois a
Literatura oferece uma experiência absolutamente singular, devendo ser entendida como
fonte de um conhecimento além ou aquém do racional.
(v) A obra literária é apenas parcialmente realizada no ato de leitura. Qualquer
experiência individual de leitura é uma tentativa de apreensão da estrutura de normas e
padrões da obra. A estrutura de uma obra literária constrange a leitura que dela é feita e
resiste às imperfeições de nossas leituras. Estamos sujeitos, pois, a interpretar mal ou a
não compreender as normas e a estrutura da obra de arte.
(vi) A obra literária tem como referência um mundo ficcional, inventivo,
imaginativo. A ficcionalidade é, deste modo, um critério de distinção entre o que é e o
que não é Literatura. Assim, a verdade da Literatura não se confunde com a verdade
que pode ser metodicamente verificada.
38
“Though the world will not be put together again by semiotics or even philosophy, a modest degree of
intellectual communication between scientists, social scientists, and humanists can do much to hold
together what remains.”
79
(i) Os Estudos Literários devem ser rigorosos e metódicos, ainda que seus
métodos nem sempre coincidam com os das ciências naturais.
(ii) O saber produzido pelos Estudos Literários deve ser cognitivamente
diferenciado daquele obtido através da leitura direta da própria obra literária.
(iii) Os Estudos Literários precisam lidar com os elementos de generalidade e de
particularidade da obra literária, estando atentos para não se confundir individualidade
com singularidade absoluta.
(iv) Teoria, Crítica e História seriam as subdisciplinas que integrariam os
Estudos Literários, e se ocupariam, respectivamente, com a investigação dos princípios
gerais da Literatura, a análise das obras concretas (tomando a Literatura como ordem
sincrônica) e a consideração das obras concretas (tomando a Literatura como série
diacrônica e histórica).
(v) Os Estudos Literários não devem ser uma prática estritamente voltada a
propiciar atos individuais de leitura, mas devem constituir-se como uma tradição
suprapessoal em constante transformação e expansão.
(vi) A Literatura deve ser estudada como um todo. Seria falsa a idéia de uma
Literatura nacional contida em si mesma. A diferença entre as línguas no estudo das
Literaturas foi superestimada, em prejuízo de uma história internacional dos temas, das
formas, das técnicas e dos gêneros. Os estudos nacionais de Literatura devem ser apenas
o ponto de partida para a consideração de uma Literatura universal, o que implicaria
abolir o provincianismo lingüístico.
(vii) Os empreendimentos de cunho filológico-hermenêutico — a reconstrução
do contexto histórico e a interpretação à luz dessa reconstituição — têm papel
subsidiário e não podem ser o objetivo final dos Estudos Literários.
(viii) Embora os elementos ambientais, contextuais e históricos sejam a matéria
da obra de arte, o interesse do pesquisador em Literatura deveria ser sempre sobre
aquilo que é específico, individual, e que determina a condição artística daquela obra.
Os elementos extrínsecos em geral interessam a um ponto de vista estranho ao do
80
(i) A teoria é pensada por Wellek e Warren como uma disciplina universalista e
generalizante, que estuda os princípios gerais da Literatura e que, dessa forma, fornece
subsídios para a caracterização dos traços individuais de uma obra, um autor, um
81
período ou uma Literatura nacional — a ser empreendida pela Crítica e pela História
Literárias.
(ii) A teoria deveria ser um órganon dos métodos e uma espécie de disciplina
geral dos Estudos Literários, da qual a História e a Crítica seriam dependentes —
afirmação contraditória [em relação] a outras assertivas dos autores.
(iii) A teoria deve ser perspectivista, encontrando um meio termo entre a fixidez
do absolutismo das tradições e a fluidez do relativismo, que inviabiliza o estudo
sistemático.
(iv) A teoria deve concentrar-se nas obras de arte concretas, isto é, dedicar-se ao
texto literário em si. Para tanto, a recuperação e a atualização dos antigos métodos da
retórica, de poética ou da métrica clássicas devem ser revistos e reformulados em
termos modernos.
39
O termo “belas letras” corresponde a uma denominação em voga especialmente no século XVIII, que
se baseava em critérios estéticos (a beleza, a sensibilidade) para distinguir certa classe de textos dos de
cunho filosófico ou científicos, pertecentes ao campo da razão (cf. Souza, 2003:6-13). Roberto Acízelo de
Souza também observa que Kayser é um dos poucos a empregar o termo, no século XX, sem o cunho
irônico e pejorativo que carrega, quando aplicado para desqualificar textos “diletantes, conservadores,
frívolos ou reacionários” (ibid.:13).
84
40
Note-se, contudo, que o uso da palavra quase cria a lacuna que justificaria pensar-se a Literatura em
termos nacionais.
41
Paulo Quintela, tradutor da obra, reforça essa preocupação “de fixar a terminologia e o vocabulário
técnico da ciência literária”, mas buscando apoio na “nomenclatura alemã, indubitavelmente a mais
rigorosa e diferenciada” (Quintela in Kayser, 1976:XV).
87
Esse quarto requisito 42 , pouco científico, não é, para Kayser, algo acessório, mas
fundamental, pois representa exatamente aquilo que permitiria perceber “o que há de
específico na obra poética” (ibid.). Com isso, ele flexibiliza perigosamente sua noção de
ciência, ao introduzir um elemento que não pode ser transmitido racionalmente e que
aproxima o estudioso da Literatura daquele que possui um dom. E como tal qualidade
inata não pode ser medida ou avaliada, o discurso da Literatura ficaria novamente
aprisionado no plano da opinião e dos caprichos pessoais.
A vocação, no projeto de Kayser, parece se justificar apenas como um
argumento contra aqueles que acusam os estudos de arte de destruírem a sensibilidade
artística. Ele contesta o positivismo dominante e defende que os temas metafísicos
sejam reintroduzidos nos Estudos Literários:
42
Ao mesmo tempo que é uma condição sine qua non para a compreensão da obra literária e, portanto,
para seu estudo, a vocação corresponde também a um risco, pois conduz a um “entusiasmo” que
“ultrapassa, na maior parte das vezes, o interesse teórico” (ibid.).
88
Traído por sua concepção pessoal de arte, Kayser falha em transformar a Ciência
da Literatura em uma disciplina aberta para a variedade e mobilidade da Literatura.
Como agravante, a indiscutível erudição de seu autor faz com que seu manual apresente
um grande grau de dispersão no tratamento dos temas, especialmente no que toca ao
recurso a exemplificações. Ainda que Kayser relativize a importância dos exemplos em
seu livro, mais da metade do manual é voltada para exemplos, ilustrações e aplicações,
89
43
Como exemplo, “Obscuro (...) é mais rico em conteúdo emocional, tem mais perspectiva emocional
que escuro” (ibid.:332).
90
3 - CONSTRUÇÃO OU RUÍNA?
“(…) the absence of systematic criticism
has created a power vacuum, and all the
neighboring disciplines have moved in44 .”
Northrop Frye (1957:12)
Não há uma colocação ousada das questões gerais, (...) não há uma luta
verdadeira e sadia entre correntes científicas (…). No fundo, os Estudos
Literários ainda são uma ciência jovem, ainda não possuem métodos
elaborados e verificados na experiência como existem nas ciências naturais;
por isso a ausência de uma luta entre correntes e o temor de levantar
hipóteses ousadas acarretam necessariamente o domínio de truísmos e
chavões; destes, lamentavelmente, não há carência entre nós (Bakhtin,
2003:360).
44
“(...) a ausência de uma crítica sistemática criou um vácuo de poder que foi preenchido pelas disciplinas
vizinhas”. Tradução minha.
92
45
A obra teve, em vinte anos, oito edições portuguesas: 1a edição, 1967; 2a edição, 1968; 3a edição,
1973; 4a edição, 1982; 5a edição, 1983; 6a edição, 1984; 7ª edição, 1986; 8a edição, 1987, além de uma
reimpressão em 1988. Há também uma edição brasileira, lançada em 1976, pela editora Martins Fontes,
baseada na 3ª edição portuguesa. Em espanhol, foram nove edições, a última no ano de 1996. Em 1990
foi lançada em Portugal uma versão concisa e adaptada da obra, denominada Teoria e metodologia
literárias, de caráter didático e voltada provavelmente para os cursos de graduação.
46
Na 4ª edição, o manual deixou de ser um volume único e se dividiu em dois tomos.
93
Na passagem acima, o ano era o de 1983, e a 4ª edição havia sido lançada apenas
um ano antes! O açodamento com que os novos discursos são assimilados pelo manual
revela quão pouco autocrítica vinha se tornando a disciplina, incapaz de estabelecer
critérios sobre o que deveria e o que não deveria fazer parte de seu corpo teórico. A
passagem citada expõe o momento em que os estudos de semiótica são absorvidos pelo
manual, juntamente com novas idéias a respeito da importância da interdisciplinaridade.
É uma ocasião delicada para os Estudos Literários, que são novamente invadidos por
metodologias, objetivos e interesses advindos das ciências humanas em geral. Aguiar e
Silva, ao menos aparentemente, está atento para os problemas advindos da mistura entre
métodos e disciplinas:
estende desde a Grécia Antiga até nossos dias, parecendo estar a verdade sempre com
aquele que tem a última palavra.
Esse perigoso rumo tomado pelos Estudos Literários já havia sido percebido
pelo canadense Northrop Frye, que publicou em 1957 o livro Anatomia da crítica47 .
Embora falasse de “Crítica Literária” e não em “teoria”, ele tinha em mente uma noção
ampla de crítica, que corresponde àquilo que chamo neste trabalho Estudos Literários.
Frye (1973:23) defendia como primeiro postulado para um estudo metódico da
Literatura a necessidade de transformá-lo em um corpo de conhecimento coerente e
inteligível: até o momento, dizia ele, a cronologia era o único princípio organizador
descoberto nos Estudos Literários48 .
Frye (id.:24) chamava de “visão ingênua” a compreensão da Literatura como
uma espécie de bibliografia enumerativa das obras literárias, “uma vasta massa ou pilha
misturada de ‘obras’ distintas”. Para ele, se a Literatura realmente se limitasse a isso,
qualquer modo de aprendizado criterioso seria realmente impossível. Para que a crítica
seja um estudo sistemático, os textos literários devem possuir alguma característica que
permita que ela seja assim. Sua hipótese era a de que a Literatura precisava poder ser
descrita como algo mais do que um amontoado de obras, assim como, da mesma forma,
as ciências naturais fundam-se na hipótese de que há algum tipo de ordem na natureza:
Embora admita ser o texto literário uma “fonte exaurível” de novos sentidos,
Frye também defendia ser fundamental reconhecer-se que há discursos sobre a
47
Há duas razões para que eu não tenha tomado o livro de Frye como objeto de meu trabalho. Em
primeiro lugar, uma razão formal: ele não usa o termo “teoria da literatura”, mas “crítica literária”. Além
disso, e este é o motivo principal, ele é concebido como um livro de ensaios, e não se constitui — nem
pretender isso — como um manual de teoria. Embora tenha pretendido que seu livro fosse uma
experimentação “sobre a possibilidade de uma vista sinóptica do escopo, teoria, princípios e técnicas da
crítica literária”, ele admite que seu projeto tem lacunas que o impediriam de ser apresentado como um
sistema ou como uma teoria (cf. Frye, 1973:11). Para Frye, ainda não era possível se distinguir a crítica
que se pretendia científica — ele a chamava erudita — daquela que se baseava no gosto e na oscilação
das modas — nos seus termos, a crítica pública.
48
Opinião que me parece contestável, uma vez que os gêneros literários são um outro bom exemplo de
princípio organizador bastante fecundo e de longa história dentro do campo de estudos da literatura.
