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Resumo:
Considerando o contexto em que a sociologia e literatura surgem como campos mais ou
menos autônomos, verifica-se que os autores tinham um modo específico de produzir suas
obras, já que buscavam independência linguística e metodológica em relação aos outros
campos do conhecimento. No entanto, atráves de comparações, é possível perceber
homologias (isto é: correspodências incorporadas pelo convívio com uma matriz cultural
comum e coletiva) entre as obras de sociólogos e literatos. Pretende-se, portanto,
descobrir e revelar correspondências entre as obras "A educação sentimental", de Gustave
Flaubert, e "18 de brumário de Luís Bonparte", de Karl Marx. Para tanto, revisaremos
bibliograficamente tanto os autores que discutem o surgimento dos campos como também
essas obras de Marx e Flaubert; trabalharemos com a sociologia e a literatura a partir do
conceito de representação, que, em outras palavras, significa a tentativa de "re-apresentar"
um dado cenário social (ora pra refletir sobre, ora para descrever, ora para analisar)
através de meios comunicativos (a linguagem oral ou escrita, imagens, sons etc.).
Introdução:
As motivações da separação dos campos [literário e social] são claras: a busca por
capitalizar valor e provar a superioridade de suas análises diante dos acontecimentos
históricos dessa época. Cada um à sua maneira formou um modo de se autoapresentar:
objetividade linguística, positivismo metodológico, homogeneidade discursiva (pureza)
etc.
Nessa competição de intepretações revela-se um dilema da
sociologia, que determina não somente a história de seu
surgimento, mas também seu desenvolvimento ulterior: a
hesitação entre uma orientação cientificista, pronta a imitar as
ciências naturais, e uma atitude hermenêutica, que aproxima a
discplina da literatura. O debate entre uma intelectualidade
literária e uma intelectualidade das ciênciais sociais constitui
dessa forma parte de um processo complexo, em cujo decorrer
foi-se distinguindo o modo de produção científico do modo de
produção literário; essa separação é acentuada ideologicamente
pela contraposição entre a fria razão e a cultura dos sentimentos
– uma dessas oposição que marcam o conflito entre a ilustração
[iluminismo] e contra-ilustração [contra-iluminismo]
(LEPENIES, 1996 p. 11)
1
Na seminal obra Ilusões perdidas (2010) de Balzac, em que o autor claramente intenta elaborar análises
sobre a realidade social da França do Antigo Regime, encontramos evidências de um possível conflito entre
a literatura (de Balzac) e o positivismo (de August Comte) quando Lucien dialoga com Lousteau sobre
como o soneto e a poesia eram negados pelo pensamento positivista da época (p. 280).
porque insere seus personagens na cadeia de causas e influências dos meios históricos e
sociais (AUERBACH, 1971, p. 421).
“Na medida em que o realismo moderno sério não pode representar o homem a
não ser engastado numa realidade político-sócio-econômica de conjunto concreta e em
constante evolução – como ocorre agora em qualquer romance ou filme –, Stendhal é o
seu fundador” (p. 414, AUERBACH). O realismo opera, portanto, na mesma lógica que
funda a sociologia: a necessidade de entender como o homem – individual ou
coletivamente – se relaciona com o cenário histórico que se revela e interage com sua
realidade imediata. Para Auerbach, isso é um fenômeno novo trazido pelo realismo, uma
vez que os escritores anteriores recusavam o mote de representação fidedigna e
privilegiavam a representação da realidade através de sátiras ou representações que não
tinham o “real” no centro de suas motivações:
Nos primeiro decênios após a morte de Rousseau, no pré-
romantismo francês, o efeito daquela terrível desilusão foi,
evidentemente, totalmente contrário [ao que vinha sendo
produzido – obras que, mais ou menos, representavam o real –,
Auerbach cita Diderot, Voltaire e o próprio Rousseau]:
apresentou-se, justamente no caso dos escritores mais
importantes, uma tendência para a fuga da realidade
contemporânea. A Revolução, o Império e, ainda, a época da
Restauração são pobres em obras literárias realistas
(AUERBACH, 2013, p. 412).
Por outro lado, a literatura obviamente também pode fazer uso da sociologia (seja
de suas descobertas, discursos epistemológicos ou de suas noções conceituais e
interpretações da realidade), mas para literatura esse já é um problema resolvido há mais
tempo do que para a sociologia:
Os escritores também podem se inspirar nos conhecimentos
verificados através dos métodos científicos para a elaboração de
suas narrativas. Mas Speller (2017, p. 113) chega a considerar que
“os escritores estão, em certo sentido, à frente dos sociólogos na
medida em que já romperam com a cronologia, com a ordem
lógica dos acontecimentos e com narrativas unilineares que, em
nossa memória subjetiva e experiência, podem ser borradas e
ambíguas” (PRAXEDES, 2019, p. 7).
Como exemplo, cabe citar “A educação sentimental” e seus vínculos com a análise
propriamente sociológica. Esse romance poderia ser uma obra sociológica, diz-nos
Bourdieu (2002), se não optasse por usar uma forma em que se revela e se mascara a um
só tempo. Para esse autor, “A educação sentimental” reconstitui, com exatidão, a estrutura
do mundo social na qual a obra foi produzida – porque é exatamente essa estrutura social
que age como princípio gerador dessa obra e das estruturas mentais que a compõem.
Flaubert faz isso “[...] dando a ver e a sentir, em exemplificações ou, melhor,
evocações no sentido forte de encantações capazes de produzir efeitos, especialmente
sobre os corpos, pela ‘magia evocativa’ de palavras capazes de ‘falar a sensibilidade’ e
de obter uma crença e uma participação imaginária análogos às que concedemos ao
mundo real” (BOURDIEU, 2002, p. 48, grifos do autor). Isto é: “a tradução sensível
dissimula a estrutura” e produz um efeito de crença antes de produzir um efeito de real.
Para Bourdieu (e isso é de extrema importância para esse trabalho), é por isso que a
literatura é capaz de dizer muito mais – mesmo sobre o mundo social – do que textos com
pretensão científica. “A forma na qual se anuncia a objetivação literária é sem dúvida o
que permite a emergência do real mais profundo, mais oculto [...], porque ela é o véu que
permite ao autor e ao leitor dissimula-lo e dissimula-lo para eles próprios [...]” (p. 49).
Enfim, “O encanto da obra literária deve-se sem dúvida em grande parte, a que fale das
coisas sérias sem pedir, a diferença da ciência segunda Searle, para ser levada
completamente a sério [...]” (p. 49).
Pra além das semelhanças, claramente existem também diferenças. Mas é
justamente isso que se busca: com a intenção de qualificar o debate sobre essa relação
muitas vezes conflituosa entre a sociologia e a literatura, é importante encontrar as
semelhanças e diferenças que compõe a realidade produtiva de cada um desses campos.
A intenção é criar pontes reais, uma terceira margem, que leve em consideração os
potenciais afetivos e explicativos de cada tipo de escritura e representação da realidade.
Sobre isso, Bourdieu analisa que:
Não há melhor atestado de tudo que separa a escrita literária da
escrita científica do que essa capacidade, que ela possui
exclusivamente, de concentrar e de condensar na singularidade
concreta de uma figura sensível e de uma aventura individual,
funcionando ao mesmo tempo como metáfora e metonímia ao
mesmo tempo, toda complexidade de uma estrutura e de uma
história que a análise científica precisa desdobrar e estender
laboriosamente [...] (2002, p. 39).
Objetivo: