Você está na página 1de 474

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA

RUTH DANIELLE BEIRIGO LOPES

Antigamente não é mais hoje:


Mobilidade e transformação entre os noke koĩ no Acre

Tese de doutorado

RIO DE JANEIRO
2017
Ruth Danielle Beirigo Lopes

Antigamente não é mais hoje:


Mobilidade e transformação entre os noke koĩ no Acre

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de doutora em Antropologia.

Orientadora: Elsje Maria Lagrou

Rio de Janeiro
Março 2017
CIP - Catalogação na Publicação

Beirigo Lopes, Ruth Danielle


B422a Antigamente não é mais hoje: Mobilidade e
transformação entre os noke koi no Acre / Ruth
Danielle Beirigo Lopes. -- Rio de Janeiro, 2017.
474 f.

Orientadora: Elsje Maria Lagrou.


Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia, 2017.

1. Noke Koi (Pano). 2. Etnologia indígena. 3.


Mobilidade. 4. Transformação. 5. Território. I.
Lagrou, Elsje Maria, orient. II. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os


dados fornecidos pelo(a) autor(a).
para Orlando, Viño.
(in memoriam)
Agradecimentos

Essa tese é resultado de cinco anos de uma jornada que extrapolou os limites do trabalho e
penetrou duramente na minha vida pessoal. Durante esses cinco anos vivi em três cidades
diferentes e convivi com diferentes pessoas que certamente influenciaram o que apresento nas
páginas a seguir. Todas essas pessoas deveriam estar presentes nesse agradecimento, assim
que desde já peço desculpas por eventuais esquecimentos.

Antes de quaisquer outras pessoas ou instituições tenho que agradecer enormente aos noke
koĩ, a todos eles. De maneira especial agradeço a Orlando, Viño, que me acolheu em sua casa
e teve a doçura e a gentileza de me introduzir em sua família. Infelizmente não pude retribuir
a tempo toda sua generosidade antes da sua partida desse mundo, que não só foi determinante
para essa tese, como muito significativa para os noke koĩ e para mim. Agradeço a Nawashavo
pelos cuidados, por me alimentar e me ensinar a trançar palha e fazer pulseiras, por sua
paciência em me mostrar que sua pedagogia amorosa de conformar corpos para aprender é
mais eficaz que minhas anotações técnicas, por me ensinar que a minha mão não deve confiar
no meu olho. A Txore, Rẽpo e Washme, agradeço pela companhia nas longas tarde de
inverno, pelos passeios em outras aldeias, pelos banhos nos igapós, pelas conversas sobre os
nossos mundos e por me ajudarem tanto nos gráficos de genealogia. Às crianças Rona, Vepa e
Teka agradeço pela curiosidade e por cuidarem de mim nos caminhos na mata e para roçado.
A Tate e Rona agradeço pela cordialidade, carinho e generosidade em me receberem
cotidianamente em suas casas no tempo em estive em Masheya. A Machi agradeço por me dar
a oportunidade de continuar a amizade de 2009, por me cuidar e por todas as traduções de
conversas. Ao Posha agradeço pela confiança e por me levar a uma experiência de aplicação
de kãpo diferente e fundamental para entender melhor essa rã no mundo noke koĩ. Agradeço a
Aro Nainawa pelas conversas que tivemos em suas visitas às aldeias Bananeira e Masheya.
Em Waninawa, agradeço a Noya, que mesmo num momento muito difícil da sua vida me
recebeu em sua casa, me ensinou parte de seus conhecimentos e teve muita paciência diante
das minhas curiosidades ingênuas. Agradeço por sua persistência e por confiar no nosso
projeto de publicação. Um dia esse livro sai. À Patxara agradeço por me cuidar e pelas
conversas muitas vezes explicativas sobre o que estava acontencendo, sobre quem era quem.
A Aya Txõpi e Tama agradeço pela companhia e pelo interesse em mim. Aos pequenos
Nawa, Aro Txoki e Nomaiki agradeço por todo o amor. Agradeço muito especialmente à Naki
pela amizade e pelos cuidados carinhosos, pelos convite para lavar roupa, tomar banho e ir ao
roçado, mas principalmente por se dispor a uma amizade sincera e interessada apesar do
descompasso linguístico. À Yaka agradeço imensamente pela acolhida em Waninawa, por
suas visitas, companhia, amizade e aos convites, por me ensinar palavras e frases em sua
língua, por me incentivar e acreditar que eu podia ter um corpo do mesmo tipo do seu. A Ni’i
agradeço pela confiança, pelo carinho e por me ensinar tanto sobre política e parentesco.
Agradeço todas as vezes que cuidou de mim me aplicando kãpo ou traduzindo conversas. Sua
viagem precoce ainda é inacreditável. De maneira muito especial agradeço a Txoki por
compartilhar comigo suas curiosidades sobre o mundo de cá, por me contar suas histórias,
traduzir as narrativas e história noke koĩ, mas sobretudo pelo acolhimento, pelo carinho, pela
confiança, pela amizade e pelas piadas e risadas. Agradeço a Isã por se dispor a superar os
entraves das língua e se aproximar, por me convidar sempre e ser tão generosa comigo. A
Txane, Tero e Poko agradeço pelas conversas sobre a mata, os bichos e os caminhos e
também pelas companhias em silêncio. A Mami e Vena agradeço pela companhia tímida e
silenciosa, pelos convites de ir ao roçado e por confiarem em mim. Ao Ma’i agradeço pela
oportunidade de poder conviver em seus últimos anos nesse mundo e à Kana pela
generosidade em me receber em sua casa sempre com bom humor e leveza. Em
Campinas/Kamanawa agradeço imensamente a Kapiyo e a Vote pela amizade, confiança e
acolhimento, por me abrigarem, me alimentarem e me fazerem sentir em casa. A Vote
agradeço especialmente por me apresentar as pessoas de Campinas, por me levar para passear
e por seu interesse na minha pesquisa. Agradeço a Levino pela sinceridade de suas conversas
desconfiadas que me ensinaram muito sobre a relação com os yara e com os yawanawa.
Agradeço a Kako pelas visitas enquanto eu vivia em outras aldeias, pelo interesse e respeito e
por todas as conversas que tivemos. Agradeço a Rosinha pela confiança e pela paciência e
tolerância em me receber em sua casa com questões totalmente despropositadas.
Em Varinawa agradeço de maneira especial ao Tapo, ao Pe’o, ao Piña, ao Txasho e ao Metsa
que me receberam com respeito e interesse nas minhas questões. A eles agradeço a acolhida,
as refeições e as conversas sobre a mata, os bichos, os caminhos, as comidas e as relações
com os yara e com as lideranças. Agradeço a Tapo por me ensinar muito sobre cosmopolítica,
sobre os yara e sobre poder, mas também por me mostrar parâmetros noke koĩ sobre atributos
da pessoa, sobre cuidado e parentesco. A Pe’o agradeço por tratar a minha angústia de
trabalho com seus conhecimentos do kãpo e sua tranquilidade em fazer companhia em
silêncio. Agradeço ainda à Mashe por enquanto esteve visitanto Masheya ter me convidado a
passeios e banhos e passado algumas noites gravando txiritĩ e dando risadas.
Em Samaúma agradeço a Shere, Pano e Po’a, por me receberem e confiarem em mim, por se
disporem a minhas curiosidades e pela paciência em me explicarem seus pontos de vista sobre
as relações com os yara e com os contextos atuais da TI, pelas conversas sobre comidas,
plantas, bichos e perigos. À Lucinha agradeço pela amizade sincera e por sua receptividade e
alegria em me receber.
Agradeço imensamente àqueles que antes viviam em Bananeira e foram para o Gregório por
me receberem nos dois lugares. De forma especial agradeço a Pero Maurício pela paciência e
diplomacia em lidar com as minhas questões e por suas explicações de coisas do mundo noke
koĩ tão obvias para ele. A sua família por me acolher em sua casa e me alimentar com tanta
generosidade. Ao pajé Pero agradeço pelo cuidado, pela confiança, por me acolher e por todas
as conversas.
No Gregório, agradeço a Aya por me receber tão generosamente, por sua alegria e carinho em
me acolher. Agradeço também a Tane, Seya e Tero por me receberem em suas novas aldeias e
me hospedarem e pelas conversas tão agradáveis e reveladoras.

Essa convivência com os noke koĩ e a confecção dessa tese só foi possível graças ao apoio
institucional da CAPES, do PPGSA e da Els Lagrou. À CAPES agradeço pela bolsa de
doutorado por quatro anos que permitiu nesse período dedicação exclusiva a essa pesquisa.
Ao PPGSA agradeço pelo suporte institucional, pela infraestrutura, pelo apoio em questões
burucráticas, pelo empréstimo de equipamentos para trabalho de campo e por financiar a
primeira viagem a campo. A Els agradeço pelas aulas, pela leitura da tese, pela confiança e
por seus comentários.
No PPGSA agradeço também aos professores e aos funcionários, em especial a secretária
Claúdia Correa e aos professores Maria Barroso, Marco Antonio Gonçalves e Luiz Costa.
Agradeço também aos colegas do PPGSA e do NAIPE: Camila Bevilaqua, Renan Reis, Ana
Gabriela Morim, Thiago Barcelos, Flora Lucas, Carolina Lopez, Adriano Gonçalves, Nina
Vincent, Ricardo Delezcluze e Danilo Mariano pelos encontros e conversas ainda que breves.
Agradeço especialmente a Maria Isabel Cardozo e Roberta Novaes pela amizade, pelas
conversas e por compartilhar as angústias dessa jornada e da vida.
Agradeço aos argentinos que passaram pelo PPGSA e que me brindaram uma amizade para
toda a vida, em especial a Francisco Pazzarelli, pela amizade e por seu interesse no meu
trabalho, e a Marina Liberatori que me recebeu tão calorosamente em Córdoba.
Agradeço aos professores Eduardo Vargas e Ruben Caixeta pelas formações anteriores
indispensáveis a essa tese. De maneira especial agradeço a Tânia Stolze pelas conversas, pela
inspiração intelectual e pelos ensinamentos valiosos no mestrado e no doutorado que sem
dúvida fizeram toda a diferença na etnografia dessa tese.
Agradeço ao professor Manoel Neto, coordenador do curso de Ciências Sociais da PUC-
Minas, pela confiança e oportunidade em experimentar a docência no ensino superior.
Agradeço aos membros titulares e suplentes da banca: Tânia Stolze Lima, Miguel Carid,
Joanna Miller, Luiz Costa, Marco Antônio Gonçalves e Luisa Elvira Belaunde pela
oportunidade ter seus comentários.
No México, agradeço a todos os colegas do seminário Humanidad Compartida, em especial a
Isabel Martinez, Alejandro Fujigaki, Susana Kolb, Carlo Bonfiglioli, Laura Sanjuan, Abril
Olmos, Maria Benciolini, Marcela Garcia, Karla Ramirez, Israel Lazcano, Mirjana Danilovic,
Toño Sampayo, Camila Mainardi, Imelda Aguirre, Silvina Vigliani, Mariana Petroni e
Ernenek Mejia pelos encontros na Unam, pelos comentários a textos que apresentei e pelas
conversas e acolhidas pós-seminários. Agradeço de forma especial a Isabel Martinez por me
receber em sua casa, por me convidar a compartilhar um texto e minhas experiências de
campo com seus alunos e pelo seu interesse no meu trabalho. Agradeço ao Fuji, apesar de
toda a violência vivida, pelos anos que passamos juntos, por ter me ajudado a aprender
espanhol, por me apresentar o México, me inserir na Unam, me dar tantos amigos no DF e me
ajudar a perceber lo que no es lo mío. Agradeço a Suzi Kolb pelo carinho e pela amizade. A
Carlo Bonfiglioli agradeço pelo interesse no meu trabalho, por ler meus textos e pelas
oportunidades de compartilhar no seminário, mas sobretudo, por me acolher em sua casa,
pelas viagens, comidas e conversas. Agradeço a Johannes Neurath pelos encontros e
conversas sobre antropologia e sobre os índios. Ainda no México agradeço a Samuel Herrera
pela amizade, por me apresentar os huave de San Mateo del Mar, por todas as comidas e
conversas sobre linguística, o Brasil, a vida e os indígenas. A Sandra Monzoy, Rodolfo Solis
e Martha Becerril agradeço pela amizade e por me acolherem calorosamente na brutal Cidade
do México.
No Rio de Janeiro agradeço aos amigos que me acompanharam durante o tempo de doutorado
que estive por lá: Ylla Gomes, Ernesto Magalhães, Marcus Gomes, Elisa Freitas, Felipinho,
André, Baiano e Francyne França. No Rio, sou grata sobretudo a família ruibarbosina, Ju
Caldas, Filipe Chipe e Roger Schmidt com quem pude compartilhar um verdadeiro lar, com
amor, compreensão e cuidados de família. Agradeço especialmente à Ju Caldas por tolerar
minhas idas e vindas entre Rio, México, Cruzeiro do Sul e Belo Horizonte, mas
principalmente pela amizade de irmã e por topar o projeto de uma casa acolhedora. Ao Chipe
agradeço pelo amor e o cuidado dispensados a mim nos anos que vivemos juntos na Rui
Barbosa e até hoje. Ao Roger agradeço pelo companherismo nos momentos mais duros da
vida em solo carioca e pelo amor incondicional que não acaba nunca. Aos três agradeço pela
oportuinidade de viver um amor de família em qualquer cidade que estejamos. O apoio dos
três nos últimos cinco anos foi, sem dúvida, fundamental para produção dessa tese.
Em Cruzeiro do Sul agradeço à coordenação regional da Funai e ao DSEI ARJ pelo apoio
insitucional. Na Funai agradeço aos funcionários: Timbu, Evilásio, Juice que sempre foram
receptivos e prestativos. Agradeço ao coordenador regional Luiz Valdenir pela confiança no
meu trabalho. Agradeço a Gleyce pela amizade e pela abertura, ao Rodorfo e a Joyce pela
amizade e por estarem sempre dispostos a ajudar. Agradeço de maneira especial a Ruama
Santos e Priscila Ribeiro que, para além do trabalho, foram companheiras maravilhosas na
vida solitária de Cruzeiro do Sul. Agradeço de maneira especial ao Jairo Lima que sempre
apoiou o meu trabalho com os noke koĩ, me forneceu acesso privilegiado a muitos
documentos e me deu a oportunidade de trabalhar num GT da Funai. Agradeço também por
todas as nossas conversas, mas sobretudo por me acolher e me receber em sua casa, cuidar de
mim enquanto estive doente e me dar a oportunidade da sua amizade e de conviver com a sua
família. Agradeço ao Círdan e a Sara pelo carinho.
Agradeço aos vizinhos Jefferson, Elana, Julia e Máira por, apesar de todos os equívocos, me
terem feito companhia e aberto a porta de suas casas. Agradeço a Ariel pelas conversas e
trocas sobre os noke koĩ. Agradeço a Janeide Vasconcelos pela amizade e por ser uma ótima
interlocutora no trabalho. Agradeço ao Jozadaque Bezerra pelas conversas e por compartilhar
suas experiências de campo. Agradeço a toda a equipe multidisciplinar do pólo de saúde
Washme Kamanawa da TI Campinas, de maneira especial a Cleiciane Uchoa, Nívea Bussons,
Jessica Oliveira, Carmen Mesa Cepero, Clecia Lima e Damiana Avelino pelas valiosas
contribuições, pelas conversas e abertura ao diálogo.
Às amizades sem localização geográfica precisa, agradeço a Orlando Scarpa, Márcia Nóbrega
e Maria Júlia Gomes Andrade pela amizade para vida toda, pelo amor, pelo apoio, pelo
amparo e pela inspiração fundamentais para a vida e para que essa tese chegasse ao fim.
Agradeço a Leonor Valentim pela amizade e por me encorajar a ir a campo. Agradeço
também ao Zé Miguel por essa nossa amizade linda com tantas fases diferentes e por ser para
mim um exemplo acadêmico. Ao Orlando, Scarpa, agradeço também pelo abstract.
Agradeço a minha família que mesmo sem entender meus propósitos de morar em várias
cidades diferentes e em fazer esse doutorado nunca se opôs e sempre me incentivou a
terminar o que comecei. Agradeço a eles (Milton, Aparecida, Willy, Larissa, Wilson e
Shirley) sobretudo pelo amor e pela confiança nas minhas escolhas.
Igualmente agradeço à família Iusten Silva que me acolheu tão calorosamente entre eles e me
apoiou na escrita dessa tese. Em contra-dávida a esse amor confiado venho gerado junto com
o fim dessa tese mais um membro para essa família. A esse bebê, a minha sobrinha Lívia
Duarte e aos meus animais agradeço pela inspiração de leveza e persistência que têm em levar
a vida adiante, o que me encorajou a chegar ao fim desse doutorado.
Aos meus amigos de sempre, Bruno Paes, Davis Diniz, Fernando Torres Pacheco, Patrick
Arley, Pedro Kalil, Rogério Brittes, Theo Duarte, Júlia Cabo, Carol Macedo, Viviane Maroca
e Guilherme Zubaran, agradeço pela inspiração baseada na admiração que tenho por cada um
e em suas trajetórias acadêmicas, pela amizade e pela tolerância às longas ausências e ao mau
humor.
Em Brasília, agradeço aos novos amigos (e aos anteriores a minha ida para lá) pela recepção
ímpar que tive nessa cidade. Em especial, agradeço a Paula Wolthers, Fabrício Amorim, Ju
Caldas, Marina Farias, Roger Schmidt, Julia Clímaco, Alexandre Dantas, Manu Osório e
Rodrigo Trajano pelo acolhimento nesse último ano de escrita. Agradeço também a Silvie
Eidam que já havia previsto nas cartas os encontros e a floresta que resultaram importantes
para essa tese.
Por fim, ao Marco Antonio, o melhor companheiro de campo, de tese e de vida que eu poderia
desejar ter, agradeço por todo o amor, cuidado e atenção a mim dedicados, pelas leituras
atenciosas de cada parágrafo, capítulo e nota, pela revisão da tese, pelas conversas, pelas
viagens, por dividir bananas em campo, por compartilhar seus saberes e informações, por
apoiar minhas escolhas e por financiar parte dessa tese.
– O mundo está mudando - dissera-lhe. – Eu não gosto disso. Mas sou
como o pássaro eneki-nti-oba. Quando os amigos lhe perguntaram por
que ele estava sempre voando, respondeu: “os homens de hoje
aprenderam a atirar sem errar, e por isso eu tive que aprender a voar
sem pousar”. Desejo que um de meus filhos se junte a essa gente e seja
um olho meu lá. Se não houver nada nessa história, você voltará, mas
se houver alguma coisa lá, você trará para casa o meu quinhão. O
mundo é como uma máscara dançando. Se você quer vê-la bem,
não deve ficar parado num lugar só. Meu espírito me diz que aqueles
que não fazem, hoje, amizade com o homem branco estarão dizendo
amanhã: “Ah, se eu tivesse sabido”.
Chinua Achebe - A flecha de deus
BEIRIGO LOPES, Ruth Danielle. 2017. Antigamente não é mais hoje: Mobilidade e
transformação entre os noke koĩ no Acre. Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Antropologia).
Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciência
Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

RESUMO

Experimentando sistematicamente alterações em diversas esferas, a vida dos noke koĩ na


atualidade é resultado de uma série de mudanças que atingiram as populações indígenas como
um todo. Desde cerca de 120 anos de contato com a sociedade nacional, os noke koĩ vêm
estabelecendo com o Estado, e suas variantes não-indígenas, relações duradouras. Essa tese
busca apresentar por meio de algumas notas etnográficas alguns dos efeitos dessa relação,
sobretudo no que toca ao mecanismo estratégico e tradicional desse grupo de se transformar
nas relações, mantendo-se – apesar da estrada, das políticas indigenistas e do avanço não-
indígena sobre seus territórios – uma prática política de contra virar-branco. A etnografia
mostra que essa resiliência não obvia, contudo, os efeitos implacáveis das práticas coloniais,
nem tampouco significa uma reação adaptativa ao contato com a sociedade nacional. Mais do
que dar continuidade a uma tradição estanque ou meramente a sua existência física, os noke
koĩ têm conseguido incorporar a ordem resultante do contato em seu próprio mundo, através
de processos de transformação que, antes de serem novas estratégias, são o modo próprio de
se reproduzirem a si mesmos e o seu mundo.
A pesquisa desenvolvida nessa tese resultou em perceber uma dinâmica de transformação
própria aos noke koĩ em que a relação entre a transformação histórica e a transformação
estrutural é mutuamente constitutiva. O modo de ocupação das casas do governo, a relação
com a estrada, com as novas formas políticas e os recentes deslocamentos mostram que a
estrutura tradicional interfere nas novidades históricas ao mesmo tempo que se modifica.
Nesse sentido, a mobilidade entre os noke koĩ tem se mostrado uma constante à prova da
história, funcionando como uma estratégia política de negociação e de contornar as valentias e
as forças opressivas.

Palavras-chave: Mobilidade. Território. Transformação. Noke koĩ. Pano.


BEIRIGO LOPES, Ruth Danielle. 2017. Old days are not today: Mobility and transformation
among the noke koĩ in Acre. Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Antropologia). Programa de
Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciência Sociais,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

ABSTRACT

While systematically experiencing changes in various spheres, the life of the noke koĩ
nowadays is the result of a series of changes that affect indigenous populations as a whole.
Since approximately 120 years of contact with national society, the noke koĩ have been
establishing long-lasting relations with the State and its non-indigenous variations. This
dissertation seeks, through a series of ethnographic notes, to present some effects of this
relation, specially those regarding the group’s traditional and strategic mechanisms of
transforming itself in relations, maintaining – despite the highway, the indigenist policies, and
the non-indigenous advance on their territory – a political practice against turning-white.
However, the ethnography shows that this resilience does not obviate the relentless effects of
colonial practices, nor does it imply an adaptive reaction to the contact with national society.
More than continuing a watertight tradition or merely their physical existence, the noke koĩ
have been able to incorporate the order resulting from their contact with their own world
through processes of transformation that, before being new strategies, are their own way of
reproducing themselves and their world.
The research undergone in this dissertation brought to light a transformation dynamic unique
to the noke koĩ in which the relation between historical and structural is mutually constitutive.
The mode of occupying the government houses, the relation with the highway, with the new
political forms and the recent displacements show that the traditional structure interferes in
historical novelties whilst at the same time modifying itself. In this sense, the mobility among
the noke koĩ has shown itself to be a history-proof constant, functioning as a strategy for
political negotiation and for avoiding aggressiveness and oppressive forces.

Keywords: Mobility, Territory, Transformation, Noke Koĩ, Pano.


Nota linguística, grafia e pronúncia

Para a grafia dos termos em noke vana (língua dos noke koĩ)1 adotei a convenção
ortográfica usada pelos professores indígenas da língua noke koĩ a partir da cartilha de
alfabetização (Shere Katukina et alli 2004) e de aulas que tomei com eles de sua língua.
Importante notar que diferente da cartilha, as aulas que recebi não incluíam a letra u como
parte do alfabeto noke koĩ. Para a leitura das palavras em noke vana nessa tese proponho a
seguinte transcrição fonética que não se pretende formal nem científica2.
a = aberto, como a em azul
ch = como x em xixi
e = fechado, como e em este
h = aspirada como h em house em inglês
i = como i em milho
ĩ = como e em premier em francês
k = como c em casa
m = como em mato
n = como n em noite
o = como o em oco e em algumas situações tende a u como no português, zoológico
p = como p em pano e como b em banho, por exemplo, kãpo, que se lê kambo.
r = como r em caro, mesmo no início da palavra
s = como ss em assado
sh = como sh em shower em inglês
t = como t em tábua
ts = como zah em zahn em alemão
tx = como tch em tchau
v = como v em vaso em espanhol
w = como w em want em inglês
y = como y em you em inglês
' = oclusão glotal
~ = indica sempre nasalização

Segundo Falchi (2013), todas as palavras em noke vana possuem o acento na última
sílaba, assim em yara, lê-se yará. De acordo com a autora (2015) e outros linguistas, o acento
das palavras no entanto não tem função distintiva, sendo apenas fonético. Os trabalhos sobre a
língua dos noke koĩ utilizados nessa tese foram: Aguiar 1988, 1993, 1994 e Falchi 2015.
Para os demais povos citados, os termos e os etnônimos seguem as grafias presentes
nas etnografias analisadas. Todos os termos em línguas indígenas, com exceção do próprio
etnônimo, estão grafados em itálico. Ao final da tese apresento um pequeno glossário com as
palavras na língua dos noke koĩ usadas nessa tese.

1
Segundo Falchi (2015), a língua dos noke koĩ ficou conhecida na literatura pelos nomes de Katukina e
Vitxináwa. Para mim, os noke koĩ sempre nominaram sua língua materna como noke vana (literlamente, nossa
língua).
2
Para uma descrição fonológica precisa ver Falchi et al. 2011.
Lista de mapas e ilustrações
Todos os mapas e ilustrações são da autora, exceto quando indicado

Mapa 1 - Localização geográficas das TIs Campinas/Katukina e Rio Gregório......................36  


Mapa 2 - Mapa de Erikson 1998 in: Calavia Sáez 2006a, com alterações do autor.................37  
Mapa 3 - Localização das aldeias na TI Campinas/Katukina...................................................50  
Mapa 4 - Mapa de deslocamento entre seringais......................................................................73  
Mapa 5 - Localização aproximada de alguns seringais ............................................................74  
Mapa 6 - TI Campinas Localização aproximada de colocações ..............................................76  
Mapa 7 - TI Campinas - Configuração histórica das aldeias....................................................79  
Mapa 8 - Localização aproximada das aldeias na TI Gregório em janeiro de 2016 ..............103  
Mapa 9 - Área de distribuição aproximada de alguns produtos de coleta no entorno das aldeias
Campinas, Waninawa e Varinawa..........................................................................................222  
Mapa 10 - Área de distribuição aproximada de alguns produtos de coleta no entorno das
aldeias Samaúma, Masheya e Bananeira................................................................................223  
Mapa 11 - Localização aproximada de piques e tapiris..........................................................244  
Mapa 12 - Localização aproximada de alguns rios ................................................................266  
Mapa 13 - Localização dos rios limítrofes das TIs Campinas/Katukina e Rio Gregório.......273  
Mapa 14 - Localização de locais mais comumente percorridos na cidade.............................275  
Mapa 15 – Mapa da TI Rio Gregório com a localização das aldeias até 2014. .....................279  
Mapa 16 - Revisão de limites da TI Rio Gregório. Mapa extraído do relatório de revisão
publicado no DOU de 3/6/2006, também disponível em Funai 2006. ...................................281  
Mapa 17 - Entorno da Resex Riozinho Liberdade .................................................................286  
Mapa 18 - Entorno da TI Campinas/Katukina........................................................................288  
Mapa 19 - Blocos de prospecção de petróleo para leilão .......................................................289  
Mapa 20 - Projeto de corredor de torres de energia e TIs Campinas/Katukina e Rio Gregório
................................................................................................................................................290  
Mapa 21 - Ramais no entrono da TI Campinas/Katukina ......................................................291  
Mapa 22 - Extensão do ramal Boa Hora no entorno da TI.....................................................292  
Mapa 23 - Área reivindicada no ig. Miolo .............................................................................297  

Ilustração 1 - Aldeia Masheya em 2009 ...................................................................................62  


Ilustração 2 - Shovo e roçado seguidos de floresta...................................................................63  
Ilustração 3 - Colocação de seringa: casa, estradas, centro e margem .....................................65  
Ilustração 4 - a) jirau tapo; b) casa tapo; c) shovo maloca .......................................................67  
Ilustração 5 - Aldeia Campinas/Kamanawa em 2009 ..............................................................80  
Ilustração 6 - Aldeia Varinawa (Martins) em 2009..................................................................80  
Ilustração 7 - Aldeia Samaúma em 2009..................................................................................81  
Ilustração 8 - Aldeia Bananeira em 2009 .................................................................................81  
Ilustração 9 - Planta da casa PNHR..........................................................................................84  
Ilustração 10 - Esquema da parte interna da maloca ..............................................................113  
Ilustração 11 - Projeção de maloca sobre aldeia e compartimentos sobre casas....................113  
Ilustração 12 - Aldeia Campinas/Kamanawa em 2015 ..........................................................115  
Ilustração 13 - Aldeia Waninawa em 2015 ............................................................................115  
Ilustração 14 - Aldeia Varinawa em 2015 ..............................................................................116  
Ilustração 15 - Aldeia Samaúma em 2015..............................................................................116  
Ilustração 16 - Aldeia Masheya em 2015 ...............................................................................117  
Ilustração 17 - Aldeia Bananeira em 2015 .............................................................................117  
Ilustração 18 - Categorias taxonômicas e níveis hierárquicos................................................155  
Ilustração 19 - Bananeira e suas partes .................................................................................. 199  
Ilustração 20 – Chicória ......................................................................................................... 200  
Ilustração 21 - Ilustração pé de macaxeira e suas partes........................................................ 202  
Lista de gráficos e fotos
Todos os gráficos e fotos são da autora, exceto quando indicado

Gráfico 1 - Um mesmo grupo doméstico de Masheya em 2009 e em 2014...........................112  


Gráfico 2 - Terminologia de primo cruzado por gênero.........................................................118  
Gráfico 3 - Exemplos de afiliação genealógica materna ........................................................124  
Gráfico 4 - Exemplos de afiliações genealógica maternas e paternas entre grupos aparentados
................................................................................................................................................125  
Gráfico 5 - Grupo doméstico aldeia Waninawa em 2014 ......................................................130  
Gráfico 6 - Grupo doméstico que deslocou da ald. Bananeira para TI Rio Gregório ............143  
Gráfico 7 - Combinação de regras de primo cruzado e exogamia..........................................148  
Gráfico 8 - Lideranças descendentes de Toshpiya .................................................................320  
Gráfico 9 - Angelica, Washme, Ro’a e Antonio Luiz ............................................................334  
Gráfico 10 - Lideranças kamanawa ........................................................................................353  

Foto 1 - Kupixawa, TI Campinas/Katukina - Foto Jairo Lima 2004........................................66  


Foto 2 - Assoalho de paxiúba ...................................................................................................68  
Foto 3 - Paredes e assoalho de paxiúba ....................................................................................68  
Foto 4 - Fresta entre tábuas.......................................................................................................68  
Foto 5 - Telhado de palha: vista externa e detalhe interno - Aldeia Bananeira 2009...............69  
Foto 6 - Casas de paxiúba e telhado de palha - Aldeia Masheya 2009 ....................................70  
Foto 7 - Casas da aldeia Masheya em 2009..............................................................................70  
Foto 8 - Construção das casas do PNHR - Foto Assessoria da SeHab/AC ..............................82  
Foto 9 - Frente e costas da casa PNHR ....................................................................................84  
Foto 10 - Focos de malária .......................................................................................................85  
Foto 11 - Foco de malária e material tóxico - Ald. Waninawa ................................................86  
Foto 12 - Tecendo palha para o telhado étnico - Aldeias Masheya e Waninawa.....................87  
Foto 13 - Fogão à lenha ............................................................................................................88  
Foto 14 - Adaptações de cozinha às casas do governo – aldeia Waninawa .............................90  
Foto 15 - Reunião na parte da frente da casa do cacique Ni’i – Ald. Waninawa – Foto Tama90  
Foto 16 - Fileira de casas com ramal – aldeia Waninawa ........................................................91  
Foto 17 - Posicionamento das casas do PNHR.........................................................................92  
Foto 18 - Cozinha coletiva – Aldeia Waninawa.......................................................................95  
Foto 19 - Casas com diferentes posicionamentos das tábuas ...................................................97  
Foto 20 - Projetos de planta de aldeia.......................................................................................98  
Foto 21 - Fiação elétrica improvisada - Ald. Waninawa..........................................................99  
Foto 22 - Casa incendiada – Aldeia Masheya – Foto Marco Antonio Iusten.........................100  
Foto 23 - Abertura de ramais frente as casas..........................................................................101  
Foto 24 - Aldeia Pirarara TI Rio Gregrio ...............................................................................103  
Foto 25 - Casa do Pero na TI Rio Gregório............................................................................104  
Foto 26 - Cozinha da casa da mã de Pero - Ig Cujubim / TI Rio Gregório ............................105  
Foto 27 - Uma das casas na aldeia Pirarara - TI Rio Gregório...............................................105  
Foto 28 - Roçado de banana atrás das casas - Ald. Pirarara...................................................106  
Foto 29 - Coivara da área de roçado – foto Metsa Varinawa .................................................197  
Lista de tabelas
Tabela 1 – População de cada TI por ano de 1977 a 2015 .....................................................146  
Tabela 2 - Pite koĩ - Bichos que se come ..............................................................................163  
Tabela 3 - Shakaya - Bichos de casco ....................................................................................165  
Tabela 4 - Shakaya - Bichos de casco (cont.)........................................................................165  
Tabela 5 - Kara e Chai - Aves do mato e passarinhos ...........................................................170  
Tabela 6 - Tsatsa - Peixes .......................................................................................................172  
Tabela 7 - Outros bichos d'água .............................................................................................172  
Tabela 8 - Rono - cobras.........................................................................................................174  
Tabela 9 - Asha - Sapos ..........................................................................................................176  
Tabela 10 - Bichos que não se come ......................................................................................179  
Tabela 11 - Bichos kamã ........................................................................................................183  
Tabela 12 - Tipos de solo .......................................................................................................191  
Tabela 13 - Calendário de roçado TI Campinas/Katukina .....................................................193  
Tabela 14 - Mani - Banana: qualidades e consumos ..............................................................200  
Tabela 15 - Atsa - Qualidades de macaxeira ..........................................................................201  
Tabela 16 - Poa - Qualidades de inhame................................................................................202  
Tabela 17 - Sheki - Milho: qualidades e caractéristicas..........................................................203  
Tabela 18 - Shenã - Ingá: qualidades e características ...........................................................205  
Tabela 19 - Plantas úteis.........................................................................................................216  
Tabela 20 - Nomes de piques, igarapés e tapiris ....................................................................243  
Tabela 21 - População noke koĩ e yawanawa da TI Rio Gregório .........................................280  
Tabela 22 - Chefes e pajés: atributos......................................................................................340  
Tabela 23 - Chefes e pajés: semelhanças e diferenças ...........................................................341  
Tabela 24 - Chefes e pajés: outras semelhanças e diferenças.................................................342  
Lista de siglas e abreviações

ACIS (AIS) – Agente comunitário indígena de saúde


AISAN – Agente indígena de saneamento
AKAC – Associação Katukina do Campinas
CPI/AC – Comissão Pró-Índio do Acre
DSEI – Distrito Sanitários Especial Indígena
Funai – Fundação Nacional do Índio
Funasa – Fundação Nacional de Saúde
ICMBio – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
MPF – Ministério Público Federal
PNHR – Programa Nacional de Habitação Rural
Resex – Reserva Extrativista
SeHab – Secretaria de Habitação
SEMA – Secretaria de Meio Ambiente
SESAI – Secretaria Especial de Saúde Indígena
TI – Terra indígena
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................35  
Os noke koĩ – nome e localização ......................................................................................35  
Temas, assuntos e capítulos ...............................................................................................40  
A pesquisa............................................................................................................................48  
Nota etnográfica: eventos catalisadores ...........................................................................51  
De 2009 a 2015..............................................................................................................................52  
Fluxos de circulação .....................................................................................................................53  
Morte, feitiçaria e deslocamentos .................................................................................................55  
Feitiçaria, deslocamentos e poder político ...................................................................................56  

CAPÍTULO 1 – O MOVIMENTO: MORADIA E MOBILIDADE..................................61  


Parte 1 – Aldeia noke koĩ ...................................................................................................61  
Mobilidade em tempos de terra indígena .........................................................................71  
A composição das aldeias na TI Campinas/Katukina.....................................................79  
Configurações recentes.......................................................................................................82  
Mitigar impactos............................................................................................................................83  
Escassez de material......................................................................................................................86  
Negociações sócio-políticas.................................................................................................95  
Outras negociações sócio-políticas ..................................................................................101  
Breve relato sobre as mudanças recentes para a TI Rio Gregório ..............................102  
Parte 2 - A composição da organização social ...............................................................106  
A morfologia da aldeia .....................................................................................................107  
A distribuição espacial dos grupos domésticos ..............................................................111  
Casa, grupo doméstico e regra matrimonial ..................................................................117  
Grupos domésticos: casas e Casas...................................................................................119  
A casa noke koĩ .................................................................................................................122  
Casas e clãs ........................................................................................................................123  
Onomástica e clãs, Casa e bens imateriais .....................................................................127  
Casa, grupos domésticos e padrões de residência..........................................................129  
Casa, grupo doméstico e regimes cooperação ................................................................133  
Casa, grupo doméstico e comensalidade.........................................................................134  
Aparentamento processual: cooperação, co-residência e comensalidade ...................135  
Parentesco processual e instável noke koĩ ......................................................................137  
Casa e mobilidade: grupos domésticos de relatedness...................................................142  
Sociedade de casa ou de parentesco? ..............................................................................147  
Relatedness e a Casa-corpo noke koĩ .............................................................................. 149  

CAPÍTULO 2 – MOBILIDADE, SUBSISTÊNCIA E TERRITÓRIO........................... 153  


Categorias de discrepância ontológica ........................................................................... 153  
Estudos de classificação ............................................................................................................. 154  
Classificações noke koĩ – os recursos do território.................................................................... 158  
Parte 1 – Descontinuidade dos Seres .............................................................................. 159  
Noke yo'ina keyos aka'i: a gente caça bichos de dia .................................................................. 159  
Categorias animais ..................................................................................................................... 163  
Shakaya – bichos de casco.......................................................................................................... 164  
Kara e Chai – Aves do mato e passarinhos ................................................................................ 165  
Tsatsa – peixes ............................................................................................................................ 170  
Rono – cobras ............................................................................................................................. 172  
Asha – sapos: bicho de substância com agência ........................................................................ 175  
Bichos yochĩ – bichos que não são bichos.................................................................................. 176  
Yoina – animais e regimes alimentares ...................................................................................... 177  
Yoina ........................................................................................................................................... 179  
Mito de origem dos yoina ........................................................................................................... 179  
Kamã nõ, yoina nõ: Noke koĩ é yoina de kamã........................................................................... 182  
Kamã nõ, yoina nõ, noke koĩ nõ – posições relacionais ............................................................. 184  
Mito da onça, o bacurau e a curica – Kamã, veshki nõ, porosh no’ãto txiki honẽti (ou Kamã,
Veshk Txere, Parosh To'och) ...................................................................................................... 184  
Código alimentar ........................................................................................................................ 187  
As plantas pite koĩ ............................................................................................................ 189  
Roçados – wai ............................................................................................................................. 190  
Botar roçado ............................................................................................................................... 195  
O que os roçados produzem........................................................................................................ 198  
As plantas não cultivadas da mata – ni’i.................................................................................... 206  
Entre mato e planta – domínios cosmológicos ........................................................................... 207  
A relação com as plantas cultivadas .......................................................................................... 208  
Criando corpos: fabricar e educar ................................................................................. 210  
Filhos e pais de criação .............................................................................................................. 212  
As plantas não-cultivadas ........................................................................................................... 215  
Plantas não cultivadas: plantas úteis ......................................................................................... 216  
Plantas não cultivadas: medicina rao ........................................................................................ 217  
As plantas do roçado da cobra-pajé:.......................................................................................... 219  
Parte 2 - Plantas não cultivadas comestíveis: subsistência e mobilidade.................... 220  
Parte 3 – Território e descontinuidades do espaço........................................................231  
Estratificações da floresta: Plantado e não-plantado.................................................................231  
Floresta, roçado, capoeira e aldeia: descontinuidades do espaço .............................................232  
Yoina nõ ni’i nõ - Caçada e floresta............................................................................................235  
Toponímia: índice de outras relações .........................................................................................237  
A estratificação horizontal da floresta: relações que criam descontinuidades ..........................239  
Caminhos, piques e cursos d'água ..............................................................................................241  
Mito do gavião que comeu noke koĩ ............................................................................................245  
Os caminhos: mutualidade construtiva .......................................................................................251  

CAPÍTULO 3 – TERRAS E TERRITÓRIOS ...................................................................255  


Território – condição para ser.........................................................................................255  
Mito e histórias de deslocamento ................................................................................................257  
Mito de origem dos noke koĩ........................................................................................................258  
Territórios relacionais.................................................................................................................264  
Padrões de deslocamento e de assentamento - Dispersão e retração ...........................269  
Terras oficiais - As TIs dos noke koĩ ...........................................................................................272  
Os deslocamentos do Gregório para o Campinas.......................................................................277  
Gregório: Revisão ocupação e composição ................................................................................277  
A TI Campinas/Katukina: dimensões ecológicas ........................................................................284  
Vulnerabilidade social.................................................................................................................294  
Revisão e reivindicação...............................................................................................................295  
A TI Campinas e a reivindicação do Miolo: dimensões sócio-cosmológicas .............................298  
Violência, morte, distância e esquecimento ................................................................................300  
Degradação do território e da condição de pessoa ....................................................................304  
Terra e território – resistência política versus produtividade ......................................307  
Mito do homem quatipuru – (Kapã Yochĩ) .................................................................................309  

CAPÍTULO 4 – MOBILIDADE E PODER POLÍTICO..................................................317  


Mobilidade e resistência...................................................................................................317  
Miolo – Ecologia e anterioridade histórica ................................................................................317  
Chefia e política...........................................................................................................................321  
A chefia noke koĩ..........................................................................................................................322  
Niaivo...........................................................................................................................................322  
Primeiros contatos: equívocos e desencontros ...............................................................327  
Figuras políticas e um novo modelo de chefia ............................................................................327  
Noke koĩ e yawanawa ..................................................................................................................332  
Liderança – a figura política atual ................................................................................. 347  
Chefia e identidade étnica .......................................................................................................... 347  
Afiliação clânica e chefia............................................................................................................ 348  
Rivalidades clânicas e dispersão territorial: varinawa versus kamanawa ................. 356  
Redes de parentesco e práticas opressoras; “cultura” e identidade étnica; demarcação da
fronteira étnica e diluição........................................................................................................... 358  
Fronteira identitária e noção de cultura: delimitação e diluição .............................................. 364  
Práticas opressoras e de valentia e deslocamentos........................................................ 365  

CONCLUSÃO – REPRODUÇÃO E TRANSFORMAÇÃO: A MOBILIDADE NOKE


KOĨ E SUA POTÊNCIA TRANSFORMACIONAL ....................................................... 371  
Algumas considerações pontuais .................................................................................... 372  

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 377  

GLOSSÁRIO........................................................................................................................ 401  

ANEXOS ............................................................................................................................... 409  

ESBOÇOS GENEALÓGICOS........................................................................................... 465  


35

INTRODUÇÃO

A vida dos noke koĩ na atualidade é resultado de uma série de mudanças que atingiram
as populações indígenas como um todo nas últimas décadas e que tem como consequência a
transformação relacional e intrínseca dos grupos ameríndios já apontada por diversos autores
americanistas (Turner 1993, Vilaça 1996, 2000; Viveiros de Castro 1999, 2004; Howard
2002; Kelly 2005; Albert & Ramos 2002; Teixeira-Pinto 2002 e muitos outros). É dessa
consequência entre os noke koĩ que se trata essa tese.

Os noke koĩ – nome e localização

Os noke koĩ, população indígena também conhecida como katukina-pano, habitam


hoje duas terras indígenas; TI Gregório e TI Campinas/Katukina. Esse trabalho se concentra
nos moradores desta última e nos fluxos entre as duas.
Os noke koĩ estão inseridos no conjunto etnolinguístico pano, caracterizado por sua
forte homogeneidade linguística e cultural. Hoje esse conjunto pode ser localizado numa área
que se estende, de norte a sul, do alto Solimões até o alto Purus e, de leste a oeste, do Ucayali
até as cabeceiras das bacias do Javari, Juruá e Purus (Erikson 1992). Alguns outros grupos
mais afastados do restante do conjunto se encontram na fronteira entre Brasil e Bolívia, entre
os rio Madeira e Beni (Erikson 1992).
36

Mapa 1 - Localização geográficas das TIs Campinas/Katukina e Rio Gregório


37

Mapa 2 - Mapa de Erikson 1998 in: Calavia Sáez 2006a, com alterações do autor.
38

Dentro desse conjunto muitos grupos têm o sufixo –nawa em seus etnônimos atuais.
Ele compõe também nomes de seções, de segmentos internos e metades internas ao grupo
(como kamanawa, satanawa, por exemplo) (Calavia Sáez 2002, Keinfenheim 1990). No
entanto, além da autorreferência esse termo revela entre os grupos desse conjunto uma noção
complexa e indissociável de uma conotação relacional referida a alteridade. Mais que um
sufixo, trata-se de uma supercategoria usada para diversas alteridades (alteridades extremas –
inimigos, não-indígenas, seres mitológicos – e grupos vizinhos) (Calavia Sáez 2002). Nawa
prefigura, portanto, um conceito relacional que vai da alteridade máxima a identidade
inclusiva. Nesse conceito, as relações entre o sentido de mesmo ou de outro são sutis e
variáveis (Calavia Sáez 2002). Nawa é um outro que pode ser facilmente transformado em
mesmo (Lagrou 2002).
Muitos grupos do conjunto pano, no entanto, não trazem em seus etnônimos esse
sufixo, como é o caso dos noke koĩ. Apesar da forte carga semântica de fronteira de
identidade incluída nesse sufixo pelo próprio conceito nativo, esses nomes sufixados com
nawa não são originariamente autodenominações, mas resultado de equívocos do contato e
nominações jurídicas dadas em relações com o estado. Alguns grupos hoje assumem esses
etnônimos sufixados com nawa como autodenominação, outros, no entanto, reivindicam
outros nomes. Esse é o caso por exemplo dos huni kuin e dos noke koĩ, que se
autodenominam, como muitos outros grupos, pela invariável autodenominação de humano,
sendo huni kuin e noke koĩ literalmente propriamente humano. Noke, assim como huni, é
gente, pessoa e o modificador que segue, koĩ (kuin) apenas atribui qualidade a uma categoria
humana. A fórmula invariável se torna específica e autodenominadora na medida que outros
grupos também podendo ser humanos, noke (huni), não o são como são os que se
autodenoninam koĩ. Só se é noke koĩ se noke corresponde ao conceito de humano apropriado
segundo os critério de pessoa de quem assim se autodenomina, isto é, apenas os que são gente
koĩ, os huni kuin ou noke koĩ3.
Tendo em vista essa complexidade conceitual que orbita a questão do etnônimo
podemos entender melhor o porque da recente reivindicação daqueles que hoje ocupam as TIs
Campinas/Katukina e Rio Gregório pelo reconhecimento de sua autodenominação como noke
koĩ. O nome Katukina é um termo genérico atribuído a diversos grupos indígenas
linguisticamente diferentes no Juruá (Rivet 1920). Segundo Tastevin (1924), outros povos das
margens do rio Gregório (yawanawa, bitinaua, iskunaua, sáwanaua) também adotaram o

3
Para mais sobre essa discussão ver Keifenheim 1990, Lagrou 1998, 2007, Erikson 1995.
39

nome katukina. Atualmente esse nome se aplica aos shanenawa4, a uma família linguística
(que inclui os kanamari, os katawixi, os katukina no rio Biá e os tsohom-djapa) e aos noke
koĩ. Katukina, como aponta Lima (1994:17), é um nome que foi dado pelo governo. De forte
caráter exógeno, é um nome meramente jurídico. No momento do contato os noke koĩ não
eram um grupo, nem compartilhavam um nome. Tastevin afirma que diante da violência dos
mateiros, no tempo das correrias, alguns grupos negavam sua etnia e declaravam pertencer a
outro grupo com o intuito de evitar a perseguição. Alguns relatos atribuem a essa estratégia o
fato dos noke koĩ terem adotado o nome katukina. (Tastevin, 1924, Castello Branco, 1950).
Como veremos adiante nessa tese, os noke koĩ de hoje são consequência de relações travadas
no contato que unificou grupos que se reconheciam por etnônimos distintos5 e hoje que
coincidem com o nome de segmentos internos que atualmente os noke koĩ traduzem para
português como clãs. A aceitação e autodenominação por katukina se justifica por razões
históricas, mas também se explica pela notável facilidade dos Pano de reorganização em
conjuntos de escalas muito diferentes ao longo da história, que tal como apontou Calavia Sáez
(2006, p. 259), está de acordo com a mutabilidade do seu sistema de etnônimos.
Parte de um movimento recente entre vários grupos indígenas a reivindicação dos
noke koĩ desse outro etnônimo tem implicações, e ao mesmo é consequência, de questões de
ordem política, que envolve o movimento indígena e a apropriação dos indígenas da narrativa
de sua própria história6. Como afirma Calavia Sáez, “sendo necessário que os índios definam
a sua própria história, é de se esperar que o façam definindo igualmente seu próprio nome”
(2006b: 189). Assim que nessa tese o coletivo de parentes que hoje ocupam as TIs
Campinas/Katukina e Rio Gregório serão referidos não como katukina, mas como noke koĩ.
Atualmente os noke koĩ são cerca de 700 pessoas. A língua se aparenta muito com a
dos marubo e de fato, os noke koĩ afirmam um certo parentesco mais próximo dos marubo do
que de qualquer outro grupo pano, inclusive mesmo dos yawanawa, com quem dividem a TI
Rio Gregório e mantêm eventualmente alguns casos de aliança matrimonial.

4
Um caso curioso é o dos Shanenawa, que depois de sofrerem vários deslocamento foram viver em uma terra
que mais tarde foi homologada como Katukina/Kaxinawa. Eles teriam sido confundidos com os katukina de
língua katukina. Com medo de perder o direito a terra homologada, os Shanenawa decidiram não esclarecer a
confusão. (ISA. 2010. Shanenawa. Introdução. <https://pib.socioambiental.org/pt/povo/shanenawa>).
5
Essa unificação de diferentes denominações é comum a história do contato de vários grupos grupo (Calavia
Sáez 2006a, Cesarino 2011). Como aponta Calavia Sáez (2006a) o etnônimo cria a etnia.
6
Ainda que isso a princípio possa implicar em atribuir uma historicidade do tipo linear e uma política baseada
em identidade aos moldes da tradição não-indígena, é preciso ter em mente que se os indígenas propõem isso
políticamente, isso não pode não significar apenas assumir noções de tempo e pessoa alienígenas, mas antes
construir uma estratégia política de mediação entre seus interesses e a nossa política ainda colonialista.
40

Os noke koĩ são remanescente de grupos interfluviais e têm mais aspectos em comum
com outros grupos de interflúvio do que com grupos pano de grandes rios. Sua mitologia é
fortemente marcada pela temática do deslocamento que raramente se dá por água. O que
veremos adiante é que os mitos se orientam por um contínuo deslocamento à pé, por terra, de
um rio grande em direção às cabeceiras. Da mesma maneira, ainda que peixe e caça sejam
ambos considerado comida apropriada (pite koĩ) os noke koĩ têm muito mais técnicas de
captura e apreço pela carne de caça do que por peixe, assim como outros grupos interfluviais.
Num gradiente de maior intensidade das relações de contato com indígenas e até com outros
grupos indígenas, os noke koĩ estão mais próximos dos yaminawa e dos matis do que dos
yawanawa e os huni kuin, ainda que a proximidade geográfica seja maior e os encontros
sejam mais frequentes com esses últimos do que com os primeiros. O xamanismo noke koĩ no
entanto se assemelha em várias pontos ao dos huni kuin, sobretudo no que envolve a presença
da ideia de uma cobra-pajé. Quanto ao parentesco e a onomástica, os noke koĩ têm uma
estrutura de parentesco dravidiana. Mas apesar de, assim como entre matis, matses, marubo,
huni kuin e yaminawa, a onomástica entre os noke koĩ considerar a reposição dos nomes
ancestrais, o perfil kariera tão comum ao conjunto pano não se atualiza entre os noke koĩ
(Lima 2000a e 2000b). A transmissão de nomes pessoais entre os noke koĩ não é como entre a
maioria dos pano alternada e paralela, mas alternada e cruzada.

Temas, assuntos e capítulos

Desde mais ou menos 120 anos de contato com a sociedade nacional, os noke koĩ vêm
estabelecendo com o Estado, e suas variantes não-indígenas, relações duradouras. Essa tese
busca apresentar por meio de algumas notas etnográficas alguns dos efeitos dessa relação a
partir do que pude apreender do ponto de vista dos próprios noke koĩ, sobretudo no que toca
ao mecanismo estratégico e tradicional desse grupo de se transformar nas relações, mantendo-
se – apesar da estrada, das políticas indigenistas e do avanço não-indígena sobre seus
territórios – a prática política de contra virar-branco (sendo virar-branco considerado um
braço do estado), isto é, uma variação do contra-estado comum a tantos ameríndios.
Essa idéia de uma constante noke koĩ à prova da história, que seria o jeito peculiar
deles de estar no mundo, não é, no entanto, uma mera continuidade da estrutura tradicional,
mas antes algo parecido com o que Sahlins (2008) nomeou de estruturas de longa duração,
isto é, que se os eventos históricos são organizados por estruturas de significação anteriores a
41

esses eventos, há de se levar em conta que com o contato, essas estruturas acabam por se
modificarem. Há sim entre os noke koĩ mudanças estruturais – eu diria até que sempre houve.
Essas mudanças, assim como também sua resiliência cultural e sobrevivência como indígena,
não querem dizer que o contato não tenha tido efeitos terríveis.
Para o caso dessa tese ao menos me parece inegável que as estruturas noke koĩ
interfiram nas novidades históricas tal como se modificam simultaneamente a essas
novidades. Aqui sofrer a mudança e produzir a mudança parece estar imbricado um no outro.
Diante dessa possibilidade de transformação da estrutura o desafio está, como aponta Sahlins,
em descobrir como e em quais termos a reprodução de uma estrutura é também a sua
transformação.
Para essa descoberta proponho começarmos pelo tema da moradia.
O capítulo 1 dessa tese se dedica ao tema das casas e sua correlação com a mobilidade
entre os noke koĩ, e está dividido em duas partes. Na primeira parte, apresento uma correlação
entre as formas de moradia noke koĩ – atuais e de outros tempos – e o padrão de mobilidade
deste grupo, para daí demonstrar como a despeito de várias oportunidades de fixação os noke
koĩ mantêm a mobilidade, ainda que não exatamente como antes. Começo apresentando esse
contexto de mudança do padrão de moradia para em seguida abordarmos suas consequências
na mobilidade e tentarmos contornar a definição noke koĩ dessa ideia de mobilidade.
Começo pelas casas porque elas são um ótimo exemplo da transformação, da relativa
maleabilidade e da disposição-à-abertura dos noke koĩ frente a mudanças históricas. Desde os
primeiros anos de contato, a presença de não-indígenas na região vem se projetando no
espaço e uma das hipóteses dessa tese é que, mesmo depois do contato, o mesmo princípio de
mobilidade que fazia os noke koĩ abandonarem as malocas e roçados velhos para buscar um
novo local continuou (e continua) sendo reproduzido e simultaneamente transformado. Assim,
nesse capítulo e ao longo dessa tese tento demonstrar como a organização territorial e social
dos noke koĩ se caracteriza através do tempo por essa mobilidade.
Veremos nessa parte como a transformação da habitação envolve a política interétnica
e como a posição diplomática do noke koĩ frente aos projetos do governo resulta numa
estratégia política de negociar outras ações do governo e driblar o efeito da monetarização na
solidariedade entre o grupo e a eminência de se tornar outro, sovinas, mesquinho e antítese da
concepção de pessoa.
Ainda na primeira parte apresento a configuração das aldeias antes da mais recente
mudança de padrão de moradia, que foi o projeto de habitação rural implementado pelo
governo do Acre em algumas TIs da região. Com base em relatos apresento a transformação
42

histórica da arquitetura noke koĩ depois do contato, desde a ruptura com o padrão de moradia
pelas fugas de ataques de extermínio até as atuais intervenções de política interétnica.
Veremos que mesmo antes do contato, ciclos e dinâmicas sociais conformavam
condições para uma organização territorial fundamentada no princípio da mobilidade e que
com a mudança no padrão de moradia esse princípio se reproduz e se transforma. Tento
apresentar uma distinção importante entre a fuga de ataques de inimigos – tanto de outros
grupos indígenas da região quanto dos não-indígenas – e a mobilidade como um padrão de
modo de vida, sobretudo porque ainda hoje famílias que se mudam muito são pejorativamente
chamadas de fugitivas, ou nômades com base na ideia de que a fuga é um padrão de
mobilidade e de que a mobilidade é fuga.
Para demonstrar como a organização territorial e social dos noke koĩ se caracteriza
através do tempo por essa mobilidade apresento ainda nessa primeira parte um histórico de
formação dos atuais territórios oficiais dos noke koĩ, passando pela história do contato, pelos
fluxos de intensos deslocamentos e momentos de assentamento e como a particular estratégia
dos noke koĩ de reagir aos enfrentamentos violentos determinou não só suas relações políticas
com os não indígenas mas também a síntese do seu modo de vida pós contato. Veremos como
as peculiaridades noke koĩ na estratégia de trabalho na seringa, por exemplo, teve mais tarde
consequências importantes para a ocupação territorial.
Na segunda parte desse capítulo tento demonstrar a rede de relações sociais e suas
dinâmicas implicadas na composição das aldeias e das casas, veremos quem mora com quem,
porquê mora e quando mora e quando se muda. Para isso apresento um mapeamento da
composição das aldeias tal como elas apareceram para mim entre 2013 e 2015. Os noke koĩ,
num contexto de profundas transformações, apresentam certa resiliência da organização social
a despeito das mudanças no padrão de assentamento. Como veremos, certos aspectos sociais
da antiga maloca noke koĩ podem ser identificados na ordenação espacial por grupo
doméstico atualmente.
A casa, como o grupo doméstico, congrega consanguíneos e afins num ideal noke koĩ
de viver junto e por isso faço uma breve descrição do parentesco noke koĩ para tentar expor a
relação entre casa, grupo doméstico e regra matrimonial. Veremos como a manipulação do
parentesco, ora enfatizando a unidade do grupo, ora a aliança, impulsiona-os ora à fissão, ora
à fusão e como isso se apresenta na mobilidade e na concepção noke koĩ de parente.
Veremos que o parentesco consanguíneo não é delimitador do conceito de casa, para
os noke koĩ, que a casa, apesar de ser o foco das redes de parentesco, o é sob uma outra
definição de parentesco que não só não se limita ao consanguíneo como não percebe a aliança
43

como mais artificial que o consanguíneo. Veremos que para os noke koĩ, o corpo de parente
ocupa o lugar de foco de relações, definindo o que é a casa e que na composição dos grupos
que conformam as casas, no lugar do parentesco está a corporalidade.
Nessa segunda parte veremos ainda a relação entre grupo doméstico, regimes
cooperação e comensalidade. Veremos como a cooperação influencia na própria concepção de
casa como segmento social dos noke koĩ, na medida que o trabalho em regime de cooperação
transforma o espaço e simultaneamente os corpos envolvidos através das relações que
reforçam o pertencimento e que, portanto, as construções do espaço, do corpo e do
pertencimento estão essencialmente imbricadas. Veremos também como um par de conceitos
relacionais noke koĩ – kaivo e kaivoma – complexificam as definições de casa. Se por um lado
os deslocamentos desfazem parentesco enfraquecendo laços de comensalidade e cooperação
com os que ficam para trás, por outro, re-estabelecem parentesco, indo viver perto de outros,
construindo casas e corpos simultaneamente. Ao mesmo tempo, a mobilidade resulta ser um
efeito das relações de parentesco; afinal é preciso visitar seus kaivoma (parentes distantes em
processo de desaparentamento) para que não se tornem total estranhos. Nesse panorama, a
mobilidade não trata de transpor grupos a outros espaços, como seria no caso de um
nomadismo, mas antes em favorecer a manutenção das relações de parentesco, o controle da
fluidez desses des-aparentamentos potenciais
Um dos eixos da organização social dos noke koĩ é a flexão entre deslocamentos e a
fixação temporária assim, o que veremos nessa segunda parte é que mesmo diante da
imposição de outras formas territoriais, a organização social noke koĩ parece driblar o
controle yara (não-indígena) e manter a mobilidade e a construção de redes de parentesco e
aliança em um processo de complementaridade.
O capítulo 2 aborda a articulação entre mobilidade, subsistência e território. Neste
capítulo veremos como o movimento se relaciona tanto aos roçados quanto à caça e à coleta.
Mais que uma estratégia de subsistência, veremos que a mobilidade é parte da relação com os
roçados e com as atividades de coleta. Veremos também que as relações com os cultivares e a
relação com a mata e com as plantas, cultivadas e não cultivadas, definem para os noke koĩ o
território.
Este capítulo está dividido em três partes. A primeira delas, trata da relação entre
mobilidade e subsistência. Antes, no entanto, de abordar esses dois temas mais diretamente
proponho uma aproximação das definições noke koĩ de território, seus recursos e
descontinuidades. Para tanto apresento dois tipos de descontinuidades importantes para as
concepções noke koĩ que irão iluminar a questão da mobilidade no que tange o território, a
44

subsistência e a territorialidade dos noke koĩ: trata-se de descontinuidades de espaço e entre


os seres.
Duas categorias noke koĩ nos servirão de guia para analisar essas descontinuidades,
são elas ni’i e yoina (a grosso modo, floresta e bicho). Essas duas categorias nos ajudaram,
por uma relação estrutural, a entender o código alimentar e a traçar contornos das relações de
subsistência envolvidas na mobilidade.
Para começar faço uma breve digressão sobre os estudos de classificação apenas para
expor de maneira superficial o panorama do debate da classificação de como lidar com a
ausência de termos que coincidam com os reinos animal e vegetal no sistema de classificação
nativo. Em seguida exponho como os critérios de classificações podem nos ajudar a entender
as descontinuidades noke koĩ de espaço e de seres, acreditando que a classificação dos
animais entre os noke koĩ nos ajudará a entender critérios relacionais de posições no cosmos,
definições de alteridade e de pessoa. Veremos como yoina e noke koĩ se definem em relações
transitivas e permutáveis e isso se mostrará relevante porque para os noke koĩ, aquilo que está
mais próximo do pólo da humanidade do que do pólo da alteridade é critério importante na
definição do que se come. A classificação das plantas por sua vez revela um sistema tripartido
em mato, plantas cultivadas e plantas não-cultivadas, que nessa parte descrevo como os noke
koĩ se relacionam com cada uma delas.
Inicialmente apresento uma etnografia do roçado, dos cultivares e das técnicas para
demonstrar como o roçado é um lugar de relação de cuidado e investimento de trabalho
cooperativo e que por isso contrasta com a mata e com as plantas da mata que não são
plantadas. Esse contraste nos levará a entender a diferença substancial entre os sujeitos mato,
plantado e não plantado que é dada pela relação que os noke koĩ estabelecem com cada uma
dessas categorias.
Sobre os roçados, veremos que existe uma relação de criação mútua com os noke koĩ.
O cuidado com o roçado é a contribuição noke koĩ para as condições de desenvolvimento das
qualidades das plantas do roçado que tem como consequência a transformação a matéria do
roçado, que, em contrapartida, transforma os que o consomem. E é nesse sentido que as
plantas tem importância na construção do parentesco. Enquanto substância compartilhada elas
os torna parentes. Com base no preceito de que os gêneros do roçado são usados para
construir os corpos dos filhos e compartilham uma mesma relação de cuidado, orientação e
consubstancialidade, faço uma análise da ideia de uma possível correlação entre filhos e os
produtos do roçado para tentar demonstrar como as plantas cultivadas tornam-se, através de
uma consanguinidade construída, mais próximas da humanidade e assim compõem
45

preferencialmente a alimentação adequada. E assim, tal como na classificação animal, a


classificação das plantas ajuda a delimitar fronteiras identitárias, já que as plantas da mata,
junto das plantas do roçado, se opõem fortemente ao mato, signo entre os vegetais da anti-
socialidade.
Na segunda parte desse capítulo apresento a relação entre a subsistência e a
mobilidade. Para tanto apresento a relação dos noke koĩ com as plantas comestíveis não-
cultivadas. O que veremos é que a relação entre essas plantas e a mobilidade tem para os noke
koĩ consequências para além da importância da mobilidade e das viagens na biodiversidade
das florestas.
Faremos um breve sobrevoo sobre abordagens a respeito da relação entre
domesticação, mobilidade e agricultura, sobretudo no que toca a ideia de regressão cultural e
grupos de forrageio, para falar de como os noke koĩ concebem esses temas. E veremos que,
assim como o seu território inclui na sua definição a mobilidade, as plantas de subsistência
extrapolam a agricultura, que por sua vez também inclui o movimento, pelas mudanças
constantes de espaço como técnica e como consequência. Ainda nessa segunda parte,
apresento a relação entre subsistência e mobilidade entre os noke koĩ e seus critérios para as
tendências a dispersão e a concentração.
Na terceira e última parte desse capítulo abordo as concepções de território e
descontinuidade. Um dos objetivos dessa parte (e de maneira geral desse capítulo) é mostrar
como o conteúdo dos termos (que muitas vezes são classificatórios) varia com a relação dada,
o que aponta para a prevalência de importância dessas relações sobre esses termos em si. Isto
é, que a diferença entre as descontinuidades roçado, capoeira, aldeia e floresta não é entre
esses termos, mas sobre as relações engendradas entre esses espaços. É nesse sentido que
nessa parte abordaremos a toponímia como um exemplo dessa ideia. Veremos como a forma
de nominar um lugar é um índice de outras relações, pois revela uma prevalência da ação e da
relação sobre os substantivos, isto é, os termos. E isso tem implicação como veremos na ideia
das fronteiras de um território, que são para os noke koĩ móveis, são dadas em conformidade
com seus conteúdos, que sendo uma rede de caminhos de movimento e de relações não são
fixas nem permanentes.
O capítulo 3 propõe uma análise sobre a relação entre o espaço, a mobilidade e a
estratégia dos noke koĩ de transformar-se nas relações com os não-indígenas e também
internamente. Para além da reprodução de uma estrutura tradicional o que se busca mostrar é
como a reprodução dessa estrutura tem sido também a sua transformação.
46

A partir das noções noke koĩ sobre territorialidade proponho neste capítulo analisar os
deslocamentos transregionais entre aldeias, terras indígenas e o espaço urbano. Para tanto,
recorro a dados bibliográficos e etnográficos sobre a territorialidade, os deslocamentos e
mitos que envolvem essas noções. A intenção é demonstrar que “território” e “deslocamento”
não são categorias excludentes do ponto de vista noke koĩ, mas sim que fazem parte do ser
noke koĩ.
Uma das propostas desse capítulo é acompanhar os fluxos de deslocamento dessa
população, averiguando em que sentido eles estão relacionados à cosmologia espacial noke
koĩ; às transformações no modo de vida e na mobilidade enquanto estratégia política e,
finalmente, ao tratamento dado à questão indígena pelo estado. Para tanto começo tentando
esboçar o que é a concepção noke koĩ de território. Veremos que os noke koĩ têm uma noção
de territorialidade em que o território não é um local definido geograficamente mas um lugar
onde se possa viver e desenvolver segundo preceitos éticos E nesse sentido veremos que a
mobilidade é simultaneamente parte da definição de território e parte do que é ser noke koĩ, é
pois a condição para uma vida propriamente noke koĩ.
Esse capítulo começa com um mito que vai nos ajudar a entender algumas dimensões
do território, e em seguida apresento as terras oficiais dos noke koĩ e as contextualizo nessas
dimensões. O mito de origem com que começa esse capítulo conta que depois de saírem de
um buraco na terra os noke koĩ vivem andando em busca de um lugar para morar. Depois de
analisar esse mito, tento delinear os padrões de deslocamento e de assentamento dos noke koĩ,
como se dão as dispersões e as retrações.
Para isso apresento a área de circulação atual dos noke koĩ, descrevo as terras
indígenas e em seguida abordo os deslocamentos dos noke koĩ do Gregório a Campinas.
Veremos como esses deslocamentos remetem à história de definição de seus territórios
oficiais. Veremos também como a transformação da relação com o território implica nas
concepções cosmológicas e de pessoa noke koĩ e como essas concepções são atualizadas e
simultaneamente transformadas nesse processo. O que veremos é que tanto os deslocamentos
da TI Rio Gregório à TI Campinas quanto as novas ondas de deslocamento territorial têm
semelhanças com o padrão tradicional de deslocamento dos noke koĩ mas, mais que isso, são
sobretudo uma transformação do padrão de sedentarismo que entre outros aspectos inclui
evidentemente maior dependência da agricultura, da BR e da cidade.
Depois de apresentar um panorama de algumas concepções noke koĩ sobre a
constituição de um território e sobre a importância da mobilidade nessas definições, veremos
como elas se atualizam nas terras oficiais dos noke koĩ, como negociam suas definições com a
47

ideia de fronteiras territoriais e terras oficiais entendidas na relação com o estado como
propriedades produtivas e não como territórios.
O quarto e último capítulo aborda a relação entre mobilidade e política. As recentes
mudanças e reivindicações territoriais dos noke koĩ são o ponto de partida desse capítulo.
Tento reconstruir um pouco da história recente dos noke koĩ para contextualizarmos não só os
fluxos de deslocamento dos noke koĩ, mas sobretudo a reivindicação de uma área atualmente
fora dos limites das terras oficiais e as implicações políticas ao redor dessa reivindicação que
envolvem mortes, conflitos e acusações de feitiçaria. Como veremos, a morte de uma
liderança atualiza, na mudança entre TIs e nessa reivindicação, as mesmas motivações de
deslocamento do passado. Paralelamente a isso e junto à retomada das pajelanças, que
tentavam curar a liderança antes da sua morte, vêm o enrijecimento político e sintomas de
valentia e agressividade no plano cosmopolítico.
O confronto gerado entre segmentos internos por uma reivindicação territorial e pelas
cada vez mais constantes mudanças de território é parte de uma disputa entre lideranças e
entre lideranças e pessoas comuns. O que proponho analisar nesse capítulo é justamente esse
contexto de desestabilização política, de forte centralização das decisões políticas e de
hierarquização entre as chefias e as estratégias que os noke koĩ passam a apresentar para
contornar essas condições.
Antes de apresentar o contexto atual de disputa do poder político, sua relação com as
recentes acusações de feitiçaria e os movimentos de deslocamento, faço uma breve exposição
acerca de algumas concepções noke koĩ de chefia e política e suas transformações ao longo
dos últimos anos desde o contato até o surgimento da figura atual das lideranças. Sobre esse
último, descrevo o contexto de surgimento e estabelecimento dessa figura política, mostrando
como o contexto de institucionalização da figura de chefia entre os noke koĩ hoje tem forte
influência do agenciamento de questões de identidade étnica e por isso é interposto por
questões de afiliação clânica. Como veremos, a institucionalização das figuras políticas em
lideranças criou, na conjunção com reivindicações étnicas, um contexto político tenso entre
lideranças de diferentes segmentos (a que os noke koĩ têm chamado de clãs). É tendo isso em
vista que apresento uma seção sobre a relação entre as rivalidades clânicas e a dispersão
territorial. Veremos nesse capítulo como a mobilização de certos aspectos da identidade do
grupo é feita para negociar o bem estar de um coletivo, como se institucionaliza a
territorialidade e a fronteira étnica, como a política entre aldeias pode transformar a dinâmica
sociopolítica e inserir a desconfiança, o autoritarismo e o conflito. Veremos como nesse
contexto, a violência e a avareza aparecem como perigos de uma transformação perigosa das
48

lideranças em outros, em yara (não-indígenas). Por fim, veremos como os noke koĩ através da
mobilidade atualizam e transformam suas concepções de política e criam estratégias de
contornar as transformações perigosas, as valentias e as forças opressivas.

A pesquisa

Essa tese é resultado de parte da convivência que tive com os noke koĩ ao longo dos
últimos oito anos. A primeira vez que encontrei os noke koĩ foi em 2009. Na qualificação do
projeto de mestrado, Els Lagrou me incentivou a experimentar algum tempo de campo,
qualquer que fosse, para conhecer a região do Alto Juruá e experimentar um pouco de
trabalho de campo. Em meados de maio daquele ano eu tinha acabado de ler a etnografia de
Edilene Coffaci de Lima (2000) e muitas coisas nela me levaram a escolher entre outros
povos pano da região do Alto Juruá os noke koĩ. Para uma aluna do mestrado sem recursos
institucionais para campo, a proximidade da cidade de Cruzeiro do Sul, sem dúvida teve
muito peso na decisão. No entanto, quem me levou aos noke koĩ foi a cobra. As etnografias
pano sempre me atraíram, desde a graduação, e foi seguindo o rastro da forte presença das
cobras grandes entre os grupos de língua pano que cheguei aos noke koĩ.
Naquele momento os noke koĩ viviam um momento de acirramento das relações de
negociação com a presença de pesquisadores e outras alianças com pessoas da cidade. A
presença de estrangeiros era tema de conversas à noite, reuniões e assembléias gerais. A
pesquisa estava pois condicionada a parcerias e projetos que captassem não só recursos mas
também outros benefícios. A negociação com pesquisadores não era um tema novo para os
noke koĩ, outros pesquisadores, como Edilene Coffaci de Lima, Paulo Roberto Góes e
Homero Martins, já haviam em seus trabalho chamado atenção para esse contexto. No
momento em que estive na TI Campinas/Katukina em 2009, o interesse dos não-indígenas no
conhecimento dos noke koĩ estava sendo negociado como estratégias políticas de mediação
interétnicas e de efetivação dos interesses próprios dos noke koĩ, tal como notou Góes em
relação ao uso da secreção do kãpo nos centros urbanos. Nesse contexto a minha breve estadia
de um mês entre os noke koĩ não resultou em autorização para pesquisa e a minha dissertação
terminou sendo uma revisão bibliográfica. Depois desse breve campo mantivemos contato por
telefone e e-mail. Quatro anos mais tarde, eu voltei aos noke koĩ e dessa vez obtive não só a
autorização para a pesquisa de doutorado como a confiança e a hospitalidade dos noke koĩ por
dois anos.
49

Ainda que estivesse autorizada a fazer a pesquisa, desenvolve-la em campo me custou


muito trabalho. A exegese entre os noke koĩ, como também afirma Calavia Sáez (2006) sobre
os yaminawa, não é uma prática. É comum estrangeiros chegarem e as pessoas esvaziarem a
aldeia, irem para o aceiro, para o roçado, ou entrarem para dentro das casas e fecharem as
janelas. Os noke koĩ são capazes de ficar horas na companhia de alguém sem falar nada e por
fim empurrar a interação ao estrangeiro dizendo: “vanawe!” (conversa!). Quando perguntados
diretamente sobre concepções, costumes e aspectos da sua cultura, desviam o olhar e dizem
“eã hawe tanama” (eu não sei nada). As conversas aliás raramente se dão olho no olho, as
pessoas interagem sem se olhar, marido e mulher, por exemplo, conversam em ambientes
diferentes da casa ou de costas um para o outro e leva algum tempo e algum conhecimento da
língua para perceber quem está falando com quem. Precisei de muito tempo em campo para
entender o desenvolvimento sutil de certas situações. Certa vez uma mulher tentou suicídio na
aldeia vizinha, notei certa agitação estranha na aldeia, mas levei três dias para entender o que
tinha acontecido, nesse meio tempo, ninguém me respondia com clareza sobre o que se
tratava a agitação e nem conversam abertamente entre eles sobre o acontecido. As
informações do cotidiano (e consequentemente da vida noke koĩ) são dispersas, diluídas e
sutis. Me aproximar de algumas delas exigiu muita persistência, paciência e um bom tempo
em campo.
Em 2013 passei quatro meses na aldeia Masheya, voltei ao Rio de Janeiro e quatro
meses depois me mudei para Cruzeiro do Sul, Acre, a cidade mais próxima da TI
Campinas/Katukina. Vivi em Cruzeiro do Sul de setembro de 2014 a fevereiro de 2016
período em que alternei estadias em campo e descanso na cidade. Na TI Campinas, morei em
Masheya e em Waninawa, mas estive algum tempo em todas as aldeias.
50

Mapa 3 - Localização das aldeias na TI Campinas/Katukina

No tempo em que estive em Cruzeiro do Sul colaborei em um GT da coordenação


regional da Funai sobre segurança alimentar e esse trabalho me permitiu passar algumas
semanas em todas as aldeias. Em janeiro de 2016 fiz uma viagem com dois noke koĩ a TI
Gregório e sem dúvida essa viagem também foi fundamental para essa tese, afinal em 2015 a
retomada dos deslocamentos intensos entre TIs passou a ser da TI Campinas para TI
Gregório. Ter ido ao Gregório, mesmo que em uma breve viagem, me permitiu ver e ouvir
histórias sobre as condições de assentamento quando se trata de deslocamentos coletivos. A
abertura de novas aldeias, a construção e disposição de casas, a dispersão dos grupos pelo rio,
a relação com a presença de um rio grande e com um território ainda sem roçado, mas farto
51

em caça e em peixe me deram outra visão sobre a composição dos agrupamentos, da relação
com os território e a importância das viagens e mudanças.
Na TI Campinas, o interesse de Noya, morador da aldeia Waninawa, em me ensinar a
língua e em publicar junto com seu pai, um livro de mitos noke koĩ foi o maior êxito desse
campo. A sua dedicação em me ensinar os nomes dos animais, das plantas, das coisas e em
me mostrar as palavras e os cantos noke koĩ foi essencial a essa tese.

Nota etnográfica: eventos catalisadores

Minha primeira viagem à terra indígena Campinas/Katukina foi em 2009. Tudo era
novo, estranho e interessante. Me surpreendeu desde o princípio a resistência e dignidade dos
noke koĩ; tão perto e tão longe da cidade.
Quatro anos depois, quando voltei, tudo continuava novo, estranho e interessante, mas
com outras nuances. Eles continuavam sendo os noke koĩ que eu conheci, já a terra indígena
nem tanto. As primeiras impressões que tive eram desoladoras. Na BR-3647, antes da entrada
da terra indígena (TI), muito comércio, fazenda, posto de gasolina, tráfego intenso de carro,
caminhão e moto, a TI cercada de um lado por fazenda, de outro, por vilas rurais. Muitos
fazendeiros, pequenos produtores rurais e peões.
Dentro dos limites da terra indígena, a presença intensa de yara8 em motos vendendo
de tudo, pão, melancia, coco, açaí, buriti, picolé e até carne de caça. O desmatamento levou os
animais para longe e a estrada, os assentamentos e os fazendeiros os levaram para mais longe
ainda. Em 2009 a caça já era escassa, em 2013 se tornou raríssima. Os roçados diminuíram de
tamanho e todo mundo dependia um pouco do comprado9. Todo o dinheiro do bolsa família,
das aposentadorias e dos salários de agente indígena estava sendo investido na cidade para
comprar comida de yara da pior qualidade, que com ela trazia muito lixo, plástico de biscoito,
bala, chiclete, envelope de remédio e outras embalagens que se espalhavam em volta das
casas.
Nas aldeias, máquinas de construção, tratores e operários não-indígenas, muito lixo,
muito ruído. Mais de um km de floresta pra dentro das aldeias desmatado, casas de alvenaria e
madeira sendo construídas no chão em fila, ao estilo conjunto habitacional. Eu via foco de

7
Essa rodovia corta a terra indígena Campinas/Katukina por 18km.
8
Yara é um termo em noke vana (a língua dos Noke Koĩ) usado para designar não-índio, que em geral na
literatura antropológica ocupa o lugar de branco. Mais adiante voltarei a falar mais detalhadamente sobre esse
termo.
9
Do comprado é um expressão comum para se referir à comida não produzida na aldeia.
52

doença em tudo, no lixo, nas poças de água, nos banheiros que construíam, enfim, no canteiro
de obra que as aldeias tinham se tornado. Tratava-se do desenvolvimento do projeto
localmente conhecido como “Minha casa, minha vida” e oficialmente intitulado Programa
Nacional de Habitação Rural (PNHR), parte das políticas mitigatórias do governo para o
contexto de pressões criados na TI pela BR-364.
As minhas primeiras impressões eram de que essas ações de mitigação apresentavam o
sério risco de transformar os noke koĩ em miseráveis e poderia em breve provocar muitos
casos de diabetes. Para mim o panorama que se apresentava era de insegurança alimentar,
violência latente e mudanças radicais.