95
Literatura que são sem sentido e que impedem a construção de uma estrutura
sistemática de conhecimento. Mais do que reconhecer sua existência, era necessário se
livrar deles. A lista, para ele, era ampla, e incluía os comentários auto-reflexivos, os
ideológicos e os sentimentais. Em outras palavras, Frye entendia que não poderia haver
uma Crítica Literária criteriosa se ela não empreendesse uma constante autocrítica.
Frye reconhecia também que a crítica é cercada por grande variedade de
vizinhos, com os quais é necessário entrar em contato sem abrir mão de sua
independência. Embora possa parecer interessante conhecer as disciplinas aproximadas,
isso não significa que se precise emular seus métodos ou se instaurar abordagens que
interessam aos objetivos particulares dessas disciplinas. Por exemplo, seria obviamente
possível e razoável que um sociólogo queira trabalhar com textos literários, mas, ao
fazer isso, ele não atenta — nem precisa atentar — para os valores literários da obra. De
forma inversa, o crítico literário não deve ter obrigações com a Sociologia. Para um
teólogo, por exemplo, talvez um poema de uma religiosidade ortodoxa expresse de
modo mais satisfatório seus conteúdos do que um herético, mas isso não teria
importância para a Crítica Literária. Para o ensaísta canadense, não há qualquer ganho
quando se confundem os objetivos de duas disciplinas. E como os Estudos Literários
sofriam do “vácuo de poder” que a ausência de métodos próprios havia criado, o risco
maior era sempre o de se perder a especificidade do trabalho literário em função das
metas das demais áreas do conhecimento. Ele descrevia a Crítica Literária em um estado
de ingenuidade similar aos das ciências primitivas:
Contrastando com essa busca de Frye por um princípio orientador Aguiar e Silva
defendia a abertura cega aos novos modelos, alegando que o pressuposto
epistemológico fundamental de todo o ensino universitário deveria ser a consciência de
96
49
“Por definição referencial ou real, entende-se a definição que explica a natureza do objeto definido e
por definição nominal, aquela que explica o significado de um termo” (Silva, 1991:40).
98
produções ‘literárias’, a não ser o uso da linguagem”, o que obrigaria a “procurar no (s)
sujeito(s) leitor(es) o fundamento do conceito [.]” (Silva, 1991:17-18).
Referindo-se a Wittgenstein, o professor português comenta que falar em
essências conduziria à ontologização de enunciados e a esquecer-se que os conceitos são
instrumentos — uma vez que, quando se fala em essência, se estaria falando em termos
de uma determinada convenção lingüística, funcional apenas em um determinado jogo
de linguagem. Contudo, ele radicaliza o pensamento do filósofo austríaco, ao lhe
atribuir um ceticismo que tornaria “aleatória a fundamentação de qualquer teoria
científica” (ibid.:22-23). Em conseqüência, Aguiar e Silva, com a desenvoltura de quem
passa de Lukács a Stanley Fish no mesmo raciocínio, descarta Wittgenstein:
(...) os objetos (...) que são denominados com a mesma palavra apresentam
uma comum capacidade para serem utilizados do mesmo modo ou de modo
similar, satisfazendo ou dando uma resposta a determinados anseios, desejos
e finalidade do homem. E tal comum capacidade não pode ser totalmente
alheia à constituição dos próprios objetos (ibid.:27).
50
Voltarei ao problema dos conceitos nos estudos literários nos capítulos finais.
99
51
Em edições seguintes o autor acrescentará capítulos como “O sistema semiótico literário” e a “A
comunicação literária”.
102
(ii) o alerta para a necessidade de que a Teoria da Literatura deve evitar repetir a
normatividade que arruinou a Poética e a Retórica Clássicas (ibid.:78).
(iii) a defesa de uma Teoria da Literatura que se configura e que tende a ser cada
vez mais uma área interdisciplinar, em que “avultam como privilegiadas as conexões
[dela] com a Lingüística, mas também com outros ramos do saber — sociologia,
psicologia, teoria da informação, matemática” (ibid.:78, grifo meu).
Concretamente, nas últimas versões da obra, o que se observa é uma
aproximação de Aguiar e Silva às idéias semióticas de Iuri Lotman.
(...) o lansonismo é ele próprio uma ideologia; ele não se contenta com exigir
a aplicação das regras objetivas de toda pesquisa científica, ele implica
convicções gerais sobre o homem, a história, a Literatura, as relações do
autor e da obra (...). É certo que os postulados filosóficos são realmente
inevitáveis; o que se pode censurar ao lansonismo não são seus partis pris
52
Optei por abordar apenas uma obra de Barthes sobre os estudos literários. Sua produção crítica é muito
diversificada e muitas vezes contraditória, e considerá-la em sua totalidade conduziria a problemas
específicos do pensamento barthesiano que extrapolam os objetivos desta tese.
53
Note-se que nenhuma dessas orientações é originária dos estudos literários.
104
Desferindo um ataque feroz aos filólogos, retratados por ele quase como idiotas
que só conseguiriam perceber o sentido literal dos textos, Barthes descreve a Literatura
como uma segunda língua, à parte da literalidade, que libertaria a leitura das regras
filológicas. A ambigüidade seria um elemento constitutivo da linguagem literária. Se, no
uso cotidiano da língua, o contexto resolve a ambigüidade, seu uso literário se
caracterizaria pela capacidade de significar mesmo fora de seu contexto (cf. ibid.:216).
Tal distinção apresenta um problema ao qual Barthes não dá a devida atenção. A
língua, e não exclusivamente a Literatura, é cheia de ambigüidades. Um enunciado da
língua cotidiana pode gerar diversos sentidos fora de seu contexto. Desta forma, seria
necessário, pois, determinar, a priori, se um enunciado é ou não literário, para estarmos
autorizados a compreendê- lo em suas múltiplas significações e não buscarmos — como
os “lansonistas” a que Barthes se referia — o sentido do enunciado em seu contexto. Em
outras palavras, tal distinção seria insuficiente para marcar a diferença entre enunciados
literários e não- literários.
Barthes procurava atacar os lansonistas utilizando as próprias armas de seus
adversários. Fazendo valer a relação profunda por eles defendida entre a obra, o autor e
seu momento histórico, ele se pergunta por que tal relação deixaria de existir quando se
tratava da obra e do tempo do crítico, lançando assim aquele que será um dos grandes
pressupostos de sua visão de Literatura, ao colocar no mesmo nível discursivo a crítica e
a obra de arte literária, elidindo desse modo as diferenças entre os tipos de discurso.
Embora tal procedimento tenha tido e até hoje tenha muitos seguidores, abolir a
distinção entre os discursos em nome de uma noção ampla de escritura é uma operação
questionável. Northrop Frye sustentava uma interessante posição epistemológica a
respeito da necessidade de uma distinção entre a obra literária e seu estudo. Para ele, o
fato de a Literatura ser constituída por palavras levava muitos a confundi- la com outras
práticas discursivas — o que podia ser visto, por exemplo, nas bibliotecas que
catalogam a Crítica Literária como uma subdivisão da Literatura. Frye defendia que a
Literatura não devia ser tomada como um “tema” entre outros, mas como um objeto de
estudo. Os Estudos Literários estariam para a Literatura assim como a História estaria
105
para a ação e a Filosofia para o saber, isto é, seria uma representação discursiva de uma
atividade humana.
Os estudos sistemáticos de Literatura não produziriam, prossegue Frye, um
conhecimento imediato ou direto da Literatura, do mesmo modo que quem aprende uma
ciência natural como a Física não está aprendendo a natureza, mas as teorias físicas. Os
Estudos Literários, desta forma, conduzem ao aprendizado do conjunto de saberes sobre
a Literatura, não à obra literária em si: “(...) a dificuldade que amiúde se sente de
‘ensinar Literatura’ nasce do fato de que isso não pode ser feito: a crítica da Literatura é
tudo o que pode ser ensinado diretamente” (Frye, op.cit.:19).
Num primeiro momento, o pensamento de Barthes parece coincidir com o de
Frye, ao menos no que concerne ao problema da referencialidade:
Esses dois discursos não devem de modo algum ser confundidos, pois eles
não têm nem o mesmo objeto nem as mesmas sanções. Pode-se propor
chamar de Ciência da Literatura (ou da escritura) aquele discurso geral cujo
objeto é, não tal sentido determinado, mas a própria pluralidade dos sentidos
da obra, e Crítica Literária aquele outro discurso que assume abertamente,
às suas custas, a intenção de dar um sentido particular à obra (cf. ibid.:216,
grifo meu).
54
Barthes, afinal, talvez fosse um bom escritor, mas não um bom crítico, nas palavras de Costa Lima
(1981:208): “a última fase do Barthes, a sua fase mais narcisista, em que ele passa a fazer o ‘Barthes par
lui-même’, mostra como, afinal de contas, Barthes sempre foi um espelho. E um crítico-espelho não é um
109
contrária, especialmente quando a Literatura passa a ser por ele descrita como uma
espécie de crítica da linguagem55 . Em tais proposições, os críticos não se distinguem
mais do escritor, agora descrito dogmaticamente como “aquele para quem a linguagem
constitui problema, que experimenta sua profundidade, não sua instrumentalidade ou
sua beleza” (ibid.:210). Eliminando os gêneros discursivos, abolindo as diferenças entre
os escritores e obcecado por uma crença quase mística nos poderes da linguagem, tudo
o que restou, para Barthes, foi tomar a escrita como um triste solilóquio metalingüístico:
Se a crítica nova tem alguma realidade, ela consiste nisso: não na unidade de
seus métodos, ainda menos no esnobismo que, segundo se diz comodamente,
a sustenta, mas na solidão do ato crítico, doravante afirmado, longe dos álibis
da ciência ou das instituições, como um ato de plena escritura. (...) o escritor
e o crítico se reúnem na mesma condição difícil, em face do mesmo objeto: a
linguagem (ibid.:210).
crítico, porque o que fundamentalmente o analista (ao menos em princípio) deveria ser seria aquele que
estabelece uma palavra entre o modo como ele recebe alguma coisa e aquilo que independe da recepção
dele. Ora, se a minha escrita fundamentalmente é um speculum, é um espelho da minha reação diante do
texto, então não estou falando do texto, estou falando de mim a pretexto de falar do text o” (Lima,
1981:208).
55
Barthes fazia uma analogia com a Filosofia, que seria a crítica da razão.
110
56
Desprezar a literatura como um ato de comunicação, isto é, não tomar o texto literário como o produto
de um outro indivíduo que tem algo a comunicar, constitui-se como um modo de individualismo extremo
cujas conseqüências éticas extrapolam os limites deste trabalho.
111
Nos anos 80, os problemas da Teoria da Literatura alcançaram seu auge, como
ficou demonstrado no resultado da pesquisa promovida pela New Literary History
apresentado na introdução deste trabalho. Fragilizada em virtude das muito distintas
concepções sobre sua natureza e função, a teoria passou a ser objeto de interrogações
cada vez mais freqüentes a respeito de sua utilidade e relevância para os Estudos
Literários. Como os próprios teóricos da Literatura falhavam ou se eximiam de
circunscrever seu objeto de estudo, o “vácuo” criado por suas omissões e perplexidades,
de que falava Frie, passou a ser preenchido por discursos que começaram a pôr em
dúvida a legitimidade e especificidade da disciplina.
Tome-se como exemplo Para uma crítica da Teoria Literária, de Constanzo Di
Girolamo, lançado em português em 1985 57 . Baseando-se na glossemática do
dinamarquês Louis Hjelmslev, ele atacava o que chamava de falsas hipóteses, “que se
quer fazer crer serem universais” e que “são apresentadas como verdades científicas” da
Teoria da Literatura (Di Girolamo, 1985:8).
