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CANDIDO

JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ


85 AGOSTO 2018
www.candido.bpp.pr.gov.br

A nova literatura
Índio San

Geração pós-Jorge Luis Borges se


caracteriza pela diversidade de

argentina linguagem, gêneros e temas

Perfil | Glauco Flores de Sá Brito • Os Editores | Ivan Pinheiro Machado • Conto | Otávio Duarte
2 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

EDITORIAL
André Feltes
EXPEDIENTE

CANDIDO
Cândido é uma publicação mensal
da Biblioteca Pública do Paraná

Diretor da Biblioteca Pública do Paraná: Rogério Pereira


Presidente da Associação dos Amigos da BPP: Marta Sienna

Coordenação Editorial:
Rogério Pereira e Luiz Rebinski.

Redação:
Marcio Renato dos Santos e Omar Godoy.

Estagiários:
Daniel Tozzi e João Lucas Dusi.

U
Diagramação:
ma nova geração de autores ar- do guarida em pequenas editoras. Pedro Uma das obras mais incomuns Thapcom.com
gentinos pede passagem. O país Mairal, Miguel Vitagliano, Ricardo Ze- do legado de João Cabral de Melo Neto
que recentemente perdeu um larayán e Marcelo Birmajer são alguns está prestes a completar 30 anos. O li- Colaboradores desta edição:
de seus escritores mais brilhan- dos nomes que merecem ser conhecidos vro em questão, Sevilha andando, é tema Ana Elisa Ribeiro, André Feltes, Carlos Henrique Schroeder,
tes, Ricardo Piglia, morto em 2017, vê no Brasil, segundo Schroeder. de reportagem do escritor e jornalista Ewerton Martins Ribeiro, Gilmar Leal Santos, Índio San, José
a literatura local andar a passos largos. Ampliando a discussão sobre Marcio Renato dos Santos. Ele entre- Carlos Fernandes, Mariana Sanchez, Otávio Duarte, Otto Leopoldo
Muitos desses ficcionistas já alçaram a nova literatura argentina, Ronaldo vista críticos e leitores que falam sobre Winck e Ronaldo Bressane.
voos altos, sendo traduzidos em diver- Bressane entrevista o crítico, escritor e as particularidades da obra mais lírica
sas partes do mundo, inclusive no Bra- acadêmico Daniel Link, que fala mais do antilírico João Cabral. Redação:
sil. É o caso de Selva Almada e San- sobre o atual momento da prosa de seu Outro poeta, o gaúcho-para- imprensa@bpp.pr.gov.br — (41) 3221-4974
tanta Schweblin, cujas obras o escritor país. A tradutora Mariana Sanchez, que naense Glauco de Flores de Sá Brito, é
Carlos Henrique Schroeder destaca no vive em Buenos Aires desde 2015, assi- personagem de um perfil assinado pelo Acompanhe o Cândido pela internet:
ensaio que escreveu para esta edição. na tradução de um trecho do romance jornalista José Carlos Fernandes. Ra- candido.bpp.pr.gov.br e facebook.com/jornalcandido/
Atento à produção literária do Eisejuaz, clássico de Sara Gallardo que dicado em Curitiba a partir dos anos
país vizinho, Schroeder passeia por di- será publicado em setembro no Brasil 1930, Glauco marcou a vida cultural O site www.bpp.pr.gov.br e as redes sociais (Facebook, Twitter
versos períodos e autores e, claro, joga pela editora Relicário. da cidade ao transitar por várias áreas, e Instagram) divulgam informações sobre serviços e toda a
luz na trajetória e influência de Jorge Outro destaque da edição é a en- como teatro, TV e literatura. programação da BPP.
Luis Borges, que de tão grande, aca- trevista da série Os Editores, com Ivan Entre os inéditos, o Cândido
bou se tornando uma barreira para Pinheiro Machado (foto), fundador da publica conto de Otávio Duarte, poe-
novas gerações durante muitas déca- editora gaúcha L&PM. Na conver- mas de Otto Leopoldo Winck, Ewe- BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ
das. “A literatura argentina é borgeana. sa com o editor do Cândido, Luiz Re- ron Martins Ribeiro, Ana Elisa Ribeiro Rua Cândido Lopes, 133 | CEP: 80020-901| Curitiba – PR
Ponto. Nada escapa da sombra de Bor- binski, ele relembra os primeiros passos e Dylan Thomas, em tradução de Gil- Horário de funcionamento:
ges”, diz o autor do romance As fan- da empresa até chegar ao atual catálogo, mar Leal Santos. A ilustração da capa é segunda a sexta: 8h30 às 20h
Sábado: 8h30 às 13h.
tasias eletivas (2014). Ainda assim, os com mais de 3 mil títulos. E fala sobre assinada pelo artista Índio San.
jovens autores têm surgido em gran- como popularizou autores undergrou-
de quantidade, muitos deles, afina- nd a partir de Coleção Pocket, um dos Todos os textos são de responsabilidade exclusiva
dos com os novos tempos, encontran- maiores sucessos editoriais do país. Boa Leitura. do autor e não expressam a opinião do jornal.
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CÂNDIDO indica CURTA DA BPP

ESPERANÇA O CORTIÇO
PARA VOAR Aluísio Azevedo, Bate-papo com
Rutendo Tavengerwei, Todavia, 2018 Angélica Freitas
Kapulana, 2018 A ganância e a inveja do
Divulgação
(Tradução: Carolina Kuhn português João Romão
são os fios condutores
Facchin) deste romance de 1890,
Estreia de Rutendo Tavengerwei, situado no Rio de Janei-
Esperança para voar é um romance ro, que captou o clima de
ambientado no Zimbábue, terra incerteza e mudanças so-
natal da escritora, especificamen- ciais do Brasil naquele
te em 2008 — ano em que uma momento. Alheio à cul-
crise política provocou tremor de pa, Romão finge alforriar
terra no país africano. Há recriações de adversidades daque- a escrava Bertoleza e, juntos, constroem a “pe-
le contexto, em que a comida era pouca e a liberdade, inclu- quena África” do colonizador branco em nosso
sive de falar, mínima. No centro da narração está a jovem país tropical. É o cortiço de João, próspero de-
Shamiso, que retorna de uma temporada europeia e tenta se vido à desonestidade de seu dono, que se torna
adaptar ao Zimbábue, no momento em que perde o pai, um a personagem principal desta obra ao amalga-
jornalista que fazia oposição ao regime ditatorial da época. mar várias figuras exóticas e suas tragédias —
Shamiso também acompanha a luta de uma amiga, Tanya- como a portuguesa Piedade, que se torna alcoó-
radzwa, que enfrenta um câncer. Reinvenção da realidade e latra após seu marido, Jerônimo, traí-la com a
suas inevitáveis pedras no caminho, que surgem na trajetória brasileira Rita Baiana.
de todos humanos — estejam onde estiverem.
SAX
ONDE SE ÁSPERO
AMARRA Marco Polo
A TERRA Guimarães,
VERMELHA Confraria do A convidada de setembro do pro-
Marco Aurélio Cremasco, Vento, 2017 jeto Um Escritor na Biblioteca é a poe-
Nave Editora/Nauemblu ta e tradutora Angélica Freitas. O ba-
A melancolia se desta- te-papo, mediado pelo jornalista Omar
Ciência & Arte, 2018
ca nos versos imagéti- Godoy, acontece no dia 18, às 19h30, no
Coletânea reúne 26 crônicas que cos deste que é o sex- auditório da Biblioteca Pública do Pa-
Marco Aurélio Cremasco publicou to livro de poemas do raná, com entrada gratuita. Gaúcha de
no jornal O Diário do Norte do Para- pernambucano Marco Pelotas, Angélica é formada em Jorna-
ná, de Maringá, entre 2011 e 2016. É uma seleção de tex- Polo Guimarães. O eu lírico percebe a desola- lismo pela Universidade Federal do Rio
tos que têm relação com as origens do escritor, nascido em ção dos cenários urbanos (“são esses meninos de Grande do Sul. Estreou com os poemas
Guaraci (PR) e radicado há alguns anos em Campinas (SP). rua/ são esses gravetos grávidos”), canta o sui- de Rilke shake (2007) e já foi publicada
Cremasco vale-se de uma prosa instigante para conduzir os cídio dos amigos (“Teve a vida que não pediu a em antologias de vários países. Seu livro
leitores a um universo mítico: o seu Paraná profundo, já an- Deus./ Devolveu.”) e relembra a infância (“brin- mais recente é Um útero é do tamanho
tigo, repleto de personagens, lendas e cenários que, em 2018, cava de chuva/ subia no coqueiro/ mijava lá de de um punho (2012), pelo qual levou o
só existem no imaginário do autor (e nestas crônicas). “Ve- cima”). É através de imagens bem elaboradas e prêmio da Associação Paulista de Crí-
lha foto” é um exemplo de potência lírica do narrador, que se figuras de linguagem que os versos expressam ticos de Arte (APCA) no ano de lança-
dá conta de que ele só existe porque outros, seus ancestrais, desesperança, antes sutil do que desesperada, mento. Suas obras já foram traduzidas
já não existem, mas permanecem em lembrança ou em um como, por exemplo, neste pedido: “Não acordem na Argentina, Espanha, México, Esta-
antigo retrato desbotado. Lázaro/ ele não quer/ está livre do mundo.” dos Unidos, Alemanha e França.
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REPORTAGEM
Reprodução

Lirismo, flamenco e
potência feminina na
obra de João Cabral

A vivência do poeta, considerado antilírico, na Espanha foi ponto de partida para a criação de textos líricos,
especialmente em seu último livro, Sevilha andando, publicado há quase três décadas
MARCIO RENATO DOS SANTOS
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O
último livro de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) A cidade mulher
é uma obra incomum em meio ao legado do autor. Se- Doutoranda em teoria e histó-
vilha andando foi publicado há quase 30 anos, ou seja, ria literária no Instituto de Estudos
em 1989. É a produção do poeta pernambucano que da Linguagem da Universidade Es-
mais agrada, por exemplo, Antônio Carlos Secchin, poeta, en- tadual de Campinas (Unicamp), Gis-
saísta, integrante da Academia Brasileira de Letras (ABL) e laine Goulart dos Santos observa que
professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). João Cabral só tem dois livros publi-
A poeta e professora da Universidade Federal do São Car- cados nos dois períodos em que este-
los (UFSCar) Diana Junkes considera Sevilha andando o li- ve em Sevilha, nas décadas de 1950 e
vro mais bonito de João Cabral — obra que ele dedicou à sua 1960: Quaderna (1960) e A educação
esposa, Marly de Oliveira. Há outros admiradores do volume, pela pedra (1966). “Por isso, a memó-
entre eles o poeta, escritor e tradutor Everardo Norões, que ria do poeta pernambucano tem sido
conquistou o Prêmio Portugal Telecom 2014 com o livro de objeto de estudos da obra cabralina.
contos Entre moscas. Ele escreveu muitos poemas sobre Se-
“Nesse seu último livro, não há um único poema per- vilha quando não estava lá, pois guar-
nambucano ou brasileiro: o testamento é exclusivamente es- dou Sevilha em sua memória e depois
panhol, tudo é Sevilha. Como se ali fosse o lugar em que sua Edição que reúne os dois a recriou em seus poemas”, afirma Gis-
alma encontrou pouso certo. Sevilha é ‘a única cidade que sou- últimos livros do poeta, laine, referindo-se a Sevilha andando,
be crescer sem matar-se’, escreveu o poeta. Talvez por isso, é Crime na Calle Relator e publicado no final da década de 1980.
uma hipótese, ele a tenha escolhido para guardá-la como der- Sevilha andando. Em agosto de 2013, ela defen-
radeira imagem a ser lembrada durante a cegueira. A ceguei- deu na Unicamp a dissertação de mes-
ra que significou o fim de sua escrita”, comenta Norões, ob- trado “Sevilha na poesia de João Cabral
servando, com precisão, o fato de que Sevilha andando surgiu de Melo Neto”. No trabalho acadêmi-
antes de João Cabral perder completamente visão, o que, de estentóricas paisagens./ Para que o ho- co, Gislaine apresenta um percurso da
fato, interrompeu definitivamente a produção do autor. mem nela habitasse,/ não os turistas, relação pessoal, interartística e poética
Sevilha andando é dividido em duas parte, a primei- de passagem./ E, claro, se a fez para o de João Cabral com a Espanha-Sevi-
ra tem o título da obra, enquanto a segunda se chama “An- homem,/ fê-la cidade feminina,/ com lha, mostrando o vínculo do poeta com
dando Sevilha”. Everardo Norões analisa que, embora o livro dimensões acolhimentos,/ que se espe- personalidades da poesia e da pintura
seja tratado como se tivesse sido escrito em duas partes, é uma ra de coxas íntimas”. espanholas, além da influência da Es-
obra única. “Induz-nos a pensá-lo em partes pelo fato de tra- E, também de acordo com as ob- panha na vida e na obra de João Ca-
tar Sevilha como se ela contivesse duas ‘cidades’, construídas, servações de Norões, no segundo frag- bral: “Tentei compreender o motivo
montadas por sua percepção poética. Uma, observada como mento do livro, “Andando Sevilha”, que o levou a dedicar tantos poemas a
mulher, recurso que o poeta, considerado antilírico, utilizou ruas, bares, edifícios e personagens são este espaço, principalmente, a Sevilha,
como estratégia para dissimular seu lirismo. Já a segunda par- comentados poeticamente. João Cabral cujos poemas estão reunidos no livro
te, a memória passeando pela cidade mulher, numa espécie de menciona a Calle Sierpes (“lá, navegar é Poemas sevilhanos (1992)”.
navegação durante a qual as sensações de ruas, bares, edifícios em linhas curvas,/ como a cobra que dá Ao todo, João Cabral escreveu
e personagens são comentadas poeticamente. Andanças nas nome à rua.”), o Museu de Belas-Artes 106 poemas sobre Sevilha — conteú-
quais, segundo ele, vão soltas a alma e a carne”, explica Norões. (“Este é o museu menos museu”) e o ar- do da antologia Poemas sevilhanos
Na primeira parte de Sevilha andando, a exemplo do tista flamenco Manolo Caracol (“Cada (1992). Gislaine Goulart dos Santos
que comenta Norões, há poemas em que a cidade é obser- cantador andaluz/ cantando traz à ple- analisa que, se João Cabral não tives-
vada como mulher, entre os quais “Viver Sevilha”: “mas que na luz// uma ferida de nascença,/ como se sido diplomata, sua poesia não se-
é dentro e fora Sevilha,/ toda a mulher que ela é, já disse,/ dentro de um ovo a gema.// Com a ria tal como se tornou e é hoje. “Isto
Sevilha de existência fêmea,/ a que o mundo se sevilhize”. boca o cante pouco diz,/ é uma curada pode explicar, por exemplo, porque ou-
“As plazoletas” é outro poema em que Sevilha é comparada cicatriz,// curada só na superfície/ e que tros autores não escreveram tanto so-
a uma mulher: “Quem fez Sevilha a fez para o homem,/ sem quando quer pode abrir-se.”). bre o flamenco e Sevilha como
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REPORTAGEM