De 2009 a 2015

Em 2009, em um breve trabalho de campo na TI Campinas/Katukina eu tinha me


deparado, como já contei, com uma situação comum à experiência de muitos outros
antropólogos, inclusive na mesma terra indígena: a desconfiança dos índios diante das
intenções de um pesquisador (Lima1994, 2000a e 2013, Góes 2009, Martins 2006). Na época
os noke koĩ se mostravam muito preocupados com a presença de pesquisadores dentro da
terra indígena e várias vezes tentaram deixar claro para mim que não se podia pesquisar sobre
eles, que não queriam mais isso, e que, portanto, eu não podia fazer nada em termos de
pesquisa, não podia gravar, nem fotografar, nem escrever nada sobre eles10. Algumas vezes a
pesquisa foi condicionada a projetos, aulas ou qualquer outro benefício para a comunidade,
algo que também foi proposto a outros pesquisadores. Essa desconfiança era acompanhada
por uma dupla tendência de valorização e difusão nos centros urbanos de medicinas
indígenas, que, como mostrou Lima (artigo de 2013), teve início no final dos anos 1990.

10
Na minha dissertação de mestrado conto sobre esse breve campo e abordo a desconfiança dos noke koĩ sobre a
presença de pesquisadores na terra indígenas sobretudo para justificar o fato da dissertação ser uma revisão
bibliográfica e não se basear em dados de campo. Se por um lado, o tempo que estive em campo foi curto demais
para me dar dados suficientes para uma dissertação, por outro, o pouco que tive acesso não foi autorizado pelos
noke koĩ para ser usado como dado de pesquisa. A minha estadia em Masheya naquele momento foi tomada
como uma visita e não como pesquisa. Nesse contexto tenso sobre a presença de pesquisadores na TI, alguns
amigos de Masheya, aldeia em que me hospedei na época, me alertaram que a liderança de uma outra aldeia não
gostaria de saber que eu, enquanto pesquisadora, estava na terra deles. Segundo Lima, isso aponta para um
agenciamento pelos noke koĩ da presença de pesquisadores, que acusando moradores de outras aldeias de não
quererem pesquisadores por perto, estabelecem acordos e viabilizam a presença deles nas próprias aldeias (2013:
85). Para mais sobre como os noke koĩ têm gerenciado expectativas, estratégias e a própria presença de
pesquisadores em campo ver Lima 2013.
53

Em 2009, os noke koĩ estavam amadurecendo estratégias políticas de negociação com


os yara e com suas mercadorias através do desejo dos yara por seus conhecimentos11. Assim
que, se as preocupações dos noke koĩ em 2009 se apresentaram para mim naquele momento
com foco em questões de propriedade intelectual, a partir de 2013, essas preocupações se
intensificaram em outras dimensões e se mostraram muito mais ligadas a questões de terra,
território, mobilidade, feitiçaria e poder.

Fluxos de circulação

Na década de 1990, os noke koĩ mudaram em sua maioria da TI Rio Gregório, que
dividem com os yawanawa, para a TI Campinas, onde muitos haviam se mudado na década
de 1970 trocando o trabalho em seringais pelo trabalho de abertura da BR 364. A ocupação
dos noke koĩ da área no Rio Gregório sempre foi bastante variável, mas essa tendência de
deslocamento dos anos 1990 conformou um novo panorama. O crescimento e a dispersão pela
terra indígena da população yawanawa coincidiu com o esvaziamento dos noke koĩ que,
somados a certa hostilidade entre noke koĩ e yawanawa, à proximidade da cidade e de
mercadorias, a projetos do governo e a oportunidade de cargos remunerados, contribuíram
para que a mobilidade dos noke koĩ, conhecidos como um povo que não para quieto, fosse
contida. O que não significou o fim, e nem mesmo a interrupção, dos deslocamentos, afinal as
mudanças entre TI continuaram, ainda que mais timidamente, e as mudanças entre aldeias e
lados da BR se mantiveram constantes. Nesse período em que os grandes deslocamentos estão
contidos surge um discurso contra a mobilidade de forte valor moral.
Em 2012 no entanto essa mobilidade adormecida eclode numa ruptura mais radical
que as mudanças entre aldeias ou margens da BR: um grupo que se auto-denomina do clã
Waninawa abre uma nova aldeia. Waninawa surge da fragmentação da maior aldeia da TI
num contexto de resignificação da ordem clânica, de superpopulação, discordâncias internas e
intenso consumo de cachaça. A abertura dessa nova aldeia aponta para a insustentabilidade de
conter os deslocamentos, de viver entre muita gente e de lidar com a concentração de poder.
Numa reação contra virar-branco (consumir comida, música e bebida de yara), os primeiros
sinais de uma nova onda de deslocamentos começam a apontar com essa nova aldeia.
Às questões de ordem interna se somam questões interétnicas e dimensões ecológicas.
A presença da BR é responsável por problemas de segurança alimentar e física: a caça é cada

11
Sobre como os Noke koĩ articularam conhecimentos tradicionais como mediação interétnica ver Góes (2007).
54

vez mais escassa, casos de doença e violência mais frequentes. Além da BR, a TI é cercada
por fazendas, assentamentos do INCRA e por uma reserva extrativista. A RESEX e os
assentamentos são criados num contexto de esfriamento do mercado de látex e de disputa
territorial entre indígenas, seringueiros e paulistas12. Ambas ocupações trouxeram para o
convívio cotidiano a negociação constante dos indígenas com yara sobre manejo dos
territórios. Frequentemente a TI é alvo de invasões e há um histórico antigo de conflito entre
assentados e os noke koĩ, incluindo episódios de ameaças e mortes.
Mais recentemente além da RESEX e dos assentamentos, a TI Campinas é afetada
diretamente também por empreendimentos, como abertura de ramais, estudos de viabilidade
de extração de petróleo e construção de uma rede de torres para transmissão de energia
paralela à BR. A conclusão do asfaltamento da BR 364, em 2012, aumentou
consideravelmente o fluxo de veículos e consequentemente o número de acidentes e
atropelamentos, além de episódios de roubo, agressões e raptos. Outros eventos violentos
correlatos à violência da BR passaram nos últimos anos a envolver não só confrontos
interétnicos, mas também tendo os próprios noke koĩ como agentes de violência: suicídios,
atropelamentos, assassinatos e estupros. A tristeza e a saudade incomuns causadas pelas
mortes e pela condenação de quatro noke koĩ à prisão geram, por seu caráter anti-social, uma
série de novos sintomas, como descontroles de pensamento, desestabilização dos espíritos e
consequentemente doenças e mais mortes.
Nesse contexto de empreendimentos, escassez, violência, disputas e discordâncias
entre os noke koĩ, ressurge o desejo de se mudar. Em 2008, um grupo do clã varinawa passa a
reivindicar a demarcação de uma área dentro da Resex contígua a TI. Essa reivindicação é
fortemente desestimulada por lideranças de outros clãs, e a razão dessa reprovação é também
parte da razão de se querer mudar. A legitimidade da reivindicação é parte de conflitos e
discordâncias entre lideranças sobre a distribuição do poder político. Num contexto de intensa
transformação nas relações internas de poder surgem estratégias de driblar essa tendência,
entre elas deslocar-se.
Uma série de eventos recentes intensificou esse contexto, deu força a essa
reivindicação e inverteu o fluxo de mudanças entre as terras indígenas. Desde a década de
1970 o fluxo mais intenso era do Gregório para o Campinas e teve como disparador a morte

12
Paulista é uma categoria usada regionalmente para se referir a estrangeiros de outros estados do Brasil,
sobretudo das regiões centro-sul e sudeste. Como veremos mais detalhadamente a frente, inicialmente paulista
foi atribuída aos empreendedores da nova fronteira agrícola que surgiu com a queda do preço da borracha,
agropecuaristas e madereiros, e só mais tarde estendida a estrangeiros de outros estados, funcionários públicos,
comerciantes e turistas.
55

de um parente por feitiçaria e conflitos com o patrão seringalista. Recentemente a inversão


desse fluxo e a reivindicação da área da Resex também teve como motivação um contexto
carregado de mortes, acusações de feitiçaria e conflitos.

Morte, feitiçaria e deslocamentos

No início de 2014, Orlando, uma das principais figuras de mediação do contato


interétnico entre noke koĩ e yara, começa a enfrentar problemas de saúde. No contexto de
rivalidade entre lideranças de diferentes clãs, o fato de Orlando ser de uma linhagem de
importantes lideranças noke koĩ fluentes no trato interétnico faz com que a sua doença
desperte na TI Campinas um clima de apreensão.
Em março de 2014, no caminho da cidade para a terra indígena, Orlando se sente mal,
tem tontura, queda de pressão, tremores, dores intensas na barriga. No hospital, o médico trata
o caso como uma gastrite. Ele é medicado e vamos para a aldeia. Os dias seguintes continuam
sendo de intensas dores abdominais e dificuldade para se alimentar. Uma endoscopia revela
uma úlcera. Em outubro de 2014, Orlando já não bebe álcool há vários meses, está 30 quilos
mais magro e ainda tem dores no estômago. Em uma nova endoscopia não parece haver nada
muito grave além de uma gastrite. No entanto, pouco tempo depois, em dezembro, outra
endoscopia revela um grande tumor fechando a boca do estômago. Em janeiro de 2015,
Orlando é encaminhado para Rio Branco para uma cirurgia de retirada de parte do estômago.
Durante a operação o médico constata que nada mais poderia ser feito, o câncer já estava por
todo o seu corpo, em vários outros órgãos. A velocidade com que uma gastrite se tornou um
câncer alimenta suspeitas de feitiçaria.
Até a sua morte em março de 2015 muitas coisas aconteceram. Na tentativa de curá-lo,
vários pajés, rezadores e cantadores se debruçam sobre Orlando. Os jovens passam a
demonstrar interesse em tomar cipó13, os encontros para consumo de cipó; as chamadas
pajelanças, se tornam frequentes em toda a terra indígena e as participações nessas pajelanças
se intensificam.

13
Tomar cipó é uma expressão usada para se referir a ingestão de ayahuasca, uma infusão em geral composta
por uma mistura do cipó conhecido cientificamente como Banisteriopsis caapi e regionalmente como jagube,
com folhas do arbusto Psychotria viridis, conhecido regionalmente como folha rainha ou chacrona. Essa espécie
de chá é chamada de cipó e mais popularmente conhecida no resto do Brasil como daime. O cipó é conhecido
por suas capacidades terapêuticas e psicoativas, e por isso amplamente usado por indígenas e yara na região. Os
indígenas o consomem no processo de composição do corpo do pajé e também por leigos em ocasiões de
reflexão e práticas de auto-cuidado. O uso pelos yara em geral está relacionado a práticas religiosas e/ou
terapêuticas.
56

A instabilidade política cresce descontroladamente. Muitos têm medo que Orlando


morra e quietos acumulam informações que circulam de aldeia em aldeia: “Orlando viu cobra
grande”; “Pajé disse que é feitiçaria” e outras afirmações em torno do que poderia ser e o que
poderia acontecer.
Sua aldeia, Masheya, toma um aspecto de aldeia abandonada, o mato cresce no meio
da aldeia e parte de uma das famílias, a de Aya se muda para o Gregório. É o início de uma
nova fase de deslocamento territorial.
No início muita gente falava que Aya, a primeira, nessa nova fase, a se mudar para o
Gregório, sempre foi assim, “sem canto certo”, não faz roçado, não pára em canto nenhum,
mas que ela era apenas um caso isolado. Com o tempo, outros foram dizendo que ela se foi
porque Orlando ia morrer, porque tinha feitiço rondando.
Em 6 de março de 2015 Orlando morre em Masheya. O clima na TI é de desespero,
muita tristeza e forte instabilidade política. Os discursos se dividem entre os que têm a certeza
de que foi feitiçaria e os que afirmam que era a hora da viagem dele mesmo, e que as
acusações de feitiçaria são fofocas mal intencionadas.
A morte de Orlando e as suspeitas de feitiçaria despertam em quase toda a terra
indígena o ímpeto de se mudar. A família de Orlando não se muda de Masheya por orientação
do finado antes de morrer. No entanto nota-se claramente o abandono da porção de influência
da casa dele na aldeia.

Feitiçaria, deslocamentos e poder político

Pouco depois da morte de Orlando, um pajé muito dedicado a curá-lo vai à Funai e
protocola um documento denunciando que a morte de Orlando tinha sido por feitiçaria
marubo, através de um pajé yawanawa e a pedido de uma liderança noke koĩ. A encomenda
da morte de Orlando envolveria ainda um genro de Orlando, o irmão do genro e o irmão da
dita liderança acusada. Um outro pajé noke koĩ que não mora na TI Campinas/Katukina, e que
também é conhecido por não parar quieto, endossa a necessidade de recorrer a instâncias
jurídicas yara14 para punir os feiticeiros.
Antes mesmo da instabilidade política instaurada pela morte de Orlando, um outro
movimento de deslocamento já estava em curso. A reivindicação de 2008 da área entre o
igarapé Miolo e o igarapé Forquilha, afluentes da margem esquerda do Riozinho da

14
Yara é o termo noke koĩ para se referir aos não-índios.
57

Liberdade, dentro da Resex, como área de ocupação tradicional é retomada. Nas vésperas de
Orlando morrer, a liderança da aldeia Varinawa refaz o documento de reivindicação dessa
área e envia ao MPF, ao ICMBio e à Funai. Com a morte de Orlando a reivindicação do
Miolo toma nova força.
Em 17 de março, 10 dias depois do enterro, ocorre uma reunião do conselho da Resex
Riozinho Liberdade. O ICMBio, que administra a reserva onde se encontra a área, pede a
presença dos noke koĩ para explicar aos extrativistas detalhes de sua reivindicação de parte da
terra localizada no igarapé Miolo. Apenas dois noke koĩ comparecem, nenhum deles parte do
grupo de reivindicação, ambos agentes agroflorestais indígenas, um da aldeia Samaúma e
outro da aldeia Campinas. Eles falam sobre temas relativos a eventuais conflitos de
vizinhança: invasão por caça, pesca com tingui, caçada com cachorro, mas não tocam no tema
da reivindicação do igarapé Miolo. Os que reivindicam a área não quiseram comparecer
porque não acreditavam que haveria qualquer acordo resolutivo sem a presença do MPF.
No dia seguinte a essa reunião, as viúvas do finado Orlando e o pajé que protocolou o
documento de acusação de feitiçaria, acompanhado de sua mãe, vão a Funai. As viúvas falam
das dificuldades de serem mulheres sozinhas para criar os filhos e da insegurança alimentar
que vivem. O pajé se arrepende de ter feito o documento e declara estar sendo ameaçado de
morte. Ele diz: “eu quero resolver, eu não quero morrer”. O pajé estava pedindo à Funai uma
espécie de exílio político e não exigia nenhum lugar específico. Quando perguntado sobre
para onde ele gostaria de ir, ele não sabia dizer um lugar certo. Cogitou ir para Cobija, na
Bolívia, onde ele tem um amigo, mas ele se preocupava com o que as viúvas falaram, sobre as
dificuldades de alimentação na TI Campinas. Ele dizia: “se eu vou para um lugar seguro,
como ficam meus filhos e meus pais?” A mãe dele disse que ela não é do Campinas, que
nasceu no Gregório, que é crente e que não pode brigar com ninguém. Por fim ela expressou
seu desejo de voltar para o Gregório.
No dia seguinte, a liderança geral da TI Campinas/Katukina resolve ir junto ao irmão
da liderança local que encabeça a reivindicação do Miolo até a Funai para saber como estava
o andamento do pedido. Embora o ICMBio estivesse disposto a mediar junto com a Funai
diálogos entre extrativistas e noke koĩ, a Funai afirmou que o processo tinha pouca chance,
que existem muitas outras reivindicações de grupos que não têm terra demarcada e que os
noke koĩ tendo duas terras demarcadas não teriam prioridade. O interesse em saber sobre o
andamento da reivindicação se pautava na preocupação da liderança geral em apaziguar a
instabilidade política provocada pela morte de Orlando que havia incitado o desejo em várias
famílias de se mudarem da TI Campinas. O argumento da liderança geral era de que as
58

mudanças da TI e reivindicações desse tipo eram fruto de instabilidades pessoais de


lideranças isoladas, que alimentam as instabilidades internas incentivando a saída da TI. A
essa altura, pouco depois da morte de Orlando, cinco famílias da aldeia Varinawa (aldeia de
onde partiu a reivindicação do Miolo) já haviam se mudado da TI Campinas para a TI Rio
Gregório por influencia de um outro pajé. Em outra aldeia, Samaúma, o cacique já havia
expressado sua vontade de ir para o Gregório.
Preocupado com a desarticulação interna e com o clima de insegurança e instabilidade
na TI, a liderança geral busca na Funai apoio político para conter as mudanças em massa. Ele
afirma: “quem quiser mudar, pode mudar, mas tem que assinar um termo de responsabilidade
para dizer porque está saindo e deixar a chave da casa com a liderança. Todo ano a liderança
de Varinawa diz que vai se mudar, ele é nômade, não pára num lugar, mas hoje toda terra tem
dono; a Resex é dos extrativistas; o Gregório é dos yawanawa. Os noke koĩ não querem
confrontar com ninguém, a gente nunca disse: ‘você não presta, vai embora’, mas a gente não
pode apoiar esse tipo de atitude. A gente quer saber se a Funai vai continuar apoiando essas
atitudes que estão prejudicando as forças das lideranças e da Akac [a associação dos noke
koĩ]”.
A Funai sustenta, diz, que é preciso uma carta da Akac sobre o assunto, que é preciso
fazer uma reunião geral para discutir o assunto. Segundo o coordenador da regional, é a falta
de entendimento interno, entre lideranças, que leva a acusações. Em suas palavras, “é preciso
transparência nas relações entre as lideranças para não alimentar fofocas e para que possam
resolver os problemas internos”. Por fim, a Funai local se posicionou dizendo que tem
acompanhado o processo e dado orientação, mas que não apóia a reivindicação.
Ao fim da reunião, a Funai apresenta à liderança geral detalhes do documento da
denúncia de feitiçaria do pajé. A liderança se surpreende e argumenta: “temos laudo médico
comprovando que a morte do Orlando foi de câncer, mas esse pessoal fica tomando cipó e
vendo mentira. Se continuar vou até proibir de tomar cipó.”
Preocupado com a instabilidade na TI, a liderança convoca uma reunião geral com
todas as aldeias. Um irmão dele promete resolver a situação, que ele chama de fofoca, com
um tom violento de ameaça de agressão. A reunião se passa toda em noke vana15, os pajés da
denúncia não comparecem, nem ninguém da aldeia do Orlando.
Uma liderança comenta que corre publicamente uma notícia sem confirmação de que
indigenistas da Funai teriam dito que quem deixar as casas do governo será multado em

15
Noke vana é como os noke koĩ chamam a sua língua materna: nokenosso vanalíngua.
59

dinheiro. Muitos passam a ter medo de sair da TI e serem punidos, de não poderem voltar
mais à TI e ainda adquirir uma dívida em dinheiro. A liderança geral não se pronunciou na
reunião sobre as acusações. O genro de Orlando disse que iria instaurar um processo por
danos morais contra a acusação de feitiço no MPF e disparou uma série de acusações contra o
pajé denunciante. “Ao invés de ir para as instituições atrás de projeto ele vai para fazer intriga
e desunir o povo. Ele tem associação com chilenos, vende kãpo16 e faz tráfico de droga”.
Uma pessoa da aldeia da liderança geral questiona as pajelanças do pajé e diz que os
yawanawa vão ficar com raiva deles porque o pajé chamou os yawanawa de feiticeiros. O
irmão da liderança geral disse: “é preciso acabar com isso de pajé forte como alternativa de
tratamento de saúde” e fez ameaças violentas de morte e agressão. Ao final, a liderança geral
disse que ninguém mais vai para o Chile e que não é para Funai receber documento de
ninguém, nem reivindicação para sair da TI.
A liderança geral classifica o contexto como resultado de fofocas e especulações
infundadas sobre a morte de Orlando. Ele ressalta sua apreensão e afirma que as acusações de
feitiçaria são mal intencionadas e irresponsáveis porque criam divisões, desentendimentos e a
desunião dos noke koĩ. Para ele, as especulações sobre a morte do Orlando eram coisa de
quem não quer trabalhar junto, que não quer fazer parceria, e sim desunir os noke koĩ. O que
para uns ficou posto como ameaça, era, segundo a liderança geral, um alerta ao povo noke koĩ
de que as acusações de feitiçaria iriam dividi-los, trazer desentendimentos e desunião.
O clima de tensão ficou acirrado. A instabilidade política aumentou e a possibilidade
de medidas coercitivas por parte das lideranças com apoio institucional da Funai reforçaram o
desejo de ir embora da TI.
Cerca de uma semana depois da reunião, o pajé autor da denuncia na Funai pede com
desespero que a Funai providencie um meio da família dele sair da TI Campinas. Segundo
suas palavras ele estava sendo ameaçado de morte por ter oficializado a denuncia. Com ele,
foram cinco de seus filhos, seus pais e um casal de jovens. Com o tempo quase toda sua aldeia
foi para a TI Gregório.
O cacique de Samaúma e algumas famílias de sua aldeia também se mudaram para a
TI Rio Gregório. De todas as seis aldeias que compõem a TI Campinas/Katukina, em apenas
duas não houve ninguém que foi para o Gregório: a aldeia recente de 2012 e a aldeia da
liderança geral.

16
Kãpo é uma rã, também conhecida como Phyllomedusa bicolor, cuja secreção é usada pelos noke koĩ e por
outros grupos pano como emético. Na frase acima o termo se refere justamente a essa secreção usada com fins
terapêuticos e muito procurada por yara para tratamentos espirituais e do corpo.
61

CAPÍTULO 1 – O MOVIMENTO: MORADIA E MOBILIDADE

Como vimos na nota etnográfica, essa nova onda de deslocamento territorial dos noke
koĩ se dá num contexto sociopolítico muito complexo. Entre as variantes dessa complexidade
tem-se a mudança no padrão de moradia que, como veremos a seguir, tem efeitos de
transformação e de atualização de um modo de ser noke koĩ que envolve a mobilidade como
eixo conceitual de relações políticas e territoriais. Gostaria de começar, portanto,
apresentando esse contexto de mudança do padrão de moradia para em seguida abordarmos
suas consequências na mobilidade do grupo e assim tentarmos contornar a definição noke koĩ
dessa ideia de mobilidade.
Pode parecer contraditório um capítulo que se propõe falar de moradia mas que se
intitula “o movimento”. Explico. A intenção aqui é fazer uma correlação entre as formas de
moradia noke koĩ – atuais e de outros tempos – e o padrão de mobilidade deste grupo, para
daí demonstrar como a despeito de várias oportunidades de fixação os noke koĩ mantêm a
mobilidade, ainda que não exatamente como antes.
As casas são um ótimo exemplo da transformação, da relativa maleabilidade e da
disposição-à-abertura dos noke koĩ frente a mudanças históricas. Depois do contato, as casas
atuais são, pelo menos, o terceiro ou o quarto modelo de casa introduzido pelos yara ao estilo
de vida noke koĩ.

Parte 1 – Aldeia noke koĩ

Quando fui a primeira vez à TI Campinas/Katukina, eu nunca tinha ido a uma aldeia
antes. Quando desci da caminhonete da saúde na aldeia Masheya, em junho de 2009, me
deparei com uma aldeia com uma configuração sem forma bem definida.
62

Ilustração 1 - Aldeia Masheya em 2009

Não era circular, nem em forma de ferradura, nem formada por dois semi-círculos.
Talvez um tipo de aldeia retangular com casas dispostas em um espaço em forma de y, ou
talvez linear alinhada paralelamente à margem da estrada, com duas fileiras de casas.
A aldeia composta de várias casas é para os noke koĩ praticamente uma novidade dos
últimos sessenta e poucos anos. Antes do contato, os noke koĩ (como outros grupos pano)
moravam em grandes casas coletivas, que chamavam de shovo.
Cada shovo comportava um grupo local, de modo que não se pode falar nesse período
em uma distribuição espacial em forma de aldeia entre os noke koĩ. Na verdade, cada shovo
63

era habitado por um único grupo doméstico – um casal (um homem e sua(s) esposa(s)); seus
filhos; netos solteiros; irmãs e irmãos do homem ou da mulher e algum dos pais, do homem
ou da mulher, separados ou viúvos. Como muitas vezes esses grupos domésticos estavam
distantes uns dos outros, acabavam sendo também o grupo local. A disposição espacial se
configurava por uma moradia coletiva cercada por uma área limpa de vegetação, de onde
margeavam as roças seguidas da floresta.

Ilustração 2 - Shovo e roçado seguidos de floresta

Shovo era uma casa grande coletiva, de chão de terra, com comprimento entre 10 e 30
metros, e entre 10 e 15 metros de largura, sem paredes, com cobertura de palha que se
estendia até o chão, podendo chegar a 10 metros de altura. Um pátio externo ao redor da casa
era roçado e limpo com frequência, prática que ainda se mantém ao redor das casas atuais17.

17
As descrições de outros autores como Montagner e Melatti (1975) da maloca marubo, de Erikson da maloca
matis (1999), e de Matos da maloca matsés (2009) são bem parecidas com essa que coletei dos noke koĩ. Além
disso, em comunicação pessoal, Fabrício Amorim, indigenista da coordenação geral de índios isolados e recente
contato da Funai confirmou uma descrição parecida para as atuais malocas kobubo.
64

Essas casas duravam de 5 a 8 anos, tempo médio de durabilidade da cobertura de


palha. Quando a cobertura se deteriorava, em lugar de reparos, as casas eram abandonadas.
Mudava-se de shovo e de local. Abria-se uma pequena clareira circular na mata, onde se
construía uma nova casa e um novo roçado. Depois de alguns anos, a roça precisava se mudar
de lugar e um novo círculo externo era preparado. A roça antiga se cobria de vegetação, e
mais uma faixa se incluía nessa configuração; a capoeira. Com o passar dos anos,
simultaneamente à deterioração da cobertura, as roças se tornavam distantes e as faixas de
capoeira mais densas. Era o momento de se mudar outra vez.
Assim, podemos dizer que, paralelamente, ciclos ecológicos – esgotamento das áreas
de roçado, de caça, deterioração das casas – e dinâmicas sociais – novos casamentos,
crescimento das famílias, mortes de parentes, conflitos – conformavam condições para uma
organização territorial fundamentada no princípio da mobilidade. Mais adiante veremos que
com a mudança no padrão de moradia esse princípio se reproduz e se transforma.
O termo shovo referia-se somente às casas grandes coletivas, que em português nós
chamamos de maloca, em contraste com o outro modelo feito sobre palafitas, que mais tarde
iria predominar nas colocações dos seringais, e que recebia outro nome; tapo (jirau)18.
Com a chegada da empresa seringalista na região, os noke koĩ se dispersaram pela
mata. A apropriação de trechos de floresta para a instalação de seringais se deu por
expedições armadas que visavam exterminar grupos locais. Esses enfrentamentos violentos
ficaram conhecidos como correria e resultaram na dispersão dos noke koĩ em pequenos
grupos. Algumas pessoas me contaram que nesse período não moravam em aldeias, mas em
pequenos grupos e em casas temporárias, tipo tapiri, já que a qualquer momento poderia ser
necessário abandonar o acampamento e fugir pela mata. O contexto de mobilidade aqui era
completamente distinto do tempo em que viviam nos shovo coletivos. Tratava-se de uma
mobilidade forçada, ou melhor, de fugas, afinal, a dispersão para salvar a vida não pode ser
considerada um padrão de mobilidade. Atualmente famílias que se mudam muito são
pejorativamente chamadas de fugitivas, ou nômades com base em concepções negativas de
que a fuga é um padrão de mobilidade e de que a mobilidade é fuga.
As fugas diminuíram uma vez instalados os seringais. O extermínio foi freado e
muitos indígenas foram atraídos para trabalhar na empresa seringalista. Com a fixação dos
seringais, o cenário de habitação indígena se transformou. Junto às clareiras das casas e aos

18
Os tapo eram construções de assoalho suspensos. Ver ilustração adiante, p.45.
65

caminhos para roça e caça, passaram a predominar os tapo e surgiram as colocações19 e as


estradas de seringa.

Ilustração 3 - Colocação de seringa: casa, estradas, centro e margem

As colocações, em geral compostas por pelo menos 3 estradas, abertas em média com 1 metro de largura, eram
ligadas a algum núcleo residencial.

Entre as fugas e o assentamento em colocações, o modelo de maloca foi abandonado.


Tal como a dispersão, o estilo de vida seringueiro mudou a maneira noke koĩ de morar, que
passou a ser em pequenos grupos de família nuclear e em casas de palafita. Foi assim que os
tapo passaram a predominar sobre as malocas20. Com o desaparecimento das malocas
coletivas, tapo passou a ser considerado shovo, afinal tapo passou a ser o modelo comum de
casa21.
É curioso notar que, recentemente, a esse shovo antigo que nós chamamos de maloca,
foi dado na região o nome de kupixawa, palavra em língua pano usada para designar as
antigas casas huni kuin e hoje aplicada, de maneira geral, às casas comunais de antigamente22.

19
Em termos meramente espaciais, a colocação é uma área de exploração do seringal e de moradia dos
seringueiros, onde se encontram 3 ou 4 estradas compartilhadas. Mas é também um espaço social. Mauro
Almeida (2012) define a colocação como uma organização social e um sistema econômico caracterizado pelo
uso múltiplo de territórios florestais.
20
Castello Branco (1950) apresenta interessantes descrições sobre as habitações de alguns grupos pano no
período da borracha, desde a chouba yaminawa do Amauacas, passando pela maloca Puyanawa do rio Moa,
pelos tapiris Nawa do Liberdade e Gregório e o kupixawa Kaxinawa no Tarauacá e Nova Olinda, até as casas
Apurinã e Machineris. Ver anexo A.
21
Na década de 1980, entre os marubo, Melatti, J. e Montagner, D. (1986) encontraram malocas e tapo
convivendo contemporaneamente, mas nesse contexto, tapo e maloca se distinguiam não só pela arquitetura, mas
também pelo uso. A maloca era onde cozinhavam comiam, dormiam, guardavam comida, recebiam visitas,
faziam sessões xamânicas e onde as mulheres produziam artesanato. Os tapo era sobretudo depósitos de
munição, tecidos, panelas, sabão e outros objetos comprados. Mesmo assumindo a flexibilidade desse oposição,
os autores destacam que parecia haver uma distinção entre lugar de atividades tradicionais e lugar para as “coisas
de branco”. Uma transformação interessante é apontada por Calavia Sáez, que afirma que o tapo, definido por
ele como estilo regional, foi aos poucos se convertendo em um estilo de índio a medida que os não-indígenas
foram adotando casas de tábua e folha de flandres: “o teto de palha e a paxiúba, na periferia da cidades da região
[rio Acre] e mesmo ao longo dos rios, se converteram já em índices bastante seguros de moradia indígena”
(2006a: 45).
22
Castello Branco (1950: 34) registra copichaua como um termo usado para a casa longa dos Kaxinawa
próximos de Tarauacá. O autor descreve o copichaua como "coberta de palhas, muito alto no meio, caindo em
66

Hoje em dia, na relação com os yara, o kupixawa se tornou um conceito regional que se
refere, para a maior parte dos grupos do alto Juruá, às casas de espaço comum, onde
acontecem reuniões, oficinas, pajelanças, assembléias e outros eventos culturais e políticos.
Transformadas em uma espécie de patrimônio histórico, as malocas/kupixawa (ou chapéu de
palha como também são chamadas) funcionam aos moldes das casas coloniais que temos na
cidade, que frequentemente abrigam instituições governamentais como secretarias ou espaços
culturais. A maloca hoje é uma casa de reunião, lugar da política de relações interétnicas.

Foto 1 - Kupixawa, TI Campinas/Katukina - Foto Jairo Lima 2004

Entre os noke koĩ nota-se que o kupixawa, como casa de relações políticas
interétnicas, assume uma diferença significativa quanto a forma em relação aos shovo antigos.
Enquanto a maloca comunal era alongada o kupixawa atual é circular. Essa diferença de
forma aponta a importação do modelo de outro grupo, o que possivelmente justifica também o
uso do nome kupixawa, em língua pano, mas sem origem na língua dos noke koĩ. Em 2009, a
TI Campinas/Katukina contava com um kupixawa, construído com o apoio do governo do
estado do Acre e entregue à administração da AKAC – a associação dos noke koĩ dessa TI.
A transformação do shovo antigo em tapo e a introdução do kupixawa como modelo
de casa tradicional é uma das faces da transformação da habitação, aquela que envolve a
política interétnica (cargos indígenas, reafirmação cultural, projetos indigenistas, etc.) e por

duas águas até pouco mais de um metro acima do chão sem paredes nem resguardos laterais, só se podendo
entrar nela sem se inclinar, pelas extremidades, sem divisões internas, sendo o interior comum a todos os
moradores, tendo cada família o seu fogo, seus utensílios, suas rêdes, suas espigas de milho e môlho de
amendoim nos lugares determinados pelos tuchauas, assinalados pelos esteios e vigas que sustentam o teto e
sempre construída no meio do roçado, no terreno mais elevado, em terra firme, a margem de igarapés ou rios".
67

isso não é de se espantar que tenha sido financiada pelo governo. Não por acaso esse
kupixawa estava localizado nas proximidades da aldeia da liderança geral, mas esse aspecto
discutiremos mais adiante quando formos falar das lideranças e seus espaços. Por hora nos
importa notar que desde os primeiros anos de contato, a presença de não-indígenas na região
vem se projetando no espaço.

Ilustração 4 - a) jirau tapo; b) casa tapo; c) shovo maloca

O termo tapo refere-se a estrutura do assoalho, que suspenso assemelha-se a um jirau, mas é também o nome
dado a esse modelo de casa feito sobre palafitas.

De volta aos tapo, são bem menores que as malocas, são construções retangulares
abertas, de assoalho suspenso e feitos basicamente de apoios de madeira, paredes de paxiúba,
telhado de folhas de palmeiras jaci, ou ouricuri, e amarrações com cipó envira, atualmente
substituídas por pregos. As paredes de paxiúba têm em torno de 3 metros de altura e são
postas em sentido vertical. O assoalho, também feito de paxiúba e suspenso do chão, se
estende para fora das paredes, onde, em geral, é feita a cozinha. Internamente contam com
uma ou duas paredes e janelas nas quatro paredes externas. O telhado de cobertura de folhas
de palmeira trançadas com uma inclinação de mais ou menos 45 graus se apóia sobre
estruturas de madeiras roliças, encaixadas e amarradas com envira ou presas com prego. O
espaço entre o chão e a casa serve como depósito e abrigo noturno de alguns animais
domésticos, além de permitir ventilação à casa, assim como as pequenas frestas nas paredes
entre as tábuas de paxiúba.
68

Foto 2 - Assoalho de paxiúba

Foto 3 - Paredes e assoalho de paxiúba


Foto 4 - Fresta entre tábuas
69

Foto 5 - Telhado de palha: vista externa e detalhe interno - Aldeia Bananeira 2009

Em 2009, ainda havia casas de paxiúba. Em Masheya pude contar três entre seis casas,
uma cozinha coletiva aberta (sem paredes) e outra abandonada em processo de deterioração.
Lima (2000a) relata que já em 1997, as casas de paxiúba e palha eram poucas, predominando
casas construídas totalmente com madeira serrada em tábuas. A autora nota que algumas
casas combinavam tábuas e paxiúba, mas destaca que essa combinação, bem como os
telhados de palha, só persistiam na medida que seus moradores ainda não tinham condições
de substituir a paxiúba por tábua e a palha por telhas de flandres. Na minha primeira visita,
em Masheya em 2009, as casas de tábua já eram comuns mas os telhados de palha ainda eram
predominantes, apenas a farmácia tinha telhado de alumínio, e uma nova casa em construção
tinha planos de telhado de amianto. Em algumas aldeias maiores, como Campinas/Kamanawa
no entanto, telhados de folhas de amianto ou alumínio já era uma realidade mais comum.
70

Foto 6 - Casas de paxiúba e telhado de palha - Aldeia Masheya 2009

Foto 7 - Casas da aldeia Masheya em 2009

Aldeia Masheya 2009 – três tipos de casa (da esquerda para a direita): a) de madeira serrada com telhado de
palha, b) de madeira serrada e telhado de alumínio e c) de paxiúba e telhado de palha
71

Mesmo com tantas transformações arquitetônicas, as casas de tábua ainda garantiam


certa mobilidade espacial a seus moradores, que frequentemente estavam se mudando. As
casas não eram feitas nem para durar nem para fixar seus moradores. Eram muitas vezes
abandonadas ainda em bom estado e ficavam ali a se deteriorar com o tempo ou a servir de
fonte de material para um conserto ou ampliação de outra casa. Essa particularidade das casas
poderem ser feitas e desfeitas e até mesmo abandonadas colaborava para que a mobilidade se
mantivesse sempre intensa.
A minha hipótese é que, mesmo depois do contato, o mesmo princípio de mobilidade
que fazia os noke koĩ abandonarem as malocas e roçados velhos para buscar um novo local
continuou (e ainda continua) sendo reproduzido e simultaneamente transformado. Ao longo
dessa tese tentarei demonstrar como a organização territorial e social dos noke koĩ se
caracteriza através do tempo por essa mobilidade e por isso proponho, antes de apresentar os
atuais contextos espacial e de moradia da TI Campinas/Katukina, uma digressão sobre como
até 2013 os noke koĩ se organizaram nos limites dessa TI.

Mobilidade em tempos de terra indígena

A formação dos atuais territórios oficiais dos noke koĩ – TI Rio Gregório e TI
Campinas/Katukina – remete à história do contato. Dados históricos indicam que até mais da
metade do século 19 o curso do rio Juruá permaneceu praticamente inexplorado pelos
brasileiros. Apesar de tardia em relação a outras regiões do Brasil, a invasão dos afluentes e
porções de floresta motivada pela exploração extrativista foi rápida. Segundo Castello Branco
(1947; 1961), em 1883 exploradores passaram pela foz do Rio Gregório e entraram no
Riozinho Liberdade, ambos afluentes do Juruá, e em 1890 já se encontrava seringais por todo
o alto curso do Juruá. Podemos imaginar o impacto que a nova ordem geográfica e ecológica
ocasionou nas relações de contato, de circulação, de trocas e alimentação dos índios da região.
Sabe-se que o contato resultou em redução demográfica, migração forçada, re-organização
sociocultural e expropriação territorial, além de epidemias, conflitos, trabalho compulsório,
evangelização e deslocamentos para o interior da floresta. Como já foi dito, a instalação de
seringais resultou em violentos enfrentamentos com grupos indígenas. A exploração e
delimitação de áreas de floresta para abertura de seringais se deu com perseguições e mortes
de indígenas que ocupavam áreas de interesse dos seringalistas, as famigeradas correrias.
72

Para sobreviver, os noke koĩ, como outros grupos da região, os matsés por exemplo, se
dispersaram na mata, se afastando dos grandes rios em direção a áreas de interflúvio. Conta-se
que os assentamentos eram esvaziados e refeitos a todo tempo. Essa estratégia evitou que
fossem exterminados e, no caso dos matsés, evitou inclusive que fossem cooptados para o
trabalho nos seringais (Matos 2008). Os noke koĩ, no entanto, como muitos outros grupos
pano, depois de instalados os seringais, foram gradualmente incorporados à vida e aos
trabalhos seringalistas, amansados pelos patrões e absorvidos no sistema de aviamento. As
referências históricas coincidem com a descrição dos próprios noke koĩ e apontam que, nas
primeiras décadas do século 20, os noke koĩ trabalhavam nos seringais do alto rio Gregório,
incluindo os rios Tauari, Tarauacá, Branco e Liberdade (Tastevin 1924, 1926 e 1928).
Mas a participação noke koĩ no trabalho na seringa se distingue da de outros grupos na
região, como os puyanawa e os huni kuin do Envira, por exemplo, que se fixaram nos
seringais sob o domínio de um único patrão. Os puyanawa trabalharam no mesmo seringal
Barão desde 1915 até a morte do Coronel Mâncio Lima em 1950 (Aquino 1985, Montagner
2007). Um grupo de huni kuin do Envira serviu a Felizardo Cerqueira por quase duas décadas
(Iglesias 2008). Nesse mesmo padrão de amansamento Lima (1994) cita ainda o caso dos
nukini que foram atraídos para o seringal República pelo patrão Pedro Antônio de Oliveira.
Diferentemente, os noke koĩ se espalharam em pequenos grupos em vários seringais.
Quando Toshpiya Manoel de Pinho, o primeiro patrão dos noke koĩ, morre, eles se dividem
em dois seringais; Kaxinawá e Primavera, ambos no rio Gregório. De lá se espalham por
várias colocações; Escondido, Mutum, Burra e Tibúrcio. Assim, a incorporação dos noke koĩ
à vida e aos trabalhos seringalistas se deu pela dispersão, em vários seringais, de famílias
nucleares; um casal e seus filhos solteiros, que ao casar até podiam formar pequenos
agrupamentos mas que de qualquer jeito não viviam aldeados. Além disso, os noke koĩ não
mantinham vínculos estáveis com os patrões e, apesar de viverem cada família em um canto,
mantinham um local de referência onde se encontravam de tempos em tempos mantendo a
coesão como grupo, a língua e a evitação do modo de vida yara. Esse local de referência era o
seringal Sete Estrelas, no rio Gregório, a meio caminho de várias colocações que abrigavam
famílias noke koĩ (cf. Lima 1994). Era para lá que iam sempre que estavam nesse trânsito
entre seringais e colocações, sem no entanto se fixar lá. Essas peculiaridades noke koĩ na
estratégia de trabalho na seringa teve mais tarde consequências importantes para a ocupação
territorial, que veremos mais adiante.
Só na década de 1950 é que os deslocamentos diminuíram drasticamente. Conta-se
que Antonio Carioca, o patrão do seringal Kaxinawá no Gregório, era tido pelos noke koĩ
73

como um bom patrão e que por isso se concentravam aí. No entanto, tão logo o seringal foi
vendido, os noke koĩ não se adaptaram ao novo patrão que propunha justamente que os noke
koĩ fossem contratados como eram os demais índios, isto é, por pagamentos coletivos ao
chefe do grupo e não por pagamentos individuais (Lima 1994). Lima conta que, diante da
condição imposta pelo patrão, os noke koĩ apontaram um chefe, mas que o chefe não repassou
o pagamento aos que tinham trabalhado. Na mesma época, um noke koĩ morreu por feitiçaria
de um yawanawa. Assim, no início dos anos 1960, esses desentendimentos trouxeram de volta
os deslocamentos23. Parte do grupo seguiu em busca de outro patrão no seringal Forte da
Garça, no Riozinho da Liberdade, outra parte do grupo teria ido para o seringal Santa Rita, no
Tauari. Outros foram para o seringal Sete Estrelas e um último grupo para o seringal
Universo, no rio Tarauacá. Alguns anos mais tarde, por volta de 1962, o grupo que tinha ido
para o Forte da Garça deslocou-se para o Japurá, na foz do Riozinho Liberdade. Alguns anos
depois, foram para o seringal Santa Rita, onde reencontram com outros noke koĩ que tinham
ido para lá na época do conflito.

Mapa 4 - Mapa de deslocamento entre seringais

23
Antes da tese de Lima (1994) a versão corrente da história das duas terras noke koĩ contava que o grupo se
dividiu por causa dos trabalhos na BR (Aguiar 1991 apud Lima 1994). Ao obter dados que indicam os
desentendimentos dos noke koĩ com seu chefe, com o patrão do seringal e com os yawanawa, Lima pôde
contestar essa versão.
74

`
Mapa 5 - Localização aproximada de alguns seringais

Lima (1994) afirma que essas mudanças constantes tinham como principais pontos de passagem os seringais
Sete Estrelas e Caxinauá, no rio Gregório, o seringal Universo, no rio Tarauacá, e os seringais Guarani e Bom
Futuro no riozinho da Liberdade. Mapa construído a partir de mapas de SEMA (2012) com localizações
aproximadas baseada em relatos e coordenadas de <http://mapasamerica.dices.net/> sobre googlemaps.

Em 1970, parte desse grupo segue para a colocação Bezerra, onde antes viviam os
yara Antônio Jacinto e Pedro Ferreira, às margens do igarapé do Boi, hoje limite norte da TI
Campinas. Em 1971, outro grupo sai do seringal Santa Rita (Tauari) para o seringal Recanto,
às margens do rio Campinas.
No ano seguinte, com as obras de abertura da BR-364, o grupo do igarapé do Boi
deslocou-se para junto do 7o Batalhão de Engenharia de Construção (BEC) para trabalhar no
desmatamento, brocagem e destocamento da área de construção da estrada. Aos poucos
alguns outros vindos do Gregório foram também chegando para trabalhar na estrada. Em
1972, os noke koĩ formavam às margens da BR-364, próximo ao igarapé Olinda, dois
pequenos aldeamentos; o Olinda de Cima e o Olinda de Baixo. No Olinda de Cima, onde
atualmente é um cemitério, moravam as famílias extensas de Ro’a André, Viña Manoel Rosa,
Poko Henrique, Mani Zé Pequeno, Pe’o Zé Carneiro, Mepi Eru, Vari Pera João Rosa, Wani
Vicente e Ma’i Bahia. No Olinda de Baixo moravam Vari Kene Antonio Rosa e sua família
extensa.
75

Com o fim das obras, essas famílias tiveram autorização do BEC para ocupar as
margens da estrada24. Alguns voltaram para o Gregório e outros se assentaram por ali. No
entanto, dos que ficaram nem todos se fixaram nesse aldeamento por muito tempo. Até o
início da década de 1980, a maioria dos noke koĩ moravam no interior da mata, em colocações
de seringa. Entre 1972 e 1996 – ano em que novas aldeias começam a ser criadas – os noke
koĩ se dispersaram em vários grupos de família nuclear por pelo menos 16 colocações dentro
do perímetro que mais tarde veio a ser a TI. Nesse período, pequenos grupos familiares
mudavam constantemente de colocação. Um exemplo é a família de Mani, também conhecido
como Zé Pequeno, que entre 1970 e 1997, morou em 8 lugares diferentes: seringal Recanto,
Olinda, col. Bezerra; col. Jacamim Nea; col. Frandeiro, col. Limão, col. Batista e col. Biorana.

24
Na verdade tratou-se um processo de negociação entre uma famosa liderança noke koĩ e o exército. Esse tema
será tratado com mais detalhes em outro capítulo.
76

Mapa 6 - TI Campinas Localização aproximada de colocações

Localização aproximada das colocações ocupadas pelos noke koĩ antes do surgimentos das aldeias. Mapa
construído com base em dados de campo sobre mapa de etnozoneamento SEMA/AC

A fragmentação do grupo em novas comunidades de família extensa ao longo da BR


começa pouco depois do fim das obras. Em 1975, Olinda de Cima sofre um surto de sarampo
e muitos sairam de lá para o Olinda de Baixo. Poucos anos depois, no início dos anos 1980,
novas colocações são abertas, entre elas, Martins que mais tarde, com o fim de Olinda, se
77

torna a aldeia de referência. Campinas surge como aldeia em 1990 e, cercada por outros
agrupamentos, vai ser a única aldeia dessa TI até 1997.
O cenário de dispersão, com locais de referência de antes da ocupação, continuou. No
lugar de vários seringais, várias colocações e no lugar do Sete Estrelas, o Olinda, e depois o
Martins.
Com a demarcação em 1984 e o fim do ciclo da borracha, muitos grupos abandonaram
as colocações na mata e vieram para a beira da BR. A queda do preço da borracha e a
demarcação da terra possibilitaram a ruptura com os patrões seringalistas e o abandono das
áreas isoladas na mata, podendo se aproximar da estrada e consequentemente da cidade, das
mercadorias e do atendimento médico. Isso aliado à intensificação das mudanças do rio
Gregório para o Campinas fez com que alguns agrupamentos, antes de três a cinco casas,
fossem se expandindo. Assim na década de 1990, alguns deles – por outras consequências
além da expansão – vieram a se tornar aldeias.
Para Góes (2009), a abertura de novas aldeias está relacionada à instituição de poderes
políticos na figura de caciques e à necessidade de fiscalização da terra pós-demarcação.
Segundo o autor, há uma relação intrínseca entre a fundação de aldeias e a eleição de caciques
e de fato, a fiscalização e a representação são acionadas pelos caciques para justificar a
fragmentação e a consequente formação de novas aldeias. No entanto, a dispersão é anterior à
figura representativa de cacique. A área entre as colocações Neroya e Waniya, por exemplo,
só se torna a aldeia Masheya em 2005. Masheya é um bom exemplo da mobilidade noke koĩ
dentro do contexto de TI demarcada, primeiro porque sua fundação se deu sobre uma área já
ocupada por um movimento de dispersão de Rona entre os anos 1984 e 1986, que deixou a
aldeia principal, Olinda, para abrir lá uma colocação, Waniya. Em segundo lugar, porque foi
fundada com o intuito de alocar famílias que tinham vindo da TI Rio Gregório.
A maior parte das aldeias hoje está localizada onde antes foi uma colocação, ou muito
próximo de onde foi: próximo a Waniya e a Neroya funda-se Masheya; Shono Voroya torna-
se Samaúma; onde era Seringal Recanto surge a aldeia Campinas; a colocação Martins mais
tarde vira aldeia Varinawa e a colocação de Maurício Mapes, a aldeia Bananeira.
Essas ocupações, antigas colocações, se tornaram aldeias através das lideranças. A
aldeia Masheya, por exemplo, só passa a existir como aldeia em 2005 através do genro de
Rona, Orlando Viño, liderança e presidente da associação na época, de modo que o
argumento de Góes encontra respaldo na etnografia histórica da ocupação da região. A
abertura de aldeias está, sim, relacionada à instituição de poderes, e explica a fundação de
várias novas aldeias depois da década de 1990, mas não justifica a ocupação dispersa dos
78

agrupamentos. Como Góes (2000) e Lima (1994) notaram, mesmo antes de se distribuírem ao
longo da estrada em várias aldeias, havia agrupamentos por toda a BR e mesmo depois da
fixação das aldeias, a abertura de agrupamentos continuou intensa.
Um outro exemplo que reforça tanto o argumento de Góes, quanto a mobilidade
constante notável na abertura intensa de agrupamentos, é Waninawa. Waninawa, hoje uma
aldeia, surgiu como vimos na nota etnográfica como uma dissidência da aldeia Campinas,
como um sinal da insustentabilidade de um contexto de superpopulação e conflitos
constantes, que envolvia a questão sobre ouvir e dançar forró na aldeia, o consumo de cachaça
e a concentração de poder na figura de algumas lideranças. Um grupo de parentes auto-
identificados como do clã Waninawa se mudaram da aldeia Campinas para uma área ao lado,
próxima a uma antiga colocação em que vários pés de pupunha (wani) haviam sido plantados
na época em que essa colocação tinha sido ocupada por um parente Waninawa mais velho.
A área, apesar de muito próxima da aldeia Campinas, a princípio não contava com
varação direta para ela, sendo acessível apenas pela estrada. Waninawa foi aberta com a
proposta de não se consumir nem cachaça, nem escutar forró e de estreitar os laços de
cooperação de trabalho entre os parentes. O agrupamento então passa a existir como uma
comunidade aos olhos dos demais parentes de outras aldeias. O fato de não serem
considerados aldeia pelos parentes e de dependeram dos serviços de agentes indígenas (AIS,
AISAN) e da escola da aldeia Campinas os incomodava e foram fatores determinantes para,
em 2014, requererem junto à liderança geral o status de aldeia25. Waninawa ilustra bem a
atualização da mobilidade constante e sua transformação em aldeia. Como sempre, por
diversos motivos, grupos domésticos se mudam para outras áreas. Tal como é agora, no
contexto atual de forte institucionalização tanto da figura de chefia quanto da organização
territorial, a mobilidade se transforma em uma falsa forma fixa; o aldeamento
institucionalizado. Digo falsa forma fixa, porque apesar do aldeamento ser hoje reconhecido
pelos parentes como valor social e legitimado pelos programas sociais e por órgãos
indigenistas, a existência dessas ocupações em forma e em conceito de aldeia não impede que
sejam abandonadas, nem que surjam outros agrupamentos. No capítulo sobre lideranças e
política veremos mais detalhadamente essa relação entre mobilidade e poder político26. Agora

25
Em anexo B, documento expedido pela liderança geral através da associação.
26
Em sua recente volta a campo entre os kaxinawa, Els Lagrou também notou o continuado ritmo de formação
de aldeias, que ela já tinha constatado nos anos noventa e que deu origem a um número enorme de aldeias. Ela
notou também que os Kaxinawa, assim como os noke koĩ e outros grupos da região, buscam uma escola e
salários para as diversas profissões que uma aldeia deve abrigar.
79

o que nos interessa aqui é a organização territorial dos noke koĩ nessa TI e de como ela é
marcada através do tempo pela mobilidade.

Mapa 7 - TI Campinas - Configuração histórica das aldeias

Atualmente a TI Campinas/Katukina é composta por 6 aldeias: Campinas/Kamanawa; Waninawa; Varinawa;


Samaúma/Satanawa; Masheya e Bananeira.

A composição das aldeias na TI Campinas/Katukina

Quando estive em 2009 na TI Campinas/Katukina, havia cinco aldeias e a planta de


cada uma era mais ou menos assim:
80

Ilustração 5 - Aldeia Campinas/Kamanawa em 2009

Ilustração 6 - Aldeia Varinawa (Martins) em 2009


81

Ilustração 7 - Aldeia Samaúma em 2009

Ilustração 8 - Aldeia Bananeira em 2009

Quatro anos depois, a configuração da terra indígena incluía uma nova aldeia
(Waninawa) mas a mudança radical mesmo não estava na configuração da TI, estava nas
aldeias.
82

Configurações recentes

Ao chegar em Masheya em 2013 me deparei com um cenário de conjunto


habitacional. Tratava-se da construção de casas populares do Programa Nacional de
Habitação Rural.

Foto 8 - Construção das casas do PNHR - Foto Assessoria da SeHab/AC

O PNHR – programa nacional de habitação rural – é parte da política de acesso e


popularização da casa própria do programa federal Minha Casa, Minha Vida. As terras
indígenas Campinas/Katukina e Kaxinawá da Colônia 27, no Acre, serviram de ação piloto
para a implantação do componente indígena desse programa. De acordo com informação
técnica da Funai (Funai 2014a), a demanda de construção nessas aldeias surgiu depois que a
primeira dama do estado se sensibilizou com as condições de moradia das comunidades
indígenas. Em entrevista ao G1, o governador afirmou: “A finalidade do programa é oferecer
mais dignidade às famílias que não têm condições de construírem uma moradia melhor”27
(G1/AC, 06 fev. 2014 – em anexo C).

27
Na mesma linha intervencionaista do indigenismo não-oficial, podemos citar as iniciativas de coletivos de
permacultura e agro-ecologia que propõem ensinar aos indígenas a construir casas de permacultura e fogões geo-
agro-ecológicos. Tudo se passa como uma alternativa às transformações radicais do contato, às casas do PNHR e
aos fogões à gás. Cabe notar que as técnicas indígenas não são vistas como alternativas. Para mais sobre essas
iniciativas ver: <http://www.axa.org.br/2013/12/documentario-discute-futuro-da-casa-xavante/> e
<http://www.pnud.org.br/Noticia.aspx?id=3668>, ambos acessados em 4 jul. 2015.
83

Os noke koĩ no entanto consideravam que as casas que já tinham antes eram
igualmente boas às propostas pelo PNHR, e assim, diante da impressão do governo sobre as
condições de moradia e dignidade que viviam, os noke koĩ adotaram um posição diplomática.
Muitos deles viram no projeto do governo uma oportunidade de negociação política. O ponto
de partida para isso, segundo conversas que tive com lideranças, se assentou sobre dois
argumentos usados pelo governo para a escolha da TI Campinas/Katukina como piloto para o
projeto na região, os quais os noke koĩ concordavam e endossavam como razões suficientes
para justificar a importância do desenvolvimento do programa. Tratam-se da escassez de
material – palha e madeira – dentro da TI para a construção de novas casas e da necessidade
de mitigar impactos da BR.

Mitigar impactos

O segundo argumento usado pelo governo para a escolha da TI Campinas/Katukina e


endossado pelos noke koĩ como justificativa para o desenvolvimento do programa é
necessidade de mitigar os impactos causados pela BR. Sob esse discurso, uma moradia
melhor, segundo o governo, daria mais dignidade aos noke koĩ. A construção dessas casas é,
portanto, parte das ações propostas pelo governo do Acre implementadas como medidas
mitigatórias e compensatórias dos impactos gerados pela construção da BR-364, já que a TI
Campinas/Katukina, assim como a Kaxinawá da Colônia 27 (também incluída no programa),
é afetada diretamente pela rodovia.
Essa moradia melhor tem 78 m2 distribuídos em 2 quartos, uma sala e um banheiro,
piso de cimento coberto com cerâmica, paredes de tábua e cobertura com telha ecológica que
se estende para duas áreas externas, uma lateral e outra nos fundos.
84

Ilustração 9 - Planta da casa PNHR

Foto 9 - Frente e costas da casa PNHR

Essas casas do PNHR foram muito desejadas pelos noke koĩ, que esperaram com
ansiedade a entrega. Ao final da construção muitos avaliaram a casa como muito boa. Alguns
mais ligados a posições de liderança as definiram como uma conquista, material e política.
Mesmo que muitos considerassem as casas que já tinham antes igualmente boas às novas do
PNHR, muitos indígenas viram nas casas novas uma conquista material. Principalmente para
os jovens, as casas do PNHR são melhores, mais modernas e mais bonitas que as antigas28.
Além disso, terem sido escolhidos entre outros povos indígenas da região para receber as
casas foi visto por muitas lideranças – professores e caciques, principalmente – como um
reconhecimento da necessidade de mitigação pela estrada. Esse reconhecimento de dimensão
política abriu portas para negociações diplomáticas com o governo.
Enquanto medida mitigatória e compensatória o PNHR deveria minorar e compensar
impactos irreversíveis e/ou reduzir impactos inevitáveis (Farias 2008). No entanto o que se
via durante as obras era mais de um km de floresta pra dentro da aldeia desmatado sobre as
áreas de aldeia e de roçado, muita água parada, enormes buracos abertos por caminhões e

28
Mais adiante veremos como isso vem afetando a organização social das casas.
85

tratores, toda a vegetação ao redor das antigas casas derrubada e um cenário de violência
latente. Apesar da conquista material, as obras do PNHR resultaram para os noke koĩ em uma
continuação dos transtornos da estrada29.
Assim como a BR, as obras do PNHR afastaram ainda mais os poucos animais da
região. Assim como a BR, o PNHR trouxe a presença de yara para dentro da aldeia num
clima de insegurança constante. Enquanto estive lá durante as obras (dezembro de 2013 até
fevereiro de 2014) ouvi contarem dois casos de estupro e um de sequestro, além de umas
outras tantas ameaças e assédios, dos quais eu também fui vítima. O banho no igarapé deixou
de ser tranquilo, a espera por transporte na beira da estrada também virou motivo de medo. A
secretaria de habitação demitiu uns tantos por conta de denúncias, mas nunca providenciou
qualquer tipo de segurança real. Ainda que os trabalhadores pernoitassem fora da terra
indígena, o acesso pela estrada facilitava a entrada daqueles que, trabalhando lá durante o dia,
conheciam bem as casas e as rotinas das famílias.
Grandes buracos abertos pela obra para preparar cimento tornaram-se com a chuva
focos de mosquito. E assim como a BR, o PNHR trouxe doenças. Em dezembro e janeiro, os
casos de malárias dispararam.

Foto 10 - Focos de malária

a) b) c)
a) e b) Fossas durante a obra com água parada e c) detalhe dos ovos de mosquito presentes nessas águas
Fotos Marco Antonio Iusten

Além dos buracos de água parada, outra herança das obras foram tambores enormes de
impermeabilizantes para madeira (deltametrina e querosene), extremamente tóxicos, sobre o
qual o fabricante indica no site: “Por ser venenoso, mantê-lo afastado de alimentos e do
alcance de crianças”30. No entanto a obra deixou os tambores próximo à cozinha de duas
casas em duas aldeias.

29
Esse tema foi amplamente trabalhado por Lima, E. (1994 e 2000a, 2000c, 2001a, 2001b, 2005c, 2011).
30
Consultado em julho, 2015: <www.vedacit.com.br>
86

Foto 11 - Foco de malária e material tóxico - Ald. Waninawa

Mesmo não atendendo ao esperado de uma medida mitigatória, os noke koĩ aceitaram
o argumento de mitigação pois viram na proposta do governo um meio de negociar outras
ações do governo que tivessem, no futuro e até mesmo fora do âmbito do projeto de
habitação, efeitos mitigatórios. A seguir quero tentar demonstrar como e em que medida esse
plano de estratégia política dos noke koĩ se deu nesse caso.

Escassez de material

Segundo o assessor indígena do estado, além dos impactos da BR, a inclusão dos noke
koĩ no programa devia-se à escassez dentro da TI de madeira e palheira para construção de
casas (G1/AC, 06 fev. 2014 – em anexo B). Diante dessa escassez e cumprindo as normas do
programa (CEF 2012: 15), as casas foram construídas com madeira certificada e não com
madeira tirada dentro da TI.
A questão dos materiais usados na construção da casa é importante e revela uma
complicada trama de negociações entre os indígenas e o governo. Uma exigência feita aos
noke koĩ para que as casas fossem entregues ilustra bem a abertura dos noke koĩ para essas
negociações com o governo. As casas seriam construídas a princípio pelos próprios indígenas,
mas depois a tarefa foi assumida por uma empreiteira e dos indígenas foi exigido apenas que
87

eles completassem a obra com um pequeno telhado de cobertura de palha na parte frontal da
casa. Essa exigência ficou conhecida como a exigência étnica. Mesmo tendo consciência da
escassez de palheiras dentro da TI, e sendo essa uma das justificativas para a inclusão da
comunidade no programa, o telhado de uma pequena varanda na frente de cada uma das 147
casas teve que ser tecido com palha tirada pelos indígenas de dentro da própria TI. O que para
os noke koĩ não pareceu ser um problema e realizaram a tarefa até com certo grau de
festividade. As idas a mata para tirar e tecer palha foram dias animados de atividades
extraordinárias fora da aldeia; de comer e trabalhar fora da aldeia. As ponderações sobre
talvez um certo abuso do trabalho da comunidade por parte do governo eram pontuais e em
geral vinham de lideranças que desconfiavam das vantagens em ceder a esse pedido do
governo.

Foto 12 - Tecendo palha para o telhado étnico - Aldeias Masheya e Waninawa

Mas a negociação dos materiais usados não termina aí. Para a cobertura das casas foi
usada uma telha ecológica feita de fibras vegetais, resina à prova de raios UV e
impermeabilizada com betume. A vantagem da telha ecológica está no custo, na facilidade e
rapidez de instalação. As telhas em si custam quase o mesmo que as convencionais, mas
economizam em estrutura, já que, por serem mais leves, precisam de muito menos madeira na
estrutura do que as telhas convencionais. Segundo o fabricante, uma inclinação adequada
garantiria conforto térmico, mas a verdade é que, como não sobrou nenhuma vegetação
próxima à construção, o calor dentro de casa é intenso. Sobre o calor dentro de casa os noke
koĩ sempre afirmam que o telhado de palha é mais fresco e que quando o chão era de terra
batida também era mais fresco, mais que palafita. Mesmo assim, depois das casas do PNHR,
nunca ouvi associarem o calor dentro de casa à telha ecológica, antes atribuíam o desconforto
térmico a derrubada dos pés de fruta que haviam ao redor das casas antigas. Se a telha
apresentava um problema para a casa não era o calor, e sim a sua incompatibilidade com o
fogão de chão.
88

As telhas não sendo resistentes ao calor impediam que os fogões à lenha fossem
construídos dentro das casas, ou sequer em qualquer das áreas externas (varandas) cobertas
pela telha. Essa incompatibilidade teve forte impacto na vida cultural cotidiana.

Foto 13 - Fogão à lenha

(a) (b)
Os fogões a lenha feitos pelos noke koĩ são muito comuns na região e entre outros povos indígenas no Brasil. As
estruturas são de tijolos ou barro prensado, montados diretamente no chão ou em armações suspensas de
madeira. Sobre essa estrutura são armadas duas filas paralelas de tijolos ou barro prensado que sustentam
pedaços de lata ou armações de metal, grades ou telas (foto b). Em baixo destas são queimados pedaços de
madeira. Algumas vezes na ausência dessas armações de metal, as panelas são amarradas a esteios do telhado
ficando penduradas sobre o fogo (foto a).

E aí tem-se um problema. Em torno do fogo, a cozinha reúne um conjunto de relações


e dessa maneira tem um papel fundamental na vida social. Como se sabe, para a maioria dos
grupos indígenas, a cozinha é um espaço doméstico privilegiado de socialização. É na cozinha
que mulheres e crianças passam a maior parte do tempo, onde recebem visitas e onde se
prepara e compartilha a comida e é próximo à cozinha que se reúnem os homens. Como
propôs Lévi-Strauss (2004 [1964]) em sua análise dos sistemas míticos da passagem da
natureza à cultura, nos mitos o cru aparece como metáfora da natureza e o fogo, da cultura,
mas o lugar essencial da culinária no pensamento indígena não se restringe apenas à passagem
da natureza a cultura; ela define a condição humana com todos seus atributos. Na análise
desse grupo de transformação em que os humanos advêm a cultura, o fogo aparece como a
base da cultura e corresponde à aliança, a base da sociedade.
A cozinha, enquanto lugar do fogo, é, portanto, um espaço estruturante da vida social,
um espaço das relações, onde as conectividades entre parentes (consanguinidade e aliança) e
consubstancialidade se atualizam. O fogo transforma não só as matérias em alimento, mas
89

todas as substâncias dos alimentos e dos corpos que compartilham esses alimentos, com
notáveis consequências nas relações entre esses consubstanciais. É o espaço de transformação
dos alimentos, dos corpos e das relações.
Além disso, a cozinha conforma a unidade sociológica mínima da aldeia. Cada casa
coincide com um fogo de cozinha. Cada núcleo familiar possui seu próprio fogo, poucas
atividades produtivas incluem a cooperação de outros fogos e quando ocorre é sempre entre
parentes próximos31. O fogo de cozinha define a casa, no sentido da casa atual que reúne uma
família nucelar, não há uma casa com dois fogos. O que determina a separação dos filhos de
seus pais, mais do que o casamento ou o nascimento dos netos, é um novo fogo de cozinha. O
fogo de cada casa representa certa autonomia e por isso, o jovem casal pode até morar em
uma construção separada da de seus pais, mas essa construção só será considerada uma nova
casa quando tiver uma cozinha. Esse é o caso por exemplo de três dos meus ‘irmãos maiores’
classificatórios que, com o programa de habitação do governo, ganharam duas casas
separadas da família. Mesmo dormindo nas casas novas, continuam pertencendo à casa dos
pais, já que comem e passam o dia na cozinha de Nawashavo, a mulher do pai.
Diante disso surge a questão: como poderiam viver em uma casa que não comporta o
fogo de cozinha, isto é, sem cozinha? Não poderiam e aí que os noke koĩ, muito antes de
reclamarem do fato de não terem projetado uma cozinha para a casa, pensaram uma solução
arquitetônica. A área de trás da casa foi estendida com o material das casas antigas para dar
lugar a uma cozinha com fogão à lenha. A variação no estilo é grande, algumas contam com
paredes, outras têm meia-parede ou são abertas. Nas paredes foram colocadas prateleiras,
pregos para copos e tampas de panela. Essa adaptação da cozinha, no entanto, não se
mostrava como grande novidade. Em 2013, durante a construção das casas do PNHR, já havia
uma casa em Masheya, que se assemelhava ao projeto do PNHR. Curiosamente era a casa de
uma das lideranças mais expressivas e que tinha vivido por alguns anos em Cruzeiro do Sul.
A casa era fixa com cimento no chão, tinha telhado de alumínio e piso de revestimento. Nos
fundos dessa casa foi construído um puxadinho de madeira serrada suspenso que completava
a casa de estilo da cidade com cozinha e área de banho e de lavar roupas, exatamente como se
viu aparecer em todas as demais casas do PNHR depois da entrega das chaves.
Mas no caso das casas do PNHR, as adaptações não se restringiram a construção da
cozinha. A planta da casa, diferente da casa da liderança de Masheya, contava com banheiro,
pia e tanque. E assim, os banheiros, sem conexão com a rede de abastecimento de água,

31
Isso é o que se nota hoje com a recente criação nas aldeias das chamadas cozinhas coletivas, sobre as quais
falaremos mais adiante.
90

passaram a servir de depósito de banana e objetos, e em algumas casas até de galinheiro. A


pia e o tanque desativados, também por falta de rede de abastecimento de água, servem de
cesto de roupa suja, ou bacia para a louça suja que só será lavada depois.

Foto 14 - Adaptações de cozinha às casas do governo – aldeia Waninawa

Alguns investiram também em modificações na varanda de telhado étnico da frente da


casa, mas foram poucos. Afinal, depois que a cozinha foi construída nos fundos, essa entrada
da casa quase nunca é usada. A adaptação com assoalhamento feita nessa varanda é raramente
usada para receber visitas, em geral, distantes, e em sua maioria yara. Na casa do cacique,
essa varanda é usada para as reuniões da comunidade.

Foto 15 - Reunião na parte da frente da casa do cacique Ni’i – Ald. Waninawa – Foto Tama

Tudo se passa como se a casa fosse dividida, sendo a varanda étnica o lugar dentro da
sociedade destinado ao exterior e às alianças e os fundos, a cozinha, o lugar da intimidade e
do parentesco.
91

Aos poucos, os noke koĩ transformaram a casa de varanda com telhado de exigência
étnica em uma casa noke koĩ. Mesmo parecendo para alguns yara que visitam a aldeia –
enfermeiros, agente do governo, etc – como uma certa favelização das casas do governo, a
transformação da casa do PNHR em uma casa noke koĩ é parte de um projeto político dos
noke koĩ de tirar benefícios de projetos do governo. Em uma reunião na Funai com lideranças
noke koĩ, em que a avaliação do PNHR foi uma das pautas, Orlando Viño, uma das
lideranças, afirmou: “toda ação do governo traz prejuízo, mas temos que tirar benefícios”
(Funai 2014b). Essa frase parece expressar bem a posição dos noke koĩ diante de uma casa
sem lugar para o fogo de cozinha. Foi com essa postura que eles transformaram a casa do
governo e a configuração de caminhos da aldeia que o projeto havia alterado.
As casas foram construídas perpendicularmente à rodovia, enfileiradas lateralmente.
Entre as fileiras de casas foram abertas uma espécie de rua, que acabou sendo chamada na
aldeia pelo termo regional ramal. No final da obra, para assentar a terra e reforçar o caminho
do ramal, vários pés de fruta foram derrubados pelo trator.

Foto 16 - Fileira de casas com ramal – aldeia Waninawa

Esses ramais alteraram todo o panorama de caminhos dentro da aldeia. Com um


grande descampado aberto pelos tratores, os caminhos que saiam de cada casa para buscar
água, para ir até a BR, para os igarapés e igapós, locais de banho, para a roça e para as casas
dos parentes se apagaram. Com a adaptação das casas novos caminhos começaram a se
redefinir. A proximidade de moradia por grupo doméstico se manteve, só que agora
92

distribuída por ramais. Assim, hoje se diz: “é no ramal de fulano, naquelas casas daquele
ramal”. Apesar da alteração espacial radical na distribuição das casas do grupo doméstico, os
noke koĩ parecem ter oficializado o ramal como orientação bem rapidamente. E a construção
da cozinha pelos noke koĩ foi fundamental na reorientação desses caminhos, já que a cozinha
sempre foi a porta da maioria dos caminhos. A suposta porta de entrada na varanda de telhado
étnico passou a ser o caminho de e para yara, onde chegam e onde são recebidos.
Outra consequência da distribuição das casas em fileiras por ramal na referência
espacial noke koĩ diz respeito à posição das casas do grupo doméstico umas em relação às
outras. O projeto do PNHR ignorou os critérios de distribuição espacial já estabelecidos.
Mesmo que a casa noke koĩ não se orientasse em relação a um pátio, ou a uma metade clânica
ou à posição solar, havia um critério de disposição: as relações de parentesco e cooperação. A
proximidade de casas por grupo doméstico era a orientação espacial das casas, que ficavam
lado a lado ou uma de frente para outra. Depois das obras, as casas, dispostas por um modelo
linear e padronizado, passaram a estar umas de costas para as outras, estando as áreas de
convívio íntimo do grupo doméstico separadas.

Foto 17 - Posicionamento das casas do PNHR

Como se nota nas fotos, ou as casas estão opostas (foto de cima), com a frente dando para a parte de trás da outra
casa, ou estão frente a frente umas com as outras (foto debaixo). Em ambos os casos as cozinhas estão separadas.

Dentro dessa nova configuração espacial da aldeia, uma adaptação interessante, que
sai do perímetro da casa, se insere no projeto noke koĩ de aldeia como um todo. Na mesma
93

esteira de transformação do padrão de moradia e da disposição das casas dos grupos


domésticos, temos o trabalho em atividades remuneradas. Hoje boa parte das famílias na
aldeia tem alguma fonte de dinheiro, seja através de cargos de agentes indígenas – AISAN,
ACIS, professor, agroflorestal – seja aposentadoria ou outros benefícios sociais. Diante da
escassez de caça e da baixa produtividade do roçado, o dinheiro tem sido a principal fonte de
sustento econômico na aldeia. Mas como a remuneração é individual, o consumo também
acaba sendo individual, ou melhor, pessoal para os solteiros e por casa para os casados. Sem
contar os vínculos de dependência entre pais e filhos e a hierarquia entre os que têm dinheiro
e os que não têm. Em uma entrevista sobre questões de segurança alimentar para um
diagnóstico encomendado pela Funai, caciques de várias aldeias falaram das dificuldades dos
parentes que não são funcionários (agente indígena ou professor) ou não recebem
aposentadoria para se alimentarem. Nessa entrevista o cacique de bananeira disse: “Quando se
recebe pagamento, se traz mercadoria da cidade ou da ponte do rio Liberdade, mas é muito
caro. Quem não é funcionário tem muita dificuldade para viver”.
A monetarização do modo de vida individualizou de certa maneira o consumo de
alimentos, tal como foi dito várias vezes nas entrevistas: “come quem tem dinheiro”. Isso, em
uma economia baseada no compartilhamento comum dos bens de caça, roçado e coleta,
representa um grave conflito social, já que transforma os parentes, uns frente aos outros, em
pessoas sovinas, mesquinhas. Na maioria das vezes a comida comprada, sobretudo, peixe e
frango congelado, são partilhados com os do grupo doméstico. Outros artigos como enlatados,
açúcar e macarrão não fazem parte da partilha, mas nunca são negados. A partilha espontânea
dos alimentos acaba restrita a proteína animal e em geral acaba no mesmo dia em que se
compra. Nos demais dias, quando se alimentam de arroz, macarrão e farinha come quem
comprou ou quem se animar a ir pedir na casa vizinha. Sobre a falta de dinheiro para comprar
comida e a escassez de caça e peixe na TI, uma liderança de Masheya me disse: “Hoje,
compra-se principalmente frango e peixe congelado, porque a caça está acabando. Passa-se de
3 a 5 dias sem achar nada, se não tiver dinheiro, passa sem comer carne também, só comendo
macaxeira, o que não dá para matar a fome”.
Os noke koĩ frequentemente expressam a preocupação sobre o efeito da monetarização
na solidariedade entre o grupo. Na aldeia Samaúma um morador disse: “O Governo constrói
um açude, só joga peixe uma vez e pronto. Aonde vamos pegar peixes, para nos alimentarmos
todos os dias? Nós temos que comprar. E quem compra é quem recebe salário, um pouquinho
de recurso, como os professores. E esses que não ganham? Pegam um caniço e vão para o
igarapé, onde é muito difícil de pegar o peixe. Como vão fazer para sustentar suas famílias? E
94

como nós vamos fazer dieta tradicional, se não tem alimento certo? Não tem peixe nem carne
de caça. Ninguém mais vai comer? Não somos nós que estamos ficando miseráveis, é a
alimentação que nós não temos. Se você compra um frango, não dá pra convidar todos os
parentes da aldeia para comer junto. Mal dá para alimentar uma família. Antigamente, matava
um veado e todo mundo comia. A cultura do yara que é diferente. Duvido que se yara matar
um boi hoje, dá pedaço pra vizinho dele. Yara é miserável desde a origem dele. Se nós
matarmos um veado, todo mundo da aldeia participa, e no outro dia já não tem mais. Faz
festa, planeja outra atividade, todo mundo brinca. A cultura do índio é assim. Agora, se eu
compro um frango ou dois quilos de peixe, não dá pra dividir. A gente compra caro. A minha
intenção é de comprar peixe e chamar todos esses parentes e comer junto ali, como faziam as
lideranças tradicionais. Mas não tem dinheiro, não dá”.
Esse cenário tal como a criação de ramais separando casas de grupos domésticos
poderia ser um sinal apocalíptico de enfraquecimento dos laços de solidariedade entre as
casas do grupo doméstico e das atividades coletivas, além de profundas alterações nas redes
de parentesco, desarticulando parentes e enfraquecendo a consubstancialidade, separando
corpos e raleando o conhecimento. No entanto, assim como reconfiguraram as casas e os
caminhos os noke koĩ reinventaram um espaço de atualização da lógica da partilha. Ao lado
das casas adaptadas, os noke koĩ foram pouco a pouco em várias aldeias construindo um
espaço coletivo de consumo de alimentos, uma cozinha coletiva. O cacique de Waninawa
dizia: “Hoje só come quem tem dinheiro para comprar na cidade. Eu via isso e ficava me
sentindo mal, comendo dentro de casa e parente passando fome na casa do lado. Com a
cozinha comunitária que a gente construiu, hoje três frangos em caldo alimenta a aldeia toda”.
95

Foto 18 - Cozinha coletiva – Aldeia Waninawa

Curioso notar que a cozinha coletiva não é localizada num ponto central da aldeia,
nem mais próxima da casa do cacique que as demais. Tudo indica que a área foi escolhida por
ter mais espaço nessa área que entre outras casas. A construção, sem paredes, de chão de terra
batida e telhado de palha, é fresca, ampla e abriga ao menos uma vez por dia grande parte da
aldeia para uma refeição coletiva que não tem hora para acabar. Redes são atadas aos esteios e
enquanto as mulheres cozinham, comem e conversam, os homens jogam cartas e conversam.
A cozinha coletiva pode não impedir os vínculos de dependência, nem a hierarquia, mas tem
salvado o parentesco e as redes de solidariedade.