Para Girolamo, o campo da investigação literária estaria tomado por uma série
de abordagens parciais e dogmáticas comprometidas com um ideal inalcançável:
determinar as marcas específicas do texto literário. Tal tarefa seria simplesmente
irrealizável, pois seriam mutáveis, no tempo e no espaço, os elementos que os grupos
sociais identificam como literários. Seria sempre o público, em última instância, que
decidiria se um texto é ou não literário e que se disporia ou não a recebê- lo e avaliá- lo
por uma perspectiva estética.
Não haveria, portanto, naquilo que se chama Literatura, quaisquer traços que
justificassem um tratamento diferenciado em relação aos outros produtos de linguagem.
Em conseqüência, os instrumentos de trabalho de um estudioso de Literatura poderiam e
57
O original é de 1978.
112
58
A decisão de comentar o livro de Di Girolamo deve-se ao fato de o termo teoria da literatura ser
113
Nada que o próprio Aguiar e Silva ainda não estivesse fazendo com as contínuas
edições de seu manual.
Uma das poucas obras do período que talvez mereça a denominação de manual é
Teoria da Literatura: uma introdução, de Terry Eagleton, lançado em inglês em 1983 e
publicado em português no mesmo ano. A ressalva explica-se por ser o livro uma crítica
ao percurso histórico da teoria, combinada a uma defesa intransigente de um certo ponto
de vista sobre os Estudos Literários, mas que está longe de ser uma exposição
sistemática de uma proposta teórica de estudo da Literatura. O caráter do livro é
bastante compreensível quando se leva em consideração o estado da teoria naquele
momento — a essa altura, longe de ser uma disciplina que estudava a Literatura,
tornara-se muito mais um problema a ser encarado pelos Estudos Literários.
função óbvia. Os ideais de uma arte autônoma, portanto, não seriam nada além de uma
tentativa de defesa desesperada dos artistas contra o processo de mercantilização da
arte, através da glorificação da sua inutilidade. Em outras palavras, ele propõe que se
entenda a ligação entre arte e autonomia da imaginação como diretamente relacionada
aos efeitos do capitalismo industrial sobre os artistas (cf. ibid.:27).
Esse é o modo característico de exposição de Eagleton: misturando dados
históricos precisos, comentários político-econômicos pertinentes e uma indiscutível
habilidade retórica, ele condiciona os temas à sua perspectiva particular, e invalida —
quando não ridiculariza — os modos de pensar que lhe são adversos. Na situação
descrita acima, ele faz uma abordagem parcial do problema, uma vez que haveria
diversos modos de se pensar a definição de ficcional. A ficção não precisa ser,
necessária e exclusivamente, associada às idéias de obras de criatividade ou de
imaginação — pode-se, por exemplo, pensá-la nos termos de Searle 59 , simplesmente
como algo ao qual não cabe uma verificação em termos de verdade e falsidade.
Para defender sua posição de que é impossível se conceituar a Literatura, o
ensaísta se apóia num argumento recorrente no âmbito dessa discussão: o de que obras
tradicionalmente entendidas como não-ficcionais foram — ou são — cons ideradas
Literatura. Eagleton, porém, evita uma pergunta inevitável e que não poderia ser
ignorada: tais obras são coerentemente avaliadas como ficcionais? E quem as avalia
assim? O silêncio sobre a questão nada mais, do que um subterfúgio que lhe facilita a
demonstração de que não é possível se estabelecer um conceito trans-histórico de
Literatura. Como já acontecera em Aguiar e Silva, a conceituação é inviabilizada por se
pretender que ela dê conta de todos os sentidos e usos que a palavra já possuiu e poderá
vir a possuir ao longo da história.
A segunda tentativa de definição rechaçada por Eagleton é aquela associada aos
trabalhos dos formalistas russos, que aventavam a hipótese de ser possível se definir a
Literatura a partir de uma perspectiva lingüística. A obra literária seria, para eles, o
resultado de um determinado uso de linguagem, um uso que transformaria ou
intensificaria a potência da linguagem comum, produzindo uma “desconformidade entre
os significantes e os significados” (ibid.:3), e que chamaria atenção para a materialidade
do texto literário. Eagleton observa com acerto que o desprezo dos formalistas pelo
59
John Searle . Speech acts: an essay in the philosophy of language. Londres: Cambridge U. P., 1969.
115
estudo dos conteúdos da obra de arte literária — constantemente apontado por seus
detratores — não representava a negação das profundas relações entre arte e realidade
social, mas indicava que não deveria caber ao trabalho crítico dar conta dessa questão.
O objeto do trabalho crítico seria os elementos literários formais, os artifícios de
composição de uma obra: som, imagens, ritmo, sintaxe, métrica, rima, técnicas
narrativas.
Noções como a de estranhamento (ou desfamiliarização) — elaboradas a
partir da descrição de alguns efeitos causados pela transgressão das normas lingüísticas
por certas obras literárias — são contestadas por Eagleton (idem:6). Em primeiro lugar
porque, como nem toda quebra da norma é literária, a noção de desvio seria incapaz de
funcionar como um elemento de distinção entre textos literários e não- literários. Além
disso, a idéia de desvio pressupõe, necessariamente, a existência de um padrão, porém,
algo como um grau zero da linguagem não passaria de uma formulação abstrata sem
nenhuma correspondência na realidade. A língua se realiza de modo muito distinto por
diversos grupos sociais e simplesmente não haveria nada que pudesse ser chamado de
“linguagem comum”, a partir da qual o desvio se produziria:
A idéia de que existe uma única linguagem normal, uma espécie de moeda
corrente usada igualmente por todos os membros da sociedade é uma ilusão.
(...) Até mesmo o mais ‘prosaico’ do séc. XV pode nos parecer ‘poético’ hoje
devido ao seu arcaísmo (ibid.:6-7).
60
Em uma passagem mais adiante, Eagleton não parece estar muito convencido dos argumentos de Fish:
“(...) não há obra literária ‘objetiva’ (...). O verdadeiro escritor é o leitor: descontente com a mera co-
participação iseriana na empresa literária, os leitores agora derrubam os padrões e se instalam no poder.
(...) a crítica é apenas uma explicação das reações experimentadas pelo leitor a uma sucessão de palavras
na página. (...) Tudo no texto (...) é produto da interpretação, e de modo algum constitui algo dotado de
uma realidade factual. Isso suscita uma indagação intrigante, qual seja saber o que Fish acredita estar
interpretando quando lê. Sua resposta a essa questão, de uma sinceridade comovente, é que não sabe —
mas ele também acha que ninguém sabe” (Eagleton, 2003:117).
117
funcional a distinção, por ele mesmo proposta, entre discursos pragmáticos e não-
pragmáticos, uma vez que a “pragmaticidade” dos textos seria apenas um efeito
direto da escolha de uso feita pelos leitores:
O que importa pode não ser a origem do texto, mas o modo pelo qual as
pessoas o consideram. Se elas decidirem que se trata de Literatura,
então, ao que parece, o texto será Literatura, a despeito do que o seu
autor tenha pensado (ibid.:11).
Literária e a Teoria Literária signifiquem apenas qualquer manifestação (em certo nível
de ‘competência’, sem dúvida), sobre um objeto chamado Literatura” (ibid.:272).
Mas qual seria o “nível de competência” que transformaria uma opinião
qualquer sobre a Literatura num discurso teórico ou crítico? O ensaísta não está
inclinado àquela “euforia ecumênica” que celebra “a pluralidade dos métodos críticos”
(ibid.:272). Ele adverte que alguns métodos seriam mutuamente incompatíveis, e além
disso muitos trabalhos críticos seriam francamente avessos à qualquer tipo de método. E
na discussão gerada sobre os pressupostos de cada um, estes últimos seriam os piores
adversários, “já que o poder da ideologia sobre eles é mais acentuado em sua convicção
honesta de que fazem leituras ‘inocentes’” e de que não dependeriam de uma estrutura
de suposições ideologicamente condicionada (ibid.:273).
Eagleton crê que não há consenso capaz de harmonizar os estudiosos da
Literatura, pois conflitos como esse “só podem ser resolvidos unilateralmente”
(ibid.:273). A resolução da crise passaria pela discussão de problemas que se situariam
além dos limites cobertos pelo espectro dos Estudos Literários, a começar pelo próprio
status dos profissionais da área, descritos como uma classe intermediária, que nem
conseguiria superar as ideologias nem se uniria a elas. O surgimento dos Estudos
Literários acadêmicos teria sido uma resposta ao “amadorismo elegante” da crítica
impressionista que teria procurado substituir o diletantismo por um profissionalismo
organizado e que se justificasse perante os cofres públicos (cf. ibid.:274).
Esse “profissionalismo” seria, contudo, totalmente destituído de justificativa
social. A falta de objetivos claros nos profissionais da área seria um reflexo da condição
ambígua que os Estudos Literários acadêmicos teriam no mundo atual. Se a deferência
capitalista à arte não passaria de uma hipocrisia — exceto quando se trata dos altos
investimentos do mercado internacional das artes — , é também uma realidade o fato de
que os Estados capitalistas ainda alocam recursos nos departamentos de humanidades
das universidades. Eagleton descreve tais departamentos, em termos obviamente
althusserianos, como uma “parte do aparelho ideológico do moderno Estado capitalista”
(ibid.:275-6) que contém uma forma de conhecimento que contradiz as prioridades
desse mesmo Estado. Entretanto, o conteúdo desse saber não representaria uma ameaça
para o Estado, porque os Estudos Literários se caracterizariam exatamente por se
constituírem como um modo de manipular tais conteúdos numa linguagem aceitável. O
120
que se diz, dentro dos Estudos Literários, não poria em risco o status quo, sejam
posições moderada ou radicais, porque respeitariam a uma forma específica de discurso.
obra literária. Além do mais, a atenção dos Estudos Literários a algo que se costuma
chamar Literatura nunca foi justificada como uma declaração da superioridade desse
objeto sobre outras formas culturais, assim como não se deve supor que um médico se
especializa em cardiologia, e não em pneumologia, por achar que os pulmões não são
tão importantes quanto o coração.
A argumentação do ensaísta baseia-se no seguinte raciocínio: como a Literatura
é uma ideologia criada pelos Estudos Literários e esses são os responsáveis por atribuir
as características que pensam distinguir naquela, eles não teriam como justificar a
limitação de seu objeto — afinal, eles poderiam conceber a Literatura como bem
entendessem. Isso só não ocorreria, entretanto, porque os Estudos Literários possuiriam
uma “sectária intolerância ao nível do significante” (ibid.:279). Os exemplos a que
Eagleton alude são, no mínimo, questionáveis: ele menciona que não é possível deixar
de perceber que os mesmos instrumentos estruturalistas que podem ser aplicados ao
Lost Paradise, de Milton, “podem ser aplicados ao jornal Daily Mirror” (ibid.:280).
Ora, antes de mais nada, não parece ser um problema dos Estudos Literários se seus
métodos — no caso em questão, nem se trata de um método originário dos estudos de
Literatura — são capazes de dar conta de outros objetos culturais, ou se são utilizados
por outras disciplinas. Além disso, talvez se devesse perguntar a Eagleton se a aplicação
de um tratado de versificação ao mesmo periódico obteria resultados tão positivos.
Eagleton pretende resolver o problema dos Estudos Literários da forma mais
sumária possível: extinguindo o problema. Ao eliminar a existência de algo que possa
ser descrito como Literatura, ele torna todas as perguntas sobre o tema vazias. Sendo a
Literatura, como um objeto específico do conhecimento, uma ilusão, acredita que seria
mais vantajoso entendê- la:
Eagleton faz aqui uma estranha descrição da função da teoria, como se ela fosse
dependente dos métodos da crítica. Trata-se de uma afirmação problemática e não
esclarecida ao longo de sua exposição. De qualquer modo, é bastante claro que pretende
reforçar sua perspectiva: não há como haver uma reflexão teórica sobre um objeto
instável cuja descrição depende do contexto e do uso que dele se faz.
