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O momento da literatura brasileira sobre o qual

LITERATURA BRASILEIRA II
se debruça este livro é, sem dúvida, um dos mais
importantes de nossas Letras.
O percurso aqui traçado inicia com o pré-
-Modernismo, no fim do século XIX, e os
movimentos de vanguarda que influenciaram
a estética do Modernismo brasileiro, passa
pela Semana de Arte Moderna de 1922, seus
antecedentes, seus desdobramentos e manifestos,
e percorre as três grandes fases do Modernismo
no país, incluindo a prosa dos anos 30, o ensaismo
social e a geração de 45. São discutidos, entre
outros, autores como Lima Barreto, Augusto
dos Anjos, Mario de Andrade, Manuel Bandeira,
Oswald Andrade, Cecilia Meireles, Carlos
Drummond Andrade, Graciliano Ramos, João
Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector e Guimarães
Rosa, contextualizando-os historicamente no
desenvolvimento da literatura brasileira moderna.
Trata-se, assim, de um convite para o (re)
conhecimento da alma e do corpo cultural do
Brasil e de nosso povo, por meio do veículo verbal,
multitemporal e surpreendente da literatura.

André Gardel

Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-6150-1

58163 9 788538 761501


Literatura brasileira II

André Gardel

IESDE BRASIL S/A


2018
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
G213L Gardel, André
Literatura brasileira II / André Gardel. - [2. ed.]. - Curitiba
[PR] : IESDE Brasil, 2018.
134 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-6150-1

1. Literatura brasileira - História e crítica. 2. Movimentos


literários. I. Título.
CDD: 809.9
18-51849
CDU: 82.09

Todos os direitos reservados.

IESDE BRASIL S/A.


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André Gardel
Doutor e mestre em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), cumpriu estágio pós-doutoral em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro (UNIRIO). Bacharel em Língua e Literatura Portuguesa pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor Associado I da Escola de Teatro, da Escola de Letras
e do PPGAC (Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas) do Centro de Letras e Artes da
UNIRIO. É um dos líderes do Grupo de Pesquisa Formas e Efeitos, Fronteiras e Passagens na
Linguagem Teatral, e membro do Grupo Escritas do Contemporâneo, ambos do Diretório de
Grupos de Pesquisa do CNPq. Autor do livro O Encontro entre Bandeira e Sinhô, que recebeu o
Prêmio Carioca de Monografia de 1995, e de outros livros de poesias, dramaturgia, biografia e
didáticos, além de ter lançado os CDs Sons do Poema, Vôo da Cidade e Lua sobre o rio.
Sumário

Apresentação 9

1 O momento pré-moderno no Brasil  11


1.1 Os estilos pós-românticos  11
1.2 A ambiência cultural pré-modernista  12
1.3 Lima Barreto e Euclides da Cunha  12
1.4 Augusto dos Anjos e Raul de Leoni  15

2 As vanguardas europeias  19
2.1 Vanguardas: origens e sentidos  19
2.2 O Futurismo  21
2.3 O Expressionismo  22
2.4 O Cubismo  23
2.5 O Dadaísmo  24
2.6 O Surrealismo  25

3 A fase heroica: a Semana de 1922 e os principais manifestos  29


3.1 Antecedentes da Semana  29
3.2 A Semana de 1922  30
3.3 Manifestos de Mário de Andrade  31
3.4 Manifestos de Oswald de Andrade  33
3.5 Os grupos de direita e seus manifestos  35

4 A obra de Manuel Bandeira  39


4.1 Manuel Bandeira e o Modernismo: aproximações e fugas  40
4.2 A poesia do humilde cotidiano e do alumbramento  40
4.3 O poeta cronista  42
4.4 O letrista da canção  44
4.5 O crítico de arte e literatura  44
4.6 Itinerário de Pasárgada 46
5 A obra de Mário de Andrade  49
5.1 O poeta Mário de Andrade  49
5.2 O ficcionista  51
5.3 Macunaíma 51
5.4 A música modernista de câmara e a canção popular  52
5.5 O antropólogo aprendiz  53
5.6 As cartas: documentos íntimos e culturais  54
5.7 A atuação como homem público  55

6 A obra de Oswald de Andrade  61


6.1 O primeiro Oswald: viagens e atuação jornalística  61
6.2 O poeta  62
6.3 O romancista  63
6.4 O dramaturgo  64
6.5 Crônicas e polêmicas  65
6.6 Outros manifestos  67

7 Segundo momento modernista: estabilização da consciência criadora


nacional (a poesia)  71
7.1 A estabilização da consciência criadora nacional  71
7.2 Carlos Drummond de Andrade  72
7.3 Jorge de Lima  73
7.4 Murilo Mendes  75
7.5 Cecília Meireles  76
7.6 Vinicius de Moraes  78

8 A prosa dos anos 30  83


8.1 As duas faces da prosa dos anos 30  83
8.2 Rachel de Queiroz e José Lins do Rego  83
8.3 Graciliano Ramos  85
8.4 Jorge Amado  86
8.5 Erico Verissimo  87
8.6 Lúcio Cardoso  88
8.7 Marques Rebelo  88
9 O ensaísmo social  91
9.1 O pensamento social e antropológico no Modernismo  91
9.2 Paulo Prado e o retrato do Brasil  92
9.3 Sérgio Buarque de Holanda e as Raízes do Brasil 93
9.4 Gilberto Freyre e Casa-Grande & Senzala 95

10 João Cabral e a Geração de 45  99


10.1 A poesia da Geração de 45  99
10.2 Alguns nomes de destaque dessa geração  100
10.3 A poesia de João Cabral de Melo Neto  101

11 A ficção depois de 45 (o romance experimental): Clarice Lispector  109


11.1 Conceituação do romance experimental pós-45  109
11.2 A voz feminina e singular da prosa de Clarice  110
11.3 Principais obras  110
11.4 Clarice cronista  112

12 A obra experimental de Guimarães Rosa  117


12.1 A linguagem ficcional de Guimarães  117
12.2 Grande Sertão: Veredas  118
12.3 Outros escritos  120

Gabarito 123

Referências 129
Apresentação

O momento da literatura brasileira sobre o qual nos debruçamos neste livro é, talvez, o mais
importante de nossas Letras. Não só pelo fato de se tratar de um período que gerou nossos maio-
res autores de todos os tempos, mas, também, por essa produção quase toda buscar responder à
demanda geral de um país que tinha como projeto se configurar dentro da modernidade, empe-
nhando-se em harmonizar sua voz nacional, nem que fosse em contracanto, com a orquestra das
nações modernas e civilizadas.

Só para termos uma ideia da grandeza do momento a que nos referimos, é o período em que
poetas como Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Vinicius de Moraes, Cecília
Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Jorge de Lima,
João Cabral de Melo Neto concebem suas obras. E, na prosa, Lima Barreto, Euclides da Cunha,
Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Mário e Oswald de Andrade delineiam seus
geniais textos inventivos.

Nosso percurso começa definindo o “Momento pré-moderno no Brasil”, em que estilos pós-
-românticos se desdobram numa ambiência sociocultural fortemente Belle Époque, num sincre-
tismo que pavimenta as bases para a revolução modernista. Pois, pouco a pouco, “As vanguardas
europeias” adentram nosso universo artístico, trazendo a maior parte do instrumental técnico,
ampliando as visões de mundo que se consolidarão a partir dos anos 1920. Será “A fase heroica: a
Semana de 1922 e os principais manifestos”, em que os artistas definitivamente colocarão em xeque
o passadismo literário, devorando as múltiplas novidades das rupturas vanguardistas.

É o momento em que “A obra de Manuel Bandeira”, “A obra de Mário de Andrade” e “A


obra de Oswald de Andrade” se consolidam, com suas linguagens específicas, cada qual absorven-
do e recriando as informações estrangeiras, com o fim de produzir uma literatura brasileira sem
ufanismos, firmemente fincada na realidade cultural do Brasil, por meio de conceitos ainda hoje
produtivos, como o de antropofagia.

Depois, tem início o “Segundo momento modernista: estabilização da consciência criadora


nacional (a poesia)” e “A prosa dos anos 30”, em que vemos as conquistas técnicas das vanguardas,
já devidamente incorporadas, adquirirem uma força ideológica e um engajamento de mudança po-
lítico-social intensas. Para tal, muito contribuiu “O ensaísmo social” de Gilberto Freyre e de Sérgio
Buarque de Holanda, em suas tentativas de definir o perfil psicológico e cultural do povo brasileiro.
10 Literatura brasileira II

Por fim, na terceira fase modernista, que se entremostra com “João Cabral e a Geração de
45”, com “A ficção depois de 45 (o romance experimental): Clarice Lispector” e com “A obra expe-
rimental de Guimarães Rosa”, temos um balanço das primeiras conquistas do Modernismo, com
um espírito mais universalizante e existencial, abrindo já perspectivas para as possibilidades de
uma arte pós-modernista.

Assim, fazemos um convite a você, leitor, para uma viagem muito especial: a de (re)conhe-
cimento da alma do Brasil e do corpo cultural do nosso povo, por meio do ágil veículo verbal,
multitemporal e mágico da literatura.

Bom proveito!
1
O momento pré-moderno no Brasil

O Pré-Modernismo brasileiro configura-se no período que vai da última década do século


XIX até as duas primeiras décadas do século XX. Esse momento é marcado por um intenso diálogo
entre as artes e a realidade nacional, já que com a Proclamação da República, em 1889, ocorre a
“maioridade” do povo brasileiro em relação a Portugal.
Essa “maioridade” nacional traduz um momento de “maturidade” mental, estética e social
do Brasil. Na busca de atingir a sua afirmação, o país tenta criar novos símbolos e roteiros da nossa
nacionalidade. E, como não podia deixar de ser, a literatura torna-se um instrumento de rara utili-
dade – refletindo sobre os hábitos e costumes, aprofundando as dimensões psicológicas do homem
brasileiro etc. – para a configuração de um perfil específico para a nação emergente.
Na verdade, trata-se de uma busca antiga de nossas Letras que, em momentos históricos di-
versos e sob diferentes perspectivas, desde suas origens tentou incorporar, por exemplo, elementos
culturais coloniais na produção barroca de Gregório de Matos e Guerra. Isso sem falar no sentimento
nativista já presente em nossos árcades inconfidentes1 ou no nacionalismo idealizado de nossos es-
critores românticos.

1.1 Os estilos pós-românticos


Contudo, no momento pré-moderno, há o aparecimento de nossa primeira geração de
grandes ensaístas sociológicos, fundamentais para os debates políticos que vão levar à Abolição
e à instauração da República. Oradores como Rui Barbosa, jornalistas como José do Patrocínio,
historiadores como Capistrano de Abreu e Joaquim Nabuco, críticos como Sílvio Romero e José
Veríssimo, ensaístas como Tobias Barreto e Euclides da Cunha nos dão um panorama dessa gera-
ção de intelectuais que vai estimular uma maior qualificação crítica em nossos prosadores e poetas.
O Pré-Modernismo está relacionado a uma confluência de estilos literários que se cruzam
num mesmo contexto histórico, assinalando a presença de variadas tendências na literatura brasi-
leira. Esse cruzamento de estéticas e suas múltiplas dicções possibilitam a origem de um fenômeno
conhecido como sincretismo, por meio do qual se manifestam os autores mais representativos do
Realismo, do Naturalismo e do Impressionismo, na prosa, e do Parnasianismo e do Simbolismo-
Decadentismo, na poesia.

1 Entre os poetas árcades mineiros, destacam-se Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) e Tomás Antonio Gonzaga
(1744-1810). Eles são autores que estudaram em Coimbra e que, influenciados pelas ideias enciclopedistas e pela inde-
pendência dos EUA, participaram da Inconfidência Mineira, demonstrando essa consciência da nacionalidade.
12 Literatura brasileira II

1.2 A ambiência cultural pré-modernista


Ainda não houvera a Primeira Guerra Mundial. Estamos no Brasil do início do século XX.
No Rio de Janeiro – a capital do país – transitam, pela Rua do Ouvidor, os escritores representativos
do momento pré-moderno e a maioria dos 730 mil habitantes da cidade. Eles vivem a esperança
esplendorosa da Belle Époque2. O progresso e a ciência apresentam suas armas sedutoras que tra-
duzem a nova percepção urbana: bares, cafés, bondes elétricos, confeitarias, revistas, iluminação
pública. O Rio consome livros e modelos europeus, cervejas alemãs e conhaque francês.
Nesses cenários de ritmos e estéticas variados destaca-se a visão urbana e moder-
na do administrador Pereira Passos e a abertura da Avenida Central, hoje Av. Rio Branco. Na
cena pré-modernista, os cafés e as livrarias são os espaços das relações intelectuais. Na im-
prensa, A Quinzena Alegre, O Diabo, a Revista da Época (da qual Lima Barreto foi secretário) e
O Correio da Manhã, entre outros, anunciam a ebulição sociopolítica e cultural que toma conta da
capital da República.
Nas primeiras décadas do século XX, o cenário literário carioca ostenta figuras de peso
nacional como Machado de Assis, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Coelho Neto, José Veríssimo,
Gonzaga Duque e, entre outros, João do Rio – um dos personagens satirizados por Lima Barreto
no seu romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de 1909.
No início do século XX, a cidade ostentava amplos salões festivos e culturais. Os salões são
o signo reluzente da época de ouro vivida pelo Rio de Janeiro no pórtico do novo século. Por eles
passaram celebridades estrangeiras em visita ao Rio, como os escritores Anatole France e Rubén
Darío. Em 1919, a bailarina precursora da dança livre, Isadora Duncan, apresentou suas coreogra-
fias nos salões cariocas.
Nem todos os autores do momento pré-moderno se identificavam com esse país de iden-
tidade mais europeia do que brasileira. Autores como Lima Barreto, entre outros, optaram por
uma leitura dos elementos constitutivos do seu contexto e da realidade brasileira. Para isso, Lima
Barreto rompeu com as narrativas do passado e pôs em cena personagens marginalizados, como
veremos a seguir.

1.3 Lima Barreto e Euclides da Cunha


Lima Barreto e Euclides da Cunha são os autores mais representativos da prosa produzida no
Pré-Modernismo. Embora os seus textos possuam temáticas e características estéticas diferentes,
ambos os autores apresentam-se comprometidos com as ideias de representação daquele Brasil do
início do século XX. A seguir, estudaremos a narrativa social na obra de Lima Barreto e a Guerra
de Canudos na ótica de Euclides da Cunha.

2 A Belle Époque traduz a nova sensibilidade urbana que surge no final do século XIX, em sintonia com os avanços tecnoló-
gicos. No Brasil, corresponde ao período que vai da Proclamação da República, em 1889, até a Semana de Arte Moderna,
em 1922.
O momento pré-moderno no Brasil 13

1.3.1 Lima Barreto e a narrativa social


A literatura de Lima Barreto (1881-1922) tem como base o registro de suas memórias e da
sociedade de sua época, o que o torna um escritor “confessional” – como sugere Francisco de Assis
Barbosa (BARBOSA, 2002, p. 38).
O autor estetiza sua conturbada vida social, suas memórias familiares e existenciais, como
no romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Sua narrativa constrói conexões entre a vida no
início da modernidade no Brasil e as dificuldades de inscrição social para um jovem negro, numa
sociedade cujas desigualdades latentes oscilavam entre o centro e a periferia, a maioria pobre e
negra e uns poucos brancos instruídos a gozarem privilégios infindos.
A narrativa de Lima Barreto consiste num tipo de texto que se fundamenta muito mais no
plano das ideias e reflexões, em sintonia com as questões sociais do seu tempo, do que no trabalho
com a sintaxe e o significante linguístico. O crítico Sérgio Milliet destaca, no texto de Lima, exata-
mente o seu caráter “antiliterário” (MILLIET apud BARBOSA, 2002, p. 176) e a busca pela exatidão
na construção das frases.
A primeira publicação jornalística de Lima foi em A Lanterna. Nesse jornal, o escritor de cor
azeitonada que sorri para as certezas das ciências começa a exibir sua produtiva porção irônica e
sarcástica: “O sarcasmo já brilha nas suas crônicas. É a reação contra o meio que começa a se pro-
cessar de modo inevitável” (BARBOSA, 2002, p. 108).
Sarcástico, irônico, ferino. Esses adjetivos nortearão a carreira profissional e a vida de Lima
Barreto, em suas relações sociais e nos ambientes profissionais pelos quais transitou. Sua vida e
obra estão repletas de imagens que refletem as margens nas quais o autor se situou durante quase
toda a sua vida. A negritude roubava-lhe a força; acentuava seu azedume diante dos costumes e das
regras de uma sociedade racista e socialmente muito injusta. Junte-se as injustiças sociais, as perdas
econômicas, a loucura e os delírios paternos, os seus temas recorrentes.
Na revista Floreal, o autor inicia a publicação do romance Recordações do Escrivão Isaías
Caminha, cuja 1ª edição – portuguesa – começa a circular no Rio de Janeiro em dezembro de 1909.
Isaías Caminha é o alter ego de Lima Barreto. Servia, às vezes, como pseudônimo do autor. O nar-
rador desse romance assume a predileção pelos seus autores literários mais amados: Dostoiévski,
de Crime e Castigo, Voltaire, de Contos, Tolstói, de Guerra e Paz, Flaubert, de Educação Sentimental,
e, entre outros, Eça de Queirós e Stendhal.
Entre 1920 e 1922, Lima Barreto conclui nada menos que cinco volumes: Histórias e
Sonhos, Marginália, Feiras e Mafuás, Bagatela e Clara dos Anjos. Destes, viu publicado apenas
Histórias e Sonhos.
Em 1920, após deixar o hospício pela segunda vez, começa a escrever um importante roman-
ce que deixou inacabado: O Cemitério dos Vivos. A obra, cujo trecho foi publicado na Revista Sousa
Cruz, aponta para uma temática mais fortemente metafísica e existencial. Trata-se de um denso re-
gistro, como atesta a voz de Vicente Mascarenhas – o narrador (BARRETO apud BARBOSA, 2002,
p. 350): “eu sentia que interiormente eu resplandecia de bondade, de sonho de atingir a verdade,
do amor pelos outros, de arrependimento dos meus erros e um desejo imenso de contribuir para
que os outros fossem mais felizes [...] uma vontade de descobrir nos nossos defeitos o seu núcleo
primitivo de amor e de bondade”.
14 Literatura brasileira II

1.3.2 Euclides da Cunha e a Guerra de Canudos


No livro Os Sertões (1902), o engenheiro militar de alma aflita recria a guerra e a destruição
de Canudos pelas tropas republicanas, há mais de cem anos, cujo resultado foi o massacre de uma
cidade com uma população estimada entre 10 e 25 mil habitantes, em 1897.
Texto híbrido que rompe com a noção de gênero literário, Os Sertões pode ser lido como
um ensaio histórico de tonalidades e sintaxes romanescas, com desfecho de tragédia e alto teor de
poesia. Sua volumosa fortuna crítica registra uma gama de títulos anunciando os múltiplos proce-
dimentos poéticos de que Euclides lança mão, chegando a ser relacionado por Gilberto Freyre com
o seu contemporâneo Augusto dos Anjos.
Testemunha como jornalista de O Estado de São Paulo, Euclides escreve sob o impacto de
ter entrado em contato com o universo verbal e a realidade histórica do sertanejo. Seu texto traduz
as duras trilhas de um espaço cuja geografia apresenta – nos seus signos naturais e imaginários –
elementos ásperos e violentos, como o clima quente e o solo seco.
Para abarcar esse universo, onde a morte parece ser mais cultuada que a vida, Euclides pro-
duz jogos intertextuais com autores de diversas procedências e mune-se de sofisticados recortes
vocabulares, oriundos tanto do universo das ciências quanto da oralidade sertaneja. Tais recursos
orais podem ser aferidos nas muitas falas e expressões sertanejas que o autor ouviu da “boca jagun-
ça do povo/ linguagem/ poesia viva/ explodindo em seus tímpanos civilizados”, como diz o poeta
Paulo Leminski (LEMINSKI, 2001, p. 78).
Em seus Anseios Crípticos, o poeta do romance experimental Catatau lê Os Sertões como um
texto “barroco positivista/ estilo de cipó” (LEMINSKI, 2001, p. 77). A bela metáfora – que vê o tex-
to de Euclides como um cipó – foi concebida originariamente por um dos principais intérpretes do
Brasil no final do século XIX: Joaquim Nabuco. Essa leitura, que possui a linguagem como um dos
seus alvos, aponta para uma gradação estilística e formal, “um longo percurso textual”, que vai “das
anotações às reportagens” até chegar à escrita definitiva de Os Sertões. Segundo Paulo Leminski
(LEMINSKI, 2001, p. 75),
Euclides da Cunha...
traumatizou
uma literatura feita por bacharéis
ornamental
“sorriso da sociedade”
brilho dos salões do 2.º império
A seguir, destacamos um trecho da terceira parte do livro Os Sertões (1902):
Decididamente era indispensável que a campanha de Canudos tivesse um obje-
tivo superior à função estúpida e bem pouco gloriosa de destruir um povoado
dos sertões. Havia um inimigo mais sério a combater, em guerra mais demo-
rada e digna. Toda aquela campanha seria um crime inútil e bárbaro, se não se
aproveitassem os caminhos abertos à artilharia para uma propaganda tenaz,
contínua e persistente, visando trazer para o nosso tempo e incorporar à nossa
existência aqueles rudes compatriotas retardatários. (CUNHA, 2000, p. 440)
O momento pré-moderno no Brasil 15

1.4 Augusto dos Anjos e Raul de Leoni


1.4.1 A poética de Augusto dos Anjos
A poesia de Augusto dos Anjos caracteriza-se por apresentar uma linguagem inusitada em
relação à tradição literária, ostentando um recorte vocabular com termos “baixos” e antipoéticos.
Esse recorte remete, às vezes, ao grotesco, como lemos em sonetos como “O morcego” ou nos ver-
sos “O beijo, amigo, é a véspera do escarro” e “Escarra nesta boca que te beija” (“Versos íntimos”).
Apesar desses termos antipoéticos, a poesia de Augusto dos Anjos é extremamente musical,
seja pelo rigor da sua forma, seja pelo desejo do autor de, por meio da palavra, contatar a sonori-
dade potencial dos seres.
Acerca do recorte vocabular e da musicalidade dessa poesia, vejamos um trecho do
soneto “Vandalismo” (ANJOS, 1987, p. 142), um dos poemas mais cultuados do único livro
publicado em vida pelo poeta, Eu, em edição financiada por conta própria com ajuda de seu
irmão Odilon, em 1912.

Vandalismo
Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.
Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.
[...]

A seguir, apresentamos a letra da canção “Bandalhismo”, recriação do soneto “Vandalismo”,


uma paródia realizada em 1980 pelos compositores João Bosco e Aldir Blanc (BOSCO, 1980).

Meu coração tem botequins imundos,


Antros de ronda, vinte-e-um, purrinha,
Onde trêmulas mãos de vagabundo

Batucam samba-enredo na caixinha.


Perdigoto, cascata, tosse, escarro,
um choro soluçante que não para,
piada suja, bofetão na cara
e essa vontade de soltar um barro...

Como os pobres otários da Central


já vomitei sem lenço e sonrisal
o P.F. de rabada com agrião...
Mais amarelo do que arroz-de-forno,
voltei pro lar, e em plena dor-de-corno
quebrei o vídeo da televisão.
16 Literatura brasileira II

1.4.2 A poesia de Raul de Leoni


Raul de Leoni é um poeta cuja obra clareia para nós a noção de sincretismo, à qual fizemos
referência anteriormente como sendo própria do momento pré-moderno, por se tratar de uma ten-
dência recorrente nos versos desse autor injustamente banido das principais antologias escolares.
Autor de um único livro de poemas, Luz Mediterrânea (1922), Raul de Leoni herda dos
poetas parnasianos o apreço pelo rigor e pela estrutura métrica; possui dos autores simbolistas o
gosto pelos efeitos tonais e rítmicos e pelos símbolos como representação da existência; e, dos mo-
dernos, antecipa o apreço pela ironia e pelo ceticismo, como demonstram poemas como “Ironia”
e “Platônico”.
Segundo Borja (2001, p. 4),
não sendo exatamente parnasiano, por consentir-se uma liberdade formal mais
próxima dos autores simbolistas, Leoni não chega também a alinhar-se com
esses, dada a objetividade clássica de sua poesia. A melhor definição, se é que
alguma pode dar conta de um verdadeiro poeta, talvez seja aquela encontrada
por Rodrigo Melo Franco, no prefácio à segunda edição de Luz Mediterrânea:
“poeta das ideologias ou das abstrações”.
O sincretismo que caracteriza a poesia de Luz Mediterrânea aponta para uma pluralidade
que se manifesta também na visão de mundo do poeta. Segundo Queiroz (1999, p. 102), “ora
seus poemas vêm inspirados de platonismo, ora, em posição diametralmente oposta, inspirados
de nietzschismo, assim como de epicurismo e cepticismo, parecendo contradizer-se de um poe-
ma para outro”.

Alma estranha esta que abrigo,


Esta que o Acaso me deu,
Tem tantas almas consigo,
Que eu nem sei bem quem sou eu.
(QUEIROZ, 1999, p. 102)

Nessa estrofe do poema “Confusão”, o autor estetiza, ainda segundo Queiroz (1999, p. 102),
o “drama da identidade”. Essa estetização tem por base a leitura dos elementos dionisíacos e a ideia
de pluralidade que apresenta em seu livro Luz Mediterrânea.

Ampliando seus conhecimentos

Pré-Modernismo
(BOSI, 1994, p. 306)

Creio que se pode chamar pré-modernista (no sentido forte de premonição dos temas vivos em
22) tudo o que, nas primeiras décadas do século, problematiza a nossa realidade social e cultural.
O grosso da literatura anterior à “Semana” foi, como é sabido, pouco inovador. As obras, pon-
tilhadas pela crítica de “neos” – neoparnasianas, neossimbolistas, neorromânticas – traíam o
marcar passo da cultura brasileira em pleno século da Revolução Industrial. Essa literatura
já foi vista, em suas várias direções, nas páginas dedicadas aos epígonos do Realismo e do
O momento pré-moderno no Brasil 17

Simbolismo. No caso dos melhores prosadores regionais, como Simões Lopes e Valdomiro
Silveira, poder-se-ia acusar um interesse pela terra diferente do revelado pelos naturalistas
típicos, isto é, mais atento ao registro dos costumes e à verdade da fala rural; mas, em última
análise, tratava-se de uma experiência limitada, incapaz de desvencilhar-se daquele conceito
mimético de arte herdado ao Realismo naturalista.
Caberia ao romance de Lima Barreto e de Graça Aranha, ao largo ensaísmo social de Euclides,
Alberto Tôrres, Oliveira Viana e Manuel Bonfim, e à vivência brasileira de Monteiro Lobato o
papel histórico de mover as águas estagnadas pela Belle Époque, revelando, antes dos moder-
nistas, as tensões que sofria a vida nacional.
[...]

Dicas de estudo
Para novas abordagens acerca do Pré-Modernismo e seus autores mais representativos,
recomendamos:
• o livro de Walnice Nogueira Galvão, No Calor da Hora (São Paulo: Ática, 1994). É uma
leitura imprescindível para quem deseja entender melhor a Guerra de Canudos. Nesse
ensaio, a autora faz uma leitura da recepção jornalística que o episódio teve na época, em
diferentes cidades brasileiras. Além disso, o volume reúne as reportagens feitas no local
da guerra;
• a peça Os Sertões, dirigida por José Celso Martinez Corrêa. Encenado em amplos espaços
com tonalidades épicas, o espetáculo dialoga outras artes como a música, o vídeo, a dança,
o circo, e com a própria biografia de Euclides da Cunha. Pode ser vista em quatro DVDs
lançados em 2007;
• o filme Policarpo Quaresma: herói do Brasil, com o ator Paulo José no papel do herói, di-
rigido por Paulo Thiago. Trata-se de um roteiro construído com base no romance Triste
Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto.

Atividades
1. Por quais motivos podemos afirmar que o momento pré-moderno, no Brasil, foi um período
de sincretismo estilístico na literatura brasileira?

2. Como podemos definir a postura antiliterária de Lima Barreto?


2
As vanguardas europeias

Neste capítulo, vamos conhecer os principais movimentos de vanguarda europeia do início


do século XX. Esses movimentos influenciaram fortemente a estética do Modernismo brasileiro.
São eles: Futurismo, Expressionismo, Cubismo, Dadaísmo e Surrealismo.
Nosso objetivo é conhecer os autores e os artistas mais representativos dessas correntes de van-
guarda, contextualizando-as, tanto com o intuito de apreender as proposições técnicas que configuram
seus estilos quanto de abordar as perspectivas existenciais e a visão de mundo de tais estéticas.
As manifestações mais importantes das hoje chamadas vanguardas históricas surgiram, no
geral, por volta da Primeira Guerra Mundial, embora seus desdobramentos abranjam o contexto
da Segunda Guerra e atravessem todo o século XX, reverberando nas várias propostas do nosso
Modernismo. Essa reverberação é perceptível, por exemplo, nas produções estéticas de Mário e
Oswald de Andrade e nas obras de Murilo Mendes e Jorge de Lima, autores visivelmente influen-
ciados pelo Surrealismo.

2.1 Vanguardas: origens e sentidos


De origem francesa – avant-garde – a palavra vanguarda significa “o que marcha na frente”.
Oriundo da esfera militar (a tropa que marcha na frente), o termo foi utilizado pelos vários movi-
mentos estéticos que surgiram na Europa no início do século XX, atestando as mutações políticas
e culturais que aconteceram naquele contexto.
As vanguardas traduzem o novo. Suas obras apontam para o que se encontra à frente; seja
nos vários campos das artes ou na esfera da cultura, seja nos domínios da sociedade ou da políti-
ca. Segundo Gilberto Mendonça Teles, “a vanguarda representa a mudança de crenças...” (TELES,
1985, p. 82). Daí a busca frequente da novidade e da ruptura com o passado, nos âmbitos dos valo-
res, das filosofias, das religiões, das estéticas.
Muitos desses movimentos de vanguarda acabaram por assumir um comportamento próximo
ao estilo dos partidos políticos. Sendo assim, algumas correntes estéticas possuíam militantes, lançavam
manifestos e acreditavam que a verdade encontrava-se com eles. A história das vanguardas demonstra
que o repasse dessas verdades nem sempre ocorreu de forma simples e com bons modos.
Cortar, agredir, rasgar, inverter, gritar. Esses são alguns dos verbos prediletos dos artistas de
vanguarda, que eles conjugam com frequência na vida e nos manifestos. Por isso, é normal que a
tensão e a agressão sejam sentimentos inerentes aos criadores que transitam na linha de frente das
20 Literatura brasileira II

vanguardas, como atesta a leitura feita por Teles: “Toda vanguarda sempre se caracteriza pela sua
agressividade, manifestada no antilogismo, no culto a valores estranhos (o negrismo dos cubistas),
os poderes mágicos, a beleza da anarquia, o instantaneísmo, o dinamismo, a imaginação sem fio”
(TELES, 1985, p. 82).
Ao assumir tais valores, as vanguardas traduzem os estilos de vida e uma certa estética
do choque, da agressão, que tem muito a ver com o comportamento e a sensibilidade urbana
moderna, que começaram a ser produzidas a partir de fins do século XIX. Assim sendo, é im-
portante ressaltar que as estéticas de vanguardas assumiram importantes papéis na formação
do homem contemporâneo.
O sentido das correntes de vanguardas europeias pode ser dimensionado no fato de elas re-
fletirem, na maioria das vezes, o ritmo de vida fragmentado e as mutações oriundas da percepção
apressada dos centros urbanos. Essas vanguardas traduzem, com os seus gritos e as suas palavras
de ordem, uma outra sensibilidade, que se configura a partir do advento da chamada Belle Époque,
quando foram criadas novas maneiras de ler o mundo. Alia-se a isso a presença das máquinas e dos
inventos surgidos no início do século XX – o telégrafo, o telefone, o automóvel, a lâmpada elétrica,
o cinema, o avião – e que fizeram aumentar a fé no progresso e na ciência.
Referindo-se à Belle Époque e aos seus desdobramentos estéticos durante o século XX, diz o
autor de Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro: “É a época das boêmias literárias, como as
de Mont-martre e Munique. Dessa literatura de cafés e boulevards, de transição pré-vanguardista,
é que vão se originar os inúmeros –ismos que marcarão o desenvolvimento de todas as artes neste
século” (TELES, 1985, p. 39).
Na leitura que empreende acerca do sincretismo literário que ocorreu no final do século
XIX, Teles é bastante didático ao tecer filiações entre as estéticas daquele contexto e seus desdobra-
mentos. Desdobramentos que vão dar nas propostas das vanguardas. Segundo ele,
[...] as várias tendências literárias do fim do século podem perfeitamente agru-
par-se em torno de duas estéticas fundamentais: a do simbolismo, com que o
decadentismo e o neoclassicismo guardam afinidades temático-expressivas; e a
do naturismo, a que se ligam tendências reveladas pelos manifestos socialistas
e unanimistas, e que vai evoluir no sentido do aparecimento da vanguarda com
o manifesto de Marinetti. (TELES, 1985, p. 40)

Com base nessa leitura, veremos a seguir os cinco principais movimentos de vanguarda
que marcaram a Europa no início do século XX e que foram fundamentais para a consolidação
do projeto da modernidade no Brasil. Comecemos, pois, pelo Futurismo, corrente de vanguarda
italiana que influenciou diversos autores de nosso Modernismo, como, por exemplo, Oswald e
Mário de Andrade.
As vanguardas europeias 21

2.2 O Futurismo
O Futurismo tem origem em 1909, quando o jornal parisiense Le Figaro publica o Manifesto
Futurista, de Filippo Tommaso Marinetti. O manifesto surpreende os meios artísticos e intelectuais
europeus pelo seu radicalismo e pela forma violenta de suas proposições1.
Como o próprio título sugere, Futurismo é uma corrente de vanguarda que descarta o passa-
do. Esse descarte se dá em prol de uma luta agressiva, em que as ideias de movimento e velocidade
são o combustível para a criação artística. São ideias inovadoras, que surgem em sintonia com o
desejo de destruir, como podemos ler no fragmento número 11 do Manifesto Futurista:
A Itália foi durante muito tempo o grande mercado das quinquilharias. Nós
queremos desembaraçá-la dos museus inumeráveis que a cobrem de inumerá-
veis cemitérios. [...] Museus cemitérios! [...] Idênticos verdadeiramente no seu
sinistro acotovelamento de corpos que não se conhecem. ... (MARINETTI apud
TELES, 1985, p. 92)

Atentos à percepção urbana e tecnológica do início do século XX, os futuristas são respon-
sáveis pela destruição da sintaxe e pela inclusão, no texto, de sinais da matemática, ao invés da
pontuação. A consolidação da estética futurista se dá mais nos campos da literatura e da pintura.
Seu líder Marinetti escreve que autores como Walt Whitman2 e Zola3 são os precursores referenciais
para a sua escola.
Segundo Annateresa Fabris (1994, p. 19), “o movimento de Marinetti é nuclear para a
compreensão de uma estratégia básica da vanguarda que funde em sua ação arte e estética,
práxis e teoria”.

2.2.1 As três fases do Futurismo


Apesar de polêmica e complexa, a história do Futurismo pode ser dividida nas três fases a
seguir (TELES, 1985, p. 86):
1ª – De 1905 a 1909
• Nesta primeira fase, o verso livre é o princípio estético que rege o texto.
2ª – De 1909 a 1914
• Fase em que é publicada a maioria dos manifestos futuristas.

1 Segundo Teles, “esse manifesto foi no mesmo ano publicado no Jornal de Notícia, da Bahia, em 30 de dezembro de 1909,
tendo, no entanto, passado despercebido” (TELES, 1985, p. 85).
2 Walt Whitman (1819-1892) – poeta norte-americano, cantor da democracia e do progresso da humanidade, de uma
América idealizada e moderna. Louvou a liberdade do corpo, da alma e da política, expressas em versos brancos extensos,
prosaicos e vigorosos. É considerado, por muitos críticos, o maior poeta dos Estados Unidos.
3 Émile Zola (1840-1902) – escritor francês naturalista, cuja obra mais conhecida é Germinal (1885), romance que trata da
vida dos mineradores na França.
22 Literatura brasileira II

3ª – De 1919 em diante
• Nesta última fase, o Futurismo passa a ser porta-voz do fascismo italiano.
A seguir, apresentamos as quatro primeiras vontades publicadas por Marinetti em 1909.

Primeiro Manifesto do Futurismo


(MARINETTI apud TELES, 1985, p. 91)
1 – Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito à energia e à
temeridade.
2 – Os elementos essenciais de nossa poesia serão a coragem, a audácia
e a revolta.
3 – Tendo a literatura até aqui enaltecido a imobilidade pensativa, o êx-
tase e o sono, nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia
febril, o passo ginástico, o salto mortal, a bofetada e o soco.
4 – Nós declaramos que o esplendor do mundo se enriqueceu com uma
beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com seu
cofre adornado de grossos tubos como serpentes de fôlego explosivo...
um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo
que a Vitória de Somotrácia.
[...]

2.3 O Expressionismo
Embora tenha surgido por volta de 1910, o Expressionismo “tornou-se conhecido no mun-
do depois de 1918, quando os seus adeptos agiram como propagandistas da revolução republicana
e socialista na Alemanha” (CARPEAUX, 1968, p. 81). Foi o primeiro movimento de vanguarda a
perceber e lutar contra os aspectos trágicos do mundo técnico moderno, ao contrário do Futurismo,
que cantava a máquina e suas qualidades intrínsecas como se fossem as novas deusas vitais de uma
segunda natureza, a da tecnologia.
Crendo na obra de arte como expressão do mundo interior do artista, o Expressionismo é
um movimento de vanguarda que possui fortes conotações sociais. Para o artista expressionista,
a realidade atroz e o sentido trágico da vida são pressupostos para a criação de uma arte que, de
forma contestatória, descarta os conceitos de belo e feio.
O Expressionismo “antecipou claramente alguns aspectos essenciais do Surrealismo” (TELES,
1985, p. 105). Assim como acontecerá com o Surrealismo, as propostas dos expressionistas atingem
As vanguardas europeias 23

vários domínios da arte, como a arquitetura e o cinema. Na música, Schoenberg é a referência.


Na pintura, destacam-se Van Gogh, Kandinski, Edvard Munch, Paul Klee e Chagall; na literatura,
Thomas Mann4, Hermann Hesse5 e August Stramm, dentre outros.
Figura 1 – O Grito, de Edvard Munch, traduz a angústia existencial do ser humano.

Fonte: MUNCH, Edvard. O grito.1910. Têmpera sobre tela, 83 x 66 cm. Museu Munch, Oslo, Noruega.
A terra é uma paisagem imensa que Deus nos deu [...] Assim, o universo do
artista expressionista torna-se visão. Ele não vê, mas percebe. Ele não descreve,
acumula vivências. Ele não reproduz, ele estrutura (gestaltet). Ele não colhe,
ele procura. Agora não existe mais a cadeia dos fatos: fábricas, casas, doença,
prostitutas, gritaria e fome. Agora existe a visão disso. Os fatos têm significado
somente até o ponto em que a mão do artista os atravessa para agarrar o que se
encontra além deles. [...] (KASIMIR apud TELES, 1985, p. 111)

2.4 O Cubismo
O Cubismo é uma corrente de vanguarda que influenciou fortemente duas artes: a pintu-
ra e a poesia. Surgido em 1907, com Picasso e seu quadro Les Demoiselles d’Avignon, o Cubismo
opõe-se à objetividade e sua direção é contrária à arte realista. Além de Picasso, na pintura cubista
podemos destacar os nomes de Mondrian, Braque e Picabia.
Na literatura, sobressaem, dentre outros, Apollinaire e Blaise Cendrars. Este último, cos-
mopolita e viajante, autor de Poesia em Viagem, conheceu o Brasil na década de 20 e influenciou
autores do nosso Modernismo, como Oswald de Andrade e Manuel Bandeira.