Negociações sócio-políticas

As ações mitigatórias e/ou compensatórias deveriam, em tese, considerar a adequação


entre programas e impactos, integrar o ponto de vista indígena às análises e levar em conta os
componentes socioculturais para uma melhor adaptação às especificidades indígenas. Afinal,
espera-se de uma ação mitigadora que ela garanta os modos e os meios de vida dos grupos,
considerando os conhecimentos tradicionais e evitando enfraquecer a estrutura sociopolítica e
comunitária. E nesse sentido, apesar de uma série de inadequações na implementação do
projeto, ele foi divulgado como possuindo uma intenção de “recuperar tradições da tribo,
96

principalmente no que tange as habitações”, destacando a possibilidade das casas serem


construídas em forma de oca (Portal Brasil 19 abr. 2014 – em anexo D). Durante a
apresentação dos possíveis projetos à comunidade, o secretário estadual de habitação social
declarou à imprensa: “nos comprometemos a elaborar em duas semanas três propostas de
projeto para as casas, respeitando a tradição e a cultura dos povos indígenas, bem como as
orientações do Programa Nacional de Habitação Rural. Apresentamos os projetos para a
comunidade escolher o modelo que mais se adapta à sua realidade local” (Agência AC 21 jun.
2012 – em anexo E).
Durante a construção das casas o coordenador da Funai local afirmou: “nas visitas
técnicas para a apresentação do projeto àquele povo [noke koĩ], estão sendo realizados
trabalhos de resgate da cultura milenar da habitação tradicional. As casas são desenhadas em
formato de oca, mas adaptadas ao conforto e à modernidade atual, tudo feito em consenso
entre a comunidade e os arquitetos do governo do Estado e Caixa, além de técnicos da Funai.”
(Tribuna do Juruá, AC. 06 ago. 2013 – em anexo F).
Na aldeia no entanto o que os noke koĩ comentavam durante a construção era
justamente a inflexibilidade da planta proposta pela secretaria de habitação. Uma demanda
dos noke koĩ era de que as casas fossem construídas um pouco mais afastadas das margens da
BR, conforme consta na revisão do componente indígena do EIA-RIMA da BR-364 (Lima
2001a). Segundo os próprios noke koĩ, a secretaria afirmou que a construção mais para dentro
aumentaria demais os custos.
As casas nunca tiveram formato de oca, nem muito menos tiveram inspiração nos
modelos de moradia anteriores, isto é, nem as promessas do projeto do PNHR nem as
condições do EIA-RIMA foram cumpridas. Mas para além da inspiração arquitetônica, um
detalhe interessante toca a consideração dos conhecimentos locais. A posição das madeiras
das paredes é várias vezes comentada pelos noke koĩ com estranheza. Isso porque as casas em
estilo regional descritas há pouco, sobre palafita, contavam com paredes feitas de tábuas, que
dispostas verticalmente garantiam maior durabilidade da madeira. A construção das casas do
PNHR no entanto, apesar de ao menos terem as paredes de madeira (ao contrário de outras TI
onde também foram construídas casas do programa), ignoram esse conhecimento a respeito
da relação entre a posição da madeira e a sua durabilidade. Postas em sentido horizontal,
talvez por (uma outra) estética, algumas casas, menos de um ano após a entrega, já
apresentavam deterioração na madeira, algo que os noke koĩ já previam pela posição das
tábuas.
97

Foto 19 - Casas com diferentes posicionamentos das tábuas

Da esquerda pra direita: aldeias Bananeira em 2009 e Waninawa em 2014.

A queixa de muitas lideranças era de que ao se estender às populações indígenas, o


programa destinado a comunidades rurais não sofreu qualquer regulamentação que levasse em
conta os conhecimentos e materiais locais. Um exemplo disso seria a construção de banheiros.
Todas as casas contam com um banheiro, equipado com chuveiro, pia e vaso sanitário.
Até hoje sem conexão com a rede de abastecimento de água, os banheiros não são utilizados.
De qualquer modo, muitas pessoas, principalmente os mais velhos, sempre diziam que nunca
iriam usar o banheiro, que não podiam conceber defecar sentado como yara e nem tomar
banho com um pouquinho de água sendo que podem mergulhar no igarapé. Além do mais a
experiência dos chafarizes instalados na aldeia criou uma imagem repugnante do banheiro
yara e foi suficiente para evidenciar que a idéia de banheiro é dispensável ao modo de viver
noke koĩ na floresta, que tem espaço e condições suficientes para continuar o uso do banheiro
no mato. Além disso a higienização dos banheiros não é uma questão para os noke koĩ; limpar
fezes e urina é algo impensado num contexto onde o ciclo de decomposição do banheiro no
mato é auto-sustentável e possível de se manter como tal. Fezes e urina se decompõem sem
que ninguém tenha que se apropriar delas e investir trabalho nelas e por isso não parece haver
porque dedicar esforço. O contraste de condição orgânica das casas de palafita e do PNHR
não se restringem ao banheiro. O piso de cimento criou uma nova realidade para o
comportamento dentro das casas. Antes suspenso e de paxiúba, o piso dava a possibilidade de
que dejetos como restos de comida, escarros e fezes e urina dos bebês fossem empurrados por
entre as frestas. Com o piso de cimento, os escarros são evitados dentro de casa e quando
98

acontecem são vistos com certa graça. Quando as crianças sujam o chão, as mães têm mais
trabalho que apenas jogar um copo d'água, a conversa é interrompida e se levantam para
buscar um pano para limpar. Outras normas de comportamento na casa, no entanto, se
mantiveram. A cozinha suspensa feita por eles mesmo manteve a conversa introdutória de
sempre que se recebe uma visita: – Ho’aitxo (cheguei), a que se segue: – Ho’a’i (chegou),
pa’ĩwe (suba). Ser convidado a subir e esperar esse convite para tirar os sapatos ou lavar os
pés e subir é parte da etiqueta da casa noke koĩ que se manteve, assim como chegar pela
cozinha e andar pelo caminho.
Assim, para os noke koĩ, o banheiro e o piso de cimento, entre outras
inadaptabilidades do projeto de habitação à realidade vivida por eles só tinham alguma
importância na medida que afetariam sua organização social e o modo de vida em geral, e por
isso muitos desses desencontros foram vistos como passíveis de negociação.
E a planta das aldeia foi outro desses desencontros aberto à negociação. A proposta
que fizeram os noke koĩ à secretaria era de construir as casas ao redor de um pátio, o que foi
rejeitado. O que queriam os noke koĩ era dispor as casas em forma de uma estrela, figura
comum da pintura corporal noke koĩ, com um pátio central, algo incomum mas que para eles
daria um caráter mais propriamente indígena às construções. No entanto a secretaria manteve
o projeto de casas alinhadas por ramal afirmando que o formato proposto pelos indígenas
dificultaria a instalação de água nas casas.

Foto 20 - Projetos de planta de aldeia

a) b)
a) Projeto apresentado à comunidade. Foto: assessoria da SeHab b) Hichi desenho tradicional noke koĩ
apresentado por eles como proposta de formato da aldeia (Machi, aldeia Masheya)

Ainda que sob protesto de alguns, as lideranças concordaram e apaziguaram os demais


quanto ao formato em linha reta. Para eles ceder no projeto urbanístico da aldeia poderia ser
uma brecha para exigir outras coisas. O argumento que teve peso para apaziguar a
99

comunidade quanto ao formato da aldeia foi a possibilidade de cada casa ter uma fonte
própria de água, isto é, uma torneira que aliviaria o trabalho diário de ir buscar água. E isso
parecia-lhes suficiente para compensar o projeto de disposição das casas. No entanto, se
queixam de que passados mais de 18 meses as casas continuavam sem instalação de rede de
abastecimento de água.
Mas não foi só a rede de água que não chegou, a rede de energia elétrica nunca foi
readaptada às novas construções. Antes do PNHR as casas já tinham conexão com a rede da
Eletrobrás, que frequentemente ia dar manutenção quando ocorriam quedas de energia. Ao
serem derrubadas, as casas levaram consigo as instalações elétricas e novas conexões não
foram feitas pelos responsáveis pela obra. Algumas famílias pagaram a um yara para que
fizesse a conexão, no entanto, a maioria das casas fez sua própria instalação. Isso resultou em
conexões muito arriscadas, feitas com materiais impróprios e nada seguros. A fiação corre
baixa e apoiada em paus frágeis ao longo dos ramais criados pela obra.

Foto 21 - Fiação elétrica improvisada - Ald. Waninawa

a) b) c) d)
a) e b) fiação baixa; c) indígena fazendo a própria conexão; d) fiação apoiada em paus instáveis.

Devido à precariedade das instalações elétricas, em meados de 2014, uma casa do


PNHR pegou fogo em Masheya. Por sorte não havia ninguém em casa no momento. Esse foi
o mais trágico dos eventos envolvendo a fiação irregular, mas vários curtos-circuitos vêm
sendo relatados, além dos riscos envolvendo a chuva e a presença de crianças brincando
próximo às fiações improvisadas.
100

Foto 22 - Casa incendiada – Aldeia Masheya – Foto Marco Antonio Iusten

As casas foram entregues pelo governo sem água, sem luz e sem rejunte no piso de
cerâmica. Logo depois da entrega das casas, a empresa deixou com os indígenas o material
para que eles mesmo terminassem o rejunte das lajotas. Quanto à água e à energia elétrica,
quase dois anos depois ainda não tinham sido feitas as instalações.
À continuação dos transtornos da BR – escassez de caça, desmatamento, aumento de
casos de malária, violência, etc. –, causados pelas obras do programa de habitação, se
acumularam acordos não cumpridos como as instalações de água e eletricidade. E assim,
depois da cerimônia de entrega das casas, as negociações deixaram de ser tão pacíficas.
Em outubro de 2015, os noke koĩ fecharam a BR para reivindicar a ligação de luz,
fornecimento de água encanada nas casas novas e o conserto dos ramais de acesso à aldeia
feitos pela obra, que com as chuvas ficam barrentos e impedem a entrada do carro da equipe
de saúde, entre outras promessas do governo (Juruá online 26 out. 2015 – em anexo G). Ainda
que estivessem abertos a negociação e não só isso, mas sobretudo, que tivessem um plano
político estratégico de negociações à longo prazo, os noke koĩ estavam prontos para mostrar
que se as mudanças na aldeia iam se ajustando ao modo de vida (e vice-versa) isso não
significava que estava tudo bem e que tudo serviria apenas aos interesses do governo. Com a
interrupção do tráfego de veículos da única via que conecta Cruzeiro do Sul ao resto do país,
os noke koĩ conseguiram agendar reuniões entre lideranças, Funai e setores do governo. Entre
várias dessas reuniões duas das conquistas foram a revisão do EIA-RIMA e a instalação
oficial de energia.
101

Foto 23 - Abertura de ramais frente as casas

Outras negociações sócio-políticas

Paralelamente às negociações sociopolíticas externas, outras negociações políticas


mais internas têm nesse contexto de construção das casas forte expressividade. O
protagonismo das lideranças na negociações com o governo teve reflexos interessantes na
vida política cotidiana. Mobilidade e coercitividade passaram a ser pautas constantes nas
aldeias.
Agora presas a uma base de cimento, as casas já não podem mais serem desmanchadas
e construídas em outro lugar, perto de outra família ou em outra aldeia. E se mudar passou a
implicar em um abandono da construção que já não é mais tão despreocupado como era antes.
Nas vésperas da entrega das casas, em uma reunião uma liderança dizia à comunidade que o
acordo seria de entregar as chaves à liderança caso quisessem se mudar da aldeia. A princípio
isso pareceu muito razoável para todos, mas logo depois, quando começaram a aparecer as
primeiras vontades de se mudar, apareceu também a preocupação com a propriedade
registrada no CPF. “E se o próximo morador não for cuidadoso e abandonar a casa, quem será
responsabilizado? O dono do CPF pode ser punido através do bolsa-família?” Essas foram
algumas das preocupações que ouvi. Simultaneamente a essas primeiras vontades, surgiram
novos posicionamentos por parte das lideranças, que passaram a ameaçar com multas e
punições a quem abandonasse as casas. Alguns representantes do governo se preocupavam
com o fato dos noke koĩ abandonarem as casas recém construídas. Tudo se passava como se a
102

vontade de mudar expressasse uma certa ingratidão dos noke koĩ ao benefício do governo,
que poderia ter sido investido em outra comunidade que valorizasse mais. Além disso o
abandono das casas poderia de alguma maneira prejudicar a imagem do projeto de habitação.
Essas foram algumas das pressões transmitidas às lideranças para que contessem os
deslocamentos territoriais.
Mas nem o cimento nem o temor do estado e seus instrumentos – multas e
condenações – frearam a mobilidade noke koĩ. Em outubro de 2014, alguns meses depois da
entrega das casas, que poderia parecer a um olhar desatento o ponto final na mobilidade noke
koĩ, uma nova onda de dispersão voltou à TI Campinas, agora em uma direção totalmente
inesperada e na contra-mão dos últimos anos; a TI Rio Gregório. Menos de um ano (mais ou
menos 9 meses) depois do início da dispersão quase 80 pessoas já haviam se mudado para a
TI Rio Gregório.

Breve relato sobre as mudanças recentes para a TI Rio Gregório

A morte de Orlando teve forte influência nessa mudança. A morte em si já é um fator


de peso para o abandono da área onde vivia o falecido, mas quando essa morte envolve
acusações de feitiçaria, como foi o caso da morte de Orlando, as motivações se intensificam.
Foi por essa combinação de fatores sobretudo que, acompanhando os rumores de feitiçaria
envolvendo a doença de Orlando, Aya foi a primeira a deixar Masheya, a aldeia em que vivia
Orlando, antes mesmo dele morrer. Com a morte dele outros, inclusive de outras aldeias,
também acompanharam o movimento de Aya.
Quando estive no Gregório, em janeiro de 2016, encontrei Seya, uma das filhas de
Orlando que também vivia em Masheya. Quando perguntei para ela porque tinha ido morar
no Gregório, ela me disse que seu marido a havia deixado e se mudado para o Campinas.
Alguns minutos de silêncio depois, Aya me disse que era por causa de Orlando e Seya
completou dizendo que foi o finado que a levou até lá. O yochĩ (“espírito”) do corpo de
Orlando a guiara até o Pirarara, uma aldeia nova aberta por Aya e seu filho.
Além de Pirarara outras três aldeias foram abertas nesse novo deslocamento ao
Gregório: Tashkaya e Toniya, às margens do Gregório, e uma outra aldeia sem nome no
igarapé Cujubim. Em janeiro de 2016, eram 19 famílias recém mudadas, sendo três no
Pirarara, oito no Tashkaya, sete no Toniya e uma no Cojubim.
103

Mapa 8 - Localização aproximada das aldeias na TI Gregório em janeiro de 2016

Do porto em São Vicente até Pirarara são 5 horas de barco motor. Lá vivem, em três
casas, as famílias de Aya, Tane (filho de Aya) e de uma outra filha de Aya. Pirarara fica no
Rio Gregório, entre duas aldeias mistas de noke koĩ e yawanawa; Yawarani e Timbaúba/Sete
Estrelas, que está a 15 minutos de barco a motor rio acima de Pirarara.

Foto 24 - Aldeia Pirarara TI Rio Gregrio

De Timbaúba a Tashkaya são 20 minutos de barco a motor. Tashkaya fica no igarapé


Apiuri e é a maior das recentes aldeias noke koĩ no Gregório, lá vivem 53 pessoas, quase
todas vindas da aldeia Bananeira da TI Campinas. 15 minutos de Tashkaya, está Toniya,
também no igarapé Apiuri. Toniya é uma aldeia fundada por um respeitado e controverso
104

pajé. Muitos dos que moram em Toniya vieram da aldeia Varinawa. Mais distante, a duas
horas de barco a motor de Toniya, no igarapé Cujubim estão nove pessoas: o pajé Pero, que
denunciou as ações de feitiçaria envolvendo a morte de Orlando à Funai, seus filhos, seus pais
e um casal de jovens com um bebê. Pero vivem em uma casa diferente da dos pais, seus filhos
e do jovem casal. A casa de Pero está um pouco mais acima no igarapé Cojubim. É uma casa
de telhado de palha não trançada e sem paredes, sem pátio ou área descoberta nem na frente
nem atrás e sem cozinha. Lá ele vive só, no momento da minha visita sem mulher ou qualquer
outra companhia.

Foto 25 - Casa do Pero na TI Rio Gregório

A casa de seus pais tem o mesmo estilo, mas maior, com cozinha e conta com uma
área limpa de vegetação ao redor, além de um roçado de milho e banana ao fundo.
105

Foto 26 - Cozinha da casa da mã de Pero - Ig Cujubim / TI Rio Gregório

As casas das outras aldeias são a maioria construídas de paxiúba e em estilo palafita
com telhado de palha sem trançar. Com exceção da casa do pajé Kosti, que é de madeira
serrada e telhado de alumínio, não notei na minha rápida visita em outras construções que não
fosse de palafita em paxiúba.

Foto 27 - Uma das casas na aldeia Pirarara - TI Rio Gregório

Segundo me contaram algumas pessoas, a chegada ao Gregório não foi fácil, entre
ataques de yochĩ sem roça e hostilidade dos yawanawa a chegada dos noke koĩ, eles ainda
contam que abertura de uma aldeia exige muito trabalho e que em época de chuva o trabalho é
106

ainda mais penoso. Numa temporada de forte chuva um grupo que vivia do outro lado do
Gregório em frente ao Pirarara teve que sair de lá e a aldeia recém aberta foi alagada e toda
destruída.
Tero, pai de Pero, conta que chegar ao Gregório enfrentaram muitas dificuldades. Ele
disse que na TI Campinas tinham dificuldade para ter caça e peixe, mas a aldeia Bananeira
sempre teve roçado farto sobretudo de banana e que quando chegaram no Gregório, naquele
canto não tinha nada, nem lugar para dormir. Até que abrissem a área, construíssem a casa
passaram dificuldades com as chuvas e com a falta de mistura, comeram farinha molhada e
estragada pela chuva que tinham trazido na mudança.

Foto 28 - Roçado de banana atrás das casas - Ald. Pirarara

Apesar do sofrimento inicial de abrir um novo canto para morar, no entanto, ele agora
estava feliz, tinha muito peixe para comer e conta que no verão anterior tinham tanta fartura
de melancia e abóbora que até perderam. Quando perguntei a ele porque escolheu morar lá em
cima longe das outras aldeias, Tero me disse que, antes de ir para o Campinas, já tinha vivido
naquela área e que lembrava de ser bom e que tinha vindo acompanhando o filho que, por
causa das feitiçarias, tinha que se isolar de muita gente.
Apesar das dificuldades iniciais todos com quem conversei parecem contentes com a
decisão de ir para lá e comentam com alegria que a fartura lá é tão grande que “anta anda
igual boi”.

Parte 2 - A composição da organização social

Esse capítulo se pretende um pouco mais do que uma introdução ao tema das casas.
Agora que já falamos das construções, da composição das aldeias, gostaria de tentar
demonstrar a rede de relações sociais implicadas e suas dinâmicas. Quem mora com quem,
porquê mora e quando mora e quando se muda são questões importantes. Como veremos
adiante, com quem costuma ser mais importante até do que onde se mora, sendo influenciado
107

por questões políticas, econômicas e de parentesco, simplesmente por essas questões estarem
cravadas nas relações sociais implicadas no com quem. Dada portanto a amplitude dessas
relações, por vezes será breve a abordagem de alguns desses aspectos que certamente
reaparecerão repetidos mais adiante em outros capítulos discutindo temas vizinhos e relativos
ao morar.
A tentativa aqui é de mapear a composição das aldeias tal como elas apareceram para
mim entre 2013 e 2015. Digo isso porque sua composição depende de uma rede mutável de
relações (deslocamentos e mortes, por ex.), de variações na ocupação demográfica
(quantidade de pessoas, coesão residencial dentro do grupo doméstico, condições ambientais
– exaustão do solo e de caça) e de idiossincrasias pessoais. Todos esses fatores conferem um
caráter provisório e impermanente à configuração das aldeias.
Diante disso me parece difícil estabelecer um padrão noke koĩ de aldeia e das relações
de residência. No entanto, e por isso mesmo, no lugar de identificar modelos estamos mais
interessados em ir atrás de definições noke koĩ seguindo o que é entendido como um modo
ideal de aldeia, de casa e de viver junto verdadeira/apropriadamente noke koĩ. Mesmo
sabendo que essa definição também tem um quê de ilusão – afinal, esses ideais raramente são
atualizados – veremos com quem se mora, se come e se morre, com quem se espera que se
faça todas essas coisas e quais as implicações disso para os noke koĩ.

A morfologia da aldeia

Desde o contato definitivo com os yara, passando pelo aldeamento em terras


demarcadas e recentemente pelo PNHR, as organizações espacial e social dos noke koĩ vêm
experimentando transformações, sempre afetadas pela condição histórica específica de cada
um desses empreendimentos. A ocupação da região através da violência das correrias teve
como consequência a drástica redução territorial. A formalização de fronteiras através das
demarcações também diminuiu o território e lhes impôs o aldeamento marcado por meio de
relações de poder ligadas ao indigenismo do Estado. Sabe-se que os aldeamentos religiosos
foram em todo o Brasil parte da política de colonização que visava a incorporação da
população nativa à colonização. A secularização da política de aldeamento, não só na região
do oeste Amazônico mas em todo o país, foi uma etapa inerente ao próprio desenvolvimento
desse projeto de incorporação. Nesse panorama, o PNHR aparece como a mais nova forma de
integração, restringindo a liberdade da organização espacial. Sob a forma de benefício social,
108

as casas de base de cimento podem ser vistas como uma tentativa de fixação definitiva do
aldeamento.
Em Tristes trópicos, Lévi-Strauss (1996 [1955]) desvela a estratégia salesiana de
conversão apontando que a mudança de configuração do espaço foi fundamental para a
conversão dos Bororo do Rio das Garças.
A distribuição circular das cabanas em torno da casa-dos-homens é de tal
importância, no que se refere à vida social e à prática do culto, que os missionários
salesianos da região do rio das Garças, logo aprenderam que o meio mais seguro de
converter os Bororos consiste em fazê-los trocar sua aldeia por outra onde as casas
são colocadas em fileiras paralelas. Desorientados em relação aos pontos cardeais,
privados da planta que fornece um argumento a seu saber, os indígenas perdem
rapidamente o sentido das tradições, como se seus sistemas social e religioso
(veremos que são indissociáveis) fossem complicados demais para dispensar o
esquema, tomando patenteado pela planta da aldeia e cujos contornos são
perpetuamente reavivados por seus gestos cotidianos (1996: 206-07).

A partir de dados mais recentes sobre os Bororo, Caiuby Novaes (1983) afirma que
mesmo assentados em aldeias com casas em ruas lineares, a forma circular continuou sendo
usada por eles para se expressarem, dando a impressão de que a percepção espacial independe
da configuração física. Para muitos grupos Jê, a morfologia da aldeia expressa a organização
social e mais que isso a imagem da organização social se sobrepõe à morfologia do ambiente.
A aldeia Bororo tem, nas casas que se dispõem ao redor do círculo, a representação
das várias linhagens que compõem esta sociedade. É assim uma espécie de "mapa"
da sociedade Bororo. (Caiuby Novaes 1983, p. 75).

Entre os Timbira, outro grupo Jê, (Ladeira 1983), as categorias espaciais permitem
analisar as posições, os deslocamentos e perceber como estes orientam as relações sociais,
reforçando a centralidade da organização do espaço na organização social, o que revela a
importância do território na cosmologia desses grupos, tal como apontou Lévi-Strauss.
É tendo em vista esse valor privilegiado do espaço no pensamento ameríndio que o
indigenismo (de estado e não-governamental) age muitas vezes através de estratégias que
visam a fixar e conter esse povos, mantendo-os sob controle. A presença indígena na cidade,
por exemplo, é vista como um incômodo pelo estado. Calavia Sáez (2015) afirma que os
yaminawa (grupo pano no Acre) vêm há muito tempo sendo caracterizado como problema
pela dificuldade de inserção desse grupo no sistema territorial indígena conforme a norma de
delimitação e apropriação de terra da ordem jurídica brasileira.
Diferentemente dos Jê e de alguns outros grupos pano, em que as unidades de
organização social estavam inscritas no interior das casas e as casas possuíam clara orientação
espacial – como um corpo com nariz e nádegas, por exemplo –, para os noke koĩ, a
distribuição das casas não tem correspondências cosmológicas tão evidentes, nem as unidades
109

de organização social – parentes e afins, por exemplo – estão geometricamente inscritas na


morfologia das aldeias.
Porém isso não significa que não tenham um arcabouço conceitual acerca do espaço.
Os noke koĩ, como os yaminawa e os huni kuin, apresentam uma noção espacial irregular que
justamente foge à geometria clássica e inclui as relações (McCallum 2015; Calavia Sáez
2015). O espaço para esses grupos não corresponde a um território fixo vinculado ao que os
define enquanto tais. Há uma primazia das relações sobre o espaço, já que como veremos,
essas relações o criam em qualquer lugar. O espaço é a condição dessas relações, ele permite
que elas se dêem, ao mesmo tempo que se funda com o estabelecimento dessa relações. Sendo
fundamentalmente nessa concepção do espaço que se funda a mobilidade noke koĩ, é
justamente na tentativa de conter essa mobilidade que o estado atua sobre essa concepção
aberta de espaço demarcando territórios e fixando casas, fisicamente e no CPF de seus
moradores32.
Me refiro ao espaço aldeão como um espaço aberto porque, tal como apontou Carid
(comunicação pessoal) ele não conincide com um conjunto relacional completo, antes é
marcado pela incompletude, pela interrupção da rede de relações. O espaço da aldeia
interrompe a rede interaldeã. É nesse sentido que ele é um espaço aberto, porque a aldeia não
abraça o conjunto de relações desejáveis. A forma espacial noke koĩ de viver junto está
inscrita numa configuração de proximidade de grupos domésticos, que se definem por um
sistema de relações de cooperação e comensalidade, que, como veremos adiante, tem
consequências físicas nos corpos tanto quanto no espaço.
Apesar de marcadas diferenças com a organização espacial Jê, tal como os Bororo (e
provavelmente muitos outros grupos) os noke koĩ, num contexto de profundas
transformações, apresentam certa resiliência da organização social a despeito das mudanças
no padrão de assentamento. Como veremos, certos aspectos sociais da antiga maloca noke koĩ
podem ser identificados na ordenação espacial por grupo doméstico atualmente.
É difícil estabelecer com nitidez como os noke koĩ se organizavam antes do
aldeamento e ainda que em outros grupos pano seja conhecida a importância da casa na
orientação cosmológica, nada indica que haja, ou que já houve, entre os noke koĩ uma planta
geométrica precisa e especial que os orientasse cosmologicamente. A carga semântica (ou
simbólica) da casa noke koĩ é bastante pobre, sobretudo se comparada as diversidades

32
Isso não significa que as demarcações, ao contrário do prosseguimento do PNHR, não devam existir. Todos
sabemos que no contexto jurídico do estado brasileiro elas são mais que essenciais para garantir a sobrevivência
dos povos indígenas. Além do mais, como veremos nos capítulos seguintes, os noke koĩ (como muitos outros
grupos) têm mostrado estratégias interessantes de domesticar essas novas territorialidades impostas.
110

simbólicas atribuídas a casa em outras sociedade indígenas da Amazônia (C. Hugh-Jones


1977, Fénelon Costa & Botelho Malhano 1986, S. Hugh Jones 1993), inclusive entre outros
grupos pano (Lagrou 2007, Erikson 1993, Melatti 1977, Arisi 2011, Cesarino 2011).
Diferentemente, os noke koĩ não têm, por exemplo, referências anatômicas a partes da casa. É
muito comum a sobreposição das idéias de corpo, casa e cosmo que está presente no léxico
que denomina suas partes como partes de um corpo. Para os matis, por exemplo, (Arisi 2011:
114), mëkax, costela, é o caibro que vai do chão à cumeeira; dëxan é nariz e a abertura
superior das fachadas. Para os huni kuin (Lagrou 2007) nariz e nádegas também são usados
para descrever partes da casa. Entre os noke koĩ, a única associação desse tipo é entre parede
e pele desenhada para os quais usam o mesmo termo, kene. No entanto, kene é termo usado
para se referir a várias coisas: a dinheiro, barba, parede, desenho e letra, por exemplo. Cada
dimensão de significado do termo se adequada a um aspecto do que ele se refere. Assim, no
caso do uso do mesmo termo tanto para a pele desenhada quanto para as paredes de uma casa,
a referência entre os noke koĩ deve-se a uma lógica de invólucro protetor33. As outras partes
da casa noke koĩ, chão (voka); teto (pei); porta (kepotĩ); janela (kene voshnata), por exemplo,
não fazem referências a partes do corpo e, diferente dos matis, dos marubo e dos huni kuin, a
casa não é descrita pelo noke koĩ como um corpo34.
Mais uma vez, isso não significa que a distribuição espacial noke koĩ não tenha
relações com o pensamento, nem que a organização espacial não tenha entre eles importância
ou critérios. Pelo contrário, é muito clara a ênfase dada à dispersão das malocas no passado.
Se não havia limites territoriais, havia limites sociais, e a mobilidade transbordando limites
espaciais rearranjava relações. Esse modo de conceber o espaço remete fortemente a todo um
universo conceitual acerca da mobilidade ainda hoje atualizada pelos noke koĩ.
A forma de ocupação das casas do PNHR também expõe isso claramente. As
descrições do passado e do idealmente pensado como ro’apa koĩ (adequado, apropriado, bom
mesmo, como deve ser) se misturavam e sobressaiam nas conversas sobre quem ia morar
onde e com quem na distribuição das casas do governo.
A aparente ausência de uma forma definida na ocupação noke koĩ se revela no
contexto de ramais do PNHR uma ocupação de critérios claros. Se à primeira vista parecia

33
Como propôs Lagrou (2007: 538) para os huni kuin, o desenho kene “delineia e ordena a percepção, da mesma
maneira que as paredes de uma casa grande delineiam o espaço interior de uma comunidade, separando-a do
mundo envolvente”.
34
Sobre a casa matis, Arisi (2011: 49) afirma que a maloca é vivida como um corpo: “a maloca Matis é referida
ela própria como um grande corpo, não apenas é a metáfora de um corpo, a maloca é o “oco” de um corpo” (p.
113). O mesmo identifica Lagrou (2007), entre os huni kuin, e Cesarino (2011) entre os marubo. Para termos
noke koĩ para partes do corpo e partes da casa ver anexo H.
111

arbitrária e aleatória, a ocupação noke koĩ como observada hoje aos poucos revela os
princípios da organização social. Como veremos, a distribuição dos moradores pelos ramais
expressa a rede de relações; a configuração dos grupos domésticos.
As descrições do passado e as comparações com a moradia de hoje apontam que,
apesar do aldeamento entre os noke koĩ ter dado fim às malocas, o ideal de viver junto, por
grupo de parentes co-residentes de uma maloca, não se desfez. A configuração do grupo de
cooperação e parentesco se manteve coeso após o aldeamento e mesmo após o PNHR.
Diante da persistência da organização do espaço diante das novas formas de morar,
notável na distribuição de grupos domésticos, o aldeamento e o assentamento rural do PNHR
resultam ser variáveis que giram em torno do modelo noke koĩ de organização social.
Tendo em vista os Bororo e os noke koĩ, casos tão diferentes de retro-projeção
recíproca entre espaço e organização social; de resiliência do padrão de organização social e
da percepção do espaço frente à transformação do ambiente, dizer que essas transformações
orbitam um modelo tradicional pode soar como se afirmássemos que os aspectos materiais
são mais sujeitos às mudanças que os aspectos não-materiais. No entanto, se isso fosse
verdade, seria o mesmo que admitir que as sociedades estão cristalizadas e não se alteram
aconteça o que acontecer. Pelo contrário, tudo indica que estamos diante de transformações
em relação mútua de implicações; em que a transformação em um aspecto transforma o outro
simultaneamente e vice-versa.
No caso noke koĩ, por exemplo, um novo modelo de assentamento transforma o
padrão de residência, em termos de quem dorme com quem sob o mesmo teto, (de maloca
comunal às casas em palafita e de famílias nucleares) deslocando os compartimentos da
maloca em várias construções. Ao mesmo tempo, o padrão de residência da maloca, ainda que
em processo de transformação, é o que, nesse novo panorama de distribuição do espaço, reúne
um conjunto de casas por comensalidade, parentesco e cooperação sob a forma de um grupo
doméstico, típico da composição das malocas.

A distribuição espacial dos grupos domésticos

A composição das casas anteriores ao PNHR variava muito. Havia casas que
abrigavam apenas uma família nuclear e outras que abrigavam uma família extensa. Logo
após a entrega das casas, moradias com apenas uma família nuclear tornaram-se o mais
comum. Diante da oportunidade de garantir uma casa para o futuro, casais sem filhos e até
112

jovens solteiros passaram a dormir em uma casa diferente da dos parentes com que moravam
antes do programa do governo.
Em Masheya, por exemplo, em 2009, havia seis casas, sendo que quatro delas, muito
próximas umas das outras, abrigavam diferentes composições de família nuclear (isto é, mãe
e filhos; mãe, pai e filhos; marido e mulher). Das outras duas, uma comportava uma pequena
família extensa uxorilocal e outra, um pouco mais afastada, era ocupada por outra família
extensa uxorilocal um pouco maior.
Em 2014, Masheya passou a ter 12 casas, sendo duas delas ocupadas por solteiros sem
filhos. A casa de Rona e Tati é um bom por exemplo dessa fragmentação. Em 2009, moravam
17 pessoas na mesma casa. Depois do PNHR essas 17 pessoas se distribuíram em 6 casas.

Gráfico 1 - Um mesmo grupo doméstico de Masheya em 2009 e em 2014

Acima (2009) uma mesma casa, embaixo (2014) cada quadro representa uma casa.

O PNHR intensificou a fragmentação dos grupos de moradores de uma mesma casa.


De todo modo, as casas seguem funcionando num sistema de grupo doméstico com outras
casas (em geral de 3 a 5 casas), não sendo propriamente um homestead africano35 (Kuper

35
O homestead se define como um conjunto de casas ocupado por uma única família extensa e caracterizado por
diferenças de hierarquia dentro da unidade familiar (entre esposa e marido, e entre esposas, por exemplo) e por
refletir hierarquia de heranças. Apesar de apresentar igualmente cooperação e aglomeração entre as casas, o caso
noke koĩ não se assemelha a este caso.
113

1993, 1980) mas uma espécie transformada de maloca fracionada em casas ao redor de fogos
de cozinha particulares. Tudo se passa como se cada casa ocupasse o lugar onde antes
estavam os compartimentos da maloca. Assim, a unidade desse grupo doméstico talvez possa
ser descrita nos termos da maloca; como compartimentos de famílias elementares conectados
por parentesco, cooperação e principalmente comensalidade36. Algo semelhante é notado por
Calavia Sáez (2006a), entre os yaminawa. Segundo o autor, os casarios atuais – definidos por
ele como conjuntos de casas constituídos em função de relações de parentesco – continuam a
maloca do passado, inclusive sendo chamados de casa-grande (peshewa ou peshetiepa): “se a
arquitetura mudou, os habitantes são em linhas gerais os mesmos. Em cada casario
encontramos conjuntos de casas justapostas com separações que variam segundo a
proximidade dos seus habitantes” (2006a: 47).

Ilustração 10 - Esquema da parte interna da maloca

Ilustração baseada segundo relatos dos noke koĩ e descrição de Montagner & Melatti 1975 da maloca marubo

Ilustração 11 - Projeção de maloca sobre aldeia e compartimentos sobre casas

Quanto a distribuição espacial dos grupos domésticos, não havia antes do PNHR
regularidade geométrica no arranjo físico das casas, como já foi comentado, mas a disposição
das casas revelava relações. A ausência de um ponto de referência central na aldeia apontava

36
Afinal, ainda que cada casa tenha um fogo, um membro de um grupo doméstico sempre come na casa de seu
vizinho co-residente.
114

para uma prioridade do valor das relações ao valor do espaço geométrico, refletida como
referência espacial.
A empresa seringalista dispersou a maloca em estradas de seringa e o PNHR em
ramais. No primeiro caso, os noke koĩ mantiveram o seringal Sete Estrelas do rio Gregório
como o ponto de re-encontro e referência para onde sempre retornavam após períodos em
diferentes lugares. Em ambos os casos a relação entre os noke koĩ serviu de referência,
espacial e de humanidade. No contexto atual do PNHR, a centralidade das relações se
sobrepôs a distribuição das casas em ramais tal como ocorrera com a artificialidade do
modelo de aldeamento nos tempos dos primeiros contatos definitivos com o yara, reforçando
uma referência espacial pautada nas redes de relações; o grupo doméstico. Assim que,
atualmente, a rede de relações que compõe o grupo doméstico é, pois, a referência espacial, as
casas do grupo doméstico se aproximam pelas relações e não pela disposição geométrica no
ambiente, justamente porquê as relações seguem sendo os pontos cardeais.
115

Ilustração 12 - Aldeia Campinas/Kamanawa em 2015

Ilustração 13 - Aldeia Waninawa em 2015


116

Ilustração 14 - Aldeia Varinawa em 2015

Ilustração 15 - Aldeia Samaúma em 2015


117

Ilustração 16 - Aldeia Masheya em 2015

Ilustração 17 - Aldeia Bananeira em 2015

Casa, grupo doméstico e regra matrimonial

Tendo em vista que as casas são orientadas pelas relações podemos dizer que são
importantes focos da organização social e, apesar de estarem fortemente atadas às estruturas
físicas, são, como veremos, condensações transitórias de redes de aliança e aparentamento,
integrando afins e não-afins.
A casa, como o grupo doméstico, congrega consanguíneos e afins num ideal noke koĩ
de viver junto em que não por coincidência o casamento tende a ser uma efetuação de laços
118

afins anteriores. Isto é, o casamento entre primos cruzados e as uniões oblíquas37 atualizam
laços prévios e correspondem ao ideal endogâmico.
O padrão ideal de casamento é com primo cruzado o que está implícito na
terminologia de parentesco do tipo dravidiana, ordenada por níveis genealógicos, sexo e idade
e que expressa as formas de comportamento.
♀ ♂

MBD
TSAVE PANO
FZD

MBS
TXAI TXAI
FZS

Gráfico 2 - Terminologia de primo cruzado por gênero

Para termos de parentesco ver anexo I

Embora os primos cruzados bilaterais – ao mesmo tempo MBD e FZD ou FZS e MBS
– sejam o protótipo ideal de prescrição de casamento, mais apropriado seria dizer que na
verdade ocorre uma atualização da relação de afinidade dos pais através do casamento dos
filhos dos afins dos pais (tal como descrito por Overing 1975: 128-129 para os Piaroa). A
troca de irmãs, como outros autores já apontaram, é o caso perfeito da troca simétrica (cf.
Goldman, 1963: 122; Hugh Jones 1979: 85) e conveniente à uxorilocalidade, já que a mulher
e o cônjuge permanecem na comunidade da mãe da mulher. Assim, FZD é preferida a MBD
por ser a réplica do casamento da mãe. Idealmente casar-se assume um gradiente de
prescrição que vai do afim ideal ao menos afim: da prima cruzada paterna FZD (parte da
relação de afinidade iniciada na geração anterior), > à prima cruzada materna MBD e > às
cruzadas classificatórias. Mas essa fórmula ideal é raramente atualizada. A preferência
endogâmica é evidente, mas não se restringe à aldeia, nem à TI, havendo casos de casamento
com outras etnias38. O grupo local, seja ele a aldeia ou a TI, é idealmente endogâmico.

37
Uniões oblíquas:

38
Existem casamentos com yawanawa, povo com o qual os noke koĩ compartilham a TI Rio Gregório, mas são
poucos os casos. Com outras etnias ouve-se falar de um filho ou outro de algum homem, mas são casos
excepcionais e em geral esses filhos não moram entre os noke koĩ, suspeito que seja pelo fator uxorilocal.

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)


119

Poderíamos dizer que fora do ideal, o mais comum é o casamento de um grupo de


irmãos reais ou classificatórios com um grupo de irmãs reais ou classificatórias. Nesse
contexto de endogamia relacional, o traço dravidiano de distinção entre afins e consanguíneos
sugere uma suposta contradição, no entanto, uma certa especificidade do dravidianato na
região reconcilia essa contradição.
Consanguinisar afins não genealogicamente aparentados é uma operação lógica das
categorias de parentesco do tipo dravidiano em manipular atitudes e terminologias de modo a
suavizar os laços de afinidade dentro do grupo local sob a forma de consanguinidade ideal.
Viveiros de Castro sugere que diante da tendência a afinizar consanguíneos próximos e
consanguinizar afins distantes deve-se considerar o princípio da afinidade como virtual ou
potencial, pois dentro dele a própria consanguinidade pode ser re-construída (2002a: 122-7).
Assim, parece haver um switch de distinção entre afins e consanguíneos pós-
casamento, variando com a ênfase dada a um laço ou a outro antes do casamento. Em geral,
dado a forte endogamia e a possibilidade de manipular a terminologia, o cônjuge tende a ser
um parente próximo, de maneira que a impressão que se tem é de que o grupo local é
composto só de consanguíneos. Essa relacionalidade expressa uma dinâmica de mobilidade de
fundo, ora enfatizando a unidade do grupo, ora a aliança, impulsionando-os ora à fissão, ora à
fusão. Mais adiante veremos como isso se apresenta na mobilidade e na concepção noke koĩ
de parente.
Contudo, para darmos prosseguimento a esta análise proponho uma breve digressão
sobre o tratamento dado à casa e às organizações sociais relacionadas à casa na teoria
etnológica a fim de entendermos melhor as questões aí imbricadas no contexto noke koĩ.

Grupos domésticos: casas e Casas

A organização social noke koĩ é controversa, cheia de indeterminações. Os segmentos


clânicos, por exemplo, assim como as regras de residência e afiliação encontram-se hoje em
debate, não há consenso e sim discordância entre os noke koĩ. Entre dúvidas sinceras e
certezas inquestionáveis, não há enunciados estáveis, antes controvérsias (cf. Latour 2000). A
casa noke koĩ, enquanto organização social, é hoje um foco de contradições do parentesco:
uns dizem ser por segmentos de afiliação materna, outros paterna, uns dizem ser uxorilocal,
outro, virilocal.
120

Foi justamente pensando sobre organizações sociais em que a casa aparece como uma
instituição supostamente contraditória baseada tanto na descendência quanto na afinidade, que
Lévi-Strauss concebeu os conceitos de Casa e de société à maison. O contexto cognático, de
descendência indiferenciada, dos Kwakiutl, que combinava linguagem de parentesco e aliança
(em ressonância com os sistemas cognáticos europeu medieval e japonês) levou Lévi-Strauss
(1984) a formular os conceitos de casa e de sociedades de casa (sociétés à maison).
Estendendo o problema a África, Melanésia e Nova Zelândia, Lévi-Strauss (1984) verifica
que essas casas não estão fundadas na descendência, nem na residência, nem na transmissão
de propriedades, mas na aliança. Essa formulação inaugura na teoria do parentesco a
passagem das análises de grupos cognáticos em termos de grupos de descendência ou
residência para uma teoria da aliança. A casa surge na análise como constituída de parentesco
cognático (ou de concorrência entre afiliações maternas e paternas) em função de questões
políticas: poder, títulos, status. O parentesco e as relações políticas passam a ser vistos como
organizados em torno de pertencimento à casa em lugar de pertencimento a grupos de
descendência. Assim a noção de casa e de sociedades de casa de Lévi-Strauss confere, tanto
ao parentesco quanto às abordagens etnográficas de casa, um salto teórico importante.
Por certo tempo a casa figurou nas etnografias apenas como um objeto de significados
simbólicos e parte da cultura material, simbolizando relações e categorias, ou ainda apenas
como local de produção econômica e de expressão das relações de produção através da
divisão do espaço doméstico e de gêneros, estando a casa frequentemente associada à mulher
e às atividades femininas (Bourdieu 2002 [1977]; Bachelard 1978; Kroeber 1925).
É depois de Lévi-Strauss e suas noções de casa e de société à maison (1981, 1984) que
surge uma abordagem que analisa a casa como uma categoria de conceituação e prática das
relações sociais39. Assim ele define a casa como uma
pessoa moral detentora de um domínio composto simultaneamente por bens
materiais e imateriais e que se perpetua pela transmissão do nome, da fortuna e dos
títulos em linha real ou fictícia, tida como legítima sob a condição única de esta
continuidade poder exprimir-se na linguagem do parentesco ou da aliança e, as mais
das vezes, em ambas ao mesmo tempo. (1981:154).

Desde essa definição, estudos de parentesco passaram a discorrer sobre a casa,


repensando a teoria antropológica de parentesco sob dura crítica a vários elementos da teoria
clássica. Influenciados sobretudo por Schneider (1984), muitos trabalhos passaram a se
dedicar a categorias nativas para a análise dessas relações. Assim, etnografias feitas na África,
por exemplo (Kuper 1993), passaram a usar o conceito de casa para questionar a utilidade da
39
Há no entanto críticas que apontam que Lévi-Strauss não analisou a casa em si mesma, como simultaneamente
unidade arquitetural e lugar de interação social (cf. Hugh Jones 1993: 97; Carsten & Hugh-Jones 1995: 12).
121

teoria da descendência, ao passo que outras análises mais culturalistas, combinando aspectos
simbólicos e sociais com a arquitetura material, testaram o alcance do conceito lévi-
straussiano no sudeste da Ásia e nas terra baixas sul-americanas (Mcdonald 1987; Carsten e
Hugh-Jones, 1995, Hugh-Jones 1993, Lea 1993 entre outros).
Embora se inspirem em Lévi -Strauss, esses trabalhos tentam ultrapassar o modelo de
sociéte à maison. As dificuldades de aplicação do conceito na nossa área etnográfica são
grandes. Hugh-Jones, Lea e Rivière (1995) dão exemplos da aplicabilidade do conceito, mas
sempre matizando seus aspectos40.
A aplicação do conceito de société à maison, por não haver nas terras baixas um
correspondente perfeito, tem seus riscos. Ao mesmo tempo que é estrito, é amplo demais, isto
é, permite que se sobreponha alguns aspectos da definição original a outras regiões
etnográficas que não as usadas na construção do conceito. Essa sobreposição, no entanto, tem
o risco de cair em um relativismo raso e de invisibilizar definições nativas. A coletânea de
Carsten e Hugh-Jones apresenta uma boa solução para isso. Ampliando o conceito, vários
autores, entre eles Hugh-Jones, Lea e Rivière (1995), propõem uma antropologia da
arquitetura em diálogo com uma antropologia do corpo que faz emergir os conceitos nativos,
permitindo repensar o parentesco e o lugar da casa nas etnografias41. Esses estudos têm a
vantagem de, em lugar de submeter tudo à categoria de parentesco, conectar diferentes
princípios de organização, ou melhor, desvelar as conexões subjacentes a esses princípios.
É com base nesses estudos (Mcdonald 1987, Carsten & Jugh-Jones 1995; Caiuby
Novaes 1983) e suas combinações analíticas entre organização social, arquitetura, corpo e
pessoa que suspeito que a noção de casa de Lévi-Strauss pode ajudar a traduzir a casa noke
koĩ, afinal o contexto noke koĩ também apresenta problemas à aplicação do conceito lévi-
straussiano.

40
Assim, a casa como instituição que neutraliza hierarquias de outra ordem tal como descreve Lévi-Strauss para
as sociedades de casa se encaixa bem ao caso dos Tukano, como mostra Hugh-Jones (1995), mas não faz sentido
para os Kayapó (Lea 1995), nem para os grupos da Guiana (Rivière 1995). No entanto, a casa entendida como
pessoa moral de posses através do tempo, (aspecto definidor de société à maison) se adéqua aos contextos
Tukano e Kayapó, ainda que não encontre eco na Guiana. Da mesma maneira, o caráter de sistema de aliança do
conceito não é aplicável aos Tukano, nem na Guiana, afinal, ao contrário dos Kayapó, eles apresentam
características de estruturas elementares.
41
O complexo conceitual de corpo nas terra baixas sulamericanas tem um lugar privilegiado entre os ameríndios
e isso já foi amplamente demonstrado em diversas etnografias. É tendo isso em vista que alguns autores dessa
coletânea demonstram a aproximação entre casa e corpo como parte de um mesmo arcabouço conceitual.
122

A casa noke koĩ

A casa noke koĩ, assim como a casa das sociedades de casa, se define pela afiliação
indeterminada por razões diversas, a começar pelo fato de que no caso das sociedades de casa
a contradição do parentesco era aparente (em relação às definições antropológicas da época) e
no caso noke koĩ é de fato, pois trata-se de uma controvérsia em curso.
O conceito de casa em société à maison foi pensado para sociedades cognáticas, em
que as famílias do pai e da mãe têm o mesmo peso; a linhagem é traçada sem distinção e os
laços de parentesco são iguais para os dois lados, de modo que no caso dessas sociedades
trata-se antes de uma ambivalência que de uma incerteza. Esse, de antemão, não é o caso dos
noke koĩ, afinal não se trata de uma afiliação indeterminada por ambivalência, mas por
discordância sobre uma definição estável. Ainda assim proponho aqui instrumentalizar o
conceito de Lévi-Strauss, assumindo os riscos, com o intuito de explorar a possibilidade
analítica que esse conceito de casa oferece para a etnografia noke koĩ. A intenção é de
demonstrar, através do conceito lévi-straussiano, suas ampliações para as terras baixas sul-
americanas e muitas vezes por contraste, as noções noke koĩ em torno da casa, evidenciando
como de maneira muito peculiar (inclusive com profundos distanciamentos) a casa noke koĩ
está mais próxima do espírito da definição de société à maison que das análises sobre o valor
simbólico das casas e suas partes.
A etnografia mostra três relações principais imbricadas que envolvem a casa e a
organização do espaço noke koĩ: as relações de parentesco (que no caso etnográfico em
questão, como veremos adiante, seria melhor definido como relatedness42); a co-residência; e
a cooperação em atividades cotidianas, sendo que todas elas incluem uma quarta relação de
fundo não menos importante, a comensalidade. Tudo indica, como veremos, que, por um
lado, tal como para as sociétés à Maison, em que o parentesco consanguíneo não é
delimitador do conceito de casa, para os noke koĩ – como para outros grupos das terras baixas
sul-americanas (cf. Carsten & Hugh-Jones 1995) –, a casa, apesar de ser o foco das redes de
parentesco, o é sob uma outra definição de parentesco que não só não se limita ao
consanguíneo como não percebe a aliança como mais artificial que o consanguíneo. Isto é,
ainda que muito distinta das sociétés à maison, a casa noke koĩ prescinde do parentesco
definido pela consanguinidade. Se nas sociétés à maison as relações políticas, separadas do
42
Relatedness é termo cunhado por Carsten a partir de uma crítica feminista e schneideriana dos estudos
clássicos de parentesco, que aposta em análises de idiomas e práticas nativas das relações rompendo com a
tendência em definir o parentesco como baseado em noções ocidentais de mais natural versus construído
(Carsten 2000, 2004).
123

parentesco consanguíneo, são o foco definidor, nos noke koĩ, o corpo de parente ocupa esse
lugar de foco de relações, definidor do que é a casa.
Por outro lado, semelhante às sociétés à maison, para os noke koĩ a afiliação e o
pertencimento a segmentos de afiliação têm atualmente um papel quase nulo na composição
dos grupos que conformam as casas, de maneira que no lugar do parentesco está a
corporalidade.
Os noke koĩ investem na construção de pessoas e dos corpos, que nada mais são que
os elementos que constituem a Casa. Assim diante dos grupos domésticos o que temos não
são casas construídas, mas antes um conjunto de corpos construídos. E arriscaria dizer que por
isso a preocupação está menos no desenho do espaço do que no design do corpo. As relações
entre parentes e o espaço organizados por grupos de cooperação se inscrevem nos corpos.
O aparentamento processual (ou o processo de fazer ou tornar-se um parente) implica
em demarcar fronteiras entre próximos e distantes. Criar um corpo de parente é criar corpos
do mesmo tipo, e corpos de mesmo tipo constituem uma Casa.

Casas e clãs

Os noke koĩ estabelecem segmentações internas e todos são afiliados a uma delas:
varinawa, kamanawa, nainawa, satanawa e numanawa. Essas segmentações internas,
chamadas por eles de clãs, no entanto, não coincidem com os limites de um grupo doméstico,
nem de uma casa física.
Os marubo, grupo pano com quais os noke koĩ partilham uma história pregressa, têm
unidades com nomes idênticos às dos noke koĩ, no entanto, Melatti (1977) as define como
seções43, uma vez que entre os marubo essas unidades representam grupos de nominação do
tipo australiano (ou kariera44). Entre os Pano de uma maneira geral é através das seções que se
dão as regras de transmissão de nomes pessoais (Kensinger 1995a; Calavia Sáez 2006a), o

43
Segundo definição de Kensinger (1995), as seções referem-se a classes matrimoniais no interior das metades
determinadas pelo sistema onomástico de gerações alternadas.
44
Viveiros de Castro (1996: 10, 22) sugere chamar de pano, ou de australiano, os sistemas amazônicos com
traços kariera, já que os sistemas kariera e o pano têm princípios difíceis de aproximar. Na Austrália, no kariera,
as seções operam matrimônios e transmissões de nomes, uma sociedade cíclica que cada geração reproduz os
nomes e as alianças da segunda geração ascendente. No caso pano, ainda que se tenha grupos como os Kaxinawa
e os marubo que apresentam seções resultantes de um sistema onomástico associado a regras de casamento e em
que nomes voltam a cada geração alternada, o fato das metades terem mais peso, na vida ritual e na dimensão
cosmológica de maneira geral que as seções, descaracteriza o kariera. Para Erikson, a possibilidade de
casamentos oblíquos com o irmão da mãe é o que fragiliza a estrutura kariera entre os pano (Erikson 1986). Nem
o kariera, nem a transmissão de nomes, nem a definição de identidade são casos Noke koĩ. Para mais sobre o
modelo pano-kariera-australiano, ver Calavia Sáez 2006a e Viveiros de Castro 1996.
124

que afasta a definição de seção da concepção noke koĩ sobre as unidades varinawa,
kamanawa, nainawa, satanawa e numanawa (Lima 1997). Atualmente a afiliação a essas
unidades entre os noke koĩ remete apenas à ancestralidade e ao pertencimento a linha dos
antigos. E é por isso, por os noke koĩ assumirem essas unidades como ancestralidade suposta
ou presumida (i.e., os de hoje são descendentes dos antigos), que Lima (1994) optou por
chamá-las de clãs. Seguindo a autora, também chamaremos essas unidades internas de auto-
denominação de clãs, sobretudo porque esse termo – clã –, como já foi dito, no contexto noke
koĩ é antes um termo nativo, usado para referir-se em português a essas unidades. Isto é, aqui
clã é antes uma tradução nativa do que um conceito da teoria clássica do parentesco. O que há
aqui, portanto, etnograficamente sob o rótulo de clã é o discurso nativo, uma tradução noke
koĩ e não um resgate de um conceito africanista já muito discutido na etnologia amazônica
nos anos 1980, por pessoas como Overing, Rivière, Seeger e Viveiros de Castro. Na norma
ideal, essas unidades internas seguem um princípio de unifiliação, mas nos últimos (pelo
menos) vinte anos45 essa norma tem sofrido uma revisão: uns afirmam afiliação materna,
outros paterna. Aqueles que definem o princípio de unifiliação como materna dizem que no
passado era assim e suas genealogias correspondem a essa definição.

Gráfico 3 - Exemplos de afiliação genealógica materna

Em geral, são pessoas mais velhas que conhecem bem as genealogias e argumentam
que a afiliação paterna é coisa de jovens, que surgiu há pouco tempo, simultaneamente ao
advento das lideranças e do forró nas aldeias. Os que definem o princípio como de afiliação
paterna algumas vezes admitem que a inversão da regra é recente e muitas vezes caem em
contradição ao demonstrar suas genealogias.

45
Na década de 1990, Lima já apontava para esse desacordo.
125

Gráfico 4 - Exemplos de afiliações genealógica maternas e paternas entre grupos aparentados

Lima (1994) conta que na década de 1990, uma senhora, Sharã – provavelmente a
viúva de Vari Kene –, afirmava que seus filhos eram varinawa como seu marido, apesar dela
ser kamanawa como sua mãe. Se essa Sharã é a mesma que identifiquei, nota-se aí uma
mudança recente de posição. Seus filhos hoje se dizem kamanawa e usam o princípio da
afiliação materna como explicação para isso. Parece existir aí um paralelo entre o argumento
de alguns sobre o advento da liderança e o contexto de indeterminação filial. A primeira
liderança da TI Campinas, considerada o fundador da TI, Washme, era kamanawa e o filho de
Sharã, Kapiyo, tornou-se, após a morte de Washme, seu herdeiro na liderança da TI. O re-
reconhecimento portanto dessa afiliação é algumas vezes justificado por algumas pessoas
mais críticas ao papel dessa liderança como sendo uma espécie de identificação com a
liderança anterior e a sua reputação.
A falta de consenso e as oscilações entre paterna e materna na definição da afiliação
me parecem uma questão muito mais complexa que uma oposição entre certo/tradicional e
mudança/perda da tradição. Para os noke koĩ, no entanto, Lima (1994) afirma que aqueles
que sustentam um princípio de afiliação paterna o fazem buscando um sentido de pureza, de
tradição e que no momento da sua pesquisa um outro fator influenciava essa definição: o
modelo kaxinawa.
Segundo Poiu, há aproximadamente quinze anos atrás, um antropólogo esteve entre
eles e, na ocasião, informou-lhes que os Kaxinawá eram patrilineares e sugeriu que
os Katukina também deveriam ser. Como, ainda segundo Poiu, já fazia algum tempo
que ninguém sabia ao certo como viviam os ‘antigos’, ele resolveu concordar com o
antropólogo e a partir de então passou a afirmar a patrilinearidade, do mesmo modo
como outras pessoas também passaram a fazer (:43)46.

Nesse momento, Lima identificou ainda uma outra alternativa baseada no encontro de
vinte e pouco anos atrás dos noke koĩ com os marubo. Foi a partir desse encontro que os noke
koĩ descobriram que compartilhavam com os marubo não só uma história pregressa (sob a

46
Convém destacar, no entanto, que a transmissão dos nomes entre os Kaxinawa é por geração alternada,
portanto não paterna, mas do pai do pai para meninos e da mãe da mãe para meninas.
126

tese de que já foram em tempo longínquos o mesmo grupo), mas também segmentações de
mesmo nome – todas exceto nainawa47.
Com base nisso, aqueles que participaram desse encontro passaram a defender, diante
da indefinição de regra consistente, que, como os marubo estão mais distantes dos yara, a sua
regra de afiliação era a que não tinha se alterado pós-contato. Resulta no entanto que a regra
marubo é por geração alternada e pela afiliação materna– da avó materna para os netos. Nessa
época das primeira pesquisas de Lima, havia portanto quatro possibilidades de afiliação em
debate entre os noke koĩ.
Confesso que na TI Campinas nunca ouvi defenderem as regras supostamente
kaxinawa ou marubo, ainda que a forte admiração pelos marubo seja notável e a história
pregressa frequentemente reclamada. Quanto aos kaxinawa, trata-se mais de respeito que
admiração e em geral marcam bem suas diferenças48. Passados mais de 20 anos, o debate
parece ter se restringido a afiliação materna ou paterna, todavia não definido.
Se é difícil determinar quando e o que foi que criou esse dissenso, me parece, no
entanto, que o contato com a sociedade brasileira tem um papel determinante sobre a questão.
Em tese os brasileiros são cognáticos, no entanto a nossa estrutura é patriarcal: o homem é o
chefe da casa, o nome que segue gerações é o da família do pai, até as mulheres muitas vezes
assumem o nome da família do marido. Esses aspectos definem um homem hierarquicamente
em relação à mulher, conferindo poder sobre ela e a família. Digo isso porque me parece
haver um elo entre esse panorama de tradição patriarcal e o fato de que o indigenismo
predominantemente masculino no Brasil tenha sido o responsável por formar
majoritariamente homens como lideranças indígenas. Não por acaso, das pessoas com que
conversei os que são lideranças afirmam afiliação paterna, ao passo que os que não sabem e
os que defendem a afiliação materna ou são velhos ou não têm cargos.
A necessidade de corresponder ao modelo de liderança imposto por um indigenismo
de herança patriarcal pode, ao meu ver, ser uma motivação para se negar a afiliação materna.
No entanto isso é só uma hipótese. Talvez fosse o caso de considerar também a possibilidade
de uma transformação em direção a uma transmissão bilateral ou até mesmo por geração
alternada como acontece em outros casos pano, no entanto, não posso afirmar nenhuma
47
Os marubo, no entanto, contam 18 seções, ao passo que os Noke koĩ têm 6 segmentos internos que eles
traduzem como clãs. É notável que embora um sistema kariera clássico não compreenda mais que quatro seções
matrimoniais (Lévi-Strauss 1976: 197), muitos grupos Pano reconhecem muito mais. Os Kaxinawa, por
exemplo, considerando a divisão de gênero, teriam oito seções (D'Ans 1983, Kensinger 1995, McCallum 1996).
48
Alguns exemplos dessa ênfase na diferença com os huni kuin são: definir o desenho kene de pata de onça – inu
tae – como desenho do kaxinawa e corrigir yara quando usam expressões huni kuin para os noke koĩ, como
chamar yara de nawa e saudar com haux, haux (o que é de introdução recente entre seguidores do movimento
neo-xamanístico (ou como chama-lo) originário do Jordão).
127

dessas possibilidades sem o risco de uma especulação infundada. O que não resta dúvida é
estarmos diante de uma negociação de novas formas de afiliação, uma transformação em
curso, ainda sem destino certo.

Onomástica e clãs, Casa e bens imateriais

Essa indefinição de afiliação, ecoa na regra de pertencimento aos clãs. Essas unidades
de auto-denominação se referem a idéias de ancestralidade e pertencimento e por isso
influenciam a posição a favor de uma ou outra afiliação. Interesses políticos quanto à herança
de títulos de poder de lideranças falecidas ou a transmissão de nomes são algumas das
motivações.
Ao contrário de outros grupos Pano, em que se nota a presença de seções estreitamente
relacionada a regra de transmissão de nomes pessoais por gerações alternadas49, os noke koĩ
não parecem articular essas unidades internas à onomástica (Lima 1997). Ainda que como os
demais grupos, os noke koĩ associem o parentesco à onomástica, há uma diferença
significativa na regra de transmissão dos nomes pessoais que, como bem demonstrou Lima
(1997), está relacionada a diferenças no sistema de parentesco50.
Apesar de uma estrutura dravidiana, os noke koĩ contrariam o padrão geral pano de
combinação entre uma terminologia de referência dravidiana com uma terminologia vocativa
australiana/kariera, em que todos os termos de parentesco são recíprocos entre as gerações
alternadas. Matis, matsés, huni kuin, marubo e yaminawa distinguem consanguíneos de afins
em todas as gerações e isso reflete na transmissão de nomes, fazendo com que os nomes
pessoais funcionem como um mapa da organização social, permitindo localizar as pessoas no
sistema de parentesco51. Os noke koĩ, por sua vez distinguem afins e consanguíneos só nas

49
Para Kaxinawa ver Kensinger, 1995b; McCallum, 1989; Lagrou 2002; para yaminawa, Calavia Sáez 2006a,
Townsley 1988; matsés, Matos 2014; marubo, melatti 1977 e matis, Erikson 1990 e para os pano em geral, ver
Hornborg 1993.
50
Entre os huni kuin, por exemplo, o pertencimento a uma metade e às oito seções matrimoniais é condicionado
pelos nomes pessoais que são transmitidos segundo gerações alternadas do pai ou irmão do pai para o menino e
da mãe ou irmã da mãe para a menina (Lagrou, 2002: 30).
51
Esses grupos distinguem afins e consanguíneos até as duas gerações distais (isto é, +2, +1, 0, -1, -2). Na
onomástica a consequência disso é que o pai transmite ao filho o nome de FF e FFB e a mãe transmite à filha o
nome de MM e MMZ. “De tal forma que um determinado nome presente na geração -2, repete-se nas gerações 0
(zero) e 2, e qualquer outro nome presente na geração -3, repete-se nas gerações -1 e 3” (Lima 1997: 12).
128

gerações de ego, +1 e -1, tendo apenas dois termos para a geração +2 (Lima 1994)52. A
ausência de preocupação com uma regra única de transmissão de nomes permite aos noke koĩ
transmitir nomes tanto por gerações alternadas (de forma paralela ou cruzada), quanto através
de gerações ímpares (+1 e +3) de forma cruzada. Porém há casos também de transmissão
paralela, em que o pai e a mãe transmitem os nomes de seus pais aos filhos (simultaneamente
ou não), e aí se aproximam do sistema terminológico de outros pano. Em consequência desse
panorama de alternativas não se tem a reprodução automática de nomes ancestrais e muitas
vezes o mesmo nome aparece entre primos cruzados e também entre gerações seguidas (Cf.
Lima 1997).
A ausência de uma regra precisa na transmissão de nomes, revela, como apontou Lima
(op. cit.) uma preocupação maior em preservar o acervo onomástico do que em repetir
ciclicamente papéis e posições terminológicas. E aqui a preocupação com a ancestralidade
que identificamos no debate de pertencimento ao clãs encontra eco na onomástica. Tudo
aponta para um ideal de preservação dos nomes ancestrais através da sua atualização. Além
da genealogia, as contingências/circunstâncias das relações entre os pais e os antigos donos do
nome é determinante na escolha do nome. Muitas vezes essa escolha se baseia numa
estratégia de garantir a perpetuação do nome.
Alguns grupos Jê também expressam essa preocupação em preservar os nome. Entre
os krahô, por exemplo, o conjunto de nomes pessoais existentes divide-se entre as metades, de
modo que o nome pessoal identifica o pertencimento a um metade. Assim, as mulheres,
através de seus filhos de sexo oposto, tentam garantir parte dos nomes de seus futuros netos,
numa estratégia de que a metade não perca nomes.
A ‘política’(entendida no sentido de estratégia) de ‘não perder nome’ é claramente
expressa pelos Timbira. Um nome masculino, por exemplo, que não tenha sido
doado devido a morte de seu possuidor, será atribuído pelas suas parentas
matrilaterais a um menino do mesmo segmento residencial, para que ele continue o

Gráficos de geração alternada e geração ímpar


52
Ao separarem afins e consanguíneos apenas nas três gerações mediais (ou centrais; +1, 0, -1), terminam por
equivaler terminologicamente FF a MF e MM a FM, de modo que txaitxo refere-se tanto a MF quanto a FF e
itxa, tanto a MM quanto a FM. Como afirma Lima (1994, 1997), o uso de apenas dois termos para a geração +2
é o que faz a diferença em relação ao demais pano.
129

processo de transmissão interrompido. A política de ‘não perder nome’ significa a


política de não perder a possibilidade de sua transmissão, quer dizer, a possibilidade
do estabelecimento de relações com outro grupo doméstico (Ladeira 1982: 39-40).

Segundo Lea (1993), cada casa mebengokre possui nomes pessoais, que ao lado de
certas prerrogativas, são bens herdáveis que compõem o patrimônio da casa e lhes atribuem
uma identidade distintiva.
Quanto aos noke koĩ, poderíamos definir o conjunto de nomes pessoais como um
patrimônio imaterial que tende, através de esforços de negociação entre os cônjuges, a
garantir sua persistência ao longo das gerações vinculando o grupo a uma origem ancestral.
No entanto, diferentemente dos mebengokre, dos krahô, de outros Pano53 e das sociedades de
casa, os nomes pessoais noke koĩ não estão associados a uma seção, metade ou Casa. Todos
os nomes são de todos os clãs. Aqui, construções, grupos domésticos, aldeias e clãs não
coincidem entre si. A transmissão de nomes pessoais e sua perpetuação, ainda que igualmente
ao clã seja devedora de um ideal de ancestralidade, independe da linhagem. Em outras
palavras, entre os noke koĩ, nem os segmentos de afiliação, nem a onomástica definem uma
casa moral.

Casa, grupos domésticos e padrões de residência

A casa noke koĩ, como a casa das sociedades de casa, transcende os segmentos de
afiilação, o parentesco consanguíneo e o espaço material. O espaço a que a casa corresponde
(enquanto unidade social) transcende a construção e remete a sua configuração, isto é aos
grupos domésticos.
Sob a perspectiva meramente espacial, o grupo doméstico se define por um conjunto
de casas físicas próximas umas das outras que abrigam parentes que trabalham em regime de
cooperação mútua. Hoje, com os ramais desenhando o espaço entre as casas, podemos dizer
que a configuração espacial da aldeia se faz por ramais que concentram grupos de famílias
extensas, sendo que cada casa tende a voltar-se para seu próprio ramal.
Do ponto de vista da organização social, o grupo doméstico é um conjunto de casas de
parentes reunidos não exclusivamente por sangue, mas sobretudo por uma moralidade
definida pela comensalidade, cooperação e co-residência, onde a os segmentos de afiliação
têm um papel menor ou quase nulo. Assim definido, o padrão de residência entre os noke koĩ,

53
Acerca do conjunto nebulosa pano, Erikson afirma que as seções dispõem com exclusividade de um estoque
específico de nomes próprios (1993: 48), o que ocorre, por exemplo, entre os huni kuin (Kensinger 1995,
McCallum 2001, Lagrou 2007).
130

baseado no grupo doméstico, resulta ser resultado de relações políticas e conectividades


organizadas em torno de um pertencimento que independe dos segmentos de afiliação.
O padrão de residência nas malocas, conforme contam os mais velhos que seus pais
contavam dos antigos, era baseado em famílias de parentes femininos consanguíneos
próximos vivendo juntos, isto é, em segmentos de afiliação materna. Os irmãos homens
moravam com suas esposas e elas com suas mães e irmãs, isto é, em uxorilocalidade, já que
os cunhados e os esposos vinham sempre de outras malocas. Em resumo, a maloca reunia
consanguíneos, afins e grupo de segmentação de afiliação materna, que coincidia com o
padrão de localidade uxorilocal e com os limites do grupo local. Composta por várias famílias
elementares, ela conformava um grupo doméstico, que no contexto espacial pré-contato,
correspondia ao grupo local. Como vimos, a transformação no padrão de assentamento em
aldeias não impediu que o ideal de residência permanecesse e tentasse vez por outra ser
atualizado, mas paralelamente a outros fatores pós-contato, essa transformação radical do
ambiente pôs em cheque normas de localidade.
Há ainda uma tendência das irmãs de viverem perto, e de casais com filhos morarem
com pais velhos viúvos ou solteiros de qualquer dos cônjuges. Em geral, a tendência
residencial é marcada pela uxorilocalidade, seja pelo ideal de obrigação do genro para com a
família da mulher, ou por laços íntimos entre mãe, filhas e irmãs. De modo que em alguns
casos, as casas noke koĩ se caracterizam por estar justapostas e relacionadas entre si através de
mulheres, ao redor das quais as outras pessoas do grupo subsistem.

Gráfico 5 - Grupo doméstico aldeia Waninawa em 2014

Hoje, no entanto, frequentemente se vê primas paralelas do lado da mãe morando em


casas separadas e pode-se até mesmo encontrar irmãs uterinas solteiras morando em outra
casa que não a de sua mãe, como é o caso de Txore e Rẽpo.
131

Como já foi citado quando falamos sobre o fogo de cozinha, Txore e Rẽpo, mesmo
solteiras, moravam, antes da morte de seu pai, em uma casa separada dos pais. Apesar de
dormirem lá, se consideravam pertencentes à casa da mãe, isto é, ao grupo doméstico da mãe.
A motivação para se mudarem para essa outra casa estava ligada a uma tentativa de garantir
durante a construção do PNHR uma casa para o futuro. Assim que antes de morrer, Orlando
pediu a seus filhos que haviam recebido casas do governo que não abandonassem as casas.
Com a sua morte, no entanto, como era esperado Nawashavo (uma de suas esposas)
abandonou a casa de seu falecido esposo e foi morar na casa de Seya, a filha mais velha de
Orlando. Só não deixaram a aldeia em respeito à diretriz do falecido de não abandonar as
casas do governo. Curiosamente Rẽpo e Txore a acompanharam na mudança. O fato delas
terem deixado a casa em que viviam separadas da mãe e dos irmãos para acompanhar a
mudança da mãe me parece indicar o pertencimento delas ao grupo da mãe. Afinal quando a
questão envolve uma mudança da casa por razões de morte a regra implica todos os que
pertencem à casa.
Aqui temos mais um exemplo da utilidade do conceito de casa de Lévi-Strauss para
pensar a casa noke koĩ. Traduzida como uma pessoa moral, a casa ocupa o lugar de uma
instituição que transcende as construções, se atualizando no espírito de pertencimento. A casa
assim é mais que um edifício, é uma definição de pertencimento do grupo.
Se por um lado irmãs morando perto da mãe ainda é um padrão de residência presente
na configuração espacial noke koĩ, por outro, a regra de residência pós-casamento, como
tantos outros aspectos da organização social noke koĩ, não parece usufruir no presente de um
consenso.
Essa imprecisão sobre a regra de residência se expressa em dois dados etnográficos
distintos. Em sua pesquisa na década de 1990, Lima (1994) afirma que após o casamento as
mulheres vão morar junto à família do marido até que se construa uma casa para eles
próprios. Nas minhas pesquisas recentes presenciei e ouvi o contrário. Um casamento entre
uma jovem de Masheya e um homem de Campinas/Kamanawa resultou na mudança deste
homem para a casa de seu sogro em Masheya. Em 2014, quando Tama se casou com Rami,
seus pais e seu sogro ficaram desapontados por ele não poder ir morar na casa da família de
sua esposa, porque a casa era pequena e não tinha lugar para os dois. Na ocasião me disseram
que um casal só funda uma nova casa com o nascimento do primeiro filho e essa era a
primeira justificativa para não construírem de imediato uma nova casa. Mas se o problema era
uma questão de espaço e não de fundar ou não nova casa, poderiam muito bem construir uma
nova casa nos arredores do grupo doméstico da família de Rami para dormirem e continuarem
132

a conviver na casa da sogra de Tama, mais ou menos como faziam Txore e Rẽpo em Masheya
em relação à casa da mãe, como vimos. No entanto, a outra razão para não construírem é que,
nesses tempos de PNHR, construir uma nova casa implica em construir uma casa de modelo
antigo, que não pareceria nem nova, nem boa o suficiente quando comparada às casas do
governo54. E por esses motivos o jovem casal permaneceu na casa da sogra de Rami. O pai de
Tama várias vezes lamentou e justificou, disse que muita gente hoje faz assim, mas que não é
certo a moça ir morar com a sogra. Lima destaca que esta tal orientação residencial é o oposto
da uxorilocalidade do passado, sendo a tendência virilocal para a residência pós-casamento
aceita pelo sogro somente quando há endogamia local.
As esposas também reclamam de morar longe da mãe e das irmãs. Em 2009, Noya que
trabalhava como professor em Masheya mudou-se para lá com sua esposa Patxara e filhos. Na
ocasião a mãe e a irmã dele também moram lá, mas a família de Patxara ficara no Campinas
(no extremo da TI). Naquela época ele expressou sua preocupação pelo fim do casamento, já
que sua esposa vivia triste longe do convívio com seus kaivo, i.e., seus próximos55.
Lima comenta que em alguns casos pode ocorrer do sogro, não podendo atrair o genro
para perto de si, nem impedir a filha de ir, acompanhar o casal a sua nova localidade. A isso
Lima chama de uxorilocalidade compulsória. O foco, portanto, não parece ser o sogro mas
antes a mãe da mulher, a sogra. O grupo doméstico é centrado na mãe, estando o pai
frequentemente ocupando apenas um papel secundário. A mãe é a figura estável e as outras
pessoas do grupo doméstico funcionam ao seu redor. São as mulheres que têm o poder de
decidir sobre as crianças e a casa.
Isso não significa, no entanto, que não haja relações de obrigação do genro para com o
sogro. Mesmo em casos de virilocalidade, o genro ajuda o sogro a preparar o roçado, e ele,
por sua vez, conta com a ajuda dos irmãos para preparar o seu. A composição do grupo
doméstico e a sua configuração residencial se define em parte por essas relações de
cooperação.

54
O modelo antigo de casas é visto pelos jovens como ultrapassado, mas de maneira geral, os demais Noke koĩ
as vêem como casas boas. Inclusive as casas das novas aldeias da recente mudança para o Gregório são de
palafita, de madeira e paxiúba, como eram antes do PNHR no Campinas. Uma entre todas as casas novas, a de
um pajé, é grande e comprida como uma maloca, porém de madeira serrada e telhado de alumínio. Em uma
viagem que fiz com alguns noke koĩ do Campinas às novas casas do Gregório, eles não identificaram na casa de
Kosti, esse pajé, nada de moderno como as casas do PNHR, nem nenhuma semelhança com as descrições das
malocas do passado, aos olhos deles a casa se parecia com uma igreja.
55
Siskind (1973:49) traduz noko kaifo, termo usado pelos Sharanahua (semelhante a noke kaivo, como dizem os
noke koĩ) como “our people”, nossa gente, nosso povo. Segundo a autora, os Sharanahua usam o termo para
designar a fronteira identitária entre aqueles que são humanos e os que não são. Ela ainda destaca que noko
pushu, traduzido como “our house”, nossa casa, é usado alternativamente à noko kaifo.
133

Todas as casas do grupo trabalham em regime de cooperação em atividades cotidianas,


uma cooperação marcada por gênero e geração. A solidariedade entre irmãos é generalizada e
se expressa também na sororidade feminina e entre irmãos de sexo oposto. Mas verifica-se aí
uma gradação de intensidade por geração e por gênero. As mulheres são muito mais solidárias
entre si que os irmãos homens entre si. Há inclusive casos de poligamia sororal – em que duas
irmãs são casadas com o mesmo homem simultaneamente –, ao passo que o levirato – quando
um homem se casa com a viúva de seu irmão – não seja praticado. Conta-se que os homens
têm acesso às mulheres de seus irmãos, mas as mulheres negaram isso para mim. Entre
irmãos e irmãs o princípio é de mais distância e prudência. Entre irmãos, ou irmãs, mais
velhos a relação é de obediência e cooperação, do mais novo para com o mais velho, e de
cuidado dos mais velhos com os mais novos. A terminologia vocativa e de referência para
irmãos – otxi (eB), txitxo (eZ) e txo'o (yB e yZ) – expressa essa assimetria entre irmãos por
idade, ainda que os termos de referência poi e wetsa – respectivamente irmãos de sexo oposto
(poi) e irmãos de sexo mesmo sexo (wetsa) – apontem para um caráter bastante simétrico das
relações entre irmãos uma vez que se aplicam a ambos os sexos, independente da idade. Além
disso é preciso ter em conta que a assimetria por idade se dilui na fase adulta. E essa simetria
sempre de fundo, no entanto, não anula certa distância esperada das relações entre poi (irmãos
de sexo oposto).

Casa, grupo doméstico e regimes cooperação

O pertencimento noke koĩ à Casa se afasta do conceito de société à Maison no que diz
respeito à constituição da Casa (unidade social), tal como definida por Lévi-Strauss, através
de bens materiais. A casa noke koĩ, diferentemente das sociedades de casas, não se define
como detentora de um domínio de bens materiais. E até o momento, o fato das casas do
PNHR serem propriedades registradas em título não teve efeitos sobre a condição de
pertencimento. Entre os noke koĩ, a posse – da casa, do roçado e outros bens materiais – tem
um caráter temporário e envolve muito mais responsabilidades que decorrem de
investimentos de trabalho e relação do que de uma propriedade objetiva, fixa e nominal.
Assim a posse da casa e do roçado, por exemplo, exige muito trabalho e cooperação coletiva.
O trabalho em regime de cooperação transforma o espaço e simultaneamente os
corpos envolvidos através das relações que reforçam o pertencimento. A construção do
espaço, do corpo e do pertencimento estão imbricadas de maneira fundamental. É a
134

transformação do espaço que garante sua posse, é a transformação substantiva dos corpos (das
pessoas e das coisas) que garante o pertencimento à casa.
Todos os pertencentes a uma casa são responsáveis conjuntamente pela organização e
manutenção do espaço, das casas, da limpeza dos arredores, dos roçados. Pertencer a uma
casa implica responsabilidade com os demais, com os corpos dos demais, com a criação e
manutenção de laços com eles e com a casa-construção (Carsten 2004: 35).
Produzir roçado, limpar a casa, também criam corpos coletivos, geram objetos e/ou
pessoas que são extensões umas das outras e do trabalho. É uma relação que inclui o
parentesco, ou melhor, que produz parentesco. De maneira que tanto o pertencimento à casa
quanto a suas propriedades são entre os noke koĩ algo altamente contingente. Tal como a casa
física que se abandonada volta a ser floresta, a casa moral se desfaz sem a manutenção dos
corpos de parente. Se o espaço não é trabalhado a floresta toma conta, se os corpos não são
trabalhados o parentesco se desfaz.

