Você está na página 1de 14

A falsa batalha: homologias entre as obras de “A educação sentimental”, de Gustave

Flaubert, e “O 18 de brumário de Louis Bonaparte”, de Karl Marx.

Resumo:
Considerando o contexto em que a sociologia e literatura surgem como campos mais ou
menos autônomos, verifica-se que os autores tinham um modo específico de produzir suas
obras, já que buscavam independência linguística e metodológica em relação aos outros
campos do conhecimento. No entanto, atráves de comparações, é possível perceber
homologias (isto é: correspodências incorporadas pelo convívio com uma matriz cultural
comum e coletiva) entre as obras de sociólogos e literatos. Pretende-se, portanto,
descobrir e revelar correspondências entre as obras "A educação sentimental", de Gustave
Flaubert, e "18 de brumário de Luís Bonparte", de Karl Marx. Para tanto, revisaremos
bibliograficamente tanto os autores que discutem o surgimento dos campos como também
essas obras de Marx e Flaubert; trabalharemos com a sociologia e a literatura a partir do
conceito de representação, que, em outras palavras, significa a tentativa de "re-apresentar"
um dado cenário social (ora pra refletir sobre, ora para descrever, ora para analisar)
através de meios comunicativos (a linguagem oral ou escrita, imagens, sons etc.).

Introdução:

A história do surgimento do campo literário francês, conhecida até nossos dias,


tem sido a história da autonomização do campo literário naquele país através do Realismo
(BOURDIEU, 2002). O esforço de criação de um campo independente também é
percebido na origem da sociologia e, mais tarde, das ciências sociais, já que se
constituíram como um campo científico que buscava explicar (entender ou transformar)
a realidade social (LEPENIES, 1996). Como um espectro de guerra – que ronda e ameaça
a impureza de formas de representar o real –, a batalha por autonomia desses campos
(literário e sociológico) exigiu a construção de muros que dificultaram o trânsito livre
entre as diversas formas de conhecimento do mundo social. No entanto, de saída, já é
possível notar algumas semelhanças: necessariamente, ciências sociais e literatura são
compromissadas com a representação da realidade; uma se vale da criação de conceitos,
problemas, verificação de hipóteses pela via empírica enquanto a outra prioriza intuição
e observação da realidade (PRAXEDES, p. 12). Apesar da diferença nos métodos, ambas
mantêm sempre a preocupação com a representação do mundo social. Também é possível
observar homologias (correspondências e semelhanças) no modo de operar interpretações
acerca da realidade se se comparar, por exemplo, a obra “A educação sentimental” (2017),
de Gustave Flaubert, e “O 18 de brumário de Luis Bonaparte” (2011), de Karl Marx, uma
vez que os autores analisam um mesmo período histórico, que é a França de meados do
século XIX e as jornadas de junho de 1848 que desembocam no autogolpe do Dezoito
brumário. Além disso, as manifestações literárias e sociológicas elaboraram revoluções
simbólicas permanentes no modo de representar a realidade social. Flaubert pela
seriedade objetiva e pela escolha de narrar a vida de pessoas comuns (AUERBACH,
2011); Marx pela análise conjuntural baseada na leitura estrutural da realidade socio-
histórica (CAVA, 2016). Este é o objeto desse trabalho, reconhecer e des-cobrir as
correspondências entre o campo literário e sociológico através da análise comparativa
dessas duas obras.
No livro de Marx (2011), a figura de Luís Bonaparte é utilizada como peça
fundamental para os desenvolvimentos políticos das jornadas até o golpe de estado, em
1851 – que dá fim a Segunda República Francesa. O sobrinho de Napoleão, Luis
Bonaparte, conta com o apoio de camponeses interioranos da França e do
lumpemproletariado parisiense. O apoio e lealdade do exército acaba por oferecer as bases
de sustentação para o autogolpe. Reestabelece a monarquia (invocando a linhagem de seu
tio), dissolve a Assembleia nacional, manda prender oposições das mais amplas
tendências políticas, reestabelece também o sufrágio universal (porque precisava do apoio
das bases populares). Burguesia modernizadora e republicanos se viam acossados a
interpretar o golpe como retrocesso histórico e se ressentiam ante ao não atendimento das
classes populares à revolta armada.
A ascensão de Luís Bonaparte relatada no 18 de Brumário serve
de ocasião para Marx discorrer sobre a dinâmica do poder, a luta
de classe e o que move a história. O livro foi publicado em
fascículos num jornal norte-americano, enquanto os
acontecimentos ainda estavam quentes. Ele abrange um período
de três anos, entre o fim do levante popular de 1848 e o desfecho
do golpe de estado. A narrativa é tensionada pelo enigma
formulado nas páginas iniciais: como uma figura tão
inexpressiva, tanto desprezada pelos contemporâneos pela falta
de qualidades, pôde ser erigida à condição de herói da história?
Marx vai explicar como a chave de inteligibilidade tanto para o
golpe quanto para o seu caráter farsesco se encontra na luta de
classe (CAVA, 2016, p. 11)
Em “A educação sentimental” (2017), Flaubert narra a história de Frédéric
Moreau, estudante que vai à Paris em 1840, conhece sra. Arnoux, esposa do Sr. Arnoux,
importante editor e vendedor de arte, e nutre por ela fortes esperanças amorosas. Moreau
é um jovem a la Lucien de Rubempré, já que ambos tem interesses literários, artísticos e
mundanos. Passeia por Paris com a companhia de Martinon, Cisy, Sénecal, Dussardier e
Hussonet – cada um à sua maneira, representam modos de ser específicos da época
(jovens ambiciosos, ciosos por capital social, com educação sentimental ou não). A
história se passa, basicamente, nas casas dos Arnoux e de Dambreuse, ou nos salões das
cortesãs. O romance trata da indeterminação de Frederic diante de seu livre-trânsito entre
os mais diferentes campos dos negócios, da arte e do poder (econômico e dos negócios,
com Dambreuse, e da arte, com Sr. Arnoux). Sobre essa indeterminação:
Frederic Moreau é, no duplo sentido, um ser indeterminado ou,
melhor, determinado à indeterminação, objetiva e subjetiva.
Instalado na liberdade que lhe é assegurada por aqueles que vivem
de rendas, é comandado, até nos sentimentos de que é
aparentemente sujeito, pelas oscilações de seus investimentos
financeiros, que definem as orientações sucessivas de suas
escolhas (2002, p. 18).