João Cabral: porque tiveram outras experiências”, diz. O entendimento do que é, ou publicado pela primeira vez no livro Cri-
Ainda no trabalho de mestrado, ela também estudou pode ser, o flamenco, arte que, de acor- me na Calle Relator (1987) e, posterior-
Sevilha andando (1989), obra que, salienta, é representante do com o poeta, “Não quer um palco que mente, transferido por João Cabral para
da relação pessoal e poética de João Cabral com a cidade es- o dissolva,/ seu fazer se faz boca a boca”, Sevilha andando (1989), deixando de in-
panhola. “Neste livro, a cidade sevilhana é revelada nos poe- já havia sido definido, entre outros mo- tegrar o livro de 1987.
mas cabralinos pelo el cante e el baile flamenco, pela tourada, mentos de sua obra, em um poema do li- “Neste poema, ‘Sevilha é mais da
pela imagem da mulher-cidade e da cidade-mulher, pelo lé- vro Agrestes (1985). Em “Uma bailado- siguiriya/ que é a castelhana seguidilla’,
xico espanhol e também pela religião”, comenta a estudiosa. ra sevilhana”, João Cabral apresenta uma expressando, assim, o profundo conhe-
No entendimento de Everardo Norões, João Cabral bailarina de flamenco que, em determi- cimento de João Cabral sobre as varia-
tinha uma espécie de antena da qual alguns poetas são do- nado momento, é confrontada com a se- ções do palo [subdivisões do] flamenco.
tados. “Penso que há uma contradição entre a imagem dele guinte pergunta: “Não te agrada F... de No poema em questão, o poeta ainda ce-
que é comumente apresentada, a de alguém quase antisso- Tal,/ que todo dia sai no jornal?”. A sevi- lebra a siguiriya: ‘que o cigano prende no
cial, contrastante com sua poesia, tão próxima das coisas que lhana responde: “Não gosto: dança repe- tanque/ de seu silêncio, e fez em cante,/ e
vivenciou”, pontua Norões, acrescentando que, não fosse a tido;/ dança sem se expor, sem perigo;// que a cigana faz em dança,/ centrada em
língua em que escreveu, João Cabral poderia ter sido um dançar flamenco é cada vez;/ é fazer; é si como uma planta’. Temos neste texto
poeta espanhol escrevendo sobre motivos do Nordeste bra- um faz, nunca um fez.” poético, enfim, múltiplas faces da cidade
sileiro, da mesma forma que ele foi um brasileiro escreven- E tal resposta revela, precisamen- de Sevilha e da sua cultura, característi-
do sobre coisas da Espanha. “Isso acontece porque a poesia te, o que é o flamenco: “um faz, nunca cas que não são vistas, por exemplo, pelo
dele transcende lugares, como a de todos os grandes poetas”, um fez”. olhar do turista”, pontua Gislaine.
completa Norões. Gislaine Goulart dos Santos tem Já Everardo Norões destaca, em
a convicção de que João Cabral fez poe- meio aos textos de Sevilha andando, “O
É um faz, nunca um fez mas únicos que captaram a essência do segredo de Sevilha”, em que João Cabral
O flamenco, a manifestação cultural espanhola com in- flamenco, e chama atenção para o tex- se dirige ao amigo e poeta sevilhano Joa-
fluências mouras e ciganas, onipresente em Sevilha, foi re- to poético “A sevilhana que não se sabia”, quín Romero Murube, que já era faleci-
criada em poemas de João Cabral, e Sevilha andando traz
alguns desses textos poéticos, a exemplo de “Intimidade do
flamenco”:

“O flamenco quer intimidade,


assim no cante que no baile. PARA VER
O documentário Recife/Sevilha: João
Aquele fazer de mais dentro, Cabral de Melo Neto, com roteiro e di-
se quer de quem faz pôr-se ao centro, reção de Bebeto Abrantes, apresenta em
52 minutos mostras do intenso relacio-
centrarse, viver seu caroço, namento de João Cabral de Melo Neto
e a partir dele dar-se todo, com Sevilha. Artistas espanhóis e bra-
sileiros, além de Inês Cabral, a filha do
esse cante ou baile é monólogo poeta, são alguns dos entrevistados. Há
que, se funciona para o próximo, depoimentos do poeta e imagens cap-
tadas na Espanha, incluindo tablaos
quer um próximo conivente flamencos e a paisagem sevilhana.
capaz de centrar-se igualmente.

Não quer um palco que o dissolva,


seu fazer se faz boca a boca.”
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do e tinha um projeto de escrever sobre


sua cidade, por achar que ninguém ain- Tablao flamenco em
da havia dito tudo sobre ela. “João Ca- Sevilha: arte traduzida em
bral retruca e afirma, no poema, que Se- poemas de João Cabral
vilha é um estado de ser, ‘que menos que de Melo Neto.
prosa pede o verso’. E acrescenta que
todo o mistério está no jeito de andar
da sevilhana”, explica. O poema, conti-
nua Norões, é quase um resumo do livro:
“Nem precisa acrescentar que também o
jeito de dançar ou de bailar o flamenco
fazem parte desse mistério”.

Ele é lírico
Em 2007, a então bailaora de fla-
menco Isadora Eckardt da Silva apre-
sentou um trabalho na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFR-
GS) sobre os pontos de contato entre
o flamenco e a poesia de João Cabral
de Melo Neto. Ela focou, especifica-
mente, em “Estudos para uma bailado-
ra andaluza”, poema do livro Quaderna
(1960). “Expliquei como a dança

Reprodução

PARA OUVIR
O cante é fundamental, mais que
isso, imprescindível no flamen-
co. O Cândido apresenta can-
taoras e cantaores para os leitores
conferirem, pode ser via Youtube,
a pulsão vocal flamenca: Argen-
tina, Camaron de La Isla, Diego
Carrasco, Encarna Anillo, Estella
Morente, Enrique El Extremeño,
Manuel Molina, Miguel Poveda
e Montse Cortez [foto].
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REPORTAGEM
Reprodução

funciona. O poema tem momentos incrí-


veis, entre eles aquele em que a voz poéti-
ca fala das posições das mãos. Os homens
mantêm os dedos fechados, enquanto as
mulheres abrem as mãos. No flamenco, o
movimento é denominado floreio, e João
Cabral descreveu as mãos da bailarina
como flores, o que é lindíssimo”, comenta.
O seu trabalho sobre o flamenco,
apresentado na graduação na UFRGS, é
mais consultado e citado do que sua dis-
sertação e sua tese, ambas sobre literatu-
ra de viagem e defendidas na Unicamp.
Atualmente, ela é professora de literatura
no Colégio Militar de Manaus, no Ama-
zonas, e, em sala de aula, costuma discutir
com os alunos do ensino médio o poema
“Estudos para uma bailadora andaluza”.
Especificamente, o trecho em que a baila-
rina é comparada a uma égua: “Subida ao
dorso da dança/ (vai carregada ou a carre-
ga?)/ é impossível se dizer/ se é cavaleira
ou a égua.” “O poeta diz que a bailarina é
uma égua que, talvez, seja conduzida pelo
cavaleiro ou, então, é ela, a égua, quem
dita o caminho”, observa Isadora, que, re-
centemente, deixou de bailar flamenco.
Isadora ainda acrescenta que, em
“Estudos para uma bailadora andaluza”,
João Cabral também compara o sapateado
das bailarinas de flamenco com o código
morse, entre outras sugestões poéticas. “Ele
tira lirismo de onde, geralmente, não tiram
lirismo. Ele tira leite de pedra, encontra li-
rismo em qualquer canto”, completa.
A exemplo de Isadora Eckardt da
Silva, Diana Junkes também diz que os
poemas sevilhanos de João Cabral são car-
regados de lirismo, o que, em geral, não é
associado à produção do autor. Para Gis-
laine Goulart dos Santos, a partir do con-
tato com a Espanha, o poeta pernambuca-
Sevilha deflagrou no se desvencilha de uma imagem ainda
poemas líricos no poeta muito racionalista atribuída a ele pela crí-
considerado antilírico. tica — sobretudo a dos primeiros estudos
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 9

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PARA SENTIR
O intraduzível baile flamenco é um mistério, cada
baile é único — João Cabral de Melo Neto enten-
críticos. “Há muita subjetividade no re- tão ausentes ou pouco representadas em deu perfeitamente a arte e a traduziu em poemas. Há
corte dos temas. Neste sentido, os poe- sua poesia: a celebração do corpo femi- bailaores e bailaoras que, mesmo por meio de grava-
mas sevilhanos representam um capítu- nino, a sintonia com a (áspera) melodia ções em vídeo, mostram o que é o flamenco: Belen
lo especial em sua obra”, analisa Gislaine. do flamenco e o canto cigano. E Diana Lopez, Carmen La Talegona [foto], Concha Jareño,
Antônio Carlos Secchin tem a Junkes acrescenta que, na obra do poe- Eva Yerbabuena, Farruquito, Gema Moneo, Jesus
impressão de que a vivência em Sevi- ta, Sevilha é substantivo, adjetivo e ver- Carmona, Juana Amaya, Manuel Liñan, Pedro Cor-
lha fez com que João Cabral passasse a bo: “Sevilha, enfim, é a potência femini- doba e Sara Baras.
registrar experiências sensoriais até en- na da obra de João Cabral”. n
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POEMAS | OTTO LEOPOLDO WINCK

ALEPHQuisera Se não uso clâmide


IN FINES
no fim
a palavra inaugural do paraíso nem burel, não sou apóstolo você está sempre só
mas minha voz nem apóstata, como no fundo
— já sem fôlego — ao menos pudesse ter de meu sempre esteve
está cheia de ecos uma aposta:
e cacófatos. esta voz no fundo
— já sem fôlego — você está sempre nu
Não falo por mim. com que me falo como no início
Tampouco por ninguém: agora sempre esteve n
não tenho clã nem urbe, na ágora vazia de meu crânio:
nem sou profeta de algum deus. cálix onde dou de beber aos deuses mortos
Mas em minha voz a história
— já sem fôlego — que me escoa.
repercutem as vozes todas
desde Adão. Ah, quisera
nomear os seres todos,
Quisera descrever as cores do levante,
o senhorio de minha própria voz elucidar o sabor dos frutos ou a autonomia do vento
— já sem fôlego — nos cabelos dos viventes.
o domínio de meus solilóquios,
o narrador onisciente que me narra, Mas minha voz Otto Leopoldo Winck nasceu no Rio de Janeiro (RJ),
que abre travessões quando falo — já sem fôlego — em 1967, viveu uma temporada em Porto Alegre (RS) e,
ou aspas quando cito. veio rouca, desde 1982, está radicado em Curitiba (PR). Em 2006, foi
vencedor do prêmio da Academia de Letras da Bahia, com o
Saber que ao menos uma palavra quase um fio, romance Jaboc, publicado em 2007 pela Garamond. Em 2012,
(esta: eu) e reboa, conquistou o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, na
fora minha... cheia de ecos, cacos e cacófatos. categoria poesia, e, em 2017, lançou o ensaio Minha pátria é
minha língua: identidade e sistema literário na Galiza, resultado
de sua pesquisa de doutorado. Os poemas que o Cândido
O pior é que não há ninguém publica nesta edição fazem parte do livro Cosmogonias, a ser
que a decifre. lançado este ano pela Kotter Editorial.
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POEMAS | DYLAN THOMAS

NO MEU NÃO ENTRE


OFÍCIO SERENO
OU ARTE NAQUELA NOITE
SOMBRIA
(do livro Deaths and entrances, 1946)
BOA QUE CAI
(do livro In country sleep, 1952)

Tradução: Gilmar Leal Santos Não entre sereno naquela noite boa que cai,
Dylan Thomas nasceu em
A velhice deve arder e celebrar no limiar do dia; Swansea (Pais de Gales) em
No meu ofício ou arte sombria Rebele-se, rebele-se contra a luz que se esvai. 1914 e morreu em Nova York
Exercida na calada da noite (EUA) em 1953. Foi um dos
poetas líricos mais influentes do
Quando somente a lua se enfurece Os luminares sabem que ao fim, precisa, a treva recai,
século XX. Escreveu os livros
E os amantes estiram-se na cama Eles, suas frases não dividiram nenhum raio que luzia, de poemas Eighteen poems
Com todos os pesares em seus braços, Não entram serenos naquela noite boa que cai. (1934) e The map of love
Eu trabalho sob uma luz que canta (1939) e os contos de Retrato
de um artista quando jovem
Não por ambição ou pedaço de pão Os bons, no último aceno, sofrendo pelo brilho que vai cão (1940) e Adventures in
Ou a ostentação e encantamento Luzir de suas parcas ações a dançar na verde baía, the skin trade (1955). Além de
Dos palcos de marfim Rebelam-se, rebelam-se contra a luz que se esvai. poeta e dramaturgo, Thomas foi
Mas pela pequena paga vinda locutor de rádio da BBC entre
1937 e 1953. Esses programas
Do fundo de seus corações. Os loucos, após colher e exaltar o sol em seu voo solais, e o modo de vida boêmio lhe
Aprenderam, tarde, que o magoaram nessa travessia, renderam fama e notoriedade
Não é para o homem orgulhoso despegado Não entram serenos naquela noite boa que cai. em sua época.
Da lua furiosa que eu escrevo
Nestas páginas úmidas Homens soturnos, à morte, que veem feito débeis visuais
Gilmar Leal Santos nasceu
Nem pelo monumental cânon morto Olhos cegos podem brilhar como meteoros e ter euforia, em Apucarana (PR) e vive em
Com seus rouxinóis e salmos Rebelam-se, rebelam-se contra a luz que se esvai. Maringá (PR). É poeta e tradutor.
Mas para os amantes, seus braços Publicou os livros de poesia
Trapezista, Carmesim, Cartas
Enlaçam as dores eternas, E você, desde lá da angustiante altura, meu pai,
poéticas e A Terra Árida —
Que não louvam ou remuneram Amaldiçoe-me, benza-me, com pranto feroz, eu pediria. tradução do clássico poema The
Nem dão atenção ao meu ofício ou arte. Não entre sereno naquela noite boa que cai. waste land, de T. S. Eliot.
Rebele-se, rebele-se contra a luz que se esvai. n
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OS EDITORES | IVAN PINHEIRO MACHADO


Fotos: André Feltes

Um senhor
rebelde

O
O fundador da L&PM relembra episódios importantes da editor Ivan Pinheiro Macha- seu sócio Paulo Lima.
do ajudou a transformar, no Bra- Com 30 milhões de livros vendi-
história da editora gaúcha que nasceu em 1974, sob a sil das últimas décadas, escritores dos, a Coleção Pocket é, para o editor
outsiders em best-sellers. “Maldi- gaúcho, “o grande dado novo, diferente,
ditadura militar, e se tornou sucesso ao criar uma coleção de tos” da literatura mundial como Charles que houve na indústria editorial brasi-
livros de bolso que já vendeu mais de 30 milhões de livros Bukowski, Jack Kerouac, William Blake
e Arthur Rimbaud tornaram-se acessí-
leira nos últimos 25 anos”. “Coube a nós
trazer uma coleção realmente de bolso
LUIZ REBINSKI veis, principalmente para o público jo- nos moldes das grandes editoras inter-
vem, por conta das edições de bolso da nacionais. Uma coleção plural”, diz.
L&PM, editora fundada em Porto Ale- A pluralidade, aliás, é outra mar-
gre, em 1974, por Pinheiro Machado e ca que o editor ostenta com orgulho. De
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 13