Casa, grupo doméstico e comensalidade

Comer é uma atividade que para além de produzir corpos físicos, também produz
corpos de parente. A comensalidade se estende em relações e é muito mais do que só comer
junto, ou alimentar-se, inclui toda uma teoria sensível sobre substância, onde o abster-se
também produz parente.
Aqui a comensalidade implica a consubstancialidade e passa pela concepção de uma
categoria chave entre os pano: yochĩ. Yochĩ pode ser traduzido, grosso modo, como espírito,
força vital que anima os seres e enquanto tal é mais que uma força que anima o corpo, é
também aquilo que confere as características particulares aos seres (Townsley 1988: 65).
Além dos seres, algumas substâncias também têm yochĩ (Lima, E. 2000a; Lagrou 2007,
Montagner Melatti & Melatti 1975, Calavia Sáez 2006a). Além do mais, yochĩ é entre muitos
grupos Pano, um componente da pessoa (Townsley 1988, Lima 2000a, Lagrou 1998).
Partes do corpo carregam o yochĩ do dono, de modo que o que acontece a ele
acontece metonimicamente ao corpo (cf. Lagrou 1998, 2007). Da mesma maneira, o que
acontece a um corpo, acontece a outro com que se compartilha substâncias permeadas de
yochĩ. Os yochĩ estabelecem continuidade entre corpos e podem ser encontrados em
praticamente qualquer coisa, por isso têm grande influência sobre a alimentação. Alimentar-se
é uma maneira de introduzir no corpo substâncias externas cheias de yochĩ. As prescrições
135

tanto quanto as restrições (dietas) alimentares são portanto mecanismos indispensáveis para o
controle e manejo desses yochĩ no corpo da pessoa e de seus consubstanciais. Quando um
consubstancial adoece é preciso adotar a mesma dieta, caso contrário a vida do consubstancial
enfermo é posta em risco. Filhos devem se resguardar em caso de doença do pai e da mãe e
vice-versa por toda a vida.
Como outros autores já demonstraram para outros grupos ameríndios (Gow 1991;
Vilaça 1992; Fausto 2002), fazer parentesco está voltado para o comer como e comer com
alguém. Essa comensalidade inclui ainda o privar-se por e com alguém. Comer e não comer
com, como e por alguém não só define as relações de parente, mas sobretudo as produz
mutuamente. Comer com e como ou deixar de comer por alguém constrói identidade e
pertencimento à casa, isto é, ao grupo.
Mas não podemos esquecer que essa comensalidade começa antes mesmo de chegar à
cozinha, ela começa na produção, na cooperação laboral no roçado.

Aparentamento processual: cooperação, co-residência e comensalidade

Trabalhar e comer junto são possibilidades de relação com o outro.


Na minha primeira ida a campo, em 2009, Isã, uma mulher adulta que não fala
português, frequentemente passava por mim pela manhã e dizia “eã waĩ kai” (eu vou para
roça). Eu não entendia a língua e os que a traduziam para mim diziam apenas “ela disse que
vai para a roça”. Ao que eu respondia “está bom”. Ao fim de alguns dias ela já não falava
mais comigo e eu, não entendendo porquê, perguntei a Machi se eu tinha feito alguma coisa
errada. Machi disse que ela estava chateada, porque eu sempre negava o seu convite de
acompanhá-la ao roçado. Prontamente pedi a Machi que dissesse a ela que se tratava de um
equívoco, que eu não havia entendido seu convite por motivos linguísticos mas que eu queria
muito ir ao roçado com ela. No dia seguinte ela me disse eã waĩ kai e eu a segui, ela ria muito
e parava várias vezes no caminho e olhava para trás para me ver. Perguntei para Machi
porquê ela estava rindo e ela disse que Isã estava achando graça por eu não levar um terçado.
Essa anedota nos informa pelo menos duas coisas importantes: uma acerca de um
equívoco linguístico na forma do convite e outra sobre a relação baseada no trabalho. Sobre o
equívoco linguístico, eu não suspeitava, talvez por ingenuidade, que dizer que se vai fazer
algo fosse um convite, muito menos que apenas assentir positivamente fosse uma recusa ao
convite. Já quanto ao conteúdo do convite, isto é, uma proposta de relação, eu só fui entender
136

muito depois de ir ao roçado com ela que não bastava aceitar o convite de acompanhá-la, era
preciso aceitar trabalhar o roçado com ela. E nesse sentido era um desproposito ir ao roçado
sem um terçado. Esse conjunto de equívocos em série revelou depois um modelo reduzido do
que ocorre entre as casas do grupo doméstico: que o trabalho coletivo nunca se dá por ordem
ou determinação de alguém, mas por um convite sutil dizendo que se vai fazer tal coisa e que
aceitar esse convite é aceitar uma relação, na mesma medida que negar é negar uma relação.
Claro que não é preciso aceitar sempre todo e qualquer convite de trabalhar, mas a negação
frequente é entendida como uma evitação (e por isso Isã se chateou).
O mesmo acontece com comer. Em uma análise sobre as extensões da comensalidade
para além das relações sociologicamente visíveis entre parentes humanos, Fausto discorre
sobre a polivalência do aparentamento presente no alimentar com e como outros. Sobre um
mito parakanã em que uma personagem come com e como um tatu o autor afirma: “Não
comer como e com é recusar o aparentamento e tal recusa equivale a se colocar na posição de
inimigo.” (2002: 15).
Isso porque compartilhar os princípios da alimentação e do trabalho coletivo
transforma pessoas em pessoas do mesmo tipo. Sovinar ou não comer junto é uma
desconsideração do parentesco ou evitação/negação de criar laços desse tipo.
Uma outra situação de campo ilustra isso muito bem. Certa vez, um homem noke koĩ
veio de outra aldeia me visitar na aldeia que eu estava. Quando ele chegou, a comida estava
sendo preparada na cozinha. Estávamos sentados na soleira da porta conversando quando
notei a movimentação na cozinha seguida de um silêncio total. Ele ficou ali algumas horas e
quando se foi já era o fim do dia. Ninguém estava em casa, todos tinham ido para outra casa
do grupo doméstico, da irmã da dona da casa em que eu estava. Quando chegaram traziam um
prato com carne e macaxeira para mim. Alguns dias depois entendi que esse homem não foi
convidado a comer e que o preparo da comida tinha sido terminado em outra casa do grupo
doméstico (de parente) porque ele tinha péssimas relações – de acusação e depreciação – com
a família que me hospedava e por isso não tinham intenção de comer com ele, isto é, de
compartilhar substâncias nem estabelecer relações com ele.
Essas duas situações de oferta e de recusa de relação indicam que trabalhar e comer
juntos é parte integral das relações recíprocas entre parentes.
A co-residência é outra forma de fixar parentesco, seja pela coabitação em uma
mesma casa, ou em casas do grupo doméstico. A co-residência se define por esse
pertencimento à casa, no sentido de um segmento social.
137

Mas a lógica do aparentamento por convívio – construir parentesco comendo junto,


vivendo e trabalhando junto cotidianamente – também tem efeito reverso; a distância e
ausência cotidiana pode des-aparentar pessoas, ao mesmo tempo que o aparenta de outros, das
pessoas atuais do convívio56.
Assim como para o espaço físico, para o espaço social existe sempre a sombra da
fugacidade potencial de permanência das pessoas, seja pela condição da vida breve, seja pela
fluidez das relações. Fazer corpos, casa, construções e roçados são processos que forjam
relações metonímicas de apropriação, da floresta e dos laços de parentesco.
Ainda que uma ancestralidade comum seja reconhecida, essa lógica do aparentamento
(e des-aparentamento) mostra que o pertencimento noke koĩ a uma casa não faz a casa
perpétua, que persista ao longo de gerações. Ao contrário ela é instável e pode expirar, por
abandono, morte ou caso não sejam feitas as manutenções cotidianas.
Assim que as relações de proximidade são cotidianamente construídas e sempre
reafirmadas, não são dadas, nem óbvias, têm a característica de serem mutáveis. O corpo (seja
ele físico e – simultaneamente – social ou o corpo-grupo-doméstico) está a mercê de
rompimentos e conexões com outros corpos.

Parentesco processual e instável noke koĩ

De uma maneira ampla, os noke koĩ se consideram membros de um grupo geral


ligados por relações de parentesco (sangue e casamentos) e que compartilham um mesmo
arcabouço cultural. Sobretudo em momentos de tensão e crítica moral ao comportamento de
algum parente, os noke koĩ enfatizam que todos os noke koĩ são parentes próximos, são de
alguma maneira todos consanguíneos, co-residentes potenciais e solidários.
Desse ponto de vista, hoje os noke koĩ poderiam ser definidos como um grupo baseado
no parentesco que abrange seis aldeias na TI Campinas/Katukina e cerca de cinco
agrupamentos (entre aldeias e pequenas ocupações) na TI Rio Gregório.
Um conceito noke koĩ, no entanto, complexifica essa definição e nos ajuda a entender
melhor a composição das casas noke koĩ; trata-se da relação entre kaivo e kaivoma.
Kaivo refere-se a oposições relacionais, podendo definir todos os noke koĩ, em
oposição a outras etnias e também todo o grupo local em oposição a outro grupo local – seja

56
Uma série de autores destaca a possibilidade de que certos vínculos possam ser esquecidos ao ponto de que em
certos casos as pessoas deixam a posição de parente: Carsten 1995; Carsten et al. 2000; Gow 1997; Bodenhorn
2000; Fausto 2002, Lagrou 1998.
138

ele os moradores noke koĩ da TI Rio Gregório, ou os moradores da aldeia Bananeira do ponto
de vista dos moradores da aldeia Campinas/Kamanawa. Isso se dá de modo que os noke koĩ
do Gregório e outras etnias podem por vezes prefigurar o lugar de kaivoma.
Kaivo e Kaivoma são frequentemente traduzidos informalmente como parente e não-
parente. Porém, como destaca Lima (1994), esse par de posições não se confunde com as
oposições entre cognatos e não-cognatos, nem entre consanguíneos e afins, categorias que
frequentemente já são confundidas entre si, como mostra Viveiros de Castro (2002a)57 e que,
entre alguns grupos Pano, chegam a se confundir ainda com metades (Kensinger 1995c: 165).
Resumidamente, sob certa perspectiva, kaivo se refere àqueles com os quais se consegue
traçar vínculos genealógicos – pai, mãe, avós, irmãos e filhos. Mas de maneira mais ampla e
inclusiva, kaivo pode também ser todos os co-residentes, o grupo local e todos aqueles que
cooperam entre si e são comensais. Isto é, o critério enfatiza mais as substâncias em geral que
se compartilha (sangue, saliva, e alimento) do que exclusivamente o sangue como base
biológica.
Os parentes kaivo que moram em casas diferentes são conectados assim pela
cooperação e comensalidade, e não só pelo parentesco consanguíneo. Podendo ser entendido
como aqueles que crescem juntos58 (Townsley 1988: 88), kaivo circunscreve além de
relações de troca matrimonial, comensalidade e cooperação.
Aqui a crítica de Schneider (1984) às percepções antropológicas do parentesco, como
fundamentadas numa suposta universalidade das definições ocidentais de família, baseadas no
sangue e no natural, fazem muito sentido. Carsten (2004) inclusive aponta que uma
alternativa encontrada pelos estudos antropológicos na década de 1980 à essa noção foi
justamente a de substância, entendida como
a kind of catch-all term that can be used to trace de bodily transformation of food
into blood, sexual fluids, sweat, and saliva, and to analyze how these passed from
person to person through eating together, living in houses, having sexual relations,
and performing ritual exchanges (Carsten 2004:109).

Carsten propõe falar em relatedness – conectividade como tem sido traduzido – em


lugar de parentesco. Essa noção ganhou destaque como parte da retomada do parentesco na
década de 1990, ao buscar enfatizar que o parentesco é fundamentalmente social (ou cultural)
e para reavivar as críticas, tanto de Rodney Needham quanto de David Schneider ao uso do
parentesco como uma categoria universal. Para tanto, a proposta de um novo termo visou
57
O autor esclarece que cognatos e não cognatos é uma distinção sociológica de referência genealógica, ao passo
que consanguinidade e afinidade é uma distinção terminológica de conteúdo categorial.
58
Em kaivo, kai significa tanto ir, quanto funciona como um sufixo de futuro. -vo é sufixo pluralizador e -ma, de
negação. Assim, poderíamos traduzir literalmente kaivo como os que vão e kaivoma, os que não vão.
139

afastar a discussão de oposição entre biológico e social, dando lugar aos idiomas indígenas de
comportamento e conceituação das relações59.
No caso noke koĩ essa proposta encontra muito sentido, sobretudo diante dos conceitos
de kaivo e kaivoma.
Carsten (2000, 2004) define relatedness como os modos como as pessoas criam
similaridades e diferenças entre si e entre si e os outros. Assim, tendo em vista o exemplo
etnográfico dos malaios de Pulau Langkawi, Carsten propõe a casa como uma instância onde
essa conectividade é evidente. Em um capítulo intitulado Houses of Memory and Kinship,
Carsten (2004:35) sugere que o parentesco é feito nas casas através do compartilhamento
íntimo do espaço, da comida e da criação que se dá dentro do espaço doméstico.
Tal como o exemplo de Carsten, kaivo e kaivoma indicam o caráter processual da
construção do parentesco noke koĩ. Os corpos de parentes construídos na co-residência e
através da consubstancialidade e cooperação apontam para esse caráter construtivo do
parentesco “consanguíneo” noke koĩ. As visitas são outro bom exemplo. Visitas a kaivoma
distantes podem durar dias ou mesmo meses. Quando são a kaivoma, a visita, seguida de
refeição compartilhada, cria e/ou recria laços com seus outros. Ao se alimentarem juntos vão
se tornando menos estrangeiros, menos kaivoma. Como afirma McCallum (2015: 238) para os
huni kuin, “visitar significa conectar dois lugares e, portanto, dois corpos de parente”. A
comensalidade opera material e moralmente, investe os corpos de relacionalidade, socialidade
e parentesco. A estadia prolongada pode resultar em permanência e em até em casamentos.

59
Com relação a esse conceito Parkin (2013) argumenta que o que muitas vezes substitui biologia ou genealogia
é alguma noção de intervenção cosmológica espiritual ou de outro tipo, o que em si pode ser visto como uma
forma de transcendência. Para Parkin, rejeitar realidades biológicas ou conexões e distinções genealógicas não
significa que essas sociedade as ignore completamente. Ele afirma que certamente idéias indígenas não refletem
a visão da ciência ocidental, mas que elas são mais frequentemente reconhecíveis nestes termos do que às vezes
é dito. Com base nisso Parkin afirma ser uma ironia o fato de que o "novo parentesco" da virada schneideriana
expresse seu ceticismo quanto à existência de idéias biológicas em visões de mundo indígenas e entanto utiliza o
corpo e suas conexões com o parentesco em suas considerações. Shapiro (2008) é outro crítico desse novo
parentesco. Para ele também tudo se passa como que se a proposta de afastar o parentesco da biologia fosse uma
recusa a reconhecer no parentesco qualquer referência biológica. Para Patterson (2005), enfatizar o caráter não-
biológico do parentesco é uma estratégia de política pró-feminista que acaba por negar a evidência dos fatos
sociais relacionados à reprodução.
Ao meu ver, tanto Parkin, Patterson, quanto Shapiro ignoram um argumento fundamental (tanto de Carsten,
quanto de Strathern 1992), de que a relação biológica é apenas uma das várias maneiras de se tornar parente, isto
é, que nem todo parentesco é biologicamente referido e não que nenhum parentesco o seja. Não se trata de dizer
que ignoram o parentesco biologico/consanguineo, mas antes de afirmar que a conceituação indígena de relações
vai além do biológico e inclui outros critérios. Além do mais, o corpo como muitos indígenas o definem tal qual
o parentesco também não se reduz a uma categoria biológica, de modo que tanto para o parentesco (relatedness)
quanto para o idioma da corporalidade, não se trata de classifica-los como cultural ou biológico, mas antes de
afastar essa dicotomia em nome de uma definição indígena que não pode ser entendida pelas definições
ocidentais.
140

Portanto o par kaivo e kaivoma não trata de uma oposição entre consanguíneos e afins,
nem entre cognatos e não-cognatos, antes aponta para um gradiente de proximidade.
As relações de proximidade revelam a qualidade mutável do parentesco, que não
sendo dadas, são criadas e recriadas materialmente nos corpos.
A natureza constantemente emergente do parentesco é tomada como uma
característica central da vida cotidiana. De fato, a necessidade de fabricá-la motiva o
trabalho a ser feito a cada dia, e nisto os Huni Kuin não são diferentes dos outros
povos amazônicos. (McCallum 2015: 229).

Como em muitos outros grupos indígenas, a fabricação de um corpo noke koĩ começa
na barriga da mãe, com a união entre sangue e sêmen, e continua nos anos seguintes através
de outras técnicas de consubstancialidade, como comer por exemplo60. O que Vilaça (2005)
aponta para as sociedade ameríndias em geral aplica-se bem aos noke koĩ. Ela afirma que o
corpo tem um caráter instável e transformacional, não sendo dado no nascimento, mas
constantemente criado ao longo da vida, um processo sem fim que engloba o parentesco. De
modo que assim como ao nascer existem uma série de restrições para controlar as alterações
no corpo da criança para torná-lo divíduo do coletivo de parentes, a convivência e a
consubstancialidade ao longo da vida agem na construção de um corpo do mesmo tipo do de
seus parentes.
O kãpo é um bom exemplo de técnica (entre outras) de como se dá o aparentamento61.
As crianças noke koĩ começam a receber aplicações de kãpo nos primeiros anos de vida.
Nessa fase o kãpo tem uma clara função de modelar o corpo da criança, dar animo para as
atividades cotidianas e tirar o tikish – uma espécie de preguiça ou indisposição e desinteresse
pela vida, vista como anti-social. O tikish impede a pessoa de participar (como deve ser) da
vida social, das atividades de cooperação e, portanto, a isola do convívio e, no limite, pode
levar a pessoa à morte ou ao des-aparentamento, afinal como veremos a recusa aos trabalhos
coletivos é uma evitação de relação.
Ao longo da vida a quantidade de kãpo aplicado aumenta, e a intenção da aplicação
pode variar: além de dar ânimos para as atividades cotidianas; estimula a sorte na caça,
potencializa capacidades e previne doenças tornando o corpo forte e grosso (i.e., pesado e não
magro). Como uma estratégia de fixar aspectos desejáveis no corpo, a substância do kãpo

60
Para mais sobre a continuação dessa fabricação ver Vilaça (2005).
61
Isso não significa que o aparentamento seja a única intenção da aplicação. Tornar-se parente e produzir corpo
de parente me parece ser mais uma consequência que uma finalidade exclusiva do uso do kãpo. Em contexto de
contato, por exemplo, isso fica bem claro. Atuais aplicações de kãpo em yara e na cidade faz com essa definição
sofra refrações de sentido, que serão analisadas em um outro capítulo sobre corpo e saúde.
141

deve ser aplicada por alguém conhecido por essas características que se deseja adquirir62.
Uma espécie de contínuo é criada entre o corpo de quem aplica e o de quem recebe. Ao
transmitir aspectos de um corpo ao outro se transforma corpos distantes (ou potencialmente
distantes ou não-humanos ou em risco de sê-los) em corpos do mesmo tipo. Como afirma
Lima (2005):
o kampô está situado em um sistema maior, que vincula a eficácia da substância às
qualidades morais do seu aplicador. O elo que se estabelece entre aquele que aplica
a substância do kampô, o aplicador, e aquele que a recebe deve ser duradouro e o
desejável é que seja definitivo (: 23).

Assim que o kãpo é um dos casos em que através de uma substância se conecta
corpos, aproximando-os por qualidades em comum. Mais a frente veremos outras dessas
situações.
Fazer parentes para os noke koĩ é pois aproximar, em contraste com os kaivoma, que
são distanciados. Fazer parente é fazer gente do mesmo tipo. Kaivo e kaivoma portanto
figuram um contraste clássico na etnografia das terra baixas sul-americanas entre semelhantes
e diferentes, próximos e distantes. Kaivo e kaivoma são uma partição relacional, em que kaivo
têm entre si uma existência conjunta (conjoined existence; Sahlins 2011b: 230).
Quando, sobretudo em momentos de tensão e crítica moral ao comportamento de
algum parente, os noke koĩ dizem que todos os noke koĩ são parentes próximos (são de
alguma maneira todos consanguíneos, co-residentes potenciais e solidários) eles estão
apontando para pelo menos três coisas: a) para a dimensão relacional de kaivo; b) para esse
senso de existência conjunta que envolve assumir a responsabilidade pelos atos dos parentes,
tal como descreve Sahlins (2011b: 230-31) para a sorte na caça e na guerra ou para a saúde
dos corpos e c) para a primazia da mutualidade de ser63 sobre os segmentos de afiliação, isto
é, da importância maior do fato de parentes serem membros uns dos outros que participam
intrinsecamente na existência um do outro.
Schneider (1984) contrasta formas de “being” e “doing”, afirmando que as teorias de
parentesco se baseiam na relação biogenética representada por variações do símbolo de
sangue (consaguinidade) ou nascimento, com relações de being, como comportamento,

62
Essa ideia lógica de fixação de uma nova forma através da aplicação do kãpo, aparece também entre os
Kaxinawa como última intervenção sobre o corpo da criança no rito de passagem do nixpupima, em que a pessoa
que aplica as substâncias – o nixpu, o colírio e o kãpo –, passa para a criança suas qualidades de agência, sua
força e forma, seu conhecimento (Lagrou, 1998 , 2002, 2007).
63
“Mutuality of being” é uma expressão cunhada por Shalins (2011a) para definir relações de parentesco de:
“persons who are members of one another, who participate intrinsically in each other’s existence. ‘Mutuality of
being’ applies as well to the constitution of kinship by social construction as by procreation, even as it accounts
for ‘the mysterious effectiveness of relationality’ (Viveiros de Castro), how it is that relatives live each other’s
lives and die each other’s deaths”. (Sahlins 2011a: 2).
142

códigos de conduta e papéis, o doing é visto como secundário64. O autor afirma que os
estudos de parentesco em geral tendem a impor being sobre doing.
No entanto, tal como demonstra a literatura, o doing parece ser o foco da
relacionalidade entre muitos povos ameríndios (McCallum, 2001; Gow, 1997, Vilaça, 2002,
Bodenhorn, 2002, Viveiros de Castro, 2002 etc.). Os noke koĩ não fogem a generalidade.
Assim que fazer parente, aproximar, é mais que criar vínculo. Trata-se de criar corpos do
mesmo tipo.
Morar junto, habitar a casa moral do grupo doméstico, cria parentesco. A casa produz
parentesco produzindo corpos de parente através do trabalho e da consubstancialidade.
Podemos dizer que a casa modela corpos de parente e termina por coincidir com eles. Aqui o
dado é kaivoma, e o construído é o corpo kaivo. Todo kaivoma é potencialmente um kaivo.
Quem é consanguíneo e quem é afim diz menos sobre o parentesco noke koĩ do que
sobre a relação entre kaivo e kaivoma. O que é um consanguíneo e o que é um afim, ou quem
tem corpo kaivo é mais importante do que quem é consanguíneo ou quem é afim (cf. Viveiros
de Castro 2002b), afinal todos os noke koĩ são parentes próximos, são potencialmente todos
consanguíneos.

Casa e mobilidade: grupos domésticos de relatedness

O agrupamento social formal noke koĩ é o grupo doméstico. Em geral, o grupo


doméstico é mais duradouro que as próprias aldeias, que vivem sendo feitas e refeitas.
Nos últimos deslocamentos nota-se que a partida de uma casa tem levado o grupo
doméstico consigo.

64
“The genealogical grid of consanguineal relations is regarded as a universal statement of relations of
substance, more generally, of being, of inherent quality, while performance, forms of doing, various codes for
conduct, different roles, are seen as variables, secondary, attached as different possible meanings to the
fundamental set of signs which the genealogical grid, as relations of beings or substance, represent” (p.72).
143

Gráfico 6 - Grupo doméstico que deslocou da ald. Bananeira para TI Rio Gregório

Em uma escala de fluidez e estabilidade, a aldeia e o grupo doméstico se encontram


cada um em uma ponta, sendo que este último, ainda que com um certo grau de volatilidade,
ocupa o lugar de maior estabilidade comparada à fluidez da formação das aldeias.
A aldeia Masheya é um bom exemplo disso. Em 2009, Masheya contava com 6 casas
e 42 moradores. Em 2013, eram 48 moradores em 12 casas. Em 2015, 25 pessoas e 8 casas
ocupadas.
A mobilidade é parte do processo do parentesco noke koĩ, tem consequências sobre ele
e o transforma, ao mesmo tempo que é um efeito dele. Os deslocamentos potencializam
transformações nas relações entre as pessoas, a distância e a proximidade aparentam e
desaparentam corpos. Como vimos, viver junto (comer, abster-se e trabalhar) numa mesma
casa (nos dois sentidos de construção e casa como segmento social) é o que constrói o corpo
de parente. Assim, se por um lado os deslocamentos desfazem parentesco enfraquecendo
laços de comensalidade e cooperação com os que ficam para trás, por outro, re-estabelecem
parentesco, indo viver perto de outros, construindo casas e corpos simultaneamente. Ao
mesmo tempo, a mobilidade resulta ser um efeito das relações de parentesco; afinal é preciso
visitar seus kaivoma para que não se tornem total estranhos. Isso implica que por mais que os
grupos domésticos sejam relativamente mais estáveis que as aldeias, em termos de
configuração, a sua própria estabilidade é muito relativa, é na verdade instável e imprevisível.
As relações de co-residência, cooperação e consubstancialidade, criam o espaço, criam
os parentes, criam corpos e casas. A deterioração dessas relações distancia pessoas,
transforma parentes em outros e aldeias em floresta.
Nesse panorama, a mobilidade não trata de transpor grupos a outros espaços, como
seria no caso de um nomadismo, mas antes em favorecer a manutenção das relações de
144

parentesco, o controle da fluidez desses des-aparentamentos potenciais, recombinando


sazonalmente composições relacionais de parentes, transformando kaivoma novamente em
kaivo.
O contexto do PNHR cria uma situação atual muito interessante e desafiadora para
essa conceituação noke koĩ. As casas-construção são fixas no solo e no CPF de uma
proprietária. No entanto, deixar essas casas, desconectar-se delas, para as pessoas comuns
noke koĩ não tem se mostrado um problema. Para algumas lideranças, porém, é incômodo,
representa um descomprometimento dos parentes com o acordo feito antes da entrega das
casas.
Nas vésperas da entrega houve reuniões em todas as aldeias. Nessas reuniões as
lideranças davam diretrizes sobre a limpeza das casas e da aldeia para o dia da entrega e sobre
a conduta que cada um deveria ter com sua casa depois que tivesse em mãos a chave65.
Lembro de assistir a uma dessas reuniões e várias vezes foi enfatizado que caso alguém
quisesse deixar a aldeia, deveria entregar a chave da casa para o cacique, que a casa era um
patrimônio da aldeia. Passados poucos meses depois da entrega, algumas famílias foram para
o Gregório e entregaram a casa ao cacique. Algumas lideranças discordaram desse
movimento, afirmando que essas famílias não valorizavam o benefício dado pelo governo e
algumas regras autoritárias corriam à boca miúda. Várias pessoas me contaram que ameaças
de multa e proibição de voltar foram deferidas por lideranças.
Como se sabe, atualmente o destino das aldeias está ligado à liderança. Como vimos, a
aldeia surge com a liderança e depende dela para conter as forças centrípetas da mobilidade.
Espera-se da liderança habilidade em manejar a rede de relações sociais das aldeias
mostrando capacidades de iniciativa, administração de atividades coletivas, persuasão e
mediação. Quando digo “espera-se” me refiro àqueles que as instituíram (leia-se órgãos
indigenistas de todo tipo) e a reprodução nos discursos na aldeia. Fora as lideranças e os
órgãos indigenistas, os demais esperam apenas generosidade com os recursos (cargos e
benefícios) e que a forma sovina e autoritária típica da representação política yara seja
evitada. O que se tem, no entanto e portanto, é uma tentativa infértil de conter a mobilidade e
a fluidez populacional das aldeias, porque se as aldeias agora são fixas, sua população é
móvel66.

65
No último capítulo trataremos mais detidamente sobre o conceito de liderança como mediador de outros
discurso, como o das agências do estado.
66
De uma maneira geral o conceito de société à maison tem sido instrumentalizado para descrever: a) sociedades
em que a distinção entre casa-pessoa moral e parentesco não é muito clara ou é ambígua (Hugh Jones 1993, por
exemplo); b) sociedades em que o parentesco e as relações políticas são organizados em torno de um
145

A fama regional dos noke koĩ de serem um povo que não pára quieto (cf. Lima 1994)
se baseia nos sucessivos deslocamentos e viagens ao longo da história.
O tamanho máximo e mínimo de uma aldeia é frequentemente acionado como um
determinante dessas mobilidades67. Para a TI Campinas é difícil precisar um tamanho máximo
ou mínimo de um assentamento. Lá o tamanho não parece ser determinante na mobilidade,
pelo menos não como fator isolado. No entanto é comum ouvir de um e de outro que
mudaram para o outro lado da estrada, ou mais para dentro (mais afastado da BR), porque não
gosta de viver entre muita gente. Um exemplo disso é o de um senhor já de idade avançada
que mudou-se recentemente para o outro lado da estrada, onde viviam antes do PNHR. Ele,
sua mulher e os netos, que moram com eles, deixaram a casa do PNHR para a família do filho
da mulher e construíram outra com madeiras velhas das casas antigas do outro lado da BR.
Mesmo sem energia elétrica do outro lado, ele prefere morar lá, afastado dos demais e
próximo a um igapó. Alguns dizem que ele sempre morou assim, do lado oposto à aldeia e
justificam isso por ele ser rezador. Ele justifica que não sabe morar perto de muita gente, que
dá fofoca, confusão. De todo modo é notável que tenha escolhido construir uma casa ao
moldes das casas antigas e deixar a casa do PNHR. Uma anedota engraçada me foi contada
por ele quando pintava a casa para dar um aspecto melhor às madeiras velhas. Ele me disse
que uma senhora o criticou por deixar a casa do PNHR e ir morar numa casa feia de madeira
velha, que mesmo pintada jamais seria tão boa e bonita quanto as do governo. A parte

pertencimento a moradias em lugar de grupos de descendência ou linhagem (Turner 1984); c) grupos corporados
(corporate group) em que as pessoas podem pertencer a diferentes grupos de descendência simultaneamente sem
que esses grupos tenham muita importância no cotidiano, sendo a posse de bens e prerrogativas o definidor do
caráter de pessoa moral do grupo (Lea 1993) e d) grupos com tendências a papéis igualitários (Waterson 1995;
Rivière 1995).
Sobre essa última abordagem e o contexto de transformação e indeterminação dos noke koĩ, a idéia de hierarquia
do conceito de Lévi-Strauss aponta para um aspecto latente da casa noke koĩ. Como já falamos muito
brevemente, mas veremos melhor desenvolvido em capítulos seguintes, as lideranças noke koĩ têm recentemente
assumido um papel hierárquico, o que não significa que seja uma tendência apenas atual. Nem a tendência
centrípeta nem a centrifuga são tão assim apenas recentes, o que vemos como novo no entanto são as motivações
a essas tendências e os argumentos agenciados. A instrumentalização da indeterminação da linhagem clânica,
por exemplo, permite assumir definições para legitimar posturas de autoridade. González-Ruibal (2006) afirma
que, apesar de Lévi-Strauss não indicar claramente que as sociedades de casas devem ser hierárquicas, a ênfase
da definição em acúmulos de riquezas, status, propriedade e poder, apontam para uma organização social de
ordem hierárquica, ou um sistema igualitário que está sendo subvertida.
“House societies, according to Lévi-Strauss (1987: 152, 187) resort to the house as a social mechanism to
subvert kinship. That is especially obvious in those communities where centralized, complex polities (states), do
not exist, but where strong inequalities are being developed. Houses, starting from a language of kinship, with its
social servitudes, provide an opportunity for transforming it and acquiring higher rates of control.” (:145).
E nesse sentido eu arriscaria dizer que no momento o uso vago do conceito de sociedade de casa baseada na
hierarquia e na herança de títulos (de liderança, sobretudo) pode ser identificada como uma potencialidade entre
os noke koĩ.
67
Clastres, P. (2003 [1963], 2004 [1977]) chama atenção para o fator político da necessidade da dispersão
morfológica dos grupos locais, o que só discutiremos mais adiante em outro capítulo.
146

engraçada está na resposta espirituosa que ele deu a mulher, dizendo que feia era ela, que a
casa, pintada, dava para dormir e que a senhora mesmo pintada não dava para dormir com ela.
Todas as aldeias, com exceção de Masheya, contam com grupos domésticos dos dois
lados da estrada. Suspeito que isso tenha a ver com o tamanho das aglomerações de grupos
domésticos. Algumas dessas dissidências são tão notáveis que foram incluídas no projeto do
PNHR. Varinawa e Samaúma já cresceram tanto do outro lado da estrada que alguns se
referem a Varinawa (ainda usando o nome antigo) como Martins 1 e Martins 2 e Samaúma
como Samaúma 1 e Samaúma 2.
Mas a mobilidade não se restringe a aldeias, apesar de não ir muito além das duas TIs
demarcadas. Os noke koĩ se mantêm distantes de outros grupos étnicos e da cidade, mas em
compensação os deslocamentos entre as suas duas TI é intenso.
Quando Lima fez suas primeiras pesquisas entre os noke koĩ, a tendência da
mobilidade era do Gregório a Campinas. De 1994 a 1998, entre mudanças entre TIs e novos
nascidos, a população noke koĩ da TI Campinas aumentou 70% e a do Gregório caiu quase
40%.
POPULAÇÃO POR TI
ANO CAMPINAS/ RIO FONTE
KATUKINA GREGÓRIO
1977 100 77 FUNAI 1982, LIMA 1994,2000a, MARTINS 2006
1982 77 110 FUNAI 1982, LIMA 1994,2000a, MARTINS 2006
1993 130 160 LIMA 1994, MARTINS 2006
1994 130 160 LIMA 2000a
1998 220 98 LIMA 2000a, MARTINS 2006
2001 271 109 LIMA 2001a
530 70 LIMA 2005
2005
440 60 LIMA 2008
513 57 MARTINS 2006
2006
404 SEMA 2006
2008 550 GÓES 2009
540 PESSOA 2010
2010 613 CENSO 2010
594 FUNASA 2010, apud ISA
531 FUNAI 2012a
2012
674 77 GOVERNO DO ACRE
2013 765 46 MS/SIASI 2013
2015 631 DSEI/ ARJ/ SESAI 2015
Tabela 1 – População de cada TI por ano de 1977 a 2015
147

Em 2013 quando voltei a TI Campinas, o movimento era o contrário. Entre 2013 e


2015, 80 pessoas se mudaram da TI Campinas para a TI Gregório e atualmente outras famílias
se preparam para ir também.
Mesmo em situações de redução territorial, um dos eixos da organização social dos
noke koĩ parece ser a flexão entre deslocamentos (curtos e distantes) e a fixação temporária. É
isso que vemos atualizado nas missões, nos aldeamentos pós-demarcações e que segue no
PNHR. Mesmo diante da imposição de certas formas territoriais, a organização social noke
koĩ parece driblar o controle yara e manter a mobilidade e a construção de redes de
parentesco e aliança em um processo de complementaridade.
Esse aspecto discutiremos mais a fundo nos capítulos seguintes. Para o momento o
que importa é apenas mostrar que o espaço noke koĩ é construído pelas relações que o criam
simultaneamente ao criar parentes, corpos e casas tão instáveis e imprevisíveis como elas
mesmas. Tal como para os huni kuin, “há um senso de fugacidade na permanência das
pessoas em um espaço” (McCallum, 2015: 233). Os espaços, como as relações, são
transitórios.

Sociedade de casa ou de parentesco?

Como vimos, na Amazônia encontram-se variações do modelo dravidiano com aliança


simétrica e terminologia de seções, entretanto, os noke koĩ são um caso atípico. Estes
apresentam um conjunto de peculiaridades mesmo dentro do conjunto Pano: parentesco com
segmento de afiliação indeterminada, uma regra de nominação que foge ao padrão pano-
australiano, uma variação terminológica do dravidianato amazônico com traço iroquês e
indeterminação da regra matrimonial.
Não se trata nem de dizer que são cognatos, a questão é mesmo indeterminada e
polivalente. Quanto à regra matrimonial, kaivo e kaivoma são também guias que orientam as
possibilidades de casamento. Sobre essa dimensão, Lima (1994) afirma que em lugar da
linhagem e da regra de matrimônio, o que guia a posição de uma pessoa no universo social, e
a legitimidade de um casamento, é a distinção entre kaivo e kaivoma.
Como vimos, assim como para a afiliação, há divergências sobre a regra matrimonial.
Alguns dizem que antigamente eram exogâmicos e que hoje ninguém se importa, outros
dizem que não há regra. Para Lima (1994: 46), os clãs parecem não interferir na troca
matrimonial e os resultados que eles produziriam se o fizessem seriam equivalentes aos
148

produzidos pelo par kaivo/kaivoma. São os termos relacionais, kaivo e kaivoma, que são a
referência noke koĩ para as regras de casamento.
Lima chama atenção ainda para um potencial cognático da idéia de que todos noke koĩ
são misturados em termos de clãs. A exogamia se não é clânica, é com kaivoma, o que acaba
resultando no mesmo se combinado com a norma prescritiva de primo cruzado. Tem-se,
portanto, um encontro entre exogamia com kaivoma e tendência à regra de primos cruzados
que parece ao menos em termos ideais garantir a diversidade das unidades de auto-
denominação internas.

Gráfico 7 - Combinação de regras de primo cruzado e exogamia

A combinação de regras de primo cruzado e exogamia garante a diversidade das unidades internas.

Ainda que com a afiliação indeterminada, a ancestralidade é uma referência. De um


lado tem-se uma indicação de afiliação uterina e de outro de potencial cognático. Além da
indeterminação, a mistura de clã (unidades internas) na construção do corpo da criança na
barriga da mãe, também aponta para esse potencial cognático. Além do mais, ainda que
raramente seja admitido, dizem que a criança pode ter mais de um genitor.
Vejamos um exemplo dado por Lima (1994). Numa situação hipotética de afiliação
materna,
se x tem uma mãe satanawa e um pai kamanawa e um segundo pai waninawa, ele
próprio será satanawa, mas reconhecerá como kaivo pessoas desses três clãs.
Acrescente-se a isto que ambos os genitores masculinos, devido à instabilidade dos
casamentos entre os Katukina, podem ainda ter filhos com mulheres de outros clãs,
nesse caso o espectro de pessoas que são reconhecidas como kaivo amplia-se
radicalmente e, no limite, engloba a todos os clãs que compõem o grupo local. (:47).

Em consequência, se entre clãs pode-se atualizar a exogamia como preferência, entre


aldeias se pratica mais comumente a endogamia. Isso talvez se justifique pelo fato de que a
regra de exogamia entre unidades internas fosse uma prática comum no passado que hoje é
relativizada pelos jovens apesar de afirmada pelos mais velhos. Além disso, como vimos,
149

numa certa perspectiva todo mundo é parente, tanto entre clãs quanto entre TIs, mas num
outro nível os parentes kaivo são em geral aqueles do grupo local e no limite os da Casa, do
grupo doméstico. A exogamia senão se define por clã, se define pela Casa.
Não se trata porém de integrar noções supostamente contraditórias, normalmente
definidas na teoria clássica do parentesco como tipos sociais diferentes. Mas é preciso levar
em conta que a casa noke koĩ não congrega definições opostas por ser indeterminada, o que
ela congrega são tipos prescritivos excludentes sem fórmula fixa todavia. Idealmente, talvez
os noke koĩ sejam um grupo de segmentos de afiliação claros, unifilial materno e uxorilocal.
No entanto, atualmente a transformação desse ideal ainda se encontra em curso e sem que
ainda tenha se estabilizado uma ou outra prescrição ou preferência.
Viveiros de Castro (2002a) afirma que sobre termos e relações se pode imaginar
quatro formas de combinação: 1) subordinação das relações aos termos, sociedades que
enfatizam a descendência; 2) termos e relações em equilíbrio, sociedade de estruturas
elementares que enfatizam tanto a descendência quanto a aliança e 3) subordinação dos
termos às relações, que segundo Viveiros de Castro seria o caso das sociedades
indiferenciadas da Amazônia, baseadas apenas na aliança. Sobre essa última, Viveiros de
Castro afirma que a sociedade de casas de Lévi-Strauss seria uma variação, onde termos e
relações são indiscerníveis: “a casa é a ‘objetivação de uma relação’” (Lévi-Strauss apud
Viveiros de Castro 2002a: 99). Os noke koĩ parecem ser um caso entre a terceira combinação
e sua variante: nem unilinear (como nas estruturas elementares) nem de cognatismo
sobredeterminado (como nas sociedades de casa), os noke koĩ não podem ser definidos
estritamente nem como cognatos nem como baseados em um só segmento de afiliação.

Relatedness e a Casa-corpo noke koĩ

Nesse capítulo, tentei demonstrar como todo um universo conceitual noke koĩ ao redor
da casa pode prover esclarecimentos acerca de pelo menos 4 aspectos importantes que vão
permear vários dos capítulos dessa tese: as conectividades (relatedness), os corpos, o espaço
físico e a mobilidade.
Existem várias análises sobre a morfologia das casas ameríndias e suas co-relações
com a organização social. Hugh Jones (1993), por exemplo, apresenta duas maneiras distintas
e complementares da noção de sociedade de casa: uma com ênfase nos laços cognáticos e
outra com ênfase na afiliação, e cada uma corresponde a uma projeção da casa como estrutura
150

física. Essas correspondências entre as construções e a organização social aparecem também


em trabalhos sobre a Guiana e os Jê (Rivière 1984, Lea 1993). No caso noke koĩ, sabe-se
muito pouco sobre as malocas e seu sistema, de modo que a maior parte da informação
etnográfica de que dispomos fala de casas de modelos impostos pelo contato com o yara. No
entanto, tudo indica que o fundamento noke koĩ mais importante quanto às construções refere-
se à mobilidade, à sua possibilidade de ser abandonada ou desmanchada. Como vimos, os
deslocamentos estão diretamente relacionados às concepções noke koĩ de conectividade e são,
aliás, a razão mesma de se aceitar esse termo (relatedness) como melhor definidor das
relações de aparentamento que o clássico termo parentesco. Isso porque a tradicional (e já
muito criticada) distinção entre natural e cultural nos estudos de parentesco tende a
obscurecer as definições nativas, isto é, sobretudo porque o contexto cosmológico de
mobilidade em que vivem os noke koĩ exige ampliar o conceito clássico de parentesco, já que,
como vimos, as relações de aparentamento (e seu contrário) nesse contexto são
tipologicamente tão peculiares que os pares consanguíneo e afim não dão conta de elucidar as
complexidades e dinâmicas dessas relações de conectividade.
Como vimos, é no espaço das casas que se constrói corpos de parente e nesse sentido a
mobilidade contribui com a manutenção dessas relações entre todos os noke koĩ.
É no espaço da casa e na sua criação e re-criação, nos movimentos de deslocamento,
que se consolida o processo de aparentamento; através da co-residência, da cooperação em
atividades cotidianas e no compartilhamento de substâncias. O espaço e as relações são
construídos simultaneamente e estão imbricados de uma maneira que as consequências em um
ecoam no outro. Em ambos os cuidados de manutenção são essenciais para a continuidade, de
uma maneira tal que a deterioração de ambos é sempre latente, o risco de des-parentamento e
de que tudo volte a ser floresta é sempre eminente. Dizer portanto que o espaço é criado a
partir de relações genealógicas ou que estruturas genealógicas são atualizações dessas
construções não cabe ao caso noke koĩ (cf. Hamberger 2005). Os espaços, as casas, não
prevalecem nem são secundários, antes o que se tem são conectividades que dependem da
presença e da ação das pessoas, ao mesmo tempo que co-habitar amplia as conectividades
através do idioma residencial.
O espaço, incluindo as casas, a organização social, incluindo os corpos, têm
implicações mútuas. Fazem parte de um mesmo universo conceitual, tal como afirmou
Carsten (1995). Se a casa é sobre as configurações de conectividade, não é menos sobre
substância e atividades produtivas, pelo contrário é tanto quanto é sobre espaço, construções e
corpos.
151

A casa noke koĩ apesar de se constituir na construção física, vai além dela e não só
porque muitas vezes os deslocamentos levam consigo todo o grupo doméstico, mas pelo ideal
de pertencimento que faz com que, mesmo morando em construções distintas, todos de um
grupo doméstico se sintam parte de um grupo de parentes do mesmo tipo, com corpos do
mesmo tipo. A casa noke koĩ prescinde do parentesco exclusivamente definido pela
consanguinidade, ela constrói suas conectividades (sua relatedness) através do corpo
transformado pelo trabalho coletivo e pelo compartilhamento de substâncias.
Se na Melanésia as casas se aproximam do conceito de Lévi-Strauss pela prevalência
da aliança sobre a consanguinidade, nos noke koĩ esse idioma é substituído pelo da
corporalidade, que longe de ser um dado biológico é um construto híbrido de social e
substância sócio-biológica.
153

CAPÍTULO 2 – MOBILIDADE, SUBSISTÊNCIA E TERRITÓRIO

Como vimos no capítulo anterior, a mobilidade é importante na manutenção do


parentesco. A boa distância (que às vezes é a motivação para um deslocamento) e as visitas
são fundamentais para manter o grupo de parentes e para evitar que se perca o vínculo. Nesse
contexto de consubstancialidade, o alimento e o movimento se conectam de duas formas: pela
comensalidade e pelas formas de subsistência. Pela comensalidade, vimos que as visitas em
busca de parentes são sempre marcadas por uma refeição compartilhada o que faz com que ao
se alimentarem juntos laços de consubstancialidade sejam reforçados, conecta-se, pois, corpos
de parentes. Quanto à subsistência, um dos temas deste capítulo, o movimento se relaciona
tanto aos roçados – técnicas e socialidades envolvidas – quanto à caça e à coleta. Mais que
uma estratégia de subsistência, como veremos a seguir, a mobilidade é parte da relação com
os roçados e com as atividades de coleta; através do trabalho coletivo e das relações com os
cultivares e também na relação com a mata e com as plantas, cultivadas e não cultivadas.
Antes de falarmos dessas relações e dos padrões de mobilidade e subsistência dos
noke koĩ, proponho encararmos algumas de suas definições sobre território, seus recursos e
descontinuidades. Para tanto vamos começar abordando dois tipos de descontinuidades
importantes para as concepções noke koĩ que irão iluminar a questão da mobilidade no que
tange o território, a subsistência e a territorialidade dos noke koĩ. Trata-se de
descontinuidades de espaço e entre os seres. Duas categorias noke koĩ nos servirão de guia
para analisar essas descontinuidades, são elas ni’i e yoina.

Categorias de discrepância ontológica

Ni'i e yoina são categorias noke koĩ usadas para se referir à descontinuidade de espaço
e de seres. A grosso modo essas categorias poderiam ser traduzidas respectivamente como
floresta e animais. No entanto, como esperado, essas categorias não se encaixam nas nossas
classificações em táxons como os reinos, no caso plantae e animalia, que agrupam seres com
base em semelhanças morfológicas, estruturais e genéticas.
Yoina é uma categoria usada para designar animais genericamente, mas não todos os
animais. Yoina é animal, mas não é animalia. A intercessão entre as definições de yoina e
animalia não são suficientes para nos ajudar a entender o que é yoina, muito menos o que faz
154

de certo animal um yoina. O desencontro desses dois conjuntos aponta para a presença de
critérios classificatórios díspares. O que a etnografia nos mostra no entanto é que mais
díspares que esses critérios são as ontologias a que pertencem. Como veremos, yoina se
define num complexo mosaico de relações e ni’i, enquanto floresta, implica em uma densa
rede de lugares perpassada por essas relações.
Parte do problema das continuidades e descontinuidades entre natureza e cultura, a
ausência de termos que coincidam com os reinos animal e vegetal se coloca como um
inconveniente para a análise dos sistemas de classificação nativo. Proponho uma breve
digressão sobre os estudos de classificação apenas para expor de maneira superficial o
panorama do debate da classificação de como lidar com esse inconveniente. Em seguida
veremos como os critérios de classificações podem nos ajudar a entender as descontinuidades
noke koĩ de espaço e de seres.

Estudos de classificação

Os primeiros estudos de classificação nativa remetem a Durkheim e Mauss (2005),


quando descrevem o totemismo australiano como a forma mais simples de classificação da
natureza, uma primeira filosofia da natureza, em que as taxonomias aparecem como
construções sociais de sistemas organizados hierarquicamente. Já em meados de 1950, H.
Conklin (1974) funda a antropologia cognitiva com uma análise da classificação e da
utilização da flora entre os Hanunoo, um grupo de língua malaio-polinésia das Filipinas.
Partindo de análises linguísticas, o autor propõe que as taxonomias nativas são sistemas
semânticos e define uma tipologia de análise das nomenclaturas baseada em lexemas68. Os
lexemas e a organização hierárquica dos táxons é uma herança da obra de Conklin que orienta
obras posteriores como a de Berlin, Breedlov e Raven (1973).
Em um texto em conjunto, esses autores (1974) partem da descrição de princípios
cognitivos e análises comparativas em busca de princípios gerais de classificação dos sistemas
chamados por eles de folk. De acordo com os autores em todas as línguas há grupos de
organismos organizados por níveis, os táxons, que são organizados hierarquicamente nas
seguintes categorias: unique beginner, life form, generic, specific e varietal.

68
Lexema é a unidade mínima do sistema semântico que reúne todas as flexões de uma palavra.
155

Ilustração 18 - Categorias taxonômicas e níveis hierárquicos

Esquema de Berlin et al. de categorias taxonômicas universais e seus níveis hierárquicos de taxonomias folk
(Berlin et al. 1973:125)

Esse modelo universalista apresentou parâmetros que se mostraram eficientes para


sistemas baseados em critérios morfológicos. Sobretudo os argumentos de que é comum aos
sistemas folk que o unique beginner não seja nomeado e que o nível generic seja o mais
numeroso, ocupando uma posição elementar no sistema taxonômico69. Apesar de grande
influência nas abordagens cognitivistas, esse modelo se mostrou limitado para sistemas com
outros critérios de classificação como o de utilização ou de relações com outras espécies. Os
dois maiores problemas dessa análise, no entanto, me parecem ser a facilidade com que se
assume o conceito de natureza como dado para se falar dos modos nativos (folk) de
classificação e a idéia de que há um princípio hierárquico universal.
Em um artigo de 1982, Hunn, aluno de Berlin, define dois modelos de classificação:
um baseado em Berlin et al (modelo taxonômico hierárquico) composto por níveis
hierárquicos e outro elaborado por ele, Hunn, que se baseia na dicotomia entre um núcleo
natural e uma periferia artificial, em que o centro do sistema de classificação está ocupado por
categorias indutivas, dadas pela natureza por descontinuidades genéticas presentes na
morfologia e a periferia por categorias dedutivas, isto é, culturalmente construídas (1982:
844).
É notável que esse artigo, que enfatiza a dimensão pragmática das taxonomias nativas,
tenha sido escrito depois de O pensamento selvagem, em que Lévi-Strauss, contra os
argumentos de necessidade adaptativa do conhecimento, deixa claro a prevalência das

69
Para uma revisão completa das generalizações de Berlin ver Tournon (2012a) sobre as classificações vegetais
Shipibo-Conibo.
156

exigências intelectuais sobre a necessidades biológicas. Não por acaso, Hunn começa o artigo
comentando que o foco no intelectualismo desinteressado dos nativos nos fez tomar por certo
(take for granted) a sabedoria prática deles. "Pragmatism is no sin" (1982: 831). Ele defende
que o conhecimento pode ser definido como útil sem se reduzir apenas a questões
alimentares. A proposta de Hunn pode ser resumida assim como uma tentativa de redefinir a
idéia de utilidade insistindo que as classificações não são apenas cognitivas.
Em um texto do Handbook of South American Indians, Lévi-Strauss, acerca de plantas
úteis, demonstra que grupos de ambientes vegetais similares fazem usos muito diferentes do
ambiente (1952). Argumentando que isso se deve a razões puramente culturais, Lévi-Strauss
apresenta diferentes usos de certas plantas para demonstrar, entre outras coisas, as limitações
de determinismo da ordem da natureza sobre a cultura.
Ainda sobre o caráter útil ou material nas classificações, as análises de Balée (1989)
das categorias ka'apor propõem a partir de uma crítica à antropologia cognitivista, dois
sistemas de classificação: um de princípios morfológicos e outro utilitário.
A análise do autor se apóia nas categorias universais de Berlin (lexemas) e usa
métodos linguísticos numa clara abordagem cognitivista, mas logo de início faz a ressalva
com relação ao fato que a antropologia cognitivista toma os seres como domínios semânticos,
o que a impede de percebê-los como em constante interação material com a sociedade.
Segundo Balée o sistema de critérios morfológicos ordena o universo vegetal com base em
descontinuidades morfológicas, enquanto o sistema de critérios utilitários funciona como um
guia prático (1989: 11).
Poderíamos dizer que uma possível descrição superficial das áreas de extensão desse
debate da classificação nativa na antropologia toma a forma de duas abordagens: uma,
instituída por Lévi-Strauss (1970 e 1975), que, negando a redução do pensamento nativo a
interesses utilitaristas e afetivos, demonstrou que o ordenamento do mundo nessas sociedade
opera por uma lógica do sensível; e outra de cunho cognitivista, fundada por Conklin (1974),
dedicada às taxonomias nativas em busca de princípios cognitivos universais.
Abordagens decorrentes de ambas as vertentes, no entanto, problematizam o uso de
categorias do mundo natural como pontos de partida absolutos; uns pela transposição das
categorias natureza e cultura às outras sociedades e outros pelo uso espontâneo de categorias
específicas como animal e vegetal como categorias a priori.
Tomando Descola, Lima e Viveiros de Castro como principais expoentes das
abordagens decorrentes do foco na lógica do sensível, podemos resumir o questionamento
dessa vertente de origem levistraussiana a entendimentos mais amplos da relação dos nativos
157

com os conceitos de natureza e cultura, extrapolando as questões meramente da classificação.


Ainda que sob premissas distintas, tanto o animismo quanto o perspectivismo ameríndio
afirmam que sendo as plantas e os animais dotados de alma, são considerados sujeitos com
agências e intencionalidades e que portanto compartilham a condição de humanidade. Essa
coparticipação na humanidade é o que impede o entendimento das ontologias ameríndias nos
termos expostos acima e, uma vez que não dão conta da realidade etnográfica, nos obriga a
suspender a validade etnológica desses conceitos.
Sem entrar na complexidade da questão, sobre a qual existe uma vasta literatura
contemporânea, pode-se dizer a grosso modo que a cisão dessa crítica, no entanto, em uma
crítica perspectivista e outra animista se dá, pelo menos inicialmente, justamente na definição
do conceito de natureza. Enquanto no animismo uma postura relativista afirma que a
diferença é de grau e não de natureza e que, portanto, natureza e cultura não são uma oposição
binária no pensamento indígena, mas antes um contínuo, aferido pela diversidade cultural70, o
perspectivismo radicaliza a ideia de natureza, situando-a no pensamento ameríndio como um
conceito múltiplo, isto é, propõe que em lugar de uma diversidade cultural o que se tem é uma
cultura comum a homens, animais e plantas e várias naturezas71. Apesar dessa distinção
conceitual, ambas abordagens apontam para a relevância das dimensões cosmológicas para o
entendimento das classificações nativas (cf. Viveiros de Castro 2002d e Descola & Pálsson
1996), e nesse sentido concordam serem problemáticas as análises das classificações, como as
análises cognitivistas, que partiriam da dicotomia entre natureza e cultura, tomando-as como
extensivas às sociedades nativas ainda que as realidade etnográficas demonstrem o contrário.
O fato é que a ausência de um termo geral para animal e vegetal, que afinal foi o que
nos trouxe a essa digressão, parece ter, pelo menos, duas proposições distintas. Autores que
abordam as classificações dentro de um quadro cosmológico mais amplo propõem que a
percepção de uma ausência de categoria inclusiva maior se deve justamente ao equívoco
gerado pelo uso da dicotomia natureza e cultura como fundamento analítico, que, entendendo
que a natureza como um fundo comum a todas as sociedades, espera encontrar as mesmas
categorias aqui e acolá. Assim, a inexistência de um conceito correspondente a animal
apontaria para um cosmologia onde a natureza não corresponde à animalidade. Autores
70
Tendo em vista que tratam-se de conceitos construídos ao longo de várias obras, é preciso ter em mente que
esse simplificação que proponho refere-se pontuamente a definições dadas pelas obras de Descola de 1992 e
1996.
71
É importante destacar que essa simplicaficação dessas correntes não dá conta da complexidade do conceito de
natureza que cada uma delas atingiu ao longo dos anos. O animismo, tal como proposto por Descola em seus
textos de 1992 e 1996, por exemplo, sofre grandes alterações depois da incorporação de ideias do perspectivismo
e da descontinuidade proposta pelo perspectivismo proposto por Tânia Stolze Lima (1996) e Eduardo Viveiros
de Castro (1996).
158

cognitivistas por sua vez afirmam ser comum entre as classificações nativas que as categorias
de maior inclusão sejam reconhecidas e operantes apesar de não nomeadas (Berlin et al 1973).
E por isso não haveria correspondência isomórfica entre nomenclatura e classificação, isto é,
entre nomes dados a classes de plantas e animais e relações cognitivas entre classes de plantas
e animais (Berlin et al.1973: 216). A esses táxons não nomeados mas reconhecidos, os autores
chamam de covert categories. Uma evidência dessas categorias encobertas seria a existência
de termos morfológicos e de pluralizadores distintos para vegetais e animais.

Classificações noke koĩ – os recursos do território

Entre os noke koĩ, plantas e animais contam com vocabulários morfológicos distintos
e específicos, e com poucas categorias coincidentes, mas essa especificidade conta com um
terceiro elemento desconcertante: entre os animais, não há um vocabulário morfológico
exclusivo para bicho e outro para gente. E além disso os pronomes são usados apenas para
humanos e animais. Quanto aos coletivizadores, não há um pluralizador exclusivo para
plantas. O plural para espécies e produtos vegetais, como para qualquer substantivo, se dá por
quantificação de dois a cinco72, sendo que para mais de cinco, usa-se o termo oti, muito. A
exceção no entanto é o caso dos substantivos de caráter humano, para os quais acima de dois
se usa o afixo clítico -vo. Aguiar (1994:128) afirma: “questão interessante sobre - βu é que ele
se refere somente a humanos, e quando se tenta usá-lo para fazer menção a animais, por
exemplo, ou o sentido muda, ou a oração se torna sem sentido ou agramatical”.
Seguindo portanto esses parâmetros de vocábulos e pluralizantes distintos para
humanos e animais, a etnografia nos obrigaria a dizer que os noke koĩ contam com uma
distinção entre plantas e animais que não se vê operante entre humanos e não-humanos.
Quero dizer, o pensamento noke koĩ contaria com uma distinção planta/animal operante, mas
não com uma divisão humano/não humano tão evidente. A conclusão que tiramos disso é que
se não há uma separação categórica entre humanos e animais (pelo menos não da morfologia),
e não existe tampouco um conceito correspondente a animal não-humano, a natureza não
corresponde à animalidade e, a humanidade estendida aos não-humanos transforma a
dicotomia natureza-cultura numa premissa problemática para entender o mundo que os noke
koĩ ocupam.

72
Dois, três, quatro e cinco são, respectivamente: rave (ou neska vekoĩ, usado para humanos); neska vekoĩ westi
(2+1), neska vekoĩ neska vekoĩ (2+2) e mevi, que é o mesmo que mão.
159

Para entender o que dizem os noke koĩ nos falta agregar a essas descrições linguísticas
aspectos da cosmologia. Tendo isso em vista, proponho discorrer sobre as descontinuidades
no cosmos noke koĩ. Para isso me apoio na proposta metodológica de Viveiros de Castro em
que “o objeto [de estudo] é menos o modo de pensar indígena que os objetos desse pensar, o
mundo possível que seus conceitos projetam” (2002e:123). Assim, o que pretendo tratar a
partir daqui é quais seres e quais ambientes são descritos, e não tentar descrever como os noke
koĩ definem seres e ambientes que descrevemos de outro modo. Não se trata, portanto, de
descrever o ponto de vista noke koĩ sobre algo que já conhecemos, mas os objetos de seus
pontos de vista. Parafraseando Viveiros de Castro, podemos dizer que nos interessa menos o
modo como eles pensam a floresta e os animais do que os seres e os ambientes que abrigam
seus pontos de vista. Para tanto proponho voltarmos às categorias ni’i e yoina.
Yoina, como veremos a seguir nos ajudará, por uma relação estrutural, a entender o
código alimentar e a traçar contornos das relações de subsistência envolvidas na mobilidade.

Parte 1 – Descontinuidade dos Seres

Noke yo'ina keyos aka'i: a gente caça bichos de dia

Em relação ao seres do reino animalia, Lima (2000a:187) aponta que yoina entre os
noke koĩ tem dois alcances: 1) “a quase totalidade dos mamíferos, à exceção de ratos,
morcegos, botos e peixe-boi” e 2) “carne comestível ou, o que dá no mesmo, ‘caça’”73. As
conversas que tive em duas aldeias (Waninawa e Masheya) sobre um nome que traduzisse
yoina renderam longos debates entre alguns homens. A definição precisa do termo parece ser
controversa e, em ambas aldeias, a conclusão a que chegaram em português é que yoina serve
para definir animais, mas não todos os animais, inclui os mamíferos comestíveis mas também
outros igualmente comestíveis mas não mamíferos; como anfíbios e répteis (jacarés e
quelônios) e algumas aves. Outros bichos comestíveis no entanto não entram na categoria de
yoina, como peixes e crustáceos. Yoina marca uma relação específica com certos animais, que

73
Segundo Bertrand-Ricoveri, P. (1996) entre os Shipibo, yoina significa selvagem e se aplica a espécies
vegetais e animais. Segundo Tournon (2012b) o termo shipibo-conibo yoina é traduzido em geral por animal. No
entanto tal como entre os noke koĩ o seu campo semântico não abarca todo o sentido científico do reino animal.
Tournon afirma que de acordo com a nomenclatura de Berlin yoina não é um 'iniciador único' (unique beginner),
mas uma 'forma de vida'. “Todos los mamiferos silvestres terrestres y arbóreos son incluidos en esta categoría.
[...] Los mamiferos domésticos son también ‘yoina’ como lo indica la frase: ‘cochi, huaca, ochiti, mishito
yoinabo riqui’ = el chancho, la vaca, el peno, el gato son ‘yoina’ (2012b: 93). Entre os huni kuin yuinaka é caça,
animal comestível (Lagrou 2007: 356 e 1998, Kensinger 1995, D’ans 1991: 37, Deshayes e Keifenheim 1994).
160

é a de serem caçáveis e coletáveis (tendo em vista que jabutis e ouriços, por exemplo, não são
caçados, são apanhados se encontrados), tendo o ambiente que habitam certa influência.
Resumindo, yoina não abarca todos os bichos, nem todos os bichos comestíveis. São yoina os
bichos da mata que se come e que se caça74.
Se o eixo conceitual dessa categoria está nas relações que esses animais têm com os
noke koĩ, isto é, em serem caça, então yoina aponta para o regime alimentar como um
importante elemento dessas relações na definição das categorias de animais.
Paralelamente a yoina outros animais são comestíveis e juntos se contrapõem a outras
séries de animais repulsivos, perigosos ou interditos. Assim, cobra, kamã (uma categoria
muito especifica de animais valentes, entre eles onça e irara), ratos, preguiça, gambá,
morcegos não são yoina, e também não comestíveis.

75
PITE KOĨ BICHOS QUE SE COME
NOME EM
BICHO CAÇA [TXONA / YOINA KEYOS]
PORTUGUÊS
a gente
quando caça
come [noke como caça [yo'ina'i ?]
[ni'iti ?]
pi'a'i]
YOINA
ano todo, de
yawa queixada sim manhã e de tocaia e arma
tarde
kapa koro quatipuru sim
quati-de-
chichi cozumel e sim de dia cachorro e arma
quati-de-bando
pacarana ou
kestavo assado de dia, ano todo cachorro e terçado
paca de rabo
não caça, só
isa ouriço-cacheiro sim
quando encontra
ano paca sim de dia, ano todo cachorro e terçado
chipi hosho soim branco sim de dia arma e cachorro
arma e cachorro, na
chipi kepãya soim bigodeiro sim de dia
capoeira
iso macaco preto sim de dia arma
chino koĩ macaco prego sim arma
katsitaro uacarí-branco sim
macaco
roka voshpo sim de dia arma
paruacú
macaco guariba
ro'o sim de dia arma
ou capelão
macaco-de-
wasa sim arma
cheiro
macaco-da-
nishõ sim de noite arma
noite

74
Lima, E. define yoina como o conjunto de todos os mamíferos terrestre arbóreos encontrados na floresta,
exceto ratos, colelhos e morcegos, além dos tatus (2002: 437).
75
Evidentemente ssa lista não esgota todos os animais comestíveis, trata-se apenas de uma compilação de
exemplos de animais que me foram citados várias vezes em diferentes aldeias como animais comestíveis.
161

algumas
kamã hõchi jaguarundi pessoas
comem
veado-roxo e de dia cedo, às
txasho mateiro- sim vezes final de arma e flecha
vermelho tarde
voka irara sim de dia, ano todo arma
de tarde, de
mari cotia sim tocaia, e cedinho arma e cachorro
com cachorro
tsãka cotiara sim de manhã arma, cachorro e terçado
sim e não
maka pãtxoya coelho arma e flecha
(controverso)
amẽ capivara sim de dia arma e cachorro
hono caititu sim de dia e de noite arma e cachorro
awa anta-preta sim de dia arma
pano tatu canastra sim arma, cachorro e terçado
tatu-de-rabo-
kẽcho sim arma, cachorro e terçado
mole
mana yawich tatu-açú sim arma, cachorro e terçado
yawich koĩ tatu-galinha sim arma, cachorro e terçado
yawich anipa tatu sim arma, cachorro e terçado
KARA - AVES

kevo haka carão sim


bom de fazer chapéu de
hosho garça-branca sim
pena
só adultos bom de fazer chapéu de
shawã arara-vermelha
comem pena
papagaio- só adultos bom de fazer chapéu de
vawa
moleiro comem pena
haka socó boi sim faz chápeu de pena
haka koro socózinho sim
só mata de dormida, bom
koma koĩ inhambú-preto sim
de fazer chapéu de pena
noma hõchi rolinha-roxa sim
só velho que bom de fazer chapéu de
kana arara
come pena
sanã-do-capim
tama txashkõ e frango- sim
d'água-azul
quando canta de manhã,
txashkõ jacanã sim
diz que vai er chuva
hana kara aracuã-pintado sim faz chapéu e flecha
só velho que
varĩ tete uiraçu-falso
come
noma hosho pomba-galega sim
tucano-grande- bom pra chapéu de pena
shoke sim
de papo-branco e flecha
maitaca-de- bom pra fazer chapéu de
tõchi sim
cabeça-azul pena
SAPOS
rhinella
proboscidea e
heho sim
phyllomedusa
atelopoides
mana heho rã (lithobates sim
162

palmipes)

QUELÔNEOS
jabuti-machado
e cangapará
nẽsa assado
(cágado-de-
barbicha)
jurara e muçuã
e irapucá e
shawe sim
tartaruga-da-
amazônia
cágado-
kana nesho sim
vermeho
pisi nesho perema sim
cabeçudo e lalá
(cágado-de-
tãko cabeça-de- sim
sapo) e pitiú e
tracajá
kõsha matá-matá sim
jabutitinga,
shawe koĩ jabuti-amarelo sim
e jabutipiranga
PEIXES TSATSA

sipa waka sarapó sim


vohe hosho saburu sim
criança não pode comer,
koni poraquê sim tingui não mata senão não toma banho,
rapaz se come sente frio
make piranha sim
piranambu e
ichichi pintadinho, sim
jundiá, mandim
machi vaĩ braço-de-moça sim
vatõ piau sim
mosho vatõ piau aracu sim
agulhão (peixe
txasho paka sim
agulha)
acará-boi,
maĩ bocão, cara- sim
ferrugem
maĩ kotxõya tucunaré sim
meshko traíra sim
jovem não pode comer,
porque quando toma
vasho tamboatá sim
caiçuma toma muito e não
vomita
surubim e
vaĩ sim
pintado
voko maĩ soia sim
rechti sardinha sim
grávida não pode comer, o
iwi arraia sim bebe não nasce, o peixe
segura
kãkachi bacu sim
interdito para criança e
yoma bagré, gororoba sim jovem, dá preguiá de
trabalhar no roçado
163

shai weti bico-de-pato sim


kopãtxo baiacu sim
shako vasho bodé-cachimbo sim
grávida não pode comer, o
tokã bode-cachimbo sim bebe não nasce, o peixe
segura
yochini hiti bodó sim
ichkĩ bode-de-garra sim
txãka bode-tábua sim
txashõ paka cachorra sim
posto hichano cangati sim
maĩ txeshe cará sim
vohe hosho cascuda sim
grávida não pode comer, o
matxaya cuiu-cuiu sim bebe não nasce, o peixe
segura
jacundá, peixe
sha'o sim
sabão
nocha jiju (jeju) sim
tonõ mandim sim
mapará mapará sim
shakaya matapiri sim
vowe pacu sim
rayo mocinha sim
topari matrinchã sim
choa tsatsa pataca-do-cão sim
awa mapo
pescada sim
tsatsa
Tabela 2 - Pite koĩ - Bichos que se come

Categorias animais

A classificação dos animais entre os noke koĩ me parece absolutamente relacional e


organizada em função de diversas variáveis. Com fins meramente analíticos vou propor aqui
um quadro macrotaxonômico de nove grandes categorias usadas pelos noke koĩ: yoina –
caçáveis –, kamã – carnívoros valentes –, rono – cobras –, asha – sapos –, yochĩ – espíritos –,
tsatsa – peixes –, chai – passarinhos –, kara – aves do mato –, shakaya – animais de casco76.

76
Em “Com os olhos da serpente”, Lima, E. propõe que os noke koĩ agrupam as criaturas do reino animal em
três categorias supragenéricas, que ela identifica como as formas de vida da terminologia de Berlin. Essas três
categorias seriam: yoina, tsatsa e rono, respectivamente, mamíferos terrestres e arbóreos, peixes e cobras. Ela
ainda ressalta que nenhuma categoria desse tipo foi apontada para as aves (2000a: 176). Tomando yoina como
mamíferos, Lima, E. afirma que entre os mamíferos, somente os ratos, coelhos, botos, peixe-boi e morcegos não
são yoina. Ainda segundo a terminologia de Berlin, esses animais ocupariam categorias genéricas e específicas,
sendo ratos e coelhos agrupados como maka (rato), morcegos como kanshi, boto como kosho e peixe-boi, awa
164

No entanto uma enorme quantidade de outros animais não se agrupam nesses grandes grupos,
ou no limite até podem ser agrupadas dependendo do contexto e da descrição que se queira
enfatizar desse animal, podendo assim dizer que é tipo tal grande grupo.
Os animais eventualmente descritos como shakaya são um bom exemplo disso.

Shakaya – bichos de casco

Tatus e tartarugas recebem nomes específicos, sendo alguns poucos agrupados pelo
mesmos nome, apesar disso todos são descritos como shakaya, isto é, bicho de casco.
BICHOS DE CASCO
Tatu

pano tatu-canastra
tatu-de-rabo-mole (ou
kẽcho
tatu-rabo-de-couro)

mana yawich tatu-açú

yawich yawich koĩ tatu-galinha

yawich anipa Tatu quinze-quilos

 
Tartaruga
jabuti-machado e
nẽsa cangapará (cágado-
de-barbicha)
jurara e muçuã e
shawe irapucá e tartaruga-
da-amazônia
jabutitinga, jabuti-
shawe shawe koĩ amarelo e
jabutipiranga
mana shawe Jaboti

kana nesho cágado-vermeho


nesho
pisi nesho Perema
cabeçudo e lalá
(cágado-de-cabeça-
tãko
de-sapo) e pitiú e
tracajá

hene. Tsatsa, identificado como unique beginner não comportaria poraquês, arraias, bodós, caranguejos e
camarões que ocupariam categorias genéricas. Sobre as aves, a autora pontua que não há uma categoria que as
reúna em uma totalidade, sendo denominadas de forma específica. Lima, E. busca sistematizar as relações dos
homens com os animais a partir do exame da classificação taxonômica e do simbolismo da fauna. Ela alerta, no
entanto, que a opção de abordar os sistemas taxonômicos não deve ser tomada como uma aceitação tácita de
formas objetivas de conceituar a natureza. Baseando-se na terminologia de Berlin, a autora se dedica a uma
análise comparativa da taxonomia noke koĩ com as do sistema taxonômico ocidental e identifica que o sistema
taxonômico dos mamíferos conta com uma abundância de categorias de superdiferenciação (70% do total). A
autora pondera que esquemas classificatórios podem orientar-se por critérios simbólicos ou pragmáticos e
inclusive se sobrepor a taxonomia morfológica.
165

kõsha matá-matá
Tabela 3 - Shakaya - Bichos de casco

Ainda entre os shakaya, tem-se as arraias (iwi), os jacarés e os bodós, que apesar de
não terem um casco strictu senso como as tartarugas e os tatus, têm aspectos em comum com
eles. Os bodós e os jacarés têm o couro grosso e áspero o que poderia ser uma aproximação
morfológica, no entanto, o que parece incluí-los na categoria de shakaya diz respeito mais ao
que os aproxima das arraias, e todos eles dos tatus e tartarugas: o comportamento. São
considerados animais rastejantes, que vivem perto da terra e gostam de buracos. As arraias se
arrastam pelo fundo dos igarapés e os bodós se escondem entre galhos na beira dos igarapés.
Tatus cavam buracos, tartarugas e jacarés se arrastam na terra. Além disso todos esses animais
são, como bem demonstraram Lima (2000a) e Rosa da Silva (2012) animais interditos ao
consumo de mulheres grávidas, por tornarem o parto difícil. Os bodós portanto são ao mesmo
tempo, ou em função de certas circunstâncias (dieta ou descrição de comportamento) peixe
(tsatsa) ou shakaya.
BICHOS DE CASCO
Bodós
shako vasho bodé-cachimbo

tokã bode-cachimbo

yochini hiti Bodó

ichkĩ bode-de-garra

txãka bode-tábua

Jacarés
kape jacaré-anão
jacaré-coroa e jacaré-
kape keneya
açu e jacaretinga
Tabela 4 - Shakaya - Bichos de casco (cont.)

Kara e Chai – Aves do mato e passarinhos

Há uma versão da origem dos animais apresentada por Lima (2000a) em que as aves
surgem dos pêlos do personagem mitológico Koka Piño Txari e são considerados animais sem
166

espíritos77. Em outra versão que ouvi, algumas aves, as consideradas caça surgem com os
demais animais.
Essa segunda versão me parece indicar uma possibilidade de, a grosso modo, separar
as aves por interesses pragmáticos em aves comestíveis, consideradas aves do mato, – entre
elas todos os koma, haka, txana e noma – e os chai – passarinhos. Takara é o nome dado às
galinhas, animais introduzidos no contato. Segundo Aguiar (1994), takara é resultado de um
processo de criação de palavras novas, de inclusão de conceitos na língua, que podem se dar
por combinação de dois itens lexicais, ou acrescentando um afixo, em posição final ou inicial.
De acordo com a autora, há dúvidas se takara é “uma palavra nova criada pela inclusão de
conceitos externos à cultura, ou se se trata apenas de uma forma de aumentar o próprio léxico
incluindo uma partícula de ênfàse já presente na língua”. O que se sabe no entanto é que
takara é resultado da soma da partícula ta a palavra kara, que significa ave do mato. Nenhum
animal me foi designado como apenas kara, mas a origem do nome das galinhas foi explicada
assim: “kara é ave, né? Então, galinha é takara.” Se antes não havia ave que não fosse do
mato, poderíamos dizer que todas as aves são kara? Não é possível afirmar isso, apenas
sabemos que não há ave com nome de kara, mas que a palavra significa ave do mato.
Das aves comestíveis, a maioria tem um nome próprio sendo poucas reunidas sob um
nome comum seguido de distinções morfológicas ou comportamentais e de habitat. Espécies
que reuniríamos num mesmo grupo, como corujas, urubus, gaviões, periquitos, araras, podem
ter nomes distintos. Já os passarinhos em geral são chamados por nomes compostos de
características morfológicas ou comportamentais e de habitat somados a chai – vari chai,
mani chai, pona chai, te’ã chai, respectivamente passarinho do dia, passarinho da banana,
passarinho azul, passarinho do igarapé.
Assim, pona chai reúne vários passarinhos de cor azul: saí-de-perna-amarela, saí-
beija-flor, gralha-violácea, inambé-azul, gaturamo-de-barriga-branca, rendeira, vira-bosta,
solta-asa, bigodinho, saí-andorinha, sanhaçu-do-coqueiro, sanhaçu-da-amazônia, andorinha-
do-rio e tiziu foram alguns dos que identifiquei.
Sobre o habitat, por exemplo, te’ã chai, que literalmente significa passarinho do
igarapé, é assim nomeado por morar no igarapé, dizem: ele gosta de morar lá78.