O percurso de Flaubert (2017), no romance, estabelece conexão com os modos de


ser da burguesia francesa, mas não se furta de chegar, no fim do trajeto do livro, até os
fenômenos políticos também narrados e discutidos por Marx (2011). Nosso objetivo é
perceber os pontos de contato entre os dois livros: Flaubert negligenciaria os aspectos
coletivos da sociedade francesa uma vez que supervaloriza o percurso individualista e
burguês de Moreau? O romance é capaz de representar a sociedade francesa nos anos
anteriores à jornada de junho? Enfim, as questões que nos interessam dizem respeito a
interdisciplinaridade possível entre literatura e sociologia.
Nosso trabalho se insere, portanto, no que se convencionou chamar de sociologia
da literatura – sociologia que analisa e estuda a relação de reflexividade entre as duas
disciplinas –, mas não perde de vista a relação historicamente conflituosa entre elas. Por
isso, Botelho e Holz (2016) tensionam a relação entre a literatura e sociedade no campo
da sociologia da literatura: “afirmar que as relações entre literatura e sociedade são o tema
da sociologia da literatura, mais do que uma definição convencional [...], pode reiterar
uma falsa aparência de estabilidade onde antes existe controvérsia [...]” (p. 263). Além
de tensão, existe uma forte “interdisciplinaridade”, já que os objetos desse campo [soc.
lit.] também são compartilhados por “filósofos, historiadores, críticos de arte em geral”
(idem). Essa unidade disciplinar sobre a categoria da sociologia da literatura também
parece implicar uma simplificação acerca das tão complexas e nada óbvias categorias
[literatura e sociedade]. Outro risco seria a de dar a falsa ideia de que “uma ‘sociologia
da literatura’ acaba por sugerir certo sentido unívoco à sociologia mesma, como se
também ela significasse algo estável em termos de objeto, teorias e métodos” (idem).
Portanto, segundo Altarmirano e Sarlo (2001, p. 8 apud Botelho e Hoelz), “de uma
perspectiva sociológica, se pode dizer muitas coisas sobre a literatura, mas não se pode
dizer tudo”, visto que existe uma pluralidade razoável de objetivos, pensamentos,
subcampos, interesses etc. no campo das sociologias da literatura. O objetivo desse
trabalho é qualificar as relações existentes entre essas duas disciplinas, descobrindo o que
é próprio de cada uma e aquilo que há de semelhante entre elas.
Para Botelho e Hoelz (2016, p. 271), uma “[...] perspectiva cuja influência é vista
como decisiva na formatação da agenda de pesquisas recentes da sociologia da literatura
é a de Pierre Bourdieu (1996)”, que evidenciou o valor literário como produto de
constructos sociais e simbólicos criados a partir da estutura interna do campo literário e
de sua relação (de subordinação) com o campo do poder.
No livro “As regras da Arte” (2002), Bourdieu elabora conjuntos de perguntas e
respostas sobre a relação da literatura com o seu contexto de produção a fim de perceber
de que modo as relações sociais do campo literário produzem os textos literários. A
relação não é harmônica. Aproximar arte e literatura de análises propriamente
sociológicas (efeitos do campo, determinações do poder político, desvendar as
disposições de autores e artistas) é o que faz Bourdieu (2002) no primeiro capítulo,
elabora uma leitura da obra “A educação sentimental” (2017) de Flaubert, elencando os
principais eixos trabalhados pelo romancista: as posições dos personagens no campo do
poder da França do século XIX, a questão da herança de Frédéric (a vontade de herdar
sem ser herdado), os acidentes necessários (momentos de cruzamento dos interesses
irreconciliáveis do campo), o poder da escrita de Flaubert e suas fórmulas sociológicas
presentes no romance.
Problema:

Ainda que consideremos o momento de autonomização dos campos literário e


sociológico como um acontecimento histórico é inegável e que percebamos a dificuldade
de interrelação entre esses campos (visto que buscavam a autonomia e independência
sobre as interpretações, análises e entendimento da realidade social), esse projeto de
pesquisa investiga quais são as homologias entre a narrativa de Gustave Flaubert, em “A
educação sentimental”, e o ensaio político de Karl Marx, em “O dezoito brumário de
Louis Bonaparte”. O problema se manifesta da seguinte maneira: se se buscava tanto a
autonomia dos campos, por que há tantas homologias e correspondências entre as obras
sociológicas e literárias?
Hipóteses:

As motivações da separação dos campos [literário e social] são claras: a busca por
capitalizar valor e provar a superioridade de suas análises diante dos acontecimentos
históricos dessa época. Cada um à sua maneira formou um modo de se autoapresentar:
objetividade linguística, positivismo metodológico, homogeneidade discursiva (pureza)
etc.
Nessa competição de intepretações revela-se um dilema da
sociologia, que determina não somente a história de seu
surgimento, mas também seu desenvolvimento ulterior: a
hesitação entre uma orientação cientificista, pronta a imitar as
ciências naturais, e uma atitude hermenêutica, que aproxima a
discplina da literatura. O debate entre uma intelectualidade
literária e uma intelectualidade das ciênciais sociais constitui
dessa forma parte de um processo complexo, em cujo decorrer
foi-se distinguindo o modo de produção científico do modo de
produção literário; essa separação é acentuada ideologicamente
pela contraposição entre a fria razão e a cultura dos sentimentos
– uma dessas oposição que marcam o conflito entre a ilustração
[iluminismo] e contra-ilustração [contra-iluminismo]
(LEPENIES, 1996 p. 11)

No entanto, essa diferenciação não se estabelece de maneira absoluta, uma vez


que existem preocupações e interpretações semelhantes. Vejamos o caso do romance “A
educação sentimental”, de Flaubert, e “18 brumário de Luís Bonaparte”, de Marx: por
tratar de uma mesma temática – a França no período da guerra civil e os desdobramentos
do 18 brumário de Luís Bonaparte –, encontramos não só semelhanças entre as duas obras
mas verifica-se e descobre-se também a proximidade entre os campos. Um outro exemplo
relevante, que consideramos importante, é a própria recusa de Balzac em se relacionar
com a emergente sociologia do século XIX, alardeada inclusive em romances como
Ilusões perdidas (2010, p. 280)1 quando expõe um certo desdém pela figura do
positivismo, confirma o embate político dos campos. Por outro lado, Balzac é um dos
autores que influenciou a elaboração conceitual da teoria dos campos de Pierre Bourdieu.
Mais do que isso, Balzac é um autor de literatura que se entendia como um cientista social,