Shakespeare a Agatha Christie, a L&PM construiu um ca- sileiras, como USP e UFRGS. Assim
tálogo gigantesco, que conta hoje com mais de 3 mil títulos. como fizemos com Balzac, com uma
Uma linha editorial “polifônica” com autores de diferentes vo- leitura da Comédia Humana, com
zes e que vai da literatura clássica à literatura moderna, pas- quase 80 volumes, tentando melhorar
sando por quadrinhos e grandes filósofos. o prestígio do Balzac no Brasil, já que
Nesta entrevista, Pinheiro Machado lembra como, a as edições da Globo são muito fracas
partir de um momento de crise, surgiu a ideia de conceber do ponto de vista das traduções, em-
a coleção de bolso que iria mudar a história de sua editora. bora seja um trabalho gigantesco, di-
Também falou de autores importantes da casa, que se tor- rigido pelo Paulo Rónai, mas as tradu-
naram grandes parceiros, tal como Millôr Fernandes, Moa- ções são muito antigas...
cyr Scliar, Sergio Faraco, Darcy Ribeiro, Josué Guimarães,
Eduardo Galeano, João Antônio e Martha Medeiros. Eles editaram vários livros importan-
Também resgata histórias a respeito de livros impor- tes, não é?
tantes na trajetória da L&PM, como Rango, do amigo Edgar Editaram toda a Comédia Humana,
Vasques (o marco zero da editora), Cuca fundida (o primeiro nas décadas de 1940 e 1950. Então, a
a entrar em uma lista de mais vendidos), de Woody Allen, e o gente resolveu fazer tudo de novo. In-
recente Sapiens, best-seller do israelense Yuval Noah Harari. clusive eu estudei muito o Balzac e fiz,
Ivan Pinheiro Machado fala com paixão de literatu- pelo menos em uns 20 volumes, a parte
ra e de todo o metiê que envolve a edição e comercializa- de referência, de introdução. Isso é fun-
ção de um livro. Pintor, fã de Balzac e autor de centenas de damental nesses livros que têm profun-
capas de livros da L&PM, aos 66 anos diz que ainda tem didade, enfim, clássicos com mais per-
“a cabeça que tinham aqueles meninos de 22 anos que fize- manência. São obras que precisam ser
ram a editora sem um tostão”. Confira os melhores trechos referenciadas pela época, pelo ambien-
da conversa, realizada na sede da editora, na capital gaúcha. te. Isso a gente tem feito. Estou te fa-
lando tudo isso para dizer o seguinte:
Você acaba de voltar do Salão do Livro de Paris, evento que aprendemos muito nesses 40 anos com
sempre faz questão de ir... o jeito europeu de editar. Inclusive mo-
Sim, vou lá há muitos anos, porque uma das nossas inspira- rei na Europa um período.
ções sempre foi a maneira europeia de editar, que, na minha
opinião, é muito importante do ponto de vista cultural. Acho Onde você morou?
até mais do que a americana. Por quê? Porque o americano, Em Roma. Meu pai foi exilado...
por exemplo, dá muita ênfase ao business. Já o enfoque edi-
torial europeu, embora também seja calcado nos negócios, Seu pai era político?
tem uma tradição cultural muito maior, naturalmente, até Meu pai foi deputado pelo Partido Co-
por questões históricas, muito maior do que a tradição cul- munista, na Constituinte de 1946. Foi
tural americana. Então as grandes editoras europeias inspi- cassado duas vezes: em 1946 e no Gol-
raram a L&PM nesses 40 anos. Foi o que nos fez construir pe de 1964.
um catálogo de fundo, com uma permanência grande, ou
seja, livros que servem como referência cultural, tanto para Que período da sua vida você morou
o leitor comum quanto para a escola, a universidade. Fize- lá?
mos um trabalho dirigido para disponibilizar livros impor- Entre 18 e 19 anos. Meu pai era professor
tantes, obras de grandes filósofos, clássicos — especialmente na Universidade de Roma, de História da
os clássicos. Teve um trabalho importante com o Kafka, com América Latina e de História da Coloni-
o Freud, uma nova tradução do Freud do alemão, usando zação Europeia na América Latina.
uma equipe acadêmica de várias grandes universidades bra-
14 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

OS EDITORES | IVAN PINHEIRO MACHADO

Você nasceu numa casa de leitores e isso os livros da Civilização. E o meu pai era Teve alguma editora em especial que tíssimo. No meio do turbilhão que
certamente ajudou a construir sua car- um desses caras que participaram dessa você se espelhou para criar a L&PM? foi o final da década de 1990, tínha-
reira. Seu pai tinha uma boa biblioteca? grande rede de solidariedade para man- Não. Eu sempre curti muito a Gallimard, mos que tomar uma decisão impor-
Meu pai tinha uma belíssima biblio- ter a editora do Ênio Silveira. na França, e a Feltrinelli, na Itália. Eram tante: continuar ou não editando. En-
teca. Ele era um intelectual, um visio- editoras que tinham um enfoque cultural tão, fui à Europa para fazer o projeto
nário, um cara muito idealista. Quan- E como você foi parar numa faculdade e progressista. A Gallimard tem uma tra- dessa coleção de bolso. Voltei do Sa-
do houve o Golpe de 1964 — essa é a de arquitetura? dição enorme, é uma editora de mais de lão de Paris de 1996 com mais ou me-
grande memória que tenho —, a Civi- Porque sou, antes de qualquer coisa, 100 anos. A partir da experiência do mer- nos uns 150 livros, de várias editoras
lização Brasileira era a grande editora pintor. cado europeu, tiramos a inspiração para e coleções. Quando cheguei com esse
progressista do país. Uma editora mo- fazer aquilo que eu considero, sem falsa material, reuni a equipe e propus um
derna, que tinha os grandes autores, de Por isso fez tantas capas para a modéstia, o grande dado novo, diferente, primeiro lote com 12 títulos que re-
esquerda e tal. E a Civilização Brasileira L&PM? que houve na indústria editorial brasilei- presentassem uma coleção de bolso
foi perseguida: incendiaram a livraria da Eu fiz 1500 capas. Muitas das capas da ra nos últimos 25 anos, que foi a coleção plural e que, principalmente, subver-
editora na Avenida Rio Branco, no Rio coleção de bolso. Não tinha dinheiro L&PM Pocket, que hoje tem 1.300 vo- tesse a realidade brasileira, que era an-
de Janeiro. Enfim, foi muito persegui- para contratar capista [risos]. Expus em lumes e é uma referência nacional. ti-livro de bolso. Isso é muito impor-
da. Aí, para salvar a editora — naquela Nova Yorque, modestamente, em Paris, tante que se diga. Vínhamos de uma
época que eu tinha 12 ou 13 anos —, fi- em Copenhague... então, quer dizer, a Essa ideia da Coleção Pocket, de onde herança cultural quase aristocrática,
zeram em todo Brasil um grande grupo minha formação original é visual, de ar- surgiu exatamente? Foi olhando os onde o livro de bolso era considerado
de amigos da Civilização Brasileira. Era tes gráficas. E fui fotógrafo. Meu pri- mercados? lixo. Era produto de terceira categoria,
simplesmente o seguinte: o cara dava meiro emprego, com 18 anos, foi de fo- O projeto, para falar a verdade, foi não era nem de segunda. Porque todas
seu nome para o representante da Ci- tógrafo da Zero Hora. Trabalhei como uma coisa que nós bolamos num mo- as experiências que até então tinham
vilização em cada cidade, e recebia to- freelancer na Veja, na época em que ti- mento de grande crise, na ressaca do sido feitas eram de livros para moci-
dos os livros da editora, comprava todos nha sucursal forte aqui. [plano] Real, quando o juro ficou al- nha, de faroeste, religioso, vendido em
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 15

banca. Não havia no Brasil vontade — dos empresários, li- O segredo de uma editora é o catálogo? poderia citar: ele alçou esse livro, que
vreiros, editores — para que se tivéssemos um livro mais Cada um tem a sua visão, cada editor passou de um título que alguns com-
popular. Coube à L&PM, que de todas as grandes editoras tem um olhar. Nós, aqui na L&PM, pravam para se tornar um livro popu-
brasileiras era a mais independente, a que tinha menos di- certos ou errados, achamos que o catá­­ lar. Pô, vendemos 400 mil exemplares
nheiro e que estava fora do eixo Rio-São Paulo — princi- logo é importante. Por exemplo, apesar do Hamlet no Brasil. Isso aí é um feito
palmente por causa disso —, coube a nós o lugar na histó- de termos o livro que é o maior best- que nós nos orgulhamos. Se dá muita
ria editorial brasileira de trazer uma coleção realmente de seller dos últimos 10 anos no Brasil, pouca bola, no Brasil, a isso, porque a
bolso nos moldes das grandes editoras internacionais. Uma Sapiens [do israelense Yuval Noah gente tem toda uma história de agen-
coleção plural. Harari], que está na lista dos mais ven­­ tes culturais comprometidos com, sei
didos há 68 semanas, sendo que metade lá, política, grandes centros... Estar
A coleção representa bem o que é a editora hoje? desse tempo em primeiro lugar, nunca fora do eixo Rio-São Paulo já é um
Quando me perguntam qual é nossa linha editorial, digo que perseguimos o best-seller. Aquela coisa handicap negativo.
ela é polifônica. A Coleção Pocket é polifônica. Porque ela de entrar nesses leilões inacreditáveis...
tem diversas vozes, e essa foi a ideia que nos guiou desde o Pegamos o Sapiens porque todo mundo A imprensa tem preconceito contra o
começo, quando publicamos o volume 1 de O analista de Bagé, viu e ninguém se deu conta. A maioria livro de bolso?
do Luis Fernando Verissimo. Procuramos fazer uma coleção dos editores brasileiros teve acesso ao Sim, muito. Acho que uma das coi-
que tivesse desde a literatura clássica, a literatura moderna, livro, pois o agente ofereceu para todos. sas mais sensacionais da coleção de
grandes filósofos, filósofos modernos, história em quadrinhos, Nós lemos e achamos que deveríamos bolso da L&PM, que tem mais de 30
grandes autores policiais, como Raymond Chandler, David publicar. E não foi nada demais do milhões de livros vendidos, é que ela
Goodis, Dashiell Hammett, literatura brasileira moderna ponto de vista de dinheiro. Foi uma foi construída e financiada pelo lei-
e clássica. Tudo com muito empenho, livros com belíssimas negociação absolutamente de rotina em tor. E consagrada pelo leitor. Teve uma
introduções. E a L&PM tem uma tradição de transgressão, cima de um livro que a gente gostou. omissão criminosa da imprensa, que
desde o começo de sua história, em 1974, quando começa- Porque não é o nosso foco disputar adora dizer que a indústria editorial é
mos resistindo e perseguidos pela ditadura. Quer dizer, sem- best-seller, entende? Nosso foco, o elitista, só que quando se faz uma coi-
pre houve essa coisa da identificação com a rebeldia. A gen- que gostamos de fazer, é esse livro que sa que não é elitista, eles ignoram. A
te acabou editando Bukowski, Jack Kerouac, a geração beat. E tem durabilidade, que tem extensão no imprensa cultural brasileira, na minha
me sinto muito bem por causa disso. Passaram-se 44 anos e de tempo. É óbvio que estamos sempre opinião, é um desastre. Sobre esse livro
repente a gente tem a cabeça que tinham aqueles meninos de atentos ao livro que vende, pois é fun­­ que falamos há pouco, o Sapiens, lan-
22 anos que fizeram a editora sem um tostão. O [Paulo] Lima da­­
mental para que o negócio ande. çado em 2015, apenas o Jorge Pontual,
e eu fizemos a editora com 22 anos e sem nenhum centavo. E Mas, do ponto de vista de durabilidade na Globo News, comentou na impren-
começamos editando Rango, do Edgar Vasques. e de consistência do negócio editorial, sa brasileira. Nunca saiu uma resenha
achamos que é importante ter um ca­­ em lugar nenhum. Não saiu na Folha
Que era seu colega no tempo de faculdade... tálogo que não seja com livros que vi­­ de S.Paulo, não saiu n’O Globo. A Veja
Era colega de aula, no colégio de aplicação da faculdade vam seis meses. só falou no livro quando a Companhia
de filosofia. Foi também nosso sócio numa tentativa de fa- das Letras editou o Homo Deus, aí fa-
zer uma agência de publicidade, porque ele é um desenhis- Qual livro da L&PM tem essa dura- lou no Sapiens.
ta fantástico. Inclusive trabalha conosco, eventualmente bilidade e é bom de venda?
faz capas. E nós vamos publicar uma antologia do Ran- O Hamlet que lançamos em 1997 já A L&PM nasceu em 1974, com o
go, colorida, que foi o primeiro livro da editora. Partici- vendeu 400 mil exemplares. Esse mes- Rango, mas como foram os primeiros
pei de uma revista na faculdade de arquitetura, sou arqui- mo livro foi lançado em 1993, com a passos?
teto de formação e pintor, chamada Grilos, em 1970, onde tradução do Millôr Fernandes e um A editora surgiu graças à ditadura, por-
foi publicado pela primeira vez o Rango. Então nós temos projeto gráfico caprichado. Mas custa- que, na verdade, o que nós fizemos foi
uma história muito antiga com o Edgar. E depois, quando va caro. Vendeu 3 mil exemplares em 4 um desafio à ditadura da época. A gen-
a gente fez a editora em 1974, o primeiro livro foi o Ran- anos. Então tu vê o que o livro de bol- te estava dentro daquele grande movi-
go, que fizemos sem nenhuma pretensão. so fez, por razões várias que a gente mento plural da resistência demo-
16 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