77
Ver versão no anexo J.
78
A nasalização é uma das formas de expressar posse. Te’a é igarapé, te’ã é do igarapé, algo como o ’s do
inglês.
167

79
AVES DO MATO E PASSARINHOS
Bons de pena Auxiliam
Nome popular regional
Nome Comestível flecha e caçadores
em português
chapéu
kevo haka carão (ou saracurão) sim
sim sim
haka socó-boi
sim
haka koro socózinho
sim
noma hõchi rolinha-roxa
sim
noma hosho pomba-galega
sim sim
koma koĩ inhambú-preto
sim
oshko pomba-botafogo
sim
tere sene nambu-anhangá
sim
vakõ nambuzinho
sim
nea jacamim
sim sim
txashkõ jacanã
sim
txashkõ koĩ saracura
sanã-do-capim e frango- sim
tama txashkõ
d'água-azul
sim
kora txashkõ saracura
sim sim
hosho garça-branca
sim sim
hana kara aracuã-pintado
tucano-grande-de papo- sim sim
shoke
branco
sim
kevo jacu
sim
hanõ japó
capitão-do-bigode-limão
e tucano-de bico-preto e
pisa não
araçari-de-bico-marrom e
araçarí-castanho
sim
shovo kano urutau
sim
wapa urutau grande
sim sim
tõchi maitaca-de-cabeça-azul
só velho que sim
kana arara
come
só adultos sim
shawã arara-vermelha
comem
mirá maracanã-guaçu não
só adultos sim
vawa papagaio-moleiro
comem

79
A identificação dessas espécies foi feita por vários noke koĩ de diferentes idades e aldeias através de fotos
coloridas compiladas a partir de uma lista de espécies de aves presentes em um raio de 50 km de Cruzeiro do
Sul/AC disponível no site Wiki Aves, consultada em fevereiro de 2014.
<http://www.wikiaves.com/especies.php> O material usado na identificação está disponível no anexo K.
168

shete hosho urubu-rei não

shete urubu não

kosko urubu-da-cabeça-preta não


Carcará e cauré e
tete não
gavião-carijó
sim
tete hosho gavião-pedrês não
só velho que
varĩ tete uiraçu-falso
come
sim
tete txio gavião-azul não
gavião-tesoura, sim
wasiko não
tesourinha
txiki gavião-miudinho não

chãcha gavião-de-anta não


surucuã-pavão, surucuá
grande de barriga
kana popo não
amarela, surucuá de
barriga vermelha
sim sim
popo coruja não

kete coruja murucututu não

venõ coruja Ciccaba sp não


periquito-cabeça-suja e
txere marianinha-de-cabeça- não
amarela
tuim e periquito-de-asa-
pitso não
azul e marcanã-do-buriti
voĩ pica-pau não
Pica-pau-chocolate e
maskere voĩ não
pica-pau-amarelo
sha'o voĩ limpa-folha-do-buriti não
batuíra-de-coleira e
maria-de-barriga-branca
e gaturamo-verde e fim-
wasi chai não
fim e curió e papa-
formiga-do-igarapé e
corruíra
saí-de-perna-amarela e
saí-beija-flor e gralha-
violácea e inambé-azul e
gaturamo-de-barriga-
branca e rendeira e vira-
pona chai bosta e solta-asa e não
bigodinho e saí-
andorinha e sanhaçu-do-
coqueiro e sanhaçu-da-
amazônia e andorinha-
do-rio e tiziu
ferreirinho estriado,
maĩ kaĩ chai ferreirinho de não
sobrancelha
capitão-de-fronte-
rono chai não
dourada e guarda-várzea
capitão-de-coroa e maria-
manĩ chai mirim, bico chato de não
orelha preta
sabiá-de-óculos e piuí-
varĩ chai não
boreal e cricrió e maria-
169

cavaleira-pequena e
pardal e andorinha-
cerradora e suiriri-valente
pichi piri cabeça-encarnada não

notxo korawa anu-coroca não


saí-de-perna-amarela e
saí-beija-flor e gralha-
violácea e inambé-azul e
gaturamo-de-barriga-
branca e rendeira e vira-
pona chai bosta e solta-asa e não
bigodinho e saí-
andorinha e sanhaçu-do-
coqueiro e sanhaçu-da-
amazônia e andorinha-
do-rio e tiziu
sim
veshata’o gralhão não
inambé de coroa, peitoril,
mishmi urubuzinho e formigueiro- não
grande, pretinho
shori sururina não
sim
pinõ beija-flor não

maĩ kaya'i cigarrinha-do-campo não


maçarico-pintado e trinta-
roroĩ não
réis-grande
rapazinho-do-boné-
testeroã não
vermelho
sim
txana xexéu e inhapim e japiim não
arapaçu-de-taoca,
choĩ rapi não
arapaçu-riscado
sim
koichika uirapuru-verdadeiro não
sim
tekõ bico-de-brasa não

txa'esh martinho não


martim-pescador-verde e
txarash não
martim-pescador-grande
pi'hichiki iratauá-pequeno não

ko'ĩ ko'ĩ anu-preto não

to'hosh bacurau e bacurau-chintã não


ariramba-do-paraíso e
horo não
ariramba-da-mata
tsosa casaco-de-couro-amarelo não
benedito-de-testa-
chkere não
vermelha
vite-vite e cantador-
mawa não
sinaleiro, sabiá poca
teste ro'ã macuru-de-testa-branca não
enferrujadinho e polícia-
inglesa-do-norte e
andorinha-doméstica-
pichiki grande e iraúna-de-bico- não
branco, choca canela,
uirapuru selado, joão-
teneném-castanho
170

chora-chuva e bico-
tikõ não
encarnado
ayo iraúna-grande não

txichka alma-de-gato não


Tabela 5 - Kara e Chai - Aves do mato e passarinhos

Além de serem comestíveis ou não, as aves são descritas como: boa de pena para
flecha e chapéu, e como animais que auxiliam os caçadores.
Popo (coruja), hosho (garça-branca), shawã (arara-vermelha), vawa (papagaio), tete
hosho (gavião pedrês), tete txio (gavião-azul), haka (socó-boi), txana (xexeu), koma koĩ
(inhabu-preto), kana (arara), tõchi (maitaca), shoke (tucano), wasiko (gavião tesoura) e hana
kara (aracuã) são considerados bons de pena.
Koichika (uirapuru-verdadeiro) adivinha se o caçador vai matar caça, se ele gritar alto
é porque vai matar. Popo (coruja) dá recado da aldeia para dentro da mata, quando canta forte
de noite é porque tem porquinho perto, quando canta de dia está avisando que tem cobra
venenosa no caminho. Do mesmo jeito tekõ (bico de brasa) avisa que tem onça perto. Pinõ
(beija-flor) dá recado na aldeia, entre roda, roda e sai, já sabe que vem chegando gente.
Txashkõ quando canta de manhã está avisando que vai ter chuva e o veshata’o (gralhão) canta
alto quando vê queixada e avisa a direção do bando.

Tsatsa – peixes

Tsatsa é usado para se referir a todos os peixes, inclusive os bodós que são, como
vimos, simultaneamente shakaya80. Os tsatsa, como a maioria das aves não têm alma, e a
maioria tem um nome próprio. Morfologicamente são divididos entre três grupos: peixes com
escama, tsatsa posaya, peixes de couro, tsatsa teshvia, e peixes com esporão, tsatsa pakaya,
sendo que esses últimos podem ser simultaneamente pakaya e posaya (com couro e
esporão)81. Todos os tsatsa que identifiquei são comestíveis.
82
TSATSA POSAYA, TSATSA TESHVIA E TSATSA PAKAYA - PEIXES
tem a gente
esporão onde anda come Interdições de
nome nome regional
[hando ra] [noke consumo (Rosa, 2012)
pi'a'i]
escama
mosho
piau aracu rio, igarapé sim
vatõ

80
Os dados de Lima (2000: 176) indicam outra coisa, bodós não fariam parte do grupo tsatsa.
81
Lima (2002) identifcou esses três mesmos grupo, ainda que tenhamos identificado algumas espécies
diferentes.
82
A identificação dessas espécies foi feita a partir de fotos do livro “Peixes do alto rio Juruá”, Silvano et al 2001.
171

vatõ piau rio, igarapé sim


make piranha Igarapé sim crianças e jovens não
podem comer que causa
dor nas costas e falta de
forças no corpo
vohe saburu rio, igapó, sim
hosho igarapé

meshko traíra igarapé sim


txashõ cachorra igarapé sim Nas crianças o consumo
paka ocasiona cabelos
brancos
vowe curimatã rio sim
rayo mocinha rio, sim
igarapé,
igapó
awa pescada igarapé, sim
mapo igapó
tsatsa
yapa piaba Igarapé velho
come
matxaya pacu Igarapé sim matxaya
rio e
rechti sardinha sim
igarapé
rio e
shakaya matapiri sim
igarapé
topari matrinchã rio sim
choa Igarapé,
pataca-do-cão sim
tsatsa igapó
jacundá, peixe
sha'o rio sim
sabão
nocha jiju (jeju) rio sim
maĩ rio e
cará sim
txeshe igarapé
txasho agulhão (peixe
sim
paka agulha)
maĩ
tucunaré rio sim
kotxõya
tem a gente
esporão onde anda come Interdições de
nome nome regional
[hando ra] [noke consumo (Rosa, 2012)
pi'a'i]
couro
tonõ mandim sim rio sim
koko mis candiru rio não
metsis candiru rio e não
keyo igarapé
shai weti bico-de-pato sim igarapé sim
yoma bagré, gororoba rio sim interdito para criança e
jovem, dá preguiá de
trabalhar no roçado
vaĩ surubim e pintado sim rio sim Crianças não podem
comer, dá preguiça,
atrasa o crescimento e
faz ter cabelos brancos
ainda jovens
ichichi piranambu e sim rio sim Crianças não podem
pintadinho, jundiá, comer, dá preguiça e faz
mandim ter cabelos brancos
ainda jovens
sipa waka sarapó igarapé sim
machi vaĩ braço-de-moça igapó sim
172

maĩ acará-boi, bocão, Igarapé, sim


cara-ferrugem igapó
jovem não pode comer,
porque quando toma
vasho tamboatá rio sim caiçuma toma muito e
não vomita, enfraquece a
unha do pé
voko maĩ soia sim
grávida não pode comer,
iwi arraia igarapé sim o bebe não nasce, o
peixe segura
kãkachi bacu igarapé sim
kopãtxo baiacu igarapé sim
shako
bodé-cachimbo igarapé sim
vasho
grávida não pode comer,
tokã bode-cachimbo igarapé sim o bebe não nasce, o
peixe segura
yochini
bodó igarapé sim
hiti
ichkĩ bode-de-garra igarapé sim
txãka bode-tábua igarapé sim
posto
cangati sim
hichano
vohe rio e
cascuda sim
hosho igarapé
grávida não pode comer,
matxaya cuiu-cuiu rio sim o bebe não nasce, o
peixe segura
mapará mapará rio sim
Tabela 6 - Tsatsa - Peixes

Outros bichos d’água, como poraquês, arraias, caranguejos, caramujos e camarões não
são tsatsa e não compartilham, com exceção das arraias e dos caranguejos, que são shakaya,
nomes com outros bichos d’água.
BICHOS D’ÁGUA
Bichos d’água
83
poraquê koni

enguia sipa waka

caramujo notxo

camarão mapi
Tabela 7 - Outros bichos d'água

Rono – cobras

Rono serve para todas as cobras, venenosas e não-venenosas (boídeos). As cobras, em


especial os boídeos (aquáticos e terrestres), são uma manifestação do pajé primordial.

83
As crianças não podem comer poraquê, se comem não tomam banho, e os rapazes jovens se comem sentem
frio. (Rosa da Silva 2012)
173

Segundo a mitologia, elas tocaram a pedra da imortalidade, o rome (pedra tabaco/amargo) e o


fato de poderem trocar de pele comprova essa imortalidade. A sua pele aliás é muito
apreciada e está fortemente atrelada ao conhecimento xamânico. As cobras grandes não-
venenosas são chamadas por seus desenhos, que remetem a esse conhecimento, de cobra-pajé,
rono keneya romeya (ronocobra keneyacom desenho kene romeyapajé). Os poderes, os conhecimentos
e os cantos de cura são acessíveis através da sua pele84.
O cipó e o tabaco são plantas de rono, plantadas por elas e carregadas de
conhecimentos e capacidades próprios delas. Tornar-se um pajé depende de um encontro com
a cobra-pajé (encontro provocado por ela) e da ingestão constante dessas substâncias.
As cobras são, como as suas plantas, fonte de conhecimento e poder xamânico. As
plantas xamânicas são das cobra, foram elas que as instituíram no mundo enquanto ráo, isto é,
remédio85. Foram elas que plantaram e possuem portanto suas qualidades, sua substância e
por isso alteram a perspectiva humana na comunicação com os espíritos-animais detentores
do saber, as cobra-pajé. É através delas que os temas mitológicos são atualizados na aquisição
de conhecimento e nas práticas de cura. As plantas das cobras são simultaneamente fonte e
atualização de conhecimento, sendo que em ambos os processos o mentor é a cobra-pajé.
Além das plantas xamânicas, a origem de alguns animais é atribuída às cobras, como é
o caso das onças86. As cobras estão vinculadas tanto ao xamanismo quanto à caça, elas sabem
atrair e espantar os animais e nesse sentido combatem a panema e curam os doentes87.
Evidentemente as cobras têm alma e é justamente o rono yochĩ, que se casando com o pajé, o
ensina os cantos de cura. As cobras, de nenhum tipo, nem venenosas nem boídeos, são
comestíveis. Entre as cobras alguns nomes atribuídos são:

88
RONO - COBRAS
Boídeo mana shano surucucu de barranco
mana rono jibóia
kene rono sucuri
amo rono não identificada

84
Ver Lagrou, 1998 & 2007 para a análise da relação entre cobra e xamanismo entre os Kaxinawa.
85
Ráo é um termo, quase pan-pano. É o mesmo que dau entre os Kaxinawa, onde refere-se também a remédios
vegetais, aos remédios de yara e a adornos corporais e ornamentos rituais (Lagrou 1991: 101-103 e 2007).
86
Góes (2009: 128) reproduz uma fala de Mani em 2007, em que ele afirma exatamente isso: “a onça, cobra fez
e deixou no mato”.
87
Para a relação de jibóia com sucesso na caça entre os noke koĩ ver Lima (2000a), entre os Kaxinawa, ver
Lagrou (1991, 1996 e 2007) e para os Shipibo, Roe (1982).
88
Espécies identificadas a partir do cruzamento da identificação por vários noke koĩ de fotos de espécies de
cobra da região com uma lista de nomes de cobras venenosas e não-venenosas por eles mesmos citada. As cobra
não identificadas haviam sido citadas por eles mas não constavam na lista de fotos por mim apresentada. As
fotos usadas na identificação está no anexo K.
174

viño rono jibóia


teshoika não identificada
itxi coral-verdadeira
shano surucucu
awa rono cobra-verde
koro rono jararaca-verde
Venenosas
imi rono jararaca-do-rabo-branco
ĩpa pisi jararaca
ino rono não identificada
vawa rono periquitambóia
Tabela 8 - Rono - cobras

Conforme Lima (2000) que fez um estudo detalhado sobre a taxonomia dos animais,
que não é o que propomos aqui, os nomes das cobras podem se referir a características
morfológicas, ou ao habitat. Fora isso são categorias específicas formadas por rono (cobra) +
termos complementares ou termos genéricos que não usam o rono como base.
Sobre os nomes das cobras ainda vale acrescentar que, talvez por sua importância
xamânica, às não-venenosas é atribuído o nome de Yobẽ. Yobẽ é como aparecem nos mitos e
como os antigos (antepassados) falavam. Yobẽ não é usado na língua cotidianamente para se
referir às cobras, nem às não-venenosas, mas apenas para se referir a cobras quando têm
qualidade yochĩ, quando são espíritos com qualidades humanas, e quando se fala de algum
personagem cobra-espírito de algum mito.
Apresentando diferentes grafias Yobẽ, Yube ou Yuve é um nome recorrente entre os
grupos Pano e, em geral, remete às cobras, ainda que possa aparecer por diversas vezes
referenciando-a de maneira oblíqua89.

89
Os Kaxinawa consideram Yube, a jiboia/anaconda, o criador, guardião e dono do cipó, criador dos peixes,
dona dos desenhos, pajé primordial e dono de todos os fluidos vitais, desde o sangue menstrual ao sangue que
flui na caça e na guerra. Yube é também o nome da pessoa que se transformou em lua. Para uma análise
aprofundada de Yube enquanto ibu, ancestral e dono entre os Kaxinawa ver Lagrou (1991, 1996, 1998, 2007).
Entre os marubo (Montagner Melatti 1985: 96), Yobé refere-se a espíritos benéficos em oposição aos yochi,
espíritos maléficos. São os Yobe que auxiliam os rezadores Maubo na cura e que incorporam nos xamãs.
Inversamente, os Shipibo-Conibo falam Yobe para designar o xamã quando provoca doenças através de
feitiçaria, é o brujo, feiticeiro (Colpron 2009: 67 e Tournon 2002: 376). Segundo Pérez-Gil, os yaminawa da
Cabeceira do Rio Acre, estudados por Calavia Sáez, têm um termo cognato para yuve, que é ñiumuã e que
designa o xamã em sua mais alta expressão (1999: 35). Os yawanawa, por sua vez, chamam de Yuve, ou Yuvehu,
o especialista imerso no processo de iniciação. (Pérez-Gil 1999: 34), e, nesse sentido, ele é assimilado ao
personagem mítico yawanawa que ensina às pessoas desejosas de aprender a tomar o kapi (mata-pasto). Esse
Yuve benfeitor é invocado pelos xinaya (xamãs mais poderosos) para lutar contra os yuxin que causam doenças,
já que sua característica forte é o canto mëka, que quando cantado pelo especialista atribui a ele o nome de
yuvehu. Em yawanawa, Yuve (assim como Yube em Kaxinawa), se liga à sabedoria e ao conhecimento xamânico
adquirido através do cipó que provém da cobra (runua, em yawanawa). Yuve em yawanawa pode ser traduzido
como conhecimento, mas especificamente, o conhecimento xamânico. Porém, se entre os Kaxinawa a associação
com a cobra é mais direta que entre os yawanawa, em ambos os grupos a aquisição do cipó é atribuída a cobra.
175

A cobra-yochĩ Yobẽ é um pajé forte que vive viajando entre o mundo da água e o da
terra. Segundo a classificação biológica, jibóia e sucuri são animais distintos. A jibóia é um
animal que habita as árvores na maior parte do tempo, mas também pode ser encontrada nas
bordas das matas, nas capoeiras e nas clareiras. A sucuri por sua vez habita lagos, rios e
pântanos. Yobẽ, no entanto, transita pela água e pela terra e vive nos dois mundos. Enquanto
mediador privilegiado entre esses dois mundos é o próprio pajé e, ao mesmo tempo, a mestre
que repassa seus conhecimentos.
Segundo os huni kuin, a jibóia, manã dunu, e a sucuri, hene dunu, são uma mesma
espécie. A diferença de habitat é considerada uma diferença de idade e de tamanho (Lagrou
2007: 213). Entre os noke koĩ a diferença de tamanho é indicador da quantidade de segredo
que ela pode revelar (Lima 1998: 3) e não uma diferença de espécie ou de qualidade próprias.
Na sua fase sucuri, a cobra é descrita como não muito generosa mas muito admirada, afinal de
contas é nessa fase que ela é maior. Os huni kuin porém afirmam que quem ensina os
conhecimentos é a jibóia e que a sucuri só manda vertigens e tonturas.

Asha – sapos: bicho de substância com agência

Os sapos têm qualidades de bicho-yochĩ: sua carne não é venenosa, mas não são
comestíveis, seus corpos têm a capacidade transformativa (de girino a sapo), são ruidosos,
seus gritos são potencialmente sedutores, movimentam-se à noite, transitam entre a água e a
terra e finalmente alguns trazem em suas peles substâncias com agência.
90
ASHA – SAPOS
Sapos
rhinella proboscidea e
heho
phyllomedusa atelopoides
veno sapo untanha (ceratophrys cormita)

txaki scinax garbei


trachycephalus resinifictrix e
to'a
phyllomedusa palliata
veshne amazophrynella minuta
ameerega macero, ameerega
piri
trivittata, ranitomeya toraro
mana heho rã (lithobates palmipes)

asha rinella castaneotica

90
A identificação científica dos sapos foi feita a partir de fotos de espécies da região coletadas na internet e
disponíveis no anexo K.
176

nesho salamandra (bolitoglosa sp.)

kãpo rã cambô (phyllomedusa bicolor)


Tabela 9 - Asha - Sapos

Além de prefigurarem personagens míticos importantes, o grupo de asha inclui a rã


kãpo, cuja secreção é usada pelos noke koĩ e outros grupos pano como emético91. A secreção
da kãpo é carregada de agência e intenções, e por isso é usada para aguçar os sentidos, tirar
panema e preguiça e para tratar diarréias e febres. A secreção da kãpo se inclui entre os
remédio amargos, porém, ao contrário dos demais remédios amargos indicados para o
consumo dos pajés, o kãpo tem o risco de dissipar o rome e por isso os pajés devem usar
apenas pequenas quantidades.
A kãpo tem uma relação especial com as cobras, sobretudo, um tipo de cobra, shano, a
surucucu. A morte de uma kãpo atrai a vingança através da surucucu que tentará matar o mal-
feitor da rã. O veneno das surucucus é atribuído ao uso de kãpo por essas cobras, que sugando
a secreção da rã, produzem veneno.

Bichos yochĩ – bichos que não são bichos

Há, entre o que chamaríamos animais, seres que são yochĩ. É o caso de algumas das
cobras grandes, algumas jibóias e algumas sucuris são cobra-yochĩ. Não são bichos, são
espíritos.
A preguiça-de-coleira e a preguiça-de-hoffman são identificadas como posẽ e são
bichos com yochĩ, mas não são consideradas espírito92. Os naĩ, no entanto, prefiguram
personagens yochĩ na mitologia e não são bichos, são espíritos. A preguiça real e a preguiça
comum foram identificadas como naĩ, preguiça-yochĩ.
O sha’e (tamanduá) não é espírito mas dizem que tem espírito forte. Ele acompanha o
pajé, é considerado um animal do pajé, uma espécie de auxiliar. O sha’e é um animal valente
e não é comestível.

91
O uso do kãpo é amplamente analisado por Lima, E. 2007; 2008; 2005a; 2008. Entre os huni kuin, Lagrou
registrou seu uso no rito de passagem de meninos e meninas, nixu pima, para fortalecer o corpo das crianças,
como remédio contra panema e para facilitar o engravidamento das mulheres (Lagrou 1998, 2007).
92
Para uma análise da diferença entre animais que “são” e que “têm” yuxin entre os huni kuin ver Lagrou 1998
& 2007. A diferença entre animais que tem e que são yuxin entre os huni kuin está intimamente ligado ao regime
alimentar assim como à mitologia que explicita o tipo de relações que os antepassados mantinham com os
antepassados dos animais em questão.
177

Alguns espíritos yochĩ podem assumir a forma de alguns yoina. É o caso por exemplo,
do katsitaro (uacarí-branco), um macaco branco da cara velha que dizem não ser comum na
região. Nunca foi visto sob a forma de yoina na TI Campinas93, apenas como yochĩ.
Além do macaco uacarí, alguns insetos também são a corporificação de yochĩ, entre
eles, sha’e pero (borboleta), yotã (caranguejeira), mariposas e jequitirambóia (hoso). Essas
duas últimas ora aparecem como a materialização do yochĩ dos antigos, ora são, como os
vaga-lumes (yochĩ tapi), indícios da presença de yochĩ invisíveis, já que eles se alimentam
desses insetos.

Yoina – animais e regimes alimentares

Para além dos animais que se come, há os que não se come nunca, os que não se come
em certas circunstâncias e os que não são yoina.
O que faz um animal ser comestível e outro não varia entre aspectos repulsivos por
comportamento ou aparência morfológica, dietas e tabus alimentares, faixa etária, o fato de
serem bichos-espírito e a semelhança com os noke koĩ.
Assim os noke koĩ não comem:

94
BICHOS QUE NÃO SE COME
sha’e tamanduá
preguiça-de-coleira e considerado bicho
posẽ
preguiça-de-hoffmann yochĩ
pisi masho mucura
kãchi morcego hematófago
taho kãchi morcego (maior)
mani kãchi morcego frutivoro
*nenhuma espécie de cobra
kamã keneya onça-pintada
é controverso,
kamã hõchi jaguarundi / onça parda algumas pessoas
comem
ro'o kamã cachorro-vinagre
hono kamã cachorro-do-mato-preto
kamã koro onça-parda
kamã txeshe onça-negra

93
Lima (2000) afirma que os moradores da aldeia Campinas dizem que os uacaris nunca existiram na TI
Campinas apenas na TI Gregório.
94
Tal como os animais que se come, essa lista não abarca todos os animais que não se come, apenas pontua
alguns exemplares.
178

kamã ketsĩ gato-palheiro


chinõ mana macaco-cairara
gato-do-mato (maracajá) e
shawã kamã
Jaguatirica
mão-pelada e quati-do-nariz-
chichi kamã
branco
hene kamã lontra e ariranha
shemẽ jupará
é controverso,
maka pãtxoya coelho algumas pessoas
comem
periquito-cabeça-suja e
txere marianinha-de-cabeça-
amarela
popo coruja
inambé de coroa, peitoril,
mishmi urubuzinho e formigueiro-
grande, pretinho
sha'o voĩ limpa-folha-do-buriti
tuim e periquito-de-asa-azul e
pitso
marcanã-do-buriti
mirá maracanã-guaçu
pinõ beija-flor
maĩ kaya'i cigarrinha-do-campo
vawa papagaio-moleiro
maçarico-pintado e trinta-réis-
roroĩ
grande
txiki gavião-miudinho
testeroã rapazinho-do-boné-vermelho
tete hosho gavião-pedrês
tete txio gavião-azul
haka socó boi
haka koro socózinho
txana xexéu e inhapim e japiim
voĩ pica-pau
capitão-de-fronte-dourada e
rono chai
guarda-várzea
capitão-de-coroa e maria-
manĩ chai mirim, bico chato de orelha
preta
carcará e cauré e gavião-
tete
carijó
shete urubu
sabiá-de-óculos e piuí-boreal
e cricrió e maria-cavaleira-
varĩ chai pequena e pardal e
andorinha-cerradora e suiriri-
valente
picapau-chocolate e picapau-
maskere voĩ
amarelo
pichi piri cabeça-encarnada
batuíra-de-coleira e maria-de-
wasi chai barriga-branca e gaturamo-
verde e fim-fim e curió e papa-
179

formiga-do-igarapé e corruíra

notxo korawa anu-coroca


koma koĩ inhambú-preto
saí-de-perna-amarela e saí-
beija-flor e gralha-violácea e
inambé-azul e gaturamo-de-
barriga-branca e rendeira e
pona chai vira-bosta e solta-asa e
bigodinho e saí-andorinha e
sanhaçu-do-coqueiro e
sanhaçu-da-amazônia e
andorinha-do-rio e tiziu
chãcha gavião-de-anta
arapaçu-de-taoca, arapaçu-
choĩ rapi
riscado
koichika uirapuru-verdadeiro
txa'esh martinho
martim-pescador-verde e
txarash
martim-pescador-grande
pi'hichiki iratauá-pequeno
noma hõchi rolinha-roxa
kosko urubu-da-cabeça-preta
ko'ĩ ko'ĩ anu-preto
to'hosh bacurau e bacurau-chintã
kana arara
ariramba-do-paraíso e
horo
ariramba-da-mata
Tabela 10 - Bichos que não se come

Yoina

Os animais yoina podem ser definidos relacionalmente por um passado de condição


humana comum com os noke koĩ, pelo regime alimentar e por oposição a uma categoria de
animais não comestíveis, os kamã.
Há um mito que conta como surge grande parte dos yoina: anta, porquinho, queixada,
paca, cotia, veado, tatu-canastra, tatu, coatipurus e macacos. A versão que segue abaixo é
parte da transcrição de gravações feitas em 2014 de uma série de mitos contados por Txoki,
um velho pajé rezador de aproximadamente 94 anos, morador na aldeia Waninawa.

Mito de origem dos yoina

Uma mulher vive mais a tia dela. A tia dela fez o casamento dela com um rapaz. Mas
essa mulher não queria se casar com ele. O homem gostava dela, mas a mulher não gostava
180

dele. Ele ficou lá na casa da tia dele, fazendo as coisas: arrumava caçada, trabalhava no
roçado. A mulher pediu para andar mais esse rapaz, a mulher saia mas não conversava com
ele. Quando ele vai caçar, a mãe e o pai pediram para andar mais ele numa caçada. As outras
pessoas pediam para ela acompanhar ele na caçada mas ela se escondia, ficava distante, não
conversava com ele.
Aí um dia numa caçada, o pai mais a mãe dela pediram:
– Vai mais seu marido.
Aí ela saiu também, saiu, andou bom pedaço. No caminho viu fruta, aí ele falou:
– Ah! eu vou tirar fruta para gente comer, vamos comer essa fruta e depois eu vou
matar veado.
Ele subiu no pau para pegar a fruta (karovi). Aí subiu chegou até um galho e aí ele
remedou macaco-preto. Aí mulher estava escondida num toco de pau, não queria conversar
com ele. Aí ele remedou mais outra vez. Aí as ananas brava da mata mexeram, mexeram.
Passou para cá. Aí um homem saiu [de trás] e ela estava vendo. O homem saiu andando por
ali. As coisas dele parecem que são um tipo de espingarda, sopra daqui mas mata de qualquer
altura. Esse homem é maiyochivo. Noke koĩ estava comendo fruta, animado, remedando
macaco-preto... Aí tomou. Calmou. Não demorou nadinha – a mulher estava reparando – aí
provocou tudo. Aí sentou-se num galho dessa fruta e depois desceu. Caiu no chão: poco! Poco
no chão! Aí esse maiyochi foi pegou no braço dele arrastou e levou lá para de onde ele saiu
de trás dos ananas bravos da mata. A mulher voltou para aldeia, chegou toda suada. Aí a mãe
dela perguntou:
– Cadê seu marido?
– Meu marido, mataram ele.
– Mataram como?
Aí ela contou: “quando foi no certo meio ele achou fruta, subiu para comer essa fruta,
chegando lá num galho ele remedou macaco-preto. Aí homem que mora debaixo da terra
mexeu na ananas brava da mata, passou para um lado, homem saiu matou ele. Caiu no chão,
levou. Jogou dentro do buraco e levou”.
Aí a comunidade falou:
– Ah... esse aí é o maiyochivo.
– Maiyochivo que matou ele.
– Ah! Vamos vingar a morte dele.
181

Convidaram toda a comunidade. Aí foram lá, mas não tem como fazer. Aí chamaram
esse bicho que cava no barro, que chama tatu, tatu que cavava buraco, mas ele não aguentava
e ficava.
– Bora chamar o paca!
Fazia o buraco mas depois saia para fazer o suspiro. Não vai.
– Vai chamar o tatu-canastra.
Então o tatu canastra chegou. Aí o tatu canastra vai, os outros só acompanhando ele. A
comunidade noke koĩ acompanhando ele. Aí já estava para sair na aldeia dele na picada.
– Repara bem se o homem está em casa.
Aí o outro correu e passou assim, pediu para a tartarugazinha e saiu. Sumiu.
– E aí? O homem está em casa?
– Tá não.
Aí pediu para o calango para passar lá e ver se o homem tinha chegado.
Passou no meio da casa aí a mulherada: gritaria.
– Olha calango, olha calango!
Aí o calango sumiu.
– Vamos bora, vamos matar assim mesmo, vamos se acabar assim mesmo.
Aí uma mulher estava passando jenipapo nas crianças dela. A velha estava fazendo
mingau das tripa de noke koĩ. Aí tatu canastra levantou e perguntou para a mulher:
– O que é que estava fazendo?
– Ah... meu filho ontem matou macaco-preto. Estava comendo fruta, ele trouxe, eu
estou fazendo um mingau de tripa de macaco.
– Que macaco? – os outros perguntaram.
Aí os noke koĩ mataram eles todinho, mulherada, criança, mataram tudinho.
– Bora, vamos voltar.
Começam a fazer o caminho de volta. Saíram, voltaram. Aí chegaram acima da
capoeira deles e ficaram.
Aí um disse:
– Rapaz, você matou algum deles?
– Eu não matei, é porque eu achei pimenta, muita pimenta, comi muita pimenta tava
igual, e não matei ninguém.
Aí o outro falou:
– Eu também não matei ninguém porque achei muita batata. Tava comendo batata e
não matei ninguém
182

Aí o outro falou:
– Eu também não matei ninguém, tava caindo muito mamão, eu comi mamão maduro
e não matei ninguém.
Aí o chefe desse povo que mora debaixo da terra chegou:
– O que é que vocês estão dizendo aqui?
Aí deu um susto, caíram. Um passou para veado, porco, jacu, viraram as caças. Aí
foram embora. Aí ficou tudinho, viraram jacu, viraram mutum, todos os bichos. O pessoal que
matou o povo de debaixo da terra viraram todos os bichos: nambu, tucano, arara....

Esses animais surgem por duas vias: 1) como os noke koĩ, de debaixo da terra95, e 2)
dos próprios noke koĩ transformados em animais. São portanto como os noke koĩ ou os
próprios noke koĩ e por isso têm yochĩ, como os noke koĩ96.
A relação mítica dos yoina com os noke koĩ faz deles uma subcategoria de humano,
na medida em que, apesar de não serem mais noke koĩ possuem yochĩ, o aspecto distintivo de
humanidade verdadeira (koĩ). E sendo assim, bicho é gente. O surgimento dos yoina cria, no
entanto, uma disjunção entre animais e humanos. Essa disjunção é radical mas não opõe yoina
tão fortemente contra noke koĩ como o regime alimentar e as afecções dos corpos fazem com
os animais kamã.
Kamã é o contrário de noke koĩ e yoina é a contrapartida de noke koĩ.

Kamã nõ, yoina nõ: Noke koĩ é yoina de kamã

Os bichos kamã incluem onças e alguns gatos do mato; os cães; a ariranha e o mão-
pelada. Segundo a taxonomia biológica são animais muito diferentes, de quatro famílias
(felinos, canídeos, mustelídeos e procionídeo), no entanto o critério que os reúne não é
morfológico, ou fenotípico, mas cosmológico97.
BICHOS KAMÃ

95
O mito de origem, ou de geração, como traduzem os noke koĩ, conta que os noke koĩ surgiram ao sair de um
buraco na terra.
96
Lima tem uma versão diferente (Lima 2000, p. 201-2) Nela é o Koka Pino Txari que transforma as pessoas em
veado, paca, anta, macaco-preto, cotia. Ele que deu nome dos bichos. Em seguida, o maiyochĩ, em forma de
gavião, assusta os noke koĩ e eles também viram bichos. Essa versão conta que só tinha bicho que tinha quatro
patas, não tinha ave de pena e então Koka Pino Txari arrancou os cabelos da perna e assoprou, transformando-os
em jacamim, jacu, nambu, tucano, arara, etc.
97
Curiosamente, hene kamã significa literalmente onça do rio, e em português é conhecida como ariranha, mas é
também conhecida como onça-d’água (Ferreira 2010). O mesmo acontece com o mão-pelada e o quati do nariz
branco que são identificados como chichi kamã, que literalmente, traduz-se por quati-onça e que são também
conhecidos em português como jaguacinim, jaguaracambé e cachorro-do-mangue (Michaelis 1998).
183

Bichos Kamã
gato-do-mato (maracajá)
shawã kamã
e Jaguatirica
mão-pelada e quati-do-
chichi kamã
nariz-branco
hene kamã ariranha

kamã keneya onça-pintada

kamã hõchi jaguarundi

kamã koro onça-parda

kamã txeshe onça-negra

kamã ketsĩ gato-palheiro

ro'o kamã cachorro-vinagre

hono kamã cachorro-do-mato-preto

kamã cachorro doméstico


Tabela 11 - Bichos kamã

Nas narrativas míticas, as onças aparecem como Ino. Algo semelhante às cobras-pajé que são conhecidas pelos
antigos como Yobẽ. Segundo Melatti (1986) os marubo também usam kaman cotidianamente, e Ino em
contextos rituais. Entre os Huni kuin, Inu é uma das metades ligada ao céu, ao mestre Inka - alteridade extrema -
e significa onça, enquanto kamã significa cachorro (Lagrou 2007).

Os kamã não são comestíveis, são temidos e apesar de terem alma são o oposto da
humanidade koĩ, adequada, estrito senso. Os kamã são descritos como animais ferozes,
valentes, vorazes por carne crua e por isso a antítese da pessoa noke ro’apa, isto é, do modelo
noke koĩ ideal de pessoa adequada, boa, paciente, generosa e comedida.
Como os bicho-yochĩ, os kamã são a expressão da anti-nokekoĩ-dade. São valentes,
encarnam figuras de alteridade e são predadores prototípicos. Os noke koĩ são presas para os
bicho-kamã tal como o são também para os bicho-espírito. Se yoina é caça, do ponto de vista
dos kamã, noke koĩ é yoina. Como os espíritos e ao contrários dos yoina, os kamã põem medo
nos noke koĩ, que por sua vez só comem o que tem medo deles98.
A definição de kamã como a antítese da humanidade e como mais próxima dos
espíritos que dos yoina nos dá pistas para entender melhor a qualidade da categoria yoina, que
além do critério alimentar conjuga critérios relacionais de posições nos cosmos.

98
Lima (2000a:188) afirma que kamã se opõe a yoina e é identificado como yoinama, isto é, não-yoina.
Yoinama, segundo a tese da autora, inclui os outros animais não comestíveis como posẽ (um tipo de preguiça),
por exemplo, isso porque para ela yoinama parece ser sinônimo de kamã enquanto animais não-comestíveis
considerados valente. As informações que obtive apontam que kamã é yoinama, mas nem todos yoinama são
kamã.
184

Kamã nõ, yoina nõ, noke koĩ nõ – posições relacionais

Quando dizemos que noke koĩ é yoina de kamã, está implicado que noke koĩ é
também kamã de yoina. Isso porque o que está em jogo são relações, mais que os conteúdos
dessas categorias. Kamã, yoina e noke koĩ se definem em relações transitivas e permutáveis.
São posições relacionais e não categorias ou classificações. Ser noke koĩ é ser outro do outro.
Para ser noke koĩ do tipo noke ro’apa as capacidades e agentividades de kamã devem ser
controladas. Uma pessoa noke ro’apa é comedida, paciente, pacífica e não voraz, feroz e
valente como kamã. Ser um ou ser outro depende do controle das fronteiras entre suas
posições.
Se, como disse Viveiros de Castro (1996a:126), o que define a humanidade é a idéia
de um sujeito com ponto de vista, o que define essas posições e estabelece relações entre elas
é a capacidade de um ponto de vista, isto é, a humanidade potencial.
O corpo é inerente à capacidade humana de ponto de vista, mas não como uma
aparência exterior, mas como um conjunto de afecções, de modos de ser (Viveiros de Castro
1996a:128). Nesse sentido o aspecto morfológico dos kamã pouco tem a ver com a sua
posição, já que seu comportamento, suas vontades e sua perspectiva é que lhes confere
especificidade, e, no caso das classificações, sua especiação.
Assim que ser kamã ou yoina de noke koĩ significa estar numa posição ou em outra. A
oposição ontológica fundante entre os três se dá por suas afecções, que definem suas
qualidades contrastivas na relação entre eles.
Um mito sobre o fogo nos ajuda a entender algumas dessas afecções que marcam a
diferença relacional. A versão abaixo é a transcrição que me foi contada por Txoki, o pajé
rezador de Waninawa.

Mito da onça, o bacurau e a curica – Kamã, veshki nõ, porosh no’ãto txiki honẽti (ou Kamã,
Veshk Txere, Parosh To'och)99

Esses dois caçadores eram pessoas, gente também. Aí onde eles moram, eles não
sabem fazer fogo. Esse fogo que eles estavam usando era de outras pessoas. Eles estavam
pastorando o fogo, para não se apagar. Quando eles foram caçar pediram para os outros

99
Há uma versão marubo desse mito em Melatti 2001.
185

cuidarem do fogo, para não se apagar. Passaram dias. Eles chegaram de tarde, com as pacas,
com as caças. Cozinharam pedaços de paca. Na hora da comida, falaram:
- Ah vocês não podem comer, porque nós tivemos tanto trabalho para matar essa
paca. Não podemos dar para vocês.
Os outros ficaram tristes:
- Rapaz! O que é que nós vamos fazer? Nós estamos com tanta fome...
Só eles comeram. Essas duas pessoas comeram sozinhas todas as pacas que mataram.
Só jogavam osso para os bichos roer. O bacurau não roeu osso, porque não tem dente para
roer. Agora, a curicazinha roe qualquer coisa, porque tem dente amolado.
No outro dia, foram de novo caçar:
- Você pastora o fogo, para não se acabar.
Eles voltaram tarde, e perguntaram pelo fogo. Aí cozinharam paca, mas não pelaram
ela não. Naquela época, dizem – minha mãe e meu pai falavam – que não se pelava:
cozinhava com cabelo e tudo. Era só na hora da comida que tirava o couro e jogava no mato
com cabelo. Aí comia a carne.
E lá eles ficaram. Jogavam osso para esse homem, jogava outro osso para aquele e não
davam carne para comer. Eles ficavam chorando para comer, mortos de fome.
Quando foi outro dia, foram caçar de novo. Ai combinaram os outros dois:
O que é que nós vamos fazer?
O que é que nós poderíamos fazer era pegar o fogo, deixar lá em cima no toco e
apagar com água fria.
Daí esse homem daqui falou para esse homem daqui:
– Você fica aqui na terra. Eu vou lá em cima, pastorar o fogo no toco.”
E ele ficou no toco. Ele é difícil para ver, esse bicho que gosta de se esconder.
Quando foi tarde, os caçadores chegaram:
– Ah, cadê nosso parente?
Se escutou lá de cima, onde ele estava, ia subindo fumacinha de fogo, e tição de fogo
ia descendo devagarinho.
Olha aonde que eles estão! Lá em cima! Ah! Foram para lá.
Ah se nós tivéssemos adivinhado que ele ia fazer isso, nós tínhamos matado ele. Mas
ninguém adivinhou...”
E ninguém adivinhou. Ele apagou o fogo e escapou, foi embora.
- Eu estou vendo os pés desse outro aqui. Desgraçado! Ao menos dá um pulozinho
aqui para nós conversarmos.
186

Ele saiu voando. O caçador jogou uma flecha que tirou só as penas, mas não matou
ele.
Os caçadores subiram nesse pé de açaí lá em cima, lá no cacho. Aí saltavam, virava os
pés e sopravam, para ver se o solado dos pés pegava fogo. Mas não funcionava. Eles falaram
mais uma vez para o bichinho:
– Vem trazer fogo para nós comermos paca.
Esse bichinho de lá voou. Nem esse daqui, nem esse daqui viram mais ele. Para poder
voar, ele virou bunda para cá. Parece que cagou em cima desse fogo e apagou tudo de vez, e
foi embora.
– Ah não tem mais outro jeito para fazer. O que é que nós vamos fazer?
Quando foi de tardezinha, o caçador falou outra vez:
– Não tem outro meio para fazer... é... vamos comer cru, nós vamos comer cru.
Combinaram os dois. O outro falou:
– É, nós vamos virar onça, vamos virar onça, comer cru e virar onça.”
Eles começaram a comer cru, começaram a comer cru, e quando foi de noite, no outro
dia, já eram onças. Aí já eram onças.
Nesse tempo eles eram gente, mas na hora da apagação do fogo eles viraram bicho. E
assim ficou.
Muitas vezes o kamã dessa história é traduzido para o português como onça, mas
algumas vezes, assumindo que eu entendia o que abarcava a categoria e querendo enfatizar a
moral da história, kamã era dito apenas na língua, estando evidente entre nós que não se
tratava de cachorros domésticos, mas de um tipo de bicho que come cru. Assim, aposto na
possibilidade de kamã nessa história ser mais do que onça, ou antes uma referência ao
comportamento e agentividade de animais kamã. Essa história conta que os noke koĩ, ao
perderem o fogo, viraram kamã. Essa transformação aponta para uma origem comum, mas
também para o fato de que kamã é o inverso de noke koĩ e vice-versa. De acordo com esse
mito poderíamos dizer que em certo sentido kamã é noke koĩ sem fogo, afinal é a perda do
fogo que faz dos noke koĩ kamã. Mas o inverso dessa proposição, de que noke koĩ sem fogo é
kamã, me parece uma possibilidade bem mais assustadora e interessante.
A transformação imposta pelo fogo ao alimento é um marcador ontológico da
diferença com yochĩ e kamã100.

100
Sobre a versão marubo desse mito dentro do complexo de mitos marubo, Melatti (2001) afirma que há um
antagonismo entre onça e fogo que é expresso em outros mitos, em que personagens canibais identificados como
187

Código alimentar

O corpo é matéria sustentada por yochĩ, sem ele não há corpo, apenas carne. Ao comer
um animal a intenção é absorver sua carne, a parte do corpo que, sem yochĩ, comporá o corpo
de quem consome. Não há a intenção de adquirir aspectos do animal consumido, apenas sua
carne. O consumo de sangue e de carne crua com sangue é por isso evitado, consumir sangue
é consumir yochĩ, uma vez que o yochĩ se transporta pelo sangue. Eliminar o sangue é uma
tentativa de eliminar essas características. E como aponta Fausto (2002), nesse processo de
dessubjetivar a carne o fogo de cozinha tem um papel fundamental. Assim, o preparo da carne
em uma escala de com mais yochĩ para uma com menos yochĩ pode ser posta da seguinte
maneira: moquinhada, assada e cozida. Tornar o corpo de pessoa em alimento, em apenas
carne é uma maneira de se posicionar no cosmos como pessoa noke koĩ e não como kamã.
Yoina como já vimos tem yochĩ como os noke koĩ e por isso, consumir o animal em sua
condição de corpo de pessoa, isto é, cru, seria se comportar como kamã. Comer carne crua é
afecção de kamã.
O que se come como noke koĩ é o mais próximo do pólo da humanidade do que do
pólo da alteridade101 e isso deve a duas razões: ao passado de condição humana comum com
os yoina e à definição de pite koĩ, comida apropriada. Como vimos no mito de origem dos
animais, os yoina já foram gente e mais que isso, parentes noke koĩ.
A ausência de separação categórica na taxonomia entre noke koĩ e yoina, como vimos,
é sentida, em contraposição, pela presença de um marcador forte entre estes e as plantas, já
que aproxima mais humanos e animais do que qualquer um deles das plantas. Essa ausência
de um marcador de diferença entre humanos e animais tão evidente quanto entre eles e as
plantas encontra, para além da taxonomia, uma reverberação cosmológica nas condições
comuns aos noke koĩ e aos yoina de terem yochĩ e de terem um passado humano.
Assim a diferença entre noke koĩ e yoina pode ser notada em outras esferas que não
dos nomes e da morfologia. Quero destacar duas que me parecem similarmente importantes
para definir outros conjuntos dentro desse quadro macrotaxonômico que propus. São elas: o
regime alimentar e a relação com um terceiro termo, com os animais kamã.
A humanidade prévia dos yoina marca uma diferença em relação aos kamã. Em
oposição aos kamã, yoina são mais parecidos com os humanos. Por outro lado, os yoina como

onça só podem ser destruídos ou são quase exterminados pelo fogo. Nos noke koĩ isso se confirma em um mito
da avó canibal, em que seu filho tenta matá-la de várias formas, mas apenas o fogo é capaz de destrui-la.
101
Algo similar também é demonstrado por Lagrou para os huni kuin (1998, 2007).
188

os kamã não são parte da sociedade noke koĩ, e nesse sentido pertencem ao mesmo domínio, o
domínio da alteridade. Os noke koĩ são diferentes dos kamã desde quando yoina ainda era
noke koĩ. Os yoina são quase um subgrupo, um tipo, uma qualidade de noke koĩ que
compartilhando um domínio com os kamã se tornam caça para os noke koĩ. Assim os yoina
são caça por duas vias: por um lado, por não serem propriamente noke koĩ nem fazerem parte
da sociedade e por outro por serem mais parecidos com os noke koĩ do que com os kamã. A
sua proximidade dos humanos se dá pela condição humana compartilhada no passado e pelo
regime alimentar.
A humanidade compartilhada com os yoina os faz comida apropriada, pite koĩ, porque
se come o que é da mesma qualidade, o que é mais próximo do pólo da humanidade do que do
pólo da alteridade102. Os noke koĩ comem animais que comem vegetais e animais que comem
carne e vegetais, isto é, herbívoros e onívoros, transformados pelo fogo em apenas carne. Os
kamã comem carne crua e são essencialmente carnívoros, isto é, comem essencialmente
carne. Os noke koĩ preferem onívoros à herbívoros mas come-se os dois, já carnívoros não
são considerados em nenhuma hipótese comestíveis103. Os noke koĩ consideram pite koĩ,
(comida apropriada, adequada, de gente) justamente a refeição onívora, carne e macaxeira, em
contraposição ao kamã, alteridade extrema, anti-noke koĩ que se alimenta fundamentalmente
de carne crua. A proximidade entre noke koĩ e yoina pelo passado humano comum e pelo
regime alimentar também comum permite que yoina seja comida apropriada só pela
transformação de seus corpos em carne. O mesmo no entanto não funcionaria para o corpo de
kamã. Não é possível transformá-los em carne, em alimento, porque são demasiada
alteridade104. Se o que se come conforma o seu corpo, não é recomendado comer carne
excessivamente outra, por ser justamente muito diferente, por ser o oposto da humanidade. E
por isso os kamã são incomestíveis.
Porém, ainda que adequado, parte fundamental do pite koĩ, o consumo de yoina é
simultaneamente apropriado e perigoso. Exige, como já foi falado, a transformação de corpo
em carne, já que o que se come é a carne que constituirá sua carne. Se por um lado o
compartilhamento de um passado e da condição humana em comum é o que torna carne de
yoina adequada, por outro, é exatamente isso que exige cuidados, dieta e restrições.
102
Com relação aos huni kuin, Lagrou tem mostrado que essa relação, de parentesco passado e regime alimentar
partilhado de modo que é talvez ainda mais evidente. A maioria das caças comestíveis pertence deste modo a
uma categoria chamada yuinaka huni kuinki, isto é, “caça com a qualidade de ser humano”. (Lagrou 1998 e
2007: 355).
103
Essa é uma das razões pela qual comer onça parda (kamã hõchi, também conhecido como jaguarundi) é
controverso. A maioria não admite comer, mas afirma que algumas pessoas comem.
104
Esta lógica se assemelha à lógica huni kuin onde quem come sangue é yuxin e/ou predador (Lagrou 1998,
2007).
189

Quando se está doente o yochĩ do yoina pode se sobrepor ao do humano enfraquecido


pela doença o que pode ter consequências mais graves105.

As plantas pite koĩ

Ao contrário dos yoina, as plantas não têm uma origem humana comum aos noke koĩ e
isso se expressa, como vimos, numa separação categórica na taxonomia entre noke koĩ e
plantas. Para além da taxonomia, os fatores cosmológicos dessa distinção têm consequências
importantes nas relações entre noke koĩ e as plantas das quais o regime alimentar parece ser
uma dessas relações mais expressivas.
Como acabamos de ver, para os noke koĩ, aquilo que está mais próximo do pólo da
humanidade do que do pólo da alteridade é critério importante na definição do que se come,
porque o que se come é uma afecção de um corpo que pode ser, conforme seu comportamento
e preferência alimentar, corpo de noke koĩ ou de kamã. O pite koĩ (que é comida de gente) é a
refeição onívora, a mistura de carne e vegetais, isto é, de yoina transformado em carne com
vegetais106.
A humanidade compartilhada com os yoina os fazem comida apropriada porque se
come o que é da mesma qualidade, o que está mais próximo do pólo da humanidade, mas se
as plantas não têm uma humanidade evidente o que as faz pite koĩ?
Antes de mais nada é preciso saber que não se trata de quaisquer plantas. Os noke koĩ,
como muitos grupos, diferenciam os vegetais em dois grandes grupos: plantas e mato. As
plantas (que não são mato) no entanto não são só as cultivadas, outros termos desestabilizam
o dualismo entre plantas cultivadas e não cultivadas. De maneira generalista, poderíamos

105
Outra consequência dessa qualidade de ex-noke koĩ dos yoina aplica-se ao caçador. Um caçador iniciante
nunca come o primeiro animal que caça. Lima, E. (2000) acrescenta que a proibição vai aos poucos sendo
relaxada a medida que mata outros animais. Lima afirma que à medida que vai abatendo mais animais “o rapaz
passa a poder consumir a parte traseira do animal, recusando a dianteira. O caçador iniciante só poderá consumir
livremente todos os animais após ter firmado o seu status abatendo uma determinada quantidade de presas,
variável entre quatro e seis. Uma carreira promissora de caçador pode se arruinar caso não sejam seguidas essas
recomendações. Os bichos tornam-se ariscos e o caçador apenas com as técnicas que domina, não consegue
abatê-los.”(2000: 204). Para mais sobre as dietas dos noke koĩ ver Rosa da Silva (2012).
106
A importância, para os huni kuin, de se comer o que é próximo em vez de distante levou Lagrou a aproximar
a lógica do endocanibalismo funerário huni kuin da prática de comer somente caça que era parente, nos tempos
míticos, evitando o consumo da caça que era inimigo, tendo em vista que os últimos podiam se vingar na forma
da ação dos duplos. A importância do cozimento prolongado visava produzir uma carne com um mínimo
possível de yuxin. Os comedores de carne crua não são considerados comestíveis pelo fato do sangue veicular
yuxin (Lagrou 1998, 2007).
190

dizer que os noke koĩ concebem suas relações com as plantas por um sistema tripartido de
mato, plantas cultivadas e plantas não-cultivadas que não são mato.
Há uma diferença significativa entre as plantas cultivadas em roçado e as demais
plantas. As cultivadas no roçado são extremamente dependentes do cuidado humano. As
plantas (não mato) da mata, no entanto, têm certa independência dos noke koĩ e a sua relação
com eles é fundamental na medida que as torna plantas, e não mato. É a mútua percepção que
garante a existência dos dois, e que institui uma relação intraespécifica na floresta, que se dá
por uma linguagem diferente da do roçado e da caça.
Poderíamos dizer que existem três tipos genéricos de plantas: 1) plantas de roçado,
que podem ser de dois tipos; roçado de terra firme e de praia; 2) plantas de caminhos, mata,
aceiros e lugares de passagem e 3) plantas do mato, que não são cultivadas pelos noke koĩ,
apesar de terem com elas uma outra relação de consumo.
Vejamos primeiro como são as relações no roçado.

Roçados – wai

A macaxeira e a banana são a base da alimentação dos noke koĩ, sobretudo na aldeia, e
por isso são também os principais produtos do roçado. Mas, além da banana e da macaxeira,
são também plantados no roçado a batata doce, o inhame, o milho, a abóbora e a taioba. Esses
dois últimos costumam ser plantados em terrenos arenosos de praia, mas na sua ausência,
como é o caso na TI Campinas, podem também ser plantados no roçado. Fora desse roçado de
batatas, milho e abóbora, planta-se cana, mamão, laranja, biribá, ingá, goiaba, manga, caju,
coco, melancia e amendoim. Melancia e amendoim também não compartilham o roçado com
as demais plantas de roçado, costumam ter seus próprios roçados, em geral em beira de rio e
por isso, e por dependerem de um terreno arenoso, não são cultivados na TI Campinas. Todo
o resto que não é plantado no roçado é plantando em outros lugares, como aceiros de roçado e
aldeia, caminhos e lugares de visitação frequente. Esses gêneros, no entanto, diferente dos
produtos do roçado, são plantados sem um preparo prévio da terra e da muda ou da semente.
Pitomba, aricuri, sapotá, jaci, imbu, cacau, biorana, murmuru, jenipapo e jarina, por sua vez,
são outro tipo de plantas. Não são nem de roçado, nem consideradas cultivadas. São plantas
do mato.
191

Entre as plantas cultivadas, a macaxeira é, além de parte fundamental na base


alimentar, o principal legume107 de cultivo. Regionalmente referida como roça, é ela que dita
o tempo de plantio de outras plantas. Assim, há plantios simultâneos ao plantio de manivas
(carás, batatas, banana, milho), plantios anteriores (batata doce, taioba, inhame, amendoim e
outros plantios de praia onde há rio) e plantios posteriores ao de manivas (milho, algodão,
urucum).
Além das plantas que servem de alimentos, outras também são cultivadas, como
algodão, urucum e tingui. Plantas medicinais em geral não são plantadas, mas pode-se
encontrar um ou outro pé de cipó e de chacrona (chamada regionalmente de rainha) e algumas
poucas variedades de folhas medicinais no aceiro da aldeia.
Cada planta tem uma técnica de manejo e isso tem a ver com uma espécie de caráter
da planta que gosta e se dá bem, ou não, com certos atributos da terra.
Há na região quatro tipos de terra e um de areia para plantio identificados pelo noke
koĩ.
TIPOS DE SOLO
SOLO TIPO ASPECTOS PRÓPRIOS DE:

terra de praia, de amendoim, abóbora e melancia


areia machi mai
baixo ou várzea roça de 6 meses

terra preta de terra


mai txeshe Banana e roça
firme (é rara)
terra com areia
mai machi branca de terra firme macaxeira de batata grande, batata e inhame
(mais comum)
terra
terra barrenta e
mai hõshi muito argiloso, não presta para plantio
vermelha
controversa, alguns dizem que presta para
milho, arroz, macaxeira e mudubim
mai poto terra amarela e solta
outros dizem que não presta para nenhum
plantio.
Tabela 12 - Tipos de solo

O gosto de cada planta é a própria relação que ela estabelece nesse meio. As raízes das
macaxeiras não negociam bem com os terrenos muito argilosos e não se desenvolvem bem. É
o mesmo fator que determina a maneira adequada de colocá-las no roçado. Há plantas que se
semeia, isto é, se joga a semente sobre a superfície, outras que se enterra, como as manivas, as
plantas que moram em covas estreitas e outras em covas profundas. E assim algumas podem
ser plantadas com espeques de paxiúba, outras exigem outros métodos.
Em geral o mesmo local pode comportar roçados por 2 ou 3 anos, sendo refeitos
anualmente. Depois disso são abandonados para o crescimento de capoeiras. A área só não é

107
Na região, muitos grupos indígenas traduzem as plantas cultivadas dos roçados como legume.
192

abandonada depois desse tempo se ainda estiver produzindo inhame ou banana. Em geral os
bananais surgem aí, de um roçado esgotado que, continuando a dar banana, passa ser
exclusivo de banana. Por isso é muito comum que os bananais sejam mais próximos das
aldeias que os roçados. Os roçados na TI Campinas têm se deslocado para mais distante da
aldeia em um espaço de tempo menor, isso porque o solo já se encontra muito desgastado e
há, por desequilíbrio ambiental, uma intensa infestação de pragas; mandruvá e formiga de
roça.
O ciclo das plantações em terra firme (wai koĩ), que no caso da TI Campinas é a única
forma praticada, dura entre um ano e um ano e meio. Geralmente maneja-se dois roçados de
terra firme, plantados em anos subsequentes. O roçado novo, com exceção do milho, só
produz cerca de um ano após plantado, o mais rápido é 6 meses para uma espécie específica
de roça, que muitas vezes é tirada ainda pequena com 4 meses. Assim que, enquanto esse
roçado novo não dá fruto, o roçado velho colocado no ano anterior serve para esperar que o
roçado novo comece a produzir. Acontece, não raro, de alguns roçados velhos se esgotarem
antes do novo começar a dar. Nesse caso, é comum usar o roçado do cunhado ou do irmão.
Em algumas aldeias consorcia-se milho e macaxeira no roçado novo justamente para
aproveitar o ciclo mais curto do milho, que é mais ou menos 4 meses, para esperar o
amadurecimento da macaxeira de 6 meses.
Atualmente a produção do roçado na TI Campinas é pequena, e isso se deve a vários
fatores, entre eles as pragas de roça, a improdutividade do solo já muito degradado e a baixa
participação dos jovens nas atividades de roçado. Recentemente, os roçados coletivos têm
aparecido em algumas aldeias com o intuito de concentrar trabalho para botar um roçado
grande que possa atender a todos, inclusive quando o roçado familiar estiver esgotado.
Quando dispõem de um território com presença de rio, os noke koĩ plantam nas praias,
locais fertilizados sazonalmente na estação de inverno pelas enchentes do rio. Os roçados de
praia não são praticados na TI Campinas por falta de um rio grande, de barrancos e de
terrenos arenosos e úmidos como as praias. No entanto, os noke koĩ na TI Gregório mantêm
esse tipo de cultivo. A limpeza do roçado de praia é uma tarefa bem mais leve que a broca e a
derribada da terra-firme. A vegetação que se forma de um verão para o outro é
predominantemente de embaúbas, cana brava e capim, facilmente removível com terçado.
Os noke koĩ os descrevem como roçados de verão, de curto prazo, já que as colheitas
têm que acontecer antes da temporada de chuvas. Em geral é de abril a setembro que se
cultiva nas praias amendoim, abóbora e melancia. Podem ser coletivos ou familiares. O
193

preparo inclui a participação de homens e mulheres que limpam a praia juntos. Depois de
limpa, os homens abrem as covas e as mulheres e as crianças plantam as sementes.
Os roçados de praia produzem até mais ou menos agosto. O ciclo de plantio dos
gêneros que aí são plantados são em geral de 4 a 6 meses, o que é muito conveniente pois
evita as primeiras alagações do inverno de aterrar e arrastar as plantações.
Num território ideal o manejo de diferentes áreas – terra firme e praia – permite ter
roçado o ano todo.

CALENDÁRIO DE ROÇADO TI CAMPINAS

JAN FEV MAR ABR MAI JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ

limpeza do X X X
roçado ♂♀ ♂♀ ♂♀
colheita arroz,
X X X
milho, banana, ♀ ♀ ♀
cana
X
broca ♂
X X
derribada ♂ ♂
secagem do
X X X
derribado
X X
queima ♂ ♂
esfriamento X
X
coivara ♂
X
plantio ♂♀
primeiros
legumes do X X X
roçado novo
tempo de frutas
X X X X X X
do mato
fartura de
banana, cará e X X X
macaxeira
Tabela 13 - Calendário de roçado TI Campinas/Katukina

Ainda que o roçado seja colocado apenas uma vez por ano, a sua retroalimentação no
momento mesmo da colheita e do consumo, garante uma plantação e maturação em diversas
épocas do ano. Sempre que no roçado se colhe uma batata doce, por exemplo, as pontas das
batatas cortadas que caem no chão eventualmente se tornarão novos pés. O mesmo acontece
com macaxeira, mas esse plantio intencional mais descuidado acontece sobretudo com outros
gêneros que não têm o momento certo de serem plantados. É o caso por exemplo das frutas,
como mamão, maracujá, goiaba e outras, que vez ou outra podem até serem plantados ao
redor da casa, mas que em geral são plantados no ritmo da vida cotidiana. Quando sementes
194

são jogadas fora, quando o resto das refeições é despejado no aceiro da aldeia, e quando ao
comer no local mesmo da coleta se deixa cair no caminho da mata as sementes que podem
gerar novos pés e atrair animais que garantirão a sua distribuição pela área.
O que pode parecer um acidente ou uma consequência natural sem intenção, isto é, o
que pode parecer não plantando, no entanto, revela sutilmente seu caráter de cultivo. O
mamão, a pupunha, o maracujá, o açaí encontrados na mata não têm seu roçado, mas foram
conscientemente plantados por eles e isso fica claro quando descrevendo antigos locais de
moradia dizem: “eu morei lá, tem uma capoeira grande lá e em volta está cheio de pé de
fruta.” A aldeia Waninawa (wani = pupunha), que passou por um difícil processo de
reconhecimento pelos demais parentes como uma aldeia, sempre foi justificada pela presença
de pés de wani que alguém no passado tinha sido responsável por estar ali: “a gente já morou
aqui antes, essa aldeia já existia desde antes, você pode ver que tem vários pés de pupunha
aqui, foi o avô de Patxara que deixou eles aí, porque eles são o povo da pupunha.” Uma vez,
ao ganhar um saco de maracujá com a recomendação de que guardassem as sementes para
plantar, disseram em tom de desdenho e piada que iam plantar sim, assim que depois de
comer fossem à mata cagar as sementes. Essa situação ilustra bem a agência de plantio que
pode parecer sem querer, mas que na verdade é só um outro método.
Como isso tem-se que além do roçado e da aldeia, os caminhos da mata, os aceiros do
roçado e da aldeia são também áreas de cultivo. Mas eu arriscaria a dizer que toda a área de
ocupação dos noke koĩ, isto é, todo seu território, e todos os lugares pelos quais eles passam
são áreas de cultivo, e não só num sentido potencial, mas de fato.
Podemos de maneira meramente analítica dividir os cultivos em alimentos plantados
no roçado logo após seu preparo e alimentos plantados cotidianamente. Essa última categoria
no entanto não exclui a primeira, já que mesmo os plantados pós-preparo do roçado seguem
sendo replantados sem muito preparo indefinidamente.
Os roçados me parecem ter uma intenção para além da de cultivar. São um meio de
instituir relações de cooperação, reciprocidade e trabalho que fazem (os três simultaneamente)
corpos e parentes.
195

Botar roçado

O roçado pode ser feito tanto na mata bruta como em capoeiras. Na TI Campinas não
existem barrancos e praias, mas os noke koĩ dominam técnicas de plantio nesse tipo de terreno
também. Os roçados em Campinas são sempre em terra firme e em geral, têm entre 1 a 3
quadras e podem ser familiar ou coletivos. A abertura do roçado, como é comum a muitos
outros povos indígenas, é feita pelos homens, o que não exclui a participação das mulheres,
mas é definido como uma tarefa masculina. Escolher o canto onde será colocado o roçado,
fazer a broca, a derriba e a coivara são atividades masculinas que podem contar com um certo
apoio logístico das mulheres e até de crianças.
O roçado é um espaço de produção de corpos, de relações, de parentesco e de
alimentos. Em diferentes etapas, todos participam; homens, mulheres e crianças. As crianças
com nove anos, trabalham no plantio com as mulheres e colaboraram no trabalho de coivara
com os homens. Um pouco maiores, com dez, onze anos, colaboram com terçados na limpeza
dos roçados. E assim o roçado se revela um ambiente pedagógico de aprendizagem dos
conhecimentos e técnicas que conformam os corpos e as relações entre parentes e com
ambiente. Como vimos no capítulo um, o trabalho em cooperação é fundamental para
manutenção dos laços de parentesco. Além disso, os conhecimentos sobre o ambiente,
anterior ao roçado e posteriormente gerado por ele, incluem desde os critérios de escolha da
área – tipo de terreno, posição solar, composição vegetal, tipo de solo – passando pelas
relações com outros seres do local, até técnicas corporais de lidar com as ferramentas –
terçados, machados, espeques, plantadeiras – e com as condições ambientais – mata bruta,
capoeira, controle do fogo na queimada, etc. Conhecer os ciclos do roçado, por exemplo, o
tempo de abertura, que deve ser impreterivelmente durante o verão, quando não há chuvas, é
fundamental e determinante para o resto do ano.
Quando chega o verão, inicia-se a primeira etapa da abertura do roçado: a escolha do
canto. Se puderem escolher livremente, os roçados vão ser sempre o mais próximo possível da
aldeia, mas isso nem sempre é viável. O desgaste do solo, ou a presença de pragas ou animais
que estragam o plantio influenciam a escolha. O solo argiloso é desejável para a macaxeira
em terra firme, mas precisa ser ao mesmo tempo uma terra solta, isto é, tem que ter um pouco
de areia solta misturada na terra. O solo muito argiloso (como o mai hõshi) dificulta o
crescimento das batatas e o trabalho posterior de arrancá-las. São terras boas para roçado a
mai txeshe e a mai machi. Mai txeshe é a terra preta de terra firme, raramente encontrada e
em geral de áreas de mata bruta, dá muita banana e produz macaxeira grande e rapidamente.
196

Mai machi é uma terra com areia, conhecida regionalmente como areiúsca, é a terra mais
comum e onde na maioria das vezes se colocam os roçados.
Outro critério na escolha do canto é a incidência do sol, a área deve ser ensolarada
para favorecer o crescimento rápido das plantas. Além disso, pequenos morros (ou superfícies
inclinadas) e os bicos de terra (topos de colina) são preferíveis a outras áreas por impedir
alagação no período de chuvas. Escolher entre capoeira ou mata bruta é outra questão. A
escolha nesse caso depende de pesar a conveniência de certos fatores108. As capoeiras são
mais fáceis de brocar, mas rendem menos e são mais suscetíveis às formigas de roça. A mata
bruta, por outro lado, dá roça maiores e mais grossas, mas demora mais para dar e a broca
exige muito trabalho. Por isso em geral a mata bruta é uma escolha dos mais jovens.
Uma vez escolhido o canto abrem-se os trabalhos de derriba e broca. Se o roçado for
ser feito em uma nova área, marca-se um pique estreito para definir a área do roçado e inicia-
se a broca. Broca (ou brocagem) é a retirada da vegetação mais rasteira e das árvores
pequenas, de tronco fino. A broca é rápida, até dois dias de trabalho e feita, em geral, toda
com terçado. Depois da broca vem a derribada que é mais trabalhosa, podendo levar até duas
semanas. Nessa fase as árvores maiores são derrubadas com machado. Em termos ideais a
broca e a derribada, como preparos preliminares, devem acontecer entre maio e junho, mas
em geral tem gente derribando até meados de julho. Depois que as árvores foram derribadas e
o terreno já foi brocado, espera-se de 2 a 3 meses para que a vegetação seque, para em
seguida ser queimada. Assim, junho, julho e agosto são meses de espera, sendo que em agosto
alguns já podem começar a queima. Quando se dispõe de área de plantio de praia é nesse
momento que se investe trabalho nos barrancos e beiras de rio para plantar amendoim e
melancia. De volta ao roçado de terra firme, depois de brocar e derribar, a queima depende do
tipo de terreno: em capoeira espera-se três semanas, em mata bruta, mais ou menos um mês.
Os homens tocam fogo na vegetação derribada por diferentes frentes da área, para isso usam
tochas de sernambi. O pique de delimitação da área ajuda a controlar o fogo para que ele não
avance sobre a mata. A queimada é uma atividade rápida, de um dia.
Agosto é o mês ideal para a queima pois tem os dias mais secos e quentes. Muitas
vezes antes de queimar, madeiras boas para lenha são recolhidas e só depois se ateia fogo.
Depois da queima, a área é limpa, são retirados os paus mais grossos e feito o aceiro. É a
última fase do coivarar, queimar e juntar os paus que não foram totalmente queimados.

108
O que distingue a idade das capoeiras – novas de 5 até 20 anos, velhas com 50 anos – e elas da mata bruta são
as espécies de vegetação presentes e a grossura de seus troncos. Algo que só um olhar muito treinado no
ambiente é capaz de determinar.
197

Foto 29 - Coivara da área de roçado – foto Metsa Varinawa

Quando se atrasa a derribada, a queima fica comprometida pois não há tempo


suficiente para esperar com segurança que a vegetação seque antes de chover. Ainda verde, a
vegetação incrementa o trabalho de coivara e é comum ter que fazer mais de uma coivara
antes do plantio. No entanto, nem sempre os noke koĩ encoivaram, prática mais comum aos
mais velhos. Então espera-se entre dez e quinze dias para que as cinzas da vegetação
queimada se assente no solo e a terra esfrie. Só então o terreno estará pronto para começar o
plantio. Até essa fase o trabalho é essencialmente masculino.
Quando o roçado é familiar, os homens contam com a cooperação de seus afins e se
revezam entre roçados, quando é coletivo todos os homens do grupo doméstico participam. É
comum o regime conhecido na região como adjunto, em que os homens da aldeia ou grupo
doméstico trabalham juntos e permutam diárias de trabalho entre si, os noke koĩ descrevem
198

esse sistema como mutirão. Daí para frente, o processo de botar roçado passa a envolver
mulheres e crianças. Se a broca e a derribada são feitas coletivamente, ou pelo sistema de
adjunto, a limpa e o plantio, por sua vez, são particulares, cada um faz em seu roçado. Assim,
se o roçado é familiar, o plantio é feito em família, os homens abrem as covas e as mulheres
ajudam a colocar as sementes, raízes ou manivas. Quem planta o quê é dado por uma divisão
de gênero: homens plantam milho, macaxeira e banana. As mulheres plantam taioba, batata,
inhame.
Ao longo dos doze meses de duração do roçado, são feitas duas grandes limpas no
roçado com participação de todos. Com o terçado retira-se o capim e o mato baixo que nasce
entre os legumes. Quando o roçado é feito em mata bruta a demanda de limpeza é menor que
em roçados de capoeira, onde a vegetação cresce mais rápido. De todo modo, diariamente
quando vão ao roçado as mulheres dão uma limpeza no entorno de onde estão colhendo.
Fora momentos muito pontuais – de botar o roçado e de limpar – o roçado é uma área
de trabalho exclusivamente feminino. Arrancar macaxeira, batata e cará, tirar banana e
quebrar milho são atividades essencialmente femininas. Sempre acompanhada de crianças, ir
ao roçado é uma atividade diária.

O que os roçados produzem

Os roçados em geral são divididos em uma área de roça (macaxeira), batata, inhame e
milho, que são plantados consorciados, e roçados separados desses, de cana e banana.
Quando se dispõe de áreas de praia, é lá que se planta abóbora e taioba, no caso da TI
Campinas, ambas são plantadas no roçado de batatas e milho. Quanto às bananas, alguns
costumam plantar touceiras no aceiro no roçado e como vimos são esses pés que muitas vezes
dão origem a bananais. Outros optam por abrir um pedaço da mata para o cultivo do bananal.
Os roçados de banana têm um durabilidade maior que os de roça. Os cachos são
retirados quando os frutos já estão de vez, isto é, quando já caiu o umbigo da banana. Assim
que retirados os cachos, corta-se o pé e deixa o filhote crescer. Além dessa técnica os noke
koĩ também plantam chifre da banana em diferentes estágios, aumentando o número de pés.
Esse replantio constante em diversas épocas permite que, apesar de em uma certa época do
ano se ter muita banana e em seguida a quantidade diminuir, a produção seja constante.
199

Ilustração 19 - Bananeira e suas partes

A banana e a macaxeira se dão muito bem juntas, mas a banana deve ser plantada a cinco passos de
distância das covas de roça.

A dieta noke koĩ tem na base da pirâmide alimentar a caça, a macaxeira e a banana e
ainda que a macaxeira seja fundamental, a banana ocupa um lugar especial. Frequentemente
afirmam que pode faltar tudo menos banana, que banana é o que garante o crescimento das
crianças, que mesmo quando há um momento de escassez de comida se houver banana
ninguém adoece.
Os noke koĩ têm uma variedade extensa de bananas. Me foram identificadas 14
qualidades109.
110
MANI BANANA
QUALIDADE CONSUMO
pasha crua
shoi assada
tokoata cozida
noa sopa
Caiçuma
awa mani banana grande Cortada e cozida na água. Depois de cozida, é
mani matxu
amassada com um pau dentro da panela, até ficar
homogêneo. A caiçuma de banana não é mastigada.
Mingau
mani mutsá Ralada e posta em água quente. Acrescentada ao caldo
de peixe ou carne e cozida até que se desmanche.
poto mani chifre de bode mesmo consumo da awa mani
mani hõshi madura
koro mani banana maçã
tokoata cozida
não identificada, mani hõshi madura
tsami mani semelhante a
tokoata cozida
banana maçã
hosho mani hõshi madura
banana branca
mani tokoata cozida
comprida, casca
himi mani mani hõshi madura
amarela, não

109
Lima (2002) identificou outras quatro qualidades: ywi mani, txintxo mani, nai mani e tapanã mani.
110
A identificação dessas espécies foi feita pelos noke koĩ que quando conheciam o nome regional traduziam o
nome dado na língua, quando não sabia descreviam características morfológicas.
200

identificada
toshe mani banana prata mani hõshi madura
mani hõshi madura
nawa mani banana inajá
tokoata cozida
banana peito de
kõta mani mani hõshi madura
moça
mani hõshi
madura assada
shawa shoi
banana ouro
mani mani hõshi
madura crua
pasha
banana caru ou
koni mani roxa ou são mani hõshi madura
tomé
banana baé, ou
roe mani nanica ou mani hõshi madura
d’água
não identificada,
oi mani semelhante a mani hõshi madura
roe mani
banana figo ou
no’o mani mani hõshi madura
sapo
Tabela 14 - Mani - Banana: qualidades e consumos

Igualmente diverso são os tipos de macaxeira, também chamadas de roça ou atsa. Ela
está presente em todas as refeições, geralmente cozida no vapor (tokoata atsa) com chicória e
tampadas com folhas de sororoca.

Ilustração 20 – Chicória

A sororoca pode ser de plantada (cultivada) ou da mata (braba), mas, como a chicória,
em geral é da mata. A macaxeira é consumida também como caiçuma (asta matxo), como
farinha (roro), beiju e tapioca (tava atsa).
Entre variedades conhecidas me foram apontadas as seguintes111:

ATSA MACAXEIRA
CASACA CASCA PROVÁVEL
TEMPOS PARA
QUALIDADE FINA GROSSA BATATA ASPECTOS QUALIDADE
COLHER
(PELÍCULA) (CÓRTEX) REGIONAL
dá para
hãtash na’a marrom roxa dá em 6 meses
vermelha comer e curuméia
atsa escuro pequena roçado dura 1 ano
fazer farinha
grossa, dura
dá em 12 meses
marrom e amarga
rõpi atsa creme branca roçado dura até 2 fortaleza
escuro raízes
anos
retorcidas
shaka ponã marrom curumim
roxa branca
atsa escuro mansa
mari shoma dá em 12 meses,
amarela amarela creme mole e doce amarelinha
atsa rende 2 anos

111
Lima (2002) registrou outras cinco variedades: weroshi atsa, peitxorish atsa, karawanovi atsa, vawa koro
atsa e pei hõshi atsa. As espécies listadas no quadro acima foram descritas pelos noke koĩ em entrevista e, vez
ou outra, apontadas quando tínhamos algum exemplar em conversas informais e idas ao roçado.
201

marrom cruzeiro do
txeshe atsa creme branca dá em 12 meses
escuro sul
caboquinha
marrom brava, usada
caboquinha amarela creme dá em 12 meses ou
escuro para farinha
caboclinha
marrom vermelha macaxeira
hõchi atsa roxa mole e doce dá em 1 ano
escuro alaranjada vermelha
dá em 7, 8 meses
pequena
hosho atsa branca mole e doce e dura até 1 ano e campa
branca
meio no roçado
dura, usada
arara arara
para farinha
marrom pequena
maiya atsa
escuro branca
dá em 6 meses
marrom pequena doce, boa
vata atsa roxa dura até 1 ano no cumaru
escuro amarelada cozida
roçado
Tabela 15 - Atsa - Qualidades de macaxeira

Muitas das variedades que os noke koĩ conhecem eles já não plantam porque perderam
as manivas.
Para o plantio, as manivas são enterradas uma por cova, com uma passada de distância
entra elas. Quando a macaxeira atinge mais ou menos um palmo, planta-se o milho, que
também é plantado a um passo das covas da macaxeira. A qualidade txeshe atsa se dá bem
com a banana poto mani, chifre de bode, e por isso costumam ser plantadas no mesmo roçado.
Diferente de outras regiões do Brasil em que o termo macaxeira é usado para
distinguir as mandiocas mansas das bravas, isto é, das venenosas, na região onde estão os
noke koĩ hoje não há essa distinção. Eles mesmo sempre afirmam que mandioca, macaxeira e
roça são sinônimos. A distinção brava e mansa é aplicada para a relação estabelecida com a
variedade, isto é, plantada, cultivada, ou do mato, que nasceram espontaneamente em alguma
capoeira de roçado antigo. Assim, mandiocas com alto teor de ácido cianídrico podem ser
mansas, no sentido de que são cultivadas. Pelos noke koĩ esse tipo de cultivo é raro, mesmo
porque a apropriação da prática de produzir farinha tão comum entre outros indígenas da
região não teve muito sucesso entre os noke koĩ, que comem farinha quando há roça
excedente mas não costumam produzi-la. Projetos do governo de casa de farinha são sempre
fracassados, as casas se deterioram, os equipamentos estragam e parecem não fazer muita
falta. Como o consumo de farinha é uma alternativa na ausência da preferência geral que é a
mandioca cozida, eles preferem comprar de outros parentes ou vizinhos e até na cidade
paneiros da farinha pronta. A distinção portanto entre macaxeiras venenosas e comestíveis é
dada por um critério de paladar, isto é, amargas ou doces.
202

Ilustração 21 - Ilustração pé de macaxeira e suas partes

Os caules são chamados de maniva e as raízes de batata. Planta-se roça e manivas, come-se
macaxeira ou a batata.

Além da macaxeira e da banana, também são plantados no roçado uma série de outros
legumes e frutas. Atualmente os noke koĩ elencam como plantas de roçado: taioba, inhame,
batata doce, milho, abóbora, arroz e cana.
A taioba, o inhame e a batata doce são plantados junto com a roça. O plantio desses
tubérculos é tarefa das mulheres e, como vimos, são plantados antes da macaxeira.
Diferentemente da taioba do sudeste, da qual se come apenas a folha, da taioba, yovi, do
roçado noke koĩ se consome a raiz. Sua presença é cada vez mais rara no roçado, mas em
algumas aldeias se encontra até 3 variedades: koro yovi, maspã yovi e kamanã yovi. As raízes
podem ser cozidas (tokoata) ou assadas (shoi) com casca na brasa.
O inhame e a batata doce também são consumidos cozidos ou assados. Os inhames,
poa, são comuns em todas as aldeias, tendo se tornado atualmente, ao lado da taioba e da
batata doce, mais raros em Masheya. Na TI Campinas são cultivadas quatro qualidades de
poa, algumas delas classificaríamos como inhame e outras como cará (Dioscorea sp. e
Colocasia sp.). São elas: hovo poa; hosho poa, txeshe poa e peshe poa.
POA INHAME
ASPECTOS
QUALIDADE
CASCA BATATA
hovo poa marrom amarelada
hosho poa marrom branca
peshe poa marrom branca
txeshe poa preta branca
Tabela 16 - Poa - Qualidades de inhame
203

As qualidades de batata doce (kari) variam de aldeia para aldeias e no total são 7, entre
elas: hama kari; mochka kari; mawash kari; honoma kari; hosho kari; txeshe kari; hõshi kari:
batatas de casca roxa com polpa branca; casca roxa com polpa amarela; casca amarela e polpa
amarela; casca branca-amarelada com polpa branca; casca branca e polpa branca (hosho kari);
casca preta e polpa branca (txeshe kari); casca rosada com polpa amarela (hõshi kari)112.
As mais comuns em todas as aldeias são a roxa de polpa amarela, a branca de polpa
branca e a preta.
O milho atualmente não é plantado em todas as aldeias, apesar de ser muito apreciado.
O milho é plantado junto da roça. O milho se planta três caroços por cova, com uma passada
de distância. Milho e macaxeira se dão bem juntos, mas têm de ser plantados em momentos
diferentes. Diferentemente de outros grupos da região, como os huni kuin, os noke koĩ
plantam o milho depois da roça, pois como plantam roça e milho consorciados, o rápido
crescimento do milho faz com que ele faça sombra sobre os pés de roça e atrapalhe o
crescimento das macaxeiras (cf. Funai 2008). O milho dá antes da macaxeira e por isso
funciona muitas vezes como a mistura substituta enquanto a roça ainda não está madura. Na
TI Campinas são conhecidas quatro qualidades.

