Você está na página 1de 45

É o ano de 2046 e o mundo que co-

nhecíamos no início do milénio


mudou. Em vez de nações, temos
territórios delimitados por zonas de ha-
bitação consoante as antigas naciona-
Há um estado perpétuo de guerra
fria. Quando as pessoas se aperceberam
disso, as manifestações foram proibidas
e qualquer concentração era rapidamente
sobre o estado do mundo, mas falta-lhes a
coragem para desafiar o sistema.
A impossibilidade de diálogo entre os
extremos ideológicos impediu qualquer
dispersa pelas forças policiais que foram tipo de progresso social. A contínua falta
lidades de cada indivíduo. Todos esses absorvidas pelos militares. A maioria de entendimento e cooperação não pára
territórios são patrulhados por um pu- das pessoas empregadas perdeu um a de conduzir a constantes situações de
nhado de potências mundiais que ditam um os direitos laborais que tinham, os impasse, impotência e frustração. Não
as entradas e saídas. sindicatos foram extintos ou tornaram-se ajuda que o jornalismo se tenha demitido
Algumas zonas tornaram-se tão obsoletos, e agora os trabalhadores estão da sua função principal e tenha passado
hostis que os seus habitantes não têm completamente à mercê da boa vontade a ser um mero megafone dos poderes
permissão de viagem para outras áreas das empresas que exigem um mínimo de políticos e económicos.
mais comercialmente abastadas. A região 10 horas diárias de trabalho. Se estiverem Num mundo como este, os homens
que era conhecida por uma grande em falta, o banco, em conluio com as e mulheres só podem ter como maior
concentração de locais de peregrinação empresas, pode congelar e vedar acesso à esperança a hipótese de terem filhos e
há muito está entregue a uma desolação conta bancária. de deixarem um melhor legado para eles.
vedada de “terra de ninguém”, em que os A medicina atingiu um patamar nunca Mas esses filhos são agora doutrinados
combatentes de várias fés se voluntariam visto e quase todas as doenças podem nesta nova ordem mundial em que nada
para morrer na defesa de antigos ser curadas através de células estaminais é questionado e o passado deixou de ser
monumentos religiosos. Morrem mártires e medicina regenerativa. A recente aprendido. Os erros retornam sempre
às dúzias todos os dias. revolução biotecnológica completou para assombrar.
A tecnologia que parecia ser tão o resto. Mas tornou-se de acesso tão Este é o ano de 2046 e, para os que são
voraz e expandido horizontes tornou-se limitado que só uns quantos poucos velhos o suficiente para se interrogarem
o pior inimigo. Nenhum aparelho conseguem beneficiar dos novos milagres sobre como o mundo se tornou este sítio
sobrevive incólume a um rigoroso da ciência. Cerca de 75% da população tão desolado, basta regressarem um pou-
processo de vigilância e espionagem que mundial que resta não tem acesso a co no tempo e recordarem os erros de
busca combatentes inimigos mas, na serviços de saúde que não sejam básicos. muitos cidadãos que não viram a tempo,
verdade, influencia o curso das grandes nem se impuseram a tempo, nem soube-
operações políticas e financeiras. As A cultura ainda é das poucas coisas ram evitar as agruras do tempo presente.
novas tecnologias tornaram-se ainda mais que permanece mas estranhamente A cobardia, o crescente distanciamento da
viciantes, conduzindo a grandes períodos alterada. Todos os produtos culturais realidade, a incapacidade de destruir um
de isolamento e desprezo ou desinteresse – livros, filmes, músicas, arte – que sistema que não funciona e substituí-lo
por relações sexuais. Naturalmente, o passam pela censura contém mensagens por outro tornaram-se fardos – os peca-
declínio da taxa de natalidade é maior a insidiosas e subliminares que encorajam dos dos nossos pais – e o ano de 2046
cada ano que passa. o conformismo, consumismo e é testemunha do preço elevado que foi
Já ninguém acredita em política desde estupidificação. A indústria de livros já pago.
que os políticos se tornaram um mero não permite o luxo de pensar e alimenta
peão na mão de banqueiros e corporações. apenas cada vez mais livros irrelevantes e
Os que ainda podem votar, não votam no de entretenimento. Todos os intelectuais
líder que mais faz promessas para lhes viram as suas vozes silenciadas na
conceder bem-estar. Em vez disso, votam voragem da censura, contra-informação
no homem ou mulher que lhes oferece e contra-política. Muitos que tentaram
um prato de comida em troca do voto. denunciar o sistema foram perseguidos
Em zonas um pouco mais abastadas, e banidos para os confins do mundo.
deixa de ser um prato de comida e passa a Talvez haja ainda muitos nas suas casas
ser qualquer outro bem material. que ainda se atrevam a pensar e reflectir

BANG! /// 1
uis Melo nasceu em Lisboa
em 1981. Estudou Design
de Comunicação na Facul-
dade de Belas-Artes da Universi-
dade de Lisboa, porém aprendeu
ilustração digital paralelamente,
como autodidata, online. Pode-se
dizer que deve muito do percurso
dentro da sua profissão actual ao
envolvimento em fóruns de arte
digital.
O seu trabalho é maioritariamente
ligado aos videojogos, tendo co-
laborado tanto como freelancer ou
integrado em estúdios, em projec- 2
tos de diversos temas e dimensões,
e com clientes nos mais variados
países. Considera que a aposta na
versatilidade compensou, não só
porque é incapaz de se cingir a
um estilo, como também por lhe
agradar bastante mudar contras-
tadamente de registo, de projecto
para projecto.
Entre 2009 e 2010 fez uma pas-
sagem de ano e meio por Xangai
para participar, como concept artist,
no projecto Alice: Madness Returns,
desenvolvido pela Spicy Horse
Games, experiência que conside- 3
rou extremamente enriquecedora
em todos os sentidos.
De volta a Portugal, como freelancerr,
e com uma paixão crescente pela
literatura, particularmente a de fic-
ção científica, tem lido bastante e
procurado trabalhos editoriais nes-
se âmbito, tendo já ilustrado capas
para vários livros do género. Ten-
tando aprofundar ainda mais este
interesse, aventurou-se recente-
mente pela escrita criativa, que está
a levar a sério e que já resultou na
produção de vários contos.
A busca por um lado mais autoral
4 5
do seu trabalho é um aspecto que
pretende explorar mais a fundo e
que está a ganhar bastante peso na
sua produção actual, traduzindo-se
em breve na publicação de histórias
suas ilustradas e projectos de BD,
embora também continue em con-
tacto com o meio dos videojogos.
Para contrabalançar a sua activi-
dade principal e também manter
uma certa sanidade mental, o Luis
reserva outras actividades criativas
exclusivamente
para o lazer, tais
como tocar tam-
bores e cozinhar
pratos picantes.

1 2 //
/// BAN
ANG!
NG!
G! 6 BANGG! //
BANG
BA /// 3
8 13

19
23

28
39
54
49 74

4 /// BANG!
po e alma). O bem, pelo contrário, é secundárias de Tiganaa formam um gru- gens femininas, mas também persona-
exclusivo aos heróis, quase sempre sem po rico, complexo e memorável. Caros gens masculinas cativantes. Os eventos
falhas, dúvidas ou arrependimentos. leitores, mais do que uma boa leitura, ocorrem pela mesma altura do que O
Guy Gavriel Kay, que procura cons- desejo a todos uma excelente viagem. Mago – Aprendiz e a maioria dos even-
tantemente transcender as fraquezas tos tomam lugar em Kelewan. A ação
da fantasia, com Tiganaa marca um corte centra-se bastante nos Tsuranuanni. A
com essa tradição tolkiana do bem e do não perder.
mal. Tiganaa está repleto de personagens
Caixa As Crónicas de Gelo e
em conflito com as suas próprias de- Fogo
cisões e com o impacto que essas de- de George R.R. Martin Acácia - Vol. 5
cisões têm nos outros. Aliás, a grande de David Anthony Durham
força desta obra é precisamente a am- Apresentamos As Crónicas de Gelo e Fogo
biguidade moral das suas personagens. em formato… Tyrion. Ou seja, toda a
Durham dá continuação a uma série
Não são homens bons nem maus, são acção, aventura e emoção que George
ambiciosa e complexa em que forças
apenas homens, apesar do poder que R. R. Martin nos habituou, mas em for-
morais ambíguas, bem como o grande
lhes foi atribuído e que os coloca na mato de bolso. A caixa, com um design
teatro político e económico, influen-
posição de fazerem grande bem ou espectacular, é composta por dez vo-
ciam o destino de muitos povos e cul-
grande mal. Quem conhece a obra de lumes elegantes e resistentes. Atenção
turas. Vários anos decorreram desde
George R. R. Martin sabe exatamente que apesar de serem dez volumes, ape-
os eventos no último livro e a rainha
do que estamos a falar. nas inclui os primeiros cinco volumes Ama o seu marido centauro (sim, leram Corinne Akaran governa com mão de
Vejamos as personagens: Alessan, o da saga no formato grande, ou seja, de bem), a sua ligação à deusa Epona e ce-nos um mundo de fantasia épica com
ferro, ao mesmo tempo que engrande-
NOVEMBRO herói de Tigana, não olha a meios para A Guerra dos Tronoss até A Tormenta de toda a pompa e circunstância que isso ce os seus poderes de feiticeira. Cada a sua própria geografia, religião, política
atingir os fins. Espadas. A segun- traz. Na verdade, quase esqueceu a sua e estruturas sociais complexas. Numa
um dos irmãos Akaran está envolvido
Mas será heróico, da metade da saga vida na Terra… especialmente quando península que em tudo nos recorda
em planos vitais para a guerra iminente
Tigana - A Lâmina na Alma mesmo quando em formato de descobre que está grávida. contra os Auldek, os invasores que vêm uma Itália medieval e onde o povo co-
de Guy Gavriel Kay os fins são tão bolso chegará em Então, uma erupção abrupta de poder mercializa vinho, cereais e especiarias
do gelo e estão prestes a abater-se sobre
nobres como o 2014. atira-a de volta para Oklahoma. Sem por terra e por mar, Tiganaa conta-nos
Acácia. Mas outras ameaças surgem e
Quando publicou O Senhor dos Anéis resgate de um magia, a jovem não consegue regressar podem destruir o equilíbrio precário de uma história poética e poderosa sobre
nos anos cinquenta do século passa- povo, recorrer ao a Partholon e, como tal, vai precisar de poder. Conseguirá a rainha de Acácia a força da política e da religião, o custo
do, J. R. R. Tolkien não podia sequer assassínio e à pró- ajuda. O problema é que essa ajuda virá resistir na guerra que se avizinha? do sangue e o preço do amor.
sonhar que estava a criar alicerces tão pria escravatura? JANEIRO na forma de um homem tão tentador
profundos para a fantasia épica que, Brandin, o vilão, como o seu marido. Quem diria que ser
meio século depois, uma multidão de tem uma capaci- deusa por escolha seria bem mais difícil
autores ainda o copiaria até à exaustão. dade imensa de Divina por do que ser deusa por engano?
Esses alicerces, hoje clichés absoluta- amar. Vive, inclu- Escolha
mente esgotados, são vários: a história sive, uma das mais de P. C. Cast
dividida nos tradicionais três volumes; belas histórias de
as características físicas e culturais dos amor da literatura A autora do suces- O Mago - A Serva
elfos, anões e outras raças míticas; a fantástica. Mas é o so A Casa da Noite do Império - Vol. 2
inevitável demanda do herói; os pode- ódio que o move está de regresso de Raymond E. Feist ÚLTIMOS LANÇAMENTOS DA COLECÇÃO BANG!
rosos artefactos mágicos; a figura do durante gran- ao romance para-
210. Justiça de Kushiel
senhor das trevas; e, por fim, talvez a de parte da vida. normal com o se- Uma das sagas mais importantes de
Jacqueline Carey
que mais marcou a fantasia desde en- Alessan e Brandin gundo volume da todos os tempos foi a criação de Ray- 211. Acácia – O Povo das Crianças Divinas
tão: a separação simplificadora entre o são personagens complexas e das mais saga Partholon. Shannon Parker, a he- mond E. Feist. Com mais de 16 mi- David Anthony Durham
bem e o mal. Com Tolkien o mal é ab- fascinantes do género. Diga-se que es- roína do primeiro volume, finalmente lhões de livros vendidos e traduzido 212. Dragões de um Alvorecer de Primavera, vol. 3
soluto e corrompe absolutamente (cor- tão em boa companhia: as personagens aceitou a sua vida mítica em Partholon. em mais de 35 países, Feist continua a Margaret Weis & Tracy Hickman
maravilhar milhares de leitores de fan- 213. Sangue Final
tasia. Figura entre os 10 melhores escri- Charlaine Harris
NOVOS PROJECTOS: tores de fantasia em praticamente todas 214. Mago – A Serva do Império
Raymond E. Feist & Janny Wurts
as listas. Esta saga, escrita em parceria 215. Divina por Engano, vol. 1
Viva o Brasil! Revista Bang! online com Janny Wurts, foi elogiada como a P. C. Cast
Em 2013, a Saída de Emergência não se limitou a fazer 10 A Bang! está na internet, com actualizações diárias, conte- melhor saga a resultar de uma escrita 216. Contos de Algernon Blackwood
anos. Também se expandiu para o Brasil numa parceria am- údos fabulosos e grandes colaboradores. Acompanhe tudo a duas mãos. A Saga Filha do Império Algernon Blackwood
conta a história de uma mulher e da
biciosa com a Sextante, um dos maiores grupos editoriais do sobre literatura fantástica e ajude-nos a divulgar o portal.
intriga e manipulação que ela usa para
FEVEREIRO 217. A Fera Perfeita
Michael Jan Friedman, Robert Greenberger,
país irmão. Para descobrir o que andamos a fazer por terras
Peter David
chegar ao poder. Trilhando o seu cami-
brasileiras, visite-nos em www.sdebrasil.com Brandon Sanderson nho entre armadilhas e traições que os Tigana - A Voz da Vingança 218. A Ironia e Sabedoria de Tyrion Lannister
No ano que vem, em Portugal, vamos ver um dos melho- de Guy Gavriel Kay
George R. R. Martin
seus inimigos lhe preparam e… a pos-
Prémio Bang! res autores de literatura fantástica a chegar à colecção Bang!
sibilidade de descobrir o amor. Não se
219. Tigana - A Lâmina na Alma, vol. 1
Guy Gavriel Kay
E esta expansão para o Brasil traz de volta o Prémio Bang! Brandon Sanderson e a sua saga Mistbornn começarão a ser Segundo volume da obra-prima de Guy
trata de uma destruição de mundo ou
Um prémio para a melhor ficção fantástica onde poderão publicados ainda no primeiro terço do ano. Esta saga nin- Gavriel Kay. Mais do que estar na van-
de forças do bem contra forças do mal.
concorrer tanto autores portugueses como brasileiros. O re- guém vai querer perder! guarda de um movimento destrutor
É um livro de personagens e de intriga.
gulamento deverá ser comunicado ainda este ano. Preparem dos alicerces da fantasia, o autor ofere-
Podemos encontrar fortes persona-
os vossos originais!
co. Ninguém entra, ninguém sai daqueles portões e o festim começa. Desfilam histó-
rias de todos os discos, pequenos contos de terror que abordam a possessão espiritual,
o vodu, o coveiro solitário. Toda a performance tem uma encenação fílmica, com uma
banda sonora infernal, entre virtuosismo e puro storytelling.
g O Rei (Diamante) canaliza
em si todas estas energias à solta e o público, o vosso escriba incluído, rende-se com
uma entrega digna de um povo aclamando o seu líder. É um teatro inspirado, aquele Fernando Ribeiro é vocalista e letrista da banda
que nos é apresentado e fica-se com uma sensação idêntica no fim do concerto aquela Moonspell, com a qual já lançou vários discos, e
de quando lemos um bom livro de terror ou vemos um clássico filmado do género. em 2009 participou no projecto Amália. Tem três
Uma certa ansiedade, um medo familiar, interrogações na cabeça, um peso agradável livros de poesia publicados e, no universo love-
que nos vai deixando mas que enquanto dura dá sentido ao nosso gosto e curiosidade craftiano, traduziu para português a biografia em
pelo macabro, pelo lunar. banda desenhada intitulada “Lovecraft”, assinou
as introduções das antologias “Os Melhores contos

K ing Diamond começou a sua carreira no final dos Setenta mas foi já nos Oitenta
que se destacou enquanto o vocalista dos seminais Mercyful Fate. Esta sua primei-
ra banda (apesar dos projectos anteriores que gerariam esta dinastia maldita) era e
de H. P. Lovecraft” e participou nas antologias “As
Sombras Sobre Lisboa” e “Contos de Terror do
Homem-Peixe”. Em 2011, publicou ficção
sempre será uma banda totalmeente diferente de todas as outras bandas de Metal na colecção Mitos Urbanos
na altura. Semanticamente, apro oximava-se já da matéria obscura como nenhum da editora Gailivro.
outro grupo, tendo sempre desp prezado o satanismo-choque em favor de um
enredo de histórias que bem po odiam ter dado filmes de terror, não fosse,
por vezes, o mundo do cinem ma cego, surdo e mudo a algumas
propostas que os músicos veicul ulam através do seu som e imagem.
Quando os Mercyful Fate se seepararam, o King seguiu o seu tri-
lho e estreou-se com um disco chamado
c Fatal Portrait, elevando a
atmosfera visual e musical a um m outro nível. Em nome próprio, ele
foi autor de histórias vivas e vibrantes do mundo do além, dos mor-
tos, das vinganças dos espíritos,, da maldade sorridente das bonecas

C
dos quartos das crianças. Não tivvesse optado pela música, King Dia-
mond poderia, pelos seus dotess literários, ter-se tornado numa das
grandes referências da ficção dee horror Escandinava. As encruzi-
hegamos ao palco
do Graspop (Fes- lhadas levaram-no a outro, não menos glorioso caminho.
tival de Metal da
Bélgica, visitado
nesta edição por Q ue teve um preço e uma recompensa como as boas histó-
rias têm. Acabado de reccuperar de uma cirurgia de peito
aberto que quase o levou até ao o mundo que canta, King Dia-
mais de 60.000
pessoas) meia hora mond voltou aos palcos para assombrar,
a para nosso gáu-
antes do nosso dio, fazendo, nessa noite, esqueecer o hype que gira
concerto começar. O voo de Lisboa atra- à volta dos Ghost e das suas canções
c bem
sou e apenas um condutor implacável con- mais vulgares mas completam mente efica-
segue fazer uma distância de hora e meia zes. Esse regresso é a sua e a n nossa re-
em talvez 45 minutos, tomando atalhos compensa. E que bom poder assistir.
que provavelmente se abriram só daquela Fica a faltar uma longa-metraagem
vez, para se fecharem por completo depois baseada na sua obra-prima (o dis-
da nossa veloz passagem. Vamos directos co Abigail) que, com toda a ceerte-
ao palco, fazemos um linecheck à velocida- za, seria uma produção de meesttree
de da luz, visto-me, sem pudor, ao lado do (Guillermo de Toro, Stephen King,
K
palco, na zona técnica. São duas da tarde, a Carpenter se me ouvem, dêeem
tenda está cheia, o concerto é óptimo. sinal verde a este projecto.) que
q
encantaria todos aqueles, saudo osos
N ão podia perder este festival por
nada desta vida. Quem fecha o nos-
so palco são os Ghost e o cabeça de cartaz
de um filme com impacto espiiritual
que nos desafie pelo medo, co omo o
all

Não podia perder este festival por nada desta vida. (...)quando chega a hora, estou lá no foram o Exorcista, o já mencionaaddo
King Diamond e quando chega a hora, público para apreciar o regresso do verdadeiro Príncipe das Trevas do Heavy Metal Rosemary’s Babyy e outros clássiccoss
estou lá no público para apreciar o re- do pânico interior que de vezz
gresso do verdadeiro Príncipe das Trevas em quando temos de nos dei--
do Heavy Metal. Claro que não me refiro
ao Papa Emmeritus, líder dos Ghost, aos
quais só dedico umas breves linhas porque
como Rosemary’s Babyy e outros clássicos
mais obscuros dos anos Setenta) é, no
momento, o nome mais quente e vibran-
J á é de noite quando o palco de King
Diamond é mostrado aos seus ávidos
seguidores. Este cenário recria uma casa,
xar governar.

esta banda (que recria ambientes litúrgicos, te do Metal actual, tendo por isso um que podia ser o interior de uma mansão
apelando a uma musicalidade que tem tan- tempo de antena que só não é descomu- oitocentista do Sul dos EUA, que se pre-
to de Blue Oyster Cult e NWOBHM, e a nal porque esta banda o merece verdadei- tende assombrada. Há uma grade traba-
uma teatralidade que pisca o olho a filmes ramente. Um encanto obscuro. lhada que preenche toda a frente do pal- King Diamond
voltou aos palcos
para assombrar
8 /// BANG! BANG! /// 9
evangelho perdido, que foi posteriormen-
te publicado com o título O Evangelho das
Putas Gnósticas,
s pela editora Eurídice, Eu-
rídice!.

O primeiro excerto gravado, por uma mu-


lher conhecida por Crystal, foi o seguinte:
“É isto que importa na vida: o caroço.
O Demiurgo, quando proibiu comer do
fruto, no Éden, apenas tentava manter o
homem afastado do segredo mais banal
de todos. Ao chupar a polpa, o homem
descobre a semente da vida. Descobre que
aquele bocado duro, que não se come, que
se cospe para o chão, é de onde nascem
mais árvores. Descobre que aquilo que se
rejeita, aquilo que se deita fora, é o maior
tesouro. A Árvore da Vida não é uma ár-
vore, é uma semente.”

É autor dos livros Enciclopédia da Estória Universal


Os fragmentos gnósticos de Andronikos, que incluíam um e retirar o gesso e a cal e a tinta, (Quetzal, 2009), A Carne de Deus (Bertrand, 2008)
evangelho completo, foram descobertos na década de 1970 acrescentados ao longo dos sé- e Os Livros Que Devoraram o Meu Pai (Caminho, 2010
num lupanar turco, conhecido desde há cerca de mil e oito- culos, viu surgirem as famosas - Prémio Literário Maria Rosa Colaço). Recentemente
centos anos como Pensão Tertuliano. O nome do edifício inscrições atribuídas a Androni- publicou A Boneca de Kokoschka (2010), O Pintor
partiu de uma contenda entre um dos mais conhecidos Padres kos. Sem perceber exactamente Debaixo do Lava-Loiças (2011) e O Livro do Ano (2013).
do cristianismo, que criticou a filosofia e teologia gnósticas, a importância daquilo que de- Além de escrever, também é ilustrador, cineasta e
dizendo que estas “empilhavam andares sobre andares” e que corava o seu bordel, achou in- músico (compõe e toca na banda de blues/roots The
faziam do universo “uma pensão onde Deus vive no sótão”. teressante preservar as pinturas “A morte de Simão Mago” na Crónica de Nuremberg (“Liber Chronicarum”, 1493). Soaked Lamb).
Andronikos, um pensador do terceiro século depois de Cris- Irineu quem usou pela primeira vez e textos encontrados, pois estes
o termo "gnóstico" para descrever mantinham uma surpreendente Vive no campo e tem dois filhos.
to, decidiu efectivamente construir a pensão que Tertuliano pintados nas paredes e, sobretudo, nos tectos, poderiam re-
as heresias http://afonso-cruz.blogspot.com
comparara com o pensamento gnóstico. A ironia tornou-se vivacidade e pareciam ter sido construir o evangelho perdido, bem como alguns dos outros
http://soakedlamb.com
um edifício. As paredes foram pintadas com inscrições gnós- acabados de pintar. Os frescos gnósticos foram identificados, fragmentos de origem gnóstica. Helveg pediu ajuda ao editor
ticas, bem como os tectos. Mas a história deste prédio haveria em 1979 por Gunnar Helveg, que imediatamente tentou que Isaac Dresner, para a pu-
de sofrer algumas reviravoltas: um século depois de ter sido o edifício se tornasse património cultural, já que continha um blicação dos textos que Em 1981, Gunnar Helveg teve então uma ideia
importante testemunho dos primeiros séculos da nossa era. haveriam então de ser
organizados, catalogados para recuperar os textos destruídos: decidiu
construído, já as inscrições das paredes e tectos haviam sido
tapadas para escapar à perseguição da Igreja; após a queda de Ao saber disto, o proprietário do prostíbulo, para não perder
Constantinopla, foi usado para fins militares, tendo-se torna- o imóvel, decidiu destruir tudo o que estava escrito nas pare- e editados. Dresner con- entrevistar as prostitutas que durante a década
do, mais tarde e durante grande parte do Império Otomano, des e nos tectos. Contratou vários homens que, em poucos cordou e juntou-se ao
uma madrasa famosa, onde Tal Azizi e Gardezzi ensinaram dias, picaram os frescos, fazendo desaparecer qualquer ves- projecto de Helveg, cola- de 1970 haviam trabalhado no bordel.
caligrafia e matemática; tornou-se, durante a Segunda Grande tígio das inscrições e pinturas gnósticas. Perderam-se, desse borando nas entrevistas,
Guerra, uma enfermaria, antes de o edifício ser comprado, modo, textos de valor incalculável. e levando consigo o artista plástico Emilio Kacev, seu filho
em 1949, por uma quantia irrisória, e transformado num bor- adoptivo, que se tornou o terceiro elemento da equipa, encar-
del, tornando-se assim uma caricatura da sua origem e pro- Em 1981, Gunnar Helveg teve então uma ideia para recuperar regado de retratar e pintar as prostitutas entrevistadas.
pósito inicial. os textos destruídos: decidiu entrevistar as prostitutas que du-
rante a década de 1970 haviam trabalhado no bordel. Gunnar Helveg e Dresner, durante meses, conversaram com doze
Durante a década de 1970, o prédio sofreu algumas remodela- Helveg achava que elas, por tantas vezes terem lido, enquanto mulheres (que coincidência, haveriam de dizer) e consegui-
ções e o proprietário, ao mandar limpar as paredes e os tectos trabalhavam com um homem em cima delas, os fragmentos ram efectivamente recuperar alguns fragmentos, bem como o

10 /// BANG! BANG! /// 11


1122 //
/// BAN
ANGG!! BANG! /// 13
G
ogol (1809-1852) nasceu na localida- a cavalgar pelos campos fora. Aterrado,
o rapaz reza orações de exorcismo e aca-
folclore da Ucrânia. Segundo Alexander
H. Krappe (Journal
( of American Folklore,
ideia de bruxas a cavalgar para Brocken
(o pico mais alto nas montanhas Harz
de de Sorochyntsi, na actual Ucrânia, à ba por conseguir inverter as posições, Vol. 61, No. 240, Apr.-Jun. 1948) Viy se- da Alemanha central) na noite de Wal-
montando-se nos ombros da megera e ria um monstro sérvio, relacionado com purgis, se teria visto reduzido à condição
época incluída no Império Russo, sen- batendo-lhe com um pau até que ela cai outros seres como Balor, rei dos gigantes de montada, transportando pelos ares
do considerado um mestre do conto, se inanimada. Nessa altura, a velha bruxa
transforma-se numa bela rapariga.
Formorions, do folclore irlandês.
Por sua vez, alguns pormenores do
uma feiticeira pesadíssima, que quase
lhe partia os ossos. Encontra-se um ou-
bem que tivesse escrito também comé- Na última parte, Khoma é chamado conto de Gogol não só são baseados no tro exemplo alemão em Adalbert Kuhn
por um rico cossaco cuja filha morreu, folclore, como constituem verdadeiros ((Sagen, Gebräuche und Märchen aus Westfalen
dias e dramas. Uma das suas comédias, deixando como última vontade que o estereótipos, que nem sequer se restrin- und einigen andern, besonders den angrenzen-
Revizor,
r foi mesmo adaptada ao cinema estudante viesse durante três noites con-
secutivas ler orações sobre o seu cadá-
gem aos contos da Europa de Leste. Por
exemplo, a noção de que a bruxa força
den Gegenden Norddeutschlands,s 1859, vol.
1, no. 419, pp. 373-374), na sua história
em 1949, com o título O Inspector Gerall e ver, a fim de lhe salvar a alma. A jovem Khoma a transportá-lo às costas aparece “Der Hexenritt” (literalmente, “o caval-
morta não é outra senão a bruxa que o um pouco por toda a parte, até ao fol- gar da bruxa”).
interpretação de Danny Kaye; entre as rapaz encontrara antes e quando na pri- clore britânico. Em The Lore of the Land,
d Também a ideia de que o velório
obras mais famosas do autor conta-se meira noite Khoma, apreensivo, se fecha
na igreja onde o seu caixão repousa e
Jennifer Westwood and Jacqueline Simp-
son mencionam episódios semelhantes
de uma bruxa possa ser perturbado por
estranhos fenómenos aparece frequen-
também o romance histórico Taras Bulba, igualmente adaptado ao começa a recitar orações, o cadáver er- e até a inversão de posições, em que a temente no folclore europeu, inclusiva-
gue-se, procurando apanhá-lo. O rapaz bruxa acaba dominada, surge também. mente no português. Assim, por exem-
cinema e à ópera. Em 1842, após a morte de Alexander Pushkin e protege-se desenhando um círculo no Westwood & Simpson observam tam- plo, na página 14 de Histórias e Superstições
quando Leo Tolstoy era ainda muito jovem, Gogol chegou mesmo chão e permanecendo dentro dele. Tudo
se repete na segunda noite, com a bruxa
bém o seguinte: “Há uma ligação estreita
[…] entre a bruxaria e a forma extrema
na Beira Baixaa – Castelo Branco (2008), José
Carlos Duarte conta a história do velório
a ser apontado como o maior prosador em língua russa. Os seus a voar pela igreja e convo-
cando demónios e mons-
textos – frequentemente eivados de crítica social e política – tinham tros para o atacar. Nenhum
grande originalidade e as descrições de pessoas e do meio ambiente desses seres o consegue
ver e de manhã Khoma é
podem considerar-se de carácter impressionista, quase caricatural. encontrado desfalecido e
com o cabelo subitamente
grisalho. A terceira noite
é, evidentemente, a mais
aterradora de todas: a bru-

N
o início do conto em apreço, xa não só volta a chamar as
Gogol explica que Viy é um mesmas criaturas infernais
monstro pertencente ao folclore como invoca o próprio
da Pequena Rússia (área mais ou menos Viy, rei dos gnomos, que vê
correspondente à actual Ucrânia), mais tudo, quando os seus acóli-
precisamente o rei dos gnomos, “cujas tos lhe levantam as longas
pálpebras chegavam ao chão”, acres- pálpebras, que lhe tombam
centando que a história que vai contar sobre a cara em ferro. Mas
é também de índole folclórica e que a entretanto chega a manhã,
procurará reproduzir fielmente. Ao que um galo canta, os demó-
parece, porém, tais afirmações não têm nios são forçados a fugir e
fundamento, não existindo no folclore Khoma é encontrado mor-
ucraniano uma personagem como Viy, to de medo.
que seria então produto da imaginação
do autor. A nota referida destinar-se-ia