OS EDITORES | IVAN PINHEIRO MACHADO

crática, no final da década de 1960, começo de 1970. Logo Ao longo dos anos, como foi seu re- E como foi editar o Woody Allen?
após começarmos a editora, encontrei o Darcy Ribeiro em lacionamento com os autores da Estou em Frankfurt, isso bem no co-
Lisboa e ele perguntou no que eu trabalhava. Isso foi na casa L&PM? meço, aí estava lá também um editor da
do Josué Guimarães, em Portugal. Respondi que tinha uma Foi muito fácil. Aqueles que não fo- Nova Fronteira que se chamava Rober-
editora. “Que maravilha”, ele disse. Aí perguntei, “o que é ram fáceis, passaram pouco tempo to Riet Correa, que morreu com menos
uma maravilha?”. “A insciência da juventude” [risos]. “Você na editora. Me considero privilegia- de 40 anos, era gaúcho e amigo nos-
está fazendo um negócio absurdamente improvável no Bra- do. Porque convivi com algumas figu- so. Eu digo assim: “Porra, o Verissimo
sil”, disse. Nunca esqueci isso. É genial essa frase do Dar- ras extraordinárias. Ter convivido com me falou de um cara, de um america-
cy Ribeiro, porque assim é que são feitas as coisas. O jovem Millôr Fernandes, Moacyr Scliar, Jo- no aí que é muito engraçado, um tal de
não quer saber, entendeu? Meu pai até me dizia: “Vocês es- sué Guimarães, Eduardo Galeano, Woody Allen”. Ele disse: “Eu conheço
tão loucos! O que vocês querem?” Aí nós fizemos o Rango. João Antônio, porra, era um privilé- esse cara! Conheço o agente dele”. En-
Logo fui chamado pela Polícia Federal, passei uma tarde lá gio. E a gente convivia mesmo. Na- tão o Roberto me apresentou para um
me explicando. O delegado leu o livro inteiro na minha fren- quele tempo não tinha esse troço de agente americano, que era ligado à edi-
te, 80 páginas, e dizia para mim que aquilo não era livro, era internet, tudo digital. Não. A gente ia tora Alfred Knopf, e eu fui lá falar com
revista. E revista tinha que ter depósito na censura federal. lá para o Rio. Eu pegava o João Antô- ele. Aí digo ao agente: “Tenho um ami-
E era verdade. Todo periódico tinha que ter esse registro. E nio na casa dele, ia para a Praça Ser- go em Porto Alegre que me disse que o
eu dizia para ele: “Doutor, isso aqui é um livro”. “Isso aqui é zedelo Correia, naqueles botecos onde Woody Allen, esse que está fazendo os
uma revistinha de comunista!”, ele respondia. Aí, de repen- ele bebia, e ficávamos ali jogando con- filmes, tem um livro”. Nem sabia quem
te, eu digo para ele: “Doutor, dá uma olhadinha no prefácio”. versa fora, falando sobre mulher, fute- era o Woody Allen. O livro se chama-
E o prefácio abre assim: “Recomendo este livro com o maior bol. Editamos vários livros do Darcy va Side effects. Aí o cara disse: “Tu quer
entusiasmo”. [risos] Era o Erico Verissimo escrevendo, uma Ribeiro. Então, cara, imagina tu passar esse livro?”. “Quero!”. “Então tá!”. Na-
entidade, que estava vivo na época. Aí o cara me olhou e dis- três dias com o Darcy Ribeiro. Com quela época era o seguinte: ou tu fazia o
se para eu me mandar dali. essas figuras. Com o Millôr foram 30 contrato na hora ou demorava seis me-
anos de convivência. Ele foi meu pa- ses, porque era carta que ia, carta que
E desse período inicial até a coleção de bolso, como foi? drinho de casamento, em 1981. O úni- voltava, livro que não chegava, etc. En-
A gente trabalhava como jornalista, eu e o Lima. Os primei- co cara que levou a sério meu casa- tão, o cara pegou o contrato, uns 500
ros dois anos da L&PM foram na cozinha da casa em que fun- mento, por incrível que pareça, foi um dólares de adiantamento, e editamos o
cionava o escritório de advocacia do meu pai. Nós mandamos grande humorista. Chico Caruso, ou- livro. Cheguei ao Brasil e falei com o
botar um carpete, para não ficar com cara de cozinha, e demos tro cara que foi grande amigo. Com a Caulos, que era muito meu amigo, um
uma enganada. Depois foi a vez do velho Lima, pai do Pau- Martha Medeiros, por exemplo, temos artista gráfico conhecido, que também
lo, nos albergar. Ele tinha uma livraria que era muito impor- 25 anos de relação. Esses dias a gen- era amigo do Ruy Castro. Aí fui à casa
tante aqui em Porto Alegre, a Livraria Lima, onde funciona- te fez até um brinde aqui na editora. do Ruy. Nunca me esqueço da primei-
va o Estadão — ele era chefe da sucursal. Próximo da livraria, Nem os casamentos duraram isso, né? ra coisa que ele me disse: “Um dos me-
tinha um porão em que ele guardava o estoque. E nós fomos [risos] Então, sempre tivemos uma re- lhores escritores brasileiros é o Moacyr
para esse porão. E aí então bolamos um slogan: “Uma edito- lação muito estreita com esses autores. Scliar”. Naquela época ninguém tinha
ra literalmente underground”. Aí é que começamos a publicar Claro que no meio de tudo isso ocor- nem ouvido falar do Scliar, e nós já edi-
o Charles Bukowski, os beats e outros autores que estão mar- re um monte de coisa que a gente rele- távamos a obra dele. O Ruy Castro já
cados em nossa história. Enquanto isso, estabelecemos, no Rio va com o tempo. Mas pelo menos es- era um cara conhecido da imprensa,
de Janeiro, contato com o Millôr Fernandes. O Millôr e o Jo- sas pessoas que citei são inesquecíveis Folha de S.Paulo e tal, aí o Ruy tradu-
sué Guimarães são muito importantes na história da L&PM. para nós. O Galeano, por exemplo, foi ziu e botamos o nome de Cuca fundi-
O Scliar também, assim como o Edgar Vasques. Mas na época um cara que nos abriu muitas portas da. Três meses depois Noivo neuróti-
quem tinha um grande prestígio nacional eram o Josué e o Mil- no mercado hispânico, porque era uma co, noiva nervosa [Annie Hall] ganha 8
lôr. Quando íamos falar com um autor, dizíamos: “Nós edita- referência. Nos conhecemos em 1976, Oscar. Aí o livro explodiu. Foi o nosso
mos um livro do Millôr”. Depois editamos praticamente quase em Frankfurt. Ele era um homem de primeiro livro na lista da Veja. Chegou
toda obra do Millôr, que foi nosso amigo até o último suspiro. 30 anos, eu tinha 22 anos. ao primeiro lugar de vendas em 1979.
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 17

As veias abertas da América Latina o livro da L&PM. Quer dizer, a gente


também é um best-seller da editora, teve que vencer as barreiras que diziam
não? que o livro de bolso era uma porcaria
Veias abertas foi publicado no Bra- de quinta categoria. Hoje, o nosso livro
sil em 1971, pelo Fernando Gaspa- de bolso é aceito pelos grandes livreiros
rian, que tanto eu quanto o Galeano e pelo mais variado tipo de leitor. Ou-
ad­­mirávamos, pois era um grande em- tra coisa que nos orgulha muito: é que
presário e editor. Em 2005, quando o tu não imagina o que já ouvi de pes-
Gasparian morreu, passamos a editar soas, de meninas e meninos, que che-
também o Veias abertas. gam e dizem que o primeiro livro que
leram foi da L&PM. Esses dias até me
O que é pra você um bom texto? Um aconteceu isso. Eu estava numa livra-
bom livro de ficção? ria, na Saraiva, aí veio uma guria: “Tu
O bom livro de ficção, para mim... em é o cara da L&PM, né?” Respondi que
primeiro lugar: o livro que é bem es- sim e perguntei por quê? Aí ela disse:
crito. Mas mesmo que seja bem escri- “O primeiro livro que li fora da biblio-
to, se não tiver final, não é um bom li- teca do meu pai e da minha mãe foi um
vro de ficção. livro da L&PM”. Aí eu digo: “Porra,
que livro foi?” Ela fala: “Sem plumas,
Então, você já respondeu o que é um li- do Woody Allen”. Isso é sensacional.
vro ruim de ficção?
Trato o mal ficcionista como trato o Várias gerações de leitores conhece-
mal bar. Já fui comentarista de bar e ram Bukowski, os beats e outros au-
restaurante — trabalhei para a Gazeta tores malditos por causa da L&PM...
Mercantil. Nós tínhamos por princí- A coisa mais importante é exatamen-
pio o seguinte: é covardia tu falar mal te isso. Eu acho que o bom editor pro-
de um restaurante ou bar em Porto voca o fato. Tu não fica esperando que
Alegre porque tu fecha o estabeleci- chegue um cara e diga “tem um livro
mento. É uma cidade limitada. Tu fala os grandes autores brasileiros, escrito- Além da coleção de bolso, qual a de um milhão de dólares”, um scout
mal de um ficcionista, tu acaba com res que eu nem conhecia, como Lygia grande contribuição da L&PM para teu em NY te liga e diz: “Tem um tro-
a carreira dele — se tiver esse poder, Fagundes Telles, por exemplo, Mari- o mercado editorial brasileiro? ço aqui que vai vender 500 mil exem-
entende? Então, como editor, nunca na Colasanti, Nélida Piñon. O Fara- Tenho a vaidade de dizer o seguinte: é plares, vamos fazer uma oferta de um
tive esse problema de ficar recusando co ficou fascinado pela ideia da cole- muito difícil termos uma tradução cri- milhão de dólares e a gente leva o li-
ou não recusando, porque sempre teve ção, foi o primeiro grande intelectual ticada, um livro que tenha problemas, vro”. Se acontecer, acho isso perfeito,
um corpo de autores da casa. E ago- brasileiro a aderir à coleção de bolso. erros disso e daquilo, porque o nos- é um business. Agora, quem não tem
ra, então, eu chego numa grande fi- Então a L&PM Pocket deve muito ao so trabalho aqui é muito meticuloso. um milhão de dólares para dar por esse
gura, que é o Sergio Faraco. Porque Sergio Faraco. Tem pelo menos uns A gente tem o respeito do leitor. Por- best-seller tem que criar. My way, né?
o Faraco, dentro dessa grande plêiade 30 livros em que ele é o editor. Ele fez que no fundo é o que eu te disse: va- É o velho Frank. Quer dizer, então a
de amigos que te falei, é fundamen- antologias — Livro dos desaforos, Li- mos falar quatro horas e acabar no lei- gente tem que inventar o nosso jeito. E
tal, um sujeito leal, amigo e a quem vro das cortesãs, Livro dos bichos, Li- tor. Ele é o fim. Não teve dinheiro do o nosso jeito foi esse: criando uma em-
esta casa deve muito. Num dos piores vro dos sonetos, este último um dos exterior, sócio espanhol, sócio america- patia, uma interatividade com os leito-
momentos da L&PM, que foi quan- primeiros títulos que publicamos na no — não! O que nos garantiu a possi- res. Foi o que disse antes: somos po-
do a gente começou a fazer a coleção coleção. Ele editou os sonetos do Ca- bilidade de criar esse imenso e valioso lifônicos. Turma da Mônica, Peanuts,
de bolso, ele era meu subeditor, tra- mões, também numa belíssima edição. catálogo que a L&PM tem hoje foi só Guido Crepax, sacanagem, transgres-
balhava de graça, fazia o contato com Além dos livros dele, como autor. o leitor. Por quê? Porque ele reconhece são, temos de tudo. n
18 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

NARRATIVAS | EWERTON MARTINS

OS SARB’MOS
Os sarb’mos nos perseguem. Não há onde
possamos ir que já não saibam. Molestam-
-nos preventivamente, antecipam-nos os pas-
sos, submetem-nos como consequência do
que somos causa. Não há fuga possível.

Não damos um passo sem que nos tenham


A CADEIRA
Naquele lugar a cadeira dispõe-se. O homem
vislumbra a cadeira e nela se senta, face para o
mundo. Recosta-se da forma que mais lhe con-
vém para o conforto corporal. Busca saliva nos
cantos da boca seca. Olha para o mundo com os
previsto o movimento. Não há movimento olhos cansados do fim. Começa a falar.
que escape à sua simultânea antecipação.
Um infinito inteiro depois, o homem se cala.
Desconheço divindade que não seja a criada Pudera enfim dizer tudo. Pudera enfim dizer
por nós — mesmo assim, nos afetam. tudo.
O homem se levanta e se vira, as costas para o
Tudo isso acessei em um sonho. Denomi- mundo. Caminha da forma que mais lhe con-
nam-se luz em um mundo de trevas, presu- vém para o conforto corporal. Busca fôlego na
mem-se — transcendências tal si cor, som, alma seca. Cansados os olhos, desvia o mun-
corpo — onde eu pude acessar, mas não com- do. Dá-se ao andar, enfim. E dá-se ao andar.
preendo. Demônios. Ao cabo, tudo não fora mesmo o suficiente.

Dizem de si pelo que denominam linguagem: No mesmo lugar, a cadeira dispõe-se. A ca-
deuses íncubos que se supõem sempre em pé. deira deslumbra a mulher.
Falsos anjos.
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 19

1 .
Nascemos na savana. Assim que deixamos o corpo da mu-
lher, tivemos a deslumbrante visão dos trezentos e sessen-
ta graus que nos faziam entorno. Deslumbramo-nos então,
gozo de corpo inteiro, infindável, comunhão.
2 .
Enxergar toda essa angulação implicava em ver a si mes-

O SEIXO
É DE SONHO, É DE PÓ
mo na totalidade, integrado — mas também em ser visto de
qualquer lugar, o que punha a vida em (uma de repente ina-
ceitável) vulnerabilidade. Houve o medo, primeira vez.
3 .
Buscamos o amparo das árvores, tentativa de emoldurar a vi-
são: a nossa visão do resto, distrair dos perigos — e a visão
que o resto teria de nós, distrair os perigos. Enquadramos a
realidade, mas o que fizemos dela também nos enquadrou: da
savana à floresta, a frigidez civilizatória.
4 .
Adolescemos aí, o que então se fez pouco: a maturidade exis-
tencial que de repente passamos a demandar, sôfregos, impli-
cava em uma necessidade cada vez maior de segurança. Bus-
camos as rochas, quais nos tornamos.
5 . O seixo só alcança a sua forma polida e calma, sem arestas, de-
Fizemo-nos adultos assim que conquistamos a caverna, cujo pois de despencar descontrolado rio abaixo, às pancadas, solto
formato da entrada definiria o método com que enquadra- e grave, por décadas a fio, abandonado de tudo à própria sorte,
ríamos, dali em diante, a realidade inteira (ou aquilo que, sem saber onde nem em quem vai dar. A beleza do seixo de-
parte dela, passaríamos a entender como o “tudo”). Foi quan- pende da relação do tempo com o espaço.
do, brochas, começamos a pintar, emoldurados.
6 . Com um sem número de seixos nas mãos, ergue-se uma casa
Da parede da caverna à tela de pintura, envelhecemos; e dela ou defende-se a casa construída. Mas o seixo, propriamente,
à televisão, da televisão ao computador de mesa, do compu- só a natureza, em seu tempo próprio de queda, ele em si mes-
tador ao celular de mão, a tela, telas, tê-las: que em meu ce- mo subtrativo, é capaz de estabelecer.
lular eu emolduro o meu olhar, um olhar já cansado, duro,
a civilização, segurança, vitória: eu consegui. Mirando o Há quem diga que não é a queda que forma o seixo, mas a
meu celular, os meus dois olhos estabelecem um único grau água. Quem diz isso entende de água, não de seixos.
como campo de visão — e nada mais finalmente me atinge.
Finalmente.
7 .
Essa trajetória — entre os trezentos e sessenta graus que nos
faziam entorno e o único grau que hoje se apresenta como
campo de visão — denuncia: o próximo passo em direção
à maturidade (a maturidade definitiva, absoluta, terminan- Ewerton Martins Ribeiro é autor da novela A grande marcha (2014), lançada em formato digital
te, final) será a cegueira, a cegueira como a contada na tra- pela editora e-galáxia, cujo pano de fundo são as manifestações brasileiras de junho de 2013. Jornalista
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutorando em estudos literários pela mesma
gédia clássica, a cegueira inescapável, o vaticínio dos deuses:
instituição, nasceu e vive em Belo Horizonte (MG). Em agosto, em razão de uma bolsa de investigação
falo da vida que era de sonho; falo da vida que agora é de pó. recebida da Fundação Calouste Gulbenkian, parte para uma temporada de um ano em Portugal, onde
escreverá o livro de sua tese.
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CAPA

Ilustração: José Aguiar

Uma outra Babel


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O escritor Carlos Henrique O livro narra sua formação como


leitor e o encantamento nas primeiras
Schroeder reflete sobre experiências com a escritura. Mas tam-
bém é possível sentir uma espécie de
como a atual e prolífica claustrofobia de estar em Buenos Aires,
geração de autores com a sombra de Borges em todas as
esquinas (Alan Pauls, outro argentino e
argentinos tenta superar grande equilibrista entre público e críti-
ca, vê os tentáculos borgeanos abraçando
a eterna sombra de toda a cidade em O fator Borges). Pauls
Jorge Luis Borges também trata dos dois Borges mais fa-
mosos: o jovem e vanguardista, e o ana-
crônico e quase invisível (“um escritor
de outro tempo”). Mas qual o tempo da