(...) a Teoria Literária (...) é de fato apenas um ramo das ideologias sociais,
destituída de qualquer unidade ou identidade que a distinga adequadamente
da filosofia, lingüística, psicologia, do pensamento cultural e sociológico. E
segundo, no sentido de que a única esperança que ela tem de se distinguir —
apegar-se a um objeto chamado Literatura — está mal dirigida (ibid.:280).
61
“Literary theory is supposed to reflect on the nature of literature and literary criticism” (Eagleton,
1996:7). A tradução deveria ser “(...) refletir sobre a natureza da literatura e da crítica literária.”
124
62
As correntes psicanalíticas — além, obviamente, das de orientação marxista — são umas das únicas
abordagens da literatura que contam com a simpatia de Eagleton. O ensaís ta entende que a discussão
sobre o prazer no âmbito da Psicanálise tem grande potencial de esclarecimento dos problemas de valor
nos estudos literários (ibid.:265).
63
Eagleton parece aqui se esquecer que a mesma comparação poderia ser aplicada aos seus tão caros
ideais socialistas e comunistas, que também geraram, à revelia de muitos de seus defensores, é bem
125
Causa surpresa que uma proposta de racionalização dos Estudos Literários seja
descrita como “um irracionalismo completo”. Exatamente de que estaria falando
Eagleton? Kant, não obstante sua glorificação da razão, também seria um
“irracionalista” apenas por ser cristão? É notável como, em algumas de suas críticas,
Eagleton se amesquinha a ponto de exercer um patrulhamento das opções políticas e até
mesmo religiosas de seus adversários.
(iii) Se o New Criticism é criticado por apostar suas fichas na razão, as teorias
baseadas na fenomenologia são descritas como autoritárias e dogmáticas pelo motivo
exatamente contrário: o desprezo pela análise racional. Centrada num modelo cognitivo
intuitivo, as correntes fenomenológicas são taxadas de alienadas e de serem um sintoma
da própria crise que pretenderam superar (cf. ibid.:85). Para Eagleton, o método
fenomenológico husserliano seria acrítico, pois é destituído de avaliações: “A crítica
não é considerada uma construção (...), é uma simples recepção passiva do texto, uma
transcrição pura de suas essências mentais” (ibid.:82). Já Heiddeger, a quem Eagleton
concede o crédito de ter sido o responsável pela reintrodução dos significados históricos
e da existência concreta do mundo na critica fenomenológica, teria falhado em derrubar
a metafísica ocidental, erigindo uma outra — o Dasein (ibid.:90).
64
Hirsch estabelece uma profícua distinção entre os significados e o sentido de uma obra. Sem negar que
uma obra literária signifique coisas diferentes, para pessoas diferentes, para épocas diferentes, ele trata
esses diversos entendimentos como uma questão de significação, não de sentido. Esse estaria relacionado
ao autor, aquela, aos leitores. O sentido seria absoluto e imutável e resistiria às transformações históricas
(cf. E. D. Hirsch Jr. Validity in interpretation. New Haven: Yale University Press, 1967).
127
65
Frederic Jameson. The prison-house of language; a critical account of structuralis m and Russian
128
— quando se elidiu a historicidade da arte e se fez com que obras cujas funcionalidades
históricas eram inteiramente distintas passassem a ser pensadas sob um mesmo prisma.
Eagleton quer fazer ver que há um erro de prioridades na Teoria da Literatura. A
escolha e a rejeição dos elementos teóricos deveriam estar exclusivamente ligados
àquilo que se pretende fazer, na prática, com os textos. As questões ontológicas e
metodológicas, que tanto preocupam alguns teóricos, seriam absolutamente secundárias
diante das questões que Eagleton chama de “estratégicas” — em seus termos, qualquer
método ou teoria que contribua para a “emancipação humana, para a produção de
‘homens melhores’ por meio da transformação socialista da sociedade, é aceitável”
(ibid.:288). Um exemplo desse tipo de modelo teórico estaria na prática do crítico
socialista que, ao tomar a Literatura em termos de di eologia ou luta de classes, não
estaria projetando seus interesses sobre as obras, porque tais questões, sendo a matéria
da história, e sendo a Literatura um fenômeno histórico, são também a matéria da
Literatura (ibid.:288).
Eagleton pode finalmente chegar ao corolário de sua teoria dos discursos. Como
todo ato crítico é, para ele, ideológico, não é possível não haver algo de prescritivo na
formulação de uma verdadeira teoria. Sem esse grau de normatividade, o discurso
teórico se transforma num falacioso modelo neutro, num modelo descritivista, cujo
limite seria a pura tautologia, ou num modelo entre infinitos, pois milhares de coisas
podem ser feitas com um texto. Toda atividade crítica deve ser, portanto, política, e, por
não haver como se dizer qual política é mais adequada para se tratar de um texto, tudo o
que resta a fazer é discutir-se, apenas e tão-somente, política.
Nesse modelo de “crítica política” do discurso, o papel dos textos que chamamos
Literatura seria incerto. Não teria mais seu status privilegiado, pois “tal dogmatismo não
tem lugar no campo do estudo cultural” (ibid.: 292). Com isso, os departamentos de
Literatura nas universidades deixariam de existir, em favor de departamentos que
deveriam combinar uma série de teorias e métodos de análise cultural, nova concepção
em cujos detalhes Eagleton não se aprofunda.
O autor perfaz assim o objetivo de seu livro, e conclui o planejado necrológio
não apenas da Teoria da Literatura, mas dos Estudos Literários como um todo. Não é
sequer possível se discutir seu modelo de Teoria Literária, simplesmente porque ele
inexiste como tal. O que se poderia fazer é criticar sua gritante incapacidade de refletir
sobre seus próprios fundamentos — a crítica marxista e os postulados do nexo causal
entre capitalismo e práticas discursivas, surpreendentemente, não são criticados ao
longo de seu manual —, bem como censurar seu dogmatismo político. Isso, porém,
significaria entrar em seu jogo e perder os rumos de uma reflexão cujo objetivo é
descrever, analisar e criticar uma disciplina que se apóia na hipótese de haver — ao
contrário do que pensa Eagleton — algo que pode ser chamado, metodicamente,
Literatura.
130
66
Catherine Belsey (1980:30), num livro influente no ambiente de língua inglesa — Critical practice —
já havia falado em uma “revolução copernicana” que estaria acontecendo nos modos através dos quais os
131
como uma combinação de ocorrências que aboliram antigas fronteiras entre criadores e
comentadores, entre Literatura escrita e Literatura oral, entre atividade de lazer e
cognição estética, entre poesia e espetáculo, entre Literatura legítima e paraliteratura, e
deram origem a um amálgama que “romperá com uma tradição secular e desembocará
(...) num novo significado do termo ‘Literatura’” (ibid.:13). Santerres-Sarkany
demonstra um otimismo pouco fundamentado, quase ingênuo, sobre o futuro dessa nova
cultura literária que, livre do jugo da academia, funcionaria “livremente” sob os
auspícios do mercado:
Essa nova Teoria da Literatura, agora uma “reflexão sobre a função de uma
prática cultural transformada” (ibid.150), se valeria dos pressupostos epistemológicos
defendidos por Santerres-Sarkany, para quem a ciência contemporânea não seria mais
“um saber sistemático, cumulativo e progressivo”, pois a idéia de “acumulação” de
conhecimento teria sido substituída pela de “dinâmica” (ibid.:134-5). Infelizmente, o
funcionamento dessa nova ciência fundada no dinamismo não é esclarecido pelo autor.
67
A primeira onda havia trazido o estruturalismo antropológico, a psicanálise, o marxismo e a lingüística
saussuriana para o campo dos estudos literários.
68
A edição brasileira é de 1994.
69
É o caso de Eagleton em sua superdisciplina, que iguala os textos “literários” e outras formas
comunicativas, e faz com que os fenômenos literários sejam explicados causalmente em termos das
mesmas leis descritivas e prenunciadoras empregadas em relação a outros fenômenos sociais. Além de
causal, tal teoria seria altamente teleológica, pois “sua teoria e sua prática crítica são construídas para
realizar mudanças radicais e sociais” (Freadman e Miller, 1994:66-7)
70
Para Freadman e Miller, por mais dogmática que seja, uma teoria precisa ter uma concepção prévia de
seu objeto (ibid.:248), ou então se transformaria em uma teoria sobre nada.
134
71
Isto é, num hipotético sistema de 3 termos, o sentido de A seria apenas não-B e não-C, o de B seria
não-A e não-C, e o de C, não-A e não-B, e os três termos seriam incapazes de significar qualquer coisa
para além de seu sentido negativo.
72
Conforme será visto mais adiante, o interesse dos autores é mostrar que a linguagem, em especial os
textos literários, pode produzir “representações autênticas do domínio ético” (ibid.:297).
73
Os autores interpelam também os teóricos que afirmam que tudo é ideológico na linguagem, mas que
não seriam capazes de explicar como as ideologias políticas determinam significados de termos como, por
exemplo, “círculo” e “dor” (ibid.:38).
136
sobre a realidade. Se os textos são apenas mercadorias, porque não tomar também
outros artefatos — não-artísticos — como objetos de interpretação?
Freadman e Miller também criticam o emprego da noção de “discurso” quando
usado de modo hiperbólico para se negar que seja possível ter acesso a qualquer tipo de
realidade fora da linguagem: se tudo é discurso e se todos os discursos são fictícios e
sem fundamento, conseqüentemente, tudo é fictício e sem fundamento. Nesse contexto,
as práticas discursivas são tomadas ou como produtos da ideologia — pelos marxistas
— ou como manifestações de poder — por Michel Foucault e seus seguidores —, com
argumentos que, embora se passem por científicos, nada seriam além de uma outra
crença supersticiosa na existência de uma presença malévola que está em todas as partes
— a Ideologia ou o Poder (ibid.:227).
Para criticar o argumento (iii), Freadman e Miller tomam o desconstrucionismo
de Jacques Derrida como objeto de reflexão. Descrevem a desconstrução como um
modelo discursivo que se propõe a revelar e demolir o que o filósofo francês chamava
de logocentrismo, um conjunto de pressuposições metafísicas que dariam forma à
cultura ocidental. Por operar com os mesmos conceitos que pretende destruir, a prática
desconstrucionista seria cheia de incoerências — os autodenominados “paradoxos da
desconstrução” —, embora disfarçadas pelo estilo discursivo reconhecidamente
anárquico de seu criador:
precisaria sequer se dar ao trabalho de tentar comunicar algo, uma vez que a
comunicação seria sempre um processo completamente aleatório.
Para Freadman e Miller, os desconstrucionistas analisariam os textos literários
buscando encontrar aquilo que Derrida já previra estar lá, isto é, os derridianos
produziriam leituras estereotipadas que reduziriam toda especificidade de um texto “à
mera apresentação de evidências, ao status de evidência para afirmações apriorísticas
sobre indeterminação, caráter metafórico e assim por diante” (ibid.:174). A
desconstrução, pois, não produziria leituras de obras, apenas processos de confirmação
de uma “profecia hermenêutica” (ibid.:179), que não permitiria ao texto analisado
revelar-se (ibid.:187).
A partir da tentativa de refutação dos fundamentos das teorias “anti- humanistas
construtivistas”, Freadman e Miller passam então a elaborar uma hipotética proposta de
estudo da Literatura 74 que possa ser qualificada de teórica, ainda que não emule às
ciências naturais ou às sociais. Para tanto, eles entendem ser necessário constituir um
conjunto de princípios coerentes, interligados numa estrutura abrangente e sistemática,
que possuam um vasto de campo de aplicação e que se ofereçam a uma comprovação
minuciosamente objetiva (ibid.:249).