4 Thomas Mann (1875-1955) – escritor alemão, cuja obra mais conhecida é A Montanha Mágica (1924). Ganhou o Prêmio
Nobel de Literatura em 1929.
5 Hermann Hesse (1877-1962) – romancista alemão de cultuados livros como Demian (1919) e O Lobo da Estepe (1927).
Um dos autores prediletos de Clarice Lispector, Hesse seduz o leitor rebelde e abissal na sua fase de formação. Ganhou o
Prêmio Goethe e o Prêmio Nobel de Literatura em 1946.
24 Literatura brasileira II

A pintura cubista se desenvolveu a partir do construtivismo de Cézanne, criando uma técni-


ca em que elementos da geometria ganham a cena. “A sua técnica é a da representação da realidade
através de estruturas geométricas, desmontando os objetos para que, remontados pelo espectador,
deixasse transparecer uma estrutura superior, a forma plástica essencial e verdadeira da beleza”
(TELES, 1985, p. 114).
Ao contrário da maioria dos movimentos de vanguarda, o Cubismo não lançou manifestos
de poesia. No entanto, o texto do poeta Apollinaire, “Meditações estéticas sobre a pintura”, embora
remeta mais às questões da pintura, apresenta um olhar estético que irradia muito da função poé-
tica dos cubistas. Diz o texto de 1913:
Os grandes poetas e os grandes artistas têm por função social remover conti-
nuamente a aparência que reveste a natureza, aos olhos dos homens. Sem os
poetas, sem os artistas, os homens aborrecer-se-iam depressa com a monotonia
natural. [...] Os poetas e os artistas determinam e concertam a imagem de sua
época e docilmente o futuro se amolda ao seu gosto. (APOLLINAIRE apud
TELES, 1985, p. 115)

Esse trecho é fundamental para entendermos o lugar do poeta no contexto da modernidade.


Nas “Meditações” de Apollinaire ressalta-se, além da monotonia da natureza, a determinação do
poeta como criador que possui a função de ordenar o mundo de acordo com o seu contexto6.

2.5 O Dadaísmo
De dimensões internacionais e urbanas, o Dadaísmo surge em 1916, em Zurique, como um
não à guerra. Os dadaístas criam uma estética que atira na decadência da civilização e nos perigos
que a guerra produz: a instabilidade, o medo, o desprezo pelo outro, o silêncio que angustia e cria
monstros. Por isso os dadaístas expressam e reproduzem a negação, produzindo tais sentimentos
em seus textos fragmentados e fora da ordem gramatical.
Segundo Tristan Tzara, o líder dadaísta, a palavra dadá não possui uma significação plena.
O nome de batismo do movimento que lançou vários manifestos foi encontrado casual-
mente. O Dadaísmo nega o paradigma social e sua força opressora, sendo considerado “o mais
radical movimento intelectual dos últimos tempos” (TELES, 1985, p. 131).
Os manifestos do Dadaísmo nem sempre apresentam coerência gramatical. Suas frases des-
denham, na maioria das vezes, da ordem sintática e da produção do sentido, como podemos obser-
var, a seguir, no fragmento que abre o Manifesto do Senhor Antipirina: “Dadá é nossa intensidade:
quem levanta as baionetas sem consequência a cabeça sumatral do bebê alemão; Dadá é a vida
sem pantufas nem paralelos; quem é contra e pela unidade e decididamente contra o futuro [...]”
(TZARA apud TELES, 1985, p. 135).

6 Para conhecer algumas importantes pinturas desse movimento, acesse: <https://www.wikiart.org/pt/paintings-by


style/cubismo?select=featured#!#filterName:featured,viewType:masonry>. Acesso em: 20 jul. 2018.
As vanguardas europeias 25

Quando consegue fugir da desordem e produzir algum sentido, o texto dadaísta pode tor-
nar-se agressivo, como demonstra o segundo fragmento do mesmo Manifesto: “Dadá permanece
no quadro europeu das fraquezas, no fundo é tudo merda, mas nós queremos doravante cagar
em cores diferentes para ornar o jardim zoológico da arte de todas as bandeiras dos consulados”
(TZARA apud TELES, 1985, p. 135).

2.6 O Surrealismo
Na cronologia das vanguardas europeias, o Surrealismo é o último movimento a lançar o
seu manifesto. Isso acontece em 1924, quando o poeta francês André Breton lança o Manifesto do
Surrealismo. Por esse motivo, Walter Benjamin diz ser esse movimento de vanguarda “o último
instantâneo da inteligência europeia” (BENJAMIN, 1993, p. 21).
O manifesto de Breton critica a atitude realista e vê o homem como um sonhador definitivo
(BRETON apud TELES, 1985, p. 174), assumindo a importância do sonho e do imaginário como
espaços da produção do saber e do sentido. Irônico e sucinto, o autor afirma: “Cara imaginação,
o que eu amo, aprecio, sobretudo em você, é que você não perdoa” (BRETON apud TELES, 1985,
p. 175). Essa crítica é extensiva, dentre outros gêneros, ao romance de estilo informativo, aos seus
narradores donos das chaves do real e às suas convincentes descrições com apelos de verdade.
Assim como o Dadaísmo, o Surrealismo propõe a destruição da ordem social. Apesar disso,
a divergência entre os dois movimentos é visível, já que os surrealistas desejam recriar a sociedade
a partir de novos paradigmas estéticos e sociais. Também ao contrário do Dadaísmo – estética de
vanguarda cuja influência se restringe mais ao universo da literatura –, a arte surrealista repercutiu
em diferentes domínios da produção artística e recebeu forte influência da obra de Freud.
Na literatura surrealista destacam-se os seguintes autores: André Breton, Louis Aragon e
Paul Éluard. No teatro, Antonin Artaud figura como a grande referência que norteará as artes
cênicas do século XX. Nas artes plásticas, os nomes mais importantes são os de Salvador Dalí, De
Chirico e Joan Miró. No cinema, Luis Buñuel destaca-se como o diretor mais representativo da es-
tética surrealista, chegando a dirigir um de seus filmes, Um Cão Andaluz (1928), em parceria com
o pintor Salvador Dalí.
Em ensaio que trata das produções de Breton e Miró, Octávio Paz nos “narra”, de forma
poética, o modo como vê os dois artistas. Acerca do pintor surrealista, o poeta e crítico mexicano
capta uma percepção dialógica entre a oralidade e a visibilidade, e diz: ele “escutava com os olhos
muito abertos e um sorriso de lua camponesa extraviada na cidade” (PAZ, 1991, p. 220). De André
Breton, brota uma percepção oral: “A voz de Breton era profunda e rítmica; lia devagar e com leves
modulações litúrgicas” (PAZ, 1991, p. 222).
Afirmando que Miró “pintava como uma criança de cinco mil anos de idade”, Paz conclui o
seu ensaio com as seguintes palavras: “Para Breton, as Constelações de Miró literalmente ilumina-
vam as obscuras relações entre a história e a criação artística” (PAZ, 1991, p. 222-223).
26 Literatura brasileira II

Ampliando seus conhecimentos

Manifesto do Surrealismo
(BRETON, 1985, p. 174-176)

Tão longe vai a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, a vida real entenda-se, que,
por fim, esta crença se perde. O homem, este sonhador definitivo, dia a dia mais insatisfeito
com sua sorte, passa em revista, a custo, os objetos de que foi levado a fazer uso, aos quais
dispensou sua incúria, ou seu esforço, quase sempre seu esforço, pois que ele consentiu em
trabalhar, pelo menos não lhe repugnou tentar uma oportunidade (aquilo que ele chama sua
oportunidade!) Uma grande moderação é presentemente seu quinhão: ele sabe as mulheres
que possuiu, em que aventuras ridículas se meteu; sua riqueza ou sua pobreza de nada lhe ser-
vem, em relação a elas ele permanece como o garoto que acaba de nascer e, quanto à aprovação
de sua consciência moral, eu creio que ele prescinde dela facilmente. Se ele conserva alguma
lucidez, só pode se voltar então para sua infância que, por mais mascarada que tenha sido pelo
cuidado dos moralistas, daqueles que querem tudo muito bem feito, não lhe parece menos
cheia de encantos. Lá, a ausência de todo rigor conhecido deixa-lhe a perspectiva de vários
caminhos percorridos ao mesmo tempo; ele se enraíza nesta ilusão; quer saber apenas da faci-
lidade momentânea, extrema, de todas as coisas. Cada manhã, crianças partem sem inquie-
tude. Tudo está perto, as piores condições materiais são excelentes. Os bosques são brancos ou
pretos, não se dormirá jamais.
Mas é verdade que não se ousaria ir tão longe, não se trata apenas da distância. As ameaças
acumulam-se, concede-se, abandona-se uma parte do terreno a conquistar. Essa imaginação
que não conhece limites, só lhe é permitida exercitá-la de acordo com as leis de uma utilidade
arbitrária; ela é incapaz de assumir por muito tempo este papel secundário, inferior e, por volta
dos 20 anos, prefere, geralmente, abandonar o homem a seu destino sem luz.
[...]
Cara imaginação, o que eu amo, aprecio, sobretudo em você, é que você não perdoa.
[...]
Resta a loucura, “a loucura que nos prende”, disseram bem. Essa ou a outra... Cada um sabe,
com efeito, que os loucos só devem seu internamento a um pequeno número de atos legal-
mente repreensíveis, e que, na falta destes atos, sua liberdade (o que se vê de sua liberdade)
não estaria em jogo. Que eles sejam, numa medida qualquer, vítimas de sua imaginação estou
pronto a concordar, no sentido de que ela os impele à inobservância de certas normas, fora das
quais o gênero se sente visado, o que todo homem é pago para saber. Mas o profundo despren-
dimento, desapego de que eles dão testemunho em relação à crítica que lhes fazemos, quiçá
aos corretivos diversos que lhes são infringidos, permite supor que eles sentem um grande
conforto na imaginação, que eles se comprazem bastante com seu delírio, para suportar que
esse delírio só seja válido para eles. E, de fato, as alucinações, as ilusões etc., não constituem
uma fonte de prazer negligenciável. A sensualidade mais ordenada ali se enquadra e eu sei que
eu domesticaria muitas noites essa mãozinha bonita que, nas últimas páginas de G’Intelligence,
de Taine, se entrega a curiosos delitos. As confidências dos loucos, eu passaria a vida a provo-
cá-las. São pessoas de uma honestidade escrupulosa e cuja inocência só é comparável à minha.
As vanguardas europeias 27

Foi preciso que Colombo partisse com loucos para descobrir a América. E vejam como essa
loucura se corporificou e durou.
Não será o temor da loucura que nos forçará a hastear a bandeira da imaginação a meio pau.
O processo da atitude realista demanda ser estudado, após o processo da atitude materialista.
Esta, mais poética, além disso, do que a precedente, implica por parte do homem num orgu-
lho, decerto, monstruoso, mas não numa nova e mais completa queda, num novo declínio.
Convém ver nisso, antes de tudo, uma feliz reação contra alguma tendência irrisória do espiri-
tualismo. Enfim, ela não é incompatível com uma certa elevação de pensamento.
Ao contrário, a atitude realista, inspirada no positivismo, de Santo Tomás a Anatole France,
tem um ar hostil a todo arrojo intelectual e moral. Tenho horror a ela, pois é feita de mediocri-
dade, de ódio e suficiência sem atrativo. É ela que engendra, hoje, estes livros ridículos, estas
peças insultuosas. [...]

Dicas de estudo
Para novas abordagens acerca das vanguardas europeias, suas obras e seus autores mais re-
presentativos, recomendamos:
• UM CÃO andaluz. Produção e direção de Luis Buñel. Roteiro de Luis Buñel e Salvador
Dalí. França, 1929. 16 min. Esse filme é codirigido por Salvador Dalí e apresenta temas
e mecanismos relacionados aos sonhos. Como obra de vanguarda, desafia o espectador.
Suas imagens e seus ritmos misturam prazer estético com uma percepção cortante que
pode causar angústia. Ao modo surrealista, trata-se de uma arte que dialoga com a esfera
dos instintos;
• Obra do compositor Arnold Schoenberg. Além de teórico, era um músico cuja comple-
xidade harmônica e inventiva possibilitou a criação de um dos mais revolucionários es-
tilos musicais do século XX: o dodecafonismo7. Conheça um pouco mais da obra em:
<http://www.casadamusica.com/pt/artistas-e-obras/compositores/s/schoenberg-arnold/
#tab=0>. Acesso em: 20 jul 2018.
• SANT’ANNA. Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão. Rio de Janeiro: Vieira e
Lent, 2003. O livro lança um olhar sobre a arte nos últimos 150 anos, questionando con-
ceitos como vanguarda, arte moderna, arte pós-moderna e arte contemporânea.

7 O dodecafonismo é fruto da atonalidade e da música serial. Ao invés de usar um tom determinado para compor – dó, ré,
lá etc. –, trabalhando com as diferentes alturas de sons da escala tonal, a música atonal de ordem serial e dodecafônica se
ocupa de todos os 12 graus da escala cromática – dó, dó sustenido, ré, ré sustenido etc. Com isso, há uma perfeita igualdade
no uso de todos os graus da escala, da mesma forma que na pintura expressionista, preocupada mais com a cor do que com
a linha, pois as cores expressam melhor os sentimentos subjetivos, não existe a perspectiva clássica, na qual um elemento
fica à frente dos outros. A hierarquia dos elementos da perspectiva clássica atuaria assim para insistir na comparação entre
música e pintura, de modo semelhante ao da organização dramática das alturas na música tonal. No serialismo dodecafô-
nico atonal, ao contrário, a intensidade da emoção expressiva se espalha por igual pelas notas, que podem se alternar nos
timbres e nos modos de combinações, a partir da construção de uma série básica cromática de sons.
28 Literatura brasileira II

Atividades
1. Como explicar o caráter agressivo e demolidor da maioria dos movimentos de vanguarda?

2. Que relações podemos estabelecer entre as estéticas do Dadaísmo e do Surrealismo?


3
A fase heroica: a Semana de 1922
e os principais manifestos

Neste capítulo, adentraremos em uma das zonas centrais do universo da modernidade: va-
mos estudar o Modernismo brasileiro! Inicialmente, abordaremos a sua fase heroica, que acontece
na segunda década do século XX. O marco histórico desse momento é a Semana de Arte Moderna
de 1922. Veremos, com isso, os antecedentes e os fatos que ocorreram durante momento tão signi-
ficativo de nossa história literária contemporânea.
O movimento modernista criou, segundo um dos seus ideólogos mais celebrados, o poeta e
ensaísta Mário de Andrade, “um estado de espírito nacional” (ANDRADE, 1972c, p. 231). Estudar
esse período da nossa historiografia literária significa, portanto, ler os múltiplos textos que a cons-
trução da modernidade produziu no Brasil, em sintonia com as ideias de arte e nação.
É nosso objetivo atentar para a produção e a recepção desses escritos modernos e seus dife-
rentes gêneros estéticos, sejam os manifestos de cunho político e cultural, sejam os documentos ou
os textos críticos. Vamos conhecer as propostas estéticas e culturais inseridas nos principais ma-
nifestos da primeira fase Modernista: Pauliceia Desvairada e A Escrava que não é Isaura, de Mário
de Andrade (1893-1945), e o Manifesto da Poesia Pau-Brasil e o Manifesto Antropófago, de Oswald
de Andrade (1890-1954).
Além de manifestos dos dois principais ideólogos dialéticos de nosso Modernismo, vamos
conhecer, também, os manifestos dos artistas de direita: o Verde-Amarelismo e o Grupo Anta,
entre outros.

3.1 Antecedentes da Semana


Ao reler o Modernismo brasileiro no ensaio “O movimento modernista”, Mário de Andrade
deixa claro que os antecedentes da Semana de Arte Moderna estão diretamente relacionados à
noção de heroísmo. Esse heroísmo vem associado às ideias de liberdade e pureza. Segundo o poeta
modernista, naquela segunda década do século XX, o grupo modernista vivia “numa união ilumi-
nada e sentimental das mais sublimes” (ANDRADE, 1972c, p. 237).
Essa fase heroica dura, mais ou menos, seis anos. Compreende, segundo o autor de Pauliceia
Desvairada, o período que vai do escândalo causado pela exposição de pintura de Anita Malfatti, em
1917, até a Semana de Arte Moderna que aconteceu de 11 a 18 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal
de São Paulo. Referindo-se a essa exposição de Anita Malfatti, Mário de Andrade diz: “Parece absurdo,
mas aqueles quadros foram a revelação” (ANDRADE, 1972c, p. 232).
30 Literatura brasileira II

Essa “revelação” teria um preço. Ela seria um marco no contexto que antecede a Semana,
sendo assim relida por Bosi (1994, p. 333):
[...] o fato cultural mais importante antes da Semana e que serviu de barômetro
da opinião pública paulista em face das novas tendências foi a exposição de
Anita Malfatti em dezembro de 1917. Quem lhe deu, paradoxalmente, certo
relevo foi Monteiro Lobato que a criticou de modo injusto e virulento em um
artigo intitulado “Paranoia ou Mistificação?”.
Concebendo a Semana de Arte Moderna como “construção de uma ruptura”, o ensaísta
Evando Nascimento entrevê duas faces no Brasil no início do século XX. Segundo ele, “a oficialida-
de cultural era perfeitamente harmônica com o atraso econômico do país” (NASCIMENTO, 2002,
p. 31). Exemplo dessa harmonia é o poeta parnasiano Olavo Bilac, citado por Nascimento, e suas
campanhas educacionais de conotação cívica. Acerca da polêmica causada pela exposição de Anita
e do texto “Paranoia ou Mistificação?”, ele diz:
No caso de Anita estão, pela primeira vez, defrontados publicamente no Brasil
dois valores radicalmente distintos. Um é o valor representativo do conser-
vadorismo cultural da época; as palavras de Monteiro Lobato reproduzem os
parâmetros de uma estética acadêmica que entendia a pintura como reprodução
direta da natureza. Outro é o valor absolutamente novo, expresso nos quadros
de Anita, de uma arte que atende a seus próprios princípios, não tendo um
compromisso fotográfico com os objetos da realidade natural (NASCIMENTO,
2002, p. 34)
Esse “valor absolutamente novo” está em sintonia com os movimentos da vanguarda euro-
peia do início do século XX e circula como ideia viajante pelas reuniões dos intelectuais e das elites
nos salões urbanos, nas quais ocorriam atividades artísticas e gastronômicas. Mário de Andrade
destaca, dentre outras, a reunião da Rua Lopes Chaves, em São Paulo. Segundo ele, “essa reunião
precedeu mesmo a Semana de Arte Moderna” (ANDRADE, 1972c, p. 239).
Depois de Anita, em 1917, foi a vez do escultor Victor Brecheret, em 1919, causar polêmica,
mas com uma recepção diferente. Lobato dessa vez não repudia o trabalho do artista que estudou
em Roma, e se junta a Di Cavalcanti, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia, entre outros artis-
tas e produtores, para saudá-lo.
O lançamento da revista O Pirralho, criada por Oswald de Andrade e Emílio de Menezes, a
realização desses dois eventos das artes plásticas aos quais aludimos e uma série de vários outros
episódios pontuais e menores, acontecidos durante a chamada fase heroica da nossa modernidade,
contribuíram para atingirmos o marco que funda o Modernismo brasileiro: a Semana de Arte
Moderna de 1922.

3.2 A Semana de 1922


Embora tenha acontecido de 11 a 18 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo,
a Semana de Arte Moderna teve os seus eventos realizados durante três dias: 13, 15 e 17. “A pro-
posta era unir aos festejos do Centenário da Independência em 1922, o marco de uma outra inde-
pendência, a da cultura brasileira” (NASCIMENTO, 2002, p. 43).
A fase heroica: a Semana de 1922 e os principais manifestos 31

Na abertura da programação destaca-se a conferência do escritor Graça Aranha, “A emoção


estética na arte moderna” (vide texto complementar), ilustrada com música e poesia. A conferência
foi seguida de um concerto do maestro Villa-Lobos e publicada depois por Aranha no livro Espírito
Moderno, de 1925.
Dentre outros artistas importantes que participaram, direta ou indiretamente, da Semana de
Arte, podemos destacar: Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Guilherme de
Almeida, Paulo Prado. Acerca da programação do evento, diz o historiador Mário da Silva Brito
(apud BOSI, 1994, p. 337):
A grande noite do festival foi a segunda. A conferência de Graça Aranha, que
abriu os festivais, confusa e declamatória, foi ouvida respeitosamente pelo pú-
blico, que provavelmente não a entendeu, e o espetáculo de Villa-Lobos, no dia
17, foi perturbado, principalmente porque se supôs fosse “futurismo” o artista
se apresentar de casaca e chinelo, quando o compositor assim se calçava por
estar com um calo arruinado... Mas não era contra a música que os passadistas
se revoltavam. A irritação dirigia-se especialmente à nova literatura e às novas
manifestações de arte plástica.
Ao referir-se à Semana de Arte Moderna, o poeta Mário de Andrade utiliza palavras e ex-
pressões como: “o brado coletivo principal”, “batalha”, “escândalo público permanente”, “coroamen-
to lógico dessa arrancada gloriosamente vivida” e “festa” (ANDRADE, 1972c, p. 241). Tal entu-
siasmo pode ser aferido nos desejos expressos no discurso realizado por um outro participante do
evento, o poeta Menotti del Picchia. Diz ele, no segundo dia da Semana:
Queremos luz, ar, ventiladores, aeroplanos, reivindicações obreiras, idealismo,
motores, chaminés de fábrica, sangue, velocidade, sonho, na nossa Arte. E que
o ruído de um automóvel, nos trilhos de dois versos, espante da poesia o último
deus homérico, que ficou, anacronicamente, a dormir e a sonhar, na era do
jazz-band e do cinema, com a frauta dos pastores da Arcádia e os seios divinos
de Helena! (PICCHIA apud BOSI, 1994, p. 338)
Apesar dos desejos de ruptura e demolição expressos nesses textos relacionados à Semana
de Arte Moderna, é importante atentarmos para os patrocinadores do evento. Acerca desse patro-
cínio, que tem na pessoa do Paulo Prado o seu signo referente, o historiador Mário da Silva Brito
nos auxilia a compreender melhor o seu significado mais amplo: “É interessante assinalar que o
Correio Paulistano, órgão do PRP1, do qual Menotti del Picchia era o redator político, agasalhava
os ‘vanguardistas’, com o consentimento de Washington Luís, presidente do Estado” (BRITO apud
BOSI, 1994, p. 339).

3.3 Manifestos de Mário de Andrade


Embora não tenha escrito exatamente um texto com o título de manifesto, Mário de Andrade
publicou vários ensaios e escritos – em livros, jornais, revistas – nos quais manifestava aquelas que
seriam consideradas, mais tarde, as linhas mestras da nossa modernidade.
Pesquisador que empreendeu várias viagens de pesquisa folclórica e etnográfica ao
Norte e Nordeste do Brasil, Mário era um intelectual consciente da importância do nosso

1 O autor refere-se aqui ao Partido Republicano Paulista.


32 Literatura brasileira II

passado nacional e soube louvar, de modo crítico e seletivo, a tradição literária brasileira.
Apesar de ser considerado conciliatório no universo estético, o poeta, nos momentos de maior
radicalidade e desejo de mudança, rompe com essa tradição, por estar inserido no contexto
das reverberações da fase heroica de nosso Modernismo. Isso fica claro na autoavaliação feita
pelo autor em 1942, três anos antes de sua morte: “O Modernismo, no Brasil, foi uma ruptura,
foi um abandono de princípios e de técnicas consequentes, foi uma revolta contra o que era a
inteligência nacional” (ANDRADE, 1972c, p. 235).
A seguir estudaremos dois textos publicados por Mário de Andrade, que podem ser lidos
como manifestos da modernidade brasileira: Pauliceia Desvairada (1922) e A Escrava que não é
Isaura (1925).

3.3.1 Pauliceia Desvairada


Escrito a partir das influências das vanguardas europeias, Pauliceia Desvairada (1922)
é considerado o primeiro livro de poemas modernistas de nossa literatura. O volume tem a
cidade de São Paulo como tema e personagem e traz, na abertura, um texto escrito pelo próprio
autor, com o sugestivo título de “Prefácio interessantíssimo”. Mas antes de conhecermos esse
texto, vejamos como surgiu, segundo Mário de Andrade (1972c, p. 234), o livro que funda
nossa modernidade poética:
Me lembro que cheguei à sacada, olhando sem ver o meu largo. Ruídos, luzes,
falas abertas subindo dos choferes de aluguel. Não sei o que me deu. Fui até a es-
crivaninha, abri um caderno, escrevi o título em que jamais pensara, “Pauliceia
Desvairada”. O estouro chegara afinal, depois de quase ano de angústias, inter-
rogativas. Entre desgostos, brigas, em pouco mais de uma semana estava jogado
no papel um canto bárbaro, duas vezes maior talvez do que isso que o trabalho
de arte deu num livro.
O canto bárbaro de Mário de Andrade abre-se com um texto que funda uma nova poética:
o Desvairismo. Essa poética, sob inspiração vanguardista, quer ter a duração da leitura do mani-
festo, já que no próprio documento o autor informa que “no próximo livro” fundará outra poética.
Leiamos a seguir a abertura do irônico “Prefácio interessantíssimo” (ANDRADE apud TELES,
1985, p. 298).
Leitor:
Está fundado o Desvairismo.
Este prefácio, apesar de interessante, inútil.
[...]
Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu incons-
ciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que
escrevi. Daí a razão deste Prefácio Interessantíssimo. [...]
Nessa introdução, o autor justifica o livro. Depois ele apresenta uma teoria na qual se des-
tacam elementos da poética, da música e da gramática, dentre outros. Com esse “Prefácio interes-
santíssimo”, o autor “antecipa-se ao Primeiro Manifesto do Surrealismo de André Breton de 1924,
quando pregava o primado do inconsciente, que os surrealistas chamariam de ‘“escrita automáti-
ca”’ (ABEL, 1985, p. 8). A diferença é que Mário se dispõe a corrigir e justificar o que escreve sem
A fase heroica: a Semana de 1922 e os principais manifestos 33

pensar; os surrealistas, ao contrário, têm como proposta trazer à tona, para a realidade, as forças da
palavra que vem do subconsciente profundo, sem essa arrumação do intelecto.

3.3.2 A Escrava que não é Isaura


O título desse ensaio de Mário de Andrade é uma paródia do romance do escritor mineiro
e romântico Bernardo Guimarães, autor de A Escrava Isaura, publicado em 1875. “Através de uma
parábola, Mário apresenta a poesia como uma mulher nua que os homens, com o passar dos tempos,
foram cobrindo de roupas e joias, até que um vagabundo genial (Rimbaud) deu um pontapé naquele
monte de roupas e deixou outra vez a mulher nua – a poesia moderna” (TELES, 1985, p. 302).
A seguir, vejamos a primeira parte do ensaio, na qual o autor ressalta a poética (o fenômeno da
criação) e desenvolve temas ligados à produção artística. Dentre esses temas, destacam-se o lirismo, a
beleza, a retórica e a relação com o passado, como recortado a seguir (TELES, 1985, p. 303).
Primeira Parte
[...]
Belas-artes: “Começo por conta de somar: / Necessidade de expressão + neces-
sidade de comunicação + necessidade de ação + necessidade de prazer = Belas
Artes.”
Poesia: “Das artes assim nascidas a que se utiliza de vozes articuladas chama-se
poesia” [...]
Leitor: “É o leitor que se deve elevar à sensibilidade do poeta, não é o poeta que
se deve baixar à sensibilidade do leitor. Pois este que traduza o telegrama!”
Conclusão da primeira parte: “Assim pois a modernizante concepção de Poesia
que, aliás, é a mesma de Adão e de Aristóteles e existiu em todos os tempos,
mais ou menos aceita, levou-nos a dois resultados – um novo, originado dos
progressos da psicologia experimental; outro antigo, originado da inevitável
realidade: /1.º: respeito à liberdade do subconsciente. Como consequência: des-
truição do assunto poético. /2.º: o poeta reintegrado na vida do seu tempo. Por
isso: renovação da sacra fúria”.
O ensaio continua acerca da retórica e da crítica, dando destaque para os temas relacionados
ao estudo da poética, como o ritmo, a noção do verso livre e a rima. No que tange às questões de
relevo relacionadas à esfera da estética, Mário ressalta a “substituição da ordem intelectual pela
ordem subconsciente” (TELES, 1985, p. 306) e destaca, ainda, questões como a rapidez e a síntese
na poesia moderna.
Na conclusão, o poeta alude à tradição e à história: “Os passadistas não conseguem tirar de
nós mais que o dorso da indiferença. O amor esclarecido ao passado e o estudo da lição histórica
dão-nos a serenidade” (ANDRADE apud TELES, 1985, p. 307).

3.4 Manifestos de Oswald de Andrade


Apesar do mesmo sobrenome de Mário, o escritor Oswald de Andrade não era seu parente e
assumiu posturas mais radicais na vida e no texto. Rico, irreverente e irônico, casou-se várias vezes
e colecionou alguns desafetos. Sua obra foi banida das antologias escolares durante anos, sendo
reconhecida nos anos 1960 pelos poetas concretos de São Paulo, Haroldo e Augusto de Campos.
34 Literatura brasileira II

Sua biógrafa, Maria Augusta Fonseca, e parte da crítica sugerem explicações para o silêncio
ao qual o poeta foi relegado: “Oswald arreganhou os dentes de antropófago à mentalidade coloni-
zada que atrofiou e ainda atrofia o país” (FONSECA, 2007, p. 22). “Oswald nunca pôde subordinar
seu espírito a cânones métricos e aos parâmetros semânticos que lhes são correlatos” (CAMPOS,
1978, p. 19).
Poeta que viajou à Europa e manteve contato com autores representativos das vanguardas
europeias, Oswald atuou em várias frentes. Publicou poesia, romance, teatro e ensaio. As memó-
rias, os diários e os manifestos ocupam grande parte da sua produção estética e literária.
A seguir, conheceremos dois dos principais manifestos do nosso Modernismo, publica-
dos por Oswald de Andrade: “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” (1924) e “Manifesto Antropófago”
(1928), os quais, segundo a perspectiva de alguns críticos, “formam uma peça única, o segundo
estando contido fundamentalmente no primeiro” (CAMPOS, 1978, p. 48).

3.4.1 “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”


Considerado o nosso primeiro produto de exportação, o pau-brasil é uma árvore da época
da colonização, cujo nome foi utilizado por Oswald para batizar o seu manifesto. Publicado no
Correio da Manhã, em 1924, esse texto fragmentado e sucinto possui a arte e a cultura brasileiras
como temas e se propõe a mostrar a importância da síntese entre a raiz nativa e a antena que capta
a atualidade dos saberes da modernidade para a definição de um conceito de nacionalidade crítico
e autêntico. Diz o poeta da “Poesia Pau-Brasil”: “Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de
química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos.
Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas” (OSWALD apud TELES, 1985, p. 331).
Na busca de redescobrir o país, o poeta explora temas e elementos folclóricos, culinários,
históricos e estéticos, dentre outros, ressaltando a importância da originalidade primitiva. “Oswald
recorreu a uma sensibilidade primitiva (como fizeram os cubistas, inspirando-se nas geometrias
elementares da arte negra) [...] para comensurar a literatura brasileira às novas necessidades de
comunicação engendradas pela civilização técnica” (CAMPOS, 1978, p. 50).
O manifesto abre-se em sintonia com as teorias contemporâneas, segundo as quais os fatos,
no contexto da modernidade, são mais importantes que a crença nas convicções e essências tradi-
cionais. Diz Oswald:
A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela,
sob o azul cabralino, são fatos estéticos. O carnaval do Rio é o acontecimento
religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo.
Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha.
O vatapá o ouro e a dança. (OSWALD apud TELES, 1985, p. 326)

3.4.2 “Manifesto Antropófago”


Lançado em 1928, o “Manifesto Antropófago” foi originalmente publicado no número
um da Revista de Antropofagia de São Paulo. Suas propostas ampliam as ideias nacionalistas do
“Manifesto do Pau-Brasil”, pois radicalizam na brasilidade primitiva, ao parodiar a famosa máxima
A fase heroica: a Semana de 1922 e os principais manifestos 35

shakespeareana2 em “Tupy or not tupy, that is the question”. Afora isso, destacam a alegria e o humor
como traço crítico do nosso caráter (“A alegria é a prova dos nove”). A seguir, destacamos alguns
dos trechos do referido manifesto.
Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
[…]
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. […]
[…] Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre Declaração dos Direitos do
Homem. […]
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos
Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.
Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós. Contra o Padre Vieira.
Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei analfabeto
dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo.
Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trou-
xe a lábia. […]
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador
do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons
sentimentos portugueses […]
Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.
[…].
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felici-
dade. […]
Nesses trechos podemos observar a crítica que o autor empreende ao processo da nossa co-
lonização política e cultural, nas referências diretas aos portugueses e ao padre Vieira. Trata-se da
aplicação prática do conceito de antropofagia, que – ao reproduzir simbólica e culturalmente o ato
explícito realizado por tribos indígenas antropófagas, espalhadas pelo Brasil no momento histórico
de achamento de nossas terras pelos europeus, de devorar os inimigos para adquirir suas forças
físicas e espirituais –, ao invés de negar a diferença, quer incorporá-la, filtrando apenas o que nos
possa ser útil para enriquecermos nossa sociedade e cultura. A antropofagia é o desejo do outro,
do “que não é meu”.

3.5 Os grupos de direita e seus manifestos


Os manifestos modernistas dos anos 1920 representam duas tendências estéticas e ideológi-
cas. De um lado, estão os artistas como Mário e Oswald de Andrade, influenciados pelas vanguar-
das europeias e pelas ideias de ruptura com a tradição literária; do outro, encontram-se os artistas
de direita, representados por movimentos como, por exemplo, o Verde-Amarelismo e o Grupo
Anta, liderados por Plínio Salgado.

2 A máxima é “to be or not to be, that is the question”, cujo significado literal em português é “ser ou não ser, eis a ques-
tão”, e está inserida em um dos vários solilóquios que ocorrem na arquifamosa tragédia Hamlet, do autor inglês William
Shakespeare, considerado por muitos críticos como o centro do Cânone Literário Ocidental. A máxima, hoje em dia, já se
transformou em bordão popular. Os solilóquios foram importantes para que, no palco elizabetano, pudesse ser expressa
a psicologia profunda do personagem teatral, que, usando essa técnica, apresenta diretamente para a plateia o que
ocorre em sua alma. Nesse aspecto, Shakespeare introduz procedimentos modernos de concepção literária do homem,
que perde muito de seu traço caricatural e ganha em densidade existencial. Oswald de Andrade, ao parodiar a expressão,
está ampliando, de modo genial, a questão existencial para o âmbito do cultural e do nacional, além de exercitar seu
conceito de antropofagia.
36 Literatura brasileira II

Publicado em 1929, o Nhenaçu Verde Amarelo (Manifesto do Verde-Amarelismo ou da


Escola da Anta) valoriza as nossas raízes. Contra a noção de intelectualidade e a favor de uma
filosofia tupi, os verdes modernos destacam a figura do índio que nos ensinou a rir dos sistemas e
concluem o manifesto assumindo sua porção conservadora: “Aceitamos todas as instituições con-
servadoras, pois é dentro delas mesmo que faremos a inevitável renovação do Brasil [...] Nosso
nacionalismo é ‘verdamarelo’ e tupi”.
Referindo-se a esses grupos de cunho conservador e de direita, Haroldo de Campos critica
a sua “grandiloquência vazia” e ressalta a supremacia das propostas artísticas e culturais de Oswald
de Andrade. Segundo o crítico e poeta concreto paulista,
em relação à poesia “pau-brasil”, a diluição veio por volta de 1926, com
o nome de “Verdamarelismo”, depois “Escola da Anta”, sob a responsabi-
lidade principal de Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo e Plínio Salgado.
O “Verdamarelismo” propunha-se combater os resquícios parisienses no “Pau-
-Brasil”, mas, na verdade, através deste expediente diversionista, capeado de
nativismo, procurava escamotear o pesado tributo temático e estilístico que
pagava às inovações oswaldianas, das quais era um sucedâneo edulcorado, em
pauta decorativa e superficial. (CAMPOS, 1978, p. 47-48)
“Triste xenofobia que acabou numa macumba para turista”, é a frase de Oswald de Andrade
para definir o “verdamarelo” (CAMPOS, 1978, p. 49).