N
o prólogo de O último leitor, de literatura? Seria justo pensar cronologi-
Ricardo Piglia, conhecemos o fo- camente em algo tão cheio de camadas e
tógrafo Russel, que esconde em janelas? Não? Sim? E como falar da lite-
sua casa no bairro de Flores, em ratura argentina, que bem parece o clás-
Buenos Aires, uma réplica da cidade sico de Macedonio Fernández (Museu
“numa escala tão reduzida que podemos do romance da eterna), onde a numera-
vê-la de uma só vez” e “toda a cidade ção de páginas é inútil?
está ali, concentrada em si mesma, re- São tantas correntes que é quase
duzida a sua essência”. impossível segui-las sem cair num sim-
É provável que Russel não saiba, plismo risível. Vou eleger um tema jus-
talvez nem Piglia, mas nesse simulacro to para tratar dessa literatura que me é
da capital argentina há um segredo: no tão cara e suculenta: a carne. Me des-
porão de um casarão está um ponto do culpem os veganos e vegetarianos, mas
espaço que abarca toda a realidade do quem nunca comeu um bife de chorizo
universo. Está tudo lá: você, eu, ruas, vi- acompanhado de um Malbec, não sabe
das, e, claro, todos os escritores argenti- Contista e romancista, Samanta Schweblin tem dois livros lançados no Brasil: Pássaros na boca e Distância de o que é viver. “Não é a mesma coisa na-
nos, de todas as épocas, do passado e do resgate. Uma das principais vozes da nova geração de autores argentinos, já recebeu diversos prêmios, como o dar no mar, nadar numa piscina, a mes-
futuro, de agora. Essa unidade na mul- Casa de Las Américas (Cuba) e o Juan Rulfo (França). ma diferença entre viver e ler?”, pergun-
tiplicidade é um tema borgiano por ex- ta-nos o Renzi do livro de Piglia. Aliás,
celência, e não reluz apenas em O aleph. carne e política são dois pratos argenti-
Esta é a melhor comparação que pode- sombra de Borges, nem o passado, mui- mação literária do alter ego de um dos nos por excelência, e estão no conto “El
mos fazer sobre a literatura argentina: to menos Piglia. Eleito por nove entre mais populares e reconhecidos escrito- matadero” (1871), de Esteban Echever-
ela é una em sua bibliodiversidade. cada dez críticos literários e escritores o res latino-americanos. A acessibilidade ría: tem como cenário um matadouro na
Sendo assim, podemos crer ma- melhor lançamento do ano passado no de sua prosa e de seus ensaios fizeram Província de Buenos Aires, mas também
tematicamente que a literatura argenti- Brasil, Anos de formação — Os diários de Piglia um dos casos raros e duradou- os enfrentamentos entre unitaristas e fe-
na é borgeana. Ponto. Nada escapa da de Emilio Renzi é um mergulho na for- ros de equilíbrio entre crítica e público. deralistas. Ah, a política….
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Mas provavelmente alguém levantará o dedo e dirá: que ro? Seria ridículo não voltar pelo menos
heresia! É Facundo (1845), de Domingo Faustino Sarmiento aos anos 1960, onde estão Copi, Osval-
(que chegou a ser presidente do país), que simboliza a funda- do Lamborghini e Néstor Sánchez, ou
ção da literatura argentina! Outro pode bradar que José Her- um pouco mais para frente, aos provo-
nández e seu poema “O gaúcho Martín Fierro” (1872), ver- cadores Fogwill, César Aira, Héctor Li-
dadeiro best-seller que retratava a vida dura dos gaúchos e as bertella e Alberto Laiseca, e por fim ao
injustiças de que eram vítimas é, sim, digno de um ato funda- Sergio Chejfec, Luis Chitarroni, Anto-
dor, ou ainda Ricardo Güiraldes e seu Don Secundo Sombra nio Di Benedetto e Daniel Guebel até
(1926), outro livro sobre as lidas do campo. chegar em Martín Kohan, Alan Pauls,
Juan Becerra e Sergio Bizzio e por fim
Século XX em Patrício Pron e Andrés Newman…
Mas logo c tomaram conta da produção local. Em So-
nhos da periferia — Inteligência argentina e mecenato priva- Grandes autoras
do, o professor da USP Sergio Miceli levanta um interessante Opa, há algo de errado. Esse ca-
paralelo entre as vanguardas argentinas e brasileiras. A pri- minho não funciona, não mesmo. Vol-
meira, subsidiada pelo mecenato privado, e a segunda, apare- temos ao porão, voltemos a Buenos Ai-
lhada pelo Estado, mas ambas com um ponto em comum: “As res, voltemos. “Mas e as escritoras?”
ligações de artistas brasileiros e argentinos com as tendências Pergunta o leitora antenada e justicei-
inovadoras em voga na França se assemelhavam bem mais do ra. Calma, plis. O país vizinho foi e é
que as conexões desses campos de produção intelectual com um celeiro de grandes narradoras e poe-
seus congêneres latino-americanos”. tas, e também o país de Beatriz Sarlo,
A uva Malbec estava quase extinta na França e renas- uma das críticas literárias mais respei-
ceu na Argentina, onde hoje estão os mais consagrados vinhos tadas na América Latina. E lá, no só-
desta uva. Podemos dizer que a literatura argentina achou um tão borgeano, este lugar sem tempo, elas
respiro na França, e, então, tal qual o milagre da uva Malbec, estão em paridade. E podemos muito
ganhou sabor e taninos incomuns. Assim a primeira metade bem clamar pelo protagonismo de Jua-
do século XX consagra a prosa argentina no mundo: Leopol- na Manuela Gorriti. Nascida no dia 15
do Lugones publica As forças estranhas (1906) e Contos fa- de junho de 1818, em Salta, no noroes-
tais (1926), sai também Contos de amor, loucura e de muerte te argentino, publicou contos, roman-
(1917), de Horacio Quiroga, Os sete loucos (1929), de Rober- ces, biografias e memórias. Escreveu seu
to Arlt, A invenção de Morel (1940), de Adolfo Bioy Casa- primeiro romance, La quena, aos dezoi-
res, e Ficções (1944) e O aleph (1949), que tornam Jorge Luis to anos de idade. Publicou cerca de 70
Borges uma entidade nas décadas seguintes. obras de ficção ao longo da vida. Oscila-
E a ascensão continua na segunda metade do século va entre Lima e Buenos Aires, tornan-
XX: Ernesto Sábato vem com Sobre heróis e tumbas (1961), do-se uma notável figura literária em
Julio Cortázar ganha fama mundial por Histórias de cronó- ambas as cidades. Ficou conhecida não
pios e de famas (1962) e por O jogo da amarelinha (1963), e somente como escritora, mas também
Museu do romance da eterna (1967), de Macedonio Hernán- como uma heroína de guerra: durante
dez, é praticamente um divisor de águas (ou de vinhos). Ma- o cerco espanhol ao porto de Callao, no
nuel Puig estreia com La traición de Rita Hayworth (1968), e Peru, e ajudou soldados feridos e parti-
Juan José Saer sai com O limoeiro real (1974). cipou da resistência militar. Juana fale-
É isso? Não, mesmo. Toda lista é incompleta: falha, ceu em 1892, aos 78 anos de idade.
em sua essência. Injusta. Justiça mesmo somente no espec- Nascida em Entre Ríos, na Argentina, em 1973, Selva Almada é uma das revelações da Mas sejamos realistas: se os es-
tro borgeano: todos os autores, lado a lado, sem tempo. Ape- literatura de seu país. No Brasil, foram publicados dois livros da autora, O vento que critores argentinos sempre foram mui-
nas gesto. Unidade e multiplicidade. Quantas vozes no escu- arrasa e Garotas mortas. to bem editados por aqui, as escritoras
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foram subestimadas pelo mercado edi- ganhou, em fevereiro de 2017, o prêmio Ciutat de Barcelona
torial brasileiro, para nosso azar. E so- na categoria “Literatura Castelhana”.
mente nos últimos anos as coisas co- Outro livro de arrepiar é O vento que arrasa, de Selva
meçaram a melhorar. E assim fomos Almada, que faz, à maneira de Saer, uma leitura fantástica do
perdendo universos tão díspares quan- real. O livro retrata a história de um pastor evangélico e de sua
to cativantes de autoras como María filha, Leni, que são obrigados a fazer uma parada na oficina
Elena Walsh, Norah Lange, Nydia La- mecânica do Gringo, local onde conhecem o jovem ajudante
marque, Sara Gallardo, as irmãs Silvi- Tapioca e querem convertê-lo e levá-lo consigo.
na Ocampo e Victoria Ocampo, Delfi- Uma das melhores cenas de violência física e psicoló-
na Bunge, Alfonsina Storni, Alejandra gica da literatura contemporânea está neste breve e fascinan-
Pizarnik, Sylvia Molloy e muitas outras. te romance. Já Distância de resgate, de Samanta Schweblin, é
Mas um quarteto mágico vem uma narrativa tão original e impactante que confirma a auto-
fazendo bonito na última década, e po- ra argentina (do espetacular Pássaros na boca) como uma das
de-se dizer que a melhor produção con- vozes fundamentais da literatura latino-americana contempo-
temporânea argentina é delas (e todas rânea. O breve romance de 144 páginas tem três eixos que se
com títulos lançados no Brasil recen- sobrepõem a todo instante: a estreita e conflituosa relação de
temente). Mariana Enriquez, Samanta mães e filhos pequenos, os terríveis efeitos dos agrotóxicos no
Schweblin, Selva Almada e Leila Guer- campo e o caminho sinuoso entre a vida e a morte (sim, o livro
riero: elas estão lá, lado a lado com Gor- tem pitadas de terror). “Fico pensando se poderia acontecer co-
riti, no porão. Nos contos de As coisas migo o que aconteceu com Carla. Sempre penso no pior. Ago-
que perdemos no fogo, Enriquez usa ra mesmo estou calculando quanto demoraria para sair corren-
uma espécie de “terror social” para abor- do do carro e chegar até Nina, se ela corresse de repente para a
dar temas como pobreza, violência po- piscina e se atirasse. A isso dou o nome de ‘distância de resgate’,
licial e as desigualdades de gênero. Uma que é como chamo a distância variável que me separa de mi-
vítima de bullying que arranca as pró- nha filha, e passo a metade do dia fazendo esse cálculo, embora
prias unhas, um grupo de jovens mu- sempre arrisque mais do que deveria.” O enredo se desenvolve
tantes que vive às margens de um rio num ping-pong entre Amanda e David: perguntas e respostas
envenenado, uma criança assassina ou que nos envolvem em um pacto assustador.
uma menina que tem uma caveira como Por fim chegamos em Uma história simples, livro-repor-
melhor amiga convivem muito bem em tagem de fina prosa literária de Leila Guerriero, que investiga
páginas e páginas recheadas de perso- um festival de malambo (o sapateado dos “gaúchos” argenti-
nagens perturbadores e de cenas nas nos) praticamente desconhecido no país, mas que leva centenas
quais a vida cotidiana ganha contornos de pessoas a Laborde, uma pequena localidade na província de
de pesadelo. Os doze contos reunidos Córdoba. “No pequeno circuito majestoso dos dançarinos fol-
na obra mostram uma realidade palpá- clóricos, um campeão de Laborde é um eterno semideus.” Lei-
vel, que trazem à tona problemáticas la- la narra a história em primeira pessoa, compartilhando com o
tino-americanas e mundiais. O conto leitor suas dúvidas e seu fascínio sobre os personagens. E elege
que dá nome ao livro é um espetácu- o competidor Rodolfo como seu guia nessa imersão: “Ao ter-
lo de horror e um grito feminista. En- minar, bateu na madeira com a força de um monstro e ficou ali,
riquez costuma trabalhar com as fobias olhando através das camadas de ar folhado da noite, coberto
de seu país. “Se você fizer um conto so- de estrelas, puro fulgor. E, sorrindo de lado, como um príncipe,
bre uma menina que desaparece dentro como um rufião ou como um diabo — tocou a aba do chapéu.
de uma casa em um bairro, fará ressoar E se foi. E assim foi. Não sei se o aplaudiram. Não me lembro.”
os centros clandestinos da ditadura”. Uma magistral construção na busca da linha tênue da ficção e
Aclamado pela crítica em vários países, O escritor Jorge Luis Borges, autor de Ficções, em 1968, no Central Park, em Nova York. do real. E o mercado brasileiro finalmente acordou para
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elas: Sara Gallardo e Sylvia Molloy sairão nos próximos meses


pela editora mineira Relicário (que acaba de lançar um combo
com dois livros de Alejandra Pizarnik).
Se foram esquecidas por um tempo no Brasil, nunca fo-
ram na Argentina, e cada escritora é o símbolo de todas. E cha-
mo Borges: “Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo
exercício pressupõe um passado que os interlocutores compar-
tem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha
temerosa memória mal e mal abarca? Os místicos, em análo-
go transe, são pródigos em emblemas: para significar a divin-
dade, um persa fala de um pássaro que, de algum modo, é to-
dos os pássaros; Alanus de Insulis, de uma esfera cujo centro
está em todas as partes e a circunferência em nenhuma; Eze-
quiel, de um anjo de quatro faces que, ao mesmo tempo, se di-
rige ao Oriente e ao Ocidente, ao Norte e ao Sul.” A presen-
ça de Beatriz Viterbo ressoa para sempre, em todo o universo.
Ontem, hoje, amanhã.

Ainda inéditos no Brasil


Para escrever esse texto, revi minhas antigas caderne-
tas, com anotações de livros lidos no passado, e encontrei uma
de 2008, com os livros que me impressionaram naquele ano. Já
se passaram dez anos e nenhum deles chegou ao Brasil. Gostei
muito do terceiro romance de Pedro Mairal, Salvatierra (a To-
davia acaba de lançar A uruguaia), onde o autor cria um artista
mudo que se expressa através de uma obra sem limites. Uma nar-
rativa sobre os vínculos familiares, o mundo secreto dos adultos
e a palavra, numa linguagem contemporânea e poética. Cuarte-
to para autos viejos, de Miguel Vitagliano , reúne quatro histó-
rias que se divergem e se complementam, e como uma partitura,
mostra uma série de variações sobre uma música recorrente. O
livro aborda o destino, o amor e a memória. (Porque conservar e
deixar envelhecer nossos sentimentos? Por acaso guardamos os
carros velhos?). Já em Lata peinada, de Ricardo Zelarayán, uma
espécie de Livro do desassossego dos anos 2000, o autor reúne
diversos textos curtos, numa espiral sonora e perturbadora.
Outros dois livros, Tres hombres elegantes, de Marce-
lo Birmajer, e Perder, de Raquel Robles, também me entu-
siasmaram. O primeiro retorna com seu tradicional persona-
gem, Javier Mossen, que graças aos seus trabalhos de roteirista
e jornalista, conhece os três homens elegantes do título, e nos
mostra sua galeria de personagens: um famoso escritor judeu,
um cantor decadente e uma anciã e seus segredos. Já no livro
de estreia de Raquel Robles, ganhador do Prêmio Clarín de
Literatura, temos uma história de redenção, que narra com Leila Guerriero é jornalista e escritora, autora de diversos livros-reportagem, como Los suicidas del fin del mundo.
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grande delicadeza o processo doloroso de uma mãe que per-


deu seu filho de cinco anos num acidente de carro.
Esses livros, em sua maioria, publicados naquele longín-
quo 2008, pertenciam a pequenas editoras. Já passada uma dé-
cada, a situação é a mesma: é impressionante como as pequenas
editoras independentes seguem com prestígio e força. Um au-
tor prolífico como César Aira (que já publicou mais de cem li-
vros e de quem sou fã de carteirinha) prefere distribuir seus li-
vros por várias editoras pequenas a ter um contrato amarrado
com uma grande casa editorial (geralmente ligada a grupos in-
ternacionais). Seu último livro, El gran misterio, saiu pela Blatt
& Ríos, que publica também Fabián Casas e Elvio. E. Gandolfo.
Na Entropía estão Sergio Chejfec, Carlos Ríos e Romina Pau-
la, e na Eterna Cadencia seguem Sylvia Molloy e Hernán Rosi-
no (autor do excelente Glaxo, que saiu recentemente no Brasil).
E uma lista extensa de nomes se espalha por casas edi-
toriais como Mansalva, Mardulce, Caleta Olivia e muitas ou-
tras. Estou reunindo minhas cadernetas para um livro ou série
de artigos, para justamente pensar nessa simbiose, entre auto-
res e pequenas editoras, que produz essa literatura tão peculiar.
Mas o porão está lá. E fujo do porão borgeano ao me apro-
ximar do armário pigliano: na primeira narrativa de Formas
breves, Piglia passa seus dias entre um hotel em Buenos Aires
e outro em La Plata: funções da vida acadêmica.
“Os corredores vazios, os aposentos transitórios, o cli-
ma anônimo desses lugares onde sempre se está de passagem.
Viver num hotel é o melhor modo de não cair na ilusão de ter
uma vida pessoal...”
Piglia, numa tarde qualquer em seu quarto de hotel em
La Plata, encontra num canto do guarda-roupas, num desvão,
as cartas de uma mulher, Angelita, que fugira de casa para evi-
tar mudar de cidade. Algum tempo depois, Piglia resolve vas-
culhar o guarda-roupas de seu quarto de hotel em Buenos Ai-
res. Acha duas cartas, de um homem, justamente em resposta
à mulher de La Plata.
“A única explicação possível é pensar que eu estava en-
fiado num mundo cindido e que havia outros dois que tam-
bém estavam enfiados num mundo cindido, passando de um
lado para outro tal como eu e, por uma dessas estranhas combi-
nações produzidas pelo acaso, as cartas haviam coincidido co-
migo”. O fato é que a literatura argentina coincidiu comigo. n

Carlos Henrique Schroeder é romancista e contista, autor de As certezas e as palavras (Editora


da Casa, 2010), vencedor do Prêmio Clarice Lispector da Biblioteca Nacional, e de As fantasias eletivas
(Record, 2014), suas duas homenagens à literatura argentina. Morto em janeiro de 2017, Ricardo Piglia, além de um grande ficcionista, também se dedicou a entender a rica tradição literária de seu país.
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ENTREVISTA

“A literatura
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argentina já é
pós-borgiana”
Daniel Link, um dos mais provocativos escritores e
acadêmicos argentinos, fala sobre o cruzamento de
gêneros nas obras de Borges, Copi e Walsh
RONALDO BRESSANE


É
melhor não fechar nenhuma janela, para que todos os ventos nos atravessem”,
pede Daniel Link, perguntado sobre seu interesse no cruzamento entre gêne-
ros na literatura. Um cruzamento que se cristalizou com os contos-ensaio de
Jorge Luis Borges, nome central da literatura argentina do século XX — cen-
tralidade, para Link, já abandonada em favor dos diálogos entre as obras de Borges e
de César Aira (o mais prolífico autor contemporâneo), ou entre Borges e Copi (tema
de muitos estudos de Link).
Nascido em Córdoba em 1959, Daniel Link é escritor, jornalista (colunista do
jornal Perfil, foi editor da Magazine Literario e do suplemento “Radar”, no jornal Pági-
na 12), crítico literário, professor na Universidade de Buenos Aires e diretor do Progra-
ma de Estudos Latinoamericanos Contemporâneos e Comparados. Dirige a revista de
estudos latinoamericanos Chuy e o Dicionário Latinoamericano da Língua Espanhola.
Editou na Argentina grande parwte da obra de Rodolfo Walsh e de Michel Foucault e
é autor, entre outros, do romance Monsterrat (2006), o volume de contos La mafia rusa
e o monumental ensaio Suturas. Imágenes, escrituras, vida (que teve uma edição resu-
mida no Brasil sob o título Suturas. Um breviário, pela editora Azougue). Seu livro mais
recente é La lógica de Copi, em que pesquisa a inventiva obra do dramaturgo, ator, es-
critor e cartunista argentino Raúl Damonte Botana, mais conhecido por Copi, que no
Brasil só teve lançado até agora o romance O Uruguaio, de 1972 (em 2015, pela Rocco).
O travestismento e o transenxualismo são marcas da obras de Copi — mili-
tante gay morto em 1987 por complicações advindas do HIV —, que aproximou o
desenho do relato e o teatro do romance. Esses cruzamentos são marcas da vanguar- Para o crítico Daniel Link, a obra do escritor Copi é centra na literatura argentina contemporânea
da que, para o sintético Link, podem definir a ficção do século XXI. porque “amplia os limites do dizível e do imaginável”.
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 27

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No Brasil você teve lançados Como se mente como ele queria ou tinha pre-
lê e outras intervenções críticas e Su- visto. Essa declinação do poder, que é
turas. Um breviário, ambos livros que o poder da lei, é o que a literatura con-
buscam compreender a atitude com serva como seu maior tesouro. Nos pa-
que um leitor se aproxima da literatu- rece razoável ensinar a ler a lei para
ra. Como se lê um livro sob a perspec- que todos saibam a que ater-se (que
tiva das redes sociais e da Nefflix, que penas vão lhes corresponder quando
nos distraem a atenção? não cumprirem a lei). Muito mais útil
Suturas. Imágenes, escrituras, vida reto- é ensinar a ler textos, porque isso per-
ma as mesmas obsessões que já estavam mitirá, mais cedo ou mais tarde, com-
em Como se lê, escrito 10 anos antes. preender o caráter histórico, ou seja,
Acho que hoje poderia ver com cer- convencional, da lei — e, no melhor
ta melancolia aquelas hipóteses liber- dos casos, abolir as leis que atentam
tárias, não porque não existe liberdade contra o exercício reto da democracia
possível na internet, mas porque as for- e da soberania sobre nós mesmos.
ças que fazem falta para sustentá-las são
muitas. Para mim, a existência das re- O escritor e performer Copi é um de
des sociais (das quais não participo) são seus principais objetos de estudo. Co-
a afirmação do poder do controle sobre nhece o trabalho de Carlos Henrique
nossas vidas. Netflix: quase tudo que Schroeder, no livro Fantasias Eletivas,
produzem é ruim. Por que será? que usou Copi como personagem?
Sim, conheço. E fico feliz em saber que
Para escrever com liberdade é neces- Copi conseguiu articular sua própria
sário escapar da internet? voz com outras vozes latinoamericanas,
Não acho que escrever tenha alguma re- porque o latinoamericanismo (tão tê-
lação com a existência ou não das re- nue, mas tão indubitável) de Copi ne-
des sociais. Em seu livro Autorretrato cessita desses vínculos.
no escritório, Giorgio Agamben parte
da constatação de que a imagem do es- Falando em latinoamericanismo: por
critor se constrói a partir da solidão em que lemos tão pouco os autores hispâ-
seu gabinete. O mundo é outra coisa ra- nicos, e vice-versa, se nossa condição
dicalmente diferente daquilo que exis- de escritores vindos de ex-colônias
te nas redes. nos deixam mais próximos?
Porque existem as políticas metropoli-
Roland Barthes, em Grau zero da es- tanas, que se beneficiam da fragmenta-
crita, diz que a escrita é fundamental- ção de seus súditos.
mente um exercício da liberdade.
A literatura inclui todos os outros sa- Por que a obra de Copi é tão central na
beres. Mas mais que isso, a literatura é literatura argentina hoje?
um tipo de saber que permite enfren- É uma obra de grande liberdade, que
tar todo dogmatismo, porque o texto é, amplia os limites do dizível e do ima-
por definição, um espaço de despoder, ginável. Sobretudo, penso que estabele-
de despossessão. Ao escrever um texto, ce um umbral de transformação daqui-
um autor sabe que esse texto será lido Arturo Carrera já publicou mais de 20 livros e é hoje um dos principais nomes da poesia argentina. Sua obra já foi lo que é vivo, bem contrário à mutação
de qualquer forma, não necessaria- traduzida para o inglês, francês e sueco. Em 2011 teve seu livro A inocência lançado no Brasil pela editora 7 Letras. antropológica, essa catástrofe que
28 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

ENTREVISTA

tanto preocupava Pasolini. Em Copi, há também há uma relação Borges-Copi


indicações de que outro mundo e ou- (por exemplo, na Internacional Argen-
tro universo são possíveis, para além dos tina se convoca a Raúla Borges, uma
existentes. Pouco a pouco, vamos nos “filha natural de Borges”, e a trama da
aproximando disso. novela avança segundo o desejo de um
magnata negro: isso não é borgiano, já
Você já disse que Beatriz Sarlo o ensi- é pós-borgiano).
nou a ler. Como se pode ensinar alguém
a ler em 2018, com tantas distrações? Como a literatura argentina contem-
Com rigor, claro. E com amor. E com porânea dialoga com a tradição? Ro-
humildade. Nunca se deixa de aprender, dolfo Walsh e Roberto Arlt são mais
e escutar a voz daqueles a quem alguém lidos agora do que quando vivos? Ri-
está destinado a lhes ensinar é uma ma- cardo Piglia terá sucessores?
neira de fazer funcionar o circuito (a É difícil pensar em termos de suces-
leitura é um circuito). sores e heranças. Creio que Martín
Kohan, em todo caso, se inscreve em
Tendo em perspectiva Copi, se pode uma linha pós-pigliana. María Mo-
pensar em uma literatura trans, que reno, não só porque leu muito lúcida-
transicione entre gêneros? Por exem- mente sua obra, escreve pensando em
plo, entre a ficção e o ensaio? Walsh, tenho certeza.
Claro, isso já estava em Proust e por isso
eu relacionei um par de vezes a Procura Talvez o autor hispânico mais in-
proustiana com as buscas de Copi. Copi fluente dos anos 2000 para cá seja Ro-
desdenha o ensaio, mas ainda assim sua berto Bolaño. Como vê a sombra de
obra deve ser lida como um passo do Bolaño sobre a literatura argentina?
pensamento. Incide muito pouco. O que Bolaño
faz tem um horizonte de leitura, creio,
Você também alterna em sua obra gê- mais europeu.
neros como ensaio, romance, conto,
crítica. Há muitos argentinos contemporâneos
É melhor não fechar nenhuma janela que têm chegado ao Brasil, como Ma-
para que todos os ventos nos atravessem. riana Enríquez, Samanta Schweblin,
Selva Almada, Patricio Pron. Que ou-
Passados alguns anos desde a morte tros nomes poderia citar, na prosa?
de Borges, é possível afirmar que ele María Moreno e Edgardo Cozarinsky
ainda é o centro magnético da litera- são autores cuja leitura me enriquece
tura argentina? Ou podemos pensar muito.
em Cesar Aira como o grande escritor
argentino contemporâneo? E na poesia? Alejandra Pizarnik só
Me parece que nosso universo literário agora foi finalmente traduzida ao
já é pós-borgiano. E isso implica que português. Que poetas apontaria?
Borges sempre funcionará como um Arturo Carrrera (que foi amigo de
substrato, mas os caminhos começam Ale­­jandra) é provavelmente o poeta
a ser muito divergentes. Existe um diá- vi­­vo mais importante dos nossos dias.
logo Borges-Aira, naturalmente, mas Meus amigos Diego Bentivegna e
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 29

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Autor de grande prestígio hoje, Rodolfo Wash (1927-1977) teve dois livros lançados no Brasil, Operação massacre e Essa mulher e outros contos.

Ariel Schettini publicam livros sempre A autoficção é uma tendência forte cordar sempre Rodolfo Walsh, é neces- chivos del Goce, del Amor y del Deseo
assombrosos. Bárbara Belloc e Tera- na literatura atual. Há um confronto sário recordar sempre a ideia de verdade (O el incendio de los lugares comunes).
sa Arijón têm um perfil quase secreto, entre a literatura de autoficção e a li- e emancipação. Enfim: o pensamento pode aparecer
mas seus poemas são extraordinários. teratura de imaginação? por qualquer parte, e a escrita também.
Debate nenhum, creio. O “eu” é o mais Poderia falar um pouco mais do seu
De que trata sua pesquisa atual na imaginário dos conceitos. Colectivo Quri Kancha? Que está escrevendo agora?
universidade? Ah... é um coletivo que integro junto Dois romances, ou um. Enfim: algo
Estamos trabalhando basicamente em Como foi organizar os papéis de Ro- com Sebastián Freire (fotógrafo) e Al- sem notas de rodapé... Não me colo-
relação às noções de arquivo, an-arqui- dolfo Walsh? Descobertas? bertina Carri (artista de imagem e per- co prazos para terminar. Deixo que
vo e contra-arquivo. Nos interessa ras- Reconstruí dois contos inconclusos formance). Nos interessa, como co- as coisas avancem segundo seu ritmo
trear, nos arquivos que constituem nos- (“Adiós a La Habana” e “Ese hombre”), letivo, investigar as articulações entre próprio. Me custa encontrar o mo-
so campo metodológico, as linhas de mas o trabalho foi sobretudo de organi- corpo e arquivo. Os dispositivos que mento da coagulação justa dos prazos
força que fazem com que digamos o zação. Sempre esperamos que apareçam nos disciplinam, mas também as ave- e das ideias porque não tenho muito
que dizemos e vejamos o que vemos. mais coisas. Em tempos de conspiração nidas da emancipação. Até agora, a pri- tempo... ou vivo o tempo de uma for-
e capitalismo selvagem, é necessário re- meira apresentação que fizemos foi Ar- ma desordenada. n
30 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

ROMANCE | SARA GALLARDO

EISEJUAZ
— O que tem no seu rosto que eu andava na mata catando bichos com
não conheço? as mulheres. Gafanhotos, formigas, la-
Fui ao hotel. “Meu homem está gartixas. Minha mãe me disse: “Você é
doente. Não fala, não olha, não come”. grande, logo vai caçar com os homens
“Leve-o ao médico”. Não fui. Não falei. antes de ter idade. Um dia será chefe”.
Era o quarto dia. Uma mulher, mãe de machos, ouviu e
Dona Eulália na nossa casa: começou a gritar, bateu nela, se atraca-
Tradução: Mariana Sanchez “Como querem se civilizar? Ninguém ram pelos cabelos. Minha mãe era for-
vai devorar vocês no hospital. Sempre te e quebrou quatro dentes dela. Veio o
a mesma coisa. Se não forem, não vou chefe, porque ainda não tínhamos nos
Diz Eisejuaz: pagar os dias faltados”. Nada não falei. afastado. Ele veio e gritou alto, mas não
Minha mulher era boa, tinha conheci- o ouviram. Então ele ergueu a bengala
Entreguei minhas mãos ao Senhor porque ele falou mento das coisas e chorou. Tampouco e quebrou um braço da mulher que ti-
comigo uma vez. Falou outras vezes, antes, mas usando seus naquela noite falei, nem comi. nha batido na minha mãe: uma parte do
mensageiros. Falou por seus mensageiros no Pilcomayo, No quinto dia eu lhe disse: osso saía por baixo e a outra desponta-
quando fui menino e andei com as mulheres catando bichos — Tem água? Traz água. va por cima. Todas as mulheres começa-
na mata. Falou por seus mensageiros na missão e o missionário Trouxe água. Era pouca. ram a chorar e a gritar, e duas que eram
me botou sete dias de castigo. Mas, lavando pratos no hotel, — Aqui a água é pouca. Aqui velhas tentavam consertar o braço que-
falou-me Ele próprio. Dezesseis anos eu tinha, recém- não tem água. Você sabe. brado. “Ela quer te ver morto!”, gritou a
casado com minha mulher. A água descia pelo ralo com seu Só tinha uma moringa d’água. mulher. “Quer que o filho dela seja che-
redemoinho. E o Senhor, de repente, naquele redemoinho: Levantei-me. Joguei essa água na mi- fe!” Ficou feito morta. Crac, crac, fa-
“Lisandro, Eisejuaz, suas mãos são minhas, me dê”. Larguei nha cabeça e nas mãos. E não teve mais. zia o braço. Os pedaços de seus dentes
os pratos. “Senhor, o que posso fazer?”. “Antes do trecho final — Faz comida. quebrados na terra. O chefe me olhou.
pedirei por elas.” “Te dou já, Senhor. São suas. Já te dou”. O — Só tem um biscoito e duas Nada disse. As mulheres choravam. Ele
Senhor foi embora. Restou o redemoinho com a espuma do batatas-doces. levantou a bengala pra bater na minha
sabão brilhando. O Gómez, que tem bar, era garçom ali. Viu os — É suficiente. mãe e minha mãe não escapou, não pu-
pratos sem secar, secou e os levou sem dizer nada. Sempre teve Comemos o biscoito e as bata- lou, não fugiu. Mas ele não bateu. Disse
medo de mim. Porque eu, Este Também, Eisejuaz, arrastei tas-doces. Falei pra minha mulher: apenas: “Mal trocou os dentes e já quer
sem ajuda a segunda viga do caminhão até o refeitório. A — O Senhor falou comigo quan- ser chefe?”. Não falei nada. E gritou pras
viga segunda de ipê, grande qual quatro homens, eu sozinho, do eu lavava os pratos. que choravam: “Silêncio!” Uma velha,
quando fizeram a ampliação. A viga primeira puseram há — E agora — disse minha mu- que era mãe dele, levantou bem a voz.
trinta anos, cinco peões da dona Eulália que carregaram. Por lher. — O que vamos fazer? “Você quebra os ossos de uma mulher
isso Gomez não disse nada. Pela força que eu tenho. E se e não podemos chorar?”. Ele ergueu de
alguém diz que foram vários homens que carregaram a viga, “O que vamos fazer?”, é o que ela novo a bengala. “Na sua mãe, sim, bata
está mentindo. Gomez nada falou. Eu saí do hotel. Passei três disse. nela, quebre seus ossos — gritou a mãe
dias sem falar, sem olhar, sem comer. Duas vezes o Senhor tinha fa- velha —, e não naquela que quer a sua
Minha mulher: lado comigo por seus mensageiros. Eu morte!”. Ele disse: “Sua cria mal trocou
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 31