Os autores entendem que há três tipos de procedimentos teóricos: o descritivo,
quando apenas se descreve um objeto sem pretender determiná- lo ou avaliá- lo; o
explanatório, quando se deseja explicar, em termos causais ou teleológicos, a
existência dos objetos; ou normativo, quando se recomenda, valorativamente, certas
práticas em detrimento de outras (ibid.:253-8). Grande parte das teorias literárias
contemporâneas seria, na opinião deles, de cunho normativo, no sentido de que
privilegiam uma dada interpretação das obras literárias e rechaçam terminantemente
teorias alternativas. Surpreendentemente, eles não crêem que isso seja, particularmente,
74
Freadman e Miller chegam a esboçar uma proposta teórica, que parte de uma concepção do objeto
literatura como uma forma de comunicação que envolveria alguém que comunica, alguém com quem se
comunica e algo que é comunicado. Esse algo comunicado é um texto, “um conjunto de atos de fala
estruturados de forma tal que cada texto constitui um todo unitário e, desse modo, distingue-se de todos
os outros textos e das coisas que não são textos” (ibid.:250). Tal definição distinguiria as obras literárias
de outros objetos, mas seria insuficiente para distingui-las dos demais tipos de textos. Como, na prática,
as pessoas, baseadas em critérios diversos, são capazes de identificar certos textos como literários, o
primeiro trabalho de um teórico poderia ser justamente o detalhamento e a sistematização desses critérios,
com o intuito de gerar uma base de dados iniciais de uma teoria (ibid.:251).
138
ruim. Eles próprios admitem defender uma teoria normativa — desejam mostrar que a
Literatura está essencialmente relacionada ao domínio ético 75 .
Freadman e Miller não negam o mérito dos comprometimentos sociais que as
teorias contemporâneas advogam, nem pretendem negar os importantes avanços obtidos
pelos Estudos Literários graças a trabalhos advindos de áreas tais quais os estudos
feministas ou pós-colonialistas, mas crêem que essas discussões só podem ser resolvidas
no campo da Ética76 . Eles querem mostrar que o relativismo cultural e a ausência de um
discurso ético estão intimamente relacionados, pois num contexto dominado pela
relatividade não há desenvolvimento moral possível, uma vez que aquilo que se torna o
“correto” é apenas o que uma sociedade diz ser: “a sociedade nunca pode estar errada, e
(...) o indivíduo — a menos que ele/ela se adapte — nunca pode estar certo” (ibid.:87-
8). Para Freadman e Miller, num contexto de relativismo cultural não poderia haver
nenhum tipo de desenvolvimento moral:
(...) é fundamental para nossa proposta que o texto possa simular e incorporar
aspectos notáveis do real; em especial, que ele possa oferecer representações
autênticas do domínio ético. Na verdade acreditamos que a Literatura está
essencialmente relacionada a esse domínio, e que seus poderes no que diz
75
Eles definem a ética como sendo “uma preocupação com a forma como se deveria viver (uma
preocupação que envolve questões inter-relacionadas sobre modos desejáveis de conduta das vidas
individuais, por um lado, e formas desejáveis de inter-relacionamento entre indivíduos, por outro)”
(ibid.:297).
76
Seja o marxismo, que substitui as questões éticas por questões de ideologia, sejam os formalismos
diversos, que defendem versar a literatura sobre nada porque também a linguagem é intransitiva, sejam
ainda os pós-estruturalismos, que vêem a literatura como uma convenção discursiva que pode revelar os
processos de construção social, as teorias literárias contemporâneas desprezariam os discursos éticos, por
considerá-los “áridos, opressivos e reacionários” (ibid.:75). Essa impaciência com o discurso ético, fruto
de uma combinação da priorização de sistemas sobre os eus individuais com um profundo descaso em
relação às explicações divergentes de mundo, seria, para Freadman e Miller, uma manifestação de
tendência subliminarmente totalitária (ibid.:20).
139
77
Eagleton assinala que, graças a “seu esoterismo, sua sintonia com os modismos, sua singularidade e sua
141
como “um substituto duvidosamente moderno da atividade política, numa época em que
tal atividade tem sido, em termos gerais, difícil de exercer”. Surgidas “como uma crítica
ambiciosa de nossos modos de vida correntes”, elas estariam agora ameaçadas de
terminarem “como uma complacente consagração destes” (ibid.:326). Para Eagleton, o
culturalismo e seus temas prediletos, a alteridade e a identidade, ao incentivarem o
relativismo, passaram a defender uma espécie de “domínio imperial às avessas”
(ibid.:325).
A indeterminação disciplinar das teorias que dominam os atuais Estudos
Literários assinalaria, para Eagleton, o esgotamento de um modelo de atividade
acadêmica, e sinalizaria que nem as humanidades nem o que se costumava chamar de
teoria poderiam prosseguir existindo como antes (ibid.:327). Era o fim da esperança de
que a teoria pudesse ser uma prática voltada sobre si mesma. A impossibilidade de se
alcançar o distanciamento clínico pretendido fazia com que todo e qualquer projeto
teórico estivesse sempre fadado ao fracasso (ibid.:300).
Apesar do tom desencantado e pessimista, pode-se perceber que, em comparação
com a 1ª edição de seu manual, Eagleton amenizou suas críticas aos modelos teóricos
mais tradicionais, fundados em valores humanistas e na crença na possibilidade de
existência de valores comuns. O Humanismo, outrora violentamente atacado, é agora
criticado apenas por não perceber que a esperança em valores universais deve ser
encarada como um projeto, e não uma realidade, pois ainda não haveria condições
materiais que permitissem seu florescimento (ibid.:330). Atualmente, dez anos após
esse posfácio, quando se acessa sua página dentro do site da Universidade de
Manchester, onde atualmente é professor, pode-se ver que sua postura intolerante em
relação à teoria parece superada, uma vez que ele declara ser essa uma de suas
especialidades, e que está interessado em supervisionar pesquisas nesta área:
relativa novidade, a teoria vem obtendo um alto prestígio no mercado acadêmico” (ibid.:326).
78
“‘Pure’ literary theory — formalism, semiotics, hermeneutics, narratology, psychoanalysis, reception theory,
phenomenology and the like — have taken something of a back seat these days to a more narrowly conceived
theoretical agenda, so it would be agreeable to see a resurgence of interest in these regions” [tradução minha] (Acesso
em 05/02/2006, http://www.arts.manchester.ac.uk/subjectareas/englishamericanstudies/academicstaff/terryeagleton/).
142
Segundo Culler (1999:42), aquela que deveria ser uma questão central para a
reflexão teórica — a pergunta sobre o que é a Literatura — parecia já não ter mais
grande importância para a teoria contemporânea, que abandonara o interesse pela
distinção entre obras literárias e não- literárias e passara a refletir sobre a Literatura
como uma categoria histórica e ideológica. A razão para se ter deixado de lado essa
questão fundamental poderia ser encontrada na importação e na mescla indiscriminada
de modelos teóricos externos aos Estudos Literários. Os teóricos das demais áreas
humanísticas não veriam utilidade na distinção entre se saber se um texto é ou não-
literário, mesmo porque as descrições de “literariedade” já produzidas são
insatisfatórias, além de apontarem para características que se faziam presentes em
outros tipos de obras — a narratividade, que se faz presente nos discursos históricos
variados; as figuras retóricas, presentes em tantos outros tipos de discurso, etc.
Culler procura então redimensionar a importância da pergunta “o que é
Literatura?”, mostrando que a busca de uma definição não visa a evitar que o leitor
“confunda um romance com a História ou a mensagem num biscoito da sorte com um
poema”, mas possibilitar uma formulação teórica que tenha por objetivo promover “os
métodos críticos mais pertinentes e descartar os métodos que negligenciam os aspectos
mais básicos e distintivos da Literatura” (ibid.:47).
Tomando a pergunta sob a ótica tradicional que averigua a possibilidade de se
pensar em traços distintivos comuns a todas as obras consideradas “Literatura”, Culler
admite que, quando se observa o caráter multifacetado das obras literárias, tanto em sua
variações sincrônicas quanto em suas transformações diacrônicas, é tentador concluir
pelo relativismo e dizer que elas são tudo que uma dada sociedade trata como tais, isto
é, “um conjunto de textos que os árbitros culturais reconhecem como pertencentes à
Literatura” (ibid.:29). Entretanto, ele observa, uma conclusão deste tipo apenas
deslocaria a pergunta original, transformando-a num questionamento sobre o que faz
com que se trate algo como Literatura.
144
Culler retoma e critica uma imagem de John M. Ellis, endossada por Eagleton
em seu manual79 , em que a Literatura teria o mesmo estatuto que as ervas daninhas têm
para um jardineiro. Assim como a noção de “mato” refere-se apenas àquilo que o
jardineiro não quer em seu jardim, isto é, não aponta para uma natureza em comum
entre as plantas que são assim denominadas, a Literatura também seria um conjunto de
textos considerados “literários” por alguém, mas que não possuiriam uma essência em
comum. Tal comparação, ele argumenta, novamente não eliminaria a pergunta inicial,
que se transformaria agora em “o que está envolvido em tratar as coisas como Literatura
em nossa cultura?” (ibid.:30).
O ensaísta parte então para definir seu próprio conceito de Literatura: sua
primeira proposição é a de que uma obra literária seria um produto discursivo que,
removido de seu ambiente e destacado de seus propósitos originais, ainda se ofereceria à
interpretação. Quando descontextualizada, esse tipo de obra produziria sua própria
contextualização — o contexto da Literatura (ibid.:32) —, onde certos princípios da
linguagem possuiriam um estatuto diferente. Por exemplo, o princípio cooperativo da
comunicação, em que se postula que se deve ser claro em qualquer ato de fala, teria sua
importância diminuída, a ponto de serem toleráveis obscuridades e irrelevâncias, pois
um leitor de Literatura presumiria que “as complicações da linguagem têm (...) um
propósito comunicativo” que exigiriam um certo esforço interpretativo (ibid.:33).
A Literatura, entretanto, seria algo mais do que apenas uma moldura que se
coloca em certo tipo de linguagem, pois, ele acredita, “nem toda sentença se tornará
literária se registrada na página como um poema”. Por outro lado, a Literatura seria
também algo mais do que um tipo especial de linguagem, uma vez que muitas obras
literárias não ostentam sua diferença em relação a outros usos de língua (ibid.:34). Eis,
portanto, o grande desafio da definição do conceito de Literatura. Aqueles elementos
que os teóricos apontam como propriedades das obras literárias, ou seus traços
distintivos — a colocação da linguagem em primeiro plano, a ficção, a Literatura como
objeto estético, como prática auto-reflexiva —, são, na verdade, muito mais fruto da
atenção particular dada por certos modos de estudo aos seus objetos. Tais qualidades,
entretanto, nunca conseguiram ser conceituações de Literatura, porque a linguagem
sempre resiste aos enquadramentos e “cada qualidade identificada como um traço
79
Curiosamente, Culler não cita nenhum dos dois na passagem.
145
importante da Literatura mostra não ser um traço definidor, já que pode ser encontrada
em ação em outros usos da linguagem” (ibid.:42). Ao longo da história, observa o autor,
foram atribuídas funções e qualidades diametralmente opostas à Literatura — muitas
vezes acusada de ser um instrumento ideológico, outras incensada por ser um lugar de
resistência onde a ideologia é exposta e pode ser questionada. Tal oscilação se
explicaria pela confusão que se faz entre propriedades potenciais da obra literária e
determinados focos de atenção que realçam tais características (ibid.:45). Para Culler, os
Estudos Literários só são possíveis quando não se esquecem da complexidade e da
diversidade de seu objeto, que, “afinal de contas, é uma instituição baseada na
possibilidade de dizer o que quer que você imagine” (ibid.:46).