Ampliando seus conhecimentos

A emoção estética na arte moderna


(ARANHA, 1985, p. 280-284)

Para muitos de vós a curiosa e sugestiva exposição que gloriosamente inauguramos hoje, é uma
aglomeração de “horrores”. Aquele Gênio supliciado, aquele homem amarelo, aquele carna-
val alucinante, aquela paisagem invertida se não são jogos da fantasia de artistas zombeteiros,
são seguramente desvairadas interpretações da natureza e da vida. Não está terminado o vosso
espanto. Outros “horrores” vos esperam. Daqui a pouco, juntando-se a esta coleção de dispara-
tes, uma poesia liberta, uma música extravagante, mas transcendente, virão revoltar aqueles que
reagem movidos pelas forças do Passado. Para estes retardatários a arte ainda é o Belo.
Nenhum preconceito é mais perturbador à concepção da arte que o da Beleza. Os que ima-
ginam o belo abstrato são sugestionados por convenções forjadoras de entidades e conceitos
estéticos sobre os quais não pode haver uma noção exata e definitiva. Cada um que se interro-
gue a si mesmo e responda que é a beleza? Onde repousa o critério infalível do belo? A arte é
independente deste preconceito. É outra maravilha que não é a beleza. É a realização da nossa
integração no Cosmos pelas emoções derivadas dos nossos sentidos, vagos e indefiníveis sen-
timentos que nos vêm das formas, dos sons, das cores, dos tatos, dos sabores e nos levam à
unidade suprema com o Todo Universal. Por ela sentimos o Universo, que a ciência decompõe
e nos faz somente conhecer pelos seus fenômenos. Por que uma forma, uma linha, um som,
uma cor nos comovem, nos exaltam e transportam ao universal? Eis o mistério da arte, inso-
lúvel em todos os tempos, porque a arte é eterna e o homem é por excelência o animal artista.
O sentimento religioso pode ser transmudado, mas o senso estético permanece inextinguível,
A fase heroica: a Semana de 1922 e os principais manifestos 37

como o Amor, seu irmão imortal. O Universo e seus fragmentos são sempre designados por
metáforas e analogias, que fazem imagens. Ora, esta função intrínseca do espírito humano
mostra como a função estética, que é a de idear e imaginar, é essencial à nossa natureza.
A emoção geradora da arte ou a que esta nos transmite é tanto mais funda, mais universal
quanto mais artista for o homem, seu criador, seu intérprete ou espectador. Cada arte nos deve
comover pelos seus meios diretos de expressão e por eles nos arrebatar ao Infinito.
A pintura nos exaltará, não pela anedota, que por acaso ela procure representar, mas principal-
mente pelos sentimentos vagos e inefáveis que nos vêm da forma e da cor.
Que importa que o homem amarelo ou a paisagem louca, ou o Gênio angustiado não sejam o
que se chama convencionalmente reais? O que nos interessa é a emoção que nos vem daquelas
cores intensas e surpreendentes, daquelas formas estranhas, inspiradoras de imagens e que
nos traduzem o sentimento patético ou satírico do artista. Que nos importa que a música
transcendente que vamos ouvir não seja realizada segunda as fórmulas consagradas? O que
nos interessa é a transfiguração de nós mesmos pela magia do som, que exprimirá a arte do
músico divino. É na essência da arte que está a Arte. É no sentimento vago do Infinito que está
a soberana emoção artística derivada do som, da forma e da cor. Para o artista a natureza é
uma “fuga” perene no Tempo imaginário. Enquanto para os outros a natureza é fixa e eterna,
para ele tudo passa e a Arte é a representação dessa transformação incessante. Transmitir por
ela as vagas emoções absolutas vindas dos sentidos e realizar nesta emoção estética a unidade
com o Todo é a suprema alegria do espírito.
Se a arte é inseparável, se cada um de nós é um artista mesmo rudimentar, porque é um criador
de imagens e formas subjetivas, a Arte nas suas manifestações recebe a influência da cultura
do espírito humano.
Toda a manifestação estética é sempre precedida de um movimento de ideias gerais, de um
impulso filosófico, e a Filosofia se faz Arte para se tornar Vida. Na Antiguidade Clássica o
surto da arquitetura e da escultura se deve não somente ao meio, ao tempo e à raça, mas prin-
cipalmente à cultura matemática, que era exclusiva e determinou a ascendência dessas artes
da linha e do volume. A própria pintura dessas épocas é um acentuado reflexo da escultura.
No Renascimento, em seguida à perquirição analítica da alma humana, que foi a atividade
predominante da Idade Média, o humanismo inspirou a magnífica floração da pintura, que
na figura humana procurou exprimir o mistério das almas. Foi depois da filosofia natural do
século XVII que o movimento panteístico se estendeu à Arte e à Literatura e deu à natureza a
personificação que raia na poesia e na pintura da paisagem. Rodin não teria sido o inovador,
que foi na escultura, se não tivesse havido a precedência da biologia de Lamarck e Darwin.
O homem de Rodin é o antropoide aperfeiçoado.
E eis chegado o grande enigma que é o precisar as origens da sensibilidade na arte moderna.
Este supremo movimento artístico se caracteriza pelo mais livre e fecundo subjetivismo. É uma
resultante do extremado individualismo que vem vindo na vaga do tempo há quase dois séculos
até se espraiar em nossa época, de que é feição avassaladora.
Desde Rousseau o indivíduo é a base da estrutura social. A sociedade é um ato da livre von-
tade humana. E por este conceito se marca a ascendência filosófica de Condillac e da sua escola.
O individualismo freme na Revolução Francesa e mais tarde no romantismo e na Revolução Social
de 1848, mas a sua libertação não é definitiva. Esta só veio quando o darwinismo triunfante desen-
cadeou o espírito humano das suas pretendidas origens divinas e revelou o fundo da natureza e as
suas tramas inexoráveis. O espírito do homem mergulhou neste insondável abismo e procurou a
essência das coisas. O subjetivismo mais livre e desencantado germinou em tudo. [...]
38 Literatura brasileira II

Dicas de estudo
Para novas abordagens acerca de “A fase heroica: a Semana de 1922 e os principais manifes-
tos”, suas obras e seus autores mais representativos, recomendamos:
• assistir ao filme Eternamente Pagu (1988), de Norma Bengel. Com roteiro do poeta
Geraldo Carneiro, o filme narra a vida da escritora, jornalista e militante política Patrícia
Galvão (Carla Camurati) e apresenta temas e questões relacionados ao Modernismo bra-
sileiro. O filme nos mostra as relações afetivas da escritora com Oswald de Andrade, apre-
sentando as principais personagens do contexto da nossa modernidade, como a pintora
Tarsila do Amaral e o poeta Mário de Andrade, entre outros;
• ouvir a música erudita do compositor Heitor Villa-Lobos, participante carioca da Semana
de Arte Moderna. Além da audição de sua música, cujos temas incluem elementos da
alma nacional e do folclore brasileiro, sugerimos o filme Villa-Lobos – uma vida de paixão
(2001). Dirigido por Zelito Viana, e tendo os atores Antonio Fagundes e Marcos Palmeira
nos papéis do músico, em diferentes momentos de sua vida, o longa traz na sua belíssima
trilha sonora “Trenzinho do caipira” e uma mostra de outros clássicos do músico que
influenciou nossa música posterior, popular e erudita. Como exemplo, o compositor Tom
Jobim, um dos criadores da Bossa Nova;
• ler as cartas de Mário de Andrade, um escritor que gostava muito de escrever cartas.
Correspondeu-se com os escritores e com os intelectuais mais representativos do Brasil nas
quatro primeiras décadas do século XX. Muitas dessas cartas estão publicadas, como as que
Mário trocou com Manuel Bandeira, Álvaro Lins, Henriqueta Lisboa, Fernando Sabino e
Murilo Rubião.
Além dessas, sugerimos dois livros: A Lição do Amigo, cartas de Mário de Andrade a Carlos
Drummond de Andrade, anotadas pelo destinatário (Rio de Janeiro: José Olympio, 1982)
e Cartas de Mário de Andrade a Luís da Câmara Cascudo, organizado por Veríssimo de
Melo (Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Villa Rica, 1991).

Atividades
1. Qual a importância histórica e estética, para as Letras nacionais, da fase heroica de nosso
Modernismo?

2. Faça um comentário crítico acerca das duas tendências estéticas e ideológicas dos anos 1920
que nortearam a publicação dos manifestos modernistas.
4
A obra de Manuel Bandeira

Neste capítulo vamos conhecer a obra de um dos autores mais representativos do nosso
Modernismo e de toda a literatura brasileira: Manuel Bandeira (1886-1968). Nascido em Recife
(PE), e tendo vivido a maior parte de sua vida no Rio de Janeiro, o autor de Estrela da Vida Inteira1
atuou em várias frentes.
Bandeira exerceu as mais diferentes formas e gêneros literários e estéticos. Publicou poemas,
crônicas, ensaios, letras de música, críticas, traduções, biografias e até escreveu um Guia de Ouro
Preto. Publicou, além dos seus dez livros de poesia, várias antologias poéticas. Lecionou na antiga
Faculdade de Filosofia do Rio de Janeiro, a então capital federal; participou do debate intelectual
do seu tempo pela constante presença na mídia, seja na Rádio Ministério da Educação, seja nos jor-
nais brasileiros (principalmente do Rio, de Minas, de Pernambuco e de São Paulo), como atesta a
“Cronologia de Manuel Bandeira”, por ele mesmo escrita para a 1ª edição de Estrela da Vida Inteira
(BANDEIRA, 1986, p. 21-34).
O poeta menor2 entrou, em 1940, para a Academia Brasileira de Letras. Chegou a candida-
tar-se para o cargo de deputado federal pelo Partido Socialista, na década de 50, e exerceu, ainda,
o cargo de conselheiro do Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. No século
XXI, Manuel Bandeira vira nome de praça e de galeria no mezanino do Palácio Austregésilo de
Athayde, da Academia Brasileira de Letras, no centro do Rio de Janeiro.
Desse homem múltiplo e moderno, interessa-nos, sobretudo, o artista que exerceu com
maestria a sua produção literária e cultural. Manuel Bandeira foi, principalmente no seu primeiro
livro, Cinza das Horas (1917), influenciado pelas estéticas do Parnasianismo e do Simbolismo. Mas
uma ruptura lenta, definitiva, começa a se concretizar em Carnaval (1919) e inscreve-se irreversí-
vel a partir de Ritmo Dissoluto (1924), o seu terceiro livro. “O esforço de romper com a dicção entre
parnasiana e simbolista de Cinza das Horas foi plenamente logrado enquanto fez de Bandeira um
dos melhores poetas do verso livre em português, e, a partir de Ritmo Dissoluto, talvez o mais feliz
incorporador de motivos e termos prosaicos à literatura brasileira” (BOSI, 1994, p. 361).
“Dono talvez da dicção mais sutil do nosso Modernismo” (CAMPOS, 2004a, p. 116), esse
poeta do verso livre foi se aproximando e, ao mesmo tempo, tecendo fugas em relação aos poetas
modernos. Esse comportamento ambíguo concretiza-se, por exemplo, na postura de Bandeira em
relação a eventos definitivos para o nosso Modernismo, como a Semana de Arte Moderna.

1 Esse volume foi lançado pela editora José Olympio, em 1966, quando o poeta completou 80 anos. Contém, o referido
livro, toda a produção poética do autor pernambucano e os textos que ele traduziu de poetas fundamentais para o cânone
literário ocidental, como Goethe, Rilke e Lorca, entre outros.
2 “Manuel Bandeira chamou-se um dia ‘poeta menor’. Fez por certo uma injustiça a si próprio, mas deu, com essa
notação crítica, mostras de reconhecer as origens psicológicas da sua arte: aquela atitude intimista dos crepuscu-
lares do começo do século que ajudaram a dissolver toda a eloquência pós-romântica, pela prática de um lirismo
confidencial, autoirônico [...]” (BOSI, 1994, p. 360 -361).
40 Literatura brasileira II

4.1 Manuel Bandeira e o Modernismo: aproximações e fugas


Quando aconteceu a Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922, Manuel Bandeira já
era um autor conhecido, com dois livros publicados: Cinza das Horas (1917) e Carnaval (1919).
Embora não tenha participado fisicamente do referido evento que revolucionou a arte brasileira,
Bandeira se fez presente. O poema “Os sapos”, que ironiza a estética parnasiana, publicado em
Carnaval, foi lido na segunda noite da Semana pelo poeta Ronald de Carvalho, acompanhado de
“assobios” e gritos da plateia (BOSI, 1994, p. 338).
As ideias de aproximações e fugas de Manuel Bandeira em relação ao Modernismo podem
ser metaforizadas nessa presença/ausência física que se consolida, na Semana de Arte, pela leitura
do seu texto. Em relação ao Modernismo, o poeta deu o tratamento e a dimensão que um homem
de letras com a cultura e o repertório intelectual dele daria. Ao contrário da postura e do discurso
demolidores e irreverentes de alguns participantes do Modernismo, Bandeira lia o movimento
com respeito e interesse, mas sem deslumbramento. Aliás, podemos dizer que o poeta atuava com
alumbramento, para usarmos o título de um famoso poema seu, termo que é também um dos con-
ceitos principais de sua poética, significando “a inspiração terrena que, pela poesia do corpo, nos
familiariza com a naturalidade da morte” (ARRIGUCCI JR., 1990, p. 135).
Para Bandeira, o Modernismo em sua poesia adveio mais da convivência com os amigos
modernistas (principalmente com Mário de Andrade e Ribeiro Couto) do que como um programa
sistemático de novidades, criação e ruptura. Apesar disso, ele confessa a importância desse movi-
mento estético para a sua obra, como veremos a seguir no Itinerário de Pasárgada (1954).
O autor de “A versificação em língua portuguesa” nunca deixou de ser um profundo conhece-
dor da tradição lírica europeia, e sua poesia manteve sempre resíduos de sua atitude estética originá-
ria penumbrista, requintada e humilde. Para ele, a conquista do verso livre foi uma luta com vários
capítulos, não um modismo absorvido de modo inconsequente. “Somente no terceiro livro, O Ritmo
Dissoluto (1924), Bandeira começa a sair do circuito doloroso da subjetividade e a abandonar com
segurança o cárcere arredondado da poesia rimada e metrificada. O poeta está agora com 38 anos.
[...] A aceitação do mundo manifesta-se em boa parte dos versos” (ESPÍNOLA, 2004, p. 188).
No plano contextual, essa aceitação e lenta incorporação de diferentes modos de construção
do verso, que não os seus habituais, pode ser mensurada, por exemplo, no diálogo que o poeta es-
tabelecerá, nos anos 60, com os poetas concretos de São Paulo. Um deles, o crítico e poeta Haroldo
de Campos, vai destacar em Bandeira “o gosto pelo despojamento vocabular” (CAMPOS, 2004a,
p. 115). Estudaremos, a seguir, um pouco dessa poesia despojada, que acata de forma livre e alum-
brada a materialidade do mundo como matéria de sua escrita.

4.2 A poesia do humilde cotidiano e do alumbramento


O verso livre é, como sabemos, uma das maiores conquistas da poesia moderna. No verso
livre, “a unidade de medida deixa de ser a sílaba, e passa a basear-se na combinação das entoações
e das pausas” (PROENÇA FILHO, 1978, p. 263). Para o poeta e ensaísta Mário de Andrade, a
conquista do verso livre significa “aquisição de ritmos pessoais” (ANDRADE, 1972a, p. 28). Em
Bandeira, esse ritmo é perceptível nos versos do poema a seguir (BANDEIRA, 1986, p. 111):
A obra de Manuel Bandeira 41

Andorinha
Andorinha lá fora está dizendo:
- “passei o dia à toa, à toa!”
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste! Passeia a vida
à toa, à toa...

Segundo Mário, no contexto estético dos anos 1930, Bandeira é o poeta “que mais prescinde
do som”. De ouvido atento a esse som, o poeta paulista lê nos versos modernos de Bandeira uma
áspera rítmica:
Manuel Bandeira lembra esses amantes bem casados que, depois de tanta con-
vivência, acabam se parecendo fisicamente um com o outro. Assim a rítmica
dele acabou se parecendo com o físico de Manuel Bandeira. Rara uma doçura
franca de movimento. Ritmo todo de ângulos, incisivo, em versos espetados,
entradas bruscas, sentimento em lascas, gestos quebrados, nenhuma ondulação.
(ANDRADE, 1972a, p. 28-29)

Na “Introdução” que escreve para a edição de Estrela da Vida Inteira (poesias reunidas e
poemas traduzidos), em parceira com Gilda de Mello e Souza, Antonio Candido refere-se “aos dois
polos da Arte, isto é, o que adere estritamente ao real e o que procura subvertê-lo por meio de uma
deformação voluntária” (CANDIDO; SOUZA, 1986, p. 10). Segundo o crítico, a leitura da poesia
de Bandeira engloba esses “dois polos”, como “expressões válidas da sua personalidade literária”. No
polo em que a perspectiva de aderir “ao real” se torna mais aparente, podemos destacar o seguinte
poema do livro Belo Belo (BANDEIRA, 1986, p. 179):

O bicho
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,


Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,


Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Na busca da fusão complementar dos opostos, partimos agora para um exemplo em que o
“polo” contrário – ou seja, aquele no qual, segundo Antonio Candido, o poeta “procura” subverter
o real “por meio de uma deformação voluntária” – se entremostra melhor. Nesse “polo” estariam
os textos que mais se voltam para os aspectos subjetivos e imaginários da condição humana, em
sintonia com as esferas do lirismo, do erotismo, dos afetos. Ao referir-se a essas esferas na poesia de
Bandeira, diz Candido: “O seu lirismo amoroso engloba o jogo erótico mais direto e, simultanea-
mente, as fugas mais intelectualizadas da louvação” (CANDIDO; SOUZA, 1986, p. 11). Leiamos o
poema a seguir, do livro Belo Belo (BANDEIRA, 1986, p. 185):
42 Literatura brasileira II

Arte de amar
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

A união desses dois polos na poesia de Manuel Bandeira é assim lida: “Vida e morte se
opõem para se unirem numa unidade dinâmica, por entre o céu e o inferno da existência de todo
dia” (CANDIDO; SOUZA, 1986, p. 11). Oscilando entre esses dois “polos”, Bandeira cria uma poé-
tica na qual o cotidiano e seus elementos mais simples – seja uma maçã no quarto de dormir ou o
personagem da feira livre na notícia do jornal – se fazem presentes, sem recorrer à grandiloquência
de linguagem nem à rigidez das formas.
Da sua morada simples no morro do Curvelo, no Rio de Janeiro, o poeta lê o elemento humil-
de do cotidiano que começa a adentrar a sua poesia moderna. Para Bandeira, “o mais profundo é o
mais cotidiano, com a intimidade capaz de captar e viver as sutilezas do meio em seus costumes e
sentimentos artísticos, em suas influências estrangeiras incorporadas [...]” (GARDEL, 1996, p. 41).
“Tomando um traço distintivo da forma de expressão madura do poeta – a simplicidade natural –,
ele investiga as relações desse traço estilístico com a atitude de humildade diante da vida e da poe-
sia, tentando descobrir, pela contextualização, suas determinações históricas, seus vínculos com a
tradição literária” [...] (ARRIGUCCI JR., 1990, p. 15).

4.3 O poeta cronista


Segundo escreveu em sua cronologia (BANDEIRA, 1986, p. 21-34), a partir de 1925 Manuel
Bandeira começa a publicar seus artigos no jornal A Noite. De 1928 a 1930, escreve crônicas sema-
nais para o Diário Nacional, de São Paulo. Escreve, depois, crônicas para A Província, de Recife, e
para O Jornal, do Rio de Janeiro. Das crônicas produzidas para esses três últimos jornais, o autor
recolhe os textos que a editora Civilização Brasileira lançaria, em 1937, com o título de Crônicas
da Província do Brasil – livro que informa, de modo esparso, a respeito do encontro entre Manuel
Bandeira e o compositor Sinhô, e que foi escrito durante o tempo em que o poeta pernambucano
morou na ladeira do Curvelo (de 1920 a 1933), em Santa Tereza, no Rio de Janeiro (GARDEL,
1996, p. 56).
Reeditado em 2006, o volume traz, nessa segunda edição, um posfácio de Júlio Castañon
Guimarães, que assim se refere a essas crônicas: “a crônica de Bandeira avança pelo campo do es-
tudo, da crítica literária, da história [...]” (GUIMARÃES, 2006, p. 255). Em sintonia com a nossa
tradição histórica e literária, ele escreve: “o título permite ver pelo menos uma reminiscência das
antigas crônicas quinhentistas portuguesas” (GUIMARÃES, 2006, p. 258).
A obra de Manuel Bandeira 43

E, de fato, um dos núcleos temáticos das crônicas de Manuel Bandeira dialoga, direta ou
indiretamente, com o passado do Brasil Colônia, como as festas religiosas, o patrimônio artístico
nacional, as cidades históricas mineiras, visto sob perspectiva moderna. Referindo-se à primeira
edição do livro Crônicas da Província do Brasil, de 1937, diz Otávio Tarquínio de Sousa (apud
GUIMARÃES, 2006, p. 253): “A primeira qualidade deste livro, que constitui até certo ponto
uma surpresa e lhe dá o maior encanto – é a sua unidade. Coleção de crônicas, estudos e peque-
nos ensaios, não tem nunca o leitor a impressão de colcha de retalhos. [...] Tudo se concilia, tudo
se ajusta [...]”.
No mesmo andamento da leitura de Tarquínio de Souza, “Stefan Baciu procurou agrupá-las
em ‘cinco conjuntos’: sobre costumes e paisagens locais; crítica de literatura, artes plásticas e mú-
sica; memórias; de viagem; e fatos diversos” (GUIMARÃES, 2006, p. 253). Além desses agrupa-
mentos temáticos, é interessante ressaltarmos a unidade de procedimentos estéticos acionada pelo
poeta na construção de suas crônicas. Bandeira incorpora elementos da poesia na escrita do texto
para jornal. Opera, com isso, uma ruptura de gênero, como pode ser lida no texto “Romance do
beco”. Essa crônica aponta, no título, para outro gênero e traz em seu corpo o “Poema do beco” do
livro Estrela da Manhã (BANDEIRA, 1986, p. 121);

Poema do beco
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
— O que eu vejo é o beco.

A paisagem da Glória, assim como outros bairros do Rio de Janeiro, é um dos espaços ca-
riocas mais presentes na escrita de Bandeira. Na crônica “A festa de N. S. da Glória do Oiteiro”, ele
confirma a sua relação memorial com o referido bairro e assinala temas relacionados às questões
da nacionalidade. Diz o autor (BANDEIRA apud GUIMARÃES, 2006, p. 80): “Lembro-me bem
do largo da Glória e da praia da Lapa da minha meninice: um desenho de Debret. Desapareceu
o casarão do mercado que servia de caserna e despertou o interesse público quando abrigou por
algum tempo as jagunças e os jaguncinhos trazidos de Canudos3”.
Na leitura dessas crônicas, podemos entrever o diálogo que o autor promove entre o Rio de
Janeiro e os demais centros culturais do país.
É como se Bandeira, ao enviar suas crônicas sobre o Rio para os jornais dos
estados que deram origem aos principais regionalismos, estivesse querendo
mostrar e revelar ao Brasil a verdadeira face de Dionísio surgida da alma do Rio
de Janeiro de todos nós: com um pé na África, com outro nas formas estéticas e
modos de relacionamento provincianos, com os braços abertos para o mundo,
com a cabeça voltada para o Brasil e com um rebolado de samba amaxixado no
andar. (GARDEL, 1996, p. 46)

3 Canudos é um município do sertão da Bahia onde aconteceu, em 1897, o massacre de uma população estimada entre
10 e 25 mil habitantes. Essa guerra se deu entre as tropas republicanas, enviadas do Rio de Janeiro, e os rebeldes nordes-
tinos, liderados pelo beato Antonio Conselheiro. Como jornalista de O Estado de S. Paulo, o escritor Euclides da Cunha foi
testemunha desse triste episódio da nossa história, e com base nas reportagens que publicou na época, escreveu depois
um dos mais belos e pungentes livros de nossa literatura: Os Sertões (1902).
44 Literatura brasileira II

4.4 O letrista da canção


No seu livro Itinerário de Pasárgada, Manuel Bandeira narra as suas relações com a música
da seguinte forma (BANDEIRA, 1977, p. 72-73):
[...] não tenho neste instante elementos para fazer uma lista completa de todos
os meus poemas que foram musicados [...]. De três gêneros foi a minha colabo-
ração com os músicos: ou estes escolheram livremente na minha obra os poemas
que desejam musicar; ou me forneciam melodias para que eu escrevesse o texto;
ou me pediram letra especial para música que desejavam compor. Deste último
gênero são os poemas “Cântico de Natal” e “Jurupari”, que escrevi a pedido de
Villa-Lobos; “Canção e letra para uma valsa romântica”, a pedido de Radamés
Gnatali; “Desafio” e “Alegrias de Nossa Senhora”, a pedido de Mignone.

Pelo músico Francisco Mignone, o poeta Manuel Bandeira teve outros títulos musicados,
como: “Dentro da noite”, “D. Janaína”, “O menino doente” e “Pousa a mão na minha testa”. Além
desses autores citados no Itinerário..., destacam-se como parceiros do poeta os seguintes músi-
cos: Camargo Guarnieri, Ari Barroso, José Siqueira, Lorenzo Fernandez, Vieira Brandão e Helza
Cameu, dentre outros.
Merece ser ressaltado o interesse que Bandeira sempre demonstrou pela música popular co-
mercial de massas, cujo representante máximo nos anos 1920, na capital do país, foi o compositor
Sinhô, conhecido à época como o nosso rei do samba. Ao utilizar-se de trechos de letras de canções
oriundas desse universo popular em seus poemas, sob o procedimento técnico modernista da co-
lagem, sem qualquer preconceito, Bandeira vai de encontro à proposta do nacionalismo musical
de câmara modernista, que preconizava apenas o uso do popular de origem folclórica, anônima e
não comercial, para ser incorporado pela linguagem erudita dos intelectuais modernistas em seus
projetos de criação de uma arte moderna brasileira.
É bom frisar que Bandeira foi o poeta mais musicado por esse mesmo nacionalismo musical
modernista, afirmação que soa, aparentemente, como um paradoxo. É que o poeta pernambucano
“mal-carioquizado”, em suas próprias palavras, dizia que não havia nada no mundo de que gostasse
mais do que de música. Fato que só acentua a sua dialética e autonomia diante do Modernismo
mais ortodoxo, as aproximações e fugas às quais nos referimos anteriormente, pois demonstra o
quanto as ricas possibilidades latentes no princípio poético da linguagem de Bandeira não pode-
riam caber em dogmas nacionalistas modernistas.
Como letrista, Bandeira mantém os elementos básicos de sua estética, acentuando a leveza
de sua dicção, que incorpora o coloquial ao literário sem perder em densidade significativa. O le-
trista da canção aprofunda alguns procedimentos estéticos comuns ao poeta, como o uso artístico
e criativo de chavões surrados; a reciclagem das frases feitas e lugares-comuns que voltam, depois
de filtrados por sua poesia, a circular na linguagem cotidiana, refrescados com novos sentidos.

4.5 O crítico de arte e literatura


Além de produzir o exercício crítico em suas crônicas e nos ensaios publicados na mídia,
Manuel Bandeira organizou diversas antologias, como a famosa Antologia dos Poetas Brasileiros
A obra de Manuel Bandeira 45

Bissextos Contemporâneos (1946). O poeta que biografou vários dos nossos poetas românticos es-
creveu também textos fundamentais para a compreensão da arte brasileira e, principalmente, da
nossa poesia (BANDEIRA, 1986, p. 21-34).
Dentre as obras que se voltam para esse universo poético, destacam-se Autoria das Cartas
Chilenas, Apresentação da Poesia Brasileira e “A versificação em língua portuguesa”. Neste último
texto, escrito para a Enciclopédia Delta Larousse e publicado em 1956, Manuel Bandeira cita o poeta
francês Louis Aragon, mas tem por base as obras de autores brasileiros e portugueses, de diferentes
contextos e estilos literários. Além de sua própria poética, Bandeira cita Camões, Sá de Miranda,
Bocage, Gonçalves Dias, Castro Alves, Alberto de Oliveira, Olavo Bilac, Cassiano Ricardo, Murilo
Mendes e Jorge de Lima, dentre outros (BANDEIRA, 1960, p. 3.239).
Além dos dicionários de rimas, esse estudo é elaborado com base em três textos pioneiros: o
Tratado de Versificação Portuguesa, de Antonio Feliciano de Castilho, estudo publicado “para uso
das escolas” em Lisboa, em 1858; o Tratado de Versificação, de Olavo Bilac e Guimaraens Passos,
publicado em 1905; e A Arte de Fazer Versos, de Osório Duque-Estrada – o poeta e crítico autor do
Hino Nacional Brasileiro (BANDEIRA, 1960, p. 3.249).
No desenvolvimento dos núcleos temáticos concernentes à versificação, o poeta do Carnaval
destaca os seguintes temas: “O verso e seus apoios rítmicos. – A rima. – A aliteração. – O encadea-
mento. – O paralelismo. – O acróstico. – O número fixo de sílabas. – A estrofação. – Os poemas de
forma fixa. – O verso livre” (BANDEIRA, 1960, p. 3.239).
Ao referir-se a alguns tipos de versos bastante utilizados por ele próprio na sua poética mo-
derna, diz Bandeira: “Os versos que não rimam são chamados brancos ou soltos; os que estão fora
da medida, quadrados”. Mas ele só cita um poema inteiro seu – “Chama e fumo”4 – quando se refere
à “vilanela” (BANDEIRA, 1960, p. 3.248):
A vilanela, forma francesa, é uma variedade da composição em tercetos.
Constrói-se sobre duas rimas. O primeiro e o terceiro versos são, alternadamen-
te, o último verso dos demais tercetos, e ambos juntos os dois últimos versos
do quarteto final. Como se pode ver em “Chama e fumo”, de Manuel Bandeira:

Amor – chama, e, depois, fumaça...


Medita no que vais fazer:
O fumo vem, a chama passa...

Gozo cruel, ventura escassa,


Dono do meu e do teu ser,
Amor – chama, e, depois, fumaça...

Tanto ele queima! E, por desgraça,


Queimado o que melhor houver,
O fumo vem, a chama passa...

4 O referido poema foi escrito em Teresópolis, em 1911, e publicado no primeiro livro do poeta, A Cinza das Horas, de 1917,
cuja edição de 200 exemplares foi “custeada pelo autor” (BANDEIRA, 1986, p. 9-10).
46 Literatura brasileira II

Paixão puríssima ou devassa,


Triste ou feliz, pena ou prazer,
Amor – chama, e, depois, fumaça...

A cada par que a aurora enlaça,


Como é pungente o entardecer!
O fumo vem, a chama passa...

Antes, todo ele é gosto e graça.


Amor, fogueira linda a arder!
Amor – chama, e, depois, fumaça...

Porquanto, mal se satisfaça


(Como te poderei dizer?...),
O fumo vem, a chama passa...

A chama queima. O fumo embaça.


Tão triste que é! Mas... tem de ser...
Amor?... – chama, e, depois, fumaça:
O fumo vem, a chama passa...

4.6 Itinerário de Pasárgada


Escrito após uma proposta dos escritores Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos,
Itinerário de Pasárgada foi publicado em 1954. O livro é uma biografia intelectual de Manuel
Bandeira, na qual ele narra a sua formação de homem de letras e a produção da sua literatura no
Brasil do século XX.
Na construção dessa poética moderna, Bandeira nos apresenta as inúmeras influências e
trocas criativas que vivenciou para configurar o estilo de sua poesia. Vamos nos deter nos diá-
logos inventivos e existenciais que estabeleceu com um de seus maiores interlocutores, Mário de
Andrade. A seguir, o autor nos narra suas impressões acerca do autor de Pauliceia Desvairada, e a
marca dele em sua obra (BANDEIRA, 1977, p. 62):
Não sei que impressão teria recebido da Pauliceia, se a houvesse lido em vez de
a ouvir da boca do poeta. Mário dizia admiravelmente os seus poemas, como
que indiretamente os explicava, em suma convencia. Apesar de certas rebar-
bas que sempre me feriram na sua poesia, senti de pronto a força do poeta e
em muita coisa que escrevi depois reconhecia a marca deixada por ele no meu
modo de sentir e exprimir a poesia. Foi, me parece, a última grande influência
que recebi [...]. Grande influência, repito, e de que eu tinha tão clara consciên-
cia, que depois de escrever certos poemas – “Não sei dançar”, por exemplo,
“Mulheres”, “Pensão familiar” – estive quase a inutilizá-los [...].
A obra de Manuel Bandeira 47

Bandeira escreve ainda que não destruíra os seus poemas porque o próprio Mário o “con-
venceu” daquela “ilusão”. E continua nessa escrita em torno do primeiro encontro dos dois poetas
e da narrativa dessa amizade que muito contribuiu para a construção da nossa modernidade lite-
rária. Diz o poeta (BANDEIRA, 1977, p. 63): “O encontro em casa de Ronald de Carvalho prolon-
gou-se numa amizade que se fortaleceu através de assídua correspondência. Durante anos nenhum
dos dois não escrevia poema que não submetesse à crítica do outro, e creio que esta dupla corrente
de juízos muito serviu à depuração de nossos versos”.
Acerca da sua ausência na Semana de Arte Moderna de São Paulo, evento que funda o
Modernismo brasileiro em 1922, e do qual Mário é um dos seus expoentes, Bandeira é direto,
confirmando o que falamos anteriormente a respeito de sua não ortodoxia modernista, embora
confesse dívida ao movimento (BANDEIRA, 1977, p. 65): “Também não quisemos, Ribeiro Couto
e eu, ir a São Paulo por ocasião da Semana de Arte Moderna. Nunca atacamos publicamente os
mestres parnasianos e simbolistas, nunca repudiamos o soneto nem, de um modo geral, os versos
metrificados e rimados. Pouco me deve o movimento; o que eu devo a ele é enorme”.

Ampliando seus conhecimentos

Discurso do Sr. Manuel Bandeira5


(BANDEIRA, 2007)

Senhores,
A comoção com que neste momento vos agradeço a honra de me ver admitido à Casa de
Machado de Assis não se inspira somente na simpatia daqueles amigos que a meu favor sou-
beram inclinar os vossos espíritos. Inspira-se também na esfera das sombras benignas, a cujo
calor de imortalidade amadurece a vocação literária.
[...]
Estimulava-me a recordação do gênio tutelar desta Academia, o qual, entre outras advertên-
cias de sutil entendimento em matéria de poesia, chamara a minha atenção para a boa quali-
dade das rimas “ligadas ao assunto”. Estimulava-me a lição, no Externato Pedro II, de alguns
mestres que foram vossos confrades e dos mais eminentes: Silva Ramos, que me iniciou em
versar como matéria viva e não antigualha didática a linguagem dos velhos clássicos por-
tugueses; José Veríssimo, que me abriu os olhos para ver em nossos poetas românticos os
de mais rico e sincero sentimento que já tivemos; Ramiz Galvão, meu primeiro professor de
grego; João Ribeiro, com quem posso dizer que aprendi a discernir o verdadeiro conceito
da tradição, que jamais foi incompatível com as aventuras fascinantes do espírito. O afeto
presente dos amigos vivos, a saudade dos mestres desaparecidos são motivos que nos levam
lisonjeiramente à indulgência para conosco. Só depois de eleitos começamos a sofrer o peso da
responsabilidade que nos incumbe. Só então sentimos em cheio que esta é verdadeiramente a

5 Trecho inicial do discurso de posse do poeta na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, em 1940.
48 Literatura brasileira II

Casa de Machado de Assis, simbolizado no nome do autor de Brás Cubas o que ela representa
de tradição gloriosa para o nosso povo. Não se trata de uma conclusão a que cheguemos por
avaliação pessoal: ela se impõe aos eleitos diante das manifestações de regozijo e carinho com
que os envolvem desde logo os seus parentes, os seus amigos, alguns perdidos de vista desde
a infância, simples relações e numerosas simpatias que eles desconheciam. A opinião pública
como que sente obscuramente o papel que a esta Casa cumpre em nossa vida intelectual.
A quem entra nesta Companhia não pode tal movimento de confiança deixar de influir as
mais severas razões de modéstia. A essa responsabilidade de ordem geral se e acrescenta outra:
a de pronunciar o elogio de um homem – o meu patrono –, a cuja nobreza de inteligência e de
coração não se fez ainda toda a justiça.
[...]

Dicas de estudo
• MANUEL BANDEIRA: o habitante de Pasárgada. Direção de Fernando Sabino e David
Neves. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 1959. 9 min. Trata-se de uma adaptação do filme
O Poeta do Castelo, com argumento e direção de Joaquim Pedro de Andrade. Em preto e
branco, a belíssima obra retrata o cotidiano poético e solitário do autor, com imagens do
seu apartamento e do centro do Rio de Janeiro em 1959.
• OLIVEIRA, Juca de. Manuel Bandeira por Juca de Oliveira. Rio de Janeiro: Luz da
Cidade, 2004. 1 CD-ROM. Lançado pelo selo Luzes da Cidade, a obra contém 36 poemas
do autor pernambucano, destacando-se textos clássicos como “Tereza”, “Irene no céu”,
“Pneumotórax” e “Evocação do Recife”. O ator Paulo Autran e a atriz Cacilda Becker tam-
bém gravaram poemas de Manuel Bandeira. Uma nova edição de 50 poemas escolhidos
pelo autor saiu em 2008 pela editora Cosac Naify, incluindo CD com textos na voz do
próprio poeta;
• BANDEIRA, Manoel. Crônicas inéditas I. Organização de Júlio Castañon Guimarães. São
Paulo: Cosac Naify, 2008. O livro possui organização, posfácio e notas de Júlio Castañon
Guimarães e foi lançado em 2008, pela editora Cosac Naify. Como o próprio título anun-
cia, tratam-se de textos inéditos, que foram publicados na imprensa brasileira entre 1920
e 1931 e lançados 40 anos após a morte do autor. Dentre os temas mais abordados nessas
crônicas repletas de poesia, destacam-se o estilo moderno da vida carioca nos anos 1920,
o cinema falado, o primeiro arranha-céu do Rio, os personagens pitorescos da cidade e as
artes, principalmente a música e a poesia.

Atividades
1. Apesar de ser um poeta de destaque no contexto na Semana de Arte Moderna de São Paulo,
Manuel Bandeira não participou do referido evento. Por quê?

2. Comente acerca da poética musical de Manuel Bandeira.


5
A obra de Mário de Andrade

A obra de Mário de Andrade (1893-1945) é uma das mais importantes e inovadoras do nos-
so Modernismo. Nascido em São Paulo, onde viveu a maior parte de sua vida, o autor de Pauliceia
Desvairada morou no Rio de Janeiro e fez várias viagens pelo país, na busca de entender a realidade
nacional e dialogar com a cultura brasileira.
Neste capítulo, vamos conhecer algumas das faces mais criativas do artista múltiplo e ino-
vador que é Mário de Andrade. Conheceremos o poeta moderno e o ficcionista autor de clássicos
narrativos como Amar, Verbo Intransitivo e Macunaíma. Estudaremos o teórico da música moder-
nista de câmara, o turista aprendiz do Brasil e suas viagens etnográficas, como também o missivista missivista: pessoa
que escreve cartas.
compulsivo e o homem público preocupado com a arte e a educação do seu país.

5.1 O poeta Mário de Andrade


Eu Sou Trezentos...
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras,


E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,


Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.

(ANDRADE apud LAFETÁ, 1982, p. 17)

Esse poema, “Eu sou trezentos”, faz parte do livro Remate de Males1, publicado por Mário
de Andrade em 1930. Segundo o crítico João Luis Lafetá (LAFETÁ, 1982, p. 17), o volume reúne
textos que foram
[...] escritos durante os Anos 20, em diversos estilos: desde o vanguardismo dos
primeiros poemas até a lírica equilibrada e contida que ele fazia então, passando
pela fase do nacionalismo literário. “Eu sou trezentos” alude a essa diversidade

1 Esse título remete a um encontro do poeta com um senhor nortista, na viagem feita à região Norte, em 1927, conforme
ele registra em seu livro O Turista Aprendiz: “Perguntei aonde ele ia. – Pra Remate de Males, sim senhor” (ANDRADE, 2002,
p. 93).
50 Literatura brasileira II

de linguagens e modos de ser, próprios de quem já escrevera contos, roman-


ces e ensaios sobre vários assuntos. Mas pode ser lido também como símbolo
da diversidade da cultura brasileira (amálgama de culturas de procedências
variadas), e ainda como símbolo da personalidade fragmentada e dividida do
homem contemporâneo.

Publicado após os quatro primeiros livros de poesia de Mário de Andrade (Há uma Gota de
Sangue em Cada Poema, Pauliceia Desvairada, Losango Caqui e Clã do Jabuti), o livro Remate de Males
contém “composições de intenso lirismo, que mostram a habilidade técnica a que o autor já chega-
ra àquela época, eliminando qualquer gratuidade que houvesse nos seus primeiros versos” (LAFETÁ,
1982, p. 18).
Essa gratuidade pode ser aferida no primeiro livro do poeta paulista2, ainda preso, no ge-
ral, a resquícios da estética parnasiana e simbolista-decadentista. A partir de Pauliceia Desvairada
(1922) – o seu segundo volume de poemas e o primeiro livro de nossa poesia moderna –, Mário de
Andrade conquista o verso livre3 e, sob a influência das vanguardas europeias, cria uma maneira
inovadora de ler a cidade que o cerca: “Essa nova maneira de ser desvairada que a cidade assume
traduz uma sintaxe feita de ritmos da palavra e do pensamento, da música, dos ruídos da cidade,
da sua plasticidade. Isso imprime na sua superfície fronteiras dançantes” (SOUSA, 1995, p. 162).
Para que o leitor tenha a dimensão de tais fronteiras dançantes e, também, das associações
livres de imagens e de sons criadas pelo poeta, leremos a seguir o poema “Inspiração”, cuja epígrafe
estabelece diálogo com a tradição literária portuguesa, por meio da citação de Fr. Luís de Sousa4,
em pleno processo de construção de nossa modernidade (ANDRADE apud LAFETÁ, 1982, p. 14):

Inspiração

Onde até na força do verão havia


tempestades de ventos e frios de
crudelíssimo inverno.