1
Na seminal obra Ilusões perdidas (2010) de Balzac, em que o autor claramente intenta elaborar análises
sobre a realidade social da França do Antigo Regime, encontramos evidências de um possível conflito entre
a literatura (de Balzac) e o positivismo (de August Comte) quando Lucien dialoga com Lousteau sobre
como o soneto e a poesia eram negados pelo pensamento positivista da época (p. 280).
porque insere seus personagens na cadeia de causas e influências dos meios históricos e
sociais (AUERBACH, 1971, p. 421).
“Na medida em que o realismo moderno sério não pode representar o homem a
não ser engastado numa realidade político-sócio-econômica de conjunto concreta e em
constante evolução – como ocorre agora em qualquer romance ou filme –, Stendhal é o
seu fundador” (p. 414, AUERBACH). O realismo opera, portanto, na mesma lógica que
funda a sociologia: a necessidade de entender como o homem – individual ou
coletivamente – se relaciona com o cenário histórico que se revela e interage com sua
realidade imediata. Para Auerbach, isso é um fenômeno novo trazido pelo realismo, uma
vez que os escritores anteriores recusavam o mote de representação fidedigna e
privilegiavam a representação da realidade através de sátiras ou representações que não
tinham o “real” no centro de suas motivações:
Nos primeiro decênios após a morte de Rousseau, no pré-
romantismo francês, o efeito daquela terrível desilusão foi,
evidentemente, totalmente contrário [ao que vinha sendo
produzido – obras que, mais ou menos, representavam o real –,
Auerbach cita Diderot, Voltaire e o próprio Rousseau]:
apresentou-se, justamente no caso dos escritores mais
importantes, uma tendência para a fuga da realidade
contemporânea. A Revolução, o Império e, ainda, a época da
Restauração são pobres em obras literárias realistas
(AUERBACH, 2013, p. 412).

Do mesmo modo, a literatura de Flaubert e os escritos de Marx produzem leituras


semelhantes sobre o processo de guerra civil na França quando narram a decepção dos
revoltados burgueses, que se frustram e se filiam naturalmente as ideologias de direita.
Existem homologias inevitáveis entre os autores devido ao próprio convívio comum com
as matrizes culturais da Europa desse momento em que os autores viveram.
Justificativa:

Descobrir relações diretas entre as obras de Marx e Flaubert desfaz o discurso


ideológico que preserva a pretensa pureza dos campos sociológico e literário no processo
de construção de suas análises. O conhecimento pode ser intercambiável: suas hipóteses,
intuições, linguagens, sentimentos (Praxedes, 2019). Um exemplo frutífero em relação a
esse diálogo pode ser observado na obra de Bourdieu:
Ao escrever sobre A dominação masculina, por exemplo,
Bourdieu se inspirou “na lucidez inquieta e indulgente” dos
romances de Virgínia Woolf, segundo ele, “seria preciso toda a
acuidade de Virgínia Woolf e o infinito refinamento de sua
escritura para levar até as últimas consequências a análise de uma
forma de dominação inscrita em toda a ordem social e operando
na obscuridade dos corpos, que são ao mesmo tempo lugares de
investimento e princípios de sua eficácia”. (Bourdieu, 2003, p. 99
apud PRAXEDES, 2019, p. 7).

Por outro lado, a literatura obviamente também pode fazer uso da sociologia (seja
de suas descobertas, discursos epistemológicos ou de suas noções conceituais e
interpretações da realidade), mas para literatura esse já é um problema resolvido há mais
tempo do que para a sociologia:
Os escritores também podem se inspirar nos conhecimentos
verificados através dos métodos científicos para a elaboração de
suas narrativas. Mas Speller (2017, p. 113) chega a considerar que
“os escritores estão, em certo sentido, à frente dos sociólogos na
medida em que já romperam com a cronologia, com a ordem
lógica dos acontecimentos e com narrativas unilineares que, em
nossa memória subjetiva e experiência, podem ser borradas e
ambíguas” (PRAXEDES, 2019, p. 7).