A questão central dos Estudos Culturais, saber como somos manipulados pelas
formas culturais e como podemos agenciá- las, estaria ligada a sua dupla genealogia (o
estruturalismo francês e a Teoria Literária marxista britânica), que dera corpo a uma
mescla de análises que tomam “a cultura como uma expressão do povo” com outras que
a tomam “como imposição sobre o povo” (ibid.:50-1).
Culler, em princípio, não acredita que precise haver conflitos de interesses entre
os Estudos Culturais e os Literários. Os culturalistas não têm por que repudiar a
concepção de objeto literário proposta pelos estudos de Literatura, pois a própria origem
do culturalismo está relacionada à aplicação de técnicas de análise literária aos demais
artefatos culturais, também tratados como textos. Por outro lado, os Estudos Literários
teriam ganhado muito quando passaram a pensar a obra literária como uma prática
cultural que se relaciona com outros modos discursivos (ibid.:52). O medo de certos
literatos, de que os Estudos Culturais possam vir a matar a Literatura através do
146
estímulo à leitura e ao estudo de outras formas, seria infundado. Culler lembra que
acusação semelhante também fora feit a contra a teoria, quando se dizia que ela afastava
os alunos das obras literárias propriamente ditas (ibid.:53).
A aversão de parte dos estudiosos da Literatura aos Estudos Culturais estaria
relacionada a uma desconfiança de que os objetos de análise dos culturalistas são
selecionados não por sua “excelência literária”, mas por sua representatividade cultural.
Teme-se que critérios como o de “politicamente correto” ou o desejo de dar a cada
minoria uma representação justa acabem desvirtuando os princípios “especificamente
literários” de escolha das obras a serem estudadas (ibid.:54). Culler contesta tal
desconfiança, argumentando que não é verdadeiro que a “excelência literária” tenha
alguma vez efetivamente determinado o que devia ser estudado. Toda seleção feita
pelos Estudos Literários sempre foi orientada pela aplicação de critérios historicamente
comprometidos com valores não- literários. Com os Estudos Culturais, o que teria
mudado foi o entendimento daquilo que se acha interessante para ser representado por
uma obra literária, bem como a própria forma dessa obra (ibid.:54). Em outras palavras,
os Estudos Culturais teriam problematizado exatamente a própria noção de excelência
literária.
Agora que os Estudos Culturais parecem ter-se tornado hegemônicos no campo
das humanidades e que muitos dos seus praticantes já não possuem uma formação
literária, o antigo interesse despertado pelas obras literárias — sua complexidade como
objeto único — pode estar dando lugar a um tipo de sociologia não-quantitativa e
sucumbindo definitivamente à tendência em se tratar diversas formas culturais como
sintoma de alguma situação social específica.
Essa mudança de foco, que se consolida no desprezo pela categoria Literatura e
pelo empenho em favor de uma noção ampla como a de cultura, está, como se verá
mais adiante, diretamente relacionada ao caráter peculiar da reflexão teórica na
contemporaneidade.
Ele acredita que parte do problema está no próprio termo “teoria”, que, por um
lado, significaria “um conjunto estabelecido de proposições”, mas, por outro lado,
conteria usos menos específicos, vagamente aproximados à “especulação” ou a qualquer
tipo de explicação não óbvia de alguma complexidade. Citando Richard Rorty (apud
ibid.:13), Culler diz que o que se entende por teoria hoje seria um “tipo de escrita que
não é nem a avaliação dos méritos relativos das produções literárias, nem história
intelectual, nem filosofia moral, nem profecia social, mas tudo isso combinado num
novo gênero”.
De modo genérico, o termo “teoria” tem designado textos que alimentam ou
contestam reflexões fora da área de estudos onde são gerados. No caso específico dos
Estudos Literários, desde pelo menos os anos 60 o campo é receptivo a esse tipo de
reflexão teórica, que chamo aqui de teoria sem objeto, e que Culler propõe entender
como uma crítica da cultura em sentido amplo:
ganhou estatuto de uma teoria da sexualidade, apesar de estar longe de ser um conjunto
de axiomas que se pretendam universais 80 (ibid.14-17). Culler resume assim o que se
entende por teoria hoje: uma prática interdisciplinar, normalmente um discurso com
efeitos fora de sua disciplina original, de caráter analítico e especulativo, que representa
a tentativa de entender o que está envolvido naquilo que se está estudando
especificamente. Constitui-se normalmente como uma crítica ao senso comum, aos
conceitos considerados como naturais e às próprias categorias de sua própria reflexão
(ibid.:23).
Uma das características marcantes dessa “teoria” é que ela é virtualmente
infinita, pois consiste num corpus em constante expansão, graças a um processo
contínuo de novos acréscimos e de revisões. Por ser ilimitada, ela é, conseqüentemente,
impossível de se dominar, e provocaria nos indivíduos um efeito contrário ao que dela
se espera: quem estuda teoria esperando saber sobre um determinado fenômeno,
descobriria saber cada vez menos sobre ele. Culler, entretanto, parece ver com simpatia
esse efeito de atordoamento que a teoria provoca em quem resolve por ela se aventurar
— e que, segundo ele próprio, seria uma das principais causas de resistência a ela. O
ensaísta endossa esse estatuto negativo da teoria, acreditando que sua justa função deva
ser exatamente a de desfazer premissas e postulados.
Culler entende haver nos Estudos Literários dois projetos teóricos possíveis: um
poético, de cunho lingüístico, que se interessaria por como os sentidos e os efeitos são
possíveis, e outro hermenêutico, voltado para a interpretação das formas (ibid.64-65).
Atualmente, o primeiro modelo teria sido amplamente suplantado pelo segundo, já que
os culturalistas não se interessam pelo funcionamento da Literatura e buscam as obras
apenas por acreditarem que elas podem dar subsídios para suas reflexões. Assim, o que
se chama hoje de escolas ou abordagens teóricas da Literatura, antes de serem modelos
de interpretação, seriam discursos que têm a tendência de dar tipos específicos de
respostas à pergunta sobre aquilo de que trata determinada obra, baseadas no que elas
consideram particularmente importante para a cultura e a sociedade:
80
Esse tipo de trabalho, como também o método desconstrucionista de Derrida, atrairia os estudos
literários por seu caráter especulativo, que incita a se repensar as categorias fundamentais da literatura (cf.
ibid.:22).
149
81
Culler tem reservas, por exemplo, quanto ao fato de as descrições culturais representarem, como
pretendem, uma intervenção política progressista, especialmente nos EUA. A aversão dos culturalistas
americanos ao elitismo dos estudos literários tradicionais não poderia ser dissociada de uma “tradição
filistina” americana [,] e o desprezo pela chamada alta cultura não chegaria a ser “um gesto
politicamente radical ou de resistência” (ibid.:57).
151
82
Compagnon faz aqui as mesmas críticas de Freadman e Miller à aceitação indiscriminada de certas
doutrinas de Saussure por certos teóricos.
157
83
Ele é bastante impreciso em sua caracterização da história literária, chegando por vezes a identificá-la
erroneamente com a Filologia ou com os próprios estudos literários acadêmicos: “Por história literária
compreendo (...) um discurso que insiste nos fatores exteriores à experiência da leitura, por exemplo, na
concepção ou na transmissão das obras, ou em outros elementos que em geral não interessam ao não-
especialista. A história literária é a disciplina acadêmica que surgiu ao longo do século XIX, mais
conhecida, aliás, com o nome de filologia, scholarship, Wissenchaft, ou pesquisa” (ibid.:22).
84
Ele entende por crítica literária “um discurso sobre as obras literárias que (...) que descreve, interpreta, avalia
o sentido e o efeito que as obras exercem sobre os (bons) leitores, mas sobre leitores não necessariamente
cultos nem profissionais. A crítica aprecia, julga; procede por simpatia (ou antipatia), por identificação ou
projeção: seu lugar ideal é o salão, do qual a imprensa é uma metamorfose, não a universidade (...)” (ibid.:22).
158
infundada pela teoria, que contestou essa suposta polarização, enquanto sonhava ela
mesma em renunciar aos dois procedimentos.
A teoria tinha razão ao apontar que o factualismo e o objetivismo da História
Literária não podiam ser tomados de forma absoluta, pois não era tão simples quanto os
historiadores supunham pôr de lado seus próprios julgamentos para se reconstruir o
passado. Contudo, ela teria se excedido em suas críticas, quando postulou ser
irremediavelmente impossível se penetrar nas mentalidades antigas (ibid.:204), e
inviabilizou, deste modo, o próprio projeto de produção de conhecimento histórico. Em
outras palavras, se era justo alertar para que não se tomasse a descrição historiográfica
como realidade incontestável, não era pertinente encará- la como irremediável e
aprioristicamente falsa.
Expulsas pela teoria, a história e a realidade teriam retornado triunfalmente aos
Estudos Literários nas últimas décadas do século XX, sob a forma dos Cultural Studies,
do New Historicism norte-americano e dos estudos do pós-colonialismo, práticas que
seriam por muitos consideradas antiteóricas ou antiliterárias exatamente pela forte
oposição ainda existente entre teoria e história na mentalidade do campo de estudos de
Literatura. Compagnon não crê que se possa negar a elas o estatuto de teoria, mas
admite que seja razoável lhes censurar “o fato de não conseguirem estabelecer uma
ponte com a análise intrínseca” das obras literárias (ibid.:222). Essa difícil conciliação
entre os interesses dos Estudos Literários, culturais, históricos e políticos é um problema
que caberia exatamente à teoria resolver.
Ao longo do livro, porém, tal distinção parece ser dispensável. Compagnon não
expressa formalmente quais seriam as diferenças de métodos e de procedimentos que
permitiriam à Teoria Literária criticar a Teoria da Literatura, tampouco esclarece qual o
teor “literário” de uma reflexão que não seria exatamente dedicada às questões
relacionadas à Literatura, mas aos fundamentos e pressupostos de uma outra disciplina.
Sobretudo, ele mesmo não respeita muito sua própria distinção, e na maior parte das
vezes emprega simplesmente o termo teoria, sem explicitar se o complemento é
“literária” ou “da Literatura”.
Apesar dessas obscuridades, creio poder-se dizer que Compagnon acredita ser a
função tanto da Teoria da Literatura quanto da Teoria Literária organizar os Estudos
Literários. Ele define a teoria como uma “epistemologia” (ibid.:20), embora lhe negue o
estatuto de filosofia da Literatura, alegando que ela não teria caráter especulativo ou
abstrato, mas analítico. Trata-se de uma passagem contraditória, pois, além de as
epistemologias serem fundamentalmente filosóficas, não há nada de inadequado em ser
analítica uma filosofia, e, no fundo, Compagnon pensa a teoria como uma disciplina de
caráter filosófico, dedicada à avaliação dos pressupostos de valoração da crítica e dos
pressupostos de contextualização da História Literária.
Tendo por meta problematizar as afirmações e mostrar que todas podem ser
respondidas de diversas maneiras, Compagnon admite que a teoria seja uma disciplina
relativista, embora não pluralista. Ela se constituiria como um conjunto de doutrinas,
dogmas e ideologias que, num domínio em que a experimentação não é possível,
proliferam a ponto de haver tantas teorias quanto teóricos (ibid.:23). Entretanto, embora
sejam muitas as respostas possíveis, elas não seriam compossíveis, e se excluiriam
“mutuamente, porque não chamam de Literatura, não qualificam como literária a
mesma coisa; não visam a diferentes aspectos do mesmo objeto, mas a diferentes
objetos” (ibid.:26).