Fr. Luís de Sousa

São Paulo! Comoção de minha vida...


Os meus amores são flores feitas de original...
Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro...
Luz e bruma... Forno e inverno morno...
Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...
Perfumes de Paris... Arys!
Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!...

São Paulo! Comoção de minha vida...


Galicismo a berrar nos desertos da América!

2 Há uma Gota de Sangue em Cada Poema, publicado em 1917.


3 Para o poeta e ensaísta Mário de Andrade, a conquista do verso livre significa trocar a métrica tradicional da poesia pela
“aquisição de ritmos pessoais” (ANDRADE, 1972b, p. 28).
4 Sacerdote católico e escritor português.
A obra de Mário de Andrade 51

5.2 O ficcionista
Além dos poemas, dos diários, das cartas, das crônicas e dos contos, Mário de Andrade é
um autor cuja obra de ficção apresenta as formas do romance e da rapsódia5. Como contista, ele
publicou dois livros: Primeiro Andar (1926) e Belazarte (1934), além dos Contos Novos, que apare-
cem nas suas Obras Completas. Como romancista, destaca-se o seu livro Amar, Verbo Intransitivo
(1927), no qual o autor faz “o uso de conceitos psicanalíticos” (LAFETÁ, 1982, p. 34) e incorpo-
ra elementos da linguagem expressionista. O livro possui um enredo “muito simples” (LAFETÁ,
1982, p. 34): “Souza Costa, rico industrial e fazendeiro paulistano, contrata Elza [...] uma professo-
ra de alemão de 35 anos, com a finalidade aparente de ensinar alemão aos filhos, mas na verdade
com a missão de seduzir e iniciar sexualmente o adolescente Carlos, filho mais velho da família”.
Ao narrar as aulas que a professora profere para o seu aluno, Mário cria o clima de desvio e
sedução que acontece entre ambos, trazendo para o seu romance as ideias que a psicanálise acabara
de apresentar, por meio da obra de Freud. Na leitura que faz do romance, Lafetá aborda, principal-
mente, a culpa que atinge de modo sutil os personagens (LAFETÁ, 1982, p. 35):
Ocorre aqui um “esquecimento” semelhante ao que Freud chama de ato falho,
isto é, algo de reprimido que vem à tona sob outra forma, e isso de maneira
inconsciente para a pessoa que o comete. No caso, o ato falho consiste em que o
sentimento de culpa por estarem fazendo algo “às escondidas” desperta o desejo
de revelar o “segredo” (para livrar-se da culpa) [...].
Na cena a seguir, vemos como um clima de sensualidade e afeto se instala entre a professora
e o aluno adolescente (ANDRADE apud LAFETÁ, 1982, p. 37): “Botou a cara gostosa no colo dela,
aonde nascem os aromas que atarantam. Lhe beijou as roupas. Depois sentiu um medo grande
dela, vergonha desmedida, se refugiou dela nela. Pra se esconder. Fräulein sufocou-o contra o pei-
to, com os seus braços enrolados”.

5.3 Macunaíma
Em 1942, Mário de Andrade profere uma conferência – O Movimento Modernista –, no
Rio de Janeiro, iniciada da seguinte forma: “Manifestado especialmente pela arte, mas manchando
também com violência os costumes sociais e políticos, o movimento modernista foi o prenuncia-
dor, o preparador e por muitas partes o criador de um estado de espírito nacional” (ANDRADE,
1972c, p. 231).
E é justamente o desejo de criação de um estado de espírito nacional o ideário que move e
permeia toda a obra de Mário de Andrade, nas mais diferentes formas e gêneros estéticos a que
se dedicou. Sob essa perspectiva, destaca-se Macunaíma, texto no qual a manifestação e a síntese
desse “estado de espírito nacional” parece surgir com mais vigor, a ponto de ser considerado “sua
obra-prima, uma narrativa de estrutura inovadora, ao nível do enredo, da caracterização das per-
sonagens e do estilo” (LAFETÁ, 1982, p. 43).

5 Justaposição e síntese criativa de fragmentos de cantos épicos, tradicionais e populares de um país. O termo rapsódia
é oriundo da linguagem da música, adaptado aqui ao universo literário com o intuito de abarcar a exuberância criativa
da narrativa marioandradina, que não se restringe apenas a um gênero e a um estilo definido, e sim ao entrecruzamento,
paródico e criativo, de vários.
52 Literatura brasileira II

Lançado em 1928, um pouco depois da publicação dos contos de Primeiro Andar (1926),
do romance Amar, Verbo Intransitivo (1927), e após a viagem que o poeta fez à região Nordeste do
Brasil em 1927, o livro Macunaíma é uma rapsódia. A narrativa é centrada na vida do “herói sem
nenhum caráter”, que vive com a mãe e os irmãos “às margens do mítico rio Uraricoera” (LAFETÁ,
1982, p. 43). Em tom irreverente, fazendo colagens e paródias de lendas, mitos, textos parnasianos,
canções folclóricas e populares, o narrador nos conta, de modo mágico-poético, sem encadeamen-
to linear discursivo, a saga cheia de peripécia de Macunaíma, que acaba, mais tarde, indo para São
Paulo atrás de um amuleto encantado, para depois, por fim, voltar para o interior, morrer e virar
constelação... Juntando, assim, numa mesma ambiência mítica e crítica, a riqueza cultural híbrida
dos universos urbano, rural e selvagem do Brasil.
Segundo o crítico Haroldo de Campos, o livro “foi escrito de um jato: em seis dias” (CAMPOS,
2004e, p. 167), embora tenha havido mais três redações posteriores. Para a obra, Mário escreveu
dois prefácios, mas não publicou nenhum. Em ensaio que serviu de prefácio às edições espanhola e
francesa do livro, o poeta das Galáxias estuda “a imaginação estrutural” e cita o prefácio inédito de
1926, escrito pelo próprio autor (ANDRADE apud CAMPOS, 2004e, p. 171-172):
O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação
em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos
brasileiros. [...] Pois quando matutava nessas coisas topei com Macunaíma no
alemão de Koch-Grünberg. E Macunaíma é um herói surpreendentemente sem
caráter. (Gozei) Vivi de perto o ciclo das façanhas dele [...] Este livro afinal não
passa de uma antologia do folclore brasileiro.

Campos nos ensina que, para escrever o seu Macunaíma, Mário de Andrade consultou o
segundo volume da obra do naturalista alemão Koch-Grünberg, que “abrange mitos cosmogôni-
cos e lendas de heróis, contos, fábulas de animais e narrações humorísticas” (CAMPOS, 2004e, p.
172) do mundo indígena latino-americano. Ainda segundo Campos, ao trabalhar a linguagem da
prosa, o poeta brasileiro criou uma “fala nova”, cuja oralidade parece refletir o caráter e o discurso
do povo brasileiro. Diz o crítico (CAMPOS, 2004e, p. 179):
Uma das riquezas de Macunaíma é justamente essa “fala nova” (“impura” se-
gundo os padrões castiços de Portugal), feita de um amálgama de todos os
regionalismos, mescla dos modos de dizer dos mais diferentes rincões do país,
com incrustações de indigenismos e africanismos, atravessada por ritmos repe-
titivos de poesia popular e desdobrada em efeitos de sátira [...].

5.4 A música modernista de câmara e a canção popular


Mário de Andrade foi, ainda, compositor, musicista, professor de piano e teórico da música bra-
sileira. Sem dúvida alguma, uma personalidade riquíssima, empenhando todo o seu esforço pessoal
na tarefa de projetar para o Brasil uma alma nacional moderna, fazendo jus ao seu poema que citamos
anteriormente: “Eu sou trezentos”. Na condição de teórico musical, Mário foi o mentor da postura esté-
tica e ideológica dos principais compositores eruditos da música modernista de câmara6 que, como os

6 A música de câmara clássica se distingue da música orquestral ou coral pelo seu caráter intimista, executada por um
conjunto com pequeno número de componentes. A formação mais conhecida e tradicional de música de câmara é o
quarteto de cordas.
A obra de Mário de Andrade 53

literatos, buscavam conceber uma arte autenticamente brasileira, oriunda de fonte popular. No seu
livro Ensaio Sobre a Música Brasileira, o poeta paulista desenvolve as principais linhas de pensa-
mento que serviram de base teórica para a produção erudita de câmara modernista.
E o que Mário de Andrade indica como programa para o nacionalismo musical? Que os
compositores devem, para criarem suas peças, beber na fonte da música folclórica brasileira, anô-
nima e rural, misturando-a com a sofisticação europeia clássico-romântica de suas formações eru-
ditas. O produto seria uma música estilizada que apresentaria a fisionomia oculta de um Brasil
puro e autêntico, fortificado pela alta cultura europeia, repleta de história e tradição, gerando,
assim, uma arte nacional a um só tempo primitiva e elevada, definidora da nação e servindo para
exportação de uma cultura brasileira no mesmo nível da do resto dos países civilizados.
Contudo, o projeto de Mário deixa conscientemente de lado a música popular urbana co-
mercial de massas, que está se impondo no mercado musical, que se propaga pela novidade da
mídia do rádio, das festas populares, dos shows e encontros musicais pelas ruas, que representa a
ascensão e a lenta inserção das classes pobres no universo segregado das grandes cidades. Por sua
forte carga erótica, irônica, lúdica, híbrida – produto da troca e incorporação de gêneros musicais
de várias nacionalidades, que gera o samba, o maxixe, a marchinha, gêneros dotados de uma raiz
brasileiríssima inquestionável –, rebelde a qualquer passividade diante de um projeto imposto de
cima para baixo, a música de um Sinhô, Noel Rosa, Pixinguinha, Heitor dos Prazeres, Caninha,
Ismael Silva não se encaixaria na proposta marioandradina.
O povo homogêneo e sem contradições, bom e rústico, passível de conceber uma arte pura
para ser utilizada pelos compositores eruditos é, antes de tudo, produto de uma idealização com
fins políticos e sociais. A música miscigenada e heterogênea dos operários, marginais, descami-
sados, negros, subempregados do espaço urbano, ligada à dança e à crítica social, não caberia em
tal projeto nacional populista. O que motivava Mário era a construção de uma cultura modernista
para a nação que, inevitavelmente, teria a mediação dos intelectuais, o filtro erudito. No entanto,
sua paixão pela música era tamanha que, em sua privacidade, conhecia e adorava todo o can-
cioneiro urbano comercial de massas, o mesmo que renegou como componente de base para a
construção de sua idealizada música nacionalista de câmara. Atitude que não cabe no conceito de
contradição, pois, na verdade, o poeta, mais de uma vez, afirmou que tinha que subjugar seu gosto
pessoal em nome da construção de uma alma, considerada por ele a melhor para o Brasil.

5.5 O antropólogo aprendiz


A dimensão do antropólogo Mário de Andrade pode ser lida no livro O Turista Aprendiz.
Nesse diário de viagens, no qual transforma a sua experiência vivida em texto estético, o autor
narra e descreve as viagens etnográficas que fez às regiões Norte e Nordeste do Brasil, em 1927, “em-
penhado em entender a realidade brasileira” (ANDRADE, 2002, p. 15). Os dois principais espa-
ços representativos das nossas raízes tropicais, que servem de fonte para sua escrita cultural7, são:

7 No curto prefácio que escreve em 1943 para O Turista Aprendiz – livro que deixou inédito –, Mário de Andrade assume
estar “resolvido a [...] escrever um livro modernista, provavelmente mais resolvido a escrever que a viajar” (ANDRADE,
2002, p. 49). Daí porque esse diário, ao estabelecer inusitadas relações entre a natureza e a cultura, pode ser lido como a
escritura dos espaços culturais pelos quais o antropólogo transita.
54 Literatura brasileira II

a Amazônia (onde o poeta descobre a elegância discreta das índias) e o Nordeste (onde o pesquisa-
dor dos ritmos brasileiros ouve a música – e se encanta profundamente, como se tivesse encontra-
do o elo perdido da brasilidade – do coquista8 Chico Antônio, além de trocar informações estéticas
com o poeta potiguar Henrique Castriciano).
No texto introdutório que escreve para O Turista Aprendiz, a pesquisadora Telê Porto Ancora
Lopez diz: “O confessional do diário e o referencial pertencente ao dado de viagem, embora filtra-
dos pela arte, ainda permanecem com elementos do real, dado o hibridismo do gênero mas a seu
lado, firme, intromete-se a ficção” (LOPEZ, 2002, p. 31).
Em maio de 1927, com o seu livro Macunaíma em fase de redação, Mário de Andrade deixa
São Paulo em direção ao Rio de Janeiro. Da então capital do país, o poeta partiria rumo às regiões
Norte e Nordeste do Brasil. Na viagem à região Norte, o poeta passa por Belém do Pará, vai até o
Peru, e navega pelo Rio Madeira, chegando à Bolívia (ANDRADE, 2002, p. 51). Na região Nordeste,
Mário de Andrade viaja pelos estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba, permanecendo por
mais tempo em Natal, onde o historiador e folclorista Luís da Câmara Cascudo o hospeda, colo-
cando-o em contato com a arte e a cultura potiguares.
No diário poético e etnográfico que resulta dessas viagens, o antropólogo modernista no-
meia pessoas, registra os elementos da cultura e escreve os exageros e as surpresas da paisagem,
atento às manifestações artísticas e etnográficas da vida local. Nessa escrita, Mário de Andrade
aciona uma leitura comparativa entre os elementos rústicos e os inovadores da vanguarda, o dado
primitivo e a referência moderna. No trânsito por esses espaços, o antropólogo aprendiz move-se
entre a raiz e a antena, com o intuito de apreender e conceber um Brasil em sua totalidade, em sua
máxima abrangência estética e cultural.

5.6 As cartas: documentos íntimos e culturais


epistolografia: Mário de Andrade é um dos autores brasileiros que mais exerceu a epistolografia. Suas car-
gênero literário que
possui na escritura tas foram endereçadas para os autores e intelectuais brasileiros mais representativos do século
de epístolas (cartas)
sua forma.
XX, como Manuel Bandeira, Henriqueta Lisboa, Fernando Sabino, Câmara Cascudo, Pedro Nava,
Álvaro Lins, Murilo Miranda, Murilo Rubião, Prudente de Moraes Neto, Guilherme Figueiredo e
Anita Malfatti, entre outros.
A correspondência trocada com esses autores, advindos de universos tão díspares como, por
exemplo, a poesia, a antropologia, a pintura, a crítica literária, transforma as cartas que o poeta
escreveu em documentos íntimos e culturais, que retratam a vida da inteligência brasileira da pri-
meira metade do século XX. Estudaremos, a seguir, as cartas que Mário de Andrade enviou para
Carlos Drummond, e que o poeta mineiro publicou em A Lição do Amigo – cartas de Mário de
Andrade a Carlos Drummond de Andrade, anotadas pelo destinatário.

8 O nome admite variações como coqueiro ou tocador de coco e designa o artista popular que canta, acompanhado ao
ganzá, as suas narrativas e reflexões poéticas. Trata-se de uma arte sofisticadíssima na qual palavra, ritmo e melodia se
entrelaçam numa dinâmica musical apenas aparentemente simples, pois se apresenta cheia de sutis modulações semân-
ticas e sonoras. De origem africana, é também nome de dança.
A obra de Mário de Andrade 55

O contexto histórico e estético da correspondência entre os dois gênios de nossa literatu-


ra modernista apresenta as cidades de São Paulo e Belo Horizonte como cenários de suas trocas
vivenciais e artísticas. As cartas traçam um arco temporal que vai de 1924 – quando Mário, gene-
rosamente, responde a uma carta enviada de Minas Gerais por Drummond, então um poeta des-
conhecido – até o ano de 1945, quando o poeta paulista morre acometido por um ataque cardíaco
(LAFETÁ, 1982, p. 10).
As cartas entremostram tons que se alternam entre o confessional, o coloquial e o ensaístico,
e tematizam, principalmente, as questões pertinentes à poesia, ao Brasil e ao movimento moder-
nista. A leitura dessa correspondência nos ajuda a entender o contexto estético e intelectual do
Brasil moderno. São várias as referências à Semana de Arte Moderna, as alusões aos demais autores
modernos e às revistas que serviram de suportes para o Modernismo, entre as quais podemos citar
A Revista, Terra Roxa e Klaxon.
Além das revistas modernas, os livros de ambos os autores são constantemente comentados
nas cartas que trocam entre si. Mário comenta detalhadamente o primeiro livro de Drummond,
Alguma Poesia, que seria publicado em 1930, e, acerca de suas obras escritas até então, nos infor-
ma: “A preocupação de falar como brasileiro fala já vem de Pauliceia9, onde pus isso no prefácio.
A Escrava10 foi uma quebra na evolução” (ANDRADE, 1982, p. 41-42).
Além de serem textos repletos de informações referenciais e metalinguísticas a respeito da
poesia, são recorrentes também, nessa correspondência, as ideias nacionalistas do poeta paulista,
como podemos perceber logo na primeira carta enviada ao poeta mineiro: “Nós temos que dar
uma alma ao Brasil” (ANDRADE, 1982, p. 5). Esse desejo é ratificado nas cartas seguintes, nas
quais Mário diz: “Como poetas a gente não se pertence mais, amigo, tem que se entregar às miseri-
nhas dos homens da sociedade” (ANDRADE, 1982, p. 81). O desejo constante de “transcender” o
universo pessoal em prol dos temas relacionados à nação é lido na atitude de Mário ao anunciar o
anseio de “tornar o menos pessoal possível minhas coisas pra que se tornem gerais” (ANDRADE,
1982, p. 97).
No terreno da intimidade, Mário de Andrade toca em pontos delicadíssimos da alma de
Drummond: “é certo que uma pessoa da sua sensibilidade e da sua volúpia de consciência não
pode ter a felicidade comum que é feita de insensibilidade e de inconsciência” (ANDRADE,
1982, p. 37). Na lição que profere ao amigo mineiro, as certezas do poeta paulista são expressas
de forma clara: “Eu acho covarde a posição contemplativa diante da vida” (ANDRADE, 1982,
p. 91). Essa assertiva anuncia, de certa forma, o homem público e atuante na vida nacional, como
veremos a seguir.

5.7 A atuação como homem público


Mário de Andrade é um autor apaixonado pela vida brasileira. Ele desenvolve, em sua vasta
produção artística, várias ideias relacionadas às conexões entre a arte brasileira e as ideias de nação.

9 Referência ao livro Pauliceia Desvairada, publicado por Mário de Andrade em 1922.


10 Referência ao livro A Escrava que não é Isaura, publicado por Mário de Andrade em 1925.
56 Literatura brasileira II

Essa paixão pelo Brasil o transforma em uma das principais personalidades públicas da nossa cul-
tura, e pode ser assim relembrada (LAFETÁ, 1982, p. 5): “como lembra Sérgio Milliet11, o amor
sexual ou platônico é inteiramente sublimado pelo poeta no amor à cidade de São Paulo e ao Brasil,
que ele conheceu muito bem, principalmente através de estudo”.
Esse conhecimento do Brasil se dá também através das viagens etnográficas que o autor
empreendeu às cidades históricas de Minas Gerais, ao Amazonas e ao Nordeste12 – “Nordeste de
impaciente amor sem metáforas” (“A meditação sobre o Tietê”). Além da publicidade proporcio-
nada por essas viagens, a atuação do poeta como homem público pode ser aferida nos cargos que
ele assumiu e que estão relacionados ao universo das artes, da educação e da cultura (LAFETÁ,
1982, p. 5).
Sempre preocupado com as questões culturais e educacionais, Mário de Andrade é nomea-
do, em 1934, diretor do Departamento de Cultura do Município de São Paulo. Dois anos depois,
ele colabora na criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Ainda na década
de 30, o autor afasta-se do Departamento de Cultura paulista e passa a ser catedrático de Filosofia
e História da Arte e diretor do Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal, no Rio de
Janeiro (LAFETÁ, 1982, p. 10). É a época do exílio carioca de Mário.
Na então capital do país, o poeta colabora com a programação cultural do ministro Gustavo
Capanema e trabalha como consultor técnico do Instituto Nacional do Livro (ANDRADE, 1983,
p. 10). Reside, em 1939, na Rua Santo Amaro, no bairro da Glória, num prédio onde existe hoje
uma placa informando a antiga residência do autor de Macunaíma.

Ampliando seus conhecimentos

A meditação sobre o Tietê


(ANDRADE apud LAFETÁ, 1982, p. 26-28)

Água do meu Tietê,


Onde me queres levar?
- Rio que entras pela terra
E que me afastas do mar...
É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável
Da Ponte das Bandeiras o rio
Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa.
É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras,
Soturnas sombras, enchem de noite de tão vasta
O peito do rio, que é como si a noite fosse água,

11 Crítico, poeta, tradutor e professor. Criou, com Mário de Andrade e Paulo Duarte, o Departamento de Cultura de
São Paulo.
12 Nas duas viagens ao Nordeste, Mário de Andrade foi hóspede de Câmara Cascudo na cidade de Natal. Com o histo-
riador e folclorista potiguar, manteve importante correspondência acerca de questões estéticas e culturais brasileiras.
As cartas trocadas entre os dois foram reunidas, pelo escritor Veríssimo de Melo, no livro Cartas de Mário de Andrade a
Luís da Câmara Cascudo (Villa Rica, 1991).
A obra de Mário de Andrade 57

Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões


As altas torres do meu coração exausto. De repente
O ólio das águas recolhe em cheio luzes trêmulas,
É um susto. E num momento o rio
Esplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas,
Ruas, ruas, por onde os dinossauros caxingam
Agora, arranha-céus valentes donde saltam
Os bichos blau e os punidores gatos verdes,
Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e fábricas,
Luzes e glória. É a cidade... É a emaranhada forma
Humana corrupta da vida que muge e se aplaude.
E se aclama e se falsifica e se esconde. E deslumbra.
Mas é um momento só. Logo o rio escurece de novo,
Está negro. As águas oliosas e pesadas se aplacam
Num gemido. Flor. Tristeza que timbra um caminho de morte.
É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastado
É um rumor de germes insalubres pela noite insone e humana.
Meu rio, meu Tietê, onde me levas?
Sarcástico rio que contradizes o curso das águas
E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens,
Onde me queres levar?...
Por que me proíbes assim praias e mar, por que
Me impedes a fama das tempestades do Atlântico
E os lindos versos que falam em partir e nunca mais voltar?
Rio que fazes terra, húmus da terra, bicho da terra,
Me induzindo com a tua insistência turrona paulista
Para as tempestades humanas da vida, rio, meu rio!...

Já nada me amarga mais a recusa da vitória


Do indivíduo, e de me sentir feliz em mim.
Eu mesmo desisti dessa felicidade deslumbrante,
E fui por tuas águas levado,
A me reconciliar com a dor humana pertinaz,
E a me purificar no barro dos sofrimentos dos homens.
Eu que decido. E eu mesmo me reconstituí árduo na dor
Por minhas mãos, por minhas desvividas mãos, por
Estas minhas próprias mãos que me traem,
Me desgastaram e me dispersaram por todos os descaminhos,
Fazendo de mim uma trama onde a aranha insaciada
Se perdeu em cisco e polem, cadáveres e verdades e ilusões.

Mas porém, rio, meu rio, de cujas águas eu nasci,


Eu nem tenho direito mais de ser melancólico e frágil,
Nem de me estrelar nas volúpias inúteis da lágrima!
Eu me reverto às tuas águas espessas de infâmias,
Oliosas, eu, voluntariamente, sofregamente, sujado
58 Literatura brasileira II

De infâmias, egoísmos e traições. E as minhas vozes,


Perdidas do seu tenor, rosnam pesadas e oliosas,
Varando terra adentro no espanto dos mil futuros,
À espera angustiada do ponto. Não do meu ponto final!
Eu desisiti! Mas do ponto entre as águas e a noite,
Daquele ponto leal à terrestre pergunta do homem,
De que o homem há de nascer.

Eu vejo; não é por mim, o meu verso tomando


As cordas oscilantes da serpente, rio.
Toda a graça, todo o prazer da vida se acabou.
Nas tuas águas eu contemplo o Boi Paciência
Se afogando, que o peito das águas tudo soverteu.
Contágios, tradições, brancuras e notícias,
Mudo, esquivo, dentro da noite, o peito das águas, fechado, mudo,
Mudo e vivo, no despeito estrídulo que me fustiga e devora.
Destino, predestinações... meu destino. Estas águas
Do meu Tietê são abjetas e barrentas,
Dão febre, dão morte decerto, e dão garças e antíteses.
Nem as ondas das suas praias cantam, e no fundo
Das manhãs elas dão gargalhadas frenéticas,
Silvos de tocaias e lamurientos jacarés.
Isto não são águas que se beba, conhecido, isto são
Águas do vício da terra. Os jabirus e os socós
Gargalham depois morrem. E as antas e os bandeirantes e os ingás,
Depois morrem. Sobra não. Nem siquer o Boi Paciência
Se muda não. Vai tudo ficar na mesma, mas vai!... e os corpos
Podres envenenam estas águas completas no bem e no mal.
Isto não são águas que se beba, conhecido! Estas águas
São malditas e dão morte, eu descobri! e é por isso
Que elas se afastam dos oceanos e induzem à terra dos homens,
Paspalhonas. Isto não são água que se beba, eu descobri!
E o meu peito das águas se esborrifa, ventarrão vem, se encapela
Engruvinhado de dor que não se suporta mais.
Me sinto o pai Tietê! ôh força dos meus sovacos!
Cio de amor que me impede, que destrói e fecunda!
Nordeste de impaciente amor sem metáforas,
Que se horroriza e enraivece de sentir-se
Demagogicamente tão sozinho! Ô força!
Incêndio de amor estrondante, enchente magnânima que me inunda,
Me alarma e me destroça, inerme por sentir-me
Demagogicamente tão só!
[...]
A obra de Mário de Andrade 59

Dicas de estudo
Para outras abordagens acerca da obra de Mário de Andrade, recomendamos:
• MACUNAÍMA. Direção de Joaquim Pedro de Andrade. Rio de Janeiro: Difilm, 1969. 108
min. Relançado em DVD em 2006, o filme tem os atores Grande Otelo e Paulo José nos
principais papéis e possibilita uma gama de leituras relacionadas a temas díspares como a
luta armada, o Tropicalismo13, as ideias de arte, identidade e nação, sem perder o foco no
roteiro original, que possui no folclore brasileiro a sua base;
• MEDINA, Tete; GRIZOLLI, Paulo Afonso. Mário de Andrade – Poesia e som. Rio de
Janeiro: Festa; PolyGram, 1971. 1 LP. Gravado por Tete Medina e Paulo Afonso Grizolli
em 1971, pela gravadora Polygram, a obra é composta de 14 textos do poeta paulis-
ta, como “Ode ao burguês”, “O poeta come amendoim” e um fragmento do “Prefácio
Interessantíssimo”, entre outros;
• UM SÓ coração. Direção de Carlos Manga. Criação de Maria Adelaide Amaral e Alcides
Nogueira. Rio de Janeiro: Rede Globo, 2004. 54 episódios. Com roteiro de Maria Adelaide
Amaral e Alcides Nogueira, a minissérie comemora os 450 anos de fundação da cidade de
São Paulo e apresenta o contexto da Semana de Arte Moderna e seus participantes. Mário
de Andrade aparece como personagem nessa obra cujo roteiro é voltado para as questões
da modernidade e da realidade nacional.

Atividades
1. Que relações podemos tecer entre Mário de Andrade, poeta moderno, e Mário de Andrade,
antropólogo das viagens etnográficas?

2. Por que as cartas escritas por Mário de Andrade podem ser consideradas como documentos
históricos e culturais?

13 Movimento artístico e cultural influenciado pelas estéticas de vanguardas e pela cultura de massas, cujos principais
representantes são os poetas compositores Caetano Veloso, Torquato Neto, Tom Zé e Gilberto Gil. As obras de Glauber
Rocha (no cinema) e José Celso Martinez Corrêa (no teatro) também contribuíram muito para a conformação estética e
ideológica geral do movimento.
6
A obra de Oswald de Andrade

Oswald de Andrade (1890-1953) foi um dos autores que mais contribuiu para a construção
do nosso Modernismo e, de modo geral, para a inovação da literatura no Brasil. Nascido em São
Paulo, onde passou a maior parte de sua vida, o autor do Manifesto Antropófago cursou Direito e
teve forte atuação jornalística. Filho de uma família rica, fez várias viagens à Europa, tendo con-
tatos reveladores e atualizantes com as obras de nomes representativos da arte e das vanguardas
europeias, como o poeta Blaise Cendrars1.
Do mesmo modo que os poetas modernos Manuel Bandeira e Mário de Andrade, Oswald
de Andrade também ambiciona conceber uma alma artística e cultural moderna para a nação
brasileira. Sob essa perspectiva, sua obra apresenta temas nacionalistas e de reminiscências de sua
trajetória política e existencial, com uma concepção formal que entrelaça técnicas de construção de
vanguarda com elementos típicos da cultura popular.
Neste capítulo vamos conhecer a produção de vanguarda do verdadeiro ponta de lança do
Modernismo brasileiro, cuja obra completa, copilada em 24 volumes, abrange diferentes formas e
gêneros literários. Desses gêneros, estudaremos a poesia do Pau-Brasil e o romance experimental
Serafim Ponte Grande, além da sua produção dramatúrgica e dos manifestos posteriores à fase he-
roica do Modernismo.

6.1 O primeiro Oswald: viagens e atuação jornalística


Na biografia que escreveu sobre a vida e a obra de Oswald de Andrade, a pesquisadora Maria
Augusta Fonseca diz que o poeta morreu sem conhecer a “sua consagração como grande escritor”
(FONSECA, 2007, p. 23).
Oswald de Andrade fez a primeira viagem à Europa em 1912, quando visitou Paris, Bélgica,
Alemanha, Inglaterra e Espanha. Nessa viagem, o poeta que se dizia incapaz de contar sílabas para
construir poemas, conhece o Manifesto Futurista, de Filippo Marinetti, e toma contato com o ver-
so livre e com poemas que desdenham a métrica e a rima (FONSECA, 2007, p. 80). Várias outras
viagens à Europa o poeta faria depois, chegando mesmo a morar em Paris, na década de 1920, e a
pronunciar uma conferência na Universidade de Sorbonne.
Desprezado pelo universo acadêmico e pela Academia Brasileira de Letras, Oswald de
Andrade teve uma vida cheia de polêmicas estéticas e existenciais. Sua vida afetiva não fica atrás:
foi repleta de aventuras amorosas, viagens, filhos. Viveu com várias mulheres, como a pintora
Tarsila do Amaral e a escritora feminista Patrícia Galvão, mais conhecida como Pagu. O poeta da

1 Poeta suíço cubista que teve importante função em nosso Modernismo, ao visitar o Brasil na década de 1920. Di-
vulgando os preceitos do primitivismo nas artes, descortinou para os nossos artistas as potencialidades contidas nas
expressividades dos povos primitivos aqui presentes – principalmente africanos –, formadores de nossa riqueza étnica
e cultural.
62 Literatura brasileira II

Poesia Pau-Brasil foi também membro do Partido Comunista na década de 1930 e chegou a ser
candidato a deputado federal em 1950.
Ainda segundo a referida biógrafa, Oswald de Andrade estreia na imprensa em 1909 como
repórter e redator do Diário Popular. Funda depois, junto com o poeta Emílio de Menezes, a revista
O Pirralho e, após o fechamento desta, passa a escrever no Jornal do Comércio e em outros jornais
e revistas.

6.2 O poeta

Escapulário
No Pão de Açúcar
De Cada Dia
Dai-nos, Senhor
A poesia
De cada dia

Com esse poema de apenas cinco versos curtos, Oswald de Andrade abre o seu livro Pau-
-Brasil, de 1924. O texto parece anunciar a síntese da relação entre poesia, história e religião, que
permeia o volume. De forma crítica e irreverente, o poeta escreve contra a verborragia domi-
nante nos salões e na literatura do início do século XX e contra uma doença que atingia a grande
eloquência: oratória maioria dos literatos daquele contexto: “o mal da eloquência”. Esse “mal” caracteriza-se pela
rebuscada e vazia.
criação de um texto repleto de floreios estéticos e de ideias que se repetem, sem originalidade
(CAMPOS, 1978, p. 12).
escapulário: tira O título do poema – “Escapulário” – desloca da esfera da religiosidade para o universo da es-
de pano que os
religiosos usam no tética um vocábulo praticamente em desuso. Com esse deslocamento semântico, o poeta amplifica
pescoço e que pende
sobre o peito.
toda a carga religiosa e política que o vocábulo continha, propondo, por meio de uma reciclagem
da linguagem, outras formas de ler o mundo.
A ideia contida na expressão reciclagem da linguagem define bem o perfil da poesia os-
waldiana, caracterizada sobretudo pelo uso da paródia e pelas noções de visualidade e corte, que
fundamentam a arte moderna, sob influência, principalmente, da linguagem do cinema. Além do
mais, a releitura devoradora da história e dos textos da tradição são procedimentos recorrentes
da poesia de Oswald de Andrade, como podemos perceber no poema a seguir, que faz parte dos
“Poemas menores”, do livro Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade (ANDRADE,
1978b, p. 177):
Erro de português
Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português
A obra de Oswald de Andrade 63

Deixemos o português. Voltemos ao livro Pau-Brasil e seu “estilo de síntese violenta” (BOSI,
1994, p. 359). No prefácio escrito por Paulo Prado para o primeiro livro de poemas de Oswald, afir-
ma o autor de Retrato do Brasil: “A Poesia ‘Pau-Brasil’ é, entre nós, o primeiro esforço organizado
para a libertação do verso brasileiro” (PRADO, 1978, p. 69). Tal “esforço” em prol da liberdade esté-
tica se desdobrará numa atitude existencial libertária, aproximando arte e vida, como foi comum às
propostas de algumas das mais importantes correntes de vanguarda europeia. E será retomado, em
outro contexto cultural e político, pela geração da poesia marginal brasileira nos anos 1970 e 1980.
Vivenciando o contexto repressivo dos anos da Ditadura Militar, os poetas convencional-
mente chamados de marginais resgataram o humor e a alegria da poesia de Oswald, com o intuito
de construir um discurso intencionalmente mais comunicativo e pop, menos literário. O livre uso
criativo da linguagem rápida e coloquial da rua, incorporando a inventividade da gíria, sem temer
o palavrão; a reciclagem de clichês da letra da canção popular; as paródias e recriações de textos de
origens diversas; os diálogos com códigos de linguagens da mídia foram procedimentos da poesia
marginal herdados, de modo direto ou indireto, da estética de Oswald.
Referindo-se à poesia de Oswald de Andrade e sua noção de antropofagia, o poeta Geraldo
Carneiro2 (CARNEIRO, 1995, p. 60) diz que
Oswald virou a mesa. E fundou a possibilidade de um outro olhar. Fundou a
possibilidade metafórica da devoração do discurso do colonizador. E talvez pela
primeira vez o Brasil tenha tido a possibilidade de olhar para si sem a ideali-
zação maluquete dos românticos ou sem o sentimento de exílio dos poetas da
Arcádia do século XVIII.

6.3 O romancista
Dentre os vários gêneros a que se dedicou Oswald de Andrade, em sua vasta produção li-
terária e cultural, o romance se destaca de modo especial e fecundo. Sua estreia na prosa se dá em
1922, com a obra Os Condenados. O livro, que mistura dados biográficos do autor com elementos
ficcionais, “tem capa assinada por Victor Brecheret. A narrativa descontínua que Oswald adota traz
a linguagem ágil da rua. Por meio dela vai cosendo os flagrantes dramáticos do mundo da prosti-
tuição, da vida amorosa, dos gestos suicidas” (FONSECA, 2007, p. 127).
Além de Os Condenados, dois outros livros merecem especial atenção, por sua radicalidade
de proposta estética, dentre os títulos da prosa romanesca de Oswald de Andrade: Memórias
Sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933). Merece destaque, também,
a recepção dessas duas obras. Serafim Ponte Grande foi desdenhado pela crítica literária “durante
quase quatro décadas” (FARINACCIO, 2001, p. 19). Somente após a morte do autor os seus textos
em prosa começaram a ganhar visibilidade; principalmente após a releitura que Haroldo e Augusto
de Campos – os poetas concretos de São Paulo – fizeram acerca da obra do poeta antropófago.

2 Sintonizado com o contexto da poesia marginal das décadas de 1970 e 1980, Geraldo Carneiro estudou Letras e
publicou livros de poemas.
64 Literatura brasileira II

Com base na leitura de um texto crítico de Haroldo de Campos, “Serafim: um grande não-li-
vro”, o ensaísta de Serafim Ponte Grande e as Dificuldades da Crítica Literária afirma (FARINACCIO,
2001, p. 51):
Para Haroldo de Campos, o Serafim de Oswald, como Tristam de Sterne, é um
livro que põe em discussão a sua estrutura. Essa é sua característica maior.
Conforme estruturado, Serafim pode realizar a crítica do gênero romance, da
escrita considerada “artística”, da prosa em geral, posto estar investido de uma
função metalinguística. Trata-se de um livro que realiza a própria crítica, a
partir da citação, sempre em chave paródica, de diversos tipos catalogados de
prosa (a carta, o diário, o livro de viagem, a memória, o ensaio etc.), sem que,
por outro lado, chegue a eleger algumas dessas formas como esquema narrativo
principal. [...] Agenciando o que Haroldo denomina “operação metonímica”,
Oswald constrói um livro a partir da colagem [...] de pedaços de livros já inven-
tariados no acervo literário padrão.

Nesse primeiro livro da crítica dedicado ao estudo do romance Serafim Ponte Grande, o
autor afirma que “a técnica ocorre no nível da arquitetura geral da obra”, e que “os pedaços ou
amostras de diversos livros possíveis são combinados de maneira sempre inusual, contra os nexos
mais previsíveis da lógica romanesca” (FARINACCIO, 2001, p. 51).
“Serafim é a personagem que se define justamente por aquilo que faz, e não por sua psi-
cologia.” (FARINACCIO, 2001, p. 79); assim como o mar – personagem que inunda o romance
de quando em vez –, Serafim age, urra. O mesmo mar em cujas águas o nosso “herói” – fortale-
cido – personifica-se, como no cinematográfico fragmento a seguir que encerra um Intermezzo
(ANDRADE, 2005, p. 84).
[...] Lá fora o mar. De par em par. Ela baixou a cabeça. Perdeu a sintaxe do cora-
ção e as calças.
— Nunca julguei que fosses tão forte!
Serafim vai à janela e qual Narciso vê, no espelho das águas, o forte de Copacabana.
(grifos do original)

O livro pelo qual Oswald de Andrade declarou a sua predileção, semanas antes de morrer,
possui em sua narrativa alguns dados biográficos do autor e imagens de suas memórias misturados
com elementos da ficção. O volume abre com uma declaração irreverente, que anuncia os procedi-
mentos paródicos e antropofágicos utilizados pelo autor: “Direito de ser traduzido, reproduzido e
deformado em todas as línguas – São Paulo – 1933” (ANDRADE, 2005, p. 36). No final do roman-
ce experimental, outra informação sugere as reescritas por que o texto passou: “Este livro foi escrito
de 1929 (era de Wall Street e Cristo) para trás” (ANDRADE, 2005, p. 163).