Como exemplo, cabe citar “A educação sentimental” e seus vínculos com a análise
propriamente sociológica. Esse romance poderia ser uma obra sociológica, diz-nos
Bourdieu (2002), se não optasse por usar uma forma em que se revela e se mascara a um
só tempo. Para esse autor, “A educação sentimental” reconstitui, com exatidão, a estrutura
do mundo social na qual a obra foi produzida – porque é exatamente essa estrutura social
que age como princípio gerador dessa obra e das estruturas mentais que a compõem.
Flaubert faz isso “[...] dando a ver e a sentir, em exemplificações ou, melhor,
evocações no sentido forte de encantações capazes de produzir efeitos, especialmente
sobre os corpos, pela ‘magia evocativa’ de palavras capazes de ‘falar a sensibilidade’ e
de obter uma crença e uma participação imaginária análogos às que concedemos ao
mundo real” (BOURDIEU, 2002, p. 48, grifos do autor). Isto é: “a tradução sensível
dissimula a estrutura” e produz um efeito de crença antes de produzir um efeito de real.
Para Bourdieu (e isso é de extrema importância para esse trabalho), é por isso que a
literatura é capaz de dizer muito mais – mesmo sobre o mundo social – do que textos com
pretensão científica. “A forma na qual se anuncia a objetivação literária é sem dúvida o
que permite a emergência do real mais profundo, mais oculto [...], porque ela é o véu que
permite ao autor e ao leitor dissimula-lo e dissimula-lo para eles próprios [...]” (p. 49).
Enfim, “O encanto da obra literária deve-se sem dúvida em grande parte, a que fale das
coisas sérias sem pedir, a diferença da ciência segunda Searle, para ser levada
completamente a sério [...]” (p. 49).
Pra além das semelhanças, claramente existem também diferenças. Mas é
justamente isso que se busca: com a intenção de qualificar o debate sobre essa relação
muitas vezes conflituosa entre a sociologia e a literatura, é importante encontrar as
semelhanças e diferenças que compõe a realidade produtiva de cada um desses campos.
A intenção é criar pontes reais, uma terceira margem, que leve em consideração os
potenciais afetivos e explicativos de cada tipo de escritura e representação da realidade.
Sobre isso, Bourdieu analisa que:
Não há melhor atestado de tudo que separa a escrita literária da
escrita científica do que essa capacidade, que ela possui
exclusivamente, de concentrar e de condensar na singularidade
concreta de uma figura sensível e de uma aventura individual,
funcionando ao mesmo tempo como metáfora e metonímia ao
mesmo tempo, toda complexidade de uma estrutura e de uma
história que a análise científica precisa desdobrar e estender
laboriosamente [...] (2002, p. 39).
Objetivo:

Existem tantos defensores da interdisciplinaridade quanto existem produtores de


conhecimento. Hoje, a defesa de uma ciência diversa, plural e interdisciplinar é moeda de
troca simbólica de sociológicos espalhados pelas instituições a fora. Colocar a impureza
no centro de nossa análise, considerando as rupturas práticas e epistemológicas, é o
objetivo que aqui se encerra nesse trabalho; eliminar barreiras metodológicas e
discursivas e advogar pela impureza da prática científica. Não por modismo ou simples
vontade, se não pela própria motivação de tentar encontrar respostas dialogais para a
complexidade mesma da realidade que se nos evidencia diante dos olhos. O peso das
palavras, das coisas ditas e de outras escritas, usadas em romances, narrativas, poesias ou
nas obras sociológicas, artigos, dissertações, teses deve ser um interesse de todos os que
se interessam pela representação da realidade social. A palavra, escrita ou falada, é
recurso comunicativo, meio de expressão, fio condutor da criação do imaginário, da
memória social. Nesse sentido, a interdisciplinaridade – os vínculos, homologias,
correspondências e semelhanças – opera sua arte: todo texto é obra do pensamento
traduzido em palavras: seja “A educação sentimental” ou “18 brumário” (ambos dialogam
no fato simples de serem representações da realidade).

É compreensível que o sociólogo tenha interesse em pesar suas


palavras. Mas isso não é tudo. O mundo social é um lugar de lutas
a propósito de palavras que devem sua gravidade – e às vezes sua
violência – ao fato de que as palavras fazem as coisas, em grande
parte, e ao fato de que mudar as palavras e, em termos gerais, as
representações (por exemplo, a representação pictórica, como
Manet), já é mudar as coisas. A política é no essencial uma
questão de palavras. É por isso que a luta para conhecer
cientificamente a realidade quase sempre deve começar por uma
luta contra as palavras. Ora, com muita freqüência, para transmitir
o saber, devemos recorrer às próprias palavras que precisaram
ser destruídas para que se conquistasse e construísse esse saber:
percebe-se que as aspas não são grande coisa quando se trata de
assinalar tamanha mudança de estatuto epistemológico [...]
(BOURDIEU, 2004, pp 71-72).