SHEKI MILHO
QUALIDADE CARACTERÍSTICAS
É o famoso milho massa. Muito apreciado e
tido como muito nutritivo e especial para
caiçuma. Atualmente os noke koĩ não
Sheki koĩ dispõem mais da semente, apesar de ser
bastante comum entre outros grupos da
região. É descrito como uma variedade
amarela, macia e de polpa com muito amido.
Yara sheki É o milho de pipoca, duro.
É uma outra variedade de milho duro,
atualmente rara entre os noke koĩ. Usado,
Ano matxati
como o yara sheki, para fazer uma farinha
sheki
(sheki poto) em geral consumida com mani
mutsa.
Conhecida regionalmente como milho anão, é
Himi sheki uma qualidade de milho muito amarelo, de pé
rasteiro que produz pouco.
Tabela 17 - Sheki - Milho: qualidades e caractéristicas

112
Infelizmente os dados não foram corretamente anotados em campo e a associação do nome com a descrição
ficou comprometida para pelo menos três qualidades.
204

Atualmente as qualidades consumidas na TI Campinas são a himi sheki e o milho da


Embrapa, cujas sementes são compradas no litro em agroveterinárias da cidade. Ambos são
consumidos verdes assados (sheki shoi), verde cozidos (sheki tokoata), como pamonha
(hishkõ) e torrados.
O arroz é raramente plantado113. E quando é feito exige uma área só para ele, em geral
no baixo e/ou em área de roçado próximo a igarapés.
O jerimum ou abóbora, warã, é como o amendoim, um legume típico de roçado de
praia, mas que na ausência de terreno apropriado na TI Campinas, são plantados no aceiro dos
roçados e próximos aos igarapés. Na TI Campinas, se come pouco warã, de dois tipos e
recebem o mesmo nome. Uma delas, conhecida regionalmente como jerimum e no sudeste
como moranga, tem a casca laranja e lisa, é arredondada com gomos e amassada em cima e
embaixo. A outra é muito parecida com a que conhecemos no sudeste como abóbora de
pescoço: tem um formato alongado e a casca rajada de verde escuro e laranja, é fibrosa e mais
doce que o jerimum. Ambas são consumidas cozidas ou assadas.
Tanto a cana quanto o mamão são cultivo que raramente são consumidos na aldeia.
Ambos em geral são comidos no roçado. Quando são levados à aldeia são para as brincadeiras
de cana e mamão (tavata e shõpa wesiti), que evidentemente, terminam sendo consumidos
depois114.
Na TI Campinas existem duas qualidades de cana: kaoya tavata, de caules arroxeados
e tavata hõchi, macia e muito doce, muito comum no Acre, regionalmente conhecida como
cana piojota roxa. A cana e a banana se dão bem e, segundo os noke koĩ, juntas aumentam a
produção.

113
Produzido ou comprado na cidade o arroz é cozido (vimi tokoata) de maneira peculiar para os yara: a uma
panela com água fervente se acrescenta o arroz sem lavar e espera que a água seque, praticamente sem sal e
algumas vezes cozido junto a algumas pimentas de cheiro regionais.
114
Essas brincadeiras, além de recreativas, têm um cunho educativo, na medida que envolvem lições de regras
de cooperação, relações de gênero, economia, condicionamento e preparo do corpo para as atividades cotidianas,
como lavar roupa, caçar, abrir e manter os roçados. Elas são um momento de convivência e atualização de regras
culturais entre o grupo e, ao mesmo tempo, de avaliação da resistência do corpo do jovem para as atividades
adultas de roçado e caçada. Essas brincadeiras da cana e do mamão se ligam a alimentação não apenas pelo
preparo físico para o roçado e a caçada, mas também pela atualização de uma prática de economia noke koĩ em
que as mulheres controlam a distribuição do alimento: a brincadeira se baseia em uma disputa entre homens e
mulheres por um mamão, as mulheres estão autorizadas, ao contrário dos homens, a usar de tapas e socos para
conquistar o mamão das mãos dos homens que estão limitados a resistir às investidas das mulheres e a reagir
verbalmente. Ao agarrar o fruto, as mulheres o entregam às mulheres mais velhas, que em geral só assistem. Um
dos objetivos finais do jogo é que as mulheres tenham posse de todos os mamões em jogo. O fato do jogo só
terminar com a posse de todos os frutos pelas mulheres pode ser aproximado da regra de economia comunitária
em que os alimentos (carne de caça, por exemplo) e a comida preparada são distribuídos pelas mulheres. Para
mais sobre as brincadeiras noke koĩ ver Avelino de Castro (2013).
205

O mamão (shõpa) mais comum é o conhecido como mamão caipira, ou mamão-da-


índia. De casca lisa, oval e grande, com gomos longitudinais e polpa amarela clara, firme e
menos doce que o papaya.
Outra fruta que os noke koĩ cultivam no roçado e no aceiro da aldeia é o ingá (shenã).
Eles citam doze qualidades de ingá sendo algumas delas cultivadas e outras do mato. As
qualidades se diferenciam pelo tamanho do fruto e relações morfológicas ou de consumo com
certos animais. O ingá plantado mais comum é o hisã shenã, o ingá de metro. Tanto o do
mato quanto o plantado dá no inverno. Quando na mata atrai muitos animais: porquinho,
veado, cotia e todo tipo de macacos.

SHENÃ – INGÁ
QUALIDADE CARACTERÍSTICAS

hisã shenã Ingá de metro Qualidade cultivada


O macaco capelão gosta de comer e a vagem lembra o
ro’o shenã Ingá capelão
rabo dele.
wasa hina O macaco de cheiro gosta de comer e a vagem lembra
ingá do macaco de cheiro
shenã seu rabo.
pishi shenã Ingá trançado de palha A vagem se parece com o trançado de jaci, pishi
ronokato vagem é enrolada, parecendo rabo de cobra.
Ingá cobra enrolada
shenã kato(dobrar, enrolar) rono (cobra).
pitso poko a vagem parece tripa (poko) de periquito (pitso)
Ingá tripa de periquito
shenã
Mãpa shenã Ingá barata A vagem parece uma barata
kapõ shenã Ingá sapo kãpo Vagem verde da cor do kãpo
kape vero O caroço parece o olho do jacaré
Ingá olho de jacaré
toko shenã
ketxo shenã Ingá enrugado Ingá do mato de vagem enrugada
katxa shenã Ingá azedo O caroço é azedo (katxa)

komã shenã Ingá inhambu


Tabela 18 - Shenã - Ingá: qualidades e características

O asha, tingui, é a única planta não comestível plantada no roçado, ainda que não
junto dos legumes, uma área próxima a roça é dedicada ao tingui. O tingui é uma planta de
verão, geralmente plantada em abril. Os noke koĩ cultivam duas qualidades: asha koĩ, de flor
branca e asha hõchi, de flor vermelha. O tingui é plantado como mamão, jogando a semente
sobre a terra sem enterrá-la. Como a macaxeira, seus pés precisam estar limpos por baixo
durante o crescimento.
O tingui é muito usado pelos noke koĩ na TI Campinas, uma vez que lá só há igarapés
e o tingui é usado somente em pescarias de igarapé. O preparo consistente em separar as
206

folhas do galho e machucá-las com um pilão. A coleta compete às mulheres e pisar aos
homens. As bolas de tingui amassado são depositadas no poço do igarapé. Dado o efeito sobre
os peixes, eles são coletados com cesto pelas mulheres e com terçados e com as mãos pelos
homens e crianças. Os peixes são depositados nos cestos que as mulheres carregam. Essa
prática tem sido criminalizada pelos moradores vizinhos dos assentamentos, que afirmam que
a escassez de peixe no igarapé Campinas se deve a essa prática dos noke koĩ. O plano de
gestão da TI previa um acordo de não usar tingui, mas diante do acordo não cumprido pelos
vizinhos e do costume de se mariscar assim, a proposta não foi acolhida.
Fora do roçado outras três plantas são cultivadas em geral no aceiro da aldeia ou atrás
da casa e/ou perto da cozinha, são elas: o urucum (mashe), o algodão (washme) e a pimenta
(yotxi). O urucum é usado para fazer uma pasta para pinturas de objetos e do corpo, inclusive
mais usado que o jenipapo, e também para temperar carnes e peixes ensopados. O algodão,
usado em redes, colares, arcos e chapéus, é cada vez mais substituído por linha de algodão
comprada na cidade. É raro fiar algodão na TI Campinas, o mais comum são os barbantes e
linhas de crochet. A pimenta mais apreciada pelos noke koĩ é a pimenta do reino, usada para
temperar ensopados e algumas vezes adicionada ao rapé, mas o cultivo na aldeia é apenas da
pimenta de cheiro regional.

As plantas não cultivadas da mata – ni’i

A partir dessa digressão etnográfica pode-se notar que o roçado é um lugar de relação
de cuidado e investimento de trabalho cooperativo e que por isso contrasta com a mata e com
as plantas da mata que não são plantadas. As plantas cultivadas têm ambientes e relações
muito distintas das não cultivadas, elas nascem no roçado, contam com o preparo e o cuidado
de noke koĩ. As plantas não cultivadas, nascem na mata e têm outras expectativas dos noke
koĩ que não de cuidado e criação. No entanto, ambas têm relações bem definidas, têm nomes
e a sua etologia é bem etnografada pelos noke koĩ. O que difere as duas últimas é justamente
o tipo da relação estabelecida.
Algo semelhante ao que notamos entre a relação de noke koĩ e yoina, pode ser notado
aqui. Relegadas ao domínio da floresta, território do mato, as plantas não cultivadas exigem
que consideremos o mato como um terceiro termo fundamental para entender esse sistema. O
que queremos mostrar é que as plantas, como yoina, correspondem mais aos noke koĩ que o
mato, plantas indiferenciadas, antítese da relação e da socialidade.
207

Entre mato e planta – domínios cosmológicos

Entre mato, plantado e não plantado a diferença substancial entre os sujeitos é dada
pela relação que é de fato a diferença que importa. A relação, não sendo unilateral, não se dá a
partir de um sujeito particular, mas da possibilidade de um outro. Ser planta ou mato é uma
questão dos efeitos da presença de um sujeito outro, que não é apenas um outro sujeito
(Viveiros de Castro 2002e:117).
Sobre a relação entre o discurso do antropólogo e o discurso do nativo e as posições de
sujeito, objeto nesses discursos, Viveiros de Castro (2002e) expõe o conceito de Outrem
como estrutura a priori. Ele se apóia nos comentários de Deleuze ao Vendredi de Tournier
para falar do Outrem como condição do campo perceptivo e é sobre essa definição que me
apoio a seguir para tentar expor como essa relação entre mato, plantado e não plantado não
pode ser vista como unilateral, dos noke koĩ para as plantas apenas115.
Viveiros de Castro afirma: “o invisível para mim subsiste como real por sua
visibilidade para outrem” (2002e:118). O que é invisível a certos pontos de vista existe pela
possibilidade de ser visível por outro. Nesse sentido, mato traz o signo do não percebido entre
as plantas. A definição como mato indica o que não é percebido como possível de ser
percebido por outro. Se há noke koĩ é porque há outras espécies que não são mato e que lhes
garantem essa possibilidade. Eles têm sua existência garantida pela possibilidade de
percepção de outros que não são mato. Por outro lado, do ponto de vista dos noke koĩ, o que é
mato é só mato, porque a ausência da possibilidade de percepção funciona diluindo o sujeito e
o fazendo coincidir com as coisas em si (cf. Viveiros de Castro 2002e).
O mais importante porém é ter em mente que esse outro que possibilita a existência
pela percepção não é um sujeito nem um objeto, mas uma relação. É a “possibilidade de que
haja ponto de vista”, criada por essa relação.
Sendo assim, o que são plantas (cultivadas ou não, mas que não são mato) se define
numa relação em que os noke koĩ como sujeitos são efeitos (e não causa). São também a
consequência de uma relação e não só agentes que nomeiam e assim fazem surgir as plantas.
Com isso não quero dizer que as plantas existem antes do noke koĩ, como algo dado ou
natural, mas pelo contrário, que, em uma condição idêntica, tanto plantas como noke koĩ, têm
sua existência dependente de uma relação de mão dupla. De modo que os noke koĩ existem

115
Há outros trabalhos menos abstratos que falam de plantas que são gente. Entre eles, a tese sobre os Krahô de
Morim (2016) e Conklin (1989), sobre o milho que queria ser gente. Além é, claro, do caso regional do Acre das
plantas como o cipó, que ensinam e são gente.
208

como sujeitos porque existe um outrem, plantas, que lhes conferem a possibilidade de
percepção, e vice-versa.
É preciso, portanto, levar em conta a agentividade das plantas. Elas têm percepções
próprias sobre o mundo e não são definidas só pelos significados que os humanos produzem.
Como já proporam vários autores (Kohn 2013, Descola 1998, Viveiros de Castro 1996a,
Lima, T. 2005), os humanos não são os únicos sujeitos da floresta116.
A distinção planta/mato não é unilateral, dos noke koĩ sobre a cobertura vegetal. Ela é
causa e simultaneamente consequência de uma relação que faz dos noke koĩ sujeitos pela
percepção das plantas, e das plantas sujeitos pela percepção dos noke koĩ. Ser noke koĩ é um
mundo possível, que existe, mas só na expressão em outrem, se mato é só mato é porque a
existência do sujeito noke koĩ só é real na medida que existem as plantas (não mato). Se a
princípio a classificação dos seres da floresta nos parece exclusivamente humana, aos poucos
ela revela uma dinâmica relacional em que o sujeito da classificação (os noke koĩ) são um
efeito, resultado de uma relação. Por outro lado, se as plantas são os sujeitos da floresta, elas
só existem porque existem os outrem noke koĩ, que lhes dão percepção. A relação com a
cobertura vegetal é pois de mútua implicação.
Tendo isso em vista podemos partir para a descrição noke koĩ dessa relação outra que
constrói as percepções e possibilidades de existência. A distinção entre plantas domesticadas
e silvestres sofre uma complicação diante das categorias dos noke koĩ que, em lugar de
determinar o grau de submissão à ação humana (domesticação), estão preocupadas com os
investimentos da relação que as fazem existir sob uma definição de planta ou de mato. Entre
as variáveis mais importantes na qualificação sensível das espécies estão os hábitos e os
trabalhos/ações investidos na relação.
Se, como veremos, no roçado a relação é muito mais substancial e consanguínea, na
mata a relação com as plantas não cultivadas é de reciprocidade e diplomacia.

A relação com as plantas cultivadas

O cultivado e o não cultivado passa pelas noções de uma relação de cuidado que cria
uma descontinuidade entre espécies. Fundamentalmente, tudo se cria a si mesmo, mas não
isolada ou independentemente. Roçados e noke koĩ se criam mutuamente. O cuidado com o
roçado é a contribuição noke koĩ para as condições de desenvolvimento das qualidades das
116
Kohn (2013) usa a expressão ecology of selves para definir a floresta como habitada por seres vivos sujeitos
com pensamento vivo.
209

plantas do roçado. Esse cuidado transforma a matéria do roçado, que, em contrapartida,


transforma os que o consomem.
O roçado noke koĩ é sobretudo de banana e macaxeira. A esses dois gêneros é
atribuída a capacidade de criar corpos fortes, fazer as crianças crescerem e engordarem. A
banana é reconhecida pelo potencial de fazer carne, de tornar os corpos grossos e pesados. A
macaxeira está diretamente associada à produção de sangue, sêmen e leite. O sangue é o
veículo privilegiado das substâncias, onde elas se encontram concentradas. A macaxeira
quando consumida se transforma no corpo da mulher em sangue menstrual e no homem em
sêmen. O primeiro passo na construção do corpo de uma criança se dá justamente pela fusão
entre sangue menstrual e sêmen acumulado por várias relações na barriga da mulher117.
Depois quando nasce, a criança se alimenta de leite e quando cresce mata a sede com
caiçuma, ambos produto da macaxeira.
A macaxeira e a banana são portanto fundamentais para a construção do corpo, da
consaguinidade e da consubstancialidade, uma vez que criam matéria, substância e veículos
de consubstancialidade. Tem-se portanto que, como para outros ameríndios, para os noke koĩ,
os vínculos consanguíneos não são dados, são construídos na fabricação dos corpos, que
também não são inatos, exigem sua construção como corpo de noke koĩ, que sem esse
investimento é apenas carne. A semelhança entre corpos de parentes é feita o tempo todo, de
banana e macaxeira, pela ingestão compartilhada de substâncias e pelo trabalho em
cooperação.
A circulação de substâncias de mesmo tipo em diferentes corpos os torna parentes. A
ideia de que a substância transporta pensamentos e características é a base da ideia
amplamente difundida entre os ameríndios de dietas e interdições a pessoas próximas a
doentes ou crianças pequenas. A substância conecta as pessoas de tal maneira que o que
comem ou fazem agem sobre as pessoas que compartilham dessa substância comum. Essa
ideia de consubstancialidade (parentes próximos que compartilham substâncias corporais) se
estende portanto ao que se come, não só pelas características intrínsecas daquilo que se come
– um bicho rastejante que pelo seu comportamento implica em prejuízo a grávidas na hora do
parto –, mas também pelas substâncias que carrega. É o caso das carnes de yoina que nos
corpos de doentes têm consequências maléficas e da comensalidade que cria consanguinidade.
O roçado é um lugar de socialidade a parte da aldeia, onde irmãos cooperam entre si
no trabalho de abertura e onde parentes próximas (irmãs, mãe, filhas) se encontram e se

117
Essa teoria da concepção é comum a outros grupos amazônicos e havia sido descrita para os noke koĩ por
Lima (2000a:54).
210

visitam, para ajudar nas atividades do plantio ou para conversar, confiar segredos e atualizar
as notícias sobre os acontecimentos recentes. O roçado é também para as mulheres um refúgio
para onde se vai quando se está triste, com saudade, com raiva ou em trabalho de parto. É um
lugar onde se faz filhos - encontros sexuais - onde se traz eles ao mundo e onde se cultiva,
cria e reproduz vegetais essenciais à conformação dos corpos dos parentes da aldeia.
Sendo assim, o roçado é um lugar de consubstancialidade por duas vias: uma, por ser
um espaço de socialidade de mães, irmãs e filhas e fabricação, através do trabalho coletivo de
homens e mulheres, de parentes consubstanciais; e outra por produzir corpos-vegetais que têm
substância desse trabalho coletivo e que conformam corpos e partes de corpos que são
veículos de substâncias entre parentes118.

Criando corpos: fabricar e educar

Como foi dito, os corpos das crianças são construídos pelas substâncias de seus pais e
depois cotidianamente construídos pelo convívio, pelo cuidado da criação e pela
comensalidade. É assim que as crianças adquirem as substâncias de seus pais e irmãos em seu
corpo, e assim portanto que elas se tornam parentes, ou, em outras palavras, é construindo
corpos que se constrói a consanguinidade. Assim como as crianças, os produtos do roçado
recebem cuidados de criação e através desse cuidado, do trabalho e do convívio recebem
substâncias das mulheres que os cultiva. Os produtos do roçado são resultado do esforço do
trabalho. Como já vimos, o trabalho cooperativo cria laços entre parentes e justamente esse
aspecto do trabalho que confere aos cultivares do roçado substância de quem os trabalha. O
trabalho cria também a relação de posse, os produtos do roçado são da mulher que o cultiva.
O trabalho consanguiniza os produtos do roçado de duas maneiras; pela posse e substância e
por ser cuidado e preparado por uma pessoa de um grupo de consanguinidade.
A relação entre o preparo dos produtos do roçado e a consanguinidade está no trabalho
feminino, no cuidado e no depósito de substância das atividades. As mulheres transformam
raízes cruas em alimento apropriado, como operam outras transformações: sangue e sêmen
em bebês e caiçuma de macaxeira em sêmen e em leite. Ao mesmo tempo tal como quando se
cria os filhos, no preparo dos produtos do roçado se incute substâncias próprias do seu grupo
de parentes119. Além disso, preparar comida é cuidar de seus parentes próximos e é um dos

118
Sobre a criação de relações de parentes através da conformação dos corpos ver McCallum, C. 1999 e 2001.
119
Sobre essa transformação do alimento apropriado em corpo de parente, Lagrou afirma que, entre o huni kuin,
o milho vira sêmen e essa transformação de vegetais em fluidos nutritivos (sêmen e leite) implica na criação de
211

cuidados maternos em relação aos filhos. Cultivar alimentos é semelhante à concepção120:


transforma-se substâncias que, ao fim do processo, conformarão corpos. Apesar da analogia,
entre os noke koĩ a correlação entre filhos e os produtos do roçado não é tão direta121. No
entanto a maternidade me parece um modelo de relação que pode ser aproximado dos
cuidados do roçado.
Entre os noke koĩ, criar coincide com cuidar: - dar banho, comida, educar, controlar as
substâncias, moldar o corpo e o acompanhar em tarefas diárias. Esse conjunto de cuidados é
uma relação de intensa consubstancialidade e reciprocidade. Os vínculos estabelecidos com a
criação comprometem os filhos às relações consubstanciais com seus pais, pelo quais em
contrapartida à criação dada a eles na infância retribuem com dietas quando em estados
liminares, participam na caça e nos produtos da pesca e ajudam nos roçados. Além é claro de
companhia, afeto e cuidado. No roçado como em casa, as mulheres exercem sobre os
produtos do roçado uma espécie de autoridade materna, cuidando e restringindo o
comportamento das plantas. Justo ao contrário do que se tem na caça, em termos de relações
de sedução e de predação, no roçado a linguagem parece ser mais imperativa e condutiva122.
As plantas do roçado retribuem o cuidado com produtos vegetais, uma relação de parentesco
baseada no dom e na troca123.
Muitas etnografias contemporâneas conectam as plantas com a maternidade124.
Igualmente comum na literatura é a associação do universo feminino às características e aos
processos de manufatura da mandioca. C. Hugh Jones (1979) por exemplo, explora a
combinação dos processos de produção da mandioca e da caça com os processos de

corpos humanos, isto é, uma relação de transformação da semente vegetal em corpo de gente. Para mais, ver
Lagrou 1998 e 2007.
120
Entre os huni kuin existe uma associação bem mais explícita dessas correlações que se expressa inclusive na
língua. A forma verbal de "cozido" significa criar, procriar e nascer. “Cozinhar alimentos (bova) é análogo a
fazer bebês. Do mesmo modo, potes e panelas são análogos a úteros”(McCallum 1999: 10).
121
Não existe entre os noke koĩ uma associação entre o cuidado do roçado e uma noção de criação no sentido
parental (de maternidade, pais e filhos) expressa tão claramente como apresentam Descola sobre os Achuar
(2014), Rival sobre os Huaorani, (2001 e 2005) Taylor sobre os Jivaros (2001) e Maizza (2012: 49) sobre os
Jarawara. Descola afirma: “la mujer achuar se apropia de modo putativo de la relación de maternidad entre
Nunkui y las plantas cultivadas” (2014: 292). Maizza propõe: “[…] todas as plantas domesticadas, ou seja,
plantadas pelos Jarawara, são também e ao mesmo tempo espíritos no céu chamados de 'filhos' daquele que a
plantou e filho da espécie vegetal à qual ela pertence”. (2012: 49).
122
Maizza, (2014: 501) fala de como o cuidado e a sedução, próprios da criação dos filhos e do casamento, são
reproduzidos nos roçados e de como ouvir as palavras e serem olhadas por seus donos fazem as plantas
crescerem. Taylor (2001) também mostra como os cantos anent, também usados para seduzir cônjuges,
colaboram para se ter bons roçados.
123
Nesse sentido, os roçados apontam que, para além das plantas medicinais, há uma possibilidade de falar da
interação com as plantas numa outra linguagem que não do xamanismo e da predação. A comunicação com a
alteridade entre os noke koĩ nem sempre é uma comunicação xamânica e isso me parece notável sobretudo nas
relações com a plantas do roçado. De maneira similar, Taylor (2001), Overing (2006), Maizza (2014) e Cabral
de Oliveira (2012) também apontam para relações entre plantas fora desse campo conceitual da predação.
124
(Taylor (2000); Descola (2014); Rival (2001, 2005); Cabral de Oliveira (2012), Morim, (2016), etc.
212

reprodução dos grupos sociais. Ela aponta para operações simbólicas que associam as
atividades femininas barasana e a construção do corpo da pessoa, onde há associações entre o
possível aspecto fálico da maniva e o pênis, que introduzida na terra fértil, identificada com o
útero, gera raízes como crianças, que paridas no roçado são levadas por um caminho, por
onde entra a maniva para o roçado e sai a mandioca para o consumo, que é como o próprio
cordão umbilical da criança.
Entre os noke koĩ não há associações tão explícitas quanto ao caráter materno do
plantio de roçado. No entanto algumas pistas apontam para uma relação de caráter
simultaneamente consanguíneo e materno.

Filhos e pais de criação

Entre os noke koĩ, ainda que todos do grupo doméstico estejam sempre olhando, que
as irmãs da mãe cooperem nos cuidados e que as avós tenham intensa participação na
educação das crianças125, os pais são apontados como os responsáveis pela criação. Ainda
assim, é comum que uma pessoa seja criada por um pai ou uma mãe adotivos. Em geral
nesses casos o pai se casou com outra mulher e o filho vindo morar com ele assume a mulher
do pai como mãe. O mesmo pode acontecer com a mãe que se casa com outro homem. Mas
nesses casos de adoção, a aceitação da mulher do pai (ou marido da mãe) como mãe (ou pai)
só se dá quando o filho ainda é uma criança, que ao longo da vida irá se referir ao pai/mãe de
criação como pai/mãe. Apenas e só quando questionada é que explicará se se trata de pai/mãe
legítimo ou de criação. O aspecto sanguíneo perde foco para o da consubstancialidade e as
referências às relações de parentesco prevalecem sobre os nomes de modo que os termos de
parentesco se ajustam126.
Outro tipo de criação adotiva muito comum é de avós que criam netos. A adoção por
avós me parece ser um caso especial de relação com estatuto diferente da dos pais e filhos;
uma relação de ternura e companheirismo diferente da dos pais. Os avós, em geral, são mais
comedidos, calmos e pacientes, têm mais recursos, sociais e de conhecimento, e tudo isso
contribui para uma relação de criação de outro tipo. Além do mais em casos que a criança

125
Lima (2000: 45) afirma: “O vínculo entre avós e netos […] é bastante reforçado entre os Katukina, que
chegam a assumir que os primeiros são mesmo responsáveis pela educação das crianças”.
126
Ewa é o termo usado para mãe, seja ela legítima ou classificatória. Na primeira geração ascendente todas as
mulheres são ewa ou natxi (irmã do pai FZ), o que quer dizer que a mãe e a irmã da mãe são ewa, ewa legítimas.
Homens e mulheres chamam suas mães de ewa e só as mulheres chamam eventualmente sua filha de ewa. Uma
mãe só chama sua filha de ewa se o nome público da criança for o da sua mãe (MM) o mesmo pode ocorrer com
um homem - de chamar seu filho de papa caso a criança tenha como nome público o nome de seu pai (PP).
213

recebe o nome do avô ainda vivo, a relação entre ela e o avô de seu nome torna-se muito
estreita justamente por essa herança. De todo modo tal como a adoção pela mulher do pai ou
marido da mãe, a adoção por avós tem uma forte conotação de consubstancialidade. Sobre
esses casos Lima pontua que, apesar dos avós serem tomados como os responsáveis pela
educação da criança, a motivação de ficar com um dos netos lhe parece ser mais uma maneira
de atrair os próprios filhos de volta, do que uma intenção com fins pedagógicos. (2000a: 45).
A hipótese da autora encontra respaldo em vários casos etnográficos. Os netos são como um
resíduo da relação com os filhos e me parece que por isso, de certa maneira, obrigam os pais a
sempre visitar os avôs que criam seus filhos. A distância que enfraquece os laços de
consubstancialidade pode assim ser dirimida, e assim, manter um neto é manter algum
vínculo, já que a obrigação da visita força a renovação desses laço.
O que quero destacar é que mesmo nas criações por adoção a relação de
consubstancialidade parece ser uma dimensão de forte importância. Em ambos os casos a
adoção não vem de uma ausência de pais, não se dá por pessoas sem vínculos, pelo contrário,
ela se dá onde já existe uma consubstancialidade de fundo. É justamente nesse aspecto da
criação que acredito que podemos aproximar a criação dos filhos ao cuidado dos cultivares do
roçado. Uma contraposição relevante é a criação de animais domésticos por exemplo, que
sendo totalmente de outro tipo, não corresponde a essa idéia de cuidado e educação que se
tem no trato com as crianças e com os vegetais do roçado. Notavelmente esse tipo de criação
não inclui a consubstancialidade. Os animais que chegam à aldeia são órfãos, em geral
filhotes encontrados na mata ou cujos pais foram abatidos na caça. Ainda que alguns recebam
nomes de espécie diferentes quando na aldeia e na mata, não há interesse em controlar suas
substâncias nem seu comportamento127. Lima chama atenção para a perda do estatuto
selvagem desses bichos que, criados na aldeia, recebem termos vocativos e de referência
distintos daqueles aplicados a seus pares que vivem na floresta. A autora destaca que, no
entanto, diferentemente de outros grupos indígenas amazônicos, entre os noke koĩ esses
animais criados na aldeia não estão impedidos de serem comidos. Assim, a ideia de criação
investida nesses animais é contrastiva com a ideia de criação fundada na consubstancialidade
(isto é, na criação de corpo através do compartilhamento de substancias, como vimos até aqui)
por se comunicar num idioma de predação, que a assemelha muito mais da ideia de criação
envolvida nas relações de dono de espécies tal como propõe Fausto (2008), envolvendo

127
Para os diferentes termos usados para animais criados na aldeia e seus correlatos silvestres ver anexo L com
tabela extraída de Lima (2000a).
214

controle e proteção128. Nesse sentido, a criação de animais órfãos aponta, por contraste, uma
importante distinção entre dois modos de criar: um ligado a ideia de criação de corpos e outro
marcado por relações de predação. Aqui as plantas estariam numa relação mais próxima da
das crianças que dos animais órfãos. Animais, outrem e órfãos, nunca se incluem numa
relação de criação, cuidado e educação129. E portanto, a adoção das plantas do roçado, isto é,
o cultivo com tons de criação, se aproxima muito mais das crianças do que de animais órfãos
de caça.
De todo modo a correlação entre filhos e os produtos do roçado entre os noke koĩ me
parece ser antes metonímica que denotativa ou metafórica. Ela aponta para uma relação entre
os dois em que os roçados têm aspectos em comum com os filhos e por isso são descritos por
características de filhos. Isso porque existe uma relação entre os dois: são usados para
construir os corpos dos filhos e compartilham uma mesma relação de cuidado, orientação e
consubstancialidade. Assim são mais como uma espécie de proto-filho do que um filho
mesmo. Crus, eles ainda exigem elaboração para se tornaram substância adequada do pite koĩ.
A semelhança entre a criação das crianças (de seus corpos como consanguíneos) e o
cultivo do roçado aponta para processos de transformação similar, a consaguinização. Tudo se
passa como se o cuidado com o roçado – abrir, limpar, replantar e dar manutenções diárias –
funcionasse como uma consanguinização da alteridade vegetal. O cuidado com o roçado, a
adoção das plantas, oferece a essas alteridades substância e relações noke koĩ. Além disso, o
roçado pode ser visto como um pré-cozimento das plantas, como é a fabricação dos corpos
dos filhos, um cozimento, um preparo de corpos, que no caso do roçado produz uma proto-
pessoa, o "filho" do roçado. Um filho vegetal cru a quem ainda falta uma transformação final
para torná-lo alimento apropriado a integrar-se aos corpos noke koĩ.
Como vimos, os produtos do roçado, paralelamente ao sangue – substância
fundamental para a procriação humana – criam sêmen e leite para fazer filhos e transformam
e conformam corpos de parentes. Essa função fundamental dos vegetais do roçado, somada à
relação de cuidado em que são envolvidas, é o que lhes confere um lugar privilegiado na
eleição para compor, ao lado da carne, o pite koĩ.

128
Fausto afirma: “a relação modelar de maestria-domínio seria, pois, a filiação adotiva, relação que não é dada,
mas constituída frequentemente pela dinâmica que denominei predação familiarizante.” (2008: 333). Segundo o
autor a predação familiarizante é um esquema de relações predatórias que se convertem em relações assimétricas
de controle e proteção (Fausto 1997).
129
Mas isso não significa, mantendo a simetria do raciocínio, que os parentes sejam definidos apenas pela
criação, cuidado e educação, como já vimos, outros fatores influenciam essa definição, como trabalhar, comer e
morar juntos.
215

Se a condição humana comum do passado com os noke koĩ é o que aproxima os yoina
da humanidade em oposição aos bichos kamã, o que aproxima as plantas cultivadas de roçado
dos noke koĩ é a relação de cuidado e criação que injeta substância humana pelo trabalho a
esses cultivares e assim os opõem às outras plantas.
A qualidade prévia de proximidade com os humanos que faz dos animais yoina parte
do pite koĩ precisa, para os vegetais, ser construída pela consubstancialidade. Assim, em
contraposição à qualidade inata dos yoina como pite koĩ, as plantas do roçado exigem a
construção dessa qualidade, pelo cuidado e pelo trabalho.
Curiosamente, como os noke koĩ, ambos surgem da terra: os noke koĩ e os yoina
mitologicamente – como vimos nos mitos de origem –, e as plantas cultivadas, atualizadas nos
roçados. Ambos são, em oposição a outros de mesma qualidade – isto é, outras plantas e
outros animais –, aproximados da humanidade. Um duplo movimento que aproxima certos
vegetais dos noke koĩ – que diferente dos yoina não compartilham uma humanidade prévia –
para em seguida desubjetiva-los, como os yoina, através do fogo.
Tudo se passa como se as plantas cultivadas fossem como os animais onívoros, as
plantas não cultivadas como os herbívoros e o mato como os kamã. As plantas cultivadas
tornam-se, através de uma consanguinidade construída, mais próximas da humanidade e
assim compõem preferencialmente o pite koĩ. A elas seguem as plantas da mata, que junto das
plantas do roçado, se opõem fortemente ao mato, signo entre os vegetais da anti-socialidade.

As plantas não-cultivadas

Como temos visto até aqui, o que difere as plantas (não mato) entre si como cultivadas
e não cultivadas são as relações estabelecidas com elas. O que difere as plantas do mato do
mato em si é a relação delas com os noke koĩ, que é um caso particular de relação que transita
entre esferas ontológicas (humana e vegetal).
Como vimos essas relações podem ser entendidas pela oposição estrutural entre elas e
o mato. Além disso, a relação entre elas tem uma dimensão perspectiva que faz dessa relação
uma espécie de instância gerenciada por posições. Vejamos então os detalhes dessas posições.
Há plantas não cultivadas, como a pupunha, e plantas não cultivadas que são mato ou,
sob outra perspectiva, capoeira de outros bichos, roçado antigo de algum bicho, que cresceu
só, ou coisas que nasceram e se criaram no mato e que não são plantadas por ninguém. Nesse
216

sentido, o que é plantado e o que é não plantado tem uma dimensão perspectiva, já que o que
não é plantado pelos noke koĩ pode em alguns casos ser o roçado de outrem.
Em 1952, Lévi-strauss afirma que existem muitos estágios intermediários entre a
utilização de plantas no seu estado selvagem e seu verdadeiro cultivo. É o caso das plantas
não cultivadas que não são mato. As plantas do mato são as plantas fora do roçado com as
quais os noke koĩ têm diferentes relações: trata-se de frutíferas, palheiras, cipós e plantas de
potência xamâmica.
As plantas do mato que compõem a dieta dos noke koĩ e as que servem de materia
prima para construções e utensílios são um tipo de vegetação que não se define propriamente
como planta cultivada, mas a ênfase na diferença entre elas e o mato indica uma relação
especial. Essas plantas não cultivadas podem ser dividas em: úteis, medicinais e comestíveis.
Vejamos como é a relação de cada um desses grupos com os noke koĩ.

Plantas não cultivadas: plantas úteis

Entre as plantas do mato, outras, como as frutíferas, não são cultivadas. Entre elas
tem-se:
PLANTAS ÚTEIS
nome regional
nome utilidade
em português
paneiro, vassoura, cesto, para
ayãsh koĩ cipó titica
queimadura de aplicação de kãpo
korã seringueira tirar borracha
nane janipapo pintura
shevõ jaci telhado
asha tingui pesca
itivi sapota parede, assoalho
ta'o paxiuba parede, assoalho
koshã cedro tábua
shevo jaci telhado
pite ouricuri telhado
hishi envira amarrações
Tabela 19 - Plantas úteis

Podemos dizer que essas plantas úteis e as frutíferas se conectam (em oposição às
medicinais, por exemplo) por serem plantas que contam com os noke koĩ na sua reprodução
para dispersar suas sementes e colaborar na sua concentração em uma área própria delas. Em
certo sentido são plantadas, mas não cultivadas, porque ao contrário das plantas do roçado não
dependem de cuidados, de induções, educações, preparos e ordenações.
217

Entre as plantas não cultivadas, que não são mato, algumas têm alma (yochĩ); é o caso
das medicinas, ráo. Essas plantas com alma em geral estão associadas às relações que mantêm
com outros seres - cobras e sapos e outros bichos-espírito. Como vimos, há uma série de
plantas da floresta que foram plantadas pelas cobras, que são cultivo de rono. Sendo que
algumas têm uma origem humana na mitologia130. Como os animais a que se relacionam,
essas plantas têm intenção e vontades.

Plantas não cultivadas: medicina rao

A concepção de uma lógica do sensível é apresentada por Lévi-Strauss na obra O


Pensamento Selvagem (1970 [1962]). Em contra das teorias que atribuíam ao pensamento de
outros (aqueles fora da ciência) um baixo nível de abstração por se basearem apenas em
interesses utilitaristas ou afetivos, Lévi-Strauss demonstra que o conhecimento desses outros
segue ideias abstratas que ordenam e atribuem sentido tal como o pensamento científico.
Lévi-Strauss afirma que os processos e interesses nesse outro pensamento operam por meio
de uma lógica do sensível. A esse pensamento o autor deu o nome de ciência do concreto por
lidar com qualidades concretas para estabelecer ordenamento lógico. Essa maneira de
estabelecer relações entre elementos do mundo e categorias sensíveis é o que une pois dois
macro-conjuntos de relações dos noke koĩ com as plantas: plantas de potência xamânica
evidente e plantas não necessariamente de potêncial xamânico. Além disso, como veremos,
são as relações e a possibilidade comunicativa que as fazem plantas e não mato.
O que separa esses dois reinos vegetais, o xamânico e o cotidiano, são as
agentividades específicas de cada um e os modos de relações íntimas: o pajé casa com a
cobra-yochĩ, a mulher cria a raiz; um trata da afinaidade, o outro da consaguinidade.
Os cuidados cotidianos produzem consanguinidade e estão envolvidos no
desenvolvimento dos corpos131. Esses cuidados cotidianos, que conformam os corpos de
parentes apesar de extrapolarem os limites do domínio doméstico, num diálogo constante com

130
Os huni kuin contam que o cipó e as folhas usados no preparo da ayahuasca têm sua origem mítica no corpo
do primeiro humano que obteve os conhecimentos da ayahuasca através da família das cobras subaquáticas.
Depois de morto, do seu corpo enterrado brotam as folhas e o cipó. As plantas venenosas têm uma origem
semlhante. Segundo os huni kuin teriam surgido do corpo incinerado da primeira feiticeira, Yuxan kudu. Mitos
disponíveis no anexo M.
131
É bom deixar claro que esses cuidados cotidianos produzem consanguidade, mas não apenas
consanguinidade, umavez que se dão também com afins e não necessariamente os torna consanguíneos, isso
porque a peculiaridade envolvidas nos cuidados cotidianos que faz com que essas relações crie corpos de
parentes está no fato dela não agir isoladamente, mas em consonância com outras práticas que também
constroem corpos aparentados, tal como trabalhar juntos, por exemplo.
218

outros seres, não implicam necessariamente em cuidados de potências xamânicas. As dietas


que limitam a ingestão de carnes por exemplo têm por objetivo evitar que o corpo interaja
com outras espécies, no entanto, é livre o consumo de alimentos vegetais. Isso porque nem
todas as plantas têm potências xamânicas. As plantas do roçado constroem corpos e veículos
de substância mas não têm yochĩ. A consaguinidade a elas imputada no cultivo as torna mais
próximas dos humanos em oposição justamente a plantas com alma. As plantas com yochĩ são
a máxima expressão da humanidade extraordinária.
A relação entre conhecimento xamânico e o das plantas é frequentemente sublinhada
entre os grupos indígenas de língua pano. O xamanismo Shipibo-Conibo, por exemplo,
identifica como fonte do poder e conhecimento – cosmológico, tecnológico, terapêutico – aos
rao que, segundo Colpron (2005) e Tournon (2012a) remete sobretudo às plantas.
“os Shipibo-Conibo consideram que os ráo possuem suas “gentes” (ráo jónibo),
entidades que não apenas assumem a aparência de pessoas, mas o são realmente, e
que intervêm em favor dos humanos quando seu suporte é manipulado — por
ingestão, emplastro, sauna, banho — e quando certos tabus são
respeitados”(Colpron 2005: 109).

Sobre os huni kuin, Lagrou mostra como o nixi pae, (ayahuasca) é também chamado
também de huni, gente. É, portanto, a personificação vegetal de uma agência. Lagrou mostra
como nixi pae é simultaneamente a substância vital (sangue e urina) do ancestral Yube e
líquido vital que pertence à cobra grande, entidade sobrenatural ligado à anaconda, jiboia e
lua. O cipó nasceu do corpo enterrado de Yube e é simultaneamente a planta cultivada por
Yube (1996: 210; e 2013b). "O nome huni, gente para nixi pae refere-se a esta qualidade da
bebida de deixar aparecer as forças ocultas para o olhar humano como reconhecíveis,
entidades com corpo e rosto desenhados, que falam uma língua inteligível e agem com
vontade." (p. 210).
A identificação da ayahuasca como gente é muito recorrente em vários grupos
(Cesarino 2011: 175, Déléage 2009 :230)
Entre os yaminawa no Acre, a associação entre ayahuasca, pimenta, tabaco e potências
xamânicas é evidente em um mito que conta que um velho feiticeiro que teve plantado sobre
sua tumba pimenta, ayahuasca e tabaco, transforma-se, pouco tempo depois, em uma pequena
jibóia (Calavia Sáez 2006a).
Os noke koĩ contam que a floresta surgiu da cobra-espírito, de seu próprio poder, foi
ela que plantou (cf. Góes 2007). Por ter sido plantada por ela é dela que vem o conhecimento
que as plantas carregam. O que foi plantado por rono yochĩ não é considerado planta e
pertence ao ambiente da cobra-espírito-pajé. Assim que as plantas que têm o espírito da
219

cobra-pajé não são plantas, são mato, pertencem ao espaço da cobra-paje, são portanto plantas
da cobra-pajé e não dos noke koĩ. De maneira muito similar, os Sharãnawa afirmam que o
cipó e a chacrona são plantas dos mortos e enquanto dos mortos são selvagens e não são
cultivadas pelas pessoas vivas (cf. Déléage 2009: 123). Atualmente, na TI Campinas, pode-se
encontrar alguns pés de cipó plantados nos quintais das casas. A nova prática é atribuída à
influência de yara, e é amplamente criticada por alguns pajés-rezadores mais velhos, que
dizem que sendo plantadas por noke koĩ não têm a força do yochĩ da cobra. Que deixando o
domínio do roçado da cobra tornam-se planta sem yochĩ132.
Os huni kuin no breu e rio Jordão fazem um roçado a que têm chamado de Farmácia
viva, onde cultivam plantas medicinais as quais os noke koĩ não vêem como possíveis de
serem plantadas. Lideranças e AAFIs noke koĩ, no entanto, sempre se mostram dispostos a
essa proposta mas não se empenham na tarefa, em parte porque não são conhecedores das
plantas medicinais e em parte porque, como muitos não-lideranças afirmam, tem planta que
não dá de plantar. Quando questionados sobre esse último argumento, os AAFI sempre dizem
que tendo a semente você planta o que quiser, que qualquer coisa que plantar dá, mas que não
tem esse costume não, que nunca plantaram medicina. Mesmo diante dessa possibilidade
potencial de plantar medicina, o desinteresse por tal prática expressa a existência de um fator
importante na procedência dessas plantas, inclusive com consequência nas suas qualidades133.

As plantas do roçado da cobra-pajé:

Apenas o romeya (pajé) que teve um encontro com a cobra, e portanto, foi eleito por
ela, pode, através do consumo do cipó e do tabaco e da aliança com a rono yochĩ, acessar os
conhecimentos que vêm da floresta não cultivada por noke koĩ. Eles obtêm dos espíritos das
plantas seu conhecimento.
A pessoa que se especializa em capacidades xamânicas deve acumular amargor em
seu corpo. Ayahuasca, tabaco e rapé são eméticos xamânicos classificados como amargos e
portanto prescritos ao pajés. Tanto a ayahuasca quanto o tabaco são plantas da cobra-pajé e o
amargor que carregam são indícios da presença do seu yochĩ134. O consumo dessas

132
Vale lembrar que o conceito de yochĩ, amplamente usado entre os grupos pano, inclui as ideias de vitalidade e
agência intencional, sendo as substâncias seu veículo privilegiado.
133
Góes (2007: 129) afirma que há uma distinção entre plantas medicinais e remédios do mato.
134
O âmbito do poder yochĩ e do xamanismo é o da amargura. Lima (2000: 73) destaca que entre as substâncias
amargas, os remédios de plantas da mata são as mais mencionadas. O amargo está associado à boa disposição e a
sociaildade, ao domínio da caça e do xamanismo. A temática do sabor amargo associado ao conhecimento é
220

substâncias xamânicas carregadas de amargor favorece a absorção dos yochĩ das plantas que
passam a contribuir para a formação do corpo de pajé. O amargor acumulado pode vir a se
materializar sob a forma de flechas ou pedras. É o que os noke koĩ chamam de rome,
traduzido como pedra e como tabaco. Tornar-se pajé depende do acúmulo ao longo da vida
dessa substância que foi lançada pela rono yochĩ no corpo do iniciante quando eleito135.
Depois de lançado o rome, o processo de tornar-se conhecedor do poder xamânico da rono
yochĩ exige a ingestão constante de amargor, que pode ser conseguido através das plantas que
têm o yochĩ da cobra. Isso é comum a muitos grupos pano. Assim que os pajés huni kuin são
chamados mukaya (Lagrou 1998: 105-12, 2007: 314), isto é, que tem amargo, os yawanawa,
tsimuya (Perez Gil 2001) e os pajés marubo (Cesarino 2011: 94) e noke koĩ, romeya,
justamente por possuirem rome, substância muka (amarga), em seus corpos.
Por isso se diz que o uso de substâncias ao longo da carreira xamânica tem como
resultado a acumulação do poder xamânico, diretamente associado às qualidades próprias
dessas substâncias, seu yochĩ e suas qualidades sensíveis, entre elas o amargor. O aprendizado
estimulado por substâncias (sumo de folhas, tabaco, rapé, ayahuasca) provoca a
transformação fundamental no corpo para o desenvolvimento do conhecimento, da memória e
do poder, que serão concentrados no corpo; nas mãos, nos olhos, nos ouvidos, etc. São essas
transformações que fazem de um leigo um especialista, desenvolvendo no seu corpo a
capacidade de acumular o conhecimento que vem do yochĩ das plantas do roçado da cobra. É
esse yochĩ das plantas o responsável por potencializar as qualidades perceptivas do pajé.

Parte 2 - Plantas não cultivadas comestíveis: subsistência e mobilidade

É comum, como outros autores já pontuaram sobre outros grupos indígenas, os noke
koĩ dizerem que estão há 5 dias sem comer quando o que estão dizendo é que não ingerem
proteína animal há 5 dias. É uma afirmação comum entre alguns povos indígenas para se
referir à falta de caça ou ainda à necessidade da mistura de vegetal com caça (Kensinger

amplamente abordada na panologia, para mais ver: Erikson (1993 e 1996), Lima (2000) Calavia Sáez, Carid
Naviera e Perez Gil (2003), Lagrou (2007).
135
Segundo os noke koĩ a cobra possui rome e por isso é imortal e tem conhecimentos xamanicos. Porém, tanto a
eternidade quanto os saberes xamânicos se devem ao fato da cobra ter obtido o shoko nane (pedra de jenipapo),
pedra da eternidade, perdida pelos noke koĩ em um evento de descuido. (Mito no anexo N). Shoko nane e rome
se aproximam por algumas evidências. Lima (2000: 135-6) faz uma interessante análise dessa aproximação
através da tradução de rome como pedra feita por outros grupos pano. Por ora me detenho em assinalar que ter
rome e carregar o shoko nane é o que faz da cobra uma cobra-pajé. Além disso, shoko nane e rome são
traduzidos pelos noke koĩ como pedras: pedra de jenipapo e pedra de tabaco. Por último, convém lembrar que o
jenipapo é usado para desenhar, proteger e estabilizar corpos, ou seja, tem uma finalidade de atuação xamânica
sobre o corpo assim como o tabaco.
221

1995, McCallum 1996a). Quando em visita, os convidados yara que se restringem ao convívio
na aldeia podem pensar que a frase é literal, afinal na aldeia de fato só se consume o que
precisa ser preparado. A vida cotidiana no entanto se passa muito fora de casa, não somente
para os homens mas também para as mulheres e crianças, que se movimentam muito além dos
limites da aldeia e do trabalho em casa, elas estão quase todo o dia percorrendo caminhos,
seja para o roçado, para o igarapé, para mariscar, tomar banho, visitar uma parente, buscar
banana no roçado ou em outra aldeia. E quando se está fora da aldeia está-se sempre comendo
alguma coisa, vegetal, é verdade, mas não é um jejum estrito. Em grande parte esse alimento é
considerado como “não tão de verdade” porque não tem carne acompanhando e vem de
coletas de plantas da mata. De todo modo, a coleta é parte das atividades de subsistência dos
noke koĩ. Eles investem tempo e demonstram interesse e ânimo nessa atividade que muitas
vezes é cotidiana, mas em outras se transforma em verdadeiros dias de festa.
Ao lado do roçado e da caça, a coleta não é apenas um recurso de escassez. Não se
trata de uma técnica de sobrevivência, mas de uma atividade equiparável em termos de
importância à agricultura. Como veremos a seguir, entender a floresta de plantas dos noke koĩ
esbarra em problemas de supervalorização de um modelo de técnica de cultivo (a agricultura
por domesticação) como homogênea, universal e a única possível.
Os alimentos produtos de coleta são encontrados em todo o território, sendo que
algumas áreas são conhecidas pela distribuição intensa de uma certa espécie: área de jarina,
área de buriti, de pupunha.
222

Mapa 9 - Área de distribuição aproximada de alguns produtos de coleta no entorno das aldeias Campinas,
Waninawa e Varinawa
223

Mapa 10 - Área de distribuição aproximada de alguns produtos de coleta no entorno das aldeias Samaúma,
Masheya e Bananeira

Mapas construídos com base em dados de campo e de etnozoneamento sobre mapa da


SEMA/AC

Essas concentrações são frequentemente atribuídas à presença destas espécies na


região, mesmo antes da área ser TI e muitas vezes sua presença pode ser, como vimos, uma
motivação para ocupar essa área (é o que aconteceu com a aldeia Waninawa que já citamos).
As descrições dessas concentrações e a história, em geral biográfica, que elas
carregam apontam para uma relação de caráter de cultivo. Não quero com isso dizer que os
noke koĩ fazem roçados de frutíferas na mata, mas me parece haver por trás da relação que
têm com essas concentrações de espécies uma estratégia evidente de dispersão proposital de
recursos em certas áreas. Derribando, consumindo e descartando sementes, várias espécies
são levadas a crescer fora do roçado, seja passíveis de serem cultivadas ou não.
Diferentemente das plantas do roçado, as plantas da mata são mais independentes dos
noke koĩ, têm com eles relações menos intimistas e o único trabalho investido nessas plantas
224

são de consumo e dispersão. Não há uma relação de cuidado, de consubstâncialidade nem de


posse. As áreas de concentração dessas plantas conformam descontinuidades em meio ao
mato. Nem mato, nem roçado, essas áreas revelam um outro tipo de cultivo.
As plantas da mata são de extrema importância na alimentação noke koĩ e igualmente
importantes na história e na vida social desse grupo. Tal como Rival (1998) descreve a
floresta para os Huaorani como uma sucessão de capoeiras, os noke koĩ descrevem os lugares
por onde andaram como uma sucessão de antigas colocações e aldeias, facilmente
identificadas pela presença de concentrações dessas frutíferas.
Esse é o caso da pupunha, fruta de grande importância para muitos grupos indígenas e
amplamente descrita na literatura (Maizza 2014, Rival 2016, Costa, L. 2007). Wani, como
dizem os noke koĩ, é uma fruta encontrada em abundância onde hoje é a aldeia Waninawa. A
relação que os noke koĩ têm com essa planta não é de cultivo, nem de cuidado. O seu
"plantio" se dá exclusivamente por semente. Em geral, palheiras que só formam folhas no
topo quando adultas dão filhotes na base, que podem ser replantados e gerar outro pé, no
entanto, os noke koĩ nunca plantam o filhote. A pupunha é consumida pelos noke koĩ cozida
ou como caiçuma (regionalmente também chamada de vinho) e por esse preparo elaborado é
que ela é um dos poucos frutos do mato coletado para ser consumido na aldeia136. As frutas
consideradas de má qualidade, já comidas por outros bichos e as sementes das que foram
comidas são descartadas no aceiro da aldeia, atrás da casa. Assim que esses "pomares" de
pupunha podem ser indicativos de um consumo intenso em um mesmo local, isto é, indicam
áreas de antigos assentamentos. No entanto, se por um lado esses pomares não são
propriamente cultivados, por outro eles não são selvagens e nem indiferentes aos noke koĩ. O
manejo por consumo parece ser uma técnica e uma categoria de plantio dos noke koĩ.
Ao mesmo tempo que são florestas cultivadas, são um repositório de semente já que
servirão a gerações futuras. Principalmente se considerarmos que o pé leva cerca de uma
década para frutificar e que tradicionalmente esse é o tempo que leva para as casas (pelo
menos as tradicionais) se deteriorarem, para os roçados estarem suficientemente distantes da
aldeia e portanto, tempo suficiente para que o assentamento já tenha se movido. Essa
coincidência entre o tempo de frutificação e os períodos de mobilidade de assentamentos
tradicionais reforça a ideia que o pomar de pupunha não é consumido pelo assentamento que
o plantou.

136
Tal como a pupunha, o açaí e o patoá também exigem preparo e por isso também são levados para consumir
na aldeia, ao contrário de maracuja, mamão e jarina por exemplo.
225

Nesse sentido alguns estudos têm apontado para a importância da mobilidade e da


circulação territorial na biodiversidade das florestas. Alguns focam na domesticação,
entendida como um processo de apropriação material e simbólica da natureza (Clement et al.
2009 e Alexiades 2009). Segundo Charles Clement (1992) a pupunha é uma palheira
completamente domesticada. Para os noke koĩ no entanto esse entendimento da relação com
essas plantas sofre um desvio conceitual. Ainda que suas sementes sejam intencionalmente
dispersadas em todo o território por onde transitam e reflitam historicamente uma seleção
genética antiga, pupunha e outras plantas do mato não são plantas cultivadas, nem cuidadas.
Na teoria antropológica, além da temática da domesticação, as áreas de concentração
de espécies alimentares e úteis despertam também debates sobre a relação entre mobilidade e
subsistência e sobre a existência de grupos de forrageio caçadores-coletores na Amazônia.
A relação entre mobilidade e subsistência na Amazônia foi por muito tempo refém da
oscilação entre uma ideia de que a floresta amazônica é um paraíso em que se vive com
fartura e outra de que é um ambiente hostil, infétil e de escassez137.
Desde, mais ou menos, os anos 1940 (década da publicação do Handbook of South
American Indians), a antropologia, através de uma abordagem socioevolutiva, propagou essa
imagem de hostilidade e escassez. Sob o argumento de que os comportamentos dos grupos
sociais eram adaptações ao ambiente, criou-se explicações para a ocupação da Amazônia em
função de necessidades de subsistência. Essas explicações implicavam em uma abordagem da
subsistência baseada em fatores mais ecológicos que sócioculturais (Neves 2006). Assim,
ambos, ocupação e modos de subsistência, seriam consequentes do ambiente escasso. Entre as
limitações do ambiente, a baixa fertilidade dos solos amazônicos seria um dos principais
fatores. O argumento de Meggers (1976) para explicar a alta mobilidade dos grupos
amazônicos fundamenta-se em uma suposta necessidade de mudança constante de território
decorrente dessas limitações que não permitiriam às populações fixarem-se em um mesmo
local por muito tempo (Meggers 1976). Para a autora, a relação entre mobilidade e
subsistência na Amazônia se dá pela presença de solos ácidos da região incapazes de suportar
grandes populações. Mais tarde esse fator cai por terra quando a existência de terras
adequadas à agricultura na Amazônia é comprovada (Morán 1990 e 1995). Com base na alta
produtividade da madioca entre os kuikuro em solos ácidos, Carneiro (1983) foi um dos
primeiros críticos a questionar a capacidade produtiva como fator determinante no
"desenvolvimento" das sociedades.

137
É o que Fausto (2001) define como dois pólos opostos e irreconciliáveis de oscilação do imaginario ocidental
sobre a floresta amazônica.
226

Ainda que não tenha sido totalmente superado138, o tema da fertilidade do solo como
determinante para as culturas foi de certa maneira substituído pela disponibilidade de proteína
animal nas dietas. A mobilidade estaria relacionada à escassez de proteína. A dificuldade de
se obter proteína animal faria com que os grupos fossem pequenos e tivessem facilidade para
se deslocar. As guerras seriam também decorrentes dessa escassez e consequentemente
também da alta mobilidade (Gross 1975). A mobilidade, como os tabus alimentares, se
explicariam por razões ecológicas de disponibilidade de caça (Ross et al. 1978).
Lathrap (1970), crítico ao fator solo de limitação cultural, defendeu que a Amazônia
Central teria sido em um momento da história lugar de forte desenvolvimento cultural, de
domesticação de plantas, tecnologias de cerâmicas e padrões artísticos complexos. O
argumento de Lathrap para a relação entre subsistência e mobilidade é antes de fartura que de
escassez. A abundância de recursos seria condição para o aumento populacional que
provocaria competição e guerra, obrigando os mais fracos e menos agressivos a migrarem. E é
nesse ponto que a mobilidade e a subsistência se chocam contra as teorias que defendiam a
existência de grupos caçadores coletores na Amazônia. Recusando as teorias de determinismo
ecológico, dois principais expoentes nesse debate contra a ideia de que haveria grupos
caçadores coletoras na Amazônia são Lévi-Strauss (1968) e Lathrap (1973). Ambos rejeitam a
existência de caçadores coletores na amazônia, argumentando que os bandos nômades
marginais na região seriam na verdade agricultores que adotaram um modo de existência
caçador-coletor apenas recentemente.
Para Lévi-Strauss (1968: 350), grupos classificados como tribos marginais eram
"regressive rather than primitive". Lathrap afirma que os grupos com alta mobilidade, que
buscam comida (também chamados de grupos de forrageio), das áreas de interflúvio do
noroeste amazônico seriam descendentes de ribeirinhos que foram forçados para fora do rios
por populações mais fortes e desenvolvidas.
Apesar de conclusões parecidas, Lévi-Strauss e Lathrap enfatizam fatores diferentes.
Lathrap enfatiza o elo entre ambiente e fatores históricos, ao passo que Lévi-Strauss observa
a desarmonia entre tecnologias rudimentares e complexos sistemas de parentesco e
sofisticadas cosmologias. Com base nisso, Lévi-Strauss argumenta que a cultural devolution

138
Roosevelt (1980), autora contemporânea importante para a arqueologia e também para outras áreas, trouxe de
volta nos anos 1990 a visão da amazônia como paraíso em lugar da imagem da escassez do ambiente estéril de
Meggers. No entanto, Roosevelt, apesar de combater a ideia de que o ambiente limitou os grupos indígenas,
apóia-se nos pressupostos do determinismo ecológico de Meggers. Como para Meggers, para Roosevelt, o
ambiente, o solo (ainda que agora visto como fértil) foram determinantes na história cultural do grupos da
região. O ambiente para ela teria proporcionado sociedades com esferas políticas complexas com alta densidade
demográfica.
227

afetou as práticas produtivas, e não a representação de relações sociais como implícito nos
sistemas de parentesco e mitos. Lathrap parte do argumento de que a história teria deslocado
essas populações a ambientes menos favoráveis ao desenvolvimento cultural. O argumento de
Lévi-Strauss, por sua vez, é fundamentalmente culturalista e defende que as condições
ambientais afetam unidades de significado, mas não as relações estruturais entre as unidades.
No mérito desse debate, Balée, em uma reconstrução histórica da colonização do
baixo Amazonas entre os séculos 17 e 19, argumenta que os indígenas responderam à
dominação política com cinco estratégias. Aqueles que viviam em rios importantes se aliaram
aos militares; grupos menos poderosos fugiram, alguns adotaram a vagação, um modo de vida
não agricultor, enquanto outros continuaram cultivando colheitas de rápido crescimento,
como batata doce e milho e por fim, houve aqueles que se deslocaram para áreas florestais
remotas onde aldeias, organizadas em torno da produção de mandioca, poderiam existir. Tal
como Lathrap (1970), Balée (1992) propõe um modelo para dar conta da perda progressiva do
cultivo por doenças, depopulação e estado de guerra. No texto de 1993 sobre o complexo
agroflorestal dos ka'apor, ele defende a ideia de que florestas de origem biocultural podem ser
vistas como dados objetivos das interações entre plantas e humanos no passado.
Colocando à prova das cosmologias indígenas a oposição natureza e cultura,
fundamental às teorias da limitação ecológica, Balée aponta que as limitações eram antes das
teorias deterministas que do ambiente sobre os índios. A partir de aspectos históricos e
ecológicos da vida dos ka'apor, Balée descreve a complexa relação deles com as plantas. Ele
observa que mais do que um meio envolvente as plantas são resultado da interação dos
ka'apor e das plantas (Balée 1993).
Balée usa a ecologia histórica para contestar explicações ahistóricas dadas pela
ecologia cultural e pela ecologia evolucionista. Se grupos de forrageio amazônicos exploram
recursos selvagens eles não são pré-agricultores, e a regressão agricultora deles (que
supostamente segue um padrão recorrente) pode ser documentada. Balée propõe que
explicações melhores podem surgir quando levamos em consideração fatores não-
ambientalistas e consideramos fatores históricos e enfatizamos dinâmicas sociopolíticas. Com
isso ele propõe que o ambiente não limita o desenvolvimento cultural e que a visão ahistórica
do ambiente nos cega quanto ao fato de que o que tomamos como ambiente "virgem" talvez
seja na verdade uma área antiga de agricultura. Para Balée, (Balée 1988 1992, 1993) as
florestas amazônicas são em parte artefatos culturais. O autor argumenta que longe de terem
sido limitados por recursos escassos, indígenas da Amazônia viraram nichos botânicos desde
a pré-história, que se tornaram as floresta antropogênicas. Balée conclui que grupos de
228

forrageio podem sobreviver sem colheitas cultivadas graças a alguns recursos essenciais não
domesticados (palmeiras e outras frutíferas) que são na verdade o produto da atividade de
populações antigas. Bandos nômades não vagam randomicamente pela floresta, mas movem
seus campos entre florestas de palmeiras, de bambu ou castanhas, que são florestas culturais,
áreas de habitação antigas.
A biodiversidade passa a ser então notada como resultado da presença humana (Balée
2006, Hornborg 2005). A superação das teorias de determinação ambiental abre um novo
campo de debate sobre a subsistência em que a dimensão cultural dos grupos humanos
indígenas ganha espaço. A subsistência se desloca do campo da necessidade e passa a incluir
temas como comensalidade, parentesco e corporalidade (C. Hugh jones 1979, Vilaça 1992,
Van Velthen 1996).
Quanto à história recente dos noke koĩ, no tempo das correrias a decisão majoritária
foi de fugir das forças coercitivas e adotar um modo de vida vagante. Não posso afirmar se
eram sedentários e grandes agricultores. No entanto me parece pouco provável que o modo de
vida deles tenha sido antes do contato apenas de caça e coleta, assim como também desconfio
que nunca foi exclusivamente de agricultura intensiva. Me parece que, como propôs Lévi-
Strauss (1952), cultivar sempre acompanha, e nunca substitui, a exploração de recursos
selvagens.
Dentro desse debate que envolve domesticação, mobilidade e agricultura, o problema
maior no entanto está no entendimento dessas categorias. Se considerarmos a domesticação
como uma relação unilateral que envolve a submissão de uma espécie aos humanos, e
agricultura e coleta, sedentarismo e mobilidade como opostos e excludentes, limitamos o
nosso entendimento sobre os mundos e os modos de vida que abrigam o ponto de vista desses
grupos.
Quanto aos noke koĩ é possível dizer que talvez nunca tenham sido exímios
agricultores, o que não quer dizer que são tradicionalmente um grupo de forrageio nômade.
Nem um, nem outro. O que sabemos é que prezam a mobilidade e têm uma relação com
plantas da qual nossa noção de agricultura não dá conta. Entre os noke koĩ, assim como o seu
território inclui na sua definição a mobilidade, as plantas de subsistência extrapolam a
agricultura, que por sua vez também inclui o movimento, pelas mudanças constantes de
espaço como técnica e como consequência (notável nas áreas de concentração de certas
espécies de plantas não cultivadas).
No entanto, é preciso deixar claro que, diferente de outros grupos indígenas, a relação
entre subsistência e mobilidade entre os noke koĩ não se dá em função de ciclo anual de
229

condições ambientais, chuva e seca, por exemplo. A tendência de dispersão e concentração


não se baseia em um calendário produtivo: dispersão no inverno, tempo de chuva, e
concentração em aldeias no verão. Ainda que o inverno seja mais propício para as atividades
de caça e coleta e o verão tenha condições mais adequadas à abertura de roçados, essas
condições não determinam a mobilidade dos noke koĩ, que tem outro padrão. A necessidade
de se realocarem constantemente não é sazonal, nem em função de condições proprícias às
práticas de subsistência (Conklin 1989) – o que não significa que não haja uma sazonalidade
nos produtos consumidos, quer da floresta, quer do roçado. A incompatibilidade do
assentamento permanente com a mobilidade é um problema antes de relações sociais do que
condicionantes climáticas. Os noke koĩ se movem entre áreas conforme a presença de outros
parentes, seja porque querem evitar conflitos com parentes que vivem próximo, seja porque
querem se aproximar de parentes que ficaram distantes.
Como vimos no capítulo anterior o padrão de assentamento hoje dos noke koĩ é em
aldeamento fixos, ainda que de alta rotatividade. O aldeamento e a concentração da população
é conveniente, em certo sentido, para os próprios noke koĩ que podem assim ter acesso às
mercadorias e manter um ponto de encontro permanente a despeito das frequentes mudanças,
e sobretudo para a atuação dos órgãos de assistência (Funai, Sesai) e governo (escola e
políticas públicas).
No entanto, a despeito dessas políticas como vimos no caso das casas do governo no
capítulo 1, os noke koĩ mantêm a mobilidade. Se as casas do governo não são suficientes para
fixa-los, tampouco o são a escola, o polo de saúde e as alternativas de subsistência. Se em
alguns grupos a produção de farinha para comercialização diminuiu a mobilidade servindo
como estratégia de fixação, entre os noke koĩ, os incentivos à produção de farinha, por
exemplo, não só não influem sobre a sua dinâmica de circulação territorial como sofrem dupla
recusa, pelo tempo de trabalho exigido e pelas consequências no modo de vida, ambos
expressos pelo desinteresse da maioria na atividade de produção.
Em grupos cujo padrão de mobilidade é marcado pelos deslocamentos anuais
temporariários para a mata, o plantio de milho (Viveiros de Castro 1986) tem sobre a
macaxeira as vantagens do tempo de produção e maior viabilidade de transporte e
conservação. Assim, nesses grupos a substituição do milho por macaxeira limita a mobilidade
sazonal. Flowers (1983) observou que a produção de arroz entre os Xavante, por exemplo, foi
determinante para sua sedentarização por demandar mais tempo de trabalho no roçado.
No caso do alto juruá, para alguns grupos o padrão de assentamento e mobilidade já
tinha sido alterado com o ciclo da borracha e assim, como é o caso para os puyanawa, a
230

produção de farinha apenas subsitituiu a borracha, evidentemente com condições de trabalho


muito menos cruéis. Como vimos no capítulo 1, diferentes maneiras de reagir ao trabalho na
borracha construiram possibilidades igualmente distintas de articular o modo de vida com a
empresa seringalista. Assim, no caso dos noke koĩ o padrão de relação que mantiveram com
os seringais – de mudança e fuga constantes – favoreceu um modo de vida, todavia
persistente, em que novas alternativas de subsitência não são suficientes para fixa-los.
Os noke koĩ, se por um lado têm pouco interesse na farinha de macaxeira como
alimento (preferem a macaxeira cozida), por outro, apontam a administração comunitária das
casas de farinha e a demanda de maior investimento de tempo e trabalho sobre o roçado como
principais questões para não absorveram o modelo. A produção de farinha não altera,
portanto, o padrão de mobilidade dos noke koĩ, primeiro porque esse padrão não é sazonal e
depois e principalmente porque não a acolheram como alternativa de subsistência e de
trabalho.
Em resumo, a mobilidade para os noke koĩ não se conecta à subsistência nem pela
sazonalidade da presença de espécies nem pela agricultura. Se por um lado a mobilidade noke
koĩ não parece incompatível com a agricultura, por outro, a coleta não é contraditória ao
sedentarismo. Os noke koĩ valorizam a vida semi-sedentária com possibilidade de mobilidade,
prezam pelo roçado e apreciam as plantas da mata. Para eles, esses termos não são
excludentes, nem opostos. Se, no tempo das correrias, os noke koĩ deixaram o modo de vida
semi-sedentário por uma regressão cultural a um modo de vida caçador-coletor, anos mais
tarde foram impelidos a uma outra regressão cultural, inversa à de caçadores coletores, isto é,
foram forçados ao sedentarismo agricultor. A não ser que pudessem manter um modo de vida
sedentário e de mobilidade, os noke koĩ estão obrigados a depender relativamente mais da
agricultura que dos produtos da floresta. Se muitos grupos são considerados agricultores
regressivos, porque escolheram viver assim, o inverso dessa regressão, o modo de vida
exclusivamente sedentário agricultor, não foi exatamente uma opção dos noke koĩ.
Rival (1998: 241-2, 2016: 69) afirma que a etnografia Huaorani lembra que o regresso
agriculturalista da Amazônia, abrindo mão de formas mais intensivas de horticultura, exerceu
uma escolha política. De maneira análoga, a recusa dos noke koĩ a formas mais intensivas de
horticultura me parece uma escolha política dentro desse modelo de sedentarismo forçado.
Em contraste com outros grupos da região, como os huni kuin e alguns Ashaninka, por
exemplo, os noke koĩ não demonstram um apreço privilegiado por atividades agrícolas. Suas
técnicas de plantio são rudimentares se comparadas às dos cursos de capacitação de AAFI do
governo e das ideias de agrofloresta. Para o indigenismo local e para o governo do estado a
231

recusa dos noke koĩ em se tornaram agricultores como os huni kuin é lamentável, e por isso
existe um esforço em tentar adaptá-los como única condição de sobrevivência pós-contato. A
culpa pela escassez de alimentos na TI é aplicada aos noke koĩ, que não podendo manter um
modo de vida semi-sedentário conjugando caça, pesca, coleta e roçado, são criminalizados
por não aceitarem outras técnicas, que no limite significam outro modo de vida. A sentença é:
“Se não se adaptarem vão se acabar.” A ideia de que eles precisam ser auto-sustentáveis numa
terra que não garante sua reprodução física se choca justamente na insistência desse grupo de
se reproduzir culturalmente, pelos próprios métodos. A recusa a um outro modo de vida e aos
sistemas agroflorestais tem eco em especificidades históricas e culturais dos noke koĩ. O
baixo interesse em roçados e a escolha por manter a mobilidade eventual e a coleta como
fundamentais para o modo de vida é também um posicionamento político de resistência frente
às pressões de um modelo político de desenvolvimento imposto pelos yara. Internamente é
também a escolha por um modo de vida em contra da reprodução de fortes hierarquias e
desigualdades econômicas e de poder.

Parte 3 – Território e descontinuidades do espaço

Estratificações da floresta: Plantado e não-plantado

A classificação entre plantado e não-plantado remete diretamente a classificações


binárias de marcado e não marcado, como roçado e floresta. Para não cair em armadilhas que
esse jogo de claro e escuro pode apresentar na superfície, vamos definir mais detalhadamente
como os noke koĩ definem o que é e como se dá a progressão mata/roçado/capoeira/mata.
Evidentemente esse processo implica em estágios de sucessão de cobertura vegetal,
mas esse processo é um pouco mais complexo que meramente o prosseguimento ou
espalhamento da floresta circundante sobre uma área já sem atividade humana.
O crescimento da vegetação nas capoeiras não é uma fagocitose da floresta de uma
área de roçado (wai) ou de desmate (ni'i makiata'i), não é a floresta reavendo o que fora antes
retirado. O crescimento da capoeira implica em novas espécies que não são as mesmas nem
da mesma qualidade das da mata bruta. É uma transformação com estabelecimento de novas
espécies, outros seres. As capoeiras, criadas depois que um roçado se esgota, são reservatórios
de espécies, um verdadeiro banco de manivas e sementes, além de ser um ambiente
artificialmente conduzido à reprodução de espécies que não teriam chance na mata bruta.
232

Mudar o lugar do roçado é também uma dádiva a outras espécies fundamentais para o
enriquecimento do ambiente, uma maneira de encorajá-las a se fazer ali. É pois uma situação
carregada de intencionalidade e negociações. O mesmo ocorre quando se derruba a mata bruta
e quando a mata bruta avança sobre a capoeira. Mas esse ciclo mata/roçado/capoeira/mata tem
outras nuances. As áreas de descontinuidade na floresta são, do ponto de vista dos noke koĩ,
um caso particular de floresta. Por isso, kõta ni'i é uma floresta de cocão, é uma
descontinuidade, mas é uma floresta, mas não qualquer uma, é uma floresta de cocão, uma
floresta dentro de outra floresta. Assim como as plantas não são só plantadas e não-plantadas,
as descontinuidades não são só capoeira, roçado, aldeia e floresta. Cada operador desse
contém uma trama de ambientes e relações, específicas e intra-espécificas.