C
então a aumentar a credibilidade e poder onforme ficou dito,
do conto. nem tudo nesta
A história em si pode dividir-se em história – nomea- Quadro “O Pesadelo” de Henry Fuseli, 1781
três partes. damente a figura de Viy –
A primeira parte consta da descrição parece pertencer realmente ao folclore de pesadelo em que a vítima […] se sen- de uma bruxa que os presentes não pu-
da vida no Mosteiro de Bratsky e dos ucraniano. Não obstante, os demónios te esmagada por um grande peso que deram abandonar até de madrugada de-
seus estudantes. Ao fim de cada ano es- que a bruxa invoca enquadram-se em lhe oprime o peito. Este fenómeno […] vido a barulhos aterradores, bater de pal-
colar, estes deixam o Mosteiro e seguem tradições eslavas, segundo as quais os supunha-se provocado por uma bruxa mas e estranhas luzes no exterior, tudo
em grupos para suas casas. A narrativa maus não seriam bem recebidos pela (ou espírito maligno) que cavalgasse a provocado por outras feiticeiras.
concentra-se em três deles, Khaliava, terra, depois de mortos, saindo por isso vítima”. O mesmo tema claramente ins- As histórias folclóricas foram clas-
Khoma Brutus e Tiberius Gorobetz. das suas campas para atormentar os vi- pirou o famoso quadro “O Pesadelo” sificadas segundo um sistema criado
A segunda parte conta a chegada vos; Gogol descreve os seus demónios (1781), de Henry Fuseli. pelo folclorista finlandês Antti Aarne
dos três companheiros a uma quinta como tendo “terra negra” agarrada a Também August Ey ((Harzmärchenbu- (1867-1925), para permitir a análise com-
longínqua, onde são acolhidos. Durante eles. Também os encantamentos, os ch; oder, Sagen und Märchen aus dem Oberhar- parativa de narrativas e textos, até oriun-
a noite, Khoma é assediado por uma ve- exorcismos e o círculo protector que ze, 1862, pp. 46-48) fala na história de um dos de diferentes culturas. Essa classifi-
Ilustração para o livro Viy, por H. Yakutovych,1989 lha que lhe salta para as costas e o obriga Khoma traça no chão se encontram no mineiro que, depois de ter troçado da cação foi originalmente publicada com o

14 /// BANG! BANG! /// 15


título Verzeichnis der Märchentypen,
em 1910, sendo depois traduzida,
revista e ampliada pelo americano
Stith Thompson (1885-1976). A
das são salvas das garras dos
seus encantamentos por jo-
vens e valentes pretendentes
– muitas vezes simples solda-
parecer no seu riso que vai subindo de intensidade, como se o
seu poder maléfico fosse aumentando; o seu aspecto corres-
ponde também ao que é descrito pelo autor (“a sua cara tinha
uma tonalidade azulada como a de quem estivesse morto há
E m 2006, surgiu uma nova adapta-
ção cinematográfica do conto
de Gogol, dirigida por Oleg
Fresenko sob o título Vedmaa ou O
Poder do Medoo (recorde-se que
versão final data de 1961 e estabe- dos ou pastores que obtêm vários dias”).
lece o sistema de numeração AT êxito onde nobres tinham Como seria de esperar num filme de 1967, os efeitos es- na história original o estu-
ou AaTh. falhado – que por vezes se peciais são um tanto ingénuos: os monstros que atazanam o dante Khoma morre de
Essa classificação sistemática escondem na igreja onde o estudante, por exemplo, não passam de homens, alguns de-
em categorias vastas como “His- corpo jaz, possivelmente se- les anões, com os corpos pintados de cinzento e espessas
tórias de Animais”, “Histórias guindo conselhos de alguma camadas de maquilhagem, enquanto se vêem esqueletos a
Religiosas”, etc., depois subdi- entidade divina; ao cabo de deslocar-se deselegantemente, obviamente movimentados por
vididas noutras mais finas, num três noites (para o significa- fios invisíveis. Não obstante, algumas das caracterizações dos
total de cerca de 2500 formas do do número 3, veja-se por monstros são relativamente originais e até perturbadoras. Em
fundamentais usadas no folclore exemplo António Monteiro, determinada cena, saem mãos das paredes, o que dá à cena um
europeu e do Próximo Oriente, “A Magia dos Números”, in carácter surrealista, que faz lembrar imagens do filme francês
seria finalmente expandida ain- Contas x Contos x Cantos e Que La Belle et la Bêtee (Jean Cocteau, 1946), com candelabros ao
da mais e actualizada em 2004 +, de Ana Paula Guimarães longo de um corredor seguros por braços humanos.
pelo alemão Hans-Jörg Uther (n. (org.)) passadas no meio de Ao todo, as cenas na igreja são bastante eficazes, com a
1944), na sua obra The Types of In- assustadoras ocorrências, as bruxa a gritar “chamo os vampiros, chamo os lobisomens!” e
ternational Folktales: A Classification princesas eram normalmente os monstros a surgirem das janelas e das paredes. A figura de
and Bibliography, Based on the System libertadas, acabando por des- Viy, neste filme, acaba por ser menos aterradora do que as de
of Antti Aarne and Stith Thompson, posar os seus corajosos sal- outros monstros presentes, por se ver tão claramente que não
de que resultou a moderna classi- vadores. No seu Catalogue of passa de um homem num fato largo.
ficação Aarne-Thompson-Uther, Portuguese Folktaless (FF Com- Globalmente, Viyy é um filme muito interessante, que re-
que identifica cada tipo de conto munications 291, Helsinki: tém todo o poder da história original. O nível de representação
folclórico pelo seu número ATU. Academia Scientiarum Fen- é elevado, num estilo sóbrio que muitas vezes está ausente
O catálogo de Uther (volume 1, nica, 2006), Isabel Cardigos das produções ocidentais contemporâneas e que só lhe traz
page 189) inclui a história “Viy”, indica diversas variantes por- vantagens.
de Gogol como uma versão do “Viy” ou “O Espírito do Mal” por Konstantin Ershov tuguesas desse conto, relacio-
tipo 307 (“A Princesa no Caixão”), e Georgi Kropachyov, 1967 nando também o argumento
em que uma jovem dominada pelo com o número ATU 530, “A
demónio morre e após a morte levanta-se de noite para atacar Princesa na Montanha de Vidro”. Cardigos aponta exemplos
os soldados que estão de guarda ao seu túmulo, até que um de- como um conto registado por Ataíde Oliveira, com o título
les, devidamente aconselhado (usualmente por um anjo, uma “As Três Nuvens”, o conto “O Rei e os Três Filhos” (Alda S.
fada, um santo, etc.) consegue esconder-se (ou aguentar os so- Soromenho e Paulo C. Soromenho, Contos Populares Portugueses.
frimentos que lhe são infligidos), desencantando a rapariga e I Volume, 1984; conto nº 328), contos recolhidos da tradição
casando com ela. oral açoriana (ilhas das Flores, Graciosa e de S. Jorge) e outros.
Em diversas versões deste enredo, as princesas encanta- Também D. Ana de Castro Osório, em Histórias Maravilhosas da
Tradição Popular Portuguesaa (1950), incluiu o conto “A Princesa
da Áustria”, que segue o mesmo enredo.

R estará referir que a história de Gogol foi adaptada ao


cinema por três vezes.
A primeira adaptação, Viyy ou O Espírito do Mal
é de 1967 e foi realizada por Konstantin Ershov and Geor-
gi Kropachyov. Trata-se de um filme soviético, com Leonid
Kuravlyov no papel de Khoma e Natalya Varley no da bruxa
morta.
O argumento segue de bastante perto o conto de Gogol,
mostrando diversos aspectos da vida local, à época. Lá encon-
tramos também o voo de Khoma campos fora, com a velha
bruxa às costas, sendo curioso observar que o papel da velha
é confiado a um actor, Nikolai Kutuzov (1897-1981). Todo
o episódio assume um carácter onírico: a feiticeira trepa para
as costas do rapaz e este começa a correr até que os seus pés
abandonam o chão e o par segue a voar. A mulher transporta
consigo uma vassoura, instrumento frequentemente associado
às bruxas.
Chega-se por fim à parte principal da história, as três
noites que Khoma tem de passar junto da rapariga morta, re-
zando pela sua alma. Tal como é descrito por Gogol, a bruxa “Vedma” ou “O Poder do Medo”
levanta-se do caixão e aterroriza o estudante. A interpretação por Oleg Fresenko, 2006
de Natalya Varley é de facto assustadora, com o mal a trans-

16 /// BANG! BANG! /// 17


medo e não por acção directa das entida- muito original, acudindo de imediato à já encontradas acerca desta nova obra
des que o atormentam). Trata-se de um memória o padre Karras em O Exorcista indicam, porém, que os autores se afas-
filme russo, filmado na Estónia e com (William Friedkin, 1973). taram radicalmente do texto de Nikolai
argumento do realizador e de Igor Mi- Os efeitos especiais neste filme são, Gogol, ainda que recuperando algum do
tushyn, que decidiram afastar-se do texto evidentemente, muito superiores aos do ambiente original, assim como as perso-
de Gogol em múltiplos aspectos. primeiro, ainda que praticamente se res- nagens de Khoma e dos seus colegas. Te-
A acção deixa a Ucrânia ou a Rús- trinjam ao aspecto de Marryl e aos seus remos de esperar por uma oportunidade
sia e passa para os Estados Unidos, para voos pela igreja, com mais uns tantos para ver o filme – aparentemente feito
uma povoação chamada Castleville; o es- efeitos de som e de luz: não havendo em 3D – para chegar a conclusões sobre
tudante é substituído por um jornalista, monstros, nada mais era necessário. os seus méritos e as suas relações com a
Evan, que investiga fenómenos sobrena- Na globalidade, Vedmaa é um filme história de Gogol. BANG!
turais supostamente lá ocorridos. Depois interessante, se bem que convencional e
de encontrar pelo caminho um padre com diversos chavões. Os actores secun-
católico, que mais tarde morrerá, permi- dários apoiam bem a história e o ambien-
tindo a Evan ficar com o seu automóvel te em Castleville é bem retratado, com a
e envergar a sua sotaina, o jornalista vai possível excepção de uma empregada,
ter a uma casa onde encontra uma bela talvez um pouco demasiado loquaz, que
rapariga que se transforma numa velha vai dando pequenas informações mas
bruxa. pouco mais que isso.
O rapaz acaba por chegar à povoa- Em todo o caso, Vedmaa é inferior
ção, é confundido com um padre e é en- ao seu predecessor Viyy em diversos as-
carregado de atender às últimas vontades pectos. Por exemplo, o facto de Evan
de uma rapariga, Marryl: deve passar três assumir a identidade do padre justifica
noites a rezar junto ao seu caixão. Daí o seu papel como salvador da alma da
para a frente a história segue o padrão já bruxa, mas não se percebe por que razão
conhecido: a feiticeira morta ergue-se do ele não revelou a verdade quanto à sua
caixão, tenta alcançar Evan (cujo cabelo identidade assim que se confrontou com
embranquece da noite para o dia), voa o sobrenatural, já que não seria difícil ex-
pela igreja, etc. No entanto – e trata-se plicar que tinha encontrado o verdadei-
aqui de uma diferença fundamental – ro padre já morto e inventar uma razão
não invoca monstros nem demónios para ter usado as suas vestes. Também a
nem, em particular, o temível Viy! Na autoridade do pai da morta para impor
verdade a bruxa acaba por ser derrotada
pelo poder da fé reencontrada por Evan
a Khoma as suas provações na igreja é Imaginem um mundo em
muito mais clara quando considerada no
e por sucumbir à energia que emana do enquadramento da velha Ucrânia de há que a França é a principal potência
crucifixo que ele brande, rompendo em século e meio, do que na América actual. mundial, depois de ter ganhado as guerras
chamas. Evan não morre, se bem que
seja um homem alquebrado que no final
Finalmente, é óbvio que a omissão, na napoleónicas e invadido a Inglaterra, mandando
nova versão, da chegada de Viy, a qual era
abandona Castleville. o climax do conto original, a enfraquece guilhotinar a Família Real Britânica. Nesse mundo,
Este final é muito menos satisfatório muito. Nascido em Lisboa em 1951, casado, com duas filhas em que Paris é a maior capital do mundo e a Inglaterra
que o que foi escrito por Gogol, não só
por ser lícito duvidar da autenticidade de
e três netos. É professor universitário de Matemática está ligada ao continente por uma ponte ferroviária
e tem múltiplos interesses, entre os quais a Malaco-
que atravessa o Canal da Mancha, não foi só a História
M
uma fé que resulta de um pavor incon- ais recentemente, foi feito logia, sendo editor da revista electrónica “The Cone
trolável, mas também porque a morte um terceiro filme, baseado na Collector” (www.theconecollector.com). que evoluiu de forma alternativa. Também a relação entre
definitiva da bruxa, muito convencional,
é por isso mesmo pouco interessante.
mesma história. Realizado por Na área da literatura fantástica, especialmente da humanos e os animais se alterou, sendo este mundo governado
Oleg Stepchenko e intitulado Viy. Vo- literatura de terror, para além de pertencer a diver-
O tema do homem que tem de encon- zvrashcheniee (= Viy. O Regresso), o filme sos clubes, é autor de diversos contos publicados
por animais antropomorfizados e os raros humanos, tratados
trar ou renovar a sua fé, para lutar com tinha estreia prevista para a Rússia para o em revistas. depreciativamente como “doughfaces” (caras de massa) a
os poderes do mal e da escuridão não é início do corrente ano. As informações não terem quaisquer direitos cívicos e estando limitados a
simples tarefas mecânicas, sendo apresentados por um dos
personagens, como “uma raça sem pelo de chimpanzés
que evoluíram na cidade de Angoulême”, nome que,
como veremos, não surge por acaso, pois Angoulême
é a cidade francesa que alberga o maior Festival
europeu de BD, e as piscadelas de olho à Banda
Desenhada franco-belga são frequentes
neste mundo.

18 /// BANG! NG!! //


BANG
BA //// 19
tes em The Adventures of Luther
Arkwright,t um projecto iniciado
em 1978, a que voltará com regu-
laridade, posteriormente recolhi-
do em dois grossos volumes, edi-
tados nos EUA pela Dark Horse.
Outro elemento bem presente
nos seus livros e que é fulcral
em Grandville, é a homenagem
aos grandes nomes da ilustração
infantil. The Tale of One Bad Rat,t
o seu trabalho mais premiado,
concilia uma história comovente niciada em 2009, com
sobre uma jovem vítima de abu- Grandville, a série dedicada
ste é também um uni- sos sexuais na infância, com uma às aventuras do Inspector
verso “steampunk”, com bela homenagem à vida e obra LeBrock da Scotland Yard está
tecnologia derivada das de Beatrix Potter, uma das mais prevista para cinco volumes au-
ilustrações do francês Albert Ro- importantes escritoras e ilustra- tónomos, dos quais já saíram três,
bida, um contemporâneo de Júlio doras infantis britânicas e Alice Grandville, Grandville, Mon Amour
Verne, que imaginou uma França d parte da ligação de
in Sunderland, e Grandville, Bête Noire, estando
futurística numa trilogia de livros Lewis Caroll, o criador de Alice o quarto volume, Grandville: Noel
dedicados ao século XX, escritos in Wonderlandd à cidade de Sunder- anunciado para 2014.
entre 1883 e 1890 ((Le Vingtième land, para uma alucinante viagem O primeiro episódio leva o Ins-
Siècle, La Guerre au Vingtieme Siècle do ilustrador e caricaturista fran- visual pela história da cidade e da pector Lebrock e o seu adjunto
e La Vie Électrique).
e É neste fu- cês Jean Ignace Isidore Gerard, literatura e da ilustração, cheia Ratzi a Paris, para investigar o as-
turo alternativo, concebido por que assinava muitas vezes os seus 1 de pormenores deliciosos e com sassinato de um diplomata inglês,
Bryan Talbot, um autor inglês trabalhos como J. J. Grandville. diversos níveis de leitura. Uma Raymond Leigh-Otter e será em
contemporâneo, como se tivesse Falecido em 1847, Grandville foi obra avassaladora, com um tra- Paris, ou Grandville, que vai en-
sido imaginado por um escritor dos primeiros ilustradores a uti- balho de pesquisa tão aturado, contrar o amor com Sarah Blai-
francês do Século XIX, que en- lizar animais antropormofizados que lhe valeu um Doutoramento row, uma dançarina, claramente
contramos o herói da história, em obras como Les Metamorpho- Honoris Causa pela Universida- inspirada na actriz Sarah Bernard,
o Detective Inspector Archibald ses du Jour,
r uma série de litografias de de Sunderland, em 2009, pelo mas a sua felicidade vai durar
LeBrock, um musculado texugo editadas entre 1928 e 1929, pro- seu “contributo notável para as pouco… A investigação vai fazer
de grande força física e impres- tagonizadas por figuras huma- Artes como escritor e artista grá- com que descubra uma conspira-
sionantes capacidades dedutivas. nas na pose e no vestuário, com fico”. ção destinada a reacender a guer-
Lebrock, ajudado pelo inspector cabeças dos mais diversos tipos Em Grandville, Talbot vai reu- ra entre a França e a Inglaterra,
Roderick Ratzi, vai resolver casos de animais, incluindo insectos e nir todas essas influências e mui- que tem como ponto de partida
policiais que o obrigam a deslo- peixes. tas outras (para além de Robida um atentado terrorista que des-
car-se frequentemente a Grand- Brian Talbot, o criador de e Grandville, Talbot cita explici- truiu a Torre Robida, num claro
ville (cidade grande, em francês), Grandville, nasceu em Inglaterra tamente Conan Doyle, Quentin paralelo com os atentados de 11
alcunha pela qual é conhecida a em 1952, tendo trabalhado nos Tarantino e... Rupert the Bear,
r mas de Setembro que destruíram o
cidade de Paris, que dá nome à comics underground britânicos podia citar também Walt Disney, World Trade Center E essa não
série. Mas esta é uma referência e na revista 2000 AD, para onde Enid Blyton, Randolph Calde- é a única alusão à realidade po-
com duplo sentido, pois Grand- desenhou Nemesis, the Warlock k e cott, Kenneth Grahame, entre lítica contemporânea, pois en-
ville era também o nome artístico Judge Dredd, d antes de seguir o ca- outros) em movimentadas histó- contramos um político de extre-
minho de diversos compatriotas rias de ficção policial, num uni- ma-direita, chamado Jean-Marie
seus, como Alan Moore, Brian verso de ficção científica “steam- Lapin (que, naturalmente, é um
Bolland, Neil Gaiman, Dave punk”, que embora em termos coelho), claramente inspirado em
McKean e Garth Ennis e come- de vestuários e decoração lembre Jean-Marie Le Pen.
çar a trabalhar para a DC Co- a Europa de finais do século XIX Mas ainda mais frequentes do
mics, sobretudo na linha Vertigo, e inícios do Século XX, decorre que as referências à realidade
para onde ilustrou as séries Hell- um século depois, 200 anos após política contemporânea, são as
blazer, Fabless e o Sandman, de Neil as Guerras napoleónicas, que re- referências à Banda Desenhada
Gaiman. Além de muito trabalho forçaram a hegemonia mundial franco-belga, presentes em todos
como desenhador para a DC, da França que as venceu. os volumes. É o caso de Milou,
Talbot tem também bastantes o cão de Tintin, que assim surge
trabalhos a solo. Obras mais an- como um viciado em ópio, que
tigas, onde já encontramos algu- no meio dos delírios provocados
mas das características que fazem pela droga, recorda as aventuras
de Grandvillee uma série única. que viveu com Tintin. Do Gas-
É o caso do gosto pela histó- ton Lagaffe, de Franquin, e do
ria alternativa e por universos Lucien, de Margerin, que em-
“steampunk”, que estão presen- prestam as feições a dois melian-

20 /// BANG! BANG! /// 21


tes que tentam assaltar o inspector Ratzi, em Grandville, Mon
Amour,r o 2º volume da série. De Angus, o cientista humano,
ou “cara de massa”, se preferirem, que é morto no início do
3º volume, Grandville, Bete Noire, e que não é senão o Professor
Philip Angus Mortimer, o protagonista das aventuras de Blake
e Mortimer,r de Edgar P. Jacobs. E encontramos ainda alguns
personagens da Disney, como figurantes, seja o Pato Donald
numa cela, ou o Professor Pardal a desempenhar um papel
semelhante ao do Q. dos filmes de James Bond. Filmes esses
que inspiraram obviamente a personagem do Barão Krapaud,
um sapo com a pose e os meios do típico vilão dos filmes
de James Bond, megalómano e com sonhos de dominação
mundial, que aqui surge a acariciar um sapo no colo, em vez
do tradicional gato persa branco…
Para além de histórias bem conseguidas e melhor contadas,
com um desenho agradável e tremendamente eficaz, que ga-
nhariam com um tratamento de cor não tão ostensivamente
digital, é esta catadupa de referências, que desafiam a cultura João Lameiras é Mestre em História da Arte pela
do leitor e convidam a sucessivas releituras, um pouco na li- Universidade de Coimbra. Tem desenvolvido uma
nha do que acontece com a Liga de Cavalheiros Extraordinários vasta actividade no campo da Banda Desenhada, como
de Alan Moore e Kevin O’Neill, que fazem de Grandvillee uma conselheiro editorial, tradutor, argumentista e crítico
série única. Uma série que, como já se percebeu, é absoluta- para diversas editoras e publicações e é sócio-gerente
mente aconselhável aos leitores da Bang! da Livraria Dr. Kartoon. Escreve com frequência no seu
blogue http://porumpunhadodeimagens.blogspot.com

22 /// BANG! BANG! /// 23


inconsciente. Usar os dons mediúnicos para canalizar um espí- sorriu ainda mais, abrindo os braços e as mãos em saudação.
rito escritor a usar o seu corpo para dar materialidade às pala- — Sê bem-vindo Fernando. Já deves ter adivinhado quem
vras que nunca escrevera, obtendo sempre resultados diferen- sou, não?
tes, consoante o espírito que o usava. O espírito que chamara O poeta ajeitou com frieza os óculos de aros redondos so-
era Henry More, que já canalizara várias vezes. Usualmente, bre o nariz. Porém, apesar da sua aparente calma nos gestos,
era uma presença segura e assertiva, que respondia com clare- o suor que lhe escorria do corpo denunciava o verdadeiro es-
za às perguntas que ele lhe fazia, porém naquela noite Raphael tado de espírito. Um esgar nervoso desenhou-se por debaixo
conseguia sentir-lhe o medo. Não. Não era só medo. Era um do bigode aparado.
terror petrificante, um respeito solene por algo. Uma presença — Estou louco — admitiu, derrotado. — A loucura sem-
que o acompanhara na viagem através das camadas etéreas pre correu no sangue da minha família.
que envolviam o mundo e que agora estava naquela sala com — Oh, não, não. Longe disso! Estás mais lúcido do que a
eles. maioria. A minha presença ilumina o teu entendimento, por-
O ocultista fitou a caneta de aparo que segurava entre os de- que eu sou Lúcifer, o portador da luz. — debruçou-se sobre
dos, da qual pingavam grossas gotas pretas sobre o papel ima- a mesa, como quem faz uma confidência num café popula-
culado que ao respingar desenhavam pequenos sóis negros. do. — Para além disso, não é o sangue da loucura que corre
Forçou o espírito que ocupava o seu corpo a expressar-se, nas veias da tua família. É outro mais nobre. Uma força vital
obtendo nada mais que um silêncio de pedra como resposta. que contorna as regras e nega tudo o que se afirme. É dessa
Era uma vontade muito maior que a sua, contra a qual nada vontade que bebia a saudosa tia Anica, Fernando, aquela a
podia. Havia vezes que isso acontecia e um médium tinha de que todos chamam louca e que tu temes seguir o exemplo.
estar preparado para a eventualidade. Fechou os olhos com Porém, desengana-te se pensas que é a única a seguir o Ca-
força para regressar ao mundo material. O braço caiu desani- minho da Serpente.
mado sobre a mesa. Raphael abriu os olhos e viu um homem Num gesto, onde antes não havia nada, surgiu uma página
sentado à sua frente. amarelada pelo tempo em letra antiga onde se podia ler: “San-
Era um jovem bem-parecido e aprumado, vestindo um im- cho Pessoa da Cunha, mercador 1/2 I. n.-Preso pela Inquisi-
pecável fato de tecido caro. Na cara ostentava um sorriso, tal ção de Coimbra em 1704 com 42 anos Procº 9478 Coimbra-c
qual banqueiro que exibe os anéis, afiado como um gume. Os 1ºc. Maria Henriques x.n~.— c.2º c. Brites Henriques x.n. —
gestos eram calmos, lentos, obedecendo a uma coreografia c. 3º Branca Nunes. Do 1º Casamento houve: -Pedro Pessoa
metódica e secreta que os revestiam de importância e simbo- da Cunha, Homem de Negócios, n. + 1692. Preso pelo Santo
lismo. Quando abriu a boca para falar, saiu-lhe uma voz de Ofícío (aos 20 anos) de Lisboa (Procº 11496) c.c. Mariana
regaço, embaladora como a lua. Henriques…”
— Não é contigo que quero falar agora, Raphael, é com o — Que queres de mim? Vieste atraído pelos meus estudos

O
Fernando. esotéricos? Queres minha alma imortal?
tampo de madeira escura ergueu-se, puxa- um aviso para quem não tivesse a sensibilidade para sentir a O astrólogo esbugalhou os olhos em completo terror,
balbuciando meias palavras ininteligíveis. Que espírito seria
O Diabo riu, não com escárnio, não
do pela mão trémula do poeta que espreitou aura daquele objecto, essas chamas que lançam, não luz, mas
para o interior da arca. Não conseguia ver sim treva visível. aquele, capaz de se materializar numa imagem tão nítida sem como um julgamento na forma de garga-
muito mais do que quando a arca estava fe- que lhe tivesse sido dada qualquer energia anímica? Raphael
lhada. Riu como a vida quando mostra as

Q
chada, mas também não precisava. Sabia de já ouvira falar de almas que ganhavam uma proto existência
cor a posição de cada molho de papéis no interior, cada pa- uanto mais tempo Fernando Pessoa passava a tentar no ectoplasma dos vivos, mas sempre como formas amorfas e suas ironias, como um bebé que não tem
lavra escrita nesses papéis, cada ideia dentro dessas palavras. sistematizar e catalogar todos os seus heterónimos, frágeis, nada como o jovem que sorria em silêncio. Semicerrou
Deixou a tampa levantada, aproximou-se do fato delicada- mais se perdia no labirinto de gente que vivia dentro os olhos, tentando ver para lá da matéria, encontrando não nada de melhor para fazer.
mente dobrado sobre a cadeira, tirou a caixa de fósforos do de si. Eles iam e vinham sem se anunciarem nem pedirem li- mais que vazio no espaço onde a aura deveria irradiar. Aquele — Não, Fernando, para que queria eu uma alma mais frag-
bolso do casaco e acendeu um cigarro. A luz baça e averme- cença, como um amigo que bate à porta de casa ao qual não corpo era negação
negaç pura, mentada que a igreja de Cristo? Quero que me escrevas um
lhada projectou sombras ténues em redor. A arca de madeira podemos recusar entrada. Hoje era a noite de Raphael Bal- recusanddo-se até livro.
parecia agora uma enorme boca escancarada, tragando obras, daya. Ao início, Fernando ainda tentara invocar Alberto Caei- a si prróprio e — Um livro?
digerindo-as, apurando-as, preparando-se silenciosamente ro, mas fora o astrólogo quem respondera ao chamamento. o espaaço que — Sim, uma porta de entrada para todos os outros mis-
para as regurgitar quando chegasse a sua hora. A Hora da Raphael Baldaya puxou a mesa pé de galo para o centro da ocupaava. Não térios sobre os quais eu quero que tu e o Raphael escrevam.
qual falara na Mensagem. MENS AGitat molEM. M Um farol a pequena sala, pousando-lhe sobre o tampo um molho de pági- lhe restando
r Chamar-se-á a “Hora do Diabo”. Será a história de uma mu-
guiar os leitores do futuro, para que encontrassem a mensa- nas em branco, tinta e uma caneta de aparo. Do bolso do casa- mais hipó- lher chamada Maria, à qual o Diabo fará um filho através do
gem dentro da garrafa que em breve iria lançar nos mares do co tirou um embrulho de papel pardo cujo conteúdo castanho teses senão Verbo, pela simples exposição de quem é.
tempo, à mercê do esquecimento. Embora não o sentisse, o e polvoroso levou à boca para mascar. obedeccer, Bal- — E porquê eu? Porque não outro qualquer? Porque não
horóscopo não mentia, o negrume já se começara a instalar A pulsação disparou. Assim que os amargos sucos oníricos daya chamou um ocultista, porque não Crowley, a quem chamam besta
no fígado e não faltava muito para reclamar o resto do corpo. se libertaram, Raphael sentiu o corpo mergulhar numa cor- Fernanddo Pes- 666?
Chupou com força o fumo que se escapava entre os dedos, rente eléctrica, num frenesim interior que o impelia a saltar, a soa cuja persona-
p O cenho de Lúcifer tornou-se carregado, com uma seve-
enchendo os pulmões com a fragrância tabágica, na esperan- correr, a gritar, a arfar, a falar os mil idiomas que tinha dentro lidade sse impôs ridade solene, fazendo os olhos mergulhar na escuridão do
ça de afastar o desassossego que o havia arrancado da cama de si. Cerrando os dentes, fincou uma das mãos na mesa en- à sua. O rosto do rapaz, como duas estrelas solitárias no firmamento.
e feito espreitar para a arca. Mergulhou o braço no breu e quanto com a outra aligeirou o nó da gravata. Cuspiu a resina jovem — Ele não acredita em mim e eu não acredito nele. Para
retirou, de entre as cerca de vinte e cinco mil páginas, o único de papoila para o chão e deixou-se a ofegar sobre a mesa, revi- além disso, quem melhor para entregar a minha mensagem
livro cuja vontade de surgir não nascera na sua alma ou da dos rando os olhos que viam agora para além do mundo material. que um nativo de gémeos com ascendente em escorpião? Se é
seus heterónimos. Tentou ler o título, mas este estava coberto Não era a droga que o controlava mas sim ele que controlava a que me estás a perceber — disse, piscando o olho, apontando
pela aura magnética que infundia a resma num fogo negro droga. Uma façanha só possível a um médium treinado como para a carta astrológica que surgiu em cima da mesa. — Por-
que bailava na escuridão sem nunca consumir ou projectar ele. O braço ergueu-se sem qualquer ordem ou refreio do seu tugal é um Ente. Esse ente tem que cumprir um destino. Esse
luz. Lembrou-se das palavras de John Milton: No light; but ra- dono e pegou na caneta de aparo, molhando-a na tinta. Ra- destino envolve que as verdades sejam reveladas primeiro em
ther darkness visible. Haveria de acrescentar isso como epígrafe, phael já tinha feito aquilo antes. Chamava-lhes romances do português do que em outra língua qualquer. É através do Ver-

24 /// BANG! BANG! /// 25


bo que eu o que sinto
farei este país prenhe de um novo por ti é pena.
Mundo, de um novo império, o 5º, que irá derrubar Nunca um olhar tão triste foi visto no Mundo como
todos os outros. aquele que o Diabo fez ao ouvir as palavras do poeta. Uma súplica
— Porque não outro autor, maior, mais lido, com mais impacto na socie- depressiva, um abismo sem fim, uma lágrima suspensa no tempo e no es-
dade comum? Fora do meu grupo de amigos, a obra que me queres encomendar paço que não existe, apenas dura. Um olhar que penetrou na alma de Fernando
não será levada a sério. Porque não Júlio Dantas? Pessoa tal adaga em ferro fundente, cravando-se no fragmento onde habitava Álvaro
— Porque Dantas…cheira mal da boca! — declamou, entre gargalhadas. — Não te de Campos, marcando-o para sempre. Uma memória funesta que o iria acompanhar
preocupes, irás perceber mais tarde. — Limpou uma pequena lágrima de riso no canto do para toda a vida, como uma doença que espera pela fragilidade para causar uma recaída. A
olho e prosseguiu. — Eu não quero que o que escrevas seja lido pelas pessoas de agora. As mão de Álvaro puxou uma folha até si e, em plena comunhão com a Serpente, definiu aquele
palavras do Diabo do livro que irás escrever não serão para Maria, tampouco para os teus con- olhar em verso.
temporâneos. A tua obra é para o futuro, são para aqueles que ainda hão-de vir. Tu, o Almada, no Não sou nada.
futuro o Lima de Freitas, no passado Nuno Gonçalves e Bandarra… O fado deste país é tão forte
que a cadeia de acontecimentos se perde nas brumas da memória. Nunca serei nada
— Portugal, o país que dá mundos ao Mundo. É esse o nosso destino? Não posso querer ser nada.
— Sim. O Império do mar já desapareceu, falta agora o Império do Verbo. Falta cumprir-se Portugal!
Está na Hora, Fernando. Está na minha Hora. Só num país em que o povo vive a olhar para o horizonte À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
é que se avistam novas terras, não é? E o Diabo desvaneceu-se, ttrazendo a si a substância do fumo do cigarro que ardia lentamente, como
— E o meu destino é proclamar hoje o Portugal de amanhã. a revolução que preparava.
— Porque tu não és um escritor de hoje, és um escritor do amanhã.
Fernando Pessoa anuiu, adindo.
— Tens aqui o teu mensageiro. Escreverei o livro que me pedes.
— Bom! O meu supra-camões! — exclamou, felicitando-o com um aperto de mão — A alma lusitana está
grávida de divino! Deste o primeiro passo no Caminho da Serpente, não há volta a dar. Atravessarás todos
os mistérios sem no entanto conhecer nenhum. Reconhecerás a verdade como verdade e ao mesmo tempo
como erro. Viverás os contrários não os aceitando. Sentirás tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim,
D — Não.
eitado num mar de dores e linho, o arauto do 5º Império contorce-se de dores. Clama pela enfer-
meira. Ela tarda em aparecer. Sentado ao canto da sala, o Diabo consulta as horas como quem
está atrasado.
— Estás pronto, Fernando?

senão o entendimento de tudo. — Pedi ao meu irmão mais velho para te levar até ele. A ti e a todos os que tu és.
— E que recebo de volta? Tem de haver uma oferta para eu poder fazer um acordo com o Diabo. — A — Queria mais tempo, queria mais tempo para acabar todas as obras a que me propus. Ainda há tanto
hipótese parecia diverti-lo. — Imortalidade, talvez? — acrescentou, jocoso. espaço na arca que me deste.
O Diabo coçou a cara imberbe, fingindo-se apanhado de surpresa. Agradava-lhe que Fernando co- — O que lá está é a herança que estava destinada àqueles que estão para vir, nem mais, nem menos. O
nhecesse os ritos e protocolos. Levantou-se da cadeira e abriu os braços ao alto, como se apresentasse o suficiente para que alcances a imortalidade pela arte e eu a fecundação pelo Verbo. Obrigado, obrigado
Mundo. a todos vós.
— Tal como o meu irmão mais velho deu uma arca não afundável para guardar toda a criação, eu A enfermeira entra na sala e passa os óculos ao poeta. Ele pede papel e caneta para escrever. Sabe
também te dou a ti uma arca, desta vez à prova de esquecimento. Tudo o que lá guardares será lido no que é a sua última frase. Não pode ser em Português. A carga simbólica da última frase é demasiada
futuro, quando o teu génio for reconhecido. Será a tua imortalidade em forma de madeira. para arriscar a escrever na língua do 5º Império. Fernando escolhe o inglês, a língua em que foi
Fernando acendeu um cigarro, deixando o olhar pensativo enrolar-se no fumo, dizendo por fim: educado, a língua do 4º Império que, tal como ele, está prestes a desaparecer. Que virá? Depois
— Posso recusar? de si? Depois do 4º Império? Fernando quer saber, mas o Diabo aponta para o relógio e abana
O Diabo mostrou os dentes todos num esgar feroz. a cabeça negativamente. O poeta, e todos dentro dele, firma a caneta na mão e garatuja: I
— Tu não queres recusar. know not what tomorrow will bring.
O silêncio instalou-se no quarto. O fumo de cigarro ascendia imperturbável
ertu em mo-
vimentos hipnóticos, construindo e destruindo quimeras cinzentas até se desvanecer
num meio maior que si. Quase em surdina, Fernando tomou a palavra entre lân-
guidas passas de fumo.
— Agora compreendo. És tão escravo quanto eu. Dizess que cons-
tróis o Fado, como se fosses o seu arquitecto, e afinal não
passas de um dos seus capatazes. No final,

Carlos Eduardo Silva nasceu no auspicioso ano


de 1989 em Lisboa e, desde aí, o Mundo continuou
a mudar. Actualmente estuda para ser um homem
de ciência, mas quando ninguém está a olhar escreve
as histórias que andam pela sua cabeça. Poderá
conhecer mais do autor assim como as suas obras
em http://carloseduardosilva17.wix.com/abracadabra.