O trabalho não busca, no entanto, colocar a linguagem no centro da produção


epistemológica, porque reconhece seus limites e suas problemáticas (BOURDIEU, 2004).
Mas reconhece que a linguagem – tal como a imagem e a propria sociabilidade como um
todo – é parte constitutiva da realidade social (e ainda mais especificamente das
representações sociais do campo da literatura e da sociologia do século XIX). O estudo
das revoluções simbólicas ocorridos em outros campos fora da sociologia deve ser
interessante ao sociólogo pelo próprio potencial afetivo que essa revolução provoca no
modo em que as representações são construídas e efetivadas. O objetivo desse trabalho é
pensar as relações entre as revoluções simbólicas do realismo (principalmente Flaubert)
e outra revolução analítica promovida pela sociologia e pela obra marxiana – que tem em
seu “18 brumário” (2011) um de seus maiores representantes. O objetivo é simples e
meramente epistemológico: desfazer barreiras puras e misturar discursos, práticas e
métodos.
Metodologia:

Considerando representação como sinônimo de “re-apresentação” – discurso


escrito ou narrado que apresento, isto é, torna presente, a realidade vivida – (BHABHA,
1998), serão analisadas obras a fim de que se des-cubram homologias (PANOFSKY,
2001; SAID, 2003, BOURDIEU, 2002), que nada mais são do que semelhanças e
correspondências semânticas entre duas obras produzidas por diferentes autores, a
respeito da obra de Flaubert e de Marx. A prática recorre metodologicamente ao estudo
bibliográfico – que percorrerá estas obras e outras, principalmente aquelas que expõem o
modo como os campos sociológico e literário construíram sua autonomia; para tanto,
serão consideradas as obras de Wolf Lepenies (1996) e Pierre Bourdieu (2002).
Pra além das semelhanças, claramente existem também diferenças. Mas é
justamente isso que se busca: com a intenção de qualificar o debate sobre essa relação
muitas vezes conflituosa entre a sociologia e a literatura, é importante encontrar as
semelhanças e diferenças que compõe a realidade produtiva de cada um desses campos.
A intenção é criar pontes reais, uma terceira margem, que leve em consideração os
potenciais afetivos e explicativos de cada tipo de escritura e representação da realidade.
Sobre isso, Bourdieu analisa que:
Não há melhor atestado de tudo que separa a escrita literária da
escrita científica do que essa capacidade, que ela possui
exclusivamente, de concentrar e de condensar na singularidade
concreta de uma figura sensível e de uma aventura individual,
funcionando ao mesmo tempo como metáfora e metonímia ao
mesmo tempo, toda complexidade de uma estrutura e de uma
história que a análise científica precisa desdobrar e estender
laboriosamente [...] (2002, p. 39).

Sobre isso, o autor (2002) percebe certas platitudes e clichês antissociológicos na


fala de filósofos e escritores importantes do passado. Bourdieu pergunta:
(1) “É verdade que a análise científica esteja condenada a destruir
o que constitui a especificidade da obra literária e da leitura, a
começar pelo prazer estético? (2) E que o sociólogo esteja
destinado ao (a) relativismo, (b) ao nivelamento dos valores, (c)
ao rebaixamento das grandezas, (d) à abolição das diferenças que
constituem a singularidade do ‘criado’, sempre situado ao lado do
Único? (3) Isso porque ele teria parte com os grandes números, a
média, o mediano e, por conseguinte, com o medíocre, o menor,
os ‘menores’, massa dos pequenos autores obscuros, justamente
ignorados, e com o que repugna acima de tudo aos ‘criadores’
deste tempo, o conteúdo e o contexto, o ‘referente’ e o fora do
texto, o exterior à literatura?” (2002, p. 12).

Essa seriam questões fundamentais para a composição do trabalho, já que


repercutem os problemas centrais da sociologia da literatura.
REFERÊNCIAS:

AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo, Perspectiva, 2013.


BALZAC, Honoré de. Ilusões perdidas. 2 Vol. São Paulo, Abril, 2010.
BHABHA, Homi. O local da cultura. Minas Gerais, Ed. UFMG, 1998.
BOTELHO, André; HOELZ, Maurício. Sociologias da literatura – do reflexo à
reflexividade. Tempo Social, USP, v. 28, nº 3
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São
Paulo, Companhia das Letras, 2002.
CAVA, Bruno. O 18 brumário brasileiro. São Paulo: AnnaBlume, 2016. p. 11-74.
_____. Coisas ditas. São Paulo, Brasiliense, 2004.
LEPENIES, Wolf. As três culturas. São Paulo, Edusp, 1996.
FLAUBERT, G. A educação sentimental. São Paulo, Companhia das Letras, 2017.
MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. São Paulo, Boitempo, 2011.
PANOFSKY, Erwin. Arquitetura gótica e escolástica. São Paulo, Martins Fontes, 2001.
PRAXEDES, Walter Lúcio de Alencar. A presença da literatura na obra de Pierre
Bourdieu. 2019.
SAID, Edward. Orientalismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

Você também pode gostar