Floresta, roçado, capoeira e aldeia: descontinuidades do espaço

O domínio da floresta não é um módulo absoluto, homogêneo e contínuo, antes ela


extrapola a ideia de natureza como domínio externo e sui generis (Viveiros de Castro 2002).
Como tem sido exaustivamente exposto nas etnografias contemporâneas, o universo das
sociedades amazônicas é uma trama social de intercâmbios e inter-relações entre sujeitos
humanos e não-humanos (Viveiros de Castro, 1996a , Albert 2002, Lima 2005).
Essa descrição não parece estar distante da definição noke koĩ dos ambientes de
floresta em que vivem. Diferente de nós que vemos na floresta um receptáculo de recursos
naturais e universais, os noke koĩ a vêem como um compósito de vários ambientes que
abarcam diferentes agentes e sujeitos e que se em algum sentido funciona como um depósito
de recursos, esses recursos são antes sociais, de relações. Isto é, o foco da definição dos
variados ambientes da floresta parece muito mais definido pela relação entre o que chamamos
recursos naturais do que pelos objetos-recursos em si mesmos. Podemos até dizer que a
floresta é um amplo depósito de relações, e das mais variadas. Trata-se de relações sobretudo
humanas, mas também relações vegetais e animais. As plantas, os matos, os animais, os
espíritos e os noke koĩ têm entre si sobretudo relações humanas, mas também têm relações de
outros tipos. É o caso por exemplo de relações entre certas plantas e os noke koĩ, como as
medicinas, que para além de relações de dádiva e reciprocidade, operam também relações
vegetais, isto é, típicas de vegetais. Ainda que sejam personificadas por sua agência subjetiva,
a atuação dessas plantas-medicina se dá ao modo de uma planta dentro de corpos humanos de
uma maneira que os humanos não são capazes de agir em outros corpos. Trata-se de um
233

subjetividade pessoa-vegetal. Ainda assim podem, genericamente, ser definidas


redundantemente como relações sociais. Digo isso porque uma das intenções desse capítulo é
demonstrar como a floresta é entendida pelos noke koĩ como um compósito de relações
expressas em diferentes níveis e ambientes, envolvendo sujeitos, lugares e vínculos.
Que o conceito floresta seja diferente é uma conclusão óbvia até mesmo para o mais
ingênuo relativismo, de modo que o que queremos enfatizar aqui, mais que notar a diferença
conceitual, é apresentar as definições noke koĩ e propor uma suspensão das nossas categorias
de modo que elas sirvam para traduções do foco dos noke koĩ, que comparado ao foco da
biologia ou da geologia, nos levaria a uma longa digressão sobre concepções filosóficas sobre
o que é a natureza, o natural e outros conceitos decorrentes desses. Na antropologia, vários
autores contemporâneos têm se dedicado a questionar um paradigma de dicotomia entre
natureza e cultura subjacente a essas definições (Latour 1994, Ingold 2000, Viveiros de
Castro 1996a, Strathern 1980)139.
Com isso quero apenas ressaltar que não podemos ver as definições de
descontinuidades de espaço dadas pelos noke koĩ como uma dimensão cultural da natureza,
isto é, como um elemento cultural de um conjunto maior que é a natureza, afinal não se trata
de um caso particular de um fato universal. Essas definições noke koĩ não são uma variante de
interpretação cultural de uma natureza inata e comum à humanidade.
A refração do foco das definições noke koĩ se dá ao passar justamente de um campo
conceitual em que os termos são mais importantes que as relações para outro em que as
relações entre esses termos são os guias das definições. Isso exige desviar o olhar das nossas
descrições para tentar se aproximar do que é uma relação social para os noke koĩ. Não se
trata, portanto, de tomar os termos das descrições como se fossem compartilhadas ou como se
a diferença fosse um resíduo desses termos. Antes, o que as descrições noke koĩ apontam é

139
A nossa separação da natureza e a atribuição dos demais animais a esse domínio (natureza) teve na
antropologia um destaque primordial, sobretudo, pelo pressuposto do dualismo entre natureza e cultura. Sabe-se
que tratar o social (ou mais especificamente para o caso da antropologia, o cultural) como uma realidade objetiva
afastada e em oposição à natureza foi o que permitiu a antropologia se estabelecer como disciplina autônoma e
distinta das ciências naturais e das demais disciplinas humanas como a psicologia e a filosofia. Apoiados na idéia
de que nós criamos/construímos a cultura, nos colocamos fora da natureza, partilhamos o mundo entre essas
categorias e justificamos a possibilidade de lidar com o outro como um objeto. Essa delimitação de fronteira teve
o custo de se estabelecer sob um campo de força conceitual baseado num dualismo de oposição entre natureza e
cultura que, em grande medida, foi responsável pelo desdobramento de outros dualismos: indivíduo e sociedade;
animal e humano; sujeito e objeto; corpo e alma; eu e outro (Goldman & Lima 1999). Felizmente, esses grandes
divisores vêm sendo alvo de críticas e reformulações. Latour (1994), Viveiros de Castro (1996, 2002), Goldman
& Lima (1999), Descola (2005) Ingold (2000), Strathern (1980). Esses autores notaram que a partilha ontológica
de domínio hierarquizados no pensamento antropológico teve como efeito uma certa dificuldade de conceber,
não outras relações com a natureza, mas a existência de outras naturezas.
234

para o inverso disso, isto é, que os termos das descrições é que são os resíduos das relações,
que sendo sociais, compartilhamos mesmo com alteridades extremas.
Aqui se aplica o conceito que Viveiros de Castro usou para definir o perspectivismo
amazônico, isto é, a idéia de uma ontologia relacional, em que não é suficiente entender a
relação como uma modalidade do ser (como propôs Simondon, G. apud Viveiros de Castro
2001), pois aqui o ser é que tem estatuto de relação: “os termos são a relação em seu estado
explicado, e a relação é a diferença ou disparidade entre os termos em que ela se desenvolve"
(Viveiros de Castro 2001: 9). Os termos são resíduos das relações e desse modo as relações
ocupam o lugar e a importância que os termos têm na nossa ontologia.
Vejamos como isso dá entre os noke koĩ.
Se para nós a descontinuidade na floresta se dá pela agência humana, para os noke koĩ
ela se dá pela ênfase nas relações multi-laterais que se dão nesse espaço. A provisoriedade dos
lugares nos serve como um exemplo disso. A permanente transformação de mata em roçado,
de roçado em capoeira e de capoeira em floresta aponta para uma dinâmica do espaço que
envolve implicações mútuas entre diferentes elementos-seres desses espaços; animais, noke
koĩ, plantas e espíritos. Essas implicações são experiências sensíveis e histórias
compartilhadas, relações sexuais, predação, reciprocidade e cooperação, que vivenciadas
criam as descontinuidades. Assim, é nesse sentido que quando uma área de roçado se torna
uma capoeira não se trata de um regresso natural de uma área antes socializada, mas de um
avanço de outras sociedades sobre o espaço, uma transformação que envolve intenções e
negociações. Ser capoeira e ser roçado é uma questão de efeitos da presença de um sujeito
que é outro (que como veremos não é apenas um outro sujeito qualquer, mas de outra
ontologia) (Viveiros de Castro 2001). Tratam-se de domínios controlados por posições.
Outro exemplo que podemos apontar brevemente, e que veremos com mais detalhes a
seguir, é o que envolve a categoria ni’i. Ni’i pode referir-se a floresta, a ação de caçar e a
lugar de moradia. Assim, ni’i é uma descontinuidade de espaço que se define ora por um
conjunto de espaços – lugar onde se mora –, ora por uma descontinuidade específica do
espaço – floresta – além de apontar para uma ação que se dá em uma descontinuidade de
espaço. É portanto um termo cujo conteúdo varia com a relação dada, o que ao meu ver
aponta para a prevalência de importância dessas relações sobre o termo em si.
Pelo mesmo entendimento, a diferença entre roçado, capoeira, aldeia e floresta não é
entre esses termos, mas sobre as relações engendradas entre esses espaços. A diferença está
baseada em qual é a relação, por exemplo, entre os elementos-seres. As descontinuidades se
dão nessas relações, na diferença dessas relações.
235

Yoina nõ ni’i nõ - Caçada e floresta

Para entendermos melhor as descontinuidades espaciais vamos voltar aos conceitos de


yoina e ni’i. Yoina enquanto nome (substantivo) se refere, como vimos até aqui, a certos
bichos mas também pode ser um verbo relacionado à ação verbal de caçar (Aguiar 1994:134).
Assim:
noke kamanẽ yo'ina'i - a gente caça com cachorro e
noke mokawana yo'ina'i - a gente caça com espingarda.
Para anunciar que vai caçar se diz: ea ni'i kai. Em que eaeu ni'i floresta
kai ir = eu vou
caçar. Essa frase indica pelo menos duas coisas: uma relação explícita entre ir a floresta e a
atividade de caça e uma maneira dissimulada de dizer que vai caçar só se referindo ao espaço
da caça.
Aguiar (1994) afirma que a língua dos noke koĩ admite apenas duas possibilidade de
manifestação do verbo na oração: o verbo puro ou o verbo acrescido de partículas. Assim ni'i
como sintagma verbal, cujo núcleo é o verbo, significa caçar. Mas se estiver na posição de
sintagma nominal, ni’i significará mato (floresta) (1994: 91). Trata-se de nomes que se
transformam em verbos pela posição na oração, a classe da palavra é definida pela posição
ocupada para desempenhar determinado papel. E nesse sentido é o mesmo que acontece com
yoina. Tal como em ni'iai e ni'i kai (mata + tempo verbal), o tempo verbal faz de yoina
(bicho/caça) e de ni'i (mato/floresta) um mesmo verbo; caçar. Mas o que nos importa aqui
justamente é a dupla intenção dos sentidos de ni'i (floresta e caçar) e yoina (caça e caçar).
Ni'i é traduzido pela maioria do noke koĩ falantes de português como floresta, mata, e
às vezes por AAFI, como natureza. Ni'i extrapola a composição vegetal e algumas vezes é
associada a lugar de morada. A área habitada é definida como terra ou floresta mais que como
território. Nesse sentido ni'i é floresta, mas é também uma área da floresta definida pela ação
do grupo através do tempo. As atividades cotidianas se inscrevem no espaço que é chamado
de ni'i. Mas ni'i enquanto ambiente está diretamente relacionado também à classificação de
tipos de vegetações e às atividade de caça.
Tem-se portanto que ni'i comporta pelo menos um trinômio - floresta, morada e
caçada - de duas referências: uma ambiental - floresta e lugar onde se mora - e outra ativa:
caçar. Na sua qualidade ambiental, ni'i ainda compõe a descrição de alguns ambientes dentro
da própria floresta:
ni'i txosho = mato cerrado
kõta ni'i = mata de cocão
236

ni'i mispanẽ = chão da mata e terra baixa


ni'i pasha ou ni'i koĩ = mata bruta (floresta + verde não maduro e floresta +
propriamente)
No entanto ni'i é insuficiente para descrever os ambientes da floresta, seja compondo
seus nomes ou como termo genérico análogo a plantae (reino vegetal na classificação
científica dos organismos).
Nesse sentido, Ingold (2011) fala de paisagem como processo de vidas em
movimento. A paisagem, para além de uma terra, uma natureza ou um espaço é o resultado da
interação organismo-ambiente, um parte do outro.
O que a etnografia nos mostra é que os recursos ou sujeitos do ambiente não são
facilmente aceitos como naturais, não têm nem mesmo existência independente, já que são
consequentes das interações que os criam e definem, que se não são interações com os noke
koĩ - como é o caso da vegetação classificada como mato - são interações com outros seres os
quais se ocupam dela. A pesca e a coleta de crustáceos, por exemplo, não são ni'i em nenhum
sentido (nem caça nem do mato) e nem yoina pelos mesmo motivos. O fato de ocuparem as
águas e serem pescados muda toda a sua classificação taxonômica, ainda que sejam seres
outros que não gente (animais da natureza) e sejam comestíveis. O ambiente e a atividade
envolvidos na relação com eles marca sua classe de seres, que podem ser genericamente
chamados de tsatsa (peixe) e shakaya (seres de casco). Essa qualidade morfológica se associa
a outra relação, a relação entre os comportamentos rastejante e escavador desses animais de
casco e os estados liminares de algumas pessoas, o que torna esses animais interditos ao
consumo. A validade simultânea dessas classificações reforça o argumento de que a
taxonomia de um animal está relacionada ao seu ambiente e à relação que se estabelece com
ele. Assim o morfológico e o pragmático me parecem ser critérios secundários e dependentes
de outros fundamentos. Isso não quer dizer que não se aplicam como tais, apenas que não
funcionam isoladamente.
Além das atividades humanas desenvolvidas e praticadas na ni'i, a relação dos noke
koĩ com o espaço está vinculada a uma geografia de eventos e relações estabelecidas em um
dado momento, de modo que a memória e o espaço estão intrinsecamente implicados um no
outro. Isso pode ser observado na toponímia.
237

Toponímia: índice de outras relações

Os nomes dos lugares, em geral, são uma descrição de um evento ocorrido e comum à
memória dos interlocutores, o que é muito comum a outros grupos indígenas (Fausto 2001,
Coelho de Souza 2009, Calavia Sáez 2004). Com exceção das aldeias, terras indígenas e
ocupações de yara, os lugares noke noĩ não têm propriamente um nome. As áreas dentro da
floresta são nominadas sob demanda com nomes descritivos de seres que as ocupam e com os
quais se interage e que interagem entre si, sejam plantas ou animais. Para além disso, os
nomes que se referem a eventos ocorridos duram o tempo que as biografias vividas neles
duram. Enquanto o evento conferir sentido à descrição de um lugar ele é usado como nome do
lugar. Os nomes funcionam mais como registro das interações e das socialidades presentes no
lugar do que como um ponto no espaço. Como entre os kïsêdjê, duplas, triplas nomeações de
um mesmo lugar e o mesmo nome para lugares diferentes não é um problema. Como afirma
Coelho de Souza (2009: 24) para os kïsêdjê, os nomes não se substituem, se acumulam. Os
nomes são uma memória que se conforma com a vida contemporânea no espaço e assim
refletem uma relação com o espaço que é provisória (ou contingente) e histórica, já que o
nome não tem uma origem simbólica. Em lugar disso, o nome do lugar é uma consequência
de um processo de colocação, isto é, de ocupação.
Aqui me parece muito interessante aproximar três condições de colocação que o verbo
colocar-se assume em português no contexto local: colocar é frequentemente usado para falar
de abertura de roçado - botar roçado, colocar roçado -; colocar-se num lugar, que é fixar
moradia e finalmente a colocação, termo muito usado pelos seringueiros e ex-seringueiros
(entre eles os indígenas da região) para se referir ao local da residência, uma organização
social e um sistema econômico (Almeida 2012).
Os nomes têm dois aspectos curiosos: 1) uma origem circunstancial: um evento que
nomina o lugar – a morte de alguém, um parto, um encontro 2) não significam, nem
representam, apenas indicam, mostram ou descrevem, e a referência constante os torna a
designação do lugar.
A provisoriedade dos nomes indica na verdade a provisoriedade dos lugares, que num
mesmo substrato são criados e recriados, como se num mesmo espaço físico se pudesse ter
vários lugares sobrepostos e por isso vários nomes, por sua vez desimportantes enquanto
nomes em si.
Além dos nomes, essas provisoriedades se expressam também pela permanente
transformação das áreas, da qual um exemplo fácil para nós é a dinâmica de transformação da
238

mata em roçado, do roçado em capoeira e desta em mata. Justamente por essa dinâmica
permanente de transformação, a idéia que opõe roçado à floresta como análogos da oposição
natureza e cultura (e até mesmo masculino e feminino) se mostra insustentável. Como vimos,
tanto roçado quanto floresta são híbridos desses termos e esses lugares só existem
socialmente.
A nomeação das coisas (caminhos e areas de descontinuidades de floresta) revela uma
prevalência da ação e da relação sobre os substantivos, isto é, os termos.
As fronteiras de um território para os noke koĩ, por exemplo, não podem ser
identificadas como de limites lineares precisos, mas ao mesmo tempo seria absurdo dizer que
sua territorialidade não inclui limites. O que se tem na verdade são fronteiras de localização
movediça. As fronteiras são dadas em conformidade com seus conteúdos, que sendo uma rede
de caminhos de movimento e de relações não são fixas nem permanentes. Como a posse, as
fronteiras são definidas pelo trabalho investido (que cria espaços e relações) e são descritas
como resultado dessas relações ali estabelecidas (que tipo de trabalho, o conhecimento de
algum animal, a presença de alguma espécie (animal ou vegetal) que tenha hábitos ali), e não
o que resulta de uma cerca ou de linha (trace, Ingold 2007) fronteiriça.
O que está dentro dos limites territoriais são descontinuidades, que internamente à
floresta são territórios com fronteiras. Essas descontinuidades funcionam como pequenos
lugares nomeados que estriam o território com movimentos.
O que quero demonstrar é que a agencia social sobre os lugares não é uma
transformação cultural de natureza (floresta) em roçado (cultura). E nesse sentido, até mesmo
a clássica divisão do roçado como correspondente a um universo consaguíneo em oposição ao
mundo de afinidades exclusivo da floresta parece não fazer sentido. Esses valores simbólicos
atribuídos aos domínios, as colocações da floresta, são intercambiáveis, a mata pode ser tão
feminina e consanguínea quanto masculina e cheia de alteridades, em função de uma
dinâmica de distanciamento e aproximação de certos aspectos das relações geradas e mantidas
nesses estratos. A volatilidade e repetição de nomes para lugares diferentes mostra o caráter
movediço dessas qualidades. O caráter relacional da classificação dos seres e sua possível
categorização simultânea em mais de um critério reforçam essa ideia de que os domínios,
estratos, apesar de terem características específicas de diferenciação entre si, são compostos
por uma rede fluida de relações que podem ser masculinas, femininas, consanguíneas ou de
alteridade.
239

A estratificação horizontal da floresta: relações que criam descontinuidades

As florestas (como os outros espaços) são constituídas de experiências, qualidades


sensíveis e relações lógicas, são domínios de relações, têm dinâmicos sistemas de apagamento
pela fugacidade dos caminhos de caça, de roçado, de coletas, de visitação que têm que ser
sempre reforçados, e também pela instabilidade das relações. A sua domesticação provisória
inspira perigo, pela presença intensa de agentividade transformando-a, fazendo outro tipo de
domesticação reversa.
Além disso sua composição por diferentes relações implica em diferentes efeitos sobre
o espaço: predação, reciprocidade, produção, apropriação etc. Essa gama de possibilidade
injeta descontinuidades na floresta e cria o que vamos chamar de estratos. A intenção aqui é
tentar mostrar os diferentes contextos e relações da floresta, isto é, os contextos criados pelas
relações variáveis e as diferentes relações reproduzidas nesses contextos.
Antes de mais nada, precisamos ter em mente que os estratos da floresta não são
criados unilateralmente. Pode-se argumentar contra isso que o roçado é uma ação humana
sobre a cobertura florestal e enquanto tal é um estrato criado unilateralmente por gente. No
entanto para isso é preciso ignorar a agência dos seres que constróem e compõem esse estrato,
quero dizer, as espécies vegetais que se desenvolverão aí, os animais que dele subsistirão, o
solo e os compósitos dos estratos circundantes: aldeia, mata bruta, igarapés. Aqui a ideia de
ecossistema parece ser mais ampla que a que estamos acostumados. Digo isso porque para
além de um conjunto formado por comunidades bióticas que vivem e interagem em
determinada região, o que está em relevo aqui são as relações estabelecidas nesse
ecossistema, não as comunidades bióticas.
Os estratos da florestas funcionam como os corpos para os seres: como pontos de
afecção, não sendo portanto uma natureza, mas várias (Lima 1996, Viveiros de Castro1996a).
Assim um viño paeti, (buritizeiro + várzea, um buritizal) é um lugar da perspectiva
noke koĩ onde interagem com outros seres, uma área de caça e de coleta, mas sobretudo onde
reproduzem relações de parentesco: quando vão juntos coletar buriti, substância para fazer
corpos de parentes e viver momentos memoráveis. Segundo os noke koĩ, o viño paeti é ainda,
para alguns animais, em seus pontos de vista, morada temporária, uma colocação sazonal (de
inverno) de jacus, araras e jacamins, enquanto para outros é morada frequente, ou ponto de
encontro com noke koĩ, como é o caso da viño rono (jibóia). Para pacas, tatus e cotias, o viño
paeti é um roçado que dá no inverno.
240

Os estratos da floresta condensam pontos de vista heterogêneos, como corpos de


afecções são ocupados por vários pontos de vista. E nesse sentido não existem antes dessas
perspectivas, nem antes da relações neles engendradas. Alguns estratos que resultam da
ocupação da perspectiva noke koĩ da floresta são:
ni'i txosho = mato cerrado
kõta ni'i = mata de cocão
viño paeti = buritizal
ayãshi ni'i = mata de cipó
ni'i mispanẽ = chão da mata e terra baixa
ni'i pasha ou ni'i koĩ = mata bruta (floresta + verde não maduro e floresta +
propriamente)
paeti = várzea
taosh = mata aberta
mata fechada: ni’i txosho: ni’i mato; txosho cerrado.
paeti txosho: baixo cerrado.
paeti txoshoma: baixo limpo, aberto, não cerrado, txoshoma.
nawesheni: capoeira.
nawesheni okema: capoeira baixa, okema.
nawe sheni oke: capoeira alta.
shovo: casa, aldeia
wai: roçado
te'a: igarapé
vai: br, caminhos, piques
peshe: tapiri
As áreas dos animais não indicam só a sua presença com função pragmática de local
de caça, indica também aldeia/floresta daquele animal. Eles moram na mata, há áreas de
floresta que são deles, são seus roçados, suas colocações, seus caminhos. São áreas marcadas
por seus modos de vida - habitat e alimentação. Essas colocações de animais marcam
descontinuidades na floresta por um tipo de ocupação que não pode ser definida como de
propriedade, pois se definem pela diversidade de espécies, agentes e conexões transitórias
que se sobrepõem num mesmo espaço físico. Além disso, não se resume a associações de
dieta, isto é, não é apenas a necessidade de se alimentar que os move a essas áreas, mas "é a
casa dele mesmo". Para além de uma função de subsistência e até mesmo só de predação, o
que está em jogo é uma rede de socialidade e reciprocidade, em que, por exemplo, os animais
241

colocados no viño paeti são criados nos e pelos buritis, ao passo que dão a eles a possibilidade
de reproduzir-se fisicamente, enterrando e dispersando suas sementes cruas, numa relação
antes de reciprocidade que de consumo/predação.
Ainda sobre o exemplo da viño paeti, a presença da jibóia viño rono reforça essa idéia
já que, sendo carnívora, ela nem mesmo se alimenta de buriti. Pode-se dizer que ela não
habita o buritizal pelo buriti mas pelos animais que frequentam a área para comer buriti, mas,
além de meramente funcionalista, esse contra-argumento falha uma vez que sendo o foco
apenas a alimentação, qualquer outra frutífera ou área de frequência de animais poderia ser
colocação de jibóia. A escolha do buritizal se justifica por ser a casa dela, sua área, onde ela
exerce seu jeito de viver, sua cultura, isto é, suas relações sociais próprias. Além disso as
porções de floresta não são identificadas a todos os animais que a frequentam, o buritizal, por
exemplo, é para as jibóias um ponto de encontro com um noke koĩ que se queira eleger pajé.
Ao mesmo tempo, não se trata de uma relação de exclusividade mas de um domínio
contextual marcado por relações desses animais com a vegetação dessas áreas. As espécies
vegetais aí funcionam como signos dêiticos, porque não significam relações em si (de
alimentação ou ecológicas), mas indicam nós de uma ampla rede de relações.
Os domínios ou descontinuidades da floresta não são lugares fixos, variam com
perspectivas e vão além da materialidade, se expandindo em relações de vidas sociais. A
cultura dos seres em relação à área descontinuada pode ser descomposta em atividades
desempenhadas, interferências, intervenções e interações - buracos, enterramentos, etc.;
hábitos - o que comem, onde dormem, onde passam o dia e a noite e finalmente por
preferências idiossincráticas ou culturais140.
Assim, as descontinuidades florestais são dadas pelas posturas relacionais com o
espaço material, mas sobretudo com o espaço social, em relação com outros agentes, pelas
atividades e hábitos e também pelas qualidades sensíveis, materiais e sociais, desses espaços.

Caminhos, piques e cursos d'água

Os caminhos traçados pelos seres da floresta (noke koĩ e animais) indicam seus
movimentos, são uma série de linhas que marcam o território, como entalhes do movimento
no espaço.

140
Os noke koĩ frequentemente utilizam formulações tipo: porquinho gosta de viver no barreiro, é a casa dele,
lugar que ele gosta de ficar.
242

Em Lines (2007) Ingold propõe que as coisas e as pessoas podem ser entendidas a
partir de linhas e através das relação entre linhas e as superfícies onde essas se inscrevem141.
Tendo isso em vista, nos termos de Ingold, poderíamos dizer que os caminhos na TI
Campinas são como traços (traces), isto é qualquer marca duradoura deixada em uma
superfície sólida por um movimento continuo. (2007: 43) e, como os piques, podem ser
definidos como traços redutivos (reductive traces) já são feitos pela remoção de material da
superfície.
O que nos interessa desses termos no entanto, é a dimensão de movimento implicada
nessas definições. Esses caminhos entendidos como traços apontam o movimento do qual eles
são o índice. Apreender o caminho como movimento nos ajuda a entender a ocupação do
espaço no sentido que os noke koĩ querem ressaltar, isto é, não como uma intenção fixa, mas
uma ocupação associada a movimentos e composta por eles (os movimentos). Os caminhos
compõem o espaço e inscrevem a ocupação ao serem construídos pelo movimento e nesse
sentido não são uma conexão entre pontos pelos quais se move, o que Ingold chama de rota,
como movimentos de transporte (transport) de um ponto a outro. São, ao contrário, como um
traço pelo qual se é movido. Diferentemente da rota (route), as trilhas (trails), definidas por
movimento, remetem a uma rede de linhas cujos percursos atentos ao entorno constituem,
afetam e marcam a vida em um caminho de possibilidades, um movimento que ele chama de
wayfaring (Ingold 2007: 75-84). Há mais no caminho do que o destino ao outro ponto e a caça
revela isso muito bem. Não se percorre um caminho, ele ocorre. Isso se nota na nominação
dos caminhos que se dá pela presença de algum ser ou por um evento ocorrido e está bem
descrito nas sagas das narrativas míticas.
Nomes dos piques, igarapés e tapiris
HIWI VAI PIQUE, TE’A IGARAPÉ, PESHE TAPIRI

HIWI VAI PIQUE TE’A IGARAPÉ PESHE TAPIRI

Aldeia Campinas/Kamanawa
Ashati vai Kamaya (que tem onça)
Ni’i peshe (tapiri do mato)
(caminho de tingui) Waka txeshe
rono shaoya
(tapiri que tem osso de cobra)
Ni’iti vai Hepeya (chumarra – que tem tase peshe
(caminho de caça) palha) aporonõ peshe
kena tapaya peshe
neoya peshe
rono shoya vai
Pocha te’a (limão)
(caminho que tem osso de cobra)
hepeya vai osso de cobra (rono sha'oya)

141
“After all, what is a thing, or indeed a person, if not a tying together of the lines – the paths of growth and
movement – of all the many constituents gathered there?” (Ingold, Lines, p5). “every thing is a parliament of
lines” (p 43) afirma Ingold. Nesse sentido, estudar pessoas e coisas é estudar as linhas das quais as pessoas e as
coisas são feitas.
243

(caminho que tem palha)


neoya vai Neoya tashaya peshe
Ipoya vai Ipoya peshe
Ipoya (ig bodó)
(caminho que tem bodó) (tapiri que tem bodó)
Kayãki vai Olinda e jaracatiá (wakiya)
Yaeya (biorana) iyã peshe
Hono vai
Kaya tavaya peshe
(caminho de porco)
shaniya vai shaniya peshe
ig. saniya (iga piaba)
(caminho que tem piaba) (tapiri que tem piaba)
Yae kiri kai vai
Aldeia Martins/Varinawa
Pani yataya kai vai Martins paniya (que tem tucumã)
Yawaya te'a (ig que tem queixada)
txano peshe
Ig pesheya (igarapé que tem tapiri)
(tapiri do veado)
Tapo peshe
igarapé kotitaveya
(tapiri de jirau)
Nia Oshati vai Ig moshaya (ig. que tem espinho)
Iwiya vai
(caminho que tem arraia)
taoya vai taoya peshe
(caminho que tem paxiuba) (tapiri de paxiuba)
meweya vai Meweya peshe
wakiyaki kai wakiya peshe
Aldeia Samaúma
Pitxo tapaya (ig que tem murmuru)
rone hiwi rishki vai
Yawaya te’a (ig que tem queixada)
Machiya vai Machiya te’a (areia)
(caminho que tem areia) Pesheya (tapiri)
Awa sha’oya
Wakiya vai Wakiya peshe
(ig. que tem osso de anta)
Voi vai
Voi te’a (boi)
(caminho do boi)
Vaiya (vai e vem – ig. que tem
Meweya vai
caminho)
kevo isãya vai
(caminho que tem bacaba)
sisiya vai Neroya e machiya
masheya vai
igarapé do jacaré (kapeya ta'e)
(caminho que tem urucum)
hiwi rishki vai
igarapé Kevoisãya (ig. bacaba)
(caminho da árvore rishki)
igarapé frandeiro vonaya
mewe vai
meweya
ashãti vai igarapé frandeiro vonaya
Meweya peshe
(caminho de tingui) igarapé waniya (ig. pupunha)
voi vai igarapé neroya
Aldeia Bananeira
Kavo isãya vai Vaiya (vai e vem)
Namiya vai
igarapé do jacaré (kapeya)
(caminho que tem carne)
Hiwi rishki meweya Tachpaya (ig bacia)
Tabela 20 - Nomes de piques, igarapés e tapiris

Os piques de caça são chamados de caminho na mata (hiwi vai) porque são um entre
outros caminhos. Seus nomes em geral seguem dois formatos: 1) substantivo + ya e e
substantivo + caminho.
Quando é substantivo + ya, geralmente o substantivo refere-se a uma espécie, vegetal
ou animal. –ya pode ser traduzido como “que tem”. Assim, literalmente, rono shoya vai é
caminho que tem osso de cobra.
244

Mapa 11 - Localização aproximada de piques e tapiris

Mapa construído com base em informações campo sobre mapa de etnozoneamento da


SEMA/AC

A divisão dos piques por aldeia diz respeito apenas aos nomes e localizações
identificados e usados pelos moradores de cada aldeia, não significando a propriedade
exclusiva. Os piques não dividem o território em propriedade e muitos deles têm o mesmo
dono. A pessoa que tira o rumo não tem prerrogativas sobre ele. A partícula –ya nos nomes
denota um pertencimento que não é de propriedade, mas das qualidades sensíveis do lugar.
O outro formato de nome, substantivo + caminho, é por exemplo, hono vai e voi vai,
que indicam respectivamente caminho de porco (hono vai) e caminho de pica-pau (voĩ vai). A
nominação com base na presença de ossos, espécies vegetais (como masheya vai = caminho
que tem urucum) e como caminho de certo bicho aponta para a prevalência da relação que se
estabelece com o espaço e suas características sobre a localização geográfica. Hono vai é um
245

caminho de porco, por onde ele passa, um caminho usado pelo porco e o seu nome indicando
isso registra o avistamento dessa espécie nesse caminho, remete a esse evento. Isso de modo
que estar andando na mata e ver os porcos fazendo seus caminhos dá nome ao lugar.
Quanto à prevalência das relações e dos eventos sobre a localização, uma narrativa
também contada por Txoki relata a saga de parentes em busca da aldeia e de como a viagem e
os encontros que se dão durante ela são mais importantes que o lugar onde ocorreu.

Mito do gavião que comeu noke koĩ

Nessa história, o povo noke koĩ morava nessa aldeia. O gavião fez um ninho na
samaúma e começou a atacar noke koĩ para dar de comer ao gavião novo. Pegava noke koĩ.
Todo dia pegava um, todo dia pegava um. Pegou até derradeiramente. Só duas moças ficaram.
Elas colocavam bacia de barro na cabeça para o gavião não pegar elas. Sobrou só elas.
Homem e outras pessoas, o gavião acabou com tudo.
– Minha irmã, o que a gente faz agora? Nossa família acabou tudo, não tem mais
homem, não tem mais ninguém. Onde é que nós vamos morar agora?
Quando foi de tarde o sapo estava cantando.
– Minha irmã, vamos atrás daquele sapo, ver se a gente pega esse sapo e vamos comer.
Aí colocaram a bacia de barro na cabeça. O gavião tentava pegar mas só pegava em
cima bacia de barro e avoava.
Elas correram para dentro da mata, para pegar o sapo que cantou. Aí viram uma
casinha onde tinha uma velha sentada.
– Meninas, o que é que vocês estão fazendo aí?
– É… nós estamos procurando o sapo para comer. A nossa família, o gavião acabou
com tudo. Nós ficamos só nós duas. Não tem homem para procurar comida para nós, então só
ficou nós duas procurando sapo para comer.
Aí a velha falou:
– Não era sapo não, era meu filho que estava fazendo bala para matar os bichos. Olha
aqui, repara o que ele está fazendo: muita carne de veado, carne de macaco, carne de anta, é
que ele mata. Então, ele faz desse jeito. Ele estava fazendo bala para matar os bichos.
A moça falou para essa velha:
– Será que não dá para matar o gavião que acabou com a minha família?
– Mata sim, mata sim.
246

Não demorou nada, o homem chegou:


– Ôôô, vocês estão aqui? O que foi que aconteceu com vocês?
Aí contou tudinho para esse homem.
– É fácil de matar esse gavião. Não vou matar hoje porque já é de noite. Ninguém não
vê de noite, amanhã eu mato o gavião.
A velha pediu para elas dormirem lá. Comeram carne moqueada, macaxeira, caiçuma.
E aí elas dormiram lá.
Quando foi outro dia, amanheceu o dia e o homem levantou.
– Ah onde que o gavião fica?
Ela apontou assim e mostrou:
– Lá está, lá está acima do roçado. Lá naquela samaúma.
E lá ele estava, sentado mesmo, em cima do galho da samaúma.
Aí essa menina falou para ele:
– Vai, mas muito cuidado! Ele pega e leva para o filho comer.
O homem saiu e demorou muitas horas. O gavião ficava reparando para ali e para
acolá, reparando de onde gente vinha. Mas então o gavião ficou quieto.
Na hora que o gavião ficou quieto, a velha saiu. Falou para ela:
– Gavião já está chumbado. Está triste.
Aí saiu no terreiro olhando. O gavião provocou, provocou e lá virou.
Aí ele caiu: pôco no chão!
Quando o homem chegou, falou para a mulher:
– Matei o gavião. É assim que a gente faz. É assim que é o homem. Você podia ter
falado logo para mim, que eu matava o gavião para não acabar a sua família. Mas você não
sabia onde é que eu moro, aí o gavião acabou com a família de vocês.
– Bom, nós vamos embora. Nós vamos procurar onde é a aldeia dos outros noke koĩ.
Aí a velha falou para elas:
– Você pega esse caminho. Pode andar lá mais para frente, que tem a aldeia da família
de vocês, tem outra aldeia da família de vocês. Pega esse caminho que vai bater lá.
Essas duas moças saíram e chegaram lá na aldeia onde morava uma onça.
Tinha duas onças sentadas. Menina, não era gente não, era onça. Aí virou gente.
Aí uma mulher falou para ela:
– Ah, o que que vocês estão fazendo?
As duas moças contaram para eles o que foi que aconteceu:
247

– Ah tá bom. A família de vocês mora aqui perto. Daqui para lá é bem pertinho.
Amanhã eu deixo vocês lá, na beira do roçado deles. Você dorme aqui, amanhã vou deixar
vocês.
Enganaram elas para comer elas.
Dormiram por lá. Tinha muita coisa de comer, muita carne moquinhada. Beberam
caiçuma, encheram o bucho. Aí quando anoiteceu, essas duas onças pegaram elas para comer.
Estavam comendo uma moça e tinha um meninozinho na barriga dela. Tiraram essa criança
da barriga, ajeitaram algodão e colocaram ela em cima do algodão. Aí foram comer a outra, e
tinha outro meninozinho também. As onças comeram as moças e criaram os dois
meninozinhos.
Quando os meninos estavam ficando grande, começaram a andar, começaram a
brincar e começaram a fazer flecha. Flechando para lá, flechou calango. Matou calango e
levou lá para esse homem. Trouxe o calango para falar com esse homem, homem de onça. O
nome dele era Iño Ipa:
– Iño ipa, foi esse bicho que matou a minha mãe?
– Ah, não foi não.
Aí matavam outros bichos e vinham trazendo:
– Ah, foi esse daqui que matou a nossa mãe?
– Foi ele não.
Quando eles foram crescendo, iam matando mais bichos. Começaram a matar caça
grande. Entraram lá dentro da mata e toparam com bando de queixada. Mataram queixada,
trouxeram, e perguntaram:
– Foram essas pessoas que mataram a nossa mãe?
– Não foi não, esse aí é o queixada, não foi ele não.
Aí passou para a mulher. Iño ipa saiu e ficou Iño Txitxo. Eles matavam peixe e
perguntavam a ela:
– Ino txito, não foi essa pessoa que matou a nossa mãe?
– Não foi ele não.
Até que a mulher aborreceu.
– Não foi ele não, meninos! Quase toda hora, todo dia vocês me perguntam. Não foi
ele não! Foi Ino que matou a sua mãe.
– Ah foi ele então, não foi?
248

Aí os meninos sairam. Passaram o dia todinho e não apareceram mais. Eles estavam
fazendo ponta de taboca, fazendo espeque para colocar dentro d'água para enganar Ino Ipa
para cair dentro. Passou o dia todinho, quando foi três horas da tarde chegaram.
– Ino Txitxo, cadê Ino Ipa?
– Tá limpando roça, está pra alí.
Aí o outro falou para ela:
– Vai buscar ele.
Aí ele chegou lá:
– Vamos brincar dentro do igarapé! Tomando banho, brincando de ser anta…Vamos
embora – pelejou.
Ino Ipa estava cismado, fez que não ia. Mas os meninos pelejaram, pelejaram. Até que
eles ficaram chorando, aí Ino Ipa saiu.
O menino falou para Ino Ipa, apontando para o irmão:
– Esse é homem, eu sou o cachorro, você é anta. Eu vou correr atrás de você!
Quando chegou lá, começou a imitar cachorro:
– Au au au au
Saiu nas carreiras e foi atrás dele:
– Au au au au
Quando chegou na beira do igarapé, tinha um morro de terra, de onde eles pulavam
para dentro do remanso. Aí Ino foi e pulou. Entrou nele aqueles espeques e pontas de taboca.
Entravam no peito e saiam pelas costas.
Os meninos mataram esse homem. Voltaram para casa e mataram a mulher também.
– Ah, você comeu nossas mães também.
Aí mataram ela e saíram.
– Vamos embora. Pode ser que os outros venham para pegar a gente.
Pegaram a boca do caminho. Mais adiante, toparam uma velha.
– Ah, meninos! Da onde foi que vocês vieram?
Eles contaram todinha a situação que aconteceu com eles.
– Ah, aqui bem pertinho mora a família de vocês. Eu carrego roça dali. Eu estou
descascando macaxeira. É deles que eu vim carregando. Daqui a pouquinho eu vou cozinhar
macaxeira para vocês comerem. Depois de comer macaxeira eu vou levar vocês para deixar
vocês lá.
Ficaram esperando, esperando, esperando, até que ficou pronta a macaxeira.
– Meninos, vamos comer.
249

Essa velha era cotia.


Depois que comeram macaxeira, pegaram a boca do caminho.
– É pertinho! Eu carrego roça deles para comer.
Aí eles tiveram que passar num pau que atravessava o caminho. Ela abria as pernas
para atravessar o pau e eles ficaram mangando dela, ficaram vendo a periquita dela, achando
graça, achando graça. Aí ela ficou cismada:
– Meninos, vocês estão mangando de mim? É só porque eu estava atravessando em
cima do pau, estava mostrando para vocês, vocês estão mangando de mim.
– Nada, nós não estamos mangando de você não. O jeito desse rapaz é esse mesmo,
não fica calado não. A vida dele é achando graça mesmo.
Mais adiante, atravessaram outro pau. Ficaram achando graça:
– Hahahahahaha
– Meninos, vocês estão mangando de mim!
A cotia aprumou para dentro da mata e correu. Aí os dois rapazes ficaram sem rumo.
Eles continuaram andando, andando, andando e acharam uma boca de um caminho.
– Vamos pegar esse caminho aqui, que vai pela direita.
Chegando lá, era muita gente que morava. Muita gente. Era a aldeia do morcego.
A velha perguntou para eles:
– Meninos, o que é que vocês estão fazendo? De onde foi que vocês vieram?
Eles contaram toda a situação que aconteceu com eles.
– Ah daqui para ali é bem pertinho a aldeia de vocês. Está bem aí, eu carrego a banana
de lá. Amanhã eu deixo vocês lá.
Quando anoiteceu, os morcegos estavam aperreando eles, tirando pedaço, um por um.
Tiravam pedaços e corria sangue em todo canto. Foi assim até amanhecer o dia. Eles estavam
mortos de sono.
O morcego manso, que gosta de comer banana, disse:
– Eu vou falar para vocês, vamos tomar banho.
O outro morcego velho, valente, pediu para eles levarem um pote. O pote conversa.
Eles deixaram o pote no igarapé e subiram, para fugir. O pote falou:
– Olha, os dois rapazes estão fugindo! Vem pegar eles.
O morcego valente já tinha se levantado para pegar eles.
O morcego manso falou para os rapazes:
– Pega areia de dentro do igarapé e tampa o pote. Assim ele fica calado, não grita mais
e vocês fogem.
250

Quando foram tomar banho outra vez, levaram o pote. Pegavam areia dentro d'água e
enchiam o pote até a tampa. O pote não gritou mais, ficou calado. Aí eles fugiram.
Não demora nada, o morcego valente descobriu tudo. O morcego manso pegou esses
dois rapazes e colocou eles dentro do buraco do pau seco que morreu, e encheu ele de folha
seca, escondendo eles. O morcego valente procurava, mexendo por todo canto. Quando ficou
tarde, ele foi embora. O morcego manso voltou lá:
– Vocês ainda estão aqui? Eles já foram embora. Vocês saiam daí que eu deixo vocês
lá na aldeia de vocês.
Eles levantaram e sairam por aqui. Pegaram o caminho de volta para a aldeia deles.
Chegaram lá, na beira da roça.
– Lá está o aceiro da roça, vai embora daqui. – disse o morcego manso.
O morcego pediu para eles irem embora, e eles chegaram na aldeia. Contaram toda a
situação. Todo mundo ficou chorando, com pena desses dois rapazes. E eles ficaram lá, na
outra aldeia do noke koĩ. Foi assim.

Esse mito é um exemplo entre outras narrativas em que as andanças dos noke koĩ pela
floresta são marcadas por encontros com diferentes grupos de afecção humana pelo caminho.
Nessas sagas as relações sociais são em essência relações espaciais. Os lugares percorridos
pelas duas irmãs e por seus filhos, primos paralelos, não são reconhecidos hoje em dia em
nenhum espaço físico, não porque a referência tenha se perdido na história, mas porque a
referencia importante não é a geografia física, mas a social. O que conecta os lugares por onde
passam são as relações que empreendem com o sapo, com a cotia, com os morcegos e com as
onças, que prometendo ajudá-los engatam relações ora de predação, no caso das onças, ora de
cooperação, no caso da cotia e ora as duas coisas no caso dos morcegos. Em ambos casos, são
convidados a dormir e a comer e nessa breve socialidade os agentes revelam suas
caracteristicas prototípicas: a cotia que comia do roçado noke koĩ, os morcegos que tiravam
banana do roçado noke koĩ e as onças que os seduzem para tentar come-los. Essa relações
propriamente sociais são o que marcam o lugar onde passeiam, e não acidentes geográficos. O
espaço percorrido não é um mapa, mas um backup de relações ocorridas no movimento (cf.
Calavia Sáez 2004).
251

Os caminhos: mutualidade construtiva

Diferentemente dos Jarawara que atribuem o nome das pessoas ao caminho produzido
pelo esforço delas (Maizza 2012: 31), entre os noke koĩ a abertura de um caminho não traz
prerrogativas a quem abre. Parentes próximos e distantes podem usar todos os caminhos, mas
não podem usufruir de roçados e frutíferas sem falar com aquele que trabalhou neles, que, por
sua relação com o lugar, os estabeleceu ali.
Usando a terminologia de Ingold (2007) podemos dizer que a TI Campinas é composta
por uma rota (a BR 364) e por mais de um tipo de trilha, há caminhos, piques e cursos d'água.
Os caminhos são aqueles da aldeia, que levam parentes, são caminhos de roçado, de cacimba
e de igarapé, de defecar, caminhos de áreas de coleta próximas à aldeia, de coletar lenha, são
ramais e caminhos para a estrada.
Já a estrada é um híbrido de rota, caminho e curso d'água, porque é um lugar de
movimento de transporte, que conecta pontos (a aldeia a cidade) e ao mesmo tempo, foi
aberta por eles, mas não os pertence como propriedade, e como os igarapés a estrada é o
principal referencial geográfico da TI, sendo equiparada aos rios de outras localidades. Suas
margens configuram-se como cerne aglutinador dos aldeamentos e a via como principal
comunicação entre as aldeias e canal de acesso às mercadorias.
Nem todos os caminhos que se usa na floresta estão de antemão abertos. Alias, mesmo
caminhos frequentes não são necessariamente marcados. Além disso, lugares de visitação
frequente não são necessariamente desenhados por caminhos. Ao avistar uma espécie de
interesse de coleta traça-se uma rota para fora do caminho e com o terçado vai se abrindo um
sub-caminho, uma abertura efêmera e superficial perpendicular ao caminho mais limpo. Se a
coleta demanda espaço, como a coleta de folhas de palheira para cobertura de casas, abre-se
uma pequena clareira superficial o suficiente para armar uma rede, estender as folhas a serem
trançadas e fazer um pequeno fogo para assar algumas batatas ou um resto de carne enquanto
se trabalha a palha. Essa proto-clareira é fugaz, e em poucos dias se indiferenciará
novamente.
Essas proto-clareiras diferem dos tapiris, que servem de pouso em incursões de coleta
e de caça de espera e podem ser refeitas e durar alguns anos. Alguns tapiris são
frequentemente refeitos no mesmo lugar, seja porque são parte de um pique ou porque são
pontos estratégicos de caça (um barreiro, por exemplo). Outros no entanto são provisórios e
podem durar o tempo da atividade, seja para passar uma ou duas noites ou apenas algumas
horas nesses acampamentos. Em geral quando é uma incursão mista, de homens e mulheres,
252

depois de escolhido o canto, os homens derrubam os paus e as mulheres limpam a área. Redes
são amarradas e um fogo é acesso. Os homens providenciam para o tapiri (peshe) paus para
dois esteios e um travessão, que coberto com palha inteiras (sem trançar), serve em casos de
dias de chuva, como são as caçadas de dormida de inverno, para proteger-se da água. Em
caçadas de espera os tapiris servem para se esconder e surpreender o animal que passa sem
avistá-los. Em acampamentos provisórios de coleta que levam apenas algumas horas não se
constrói tapiri, apenas arma-se redes e um fogo.
Tal como para a coleta, ocorre com a caça; a perseguição de um animal pode levar a
abrir sub-piques pela oportunidade imediata de alcançar a caça. Avistar repentinamente um
animal ou deparar-se com rastros frescos podem levar a novos caminhos, ou, no caso da não
muito extensa TI Campinas já ocupada há muitos anos pelo mesmo grupo, a caminhos já
conhecidos, mas que estão cerrados. E assim aos piques, conhecidos e nomeados por nomes
de agentes movidos nele, podem sempre agregar novas trilhas abertas por esses animais em
tentativa de fuga. Um pique de caça portanto tem pelo menos essas duas dimensões, são
trilhas de noke koĩ e trilhas de caça, abertas respectivamente por um e por outro. Dai seus
nomes: txasho vai, caminho de veado, hono vai, caminho de porquinho, voi vai, caminho de
de boi, ou nesse caso específico, caminho do igarapé boi (voi ta'e).
Um caminho é feito não só pela supressão de cobertura vegetal, mas também por
rastros; como pegadas, cheiros, restos de comida, sinais de acampamento. Rastros também
são deixados nos caminhos provisórios noke koĩ para que, seguindo o caminho de um bicho,
não se perca: galhos torcidos ou quebrados, marcas de terçado em algum pau. Para não se
perder, também usam como referência os caminhos mais marcados, os cursos d'água e a
presença de certas espécies, sobretudo vegetais.
Sobre a possibilidade de se perder, existe uma associação entre a malha do jaboti e os
caminhos na mata. O encontro com um jaboti pode ocasionar nos caminhos da mata o
labirinto da malha que ele carrega em seu casco. O contato com o casco projeta o labirinto de
seu desenho pela perspectiva de quem o toca no espaço e a pessoa se perde nos caminhos
andando sem rumo certo e sem reconhecer os lugares142. O problema pode ser solucionado
levando o jaboti consigo. Além do perigo de ter que passar a noite na mata, estar perdido nos
caminhos em razão desse encontro inclui o embaçamento da visão, isto é, o não
reconhecimento dos caminhos, dos rastros deixados e das referências usuais, o que torna a

142
Lima (2000a) também fala desse possibilidade mas acrescenta detalhes: a jabota é ovada e o extravio implica
em retornar sempre ao mesmo lugar. Interessante paralelo acontece com os kaxinawa onde é a jiboia que pode
assim preparar o caminho de sua caça, fazendo com que a pessoa ande em círculos à sua volta (Lagrou 1998,
2007).
253

noite na mata ainda mais perigosa pela indiscernibilidade entre os igualmente perigosos
ataques de animais e espíritos valentes.
Andei poucas vezes na mata com os noke koĩ e sempre foi em lugares relativamente
próximos da aldeia, não mais que 30 ou 40 minutos de distância, porém mais do que pude
observar, a descrição que ouvi algumas vezes sobre os caminhos da mata se aproximam muito
do que Ingold chama de wayfinding. Ingold define a atividade wayfinding como sendo “a
skilled performance in which the traveller, whose powers of perception and action have been
fine-tuned through previous experience, ‘feels his way’ towards his goal, continually
adjusting his movements in response to an ongoing perceptual monitoring of his
surroundings” (Ingold 2000: 220). É nesse sentido que a localização entre os noke koĩ se dá
num movimento dentro de uma região e não por pontos fixos. Mais do que um ponto físico, a
referência é uma região, isto é, uma área composta por viagens entre lugares conectados. Não
se trata de uma porção do espaço, mas de um mundo vivenciado, viajado, uma rede de lugares
ligados por movimento.
Sobre os caminhos perpassa a ideia de que o movimento, isso é, o caminhar, mais que
o caminho, são o foco das idas à mata. Não só porque é o uso frequente dos caminhos (a
caminhada sobre eles) que mantém os seus traçados, mas principalmente porque os caminhos
e o movimento, e as interações nesse trajeto são o que cria os lugares. Assim, a orientação na
floresta se dá por referência a uma região de lugares conhecidos (e nomeados) pelos eventos
acontecidos ali, narrativas de viagens e encontros anteriores. Portanto, a localização é mais
que uma materialidade espacial, mais que um conjunto de pontos físicos no espaço. Ela é
criada pelo movimento, pela ação (passada e imediata) e não por pontos físicos fixos. Isso fica
claro na maneira de se referir a um lugar que sempre remete a um acontecimento, a presença
ou encontro com algum animal e pelo fato dos indicadores de rota serem uma fusão de cheiro,
imagens e outras percepções sensíveis.
Assim localizar-se na mata, depois de se perder ou mesmo só percorrendo um
caminho, depende de uma confluência de fatores: habilidades sensíveis (bom olfato, boa
audição, visão treinada), conhecer os agentes que co-habitam o espaço que se percorre,
reconstituir viagens e eventos anteriores e decifrar o movimento dos elementos no entorno. O
sol por exemplo é usado como referência, e sabe-se que o sol muda de posição ao longo do
dia, assim o movimento do sol é uma ferramenta de localização que vai além de uma posição
no espaço, ele referencia um lugar que está não só no espaço, mas nos movimentos.
255

CAPÍTULO 3 – TERRAS E TERRITÓRIOS

A despeito de várias oportunidades de fixação (programa de habitação, escola, pólo de


saúde) os noke koĩ mantêm uma mobilidade tradicional, ainda que não exatamente como
antes. Passando por correrias, aldeamento em terras demarcadas, rodovia e recentemente pelo
Programa Nacional de Habitação Rural, as organizações espacial e social dos noke koĩ vêm
experimentando transformações. Como muitos outros grupos, eles têm mostrado estratégias
de domesticar essas novas territorialidades. O modo de ocupação das casas do governo, a
relação com a BR e os deslocamentos entre TIs apontam para uma certa persistência da
organização do espaço, em que a estrutura tradicional interfere nas novidades históricas ao
mesmo tempo que se modifica. A mobilidade tem se mostrado uma constante à prova da
história, funcionando como uma estratégia política de negociação e posicionamento. O que se
propõe nesse capítulo é uma análise sobre a relação entre o espaço, a mobilidade e a estratégia
de transformar-se nas relações com os não-indígenas e também internamente. Para além da
reprodução de uma estrutura tradicional o que se busca mostrar é como a reprodução dessa
estrutura tem sido também a sua transformação.
A partir das noções noke koĩ sobre territorialidade proponho neste capítulo analisar os
deslocamentos transregionais entre aldeias, terras indígenas e o espaço urbano. Para tanto,
recorro a dados bibliográficos e etnográficos sobre a territorialidade, os deslocamentos e
mitos que envolvem essas noções. A intenção é demonstrar que “território” e “deslocamento”
não são categorias excludentes do ponto de vista noke koĩ, mas fazem parte do ser noke koĩ.
Uma das propostas desse capítulo é acompanhar os fluxos de deslocamento dessa
população, averiguando em que sentido eles estão relacionados: a) à cosmologia espacial
noke koĩ (e a busca pela autonomia); b) às transformações no próprio modo de vida e na
mobilidade enquanto estratégia política e c) ao tratamento dado à questão indígena pelo
estado.

Território – condição para ser

Os noke koĩ têm uma noção de territorialidade em que o território não é um local
definido geograficamente mas um lugar onde se possa viver e desenvolver segundo preceitos
éticos para a vida noke koĩ.
256

Partindo do pressuposto de que talvez entre os noke koĩ, como para vários outros
grupos, o parentesco esteja relacionado à territorialidade, é preciso entender a definição desse
território. Como veremos, os noke koĩ não se unem em torno de algo (casa, comunidade ou
terra), mas em torno de relações de aliança e parentesco. O deslocamento é a própria condição
para vir a ser uma pessoa noke ro’apa, isto é, decente, boa, honesta. Para os noke koĩ, o ideal
inatingível de lugar com muita caça, sem conflito com vizinho é a base de uma vida ro’apa
koĩ (isto é, boa, adequada, como deve ser, modelo prototípico), que inclui na sua definição a
mudança (em vários sentidos de mobilidade territorial e transformação). O que quero dizer é
que a mobilidade é simultaneamente parte da definição de território e parte do que é ser noke
koĩ, é pois a condição para uma vida propriamente noke koĩ.
Como veremos essa é uma concepção de território que inclui além de um espaço,
processos sociais e, de maneira especial, o movimento, e que, por isso, entra em choque com
a definição de território em que as políticas públicas se baseiam; aquela que associa terra
indígena a espaço físico produtivo limitado por fronteiras bem demarcadas.
Em relação a essa concepção, a territorialidade para os noke koĩ não significa negar a
espacialidade física e a terra, mas privilegiar relações sociais e incluir o movimento, porque
deslocar-se não se limita ao físico, político (fronteiriço) geográfico.
Com o deslocamento de um lugar a outro encontram novas terras, recuperam lugares
dos antigos e buscam um lugar ideal, reforçam relações de parentesco, constroem novas e
modelam corpos e coletivos de relatedness.
Nesse sentido, a abordagem naturalista das categorias de espaço, terra e território não
corresponde às definições conceituais noke koĩ. Se vez ou outra voltaremos a ela é justamente
porque hoje os noke koĩ se confrontam com ela nas negociações interétnicas.
O entendimento de que outros povos não só vivem modos distintos de relação com o
ambiente, mas que sobretudo, têm outros ambientes, isto é, vivenciam outros mundos e outras
naturezas (no plural) tem contribuído para aprofundar o debate sobre o espaço. Tim Ingold
(2000) por exemplo é um autor que, interessado nas relações e processos, se propõe a analisar
o processo da vida no ambiente, seus constantes movimentos e diferentes agentes. Para ele o
modo lateral de integração no espaço se dá numa realidade relacional em que o mundo e o
conhecimento são feitos no movimento. A ecologia da vida, como chama Ingold, baseia-se na
idéia de que a percepção no, e do, espaço é construída a partir dos deslocamentos ao longo da
vida, numa experiência de corpo e mente, de cultura e de natureza, sem separação.
Abordagens como essa se mostram mais próximas do que os indígenas vêm afirmando sobre
seus territórios que muitas vezes não coincidem com suas terras, oficiais e demarcadas.
257

O contato com não-indígenas impôs aos noke koĩ lógicas e concepções espaciais
diferentes das suas que passaram a ser tratadas como territórios oficiais. No entanto, a solução
até hoje apresentada para o equívoco entre essas lógicas e concepções reduz-se ao
reconhecimento do direito à terra.
Se por um lado para o Estado, o parâmetro é, além de espacial e/ou geográfico,
também identitário, por outro lado, para os noke koĩ, a questão territorial parece antes estar
preocupada com a diferença, quero dizer, com os diferentes agentes do ambiente com as
transformações relacionais do ambiente em território e das relações com as alteridades.
É tendo em vista essas refrações de critérios na definição de conceitos de terra e
território que proponho tomar doravante o espaço apenas como um suporte físico, em
potência, territorializável. Com isso quero sublinhar o caráter agentivo de transformar espaços
em territórios que os noke koĩ enfatizam ao definir suas relações com (n)ele.
Terra (como meio de produção) e território são, como bem expuseram Seeger e
Viveiros de Castro (1979), dimensões sócio-político-cosmológicas diferentes. O Estado vê o
território indígena como Terra, passível de posse e produtividade. A demarcação de terras
indígenas e outras ações do Estado (criação SAFs, incentivo à produtividade) visam a
transformação de territórios em terra, isto é, a transformação do resultado das relações do, no
e com o ambiente através do parentesco, da aliança e do trabalho em propriedade produtiva,
substituindo relações entre alteridades com agência por relações de mercado dos recursos
naturais (Carneiro da Cunha et al. 2001).
Tendo isso em vista podemos separar terra de território, entendendo o primeiro como
propriedade e o segundo como espaço de relações e de apropriação relativa e temporária. Para
entender esses dois contextos proponho começar com um mito que vai nos ajudar a entender
algumas dimensões do território, para depois apresentar as terras oficiais dos noke koĩ e
contextualizá-las nessas dimensões.

Mito e histórias de deslocamento

A construção do território noke koĩ se confunde com as histórias das mudanças e das
viagens. A história dos noke koĩ é uma história de mobilidade desde o princípio. O mito de
geração143, ou origem, dos noke koĩ conta que depois de saírem de um buraco na terra os noke

143
Geração é como os noke koĩ traduzem em português a origem, o surgimento, numa referência à acepção da
palavra quanto ao ato de gerar ou ser gerado, e não como espaço de tempo entre graus de filiação, como usamos
mais comumente.
258

koĩ vivem andando em busca de um lugar para morar. A versão abaixo é uma transcrição da
versão tal como me contou Txoki, o pajé rezador de 94 anos.

Mito de origem dos noke koĩ

Piñotxe saiu pelo poder dele mesmo. Não viu nada, não tem rio, não tem terra, não
tem mata, não tem ninguém. Piñotxe só estava mesmo no poder dele. Aí Piñotxe falou:
– Ah eu sozinho não dá. Tem que criar os parentes.
Piñotxe estava dizendo:
– Eu sozinho não dá, não tem pessoa para conversar, não tem ninguém, não tem água
para tomar...
Nada, não via nada.
– Assim não dá, tem que criar ao menos os parentes para conversar, ao menos com
eles.
Sozinho, só fica no canto, ele com o poder dele mesmo. Aí Piñotxe fez a terra.
– Eu vou fazer a terra primeiro.
Aí fez a terra quando foi hoje, amanhã amanheceu terra, enquanto dormia. Quando foi
outro dia, já tem uma terra, já tem um rio, já tem uma mata, já tem tudo, só falta gente. Aí
Piñotxe falou:
– Bom, já tem água para beber, já tem terra para andar, só falta mesmo os parentes
para conversar.
Aí tem um caminhozinho, ele ia vindo para lá e para cá, só assim, para lá e para cá. Aí
o Piñotxe ficou no canto e escutou gente conversar debaixo da terra. Gente estava
conversando debaixo da terra aí Piñotxe escutou:
– Aqui tem uma gente! Eu vou pedir para eles saírem.
Aí ele chegou no canto. Ele parou. Aí Piñotxe falou:
– Quem é que está conversando aqui, debaixo da terra? Se for gente, sai para eu ver.
Sai um de vocês para eu ver.
Aí demorou. Aí vai saindo, um saiu. Aí Piñotxe perguntou:
– Tem mais gente?
– Ah tem um bocado de gente lá debaixo da terra. Saí porque você me pediu para sair,
eu sai.
Aí ele saiu.
259

– Fala para ele para sair o resto.


Aí o resto saiu todinho. Quando saiu todinho, aí Piñotxe falou:
– Que tipo de gente que você é?
Aí aquele que saiu primeiro falou para o Piñotxe:
– Nós somos noke koĩ, somos noke koĩ.
– É o povo verdadeiro, né?
Aí Piñotxe falou para ele:
– Como vocês já saiu na geração, vocês geraram e saíram geração, agora eu quero
dizer para vocês, vocês não podem morar aqui. Daqui mais uma semana vai aparecer muita
gente e vocês não tem canto para morar.
– Nós vamos embora daqui.
Aí saíram. Piñotxe falou para eles:
– Vamos embora.
E saíram, andaram. Aí quando chegaram num roçado de natureza, feito por Piñotxe
mesmo, o roçado tinha banana, roça, mamão, todo tipo de plantio. Chegando aí perguntou-se
por Piñotxe:
– Que fruta essa é?
Aí Piñotxe falou para ele:
– Esse é uma banana. Você pega essa banana madura, descasca e come.
Aí povo noke koĩ descascou a banana e comeu.
– Piñotxe, está gostosa!
– Ah dá para ser assim, pode fazer isso. Agora você descasca a banana cozinha e faz
caiçuma para beber, para você beber.
Aí fizeram, descascaram um bocado de banana, cozinharam, fizeram caiçuma. Aí
tomaram e falaram para o Piñotxe:
– É tão bom, Piñotxe!
– Ah dá para ser assim mesmo, pode fazer, continua fazendo isso.
Ensinou para comer. Banana, mamão, comeram. Aí Piñotxe falou para ele:
– Vamos embora, daqui mais uma meia hora tem outros roçados.
Andaram, andaram. Chegou no roçado de muita pupunha, chegou no roçado que tem
muita pupunha. Aí esse povo noke koĩ falou para o Piñotxe:
– Que fruta que é essa, Piñotxe?
Piñotxe falou para eles:
260

– Essa fruta chamaram pupunha. Gente come, vocês tiram um cacho daquele e
cozinha, quando estiver bem cozido, come para ver se presta.
Aí tiraram o cacho de pupunha, cozinharam. Estavam comendo aí falou para Piñotxe:
– É tão bom, Piñotxe
– É para ser assim mesmo, continua fazendo isso, tá?
Agora nós já estávamos comendo pupunha.
Piñotxe fala:
– Daqui vocês são pouco, nós vamos dividir nomes. Daqui nós vamos dividir nomes,
vocês são poucos.
Aí convidaram todos os noke koĩ, aí colocaram para um canto aqui, colocaram num
canto para ali, colocaram num canto para ali. Aí colocaram assim e Piñotxe falou para eles:
– Esse povo que sentou em cima de árvore de pupunha, deve ser Waninawa. Agora
esses aqui são Varinawa, sol, varinawa. Agora esse povo aqui Kamanawa, esse povo aqui é
Satanawa, esse povo aqui é Nainawa, esse povo aqui é Nomanawa.
Aí Piñotxe dividiu nome de cada tribo, falou para eles:
– Que vocês são poucos, vamos dividir nomes, vamos colocar nome de tribo.
Aí colocou nome chamando cada povo tem um nome. Aí Piñotxe:
– Então pronto, continua fazendo. Hoje por diante vão embora para as cabeceiras dos
rios, vocês não podem morar aqui, porque muita gente, vai aparecer muita máquina, vai
aparecer, fazer movimento. Vocês não podem morar aqui. Porquê vocês são poucos, melhor
vocês ir aonde não tem nada, nas cabeceiras do rio, vocês podem morar onde não tem nada.
Aí acolá, mais para frente tem outra aldeia. Chegou num canto, aí tinha outras tribos
de parentes. Chegaram na outra aldeia. Aí povo do noke koĩ não sabia nada, não sabe pintar,
não sabe colar, não sabia nada. Aí desse povo dessa aldeia mais acolá sabe pintar, sabe tudo o
que ele usa, eles sabem fazer. O povo noke koĩ não sabia fazer. Aí chegaram aqui e pediram
para ensinar para eles. Aí eles estavam ensinando a fazer pintura, aí pintava eles todinhos.
Pintava mulher, homem, menino e criança e tudo. Aí aprenderam a fazer flecha, aprenderam
fazer o colar, aprenderam a fazer pulseira. Aprenderam a fazer o que eles precisavam. Aí
bom, aí Piñotxe falou para eles:
– Ah vocês aprenderam, são aprendido agora, vão andar para frente, andem mais para
frente.
261

Chegaram daqui mais para frente, andaram aí chegou num velho144. Aí chegou lá,
vieram viajando. Fazendo a viagem, chegaram num certo meio, um velho ficou sentado num
canto, aí chegaram por lá. Esse velho era pajé, mas também preguiça, ele falou para eles:
– Ah de onde vocês vieram?
Aí povo noke koĩ falou para esse velho:
– Nós viemos da geração. Lá o Piñotxe fez a gente. Lá da gente da geração. Piñotxe
pediu para nós morarmos nas cabeceiras dos rios, para vir andando mais ele.
Aí esse velho chamado Naĩna Sheni falou para ele:
– Daqui você passa um por um.
Ele queria ficar com um chapéu, esse chapéu, ele só queria ficar com esse chapéu com
pêlo de mulher. Aí o velho queria ficar com o chapéu.
– Aqui você passa um por um, aqui quem manda sou eu. Você passa um por um, um
por um, um por um, aí passou o último. Passaram com esse chapéu, aí esse velho estava
rezando para ele voltar novamente, aí foram, sumiram. Quando vêm, eles vêem é o mesmo
canto por onde eles vieram. Chegaram lá de novo. Aí encontrou com o velho:
– Ah velho, o que você pode fazer? O que você está fazendo conosco? O que quê você
precisa? Você queria casar com essa menina nova?
– Ah! Eu lá quero saber de menina nova, menina nova é para vocês mesmo. Eu sou
velho. Menina nova é para vocês.
Eles falaram para ele:
– Então, é, o que quê você quer? Quer usar o chapéu? O chapéu de pena do japó e
arara?
– Ah... Não quero não. Vocês são novos pode usar.
– Nos vamos embora.
– Ah, pode ir embora, vai embora.
Aí eles passaram, aí esse velho tornava, depois ele voltava de novo. Aí sumiram,
gritaria dele, vieram por onde eles vieram. Aí eles já estavam cismando:
– Ah... ô velho, você está sacaneando mesmo conosco. Você está sacaneamento
mesmo conosco. O que que você quer? Quer ficar com essa flecha?
– Ah, eu não sou caçador, não, pode ficar com flecha, eu não flecho ninguém, pode
ficar com a flecha de vocês.

144
Essa versão da origem dos noke koĩ contem encontros muitas vezes contados em outras versões como mitos
separados. Assim, a seguir tem-se uma versão do mito do chapéu de pêlo de vagina e do jacaré que serviu de
ponte.
262

– Você quer um terçado de pau?


– Quero não, é para vocês, vocês são novo, eu sou velho.
Aí deixava passar um por um. Esse passou aqui, esse homem falou para ele:
– Ô Velho, tu quer ficar com esse chapéu, para fazer seu trabalho para gente passar e ir
embora para cabeceira do rio?
Aí ele falou para ele:
– Quero, meu filho, eu quero desse chapéu! Vocês são criança, não é criança que usa
esse chapéu não, esse chapéu usa só o velho que é igual eu.
Aí esse homem tirou da cabeça dele e colocou na cabeça do velho.
– Agora você vai embora.
Passou um por um. Passaram. Passou, andou e vinha subindo beirando o rio. Quando
foi tarde, esse cara parou:
– Já está tarde, vamos dormir aqui.
Aí se acamparam, fizeram um tapiri, muito tapiri para dormir para fazer viagem no
outro dia. Aí essas suas moças quando estava fazendo o acampamento, duas moças saíram,
beirando o rio vendo se achava uma ponte de pau para poder atravessar o rio145. Aí vem
beirando o pau (rio), andando. Aí quando elas escutaram, escutaram de dentro d'água, e
pareceu subindo e baixando, subindo e baixando. Aí a moça falou para a irmã dela:
– Ah minha irmã, acolá parece um ponte de pau, vamos olhar. Acolá tem um ponte de
pau, vamos olhar.
Aí quando chegaram lá, um matagal atravessando de um lado ao outro. Um mato
atravessando lado do outro, mas só subia e descia, subia e descia. Quando foi reparando,
chegaram aqui mesmo na cabeça do jacaré. Aí esse jacaré falou para as duas moças
– Ah moças, o que é que vocês estão fazendo aqui?
Aí ela falou para ele, contou o que é que eles vinham fazendo.
– Nós viemos da geração, até acolá, nós viemos passando na aldeia, aí Piñotxe falou
para gente que nós não podíamos ficar para lá onde nós nascemos porque vai ser muita gente,
vai ser muitas coisas, não pode morar onde fez a geração. Nós podíamos morar nas cabeceiras
dos rios. Aí Piñotxe estava dizendo, nós viemos beirando o rio, mas não tem pau para
atravessar, nós chegamos lá mesmo, o pessoal fez acampamento e nós viemos olhar para ver
se tem pau para poder atravessar.
– Ah! não era pau não, era eu.

145
Como dito em nota anterior, a partir daqui segue o encontro com o jacaré que serviu de ponte, um mito muitas
vezes contado separadamente e muito comuns entre outros grupos pano.
263

E jacaré falou para as duas moças:


– Desse rio você não acha pau, rio tão grande que é, pau não pode atravessar de um
lado ao outro, pode atravessar um lado ao outro só eu mesmo que atravessa de um lado ao
outro. Podia passar por cima de mim, mas outro canto você não pode passar. E não tem pau
para alcançar de um lado ao outro. Agora, se você quer atravessar por cima de mim, amanhã
vocês trabalham para tirar os matos daqui das minhas costas, façam o caminho. Em cima das
minhas costas tem muitas coisas, tem cobra que ferra a gente, tem uma formiga que ferra
gente, tem uma aranha que ferra a gente, tem muitas coisas que ferra a gente. Amanhã vocês
duas ficam tirando esses bichos das minhas costas, e os homens vão caçar, matar um macaco
para eu comer. Amanhã os homens vão caçar para matar um macaco para eu comer. Eu vou
logo avisar vocês que você mata macaco, mata todo bicho, mas não mexe com jacaré. Não
mexe com jacaré, jacaré é meu parente. E eu não quero que vocês trisquem no jacaré. Se você
comer jacaré, você já vai estar perdendo sua passagem.
Aí já estava escurecendo, as moças voltaram para o acampamento. Falaram para o
pajé:
– Olha, ali nós vimos um jacaré atravessando o rio de um lado ao outro, estava falando
para gente: “esse rio tão grande que é vocês não vêem pau para atravessar, não tem pau para
alcançar de um lado ao outro, só eu mesmo que encosto de um lado ao outro, podia passar por
cima de mim. Mato vocês tiram, tiram bicho que tem nas minhas costas e os homens vão
caçar, matar o macaco para eu comer.” Foi o que ele falou.
Aí pajé falou para elas:
– Ele é um jacaré, mas ele é gente.
– É, nós vamos atravessar nele.
Aí o pajé tomou cipó conversou com ele, cantou noite todinha, conversou com ele.
Jacaré ficou alegre.
– Amanhã nós vamos atravessar.
– Hoje vocês vão caçar e duas moças vão tirar todos os bichos das minhas costas.
Aí essas duas moças foram, tiraram todos os bichos, matava cobra... esses insetos que
ferram a gente, para fazer o caminho. Os outros foram caçar, matavam macaco, chegou na
hora que ele chegou no acampamento, foram lá, entregaram para ele e ele comia e engolia
macaco e jogava, quando ele abria a boca, jogava o macaco na boca dele e ele engolia. Jacaré
ficou alegre e falou para ele:
– Amanhã cedo vocês vão atravessar. Hoje já é tarde, amanhã cedo vocês vão
atravessar.
264

Jacaré ficou alegre. Voltaram para o acampamento. Dormiram, passou a noite todinha
lá no acampamento.
– Vamos levantar cedo!
Aí levantou, todo mundo estava acordado quando amanheceu o dia. Aí pajé falou:
– Vamos embora. Nós vamos atravessar agora. Eu conversei com ele, ele ficou alegre.
Aí chegaram lá, o Jacaré falou para ele:
– Aqui vocês passam um por um. Vocês que estão aqui, se comeram jacaré, vocês já
estão perdendo tudo. Agora se vocês não comeram jacaré, vocês atravessam todinhos.
– Ah... ninguém comeu não.
Aí chegou a vez e jacaré pediu para abrir a boca quem não tinha comido:
– Passa – aí passou.
Outro chegou, aí ele pediu para abrir a boca, olhou e não tinha comido jacaré, aí
deixou passar. Chegou outro, abriu a boca para ele ver, não tinha comido jacaré. Quando
chega na metade do pessoal, chegou homem que tinha comido jacaré e tinha um pedaço de
fiapo de jacaré no dente. Aí Jacaré:
– Abra a boca!
Os outros já estava atravessados, só outro bocado em cima dele, os outros estavam
parados lá do outro lado. Aí ele olhou e tinha um fiapo de carne de jacaré no dente, olhou...
jacaré virou e afundou. Acabou com tudo. Aí jacaré não boiou mais. Os que atravessaram
continuaram fazendo a viagem, quem que não atravessou ficou lá beirando o rio do outro
lado, foram embora. Aqueles que o jacaré afundou as piranhas comeram, tudo. Aconteceu foi
assim.

Territórios relacionais

Esse mito tem vários elementos interessantes que nos ajudam a entender alguns
aspectos sobre mobilidade e espaço para os noke koĩ. Para começar vamos falar sobre a
ausência de referências espaciais. Nesse mito, como em outros, os lugares não têm nome, não
há no mito informação geográfica suficiente para construir um mapa cartográfico. Os lugares
são identificados por um igarapé ou rio grande sem nome, pelas aldeias e pessoas-espírito que
encontram no caminho. As referências dos lugares por onde passam não são coordenadas
geográficas, nem biomas, mas memórias de acontecimentos e encontros. O lugar da geração
dos noke koĩ não tem nome, não pode ser localizado geograficamente. A geografia desse mito
265

de origem é dada pelos encontros e acontecimentos. Essa imprecisão geográfica na


localização dos acontecimentos é algo comum a outros grupos indígenas justamente porque
para esses grupos as relações sociais parecem ser mais significativas para a definição do lugar
que a topografia. O lugar em geral é conhecido pelas relações e acontecimentos que se deram
ali. Como fala Gow sobre os Piro (1995), localizar um lugar depende justamente de estar
envolvido nele de alguma forma e de ter alguma relação com quem conta o acontecimento no
lugar para poder identificá-lo a partir das relações. A localização é vaga para quem não
identifica a relação. Calavia Sáez (2015) propõe que a ausência de coordenadas geográficas
aponta para uma fractalidade do espaço, que tal como definiu Carneiro da Cunha (1998) se
dividido em partes, cada uma dessas é semelhante à original. De fato, se as relações e os
acontecimentos é que são as coordenadas, a ausência de referencial espacial aponta para uma
fractalidade do espaço percorrido na viagem desde a origem, já que são as relações que criam
um “território” em lugar de desenvolver-se nele. Além disso, a descrição por eventos e
encontros e não por qualidades físicas do espaço deixa claro que o lugar não pode ser
identificado por descontinuidade entre parte e todo de um território, antes é identificado pelo
acontecido e por relações com outros, que são da mesma qualidade que têm entre si.
Vários outros mitos contam fragmentos dessa viagem em busca de um lugar para
morar. Muitos deles começam com a frase: “No tempo da geração, veio subindo, parando,
olhando” para em seguida anunciar um encontro. A idéia principal parece ser sugerir que
estavam andando quando encontraram alguém e o evento acontece. Mais que no lugar onde
estavam, a ênfase é no movimento e no encontro. No entanto, recentemente, esses mitos e o
da geração têm sido conectados à história do contato com os yara. E curiosamente a
continuação dos mitos na história tem criado identificações com nomes de lugares atuais.
Txoki conta que os noke koĩ, depois de terem atravessado o jacaré, se dividiram em
marubo e katukina, nomes dados pelos yara aos dois grupos de noke koĩ separados depois que
o jacaré afundou146. Os katukina seguiram viagem. Tomando outros mitos como sequência do
mito da geração, conta-se que no caminho de busca de um lugar para viver, os noke koĩ se
encontram com um povo que lhes oferece uma pedra da vida eterna147. Mas não deram a
importância devida e perderam a oportunidade de serem muitos e de ficarem jovem sempre
que já estivessem muito velhos, apenas trocando de pele. Mais adiante encontram um outro

146
A versão huni kuin desse mesmo mito conta como indígenas, huni kuin, o povo dos dentes, se separou dos
brancos, o povo das contas (ver Lagoru 1998, 2007, e.o.).
147
Mito no anexo N.
266

povo, o povo miserável dos quais roubam manivas e sementes de milho148. Esse mito termina
com o sucesso do roçado e com os personagens dizendo que vão embora, que querem andar
para ir atrás de mais coisas de roçado149. Outro mito conta o encontro com um grupo valente,
os hoshonawa. O encontro com os hoshonawa – que pode ser literalmente traduzido por povo
branco – marca a transição do mito à história. Essa passagem mescla realidade mítica e fatos
históricos. Uma consequência interessante dessa passagem é que o caminho histórico que
percorrem ganha os nomes dos rios e igarapés. Os conflitos com os hoshonawa eram
frequentes e os noke koĩ contam que viviam se deslocando para fugir deles. Um dos conflitos
com os hoshonawa haveria ocorrido no rio Ituí, o Txeshe waka, de onde saíram, cruzaram o
Juruá e chegaram na boca do rio Campinas, no Karoya ta’e. De lá os noke koĩ teriam
circulado pelos rios Gregório e Liberdade, fugindo da correria de peruanos caucheiros.
Quando as correrias frearam, os noke koĩ foram para o Tsatsa waka, conhecido também como
rio Mesquista. Com exceção do rio que o Jacaré ajudou atravessar, que alguns identificam
como sendo o Juruá, outros o Solimões, até esse ponto da história parece haver um consenso
sobre os rios percorridos. Na fuga das correrias, os noke koĩ encontram Manoel de Pinho, o
Toshpiya, um seringalista que oferece trabalho na seringa e proteção contra as correrias.
Nessa parte da história o rio em que se dá o encontro com Toshipya varia com as versões. Há
quem diga que os noke koĩ estavam no Gregório, outros dizem que no Riozinho Liberdade, e
há ainda uma versão que diz que os noke koĩ estavam no rio Lorena, o Hitse ta’e.

Mapa 12 - Localização aproximada de alguns rios

148
Essa sequência mítica é muito comum entre os grupos pano na região.
149
Mito do encontro com o povo miserável no anexo O.
267

O fato dos rios variarem mas estarem muito próximos me parece ser um sintoma da
baixa importância do lugar físico específico na localização. Isso porque o encontro com
Toshipya, a aliança com ele, é mais importante que o nome do rio onde esse evento
aconteceu150. Os rios são equivalentes, são em certo sentido o mesmo lugar, que ao invés de
um nome de rio é definido como o lugar de encontro com o Toshpiya. A inauguração do
contato de forma pacífica com os não-indígenas aponta para uma idéia do lugar como
ocupação do sujeito. O lugar não é dado e incondicional, ao contrário, é construído e
relacional, é onde se assenta a perspectiva. O rio não importa, o que importa é o encontro com
o Toshipya, porque essa relação cria um lugar em qualquer espaço. O que quero enfatizar é
que a transformação do mito em história, ainda que inclua elementos de narrativas históricas
como a tentativa de localização geográfica do evento, mantém a prevalência das relações
sociais sobre a referência espacial.
A história da caminhada dos noke koĩ segue por outros rios, outros seringais e outros
encontros que veremos mais adiante. Agora gostaria de me ater mais um pouco sobre o mito
da geração.
Três elementos chamam especial atenção nesse mito: o aprendizado de técnicas da
cultura pela andança, a idéia de que são poucos e não podem viver perto de muita gente e um
aspecto de orientação muito particular dessa andança, que reaparece também em outros mitos.
Nesse mito, ao caminhar pela floresta em busca de um canto para morar, os noke koĩ
conhecem os roçados de Piñotxe, aprendem sobre os cultivares e como prepará-los para
comer. Em seguida encontram outros grupos que os ensinam as pinturas e outros bens
culturais. O mesmo acontece no mito em que os noke koĩ roubam sementes e manivas do
povo miserável e de lá saem novamente em viagem em busca de outros legumes. A aquisição,
nos tempos míticos, de bens culturais de grupos de fora dos noke koĩ, permitiu a eles se
criarem enquanto grupo social. Nesse sentido, a aquisição de bens culturais por eventos de
contato com alteridades revela a importância do outro na composição social dos noke koĩ, um
grupo que por isso tem desde o princípio um sistema social aberto para o exterior. A andança
em busca de um lugar para viver proporciona a construção cultural dos noke koĩ. Desde a
origem, andar é uma fonte de recursos sociais e materiais. Andando encontra-se outros,
apropria-se de sementes, de ornamentos e de técnicas. Algo que continua a acontecer com o
contato na modernidade, com a cidade e as mercadorias. Longe de serem a prova da
desintegração social ou da perda da cultura, são, ao contrário, a sua contínua reprodução. Esse

150
Contudo, tal localização será retomada como estratégia política no argumento para reivindicação fundiária,
como veremos adiante.
268

mito deixa evidente que andar em busca de um lugar para morar é algo que os noke koĩ fazem
desde o princípio. Essa andança é o que permitiu aos noke koĩ constituírem sua especificidade
em relação aos outros grupos.
Me chama muito a atenção a principal causa original da andança dos noke koĩ, isto é,
o fato de não poderem ficar onde surgiram porque ia aparecer muita gente. Em outros
momentos da narrativa a presença de outros continua sendo evocada como razão para
continuar andando em busca de um lugar onde “não tem nada”. Essa motivação tem duas
dimensões importantes na forma como os noke koĩ encaram os deslocamentos: a busca por
um lugar ideal que nunca se concretiza e a boa distância entre as gentes. A busca por um lugar
ideal perpassa as andanças dos noke koĩ até os dias hoje. O lugar ideal é menos um lugar
determinado por certos biomas ou lugares específicos do que uma dimensão onde se pode
viver do jeito adequado, apropriado. Além de uma dimensão capaz de comportar um modo de
vida noke ro’apa koĩka, isto é, bom mesmo, adequado, de gente, o lugar ideal é pensado como
definido pela memória dos antigos e pelas relações vivenciadas. Não são lugares em si
mesmos, mas relações (atuais e potenciais). São mais que um substrato físico, mas um lugar
que permita expressar um jeito noke koĩ de ser, com capacidade e afecções próprias. Algo
parecido com o que Ingold (2000) fala sobre os lugares e as pessoas se constituírem
reciprocamente: “o ser transforma e é transformado pelo mundo em que vive”. Como veremos
mais adiante os lugares participam do processo de produção de parentes: são lugares
investidos de trabalho e consubstancialidade. E nesse sentido, conformando corpos, os lugares
estabilizam a perspectiva de quem os habita, menos pelas condições ambientais do que pela
relações entre parentes e outros. Isso explica em parte porque os noke koĩ abriram mão de ter
casas na cidade e porque mesmo diante da escassez de recursos naturais na TI Campinas eles
se mantém lá.
Por outro lado, viver junto com muita gente não é visto pelo noke koĩ como um
estratégia que dá certo: surgem intrigas e conflitos. Mas o mais importante no entanto está na
implicação das definições da relações pela proximidade. Os afastamentos impedem que todos
se tornem os mesmos. O território ideal é aquele que permite manter a boa medida da
distância e da proximidade dos parentes entre si, com os não parentes e com os yara. Se os
lugares são relações, o lugar ideal depende da manutenção dessas relações.
A busca por esse lugar ideal apresenta uma caminhada aparentemente desnorteada.
Eles caminham em direção às cabeceiras dos rios, mas tudo se passa como se soubessem para
onde vão. Com exceção do pajé-preguiça que os fazem se perder, nunca estão perdidos. Mas,
se por um lado não se parece com um trajeto totalmente desconhecido, por outro, também não
269

é uma caminhada a um lugar familiar. Existe a impressão que estão sempre chegando, mas na
verdade estão sempre partindo. Os encontros são convites para comer, aprender uma técnica e
pernoitar, que reforçam a necessidade de partir. Encontrar outros no caminho não tem uma
essência familiarizante, antes lembra da necessidade do afastamento instituída na origem:
“vocês são poucos, melhor vocês irem aonde não tem nada, nas cabeceiras do rio, vocês
podem morar onde não tem nada”.