26 /// BANG! BANG! /// 27


stava-se em 1953 e Alfred A viagem que nos propomos
Bester vencia a única ca- fazer é uma de memórias e teste-
tegoria de ficção (na mo- munhos, pois é a única desloca-
dalidade de romance) do ção temporal permitida à espécie
primeiro prémio Hugo de sem- humana. Convocámos autores e
pre com O Homem Demolido. Os apreciadores, procurámos na in-
marcianos desciam numa Amé- ternet e nas estantes lá de casa, e
rica rural insuspeita a convite de reunimo-los aqui, para um breve
George Pal, Quartermass salvava desabafo, para que nos contem
a Humanidade de um alienígena as suas experiências e nestas, des-
1 vegetal e o milionário Donovan cobrirmos o reflexo das nossas.
era salvo e condenado perante au- Convocámos também a editora,
diências desconfiadas da ciência. que lamentavelmente se escusou.
Estreava em Espanha a colecção
de ficção de polpa Luchadores del
Não importa – só os
Espacio, Itália adiantara-se um ano livros importam.
com a Urania, a e a Presence du Futur
entraria no ano seguinte no pujante za-Pinto, o fundador da empresa. Durou 562 números
mundo da Ficção Científica (FC) ininterruptos com periodicidade mensal (excepto nos
francesa. Vivia-se a Guerra Fria, últimos anos em que foi irregular), mais o acrescento
um mundo de terror atómico, ple- em 1968 do raríssimo n.º 130-A ((Estação de Trânsitoo –
no de espiões e ameaças veladas, Way Station, de Simak)1. Continha essencialmente FC,
de perseguições anti-comunistas e com alguma Fantasia à mistura, e era relativamente ac-
desconfiança generalizada na capa- tual: perto de quarenta títulos foram publicados apenas
cidade do Homem em sobreviver com um ano de diferença ao da respectiva edição origi-
às suas próprias criações. Ainda as- nal estrangeira, e aproximadamente duzentos com um
sim, falava-se de futuros gloriosos, máximo de cinco anos. Para a colecção contribuíram
de contactos com seres de outras centena e meia de autores e meia centena de tradutores
Terras e de colonização galáctica oficiais. Vendia-se em Portugal e no Brasil, não obstante
nas páginas da Astounding, g Maga- uma indicação na ficha técnica que proibia este acto na
zine of Fantasy and Science Fictionn e “República Federativa do Brasil”. E se considerarmos
Galaxy. Estava-se a quatro anos do uma dimensão média de 250 páginas por livro, estamos
lançamento do primeiro satélite fa- perante 140 mil páginas de literatura Fantástica e anos
bricado por mãos humanas, o Spu- de leitura.
tnik 1, que deu início à actualmente Nenhuma outra colecção de FC atingiu no espaço
designada era espacial, e a dezasseis lusófono tal dimensão, importância e longevidade, nem
da primeira viagem tripulada à Lua. contribuiu, até hoje, para a formação básica de várias
Estava-se em 1953, e ainda gerações de apreciadores do género.
antes de findar este movimentado
ano, nasceria uma nova colecção
portuguesa que ficaria nos escapa-
rates durante cinco décadas, apre-
sentaria autores de FC ao público ntes de mais, os dados bio-
lusitano e atravessaria o oceano gráficos: deu-se à luz em No- e há factor que una os apreciadores é aquele mo-
para contaminar o paladar dos vembro de 1953 e remeteu-se mento ou circunstância em que a Argonauta lhes
leitores brasileiros. Uma colecção ao silêncio em 2006, em mês in- entrou na vida e que se torna uma memória acalen-
cujo nome evocava tradição, epo- certo. De mãe, a Editora Livros do tada e contada com o pormenor de quem descobriu um
peia e aventura: a Argonauta. Brasil, e de pai, António de Sou- segredo valioso. Cada qual conta a sua história, mas são

BANG! /// 29
os mesmos os pontos de união, «para mal dos meus pecados e nha imaginação, desfilava aquilo que a mesada não chegava para tudo. O que
são familiares os motivos que do dinheiro dos almoços e lan- milhares de fãs de FC conhecem como nos é negado alimenta a íntima vontade.
os integram na comunidade. ches escolares, a colecção Argo- o sentido do maravilhoso ((sense of Exemplar a exemplar, fui adquirindo, e
Pode ter origem na reco- nauta, argutamente, mantinha wonder). r Vastas naves enfrentavam-se lendo, o que estava disponível. A colec-
mendação de um amigo ou nas primeiras páginas uma lista em batalhas cruéis e planetas recheados ção tinha, já, quase trinta anos, mais do
familiar: «uma tia minha, que com os últimos números publica- de alienígenas malévolos eram bases se- dobro da minha idade – e eu, que anda-
coleccionava a Argonauta, con- cretas de Impérios do Mal» l (Ricardo ra tão distraído no limbo, tardando em
dos e nas últimas páginas uma Loureiro). nascer.
tou-me ao jantar sobre um lago de pequena amostra do volume
alcatrão, num planeta perdido na Como eles, encontrei a Ar-
seguinte da colecção. Tudo isto gonauta, ou esta
periferia da Galáxia, onde residia servido com uma periodicidade encontrou-me,
um computador que guardava mensal» (Ricardo Loureiro). depois de estar
o registo das “almas” de toda a Cria um vício a que não se desperto para a
espécie humana [e que] estaria de- quer fugir: «depois do primeiro existência de Fic- omo qualquer boa colecção que se
fendido por milhares de morcegos veio o segundo, e logo o terceiro» ção Científica. preze, e em particular, numa de tão
gigantes» (João Barreiros). (Jorge Candeias). Pertenço à ge- longa duração como a Argonauta, é
Surge por acidente, por Deixa na alma, gravados ração das capas possível demarcar períodos.
estar-se ali, naquele instante, a fogo, o nome de mundos prateadas, cujo O mais óbvio será a nível do forma-
diante do mostruário de uma e autores, tão irreais e desco- «tom metálico»o or- to. Desde o primeiro número, apresen-
A sensação do primeiro con-
livraria e deparar-se com a capa lava ilustrações ta-se como livro de bolso com uma di-
tacto transpõe oceanos: «descobri a
cuja ilustração, título ou au- e n i g m á t i c a s, mensão regular de duzentas páginas, um
Coleção Argonauta em Janeiro de 1977,
tor despertam lembranças de raramente ilus- pouco menor que o paperback americano,
em plena Rodoviária Novo Rio, quando
outras leituras ou imprimem trativas de uma o que é mantido até à decisão da edito-
estava prestes a embarcar numa viagem
promessas de mundos mara- cena do livro, ra, em 2004, de aumentar ligeiramente
de férias para o interior do estado. Como
vilhosos: «uma bela manhã se tratava de um romance do Clifford D. mas compostas o tamanho com o n.º 553 (A ( Grande
em Sesimbra, com o calor já a Simak, meu autor predileto, não hesitei 1 «invariavelmente Roda – The Big Wheel,l de William Rollo)
apertar, entrei numa daquelas em adquirir o livrinho de capa prateada, de fotomontagens e seguintes – uma decisão mal recebida
papelarias/tabacarias que na n.º 227, O Outro Lado do Tempo e/ou colagens com pelos apreciadores2, talvez em parte pela
altura ainda vendiam livros e eis ((Enchanted Pilgrimagee)» (Gerson naves, planetas transformação radical das ilustrações
que num escaparate de arame Lodi Ribeiro). e estranhos sóis» s num estilo quase abstracto que repre-
Atravessa gerações: «é um bo- (Ricardo Loureiro). A edição de sentou um retrocesso face à revolução
daqueles que rodam sobre um
cado difícil recordar coisas desses tempos entrada foi O Número do Monstro de cores e imagens chamativas em voga
eixo deparo com uma série de no mercado editorial. Mas até então, a
iniciais, já lá vão 60 anos – quando saiu – 1.º volume,e do Heinlein [n.º 294],
livrinhos que de imediato atra- mas admito que poderia ter sido Argonauta arriscou periodicamente a
em o meu jovem olhar»» (Ricardo o número 1 em 1953, tinha eu 22 anos
e cursava Arquitectura, e lembro-me que qualquer outro. Heinlein era o au- mudança – que por vezes se estranhava
Loureiro). tor que melhor conhecia do con- mas que acabava por ser bem-vinda – de
Por vezes, a sedução demo- o primeiro livro que comprei foi o n.º 7,
Inconstância do Amanhã (Tomor- ( junto de exemplares no escaparate alterar a composição da capas, de intro-
ra: «houve um livro da Argonauta de uma tabacaria de praia. Ali, tão duzir estilos e técnicas de imagem e de
que sempre exerceu um terrível fascí- row Sometimes Comes), s de F. G.
Rayer, livro que me deixou então positi- mansamente pou- criar um corpo consistente de ilustrado-
nio sobre mim: A Árvore Sagrada sados, quais pepi- res de reconhecido mérito e ímpar numa
[n.º 224], um dos livros dos meus vamente fascinado, e depois disso passei a
ser um consumidor assíduo da colecção» o tas num concurso colecção de FC publicada em Portugal
pais, publicado cá em 1972, e que de garimpagem. até aos dias de hoje.
eu me lembro de ser uma presença (António de Macedo).
Espalha-se por territórios e «O prazer da desco- O primeiro foi Cândido Costa Pin-
constante [pela casa]. Nunca li o nhecidos a início como rapi- da minha própria casa mais uns três ou berta pela primeira to, que ilustrou as capas do n.º 1 ao 32
livro, mas cresci fascinado pela capa culturas: «conheci a coleção Argo- damente se tornam familiares: quatro Argonautas. Peguei num. Mis- vez de livros-chave do ((Robinsons do Cosmos – Les Robinsons du
– melhor dizendo, pela contracapa – nauta por volta dos 12 ou 13 anos, «o primeiro livro da Argonauta que são Interplanetária do Van Vogt [n.º Cosmos,s de Francis Carsac), conhecido
género é uma expe-
onde um gigantesca iguana verde está na Livraria Pedrosa, em minha li foi Os Frutos Dourados do 9]. Li-o às escondidas, por baixo do len- riência tão intensa artista plástico e designerr gráfico portu-
prestes a devorar um astronauta de cidade natal (Campina Grande, Sol de Ray Bradbury [n.º 55], de çol, com a lanterna acesa. E, claro, voltei que é quase compa- guês que se radicou no Brasil no final da
imaculado branco que paira sobre Estado da Paraíba). Era uma ex- quem eu já tinha lido alguns contos a borrar-me de medo, porque os monstros rável à da descober- vida e cujas inclinações surralistas terão
ela, filmando-a, contra um céu de um celente livraria, até para os padrões em antologias»
s (Bráulio Tavares). nele descritos eram verdadeiramente as- ta do sexo»» (João influenciado os desenhos fortemen-
laranja intenso»
o (João Seixas). de hoje » (Bráulio Tavares). Evoca-se aquela aventura sustadores. Mais tarde descobri todos os Seixas). Porque te simbólicos daquela sequência. Mas
O rosto sorri-nos e bate Planta sementes no espírito do tão íntima, mais tarde, com o livros do Stefan Wul e ele foi, durante estes encerram será com o n.º 33, o agora famosíssimo
as pestanas: «nessa bela manhã leitor: «Quando, depois de ler A Ne- toque de nostalgia e prazer da muitos anos, um dos meus autores favori- as chaves do Fahrenheit 451 de Bradbury (em 1956,
escolhi mais por virtude da capa que recordação de uma descoberta tos»
s (João Barreiros). apenas três anos após o lançamento do
bulosa de Andrómeda, pedi ao mistério. Ainda
mostrava um vaivém espacial – na que não retorna: «[A história Mas a inocência deu lugar ao hoje, sempre romance original e traduzido por Má-
meu pai mais livros do mesmo género, contada pela minha tia] era a do
altura ainda um protótipo, os primei- encantamento, e este perdura por que passo pela rio Henrique-Leiria), que se dá início à
ros voos seriam 3 anos mais tarde –,
aconteceram duas coisas. Por um lado, Ortog, g do escritor francês Kurt
fiquei a saber que existia uma coisa uma vida: «Galactic Patroll de E. loja que substi- contribuição de Lima de Freitas, um dos
a dirigir-se a um planetóide âmbar, Steiner (André Ruellan), um dos E. «Doc» Smith com o apropriado tí- tuiu este local, mais conhecidos pintores e desenhado-
visivelmente artificial, do que por chamada ficção científica. Por outro, primeiros livros da Argonauta [n.º tulo de Patrulha Galáctica (n.º 270), recordo. res portugueses do século XX e figura
conhecer o nome do autor de algum tive nas mãos o meu primeiro Argo- 66]. Li-o com um arrepio crescente marcante na vida da colecção.
e com uma despropositada nave USS E s t ava - s e
lado, o livro Exilados da Terra nauta.»» (Jorge Candeias). de horror, porque, aos meus olhos Entreprise na capa: foi este o livro que no tempo das escolhas: as biblio- Freitas vem trazer um dinamismo
(n.º 249) de Ben Bova» a (Ricardo O primeiro contacto abre a inocentes de então, o livro era bem e uma riqueza de composição a obras
verdadeiramente iniciou o dilúvio de FC tecas sub-urbanas ou escolares
Loureiro). porta que não se volta a fechar: sinistro. Depois descobri nas estantes de autores tão distintos como Heinlein,
para mim. Ali, perante os olhos da mi- não adquiriam Ficção Científica e

30 /// BANG! BANG! /// 31


Simak e Versins, e marca pre- da capa, impressas sobre um tom cinzento brilhante, rke – em, aproximadamente, um tradutor, e a sua continuidade du- simples, o nº 100 da Colecção Argo-
sença até 1975, dando a última relegando a ilustração para uma ideia de «janela», talvez sexto dos livros, pertencendo os rante centenas de títulos, acontece nauta oferece um panorama comple-
capa ao n.º 221 (Eclipse
( Total – como recuperação da ideia da entrada num mundo ma- restantes a autores da época pulp a par da erradicação de obras de to da evolução da Ficção-Científica,
Total Eclipse,e de John Brunner). ravilhoso. Começando no n.º 225 (Em ( Busca do Futuro (Leinster, Siodmak, Van Vogt)3 e origem não-inglesa do catálogo – desde Júlio Verne aos Astronautas.
Este impressionante volume – Quest for the Future de Van Vogt), vai durar até ao n.º obras reconhecidas no género (O sendo a última o n.º 107 (O Império Entre centenas de autores, entre mi-
de trabalho rivaliza com o rit- 300 (O Mistério de Valis – Valis – 1º volume,e de Dick), a Cérebro de Donovan, Slan, Mundo de dos Mutantes – La Mort Vivantee de lhares de obras, foram seleccionados os
mo dos tradutores e faz da co- partir do qual a orla cinzenta é substituída por uma azul. Stefan Wul). As excepções pon- mais belos contos dos escritores mais
s em suma, uma aposta
Vampiros);
lecção uma verdadeira fábrica As ilustrações são, primeiro, da mão de Manuel Dias, tuais representadas pelo francês representativos em todo o mundo, for-
de produção de FC – com o numa breve incursão após Lima de Freitas, e logo após, evidente na popularidade. mando uma antologia de característi-
A presença regularr4, a partir Barbet (n.ºs 251 e 258), pelo po-
encargo adicional que o pin- de António Pedro, o qual vai assegurar o rol impressio- cas absolutamente inéditas entre nós»,
do n.º 22 (Vigilância Sideral – Les laco Lem (n.º 264) e pelos russos
tor tinha de ilustrar também nante de centenas de capas entre o n.º 254 ((As Vozes de destinado ao que já se mostrava
a edição mensal da congénere Marte – I Sing the Body Electric de Bradbury) e o último. irmãos Strugatski (n.ºs 307 e 308) ser «um público fiel e, até, entusiás-
policial. «Lembro-me bem de os Refira-se que, apesar do expressionismo e ocasional explicam-se facilmente: foram tra- tico».
meus pais partilharem o trabalho de simbolismo dos desenhos, é por vezes um desafio con- duzidos a partir das edições ame- Mas, se é natural que di-
ler os livros de FC e policiais que o seguir relacioná-los com a obra que ilustram ou sequer ricanas, com todos os problemas ferentes apreciadores tenham
meu pai tinha que ilustrar. Era um com uma cena particular da narrativa... de fidelidade inerentes à tradução diferentes preferências, e orien-
A partir do n.º 333, desaparece a orla e o conceito de traduções... tem as selecções para as obras
de janela, voltando a ilustração a dominar a capa, à qual Há pelo menos um caso con- que conhecem (e que são ca-
embora eu pessoalmente não apreciasse se sobreimpõem o título e o autor, composição que vai firmado de influência de um cola- pazes de ler), também decorre
tanto, comparado com algumas capas permanecer até ao formato derradeiro que acima se borador na selecção das obras: «o que a ausência de um crivo edi-
mais antigas que ele tinha feito: umas mencionou. meu pai frequentemente sugeria os títulos torial coerente tenha contribui-
mais estranhas e abstractas (lembro-me a traduzir, embora isso normalmente do para manter e até salientar
da do Síndico,o do Cyril Kornbluth, ou não fosse creditado» (JF). Lima de certos defeitos de fabrico que
a do Homem Demolido, o do Bester, Freitas foi também responsável foram prejudicando a colecção
mais brutais e expressionistas), outras por organizar e traduzir os contos e, eventualmente, antecipar-lhe
mais realistas ((O Tempo das Estre- Étoiles ne s’en Foutent Pass de Pierre do n.º 100, uma antologia come- o fim num contexto de cres-
1 morativa «que reuniu uma quanti-
las, do Heinlein, por exemplo). Mas as Versins), de autores francófonos5, cente competitividade em que
fotos duraram algum tempo, e por elas representando um terço das esco- dade notável de histórias, algumas das tais falhas já não eram perdoá-
passaram os pedaços dum foguetão Apolo lhas dos primeiros 100 números quais foram consideradas das melhores veis pelos leitores.
que eu tinha construido com [ele] aos 7 – além das presenças pon- de sempre, como “Flores
anos, uma estátua dum amigo nosso em tuais de Onochko para Algernon”, e penso
O Planeta Neutral,l uma figura de um (russo) e Čapek que a primeira história
astronauta que eu tinha comprado em (checo) – anuncia traduzida para por-
França, em O Ponto Ómega, a e que uma inversão da tuguês do Lovecraft,
reapareceu em Os Homens das Es- tendência pró-ame- Jorge Luis Borges om-
ritmo razoavelmente forte, dois livros Leia na próxima
trelas, ou por exemplo, na Vampiro, a ricana, que apenas breando com Arthur
por mês, mas a minha mãe era faná-
tica devoradora de policiais, e lia tudo minha tia Jenny (dinamarquesa) a fazer surpreende se, ao in- Clarke, Efremov e revista Bang!
de Miss Marple!»» (JF). vés de a entendermos Bradbury»» (JF). a segunda parte
num instante para contar ao meu pai
A fase seguinte da colecção, tal- como uma aposta in- Efectivamente,
algum pormenor marcante que o ins-
a apresentação do artigo sobre a
pirasse numa capa»» (JF). vez a mais distintiva, é a prateada: vulgar na FC europeia,
título e autor voltam a autonomi- considerarmos que deste número é Colecção Argonauta
A contribuição de Frei-
zar-se e a dominar o terço superior advém do uso de tradu- bastante explí-
tas atravessa alguns períodos
tores mais familiarizados cita6: «num volu-
distintos de composição das
com a língua francesa. me duplo de mais
capas: até ao n.º 100, a ilustra-
Esta desconfiança de quatrocentas
ção surge isolada do título e
as, se o aspecto é o factor de mudança mais óbvio, consolida-se se notarmos páginas, posto à
do nome do autor, que a enci-
também a nível de conteúdo a Argonauta teve os que a entrada de Eurico da venda pelo preço
mam. Mas com o 101.º ((Nova
seus períodos distintos – ainda que mais duradou- Fonseca para a função de de um volume
Ameaça de Andrómeda – An-
dromeda Breakthrough, de Fred ros.
Hoyle e J. Elliot), título e autor Primeiramente, pelas obras escolhidas. A colecção
passam a incorporar, e a in- arranca com um autor pouco conhecido: Archibald
fluenciar, o corpo do desenho Montgomery Low, engenheiro e investigador inglês Luís Filipe Silva (blog.tecnofantasia.com)
(veja-se o caso do n.º 136, Ave que, a par de dezenas de ensaios, escreveu apenas qua- é autor português de «O Futuro à Janela»
Marciana – A Far Sunset,t de tro romances de ficção para jovens, e nenhum dos quais [1] Vale a pena desvendar a rocambolesca história [3] A questão das preferências, aliás, será um dos (Prémio Caminho de Ficção Científica), «Cidade
Edmund Cooper). entrou no cânone da FC. Mesmo assim, a aventura es- tal como contada por João Vagos em http://colec- apanágios menos felizes da colecção, ainda que da Carne, «Vinganças» e (com João Barreiros)
pacial de Perdidos na Estratosferaa (Adrift in the Stratospheree) caoargonauta.blogspot.pt/2011/09/n-130-estacao- mais tarde se manifeste sobre outros autores – Si-
É evidente que este de-transito.html. «Terrarium - Um Romance em Mosaicos» além
parece perfeitamente adequada para atrair desde logo a mak e Blish, por exemplo.
espaço se torna, também, [2] J. Vagos conclui o inventário pessoal dos títulos [4] O primeiro francês foi Jimmy Guieu, logo no de vários contos, críticas e artigos em publica-
um laboratório para o artis- imaginação dos leitores. no 552.º com as seguintes palavras de desânimo: n.º 5, uma presença pontual. ções portuguesas, brasileiras e internacionais.
ta: «O meu pai passou nessa al- Será o evoluir dos títulos que faz suspeitar da au- «última edição [...] no formato tradicional. A partir [5] Entre outros: Carsac, Russel, Aîné, Wul, Steiner, Como antologista, organizou «Vaporpunk – Re-
sência de um critério editorial sólido guiando a escolha. deste número, aumentaram o tamanho dos livros Hougron, com obras agora clássicas na FC fran-
tura (anos 70) a fase de fazer ca- e também o preço, tendo sido publicados apenas latos Steampunk Publicados sob as Ordens de
pas a partir de fotos, um método A primeira década é marcada pelo predomínio dos mais dez números, que já não coleccionei. Para mim, cesa. Suas Majestades» (com Gerson Lodi-Ribeiro) e
a Colecção Argonauta terminou neste número.» [6] Excertos retirados da apresentação deste volu-
experimental que aparentemente «grandes nomes» – Asimov (usando seu próprio nome me no n.º 99, presumivelmente da autoria do pró- «Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa»
(http://coleccaoargonauta.blogspot.pt/2011/08/n-
granjeou bastante popularidade, ou o pseudónimo Paul French), Bradbury, Heinlein, Cla- 552-os-vigilantes-do-imaginario-2-pat.html) prio organizador. (com Luís Corte Real).

32 /// BANG! BANG! /// 33


ublicado em 1990, Tigana
de Guy Gavvri r el Kay não foi o
a sua pr prim
imeieira
ra o obr
braa de fantasia.
Já tinha lan ançaçado
do aant ntererio
iorm
rmen ente
te
a trilogia de Fi Fioonav
onav a ar ar,, de ffor orte
te
insp
in spir i aç
açãoão ttol
olki
kian
ana,a, m mas as ffoi
oi ccomo
om
Tiggana
Ti naa que Kay a eenc ncon on ntr
t ou a sua
vozz na
vo narr
rrat
ativ
ivaa e o es esti t lo qque
ue ttoror--
nari
na ria as suass ob obra rass tão
tãão fafamo
mosaas e
a arinhadas em tod
ac odo o o mu m ndo: a
fant
fa n asia histórica.
Kay pega em de dete term
rmininadaddos
os
evento
ev os histór óricicos
os reaiss, e as assi simi
imi-
la-o
la -oss pa para o seu mun mundo do de faan- n
tasiia.
ta a N Nãoão ssee trtraataa dede umaa mer eraa
r co
re c nstituiçção ão, ma mass de d uma in- n-
v stiggaçção cui
ve uida
dado doosa ddo o pe
perí ríod
odo
od o
histór
hi óricico em que ueststão
ão o dede foform
rma a
ap pro
rove veit
itar
a os me melh lhor
horres ele lemeent n os
que seerv
qu rvemem os grran nde
dess te tema
mas do dos
lilivr
vros
os de Ka Kay. y. O rres esulultatado
do fin nal
al é
muit
mu i as vezzes notávvel el. Preço
Preço: 16,
6,90
90€€
Em Os Leões de Al-R Rasa sann, um ISBN
ISBN:9
:978
7 -989
899-637
3 -6605
05-55
d s ro
do oma
m nces favoritos de mu mui- i- Géne
Gé nero
ro: Fa
Fant
ntas
asia
ia É
Épi
p ca
toss do
to doss se seus
us fãs, Kay vai buscar
insp
in s iração à histó tóririaa me
medi diev
eval eu- Tigana é uma obra rara e
rope
ro peia no tempo da pre rese
senç
nçaa do d s encantadora onde mito e magia
árab
ár abes em Portugal e Espanha. se tornam reais e entram nas
As figuras do guerreiro espanhol nossas vidas. Esta é a história
E Cid e do poeta da cidade por-
El de uma nação oprimida que
tuguesa de Silves, Ibn Ammar, luta para ser livre depois de
servem de inspiração para a pró- cair nas mãos de conquistadores
m Fahrenheit 451 de Ray ay Bra radb bur
uryy,
y, o m mun unndod é uum m lu lugag r ci
ga cinz
nzenento to pria
pr ia cri riaç
ação
ão do auuto or, mass, atra-
onde os seus habitan annte
tess us
usam am a felliccid i adadee co omom uma más áscacarara.. Qu
Quan an-- implacáveis. É a história de
vés da das su suas
as vvív
ívid
idasa persona n gegens, um povo tão amaldiçoado pelas
do cai a máscara, reeve vela laa-sse a solidã dão
dã o, o des e esspe
p ro o por viver num mundo do a trtran
an nsi
s çã
çãoo de uma era parra ou outrta
anestesiado, a apa pati
tiaa e co onf
nforormi
or m smo
mi smmo peera rant
ntee um
nt m Est stad
add que se enc
ado n arrega ga negras feitiçarias do rei Brandin
é rorode dead
de adaa dee tan
ad nta p poe oesi
oe sia, nossta
si tal-
l
l- que o próprio nome da sua bela
de apagar da mem mór ória iaa do oss ind
ndiv ivvíd
iví íduo
íduou s todato
oddaas as ttra raagé
gédid as que compõem o
di giaa e o do
gi docece e ama marg rgo
rg o ququee es
e ta se
quotidiano o. Quuem m se reevo voltltta,
lta,
a é faccili me ment ntee el
nt elim
imin
imin naddo do d sistema, desapa- terra não pode ser lembrado ou
ttoorn
rnou ou uuma maa ddaas
as sua uass ob obr
bras ma maisis pronunciado.
rece da fo fototo
o e dduv uviidam
uv idam
id a os se es essa saa pesso s a re
so real
alme
al m nt
me ntee ch cheg
egou um dia a ser
eg a llaama
ac m da d s. Ess ssee popode derr de
de de evoca ca--
nossaa vi vizi
zinh
nha.
nh a. Mas anos após a devastação da
ção,
çã o, emo moçã ção
çã o pr
profofun
of u da d e lam men ento
nto sua capital, um pequeno grupo
Désp
Dé spot
sp otas
ot as e tir iran
anos
an os não sup
os pororta t m qu
ta qual alqu
lquer acttiv ivid
idad
id a e cu
ad cult l ural porque porr um p
po pas
a sa
as sado
doo que ue já nã não ex exis--
sabe
b m quue ao banir
be irr eess
s ass aact
ss c iv
ct ivididad
id a es
ad es, esestã
tão
ão a de destssttruuir
ir efi
ficcazm mente a me- de sobreviventes, liderado pelo
te,, ou eest
te stáá a mo
st orrrer,
er, p
er peerm
rmit
rmit i e ao príncipe Alessan, inicia uma
m riia de
mó de um po povo o. Qu Quan ando
anndo M Mon o ta
on tag,g o bom
g, mbeb iriroo prro ottag
a on
onis i ta da obra de auuto or cr c ia
iarr al
a gu
g ma
m s da dasas mmaaisis ma- a
Rayy Br
Ra B ad adbu
bury
bu ry,, fina
ry nalm lm
men ntee des e pe
p rt rtaa pa paraa a ver e da
d dee e um no ovo mun undo, é só
un ó cruzada perigosa para destronar
ravi
ra vilh
vi llh
hos
osasas e ccom
om mplp exas
exxass ccenenaass nos
en
enas os os reis despóticos que governam
graç
gr a as à sua memór
aç óriaiaa qqueue con o se s guguee resi s sttirr à op
si prres
essãsão po pollílíti
líti
tica e cultu t ral.l. seeuss livro
ivro
iv os.
s
S m
Se mem emor
em orizizar
iz arr ooss lilivr
vrros ssab
vros abee qu
ab quee ja j mamais i cor
is orre rerá
re rá o rrisco c de os os perde deer. a Península de Palma, numa
Em Ti Tiga
gaanaa do au auto torr ca
to cananadi
na d an
di no Gu Guyy Ga Gavr vrie
vr iell Ka
ie Kay, y o pov
y, o o de Tigana igg dii- tentativa de recuperar um nome
fici
ficilm
ci lmen
lm e te
en t ttem
em mo out
utra
ut ra eesc scol
sc olha
ol h sen
ha e ão ão ressis isti
stiir co
contntra
nt r a maldiçã
ra çãão la lanç
nçaada por
nç banido: Tigana.
Bran
Br andi
an d n de Ygr
di grat
ath.
at h. E res esisi te
is te preci ciisa
same
meent ntee atatra
raavéés da d mem
memór
em mór óriaia.. Resi
ia siststte,, Num mundo ricamente detalha-
l mb
le mbra rraand
n o-se ssee da
da suua pá p trt ia
ia.. Na Pen Penenín nsusula
la ddee PaPalm ma, qua uase
see toddas as as pr
pro- o- do, onde impera a violência das
vínc
ví nciaas ca c ír
íram
amm nas mão mãão os dodoss fe feit itic
it icei
ic e ro
eiross BrBran andi
an d n de Ygr grat
atth e Al Albeberirico de
rico
ri de paixões, este épico sublime sobre
Barb
Ba rbadaddioi r. Ste teva
van,
va n, o filho
n, o de Br B an ndidin,, ffoio mor
oi orto
to por Val a en
enti
entitin,n príínc
n, ncipe de d pros
pr osaa lílíri
os rica
riccaa e eemo
mo
moci
ociiononaal
al n não
ão um povo determinado em alcançar
Tiga
Ti g na
ga na,, um aact cto
ct o pe
pelo lo qquauall o se
ua seuu po povo vvo
o pag agouou um pr p eç eço o deemaasi siad
iad
ado o elelev
levvad
a o o.. enco
en cont
co
cont
ntraa par
ntra aral
alello em m ne- e os seus sonhos mudou para sem-
B an
Br ndi
din n de
d strói a orguulh hos
o a Ti T ga gana na,, as sua
na uass totorres belas as e aafafaamadas, man
fam an-- nhum
nh u out
um utro
ro
o aut u orr de fan
fantntas
ntas
asia
iaa qque
ue
ue pre as fronteiras da fantasia.
ch
ha a su s a beleza, mas não see ccon o teent
on ntan
ntan ndo o aape
p na
pe n s co om a suua de d st stru
ruiç
içção
ão,, euu ten
nha
h liddo, o, com m exc xcepepçã
ep çãão de
decidee tam
de mbém eliminar a sua uaa mem emór ória.
ória
ór iaa. La
L nç n a um fei e tiiço
o em qu quee neenh nhum umm U su
Ur s la Le Gu
Guin nn naa su
suaa séséri
riee Te
ri Terr-
r-
habita
ha tan nte da
nte d Península jam mais se s lem embr brrar
a á ou o p podder eráá ouo vivirr o no ome
m de rama
ra marr. Kay dom
ma o in inaa a liling
ngguaagegemm
T ga
Ti ganana.. Ap
na pen
e as os tiganenses es rellem embr bram
br am o pas
am assa
sado
saado
d da su suaa pá
pátr tria
tr ia,, ma
ia m s nã não o como
co mo um ma
mo mago
mago go pod odereros
oso
os o a tetece
ceer
pode
po dem pa
de partr illhá
h -la co c m mais i nin
is inguguém
gu uémém.. E as assi
sim
si m esestãtãão cco
tão o
ond
n en
nd enad addos
o a tes este
sttee- umm encncan
a taame
an ment ntoo co
com m papalalavr
la vras
vr as
mun
mu nhar
nhhar o fim de Ti Tiga g naa até té des esap apar
ap arec
ar
arececerer a últ ltim
im
ma ge gera raaçã
raçção.
o. cuuid
idad
ados
ad osam
osamen
am ente
enntee escscol
o hi
hida
das.
da s. Não ão