6.4 O dramaturgo
Devido às noções de corte, de visibilidade e rapidez características da sua produção, Oswald
de Andrade foi um dos autores em que a obra literária mais sofreu transcodificações para o universo
de linguagem das artes cênicas e do cinema. O próprio romance Serafim Ponte Grande, desdenhado
pela crítica, esquecido pelas editoras e aparentemente sem enredo, ganhou, além de adaptação teatral,
uma versão cinematográfica baseada no romance homônimo e dirigida por Artur Omar em 1971.
A obra de Oswald de Andrade 65

No teatro, Oswald de Andrade se empenha na missão de criar uma dramaturgia brasileira


moderna, já que tanto a cena quanto os textos brasileiros não acompanharam as pesquisas esté-
ticas instituídas pelas vanguardas teatrais europeias desde fins do século XIX, nem, tampouco,
deixaram-se influenciar pelas ideias revolucionárias das artes da Semana de 22. A fim de diminuir
o atraso de nossa dramaturgia – espaço no qual podia intervir, pois não era um homem de palco
e sim um escritor –, Oswald cria, nos anos 30, três dos seus mais importantes textos para teatro:
O Homem e o Cavalo (1934), A Morta (1937) e O Rei da Vela (1937) (ANDRADE, 2005, p. 4).
Dentre as peças escritas por Oswald de Andrade, O Rei da Vela destaca-se como o texto
teatral que deu maior visibilidade ao autor após a sua morte. A peça demorou 30 anos para ser
encenada – o que somente veio a ocorrer em 1967, sob a direção inventiva de José Celso Martinez
Corrêa, que recorreu à linguagem cênica de vanguarda que o texto exigia. Essa encenação é um
marco na história do teatro brasileiro, que, nesse momento histórico (fins dos anos 1960), acompa-
nhou, junto das outras artes, as revoluções estéticas do período: o Tropicalismo na música popular;
o cinema experimental de Glauber Rocha de Terra em Transe; a arte conceitual de Hélio Oiticica; a
literatura de José Agrippino de Paula de PanAmérica.
O Rei da Vela narra em três atos a história de Abelardo I e Heloísa, e critica a decadência das
oligarquias rurais brasileiras e a ascensão da nova elite industrial urbana, tão inescrupulosa quanto
a anterior, além de denunciar a invasão do capital estrangeiro em nossa sociedade. Abelardo fabrica
e vende velas. É um representante da burguesia ascendente da época, podendo ser lido como um
signo do cinismo, da ironia e da exploração social, já que cada defunto consome, em sua última
cena, uma vela. Nesse sentido o fabricante capitaliza em cima de todos, até dos mais pobres...
A biografia Oswald de Andrade – no capítulo “No país do rei da vela” – traz um trecho de
um texto do próprio autor comentando a peça e a função do teatro na sociedade moderna. Diz o
dramaturgo (ANDRADE apud FONSECA, 2007, p. 253):
o teatro moderno, como o antigo, transpõe a vida para o palco, isto é, não pro-
cura imitar a vida como ela é na suas aparências. Resume-a colocando num
outro plano – a sena [sic]. Procura ter uma equivalência dos fatos e não a sua
cópia minuciosa e igual. Se um empregado de um escritório de usura aparece
no Rei da Vela fantasiado de domador de feras, isso explica bem a sua função
de todos os dias na vida. Os clientes são vistos numa jaula enfurecida porque
psicologicamente é essa a sua posição diante do usuário. O teatro deve esclare-
cer pela invenção dos efeitos, pela indumentária, pela síntese, o que a peça não
pode totalmente dizer.

6.5 Crônicas e polêmicas


As primeiras décadas do século XX, no Brasil, ficaram marcadas por um contexto político
e estético no qual inicia-se a construção do nosso Modernismo, e, consequentemente, como um
período em que proliferaram vários manifestos artísticos e culturais. A publicação de textos cuja
provocação e a ruptura com o passado eram a tônica gerou inúmeras polêmicas entre os artistas e
intelectuais que viveram aquele ambiente repleto de ideias novas.
66 Literatura brasileira II

Inspirados pelas reflexões e atitudes das vanguardas europeias, a produção de nossos mo-
dernistas traduz a ordem dual que regia o contexto sociopolítico então vigente: de um lado, os ma-
nifestos assinados por artistas e grupos de cunho conservador e de direita; de outro, os manifestos
publicados por artistas e grupos com ideologias esquerdistas e que expressam o desejo de ruptura
com a ordem vigente.
Dentre os manifestos assinados por artistas e grupos de direita destaca-se o já citado Nhenaçu
Verde Amarelo, que valoriza as nossas raízes culturais e que representa o grupo Verde-Amarelo e o
Grupo Anta, liderados por Plínio Salgado.
“Em fins de 1927, em plena polêmica com o grupo Verde-Amarelo e com o da Anta, nas-
ce um novo movimento impulsionado por Oswald de Andrade, o da Antropofagia” (FONSECA,
2007, p. 204). Em 1928, Oswald publica o Manifesto Antropófago, texto em que potencializa as
ideias contidas no Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de 1924. Se neste manifesto o poeta radicaliza no
uso formal – por meio de frases curtas, com cunho de máximas, sem conexão lógico-linear, com
autonomia de fragmentos poéticos – para apresentar suas ideias primitivistas sobre a brasilidade,
no Manisfesto Antropófago a floresta engole a escola e o Brasil primitivo, bárbaro, impõe-se sobre
o civilizado.
No manifesto de 1924, o pau-brasil é o objeto-totem símbolo da nacionalidade. Por ter sido
a árvore da época da colonização que foi nosso primeiro produto de exportação, serve como me-
táfora da atitude que devemos tomar com nossa produção literária, feita agora para se exportada e
não mais submissa às estéticas estrangeiras, impostas ainda pelos nossos colonizadores culturais.
No processo presente no manifesto de 1928, da Antropofagia, por sua vez, Oswald vai mais fundo
e afirma que devemos agir, em relação à produção artística brasileira diante do que recebemos do
estrangeiro, como os primitivos índios canibais do Brasil agiam com seus inimigos: realizando um
ritual de absorção das forças e qualidades dos mesmos, por meio de sua devoração, após a qual
saíam reciclados e fortalecidos.
Acerca das polêmicas entre as ideias esquerdistas e do comportamento rebelde de Oswald
de Andrade diante dos artistas representantes da direita, diz a biógrafa do poeta (FONSECA, 2007,
p. 216):
As tentativas verde-amarelas malograram porque somente aprendiam e expres-
savam o pitoresco, o exotismo superficial, o cenário mais do que o homem.
Cantava-se o papagaio, a palmeira, a floresta, exploravam-se algumas lendas,
mas não se ia ao fundo realmente brasileiro. Antropofagia foi uma vontade de
entrosar a alma nacional no corpo nacional. E conquanto abusasse do humor e
recorresse a soluções fáceis [...] alguma coisa de importante se fez então.
A obra de Oswald de Andrade como cronista tem seu ápice criativo – envolvendo polêmica
artística, crítica cultural, colunismo social, pinceladas filosóficas precisas, reflexões sobre a história
imediata, cotidiana – nas curtas páginas que escreveu para o jornal carioca Correio da Manhã, na
seção Telefonema, entre 1943 e 1953. Por ter sido a sua colaboração mais regular, num momento de
maior maturidade e reflexão do poeta que foi considerado o mais sarcástico, endiabrado e implaca-
velmente crítico dos modernistas, tais crônicas e artigos são documentos riquíssimos, cheios de força
inventiva e ironia, de nossa vida política, social, econômica, filosófica, literária e cultural do período.
A obra de Oswald de Andrade 67

6.6 Outros manifestos


Além dos manifestos da Poesia Pau-Brasil e Antropófago, Oswald de Andrade escreveu en-
saios e teses de concursos que, mesmo não sendo propriamente manifestos estéticos – cujo perfil é
a defesa e a descrição dos preceitos de uma escola artística –, cumpriam bem a função de organizar
as suas reflexões numa configuração textual de programa sobre a arte, o mundo e a vida. Nesses
escritos, o poeta ambiciona um maior aprofundamento filosófico de suas ideias, que são retomadas
e reavaliadas sob novo viés, agora mais embasadas teoricamente.
Tais escritos são fruto, também, de suas tentativas de ingressar na vida acadêmica e uni-
versitária. Reunidos no volume VI de suas obras completas editadas pela Civilização Brasileira
– Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias –, agrega os textos “Meu testamento”, “A arcádia e a
inconfidência”, “A crise da filosofia messiânica”, “Um aspecto antropofágico da cultura brasileira: o
homem cordial” e a “Marcha das utopias”.
Como exemplo da maior profundidade conceitual de suas reflexões teóricas, vamos
apresentar um parágrafo recolhido na tese escrita para o concurso da Cadeira de Filosofia da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em 1950, chamada
“A crise da filosofia messiânica”. No trecho selecionado, vemos Oswald concebendo a antropofa-
gia “no seu sentido harmônico e comunial” como um ato religioso pertencente “ao rico mundo
espiritual do homem primitivo”:
A antropofagia ritual é assinalada por Homero entre os gregos e segundo a docu-
mentação do escritor argentino Blanco Villalta, foi encontrada na América entre os
povos que haviam atingido uma elevada cultura – asteca, maias, incas. Na expressão
de Colombo, comiam los hombres. Não o faziam porém, por gula ou por fome.
Tratava-se de um rito que, encontrado também nas outras partes do globo, dá a
ideia de exprimir um modo de pensar, uma visão do mundo, que caracterizou certa
fase primitiva de toda a humanidade. (ANDRADE, 1978a, p. 77)

Ampliando seus conhecimentos

Falação3
(ANDRADE, 1978a, p. 76-77)

O Cabralismo. A civilização dos donatários. A Querência e a Exportação.


O Carnaval. O Sertão e a Favela. Pau-Brasil. Bárbaro e nosso.
A formação étnica rica. A riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.
Toda a história da Penetração e a história comercial da América. Pau-Brasil.
Contra a fatalidade do primeiro branco aportado e dominando diplomatica-
mente as selvas selvagens. Citando Virgílio para tupiniquins. O bacharel.

3 “Este poema-programa é uma redução, com alterações, do Manifesto da Poesia Pau-Brasil, publicado no Correio da
Manhã, Rio de Janeiro, 18/03/1924. Mostra como Oswald de Andrade não distinguia entre liguagem da nação e linguagem
da crítica – entre linguagem-objeto e metalinguagem – nos seus manifestos modernistas. As fronteiras entre poesia e
prosa são aqui também abolidas.” (ANDRADE, 1978a, p. 76).
68 Literatura brasileira II

País de dores anônimas. De doutores anônimos. Sociedade de náufragos eruditos.


Donde a nunca exportação de poesia. A poesia emaranhada na cultura. Nos sipós
das metrificações.

Século vinte. Um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram
como babéis de borracha. Rebentaram de enciclopedismo.
A poesia para os poetas. Alegria da ignorância que descobre. Pedr’Álvares.

Uma sugestão de Blaise Cendrars: — Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro
gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção
oposta ao vosso destino.

Contra o gabinetismo, a palmilhação dos climas.


A língua sem arcaísmos. Sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de
todos os erros.

Passara-se do naturalismo à pirogravura doméstica e à kodak excursionista.


Todas as meninas prendadas. Virtuoses de piano de manivela.
As procissões saíram do bojo das fábricas.
Foi preciso desmanchar. A deformação através do impressionismo e do símbolo. O lirismo
em folha. A apresentação dos materiais.

A coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral.


Poesia Pau-Brasil.

Contra a argúcia naturalista, a síntese. Contra a cópia, a invenção e a surpresa.


Uma perspectiva de outra ordem que a visual. O correspondente ao milagre físico em arte.
Estrelas fechadas nos negativos fotográficos.

E a sábia preguiça solar. A reza. A energia silenciosa. A hospitalidade.


Bárbaros, pitorescos e crédulos. Pau-Brasil. A floresta e a escola. A cozi-
nha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil.

Dicas de estudo
Para outras abordagens acerca da obra de Oswald de Andrade, recomendamos:
• O HOMEM do Pau-Brasil. Direção de Joaquim Pedro de Andrade. Rio de Janeiro:
Embrafilme, 1982. 112 min. Esse longa é baseado na vida e na obra do escritor “endiabra-
do, brincalhão e crítico” (Maria Augusta Fonseca), que funda a modernidade brasileira e
cuja postura irreverente vai de encontro às verdades da política, dos costumes e da moral
que sedimentaram a sociedade brasileira nas primeiras décadas do século XX. No filme,
Oswald de Andrade é representado simultaneamente por um ator (Flávio Galvão) e por
uma atriz (Ítala Nandi), num roteiro que faz referências ao “matriarcado antropófago
como regime político do país” (Joaquim Pedro de Andrade);
A obra de Oswald de Andrade 69

• ANDRADE, Oswald. Ouvindo Oswald. Brasília: Funarte, 1999. 1 CD-ROM. Com coor-
denação literária do poeta concreto Augusto de Campos e produção musical de seu filho
Cid Campos, a obra reúne 52 poemas e dois manifestos do poeta moderno e traz, entre
outros, trechos do seu Manifesto Antropófago. Além do próprio Oswald, participam mais
oito poetas: Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Arnaldo Antunes,
Lenora de Barros, Omar Khouri, Paulo Miranda e Walter Silveira;
• VELOSO, Caetano. Escapulário. Oswald de Andrade e Caetano Veloso. In: ______. Joia.
Rio de Janeiro: Philips, 1975. Faixa 134.
• CAZUZA. Balada do Esplanada. Oswald de Andrade e Cazuza. In: ______. Só se for a dois.
Produção de Ezequiel Neves e Jorge Guimarães. Rio de Janeiro: Philips; Universal Music, 1987.
Faixa 11 5.
• NUNES, Benedito. Oswald Canibal. São Paulo: Perspectiva, 1979. (Coleção Elos, v. 26).
Esse pequeno ensaio do filósofo Benedito Nunes foi publicado na Coleção Elos, da edi-
tora Perspectiva, em 1979. O texto sintetiza a importância da antropofagia para a arte e a
cultura brasileira, no contexto da modernidade, e suas conexões com as vanguardas euro-
peias. A reflexão brilhante e sucinta do autor paraense demonstra como, em vez de negar
a diferença, a antropofagia propõe a sua incorporação, filtrando o que possa ser útil para
a construção da sociedade e da cultura brasileira. Nessa perspectiva, a antropofagia é lida
como o desejo da diferença, do outro, do “que não é meu”.

Atividades
1. Faça um comentário explicando a mudança de postura da crítica diante do livro Serafim
Ponte Grande.

2. Como podemos definir a visão criativa do dramaturgo Oswald de Andrade?

4 Essa faixa está disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=jAtW9Tf1ySc>. Acesso em: 23 jul. 2018.
5 Essa faixa está disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=AIO0zpCXBro>. Acesso em: 23 jul. 2018.
7
Segundo momento modernista:
estabilização da consciência criadora
nacional (a poesia)

A historiografia literária considera como o nosso primeiro momento modernista o perío-


do no qual Manuel Bandeira, Mário de Andrade e Oswald de Andrade, além de outros poetas,
publicaram as suas obras iniciais e consolidaram as suas poéticas de invenção. Isso acontece nas
duas primeiras décadas do século XX, período chamado de heroico, justamente pela releitura e
pelo rompimento, efetuados por esses artistas, das tradições literárias luso-brasileiras já caducas,
introduzindo inovações técnico-formais das vanguardas europeias e novas ideias de nacionalidade,
muito mais próximas de nossa realidade cultural.
Neste capítulo, vamos conhecer a produção do segundo momento modernista, período que
abarca a década de 1930 e adjacências, caracterizando-se por ser a época de maior maturidade
estética e filosófica de nosso Modernismo. Por quais motivos? É quando as principais conquistas
técnicas da primeira fase passam a ser incorporadas de modo mais seletivo e funcional em nossa
produção artística; e, por outro lado, há um maior aprofundamento ideológico dos autores, surgin-
do uma poesia social e metafísica de base mais definida.
Para a compreensão da poesia produzida no segundo momento modernista, abordaremos
as obras dos autores mais representativos do período: Carlos Drummond, Jorge de Lima, Murilo
Mendes, Cecília Meireles e Vinicius de Moraes.

7.1 A estabilização da consciência criadora nacional


Passado o primeiro momento modernista e a irreverência festiva e demolidora que carac-
terizou eventos como a exposição de Anita Malfatti (1917) e a Semana de Arte Moderna (1922),
o segundo momento modernista é bem menos barulhento e bastante produtivo. Os poetas desse
período podem ser lidos da seguinte forma (BOSI, 1994, p. 438):
De um modo geral, porém, pode-se reconhecer nos poetas que se firmaram de-
pois da fase heroica do Modernismo a conquista de dimensões temáticas novas:
a política em Drummond e em Murilo Mendes; a religiosa, no mesmo Murilo,
em Jorge de Lima, em Augusto Frederico Schmidt, em Cecília Meireles. E não
só: também se impõe a busca de uma linguagem essencial, afim às experiências
metafísicas e herméticas de certo veio rilkeano1 da lírica moderna, e que se reco-
nhece na primeira fase de Vinicius de Moraes, em Cecília Meireles [...]
A noção de estabilização de uma consciência criadora nacional pode ser aferida pelas pu-
blicações ocorridas em 1930, ano que serve como parâmetro da exuberância criativa madura do

1 O adjetivo rilkeano refere-se ao poeta alemão Rainer Maria Rilke, cuja poética caracteriza-se pelo hermetismo místico
e pela temática da solidão existencial.
72 Literatura brasileira II

período: Libertinagem, de Manuel Bandeira, Remate de Males, de Mário de Andrade, Alguma


Poesia, de Carlos Drummond de Andrade, Poemas, de Murilo Mendes, entre outros.

7.2 Carlos Drummond de Andrade


O poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) é o genial anjo torto das
letras nacionais. Algumas estrofes do primeiro poema, “Poema de sete faces” (DRUMMOND
DE ANDRADE, 2002, p. 15), do primeiro livro do autor, Alguma Poesia (1930), já denun-
ciam o jeito estranho e inovador que o poeta encontrou para construir a sua poética irônica e
moderna. Atitude poética que une o sofisticado ao popular, o existencial denso ao cotidiano
comum, de uma maneira tão fluida e vital, que certos trechos viraram adágios incorporados
ao imaginário do povo brasileiro:

Quando nasci, um anjo torto


desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! Ser gauche2 na vida.

As casas espiam os homens


que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

[...]

Meu Deus, por que me abandonaste


se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,


se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer


mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Atendendo ao apelo do anjo da poesia, Carlos Drummond nasceu na pacata Itabira (MG).
Lá viveu a sua infância, transferindo-se depois para Belo Horizonte e, nos anos 1930, para o Rio de
Janeiro. A vivência e a raiz mineira perpassam toda a obra do autor e serviram de matéria poética
recorrente em livros como Boitempo (1968), Menino Antigo (1876) e A Paixão Medida (1980), além
do citado Alguma Poesia. Nessas obras o poeta recria uma memória afetiva repleta de procedimen-
tos irônicos, como podemos ler no poema a seguir (DRUMMOND DE ANDRADE, 2002, p. 71):

2 De origem francesa, a palavra gauche significa “esquerdo”. Em sentido figurado, quer dizer acanhado, o ser às aves-
sas, que está à margem, meio sem jeito.
Segundo momento modernista: estabilização da consciência criadora nacional (a poesia) 73

Cidadezinha qualquer
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.


Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.

Em Alguma Poesia o poeta surge já maduro e demonstrando as influências recebidas da


fase heroica do Modernismo, principalmente por meio das lições de Mário de Andrade3. O livro
demarca ainda a diversidade temática e formal que caracterizaria a futura produção do poeta,
apresentando procedimentos literários modernos, como: as temáticas de cunho político e social, o
uso da linguagem coloquial, a preocupação com a metalinguagem,
Figura 1 – Estátua do poeta
a intertextualidade e a sintonia com as questões culturais e existen- Carlos Drummond de Andrade
ciais, que permeiam toda a sua produção. na praia de Copacabana, no
Rio de Janeiro.
Carlos Drummond criou um vasto universo poético.

Carlos Vieira
Produziu uma obra cuja qualidade e extensão – mais de 50 volumes
em verso e prosa – serve de referência para toda a poética moder-
na do século XX, para toda a produção contemporânea. Obra que
influenciou autores e movimentos estéticos díspares como o poeta
João Cabral de Melo Neto, pertencente à chamada Geração de 45, o
Tropicalismo e a geração da Poesia Marginal dos anos 1970 e 1980,
além de letristas como Antônio Cícero e Cazuza.

7.3 Jorge de Lima


Mais conhecido como um poeta hermético, Jorge de Lima (1893-1953) é um dos autores hermético: de difícil
compreensão.
mais produtivos e menos estudados dos poetas do segundo momento modernista. Esse afasta-
mento do público e da crítica literária possui uma explicação inicial, que se encontra nas temáticas
religiosas que Jorge de Lima e Murilo Mendes introduzem no contexto da modernidade: não é
comum a recuperação inventiva de imagens bíblicas em poemas modernos, tampouco a audição de
um eu poético que se diz filiado à eternidade, afirmando: “Sou ubíquo: estou em Deus e na matéria”
(LIMA, 2006, p. 89). A porção religiosa que o poeta alagoano desenvolve em sua poética pode ser
entendida da seguinte forma (LEAL, 2005, p. 11):

3 Em contato com o grupo modernista de São Paulo, Carlos Drummond publica, em 1928, na Revista de Antropofagia,
o poema “No meio do caminho”. O texto provoca enorme escândalo literário devido ao seu uso especial da forma livre,
recorrendo a recursos de repetição e de oralidade, além da concisão sugestiva da reflexão existencial e metapoética de
seu conteúdo, elementos que foram considerados pelos críticos tradicionalistas como apoéticos.
74 Literatura brasileira II

Poeta profundamente religioso, Jorge de Lima deixa envolver-se pela sarça ar-
dente da oratória. Imbuído da certeza de que é preciso engenho e fé para romper
as fronteiras do indizível, o poeta aceita atuar como médium, elemento de liga-
ção entre o sagrado da inspiração e o profano do poema.

É importante salientar que, apesar dos temas e das linguagens com tons místicos, o dis-
curso poético de Jorge de Lima não é redundante nem de cunho salvacionista. Exemplar do
domínio técnico do poeta ao tratar da temática religiosa é o texto a seguir. Nele, o eu poético
conecta a sua porção mística com a dimensão sensorial e subjetiva do homem no mundo mo-
derno (LIMA, 2006, p. 89):

Poema do cristão
Porque o Sangue do Cristo
jorrou sobre meus olhos,
a minha visão é universal
e tem dimensões que ninguém sabe.
Os milênios passados e os futuros
não me aturdem, porque nasço e nascerei,
porque sou uno com todas as criaturas,
com todos os seres, com todas as coisas
que eu decomponho e absorvo com os sentidos
e compreendo com a inteligência
transfigurada em Cristo.
Tenho todos os movimentos alargados.
Sou ubíquo: estou em Deus e na matéria;
sou velhíssimo e apenas nasci ontem,
estou molhado dos limos primitivos,
e ao mesmo tempo ressoo as trombetas finais,
compreendo todas as línguas, todos os gestos, todos os signos,
tenho glóbulos de sangue das raças mais opostas.
Posso enxugar com um simples aceno
o choro de todos os irmãos distantes.
Posso estender sobre todas as cabeças um céu unânime e estrelado.
Chamo todos os mendigos para comer comigo,
e ando sobre as águas como os profetas bíblicos.
Não há escuridão mais para mim.

Publicado em 1953, a obra Invenção de Orfeu, seu último e mais cultuado livro, apresenta
predominância, segundo a crítica, de procedimentos técnicos criativos de vanguarda como a inter-
textualidade e a paródia. Almejando escrever a história espiritual da humanidade em Invenção de
Orfeu, a voz lírica do poema de Jorge de Lima “quer ser todos os poetas em um (Dante, Camões,
Virgílio, Homero, Ovídio, John Donne, Rimbaud, Gerard Manley Hopkins), que está em julgamen-
to” (CARPINEJAR, 2005, p. 4). Nessa obra polifônica, “as linguagens esotérica, onírica e confessio-
nal misturam-se com as descobertas da psicanálise, que possibilitaram a apropriação literária do
fluxo livre da consciência, da escrita automática, da enumeração caótica, das técnicas de montagem
e colagem.” (LEAL, 2005, p. 7).
Segundo momento modernista: estabilização da consciência criadora nacional (a poesia) 75

Considerado pela crítica contemporânea como um “épico subjetivo” (CARPINEJAR, 2005,


p. 4), Invenção de Orfeu pode ser compreendido como uma síntese das experiências existenciais e
dos procedimentos estéticos que Jorge de Lima utiliza como poeta, como romancista e como pin-
tor. Vejamos um trecho do “Canto III – poemas relativos” (LIMA, 1974, p. 105):

Vós não viveis sozinhos


os outros vos invadem
felizes convivências
agregações incômodas
enfim ambientalismos,
e tudo subsistências
e mais comunidades;
e tantas ventanias
acotovelamentos,
desgastes de antemão,
acréscimos depois,
depois substituições,
a massa vos tragando,
as coisas vos bisando;
os hábitos, os vícios,
as moças embutidas
mudando vossas cartas;
sereis administrados
no sono e nos pecados,
vós mapas e diagramas
com várias delinquências,
e insanidades várias,
dosando o vosso espaço,
pesando o vosso pão
de tempos racionados;
e não tereis vivido
e não tereis amado,
porém sereis morrido.

7.4 Murilo Mendes


A obra poética de Murilo Mendes (1901-1975), segundo parte da crítica especializada, “é
estranhamente amelódica” (CAMPOS, 2004g, p. 67), isto é, não prioriza a melopeia, o aspecto mu-
sical do verso. A noção de visibilidade, de imagem plástica, é recorrente, no entanto, nessa poesia
que se deixa atravessar por elementos surrealistas, o que significa falar em sonhos, mitos, em mer-
gulho criativo no universo da imaginação e do inconsciente. Tais elementos se desvelam no poema
a seguir, do livro O Visionário (MENDES, 1959, p. 79):
76 Literatura brasileira II

Pré-história
Mamãe vestida de rendas
Tocava piano no caos.
Uma noite abriu as asas
Cansada de tanto som,
Equilibrou-se no azul,
De tonta não mais olhou
Para mim, para ninguém!
Cai no álbum de retratos.

A incidência de informações míticas, oníricas, imaginárias postula uma forma estética es-
pecífica, como podemos apreender no poema “Panorama”: “Uma forma elástica sacode as asas no
espaço/ e me infiltra a preguiça, o amor ao sonho” (MENDES, 1959, p. 17). Além de surrealista, a
poesia desse mineiro de Juiz de Fora apresenta uma temática até então ausente da poética moderna
brasileira: a religiosidade.
Contudo, trata-se de uma poética religiosa que não propõe dogmas nem liturgias. A escrita
de Murilo Mendes se volta para um mundo no qual o sujeito traça relações de filiação da história
do cotidiano com um plano atemporal, como sugere o livro Tempo e Eternidade: “Eu sou da raça do
Eterno/ Fui criado no princípio” (MENDES, 1959, p. 123).
Além de buscar em sua poética uma visão física da eternidade (CAMPOS, 2004g, p. 69),
o tema da religiosidade traz também, na obra de Murilo Mendes, a necessidade ética e estética
de transformação existencial. Um desejo de transformação do particular em universal que põe
em cena ideias de totalidade, universalidade, ubiquidade, que, segundo o crítico João Alexandre
Barbosa (BARBOSA, 1986, p. 36), fundamentam o projeto poético da modernidade. Busca perene
por transformações que se entremostram em vários textos do autor e, mais especificamente, no
final do poema “Mapa” (MENDES, 1959, p. 37):
[...]
estou no ar,
na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
no meu quarto modesto da praia de Botafogo,
no pensamento dos homens que movem o mundo,
nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,
sempre em transformação.

7.5 Cecília Meireles


A poética de Cecília Meireles (1901-1964) é marcada por apresentar, em plena modernidade,
fortes ecos e ressonâncias de estilos e correntes estéticas diversas do passado, como o Classicismo,
o Romantismo, o Simbolismo. Sua vasta bibliografia ostenta formas e gêneros também múltiplos,
como o poema, a prosa, o teatro, o ensaio, a literatura infanto-juvenil.
Elementos etéreos, musicais e fluidos surgem com frequência nessa poética em que tudo
parece em estado constante de transição e fuga, o que acentua as ressonâncias simbolistas e român-
ticas no estilo da poeta. Ao analisarmos os títulos dos poemas que compõem o livro Mar Absoluto,
de 1945, encontramos uma clara reincidência de vocábulos típicos das escolas literárias às quais
nos referimos: “Noturno”, “Canção”, “Suspiro”, “Amor-perfeito”, “Os mortos”, “Noite”, “Trânsito”...
Segundo momento modernista: estabilização da consciência criadora nacional (a poesia) 77

Pegadas fortes do estilo romântico-simbolista surgem nos dois poemas que ganham o
mesmo título – “Romantismo”, do livro Mar Absoluto. Num deles lemos um eu poético que diz
(MEIRELES, 1973, p. 50):

Seremos ainda românticos


– e entraremos na densa mata,
em busca de flores de prata,
de aéreos, invisíveis cânticos.
[...]

No arquivo de revitalização de formas neoclássicas e modernas que compõem a estética de


Cecília Meireles, destaca-se o belíssimo livro Romanceiro da Inconfidência, de 1953. O referido
volume de versos contém uma narrativa poética – ou uma “narrativa rimada”, como cognomina
a própria autora – cuja temática é a Inconfidência Mineira. Baseada nesse episódio de nossa his-
tória, a autora poetiza o contexto sociopolítico da cidade de Vila Rica (MG), no período do Brasil
Colônia em que ocorreu o ciclo do ouro.
A seguir, apresentamos um trecho do referido livro. Vejamos como, ao traçar o caminho
pelo qual homens e diamantes se entrecruzam na então capital mineira, a poeta exibe toda a sua
consciência histórica, perpassada de pinceladas românticas, expressas no culto à natureza, na exal-
tação do passado e, entre outros, nos motivos religiosos, que permeiam os seguintes versos do
Romanceiro da Inconfidência (MEIRELES, 1975, p. 74-75):

Romance XXI ou das ideias


A vastidão desses campos.
A alta muralha das serras.
As lavras inchadas de ouro.
Os diamantes entre as pedras.
Negros, índios e mulatos.
Almocrafes e gamelas.
Os rios todos virados.
Toda revirada, a terra.
Capitães, governadores,
padres, intendentes, poetas.
Carros, liteiras douradas,
cavalos de crina aberta.

A água a transbordar das fontes.


Altares cheios de velas.
Cavalhadas. Luminárias.
Sinos, procissões, promessas.
Anjos e santos nascendo
em mãos de gangrena e lepra.
Finas músicas broslando
as alfaias das capelas.
Todos os sonhos barrocos
deslizando pelas pedras.
Pátios de seixos. Escadas.
Boticas. Pontes. Conversas.
Gente que chega e que passa.
E as ideias.
78 Literatura brasileira II

7.6 Vinicius de Moraes


Formado em Direito, no Rio de Janeiro, o poeta carioca Vinicius de Moraes (1913-1980)
estudou Língua e Literatura Inglesa em Oxford, na Inglaterra. Trabalhou também como diplomata
em Los Angeles, onde ouviu muito jazz e estudou cinema com Orson Welles. Além de literato, dra-
maturgo, crítico de cinema e cronista, o poeta da paixão produziu uma vasta obra musical e, como
compositor, foi um dos fundadores da Bossa Nova, estabelecendo parcerias hoje clássicas com o
maestro Antonio Carlos Jobim.
Vinicius de Moraes produziu alguns dos poemas e canções que ganharam o gosto popular
e que se transformaram em clássicos da arte brasileira. Podemos destacar o “Soneto da fidelidade”,
escrito em 1939, que é um dos textos mais conhecidos e declamados da nossa literatura. A temática
amorosa, o domínio requintado da musicalidade do verso, a angústia existencial, a noção dos tra-
ços efêmeros e transitórios da vida e do amor parecem sintetizar, nesse poema, a concepção geral
da arte literária de um poeta que transitou da poesia metafísica para a moderna ao longo de sua
trajetória poética. Vejamos (MORAES, 2005a, p. 40):

Soneto da fidelidade
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento


E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure


Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):


Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Para o poeta moderno Manuel Bandeira (2005, p. 251), Vinicius de Moraes é um autor de
múltiplas características literárias e que possui “o fôlego dos românticos, a espiritualidade dos sim-
bolistas, a perícia dos parnasianos (sem refugar, como estes, as sutilezas barrocas), e, finalmente,
homem bem do seu tempo, a liberdade [...] dos modernos”. A seguir, leremos um texto do poeta
carioca no qual o fôlego dos românticos é expresso no sentimento de nacionalidade, e a espiritua-
lidade dos simbolistas é sugerida nos gestos e lágrimas paternos. A forma e a liberdade do poe-
ma complementam a faceta moderna que Manuel Bandeira apreendeu na poética de Vinicius de
Moraes (2005a, p. 94):
Segundo momento modernista: estabilização da consciência criadora nacional (a poesia) 79

Pátria minha
A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:


Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria


De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho


Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!
[...]

Ampliando seus conhecimentos

A máquina do mundo4
(DRUMMOND DE ANDRADE, 1978, p. 197-198)

E como eu palmilhasse vagamente


uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

4 No ano 2000, esse poema de Carlos Drummond de Andrade foi selecionado por um grupo de críticos e escritores
brasileiros como o melhor poema brasileiro de todos os tempos, em matéria do jornal Folha de S. Paulo.
80 Literatura brasileira II

a máquina do mundo se entreabriu


para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
[...]
Segundo momento modernista: estabilização da consciência criadora nacional (a poesia) 81

Dicas de estudo
Para outras abordagens acerca das obras dos poetas mais representativos do segundo mo-
mento modernista, recomendamos:
• POETA de sete faces. Direção e roteiro de Paulo Thiago. Rio de Janeiro: Rio Filme, 2002.
94 min.
• VINICIUS. Direção de Miguel Faria Jr., Rio de Janeiro: 1001 Filmes, 2005. 122 min.
O primeiro filme é baseado na vida e na obra de Carlos Drummond de Andrade, com
direção de Paulo Thiago, e traz o ator Carlos Gregório no papel do poeta. O segundo é
uma cinebiografia do poeta Vinicius de Moraes, com direção de Miguel Faria. O longa
apresenta as múltiplas faces de Vinicius – poeta, músico, cronista, diplomata, amante,
dramaturgo... – e contém depoimentos marcantes de intelectuais como Ferreira Gullar,
Antonio Candido, Chico Buarque, entre outros;
• QUATRO séculos de poesia brasileira por Paulo Autran. Rio de Janeiro: Luz da cidade,
2002. 1 CD-ROM. Idealizado e produzido por Paulinho Lima, o CD traça o percurso poé-
tico nacional do Barroco ao Modernismo, do qual podemos destacar poemas de Cecília
Meireles, Vinicius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade;
• CANÇADO, Jose Maria. Os Sapatos de Orfeu: biografia de Carlos Drummond de Andrade.
Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2012.
• KAZ, Leonel. Drummond frente e verso: fotobiografia Carlos Drummond de Andrade.
Rio de Janeiro: Alumbramento, 1989.
• CASTELLO, José. Vinicius de Moraes: o poeta da paixão. São Paulo: Cia das Letras, 1994.

Atividades
1. Quais são as diferenças mais evidentes que podemos localizar entre as principais poéticas do
segundo momento modernista?

2. Releia o seguinte fragmento do “Poema do cristão”, de Jorge de Lima, e relacione-o com as


ideias que, segundo o crítico João Alexandre Barbosa, caracterizam a modernidade e que
podem ser lidas também na poética de Murilo Mendes.

Tenho todos os movimentos alargados.


Sou ubíquo: estou em Deus e na matéria;
sou velhíssimo e apenas nasci ontem,
estou molhado dos limos primitivos,
e ao mesmo tempo ressoo as trombetas finais,
compreendo todas as línguas, todos os gestos, todos os signos,
tenho glóbulos de sangue das raças mais opostas.
8
A prosa dos anos 30

Neste capítulo vamos conhecer a produção literária de um período que ficou conhecido na
historiografia da literatura brasileira como o Romance Moderno de 1930. Para isso, objetivamos
refletir acerca das duas vertentes básicas que fundamentam a prosa de ficção da segunda fase mo-
dernista: o romance social nordestino e o romance intimista.
Com esse intuito, analisaremos as obras de alguns dos mais importantes ficcionistas e cro-
nistas do período: Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Erico Verissimo, Jorge
Amado, Lúcio Cardoso e Marques Rabelo.

8.1 As duas faces da prosa dos anos 30


As duas faces da prosa moderna produzida nos anos 30 são: de um lado, o romance nordes-
tino; de outro, o romance intimista. Também chamada de introspectiva, a produção romanesca do
período explora o fluxo da consciência e as características psicológicas dos seus personagens. E, não
por acaso, teve como expoentes autores católicos, como Lúcio Cardoso e Otávio de Faria.
O romance social nordestino dos anos 30 pode ser compreendido como uma segunda flora-
ção da estética realista/naturalista em nossas letras. Diferente da forma como acontecera no século
XIX, ainda retórica e determinista, a prosa romanesca de cunho social surge agora sob um viés
mais politizado, de busca direta de apreensão da fala e da cultura do povo esquecido e abandonado
do mundo rural brasileiro, numa denúncia típica do maior amadurecimento estético e social da
segunda fase modernista (BOSI, 1994, p. 385):
A prosa de ficção encaminhada para o realismo bruto de Jorge Amado, de José
Lins do Rego, de Erico Verissimo e, em parte, de Graciliano Ramos, beneficiou-
-se amplamente da “descida” à linguagem oral, aos brasileirismos e regionalis-
mos léxicos e sintáticos, que a prosa modernista tinha preparado. E até mesmo
em direções que parecem espiritualmente mais afastadas de 22 (o romance inti-
mista de Otávio de Faria, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena), sente-se o desrecalque
psicológico “freudiano-surrealista” ou “freudiano-expressionista” que também
chegou até nós com as águas do Modernismo.

8.2 Rachel de Queiroz e José Lins do Rego


Rachel de Queiroz (1910-2003) estreou como escritora, nos anos 1920, colaborando para
jornais. Publicou depois romances, peças teatrais, literatura infanto-juvenil e crônicas. Diga-se de
passagem, muitas crônicas. Sua bibliografia ostenta mais de dez volumes de crônicas reunidas, que
vieram à lume na imprensa brasileira durante mais de 50 anos. Segundo a ensaísta que organizou
as crônicas dessa parenta do escritor romântico José de Alencar, “quando Rachel era perguntada
sobre a sua atividade nas letras, ela não hesitava e respondia: ‘Antes de mais nada, sou jornalista’”
(HOLLANDA, 2004, p. 7).
84 Literatura brasileira II

Afirmando, com uma frase de efeito paradoxal, que era mais jornalista do que escritora,
Rachel de Queiroz, em suas memórias, fala-nos de suas primeiras leituras e nos auxilia a trilhar os
caminhos que levam à sua criação. Ao relembrar o universo intelectual de sua infância, no qual ha-
via muita ideologia política, apresenta o ambiente literário em que foi criada. “A biblioteca materna
formada por Eça, Balzac, Machado, Alencar e Flaubert, dentre outros, teve forte influência na for-
mação da escritora. Sua mãe idem: era leitora de Gorki e dos russos do final do século” (SOARES,
1993, p. 10).
As condições sociais e existenciais do sertanejo na região Nordeste, além de uma certa
inquietação relacionada à passagem do tempo, são temas recorrentes nos escritos de Rachel de
Queiroz. “A reflexão sobre o tempo é, ao mesmo tempo, sua grande contribuição literária e sua dor
fundamental. A lucidez, muitas vezes desconfortável, sobre o fluir do tempo, acompanhou Rachel
desde seus primeiros escritos” (HOLLANDA, 2004, p. 16).
A crônica “Felicidade”, publicada em 1955, serve de exemplo da temática temporal: “Nessa
nudez, nesse despojamento de tudo, dê-lhes Deus um inverno razoável que sustente o legume, um
pouco de água e não pedem mais nada. De que é que eles gostam? [...] Namoram sobriamente e,
se apreciam mulher, como é natural, pouco falam nisso” (QUEIROZ apud HOLLANDA, 2004,
p. 146). Vejamos a seguir, na conclusão da crônica “Um alpendre, uma rede, um açude”, de 1947,
como os temas do sertanejo e do tempo se imbricam num mesmo contexto: “O chão não se acaba
– e afinal de contas só do chão precisa o homem, para sobre ele andar enquanto vivo e no seu seio
repousar depois de morto” (QUEIROZ apud HOLLANDA, 2004, p. 106).
Assim como Rachel de Queiroz, o escritor José Lins do Rego (1901-1957) é um dos nomes
mais representativos da prosa moderna dos anos 1930 e têm os sertanejos da região Nordeste como
base contextual e temática da sua escritura.
Descendente de senhores de engenho, o romancista soube fundir numa lingua-
gem de forte e poética oralidade as recordações da infância e da adolescência
com o registro intenso da vida nordestina colhida por dentro, através dos pro-
cessos mentais de homens e mulheres que representam a gama étnica e social da
região. (BOSI, 1994, p. 398)
Composta por mais de vinte títulos, repletos de figurações dos engenhos da cana-de-açúcar
e da fé nordestina, a obra de José Lins do Rego se deixa atravessar, também, por referências à cultu-
ra do povo. Suas páginas apresentam signos da história do cangaço, da religiosidade popular e do
ciclo da cana-de-açúcar. O registro memorialístico e a observação das pessoas e dos fatos estão na
“gênese” da obra do autor e se desdobram, reincidentes, na sua produção posterior.
A gênese do ciclo inicial da sua obra, formado por Menino de Engenho, Doidinho,
Banguê, O Moleque Ricardo e Usina, é, portanto, dupla, a memória e a obser-
vação, sendo a primeira responsável pela carga afetiva capaz de dinamizar a
segunda e dar-lhe aquela crispação que trai o fundo autobiográfico: e, de fato, a
leitura de Meus Verdes Anos, história veraz da infância do escritor, logo nos faz
reconhecer pontos nodais do romance de estreia, Menino de Engenho. (BOSI,
1994, p. 398)
A prosa dos anos 30 85

8.3 Graciliano Ramos


Nascido em Alagoas, o escritor Graciliano Ramos (1892-1953) pode ser considerado como o
principal representante do Romance Moderno de 1930. Nessa década, ele publica os quatro livros
mais representativos de sua obra romanesca – Caetés (1933), São Bernardo (1934), Angústia (1936)
e Vidas Secas (1938) –, tornando-se um autor reconhecido pela construção de uma linguagem
seca e econômica, sofisticada na sua correção e sutileza, traços que ultrapassam o perfil usual do
escritor regionalista.
A linguagem de Graciliano Ramos caracteriza-se pela utilização do vocábulo enxuto, com
pouquíssima adjetivação, e pela produção da frase curta. Sua prosa é depurada, “precisa”, por isso
a crítica literária o chama de “escritor substantivo”. A construção sintática do texto de Graciliano é
geralmente linear, e há nos seus romances um lirismo latente que parece querer emergir, mas que
apenas se insinua, de modo fugaz, de quando em vez para o leitor.
A recepção crítica de sua obra é excelente. Para alguns estudiosos, Graciliano Ramos sabe
“literalmente usar o mínimo de palavras e as palavras mais simples e mesmo coloquiais, para al-
cançar um fim mais rico. Pobreza de meios e riqueza de fins, em suma. Pobreza como virtude e
não como deficiência” (ATHAYDE, 1992, p. 197). Já a crítica que relaciona o contexto histórico e os
procedimentos estéticos, enfatiza, na narrativa do autor alagoano, uma “íntima solidariedade entre
a condição de carência, que é a de sua região e suas ‘vidas secas’, e os meios literários utilizados para
representá-la” (BARBOSA, 1983, p. 35).
Tradutor do livro A Peste, do escritor Albert Camus1, Graciliano Ramos “representa, em
termos de romance moderno brasileiro, o ponto mais alto de tensão entre o eu do escritor e a so-
ciedade que o formou” (BOSI, 1994, p. 400). Referindo-se especificamente à prosa romanesca de
Angústia, o crítico Alfredo Bosi diz: “Romance existencialista avant la lettre, Angústia foi a expres-
são mais moderna, e até certo ponto marginal, de Graciliano Ramos. Mas a sua descendência na
prosa brasileira está viva até hoje” (BOSI, 1994, p. 403).
Angústia narra o drama de um intelectual pequeno burguês, o funcionário público Luís da
Silva, de 35 anos. Homem viajado, ele trabalha na imprensa e escreve resenhas sobre romances.
É um funcionário marcado pelo regulamento e que tem as mãos trêmulas. Sua vida é estúpida e
monótona. Sente um rato roer-lhe as entranhas. Leitor de livros amenos, ele escreve por encomenda
e tem desejo de outras viagens.
Livro cujo narrador-protagonista fala em 1a pessoa, Angústia é o único romance urbano de
Graciliano Ramos. É também o livro no qual os aspectos psicológicos e existenciais dos seus per-
sonagens são mais explorados. Trata-se de uma narrativa memorialista, repleta de introspecção, e
que tem a loucura e o crime como temas. Mas não é só isso: o romance narra também a história de
amor de Luís da Silva por Marina, a jovem vizinha virgem: “Gastei meses construindo esta Marina
que vive dentro de mim, que é diferente da outra, mas se confunde com ela” (RAMOS, 1986, p. 69).

1 Albert Camus (1913-1960) nasceu na Argélia, mas é reconhecido como um escritor francês. É autor de um clássico da
literatura existencialista do século XX: o romance O Estrangeiro.
86 Literatura brasileira II

Angústia apresenta poucos diálogos. Chama a atenção do leitor a presença de vários insetos
e animais, como pulgas, ratos, cobras, grilos, formigas, gato, papagaio, cujas presenças metaforizam
a dimensão instintiva do ser humano. O romance é um livro no qual o narrador confessa a sua
angústia afetiva: “O amor para mim sempre fora uma coisa dolorosa, complicada e incompleta”
(RAMOS, 1986, p. 106).
Nesse terceiro romance de Graciliano Ramos, o leitor é bastante solicitado. Numa narrativa
em que a voz do narrador se detém frequentemente em signos inusitados como, por exemplo, as
paredes, as frases inconclusas e a presença de várias elipses, a recorrência a esses procedimentos
torna o texto às vezes meio enigmático e mais denso. Tais recursos utilizados pelo autor possibi-
litam a surpresa, o inusitado, exigindo um amplo repertório e a participação constante do leitor.

8.4 Jorge Amado


Dono de uma bibliografia que ostenta cerca de 50 títulos, e tendo sua obra traduzida para
mais de cinquenta países, Jorge Amado (1912-2001) é o escritor moderno brasileiro mais conhe-
cido no Brasil e no mundo. Sua obra ganhou várias adaptações para o cinema e para a televisão.
Devido ao contexto festivo dos lançamentos de seus livros, entre outras coisas, repletos de alusões
políticas e partidárias, e devido ao excesso de alegria e de sexo em suas páginas, que acabam por
configurar um perfil de literatura popular e de massa, a obra literária de Jorge Amado é recebida
por parte da crítica especializada com uma certa dose de desconfiança. Acerca da recepção dessa
obra e dos seus personagens, podemos ler (CASTELLO, 2008, p. 3):
eles são seres míticos, representativos e simples – como a forte Gabriela, para
quem coragem e sensualidade são uma coisa só, e o inconstante Vadinho que,
em “Dona Flor” nos leva à fronteira do impossível. Estes personagens sedutores
e fortes despertam, sempre, a suspeita de simplicidade.
Respondendo a essa crítica, que considera simplificadora e populista a obra do autor baia-
no, a seguir apresentaremos uma defesa positiva dos traços específicos dos personagens de Jorge
Amado, que permeiam as páginas de suas narrativas da seguinte forma (CASTELLO, 2008, p. 3):
como os grandes personagens da mitologia clássica, divididos entre impulsos
selvagens e ideias nobres, os personagens de Amado também se debatem entre
os apelos da carne e os limites da vida social. Muitas vezes se diz que eles não
passam de seres mundanos e preguiçosos. Amado distinguia, porém, a preguiça
da vadiagem. A vadiagem, ele pensava, inclui a inquietação e se sustenta em
uma série de pequenos prazeres que, se são prazeres, são também impulsos de
vida – como as obsessões, as fantasias e as ideias fixas.
Lendo Jubiabá (1935) como o romance de formação proletário, a crítica acadêmica contem-
porânea observa nele a projeção inesperada de um herói marginalizado, cujo perfil agrega várias
faces da exclusão social no Brasil: negro, pobre e favelado. Ainda segundo essa leitura, o livro de
A prosa dos anos 30 87

Jorge Amado filia-se também às formas da cultura popular que se expressam nos causos orais
da tradição sertaneja e nos folhetos de cordel. Acerca dessas questões, podemos ler (DUARTE,
1996, p. 79): “é preciso ressaltar o ineditismo de um romance cujo herói é negro, pobre e favelado.
Acrescente-se a isso a condição de ganhar a vida no trabalho braçal, seja nas plantações de tabaco
ou no cais do porto”.

8.5 Erico Verissimo


O escritor gaúcho Erico Verissimo (1905-1975) dividiu com Jorge Amado o sucesso entre
o grande público e, também, uma certa reserva por parte da crítica culta. Teve ainda, assim como
o romancista baiano, algumas de suas obras transpostas para o cinema e para a TV, o que muito
contribuiu para a popularidade do autor e de sua produção literária.
Além de grande escritor, Erico Verissimo foi também professor de Literatura Brasileira na
Universidade da Califórnia, na década de 1950, tendo publicado depois, com base nessa experiên-
cia pedagógica, uma Breve História da Literatura Brasileira.
Persistindo no jogo de duplos com Jorge Amado, podemos afirmar que, da mesma forma
que o autor baiano é reconhecido como aquele que melhor transpôs para as páginas literárias a vida
social e os costumes culturais do povo de sua região, o autor de Olhai os Lírios do Campo foi quem
retratou de modo mais contundente os costumes sociais da burguesia componente da sociedade
gaúcha da primeira metade do século XX (BOSI, 1994, p. 408):
para compor a saga pequeno burguesa gaúcha depois de 1930, o romancista bus-
cou realizar um meio-termo entre a crônica de costumes e a notação intimista.
A linguagem com que resolveu esse compromisso é discretamente impressionista,
caminhando por períodos breves, justaposições de sintaxes, palavras comuns e,
forçosamente, lugares-comuns da psicologia do cotidiano. A aparente frouxidão
que adveio da fórmula encontrada pareceu a certos leitores sinal de superficia-
lidade. Mas era, na verdade, o meio ideal de não perder nenhum dos polos de
interesses que atraiam a personalidade de Erico Verissimo: o tempo histórico do
ambiente e o fluxo de consciência das personagens. (grifos do original)
A busca desses dois “polos” – o tempo histórico e o fluxo de consciência das personagens – não
livra o autor de situar-se numa mediania de concepção de obra e estilo, assim justificada (BOSI,
1994, p. 408):
Não se trata, aqui, de fechar os olhos aos evidentes defeitos da fatura que man-
cham a prosa do romancista: repetições abusivas, incerteza na concepção de
protagonistas, uso convencional da linguagem...; trata-se de compreender o
nexo de intenção e forma que os seus romances lograram estabelecer quando
atingiram o social médio pelo psicológico médio. E era necessário que a nossa
literatura conhecesse também a planície ou, valha a metáfora, as modestas ele-
vações da coxilha.
88 Literatura brasileira II

8.6 Lúcio Cardoso


Além de romancista e dramaturgo, o mineiro Lúcio Cardoso (1913-1968) atuou na primeira
metade do século XX, no Rio de Janeiro, como jornalista e pintor. Mas a força central de sua criação
se dá na prosa romanesca, gênero próprio para a pesquisa em profundidade da dimensão interna
do homem, seus universos oníricos e crises por ser e estar no mundo (BOSI, 1994, p. 413):
desde Maleita, história de um construtor perdido numa pocilga do sertão mi-
neiro, Lúcio Cardoso revelava pendor para a criação de atmosferas de pesadelo.
[...] em 1936, com A Luz no Subsolo, o escritor se definiria pelo romance de
sondagem interior a que lograria dar uma rara densidade poética.
Em 1959, Lúcio Cardoso publica Crônica da Casa Assassinada – o livro que lhe deu maior vi-
sibilidade como romancista. Levemente influenciado pelas técnicas das vanguardas, o autor man-
tém sua densidade poética e existencial (BOSI, 1994, p. 413):
Lúcio Cardoso e Cornélio Pena foram talvez os únicos narradores brasi-
leiros da década de 30 capazes de aproveitar sugestões do surrealismo sem
perder de vista a paisagem moral da província que entra como clima nos
seus romances. [...] Lúcio Cardoso não é um memorialista, mas um inventor
de totalidades existenciais.

8.7 Marques Rebelo


O escritor Marques Rebelo (1907-1973) começou publicando contos. O seu primeiro livro –
Oscarina – foi editado em 1931, tendo uma excelente recepção crítica. Escreveu depois romances,
novelas, contos, crônicas e biografia.
Herdeiro da prosa urbana que o nosso primeiro Modernismo inaugurou, o autor carioca
se mostra “Profundamente vinculado à paisagem moral do Rio, e especialmente do Rio de classe
média da Zona Norte”; universo temático que Marques Rebelo continuou explorando “em contos
e romances escritos nos decênios de 1930 e 1940” (BOSI, 1994, p. 409).
Apesar da herança e da dívida com os autores modernistas da fase heroica, Marques Rebelo
não rompe com a tradição literária, como fizeram autores como Oswald e Mário de Andrade nos
anos 1920. Na verdade, a filiação literária de Marques Rebelo finca raízes em momentos anteriores
de nossa tradição literária (BOSI, 1994, p. 410):
a sua obra insere-se, pelos temas e por alguns traços de estilo, na linha de Manuel
Antonio de Almeida (de quem escreveu uma viva biografia), de Machado de
Assis e de Lima Barreto. Com eles o autor de Oscarina aprendeu a manejar os
processos difíceis do distanciamento, o que lhe permitirá contar os seus casos de
infância e do cotidiano com uma objetividade tal que a ironia e a pena difusas
não o arrastariam ao transbordamento romântico.
Sob essa perspectiva, o autor de A Estrela Sobe (1939) produz, “na sua simplicidade, uma arte
clássica”, que apresenta o seguinte pressuposto (BOSI, 1994, p. 410):
a sábia dosagem de proximidade e distância do narrador em face dos seres da
ficção é o pressuposto do neorrealismo de Marques Rebelo e a chave de uma
obra que testemunha o povo, sem populismo, e fixa as angústias do homem da
rua sem a mais leve retórica.
A prosa dos anos 30 89

Ampliando seus conhecimentos

Noite2
(VERISSIMO, 2005)

Sempre cito “O Continente”, primeiro volume da trilogia O Tempo e o Vento, quando me per-
guntam qual o livro do meu pai que prefiro. Mas tenho outro favorito, um romance curto, um
anti-O Tempo e o Vento, que as pessoas às vezes esquecem. Talvez porque eu tenha acompa-
nhado sua feitura mais de perto. Noite foi todo escrito na praia de Torres, e me lembro de ficar
esperando para ler cada lauda assim que saía da máquina de escrever que o pai colocava sobre
a mesa depois do almoço e na qual trabalhava a tarde inteira.
Segundo a tradição de Torres, na época, nas manhãs ia-se para a Praia Grande, de tarde fica-
va-se em casa ou ia-se jogar bola e tomar banho de mar na Guarita. Durante muitos dias, adiei
meu programa da tarde para ficar lendo as páginas do Noite ainda quentes do forno, ouvindo
do pai a advertência de que faltavam as correções no que eu estava lendo. Ele batia à máquina
com os dez dedos, com grande rapidez, deixando amplos espaços entre as linhas. Depois revi-
sava o que tinha escrito, cortava ou acrescentava palavras e linhas, e copiava a página cor-
rigida. Li o Noite nas suas várias versões, a “crua” e a pronta. É um livro sombrio, apesar de
escrito num verão ensolarado. A ação se passa numa única noite, em que um homem perdido
numa cidade que não reconhece, pois perdeu até a memória, é levado por duas figuras diabó-
licas num mergulho às entranhas da noite e da cidade, que é ao mesmo tempo um mergulho
na sua própria alma cheia de culpas reais ou imaginárias, também não identificadas. O pai
escreveu em Solo de Clarineta, seu livro de memórias, que não pretendeu fazer mais do que um
exercício literário, insistindo que não escreveu a novela “para exorcizar nem mesmo cutucar
fantasmas que porventura assombrassem a casa do meu ser” mas muita gente não acreditou
nisso, interpretou o simbolismo do livro de várias maneiras ou simplesmente não gostou. Eu
acho que é um dos livros mais bem escritos do autor – e posso atestar que o estado da sua alma,
naquele verão de Torres, não tinha nada de sombrio.
Ou será que tinha? Escrevi acima que Noite era um anti-O Tempo e o Vento para dar uma ideia
do seu tamanho, em contraste com os três volumes alentados da trilogia. Mas também foi um
anti-O Tempo e o Vento no sentido de ser uma manobra diversionista do autor, para protelar
o começo da obra que precisava escrever, “O Arquipélago”, a parte final da trilogia. Que só foi
terminar anos depois. E na qual, aí sim, na cena da reconciliação de Floriano Cambará com o
pai, ele exorcizou um fantasma.

Atividades
1. Estabeleça um comentário a respeito dos principais traços que distinguem os textos literá-
rios de José Lins do Rego e de Lúcio Cardoso.

2. Qual é a chave para a leitura da prosa romanesca de Marques Rebelo?

2 Esse texto foi escrito por Luís Fernando Verissimo, filho do escritor Erico Verissimo, e publicado na seção “Artigos” do
site criado pelo Governo Estadual do RS, em 2005, em comemoração ao centenário de nascimento de Erico Verissimo.
O título do texto refere-se à novela Noite, por ele publicada em 1954.
9
O ensaísmo social

Neste capítulo, vamos adentrar em um universo com o qual a nossa arte moderna dialo-
gou com frequência, desde as suas origens, nos primórdios do século XX: o ensaio sociológico
e estético, que tem como temas principais a formação do Brasil e a busca de definição de uma
identidade nacional.
Ao abordarmos essa produção ensaística de tons reflexivos e referenciais, nosso objetivo é
localizar a importância do texto de raiz socioantropológica para o delineamento de um perfil cul-
tural do povo brasileiro, específico do pensamento modernista. Partindo de tal proposta, podemos
destacar três nomes e suas respectivas obras mais importantes: Paulo Prado, autor de um pungente
ensaio sobre a tristeza brasileira, Retrato do Brasil; Sérgio Buarque de Holanda, que concebe um
dos livros fundamentais para pensarmos a nossa brasilidade, Raízes do Brasil, no qual surge o
conceito-chave de homem cordial; e Gilberto Freyre, criador do ideário luso-tropicalista, no arqui-
famoso Casa-Grande & Senzala.

9.1 O pensamento social


e antropológico no Modernismo
Na tentativa de reflexão acerca de nosso passado cultural, o ensaísmo social contem-
porâneo se detém sobre as manifestações históricas que indicam um “desejo de reforma” na-
cional, como podemos encontrar no contexto moderno das primeiras décadas do século XX
(DUTRA, 2000, p. 236):
a famosa Semana de Arte Moderna em 1922, as revistas e manifestos de inte-
lectuais, o movimento tenentista, a marcha da coluna Prestes, a fundação do
Partido Comunista, a fundação do Partido Republicano Paulista em 1926, a
criação de um Bloco Operário e Camponês para concorrer às eleições legislati-
vas de 1928, são alguns indicadores históricos dos ímpetos do desejo de reforma
e do rebuliço que agitava o país, movimentado pelos que clamavam por um
Brasil novo e reconciliado com a modernidade.

Nesse contexto de mutações políticas e estéticas, o intelectual moderno brasileiro, procuran-


do “definir” o estatuto de sua performance no cenário cultural de seu tempo, mostra-se interessado
na construção de uma identidade nacional que não seja ufanista, como a da geração anterior, mas,
sim, autêntica, de raiz, presa a processos de estruturação de nossa materialidade histórica. Acerca
dessa problemática, diz a crítica contemporânea (VELOSO, 1999, p. 139):
nas décadas de 1920 e 1930, [...] o intelectual se imbui da vocação, da missão de
organizar o Brasil, de organizar a cultura e, principalmente, de identificar e de
construir uma identidade nacional que fosse autêntica, que fosse enraizada na
própria história brasileira.
92 Literatura brasileira II

Imbuídos da missão organizadora de desvelar o perfil verdadeiro do país, com base em


suas experiências e instrumentais específicos de suas formações, os ensaístas Paulo Prado, Sérgio
Buarque de Holanda e Gilberto Freyre são considerados os principais intérpretes do Brasil do pe-
ríodo. Reconhecidos internacionalmente, seus livros servem de base para uma releitura crítica
moderna e construtiva de nossa colonização e de nossa formação nacional.
Embora os três textos possuam o pretérito como tempo de reflexão de seus núcleos temá-
ticos, é importante ressaltar que há uma preocupação em compreender o passado sob uma ótica
presente, desconstruindo versões oficiais de nossa história e pesquisando novas interpretações e
perspectivas de olhar, pois, nesses ensaios, “o passado não é considerado como origem a ser repro-
duzida, mas como descobrimento de novas possibilidades do vir a ser” (VELOSO, 1999, p. 144,
grifo do original).

9.2 Paulo Prado e o retrato do Brasil


O ensaísta Paulo Prado (1869-1943) foi um importante mecenas paulista, que ficou conhe-
cido nos universos artísticos e estéticos brasileiros ao prefaciar, em 1924, o livro de poemas Pau-
-Brasil, do escritor moderno Oswald de Andrade. Sua presença na arte e na cultura brasileiras pode
ser dimensionada da seguinte forma (BOSI, 1994, p. 376):
A Paulo Prado deve-se, em parte, a própria realização da Semana, que ele apoiou
não só material como espiritualmente. Ponta de lança da burguesia paulista, a
sua atividade de promotor da imigração vinha do começo do século; e o trato
assíduo dos problemas étnicos e sociais do país despertou-lhe o gosto da refle-
xão psicológica sobre o homem brasileiro, hábito meio científico, meio literário,
que vinha de longe e tivera nas obras de Euclides e Oliveira Viana os exemplos
mais vistosos.

A performance estética de Paulo Prado, a sua atuação intelectual no início do século no apo-
geu do nosso primeiro Modernismo, tem suas bases no cruzamento de dois eixos formativos de
nossa intelectualidade moderna: um, de origem interna, situa a sua obra como um desdobramento
da ensaística nacionalista, de fundo sociológico e cientificista, de fins do século XIX; o outro, colo-
ca-o como homem antenado com as novidades das vanguardas europeias, suas reflexões estéticas
de ruptura e busca de novidade (DUTRA, 2000, p. 237):
homem de sobrenome ilustre, de família da aristocracia paulista, intelectual
refinado, com circulação nos meios intelectuais parisienses, de onde se ori-
gina sua amizade com o poeta Blaise Cendrars, participante ativo das hostes
modernistas de 1922, discípulo intelectual, em idade madura, do historiador
Capistrano de Abreu, partner de Monteiro Lobato na Revista do Brasil, colabo-
rador de Mário de Andrade e Alcântara Machado na Revista Nova, Paulo Prado,
ao lado de outros nomes integrantes da intelectualidade brasileira de então,
viveu intensamente o período entre os anos de 1900 e 1922-1928.

Foi no ano de 1928 que Paulo Prado publicou o seu livro Retrato do Brasil, tendo como fonte
de inspiração o livro A Estética da Vida, de Graça Aranha. O ensaio é repleto de jogos intertextuais
com outras obras literárias, filosóficas, históricas, trazendo, inclusive, citações em francês. A obra
O ensaísmo social 93

dialoga, por exemplo, com trechos da Carta de Caminha, com um tratado escrito por Gabriel
Soares e com o texto crítico de Sílvio Romero. Paulo Prado se apropria de termos colhidos nas
obras de filósofos do porte de um Nietzsche, faz alusões a poetas românticos como Byron e Hugo
e estrutura, a fim de interpretar nosso passado, da seguinte forma o seu livro:
I – A Luxúria;
II – A Cobiça;
III – A Tristeza;
IV – O Romantismo.
Retrato do Brasil é um livro provocativo, registrando aspectos de nossa história e tradição
sob novo viés, como a impressão edênica que a nudez das mulheres indígenas despertou no ima-
ginário europeu, ou quando chama, sem meias palavras, de medíocre o livro Suspiros Poéticos e
Saudades, de Gonçalves de Magalhães, publicado em 1836. O ensaio de Paulo Prado teve a seguinte
recepção crítica (BOSI, 1994, p. 376):
o estudo, brilhante e fluente, desdobra-se em três partes nas quais se apontam
seguidamente a luxúria, a cobiça e a tristeza, paixões aviltadoras que marcaram
o índio, o português e o negro e teriam sido responsáveis pela doença típica do
povo brasileiro: o romantismo. A análise histórica é impiedosa, carregando nas
tintas que dão cor à tese, avesso ao meufanismo que se seguiu à Independência. meufanismo:
orgulho exagerado
em torno da ideia de
A seguir, leremos um trecho de Retrato do Brasil no qual o autor aborda a “indigência in- pátria.

telectual” do nosso passado colonial, critica a prática escravista e lança um rápido foco sobre a
problemática dos sertões brasileiros (PRADO, 1928, p. 93).
O desequilíbrio das inteligências representava as incertezas sociais e políticas
do momento histórico. O século XVIII no Brasil-colônia tinha sido o prolonga-
mento da indigência intelectual da metrópole. A escravidão agravava com a sua
ação deletéria a prematura senilidade, que aparentavam os grandes centros po-
pulosos. Pelos sertões tinham desaparecido as tradições seculares que promo-
veram, no período heroico, a descoberta, o povoamento e a exploração do país.

9.3 Sérgio Buarque de Holanda e as Raízes do Brasil


Além de historiador e ensaísta de renome internacional, Sérgio Buarque de Holanda (1902-
-1982) tem brilhante desempenho também como jornalista, crítico e teórico literário (CAMPOS,
2004b, p. 289). E sua bibliografia ostenta, afora outras produções também importantíssimas para
nosso ensaísmo literário e social, uma obra publicada em 1936 que é uma das referências essenciais
nas áreas de nossas Ciências Humanas: Raízes do Brasil.
Estruturado como um texto que se sustenta em dualidades e dicotomias, Raízes do Brasil tra-
ta da “relação rural-urbano, que marca em vários níveis a fisionomia do Brasil” (CANDIDO, 1979,
p. 16), e constrói-se “sobre uma admirável metodologia dos contrários” (CANDIDO, 1979, p. 14).
O primeiro parágrafo do primeiro capítulo deste primeiro livro do sociólogo e ensaís-
ta Sérgio Buarque de Holanda chama-se “Fronteiras da Europa”, e, de maneira extremamente
94 Literatura brasileira II

lúcida, aborda um fato determinante de nossa colonização, como demonstra o seguinte trecho
(HOLANDA, 1979, p. 3):
a tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de
condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição mile-
nar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato determinante e mais rico em
consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas
instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente mui-
tas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra.

Reverberando os sentidos do fato de sermos uns desterrados em nossa terra, o ensaísta vai
se deter nas consequências históricas disso, localizando a cultura e os eventos que reafirmam as
ordens hierárquicas que nos controlam, a injustiça social advinda das noções de hierarquia e de
hereditariedade que ainda hoje nos perseguem. Segundo o autor (HOLANDA, 1979, p. 7),
toda hierarquia funda-se necessariamente em privilégios. E a verdade é que,
bem antes de triunfarem no mundo as chamadas ideias revolucionárias, portu-
gueses e espanhóis parecem ter sentido vivamente a irracionalidade específica,
a injustiça social de certos privilégios, sobretudo dos privilégios hereditários.

No capítulo II de Raízes do Brasil, intitulado “Trabalho & Aventura”, o autor deixa claro
que a exploração dos trópicos não levou em conta uma metodologia ou algum processo racional,
mas, ao contrário, diz Sérgio Buarque de Holanda, “fez-se antes com desleixo e certo abandono”
(HOLANDA, 1979, p. 13). Referindo-se aos primórdios de nossa colonização, o autor afirma:
nas formas de vida coletiva podem assinalar-se dois princípios que se combatem
e regulam diversamente as atividades dos homens. Esses dois princípios encar-
nam-se nos tipos do aventureiro e do trabalhador.

Na reflexão crítica de Raízes do Brasil, o colonizador não está relacionado ao tipo do tra-
balhador. Segundo o seu autor, “o que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas
riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho” (HOLANDA, 1979, p. 18).
O capítulo V da obra máxima de Sérgio Buarque de Holanda chama-se “O Homem Cordial”
e tece relações entre as heranças da nossa colonização e nossas ações comportamentais. A defini-
ção do homem cordial brasileiro, um dos momentos capitais do livro, toca na alma de nosso povo:
é o que age com o coração, aparentemente de maneira afetiva, preso a marcas familiares e pessoais
primárias, sem a polidez da ética aristocrática ou a impessoalidade do pragmatismo das relações
capitalistas (CANDIDO, 1979, p. 18):
O “homem cordial” não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos
comportamentos de aparência afetiva, inclusive suas manifestações externas,
não necessariamente sinceras nem profundas, que se opõem aos ritualismos da
polidez. O “homem cordial” é visceralmente inadequado às relações impessoais
que decorrem da posição e da função do indivíduo, e não da sua marca pessoal
e familiar, das afinidades nascidas na intimidade dos grupos primários.
O ensaísmo social 95

9.4 Gilberto Freyre e Casa-Grande & Senzala


O sociólogo e escritor Gilberto Freyre (1900-1987) ostenta em sua bibliografia cerca de ses-
senta títulos. Dentre todos esses títulos, um merece destaque especial. Trata-se do primeiro volume
publicado pelo autor pernambucano, em 1933, e que foi traduzido para vários idiomas, sendo hoje
considerado uma leitura fundamental para a compreensão da identidade nacional: Casa-Grande &
Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal.
“É sobretudo a partir dos anos 1950 que cresce a consagração universal em torno a Gilberto
Freyre” (COUTINHO, 1994, p. 25). A dimensão crítica e internacional do seu livro foi contempla-
da com a leitura de um dos teóricos mais importantes das artes modernas no século XX: o ensaísta
francês Roland Barthes. Acerca de Casa-Grande & Senzala e do senso que norteia a escrita do
historiador Gilberto Freyre, diz o autor de O Prazer do Texto (apud COUTINHO, 1994, p. 113):
a conjugação de uma história racial ainda em elaboração e de um grande es-
pírito iniciado nas disciplinas mais avançadas deu ao Brasil esta grande obra,
produto brilhante daquela sensibilidade à história total, elaborada na França
por um Bloch1, um Febvre ou Braudel2. Há em Freyre um senso obsessivo da
substância, da matéria palpável, do objeto [...] que é, por certo, a qualidade fun-
damental de todos os grandes historiadores.

Na leitura empreendida em torno da obra de Gilberto Freyre, o teórico francês ressalta o


caráter específico da dimensão histórica que emerge em Casa-Grande & Senzala. Barthes detecta
uma preocupação do autor pernambucano em mostrar o homem brasileiro colonial no corpo vivo
de sua cultura, sempre construindo sua argumentatividade a partir da apresentação dos aspectos
materiais históricos que a compuseram (BARTHES apud COUTINHO, 1994, p. 113): “Freyre apre-
senta o homem histórico sem o desprender de seu corpo vivo, o que importa na quase realização
da quadratura do círculo dos historiadores, o ponto último de investigação histórica, o empenho
de Michelet3, e o de Bloch [...]”.
No trecho a seguir do livro Casa-Grande & Senzala, o leitor degusta a substância, a matéria
palpável da história brasileira colonial, procedimento de construção textual usado por Gilberto
Freyre a que se refere Roland Barthes. Nosso exemplo se detém sobre a engenharia e a arquitetura
das casas dos senhores rurais – personagens históricos que formaram a base patriarcal da civiliza-
ção luso-tropicalista, fundada pela especificidade da mistura de raças e culturas que se encontra-
ram no Brasil, a partir de uma colonização portuguesa nos trópicos (FREYRE, 1998, p. 26):
a força concentrou-se nas mãos dos senhores rurais. Donos das terras. Donos
dos homens. Donos das mulheres. Suas casas representam esse imenso pode-
rio feudal. Feias e fortes. Paredes grossas. Alicerces profundos. Óleo de baleia.
Refere uma tradição nortista que um senhor de engenho mais ansioso de
perpetuidade não se conteve: mandou matar dois escravos e enterrá-los nos
alicerces da casa. O suor e às vezes o sangue dos negros foi o óleo que mais do
que o de baleia ajudou a dar aos alicerces das casas-grandes sua consistência
quase de fortaleza.

1 Marc Bloch foi um historiador francês do século XX, considerado o maior medievalista de todos os tempos.
2 Lucien Febvre e Fernand Braudel foram importantes historiadores franceses do século XX.
3 Jules Michelet foi um historiador francês do século XIX, a quem Roland Barthes dedicou um livro publicado em 1954.
96 Literatura brasileira II

Roland Barthes se rende definitivamente à genialidade de Gilberto Freyre, quando afirma,


na conclusão de seu texto, que “É lamentável não ter tido a França um intérprete assim dos primei-
ros séculos de sua formação” (apud COUTINHO, 1994, p. 22).
Numa apreensão mais ligada à história do ensaísmo brasileiro, à nossa produção interna na
área, a crítica contemporânea situa a obra do autor pernambucano, que recebeu o título de Master
of Arts pela Universidade de Columbia, em comparação com as pesquisas anteriores, excessiva-
mente factualistas, presas ao Determinismo e ao Positivismo (VELOSO, 1999, p. 144):
ao contrário de pesquisadores anteriores a ele, cujos trabalhos de cunho posi-
tivista descrevem os fatos de maneira neutra e objetiva, o autor quer incluir a
sua perspectiva subjetiva na análise, quer incluir o seu lado escritor, o seu lado
historiador, sociólogo, psicólogo.

Além dessas diferentes faces, o autor de Casa-Grande & Senzala foi, antes de tudo, um an-
tropólogo que procurou “entender o caráter e a formação do brasileiro a partir da rotina doméstica
da casa grande” (VELOSO, 1999, p. 152). A eleição desse olhar para a rotina faz o autor optar pela
inclusão da diferença, apresentando as múltiplas vozes do cotidiano da Colônia em suas especifi-
cidades, sem hierarquias, enriquecendo mais ainda a sua compreensão do objeto, que é mostrado
em toda a sua complexidade (VELOSO, 1999, p. 150): “segundo palavras de Gilberto Freyre, ele se
coloca no ponto de vista ‘do homem, do adulto, do branco, mas também do menino, da mulher, do
indígena, do negro, do afeminado e do escravo’”.
Assim, podemos perceber que o trabalho de apreensão do ser nacional buscado pela estética
modernista, por seus autores mais geniais – que souberam incorporar os procedimentos técnicos
de criação das vanguardas europeias, colocando-os a serviço de uma revisão de nossa cultura, de
nossa língua literária e de nossa história política e social –, tem como complemento incontornável
os estudos de nossa ensaística moderna. Por sua forte base antropológica e sociológica, esses en-
saios acabaram por gerar, sem preconceitos ou ufanismos, um perfil mais duradouro e verdadeiro,
porque fincado na história e na cultura da alma de nosso povo.

Ampliando seus conhecimentos

Atualidade de Euclides da Cunha4


(FREYRE, 2018)

Alega-se, e com razão, que Euclides da Cunha, nos seus ensaios sobre a formação social do
Brasil, concede importância exagerada ao problema étnico, parecendo não ter atinado com a
extensão e a profundidade da influência da chamada “economia agrário-feudal” sobre a vida
brasileira. Ou seja: despreza o sistema monocultor, latifundiário e escravocrata na análise da
nossa patologia social; e exalta a importância do processo biológico – a mistura de raças –
como fator, ora de valorização, ora de deterioração regional e nacional.