Sara Gallardo nasceu


os dentes. Seu franguinho ainda não está emplumado”. sai pra Salta porque é festa dos gringos em Buenos Aires em 1931.
Então um mensageiro do Senhor passou pra falar co- noruegueses. Os filhos põem gravata Escritora, cronista e jornalista,
migo. Era uma lagartixa. Mas com uma cor igual à do sol. Se- borboleta pra festa e são como cria de é autora dos romances Enero
(1958), Pantalones azules
gui-a, corri-a. Cheguei a uma clareira. Não a encontrei nessa galinha. “Hoje é seu aniversário, Lisan-
(1963) e Los galgos, los
clareira. Procurei e não encontrei. dro — diziam —, e depois de amanhã, galgos (1968). Sua vasta obra
Então, quando chegou a hora de comer, todo mundo es- festa do norueguês”. Mas Eisejuaz não jornalística foi publicada em
tava zangado. Os homens tinham voltado sem caça, a mulher pode voltar pros noruegueses. Já termi- revistas como Confirmado
e Primera Plana durante os
do braço quebrado gritava uuui, uuui, e a minha mãe, apesar nou o segundo e o terceiro trecho do anos 1960 e 1970, e no
de não ter sido quem quebrou o braço, foi ameaçada. “Te ma- seu caminho. jornal La Nación, do qual foi
taremos”. Meu pai quis bater na minha mãe também e ela não O trator do missionário gringo correspondente na Europa. Em
se mexeu, não fugiu. Havia muita fumaça, fumaça em cima da inglês soa e vai pra serraria. Os cami- 1988, aos 57 anos, morreu
em Buenos Aires de ataque
mulher doente, e fumaça das fogueiras porque a lenha estava nhões soam, bem cedo, pelo calor bru- fulminante de asma. Eisejuaz,
verde. E todo mundo continuava zangado, e só se comia o que to. Paqui falou: sua obra mais radical, foi
eu e as mulheres catamos: gafanhotos, lagartixas. Jogávamos — Estou com fome e frio. O que incluída na coleção Clásicos de
la Biblioteca Argentina, dirigida
na brasa, se retorciam, comíamos. E eu me lembrei do mensa- você quer comigo, índio imundo? Me
por Ricardo Piglia. O livro será
geiro do Senhor que passou aquela tarde pra falar comigo. Era mate de uma vez. lançado no Brasil em outubro,
de noite já. Na mata anoitece muito cedo. Corri buscá-lo. Es- Posso tratá-lo como meu, é aque- pela editora Relicário.
tava no tronco de um paricá, brilhando. Nada não disse, nem le que o Senhor me mandou. Por isso
me mexi. Nem aquela lagartixa. “O Senhor vai te comprar — jogo-o na água do córrego. De meio-
Mariana Sanchez nasceu
me falou —, você vai dar suas mãos pra ele”. Nada falei. “O se- -dia as mulheres do acampamento to- em Curitiba em 1981. É
nhor é único, é um só, nunca nasceu, não morre nunca”. Eu a mam banho e seus vestidos incham. jornalista, especialista em
ouvia. Brilhava. Disse: “Agora fale”. Eu disse: “Tá bom”. Minha mulher tomava banho. Se diver- tradução pela Universidade
Gama Filho e em Cinema pela
Mas todos tinham saído me buscar com tanto barulho, tia. Brincava na água com as mulheres e
Faculdade de Artes do Paraná.
com luzes, com medo do jaguar. Caminhei e corri e cheguei com os filhos das mulheres. A Maurícia Traduziu contos de Selva
aonde estavam e se zangaram. Meu pai: o que estava fazendo? toma banho. Minha mulher já morreu, Almada, Lina Meruane, Samanta
Minha mãe: também. Nada disse eu. mas as outras tomam banho. Paqui abre Schweblin, Pablo Ramos, entre
outros autores latino-americanos.
De manhã me levaram olhar as pegadas. Fomos até o a boca debaixo d’água. Vai morrer já, já. Como jornalista, colaborou para
paricá e vi as pegadas dos meus pés. E as pegadas do jaguar Eisejuaz, aquele que levou sozi- veículos como revista Piauí,
davam quatro voltas em torno das minhas pegadas e depois as nho a viga do hotel, entregou suas mãos Suplemento Pernambuco e
seguiam quando caminhei e quando corri. ao Senhor. O Senhor as deu ao Paqui, o Gazeta do Povo. Desde 2015
vive em Buenos Aires.
Eu não o havia visto. Ele não havia me tocado. paralisado, o inválido, o doente, tama-
Desde esse dia não me perguntaram nada. nha imundície. Ao Paqui, aquela carni-
ça. “Tá bom, Senhor. Não deixe que eu
Sou Eisejuaz, Este Também, o do longo caminho, o me arrependa.” Botei-o na rede, fui pra
comprado pelo Senhor. Paqui está aqui. Já sai o sol. Já sai o casa de Eisejuaz. A casa que não é só
trem. O sino do trem, o sino do franciscano. O último tre- de Eisejuaz. Pra secá-lo, pra vesti-lo, pra
cho do caminho de Eisejuaz começou. O carro do reverendo alimentá-lo. n
32 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

PERFIL | GLAUCO FLORES DE SÁ

Todas as
Fotos:Arquivo

do com o longo nome do intelectual,


seguido de uma legenda maior ainda.
Glauco Flores de Sá Brito foi jornalis-

flores de
ta, crítico de teatro, poeta, dramaturgo,
profissional de televisão, encenador e
agitador cultural. Na ocasião da inaugu-
ração, os jornais se esmeraram em fazer

Glauco
um obituário tardio, com mais ênfases
do que os de cinco anos antes, quando
da morte e do banzé que causou. A sala
de teatro pequena, para cento-e-pou-
cos lugares e sob medida para espetá-
culos infantis e de repertório, era sau-
dada como uma “justa homenagem”. O
Intelectual gaúcho radicado em Curitiba, próprio Sá Brito trabalhou ali, ao diri-
gir montagens na última fase de sua ex-
a partir de 1937, marcou a vida cultural tensa carreira — extensa à revelia de ter
partido tão cedo.
da cidade. Deixou lastros no teatro, deu
musculatura à tevê recém-nascida, fez Mil Glaucos
Com perdão ao clichê, Glauco
poesia moderna, ainda em dias de ser lida provou de muitas vidas em cinco déca-
das. Sobre ele não se escreve um texto,
JOSÉ CARLOS FERNANDES mas uma série. Há o Glauco da cida-
de gaúcha de Montenegro, onde nasceu,

E
m maio de 1970 — às vésperas da campanha da Copa do lembrada em versos esparsos dos três li-
Mundo — Curitiba tocava na mesma banda que o resto vros de poesia que deixou (O marinhei-
do país. A boçalidade da ditadura militar deixava seus es- ro, de 1947; O cancioneiro amigo, de
tragos autoritários aqui e ali. O refrão ufanista e pegajoso 1960; e o póstumo Azulsol). O Glauco
do jingle “Pra frente Brasil” (“90 milhões em ação... todos jun- que integra um dos mais excitantes nú-
tos vamos”) fazia sombra a “Madalena”, sucesso na voz de Elis cleos de pensamento da cidade, a turma
Regina, e a “Andança” — canção chiclete que revelou Beth do Café Belas Artes, cujo auge se deu
Carvalho. O escapismo só não era maior porque uma notí- nos anos 1940, a bordo de revistas que
cia acertou a boca do estômago de quem frequentava o circui- nos salvam da inhaca de província. Há
to cultural da cidade. O “múlti prosador” Glauco Flores de Sá o Glauco do jornal O Dia, no qual fez
Brito foi encontrado morto na pensão onde morava, na Rua carreira. O dos 182 teleteatros e 11 tele-
Saldanha Marinho, Centro da capital, pelo amigo e compa- novelas feitos para TV a lenha, de 1961
dre Aristeu Berger. Foi-se em segredo, num fim de semana de a 1966, no Canal 6.
chuva. No seu quarto, um copo de vinho e sinais de que esta- Acrescente-se o sujeito que agi-
va ali havia dias. Glauco tinha 50 anos — e só os alienados, os tou meia dúzia de grupos cênicos a par-
caretas, ou os sem instrução desconheciam de quem se tratava. tir de 1948 até sua morte. O que tentou
O impacto foi tamanho que se pode afirmar — sem carreira no Rio de Janeiro e trabalhou
margem de erro — que os praticantes da alta cultura na ca- com Sérgio Britto e Jacy Campos —
pital só enterraram Glauco de fato em 28 de agosto de 1975, um homem de TV, quem sabe seu guru.
quando o miniauditório anexo ao Teatro Guaíra foi batiza- O Glauco no cabide de emprego da As-
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 33

sembleia Legislativa do Paraná — de de plástico de um colírio e não houve


onde tirava caraminguás para pagar quem o socorresse. Com Glauco, o de-
o bonde. O poeta que encantou Car- samparo foi semelhante. Há registros
los Drummond de Andrade e Muri- de que havia tempos, andava afastado
lo Mendes, com os quais trocou mis- dos seus afazeres no Guaíra — às voltas
sivas. O dos muitos amigos. O dos com os achaques de um glaucoma. Tris-
amores escondidos — pelos quais te- te coincidência com o próprio nome, o
ria chorado pelos cantos e dos quais que lhe impedia permanecer no posto
todo mundo falava. O piadista, frasis- de leitor, atividade canina. Teria morri-
ta e polemista fino. do de AVC ou de complicações de ede-
Chamá-lo de “Oscar Wilde dos ma pulmonar.
pinheirais” seria de uma preguiça tama-
nha. Os que o conheceram o descrevem “Não penses que te amo / Hoje
como um sujeito discreto, avesso à afe- menos que há séculos / Quando (em
tação literária e com ojeriza à perfor- outros seres) / Nos conhecemos”
mance. Menos Wilde, mas talvez um (Eternamente amor)
Karl Kraus, dado a dizeres demolidores. Passadas as exéquias — que des-
Mesmo assim, estava longe de ser um tacaram a imensa erudição e, claro, a
iconoclasta radical. O escritor Wilson propalada discrição [que lhe permitiu
Bueno — da geração 70, a do desbunde circular em CWB] — vieram à tona as
— o conheceu de vista, mas o bastan- situações engraçadas de sua biografia,
te para decodificá-lo. Ao prefaciar uma um lado B irresistível. “Ninguém con-
obra reunida de Glauco, editada post tava piada de bicha como ele. Sua es-
mortem pela Livraria Ghignone, o des- pecialidade”, diz o advogado e ex-se-
creve como um “vulto fugidio”, “o es- cretário de Estado da Cultura Eduardo
tranho que entra apressado no bar e na da Rocha Virmond, 89 anos. “Fomos
tua hora mais forasteira te cumprimen- grandes amigos”, conta, sobre o perío-
ta, e você o supõe tão íntimo que chega do do final dos anos 1940 em que o jo-
a dispensar explicações”. No melhor do vem Eduardo conseguiu um cantinho
estilo “sem dizer dizendo”, Bueno com- de mesa no seleto clube de intelectuais
para Glauco a Lúcio Cardoso, autor de do Café Belas Artes.
Crônica da casa assassinada, também O “Belas” ficava na Rua XV, ao
um corpo e alma entregues à penumbra. lado da Loja Louvre, do mítico Miguel
Ao final da jornada, seu espírito Calluf, hoje uma “Loja Marisa”. Havia
parecia mais próximo ao do dramaturgo mesas para árabes e judeus, em plena
norte-americano Tennessee Williams, discussão sobre o Estado de Israel. Vir-
de quem chegou a encenar À margem mond se sentava ao lado de José Paulo
da vida, em 1956, com Aristeu Berger Paes, Samuel Guimarães, Armando Ri-
no elenco, assim que o Teatro Guaíra se beiro Pinto, Marcel Leite, Milton Sa-
impôs como a casa que, permitam, me- bbag, Itamar Vugman, Nireu Teixeira.
nino órfão, não teve. Tennessee e Glau- E de Glauco. São célebres as passagens
co se foram sós, vivendo na assepsia em que Glauco — ainda que rejeitasse
das hospedarias e em situações banais. o uso das plumas acadêmicas — deu ali
O autor de Um bonde chamado dese- sinais de que gastara muitos livros com
jo teria se engasgado com uma tampa Glauco Flores de Sá Brito e sua afilhada Monica Berger, em Curitiba, dezembro de 1969 sua vista castigada, servida por len-
34 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