344 //
//// BAN
BANG
ANG!
ANG! ANNGG! ///// 35
BBAANG 35
h uuma
há m úúni
ma n ca fra
ni rase
se que não ssej ejaa bo
ej b ni
nita
ta m s, à med
ma edid
idaa qu
id quee a nanarr
rrrat
ativ
ivaa pr
iv progogri
og riide
de,
e ev
e ococatativ
ivva.
a a pe
pers
rson
onnag
agem
emm ddee BrB anndi
dinn mo
most stra
straa imemen-
en-
n
E qu quemem mel elho
horr paara rrepe re
eprese
sent
nttar
ar ess
ssaa sass ca
sa cama
mada dass e totornrna-
a-se
se óbv bvio
io
o qque
ue n nãoão
perf
pe rfei
eiçã
ei ç o lílíri
çã rica
icaa ddo
o ququee a figugura
ra de um é um vilão ã típ
ão í icico
o e ququasasee co
cons
n eg
ns e ui
uimomoss
mo
b rddo? Dev
ba evin
in dd’A’ so
’A solili é uma das a p perso o- coomp preendeer o seeu in inte
tens
nso o de
desgs os
sg ostot
to
naage
g ns apr p es
e enentaada
dass no iní níci
c o do livvro e
ci pela mor
pe ortte do filho Sttev evan n quee o llev evouo
ou
será
se rá eelele a con o duduziz r-
r-no
nos na primeirra par- a cometeer tamanha atro ocidadade
de con ontraa

A
te pella Pení n nssula de Palma e a apr pres
esen
es e - Tigan na. Península de Palma partilha
taar os aconttecim i en
im nto
to
os políticos
po
po s e histtó-
ó Albe
berrico de Barbaddior é o outro fe fei-
i uma língua em comum e
ricos. Um jovem seensív ívvel
e e dotado o paara
ra tice
ti ceir
cei o que mantém a Palma sob o seu está dividida em nove províncias:
a música, ao descobr b ir a verdade acerca domííni n o. O oposto de Brandin, é um Senzio, Certando, Corte, Baixa
das suas origens, nunca mais volta a ser s nhor de guerra bárbaro, talvez a figu-
se Corte (a antiga Tigana), Asoli,
o mesmo. raa mais unidimensional na obra de Kay. Chiara, Tregea, Astibar e Ferraut.
Attra
A traavé
véss ded le, conhecemos outras fi- Apen enas vê a Penínsulaa co
en comomo uum m meio o A parte oriental é dominada por
guras qu quee formam, na aparência, uma para ati t ngir o fim e tudo o que ambi- Alberico, ao passo que o lado
mera companhia de músicos. No início ciona é a glóriaa e poder no Impé p rio de ocidental é dominado por Brandin
do livro, descobrimos qu que os músicos Barbadior. que reina a partir da ilha de Chiara.
têm uma identidade que escon sco dem de
sc Do lado oposto, Al Ales
e san, o prínc ríín ipe Duas luas orbitam em torno da
todos e uma missão que pretendem de- de Tigana, é o suposto herói ói de qu quem em terra onde os habitantes veneram
sempenhar a todo o custo. Todos eles se espera a redenção e a vingançça, mas uma tríade de deuses, um deus e
fazem parte de um grupo secreto de é uma figura que ganha uma dimensão duas deusas.
conspiradores e rebeldes que planeia cada vez mais humana e menoss heróica.
derrubar os feit iticeiros e libertar Tigana, Constantemente atormentado por o dú- Ao contrário de fantasias mais
a sua pátria subjugada e amaldiçoada das vidas, jurou livrar a Península dos feiti- tradicionais, não imperam criaturas
garras de Brandin. ceiros tiranos mas, mesmo com compa- míticas ou outras raças e a única
A guns são jovens, outros não tão jo-
Al nheiros tão leais como Devin, Ca Catr tria
triana
ia n entidade sobrenatural a fazer a
v ns
ve ns, mam s todos sentem intensamente a e Baerd, o príncipe cresceu em exílio e sua aparição é uma riselka cuja
peerd
r a da sua u terra natal. Alguns ainda constante fuga, atormentado pela me- aparição traz presságios. A magia
dese
de seeja
jamm redi dimir os erros do passado ou mória de uma Tigana que já não existe na Península existe, mas não é
pres
pr eser
es erva
er varr as pouucas memórias familia- e de um pai corajoso que se tornou uma disciplinada nem é ensinada e
ress qu
re quee lhes restam. lenda e um már árti
tir para os tiganenses. muitos dos praticantes são forçados
Ass mul
A ulhe
ul h res têm um protagonismo
he Para piorar as coisas, Alessan sabe que, a esconder os seus talentos dos
tão fo fortrtee quuanto os homens em Tigana.
rt para alcançar a vitória, terá dee comet om meter e tiranos ou arriscam-se a uma
Como eles, lutam pela sua liberdade e actos questionáveis. A sua ua rellaç
ação
ão ccom om o sentença de morte.
dignidade, apaixonam-se (às vezess pe pela
las
la feiticeiro Erlei eii providencia algu
ein gun
gu ns dos
pessssoa
ss oass er
oa e radas) mas, muitas vezes su- episódios mora raais
i e éticocos maais desafi fian- Muito ao estilo da antiga Itália
peeraand
pera ndo os homens, demonstram uma tes do livro. medieval que era formada por
coragem e sacrifício imensas e estão É difícil escolher uma única cena de- Estados que constantemente
dispostass a da darr a sua vida para pagar o cisiva do livro entre tantas – o que dizer guerreavam entre si, assim é
preço dee san angugue.
gu e. do magní nífi
ífi
fico
co capítulo do “mergulho do apresentada a Península. Os
anel” ou ou a Emb m er Night com os cami m-
mi conflitos internos permitiram a
nhananntes
tes da noite? – mas de umaa coisa fácil conquista dos territórios,
nãão há dúvida: o leitor ficará certaamente em simultâneo, mas de modo
ma
marcado
ma pelos momentos finaiis de d sta independente, pelos dois feiticeiros
obra monumentaal em que Kay tom mou que estabeleceram uma balança
outr
ou traa paarte
rtte da da nar a raativa
tiiva é ffoc
ocad
oc a a
ad uumma decisão contro oversa quando doo rrevevvella precária de poder.
naa ilha de Chiar arra ononde de B Bra
rand
randdin
ndinin es-
es- um dos grandes segredos da saga.. Res est
esta
taabe
b leceu a sua cort rtee e é co c nt n ad
ada através ao leitor decidir se essa decisão nãão fa farrá

doss ol
do o hohoss de
d Dia iano
nora
no raa, um ma beela l mulher todo o sentido face aos tema m s principais
q e fo
qu oi ca
c ptptur
u ad
ur ada pe pelo los meerc
los r en
enár
árrios do do livro: a perda da ident ntid
i ade, a vingan-
r i Br
re B an ndi
dinn e quq e rapi pida
ida
damente see tor o- ça, o desejo por liberdade e escolha pes-
n u um
no u a da dass suuasa ama mant
ma n es
nt e fav avor
orit
ori ass een-
it soal, a necessidade de compaixão. Pois
tree o seu sa
tr sais
isha
haan. A hi histstóória de Dianora
ória
ór afinal é o próprio Alessan que admite
é umuma de sol ollid
idão
ãoo, dúvi vid
ida
da, du dupla identi- “Neste mundo em que nos encontramos, pen-
d dee e uma
da m ang ngúsúússti
tiaa e tris
trrisste
tezzas imensas. so que é preciso ter compaixão acima de tudo,
O pa pa saddo de Dia
pass iano
n raa é contado em
no ou estaremos sozinhos.” Se nunca leram
flas
fl ashb
ash acackskss e cced
eddo de desc s obri
sc obr mos os seus
ob Guy Gavriel Kay, posso assegurar-vos
veerd
rdad
addei
eiro
iroos ob
obje
bjetitiivos. s Ela é testemunha que estão nas mãos de um contador de
do imemens nso
ns o po
podeder de Brandin sobre os histórias exímio que vos fará viver uma
seeus súbúbdidito
di to
os e o seu bobo Rhun, da sua autêntica montanha-russa de emoções.
a ro
ar rogâ
gânc
gâ ncia
nc ia e frieza, mas também do seu
chharme e sensualidade. Nós sabemos
logo no início do livro que ele é o vilão,

36 /// BANG!
Alessan. Através de Devin,
O líder do grupo de rebeldes e ficamos a conhecer a Península
conspiradores, Alessan herdou de Palma e muita da política que
um legado de tragédia. Filho a afecta.
mais novo de Valentin, príncipe
de Tigana, e único herdeiro
sobrevivente de uma dinastia Faz parte do grupo de rebeldes
quebrada pela guerra, é a ele que de Alessan. Tempestuosa, forte
cabe tentar resgatar o seu reino e independente, é assombrada
das garras dos feiticeiros. Uma pelos erros do passado da sua
figura atormentada por dúvidas família, os quais deseja redimir.
e receios, é muito respeitado
pelos seus companheiros de
estrada. Rei de Ygrath e um feiticeiro
poderoso que trouxe guerra GUY GAVRIEL KAY é um autor canadiano que se iniciou no mundo literário ao ser convidado por Christopher Tolkien
aos territórios da Península para editar O Silmarillion de J. R. R. Tolkien. É o autor da trilogia de fantasia A Tapeçaria de Fionavar e das obras de fantasia
Uma bela mulher que foi do Ocidente, é um homem de histórica Os Leões de Al-Rassan, A Song for Arbonne, The Sarantine Mosaic (dois volumes) e a sua mais recente série centra-se
capturada pelo feiticeiro emoções intensas e incapaz de no Império da China, Under Heaven e River of Stars. Tigana é uma das suas obras mais aclamadas. O seu trabalho encontra-se
Brandin de Ygrath, tornando-se perdoar a morte do seu filho, traduzido em vinte e uma línguas e recebeu numerosas nomeações e prémios ao longo da sua carreira.
parte do seu harém, Dianora Stevan, às mãos de Valentin, 1
rapidamente tornou-se a sua o príncipe de Tigana. Por essa
concubina favorita. Dianora morte, os Tiganenses foram
tem uma identidade e plano amaldiçoados e pagaram um

A
secretos que podem conduzir à preço demasiado elevado. É
ruína de todos. A sua natureza o homem mais perigoso da
conflituosa forma uma parte Península, mas tem um lado ntes de publicar o lizando alguns desses elementos, mas
vital do enredo. vulnerável que oculta de todos. seu primeiro ro- crria
iand
ndo
nddo pe
person
o agens mais modernas,
mance, The Summer i tr
in t odduz
uzin
indo
indo sex
do exualidade e temas como
ex
Tree, foi convidado liibe
libe
berddad
a e de escolha ou o pr
p eço (ou
Um dos mais antigos pelo Christopher fardo) do poder.
companheiros de Alessan e Um feiticeiro e senhor de Tolkien para editar
seu aliado na rebelião contra guerra que mantém a Península O Silmarillion de Tigana foi o primeiro romance onde
os feiticeiros. Um dos filhos do Oriente subjugada. É um JRR Tolkien, considerado uma obra-pri- encontrou a sua voz criativa. Sei que
de Tigana, as suas memórias homem cruel e calculista e ma por muitos dos seus fãs. Foi uma não lhe agrada muito o termo “Fantasia
de infância e adolescência que deseja apenas regressar ao decisão deliberada escrever a Tapeçaria Histórica”, mas ao recriar determina-
perseguem-no constantemente e Império de Barbadior e disputar de Fionavar, a sua primeira trilogia de dos eventos históricos num cenário de
nunca se esqueceu da irmã com o lugar de Imperador. . fantasia, na tradição de Tolkien? Uma fantasia acabou por criar um conjunto
quem tinha uma relação íntima. homenagem a um escritor que influen- de obras único e forte. Em Os Leões de
ciou tão intensamente o género? Al-Rassan tem um grande fascínio pelo
A te
An tess de mai a s, obrrig
igad
ado por esta entre--
ad canto do cisne da presença dos Mouros
vist
vista.
a É uum
a. mp prraz
azer
er tter
er a oportunidade em Portugal e Espanha. Em A Song for
Sandre era o antigo Duque de pararti
tilh
tilh
har alg
lgum
umas
um as reflexões com os Arbonne, é a cruzada albigense na Pro-
de Astibar e um feiticeiro. O meus leito ores.
rees. vença Medieval que captou a sua imagi-
seu filho foi capturado pelos Fionavar não foi tanto uma homena- nação. Em Tigana, inspirou-se na Itália
Barbadianos e torturado. Alia-se gem como uma tentativa de regressar às Medieval. Também Constantinopla e
à demanda de Alessan de modo mesmas raízes, à capacidade de moldar China foram objectos de estudo em ro-
a obter vingança pelos actos uma fantasia. Na altura, a maioria dos mances recentes. A fantasia permite-lhe
cometidos contra a sua família. escritores de fantasia que conhecia es- maior liberdade em explorar os princi-
tavam a afastar-se da dimensão épica pais temas do livro?
em direção a uma obra minimalista, Suponho que hoje em dia me sinta mais
Um jovem bardo com uma deixando os grandes épicos para escri- confortável com o termo “Fantasia His-
memória excepcional e talento tores que imitavam cinicamente Tolkien tórica”, pois as pessoas gostam de rótu-
para música, é testemunha de como forma de obter sucesso comer- los e categorias. Tenho imensas razões
uma conspiração que o faz cial. Não era o meu desejo que um gé- por trabalhar com o que um crítico cha-
conhecer um grupo secreto de nero tão forte em mito, lenda, folclore ma de “história com um pendor para o
rebeldes, liderado pelo príncipe acabasse dessa forma. Fionavar foi um fantástico” e escrevi ensaios e discursos
desafio que impus a mim próprio, uti- sobre isso (leitores que saibam ler inglês

38 /// BANG! BANG! /// 39


p de
po derãr o en
rã enco
cont
n ra
ntrarr al
algu
guuns na sesecç
cção
cç ão
o do
o do pa pass
ssad
ssado
ad o is
isso
so p
pod
odee ar
od arru
ruin
ruinar
inar-n
ar-n
-nos
nos
os,, minh
mi nhas
nh ass per
ersoso
ona
n ge
g ns
n secunundádári
dáriiaass, qu
quero
o
“WWor ords
ds”” ded w www
ww w.b
.bri
righ
rightw
gh twea
tw eavi
eavin
vi ngs.co
ngs.
ng com
co m. s n
se nos
os lem
embr
brar
br a mo
ar moss de
d ma
masi
siad
siado
ad o po
pouc
uco
uco, sabe
saberr ma
be mais is ssob
obre
ob re ela
lass à me
m dida que
Na A Amém ri
mé rica
caa Lat
atin
ina,
a, com uma ttra radi
diçã
di çãão arru
ar ruuín
ína-
a-no
noss à me
mesmsma.
a. surg
su rgem
rg em,, po
em porr is
isso
so tten
en
nto
to dar
ar-l
-lhe
h s al
he algu
g ma
gu
rica
ri ca em re realalis
ismo
mo m mágágic
ico,
o, pen
enso
so que p offun
pr undidiida
d ded.
comp
co mpre
mp reen
ende
en dem m me
melh lhor
or com
o o es este
tess lili- Sei que já se referiu à Primavera de
geir
ge irros des
esvivios
os da re
real
alid
idad
adee po
podedemm na Praga [tentativa de liberalização da A riqueza de Tigana reside não só nas
verd
ve rdadadee ilium
minarar ain
inda
da maiis o nosso Checoslováquia do domínio da União personagens fascinantes e enredo mas
munddo e Hi H stóriaia. Al
A ém m dissos , a fa
fant
ntta-a Soviética em 1968 que terminou nesse também nos detalhes de cada região
siia pe
permr ite--me usaar um m maior núm mero o mesmo ano com a invasão de Praga e cultura. Como integra a pesquisa na
de ferramentas paraa sedu duzi
du z r o leitor
orr
or! por tanques soviéticos] como um dos sua escrita? Quando está a ler um livro
acontecimentos históricos que inspirou de História, reconhece imediatamente
Verifiquei no seu site a bibliografia que Tigana. O povo de Tigana sofre o mes- os elementos que irá assimilar na sua
consultou para a pesquisa de Tigana, e a mo tipo de subjugação política e tirania. obra?
maioria dos livros centram-se na Itália Após várias décadas, a tirania política e É uma boa pergunta. A resposta curta
Renascentista ou na Idade Média. O financeira continuam a ser um tema vi- é nã
não
o, p
pois à medida que leio e pesqui-
que o atrai tanto no passado da Europa tal em todo o mundo. Vinte e três anos soo são ass co
co
coisas pequenas inesperadas
e o que o cativa tanto para o melhor depois da sua primeira publicação, pre- que muitas vezes apanham o meu
e pior da ascensão e declínio de Impé- via que os temas de Tigana reflectissem olhar, mas também acontece fazer uma
rios? tão profundamente o estado presente nota e acaba por nunca entrar no livro.
Como provavelmente deve saber, os do nosso mundo? Também pode acontecer outras coisas elaboração de uma capa fundo seria melhor esbatido ou com
meus dois últimos romances explo-
raram a História chinesa, nos séculos
VIII e XII, por isso não estou de ma-
neira nenhuma “casado” com a Euro-
Não tenho tendência a pensar nisso em
termos de “previsões”, sendo a minha
perspectiva a de um historiador. Ti
T gana
foi escrito como uma fantasia em parte
irromperem das minhas no

é uma das razões porque não


otas enquan-
to o livro está a tomar forma. Esssa
o posso
simplesmente empregar investigado-
A obedece quase sempre ao
mesmo processo. Leitura
da sinopse do livro, pesquisa das
mais destaque? A paleta de cores da
capa em geral deveria ganhar mais vida?
E a cidade deveria distanciar-se um
capas estrangeiras já existentes (caso bocado mais da imagem comprada de
pa. Mas admito que me sinto fascinado porque, ao ser escrito dessa forma, res: tenho que ser eu próprio a fazê-lo, já tenha sido editado) e criação de Florença? Muito ou pouco? A decisão
pela
pe la sua História desde os meus 18 sobre um país fictício, pode torna
nar-
nar-se
r-se mergulhar bem fundo, descobrir aquilo novas propostas de capa recorrendo foi não nos afastarmos demasiado da tipos de
a os
an os, e uma viagem que efectuei pela a história de muitos outros lugares em que se irá tornar parte do meu livro. O a imagens compradas em bancos de imagem italiana – o público teria de torres, umas
Euuroropa
pa nesessa altura. Dou-lhe razão diferentes tempos. Eu adoro este pa- livro muda em mim enquuan anto
to o moldo. imagens, que geralmente são editadas reconhecer Itália ali – mas acrescentar com mais destaque,
quan
qu anndo
d aponta que muitos dos meus radoxo: o cenário de fantasia faz com e manipuladas digitalmente. A selecção pormenores outras com menos, onde foram
liivr
vros
oss ococorrem em períodos de mudan- que leitores do mundo inteiro me per- No que se encontra a trabalhar de final é sempre feita tendo como que o mudados os pormenores e perspectivas
ça pololít
í ic
íti a, religiosa ou militar. A tensão guntem, ao lon ngo dos anos, “escreveu momento? Quais são os seus futuros objectivo a adequação mais próxima tornariam das imagens originais para dar o tal
qquue essa traransição causa às personagens sobre nós?” planos de publicação? possível ao género literário em que o ficcional toque medieval. Depois da personagem
originna umum grande impacto. Term
Te rmin
rm inei
inei aagogora
go r a tourr parra o me
meu úl
meu últi
t- livro se enquadra e ao público alvo que – as várias colocada à frente, esta estaria rodeada
É conhecido por criar algumas perso- mo liv liv
ivro
ro Rive
Riveer off Stars,
Ri s por isso agora
ra se pretende atingir. torres que de torres. As cores da capa foram
Em Tigana, a magia desempenha nagens masculinas e femininas muito iniciei a fa fase
s de ler e pensar (e praggueue-- Tigana – A Lâmina na Almaa (Livro Tigana sendo testadas ao mesmo tempo que
um papel principal na eliminação da fortes e complexas: Alessan, Jehane, jar!) so obr
bree qquuala ser
e á o tema do meu I) é um romance de fantasia escrito apresenta. as torres foram sendo construídas e
identidade e memória. O legado dos Dianora, Ammar ibn Khairan, só para prróxóxim
imo
im o lilivvro.
r Preciso sempre de um por Guy Gavriel Kay onde a história O passo apuradas.
Tiganenses e o caminho que eles têm nomear alguns. Até mesmo os seus vi- po ouc
ucoo de tempo antes de começaar a se desenrola principalmente numa seguinte O design de uma capa é um processo
que percorrer lembrou-me do livro de lões afastam-se dos clichés habituais. O esscrev
crev
everer,, em
er e parte porque não qu q er
eo terra ficcional que lembra a Itália foi então a sempre bastante “maleável”. Quando
Amin Maalouf As Identidades Assassinas. feiteiceiro Brandin de Ygrath é o opres- repe
re peti
t r os temas e o estilo do últim
ti im
mo medieval. O objectivo foi então montagem achamos que temos um pormenor
A identidade conduz sempre a loucura sor de Tigana, mas também vai muito lilivr
v o. recriar esse mundo dando, de algum de vários fechado e tratado, passamos à frente
e violência? para além disso. Pode partilhar connos- modo, destaque às figuras masculinas
N o, ccer
Nã erta
tam
ment ntee qu
quee nãnão.o. Mas questões co alguns segredos sobre o processo de Eu adoro este da história – músicos, rebeldes e
dee ide
dent
n id
nt idad
a e e a su
ad suaa su
s presessão ou per- criação destas personagens? conspiradores que planeavam derrubar
da são exttreemame
da mente impo port
poort
rtan
ante
an ttees ao o Não jujulgo que haaja segredos. Sup
upon
onho
on h
ho paradoxo: o cenário
feiticeiros e libertar a sua pátria
l ng
lo ngo o ddaa H
Histótóri
ória
ia. Tir
Tiriran
anos
an os e ccon
onqu
on quis
qu issta
ta- q e seja tudo uma qu
qu q estão de tem
empopo,,
po de fantasia faz com subjugada e amaldiçoada, Tigana. O
do ore
res se
s mpre soubeeraam qu quee a ma
mane neir
ne iraa
ir paciência e aversão a uma simplififica
fica- primeiro desafio foi então encontrar
m is certa de reduuzi
ma zirr re
r si
sist
stên
ênci
ên cia é ção excessiva das coisas. Como leieito
ei torr,
to que leitores do mundo um guerreiro que ocuparia o centro
dimi
di m nu
mi n irr a ide
d nttiddadde da d naç ação
ão o ocupa- aprecio livros que me ofereçam per-
d . A ep
da pígígra
rafe
f dde Ti
fe Tiga
gana
naa da au
a totoririia do sonagens complexas e maduras, e não
inteiro me perguntem, do livro e que os representaria, com o
cenário medieval por trás, em segundo
m ra
ma r vilhhosso popoete a grreg
et e o GeG orge Sef efe-
e heróis ou vilões óbvios. Por isso tento ao longo dos anos, plano. A primeira proposta acabou
riis é pr
precissamamene tet sob
obre
ob re aqu
quililo
o qu
q e me escrever os livros que gostaria de ler. por não resultar, dado que a figura
pergunta: see n nos
o lemb
os em
mbr brarmo
brar m s de
mo d ma m sia- Também sinto muita curiosidade pelas “escreveu sobre nós?”
era demasiado urbana, com uma
roupagem demasiado actual para o que
se pretendia. Seguiu-se uma pesquisa
pelo guerreiro ideal, onde todos
os pormenores contavam – roupa,
adereços e pose.
Escolhido o guerreiro, o foco
virou-se para outros pormenores
importantes: o cenário em segundo
plano e o tom geral da capa. Seria o
tom cinzento-azulado o melhor? O
Escolha do guerreiro

40 /// BANG! BANG! /// 41


N o Livro 2 de Tigana, o
editor pretendia dar realce
às personagens femininas
da história, tal como acontece no
livro. O conceito seria o mesmo: uma
mulher no centro com um fundo mais
esbatido por trás. Neste livro, o desafio
da figura principal foi ainda maior. A
imagem que pretendíamos era a de
uma bela mulher com um ar metade
Escolha das cores Escolha das cores e cenário de fundo (a modelo ainda não é a final)
odalisca, metade guerreira, inserida no

E
tal contexto medieval ficcional, com
para outra coisa, para no dia seguinte olharmos de novo e aperfeiçoarmos algo spero que tenham gostado de acompanhar o processo de elaboração de
roupagens muito específicas. Algo que
que achávamos estar já terminado. Tiganaa e que este texto vos ajude a compreender melhor o processo de
foi particularmente difícil de encontrar.
Pormenores da cidade original foram então apagados, janelas transformadas, criação deste tipo de projectos. Desejo-vos votos de boas leituras e que
As imagens mais encontradas foram
perspectivas mudadas. Um “corte e costura” digital. Finalmente com a cidade este fantástico romance de Kay vos surpreenda e delicie ao serem transportados
bailarinas (especialmente dançarinas
construída, o herói escolhido e com algumas paletas de cor apresentadas, a para os mundos soberbos típicos da sua escrita.
do ventre) e embora algumas
decisão pendeu para um tom geral mais “terra” bem ao estilo medieval. Decisão Bancos de Imagem utilizados: Arcangel e Shutterstock.
poses fossem adequadas, as roupas
essa que foi validada pelo editor e também pela opinião da equipa da SdE (é
eram despropositadas para o que
comum, quando estamos indecisos em relação a capas de um livro, mostrá-
pretendíamos: muito brilhantes,
las e fazer uma votação pela equipa toda, não só os designers mas todos:
garridas e demasiado chamativas.
administrativos, assistentes editoriais, etc.)
No entanto, com a ideia de mudar
alguns elementos na mulher, começou
a experiência de colocar a primeira
com várias paisagens em fundo. A
ideia era ter o aspecto de ilha ou então
manter a paisagem do livro anterior,
se funcionasse. As experiências de cor
vvieram ao mesmo tempo naturalmente.
A paisagem e a cor ficaram então
decididos: seria o fundo com o mar
e rochas, e a cor seria azulada, com Modelo definida e alteração de cor e vestuário
elementos de nevoeiro e mistério
à mistura. No entanto, havia ainda
dúvidas quanto à mulher escolhida. A
roupa era muito excessiva e não parecia
enquadrar-se no mundo criado por
Kay. Por isso a solução foi escolher
a mesma manequim mas com outra
pose e literalmente mudar-lhe a roupa
Ana Santos nasceu em Lisboa,
e adereços: apagar todo o excesso de a 30 de Setembro de 1976.
brilhantes, mudar a cor do vestido e Licenciada em Arquitetura do Design
adicionar todo o tipo de pormenores pela FAUTL, iniciou o seu percurso
Alteração da paisagem (torres), cor final e encaixe do guerreiro que a juntasse ao look do héroi do profissional em Milão no atelier
primeiro livro. O processo foi o
seguinte:
Esseblu de Susana Vallebona. Já em
Portugal fez parte da equipa FPGB
Design e posteriormente da Editora
Pergaminho. Trabalha desde 2008 na
Editora Saída de Emergência.

Pesquisa da figura feminina da capa.

42 /// BANG! NG! //


BANG
BA /// 43
43
“fificçã
ç o es e pe
pecuulativa”
la (com
o prer ferênccia parra
o in
ingl
gllês
glêês – sp s ecul
ulat
ulattiivve fifictccttioon – quee p
perrmimite mante teer as
m sm
me mas ini
niciiai
aiss do género – em e ingglês, sc
scieienc
nce fifictctction).
n Ora ra, fic-
c
ção
ção esspe
p culalativa par arec
ecce ter sido
ece o um teerm mo que caaiu no o goto o dde la
larggass
f anjaas de
fr d ade deptp oss da lilteratura de gé géne
neero
ro,
o, como
m demonstra o aamp mplo
mp l leqque
u
dee pub
ubliicaaçõ
ç ess e autoro es que u nel elle ssee rrevvêem. Mas é um termo o út
ú il? E seer-nono
os-
s-áá re
r al-
m ntte lííci
me cito
t apresentá
to táá-l
- o co
como
mo o altlterrna n tiva a “SF-Not o ”,, man
ot nte
t nddo o meesm s o sisign
i nifi
i caddo?
o

iss ccoomo N. N E. Lilly ly, numa tentatititiva dee de


ly d fininiçã
ç o qu
çã q e é típi pica
caa ddee quem reccorre ao te t rm mo, o ide denttifi ific
fica a ficçção esp s ece ul
ulativ
l ivva:
“fificç
cççããoo especcullativa (… …) é um termo que tem em sido uttili iz izad
ado pa
ad p ra des e cr
crev
e er colectivav mente obbrass no
va n s gég neeroross da
d Ficição Ciienntítífificca ca, Fant nttas
asia
ia e
Hoorr r orr”. Consccie ient
n e dee que uma tal al defi finiçição
ãoo é tototal
a me
m nt nte vváácua pela preeex e istência ddos oss gén ner e os
o que u preetendde een ngl
g ob bar,
e nunuma maa ten ntat tiiva de cllarrifi ficar a definiç içção
ã , tu turvrva ai
aind
ndaa ma
nd maiis
is as ágáguau s acresccen e tatando: o ““A A fificç
c ão
cç ã esppec e ul
ulat a iv
ativaa ab
a ororda
daa obras de fificcção
ão
qquue in
que i cllue
uem m We
Weiirdd Talelels, Ama m zing Sto tories e Ficicçã ç o Fa
çã Fantnttás
á tiica
c . Ta
Tam mbbém
m m pode in i clluiir outrros
o géner erros
o com mo Mi M stériio, Hiistór stórriaa Altlter
st lt rna
n tivaa e Ro-
manc
maancce HiHist stórricicoo.
o. Ficicçã
çãoo Es
çã E pecu culaatitvaa podde se
cu s r um ter ermo
mo queu des e crrev
eve co
conj
njunnta
nj t mentte obbra r s de
d ficçãçãoo cic en
e títfifica
ca, fa
ca f nttassiaa e horrro ror,
or, mass que u tam mbébémm
abbar
arcaa obrasbra que nãoo são
br ão ficcçã
ç o ciien
çã entífifica
caa, fa
fantassia ia e hor
o ror, mass que u também não peert r en
e ce
c m innteteiir
iram men
ente te a outro roos gé g ne
n ros”s”. E com omo o se issso
não fo
nã oss
s e o su sufi
ficiente t par
te ara de d mo monstrrar que qqueem asssiim de d fine não o sen en
ntete o mín íni
nimimo dee segur eggurrança (neem tran ansm mite o
mííninimo o de co onh hec
e im i en nto
t ) naaqu quilo o que quue diiz,z ain inda
daa aacr
ccrresce
centta um m lleqque de títulos tí s e au auto
tore
tore
to re (m
res ( uiito t s de delees cocomm ob obrara
díísp
spaar e inc ncclu
n luív
ível
ívell noso ggén énerros
én os preeexis exi teentess) nu numama sallga g lh hada quee naada iluust s ra e pouuco co adi diiana tata Ta
ta: T rzzana , Televi visionn’ss
Earlrlry Eddittio
Ea ion, coonttoso de Si S r ArArth thhur Con onan Doyle l (…) Strang ngger on a St Stra
rang
ra ngee Laand
ng nd, ThThee Tw Twilililig
i htt Zon
ig onee, Th
Thee Ca
C ll ooff Ct
Cthu-
Cth
lhuu de Lo
lh ove
vecr
c afaftt e A Me M ta tam morfrfrfos
osse de Kafk
Kaf a, con nclluiind
n o quue tuudo aquuillo qu quee sisimuimu
multltl anneae mentte é e nãão é ficção
cien
cien ntítífi
fica
fi caa, fa fant
ntasia
nta i , e/ou o horror, é ficçã ção es
çã espe
p cu
pe culal tiva.
la i
L llly não
Li o exexpl
p ica po
pl p r qu quee razão ã seri riia “ficçã ção espe
çã peecula laatit va
v ” um m termo
er mel elhor
paaraa classifi
p la ifificar eesse tipo de obras do que o “sllip i stream m” pr prop
propopos o to op por
orr
Brucce Stter erling
n , e quee também jaz ago g ra num uma ca campm a ao laddo
mp
de “SF S -Not o ”. Provavelmente te porque nunc ncaa ouuvviiu fa
nc f laar
delee. Ma
M s umaa br b evve ex excu
xcu
curs rssão
rsão op pel
e a histór
el ó ia do
ór
termo pe
te p rmititite-e--no
nos co ompm re reen nded r de d

onnde nasce a confu fuusã


s o e,,
simu
multlaneamente,
mu e por
e, o queu ra-
zão pe p nso que é um termo o que
servee apenas a quem m não apreciaa a
F cção Cieentífica.
Fi a
E bora não ten
Em nha sido o prim im
imei
meie ro a
uttililiz
i ar a express
iz ssão, Robert A. Heinlein in
á cerca
cee a ddee uma déc éccad
écad
ada,, num u breve ve ens
ve n aiio pu
p bbllicaddo de Lititer
iter
e atururaa – as
ur assi
s m,
m comm cap pitital
a iz
alizaçção ini
nicial – negan
ni ando
an doo-lhes f i o pr
fo prim
meie ro
o a pro opô
pô-laa como o uma caate-
na New York Rev e iew
w off Sciiennccee Fiicction,
titi AnA dr
dreew
ew Weiinen r, à q alqu
qu quuer esp pecificidadde geg nééricaa. goori r a gerall naa áre
r a dad ficção ci científicaa. No
N seu
falta dee um accró óni
n mo o mais sonante,, pro opu
punhn a o teerm
rmo O termo de And nddre
n rew
w Weinin
ner
e não chego ou a co olh
lher
e a simpati
s ta artigo “How too W Wririte
t Spepeculative Fiction”, publicado
o
“SF-
F-No
F- Not”t par
ara caractter e izzarr aquqquuuele tipo de fificç
c ão
cçã cientí- d niin
de ngu
ngu
g ém e deessapareceu nass vasstitidõ dõ
õeess infinitittas do ce
cemi
m tééri
rio em 194 9 8 num Si S mpós ó io editado o por Lloyd Arthuur
fica que era liddo po or pe
p sssoao s quue nãão gosttam m de ficççãoão das ideieiiass inv
nviá
iávveeis, mas o fe
fenó
n meno que ele preete t nd
n ia descrever Eschbach, He H ini le
lein
i avançça o termo como sendo
in o
científica. Weeininerr peen
nsavava, natuura
va r lmlmente, nos cac sos de perman aan
necee ac actualal e, qu
al quan
ando
and muito, tende mesmo a agravar-see. equivalente àq à uiilo
l que normalmente definim im
mos
o comommo
leittor
o es que liam textto oss do género o com o o Ninety Eigghhtty Fo F urr ou A ddiifereenç
nça é quue agor o a aqueles qu
or q e lêem (ou essccrevem) ficçãão Ficção oCCientífica HaH rd, d e que é aquelaa que con on
nsi
s deero cor
o re
res-
res-
s-
Bravve Ne
New Worlldd, a séériie Foundationn ou Son of Man, como o ob
o ra
rs cientíífica para quem não gos o taa de ficçção científica, cha haamam-m lhe ponder à verdade deeir
iraa Ficção Científica. Descreven ndoo os vá
vári
ári
rios
rio
os

44 //// BANG!
G A //// 45
BBANG!
BA
tipos de narrativa de FC (ou nor- sub-géneros menos próprios como a space-opera, a as gadget stories,s
malmente encarados como FC), e outros à data ainda inexistentes como os vários punks,s com
e após menosprezar aquelas his- especial destaque para o steampunk.
tórias que de FC têm apenas os Heinlein voltaria ao tema em 1959, numa conferência intitula-
adereços – histórias passadas no da Science Fiction: It’s Nature, Faults and Virtues,s cujo texto foi inclu-
futuro ou noutros planetas, que ído no volume The Science Fiction Novel: Imagination and Social Criti-
poderiam passar-se de igual modo cism, compilado por Basil Davenport. Nesse texto, entre outras,
na Terra no século XIX – Hein- Heinlein acrescenta uma precisão ao que antes escrevera e que
lein refere-se às histórias de ficção nos permite compreender como é possível que o termo por ele
científica especulativa como sendo proposto tenha começado a deslizar pela encosta escorregadia
aquelas em que “a ciência dominante da obscuridade descritiva. Apenas onze anos depois de ter intro- históricas transplantadas para cenários fu--
e os factos estabelecidos são extrapolados duzido o termo, Heinlein serve-se dele, agora, explicitamente, turistas ou transplanetários. Assim sendo,,
de forma a produzir uma situação nova, como permutável com Ficção Científica: “O termo ‘ficção científica’ a Ficção Especulativa seria constituída porr
uma nova moldura para a acção huma- já faz parte da linguagem (…) e vou usá-lo… embora pessoalmente prefira aquelas “histórias cujo objectivo é explorar, desco--
na. Em resultado dessa situação nova, o termo ‘ficção especulativa’ por ser mais descritivo. Servir-me-ei de ambos brir, aprender, através da projecção, extrapolação,,
surgem novos problemas humanos, e a os termos de forma intercambiável, um sendo o uso corrente, o outro porque analogia, formulação de hipóteses e experimenta--
história a ser contada é sobre a forma de me ajuda a pensar – mas com o mesmo referente em ambos os casos” s (su- ção-no-papel, algo sobre a natureza do universo,,
lidar com esses novos problemas”. s Um blinhado meu). do homem, da ‘realidade’. (…) Sirvo-me aqui doo
dos elementos que Heinlein indica O termo Ficção Especulativa é de facto mais descritivo quando termo ‘ficção especulativa’ especificamente para des--
como essenciais para a verdadeira é o utilizado por Heinlein, sobretudo pela presença ali do verbo crever o modo que faz uso do tradicional ‘métodoo
ficção científica (especulativa), é “extrapolar”, a partir dos factos e das leis científicas conhecidas, científico’ (observação, hipótese, experimentação))
que não sejam violados quaisquer e quando utilizado para circunscrever um conjunto de obras de para examinar uma qualquer postulada aproxi--
dos factos científicos conhecidos, FC de conteúdo específico da paleta mais ampla de uma FC mação à realidade, através da introdução de um m
impondo-se que, quando o autor latu sensuu (na verdade, penso que Ficção Extrapolativa seria um conjunto de mudanças – imaginárias ou inventivass feministas (e os mais ri ridículos
recorra a uma teoria que contra- identificador bastante melhor do que Ficção Especulativa, pois – no pano de fundo dos ‘factos conhecidos’, criandoo women studies), s aplicaç a ão das te-
rie as teorias dominantes, esta seja em termos gerais, toda a ficção é, por definição, especulativa). 1 um ambiente no qual as respostas e percepções dass ses marxistas e freudiian a as à crí ríítit-
plausível e deva incluir e explicar personagens revelarão algo sobre as invenções, sobree ca literária, etc… Efectivam men ntete,,
os factos conhecidos tão satisfa- as personagens ou sobre ambas.” Merril escreve: ““A A liltera rattura
ra tu de
toriamente quanto a teoria que meados do século XX X apapen
ennas
a pode ter
pretende substituir. Leitores fami- significado na medida em que per erceba, e
er
liares com o processo científico, einlein utiliza assim de forma indistinta FC/FE, para identi- Que mudou, então, no sentido se inter-ralacione, com
com a real
co alliddad a e estru-
reconhecerão aqui uma exigência ficar o género literário que parte do mundo real e dos factos turante da nossa cul ultu
ultuura: a revvolução no
comum a qualquer teoria cientí-
do termo, de Heinlein para Mer- pensamento científifico quue su
s bstitu tuuiu a me- e
científicos estabelecidos para extrapolar um mundo distinto
fica, e os leitores mais cientes da do nosso, imaginário-mas-possível; ao fazê-lo, reconhece tam- ril? Ambos consideram os factos cânica pela dinâmica, a clas clas
assisisififificação pe p la
crítica literária, reconhecerão aqui bém a dificuldade em obter acordo sobre o que são os “factos integração, o positivismo pela relativid iddade,
a aplicação do método científico à
científicos como ponto de partida as certezas pela prorooba
babililida
daade
de est statística, o
conhecidos” e o “mundo real”, e é essa a precisão (e diria quase,
literatura que Judith Merrill, como a presciência) que se me afigura mais relevante. Para Heinlein, e limite essencial para o mundo dualismo pela paridade”. e
veremos, postulava como essen- ambos os termos referem-se ao “universo factual da nossa experiên-
cial à ficção especulativa.
imaginado (imaginário-mas-pos-
cia, no sentido com que qualquer pessoa esperaria que tais palavras fossem
Uma leitura atenta do texto de utilizadas por membros educados e esclarecidos (“enlightened”) da cultura sível), e as consequências desse
Heinlein não deixa dúvidas de que ocidental”
l do nosso tempo.
esta ficção especulativa por ele
mundo alterado sobre as perso-
Estamos, como se vê, perante uma definição clara e concisa
proposta é apenas um sub-género de Ficção Especulativa como sendo um género que recorre aos nagens como a essência da his- confusão de Merril é patente mesmo a
daquilo que poderemos conside- factos e ao método da Ciência para extrapolar um mundo dife- um leigo na matéria, reflectindo de formaa
rar uma Ficção Científica mais
tória. Mais, ambos coincidem
rente do nosso, imaginário mas possível, do qual resultam novos quase exaustiva o clima cultural da década daa
ampla, correspondendo aquela problemas, os quais são propostos e resolvidos. Uma definição na experimentação virtual como de sessenta nos Estados Unidos da Amér éric
érica,
a e
a,
à FC Hard, e incluindo esta os muito distante da salgalhada incoerente e logicamente inconsis- particularmente a política cultural dos departaam
amen n-
cerne da experiência literária da
tente de Lilly. tos de Letras das várias Universidades, onde ao lon-
Para compreender como passamos de um estado ao outro, é Ficção Científica. O que distin- go da década seguinte se viriam a refugiar oss ná náuf
uuffra
rago
goss
go
importante atentar na recuperação do termo, em meados dos da grande experiência falhada dos sincréticos anos os 60. A
gue, então, a definição de ambos?
anos sessenta, por Judith Merril, uma das mais influentes e rele- esquerda académica, genuinamente mobilizadda pe p la Gueu rraa
vantes editoras de ficção científica da New Wavee americana. Es- do Vietname, pela emergência de considerações ambienentatais
is e
A diferença é subtil mas essencial, e resi--
crevendo na revista Extrapolationn nºs 7 e 8 (Maio e Dezembro de pela justificada revolta pela oposição ao fim do segregacion nismo
ismo
de precisamente na definição de “mundo o
1966), num texto cujo título deixava já antever o cerne da ques- real” e de “factos científicos” – em suma,, racial, uma esquerda que pensou mudar o mund ndo com os pro
nd r testtos
tão e do seu desenvolvimento futuro – What do you Mean: Science? na definição de Ciência – a que amboss anti-bélicos, a postura anti-capitalista e anti-empresarial, e com as demonstra-
Fiction?? – Merril avança uma definição de Ficção Especulativa deitam mão. Embora os dois autores en-- ções de Paris de Maio de 68, viu-se atirada contra a realidade da Invasão de Pra Praga
gaa
bastante próxima da de Heinlein e, se calhar, ainda mais descri- carem a FC como a forma privilegiada dee pela União Soviética, pela brutalidade da Reevo v lução Cultural Maoísta, pelos eventos
tiva do que a do primeiro Grand Master da FC. Tal como ele, literatura para a Era da Ciência e da Técni- em torno da Convenção Democrata de Chicago o, e pelo encerramento sanggreent n o da
Merril começa por encarar a Ficção Especulativa como sen- ca, Merril tem da Ciência uma perspectiva década do flower power,r do LSD e de Woodstock. Perdi
ca, dida a bat atta ha no plano do
atal d real,
do uma de três categorias da Ficção Científica, a par das ‘Te- pós-moderna, quase me atreveria a dizer impunha-se definir essa realidade como arbitrária, como pr
pós-moderna, produto de uma coe o rciva con-
aching Stories’ e das ‘Preaching Stories’ – cujo conceito não coonstrutivista, em tudo semelhante às vá- venção colectiva da qual urge libertar-se, como indefinííve
onstrutivista, v l por uma única muundividên n-
importa aqui aprofundar – e tal como Heinlein, Merril rias
as pseudo-ciências que emergiram dos cia. A falência das suas ideias subjectivas podia apenas demonstrar que era a realidade
exclui a aventura espacial e os westerns e aventuras anoss 60: estudos (multi)culturais, estudos que estava enganada.

466 //
/ / BANNG!
G BANG! /// 47
Merril escrevia sob a declarada influên- si, era pouco relevante para a sua escrita, a ela nos permitiu descobrir como balizas
cia de Reginald Bretnor, particularmente não ser como espelho da loucura humana da imaginação no particular jogo de extra-
do ensaio “The Future of Science Fiction”, que gerara um mundo caótico e desestru- polação literária. São esses que preferem o
incluído no volume Modern Science Fiction, turado. A Ciência não gera conhecimen- termo Ficção Especulativa ao termo Fic-
e, tal como ele, defendia a emergência no to, mas age apenas como criadora das ção Científica.
curto prazo de uma literatura de ficção paisagens apocalípticas onde o Homem A Ficção Científica é o único género
científica que, ainda que artisticamente se pode explorar a si mesmo; onde o Ho- que assume a poesia da descoberta e do
em dívida para com a corrente literária mem pode explorar o espaço interior. conhecimento do Universo em todas as
da não-ficção científica (non-science fiction), n suas manifestações. Usualmente despre-
seria uma forma de literatura integrada, zada por antepor os objectoss (gadgetss, naves
e única forma de expressão da cultura espaciais, monstros fantasistas) aos sujeitos,s
ocidental do século XX. Nas palavras da a FC sabe que sua é a voz de quem reco-
própria Judith Merril, essa ficção científi- ó que, tal como Merril reconhecia, a nhece a imanente beleza do universo indi-
ca, ainda inexistente, viria colmatar, pela Ciência é sem dúvida o mais impor- ferente e das suas frias equações.
sua especial valia literária, a lacuna de uma tante instrumento do conhecimento Num momento histórico em que a
tal forma de expressão na literatura con- humano, o elemento estruturante da nos- Ciência sofre o ataque de um relativismo
temporânea, mas, ao fazê-lo, “deixaria de sa cultura e o único meio de que dispo- cultural de consequências perigosas para a
ser ‘ficção científica’, e tornar-se-ia simples litera- mos para nos aproximar o mais possível nossa cultura e sociedade, é à FC, e não à
tura contemporânea”, a substituindo-se, assim, da verdade última das coisas. Recusan- FE, que cumpre o papel de dar voz àque-
à literatura normalmente denominada do-lhe as características de objectividade les que fazem o trabalho do conhecimen-
mainstream. e de instrumento de análise e estudo do to; aqueles que Auden dizia que os poetas
E sem dúvida que qualquer apreciador real, Merril abre as portas precisamente à deixavam sem voz:
da ficção científica, nesse ponto concreto, confusão de Lilly e à vacuidade do cor-
estaria de acordo com ela. Mas Merril es- rente entendimento de Ficção Especula-
crevia também num específico momento tiva. David Bowlin, editor da revista on-line “Unfortunately poetry cannot cele-
do desenvolvimento do género: no de- ShadowKeep (citado por Lilly), apresenta
albar da New Wavee Britânica, que ela via esta absurda definição: ““A Ficção Especula- brate them, because their deeds are
como um movimento ainda embrionário tiva é um mundo criado por escritores, onde tudo concerned with things, not persons,
mas já consciente, que se desenvolvia em pode acontecer. É um lugar que fica para lá da and are, therefore, speechless.”
torno da New Worldss de Michael Moor- realidade, um lugar que nunca poderia ser, ou po-
cock, e de Ballard, no campo da FC, e em deria ser, se as regras do Universo fossem apenas W.H. Auden, In The Dyer’s Hand,
torno de poetas como Dylan Thomas e um bocadinho diferentes”.s “Poet and the City” (1963)
Peter Redgrove, para dar origem a essa Quem lê Ficção Científica, sabe que
nova literatura, que deixaria para trás quer esta é, por excelência, a única literatura
a ‘normal’ ficção científica, quer a litera- capaz de dar voz ao progresso de uma Libélula não se chega por estradas. Não existem
tura mainstream. Mas Ballard, profeta da forma de saber que foi a única que permi- caminhos nem placas que lá conduzam. Libélula
New Wave,e escrevia sob a perspectiva de tiu alcançar os feitos (ainda que com ínsi- está em todos os sítios e a todos os momentos. Em
que a Civilização Ocidental vivia os seus tos defeitos) do moderno mundo e cul- esquinas, avenidas, ruelas. Em mares e desertos.
últimos dias, e assumia o sincretismo sur- tura ocidentais. Só quem é ignorante da Em tardes de sol, crepúsculos frios, noites amenas.
realista que o leva a antepor a sugestão Ciência, ou quem duvide da centralidade João Seixas autor e crítico literário, é uma das Uma cidade invisível nas nossas terras concretas. Uma cida-
sensorial ao racionalismo positivista, ou, do seu papel na criação de conhecimen- vozes mais activas na defesa da Ficção Científica de com a delicadeza robusta de um insecto.
em Portugal. Para além do exercício da advoca- Quem a penetra deve fazê-lo sem expectativas e sem
como chegou a escrever Brian Aldiss, a to humano e da descoberta da verdade, cia, escreve frequentemente sobre Ficção Científi-
ser “descuidado com o factual”. l A Ciência em pode abdicar das regras do Universo que roteiros. Não há forma de saber se Libélula lhe oferecerá
ca e Fantástico, tendo publicado artigos e ensaios
nas revistas Ler, Bang!, Paradoxo, Megalon, no cavernas, palácios, fossas ou ribeiros. A cada visita a cidade
Jornal Público e em diversos sites. Editou várias mostra-se igual e diversa. Talvez o forasteiro lhe encontre
antologias e, junto com Pedro Marques, fundou a os edifícios de ametista, as estradas de água, as florestas de
editora Livros de Areia. papoilas e corais. Talvez descubra apenas os bairros urba-
nos plenos de gente estranha e comum, de rostos desco-
nhecidos, mudados pouco a pouco até se parecerem afinal
Bibliografia sumária: HEINLEIN, Robert A. – “On the Writing LILLY, N. E. – “What is Speculative Fic-
com quem sempre conhecemos. Porque Libélula é mutável
of Speculative Fiction”, in ESHBACH, Lloyd tion?”, Green Tentacles, www.greententacles.com/
e se transforma com as histórias que lhe trazem e que por lá
CLUTE, John e NICHOLLS, Peter – The Arthur (Ed.), Of Worlds Beyond, Dobson Books, articles/5/26, 2002, acedido em 26 de Junho de deixam. Porque Libélula se transfigura a cada olhar e a cada
Encyclopedia of Science Fiction, St. Martin’s Press, Ltd, London, 1965 (originalmente publicado em 2013 dia novo se distende.
New York, 1995 1948) MERRIL, Judith – “What do you Mean: Libélula está cheia de mulheres inventadas e homens
DAWKINS, Richard – Unweaving the Rainbow: HEINLEIN, Robert A. – “Science Fiction: Science? Fiction?”, in CLARESON, Thomas ficcionados, e também daqueles que existiram e foram Inês Botelho nasceu em Vila Nova de Gaia em Agosto
Science, Delusion and the Appetite for Wonder, Hou- Its Nature, Faults and Virtues”, in DAVEN- D. (Ed.), SF: The Other Side of Realism – Essays on vertidos em palavra. A cidade é um mundo em perpétuo de 1986.
ghton Mifflin Company, New York, 1998 (so- PORT, Basil (Ed.), The Science Fiction Novel, Ad- Modern Fantasy and Science Fiction, Bowling Green movimento, mundano e extraordinário, feito de todas as Licenciada em Biologia, iniciou em 2009 um Mestrado
vent Publishers, Chicago, 1974 (originalmente University Popular Press, Bowling Green, Ohio, narrativas de todos os tempos, dos nossos contos, livros e em Estudo Anglo-Americanos. Completou o 8º grau
bretudo o capítulo 2, “Drawing Room of Dukes”,
poemas. de Piano e Formação Musical. É autora da trilogia
p.15-37) publicado em 1957) 1971 (ensaio original de 1966)
Quando se sai de Libélula, vem-se com ela nos passos. E de fantástico “O Ceptro de Aerzis”, composta por
GROSS, Paul R. & LEVITT, Norman – Hi- HOLTON, Gerald – Science and Anti-Science, SMITH, John Maynard – “Tinkering”, Lon-
assim se a leva a novos espaços. “A Filha dos Mundos” (2003), “A Senhora da Noite e
gher Superstition: The Academic Left and its Quarrels Harvard University Press, Cambridge, Massa- don Review of Books, September 1981, in Did das Brumas” (2004) e “A Rainha das Terras da Luz”
with Science, The Johns Hopkins University Press, chusetts, 1994 (2ª edição, sobretudo o capítulo 6, Darwin Get it Right? – Essays on Games, Sex and (2005). Publicou ainda os romances “Prelúdio” (2007)
Baltimore, 1998 “The Anti-Science Phenomenon”, p.145-189) Evolution, Penguin Books, London, 1993 e “O passado que seremos” (2010).

48 /// BANG! BANG! /// 49


seu ponto de vista. Se o sonho de todos os seres era a hipótese
de chegar em primeiro, existindo apenas um prémio o ser dis-
tinguido devia ser o segundo. Era este o único lugar indispensá-
vel a que o primeiro classificado não fosse o último. Poderiam
faltar o terceiro, o quarto, ou qualquer outro lugar a seguir, mas
desde que houvesse dois concorrentes continuaria a existir um
primeiro classificado, distinto do último.
Aquela ideia foi causa de burburinho na assembleia da orga-
nização. O planeta é governado por critérios rigorosos e rara-
mente as coisas são postas em causa. Foi por isso com alguma
surpresa que, após a votação prevista na constituição, a propos-
ta do ancião foi aprovada.
Nesse ano histórico, ao primeiro classificado na prova foi
atribuído o número Dois, enquanto o segundo ficou com o
número Um e o prémio, que era uma medalha.
Espero que ainda me estejas a seguir pai. homem com o saco dade, a levantar um punho que
No ano seguinte, perante a assembleia da organização da grande saiu pela porta segurava um telemóvel com len-
corrida anual dos números, alguns anciãos irreverentes junta- da joalharia a correr e te fotográfica e a fotografar-me.
ram-se e fizeram uma proposta ainda mais arrojada. Tal como deparou-se com uma Depois fugiu, penso, pois nin-
inha sido uma decisão difícil. o primeiro classificado seria o último sem o segundo, o segun- rua cheia de peões. Alguns caminhavam apressados, guém o tornou a ver, muito menos eu que perdi os sentidos.
É verdade que raramente me dirigia palavra, que vi- do seria o último sem o terceiro, o terceiro seria o último se outros tinham parado, atraídos pelo alarme que tocava na loja. Quando a polícia finalmente chegou, fui visto por um mé-
via no seu próprio mundo, e que a nossa relação era não houvesse o quarto e assim por diante. Afinal, o que dita- O homem do saco não hesitou e desviou-se de um homem dico que declarou que eu não tinha nada a não ser nódoas
para ele uma questão meramente matemática. Mas um va a importância de um lugar não eram só os que chegavam grande, de uma mulher que se encolheu, de um casal jovem: negras. Prestei todas as informações de que me lembrava,
filho é um filho, e este era o único que eu tinha. antes, mas também os que chegavam depois. Entusiasmados todos eles parados, perplexos ou a desviarem-se à pressa, com descrevendo o rosto que entrevira da cara que agora sabia ser
Para os médicos, não havia nada a fazer por aqui. Ninguém pela possibilidade de todos os concorrentes (com exceção do medo. Eu fui o único que dei um passo para frente – ainda falsa. Disse-me um agente que o mais provável era que aquele
seria capaz
p de lhe dar uma consciência da sua p própria
p identi- primeiro) terem direito ao prémio e ao número Um na prova, a não entendo porque o fiz – do homem do saco, que era um rosto fosse impresso digitalmente através de um sistema de
dade. O meu filho era sobredotado, mas não sabia quem era. maioria dos anciãos aprovou esta medida. homem corpulento com um rosto asiático delgado. prototipagem, e aplicado depois sobre o rosto verdadeiro.
Acabei por reconhecer que não havia outra hipótese. Fica- A corrida desse ano foi uma grande festa, mas trouxe algu- Ele chocou contra mim, e eu senti o queixo macio dele con- Graças à minha descrição, detiveram vários suspeitos, que
ria anos sem saber dele. Hoje não me arrependo. Ele não vol- mas surpresas. Quando a organização fez as contas, deparou-se tra o meu nariz, os ombros e as coxas duros contra o meu foram identificados e colocados em linha, para que eu apon-
tou, mas encontro consolo na mensagem que me fez chegar. com uma falta generalizada de produtos no planeta. A popula- corpo franzino. O homem deixou cair o saco ao chão, que, tasse se algum deles era o assaltante da joalharia.
ção deste planeta não é especialista no fabrico de medalhas, e o tilintando, rebolou pelo chão e derramou um fio de anéis, cor- Na altura, lembro-me, pensei como devia ser humilhante
ai, escrevo-te do planeta dos números. Aqui, tudo o que tempo gasto nesta atividade fez falta a alguns seres para o cum-
“P acontece tem uma certa correspondência com a vida na
Terra. Os seres deste planeta evoluíram de modo semelhante à
primento de deveres mais importantes. Além disso, houve um
contratempo muito sério na cerimónia de entrega dos prémios:
rentes de ouro, tiaras e pedras preciosas pelo chão de cimento.
O rosto asiático contorceu-se num esgar de fúria e o ho-
estar num corredor estreito, sob uma luz forte, a ser exami-
nado por desconhecidos invisíveis. Agora posso confirmar
mem agarrou-me pelos ombros, com toda a facilidade, e em- essa impressão, pois estou eu próprio numa dessas linhas de
espécie humana. Existem no entanto algumas diferenças. sempre que se ouvia chamar “número Um”, os seres acorriam purrou-me para o lado. Mais por instinto do que por coragem, identificação.
Todos os anos, no planeta dos números, organiza-se uma todos em simultâneo atropelando-se uns aos outros. estiquei os braços e agarrei-me ao pescoço e à cara dele para É que alguns dias depois, os jornais, a televisão e a internet
corrida especial. É um momento importante para a vida dos E a partir daqui, tudo voltou a ser como dantes na organiza- não cair. Senti-lhe o pescoço musculado com uma das mãos, estavam cheios de fotografias de um grande assalto a uma
seres, em que se determina o nome com que vão iniciar a vida ção da prova. e com os dedos da outra palpei uma superfície semirrígida e joalharia numa cidade próxima.
adulta. O número Um é atribuído ao primeiro ser a cortar a Algo mudou, no entanto, no processo de atribuição de no- esponjosa no rosto, que se deformou e, para meu espanto, O assaltante tinha sido captado pelas câmaras de vigilância,
linha da meta, o número Dois ao concorrente seguinte, e assim mes no planeta. Teve início uma nova era. Os seres pareciam ter se rasgou do resto da cara, que ficou sem nariz e sem parte e pelas câmaras de alguns transeuntes. E o rosto que surgia
sucessivamente, até ao último ser a chegar. descoberto que cada posição e cada nome eram importantes. da bochecha. Debaixo desse rasgão surgia agora outro rosto, em todas essas fotografias era o meu próprio rosto. Tão igual
O nome de um ser tem um grande significado neste planeta, Alguns seres passaram a correr de maneira diferente. Corriam com um outro nariz e uma outra face, que observava o meu que eu próprio o reconheci, embora também reconhecesse
e cada corrida é antecedida de uma longa preparação individual. com entusiasmo, mas faziam-no como se procurassem qualquer espanto com um esgar de fúria. que o corpo que a minha face agora coroava era alto e mus-
O esforço culmina em manifestações de júbilo durante a ceri- coisa desconhecida, qualquer coisa que não era o primeiro lugar. Aproveitando o meu espanto e o meu desequilíbrio, o ho- culado como o do assaltante contra quem chocara.
mónia de graduação, sobretudo por parte dos seres que ficam Às vezes, os seres terminavam ao lado uns dos outros. Queriam mem empurrou-me outra vez, e eu caí desamparado no chão, E, infelizmente, ninguém se tinha lembrado de tentar ar-
com os primeiros números. ter nomes próximos e começar a vida adulta em conjunto. com a minha nuca a ressaltar o piso. Senti luzes a pairarem-me rancar o meu rosto daquela cabeça, para tentar encontrar a
Um número mais baixo denota simbolicamente uma posição E finalmente, aquilo que gostarás de saber. Na corrida deste dentro do crânio e o céu e as cabeças em redor a rodarem à face escura que continuava a levar a sua vida debaixo das caras
de destaque na hierarquia social, uma vez que os seres mais ano, eu próprio, quando cheguei ao fim e ouvi a minha classifi- minha volta como um carrossel. Mas, no meio da tontura e de outras pessoas.
antigos do planeta - os anciãos - têm nomes correspondentes cação - «Número 637!», percebi que aquele número queria dizer das cabeças, vi ainda o rosto rasgado encarar-me com mal-
a números mais baixos que a maioria dos seres. Existem outras uma coisa diferente de tudo aquilo que eu conhecia até então.
formas de avançar e retroceder simbolicamente na escala social, Aquele número era eu próprio.”
através de operações complicadas chamadas adição ou subtra-
ção, mas reduzir uma unidade por ano corresponde em média
ao ritmo de ascensão social dos números. A posição inicial em
que se parte é por isso de grande importância para as aspirações
de um ser, e a entrega do prémio para o melhor classificado é
sempre feita por um ancião número Um. Nascido em 1971, casado e pai de três filhos, Fernando Lobo Pimentel
Há alguns anos, porém, apareceu um ancião número Um (que interessa-se por livros desde as recorrentes crises de asma infantil, que o
no início da sua vida adulta se tinha visto obrigado a começar com mantinham preso à cama. Alguns anos depois, na faculdade, tentou escrever a
um número muito elevado) a sugerir algo diferente. Ele achava sua primeira história. Desde então publicou alguns textos no extinto DN Jovem
que não era o primeiro concorrente a cortar a meta aquele que e, mais recentemente, no jornal “O conto fantástico”. A par do seu interesse
devia ser distinguido, por não haver nada de especial nesse lugar. pela escrita criativa, e do trabalho em sistemas de informação, desenvolve um
Perante uma plateia de números atentos o ancião explicou o projeto amador de investigação em matemática discreta.