5 Trecho inicial da “conferência lida na Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores, Rio de Janeiro, em 29 de
outubro de 1940. Publicada pela Casa do Estudante do Brasil, em 1941. Incluída no livro Perfil de Euclides e outros perfis,
publicado em 1944” (FREYRE, 2018).
O ensaísmo social 97

São recentíssimos, aliás, os estudos que vão estabelecendo o primado do fator cultural – inclu-
sive o econômico – entre as influências sociais e de solo, de clima, de raça, de hereditariedade
de família, que concorreram para a formação da sociedade brasileira, em geral, e, particular-
mente, para as suas formas agrárias ou pastoris caracterizadas pelo latifúndio, pela exclusivi-
dade de produção e pelo trabalho escravo ou semiescravo, com todos os seus concomitantes
psicológicos de agricultura sem amor profundo à terra.
Não nos deve espantar que a Euclides da Cunha – a quem faltavam estudos rigorosamente
especializados de antropologia física e cultural ainda mais que os de geologia, nos quais nos
informou uma vez Arrojado Lisboa, a mim e a Rodrigo Mello Franco de Andrade, ter o autor
de Os Sertões recebido forte auxílio técnico de Orville Derby – impressionasse de modo par-
ticular o aspecto étnico, ou ostensivamente étnico, da geografia humana do Brasil. Nem que,
nos seus ensaios, resvalasse como resvalou, em mais de uma página eloquente, no pessimismo
dos que descreem da capacidade dos povos de meio-sangue – ou de vários sangues – para se
afirmarem em sociedades equilibradas e em organizações sólidas de economia, de governo
e de caráter nacional. Descrença baseada em fatalismo de raça. Em determinismo biológico.
Não é de espantar, porque dos contemporâneos de Euclides da Cunha, o próprio Nina
Rodrigues, com estudos especializados de antropologia (e cujo diagnóstico de psiquiatra do
caso do Conselheiro, Euclides seguiu muito de perto), não escapou a exageros etnocêntricos na
análise e na interpretação da nossa sociedade. Exageros que seriam seguidos por largos anos,
quase sem retificação, por vários discípulos do sábio maranhense; e retomados pelo Professor
Oliveira Vianna em obra erudita, publicada depois de 1920, quando no Museu Nacional já
se esboçara, com Lacerda, a tendência, depois acentuada pelo Professor Roquette Pinto, no
sentido de reabilitar-se experimentalmente o mestiço brasileiro, vítima de preconceitos cienti-
ficistas com aparência de verdades antropológicas.
Tais preconceitos foram gerais no Brasil intelectual de 1900: envolveram às vezes o próprio
Silvio Romero, cuja vida de guerrilheiro de ideias está cheia de contradições. Só uma exceção
se impõe de modo absoluto: a de Alberto Torres, o primeiro, entre nós, a citar o Professor
Franz Boas e suas pesquisas sobre raças transplantadas. Outra exceção: a de Manuel Bomfim,
turvado, entretanto, nos seus vários estudos, por uma como mística indianista ou indianófila
semelhante à de José de Vasconcellos, no México.
Daí não nos surpreender o pendor melancólico de Euclides para o fatalismo de raça. Aquele
seu – “ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de
uma raça superior, repontam vivíssimos estigmas da inferior... de modo que o mestiço é, quase
sempre, um desequilibrado... um decaído sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem
a altitude intelectual dos ascendentes superiores” (Os Sertões, 3.ª ed., p. 109) – é bem caracte-
rístico dos seus momentos de fatalismo étnico. Vê-se que Euclides da Cunha se viu às vezes
arrastado pelo que considerava a antropologia científica na sua expressão única e definitiva, a
acreditar na incapacidade do mestiço: incapacidade biológica, fatal.
Mas o certo é que não se extremou em místico de qualquer teoria de superioridade de raça.
O perfil que traça do sertanejo não é de um devoto absoluto de tal superioridade. Nem é fácil
de conceber que um homem como Euclides da Cunha, animado do culto da personalidade
humana tanto quanto do entusiasmo pelos planos arrojados de socialização dos grupos regio-
nais ou nacionais, pudesse ser hoje o etnocentrista desdobrado em totalitarista que entreveem
nele alguns críticos de belas-letras, para quem a caracterização psicológica dos indivíduos e
dos povos é um jogo fácil, ao sabor de caprichosos de momento ou de entusiasmo doutrinário
de ocasião.
98 Literatura brasileira II

Em Euclides da Cunha, o pessimismo diante da miscigenação não foi absorvente. Não o afas-
tou de todo da consideração e da análise daquelas poderosas influências sociais a cuja sombra
se desenvolveram, no Brasil, condições e formas feudais de economia e de vida já mortas na
Europa ocidental; traços aparentemente cacogênicos mas, na realidade, de patologia social,
que o isolamento de população, no sertão e mesmo nas proximidades do litoral, conservaria
até aos nossos dias. Aqueles fazendeiros do sertão que o escritor conheceu a usufruírem “para-
sitariamente as rendas das terras dilatadas, sem divisas fixas”, eram bem o prolongamento,
no espaço e no tempo, dos sesmeiros da colônia. Uns e outros, senhores de escravos ou de
semiescravos “perdidos nos arredores e mucambos”. Semiescravos, os dos sertões “cuidando a
vida inteira, fielmente, os rebanhos que lhes não pertencem”. (Os Sertões, 3.ª ed., p. 122). [...]

Dicas de estudo
• RAÍZES do Brasil: uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda. Direção de Nelson
Pereira dos Santos. Rio de Janeiro: Rio Filme, 2003. 148 min. Dirigido por Nelson Pereira
dos Santos, o longa traça um perfil afetivo e histórico do autor e contém depoimentos de
intelectuais como Antonio Candido. Na longa seção dedicada aos familiares, destacam-se
as presenças do cantor e compositor Chico Buarque de Holanda, filho mais famoso do
referido historiador, além de suas filhas cantoras Miúcha e Cristina Buarque de Holanda.
• GIUCCI, Guillermo; LARRETA, Enriqueta. Gilberto Freyre: uma biografia cultu-
ral – a formação de um intelectual brasileiro: 1900-1936. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007. Nesse volume, os autores narram a vida intelectual de Gilberto Freyre
de 1900 a 1936.

Atividades
1. De que modo Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, estrutura seu pensamento
para apresentar o nosso processo de colonização?

2. Segundo a crítica contemporânea, qual é a contribuição que Gilberto Freyre traz às ciências
sociais, em relação aos antigos paradigmas das pesquisas científicas?
10
João Cabral e a Geração de 45

Neste capítulo, vamos estudar a produção estética de uma geração que marcou a poesia
brasileira do século XX: a Geração de 45. Essa geração de poetas não deu continuidade às ideias de
ruptura e inovação inauguradas em 22, mas alguns dos seus representantes dialogaram, de algum
modo, com poetas modernos representativos de 30, além de apresentarem, como veremos, outras
referências estéticas.
Um de nossos objetivos será entender as razões pelas quais há, na Geração de 45, um retor-
no à artesania verbal, uma recuperação pouco crítica do formalismo excessivo do verso tradicional.
E, com essa finalidade, vamos nos deter na produção de alguns de seus poetas mais representativos.
Contudo, nosso destaque maior será dado à poesia de João Cabral de Melo Neto, autor
que pertence, cronologicamente, à Geração de 45, mas com uma poética que rompe totalmen-
te com a estetização dessa geração, apresentando características únicas dentro do panorama
da poesia brasileira moderna.

10.1 A poesia da Geração de 45


Podemos localizar a gênese histórica da Geração de 45 no período pós-Guerra, como o pró-
prio nome da escola indica, e tal fato não se separa da postura de recuperação de uma forma mais
tradicional, pré-moderna, que orientou seus membros. Se pensarmos que, após as ruínas de uma
guerra, há o desejo interno do homem de reconstrução, de recuperação de valores mais estáveis,
que o ajudará a se reestruturar moral e socialmente, podemos intuir o desejo de reutilização de
estéticas da tradição, menos afeitas às novidades e rupturas radicais, baseadas nas vanguardas e
apregoadas pela geração de 22.
No primeiro dos quatro artigos publicados no Diário Carioca, em 1952, escritos dedicados
à Geração de 45, João Cabral começa a pensar as diferentes maneiras como as gerações podem se
relacionar entre si. Primeiro, apresenta-nos como se deu a passagem da geração heroica de 22, do
primeiro modernismo, para a segunda geração, dos anos 30, que incorporou os ideais de ruptura
da primeira, com o intuito de estabilizar uma consciência criadora nacional em bases sociais e es-
téticas mais sólidas. Diz o poeta pernambucano (MELO NETO, 1994, p. 742):
uma geração pode continuar outra. A poesia dos poetas brasileiros que, nas-
cidos no princípio do século, estrearam por volta de 1930, quando a face mais
agudamente destruidora dos modernistas de 1922 estava superada, não foi di-
rigida contra as ideias da Semana de Arte Moderna. Ao contrário – partiram
deles, dos pontos de partida que eles haviam fixado no meio de seu combate.
100 Literatura brasileira II

No segundo artigo publicado no Diário Carioca, a crítica de João Cabral se detém agora
na relação entre a segunda e a terceira gerações. Nesse texto, o poeta ressalta o sentido de filiação
com a tradição literária da Geração de 45, em contraponto com a anterior, representada por auto-
res como Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes – dois poetas cujas influências foram
fundamentais para a construção poética de João Cabral. Com isso, já insinuava a diferença de ca-
minhos trilhados por sua poesia e a da Geração de 45 (MELO NETO, 1994, p. 744):
pois a diferença entre os problemas que enfrentam os poetas de 1945 e os
poetas que, em livros publicados em 1930 ou suas imediações fixaram os
caminhos que a poesia brasileira até hoje vem seguindo, parece-me radical.
Somente tendo-se essa diferença em mente é possível compreender o processo
da obra desses poetas mais jovens: a dependência em que eles estão de uma
tradição, curta porém viva e atuante no momento em que penetraram na vida
literária, e os esforços no sentido do alargamento dessa tradição de vinte anos
que têm, inegavelmente, realizado em seus livros de poemas os escritores que
se revelaram por volta de 1945.
Ainda no segundo artigo para o Diário Carioca, João Cabral ressalta a impossibilidade de re-
volta e de ruptura da Geração de 45, e aponta o dilema no qual se encontravam os poetas que escre-
viam naquele contexto estético. Segundo o autor de Museu de Tudo (MELO NETO, 1994, p. 745),
os poetas de 1945 encontraram já uma determinada poesia brasileira, em ple-
no funcionamento, com a qual era impossível não contar. [...] O poeta dessa
geração de 1945, ao inaugurar a sua obra, tinha de escrever para aquela sensibi-
lidade, sem o que sua voz não seria percebida; mas tinha também de descobrir
seu timbre próprio, dentro do conjunto daquelas vozes mais velhas, sem o que
nenhuma atenção lhe seria concedida.
Como conclusão, o poeta dá ênfase a um fato estético bem importante para a compreen-
são da Geração de 45: “há um traço bem sintomático em todos esses poetas de 1945; todos par-
tem da experiência de um poeta mais antigo” (MELO NETO, 1994, p. 746). No terceiro artigo
publicado no Diário Carioca, João Cabral pinça ainda mais uma característica polêmica dessa
Geração: uma “certa tendência estetizante” (MELO NETO, 1994, p. 749). A crítica contemporâ-
nea interpreta tal tendência como uma certa “nostalgia restauradora de cânones pré-modernis-
tas” (CAMPOS, 2004, p. 78).

10.2 Alguns nomes de destaque dessa geração


No Panorama da Nova Poesia Brasileira, uma antologia de Fernando Ferreira de Loanda,
em que temos “um conjunto válido para documentar o momento poético dos novos entre 1940 e
1950” (BOSI, 1994, p. 465), podemos selecionar alguns nomes que vão contribuir para o desen-
volvimento da história da literatura brasileira, como Manuel de Barros, João Cabral de Melo Neto,
Paulo Mendes Campos, Ledo Ivo, Geir Campos, José Paulo Paes. Afora esses, o crítico Alfredo
Bosi acrescenta ainda outros nomes também relevantes: Carlos Pena Filho, Homero Homem, Lélia
Coelho Frota, Carlos Felipe Moisés, Hilda Hilst1.

1 Hilda Hilst (1930-2004) é uma autora representativa dentre os nomes destacados pela crítica moderna ao referir-se
à chamada Geração 45. Além de poeta, Hilda Hilst produziu uma extensa obra de ficção, na qual destacam-se livros de
contos, novelas e peças de teatro. O seu livro Com os Meus Olhos de Cão e Outras Novelas (1986) é um dos textos mais
densos e criativos de nossa literatura, em torno da subjetividade feminina do final do século XX.
João Cabral e a Geração de 45 101

Em entrevista em que se posiciona em relação à poesia dessa geração, João Cabral afir-
ma: “da minha geração, destaco Ledo Ivo, que considero o maior de todos” (MELO NETO,
1972, p. 5). Com a palavra, então, o poeta maior de todos, que chama de social a poesia de João
Cabral (IVO, 2002):
[...] a gente se assemelhava no essencial: o poema encarado como um objeto
verbal, a poesia obedecendo a leis e não-leis, porque mesmo quando você faz
uma transgressão está dentro de um sistema. Demos muita importância à parte
construtiva, composicional da poesia. Era uma geração formalista, que foi ro-
tulada de 45 dois anos depois de aparecidos os poetas, ou seja, quando ainda
estavam quase no começo. Depois, cada um escolheu um caminho. Um poeta
subjetivo, quase surrealista, como João Cabral, foi cultivar a poesia social... Os
melhores dessa época mudaram. Os que não mudaram desapareceram. Mas foi
uma geração muito unida, tínhamos até uma pequena editora.

10.3 A poesia de João Cabral de Melo Neto


Comecemos com as palavras do pró- Figura 1 – Estátua do poeta João Cabral na cidade de
Recife, onde ele nasceu.
prio poeta: “alguns reduzem uma geração

Arnaldo Carvalho
à ideia de escola literária; nessa perspectiva,
nada tenho a ver com a escola de 45 e com
seu ideário estético, formulado, aliás, por um
pequeno grupo dentre os nascidos em 1920 e
adjacências” (MELO NETO apud SECCHIN,
1999, p. 325).
Esclarecida a noção de geração poética,
devolvamos a palavra novamente ao poeta;
agora, para que saibamos algo a respeito das
inusitadas influências de sua poética. Diz o
autor de O Cão sem Plumas: “nenhum poeta, nenhum crítico, nenhum filósofo exerceu sobre mim
a influência que teve Le Corbusier2. Durante muitos anos ele significou para mim lucidez, clari-
dade, construtivismo. Em resumo: o predomínio da inteligência sobre o instinto” (MELO NETO,
1972, p. 4).
Não é por acaso que quando João Cabral (1920-1999) lançou, em 1942, Pedra do Sono – o
seu primeiro livro de poemas –, a obra tenha causado tanto impacto em nossa literatura. Mesmo
que este seu primeiro livro esteja ainda atravessado por elementos surrealistas – uma estética in-
corporada em nossas letras pela obra de Murilo Mendes, uma das primeiras influências de João
Cabral –, já traz, latente, as potencialidades de seu estilo particularíssimo, solar e construtivo. Estilo
esse que será plenamente desenvolvido em sua produção posterior. Acerca das mudanças opera-
das em sua poética, diz o autor: “a partir de O engenheiro, optei pela luz em detrimento da treva e
da morbidez. [...] Tive de lutar para conseguir essa poesia solar” (MELO NETO apud SECCHIN,
1999, p. 325).

2 Arquiteto e pintor francês de origem suíça. É considerado, juntamente com Frank Lloyd e Oscar Niemeyer, um dos mais
importantes arquitetos do século XX.
102 Literatura brasileira II

Na contramão do ideário estetizante da Geração de 45, o poeta afirma: “não sinto a menor
necessidade poética de tratar de temas metafísicos no sentido filosófico do termo, nada a ver com
os chamados poetas metafísicos, como o inglês John Donne, que eu admiro muito e influenciaram
demais minha obra” (MELO NETO, 1972, p. 5).
Apresentamos, a seguir, um trecho do longo poema que compõe o volume O Cão sem
Plumas, para detectarmos os modos como o poeta descarta os temas metafísicos no sentido filosófi-
co, insistindo na noção de visibilidade, de que faz uma poesia bem mais próxima das artes plásticas
do que da música. Publicado na Espanha, esse livro possui o Rio Capibaribe de Pernambuco como
“personagem”, em torno do qual as reflexões e construções de linguagem se estruturam. “Mais do
que qualquer obra anterior, é O Cão sem Plumas (1950) que exprime com maior consistência as
relações entre discurso poético e espaço referencial” (SECCHIN, 1999, p. 71). Chama-se “Discurso
do Capibaribe” a parte do poema a seguir (MELO NETO, 1994, p. 114):

[...]
IV
Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,


é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,

tem dentes, arestas, é espesso.


O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

[...]
João Cabral e a Geração de 45 103

Além de Pernambuco, sua história, os canavieiros e sua geografia, outro espaço e seus seres
aparecem constantemente na poética cabralina. Trata-se da Espanha, país no qual o poeta morou
durante muitos anos trabalhando como diplomata. No livro Quaderna (1959), João Cabral aciona
o diálogo poético entre o Nordeste e a Espanha, como espaços “marcados pelo valor comum de
uma condição humana definida pelos signos da carência e do menos” (SECCHIN, 1999, p. 133,
grifos do original). Exemplar desse diálogo espacial e poético é o texto a seguir, no qual “as noções
de economia”, “solidão” e “claridade” ficam nítidas (MELO NETO, 1994, p. 247):

A palo seco
Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;

se diz a palo seco


a esse cante despido:
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino.
O cante a palo seco
é o cante mais só:
é cantar num deserto
devassado de sol;

é o mesmo que cantar


num deserto sem sombra
em que a voz só dispõe
do que ela mesma ponha.

[...]

A palo seco existem


situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,

as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.

Eis uns poucos exemplos


de ser a palo seco,
dos quais se retirar
higiene ou conselho:

não de aceitar o seco


por resignadamente,
mas de empregar o seco
porque é mais contundente. (grifos do original)
104 Literatura brasileira II

Em 1975, já com a obra consolidada, eleito membro da Academia Brasileira de Letras e reve-
renciado pela crítica internacional3, João Cabral lança aquele que ele mesmo considera o seu livro
“menos rigoroso como concepção geral” (MELO NETO apud SECCHIN, 1999, p. 332): Museu de
Tudo. O livro é composto por poemas escritos em diferentes fases da vida do poeta, sendo conside-
rado um dos seus textos mais metalinguísticos, já que se trata de um volume repleto de referências
a quadros, pintores, arquitetos e cidades – as grandes influências assumidas pelo poeta.
Como a palavra museu sugere, no título do referido livro, o tempo, o artista e o leitor são
também personagens dessa poética. Nela torna-se imperativo conjugar verbos como construir e,
principalmente, fazer (MELO NETO, 1994, p. 384):

O Artista inconfessável
Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.

10.3.1 Principais obras


A obra apolínea e solar de João Cabral abrange vinte títulos de livros de poemas, além dos
textos em prosa. Conhecido como o arquiteto do verso, o autor erigiu uma poética cujo trabalho
com a materialidade linguística é o alicerce do poema, concebido como produção humana e não
como inspiração, como um presente dos deuses. Construída como um projeto arquitetônico, essa
poética é traçada com um rigor matemático dentro do qual todas as obras se complementam, apre-
sentando-se sob o domínio da mesma especificidade estética.
Embora seja difícil eleger as principais peças poéticas numa obra tão forte e intensa em toda a sua
extensão quanto a de João Cabral, destacamos O Engenheiro (1945), O Cão Sem Plumas (1950), Morte
e Vida Severina (1954-1955) e Museu de Tudo (1975). Dentre esses quatro textos, selecionamos Morte
e Vida Severina, auto de Natal pernambucano, pela densidade poética, narrativa e teatral que apresenta.
Considerado “o seu poema longo mais equilibrado entre rigor formal e temática participante” (BOSI,
1994, p. 471), Morte e Vida Severina traça o roteiro da vida de Severino, “um homem do Agreste que vai
em demanda do litoral e topa em cada parada com a morte”.

3 Detentor de vários prêmios importantes como o Prêmio Jabuti, o Neustadt International Prize for Literature, da Uni-
versidade de Oklahoma, e o Prêmio Luis de Camões (concedido conjuntamente pelos governos de Portugal e do Brasil),
entre outros, João Cabral foi um dos autores brasileiros mais cogitados como possível ganhador de um Prêmio Nobel.
João Cabral e a Geração de 45 105

Acerca desse texto bastante traduzido e encenado, e que foi musicado por Chico Buarque de
Holanda, diz o poeta (MELO NETO apud SECCHIN, 1999, p. 330):
[...] com Morte e Vida Severina, quis prestar uma homenagem a todas as lite-
raturas ibéricas. Os monólogos do retirante provêm do romance castelhano. A
cena do enterro na rede é do folclore catalão. O encontro com os cantores de
incelenças é típico do Nordeste. incelenças: cantos
religiosos da tradi-
A seguir, vejamos a fala inicial do auto, na qual o personagem Severino, retirante nordestino, ção oral nordestina.

tenta definir-se para o leitor/espectador (MELO NETO, 1994, p. 171):

Morte e vida severina


(auto de Natal pernambucano)
O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI
— O meu nome é Severino,
não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
106 Literatura brasileira II

mesma morte severina:


que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.

Morte e Vida Severina é um marco na obra de João Cabral. Texto de dimensão popular, acaba
por levar o poeta a descobrir uma faceta nova de sua própria poesia; leiamos a descrição do proces-
so nas palavras do poeta (MELO NETO, 1972, p. 4):
Sempre me considerei um poeta plástico e intelectualista; portanto, um poeta
não-polêmico, isto é, não-dramático. Depois de “Morte e Vida”, comecei a ver
que a minha poesia é dramática, não no sentido de ter sido escrita para o teatro
e nem no sentido de ser drama, mas porque existe nela um elemento de ironia e
sarcasmo, sem haver um interlocutor vivo.

Ampliando seus conhecimentos

Agrestes ou João Cabral de Melo Neto: clareza e ilusão


(MOURA, 1992, p. 44-45)

João Cabral de Melo Neto não deixa de ser um poeta subjetivo. Selecionou o seu mundo,
reduziu-o a um grupo de significações. O seu interesse sempre esteve presente. Como negar a
emoção? Pode-se aceitar a negação da emoção que o poeta faz (para ele, emoção significa tur-
bulência do espírito, uma espécie de enfraquecimento moral, o estado líquido da alma). Mas
não se pode excluir a emoção como base, ou seja, como interação do homem com o mundo.
Desde “O Engenheiro”, João Cabral de Melo Neto tem encontrado abrigo no racionalismo. Por
uma evolução pessoal, cujas contingências ainda ficam por revelar, e por uma deliberada esco-
lha artística, ele mudou de caminho em sua poesia. Talvez tenha alterado até mesmo sua crença
na poesia (um desvio da prosa?). “Pedra do Sono” é totalmente diferente de “O Engenheiro”
e dos livros que o seguem, não apenas por uma ascese de artista, uma invocação do gênio, e
sim por uma mudança de concepções. No primeiro livro, em forma não muito desenvolvida,
João Cabral e a Geração de 45 107

encontramos o simultaneísmo expressivo (várias impressões tentando formar um todo har-


mônico), um resto de simbolismo (a expressão é uma referência vaga), a música frasal do verso
livre. Nos livros de depois, temos a imagem por detalhe (cada imagem vai se compondo aos
pedaços, até chegar a um todo), a sinalização da realidade (a palavra está colada ao real, quase
como se fosse prosa), a música sem melodia (uma grande conquista artística de João Cabral).
Portanto, não houve uma evolução, e sim uma transformação, pois o que se alterou não foi a
qualidade, mas a natureza. Isso implica em dizer que o exemplo de João Cabral não significa
que artisticamente o caminho anterior seja mais inviável que o segundo.
A essa transformação correspondeu uma forma ideológica, o racionalismo. Segundo esse
racionalismo, a realidade bruta contém uma casca de significação; ao escritor cabe ir dese-
nhando em cima dessa casca da maneira mais habilidosa possível, para que o que antes era
obscuro e informe se tome claro e definido. A expressão não deve se desviar de seu foco de
atenção, para que atinja uma objetividade plena. Deve também proceder a uma análise de seu
objeto, revelando-o por partes. O que importa é mostrar que o que é, é sempre o que é, mesmo
que esteja escondido.
Esse racionalismo norteia todo o método poético do pernambucano, tomando sua poesia às
vezes esterilmente descritiva, às vezes sutilmente reveladora.
Descrição e revelação originam-se de um pensamento estático, que tenta transformar todo
o processo de observação em uma cristalização daquilo que se observa. Todas as coisas são
encaradas como coisas estáticas, até mesmo os homens.

Dicas de estudo
Para novas abordagens acerca da vida e da obra de João Cabral de Melo Neto, recomenda-
mos as seguintes produções:
• RECIFE/SEVILHA, João Cabral de Melo Neto. Direção de Bebeto Abrantes. São Paulo:
Original/Visocopy, 2002. 52 min. Com direção de Bebeto Abrantes e lançado em 2002,
esse documentário contém uma das últimas entrevistas dadas pelo poeta João Cabral e
apresenta imagens e sons dos dois espaços referenciais de sua poética: o sertão pernam-
bucano e a Espanha.
• MORTE e vida severina. Direção e roteiro de Walter Avancini. Teleteatro. Rio de janeiro:
Globo Marcas, 1982. Teleteatro dirigido por Walter Avancini para a TV Globo, em 1981,
a obra apresenta os versos de João Cabral com música de Chico Buarque de Hollanda.
Os atores José Dumont e Elba Ramalho destacam-se nos principais papéis.

Atividades
1. Segundo a leitura crítica de João Cabral, por que a Geração de 45 não se revoltou contra as
gerações de poesia brasileira que a precederam?

2. Faça um breve relato sobre as mutações internas ocorridas na produção poética de


João Cabral.
11
A ficção depois de 45
(o romance experimental):
Clarice Lispector

Estudaremos neste capítulo um tipo de ficção brasileira que surge, no século XX, por volta
do ano de 1945 – portanto, no contexto final da Segunda Guerra Mundial. Essa prosa ficcional
nasce sob o signo do experimentalismo e possui como marca e referência de sua fundação o nome
de uma escritora muito especial, criadora de uma linhagem estilística das mais ricas da literatura
brasileira: Clarice Lispector (Ucrânia, 1925 – Rio de Janeiro, 1977).
Nosso objetivo é, em primeiro lugar, apreender os aspectos formais, temáticos e linguís-
ticos da prosa romanesca produzida no período, momento em que o projeto do Modernismo
está definitivamente consolidado no país. A seguir, vamos nos deter no estudo da voz femi-
nina e do lugar singular que Clarice Lispector ocupa em nossas Letras, seja, por exemplo,
como a romancista consagrada de A Hora da Estrela (1977), seja como a cronista sensível de
A Descoberta do Mundo (1984).

11.1 Conceituação do romance experimental pós-45


O chamado romance experimental pós-45 acontece, no Brasil, no final da ditadura Vargas.
Nesse contexto, que exige mudanças radicais e que culmina na euforia dos anos JK1, floresce na
literatura brasileira uma produção inovadora, que hoje é vista pela crítica como a formadora do
padrão de nosso Alto Modernismo, que possui na poesia de João Cabral de Melo Neto e na prosa
de Clarice Lispector e Guimarães Rosa a sua síntese e representação.
Aprofundando os aspectos introspectivos e a sondagem psicológica dos romances criados
por autores modernos, como Mário de Andrade e Graciliano Ramos, essa produção literária pós-
-45 inova e rompe com os paradigmas do romance tradicional. Ruptura que elege como destacados
procedimentos estéticos o fluxo da consciência e a quebra da linearidade da narrativa tradicional,
calcada nas repetidas estruturas de começo, meio e fim, e que tem a pesquisa da linguagem e a
construção da forma como os seus elementos principais. Um tipo de produção literária que é con-
siderada, pelo alto valor filosófico e poético, uma escrita da ruminação (ARÊAS, 2005, p. 16).
Na prosa romanesca de Clarice Lispector, a pesquisa de linguagem e o exercício da forma
remetem a um procedimento criativo chamado metalinguagem, por meio do qual a autora aborda
os aspectos de construção do texto literário dentro do espaço inventivo da própria escritura roma-
nesca. Segundo a narradora de A Paixão Segundo G. H., “uma forma contorna o caos, uma forma
dá construção à substância amorfa [...]” (LISPECTOR, 1977, p. 9).

1 Essa euforia refere-se ao governo (1956-1961) do presidente Juscelino Kubitschek, que construiu a cidade de Brasília,
e cujo lema de desenvolvimento para o Brasil era “Cinquenta anos em cinco”.
110 Literatura brasileira II

11.2 A voz feminina e singular da prosa de Clarice


Na voz feminina e singular de Clarice Lispector ecoam linguagens oriundas da tradição
literária brasileira e estrangeira. Dentre os autores que ela leu e que, de algum modo, reverberam
em sua obra, destacam-se Monteiro Lobato, José de Alencar, Eça de Queiroz, Dostoievski, Herman
Hesse (O Lobo da Estepe), Franz Kafka, Katherine Mansfield.
Referindo-se a um dos livros mais cultuados da autora – o romance A Paixão Segundo G. H.
–, a crítica moderna afirma (BOSI, 1994, p. 424) que “a obra toda é um romance de educação exis-
tencial”. Assertiva que pode ser relacionada ainda à quase totalidade da prosa romanesca produzi-
da por Clarice Lispector, principalmente quando nos referimos a textos como A Maçã no Escuro
(1961), Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1969) e Água Viva (1973), romances nos quais
sua voz feminina e singular cria tons e formas de ruptura em relação aos padrões narrativos tradi-
cionais, sugerindo novas possibilidades de leitura e recepção.
Clarice Lispector inaugura na literatura brasileira uma letra de tons reflexivos e universais,
que questiona e põe o leitor para pensar. Antes dela, o paradigma textual literário feminino estava
ligado, de modo geral, a um certo lirismo melódico, num texto que ostentava tons leves e excesso
de delicadezas na forma de expressão. Clarice contrapõe a esse eu fugidio e frágil da tradição um
outro timbre de voz feminina, que expõe suas dúvidas e contradições, que encara Deus e a barata,
o sublime e o grotesco, as noções do bem, do mal e do neutro. Trata-se, portanto, da expressão de
um feminino que conhece as mutações e a sangria: “é tão difícil mudar. Às vezes escorre sangue”
(LISPECTOR, 1999a, p. 360).
Ao lermos a prosa de Clarice Lispector estamos, portanto, distantes daquela completude
proporcionada pelos textos que só visam ao prazer, de que nos fala Roland Barthes em seu belíssi-
mo livro O Prazer do Texto. A escrita de Clarice nos remete ao universo ambíguo e desconfortável
da fruição, “aquele que coloca em situação de perda, aquele que desconforta” e que “faz vacilar as
bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor [...]” (BARTHES, 1974, p. 49).

11.3 Principais obras


A extensa bibliografia de Clarice Lispector é composta de alguns livros que são hoje consi-
derados clássicos do nosso Modernismo. Dentre os mais de vinte volumes dessa bibliografia, três
romances se sobressaem como textos representativos da literatura brasileira produzida no século
XX: Perto do Coração Selvagem (1943), A Paixão Segundo G. H. (1964) e A Hora da Estrela (1977).
Focaremos nossa atenção, aqui, no livro A Paixão Segundo G. H.
Comecemos pelo título. A Paixão Segundo G. H. nos remete às escrituras dos evangelistas
bíblicos (A Paixão Segundo São Mateus, por exemplo), sugerindo a dimensão mística e/ou religiosa
que ronda e permeia o universo da paixão. Apesar de ser o quinto romance de Clarice Lispector, é
o primeiro texto romanesco escrito em 1ª pessoa – o que, além de uma noção de identidade, indica
também um desejo de busca existencial.
A forma do livro é inusitada e apresenta no final de cada capítulo parágrafos que se repetem
no início do capítulo seguinte, trazendo para o texto a ideia de circulação e de continuidade. Ideias
A ficção depois de 45 (o romance experimental): Clarice Lispector 111

que, de resto, já estão contidas no início do romance, aberto por sinais gráficos e não por palavras,
os sugestivos seis travessões: “− − − − − − estou procurando, estou procurando. Estou tentando
entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi”
(LISPECTOR, 1977, p. 5).
As pesquisas formais presentes em A Paixão Segundo G. H. são índices de ruptura com o
padrão do romance tradicional e com as noções de gêneros literários. Os conceitos tradicionais
de forma são fortemente abalados, para que adquiram outras acepções, mais experimentais e mo-
dernas: “a palavra e a forma serão a tábua onde boiarei sobre vagalhões de mudez” (LISPECTOR,
1977, p. 17). Ainda no terreno das rupturas, Clarice escreve que a noção de gênero não a pega mais,
e chega mesmo a ser radical e exigente com seus leitores no prólogo “A possíveis leitores”, pequeno
texto que abre o romance (LISPECTOR, 1977, p. 1):
Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido
apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproxi-
mação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atraves-
sando inclusive o oposto daquilo de que se vai aproximar. Aquelas pessoas
que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém.
A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma
alegria difícil; mas chama-se alegria.

A atenção e o diálogo com o outro – o leitor (esse desejo do leitor de alma já formada) – é
um procedimento recorrente na escritura de Clarice Lispector. Outro procedimento também utili-
zado pela autora e relacionado ao universo da oralidade é o tom de confissão, e até de súplica, que
emerge dos seus textos. Dado curioso que aponta para uma porção “religiosa”, herança de filiação
romântica, no seio da modernidade, e que esteve presente também na geração modernista anterior.
A porção religiosa de Clarice Lispector desvela um recurso estético que foi visto pela crítica
como uma das chaves de leitura dos seus textos: a noção de epifania. Termo que significa lumi-
nosidade, revelação e que em algumas religiões, como a grega, base de nossa cultura ocidental, é
fundamental para nortear as relações entre os homens e os deuses. Estes só podem aparecer aos
mortais sob a forma hierofânica, nomeados e disfarçados de humanos, pois se aparecem em sua
dimensão epifânica, em sua potencialidade divina, levam à crise e à morte, já que o homem não
tem condições de lidar com um deus em todo o esplendor de sua força.
No universo da crítica literária, o texto epifânico pode ser compreendido como o “relato de
uma experiência que a princípio se mostra simples” (SANT’ANNA, 1977, p. 5), mas que termina se
revelando uma ruptura profunda, ao desfazer as bases de sustentação psíquica, linguística, afetiva.
Apesar de apresentar-se como problemática, por abalar fortemente alguma ordem anterior, essa
experiência humana riquíssima produz uma sintonia instantânea entre a consciência, os sentidos,
o corpo, inaugurando um outro olhar e sugerindo outras formas de visibilidade e de vida.
A Paixão Segundo G. H. é um texto que pode também ser lido como a paixão segundo o
grotesco ou segundo o mundano. A experiência mística e solitária da narradora conecta o plano
divino e sublime ao grotesco, sendo vivificada por meio de elementos que despertam nojo e sur-
presa. Diz a narradora referindo-se à barata que surge no quarto onde morava a empregada de
G. H. (LISPECTOR, 1977, p. 99-100):
112 Literatura brasileira II

Era-me nojento o contato com essa coisa sem qualidades nem atributos, era
repugnante a coisa viva que não tem nome, nem gosto, nem cheiro. [...] Ah, pelo
menos eu já entrara a tal ponto na natureza da barata que já não queria fazer
nada por ela. Estava me libertando de minha moralidade, e isso era uma catás-
trofe sem fragor e sem tragédia.

A leitura dessa narrativa demonstra que quanto mais a narradora penetra no reino do ter-
reno, do mundano, do grotesco metaforizado pela presença da barata, menos ela se conforma aos
imperativos da norma e da moral. Sua busca, que exige uma redenção no presente, não em juízos
finais, é a da incorporação do divino ao cotidiano, com um deus que se revela em todas as formas e
modos de vida da Terra: “quero encontrar a redenção no hoje, no já, na realidade que está sendo, e
não na promessa, quero encontrar a alegria neste instante – quero o Deus naquilo que sai do ventre
da barata [...]” (LISPECTOR, 1977, p. 99-100).
Torna-se imperativo constatar que a narradora vive os altos e baixos de sua busca, por meio
da ausência e da fragmentação, sob o signo do desejo de alegria. Nesse romance, no qual as in-
formações são terrivelmente incompletas e a verdade é constantemente questionada, a perda e a
falta não são narradas com melancolia ou tristeza. Muito pelo contrário, como nos expõem estas
palavras da narradora: “desamparada, eu te entrego tudo – para que faças disso uma coisa alegre”
(LISPECTOR, 1977, p. 15).
Dialogando com as figurações dos animais imundos que aparecem na Bíblia – “o animal
imundo da Bíblia é proibido porque o imundo é a raiz” –, a narradora de A Paixão Segundo G. H.
ratifica sua alegria fundada a partir da diferença e do que se parte, do que se quebra (LISPECTOR,
1977, p. 155): “pois do regozijo sem remissão, já estava nascendo em mim um soluço que mais pa-
recia de alegria. Não era um soluço de dor, eu nunca o ouvira antes: era o de minha vida se partindo
para me procriar”.

11.4 Clarice cronista


A produção de Clarice Lispector como cronista só foi publicada em livro após a sua morte.
O volume de crônicas A Descoberta do Mundo foi editado em 1984 e reúne os textos que a autora
publicou no Jornal do Brasil de 1967 a 1973. Dentre as várias crônicas relacionadas às indagações
existenciais da autora e ao seu cotidiano, selecionamos “Perdoando Deus” – um texto repleto de
reflexões acerca do perdão, da divindade e da própria identidade de quem escreve.
Na produção literária de Clarice Lispector, o perdão é um tema sempre revisitado, seja nos
romances, nos contos, nos livros infanto-juvenis ou nas crônicas, e uma leitura possível de tal re-
corrência é ver nesse gesto uma face romântica da autora, em plena modernidade, já que a noção
de perdoar remete à religiosidade típica do Romantismo. Da esfera do autor romântico é também
a predileção pela temática amorosa, sendo a supervalorização dos afetos e do amor também re-
corrente na crônica escrita por Clarice Lispector. Essas referências literárias, afetivas e religiosas
podem ser aferidas nas seguintes palavras da cronista (LISPECTOR, 1999a, p. 312):
A ficção depois de 45 (o romance experimental): Clarice Lispector 113

A grosseria de Deus me feria e unsultava-me. Deus era bruto. [...] foi porque o
mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato tam-
bém. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo
matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não
sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente.

Na produção estética e inovadora de Clarice Lispector, o perdão extrapola a esfera da reli-


giosidade e se mostra, também, como uma espécie de categoria de pensamento, como um ato de
reflexão; não apenas como algo que dimensiona a fé de quem pede ou outorga esse perdão.
Publicado em jornal em 1970, o texto “Perdoando Deus” ostenta um título e uma tonalidade
religiosos, por meio dos quais a autora indaga e expressa as suas dúvidas em relação à divindade e
à compreensão da existência humana. Nessa crônica, pergunta ela assustada e perplexa, após pisar
num rato morto numa rua de Copacabana, no Rio de Janeiro: “De que estava Deus querendo me
lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há sangue” (LISPECTOR,
1999a, p. 312).
Tendo Deus e o rato como personagens2, o texto “Perdoando Deus” traça conexões inusitadas
entre as ideias do sublime e do grotesco. A experiência do sublime traduz um certo prazer estético
e, ao mesmo tempo, uma sensação de incompreensão, de mal-estar, diante de um ser, de uma paisa-
gem ou de uma obra de arte. O sublime almeja o ilimitado, o grandioso; parece desejar transcender
a dimensão do ser humano, criando uma outra ordem que remete a sensações de êxtase. Acerca
dessas questões, indaga a autora na referida crônica: “Como posso amar a grandeza do mundo se
não posso amar o tamanho de minha natureza?” (LISPECTOR, 1999a, p. 313).
Contrário às ideias do sublime, a noção do grotesco remete ao plano terreno, ao que vem
de baixo, e se desvincula da sensação de transcender. Na leitura desse texto, fica claro que quanto
mais a personagem adentra o universo do grotesco, menos ela busca uma norma ou uma moral
para conduzir a sua existência, estando mais atenta à descoberta e à interpretação de suas sensa-
ções, como demonstra este trecho: “é porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com
alguma ironia se eu também queria o rato para mim” (LISPECTOR, 1999a, p. 313).
Assim como em A Paixão Segundo G. H., Clarice Lispector elabora, nesse texto do livro
póstumo A Descoberta do Mundo, uma forte crítica ao automatismo social. Sua crítica é extensiva
aos condicionamentos propostos pela sociedade de consumo patrocinada pelo sistema capitalista.
Trata-se, como podemos ver, de um tipo de crônica que tangencia os limites do próprio gênero.
Esse tangenciamento pode ser aferido no fato de a autora entrelaçar à mistura do factual e do
fictício – própria da linguagem da crônica – elementos que nascem do filosófico e do poético, do
existencial e do metafísico, do humano demasiado humano e do divino.