Compagnon parece ciente de que a distância entre o pluralismo e o relativismo é,
em muitos casos, apenas uma questão de grau. Diante de problemas que não podem ser
resolvidos de modo objetivo e imediato, a teoria radicalizou suas posições e passou a
eliminar os impasses da maneira mais sumária possível: tornando ilegítimas as questões
que atentassem contra o caráter relativístico do conhecimento por ela promovido. Teria
sido assim que termos de uso corrente nos Estudos Literários (Literatura, autor,
160
históricas, por outro uma prática destinada a ser transformada em um pequeno método
pela Academia — seria reflexo da dificuldade encontrada pelos teóricos em “preservar o
equilíbrio entre os elementos da Literatura”:
Não deixa de ser curioso num trabalho dedicado á Teoria da Literatura haver um
capítulo que se organize a partir das idéias de nação e de cronologia, duas categorias
estritamente ligadas àquela que foi a grande adversária dos primeiros teóricos: a
História da Literatura. Entretanto, como aqui se defende que uma das maiores
qualidades da reflexão teórica é ter a consciência de seus limites e da importância de
outros enfoques para a produção do conhecimento no âmbito dos Estudos Literários,
dedico esse capítulo a relacionar cronologicamente e a comentar de maneira sucinta os
manuais de Teoria da Literatura publicados originalmente no Brasil.
O critério empregado na seleção da obras foi o mesmo utilizado com as
estrangeiras, e acabou conduzindo à confirmação de que, também em nosso país, o
nome antecedeu a coisa85 : antes do manual fundador de Wellek e Warren, foram aqui
lançados ao menos dois livros com títulos que continham a expressão Teoria da
Literatura, embora descrevessem uma abordagem do fenômeno literário que em pouco
ou nada se assemelhava à que caracterizaria a disciplina ao longo do século XX.
85
Roberto Acízelo (in Jobim, 1992) comenta que a primazia da utilização do termo deve ser dada aos
russos Alexander Portebnia e Boris Tomachevski, autores de Notas para uma teoria da literatura (1905)
e Teoria da literatura (1925), respectivamente.
164
“se poder conhecer e pesar quanto a Literatura de hoje é divergente dos modelos
clássicos ainda obrigados nos programas oficiais” (in Cruz, 1935:7).
O elogio do poeta é apenas protocolar. A obra é aferrada a princípios
oitocentistas dos Estudos Literários, a começar pelo problema da conceituação da
Literatura. Cruz é extremamente ambíguo em sua definição de obra literária. Embora
assuma uma definição de cunho estético — “A Literatura é o conjunto das produções do
intelecto humano, faladas ou escritas, que despertam o sentimento do belo pela
perfeição da forma e pela excelência das idéias” (ibid.:13) —, ele aceita os diversos
sentidos históricos em que o termo foi empregado, bem como os sentidos que se faziam
presentes à sua época, e admite que a Literatura possa ser compreendida de uma forma
mais ampla, ainda que não vá dela se ocupar ao longo do livro. Sem maiores detalhes
que justificassem a opção, o autor deixa claro que tratará não da obra literária “em toda
a sua extensão, mas só aquela que é capaz de provocar uma emoção” (ibid.). Sua única
rejeição é às definições de cunho historicista que falem em termos de “espírito do povo”
e incluam, no âmbito da Literatura, toda a produção intelectual de um país, seja poesia,
música, romance, pintura, filosofia.
A crença em valores fixos e universais fundamenta sua visão dos Estudos
Literários — em seus termos, Crítica Literária. Cruz a define como a “análise das
produções do talento literário: um ato lógico que supõe o gosto (juízo estético) e
ilustração” (ibid.:88). A prática crítica seria um ato objetivo, pois a ilustração — “um
conjunto de princípios que permitem determinar as virtudes essenciais ou intrínsecas da
obra literária, e transmitir a outros o resultado dessa determinação” (ibid.:89) — evitaria
as idiossincrasias do gosto particular. Tais princípios, que não são explicitados pelo
autor, “ressaltariam aos olhos de todo talento crítico” e seriam responsáveis por não
permitir que o gosto pessoal se converta em obstáculo ao trabalho crítico. O caráter
normativo do manual revela-se ainda em passagens como aquela em que a arte literária
é definida como “o conjunto de preceitos segundo os quais deve ser composta a obra
literária, afim de que nos possa emocionar (...). É o meio adequado de representar o belo
literário” (ibid.:13).
165
86
A primeira parte é denominada “A arte literária em sua unidade”, e é composta pelos seguintes
capítulos, todos de orientação retórica: V – A invenção; VI – A disposição; VII – A elocução ou estilo;
VIII – A linguagem; IX – A linguagem literária; X – A linguagem figurada e XI - A Crítica Literária
87
A segunda parte é denominada “A arte literária em sua variedade”, e é composta pelos seguintes
capítulos: XII – Poesia épica; XIII – Poesia lírica e dramática; XIV – A didática e XV – A oratória.
166
Seria uma ilusão se achar que um único conceito ou uma única concepção de
Literatura exista a cada momento histórico: conceitos e concepções são múltiplos,
diversificados e, muitas vezes, absolutamente incompatíveis entre si (ibid.:13). Quanto a
sua própria noção de Literatura, Amora descrevia a obras literárias como ficção: uma
forma de conhecimento em que a realidade é recriada e expressa numa supra-
realidade , que não possuiria compromissos de identidade com a realidade racional ou
sensível (ibid.:32). Ele é contundente ao defender a Literatura como representação: o
que conferiria a um texto o caráter de obra literária não seria nem a natureza da
expressão nem seus objetivos, mas a natureza do seu conteúdo.
Procurando diferenciar seu livro dos outros manuais de orientação retórica e
poética voltados ao ensino da Literatura, Amora defendia que um livro didático não
poderia consistir em simples resumos dos pontos exigidos pelo programa oficial,
destinados à memorização dos estudantes. Ele pretendia ter escrito “uma obra com a
orgânica da ciência a que serve, e destinada à consulta, ao estudo e à reflexão, a que o
estudante tem de se habituar” (ibid.:8). Trata-se de uma postura progressista, quando se
lembra que, ainda nos anos 60 do século passado, continuavam a ser lançadas obras
como Teoria Literária (1965), de Hênio Tavares, obra que, apesar do título e da data de
lançamento, chama atenção por ter sido, ao longo de sua extraordinária vitalidade
editorial88 , absolutamente imune a todas os temas desse efervescente período da Teoria
da Literatura, sendo por completo afinada às orientações oitocentistas dos Estudos
Literários.
Em 1967, com uma obra remodelada, Introdução à Teoria da Literatura89 ,
Antônio Soares Amora abandona os termos retóricos em favor de uma concepção de
teoria mais afinada com a época. É de especial interesse a esquematização dos cinco
comportamentos possíveis diante da obra literária, a que me referi no capítulo inicial
deste trabalho, bem como sua distinção entre a “Teoria da Literatura (que é o estudo
geral da Literatura e seus problemas)” a as “outras disciplinas que também se ocupam
de fatos literários — a Análise Literária, a Crítica Literária e a História Literária”
(Amora, 2004:12). Dado o grande desenvolvimento dos Estudos Literários, o autor dizia
88
A última edição de que tenho notícia é a 12ª, de 2002.
89
A última edição de que tenho notícia é a 12ª, de 2004.
167
já não ser possível dominá- los em seu conjunto, razão por que cada uma dessas
disciplinas exigiria uma formação especializada (ibid.:151).
Sendo uma das cinco abordagens possíveis da obra literária, a Teoria da
Literatura, embora não se confunda com as demais, pois cada uma teria seus objetivos e
métodos próprios, mantém com elas uma relação íntima. Para Amora, o trabalho teórico
visa a estabelecer generalidades a partir da observação de fenômenos literários,
constituindo-se como uma disciplina de reflexão sobre os problemas da Literatura, e não
como uma série de conceitos a serem decorados pelos que estudam a matéria (ibid.:12).
Ele defendia que, como a Literatura está em constante processo de variação, também a
teoria deveria ser uma disciplina em permanente evolução (ibid.:41). Seus métodos não
poderiam ser fixos e deveriam variar conforme a natureza da obra a ser analisada.
Amora reunia no âmbito da Teoria da Literatura todo e qualquer esforço
especulativo e generalizante sobre a Literatura, o que lhe permitia contar uma história
da teoria que começava na Grécia clássica e se estendia até o século XX, quando —
após uma suposta divisão entre uma corrente de caráter cientifico e outra de caráter
filosófico — Ciência da Literatura e Filosofia da Literatura teriam dado origem a uma
só disciplina, a Teoria da Literatura, uma matéria propedêutica a qualquer tipo de estudo
da Literatura (ibid.:31-35).
non-sense — atingido por alguns discursos teóricos nos anos 70. Reproduzo, a título de
ilustração, dois parágrafos:
versificação, gêneros literários e uma longa parte (mais da metade do volume!) dedicada
à periodização literária —, o livro foi saudado pelo prefaciador, Massaud Moisés (in
Megale, 1975:s.p.), que elogia a fusão entre as novidades da Teoria Literária e “o saldo
positivo das investigações anteriores”, numa provável alusão à marcante presença no
manual de tópicos de orientação historiográfica, tais como estilos de época.
A ausência de reflexão e problematização sobre os temas e as questões da
Literatura torna o manual, efetivamente, pouco “teórico”. Argumentação, quando há, se
dá através de máximas de conteúdo dogmático, de que são exemplos: “A Literatura é
uma arte afim com outras artes, com determinadas ciências e intimamente ligada à
filosofia”; “o desenvolvimento das artes plásticas, rítmicas e cênicas é correlato ao da
Literatura” (ibid.:3). O conceito de Literatura defendido por Megale é relacionado com
arte e ficção, mas nenhuma das duas categorias é objeto de maiores esclarecimentos por
parte do autor. De forma geral, pode-se dizer que o manual é comprometido por sua
noção de Literatura por demais restrita — que talvez possamos qualificar como uma
poética da expressão, em que a gênese da obra é descrita como uma inspiração provinda
de “vivência que tenha comovido mais ou menos fortemente o escritor e agitado sua
vida íntima” (ibid.:09) a ponto de levá- lo à expressão estética dessa experiência.
No mesmo ano de 1975, Eduardo Portella organizou Teoria Literária, uma
coletânea de textos autônomos, de vários autores, sobre temas relacionados aos Estudos
Literários, dividido em quatro seções: 1 - Teoria Literária, Crítica e História, 2 - Estilo e
Épocas, 3 - Gêneros e Narrativas e 4 - A nova cultura e seus signos. Não há qualquer
preocupação em se sistematizar os assuntos tratados, a ponto de haver um capítulo
dedicado à “análise da narrativa”, mas nenhum dedicado á análise de poesia, por
exemplo.
No capítulo introdutório, sintomaticamente denominado “Limites ilimitados da
Teoria Literária”, o organizador comenta a importância “repentina e peculiar” que a
Teoria Literária, ao ocupar o espaço outrora preenchido pela Poética e pela Retórica,
tinha assumido dentro dos Estudos Literários:
(...) por todo o universo sem fim das diferentes práticas sociais, unindo, num
esforço conjugado de compreensão da intersubjetividade, espaços teóricos
aparentemente distantes ou refratários entre si. A Antropologia, a Lingüística,
a Psicologia, o Direito, a investigação empírica e a pesquisa teórica, dão as
mãos para levar adiante a tarefa comum de decifração do enigma do homem.
(ibid.:8)
Literatura”. Para o ensaísta, o modelo de reflexão gerado pela combinação das análises
operacionais ancoradas no Formalismo eslavo e no New Criticism saxão era fundado
numa crença quase religiosa na Estética, sem que em nenhum momento a capacidade de
objetividade e credibilidade dos princípios e critérios estéticos fosse devidamente
questionada (Lima, 1975:11). Se a teoria fosse realmente uma espécie de suma dos
Estudos Literários, o “órganon dos métodos” (Wellek & Warren, 2003:9), de onde
proviriam seus critérios validatórios? Como se descrever métodos diversos sem se
explicitar a própria posição do teórico?
Costa Lima defendia que a teoria deveria ser uma espécie de epistemologia dos
Estudos Literários, empenhada “em discutir seus critérios de coerência, validade e
verificação”, bem como em limitar “suas lacunas demonstrativas, suas contradições ou
mesmo incoerências" (ibid.:12). Essa pretensão, entretanto, seria comprometida,
segundo o autor pelo papel basilar que a Estética, com seu caráter especulativo
incompatível com um ideal de ciência, desempenhava na disciplina.
A tradição da Es tética está ligada a aspectos voltados à compreensão da arte
como uma experiência cognoscitiva “inferior”, em comparação com a clareza e certeza
das apreensões lógicas. Quando a Teoria da Literatura se associa aos princípios
estéticos, aceita a indeterminação e a confusão como inerentes à arte. Costa Lima
defendia a teoria como epistemologia exatamente por estar a disciplina empenhada em
“pensar a arte além da experiência com que ela se recusa ao entendimento” (ibid.:19).
Conclui então que, sendo a Estética um a priori de grande parte dos Estudos Literários,
para a Teoria da Literatura aspirar a ser uma ciência formalizante que não opera sob o
princípio da crença, ela tem por obrigação refletir sobre seus pressupostos estéticos, ou
admitir que “que não se quer como ciência e sim como uma filosofia da Literatura”
(ibid.:16).
Em 1983, na segunda edição 90 de Teoria da Literatura em suas fontes, Costa
Lima 91 descreve no prefácio o reader como uma obra de caráter didático-informativo
“imprescindível dada a situação calamitosa do ensino de Teoria da Literatura em nossos
90
A última edição de que tenho notícia é a 3ª, de 2002.
91
Costa Lima diz que decidiu “expurgar” a introdução geral contida na 1a edição, “tanto por apresentar
uma visão demasiado particularizada da teoria da literatura, quanto por conter uma reflexão hoje
demasiado datada” (Lima, 1983:1). Se de fato alguns comentários sobre as correntes teóricas poderiam
soar datadas ainda nos anos 80, creio que sua reflexão sobre a relação entre Teoria da Literatura e Estética
permanece atual nos dias de hoje.
173
92
O problema de os alunos não serem capazes de ler em outra língua é superdimensionado por Costa
Lima. A dificuldade seria facilmente contornável, caso existissem bons livros de teoria traduzidos ou
escritos em português.
174
Aqui estou em desafio pelo fascínio que me colocou no impasse que tento
desenrolar porque não disse “não” ao compromisso com o claro. Faz de conta
que é possível dizer algo sobre qualquer coisa para alguém compreender. E
como todo faz de conta implica numa história, começaremos por outra — a
de menos um.
Era uma vez um homem que sonhava... Conheci-o à distância de meu
silêncio, pesar de, de vez em quando, nos cruzarmos em andanças. Clown,
louco e muitas outras coisas diziam dele e de sua perseverança de falar e
escrever sobre Lacan. Um pouco mais de ironia circulava de boca em boca,
nos meios literários, que além do próprio Lacan, só ele sabia o que esse
senhor escrevia. E não é que era verdade! Desviei-me de seu rumo. La mento
esse abandono. Mas só depois, muito depois, é que me dei conta da perda em
relação ao meu desejo de conhecer o pensamento de Lacan. Nessa época
andava colada em outras bandas (in Samuel, 1985:124).
93
A última edição de que tenho notícia é a 14ª, de 2001.
94
A última edição de que tenho notícia é a 9ª, de 2004.
175
6.3 – O RENASCIMENTO
A Teoria Literária reúne uma coleção de ciências que alguns tratam por
“Teoria da Literatura”, outros de “Teoria Literária”. Esta distinção existe:
“Teoria Literária” se diz da teoria que nasce da prática literária, da obra, da
leitura; e “Teoria da Literatura” vê a Literatura como objeto do saber
(Samuel, 2002:7).
Ou ainda a estranha descrição lingüística de texto literário, que falha, se não pelo
simplismo, pela indefinição trazida pelo uso da expressão “outras propriedades”:
95
A última edição de que tenho notícia é a 3ª, de 2005.
176
96
Os capítulos são: “A natureza da obra literária” (do qual nos ocupamos mais adiante), “A estrutura
definitória idealista”, “Marxismo e desconstrução”, “Platão e o mito da caverna”, “Platão e o
Platonismo”, “Kant e o despotismo da razão”, “Hegel e a busca do absoluto”, “Hegel e o fundamento da
existência”, “Marx e o preço do poeta”, “Marx e a produção imaterial”, “Mao Tse-Tung sobre a
contradição” e “Lógica da comparação intertextual”.
97
“A definição busca ser definitiva, dizendo de uma vez por todas o que se organiza em determinado
espaço. Já o conceito é a percepção dos elementos idênticos naquilo que ao longo do espaço e do tempo
se apresenta diferenciado e diversificado” (ibid.:31).
177
98
O único argumento de Kothe é o suposto reacionarismo de seus autores, em termos que lembram muito
as piores críticas de Terry Eagleton: “Austin Warren pertenceu ao new criticism americano, conhecido
por seu conservadorismo político; René Wellek saiu do seu país, a Tchecoslováquia, por causa dos
perigos da guerra e, tendo boas condições de trabalho em Yale, não morou mais lá depois que foi
instaurado o comunismo” (ibid.:19).
178
centrado nesse caráter diacrônico dos Estudos Literários, conduz a uma dificuldade que
é comum a todas as posições que atentam para a extrema variabilidade dos modos de se
conceber a Literatura dentro do âmbito da reflexão teórica: afinal, a Teoria da Literatura
é uma ou várias disciplinas? Se uma, caberia a qualquer manual ressaltar os pontos de
permanência e continuidade comuns a todas as correntes, tornando possível se continuar
falando em uma, e somente uma, Teoria da Literatura. Se várias, a questão conduz a um
contra-senso, pois como uma disciplina pode ser uma, a ponto de dar origem a um
manual, e várias ao mesmo tempo? Não parece ser possível tomar-se de modo histórico
a Teoria sem enfrentar esse problema.
No caso do manual em questão, a disciplina aparece mais uma vez como um
sinônimo de Estudos Literários, em que todos os procedimentos teóricos, críticos e
históricos concorreriam para o objetivo único de produzir conhecimento sobre a obra
literária. A Literatura é tomada de forma historicista, através do inventário de seus
conceitos ao longo das eras: Antigüidade, Idade Média, Renascimento, Neoclassicismo,
séculos XIX e XX. Não há no manual, efetivamente, qualquer tipo de “novidade” que o
distinga de seus predecessores, seja em relação ao conteúdo, seja no que concerne ao
tratamento dos temas.
179
99
A fonte das afirmações que se seguem sobre “conceito” é o livro de Frédéric Cossuta (2001) Elementos para a
185
Por conceito, entendo um “operador textual que (...) permite categorizar o real
ou o ser integrando-os no domínio do dizível”, através da articulação entre um termo
significante, um sentido e uma referência (ibid.:50-1). A instauração de um conceito
envolve três fatores, cuja correlação deve ser fixada através dos seguintes
procedimentos:
(i) a escolha e a fixação de um termo significante, operações que não devem ser
arbitrárias e que requerem sempre algum modo de validação dessa escolha
terminológica;
(ii) a definição do sentido do termo significante, através do elenco de seus traços
discriminantes e de seus elementos diferenciados em relação aos demais conceitos.
(iii) a indicação de sua referência extra-discursiva 100 , através de exemplos e de
casos particulares.
Vale ressaltar que a fixação e a delimitação dos sentidos dos termos não
correspondem apenas a um preâmbulo da reflexão teórica, mas a uma parte fundamental
dela, em que se “reorganiza o universo da língua” e se cria um “universo de significação
autônomo” (ibid.:41). Uma nova terminologia é sempre instaurada sobre um campo
nocional pré-existente, isto é, sobre um conjunto de termos — palavras da língua ou
expressões semiconceituais — que antecedem ao sistema conceitual que está se
implantando. Quando a terminologia de uma doutrina integra-se num todo sistemático,
constitui-se assim o campo conceitual que garantirá aos conceitos a sua área de
significação. Fora desse campo, um termo retorna à sua condição de palavra ou de
noção assistemática.
Como todo termo carrega consigo os resíduos de suas significações em outros
campos conceituais, nocionais e mesmo na língua cotidiana, muitas das dificuldades
encontradas na leitura de textos teóricos não estão relacionadas à obscuridade do que é
dito, mas ao desconhecimento do seu campo conceitual — ou, o que é muito mais
comum em nossa área, à ausência de um.
Embora se desenvolva a partir do sistema conceitual que constitui, a reflexão
teórica pode e deve fazer referência a um mundo da experiência comum com seu leitor,
101
Note-se, porém, que “o campo conceitual não visa diretamente o real, mas constrói uma representação ‘ideal’
dele, estruturando um universo de denotação que, mediante certos procedimentos, lhes pode ser associado”
(ibid.:66).
187
também avaliar todas as recorrências, paráfrases e transformações que ele sofre dentro
de um modelo teórico (ibid.:42).
O sucesso de um sistema conceitual está, entretanto, condicionado à superação
do terceiro obstáculo à reflexão teórica: os pressupostos relativistas que orientam grande
parte das abordagens à Literatura na atualidade. Trata-se de uma questão de resolução
mais complexa por ser sua origem externa ao âmbito da Teoria da Literatura e dos
Estudos Literários, fato que não chega a ser excepcional, dada a enorme permeabilidade
das fronteiras de nosso campo de estudos.
As idéias relativísticas estão longe de ser uma novidade nas Ciências Humanas.
No campo da Antropologia 102 , a noção de relativismo cultural foi formulada pelo
antropólogo alemão Franz Boas e está ligada a uma postura metodológica em que o
pesquisador deve suspender ou pôr de lado seus preconceitos culturais para tentar
entender crenças e comportamentos em contextos específicos. Representou, portanto,
uma contrapartida ao pensamento etnocêntrico que dominou a disciplina no século XIX.
No campo dos estudos filosóficos 103 , as idéias relativísticas remontam pelo
menos aos sofistas 104 e constituem um tema de grande força no campo da Ética — o
relativismo dos valores morais — e no campo da Epistemologia — o relativismo do
conhecimento humano. De modo geral, a defesa da relatividade está ligada a uma
atitude de negação da possibilidade de haver algum tipo de verdade cuja validade seja
universal. Um relativista assume, portanto, que os sentidos e os valores das crenças e
comportamentos humanos não possuem uma referência absoluta e são sempre
relacionadas a contextos históricos e culturais específicos. Em conseqüência, não seria
possível se falar de características intrínsecas aos seres ou aos objetos e qualquer
proposição sobre o mundo constitui apenas um entre inúmeros modos possíveis de se
interpretá- lo.
O relativismo que grassa em nosso campo de estudo sugere que a limitação de
nossos sentidos e nossos preconceitos culturais nos impediriam de observar
objetivamente o mundo e aparenta ser uma combinação das idéias advindas da
102
As informações sobre o relativismo cultural na Antropologia foram obtidas em Salter, F.K., ed. Risky
Transactions. Trust, Kinship, and Ethnicity. New York: Berghahn, 2002.
103
As informações sobre o relativismo do conhecimento na Filosofia foram obtidas especialmente em Robert
Audi (1999) The Cambridge dictionary of Philosophy, Simon Blackburn (2005), The Oxford dictionary of
Philosophy e Richard Rorty (2000), Pragmatismo: a filosofia da criação e da mudança.
104
O famoso axioma de Protágoras de Abdera, "O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são,
enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são", é fonte de controvérsias até os dias atuais.
188
105
Confo rme Capítulo 5, p. 135.
189
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