50 /// BANG! BANG! /// 51


intensas por parte do público, fosse de indignação, protesto
e até alguns desmaios entre as almas sensíveis. Muita gente
mostrou desapontamento por não encontrar as encantadoras
cenas domésticas com que o artista se tornara conhecido, e
até alguns apreciadores mais irritados reclamaram junto do
artista, com uns, mais jocosos, a submeterem até uma queixa
na sociedade protetora dos animais por atentado ao direito
de imagem dos gatos. E o próprio conhecido crítico de arte
felídea, Richard Banquo, não hesitou em apontar a exposição
como mais um exemplo da imparável decadência que esta
arte tem vindo a sofrer.
E, no entanto, os próprios gatos – os verdadeiros – a quem
tinha sido dada a oportunidade de visitarem a exposição,
omos devotos dos céus e é a terra que nos guia. Em cada mover das estações repetimos os mesmos não mostraram qualquer sinal de medo, inquietação ou in-
gestos, os mesmos caminhos e os mesmos ritos. Levamos as nossas casas para os prados e as cla- dignação perante os quadros. Pelo contrário, mostraram-se
reiras que nos aconchegam a nós e aos nossos animais. Quando o cuco canta, quando a lebre ergue compostos, atentos, e observaram os
o focinho e a estrela alba se levanta sobre a serra, pegamos nos nossos animais e nas nossas capas mundo é um lugar melhor a partir do momento em
vários retratos
e levamo-los lá para o alto dos montes, onde o vento chicoteia, a erva ainda verdeja e as estreitas que nele existem pintores de gatos como Joseph Ri-
expostos com
malhadas são o nosso único consolo. card.
uma indiferença
E quando as árvores ficam despidas, quando o lobo desapa- Ninguém dúvida de que é o mais talentoso retra-
fria, com alguns
rece na terra e o urso se enrola para regressar aos seus sonhos, tista de gatos da sua geração. Os seus clientes fiéis
a aproveitarem o
voltamos a descer aos vales, saudosos da terra plana, temerosos contratam-no para retratar os bichanos da família: a sós, em
tempo para dor-
das chuvas, dos gelos e dos ventos que são os nossos senhores das grupo, com os donos, ou em poses de um bem-humorado
mitar ou limpar
serranias. Nas nossas casas cá de baixo abrigamos os nossos reba- encanto. E é ainda autor de imaginativas telas de gatos, em
o pelo reluzente.
nhos em redis, protegidos sob os ramos que colhemos e esticamos que estes surgem a andar apenas nas patas traseiras, apoiados
por entre colunas feitas de troncos de árvore. em bengalas, a espreitar por entre flores, a abrigarem-se de-
Somos gratos às estrelas, somos gratos aos montes, adoramos baixo de guarda-chuvas, a jogar ténis, a piscar o olho, a usar
as fragas que os nossos animais trepam e do cimo dos quais laço e cartola, a tocar banjo, a tomar chá, a dormitar, a brincar
contemplam as pradarias imensas. Tememos o lobo e com crianças, aves e borboletas, a conduzir carros, e outros
o lince e o frio que assobia pelos soutos e pelos comportamentos que muito divertem os apreciadores dos
olivais, que nos rouba os cabritos e os filhos seus quadros e deram ao seu nome a fama que é tão bem
numa selvajaria de sangue e dor. merecida.
Fazemos isto há gerações: disse-mo o É, por isso, triste, que tal talento pareça estar a ser afetado
meu avô que o fazia desde jovem, e que por uma estranha doença que faz com que os seus gatos
o seu avô lhe dissera que o fazia desde jovem se pareçam cada vez mais com sinais de trânsito. O pró-
quando a terra era conquistada aos leões, e que o avô prio pintor afirma que não vê qualquer diferença en-
do seu avô lhe dissera que o fazia desde jovem quando vira tre os seus anteriores quadros e as suas obras mais
a primeira idade dos carvalhos, e que o avô do avô do seu avô recentes, mas a sua última exposição sofreu uma
lhe dissera que o fazia desde jovem quando vira Epona moldar o perda acentuada de visitantes após as enchentes
granito com os próprios cascos, e que o avô do avô do avô do seu dos primeiros dias, com o público a manifestar
avô lhe dissera que o fazia desde jovem quando fora beijado na choque e indignação por se ver confrontado
face por Ataegina. E tal como todos os meus avôs mo disseram, com quadros de gatos vermelhos com um
através das bocas uns dos outros, eu também to digo a ti, meu retângulo no lugar dos olhos, como se fos-
neto, para que as minhas palavras possam chegar aos teus netos, sem um sentido proibido, ou com um fo-
e aos netos dos teus netos, até que o Grande Urso nos devore a cinho triangular vermelho e branco, qual
todos e não reste na terra senão a pedra e o silêncio. sinal de perigo, ou com antenas, como o
Mas tenho medo, neto, que estas palavras de saber não cheguem tão longe no mundo. Homens chega- corço que é representado no aviso de
ram, e esses homens ergueram pedras e arbustos em volta de prados e clareiras e ribeiros, e dizem-nos agora animais na via. Alguns gatos eram tão
que nós e os nossos animais já não podemos caminhar por eles para receber a oferenda de Nantosvelta. abstratos que havia quem jurasse que
Estes são homens estranhos e maldosos, que não deixam a terra aos seus animais, mas que preferem atacar se assemelhavam às tabuletas de pa-
essa mesma terra com lanças, com machados e com outras armas de lâmina afiada para tentar roubar o te- trimónio histórico. Redondos, ver-
souro da deusa. Alguns dos nossos jovens querem erguer os machados e as espadas contra estes assaltantes melhos, multicolores, com halos,
da terra, mas eu digo-lhes que tenham confiança, que tenham paciência, pois a própria deusa vingar-se-á em forma de losangos, por vezes
dando-lhes a maldição dos ratos, da peste e da fome. desfeitos em flores e frutos, ou
Só que esta não é a única sombra nas nossas vidas. Do alto dos montes, Crougu e outros dos nossos, cuja a brilhar na escuridão com
vista é ainda fresca como a do falcão, trazem novas de que viram mais homens a caminhar para cá vindos da uma malignidade aterradora,
terra de onde o sol corre para os céus. Dizem que são muitos homens, que caminham uns ao lados dos ou- os gatos da exposição ge-
tros, tal como caminham as nossas cabras e as nossas ovelhas, mas que ao contrário dos nossos animais se ram respostas
cobrem com penas e com ferro reluzente, e trazem nos punhos mais lanças, mais espadas, mais escudos.
É isso que mais temo, meu neto: que em breve, ainda antes de a estrela se ter levanta-
do sobre a serra, seja aquela o nosso único lugar, a única terra que nos esconde, que
nos acolhe, que nos protege, a única que fará com que a minha voz, que carrega
tantas vozes continue a chegar aos ouvidos do amanhã.

52 /// BANG! BANG! /// 53


dição pós-apocalíptica, reduzida àquela
«The Future’s a Thing of the Past» cidade.
No final da década de 1890, The War
Th e C re at ive Part n e rsh ip (2 006) esde há séculos que Londres acolhe of the Worlds (1898), de H. G. Wells,
e interpela tanto a história e teoria continua o desenvolvimento de imagi-
quanto o futuro e prática da arquitec- nários para a capital britânica e a sua
tura. No arranque do século XIX, a ca- periferia (nas cidades-satélite de She-
pital do Reino Unido é a única cidade pperton ou Richmond). Nessa obra, a
europeia cuja população urbana excede área metropolitana Londrina é sugerida
1 milhão de habitantes. Passados 100 naquele presente como palco de lutas
anos, no início do século XX, a sua po- entre insectos gigantes extraterrestres e
pulação aumentara 6 vezes, atingindo militares do império britânico. No ano
uma densidade insustentável em algu- seguinte, em When the Sleeper Awakes
mas zonas da cidade. Em um século, (1899), do mesmo autor, a mesma área
Londres cresce tanto associada às ino- projecta-se para o ano de 2102 reco-
vações tecnológicas como o vapor ou nhecendo a cidade como uma metró-
a electricidade quanto utiliza novos pole congestionada e densamente po-
materiais para a construção como o voada.
ferro e o vidro.1 Ao mesmo tempo, au- Durante as décadas de 1920 e 1930,
mentam as inquietações sobre uma so- no período entre Guerras, o futu-
ciedade que se mantém desequilibrada ro ganha carácter de reflexão social e
e, maioritariamente, pobre mesmo que política. A constante tendência para
aparente novas necessidades e expecta- uma visão de conflito em Londres não
tivas. Perante uma urbe cada vez mais será apenas coincidência. High Treason
pesada e industrializada, a ficção espe- (1929), de Maurice Elvey, considerado
culativa surge como fuga justa e pos- o maior filme de fc britânico da era sem
sível. Nesse seguimento, cresce uma som, coloca a cidade na década de 1950
literatura que apresenta novos e outros (na sua última versão) perante um ce-
futuros todavia ancorados a episódios nário de choque entre duas potências
e contextos reconhecíveis. De certo globais: os United States of Europe e o
modo e por princípio, a fc mais não faz Empire of the Atlantic States. Se a pri-
do que expor afinidades de um presen- meira é uma espécie de federação ter-
te formulando hipóteses para as suas ritorial Europeia (talvez semelhantes à
projecções. Talvez não seja por acaso actual constituição europeia), a segun-
que alguns dos escritores mais referen- da é a soma política dos continentes
ciados daquela época sejam britânicos Americanos.
categorizáveis como autores ligados à Do fascínio hard pela técnica e pro-
fc. Essencialmente na segunda meta- gresso tecnológico evidenciado no úl-
de do oitocentos, nomes como os de timo quartel oitocentista, as narrativas
Mary Shelley, Richard Jefferies, Edwin passam para uma outra preocupação
Abbott Abbott, George Griffith, ou soft de revisão humanista. Ainda assim,
H. G. Wells, representam a cidade se- a obra Brave New World (1932), de Al-
gundo visões de um futuro diferente dous Huxley, parece conjugar as duas
permitindo que, durante o período posições. Partindo de uma hipótese
vitoriano,2 a fc ganhe popularidade e de automatização (ou aperfeiçoamen-
preponderância crítica enquanto gé- to das características humanas) com
nero literário moderno. A literatura e lugar em laboratórios, e assente numa
a realidade parecem ressoar entre si e dialéctica territorial balanceada entre
com fundação naquela cidade. civilização e barbárie, Brave New World
esde meados do século XIX que, na ficção científica (fc) Na década de 1880, Flatland (1884), situa o projecto humano e urbano em
em geral, algumas das cidades europeias servem de fundo do matemático e teólogo Edwin Ab- 2542 (numa era pós-Ford), perante
a inúmeros temas e contextos, tantos quantos falta ainda bott, e After London; or, Wild England uma época de total reprodução assis-
explorar. Obras como Welt am Draht (1973), de Reiner (1885), de Richard Jefferies, introdu- tida. No ano seguinte é publicado The
Werner Fassbinder, ou Until the End of the World (1991), de zem leituras opostas sobre um mesmo Shape of Things to Come (1933), nova-
Wim Wenders, por exemplo, chegam a percorrer várias cida- campo urbano: o primeiro, de modo mente o mestre Wells, uma obra que
des do continente para se desenvolverem enquanto narrativas. abstracto e longe de referências ou está na origem do filme Things to Come
Entre Colónia, Munique, Paris, Londres, Berlim, Moscovo, contextos reais; o segundo, de modo (1936), de William Cameron Menzies.
Veneza ou Lisboa, cada uma destas urbes é caracterizada pelo animal e próximo de circunstâncias O cenário de tensão armada entre po-
encanto que sobre ela exercem distintas visões. O primeiro fil- locais. Flatland é um caso de total re- tências e aliados explora decisivamen-
me segue uma hipótese de simulação do real, o segundo, pro- fúgio na geometria (descritiva) para o te a dialéctica entre cidade e campo
jectando o ano de 1999, segue uma hipótese de memorização desenvolvimento de uma caricatura de através do eufemismo Everytown (tal
do real. Neste artigo, o segundo da série, viajaremos apenas costumes e espaços, After London é um como vem nos intertítulos). No en-
por três capitais europeias, partindo das suas ficções de futuro. caso explícito de humanidade sob con- tanto não é difícil reconhecer alguns

544 //// BAN


A G! NG! ///// 5555
BBAAANG
NG!
NG
objectos arquitectónicos como e em literal fim de cultura. No segundo (1982-1988), de Alan Moore e David
a Saint Paul’s Cathedrall e deixar caso e longe de um sentido conven- Lloyd, V (o protagonista mascarado de
de associar essa Cidade-Qualquer cional sobre o habitar, a proposta da Guy Fawkes) vive afastado da superfí-
a Londres. A narrativa acontece House of the Future (1956), desenvolvida cie da cidade, em catacumbas debaixo
num intervalo entre aquela con- pelo casal de arquitectos Alison e Peter das ruas, e com o propósito de, entre
temporaneidade e uma outra a Smithson e exposta na The Ideal Home outras estruturas arquitectónicas re-
cerca de 100 anos de distância, Exhibition, inverte algumas das abor- presentativas de poder, destruir o Old
em 2036. dagens correntes de espaço doméstico Bailey. Com a narrativa localizada em
Já na década de 1940, no unifamiliar. 1997, V habita uma rede de metroo obso-
pós-Guerra, é publicado Ninete- Na década de 1960, a swinging London leta ao lado de fundações e estruturas
en Eighty-Fourr (1949), de George não se faz reconhecer na fc. The Drow- cavernosas, o seu abrigo é uma gale-
Orwell.3 Londres divide-se en- ned Worldd (1962), de J. G. Ballard, imer- ria subterrânea abobadada, desenhada
tre zonas do Partidoo e do ope- ge as toponímias da cidade no Atlântico e ilustrada como um imenso cabinet de
rariado, resumindo-se qualquer apesar de manter algumas referências curiosités. V é uma espécie de nobre res-
uso de espaço a uma aparente geográficas. Situada após um desastre pigador de memórias cujo valor e signi-
nulidade.4 Os ecrãs que difun- ambiental em meados do Século XXII, ficado se perdera.
dem o Big Brother, r por exemplo, Londres transforma-se em pântano Já na última década do século XX,
fazem-no tanto no espaço pú- tropical irreconhecível. introduz-se novamente o problema de
blico como no privado, trans- Durante a década de 1970, a violên- ordem distópica que é a desolação de
formando um simples disposi- cia parece regressar com outro cor- um lugar sem gente. A adaptação ao ci-
tivo televisivo em experiência po e sentido. Em A Clockwork Orange nema de The Children of Menn (1992), da
espacial intimidatória e de vigi- (1971),7 de Stanley Kubrick, a cidade escritora P. D. James (e cuja acção ori-
lância permanente.5 Neste livro aparece representada em espaços como ginal decorre, na maioria, na cidade de
fundamental, a noção de Estado o Flat Block Marina e o Binsey Walk, Oxford e na Isle of Man, entre Janei-
altera sem reservas a concretiza- ambos em Thamesmead, colocando ro e Outubro de 2021), acusa a inter-
ção e construção de uma cida- 1 o protagonista Alex em circunstâncias ferência em alguns lugares garantindo
de, revelando tanto a fragilidade de brutalidade extrema. Neste ponto, a fragmentação do tecido urbano mas
moderna de um governo totali- parece a ficção ter transpirado para a mantendo as suas iconografias. O tema
tário quanto a proximidade de para cinema de uma série-Z tele- Londres, ou Alton Estatee (1956-1959), na zona Sudo- realidade, já que o projecto de Thames- é o de um confronto derradeiro entre a
uma liberdade reduzida a partir visiva, há uma cidade em estado este da cidade, em Roehampton. Ambos filmados, mead Estate (1963-1971), de Robert Rigg humanidade e o território que a susten-
do simples branqueamento da de horror latente. Reconhece-se, trata-se de conjuntos de edifícios de aspecto bruta- and GLC, se encontra actualmente em ta: a infertilidade afecta todo o planeta.
história. de resto, o cruzamento da narra- lista e neo-corbusiano, respectivamente. Os blocos análise para a respectiva reformulação Aparentemente não há futuro, na tradi-
Após esta fixação distópica, tiva com lugares comuns como a George Loveless Housee e James Hammett,t da autoria de ou demolição devido a problemas de ção literária britânica burguesa de Mary
nos anos 1950, novos sentidos Westminster Abbey. No lado da ar- Skinner, Bailey & Lubetkin, com planta em forma violência como aqueles representados Shelley e punk da banda Sex Pistols. No
são equacionados e colocados quitectura, Londres cresce ligada de Y, surgem numa das promenadess urbanas de Chil- no filme de Kubrick. Apesar de tudo, caso da versão cinematográfica, realiza-
em causa. No lado da ficção, em à experiência de redefinição de dren of Menn (2006), de Alfonso Cuarón. Os blocos nestes anos, o mesmo Ballard e An- da por Cuarón, a apropriação da cida-
The Day of the Triffids (1951), de cidade a par de uma revisão do de Alton Estate, desenvolvidos pelo London County thony Burgess criam novas afinidades de de Londres no ano de 2027 é ainda
John Wyndham, há uma cidade espaço doméstico. No primeiro Council Architects Dept., são um loteamento utili- com a cidade. Obras como Concrete mais sintomática. Sem lei nem ordem,
em colapso absoluto após uma caso, são construídos projectos zado em Fahrenheit 451 (1966), de François Truffaut, Islandd (1974) ou 1985 (1978), de um e a cidade e o estado social encontram-se
crise virulenta que cega quase de habitação plural e colectiva na adaptação para cinema da magna obra Fahrenheit outro autor respectivamente, parecem em excesso de sujidade e destroços.
todos os habitantes. No filme como os conjuntos George Love- 451 (1953), de Ray Bradbury. Se no primeiro caso, os premonições sobre aquele território de Acrescenta ainda Slavoj Zizek que, so-
The Quatermass Xperimentt6 (1955), less Housee e James Hammett Hou- edifícios servem uma cidade poluída e em literal fim betão e auto-estradas, para além de vol- bre a sobreposição visual de campos
de Val Guest, uma adaptação see (1957), na zona Nordeste de de vida, no segundo caso, servem uma cidade jardim tarem a colocar Londres sob uma espé- para a explicação da narrativa, a cidade
cie de alçada disciplinar. acontece tangencialmente, acompanhan-
Neste seguimento, os anos 1980 são do ela própria a acção e o movimento
tempos propícios a experiências de contínuo das personagens. É de lem-
ilegalidade, memória e vigilância. Na brar, por exemplo, a sequência de che-
verdade, tratando-se de uma década gada do protagonista Théo Faron à icó-
politicamente hostil, sob um governo nica Battersea Power Stationn (1929-1935),
ultra-conservador como o de Margaret projectada por S. Leonard Pearce e Gil-
Thatcher, aumenta a discussão sobre o bert Scott, após uma entrada automó-
espaço público tão só por se pretender vel pela sobredimensionada Millennium
privatizá-lo a qualquer preço. No con- Bridgee (2000-2002), de Arup, Foster &
to The Gernsback Continuum8 (1981), de Partners, e Anthony Caro. Aquilo que é
William Gibson, lança-se a proposta uma impossibilidade real resulta como
de uma realidade alternativa a partir de alavanca visual subtil. Nesse processo
lugares londrinos menos institucionais de total remontagem geográfica, o ex-
como bares bas-fond, d na Battersea Park terior da Battersea Power Stationn substitui,
Road.,
d ocupados por indigentes e exi- na margem e a eixo com a ponte, a ac-
lados. Parker, o protagonista, um fotó- tual Tate Modernn (2000); mesmo que o
grafo de arquitectura, deixa de se reco- interior representado seja a espaços o
nhecer entre o que experiencia e foto- da Turbine Hall,l da Tate.10
grafa. Na novela gráfica V for Vendetta9 Na primeira década do XXI, o tema

1 56 /// BANG! BANG! /// 57 5


de final de festa antecipado tem ainda apoiadas na electricidade como as di- o segundo, cómico e diurno, Enki Bilal desenvolve os dois primeiros volumes em
expressão imagética em 28 Days Later versas tipologias de panorama e pro- apresenta o monumental cen- banda desenhada da sua Trilogia de Nikopol.l Apresen-
(2002), de Danny Boyle. Basta lembrar jecções cinemáticas, o próprio Palais de tro histórico da cidade, através tando a cidade a partir de mestiçagens, mitologias,
os percursos nos quais o protagonista l’Électricité,
é desenhado por Eugène Hé- da imobilização ou lentidão dos corrupções e vícios em abuso, as narrativas de La
Jim aparece sozinho perante a cidade, nard e Edmond Paulin, ou a subida de seus habitantes. À Nous La Li- Foire aux Immortelss (1980) e La Femme Piègee (1986)13
na Westminster Bridge, por exemplo, com elevador ao topo da Torre Eiffell (1900), berté,
é o terceiro, político, convo- centram-se em 2023 e 2025, respectivamente, após
o relógio e a torre do Big Ben em se- registada em filme por Thomas Edison ca um ambiente fabril partindo o regresso prisional ao planeta Terra de Alcide Ni-
gundo plano. Nesse filme não estará e James H. White. de dispositivos de vigilância, kopol. Após cumprir uma pena de três décadas no
em causa necessariamente um futuro No arranque do Século XX, surgem operários ordenados e edifica- exterior orbital, o protagonista encontra um territó-
projectado mas sim um tempo presen- várias formas narrativas. O Manifeste du ções puristas para discutir temas rio Parisiense sob jugo fascista e dividido em dois
te sob uma perturbação com a forma Futurismm (1909), de Filippo Tommaso de condição social e colectiva. distritos (à imagem do que acontece em Nineteen
de um vírus a resumir a existência e ex- Marinetti, é um desses casos. Apesar de No caso da cultura arquitectó- Eighty-Four):
r um central para os privilegiados; e um
periência humanas a poucas hipóteses anteriormente publicado em diversos nica, nestas mesmas décadas de periférico para o operariado e a miséria. Na mes-
e bastante animalidade sanguinária. jornais italianos, é com a sua publica- furor e fulgor épico modernista, ma década, poder-se-á ainda referir um filme como
Para a década de 2010, resta mencio- ção no Parisiense Le Figaroo que obtém Le Corbusier propõe, de resto,
nar o exemplo de um remake desper- total divulgação e distribuição. Neste o conhecido Plan Voisinn (1925)
diçado. O filme Total Recall (2012), de documento, os compromissos futuris- como solução canónica e algo
Len Wiseman, substitui a colónia e a tas são lançados como modos de acção impositiva de reconstrução da
metrópole originais de We Can Remem- e reacção às instituições e, resumindo, cidade histórica, quase conju-
ber It for You Wholesale (1966), o conto a tudo o que seja engagé.é A velocidade, gando as diferentes abordagens e desocupada, produzindo um
de Philip K. Dick, pela Austrália e pela a guerra, a morte, a modernidade, e o já referidas na ficção. campo pós-nuclear inóspito e
United Federation of Britain, respectiva- tempo acelerado são alguns dos temas Saltando para o pós-Guerra perigoso. As galerias subterrâ-
mente, tendo esta última o seu centro desenvolvidos ao longo dos 11 pontos. chegam os anos 1950, onde, no neas da cidade, especificamente
em Londres. No caso da ilustração, a série Visions caso da cultura arquitectónica, as do Palais de Chaillot,t servem
de l’An 20000 (1910), de Villemard, re- tudo se parece reequacionar e então de abrigo e asilo aos seus
fere e reflecte sobre algumas expecta- reescrever; mesmo quando se personagens. La Jetéee trata, es-
tivas urbanas centrais, cotejadas entre projecta o futuro. As posições sencialmente, de importância
o sonho pelo progresso novecentista teóricas e práticas tornam-se da memória segundo um meca-
oltando ao Século XIX e atravessando e a nostalgia pelas escalas burguesas particularmente impactantes e nismo clássico e caro à fc como
o Canal da Mancha, Paris torna-se setecentistas e oitocentistas. As esta- expressivas e um projecto como a viagem no tempo. Por outro
crível para Jules Verne na hipótese de ções ferroviárias, as boulevardss plenas o da Ville Spatialee (1958), de lado, em Alphaville: une Étrange
Paris au XXe Siècle (1863). Inventando de veículos motorizados, ou a zona da Yona Friedman, permite lançar Aventure de Lemmy Cautionn (1965),
um futuro para a cidade-luz na déca- Operaa coberta de descapotáveis aéreos a ideia de matriz sobreposta de Jean Luc Godard, os espaços
da de 1960, Verne vê a obra primeiro em formas anfíbias, são postais de uma mas contextualizada enquanto são secos, limpos mas austeros.
recusada pelo seu editor (por se tratar cidade que não se concretizou na tota- resposta ao modernismo mais Se a rudeza do filme de Marker
de um texto aparentemente menor lidade. No caso da arquitectura, projec- ortodoxo e rígido lançado cerca implica uma certa dose de ro-
quanto ao género fantástico) e depois tos como a Ville Futuree (1910) ou a Rue de 30 anos antes por Corbu. mantismo, a sofisticação dos
perdida.11 Basicamente, trata-se de uma Futuree (1911), de Hénard, servem para Na década de 1960 regres- computadores e o purismo dos
ideia de visão futura da cidade carac- confirmar a tendência da estratificação sa-se ao preto e branco. La Jetée corredores do parisiense Scribe
terizada pela inovação e desenvolvi- e sectorização visual e espacial de Pa- (1962), a obra-prima de Chris Hotell no filme de Godard pro-
mento industriais. Contudo, esta não ris. Na proposta da Rue Future, aliás, Marker, é um filme12 apocalípti- vocam o desconforto daqueles
será a primeira obra de fc com acção a ideia está contida essencialmente no co cuja narrativa segue as con- espaços e uma certa dose niilista.
em Paris. L’An Deux Mille Quatre Cent corte de uma rua com perfil haussma- sequências de uma suposta 3ª Avance-se pois até à década de
Quarante (c. 1771), de Louis-Sébastien nianoo justaposto a um aparato técnico e Guerra Mundial. A superfície 1980 na qual, seguindo uma di-
Mercier, coloca a cidade no Século XXV funcional de trânsito, regimes, domes- da cidade encontra-se destruída ferente abordagem pós-nuclear,
atribuindo-lhe novas formas e dispo- ticidades, instalações e escalas urbanas.
sitivos, como se prova no seu Capítulo As décadas de 1920 e 1930, entre
VIII: Le Nouveau Paris. Guerras, são efectivamente férteis
O fin-de-Siècle oitocentista é, de facto, em bons exemplos de variações futu-
particularmente rico em obras, autores ristas sobre a cidade e os seus objec-
e acontecimentos na Capital do Século tos arquitectónicos notáveis. Filmes
XIX. Em Le Vingtième Siècle: la Vie Élec- como L’Inhumainee (1924), de Marcel
trique (1883-1890), de Albert Robida, a L’Herbier, ou Paris Qui Dortt (1925) e
capital francesa é localizada na década À Nous La Libertéé (1925), ambos de
de 1950, evidenciando uma apetência René Clair, são de facto casos de es-
invulgar pela técnica e imagética eléc- tudo únicos. L’Inhumaine, o primeiro,
tricas. Quase contemporâneas à obra sério e nocturno, apresenta setss cubis-
de Robida, em 1889 e 1900, acontecem tas, desenhados pelo arquitecto Robert
as Exposições Universais na cidade, con- Mallet-Stevens, e mobiliários moder-
cretizações proto-ficcionais de alguns nistas, desenhados pelo também arqui-
desejos daquele presente. São, de resto, tecto Pierre Chareau, num movimento
conhecidos os projectos apresentados e pendularidade automóvel entre a ci-
de equipamentos, estruturas e decisões dade e a sua periferia. Paris Qui Dort,t

58 /// BANG! NG! ///// 5599


BAANG
apresentam um território pós-apoca- Mais recentemente, já nesta década, é
líptico, de areia e destroços, percorrido editada Lisboa no Ano 20000 (2012), uma
por uma equipa de acidentados de um antologia coordenada, também, por
avião. Barreiros. Embora, neste volume, não
Na década de 1990 é de apontar O haja futuro mas retrofuturo, há sempre
Limite de Rudzkyy (1992), de António de uma cidade a fazer de espaço útil para
Macedo, uma história na forma de car- as ansiedades presentes e desejos vin-
tas compiladas e que coloca, na cidade, douros.
o Instituto de Tecnologia Industrial de
Lisboa (ITIL), organismo de ciência e
avanço tecnológico e lugar de testes e
teoremas exigentes mas perigosos. Os
Minino da Noitee (1993), de José de Barros
(aka João Barreiros), critica uma condi-
ção europeia que se prevê agonizante
Brazill (1985), do Monty Python Terry e desumana. Crianças órfãs são alvos a
Gilliam, cuja narrativa recorre a um abater e em constante movimento, são
certo número de espaços pós-moder- personagens que tanto se movem na
nistas para potenciar a própria acção urbe lisboeta por mecanismo de defesa
o caso português, e embora haja me-
fragmentada e alucinada. Brazill repro- como por desejo de abrigo.
nor quantidade de obras publicadas,
duz um futuro disfuncional, aprovei- No começo do Século XXI publica-se,
não parece ser de somenos importân-
tando parcialmente o projecto colossal nesta revista, pelo menos dois artigos
cia as relações propostas ou adquiridas
implantado nos subúrbios de Paris que com propostas para a cidade de Lisboa
entre o contexto lusitano, o continente
é Les Espaces d’Abraxass (1978-1983), no futuro. Ambos escritos pelo mesmo
Europeu, e a fc de autoria portuguesa.
desenhado por Ricardo Boffil e o seu autor acima mencionado, João Barreiros,
À distância de pouco mais de uma
Taller de Arquitectura. Sobre a década os contos Fantascom14 (2008), na Bang #3,
década, entre os últimos anos do sé-
de 1990 importa lembrar o conto La e O Turno da Noitee (2011), na Bang #10,
culo XIXX e os primeiros do XX, são
Nausée II,I de Luís Filipe Silva, a regis- utilizam a cidade como área de conver-
publicados livros como Lisboa no Ano
tar em forma de diário sincopado (tem gência narrativa. No primeiro caso, tra-
3000 (1892), de Cândido de Figuei-
entradas de Abril a Janeiro do ano se- ta-se de uma cidade de cultura e ironia;
redo, e Lisboa no Ano 20000 (1906), de
guinte) a passagem de 1999 para 2000. no segundo caso, trata-se de uma cidade
Melo de Matos. No primeiro trata-se
Nesse texto, há ruas congestionadas, de electricidade e ofício. Em cada um
fundamentalmente de viagem e registo
veículos transbalass e pássaros de fogo, deles há centro e periferia: no primeiro,
global, no segundo, a cidade desponta,
como descreve o narrador. há hotéis Xeratonn e aeroportos na Ota;
percorrida por veios e freios mecâni-
Na primeira década do Século XXI, no segundo, há edifícios-sede em Alcân-
cos, a vapor e electricidade.
o livro Century Rainn (2004), de Alastair tara e sub-estações no Seixal. Há ainda o
Para além de surgir no final da déca-
Reynolds, relata uma versão alternati- caso singular de Uma Noite Não São Dias
da de 1930, a obra A.D. 2230 (1938), João Rosmaninho (n. 1979) é licenciado
va da história da 2ª Guerra Mundial (o (2009), de Mário Zambujal, obra de um em arquitectura e mestre em ciências da
de Amílcar de Mascarenhas, parece
caos e o receio de conflito global pa- autor não necessariamente reconhecido comunicação. É docente na Universidade
pontuar um deserto de ideias para a ci-
rece ser permanente e contínuo), pro- pelas suas ligações ao género, e cujo elu- do Minho onde desenvolve, actualmente,
dade entre as décadas de 1910 e 1980. investigação de doutoramento sobre as
jectando Paris para a década de 2070 e cidativo sub-título acaba por antecipar
É, portanto, nos anos 1980 que sur- relações entre as cidades e o cinema.
sugerindo uma urbanidade organizada desde logo uma narrativa de intriga e pai-
gem vários autores, colecções, edições, Todos os seus campos de interesse
por nanotecnologias líderes sobre o xões no esquisito ano de 2044. convergem na ficção.
ciclos e organizações de fc em solo
humano. português. No início da década há, ali-
Mais recentemente, na segunda dé- ás, casos interessantes como Der Stand
cada do Século XXI, merece referência der Dingee (1982), de Wim Wenders. No
o filme Inceptionn (2010), de Christopher caso, uma obra que relata as dificulda- [1] A primeira das Feiras Mundiais tem lugar em [5] Talvez seja abusivo fazê-lo mas não deixa de não esquecimento de um porco voador gi-
Nolan, que, não prevendo necessa- des de produção de um filme de fc ro- Londres no ano de 1851. A mega-estrutura de aço ser interessante notar que a obra Mechanization gante, replicando o da capa do disco Animals
riamente um futuro mais ou menos dado na periferia saloia de Lisboa. The e vidro que foi o Palácio de Cristal (1951), dese- Takes Command (1948), de Sigfried Giedion, é (1977), da banda Pink Floyd; uma segunda é
nhada Joseph Paxton, convoca decisivamente publicada nesta altura. esse edifício assumir-se como uma espécie de
distante, usa e abusa de aparatos téc- Survivors, o título do filme amareloo den- um carácter entre uma possibilidade real e uma [6] Este filme originou, ainda, uma sequela in- Arca da Humanidade, conservando a cultura
nico-científicos não existentes. Essen- tro do filme a preto e branco, acompa- elegante impossibilidade ficcional. titulada Quatermass and the Pit (1967), de Roy e a própria existência humana, em objectos
cialmente, Inceptionn revela uma cesura nha um grupo de sobreviventes numa [2] Que se estende praticamente desde a década Ward Baker. cristalizados (como a estátua de David, de Mi-
entre o mundo real e as suas múltiplas região desértica, arbustiva e em ruína de 1840 à de 1900. [7] Cuja base, o romance homónimo escrito chelangelo).
réplicas sonhadas, forçando disrupções como é a Praia Grande, a serra de Sin- [3] Esta obra teve duas adaptações para cinema: por Anthony Burgess em 1962, apesar de não [11] O livro foi descoberto e resgatado para
e potenciando espaços através de uma tra, e o Hotel da Praia Grandee ainda in- em 1956, por Michael Anderson; e em 1984, mencionar Londres, directamente, mantém re- publicação apenas em 1989.
incapacidade de reconhecimento do completo e abandonado. Os primeiros por Michael Radford. ferências a cidades como Manchester e Mosco- [12] Ou um photo-roman, como se descreve no
mundo envolvente. nove minutos de O Estado das Coisas [4] É sabido que, no final da década de 1940, o vo, por exemplo. genérico da própria obra.
tecido urbano da cidade ainda permanece feri- [8] Numa referência e reverência a Hugo [13] O último livro da Trilogia, cujo título é Froid
do pelos bombardeamentos da 2ª Guerra Mun- Gernsback o fundador da Amazing Stories. Equateur (1992), altera o lugar e o tempo da ac-
dial. Seria necessário cerca de uma década para [9] Esta obra tem uma versão cinematográfica ção para o coração de África, Equador City, em
se voltar a equacionar o crescimento urbano (não autorizada por Alan Moore, como vem 2034.
sustentado de Londres, como o prova os County sendo hábito) realizada por James McTeigue e [14] Este artigo talvez tenha a sua origem no
e Greater London Plans, de Patrick Abercrombie, datada de 2006. conto LisCon 2060 (1993) da autoria do pró-
decorrentes dos estragos do blitz. [10] Duas curiosidades: uma primeira é o prio Barreiros.

60 /// BANG! BANG! /// 61


Todas as O seu pai era piloto de aviões norte-americanos. Já publicações
e viajou imenso com ele por como Hellblazer e Preacher me
pessoas têm todo o mundo. Essa infância interessavam por explorar perso-
um potencial e adolescência em constante nagens anjos e demônios, assun-
interação com outras culturas to que sempre me fascinou.
divino, o poder influenciaram a mitologia que O RPG é uma ferramenta
de fazer coisas criou nos seus livros? de criatividade fascinante, que
De certa forma, sim. Não que proporciona ao mestre do jogo
incríveis, mas as viagens tenham influenciado a possibilidade de inventar uma
às vezes esse diretamente no cenário de fan- história e testá-la imediatamente
tasia que eu descrevo em minhas com seu grupo de jogo, que o
potencial está obras. O que elas (as viagens) me ajudará a ampliá-la e enriquecê-la.
adormecido. proporcionaram foi a convivên- O RPG também pode ajudar
cia com culturas e povos muito um escritor e criar personagens
Está em diferentes, o que me fez compre- ricos. Quase todos os persona-
nossas mãos endê-los e respeitá-los. gens dos meus livros foram cria-
Essa postura, de respeito e dos por amigos meus em sessões
despertar esse compreensão me ajudou a, mais de RPG – assim, sempre que, ao
potencial, tarde, estudar várias mitologias, escrever um capítulo, eu tinha
crenças e tradições sem precon- dúvidas sobre como um persona-
escolher nossa ceitos, com um olhar aberto, am- gem deveria agir, eu pensava em
trilha. plo e interessado. como o jogador agiria ao contro-
E foi com esse olhar interes- le do personagem, e até os diá-
sado que eu descobri que todas as logos soavam mais consistentes,
histórias mitológicas seguem um menos artificiais.
mesmo padrão universal, padrão O RPG é uma ferramenta de
que também é adotado por mui- criação coletiva, que auxilia o es-
tas obras populares, no cinema, critor em seu trabalho, trabalho
nas histórias em quadrinhos, na esse que em circunstências nor-
literatura, no teatro. Esse “pa- mais seria um bocado solitário.
drão”, conhecido como “a jor-
duardo Spohr é hoje um calipse, o seu primeiro romance. Sei dades para comercializar como quiser. nada do herói”, tanto nos cativa De onde vem esse intenso fas-
nome popular entre os que a Internet foi essencial para al- Eu decidi arriscar, me inscrevi e mais de porque está baseado em etapas cínio pelo Apocalipse e pelo
nerds brasileiros. cançar o sucesso. um ano depois, em 2007, veio a notícia narrativas que são metafóricas, corpus mitológico do Velho e
A história do seu Como todo escritor, sempre tive a von- de que eu tinha vencido o concurso. e que podem ser observadas em Novo Testamento que deu ori-
sucesso é já conhecida. tade de escrever e criar histórias. Minha Com esses 100 livros em mãos, fiz nossas próprias vidas – todos gem ao Spohrverso?
Tudo começou quando ganhou um con- primeira tentativa foi aos 6 anos de ida- uma parceria com o site Jovem Nerd, nós, de uma forma ou de outra, Estudei em uma escola católica,
curso literário que lhe permitiu publicar de, logo ao me alfabetizar, quando dese- cujos donos eram (e ainda são) meus já assumimos papéis arquetípicos, fiz catecismo e primeira comu-
100 exemplares do seu primeiro roman- nhei e roteirizei uma história em quadri- amigos e leitores, para vender os exem- já passamos por situações difíceis, nhão, e cresci dentro da tradição
ce A Batalha do Apocalipse. O autor pro- nhos sobre um menino que encontra um plares por meio da loja online que eles já morremos e renascemos (me- cristã. Talvez o fascínio venha
pôs uma parceria aos seus amigos do site alienígena e fica amigo dele – claramente mantinham. Os 100 primeiros livros fo- taforicamente, é claro). daí, mas eu diria que o meu fas-
Jovem Nerd que venderam na sua loja inspirado no filme “E.T., o Extra-Ter- ram vendidos em apenas 5 horas, o que cínio, de fato, é por todas as cren-
online todos os livros numa questão de restre”, de 1982. nos obrigou a produzir mais 500, e de- Em que medida a leitura de ças, religiões e mitologias.
horas. Dos 100 exemplares, rapidamente Continuei escrevendo romances e pois mais 4 mil livros. BD (HQ) e os jogos de RPG A tradição hebraico cristã é a
passou às 4 mil unidades. contos de forma amadora, mas nunca O sucesso da produção indepen- influenciaram a criação do seu que mais convivemos no mundo
O sucesso da sua edição de autor tinha conseguido completar um livro, do dente chamou a atenção das editoras, próprio mundo ficcional? ocidental, é a que mais conhece-
começo ao fim. Quando fiquei desem- em especial da editora Record, que em Sem dúvida tanto os quadrinhos mos e a que mais temos contato,
chamou a atenção da editora Record
pregado, em 2003, decidi que aquele se- 2010 me convidou a publicar “A Batalha quanto os jogos de RPG repre- por isso talvez eu a tenha esco-
que, em 2010, o convidou a publicar A
ria o momento certo para eu colocar no do Apocalipse”. O irônico é que apenas sentaram influências essenciais lhido como tema principal das
Batalha do Apocalipse. Mas a escrita não
papel uma história que estava há anos na cinco anos antes, nenhuma editora se in- no meu trabalho. No primeiro minhas histórias.
ficou por aí. Em Maio deste ano, Edu-
minha cabeça, e que mais tarde viria a ser teressara por meus títulos – esse interesse caso, o que mais me inspirou Em relação ao fim do mun-
ardo lançou lançou Anjos da Morte, o 2.º
chamada de “A Batalha do Apocalipse”. só veio a acontecer depois que “A Bata- foram as revistas da Vertigo, um do, está muito ligado à minha
volume da série Filhos do Éden e prepa-
Conclui a obra em 2005, e então ha- lha” se tornou um sucesso independente. selo adulto da DC Comics. infância. Cresci nos anos 80, e
ra o terceiro e último, Paraíso Perdido. O
via chegado a hora de enviar o material Não guardo mágoas das editoras Eu costumava ler histórias de com a iminência de um confron-
reconhecimento tem sido global e o seu
às editoras. Para não mandar as folhas que no começo me rejeitaram, claro que super-heróis desde pequeno, mas to nuclear durante a guerra fria
primeiro livro já vendeu mais de 600.000
soltas ou presas em espiral, fui em uma não – pelo contrário. Essa rejeição inicial foram nomes como Neil Gai- os livros, filmes e até músicas
exemplares no Brasil. Apesar de uma
gráfica e produzi, eu mesmo, 30 livros foi justamente o que me forçou a correr man, Alan Moore, Garth Ennis destacavam bastante esse tema,
agenda bastante preenchida, o autor, su-
com acabamento semi-profissional, com atrás do meu sonho com minhas pró- e títulos como Sandman, Hellbla- de como seria um mundo de-
per amável, arranjou tempo para conver-
uma bela capa, orelhas, contra-capa e prias pernas, conquistar o meu público e zer e Preacher que mais me inspi- vastado, destruído pela ação dos
sar com a revista Bang! e partilhar umas
tudo mais nesse sentido. me fez aprender muito ao longo do pro- raram. Neil Gaiman e Alan Mo- homens, um planeta a ponto de
dicas preciosas com os nossos leitores.
Essa mesma gráfica, na época, estava cesso. Hoje, a maior parte dos meus lei- ore, por exemplo, foram, ao meu acabar, desprovido de esperan-
Fale-nos um pouco do seu percurso oferecendo inscrições para um prêmio tores fiéis já me conhece há anos, temos ver, os grandes responsáveis por ças.
de publicação de A Batalha do Apo- literário: o ganhador receberia 100 uni- uma relação muito boa e sincera. trazer a filosofia aos quadrinhos

62 /// BANG! BANG! /// 63


Em Paraíso Perdido de John Milton, a grande figura pode ser assimilada por livros), mas prin-
literária é Satanás, sendo Deus uma figura ausente cipalmente uma experiência sensorial,
e não tão carismática quanto Lúcifer. Na obra do fazendo com que o escritor conheça não
Eduardo, A Batalha do Apocalipse, Deus está ador- apenas os fatos, mas as sensações e emo-
mecido e são os arcanjos e outras figuras celestiais ções que o lugar proporciona. Em um
que roubam o protagonismo e movem toda a acção. romance, essas sensações serão transmi-
O fascínio de todos nós por protagonistas que são tidas para o leitor por meio do protago-
anti-heróis, exilados, rebeldes, são uma forma de re- nista, que é o fio condutor da trama.
flectir na ficção as próprias imperfeições e dúvidas da
Humanidade? Ablon e Denyel são duas das suas
Essa é uma constante mitológica, na realidade. De fato, personagens favoritas. Um é um anjo
a grande maioria dos heróis são rebeldes, de uma forma renegado e condenado, outro é um
ou de outra, figuras que se rebelaram contra um sistema querubim exilado e recrutado como
vigente. É o caso de Jesus, que desafiou tanto os romanos anjo da morte. Qual o segredo de um 1 4
quanto os sacerdotes judeus; é o caso de Buda, que decidiu escritor para criar uma personagem
largar a sua nobreza para seguir seu caminho; é o caso de memorável e carismática para os lei- Escreva todo o dia, nem que seja Tenha um roteiro de todos
Maomé, que se insurgiu contra as poderosas famílias de tores? um pouco. Se você parar por os capítulos, do primeiro ao
Meca iniciando a jihad; é o caso de Luke Skywalker, que Primeiramente, agradeço pelo elogio e muito tempo, terá de voltar para se último, antes de começar a
Brinco com os fico feliz que tenha gostado dos persona- recordar onde parou, dando início a escrever o seu livro. Assim
se revoltou contra o Império Galáctico; é o caso dos robôs de Isaac
meus colegas, Asimov, que lutavam contra sua própria programação, etc. gens. Bom, não sei se existe um segredo um processo sem fim. você não se perde e evita os
Assim como esses heróis (da realidade e da ficção), nós também específico nesse caso, mas acho que to- “brancos criativos”.
também dos aspectos da produção literária devem 2
temos dentro de nós o desejo de se rebelar contra as imposições so-
autores de ciais. No fundo, o que queremos é escolher o nosso próprio desti- ser genuínos para o autor – não que ele
deva acreditar naquela história de fanta- Organize-se, separando o seu 5
fantasia, que no, queremos escolher uma atividade profissional que nos dê prazer
sia, claro que não, mas ele deve acredi- material em pastas, físicas
e satisfação, enquanto a esmagadora maioria das pessoas no mundo Trabalhe com pequenas
passamos tar que aqueles aspectos possam de fato ou virtuais.
são obrigadas a trabalhar em empregos que não gostam, às vezes in- 1 metas. Foque-se em seu
fluenciadas pelos pais, pelos parentes, por amigos ou pela própria so- existir dentro do mundo fictício que ele
um, dois anos criou. 3 objetivo mais imediato,
ciedade. caminhe de capítulo em
escrevendo um É esse grito heróico dado pelos personagens descritos acima que Os personagens, feitos de tinta e Estabeleça um horário para capítulo.
nós desejamos dar, por isso tais figuras tanto nos inspiram, pois tive- papel, devem ser, no momento em que
livro, e o leitor o autor está escrevendo e bolando seus
escrever, crie uma rotina.
ram a coragem de não ceder às imposições sociais e seguir os princípios
o devora em que acreditavam, mesmo diante da morte. capítulos, “reais” para ele; devem ter
Quanto à questão do Deus adormecido, é também uma metáfora. atitudes coerentes com o que a história
uma semana, propõe.
Todas as pessoas têm um potencial divino, o poder de fazer coisas
às vezes em incríveis, mas às vezes esse potencial está adormecido. Está em nossas É importante também que o perso-
mãos despertar esse potencial, escolher nossa trilha. nagem tenha características marcantes
um dia. Sendo que os defina. Ablon, por exemplo, é um 1
assim, o leitor Recentemente, lançou no Brasil Anjos da Morte que segue a his- herói inabalável, enquanto Denyel é um
Procure conquistar os seus
tória de Denyel, um querubim exilado, que testemunha a histó- malandro incorrigível. Eu, pelo menos,
vai procurar gosto de trabalhar com arquétipos uni-
leitores antes de conquistar
rica bélica e sanguinária europeia do séc. XX. O que o surpre- a editora, pois se você tiver
outros livros, endeu mais na sua investigação da Europa no tempo das duas versais. Os arquétipos universais são pa-
leitores, as editoras virão atrás
Guerras, Guerra Fria e queda do Muro de Berlim e nas viagens drões de personalidade comuns a todos
e é bom nós, e por isso nos identificamos com
de você – enquanto o contrário
recentes que fez? não é necessariamente verdade.
que o faça, Toda guerra é terrível, mas estudá-las não deixa de ser uma atividade eles tão facilmente.
porque dessa fascinante. O que mais nos impressiona nas guerras é a incrível capaci-
dade do ser humano em se adaptar às situações mais extremas. O ho- Na nova série Filhos do Éden impul-
forma ele mem, embora individualmente frágil, é uma máquina de sobrevivência, siona ainda mais o cruzamento entre 2
um ser que fará tudo o que estiver ao seu alcance para resistir às mais a História e a mitologia. Que influ- 4
irá adquirir ências literárias foram determinantes
Apresente o seu material da melhor
duras provações. maneira possível, tanto graficamente
e ampliar Impressiona também, ao estudar as guerras, como, no momento no seu percurso como escritor? quanto intelectualmente – bem
Procure agir de forma
do desespero e da morte, o ser humano é capaz de se superar, para O curioso é que a maioria das minhas in- espontânea. Seja você
o hábito da fluências de conteúdo vêm, na realidade,
revisado, escrito de forma clara.
mesmo. Seja verdadeiro.
o bem e para o mal. É nesses momentos que a nossa natureza aflora,
leitura. mostra a sua face verdadeira. É nesses momentos que nos tornamos do cinema e dos quadrinhos. A literatura Não compre brigas, não
heróis, monstros, santos e selvagens. me influenciou não tanto no conteúdo, minta números nem tente
Costumo dizer que existem três níveis de pesquisa. O primeiro ní- mas na forma de escrever, ou seja, no 3 ser quem você não é.
vel é por meio da internet, que dará ao escritor uma visão geral sobre meu estilo literário. 5
o assunto. O segundo nível de pesquisa é a leitura e o estudo de livros Dentre os autores que mais me in- Se as editoras não aceitarem Procure escutar as críticas e tentar
– é necessários ler livros completos sobre o tema que o pesquisados fluenciaram, destaco Stephen King, de o seu original, não desista, melhorar com elas, em vez de achar
deseje se aprofundar. Finalmente, o terceiro e mais profundo nível de quem sou grande fã, Anne Rice, H.P. continue tentando publicar que seu trabalho é perfeito e intocável.
pesquisa é a visita ao local – no caso de Anjos da Morte, visitei os sítios Lovecraft, Robert E. Howard, James nem que seja de forma Somos humanos, cometemos erros e
históricos das duas grandes Guerras e da Guerra Fria. Clavell e Ken Follet. No Brasil há o José independente. sempre podemos melhorar.
Visitar o local antes de escrever sobre ele enriquece a narrativa, e Louzeiro, escritor e roterista de filmes
muito, porque dá ao autor uma experiência não apenas intelectual (que famosos da década de 70, como “Pixo-

64 /// BANG! BANG! /// 65


te, a Lei do Mais Forte” e des e pequenas) têm descoberto au-
“Lúcio Flávio, Passageiro tores brasileiros e traduzidos, bem
da Agonia”. como lançado coletâneas e roman-
ces. Como encara este boom atual
O Eduardo ministra um de fantástico no Brasil?
curso de “Estrutura Li- Encaro da melhor maneira possível. É
terária”. Que desafios sempre bom ter muita oferta de litera-
apresenta o seu trabalho tura no mercado. O bacana desse ramo
como professor e como (o ramo literário) é que não existe com-
concilia com o seu tra- petição entre os autores. Brinco com os
balho de escritor? meus colegas, também autores de fanta-
É sem dúvida um traba- sia, que passamos um, dois anos escre-
lho que me exige muito, vendo um livro, e o leitor o devora em
mas não há nada mais uma semana, às vezes em um dia. Sendo
prazeroso. Lecionar é para assim, o leitor vai procurar outros livros,
mim uma atividade incrí- e é bom que o faça, porque dessa for-
vel. Não só aprendo com ma ele irá adquirir e ampliar o hábito da
os meus alunos como me leitura.
torno amigo deles. Cada Faço questão de sempre em minhas
turma é uma nova experi- palestras e conversas com o público di-
ência e um novo grupo de vulgar o trabalho de outros autores para
colegas que se forma. quem estiver presente – se mais pessoas
lerem os nossos livros, todos sairemos
A fantasia e ficção cien- ganhando.
S Ó LER NÃ O BAS TA tífica escrita em portu-
https://www.youtube.com/user/tchetchatt guês (brasileiro ou euro- O que os leitores podem esperar do
A HISTÓRIA DE UMA SERVA peu) poderá vir um dia a seu próximo livro, Paraíso Perdido,
MARGARET ATWOOD rivalizar com a fantasia que encerra a série Filhos do Éden?
     anglo-saxónica? Gosto de trabalhar com várias camadas
“A História de uma Serva” é uma Difícil fazer projeções para em meus livros. É claro que tratam-se de
distopia que nos apresenta uma o futuro. De qualquer ma- livros de aventura, onde há lutas e muita
possibilidade assustadora: a ins-
tauração de uma sociedade teocrática neira, não acho que exista, ação, mas penso que um romance deve
num país ocidental, que remove todos por parte dos autores, essa ir além disso, deve incluir também uma
os direitos às mulheres, desde o direi- necessidade de rivalizar camada mais profunda, sem soar lento,
to à educação até ao de terem nome com escritores nativos de aborrecido ou professoral. Em minha
próprio. Através do relato na primeira outras línguas. Eu mesmo primeira obra, A Batalha do Apocalipse,
pessoa, conhecemos a história da ser-
va Defred: o seu passado e presente, nunca pensei sobre isso. além da trama e dos combates, explorei
os seus medos e esperanças. O livro Creio que a maior vontade três assuntos que muito me interessam:
centra-se, ainda, na condição feminina, de um autor (se não é, de- filosofia, história e mitologia.
nos ideais e na organização dessa so- veria ser) é escrever a sua Quando comecei a desenvolver a tri-
ciedade. Com uma escrita exímia e carregado de simbolismos, este própria história, para que logia Filhos do Éden, resolvi que cada
é um livro de leitura fácil mas que dá muito em que pensar. / Carla,
Diana e Telma ela seja lida, sem pensar livro focaria um desses aspectos. O pri-
se ela será pior ou melhor meiro deles, Filhos do Éden: Herdeiros de
que o trabalho de um co- Atlântida, é mais filosófico, questiona os
lega. Penso que, enquanto aspectos da vida e a para onde vamos
L EI TO RA DE FIM-DE-S EMANA artistas, não precisamos depois que morremos. Já o segundo, Fi-
http://leitorafimdesemana.blogspot.pt/ nos preocupar em fazer lhos do Éden: Anjos da Morte, é uma obra
melhor do que ninguém totalmente histórica, com uma forte car-
E SE FOSSE UM ANJO – precisamos, sim, fazer o ga de pesquisa. O terceiro, Filhos do Éden:
KEITH DONOHUE melhor possível, o melhor Paraíso Perdido, então, será um livro que
    que podemos, sem pensar mergulhará fundo nos aspectos mitoló-
Um livro bastante controverso que em competição ou rivali- gicos, tanto da mitologia hebraico-cristã
na minha opinião merece ser lido.
Este é um livro fantástico, mas que dade. quanto da mitologia nórdica.
para ser apreciado tem que se estar O que Anjos da Mortee teve de realida-
com o estado de espírito correcto. É um Sei que leu muitos livros de, Paraíso Perdidoo terá de fantasia, e leva-
livro que nos fala acerca de anjos. An- portugueses de fanta- rá a série a um nível acima. Herdeiros de
jos esses que nos ajudam e nos guiam. sia e ficção científica na Atlântidaa teve como cenário o Brasil, em
Não tem que ser necessariamente
anjos de auréola de asas, podem ser década de 80 que eram Anjos da Mortee os personagens viajram
pessoas que surgem na nossa vida importados para o Bra- pelo mundo e em Paraíso Perdidoo será a
quando mais precisamos e que por isso sil. Hoje o Brasil tem vez de explorar outros planos e dimen-
mesmo se tornam os nosso anjos pes- uma oferta muito diver- sões.
soais. A escrita do autor é envolvente sificada de publicações
e prende-nos à narrativa, levando a que queiramos sempre mais. /
Joana Cardoso e muitas editoras (gran-

BANG! /// 67
do reino celeste de Gälûñ’lätï, os mitos tiva do último século, alguns dos quais
servem-se de elementos naturais (ou da ainda hoje são fontes de inspiração para
sua ausência notória) e criam lugares fan- escritores de todo o mundo.
tásticos onde as histórias sobre verdade, «O Sul» foi mitificado como lugar de
justiça, bem, mal e desespero são repre- calor e humidade estivais sufocantes, de
sentadas numa tapeçaria auditiva que a quintas degradadas e de trepadeiras om-
um tempo cativava os ouvintes (e, mais nipresentes. Até o ar parece por vezes
tarde, leitores) e os levava a pensar nas lembrar plantações arruinadas e casas
mensagens entretecidas nas histórias. carbonizadas. A devastação provoca-
Em séculos recentes, estas mitologias da pela Guerra Civil foi muito além da
fantásticas desenvolveram-se, grosso perda de uma percentagem significativa
modo, segundo temas nacionais. Os in- da população anterior ao conflito ou da
gleses têm a sua «Matéria da Bretanha», destruição de várias povoações e cul-
ou o ciclo de histórias em torno do len- turas. Para muitos, na alma dos sobre-
dário Rei Artur e seus Cavaleiros da Tá- viventes ficou gravada uma impressão
vola Redonda. Em França e Itália temos metafísica: uma espécie de Pecado Ori-
a «Matéria de França» e as histórias sobre ginal social que levaria não só a que os
os Doze Paladinos de Carlos Magno, em pecados dos pais fossem atribuídos aos
especial Rolando/Orlando. O El Cid descendentes até à quarta geração, mas
dos espanhóis representa a Reconquista. também a uma tendência para a perver-
Contudo, todos eles se desenvolveram sidade do orgulho, da fúria e do racismo.
ao longo de vários séculos e, à excepção Embora tal mentalidade não seja total-
do poema épico quinhentista Orlando mente real, sente-se ainda uma espécie
Passei muito tempo a refletir sobre o que realmente Furioso, surgiram antes das viagens de de «letra escarlate» hawthorniana que
poderiam ser os «Livros das Minhas Vidas», em especial no Colombo ao chamado «Novo Mundo».
Quando o último navio da frota de
atormenta muitos sulistas, quase como
uma cruz que carreguem, tanto pelos
que diz respeito aos trabalhos que abrangem os panoramas Magalhães circum-navegou o globo em seus próprios pecados como pelos dos
1521, a crença num mundo plano apoia- antepassados.
da imaginação frequentemente associados à fantasia e a do em colunas foi derrubada. Todavia, «lugar» no Sul americano é traiçoei- Por mais negativos que esses senti-
outras ficções especulativas. Tantas foram as obras que me a fusão do «lugar» físico e imaginado
continuou a dar origem a trabalhos cati-
ro, estando pejado de minas culturais
e históricas que podem rebentar se o
mentos sociais possam ser, não deixam
de levar a um pendor para uma excelen-
influenciaram ao longo dos anos que se torna difícil fazer vantes, como Os Lusíadass de Camões e O incauto viajante der um passo em falso te literatura prenhe de imaginação. Veja-
Peregrinoo de John Bunyan, onde os luga- que seja. Mesmo 152 anos depois do iní- mos, por exemplo, as histórias do Com-
uma breve seleção de histórias a analisar sem pelo menos as res metafóricos assumiam uma impor- cio da Guerra Civil Americana, «o Sul» padre Coelho, de finais do século XIX,
contextualizar na minha vida. Assim sendo, começarei por tância pelo menos equivalente aos seus
paralelos reais. Podemos argumentar que
evoca ainda conotações de escravatura,
da vida nas plantações, do Ku Klux Klan
início do XX. Estas narrativas acerca de
um coelho esperto que leva a melhor so-
discutir o conceito de «lugar» e o seu papel na criação das graças à predominância do lugar meta- (KKK) e memórias perenes quanto à bre uma raposa velhaca, um urso violen-
fórico e irreal à custa dos locais físicos «Causa Perdida». Estes elementos sórdi- to e outros animais antropomorfizados
narrativas que desde há anos me cativam. «reais» (alterados quanto bastasse para se dos juntam-se de formas bizarras, tendo representam duas vertentes da vida su-
adequarem às necessidades narrativas), a dado origem àqueles que terão sido dos lista, ambas nascidas de um cadinho de
unidade do local e da crença, unidos em melhores trabalhos de ficção especula- contos africanos ocidentais, americanos
poucas montanhas ou vales de distância mitos que reforçavam os mores sociais, nativos do sudeste e anglo-celtas. Cresci
do vale fluvial mesopotâmico. Plenas de começava a dividir-se nas ficções «espe- a ouvir a versão feita por Joel Chandler
submundos escuros e subterrâneos, de culativa» e «realista» dos nossos dias. destes contos, onde os personagens são
touros divinos e de flores ocasionais (já Até certo ponto, talvez seja lícito apresentados na forma de narrativas
m Retrato do Artista Quando Jovem,
m de Ja- para não falar de um dilúvio que quase considerar as fantasias como sendo excêntricas contadas pelos trabalhado-
mes Joyce, Stephen Dedalus opta por de certeza será o inspirador do de Noé), trabalhos «menores». Afinal de contas, res das plantações, sempre com um co-
identificar o seu lugar no mundo indo estas narrativas serviram para mostrar a elas não transmitem a credibilidade dos mentário racista implícito. No entanto,
desde o intimamente local (Classe de gerações de ouvintes como orientar a sua mitos antigos – não se espera vir a des- as histórias do Compadre Coelho têm
Elementos) até ao, bem, «universal» (o vida e para os recordar das limitações da cobrir uma Hobbiton em solo inglês, ainda uma outra conotação, adiantada
Universo). Esta abordagem indutiva ao vida humana. Contudo, nas discussões embora ainda reste uma ténue esperança por Zora Neale Hurston no seu primei-
posicionamento no contexto de um uni- das mitologias, tanto as antigas como distante quanto a um Rei Artur históri- ro trabalho não-ficcional, Mules and Men.
verso maior assemelha-se ao modo como as mais modernas, ignoram-se muitas co. O «lugar» nas fantasias modernas as- Aí, o Compadre Coelho desenvolve uma
acredito que muitas fantasias ganharam vezes os aspectos visuais que dão for- sume estranheza em relação à realidade resistência subversiva contra a ordem
vida: os contadores de histórias originais ma às narrativas para que se enquadrem conhecida. Claro que isso nem sempre estabelecida, e no âmago das fantasias
tentaram dar uma forma imaginada aos nas necessidades da audiência. Desde o é assim. Vejamos, por exemplo, a minha encontramos um comentário social ba-
seus locais íntimos dentro de um mundo gelo vetusto dos mitos nórdicos sobre a região nativa, o Sul dos Estados Unidos. seado na realidade complexa da socieda-
maior, mais estranho e, por vezes, assus- criação do mundo ao Caos informe de Ao contrário de praticamente qualquer de sulista pós-Guerra Civil. Estes dois
tador que parecia existir fora do cenário onde nasceram a Noite e o Dia e destes outra parte da América do Norte an- pólos, a manipulação branca dos mitos
das suas aldeias ou cidades-estado. Nas os deuses e deusas posteriores, e depois glófona, o Sul possui uma memória de negros para que se adequem à sua visão
narrativas sumérias de Gilgamesh, Enki- à crença cherokee de que o escaravelho lugar tão forte que a própria história se de hierarquia social e a subversão negra
du e Ishtar, as mais antigas mitologias Dâyuni’sï juntou lama para criar um lugar moldou de acordo com as necessidades dessa mesma hierarquia, representam, na
registadas, a acção costuma ter lugar a onde repousar durante a sua estadia longe da populaça. forma de fantasia, a topografia cultural