PERFIL | GLAUCO FLORES DE SÁ

tes grossas em aros pretos. Na roda, sur- travaria sólida amizade no momento em
preendeu, certa feita, ao fazer uma pre- que se descolou da província. E o jorna-
leção sobre Platão, entre goladas de lista Nelson Faria — que ficaria conheci-
uma média. Paralelo — fazia rir. Ha- do por trabalhos para as pioneiras revistas
via “a última do Glauco”. O fato de ser homoeróticas da Grafipar.
homossexual — condição não declara- “Ele ironizava o Tulipas Negras”,
da, algo incomum para a época, mas fo- ilustra Virmond, a propósito do grupo
focado pelos mais próximos — torna- de curitibanos homossexuais — mui-
va as anedotas ainda mais temperadas. tos deles endinheirados — que formava
“Ele tinha uma gargalhada flaubertia- uma tour de force na Curitiba da década
na”, ilustra Eduardo Virmond. de 1950. A confraria chegou a ser repri-
Parte do anedotário em torno mida durante um carnaval pelo delega-
do nome daquele gaúcho feito curi- do Walfrido Pilotto, ao descobrir que os
tibano se deu na redação do jornal O membros estavam travestidos num apar-
Dia — então plantado na Praça Car- tamento do Edifício Kwasinski, da Pra-
los Gomes, perto da velha Gazeta do ça Osório. O flagrante, vexatório e in-
Povo —, no qual trabalhou uma déca- justo, pois a festa se dava num espaço
da. Os exercícios imaginativos à má- privado, figura entre os exemplos clás-
quina de escrever não teriam atingi- sicos da chamada “maldade curitibana”.
do sua reputação. Manteve a fama de Até que se prove o contrário, os Tuli-
jornalista de estirpe, ainda que agis- pas — cuja existência é citada na obra de
se como um Graham Greene. Uma Dalton Trevisan, mas cuja história ainda
de suas blagues, conta-se, se deu em está para ser pesquisada — não conta-
1967. Ao saber pelas agências inter- ram com a simpatia de Glauco, mas nada
nacionais que o general argelino Al- que o desmereça: ele estava engajado de-
phonse Juin morreu — e que seu mais com a literatura para se envolver
cortejo teria míseros quatro cava- em questões sectárias. E tudo indica que
los — ,indignou-se. Era muito pou- não podia se indispor com Curitiba — a
co para figura tão ilustre do Exército cidade que grudou a sua pele.
francês. Reescreveu a notícia, dizen-
do serem 18 cavalos. De modo que em No presídio, nas redações
Curitiba o enterro do militar foi mais Em 1955, nas instalações do Teatro Guaíra, Glauco Flores de Sá Brito em pé, com Alceu Stange Monteiro (de óculos) A trajetória de Glauco no Rio
concorrido que em Paris. sentado à mesa e um amigo. Grande do Sul foi modelar de um me-
O próprio irmão mais novo de nino bom. Saiu das vizinhanças de Por-
Glauco, Glênio, destacou um caso di- to Alegre para estudar na capital e fez o
vertido do passado, em panegírico pu- cândalo que acabou por acompanhá- Café Belas Artes. E reforçava o enigma Tiro de Guerra, uma variante do servi-
blicado por ocasião do rebatismo do -la na noite de núpcias, dividindo a da pirâmide em torno dele — por não ter ço militar. Ali, seus problemas de visão
miniauditório do Guaíra. Órfão de cama com o casal. se casado, como os outros. Por levar uma vieram à tona — uma miopia que lhe
mãe aos quatro anos, Sá Brito foi en- rotina espartana, salvo a elegância do ter- impunha limitações, mas o liberava para
caminhado para a casa da avó Adelai- “Sou um anjo com asas de fogo” no, sempre a postos no cabide da reparti- viver de arte. Em 1937, aos 18 anos, se
de, para que o criasse. Ali, gozou dos (O anjo inquieto) ção. Nem se afinado com intelectuais que muda para Curitiba, atraído pelo avô
cuidados de uma tia solteira, Gilda Nas lembranças de Eduardo Ro- teriam mais a ver com sua natureza “tími- materno, Fernando Flores, que aqui ti-
— que lhe teria feito as vezes de mãe. cha Virmond, a capacidade de Glauco da espalhafatosa”. Salvo o crítico de arte nha se estabelecido, nas barbas do go-
Pouco tempo depois, quando essa pa- em ser personagem e narrador de situa- Walmir Ayala, gaúcho e poeta como ele, verno Manuel Ribas.
renta se casou, o guri fez tamanho es- ções cômicas oxigenava as tertúlias no mais jovem e despachado, e com quem Era órfão, portanto livre. E in-
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 35

teligente. Arrumaram-lhe um empre- A musicista Eugênia Petriu —


go público — trabalhou no Presídio do que adquiriu a Galeria Cocaco em 1959,
Ahú, assim que chegou. Paralelo, pou- perpetuando a vocação modernista do
co mais que um guri, aprumou-se com local — lembra da figura de Sá Bri-
a literatura e o jornalismo. Sua estatu- to, que aparecia nas concorridas exposi-
ra não demorou a ser percebida. Em le- ções da casa. “Era um homem reservado
vantamento minucioso feito pela pes- e elegante”, lembra a octogenária. Fala-
quisadora Cassiana Lacerda, da UFPR, vam-se pouco, rotina que mudou a par-
não restam dúvidas do papel do foras- tir do final dos anos 1960, quando o en-
teiro na geração que deu ao país gen- tão encenador e dramaturgo se entregou
te como Dalton Trevisan e José Paulo de vez à fúria do Guaíra. Vinha pessoal-
Paes. Causa certa melancolia que a poe- mente à Cocaco pedir obras de arte para
sia que produziu tenha ficado à beira do colocar nos cenários.
caminho. Talvez por desleixo. Walmir “Escolha, quanto quiser, a causa
Ayala o descrevia como um poeta dis- é nobre”, dizia-lhe Eugênia. Era Glau-
traído, “desligado das tensões”. O que co Flores de Sá Brito, afinal. Não havia
produziu foi reconhecido à época por papelada, recibo, nada. Dono de paladar
quem entendia do riscado, mas o tea- refinado também para a artes visuais, es-
tro venceu. No palco, Glauco podia ser colheu, certa vez, uma tela com pintura
Glauco, por supuesto. e colagem de ninguém menos que João
Recém-chegado à capital — Osório Brzezinski, revelação incontes-
então um cruzamento de paralele- te. Para azar de Glauco, a peça foi da-
pípedos com 140 mil habitantes —, nificada durante a desmontagem do ce-
rápido se torna colaborador de revis- nário. A conversa triangulou, debaixo de
tas que fariam a história do moder- mal-estar — Eugênia, o diretor e Brze-
nismo local: A Ilustração (a qual te- zinski, sobre quem arcaria com o prejuí-
ria chegado a dirigir), Os moços, A zo. “Ele veio tenso. Eu fiquei muda. João,
Ideia e O livro. A experiência lhe va- uma onça”, diverte-se. Houve final feliz.
leu. Meteu-se nas pelejas a que tinha
direito, a exemplo da reação conserva- Em tempo
dora à obra de Dalton. Em uma dé- Em 1997, por iniciativa do en-
cada, já merecedor de que tirassem tão secretário Eduardo Rocha Vir-
o chapéu ao vê-lo, publicou sua obra mond, a Secretaria de Estado da Cul-
de estreia na poesia — O marinheiro. tura lançou a obra Poesia reunida,
Tinha 28 anos. Àquela altura, estava com os três livros de Glauco e tex-
pari passu com a revista Joaquim, de levisão no Paraná. Para quem tinha sileira, a exemplo do conto “Missa do tos críticos. É a melhor compilação de
Dalton, cuja parceria se estenderia até atuado na carpintaria das revistas pós- Galo”, de Machado de Assis. Tinha a sua produção, alçada graças também
1956, quando — ainda com Ary Fon- -Tingui e tocado jazz com o sino da louca companhia de Valêncio Xavier, ao acervo particular do ator e advo-
toura — abraçam a condução do Tea- catedral, é curioso imaginá-lo às vol- culto como ele. Seu desempenho fa- gado Aristeu Berger. Em 2014, Glau-
tro Experimental Guaíra. tas com cenários improvisados, expe- ria engordar os olhos produtivistas de co foi homenageado com mostra fo-
Há um intervalo passado no rimentação bruta e futilidades de au- hoje em dia. Mas foi um interlúdio. tográfica e documental do Museu da
Rio de Janeiro. E o retorno, nos anos ditório. Há indícios de que tenha visto De todas as línguas que Glauco falava, o Imagem e do Som (MIS) e Teatro
1960, quando vai dar um salto triplo na TV uma oportunidade de popula- teatro venceu. A Associação Paranaen- Guaíra. A curadoria foi do cineasta
— o de ser um homem do pensamen- rização da cultura — posto que adap- se de Críticos de Teatro tinha por hábi- Fernando Severo e do ator e produtor
to às voltas com a implantação da te- tou para a tela clássicos da prosa bra- to premiá-lo. Era um mito da classe. Áldice Lopes. n
36 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

CONTO | OTÁVIO DUARTE

ÁLBUM
1
Tons estranhos da luz lunar entre os galhos, subitamen-
te retorcidos, das árvores agora escuras. Crics, cracks, lovecra-
fts, silvos, crepitações, quase gemidos não humanos, coisas a
gerar um sentimento obscuro, profundo, de revolta, temor e
asco. Folhas que farfalham, sussurram, sombras sutis a deslizar

NÃO BRANCO
entre as ramagens, galhos a surgir contra o céu estrelado. O
sutil barulho noturno de sempre silenciado; os animais dispa-
ram para todos os lados; os pássaros criam um mancha no ar,
a caminho de outros lugares, os insetos saem em nuvens. Uma
névoa suave cresce, se adensa, toma corpo e engolfa as árvo-
res, a vegetação, o campo ao redor, escuridão sob a claridade
da lua, fria, distante, longe de tudo. O vento, a gelar os ossos.

2
Bar Hanmar grita NÃO! e o portal estelar estremece,
os delicados cristais temporais partem-se ante o golpe da voz
poderosa. Impedida a fuga, o vilão Hoz e sua amante de doze
braços e dez pernas, Fizzagizz, pulam ao chão, empunham os
gatilhos ao mesmo tempo, dança ensaiada, e apontam as ar-
1. Lovecraft mas exterminadoras contra o indefeso Bar Hanmar. Eles dis-
2. Robert S5CF-D esquece as coisas param os mecanismos medonhos!
3. 3.213 aranhas — Eles acertam? Pobre Hanmar...
4. Don‘t worry Isabelle — Hanmar esquiva-se, consegue sucesso?
5. Verão de 2002 ou de 2003 — Claro que sim... acho que... talvez... não tenho certe-
6. Not in this life za, meu recondicionador não recompôs direito esta parte dos
7. Você não é tão linda arquivos. Ando meio fragmentado, sabe?
8. Horizonte de eventos
9. Laika‘s solitude 3
10. Só uma gota de limão Que bailado não dariam
11. Lixo na lua 3.213 aranhas a dançar?
12. Blues distração Os passos tão leves
13. Rio do esquecimento tão práticos
14. Mortos e perdidos no mundo subterrâneo correndo pra lá
15. Preferia mil dólares e pra cá?
16. Diga sim, Maria Joana
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 37

5
4 Cara,
Ah nem sei dizer.
as gaivotas, sempre elas, a pairar. Um calor, um calor...
Esta praia de Barcelona, Isabelle, é uma construção de areia e terra. Eu misturo as coisas.
Recifes artificiais atenuam a força das ondas. O que mais poderia fazer?
A natureza nunca foi perfeita. Nunca fui uma possibilidade.
Não se preocupe: Não assim de constituir família.
todos os veículos foram mobilizados. Ela ocupou a casa. Ficou o verão inteiro.
A imprensa inteira. Sozinha.
Quando você, distraidamente, sem sequer perceber, Trinta e poucos, quarenta, quem sabe quantos anos tinha?
deixar cair a parte superior do biquíni, Esse calor, essa lembrança,
estará exposta a todos os flashes acho que ela não dava importância.
desses malditos paparazzi. Estava se lixando.

6
Nunca.
Jamais.
Seu cachorro, cafajeste, sem-vergonha!

7
Olhos bonitos todas têm
E até um corpo bom, também.
Meninas feias se esforçam
transam bem
e têm o que falar.
O que faz você pensar
que vai me deixar
num buraco muito fundo
o maior de todo o mundo?
38 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

CONTO | OTÁVIO DUARTE

8
O ar quebrou-se, eu garanto, foi alguma coisa assim.
Não propriamente o ar, mas o meio que ele preenche, sabe?
Vivemos nisso, ele nos permite existir no mundo. Essa conjunção de fatores.
O que é uma dimensão? No que nos enquadramos? É um ambiente, um
meio? Largura, altura, comprimento, profundidade, o tempo, a completar o espaço.
E tudo quebrou-se. Alguma coisa muito mais brilhante que a luz do sol insi-
nuou-se no ar, no vazio.
Não havia mais um fim, porque há um fim, nosso pensamento concebe sem-
pre um fim, enquadra sempre tudo em alguma coisa que possa ser apreendida ou
intuída...
E o buraco, de repente, fechou-se. O escuro de nosso universo voltou, pesado,
até que parecesse claro, outra vez. E ficamos mais pobres. Solitários de novo.

L A I K A‘ S
9
Laika solitária.
Não foi para isso que nasceu.
O mundo, uma esfera, a girar embaixo. Laika não a vê. Não sabe o que é uma
esfera e nem o que o mundo é.
Laika não sabe. Laika num veículo viajante, alguma coisa errada com o ar, o
peso e a pressão.
Ganidos de incompreensão.
Não há entendimento. Laika não pertence ao gênero do homo sapiens, fren-
te à morte em espaço desconhecido, sem saber.
Presa, sem um solo, onde pudesse firmar as patas e correr.

10
Ah!
Só quem conhece sabe.

11
A bandeira americana, hasteada em plano rígido, vento nenhum.
Foi uma Soyus que se arrebentou na superfície lunar?
Metais terrenos, plásticos: restos humanos.

12
Minha mão direita na tua cintura.
A esquerda a receber a maravilha do contato com a tua.
Deixa que eu conduza,
Como você quer,
a bailar
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 39

13
A imagem sempre é de paz e quietude.
Silêncio.
Pássaros, talvez, a trinar, a sobrevoar a paisagem imensa.
Não aqui nesta avenida onde todos os carros gritam.
Silêncio.
Viver é acontecer
Acontecer é barulho.
Contra as imaginações eternas da infância:
O silêncio
O murmurar da corrente, os pássaros, os grilos
Música nenhuma além da natureza.

14
Uma moeda em cada olho.
Dinheiro temporal a comprar o transporte para o eterno esquecimento no rei-
no de Hades. Todos viremos a conhecer o baixo mundo, as surpresas do viver extintas.

(Uma pinta. Pequena, bem ao lado do aréolo esquerdo, só a reparamos quando os


bicos dos seios, eretos, se levantam. E eles são o centro da atenção. Neles nos concentra-
mos, nesse instante exato e precioso. Deles, tudo queremos. A pinta, porém, é um acrés-
cimo a discordar. Ela pede atenção, um cuidado breve e especial só para ela, antes do fer-
vor aos bravos picos que se elevam. Uma pinta num seio. Se procurarmos, haverá mais.
Notáveis para uns, nada demais, talvez, para outros.)

15
Vencido o concurso,
a publicação do conto no jornal. Otávio Duarte nasceu em
Algum leitor, Campo Mourão, Paraná, em
talvez aos olhos brilhantes de uma moça? 1953. Jornalista e escritor,
morou e trabalhou em Curitiba
(PR), São Paulo (SP) e Rio de
Janeiro (RJ), e voltou a residir
16 na capital do Paraná. Autor,
entre outros, do livro de contos
Diga sim, Maria Joana.
Seis romances e uma pintura
É tão simples. (2001) e do romance Amor
Por que sempre procurar a cor que destoa? n absoluto (2012).
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POEMA | ANA ELISA RIBEIRO Ilustração: Índio San

TARDE
NUMA
PRAÇA
a matemática das ruas
e suas esquinas perpendiculares
e calçadas paralelas
com imperfeições imperceptíveis
e quadras em retângulos
que terminam em praças circulares
por onde passam carros a sessenta por hora
e pessoas atarefadas
e onde se sentam pessoas
que jogam o tempo e os silêncios
aos pombos indiferentes n

Ana Elisa Ribeiro nasceu em 1975, em Belo


Horizonte (MG), onde vive. Professora da rede
federal de ensino, é pesquisadora da edição e da
educação e doutora em Linguística Aplicada pela
UFMG. Publicou, entre outros, os livros de poemas
Anzol de pescar infernos (2013, semifinalista
prêmio Portugal Telecom), Xadrez (2015) e Álbum
(2018, prêmio nacional Manaus).

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