2 É importante atentar para a presença recorrente de animais nos textos de Clarice Lispector. Além do rato dessa crônica
e da barata que habita as páginas do romance A Paixão Segundo G. H., lembremos que alguns livros infanto-juvenis da
autora também remetem a vários animais, como demonstram os seguintes títulos: A Mulher que Matou os Peixes, A Vida
Íntima de Laura (Laura é uma galinha) e O Mistério do Coelho Pensante.
114 Literatura brasileira II

Ampliando seus conhecimentos

Escrever estrelas (ora, direis)


(FUKELMAN, 1990, p. 5)

Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, pare-
cia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que man-
dava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos neces-
sários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que
poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que
emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um
público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose
para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento
defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada
a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas
vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela
intervir, através da literatura. Talvez sem o saber, Clarice estava optando por um tipo de
escrita característica do escritor moderno, para quem, no dizer do crítico francês Roland
Barthes, escrever é “fazer-se o centro do processo de palavra, é efetuar a escritura afetando
— se a si próprio, é fazer coincidir a ação e a afeição (...)”. Por esta via, formula-se uma outra
qualidade de experiência envolvida na escrita, uma nova perspectiva pela qual a linguagem
é concebida: mais importante do que relatar um fato, será praticar o autoconhecimento e o
alargamento do conhecimento do mundo através do exercício da linguagem.
A hora da estrela leva esta proposta às últimas consequências e por isso a sua leitura torna-
-se tão instigante. É certo que aqui reencontramos a agudeza na investigação da natureza e
psicologia humanas e o gosto pela minúcia, patente no trato dado à palavra, tão peculiares
a Clarice Lispector. Mas se lermos o livro como hora e vez, inserindo-o no conjunto de
sua obra, constataremos que existe algo de novo para além do insólito prefácio, em forma
de dedicatória, da frouxidão do enredo, da mescla de linguagem sutil com um tom des-
nudo e cru ou, ainda, da intimidade com que o choque social é apresentado. É que aqui a
Autora aborda de frente o embate entre o escritor moderno, ou melhor, do escritor brasileiro
moderno, e a condição indigente da população brasileira. Isto sem deixar de lado — afinal
de contas, traz a assinatura de Clarice Lispector — a reflexão sobre a mulher.

Dicas de estudo
Para novas abordagens acerca da vida e da obra de Clarice Lispector, recomendamos as
seguintes obras:
• A HORA da estrela. Direção de Suzana Amaral. Roteiro de Suzana Amaral e Alfredo Oroz.
Produção de Assunção Hernandes. São Paulo: Raiz Produções Cinematográficas,1985. 96
min. Narrando a vida de Macabea, a nordestina de 19 anos que vem morar no Rio de
A ficção depois de 45 (o romance experimental): Clarice Lispector 115

Janeiro, o longa de 1985 deu à atriz Marcélia Cartaxo um dos maiores prêmios interna-
cionais de cinema: o Urso de Prata de Berlim;
• BALABANIAN, Aracy. A descoberta do mundo: Clarice Lispector por Aracy Balabanian.
Luz da Cidade, 2002. 1 CD-ROM. Composto por contos e crônicas da autora de
A Descoberta do Mundo, a obra é produzida pelo selo Luzes da Cidade, com seleção de
textos de Paulinho Lima, e contém textos como “Felicidade Clandestina” e “Perdoando
Deus”, entre outros clássicos de Clarice;
• GOTLIB, Nadia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Edusp, 2010. O livro
traça a trajetória da vida da autora que nasceu na Ucrânia e veio para o Brasil com dois
anos, fixando-se na região Nordeste (Alagoas e Pernambuco) e depois no Rio de Janeiro.
O estudo de Gotlib elabora um roteiro bibliográfico com o qual é possível acompanhar a
produção literária de Clarice Lispector.

Atividades
1. Que relações podemos tecer entre as ideias do sublime e do grotesco que os textos de Clarice
Lispector sugerem?

2. Explique a especificidade da porção religiosa de Clarice Lispector, a qual se apresenta forte-


mente em sua obra, escrita no seio do Alto Modernismo.
12
A obra experimental de Guimarães Rosa

Neste capítulo, vamos conhecer a obra de um autor que, junto do escritor carioca Machado
de Assis, divide a glória de ser considerado, seguindo o aval de maior parte da crítica literária
brasileira, nosso melhor romancista: Guimarães Rosa (Cordisburgo, MG, 1908 – Rio de Janeiro,
RJ, 1967) – situação que, nesse caso particular, desafia a física, pois dois corpos, ou melhor, duas
grandes obras, dividem o mesmo espaço.
O objetivo de nosso trabalho é estudar a transformação linguística e literária levada a cabo
por Guimarães Rosa na escritura ficcional brasileira, um procedimento efetuado pelo autor ao
reler, de modo crítico-criativo, a tradição sertaneja em nossa prosa de ficção. Tradição essa na qual
podemos inserir autores do porte de um José de Alencar e/ou Euclides da Cunha.
Vamos perceber como os conteúdos sociais e psicológicos de Grande Sertão: Veredas são
apresentados em sua especificidade literária. Como se revelam por meio de sofisticadas técnicas
modernas de construção romanesca, que incluem intensa pesquisa experimental de linguagem.
Por meio desses procedimentos e dessas pesquisas, Guimarães Rosa ultrapassa as dimensões
realista e referencial típicas do Regionalismo criado anteriormente em nossa literatura, construin-
do uma obra em que os elementos míticos, místicos e poéticos são ressaltados no universo da pro-
sa. Sob tal perspectiva, de cunho universalizante, podemos entender melhor Guimarães quando ele
afirma que “o sertão é o mundo”.

12.1 A linguagem ficcional de Guimarães


O principal objeto do gênero romanesco, segundo o teórico russo Mikhail Bakhtin, é a preo-
cupação do escritor com o homem e sua fala. A originalidade estilística cria-se, assim, por meio
do “homem que fala e sua palavra”, e mais: “Para o gênero romanesco, não é a imagem do homem
em si que é característica, mas justamente a imagem de sua linguagem” (BAKHTIN, 1990, p. 137).
Na busca da imagem dessa linguagem ficcional, Guimarães Rosa elege o sertanejo como
homem romanesco e utiliza a sua fala como matéria de escrita. Com base no contexto social e
linguístico do sertão, e operando por meio de um processo da metalinguagem, o autor aciona uma
ruptura de gêneros, introduzindo a poesia, a voz lírica como componente principal de constituição
da linguagem romanesca. Surge, então, uma escritura poética atenta não apenas para a significação
do vocábulo, mas, também, para a parte material da palavra, a chamada porção significante do sig-
no linguístico, a sua sonoridade, o seu ritmo e extensão vocal.
A função metalinguística de uma linguagem pode ser percebida quando o fator código se faz
presente e ganha relevo no próprio texto romanesco. No caso de Guimarães Rosa, temos a lingua-
gem falando da própria linguagem, ou seja, a consciência do fazer literário insere-se na linguagem
da prosa de ficção, destacando como o texto diz o que diz.
118 Literatura brasileira II

Nessa operação metalinguística, Guimarães Rosa exige do leitor de sua narrativa um proces-
so de recriação do seu repertório, que é próprio da poesia. Pois ao reler as imagens das linguagens
que o autor ouviu e recriou, o leitor acaba por reescrevê-las. Tal leitura criativa, que reescreve o
que lê, se dá pelo contato com um texto que prioriza a dimensão significante da linguagem e que
exerce uma radicalidade no uso semântico da palavra, como sugere o desejo de definição expresso
nesta fala de Riobaldo – o personagem do cultuado romance Grande Sertão: Veredas: “dificultoso,
mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra” (ROSA, 1986,
p. 163).

12.2 Grande Sertão: Veredas


Publicado em 1956, o livro Grande Sertão: Veredas é o único romance escrito por Guimarães
Rosa e transformou-se num marco da bibliografia romanesca no Brasil do século XX, sendo tradu-
zido para muitos idiomas, como o inglês, o italiano, o francês e o alemão. Tendo o sertão mineiro
como contexto estético, referencial e ideológico, a obra apresenta um enredo simples e uma lingua-
gem extremamente sofisticada, que mistura os falares locais dos campos mineiros com o português
medieval e várias expressões em latim, entre outros ingredientes linguísticos e culturais.
A simplicidade do enredo é dimensionada pela narrativa oral de um velho fazendeiro,
Riobaldo, ex-homem de armas e de letras, que, por meio de um longo monólogo, apresenta suas
memórias para um interlocutor urbano e culto cuja fala é apenas sugerida pelo narrador. Nessas
memórias estão incluídas as dimensões políticas, sociológicas e existenciais da vida humana, sendo
ressaltada, com afeto e vigor, a narrativa de sua misteriosa paixão por Diadorim, ser andrógino,
amigo e companheiro de muitas andanças e batalhas pelo sertão. A complexidade da relação acen-
tua-se na medida em que esse ser apresenta-se divino e diabólico, entre o bem e o mal, o prazer e a
dor, o que desperta questionamentos de toda natureza no velho ex-jagunço.
No estudo que empreende sobre Grande Sertão: Veredas, o filósofo Benedito Nunes assevera
que a tematização do amor, nessa obra, apresenta uma face platônica bem específica. Para o autor
de O Dorso do Tigre, o platonismo presente no texto aponta para as possibilidades de elevação e
sublimação da paixão, contudo, dentro de uma “perspectiva místico heterodoxa, que se harmoniza
com a tradição hermética e alquímica” (NUNES, 1976, p. 143). Assim, corpo e alma, alto e baixo,
escuro e claro comungam, sem que os estágios inferiores sejam eliminados.
Na leitura da obra roseana, Nunes afirma que, em sua travessia, Riobaldo vivencia três tipos
diferentes de amor. O primeiro é o enlevo (de ordem espiritual) por Otacília. O segundo relaciona-se
à dúbia paixão (primitiva, dilacerada e caótica) que ele sente por Diadorim; e o terceiro tipo de amor
se volta para a volúpia sensual que Riobaldo sente por Nhorinhá, uma espécie de prostituta.
Nos três tipos de relações afetivas e torturantes, a paixão por Diadorim produz, sem dúvida,
grande parte dos medos e dos desejos do sertanejo que, munido de forte capacidade de adjetiva-
ção, a tudo julga e compara – inclusive, o sentimento amoroso: “Todo amor não é uma espécie de
comparação?”, indaga o narrador a certa altura do romance.
A obra experimental de Guimarães Rosa 119

Questionando a possibilidade de seu amor vir do demo, Riobaldo vivencia com Diadorim
uma guerra afetiva na qual prazer e dor, palavra e silêncio, desafio e medo são a tônica dos com-
bates. Sua relação com o cupido é atormentada e culposa: “Sei que tenho culpas em aberto. Mas
quando foi que minha culpa começou?” (ROSA, 1986, p. 131).
Personagens de um cenário socialmente problemático e existencialmente preconceituoso,
Riobaldo e Diadorim cultivam a culpa e o medo, na medida em que o desejo sexual é julgado como
moralmente errado e a mente volta-se contra o corpo. Por causa desse conflito, Riobaldo diz entrar
em “máquinas de tristeza”.
Desnecessário sublinhar que tipo de fala e de linguagem produz um corpo que se mostra
associado à imagem literária tão maravilhosa quanto máquinas de tristeza. Operando essa maqui-
naria poética, Riobaldo contata várias formas de medo, oscilando entre a tontura e o vazio, como
demonstra o seguinte fragmento (ROSA, 1986, p. 142):
ouvi retardado, não pude dar resposta. Me amargou no cabo da língua. Medo.
Medo que maneia. [...] Bananeira dá em vento de todo lado. Homem? É coisa
que treme. [...] Tem diversas invenções de medo, eu sei, o senhor sabe. Pior de
todas é essa: que tonteia primeiro, depois esvazia. Medo que já principia com
um grande cansaço [...] Medo do que pode haver sempre e ainda não há. O se-
nhor me entende: costas do mundo.

Sempre transitório e tentando entender os motivos dos seus medos e das suas raivas,
Riobaldo admite não ter medo do perigo, diz criar coragens, mas assume o seu medo de errar – o
que ele transforma em paciência, aconselhando: “pudesse tirar de si esse medo-de-errar, a gente
estava salva” (ROSA, 1986, p. 173).
Sem salvar seu amor por Diadorim, Riobaldo desvia-se da via-sacra da paixão (por medo de
errar?), justificando ser o espírito do homem um “cavalo que escolhe estrada: quando ruma para
tristeza e morte, vai não vendo o que é bonito e bom” (ROSA, 1986, p. 174). Riobaldo assegura ain-
da que renega Diadorim por motivo de vergonha. Mas, admite que quanto mais renega sua paixão
por outro jagunço, mais aproxima-se dela, como se sentisse o sol entrando.
Com medo dos castigos divinos, nosso sertanejo é um homem que acredita no bem isolado
do mal, e sente-se tenente aos cataclismas corporais (os tiroteios instalavam no corpo o ranço
nervoso). Riobaldo reconhece o trivial do corpo, aprendendo os ritmos e meandros da respiração
de quem tem medo e ama. Ele mente para si e para o objeto amado também. Nessa narrativa que
envolve a mentira, o encontro, o amor, o ódio e o medo, o jagunço indaga: “O prazer muito vira
medo, o medo vira ódio, o ódio vira esses desesperos?” (ROSA, 1986, p. 127).
Riobaldo sabe que o desespero gera tristezas, produz saudades, mas planta esperanças. Sua
vivência sertaneja ensinou-lhe haver um eterno retorno desses sentimentos e que a disciplina do
amor obedece às leis profundas e harmoniosas que nem sempre são da ordem da compreensão
humana. Por isso, não seria impossível ouvir novamente Diadorim que “falava assim afetuoso, tão
sem outras asas” (ROSA, 1986, p. 222).
Grande Sertão: Veredas é um livro no qual um amálgama de gêneros estéticos e de senti-
mentos humanos coexistem e se entrelaçam. O livro contém elementos trágicos, épicos, líricos,
120 Literatura brasileira II

dramáticos, sendo impossível apontar a predominância de um determinado gênero literário na


concepção da obra.
Romance que propõe um verdadeiro tratado sobre o medo – pois demonstra como esse sen-
timento, além de improdutivo, impossibilita a fluidez do pensamento e das ideias, impedindo uma
melhor leitura do contexto social e a demarcação possível das situações psicológicas vivenciadas –,
sugere ainda, pela voz do narrador, outras saídas, e anuncia: “Desespero quieto às vezes é o melhor
remédio que há. Que alarga o mundo e põe a criatura solta. Medo agarra a gente é pelo enraizado”
(ROSA, 1986, p. 143).

12.3 Outros escritos


Além de grande romancista, Guimarães Rosa destaca-se na literatura brasileira como um
dos maiores contistas do século XX. Sua estreia literária acontece em 1946 com Sagarana, um livro
de contos. Dentre os seus livros que têm a forma do conto como matriz, destaca-se ainda o volume
Tutameia (Terceiras Estórias), publicado em 1967, ano de sua morte.
Tutameia é um livro ímpar na nossa literatura e um dos textos mais complexos e densos
construídos por Guimarães Rosa. A obra contém quatro prefácios diferentes, além de uma lingua-
gem que parece mais radical do que a linguagem que o autor constrói em Grande Sertão: Veredas.
Abordando as implicações contidas nessa dimensão linguística, a crítica moderna se pronuncia
(NUNES, 1976, p. 209): “de fato, o jogo da linguagem, levado, em Tutameia, ao extremo do parado-
xo, volteia nas diversas glosas humorísticas e expressões comuns, e num confronto exaustivo com
o mundo e com a existência expande-se na criação de vocábulos novos”.
neologismos:
A produção de novos vocábulos, de neologismos e de diferentes discursos que o autor elabo-
palavras novas,
inventadas com ra aproxima as tonalidades reflexivas e filosóficas presentes na obra de suas configurações poéticas,
base na língua na-
cional ou em idioma
míticas e estilísticas, rompendo, mais uma vez, com a noção de gênero literário. Nesse sentido,
estrangeiro.
Tutameia pode ser lido como um texto narrativo de alto teor poético e de dimensões míticas e
orais. Seus contos são trabalhados como poemas, nos quais os nomes dos personagens e a constru-
ção da linguagem que sedimenta o discurso de quem fala são muito mais importantes do que os
fatos da própria narrativa em si.
De forma às vezes fragmentada, esses contos sugerem um discurso barroco em plena mo-
dernidade, estando o autor mais preocupado com a forma de expressão e com a noção de plurali-
dade do que com o belo em si, a ideia do singular preconizada pela arte clássica. Isso fica evidente
na presença dos inúmeros neologismos e expressões inusitadas como fraternura, utopiedade, luná-
tico de mel, rancordioso e vagovagante, entre muitos outros.
Os neologismos constituem-se numa marca singular da escrita de Guimarães Rosa, ainda
que sejam fruto de seus diálogos intertextuais com a tradição do romance moderno, mais especifi-
camente com as obras Ulisses e Finnegans Wake, de James Joyce. Em Tutameia, desenvolvendo ten-
dência presente em sua produção anterior, Guimarães Rosa lança mão de modo mais sistemático
desse recurso estilístico, possibilitando o acréscimo e a formação de novos vocábulos para a língua
A obra experimental de Guimarães Rosa 121

portuguesa. Motivo pelo qual alguns críticos dizem que o autor mineiro chegou a fundar uma es-
pécie de idioma particular, e não apenas um estilo de linguagem na literatura brasileira.
O gênio de Guimarães também se espalhou pelo gênero propriamente lírico, a poesia, apesar
de esta sempre ter estado presente em sua prosa narrativa. Na verdade, seu único livro de poe-
mas, Magma, foi a primeira produção literária do autor, que, curiosamente, não publicou em vida.
Apesar de a obra, em 1936, receber o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras, tal fato
não estimulou Guimarães a colocá-la no mercado à época. Magma foi publicada postumamente,
somente nos anos 1990, muito tempo após a morte do autor, em 1967 – mas trazendo ainda as
ilustrações de Poty, ilustrador de todas as suas obras anteriores.
Podemos perceber o futuro narrador em muitos poemas do livro, que traz uma produção
poética que se deixa atravessar, no geral, por índices de outros gêneros literários, característica,
afinal, de sua criação posterior. Como nos mostra este belo “Madrigal” (ROSA, 2006, p. 116), que
mistura a leveza do lirismo com a força violenta e trágica da natureza:

No tronco do jequitibá,
que estavas abraçado,
colando-lhe o corpo, do rostinho aos pés,
vejo os arranhões fundos,
onde o canguçu, quase de pé,
afia as garras,
e, mais embaixo, a casca estraçalhada,
onde os catitus vêm acerar os dentes...

Ampliando seus conhecimentos


(ROSA, 1937)1

O poeta não cita: canta. Não se traça programas, porque a sua estrada não tem marcos nem
destino. Se repete, são ideias e imagens que volvem à tona por poder próprio, pois que entre
elas há também uma sobrevivência do mais apto. Não se aliena, como um lunático, das agi-
tações coletivas e contemporâneas, porque arte e vida são planos não superpostos mas inter-
penetrados, com o ar entranhado nas massas de água, indispensável ao peixe – neste caso ao
homem, que vive a vida e que respira arte. Mas tal contribuição para o meio humano será a
de um órgão para um organismo: instintiva, sem a consciência de uma intenção, automática,
discreta e subterrânea.
Com um fosso fundo ao redor de sua turris ebúrnea, deixa a outros o trabalho de verificarem
de quem recebeu informações ou influências e a quem poderá ou não influenciar.
E o incontentamento é o seu clima, porque o artista não passa de um místico retardado, sem-
pre a meia jornada. Falta-lhe o repouso do sétimo dia. Não tem o direito de se voltar para o
já-feito, ainda que mais nada tenha por fazer.
A satisfação proporcionada pela obra de arte àquele que a revela é dolorosamente efêmera:
relampeja, fugaz, nos momentos de febre inspiradora, quando ele tateia formas novas para

1 Trecho do discurso proferido por Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras, em agradecimento ao prêmio con-
cedido a Magma (1936), livro de poemas publicado somente em 1997.
122 Literatura brasileira II

exteriorização do seu magma íntimo, do seu mundo interior. Uma tortura crescente, o inter-
valo de um rapto e um quase arrependimento. Pinta a sua tela, cega-se para ela e passa adiante.
Se a surdez de Beethoven tivesse lhe trazido a infecundidade, seria um símbolo. Obra escrita
– obra já lida – obra repudiada: trabalhar em colmeias opacas e largar o enxame ao seu destino,
mera ventura de brisas e de asas.
Tudo isto aqui vem tão-somente para exaltar a importância que reconheço ao estímulo que
me outorgastes. Grande, inesquecível incentivo. O Magma, aqui dentro, reagiu, tomou vida
própria, individualizou-se, libertou-se do seu desamor e se fez criatura autônoma, com quem
talvez eu já não esteja muito de acordo, mas a quem a vossa consagração me força a respei-
tar. Sou-lhe grato, principalmente, pelo privilégio que me obteve de poder – sem demasiadas
ilusões, mas reverente – levantar a voz neste recinto, como um menino que depõe o seu brin-
quedo na superfície translúcida de uma água, para a qual a serenidade não é a estagnação, e
cujo brilho da face viva nada rouba à projeção poderosa da profundidade. [...]

Dicas de estudo
Para novas abordagens acerca da vida e da produção literária de Guimarães Rosa, recomen-
damos as seguintes obras:
• GRANDE Sertão: Veredas. Direção de Geraldo dos Santos Pereira e Renato dos Santos
Pereira. São Paulo: Companhia Cinematográfica Vera Cruz, 1965. 92 min. O filme em
preto e branco foi produzido em 1965 e tem no elenco os atores Maurício do Valle, Jofre
Soares e Milton Gonçalves, entre outros. A obra foi recentemente lançada em DVD;
• VEREDAS de Minas. Direção de Fernando Sabino e David Neves. São Paulo: Bem-Te-Vi
Filmes, 1975. 10 min. A obra traz depoimentos ao vivo de Manuelzão e de outros personagens
do universo roseano, além de trecho do discurso de posse de Guimarães Rosa na Academia
Brasileira de Letras, em 1967, dois dias antes de sua morte. A obra foi recentemente lançada no
DVD Encontro Marcado com o Cinema, de Fernando Sabino e David Neves;
• BOLLE, Willi. grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Ed. 34, 2004.
(Coleção Espírito Crítico). Alentado ensaio escrito pelo professor Willi Bolle sobre Grande
Sertão: Veredas, o qual vê na obra de Guimarães o romance de formação do Brasil. A obra en-
saística compreende o romance como uma reescrita de Os Sertões, de Euclides da Cunha, e
dialoga com os intérpretes mais representativos de nossa formação cultural: Gilberto Freyre,
Sérgio Buarque de Hollanda, Caio Prado Jr., Antonio Candido, entre outros.

Atividades
1. Que possibilidades de leituras podemos fazer da porção afetiva do personagem Riobaldo, de
Grande Sertão: Veredas?

2. Faça um comentário crítico sobre os procedimentos estéticos que traduzem a singularidade


do livro Tutameia, de Guimarães Rosa.
Gabarito

1 O momento pré-moderno no Brasil


1. Trata-se de um momento histórico em que vários estilos de época ocorrem de modo mais si-
multâneo do que sucessivo, sem terem a mesma força demarcatória de épocas sociais e estéticas
específicas, como aconteceu, por exemplo, com os estilos anteriores da tradição ocidental – Clas-
sicismo e Romantismo. Com isso, não era incomum que influências de mais de uma escola do
período – as principais são: Realismo, Naturalismo, Parnasianismo, Simbolismo-Decadentismo,
Impressionismo – se dessem num único autor que, assim, frequentemente, misturava, sincretiza-
va tendências e estilos diversos.

2. Movido por sentimentos de injustiça social e racial, tendo vivido preconceitos de diversas ordens du-
rante sua vida de cidadão comum e homem de Letras, Lima Barreto opta, em seus escritos, por utilizar
um estilo mais direto, jornalístico, de denúncia dos absurdos e desigualdades que estavam por detrás
das elites políticas e literárias oficiais de sua época. Hoje, a crítica literária vê nessa atitude de constru-
ção formal de suas obras, mais objetiva e menos elaborada expressivamente, uma postura irônica do
autor diante do artificialismo que dominava a literatura “sorriso da sociedade” de nossa Belle Époque.

2 As vanguardas europeias
1. O termo vanguarda significa, no universo das artes ou da política, o que está à frente. Ou seja: o
que vê adiante e propõe mudanças, mesmo que para isso sejam necessárias a quebra de paradig-
mas e a ruptura com a tradição. Por priorizar uma leitura subjetiva do ser humano, na relação
com o seu contexto, os movimentos de vanguarda traduzem uma certa estética do choque e da
agressão, que é comum às ruas das metrópoles modernas. O caráter experimental e demolidor
dessas estéticas demonstra, na maioria das vezes, o desejo de inovação artística e de reforma po-
lítica dos seus seguidores.

2. O Dadaísmo e o Surrealismo são os dois últimos movimentos de vanguarda. Eles têm em comum
a crítica ao sistema burguês e a atitude combativa diante dos valores propostos pela sociedade
ocidental. Mas, enquanto o Surrealismo propõe uma reforma dos paradigmas sociais, o Dadaís-
mo, como o mais radical dos movimentos, nega os paradigmas opressores da sociedade e nada
propõe, a não ser a destruição.

3 A fase heroica: a Semana de 1922 e os principais manifestos


1. A fase heroica da nossa modernidade corresponde aos anos que antecederam a Semana de Arte
Moderna e culmina com a realização desse evento, em 1922. Segundo o poeta Mário de Andrade,
trata-se de um período no qual alguns participantes do grupo modernista viviam numa união ilu-
minada pelas ideias de liberdade e pureza. Nessa fase de heroísmo, a exposição de Anita Malfatti,
em 1917, destaca-se como o evento que demarca o espaço estético dos modernos, já que os seus
quadros foram a revelação para o poeta entender aquele contexto artístico e cultural.
124 Literatura brasileira II

2. Duas tendências estéticas e ideológicas dominam os manifestos modernos. Uma dessas tendências é
representada por artistas que contataram alguns representantes das vanguardas europeias, e que são
influenciados pelas ideias de ruptura e pela necessidade de repensar a realidade brasileira. Mário e
Oswald de Andrade são os nomes mais representativos dessa tendência. A outra tendência dialoga
também com ideias nacionalistas, mas sob um ângulo conservador. A ela vinculam-se os artistas de
direita, representados por movimentos como o Verde-Amarelismo e o Grupo Anta, liderados por
Plínio Salgado, Cassiano Ricardo e Menotti Del Picchia.

4 A obra de Manuel Bandeira


1. Embora tivesse dois livros publicados em 1922, Manuel Bandeira não participou do evento que co-
memorava o centenário da nossa Independência; porém o seu poema “Os Sapos” foi lido por Ronald
de Carvalho, na segunda noite da Semana. No Itinerário de Pasárgada, o poeta deixa claro que o seu
apreço pelos mestres da tradição (leia-se os poetas parnasianos e simbolistas) é maior que a irreve-
rência e a demolição que nortearam a maioria das propostas estéticas daquele nosso primeiro Moder-
nismo, embora o poeta confesse sua dívida enorme para com o movimento.

2. Não é por acaso que o crítico e poeta Haroldo de Campos disse que Manuel Bandeira possui talvez
a dicção mais sutil do nosso Modernismo. Uma das principais características da poética do autor per-
nambucano é a recorrência aos ritmos construídos por meio dos versos livres, atentando para as suas
entoações e pausas. Isso possibilita a construção de um texto cuja musicalidade é conferida pelo leitor,
seja na leitura do poema, seja na audição da letra da canção.

5 A obra de Mário de Andrade


1. Mais do que diferenças, podemos tecer relações de semelhanças e de aproximações entre o Mário de
Andrade como poeta moderno e o Mário de Andrade como antropólogo. Podemos dizer que o Mário
de Andrade poeta alimenta-se do Mário de Andrade antropólogo, e vice-versa. Exemplos disso estão
disponíveis em Pauliceia Desvairada, livro no qual o poeta incorpora a fala brasileira à sua lingua-
gem literária, que depois conheceria de modo mais abrangente nas viagens etnográficas realizadas às
cidades históricas de Minas Gerais e às regiões Norte e Nordeste. Outro fato concreto que aproxima
o poeta e o antropólogo está num dos seus livros de poemas mais cultuados – Remate de Males, pu-
blicado em 1930, cujo título o poeta revela, em O Turista Aprendiz, haver sido colhido da boca de um
senhor nativo da Região Norte.

2. As cartas escritas por Mário de Andrade podem ser consideradas como documentos históricos e cul-
turais porque ultrapassam a esfera da intimidade e se abrem a múltiplas camadas significativas, para
além da tonalidade pessoal e confessional. Ao transcender o que é considerado íntimo e particular,
o autor alcança o universo da projeção política e social, tratando de temas como: as diferentes rela-
ções entre cultura e nação; o patrimônio histórico nacional e os elementos da modernidade; a nossa
tradição artística e cultural e as inovações de vanguarda. Ao se enredar por tais tópicos, o texto da
carta ganha tonalidade ensaística, passando a ter uma dimensão histórica, antes outorgada apenas ao
ensaio e à resenha estética como espaços de exercícios críticos e referenciais.
Gabarito 125

6 A obra de Oswald de Andrade


1. Presa a estreitos conceitos de nacionalismo literário, a crítica demorou a perceber a inovação estética
e conceitual contida no romance Serafim Ponte Grande. Após a leitura feita por Haroldo de Campos,
na década de 1960, o livro ganha outra dimensão crítica. A visão da estrutura fragmentada e sincrô-
nica do romance, além dos procedimentos estéticos que engendram a sua narrativa, como o corte e a
metalinguagem, passaram a dar outra visibilidade para um texto cuja forma rompe totalmente com a
narrativa linear e com o idealismo romanesco da tradição.

2. Como dramaturgo, Oswald de Andrade apresenta a mesma marca que o caracteriza, seja como ro-
mancista, seja como ensaísta ou poeta: o traço crítico. Em peças como Rei da Vela, o autor debocha da
moral burguesa da sociedade do início do século XX e critica a tirania do sistema capitalista sobre o
indivíduo. Sua visão teatral é sintética, de vanguarda e foge da ideia de imitação. Essa visão de síntese
aposta também na construção de efeitos inventivos e acredita no jogo intertextual, já que na moder-
nidade o diálogo entre as artes e as linguagens é um procedimento criativo recorrente.

7 Segundo momento modernista: estabilização da


consciência criadora nacional (a poesia)
1. Apesar de apresentarem alguns pontos em comum, porque foram construídas por poetas modernos
de um mesmo contexto, as poéticas dos autores representativos do segundo momento modernista
apresentam características bem diferenciadas entre si. Carlos Drummond recria um eu poético cuja
memória afetiva constrói-se por meio de procedimentos irônicos típicos do sujeito fragmentado da
modernidade, enquanto o eu poético que se expressa na poesia de Cecília Meireles apresenta uma
sonoridade lírica que dialoga com as estéticas clássica, romântica e simbolista. Se Murilo Mendes e
Jorge de Lima assemelham-se na questão temática da religiosidade, suas poéticas modernas também
sugerem diferenças: enquanto o poeta mineiro ostenta uma visibilidade formal repleta de elementos
surrealistas, o poeta alagoano apresenta, como traço marcante, a devoração da tradição literária oci-
dental, recorrendo a procedimentos paródicos e intertextuais. Vinicius de Moraes, por sua vez, une,
na esfera afetiva, os polos do sublime e do terreno para viver as grandes paixões que a poesia moderna
canta, e que ele viveu intensamente.

2. As expressões todos os movimentos e todas as línguas, todos os gestos, todos os signos denotam a ideia
de totalidade, enquanto o verso Sou ubíquo: estou em Deus e na matéria expressa os sentimentos de
ubiquidade e de totalidade também, ambos considerados pelo ensaísta e crítico João Alexandre Bar-
bosa como fundamentais para o projeto estético da modernidade.

8 A prosa dos anos 30


1. A literatura de José Lins do Rego inscreve-se naquela face da nossa prosa moderna escrita nos anos 1930
e que produz o romance nordestino, enquanto a prosa literária de Lúcio Cardoso possui a sua inscrição,
naquele mesmo contexto, como romance intimista. Segundo o ensaísta Alfredo Bosi, de forma sutil e meio
indireta, os autores mais representativos do romance intimista ou introspectivo – Lúcio Cardoso, Cornélio
Pena e Otávio Faria – resgataram o traço freudiano-surrealista do nosso Modernismo dos anos 1920. Já os
autores do romance nordestino encaminharam-se para o realismo bruto.
126 Literatura brasileira II

2. O distanciamento, a objetividade e a ironia são recursos literários que a crítica destaca na prosa urba-
na do escritor Marques Rebelo. A chave para a leitura de sua obra estaria na dosagem de proximidade e
distância do narrador em face dos seres da ficção, segundo o ensaísta Alfredo Bosi, que ainda sublinha
a ausência da retórica na prosa urbana do escritor.

9 O ensaísmo social
1. A expressão metodologia dos contrários, que o crítico Antonio Candido usa para definir a estrutura
de organização das ideias de Raízes do Brasil, nos auxilia a compreender o processo de utilização de
dicotomias e contradições, por Sérgio Buarque de Holanda, para caracterizar a sociedade brasileira
desde a sua fundação. Por exemplo, a implantação da cultura europeia em nossa terra, com suas for-
mas de convívio trazidas e impostas para a nossa natureza e cultura, é tida pelo ensaísta como um fato
contraditório de nossa formação que determinará muito do que somos ainda hoje.

2. Antes do ensaio publicado por Gilberto Freyre, os trabalhos sociológicos e de cunho antropológico
apresentavam um viés positivista, cuja metodologia primava pelo distanciamento e neutralidade
do observador. A noção de objetividade também era da maior importância, em relação ao objeto
de estudo. Com Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre atenta para a noção de diferença e passa
a levar em conta a sua perspectiva subjetiva na análise dos fatos. Além disso, o autor inclui na re-
flexão a sua porção estética de escritor, junto às demais facetas por ele assumidas como sociólogo,
antropólogo e historiador.

10 João Cabral e a Geração de 45


1. Segundo o poeta João Cabral, a Geração de 45 não se voltou violentamente contra a poesia que a pre-
cedeu porque a geração anterior, à qual pertenciam os poetas que começaram a publicar por volta de
30, solidificou as inovações trazidas pelos poetas de 22, potencializando o que merecia ser apreendido
esteticamente. Por esse motivo, a Geração de 45 precisou dialogar com esses poetas de 30, a fim de
filiar-se à tradição já criada e inscrita pelos poetas modernos desde 22. Apesar dessa leitura até certo
ponto generosa por parte de João Cabral, o crítico Alfredo Bosi afirma que a Geração de 45 nasce em
contraposição aos poetas de 22, e Haroldo de Campos é mais radical: utiliza vocábulos como idealista
e sublime na leitura que faz acerca da linguagem criada pela Geração de 45.

2. Quando publica Pedra do Sono, em 1942, o seu primeiro livro de poema, João Cabral apresenta um
texto no qual ecoam influências surrealistas que ele vai abandonar nos livros seguintes, em prol de
uma poética mais voltada para os elementos da estrutura e da forma. Ao publicar o livro Quaderna
(1959), o poeta aciona um diálogo poético entre o Nordeste e a Espanha, as suas raízes e o seu con-
texto profissional, encontrando pontos de convergência entre os dois espaços que, a partir deste texto,
serão tematizados em toda a sua poética. Com o texto Morte e Vida Severina revela-se a porção dra-
mática do autor, até então desconhecida.
Gabarito 127

11 A ficção depois de 45 (o romance experimental):


Clarice Lispector
1. Na literatura de Clarice Lispector é comum a presença de uma voz narrativa que dialoga com as
esferas do sublime, sem descartar um mergulho pelos meandros do grotesco. Exemplar desse
trânsito inusitado é o percurso das vozes que narram o romance A Paixão Segundo G. H. e a crônica
“Perdoando Deus”. Em ambos os textos, a autora estabelece conexões inusitadas entre Deus e suas
criações repugnantes e que dão nojo (a barata, o rato morto), coisas que não ostentam qualidades nem
atributos, mas que, contraditoriamente, apresentam uma vitalidade que pode libertar o ser humano
das prisões impostas pela moral e pelo automatismo social.

2. A porção religiosa de Clarice Lispector pode ser dimensionada pelo traço de misticismo e religiosidade
que perpassa toda a sua produção literária, em suas mais variadas formas de expressão: nos romances,
nos contos, nas novelas, nas crônicas e na literatura infanto-juvenil. Herança típica do Barroco e do
Romantismo, essa religiosidade aflora em pleno Modernismo e não apresenta sintonia com dogmas
religiosos nem mandamentos bíblicos. Exemplar dessa problemática é o livro A Paixão Segundo
G. H., cujo título remete aos evangelhos da Bíblia e cujo discurso meditativo e existencial contrapõe
o divino ao terreno, o universal ao particular e o efêmero ao eterno (ela deseja encontrar Deus hoje,
não no futuro).

12 A obra experimental de Guimarães Rosa


1. O personagem Riobaldo é um homem afetivamente dividido e problemático. Entre todos os amores
e afetos por ele vivificados no sertão, nenhum é mais forte e potente do que a narrativa da sua paixão
por Diadorim, o seu companheiro andrógino de jagunçagem. Da experiência dessa relação atormen-
tada e afetiva entre os dois, nascem os medos e as culpas de Riobaldo, além de um perene desejo de
tudo comparar. Na leitura que empreende em torno do amor na obra de Guimarães Rosa, o filósofo
Benedito Nunes diz que a tematização do amor nessa obra baseia-se no platonismo. Em sintonia com
essa base platônica, Riobaldo vivencia outra paixão, além de Diadorim: o enlevo espiritual que ele
vive com Otacília.

2. Alguns procedimentos estéticos e alguns elementos literários dão conta da singularidade de Tutameia.
O primeiro deles refere-se à forma do texto e à existência de quatro prefácios diferentes escritos pelo
autor para um mesmo livro. Outra informação relevante a respeito desse livro de contos modernos
(e de toda a obra de Guimarães Rosa) é a presença de muitos neologismos, cuja criação potencializa
a linguagem poética e renova as bases da própria língua portuguesa. Outro dado que o torna singular
é a produção de um discurso barroco, contraposto aos ideais clássicos de beleza, e em sintonia com a
noção de pluralidade.
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O momento da literatura brasileira sobre o qual

LITERATURA BRASILEIRA II
se debruça este livro é, sem dúvida, um dos mais
importantes de nossas Letras.
O percurso aqui traçado inicia com o pré-
-Modernismo, no fim do século XIX, e os
movimentos de vanguarda que influenciaram
a estética do Modernismo brasileiro, passa
pela Semana de Arte Moderna de 1922, seus
antecedentes, seus desdobramentos e manifestos,
e percorre as três grandes fases do Modernismo
no país, incluindo a prosa dos anos 30, o ensaismo
social e a geração de 45. São discutidos, entre
outros, autores como Lima Barreto, Augusto
dos Anjos, Mario de Andrade, Manuel Bandeira,
Oswald Andrade, Cecilia Meireles, Carlos
Drummond Andrade, Graciliano Ramos, João
Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector e Guimarães
Rosa, contextualizando-os historicamente no
desenvolvimento da literatura brasileira moderna.
Trata-se, assim, de um convite para o (re)
conhecimento da alma e do corpo cultural do
Brasil e de nosso povo, por meio do veículo verbal,
multitemporal e surpreendente da literatura.

André Gardel

Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-6150-1

58163 9 788538 761501

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