68 /// BANG! BANG! /// 69


do Sul que chegou à minha infância em a hipótese de restauração. O leitor ce a um tempo a sinopse de um século de logo e as poucas descrições de McCarthy
finais da década de 1970 e na década de atual procura esse movimento, e existência maldita e a história da ascen- criam um ambiente que, à semelhança de
1980. Recordando agora esses contos, com toda a justiça, mas ele esque- são e queda de uma família. Sempre que O’Connor, mas de maneira ainda mais
especialmente «O boneco de alcatrão», regresso ao Yoknapatawpha de Faulkner, forte, captura o desejo de redenção, mes-
não posso deixar de ter uma visão bipar- ceu o custo associado. A noção de é como se visse um Sul passado que exis- mo quando a danação paira, sombria, so-
tida da história: a narrativa de um coelho mal encontra-se diluída, ou total- te tanto a nível metafórico, enquanto um bre a narrativa. Ao contrário do que fiz
esperto que consegue escapar até mes- mente ausente, pelo que esqueceu lugar que se esforça por se definir num com Faulkner e com O’Connor, que reli
mo ao castigo merecido, e uma metáfora o preço da redenção. Quando lê mundo de tradições tacanhas, como na várias vezes ao longo das últimas duas
sobre as batalhas travadas para preservar um romance quer ser atormenta- forma de um olhar penetrante sobre o décadas, ainda não regressei a qualquer
uma cultura repetidamente oprimida do, ou então divertido. Quer ser mundo «real» de conflitos raciais e de das histórias de McCarthy, tão assustado-
pelo grupo racial dominante. Tendo em classe. Ao reler Faulkner depois de co- ras no seu realismo febril que deixaram
conta as variações entre as gravações de levado de imediato para uma falsa nhecer alguns dos autores do realismo os seus contornos gravados na minha
Chandler e de Hurston dos contos orais danação, ou então para uma falsa mágicoo latino-americano, como Gabriel mente. Quem lê McCarthy pode esperar
originais, as histórias do Compadre Co- inocência.» García Márquez e Mario Vargas Llosa, encontrar nas suas narrativas algo mais
elho poderão ser das fantasias mais con- ambos citando Faulkner como influên- fantástico do que a fantasia surreal. É
troversas, embora culturalmente impor- Essa «falsa danação» é sentida em toda cia, é fácil encontrar nas suas histórias de como se McCarthy, graças ao uso dos
tantes, alguma vez produzidas, não só no a sua pujança no primeiro romance da três anos de chuva e da «guerra do fim cenários apalaches rurais, criasse uma fá-
meu Sul natal, mas em todo o mundo. autora, Sangue Sábio, e no protagonis- do mundo» os ecos da exploração feita bula negra e retorcida dentro do que à
O Sul é ainda conhecido pela sua li- ta Hazel Motes, com a sua «Igreja Sem por Faulkner sobre a forma como os primeira vista parece um trabalho realis-
teratura gótica sulista, a qual capta com Cristo». Tendo lido por duas vezes o humanos são modelados pela sua terra ta deprimente. Tal como acontece com
termos cativantes e eloquentes a mistura romance, a narrativa torna-se ainda mais natal e como essas histórias nos criam Faulkner e O’Connor, o lugar torna-se
de fervor religioso, fé, desespero e ruí- assombrada e grotesca à segunda leitura. de um modo que parece absolutamente tanto uma base para o surgimento de mi-
na que ainda hoje parece assombrar os O uso de imagética religiosa por parte fantástico a quem cresceu longe dessas tos como um local por onde déssemos
sulistas. Tal como Flannery O’Connor de O’Connor, em especial os símbolos tradições torturadas e dessas sociedades connosco a andar.
disse em tempos num ensaio: católicos filtrados através de uma len- decadentes.
te apocalíptica sulista, serviu de génese Sim, a literatura gótica sulista e o seu
«Creio que se pode dizer que para alguma da ficção mais perturbante primo afastado, o realismo mágico, são egressando à questão sobre os «Livros
que li na segunda metade da minha vida. percorridos por uma sensação de deca- das Minhas Vidas», talvez seja melhor
embora o Sul não seja centrado em
dência. A ruína encontra-se na ascendên- dizer que o lugar onde cresci, o Sul dos
Cristo, é de certeza assombrado cia e não há maior objectivo do que a re- Estados Unidos, é a um tempo o terre-
por Cristo.» denção das almas individuais ou sociais. no onde surgem pesadelos fantásticos e
Encontramos ecos disso em várias fan- sonhos febris, e uma região passível de
O Diabo, quase sempre ausente em tasias, especialmente nas fantasias épicas ser encontrada num mapa. As histórias
toda a parte, parece espreitar nos re- e o Sul de O’Connor é um lugar onde como O Senhor dos Anéiss de Tolkien (que sobre os seus males e sobre o desejo de
cantos e nos vales do Sul. Quando li os piores pesadelos de inspiração reli- li em criança, mas que, apesar de o ter re- redenção são, tal como diz Shakespeare,
O’Connor pela primeira vez, na facul- giosa atormentam os habitantes, a ficção lido várias vezes entre os 13 e os 18 anos, a matéria de que são feitos os sonhos. A
dade, não pude deixar de sentir como de William Faulkner, acima de tudo situ- não me cativou grandemente, talvez de- nossa ficção reflecte apenas um estado
as suas narrativas sobre pecadores cap- ada no ficcional Yoknapatawpha County vido à sua «estranheza»), mas enquanto mental que poderá ser estranho para os
turavam de forma brilhante o terror do Mississípi, aborda o cruzamento en- fantasias de mundo secundário, com os outros, mas que é difícil de ler sem a sen-
omnipresente pelo pós-vida. Embora a tre o passado e o presente que marcou seus locais inventados, encontram-se de sação de que algo fantástico se instalou
sua ficção não apresente nada de expli- os hábitos sulistas durante mais de um certa forma afastadas dos objectivos mo- ao lado da vida do quotidiano. Regresso
citamente sobrenatural, a batalha pela século após a Guerra Civil. As suas nar- rais tantas vezes presentes na literatura a essas narrativas de tempos a tempos,
redenção pode ser vista em personagens rativas estão repletas de famílias que des- gótica sulista. Embora muitos dos auto- para compreender um pouco mais como
como o rapaz de «O Rio», que procu- ceram na vida depois da guerra, mas que res clássicos de literatura gótica sulista já surgiu esta cultura maravilhosamente in-
ra ansiosamente uma redenção que mal ainda se agarram aos restos apodrecidos tenham morrido, um dos escritores ainda sana.
compreende, mergulhando-se num rio da antiga fama familiar. Histórias como vivo que se serve dos seus cenários, te-
local num esforço trágico para limpar o «Uma Rosa para Emily» capturam esse mas e técnicas é Cormac McCarthy. Em-
corpo do pecado e da impureza. A pri- facto de um modo quase horrível. Li-a bora actualmente McCarthy seja mais
meira antologia da autora, Um Bom Ho- pela primeira vez em 1992, com dezoito famoso pelos seus trabalhos com am-
mem É Difícil de Encontrar,
r está repleta de anos de idade, e lembro-me de ter a vaga bientes western, como Meridiano de San-
contos sobre personagens que buscam sensação de que Emily poderia ser uma guee ou a Trilogia da Fronteira, ele começou
alguma forma de redenção ou de repa- de várias idosas que conheci na década por escrever obras negras, quase depra-
ração de ofensas. Num ensaio que julgo de 1980, senhoras que preferiam iso- vadas, passadas na região montanhosa Larry Nolen é um professor de História e Inglês que
abordar na perfeição o motivo por que lar-se do presente para manter um pas- do Tennessee oriental. No seu romance dá aulas há 14 anos em Tennessee e Flórida em
a sua ficção apela a tantos leitores, em sado glorificado, praticamente desprovi- de 1973 Filho de Deus,s o autor descreve a escolas públicas e privadas. Tem um grande fascínio
especial sulistas, O’Connor comenta o do de qualquer semelhança com a dura vida de um solitário, Lester Ballard, que por línguas que o leva a devotar muito do seu tempo
poder latente da redenção: realidade em que viviam. A ficção de mergulha tão profundamente na depra- livre a ler e traduzir artigos e entrevistas de portu-
Faulkner serve-se dessa luta para recon- vação (a necrofilia é apenas um de entre guês e espanhol para inglês. A sua primeira tradu-
ciliar o passado e suas atrocidades com os seus inúmeros crimes) que em vez de ção, “El Escuerzo” de Leopoldo Lugenes apareceu na
«Existe algo em nós, tanto en- as exigências do presente. Em Absalão, se sentirem repugnados, os leitores talvez antologia ODD? e a sua segunda tradução, “Mister
quanto contadores como enquanto Absalão!! esse conflito assume aquela que simpatizem com as transgressões contra Taylor” de Augusto Monterroso na antologia The
ouvintes de histórias, que exige que será talvez a sua forma mais profunda, a sociedade sulista do início do século XX. Weird: A Compendium of Dark and Strange Fictions.
ao caído seja pelo menos oferecida dando origem a uma narrativa que pare- As breves e entrecortadas tiradas de diá- Tem um blogue em http://ofblog.blogspot.pt/

70 /// BANG! BANG! /// 71


Foii a pa
Fo part
r ir des
rt estata preemimissaa – como os personagens da
“Gue
“G u rr
ue r a dodoss TrTrono os
on os”” se
s com mportariam na vida real – que
a ag
agênênci c a crrio
ci iouu a no ovav ccam ampa
p nha de anúncios da Editora
Saíd
Sa ídda ded Eme Ememergrgên
rg ênnci
cia,
a edi
a, d toraa responsável pela publicação
da sér
da érieie de lil vr
v os
os eemmP Poortrtug
ugal e que lançou os anúncios na
ug
s a pá
su pági gina
gina do Fa Facecebo
ce book
bo ok.
“H
“Hoj
Hojeojje em dia, iaa, o qu
quee dedefi
fine
fi nee a man
a eiraa como nos comporta-
an
mos so
mo socicial
ial
alme
m nt
me ntee é a no osssa prp esen
e ça
ç nas redes sociais, que
accab
abaa po or seser
er uma
um exxte
um tens
nsão
ns ão da
d no oss
s a peers
r on
nal
a idade. Por isso
a pe
perg
pergr un nttaa ‘Se
‘See os peperrson
rsonag aaggens
en
ns dee A Guerra dos Tronoss existis-
s m no
se os didias
as de h hoojee, co
omo ser e iam
m as suas páginas pessoais
nooF Facace
ac
ceebbook?
ook?
oo k ’ accab boouu ppor ser a base de toda a campanha”
cco
omp pleetat M Marrcceelo o Louure rençnço.
nç o

Assim nasceu o “Facebook of Thrones” que


traz três anúncios, cada um com uma “pá-
gina” pessoal, criada a partir de um dos
Qual será o segredo personagens da série. Vemos o misterioso e
da série A Guerra dos dúbio Petyr “Mindinho” Baelish a trocar
Tronos, uma das sagas a “front page” da sua página com o mes-
literárias mais famosas mo à vontade com que troca de aliados na riam perfeitam
amen
en
nte
t o ‘‘br
Luís Corte Real, dir
irret
etor
brie
br iefi
ie
efi
fing
ng’’ quue lh
ng
orr ddaa Ed
Edit
itor
it orra.
a.
lhes
e ffoi
es oii passsa
sado
do” di
do” dizz

da década, com milhões série. E que melhor maneira de mostrar o


relacionamento incestuoso entre os irmãos “Quando me con nta
tara
raam a pr
p op pos
ostata de usu ar A Gu Guererr raa dooss
de leitores em todo o Tronos, um dos noso soos gr
grande
dess ssuuceess
de s os,
oss, paara
ra pro
r mo
m ve verr a
Jaime e Cersei Lannister do que o seu “re- editora nas redes so
soci
c ais,
ciaii apr
prov
ovvei n naa ho
hora
raa: er
eraa ex
e accta
tamem n-
me
mundo? Com certeza, a lationship status” no Facebook – algo que te a ideia que estávamos os à prro
ocuurar ” co
commpleeta
mple ta Luí
uís
ís Co
C rt re
imaginação sem limites vai de “irmãos”, passa por “amantes” e
Real”.

do escritor George acaba num “é complicado”.


A campanha foi criiad
vos e pelaa dupla Nád
a a a oito
oiito
á ia Pin
ád
o mão
i to e Rit
os p
i aC
peelo
l s di
Caarm
arm
dire
rect
rec or
ct
r mo e, ant
o es
ntes
es cri
es mes
riat
iat
esmo
m
atii-
mo
i-

R.R. Martin e a sua Mas,


Ma s, claro, nenhuma presença da série nas redes sociais
de ser lançada, já eraa um suceceesso na
n int
intter
e net,
neet, onde
nde coomee-
çou a ser divulgada.
capacidade de contar po
pode
ode
de co
a we
web
ommpe
p ti
tirr co
com
m o “Red Wedding”, algo que incendiou
b háá alguns meses, quando na série de TV (adaptada Foi destaque no site “Ads of The Wor orld
l ” e en
ld ntr
trou
ou no to
ou top
p
uma boa história são doss liivros) se
do s descobriu o destino trágico que o autor tinha 5 semanal do blog “B Bes
estt Ad
A s on TV”, um dos sit ites
es maiis
prep
repparrad
ado
o para o “Rei do Norte” e a su
s a esposa. respeitados da publilcciida
d de mun undi
d al
dial.. “A
“Alé
l m de tod odoos os
pontos altos da série. ‘likes’ e comentárrioss po
posi
siiti
siti
t vo
v s que reece
cebe
beeu na p pág
ágin
ág inaa da
in d
“Est
“E s a ca
st camp
mppan
anhahaa nãoã poderia
od iaa exi
od x stir sem Rob Stark e o seu Editora no Facebook’ diz i Luís Co ort
rtee Re
Real
al.l.
al
“che
“cheeck in” no ca cast
ssttello ddo
os Fr
F eyy, mais conhecido como as
‘G
Gém
émeeas´
s ” ddiiz Pe
Pedro o Be
Bexi
xiga
xi g , taamb
ga m ém dir i ecto
t r criativo da
Fuell e um do
Fu
Fuel doss ccrriaati
tivos ququee aasssiina a cam
ampa
panhha.

“C
Com m um si simp
mp
mple
pless “p
“pos o t”
ost na su s a (fifictícia) página do Face-
book
bo ok,, tto
o
oda
d a his
da i tó
óri
riaa es
está
tá contada daa – a maneira confiante
co
om qu quee Ro
Robb en
entr
traa n
tr no o cas
a te
telolo
o e ccai
aii numa armadilha prepa-
rada
ra daa pel
elos
o seuus su
os s popoststtos
stos
o aaliliad
addos
o – que u faz azzem “like” no seu
“p
pos
ost”t enq
t” nqua
u ntto afi
ua fiam as suaas esspa p dadas”
ss””.
“A
Ape
p sar de viverem num mun undodoo fan
a tátást
stic
icco,
o,
“A Fue
“A uell é um ma dadass me
melh
l or
lh ores
e agê
es gênc
gê n iaas de
d publilici
c da
d de de Por-
com ca
co ca
cavaleiros os e draagões

ões, el
eles
e com
es mpo ort
rtam
am-see
am
tuuga
tuga
gal,l, trraabaalh
lhaa co
c m grgran
an
ndedess cllieent
n es como a Worten, o Con-
co
como
omo
mo p pes
e so
es oas
a reais, capapaazees do o melhohorr e do
tine
tinent
neent
nte, e a Vol
e, o vo e o cenentr
tro
o co
c me
m rc rciaal Colombo. São também
piorr” di
pi d z Maarc r el
e o Lourenço ço, diretoto
or crria
i tivo
vo
um
uma
ma da dass agagên
ênci
ên c ass criat
ci ativ
ivas
a mai ais pr
p eme ia
i da
d s do país. Além
d agêênccia de pu
da publ
ub icid
iddade Fuelell. “P
Por
o issoo é tãtãoo
diiss
sso,
o con nhe
heço
ç o Mar
ço arce
celo
lo e o Bex
lo exiiga, os directores criativos
fácill re
r la
laci
ciion
onarmo-n nos
os coom a A Guerr ra dos os
há muito to tem
empop , seei do
po o seu tallene to o e sababia que eles entende-
Tronoss – po
Tr porqrqque os seeus personage g ns par
arec
ecemem
dee car
arne
n e oss sso, qua
uase
s podem moss os vivisu
isu
s al
aliz
izzar
noommunun
ndo rea eal”
l”..
Equipa FUEL

72 //
//// BAN
A G! NG!! //
BANG
BANG
BA //// 73
7
74 /// BANG! BANG! ///
/// 75
//
ntre 15 a 17 de Novembro, os descreve Portugal ocupado pelos nazis. a banca da Saída de Emergência, mesa
leitores poderão aceder a uma Não poderia faltar o novo almanaque de jogos e outras actividades.
programação eclética. As ses- Steampunk de 2013, organizado pelo Em paralelo, encontra-se a decorrer
sões abrem na sexta-feira com grupo Clockwork Portugal e que estará o concurso de fotografia ZORAN-
uma apresentação dos prémios presente para apresentar o Almanaque, FRAMES, promovido pela editora
Adamastor, bem como o respetivo re- assim como a criadora Angélica Elfic. Cavalo de Ferro em colaboração com
gulamento para a edição de 2014. Nel- A SDE irá marcar presença no even- o Fórum Fantástico, com a parceria da
son Zagalo estará presente para uma to através da revista Bang! 15, que es- Sony, da Xerox e da Biblioteca Muni-
conversa sobre a publicação do livro tará disponível no Fórum Fantástico, e cipal Orlando Ribeiro, em torno dos
História dos Videojogos em Portugal. A ilus- haverá uma sessão em que os editores quatro livros do escritor sérvio Zoran
tração no género fantástico marca pre- irão discutir a expansão do projeto Zivkovic traduzidos por essa editora
sença através do convite feito a vários para o Brasil e a nova plataforma digi- em Portugal: A Biblioteca, O Escritor-
artistas portugueses que mostrarão os tal da revista. Fantasma, O Último Livro e Sete Notas
seus trabalhos. Ao fim da tarde, David O inusitado projecto Winepunk pro- Musicais. Os resultados do concurso
Soares, António Monteiro e José Pedro mete muitas surpresas numa divulga- serão anunciados no dia de sábado por
Lopes estarão presentes para conversas ção em exclusivo dos seus primeiros João Morales, e o mesmo será objec-
sobre o horror. materiais literários. to de uma exposição a abrir no FF e a
O Fórum Fantástico trouxe este Ian McDonald termina em grande o permanecer até 7 de Dezembro.
ano a Portugal um convidado de peso: dia de sábado com uma sessão de apre-
o britânico Ian McDonald, autor de sentação do seu livro Brasyl, seguida de O programa completo poderá ser con-
obras visionárias como River of Gods, e sessão de autógrafos. sultado no site:
Brasyl, esta última editada em Portugal O último dia do evento, domingo, http://forumfantastico.wordpress.
pela ASA/Leya. O autor publicou mais conta com as participações de vários com
de 20 romances e dezenas de contos, autores que têm publicado contos fora
ganhando notoriedade pelos seus ar- de Portugal: João Ventura, João Rama-
rojados ambientes de ficção científica lho-Santos, Inês Montenegro e João
em países em desenvolvimento – como Rogaciano.
na premiada trilogia temática composta A sessão de sugestões de livros por
por River of Gods (2004), Brasyl (2007) Artur Coelho, João Barreiros e João Ian Mcdonald
e The Dervish House (2010), cuja acção Campos não poderia
futurista decorre respectivamente na também faltar.
Índia, no Brasil e na Turquia. A secção de banda-de-
A componente audiovisual estará re- senhada do Fórum Fan-
presentada através das curtas Jogo Mal- tástico irá contar com as
dito de David Rebordão, que também participações dos autores
falará do seu projeto cinematográfico, da BD Dog Mendonça e Pi-
RPG. Serão igualmente apresentados o zzaboy, Filipe Melo e os
filme Collider e a série Sangue Frio, assim ilustradores Juan Cavia e
como várias curtas-metragens, com Gustavo Villa, bem como
presença dos realizadores. João Mascarenhas do
O dia de sábado abre ao início da tar- projeto Butterfly Chroni-
de com a apresentação da nova edição cles e Ricardo Venâncio,
da revista Lusitânia, um projeto dedi- com o projecto Hanu-
cado à publicação de ficção especulati- ram, o Dourado.
va de raiz cultural portuguesa. O autor Como tem sido habi-
Luís Corredoura apresenta de seguida tual nas sessões anterio-
o seu livro Nome de Código Portograal, res, haverá feira do livro
Cartaz da autoria de Pedro Piedade Marques uma obra de história alternativa em que gerida pela D. Kartoon,
ecentemente consagrado como o
Bertrand lançou recentemente um melhor Álbum Português de BD no
dos clássicos de literatura distópi- Festival de BD da Amadora de 2013, O
ca e uma das mais obras mais influen- Bailee conta a história de um inspector
tes nos estudos feministas. Margaret da Pide enviado para investigar uma
Atwood conta a história de Defred, uma série de ocorrências sobrenaturais
serva na república de Gileade, onde as- numa pequena vila costeira em 1967.
sistimos à descrição de uma sociedade Aparições de zombies e caças a bruxas
to quando me lembra, não aparece uma futuro próximo da nossa Terra, onde as distópica em que as mulheres apenas não faltam, mas Nuno Duarte vai muito
única mulher. Um pouco de chauvinismo massas proletárias se alheiam de uma vida existem para procriação, sendo negada para além da mera aventura e o seu herói
e culto do macho Alfa não faz mal a nin- de penúria e exploração capitalista, à custa qualquer identidade ou possibilidade de improvável demonstra uma tocante
guém. O que aqui aparecem, em delicio- de espectáculos televisivos de jogos vio- amor. Uma obra audaciosa e marcante profundidade no meio da loucura,
sas diversidades, são ruínas e artefactos. lentos de massacre. Missão? Passar para que concebe um futuro negro como
Ruínas de extintas civilizações alie- opressão e paranóia do regime do
o tal mundo de forma de alerta para os perigos do fun- Estado Novo. Uma história bem urdida
nígenas cujos artefactos, inexplica- fantasia, OVER- damentalismo e extremismo religioso. ao qual o talento de Joana Afonso
velmente, continuam a funcionar e a WORLD, através
tramar a vida aos colonos humanos. provou estar à altura.
de um buraco
Cabe aos Engenheiros “desligar” os verme, e massac-
s vezes, vindas de um passado pro- sistemas ainda activos ou utilizá-los rar, durante um
fundo, ascendem à superfície peque- para outros fins. Perceber o que raio
nas maravilhas como esta, que julgávamos período de tempo
queriam os alienígenas fazer com
para sempre perdidas. Bem haja o editor limitado, tudo o quase impossível de acreditar que Rock
aquilo, desde supermetropolitanos à
John Pelan que tem vindo a ressuscitar escala planetária, a estruturas feitas que são elfos, feit- Hudson, um dos maiores galãs de me-
autores de FC que o tempo e a indiferen- de sombra onde o tempo funciona iceiros, Princesas lodramas e westerns das décadas de 50 e
ça editorial resolveu enterrar para sempre. de modo diferente. Cada conto seu Guerreiras e Sen- 60, tenha entrado num filme tão sombrio
Colin Kapp será mistério. Cada mistério, com hores das Trevas. e retorcido como esta estranha obra-pri-
um autor que uma solução que não lem- Como um jogo ma de ficção científica e horror de John
provavelmente bra o diabo. O ciclo dos UNOR- de computador tornado real. Hari Michel- Frankenheimer, mas a verdade é que Hu-
ninguém ouviu THODOX ENGENEERS estava son tem os músculos amplificados, na- dson não só entrou, como teve um dos
falar. Mas, em- vedado aos fãs desde as edições nomáquinas a correr-lhe no sangue, uma papéis mais convincentes da sua carreira.
bora imbuído do esgotadas dos anos 70. Ei-lo que câmara incrustada no olho e uma espada A primeira parte do filme é interpretada
espírito “pulp”, regressa em todo o seu esplendor. com filamento monomolecular, capaz de por um protagonista mais velho que é
chegou a ser tão E frescura. / João Barreiros cortar carne de orc como nós cortamos contactado por uma misteriosa agência
confrontacional manteiga. Os direitos das fadinhas e elfos? que lhe oferece juventude e uma nova
como o próprio Quer lá ele saber, pelo menos de início. O vida abastada. Ao ganhar uma segunda
Alfred Bester. que as Corporações realmente desejam, é
Quem afirma vida, rapidamente cede à insatisfação e
explorar os recursos naturais deste novo anseia por desfazer o compromisso com a
não gostar de ler mundo. Minerais, petróleo, urânio, água
contos, nem sabe agência… Um filme moderníssimo, e em
não contaminada. Com um humor ácido, nada datado, que termina com um dos fi-
o que perde. Con- uma feroz crítica social ao sistema de cas-
tudo, para quem se atreva a regressar às nais mais perturbadores vistos em cinema.
tas anunciado pelo capitalismo selvagem,
esquecidas glórias da pós-Idade do Ouro
Matthew Stover diverte-se a desconstruir
da FC, aqui está uma mão cheia de FC
todos os clichés dos mundos de fantasia
hard (ou pelo menos tão hard quanto
nos permitiam os idos anos 50). Todos que infelizmente começaram a preencher
os contos desta antologia pertencem ao as estantes das nossas livrarias com um ex-
mesmo universo da Liga dos Engenhei- cesso de palha melosa. A Terra Média do
ros Não-Ortodoxos. Aqueles que pen- maginem um herói de fantasia, à la Co- Tolkien nunca mais será a mesma depois
sam fora da caixa. Aqueles que encon- nan, num mundo recheado de elfos, da “visita” envenenada deste ciborg ul-
tram sempre soluções divergentes para fadinhas, orcs e deuses sequiosos de sacri- tra-hitech que não olha a meios para subir
solucionar problemas aparentemente ir- fícios de sangue. Um mundo onde a ma- na pirâmide social do pesadelo corpora-
resolúveis. Os mal-criados que costumam gia funciona com o mesmo rigor de uma tivo deste nosso futuro já tão próximo.
trocar as voltas à ditadura militar dos equação matemática. Banal? Been there, done A vida é dura para os actores. Absoluta-
planetas ocupados pela espécie humana. that?? Nem pensem. Hari Michelson é um mente a não perder. / João Barreiros
Todos homens, helás.s Nestes contos, tan- actor a soldo das Mega Corporações num
ste é, sem dúvida, um Neste livro são introduzidos
dos maiores e mais em- conceitos revolucionários como a
blemáticos romances do “Matrix”, que designa um quase
género“Cyberpunk”, com universo alternativo no ciberespaço
uma influência que se es- (termo aliás popularizado pelo au-
tende ao Cinema (com a trilogia Ma- tor), onde computadores e progra-
trix dos irmãos Wachowski), Jogos mas são usados para projetar a cons-
de Computador (Shadowrun Returns), ciência humana permitindo a ligação
Banda Desenhada (Akira) e Anima- direta entre o homem e a máquina.
ção (com o revolucionário Ghost in the Um futuro predominantemente
Shell do mestre do anime Masamune sombrio e dominado por mega-cor-
Shirow) de entre outros que vão da porações em que o Homem e a Má-
Moda à Música. quina se fundem para “melhorar” o
Curiosamente saiu no mítico ano homem. Neuromancer é um livro de
(para os futuros distópicos) de 1984, referência e de certa forma um olhar
sendo a obra de estreia de William para o que a humanidade se pode
Gibson e conseguiu a proeza de tornar num futuro próximo (talvez
arrecadar os três principais prémios mais próximo do que o que seria de-
da ficção científica o “Nebula sejável).
Award”, o ”Philip K. Dick Award”e
o ”Hugo Award”.

ara comemorar os 60 anos decorridos desde a também estará disponível aos visitantes catering e mer-
publicação do clássico de Ray Bradbury, Fahre- chandising temáticos, bem como jogos e entretenimento
nheit 451, a Faculdade de Letras da Universidade relacionados com o universo Whoviano.
do Porto organiza uma série de conferências em
torno da temática “Projectando Futuros Ne-
gros” nos dias 14 e 15 de Novembro. Uma obra distó-
pica que reflecte parte da situação política do seu tempo,
Fahrenheit 451 expôs, por um lado, a censura do Estado,
o conformismo compulsivo e a erosão de ideais demo-
cráticos e, por outro, a forma como os média e a publi-
cidade esmagam o individualismo e criatividade. O filme
de François Truffaut de 1966, que conferiu uma maior
visibilidade à obra literária, fará parte do programa e será
exibido no dia 15 de Novembro.

Também na cidade do Porto, realizam-se nos dias 15 e 16


de Novembro um tributo a Doctor Who, a série britânica de
ficção científica da BBC que, este ano, celebra o seu 50.º
aniversário. Como parte das comemorações, uma série de
fãs portugueses está a a organizar uma exposição de tri-
buto ao universo de Doctor Who no Alma Porto Hostel.
De acordo com a informação fornecida pelo evento, esta
exposição conta com trabalhos de vários artistas nacionais
de norte a sul do país e, para além das criações expostas,

80 /// BANG!

Você também pode gostar