Padrões de deslocamento e de assentamento - Dispersão e retração

Os noke koĩ habitam hoje duas terras indígenas; TI Gregório e TI Campinas/Katukina.


Essas duas TIs estão localizadas dentro de um território mais amplo de circulação dos noke
koĩ. Uma circulação mais comum no passado é preciso admitir, mas que dado o seu caráter
recente é um passado de forte influência referencial aos noke koĩ atuais.
Os noke koĩ chamam essa área (esse conjunto de lugares de morada, passagem,
convívio e colocação) de ni’i, palavra que em certo sentido designa a floresta como um
todo151. Para além de um pedaço de floresta, de uma superfície de exercício de direitos
territoriais e cidadania (ou florestania como o governo do estado tem preferido dizer152), o
ni’i enquanto morada dos noke koĩ é uma sobreposição de lugares reconhecidos ou mapeados
pelo trabalho e pela memória. A constituição desse ni’i se dá entre os noke koĩ pela
combinação entre padrões de assentamento e mobilidade.
É difícil saber como se davam as dispersões e aglutinações do passado. Desde onde se
pode reconstituir a memória do grupo, os noke koĩ se contam histórias de viagens, visitas e
andanças.
Segundo contam os mais velhos, num passado recente, os segmentos internos noke koĩ
kamanawa, nomanawa, waninawa, satanawa, nainawa e varinawa (clãs) viviam dispersos. E
isso parece ter ressonância com um traço geral pano que Erikson (1993) descreve como
profusão de etnônimos e propensão a descentralização. Esses traços implicavam na dispersão
dos clãs, na intensa mobilidade de pequenos grupos e em conflitos entre esses grupos. A

151
Como vimos ni’i tem mais de um sentido, aqui tento descrever a acepção que define um lugar por com base
na oposição estrutural a outros lugares como a cidade nesse caso.
152
A florestania é um conceito desenvolvido pelo Governo do Acre dentro de um projeto de desenvolvimento
econômico do estado. A gestão do PT no Acre adotou a floresta e os povos da floresta como bandeira política de
um governo que se dizendo mais dedicado a causas sociais que outros anteriores, estaria interessado em dar
visibilidade e incluir os povos da floresta nas políticas públicas. Nesse contexto, florestania seria um conceito
equivalente a cidadania que expressaria essa especificidade do papel da floresta e dos povos da floresta na
definição política do projeto do governo.
270

guerra entre grupos era parte das dinâmicas social e política dos pano tanto quanto a sua
consequente dispersão territorial. A cada novo conflito a fragmentação do grupo era eminente.
Os noke koĩ frequentemente descrevem esses ataques entre grupos pano como correrias,
termo usado também para explicar as perseguições feitas por não-indígenas no tempo do ciclo
da borracha. A diferença, no entanto, sempre sobressaltada, está sobretudo na essência
motivadora desses ataques. No tempo da borracha peruanos e brasileiros perseguiam os
indígenas a fim de exterminá-los, escravizá-los e se apropriar de seus territórios. Antes do
contato com os estados nacionais, os ataques entre indígenas tinham interesse em relações, em
forçar alianças através da captura de mulheres e cativos que se tornariam parte da sociedade.
As descrições sobre seu modo de vida se encaixa como de semi-sedentários. De
assentamentos em malocas a colocações de seringal, os noke koĩ vêm atualizando um modelo
de assentamento que não dispensa a mobilidade, que mesmo transformada não se desfaz.
Como vimos no capítulo 1, a mobilidade entre seringais era comum e expressa
padrões ainda atualizados nos dias de hoje. Alguns dados históricos e etnográficos nos ajudam
a distinguir pelo menos três tipos de mobilidade entre os noke koĩ.
No tempo em que viviam em malocas (shovo), a deterioração da cobertura de palha
das casas, o distanciamento progressivo dos roçados ou o adensamento das faixas de capoeira
entre roçado e shovo eram condições suficientes para se mover para uma outra área. Esses
deslocamentos de curta distância, que vamos chamar de movimento mínimo, podiam se dar
também quando havia desentendimentos internamente ao grupo do doméstico. A maloca se
dividindo não ia para muito longe, só mesmo o suficiente para abrir uma nova clareira e um
novo roçado. Hoje, esse padrão de mobilidade se atualiza nas mudanças entre aldeias, que
podem ocorrer por casamentos – por exemplo quando um genro com algum cargo de agente
indígena não pode por essa função se mudar da aldeia, e os pais da mulher, não querendo se
afastar dela, a acompanham a morar na aldeia do marido. Podem ocorrer também por
desentendimentos entre grupos domésticos – brigas, separações – e até mesmo por cisão entre
vários grupos domésticos que, discordando das políticas cotidianas internas da aldeia,
decidem viver em outra aldeia, ou até mesmo abrir uma nova aldeia. Atualmente esse tipo de
mobilidade é o mais facilmente adaptado ao novo modelo de assentamento. Se antes a
mobilidade era uma prática decorrente do próprio modelo de assentamento – malocas que se
deterioravam e abertura de roçados cada vez mais distantes – hoje essa mobilidade se mantém
como uma válvula de escape ao sedentarismo forçado que obriga a todos a viverem muito
perto.
271

A busca por um lugar de uma história biográfica vivida como lugar bom, de fartura, de
onde os antigos viviam pacíficos e com abundância de alimentos também era motivo para
uma mobilidade de maior empenho e média distância. Atualmente a demanda por demarcação
de uma área no riozinho Liberdade é fundada, entre outros motivos, nesse objetivo.
As acusações de feitiçaria, ataques de inimigos ou morte de alguém foram no passado,
assim como ainda hoje é, o disparador de uma mobilidade de impacto e distância maiores. A
fuga dos patrões ruins ou a busca por um serviço bom no tempo do seringal são um terceiro
tipo de contexto sócio-político dessas dinâmicas de assentamento que levavam a uma
mobilidade mais radical.
Ainda assim, é preciso ter em mente que essas mobilidades não são o contrário do
assentamento, antes surgem justamente dos modelos de assentamento.
As colocações com casas, grupo doméstico de parentes vivendo perto e um roçado são
descritos como uma forma espacial apropriada de socialidade. Mas não por serem definitivas,
estáveis ou fixas, mas por oposição ao movimento marcado por relações mais consanguíneas
e intimistas dos acampamentos de deslocamento e do início de qualquer novo assentamento.
Isto é, não é nem a provisoriedade nem a fixidez que diferenciam o assentamento do processo
de mudança – deslocamento e novo assentamento –, mas o modo de socialidade de cada um,
afinal, o assentamento prevê a mobilidade e este, por sua vez, prevê o assentamento. Se por
um lado o movimento é suscitado por um tipo particular de sedentarismo, por outro, o modo
de vida móvel conta com uma mobilidade igualmente particular. Em alguns grupos indígenas,
a mobilidade inclui a vagação, um modo de vida temporário de forrageio e às vezes
assentamentos em acampamentos de estação. Esse não é o caso noke koĩ para os quais o
deslocamento sempre implica em mudança para um novo assentamento. Colocar-se em um
lugar é parte do movimento de ter deixado outro lugar e condição para uma socialidade menos
possível nos acampamentos e nos assentamentos recentes. Para os noke koĩ, só um ou só
outro é inconveniente, incompleto e inviável à reprodução social.
O semi-sedentarismo, como já foi dito no capítulo 1, não é o resultado de fugas, mas
um modo de vida. E sendo assim não são só fatores políticos externos – correrias, fugas de
seringais, ataques inimigos – que impulsionam a mobilidade mas a própria concepção de um
modo de assentamento que inclui a mobilidade. Além disso, o apreço por uma vida aldeã não
contradiz o apreço pela caça abundante, por outras áreas de território e outros recursos além
do roçado. A mobilidade aqui não é resultado de fracassos ou impossibilidade de fixação,
quer por ameaças ou por escassez. Não são os constrangimentos ambientais e as correrias os
únicos elementos de um movimento único. Ao contrário, o que se tem são mais de uma
272

maneira de se mover por muitas razões para além da guerra e da necessidade de


sobrevivência.
As constantes mudanças sempre contaram com um ponto de encontro, lugar onde se
regressa a encontrar parentes. A volta a um lugar anteriormente ocupado, como a aldeia Sete
Estrelas, tinha no tempo da borracha a intenção de encontrar parentes que haviam deixado
para trás ou que se foram em outras direções. O fato de terem um lugar para o qual sempre
voltam em busca de parentes aponta para uma unidade política que curiosamente não se
fragmenta com a mobilidade. Ao contrário, é justamente com a sedentarização forçada em TIs
que a fragmentação do grupo passa a se dar em aldeias e, mais recentemente, em consonância
com os clãs.
No contexto atual, que veremos a seguir, tanto os deslocamentos da TI Rio Gregório à
Campinas quanto as novas ondas de deslocamento territorial têm semelhanças com o padrão
tradicional de deslocamento dos noke koĩ mas, mais que isso, são sobretudo uma
transformação desse padrão de sedentarismo que entre outros aspectos inclui evidentemente
maior dependência da agricultura, da BR e da cidade.
Agora que temos um panorama de algumas concepções noke koĩ sobre a constituição
de um território e sobre a importância da mobilidade nessas definições, vejamos como elas se
atualizam nas terras oficiais dos noke koĩ.

Terras oficiais - As TIs dos noke koĩ

Os noke koĩ transitam hoje em uma área imprensada na mesorregião do Vale do Juruá,
no extremo noroeste do Acre, mais precisamente em uma região entre a margem esquerda do
rio Juruá e o rio Tarauacá, seu afluente à oeste, limitada a leste pela cidade de Cruzeiro do Sul
e a oeste por Tarauacá.
273

Mapa 13 - Localização dos rios limítrofes das TIs Campinas/Katukina e Rio Gregório

Os limites fronteiriços da TI Campinas/Katukina, são o rio Campinas e o rio Liberdade; da TI Rio Gregório são
os rios Gregório e os igarapés Rio Branco, Tauari, Matrinchã e Carrapateira

Dentro dessa área, apenas dois lugares são reconhecidos juridicamente como oficiais:
a TI Rio Gregório e a TI Campinas/Katukina. Essas duas terras indígenas estão
compreendidas nessa área. Ainda que Tarauacá seja a cidade mais perto, para os moradores da
TI Rio Gregório a cidade Cruzeiro do Sul, na margem esquerda do rio Juruá, é a referência
dos noke koĩ para relações com os yara e para se obter mercadorias.
Lima (1994) conta que nem sempre foi fácil chegar até Cruzeiro do Sul. Quando a
autora fez seu trabalho de campo era possível trafegar pela BR somente de Cruzeiro do Sul
até Liberdade, de lá adiante a estrada ficava coberta pela vegetação com apenas um varadouro
para os que seguiam a pé. Ela conta que no verão (abril a setembro), quando era possível
tráfego de carro pela estrada, quase todos os homens iam pelo menos uma vez por mês até
Cruzeiro do Sul. Na época os noke koĩ quando iam a cidade pernoitavam em uma casa que
haviam comprado com recursos de uma cooperativa criada na TI Campinas. Lima conta que a
casa chegava a abrigar mais de 20 pessoas. Os mais velhos iam para sacar aposentadorias e
ficavam por no máximo três dias, os mais jovens iam para passear e ficavam até mais de uma
semana. As mulheres por sua vez só iam a cidade para levar os filhos ao hospital e nunca
sozinhas. Enquanto os homens podiam ser encontrados nas praças e no mercado, as mulheres
passavam a maior parte do tempo na casa ou no hospital. Seis anos depois, os noke koĩ
compraram outras cinco casas na beira do rio, na margem oposta à cidade (Lima 2000a).
Quase uma década depois, quando fui pela primeira vez fazer trabalho de campo entre os
noke koĩ, o acesso a cidade pela BR era mais fácil, uma linha de ônibus saindo de Cruzeiro do
Sul fazia um trajeto até o Liberdade uma vez por dia e a prefeitura disponibizava um
274

caminhão de circulação diária para atender as comunidades rurais do entorno. Muito


provavelmente pela facilidade de chegar à cidade, nesse tempo (2009), os noke koĩ já não
tinham mais casas coletivas em Cruzeiro do Sul para pernoite. Na época Orlando Viño era
funcionário da Funasa e morava no Cohab, um bairro popular da cidade. A casa abrigava sete
dos filhos de Orlando, sua esposa e um genro, além de parentes que eventualmente
precisavam pernoitar na cidade. Na época, uma outra liderança, Kapiyo, também vivia na
cidade em função de trabalho, ele era chefe de posto da Funai. Mais nenhum outro noke koĩ
morava na cidade. Quando voltei em 2013, nenhum noke koĩ vivia em Cruzeiro do Sul. O
acesso a cidade já havia se tornado muito mais fácil e rápido com a construção de uma ponte e
por isso, para a maioria dos noke koĩ, não havia razões, nem desejo, de permaneceram na
cidade. Os principais motivos para irem a cidade permanecem praticamente os mesmos de
quando Lima esteve lá as primeiras vezes: atendimento médico, recebimento de benefícios
sociais e comprar mercadorias. Como um dos principais benefício hoje em dia é o Bolsa
Família, muitas mulheres vão à cidade. O fato de preferirem a vida na aldeia e de não serem
fluentes em português faz com que a rotina de deslocamento até a cidade seja muito
sistemática e rápida. Na maioria das vezes os noke koĩ vão à cidade de caminhão de linha.
Chegam às 4 horas da manhã na beira da rodovia e aguardam o caminhão que pode passar
entre 5 e 6 da manhã. O translado custa R$ 7,00 por pessoa e chega em Cruzeiro do Sul por
volta das 7 horas da manhã. Acompanhadas de seus filhos, maridos ou da mãe e das irmãs, as
mulheres cumprem sempre o mesmo percurso e se mantém sempre nos mesmos lugares para
esperarem a hora de ir embora. Ao chegar na cidade, quem tem beneficio para sacar vai direto
à fila da Caixa Econômica, de lá vão para a praça do mercado, onde em geral comem alguma
coisa, sempre nos mesmos postos, e depois descem para a beira do rio para comprar peixe,
farinha, sabão e outras mercadorias. Depois voltam a praça do mercado encontram os parentes
que também estão pela cidade e eventualmente compram alguma roupa. Aguardam até às 11
para pegar o caminhão de volta. Quando perdem o caminhão, vão para o ponto do ônibus e
esperam lá até às 13h, 14h, horário que em geral o ônibus para Liberdade sai da rodoviária e
passa pela praça do mercado.
275

Mapa 14 - Localização de locais mais comumente percorridos na cidade

A relação dos noke koĩ com a cidade oscila entre o fascínio com as mercadorias e o
medo das pessoas falantes do português e dos perigos da cidade. É muito evidente o
desconforto dos noke koĩ na cidade, que não só não se sentem à vontade, como não gostam de
ficar muito por lá. Nesse sentido, as facilidades de trânsito e acesso à cidade da BR são vistas
como pontos positivos de se morar às margens da estrada em comparação com morar no
Gregório. Os noke koĩ moradores do Gregório quando vão à cidade vão à Cruzeiro do Sul e
não à Tarauacá em parte porque muito deles já moraram na TI Campinas e conhecem o
esquema de trânsito e compras em Cruzeiro do Sul. No entanto, acredito que a possibilidade
de pernoitar na aldeia em Campinas e visitar parentes, em lugar de ter que dormir em
Tarauacá para voltar no dia seguinte para o Gregório tem certo peso significativo nessa
preferência. Convém lembrar da importância da visita aos parentes que vimos anteriormente
no capítulo 1. Mesmo divididos em duas terras, os noke koĩ estão conectados por relações de
parentesco frequentemente atualizadas por contato permanente, por visitas e casamentos.
Ainda que a fragmentação do grupo não seja nenhuma novidade para eles, a fratura
geográfica em duas terras é recente, resultado não de conflitos internos ao grupo, mas
basicamente e sobretudo, de dissonância quanto ao modo de encarar as relações com
alteridades, tanto yara, quanto yawanawa.
Como vimos brevemente no capítulo 1, a saída de vários noke koĩ do rio Gregório
para a TI Campinas se deu num contexto de dispersão já comum entre os noke koĩ, que
frequentemente abandonavam os seringais em busca de outros lugares para morar, em razão
de maus tratos do patrão, conflitos ou saudade de outros parentes. Além desse fator
corriqueiro do modo de vida noke koĩ, o deslocamento processual do Gregório para o
276

Campinas foi motivado por uma série de eventos: uma morte por feitiço yawanawa; conflitos
com um patrão seringalista que elegeu um parente para ser o gestor do pagamento de serviços
aos demais, a facilidade de acesso a mercadorias e oportunidade de trabalho nas obras da BR.
A evitação de conflito com os yawanawa, pela morte do parente por feitiçaria, o trabalho na
BR e o acesso a mercadorias expressam o ponto de divergência entre os que ficaram e os que
se mudaram sobre como deveriam naquele momento se posicionar frente às relações entre
alteridades yara e yawanawa.
Ao se mudarem para as margens da BR as alteridades se multiplicam menos
significativamente em número do que em intensidade. No panorama das relações surgem
outros yara, os assentados, os fazendeiros e os da cidade. E assim como mantiveram suas
relações com os parentes que ficaram, mantiveram a interação com os yawanawa. A inclusão
de novos agentes de alteridade introduziu novos ingredientes e significativas transformações,
no entanto, nada inaugural, afinal os parentes, os inimigos e outros índios não são, nem nunca
foram, as únicas alteridades do universo social dos noke koĩ.
Tanto quanto qualquer grupo indígena da região ou yara, os seres com agência que
compõem o ambiente são parte da definição noke koĩ de território. E nesse sentido é preciso
termos em mente que essas outras alteridades não podem ser reduzidas a uma oposição
simplista de humanos versus seres da natureza. Afinal, como já vimos no capítulo anteiror,
essas alteridades são elementos de um panorama social que se estende para além das nossas
fronteiras de natureza e sociedade, humanidade e animalidade e que portanto, o que
chamamos de recursos naturais são muitas vezes diferentes tipos de agentividade que
compõem horizonte de relações sociais.
Ainda que hoje a noção de terra indígena seja um elemento central da relação que os
noke koĩ têm com o território, as fronteiras entre os diferentes seres e elementos que
conformam as relações com o território escapam da noção da terra como uma propriedade
produtiva. E, se se dizem agricultores, trabalhadores da terra, isso se afasta muito de uma
associação dessa atividade às concepções de agronomia yara. Muitas das práticas
incorporadas ao manejo do território, do solo e das águas, foram adquiridas de outros grupos
indígenas, de seringueiros, tendo pouco a ver com os cursos de AAFI ou similares. O cultivo
de mandioca e banana em lugar da predominância do milho, muito mais conveniente para
quem vive a deslocar-se, e as casas de palafita substituindo as malocas são dois exemplos
disso, afinal tanto um quanto o outro são hoje tidos como práticas genuinamente indígenas e
descritas como tradicionais. Além do que, se colocar como agricultor, como veremos à frente,
é parte também de uma estratégia política de interação com os yara. É nesse contexto de
277

hibridismo e de fronteiras ilusórias entre humanidades, naturezas e cultura que se encaixam as


definições noke koĩ de território, suas práticas e concepções.

Os deslocamentos do Gregório para o Campinas

Os deslocamentos dos noke koĩ do Gregório a Campinas remete à história de definição


de seus territórios oficiais. Como já foi exposto no capítulo 1, a ida dos noke koĩ para as
margens da BR 364 foi motivada pela confluência de fatores sociopolíticos internos ao grupo
– desentendimentos com o patrão seringalista e com os yawanawa, a morte de um parente por
feitiço – com uma oportunidade de trabalho que na verdade era uma oportunidade de
deslocamento de longa distância. A intensificação da mudança territorial da maioria dos noke
koĩ a partir de 1990, coincidiu com o pedido de revisão de limites da TI Gregório, encabeçada
pelos yawanawa no início dos anos 2000. Após quase 30 anos do início da regularização das
terras indígenas no Acre, muitas etnias passaram a reivindicar a revisão de limites de suas TIs.
Entre elas as TIs Rio Gregório e Campinas/Katukina153.
Essas demandas se sustentavam sob a justificativa de que essas demarcações
basearam-se em estudos de identificação feitos por técnicos que não conheciam a realidade
regional e sem a participação dos indígenas nos processos de definição dos limites. Esses
estudos tinham como fundamento apenas o argumento do consenso histórico, que por sua vez,
foi construído apenas por levantamentos bibliográficos históricos de relatos de cronistas e
viajantes. Além disso outro forte argumento é o de que essas demarcações feitas na década de
1970, se deram num contexto de pressões político-econômicas de seringalistas e paulistas
(empresários sulistas) apoiados por políticos locais que influenciaram as delimitações.

Gregório: Revisão ocupação e composição

É nesse panorama geral de reivindicações de ampliação que surge a reivindicação de


revisão de limites da TI Rio Gregório. Estudos do IBAMA para a criação da Reserva
Extrativista do Riozinho da Liberdade e debates acerca dos impactos do asfaltamento da BR
364 incrementam o contexto. O plano de criação da Resex considerava incluir as cabeceiras
do Gregório como parte da unidade de conservação. Sendo um importante território para

153
As demais são: TIs Nukini; Igarapé do Caucho; Katukina/Kaxinawa; Mamoadate, Kaxinawa do Rio Humaitá,
Kaxinawa/Ashaninka do Breu, Poyanawa e Arara do Humaitá.
278

vários grupos Pano da região, essas cabeceiras logo foram reivindicadas no plano de revisão
dos limites da TI Rio Gregório para que fizessem parte da terra indígena e não da reserva. A
eminência do asfaltamento da BR 364 no trecho que liga Cruzeiro do Sul a Tarauacá foi outro
fator que incentivou essa reivindicação, tanto da TI Rio Gregório quanto de outras TIs
afetadas pela BR154.
A presença de paulistas e suas novas alternativas econômicas à borracha, de
exploração florestal, sobretudo de manejo madeireiro, favoreceu um intenso processo
migratório de não-indígenas à região do entorno da TI Rio Gregório. Esse fator, juntamente
com o asfaltamento da BR e a criação da Resex Riozinho da Liberdade e de duas florestas
estaduais (Floresta Estadual do Mogno e Floresta Estadual Rio Gregório), impulsionaram não
só a necessidade de ampliação da TI mas também uma certa mobilidade dos núcleos da TI,
sobretudo dos yawanawa, que se espalharam ao longo do rio Gregório. Essa dispersão ao
longo do rio teve também como motivação o crescimento demográfico, a morte de um
importante líder yawanawa – Antonio Luiz – e a baixa ocupação noke koĩ nesse momento.
Na época do pedido de revisão dos limites, a TI Rio Gregório era composta por 8 aldeias:
duas aldeias noke koĩ (Timbaúba e Tauari), uma ocupada por yawanawa e noke koĩ (Sete
Estrelas) e outras cinco aldeias yawanawa (Nova Esperança, Mutum, Escondido, Tibúrcio e
Matrinchã). Dessas cinco, Matrinchã estava, no momento do pedido de ampliação, localizada
fora dos limites e outras duas (Mutum e Tibúrcio) haviam sido no passado aldeias noke koĩ.

154
Entre elas TI Colônia 27, TI Katukina/Kaxinawa e, inclusive, a TI Campinas/Katukina.
279

Mapa 15 – Mapa da TI Rio Gregório com a localização das aldeias até 2014.

A área pontilhada corresponde a TI antes da ampliação.

O avanço yawanawa sobre o território da TI Rio Gregório se deu, portanto, pela


sobreposição de quatro principais fatores: o crescimento demográfico dos yawanawa; o
esvaziamento de população noke koĩ; a morte de uma importante liderança yawanawa e
estudos de delimitação de áreas de conservação.
Em pouco menos de 30 anos a população yawanawa praticamente quadriplicou. Em
1977 havia 135 pessoas yawanawa, em 2006, 530.

POPULAÇÃO POR ETNIA TI RIO GREGÓRIO


POPULAÇÃO POR ETNIA
ANO FONTE
YAWANAWA NOKE KOĨ

1977 135 77 FUNAI 1982

1982 161 110 FUNAI 1982

1996 270 ? CPI/AC


155
2000 480 109 OAEYERG

2006 530 57 MARTINS 2006, GOVERNO DO ACRE

155
Organização dos Agricultores Extrativistas Yawanawá do Rio Gregório (OAEYRG)
280

POPULAÇÃO POR ETNIA TI RIO GREGÓRIO


Tabela 21 - População noke koĩ e yawanawa da TI Rio Gregório

Enquanto os yawanawa se multiplicavam pela TI Rio Gregório, os noke koĩ viviam


um intenso processo de deslocamento desta TI para a Campinas/Katukina. Na época do
pedido de revisão de limites, os noke koĩ eram 570 pessoas, sendo apenas 57 na TI Rio
Gregório. Desde a reocupação mais recente dos noke koĩ da região do Gregório, a sua
população na área é bastante variável. Ainda que a aldeia Sete Estrelas, no igarapé Apiuri,
como vimos no capítulo 1, tenha sido sempre um ponto de referência, a população noke koĩ
na área nunca foi estável, seja por idas e vindas entre seringais, no tempo da borracha, ou
entre TIs a partir dos anos 1970. No começo dos anos 2000, esses vai-e-vem se expressam em
dois movimentos: o esvaziamento da aldeia Sete Estrelas e a abertura de uma nova aldeia por
parentes vindos da TI Campinas. A saída de Sete Estrela teve, dentre outras motivações, a
transferência da missão religiosa Missão Novas Tribos do Brasil para Cruzeiro do Sul, que
levou consigo os recursos de saúde, comunicação e transporte, a que os noke koĩ já haviam se
acostumado (cf. Lima 2000a). Em 2003, conflitos internos entre os noke koĩ, a distância de
parentes que haviam ficado e um quadro de deterioração ambiental, com escassez de caça e
roçado na TI Campinas levaram alguns noke koĩ a voltar ao Gregório e, juntamente com
outros que ainda estavam por lá, a abrir a aldeia Timbaúba. Os que já viviam por lá ocuparam
a beira do rio, os que voltaram construíram suas casas barranco acima. Porém mesmo com
essa nova aldeia, em 2006, a população noke koĩ no Gregório era muito pequena, quase um
décimo da população yawanawa.
O esvaziamento da população noke koĩ propiciou o avanço dos yawanawa até a porção
norte da terra, inclusive sobre antigas aldeias noke koĩ. Outro fator importante nessa dispersão
yawanawa pelo Gregório foi a morte do líder Antonio Luiz. Divergências entre seus filhos
motivaram a abertura de novas aldeias. Em 1991, duas novas aldeias são fundadas; Escondido
e Nova Esperança (Funai 2006). A aldeia Escondido havia sido uma antiga colocação de
seringa no igarapé Escondido, que, com a morte de Antonio Luiz, foi reocupada como aldeia
por um de seus filhos; Luiz Yawanawa. No mesmo ano, a aldeia Nova Esperança é fundada
por Raimundo Luiz (outro filho de Antonio Luiz), entre as bocas dos igarapés Paturi e
Carrapateira. No final de 1992, Nova Esperança cresce com a vinda de parentes yawanawa da
aldeia Seringal Kaxinawa, que se instalaram na aldeia e em várias pequenas colocações ao
redor dela, tornando-a a maior aldeia yawanawa, povoada em ambas as margens do Gregório
e no igarapé Carrapateira. Com o aumento da população, em 1994, Raimundo Luiz abre na
foz do igarapé Mutum, uma nova aldeia, onde antes havia sido aldeia noke koĩ. Nesse
281

processo de dispersão pela TI, outra antiga aldeia noke koĩ também é ocupada pelos
yawanawa, a aldeia Tibúrcio, no igarapé de mesmo nome (Funai 2006).
Além dessas quatro aldeias, no momento do pedido de revisão (1996 – Funai 2006), os
yawanawa ocupavam uma outra aldeia, a Matrinxã, na porção mais ao sul. Foi tendo em vista
estudos de demarcação de unidades de conservação que visavam incluir em seus planos áreas
que os yawanawa consideravam de ocupação tradicional (área de antigas malocas, cemitérios,
capoeiras), que Francisco Luiz, também filho de Antonio Luiz, ocupou com a sua família uma
área na boca do igarapé Matrinxã, fora até então dos limites da TI.
A revisão de limites foi publicada em 2006 e hoje a TI Gregório tem a seguinte
configuração.

Mapa 16 - Revisão de limites da TI Rio Gregório. Mapa extraído do relatório de revisão publicado no DOU de
3/6/2006, também disponível em Funai 2006.

A revisão incidiu em terras arrecadadas pela União na Floresta Estadual do Liberdade e em áreas da antiga
fazenda Paranacre, compradas pelo grupo empresarial Tinderacre, do apresentador de televisão Ratinho. Os
planos de negócio e manejo florestal da empresa incluíam a instalação de uma indústria de beneficiamento de
madeira.

Segundo Lima (2000), no auge da mudança para o Campinas, alguns noke koĩ
preocupados com a possibilidade da aldeia desfazer-se decidiram ficar no Gregório. Uma
decisão orientada, segundo a autora, pelo medo de que os yawanawa ocupassem toda a
extensão da TI e que terminassem restritos ao Campinas. “Além de que, pensaram, se todos
decidissem morar na aldeia do rio Campinas, não restaria qualquer alternativa para afastar-se
282

de um contexto adverso, já que nas situações de desacordo interno uma das alternativas é
transferir-se de aldeia.” (Lima 2000a: 41).
Mesmo com a resistência de alguns, a ocupação do Gregório pelos yawanawa foi bem
sucedida e ainda hoje há quem diga que o Gregório não serve mais para se mudar porque é
terra do yawanawa. Em sua tese, Lima (2000a) conta que após 1998 as mudanças entre o
Campinas e o Gregório haviam cessado nos dois sentidos. Os desentendimentos com os
yawanawa, a atração pela proximidade de Cruzeiro do Sul, suas mercadorias e acesso a
benefícios sociais; os projetos do governo, as políticas indigenistas e a intensa (e extensa)
ocupação do yawanawa pelo território do Gregório incubaram a mobilidade sempre latente
dos noke koĩ por muitos anos.
Evidentemente isso não significa que as mudanças entre uma e outra TI cessaram
completamente. Como vimos mesmo dentro de TIs com limites muito claros esses
deslocamentos continuaram e ainda continuam, seja entre as TIs, ou entre aldeias e até de
lados da estrada156. Além do mais algumas família continuaram a mudar de uma a outra TI,
mas em escala muito menor do que havia ocorrido no tempo do trabalho em seringais e depois
das TIs demarcadas.
É nesse período de deslocamentos contidos que surge um discurso interno contra as
mudanças entre terras, que alguns anos mais tarde se dilata com as políticas públicas do
governo e com a presença mais intensa do indigenismo. As opiniões sobre os deslocamentos
são divergentes, uns argumentam com repúdio sobre as motivações de quem se muda,
argumentam que é preciso escolher um canto. Outros defendem com alívio ficar num só lugar
pelo fato do fim dos deslocamentos coincidirem com o fim das correrias e do regime de
patrões dos seringais. Assentar num canto só significaria o fim da fugas, das dificuldades de
acesso a mercadorias e dos maus tratos no seringal. Outros são nostálgicos e falam das
andanças como um tempo de fartura e argumentam que viver muito junto não dá certo.
Afirmam que é preciso viajar, mudar, deslocar-se, senão para evitar conflito, para buscar
algum parente que ficou para trás, enfatizam a mobilidade como uma estratégia de cuidar das
relações de parentesco, seja para estar perto, seja para evitar o conflito. Os que são contra a

156
Sobre os noke koĩ serem “tidos pelos regionais como um povo que não pára quieto”, Lima (1994) afirma que
os registros históricos mostram que vários grupos eram conhecidos como Katukina e por isso eram encontrados
em lugares distantes. Diferentemente do que venho expondo até aqui, para a autora, os deslocamentos tiveram
impulso após o contato e o quadro de constante mobilidade mudou com a demarcação.
283

mudança constante, quando questionados sobre o fato de ter sido antes do contato comum
mudar de um lugar a outro, combatem a nostalgia dizendo: “antigamente não mais é hoje”157.
No entanto, a própria conformação da TI Campinas como território se deu pela
mobilidade. Primeiro, porque a TI se encontra em uma área já conhecida pelos noke koĩ de
antes do contato. E em segundo lugar porque a formação do Campinas se deu por ondas de
deslocamento ao estilo das que ocorriam antes do contato. Além das pessoas que vieram para
a abertura da estrada, a ocupação da BR se deu por outras pessoas vindas do Gregório, que já
estavam no Seringal Santa Rita quando estes chegaram lá, além de outros que vieram
diretamente do Gregório para a estrada. Essa conformação aponta para uma mobilidade
constante que parecia estar adormecida nos quase dez anos que passaram trabalhando para
Antonio Carioca e que ocorreu em pelo menos três levas grandes de deslocamento. Assim, a
formação do Campinas parece ter sido resultado da prática de uma estrutura norteada pelo
princípio da mobilidade, de modo que os conflitos no Gregório e o trabalho na BR me
parecem mais circunstanciais e secundários que determinantes. Na prática da estrutura trata-
se do deslocar-se do Gregório para o Japurá, de lá para o Santa Rita e do Santa Rita para o
posto do BEC, tendo como estrutura dessa prática a mobilidade noke koĩ. Com isso quero
dizer que a ocupação dos espaços pelos noke koĩ se deu (e ainda se dá) pela articulação entre
essa prática de deslocar-se constantemente e a estrutura de mobilidade que os guia.
Para entendermos o contexto da retomada da mobilidade vamos nos ater
primeiramente a uma das justificativas mais comuns usadas pelos noke koĩ para explicar aos
yara porque querem se mudar da TI Campinas; o argumento das condições ecológicas da TI.
Como veremos a escassez de caça, a degradação dos solos e a violência trazidas pelas BR são
argumentos que simultaneamente criam empatia nos yara e atualizam uma razão cosmológica

157
É preciso ter em conta que o indigenismo acreano também tem forte influência sobre o discurso contra os
deslocamentos. Herança do periodo colonial em que aldeamentos fixavam concentrações populacionais em um
só território e resguardava à colonia o direito de atacar quem oferecesse oposição à fixação em aldeamentos, a
mentalidade atual do indigenismo local na região é fortalecer as lideranças com um discurso de união do povo.
Hoje as razões do indigenismo para ir contra a mobilidade voluntária se baseia não mais nos interesses
territoriais do Estado, mas em efetivação de políticas públicas. Afinal, o sucesso das políticas públicas depende
da fixação dos indígenas. A mobilidade impacta a implementação de política e de ações de cidadania, como
documentação, educação e saúde. As crianças que deixam a TI Campinas para ir para a TI Gregório, por
exemplo, não levam documentação e muitas vezes terminam por abandonar a escola. Na saúde, o impacto da
mobilidade constante está na interrupção de tratamentos e na alteração dos quadros de saúde local. A mobilidade
afeta os números de efetividade dos investimentos sociais e por isso são combatidas muitas vezes por um
discurso moral de que os índios agindo assim se comportam como bravos e não dão valor a terra demarcada e ao
acesso a direitos sociais. Algo semelhante ocorre com os yaminawa do Acre. Calavia Sáez (2015) demonstra
como esse grupo, por ter uma noção de território diferente daquela que aparece no discurso do movimento
indígena, e incompatível com a norma jurídica, é caraterizados como problema. Calavia Sáez demonstra como a
difícil inserção do yaminawa no sistema territorial indígena os converte em indesejados moradores da cidade.
Em outro momento, Calavia Sáez (2006a) já havia apontado o conflito envolvendo o desenvolvimento de
projetos de gestão territorial entre os yaminawa.
284

própria dos noke koĩ. Por agenciar os conceitos nativo e yara de ambiente, o discurso da
degradação ambiental sensibiliza os yara e justifica o desejo de se mudar para os que tem um
discurso contra a movimentação constante que vê nas vontades de se mudar “coisa de gente
desocupada e sem compromisso”. Por outro lado, ainda que nunca utilizada em documentos e
reuniões, o argumento da degradação ambiental tem uma outra dimensão cosmológica. Ele
ecoa num discurso nativo comum de degradação dos corpos com consequências para o
parentesco e para a conformação do caráter da pessoa noke ro’apa.
Para entendermos a dupla repercussão desse argumento, vejamos o contexto sócio-
ambiental e político da TI Campinas, seu entorno e suas condições ao modo de vida noke koĩ.

A TI Campinas/Katukina: dimensões ecológicas

A parte norte da TI Campinas/Katukina é atravessada, de leste a oeste, por 18


quilômetros pela BR 364. A presença da BR é responsável por frequentes problemas de
segurança física e alimentar. Sobretudo depois do asfaltamento, os casos de doença e
violência se intensificaram.
O intenso contato proporcionado pelo entorno traz consigo não só doenças e conflitos
sociais como também compromete o ambiente. A presença intensa de carros e pessoas na
rodovia espanta os animais, assim como a presença de vizinhos caçando na área. Segundo o
Zoneamento Ecológico Econômico do estado do Acre (Acre 2000), a TI é classificada como
uma área de alta pressão de caça. As ações predatórias dentro e fora da TI, causadas,
respectivamente, por invasões frequentes e sistemas agropecuários extensivos afastaram os
animais do alcance das atividades de caça. Em geral é preciso percorrer de 2 a 3 horas na
mata para se encontrar, com sorte, com alguma embiara. A possível substituição da valorizada
carne de caça por peixe é um tanto inviável. A TI não conta com rio grande e os igarapés não
provêm peixe suficiente para o tamanho atual da população. Segundo uma liderança noke koĩ,
quando a TI Campinas foi demarcada, havia apenas 90 pessoas na área, hoje passam de 800.
A escassez tanto de caça quanto de peixe os leva a comprar com os recursos de Bolsa família,
licença maternidade e aposentadorias, carne de boi, peixe e frango congelado nos vizinhos do
assentamento Santa Luzia e nos mercados da beira do rio de Cruzeiro do Sul.
Nem mesmo o roçado produz mais o suficiente. A terra está degradada e a presença
desequilibrada de formigas de roça compromete a produção, que não se desenvolve como
285

antes. A presença constante dessas formigas faz com que a cada ano se derrube mais área de
mata bruta, e que o roçado se distancie sempre mais.
A TI de maneira geral já não garante mais a soberania alimentar, a terra já não serve
como meio de subsistência e satisfação das necessidades alimentares e nutricionais.
A BR facilitou o contato e isso em certa medida interessa aos noke koĩ, afinal ficou
mais fácil ter atendimento médico, ir à cidade receber os benefícios e comprar mercadorias,
porém por outro lado facilitou também a entrada de pessoas estranhas que cruzam a estrada a
pé e de moto. Essas facilidades, no entanto, trouxeram a violência da cidade para dentro da
terra indígena. Desde o asfaltamento em 1996 os problemas se intensificaram. Casos de
agressões, roubos, assédio, atropelamentos e rapto tornaram-se uma realidade presente. As
mulheres não andam sozinhas pela estrada com medo de encontrarem desconhecidos.
Mulheres jovens e crianças são advertidas a nunca estarem sozinhas e é comum ver as
mulheres sempre munidas de terçado quando vão pela BR.
Em 2009, os noke koĩ na aldeia Masheya relatavam frequentes invasões durante a
noite por pessoas alcoolizadas em moto, que subiam à aldeia “para bagunçar com eles”. Em
situações desse tipo espingardas de caça foram roubadas e houveram agressões físicas.
Além da violência, problemas de saúde, malária, diarréias e sobretudo doenças
respiratórias, como gripe e tosse, se tornaram mais frequentes. Um ano depois do início do
asfaltamento da BR, em 1997, um forte surto de diarréia causou a morte de 5 pessoas num
mês.
Além de ser cortada em 18 km pela BR 364, a TI Campinas/Katukina é cercada por
fazendas, assentamentos do INCRA e pela Reserva Extrativista do Riozinho Liberdade.
Entre 2000 e 2006 foram criadas no Acre 12 unidades de conservação158, entre elas a
reserva extrativista Riozinho da Liberdade que faz fronteira com TI Campinas/Katukina.
Decretada em 2005, a reserva é criada num contexto de disputa territorial entre seringueiros,
indígenas e paulistas. A história da resex Riozinho da Liberdade começa com a eminência da
compra da área que vários seringueiros ocupavam na bacia do rio Liberdade. Na época a
empresa Selva Manejo Florestal Sustentado, do ex-senador e ex-prefeito de Cruzeiro do Sul,
Aluízio Berreza, havia comprado vários seringais com a intenção de explorar cedro e mogno
(cf. <uc.socioambiental.org>). Frente a essa ameaça, os ex-seringueiros reivindicaram a
definição da área como reserva extrativista.

158
Parque estadual Chandless; as florestas estaduais Mogno, Riozinho da Liberdade e Rio Gregório, as áreas de
proteção ambiental Lago do Amapá, São Francisco e Raimundo Irineu Serra, as florestas nacionais Santa Rosa
do Purus e São Francisco e as reservas extrativistas Alto Tarauacá, Cazumbá-Iracema e Riozinho da Liberdade.
286

Mapa 17 - Entorno da Resex Riozinho Liberdade

A resex Riozinho da Liberdade é contígua a outras 2 reservas extrativistas (Alto Tarauacá e Alto Juruá)
e faz fronteira com 4 terras indígenas; TI Arara do Humaitá, TI Jaminawa Arara do Bagé, TI Campinas/Katukina
e TI Rio Gregório. A criação da resex Riozinho da Liberdade implicou em sobreposições territoriais:
juridicamente, com a TI Arara do Humaitá e, historicamente com um território tradicional indígena, hoje
reivindicado pelos noke koĩ.

As reservas extrativistas surgem num contexto muito peculiar do esfriamento do


mercado de látex. Já nos 1970, a crise do extrativismo cria uma grande população de ex-
seringueiros destituídas de terra e de trabalho. O que para essa população foi uma forte crise,
para o setor empresarial conformava um ambiente de novas oportunidades econômicas, já que
viam na região uma nova fronteira agrícola. Assim que junto a uma nova categoria de ex-
seringueiros surge também a categoria de empreendedores. Os ex-seringueiros passam aos
poucos a incorporar, em contraposição aos indígenas e aos empresários estrangeiros, a
posição de acreano, ao passo que os empresários do agronegócio passam a figurar, não sem
um sentido pejorativo, a categoria de paulista, atribuída a princípio de maneira geral aos
empreendedores da nova fronteira agrícola e mais tarde estendida a estrangeiros de outros
estados, sobretudo, do centro-sul.
Além da frente agropecuária, a fronteira agrícola acreana incluía também o
extrativismo predatório de extração de madeira. Os paulistas – madeireiros e agropecuaristas
– se tornam nesse momento os novos colonizadores do Acre. Esse processo moderno de
colonização teve como contrapartida do governo a criação de programas e projetos de
desenvolvimento e ocupação.
287

Entendendo a região como nova fronteira agropecuária e as frentes extrativista


predatória e agropecuária como novas alternativas econômicas, o governo criou projetos de
assentamento de reforma agrária, também conhecidos como colônias, ocupados por colonos,
ex-seringueiros e trabalhadores rurais sem terra. Além disso, o governo investiu em
empréstimos a empresas sulistas e em vias de transporte, energia e comunicações com a
abertura da BR 364.
De ex-seringueiros a sem terra, os novos acreanos destituídos de terra e trabalho se
armaram nos anos 1990 de argumentos de identidade para justificar, por direito, a
permanência nas antigas colocações de seringa (Almeida 2012). Nesse momento, as colônias
já mostravam a falência de um modelo de desenvolvimento econômico inadequado para a
região. As colônias então deram lugar a Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS).
Paralelamente a substituição do modelo de colônias por projetos de desenvolvimento
sustentável159, são criadas as reservas extrativistas.
A indústria madeireira sem dúvida foi um forte argumento para a criação dessas
reservas. Em 1990, o movimento social dos seringueiros teve importantes conquistas
propondo, em contraposição ao extrativismo predatório, uma alternativa econômica que
encontrava ressonância nos debates ambientalistas da época no Brasil de Eco-92: a criação de
territórios de extrativismo sustentável. Ambos os projetos, reserva extrativista e assentamento,
passam nesse momento a compor o entorno da TI Campinas/Katukina.

159
Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS), Programa de Assentamento Florestal (PAF) e Programa de
Assentamento Extrativista (PAE)
288

Mapa 18 - Entorno da TI Campinas/Katukina

Mapa construído em cima de mapa retirado de Acre 2008: 64.

Além da RESEX e do PAD há outros empreendimentos do governo que também


afetam diretamente a TI Campinas/Katukina entre eles o linhão de energia, a abertura de
ramais e os estudos de viabilidade de extração de petróleo.
Depois da tentativa de fazer da região a nova fronteira agrícola do país, o governo do
Acre decidiu apostar numa fronteira, dessa vez petrolífera, acreditando que a exploração de
petróleo poderia devolver à região o período de riqueza do ciclo da borracha. Em 2012 o
Ibama autorizou o início dos estudos de viabilidade de prospecção na região do Vale do Juruá.
Esses estudos, feitos através de ondas sísmicas que mostram locais com potencial de
exploração, foram feitos sem que fossem realizadas oitivas ou consultas prévias. O mapa
divulgado pela empresa que iniciou esses estudos, a Georadar, mostra que as ondas sísmicas
estão próximas à TI Campinas/Katukina e a outras quatro terras indígenas160.

160
São elas: TI Jaminawa do Igarapé Preto; TI Arara do Igarapé Humaitá; TI Poyanawa e TI Nukini.
289

Mapa 19 - Blocos de prospecção de petróleo para leilão

Adaptações sobre mapa dos Blocos ANP- 12 Rodada - Bacia do Acre/Madre de Dios – Blocos disponíveis para
Leilão. Fonte: CR Javarai/ Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari – FPEVJ ,disponível em:
<http://crjurua.blogspot.com.br/2013/09/mapa-dos-blocos-anp-bacia-do-acremadre.html>
Observa-se, no mapa acima, que os blocos pressionam diretamente os limites de cinco Terras Indígenas:
Jaminawa do Igarapé Preto, Arara do Igarapé Humaitá, Campinas/Katukina, Puyanawa e Nukini.

Outro empreendimento de impacto na TI Campinas é o projeto conhecido como


Linhão. Atualmente o abastecimento de energia do Vale do Juruá é feito por usinas
termoelétricas, num sistema de fornecimento chamado isolado. Com a intenção de diminuir
os custos de energia, o governo pretende incorporar o Vale do Juruá a um já existente sistema
de transmissão integrado de energia de hidroelétrica. A proposta de ampliação do sistema já
existente entre Rio Branco e Sena Madureira, por meio de um linhão de torres de transmissão,
é uma preocupação para os noke koĩ, afinal, a referência para a instalação das torres será a BR
364. A definição inicial do traçado previa a presença de torres a menos de 8 quilômetros de
quatro terras indígenas161, sendo a distância da TI Campinas/Katukina de apenas 660 metros!
(Eletronorte 2012).

161
TI Igarapé do Caucho, a 5 km do traçado, TI Katukina/Kaxinawa, a 4,7 km, TI Colônia 27, a menos 3 km.
290

Dois dias antes do leilão do empreendimento houve uma reunião em que foi acordado
que o corredor de torres de transmissão respeitaria a legislação, evitando passar por dentro das
terras indígenas e respeitando um limite mínimo de 8 km destas áreas162.

Mapa 20 - Projeto de corredor de torres de energia e TIs Campinas/Katukina e Rio Gregório

Ilustração do corredor de torres e localização das TIs Campinas/Katukia e Rio Gregório. Mapa extraído de
relatório de caracterização e análise socioambiental da linha de transmissão 230 kv rio branco/feijo/cruziero do
sul. (Centrais elétricas do Norte do Brasil S/A, 2012).

Dentro, ou a 8 quilometros dos limites, as TIs sentirão os impactos do


empreendimento. Uma das preocupações dos noke koĩ é a intensificação dos problemas já
vividos com a BR e a reprodução dos impactos que ela causa e que acabaram de viver com a
162
A distância de 8 km chega a ser simbólica se considerados os impactos que a extensão da rede terá no
ambiente. O traçado de 300 km de Feijó a Cruzeiro do Sul prevê que o corredor atravesse cinco importantes rios
da bacia hidrográfica da região: Tarauacá, Envira, Acurauá, Riozinho da Liberdade e Gregório. Além disso, as
construções dos desvios das TIs implicarão em desmatamentos de área de mata bruta para abertura de acesso
para construção, operação e manutenção permanentes.
291

construção das casas do governo: a escassez de recursos da terra, problemas de saúde,


movimento intenso de máquinas, aumento do tráfego de veículos pela rodovia e intensificação
da presença de não-indígenas cruzando a TI. Além da preocupação com os riscos de choque e
incêndio que o acesso às torres e ao cabos pode oferecer a pessoas, aos animais e à mata.
Além dos impactos sócio-ambientais (diretos e indiretos) da possível exploração de
petróleo e do provável linhão163, a presença de forasteiros para trabalhar no projeto também
preocupa os noke koĩ, já que com eles aumentariam a pressão sobre os recursos naturais, a
produção de resíduos e a intensidade do contato.
Essas preocupações são as mesmas que com os demais projetos desenvolvimentistas
propostos pelo governo, como a criação de mais ramais no entorno da TI. Para os noke koĩ a
abertura de mais ramais incrementa a situação de contato já intensa com moradores vizinhos.
Grande parte desses vizinhos são os moradores do PAD Santa Luzia. Esse projeto de
assentamento dirigido (PAD), como já foi dito, é parte do projeto de colonização da
Amazônia. Foi criado em 1982 com fins de reforma agrária, como parte da política agrícola
da época. Em regime de propriedade familiar, o PAD Santa Luzia ocupa, às margens da BR
364, uma área de 60 mil hectares vizinha a TI Campinas. São quase 2 mil famílias, 15 mil
pessoas em 16 ruas pavimentadas e em uma rede de ramais.

Mapa 21 - Ramais no entrono da TI Campinas/Katukina

Detalhe do mapa de ramais no entrono da TI Campinas/Katukina extraído de Georadar 2011.

163
Atualmente o processo de licenciamento do Linhão está suspenso pelo MPF.
292

Mapa 22 - Extensão do ramal Boa Hora no entorno da TI

Edição de legenda sobre mapa extraído de Funai 2013.

Em 2012, o governo do Acre empreendeu a abertura e pavimentação de um novo


ramal, o Boa Hora. Localizado no final da rede de energia do ramal 7, o Boa Hora é na
verdade uma extensão desse ramal por mais 14 km. O ramal Boa Hora segue o curso do rio
Campinas, margeando a TI Campinas a uma distância de 2 a 3 quilômetros dos limites
fronteiriços (Funai 2013).
Como os demais ramais, o Boa Hora visa a beneficiar os moradores do PAD, porém
sob o custo de maior desgaste de recursos e de conflitos com os indígenas.
Dessa rede de ramais, o 7 tem sido há alguns anos foco de conflitos entre os noke koĩ e
os moradores da comunidade Santa Luzia. Esse ramal existe mais ou menos desde 1985, ano
em que a TI foi declarada e como se pode ver no mapa, corre paralelo a fronteira da terra
indígena e vai até a boca do igarapé Abacate, local onde os noke koĩ mantêm alguns tapiris de
caça.
Os conflitos com os yara do ramal 7 teriam começado há anos, por desentendimentos
com duas famílias moradoras antigas de lá. Os noke koĩ contam que essas duas famílias os
ameaçam com frequência. Um yawanawa, casado com uma noke koĩ e morador da TI
Campinas há muitos anos, conta que certa vez um deles chegou a passar uma faca no seu
rosto e na sua boca. Ele contou também que ao voltarem da cidade, frequentemente os noke
293

koĩ eram ameaçados e obrigados a entregar as mercadorias que traziam. Em 2003, um deles
teria ido a aldeia Campinas e numa situação de desentendimento teria sido baleado, mas
sobreviveu. Em 2005, depois de um jogo de futebol, alguns noke koĩ e moradores do ramal
bebiam na boca do ramal 7, quando membros dessas duas famílias de yara hostilizaram os
noke koĩ, que preferiram evitar o conflito e ir embora. Quando deixavam o bar foram
atingidos por paus, garrafas e golpes de terçado. A briga resultou em vários noke koĩ feridos e
na morte de um deles. Em seguida o irmão da vítima noke koĩ voltou ao local e matou um
yara. No ano seguinte houve outro episódio de conflito envolvendo 3 caçadores dessas
famílias e o filho de um policial, todos moradores do ramal 7. Os noke koĩ haviam encontrado
um acampamento de caça deles às margens do igarapé Areia, um afluente do Chumarra,
dentro da terra indígena. Um dos principais piques de caça dos noke koĩ é justamente esse,
que passa pelo igarapé Martins e vai até a cabeceira do Chumarra.
São frequentes as invasões de caçadores da resex, moradores das margens do rio
Liberdade, e também do assentamento vizinho, principalmente os moradores dos ramais 7, 4 e
2 do Santa Luzia e moradores do igarapé Campinas164.
As principais áreas de entrada são pelo igarapé Chumarra e pelo Campinas. Mas as
cabeceiras do Vai-e-vem, do Abacate e do Três Vez também estão entre as principais áreas de
invasão. Segundo os noke koĩ da aldeia Bananeira, os caçadores que vêm do Liberdade
costumam colocar armadilhas perigosas, feitas com uma espingarda artesanal armada por
linha, que ao ser tensionada faz com que a munição seja disparada. Os noke koĩ se queixam
do risco que essas armadilhas representam para os caçadores, que desavisados muitas vezes
sofrem acidentes. Muitos invasores quando são abordados dizem que estão perdidos ou que,
pelo fato dos piques de demarcação estarem cerrados, não sabem onde ficam os limites entre a
resex e a TI. Além das armadilhas, a pressão sobre o recurso de caça é outra preocupação dos
noke koĩ, afinal a caça é cada vez mais escassa. Problema que afeta também os moradores de
Santa Luzia. Nos ramais próximos a TI, as colônias estão concentradas em áreas de fazendas
e com isso os moradores dos assentamentos não têm área de caça e sofrem como os noke koĩ
com diminuição da presença de animais e com o aumento da pressão ambiental. A falta de um
consenso no manejo territorial leva a desacordos entre indígenas e assentados. De um lado os
noke koĩ reclamam das invasões que aumentam a pressão sobre a caça, de outro os assentados
se queixam que os noke koĩ não cumprem com os acordos de não usar tingui, comprometendo
a oferta de peixe no igarapé Campinas. O uso de cachorro em caçada também é controverso.

164
Ver no anexo P mapa de invasões da TI Campinas/Katukina, área desmatada por ano e foco de calor.
294

Os noke koĩ usam cachorros para acuar pequenos animais no roçado, ao passo que os
assentados usam cachorros de caça, conhecidos como paulistas, que diferentemente do
cachorro de acuar paca, dispersam ainda mais os animais na mata.
O conflito de manejo se dá pela diferença em conceber e se apropriar do território
compartilhado e pelos desdobramentos políticos que isso tem. Os piques de caça noke koĩ não
são uma propriedade de quem tirou o rumo de um pique. O uso não é exclusivo mas as
frequentes invasões com cachorros de caça e uso de armadilhas os têm forçado a recorrer ao
direito de usufruto exclusivo. Mas esse é apenas um exemplo dos diversos conflitos.
Os desacordos entre indígenas e assentados é uma entre outras consequências da
intensidade do contato imposta pela BR. Há alguns anos os noke koĩ lidam com violências e
atropelamentos.

Vulnerabilidade social

Em 2010, um agente de saúde indígena foi atropelado enquanto caminhava pela beira
da estrada. Os dois meses seguintes a sua morte foram marcados por uma série de quatro
suicídios. O suicídio não é comum entre os noke koĩ e não existem registros de ser recorrente
entre outros grupos de língua pano.
Lima (2011) chama atenção para uma correlação interessante entre a morte por
atropelamento e os quatro suicídios. Ela conta que, segundo um professor indígena, os
meninos que se suicidaram pensavam muito no homem que tinha sido atropelado. De acordo
com os noke koĩ, o pensamento desordenado pode levar à morte e portanto, não foi à toa que
todos os quatro suicídios se deram por um tiro no peito, onde fica o coração; a sede do
pensamento. “Como se os rapazes que se mataram não pudessem apagar a lembrança de
Rodrigo de seus pensamento, e, sem que a morte os levasse, resolvessem subtrair suas vidas
por conta própria. Uma morte acabou por implicar em outras e assim se alcançou o
descontrole” (Lima 2011: 528)165.
Com isso, podemos afirmar que os suicídios são, sem dúvida, correlatos da violência
da BR. Infelizmente, Rodrigo não foi a única vítima de atropelamento. No mesmo ano, houve
um capotamento, que feriu oito indígenas, e um outro acidente, que envolveu a morte de três

165
Keifenheim (2002) analisa o suicídio entre os huni kuin e afirma que a concepção de suicídio entre eles
conecta a causa da morte voluntária às percepções sensoriais dos espíritos dos mortos: “Selon l’opinion
commune, les contacts olfactifs et auditifs avec les esprits des morts conduisent inévitablement à la mort, si les
premiers symptômes ne sont pas détectés et soignés à temps”.
295

yara. Anos antes um professor também tinha sido atingido fatalmente por um veículo na BR.
Em 2015, uma criança do Tauari (aldeia localizada no igarapé de mesmo nome na TI Rio
Gregório), que estava a passeio com a família também foi atropelada. Dessa vez no entanto o
motorista era noke koĩ, o que tornou o desolamento ainda maior.
O envolvimento dos noke koĩ não só como vítimas mas como agentes da violência da
BR é visto como mais um problema trazido pela rodovia. Em uma relação tão direta com a
BR quanto a dos suicídios, estão as prisões de quatro noke koĩ no presídio estadual de
Cruzeiro do Sul.
Em todos os casos os crimes foram cometidos na BR e envolveram vítimas yara. Um
dos presos, Sérgio, é condenado a 24 anos de prisão em regime fechado por homicídio
qualificado de um taxista que havia sido contratado na cidade para levá-lo a aldeia. Os dois
bebiam juntos na cidade e ao chegar na terra indígena o taxista assediou a mulher de Sérgio,
que reagiu com uma garrafa de cachaça, deixando o taxista desacordado na pista da BR. Um
ano depois, ainda em estado vegetativo, o taxista veio a óbito.
Os outros três presos são acusados de um mesmo crime, o estupro de uma menor na
BR. Uma adolescente que caminhava pela rodovia pediu carona para três noke koĩ que
passeavam em duas motos dentro da terra indígena. O estupro teria acontecido nas margens
da BR.
Não me parece sem importância o fato de ambos os crimes terem acontecido em
dezembro do mesmo ano, 2011. Nessa época os noke koĩ ainda consumiam muita bebida
alcoólica, sobretudo nos finais de semana e em datas de feriado ou dia de festa de yara, como
natal e ano novo. A bebida alcoólica entra na TI sobretudo pela presença da BR que, se
facilitou comprar frango congelado, facilitou também comprar cachaça. Mas a BR como
vimos, não traz só a cachaça mas também a violência: agressões verbais de quem passa de
carro aos indígenas a pé, roubos, raptos e atropelamentos. O poder de sedução que as motos
têm sobre os jovens se alia a esses males que vêm pelo caminho da BR e tornam os noke koĩ
ao mesmo tempo vítima e algozes dessas violências que, depois das condenações, seguem na
aldeia e no presídio.

Revisão e reivindicação

Os impactos da BR, dos ramais e do assentamento são sistêmicos. Os efeitos sobre a


TI não têm uma origem pontual. O fato da BR e dos ramais atravessarem várias bacias
296

hidrográficas166 afeta uma área muito maior que a TI. Como o ambiente é composto por uma
cadeia de seres e recursos interligados, os efeitos de empobrecimento do ecossistema
causados pela BR se propagam pela bacias. Da mesma maneira, as questões cosmológicas,
que não sendo separadas das da cosmopolítica do contato, se propagam para além da terra
indígena. Nesse sentido, para nenhuma das duas dimensões, sair das margens da BR para ir
para o interior dessa mesma TI solucionaria a questão. Diante desse quadro cosmopolítico de
confronto e equívocos entre as políticas interna e externa, há pouco mais de 8 anos os noke
koĩ passaram a manifestar intenções e vontades de voltar a se mover.
No entanto, essas intenções e vontades vêm se chocando contra a política indigenista e
as propostas de mitigação do governo, que impõem um modelo de assentamento baseado
exclusivamente na concentração e fixação.
A mobilidade e a dispersão sempre foram empecilhos, a princípio, para a
concretização da aculturação e da usurpação territorial, e atualmente um obstáculo às políticas
públicas e à adequação aos recursos da terra indígena e outros modos de vida e de
subsistência. Sabe-se que o estado busca fixar os índios e nesse sentido o movimento é visto
com maus olhos. Os índios são criminalizados, descritos como sem compromisso. E para
negociar com esse equívoco, os noke koĩ frequentemente acionam a descrição do entorno e a
degradação (em vários sentidos) da TI para justificar a inversão da tendência de deslocamento
do Gregório para Campinas e a reivindicação da área entre os igarapés Miolo e Forquilha. É a
partir dessa estratégia de se valer do estado e da legislação que os noke koĩ tentam, como
disse Carneiro da Cunha (2009), extrair do estado e do direito armas para a resistência. É
mobilizando mecanismos conhecidos e desejados das políticas indigenistas e do governo do
estado, que, em 2008, lideranças noke koĩ passaram a reivindicar uma revisão dos limites da
TI167.
Esse pedido de revisão, além de basear-se apenas em uma dimensão ecológica do
argumento da degradação ambiental tinha como motivação exclusivamente questões de
política externa (isto é, questões interétnicas como a perda de territórios para a reserva
extrativista e projetos de assentamento rural e os impactos da BR sobre a segurança física e
alimentar), e assim não contemplava questões de política interna: desacordos entre etnias,
vizinhos e até mesmo dentro do próprio grupo, acusações de feitiçaria, evitação de conflitos,

166
O ramal Boa Hora, por exemplo, corta 8 igarapés.
167
Em resposta a reivindicação da revisão de limites da TI Campinas/Katukina, a Funai afirma que diante do alto
número de reivindicações por demarcação e identificação e do reduzido corpo técnico da instituição, decidiu-se
priorizar a conclusão de procedimentos mais antigos antes de iniciar novos estudos, com base em critérios que
deixam claro a decisão de evitar a revisão de limites de terras já regularizadas. (ver anexo R).
297

receio de yochĩ de mortos, decisões discordantes e disputas de poder168. Sendo inclusive estas
duas últimas questões de peso na decisão dos noke koĩ de proporem, paralelamente à revisão
de limites, uma outra reivindicação, a demarcação de uma área entre os igarapés Miolo e
Forquilha.
A reivindicação da área do miolo, segundo essa demanda, não seria uma ampliação da
TI Campinas, por não ser contígua a ela, mas a demarcação de uma outra terra. Essa demanda
surge entre os moradores da aldeia Varinawa, que se identificam como pertencentes a esse
clã, varinawa. Mesmo se baseando nos mesmos argumentos do pedido de revisão de limites,
essa reivindicação tem sido fortemente desestimulada por algumas lideranças e a motivação
dessa reprovação é também parte da razão da reivindicação, veremos como mais a frente.
A área inscrita dentro dos limites da resex Riozinho da Liberdade reivindicada como
território noke koĩ está localizada entre os igarapés Miolo e Forquilha, na margem esquerda
do Riozinho da Liberdade.

Mapa 23 - Área reivindicada no ig. Miolo

Mapa construído com base no mapa de NGI/ICMBio - Cruzeiro do Sul - Acre/, 2011, extraído de MPF 2001

168
Essa separação entre questões intra e interétnicas, política interna e externa é usualmente feita pelos noke koĩ
falantes de português e aqui tem uma função meramente analítica e ilustrativa do âmbito das explicações que os
noke koĩ apresentam para a reivindicação da terra indígena. Ambas constituem para eles motivações de mesma
valência, não sendo relevante a condição anterior ou inaugural de uma em relação a outra. Nem mesmo estariam
separadas radicalmente, mas antes compondo fenômenos relacionais diferentes de um mesmo processo, duas
versões diferentes de uma mesma coisa, isto é; dos disparadores das mutações virtuais da relação noke koĩ com a
terra; a mobilidade constante.
298

Segundo mapa aproximado elaborado pelo ICMbio de Cruzeiro do Sul (MPF 2011169), a área
reivindicada tem pouco mais de 33 mil hectares, isto é, pouco maior que a TI Campinas/Katukina (MPF 2011).
Da ponte sobre o Liberdade na BR364 até o igarapé Miolo são em média de 3 a 4 horas a montante em barco de
motor rabeta. Da boca do igarapé Miolo à boca do Forquilha são outras 4 ou 5 horas (MPF 2011).

A reivindicação dessa área específica tem, dentro das negociações de política


territorial, dois argumentos de justificativa, comumente acionados em situações de
demarcação de terra: um sobre as condições ecológicas adequadas à reprodução física e
cultural e a ocupação histórica.
Diferentemente do pedido de ampliação da TI, essa reivindicação com base no
argumento de condições ecológicas adequadas à reprodução física e cultural inclui a dimensão
cosmológica da degradação ambiental.

A TI Campinas e a reivindicação do Miolo: dimensões sócio-cosmológicas

Oito meses após a prisão, os presos noke koĩ se queixavam de maus tratos no presídio.
Na época, segundo relatório de visita da Funai (2012b), o diretor do presídio teria admitido
excesso por parte servidores. Os indígenas teriam sido liberados de cumprir a normativa
interna do presídio de ter os cabelos cortados com máquina em respeito às especificidades
culturais. No entanto, um servidor do presídio os obrigou a terem os cabelos raspados.
Segundo os relatos dos presos, as feridas na cabeça causadas pela truculência do corte foi
apenas uma entre várias agressões que sofrem quase diariamente. Ao saírem da cela para o
banho de sol os indígenas sofrem agressões físicas, ameaças, intimidações e humilhações.
Além de ofensas e constrangimentos verbais, são obrigados a sair sem a prótese dentária, para
que fiquem envergonhados frente aos demais presos. A humilhação frente aos outros presos
agrava ainda mais o clima de animosidade entre eles. Os outros presos se queixam de que os
indígenas teriam privilégios de cela e banho de sol separados. Para os noke koĩ presos, no
entanto, a separação não é suficiente para garantir o direito de respeito à especificidade
cultural, e se queixam também de serem proibidos de usar rapé, kãpo e de fazer pajelança.
Alegam que o processo judicial não levou em conta a condição cultural, nem a convenção 169
da OIT que estabelece que a aplicação da legislação nacional deve levar em conta os
costumes e o direito fundado nesses costumes. Dizem reconhecer ter errado segundo a lei do
yara, mas que há controvérsia se foi crime segundo o costume noke koĩ. Além disso, para

169
MPF 2011 - Nota Técnica MPF Reivindiação Miolo
299

eles, é ofensivo que suas famílias vivam de comida comprada com auxílio reclusão se eles
têm condições físicas de suprir as necessidades170.
A violência no entanto não se restringe ao presídio, ela segue na aldeia. Após a prisão
dos quatro parentes ocorreram duas mortes e um suicídio, provavelmente pelas mesmas
razões associativas dos suicídios de 2011 à morte por atropelamento naquele ano que falamos
acima; pelo fatal descontrole de pensamento causado pela saudade de um parente.
Além disso, não podemos deixar de lado o fato de que para os noke koĩ a violência
sobre um corpo tem consequências importantes nos corpos aparentados.
Os corpos humanos são habitados por duas qualidades vitais: uma do corpo mesmo,
yochĩ yora vaka171, e outra do olho, o wero yochĩ. A vida de um corpo depende da
coexistência desses dois yochĩ. O wero yochĩ pode em situações específicas – doença, febre,
sonho, pajelança – desprender-se do corpo temporariamente. No entanto, a desconexão
permanente desse yochĩ é a morte. Além de acidentes de ordem física com o corpo, outras
situações podem levar a essa desconexão, entre elas estados de ânimo violentos. Os noke koĩ
apreciam a moderação e por isso prescrevem como etiqueta a evitação de excessos de toda
ordem. Assim, falar demais, gritar, ser impaciente, brigar e bater são atitudes mal vistas. A
violência entendida como um excesso de valentia, como um comportamento excessivo,
abusivo, é depreciada e tida como perigosa. A violência pode desestabilizar os vínculos entre
o corpo e seus espíritos, fazendo a pessoa adoecer e, no limite, até levar à morte,
principalmente para crianças e jovens que têm esses laços muito frágeis ainda. Tal como a
violência, a tristeza também pode adoecer e levar à morte pela vulnerabilidade dos laços entre
os yochĩ e o corpo. Assim, o bem estar dos parentes depende do comportamento comedido de
uns com os outros. Cuidar para que o corpo do outro tenha laços estáveis exige paciência, não
se pode tratar alguém em estado de comportamento excessivo (valente ou triste) com mais
excesso. O bem estar do corpo de um parente depende da moderação e do bem estar do corpo
de outro parente, envolve portanto toda a comunidade.

170
Em uma carta enviada, em 2013, ao governo do estado, ao MPF e à Funai, é apontado o problema social
causado na aldeia pela condenação em regime fechado (carta no anexo S). Quatro esposas e 14 crianças
passaram a enfrentar dificuldades com a ausência dos pais de família responsáveis, segundo a tradição, por abrir
roçados e trazer carne para a casa. A carta pede às autoridades que repensem as condições de cumprimento da
pena, que eles possam cumprir a pena na aldeia sob autoridade e responsabilidade dos caciques e
acompanhamento da Funai. Para os Noke koĩ, a violência do presídio decorre de preconceito que foi também um
fator de peso nas condenações. O juiz que proferiu a sentença, José Vagner, afirmou: “o réu condenado é
aculturado, fala português normalmente, frequenta a cidade, faz uso de dinheiro, recebe benefícios do Estado e
tem costumes no país”. (Jornal a Voz do Norte, Cruzeiro do Sul, 24 de março a 04 de fevereiro de 2013: 13).
Para eles, o fato do crime ter sido cometido por indígenas contribuiu na determinação das penas.
171
Yora vaka pode ser traduzido como espírito sombra do corpo.
300

Com isso fica clara a relação entre a violência perpetrada pela BR (crimes,
condenações, roubos, raptos, agressões, violências no presídio) e as mortes e suicídios de
outros parentes na aldeia. A tristeza e a saudade incomuns causadas pela situação de violência
e excesso e pela morte de um atropelado, ou pela ausência de um preso, gera por seu estado
anti-social, além de descontrole do pensamento, a desestabilização dos laços entre os yochĩ,
causando doenças, desesperanças e morte. Não se trata de saudade e tristezas comuns mas de
sentimentos anti-socais produzidos por situações de excesso de violência em si mesmas
demasiado perigosas para os vínculos espirituais172.

Violência, morte, distância e esquecimento

A lembrança, a tristeza e a saudade de e por um parente fragiliza o saudoso173. Quando


se trata de uma pessoa que morreu, a tristeza e a saudade atraí o yora vaka do falecido e a
descontinuidade da relação é necessária para que os vivos sigam em frente, por isso é
importante que aqueles que viveram perto se desfaçam dos pertences do morto; casas são
abandonadas, objetos são queimados ou doados a quem não era co-residente, os nomes são
evitados de pronunciar.
O nome na língua não pertence mais ao morto e por isso deve ser evitado para se
referir a pessoa morta. A ausência de nome nas sepulturas indica isso. A partir da morte a
pessoa precisa ser esquecida por seus parentes e por isso o seu nome na língua não deve ser
pronunciado. Para se referir à pessoa deve-se chamá-lo de finado, ou finado seguido de seu
nome em português. Com a morte a pessoa perde o nome, que volta ao repositório de nomes e
pode ser novamente usado para outra pessoa. Lima (2000a: 100) afirma que a reposição do
nome é uma garantia de continuidade da lembrança do morto já que todo o resto é marcado
com a morte pela descontinuidade174. A reposição do nome, no entanto, indica mais uma
descontinuidade. Ainda que a escolha se baseie no desejo de homenagear o falecido, a

172
Sobre os marubo, Cesarino (2008) afirma que o resultado de alguns jovens terem suas almas (seus duplos)
vivendo nas cidades, enquanto seus corpos permanecem nas aldeias tem como resultado a melancolia, a
desolação, os conflitos de gênero e geração e até a doença. O autor ainda pontua que em outros povos
ameríndios é provável que por razões similares ocorram suicídios.
173
Sobre a saudade entre os huni kuin, ver Lagrou 2000.
174
No entanto ela afirma: “[...] a interpretação nativa quer que a transmissão dos nomes seja a garantia da
perpetuação dos defuntos, quer arrumar uma solução pacífica para contornar a ruptura imposta pela morte.
Contudo, distanciando-se um pouco do ponto de vista nativo, parece-me possível supor que o efeito da
transmissão onomástica seja uma vez mais cancelar a sua existência” (:102).
301

reposição do nome parece ser uma maneira de resignificá-lo em outra pessoa, de dar nova
vida ao nome, novo corpo e novas memórias175.
O momento logo após a morte é extremamente perigoso aos vivos. A tristeza, a
lembrança e a saudade encarnam pelo menos dois tipos de ameaça: uma causada pelo próprio
sentimento e outra pelo yochĩ yora vaka do falecido. Tanto para o parente morto quanto para
o parente vivo porém ausente, o sentimento de tristeza e saudade fragiliza os laços entre os
yochĩ levando o wero yochĩ a longos passeios pelas lembranças, pelo passado e
consequentemente ao abandono da vida presente e das relações de cuidado com os demais
parentes vivos, é o esquecimento das pessoas erradas.
Numa situação de ausência por morte, o yora vaka do falecido é atraído pela saudade e
vem visitar os parentes vivos porque também sente saudade. Eu mesma fui vítima dessa
saudade. No dia em que Orlando, meu pai classificatório, morreu, ele foi velado no pólo de
saúde176. Ao sair de lá a tristeza era tão grande que me sentia doente. A tristeza de sua morte
me deixou cinco dias de cama com uma febre de causa desconhecida. Não me lembro de nada
desses dias, o único que sei é o que o meu companheiro me contou que eu falava durante o
delírio. Eu dizia sonhar com flores e em outra ocasião com o pajé da aldeia Bananeira me
mandando ir dormir na rede e chamar por ele. Dias depois contei a outro pajé sobre a febre e
os sonhos e ele me disse que era a minha saudade e a minha tristeza que tinham trazido o
yochĩ yora vaka do falecido que, sentindo saudade também, queria me levar. Logo depois da
morte, a aldeia onde o falecido morava foi parcialmente abandonada, a casa do finado e as
casas ao redor foram deixadas atrás de um mato que crescia rapidamente. As viúvas disseram
que desde então os cachorros latiam para o escuro, por causa da presença do yochĩ do
falecido. Txore, uma das filhas, disse ter visto o yochĩ do pai, não chegou a ver o rosto, mas o
corpo “era todinho dele, num camisa branca”. As viúvas não viram o yochĩ mas notaram a
presença. Ao abrirem uma porta e senti-la pesada demais para empurrar, não tiveram dúvida

175
Em contraposição ao nome que atraí o yochĩ do corpo, o termo de parentesco tem a potência de agir sobre o
wero yochĩ. Ele pode tanto apartá-lo do corpo em definitivo, quanto recuperá-lo ao corpo descontrolado e
delirante pela doença ou bebedeira. Por isso algumas vezes pouco antes de morrer a pessoa já em estado vopi
(moribundo), já sem brilho nos olhos, invoca o pai ou a mãe. E ao morrer seus filhos fazem o mesmo, invocam
os termos de parentesco numa tentativa ineficaz de reverter o fato. Quando a pessoa está muito embriagada ou
muito doente, os parentes invocam seus termos de parentesco, em uma disputa com algum yochĩ que
provavelmente também a está chamando pelo termo de parentesco. Esses três episódios ocorreram na morte de
um homem em 2015. Pouco antes de morrer ele chamava por seu falecido pai e dizia vê-lo oferecendo-lhe água.
Os filhos em volta da rede o seguravam pela mão e clamavam “papa, papa” na tentativa de evitar que ele
aceitasse a oferta do yochĩ do falecido. Mesmo sem sucesso, no velório seus filhos continuavam a chamar papa
chorosamente.
176
Prática incomum, mas como ele faleceu no fim da tarde não era conveniente ir ao cemitério a noite para
enterrá-lo e além do mais se tratando de uma liderança tão significativa muitos queriam vê-lo inclusive e
sobretudo os yara funcionários do governo em Cruzeiro do Sul.
302

de que o peso era do yochĩ do corpo do falecido escorado na porta. Elas disseram ouvir ele
bater na porta e na janela e sentiram o peso dele se sentando na cama. Uma delas disse que
tinha medo de yochĩ, mas que do falecido não tinha porque era só porque ele estava com
saudade.
Essas duas ameaças – uma causada pelo próprio sentimento de tristeza e outra pelo
yochĩ yora vaka do falecido – são comuns nesse estado pós-morte de pensar, lembrar e sentir
saudade, a que os noke koĩ chamam de vopichina.
Vopi é como se refere aos moribundos “que só estão esperando a viagem”. Um senhor
muito idoso de Waninawa tinha grande parte do dia o olhar perdido, o pensamento
inconstante e por isso diziam que ele queria morrer, que só estava esperando a sua viagem.
Lima (2000) aponta que vopi é também o verbo para morrer e isso encontraria ressonância no
fato da morte ser entendida pelos noke koĩ como um processo. A autora ainda sugere que a
etimologia da palavra vopi venha de vo’o (cabelo) + pi (comer). Não alcancei verificar e a
única tradução que tenho de vopi é de uma pessoa em estado grave, esvaída, quase morta. A
pessoa vopi, por qualquer que seja o agente da sua doença, não tem controle sobre o corpo, os
yochĩ estão instáveis, é o wero yochĩ disperso. Os sintomas de uma morte eminente são os
mesmos de quem sente desejo de morrer: abatimento, fraqueza, desinteresse, esquecimento
dos parentes vivos, inapetência. E em geral a morte eminente e o desejo de morrer vêm um
acompanhado do outro, o wero yochĩ quer partir, deixar o corpo definitivamente. Assim a
pessoa vopi é um tipo de doente morto, ou dado como já quase morto pela fragilidade dos
laços que ligam seu wero yochĩ ao yora vaka e ao corpo e pela presença intermitente do wero
yochĩ.
Quanto a –china, em vopichina, denota duas coisas: pensamento e tempo passado. O
tempo pode ser expresso em noke vana de diferentes formas. Os tempos verbais são
determinados por sufixos177: –kai para futuro; -ai para o presente; -va’i para passado
imediato; -china para passado não imediato e que expressa evento recorrente no passado ou
certa continuidade; –pa’oi para passado muito distante e –yamẽta para tempos ancestrais.
Assim,
Futuro:
Eãeu honoporco namecarne pi’ikaicomer+kai (fut.) Eu comerei carne de porco.
Presente:

177
Outra maneira de também expressar o passado sem sufixo é com advérbios de tempo, como ontem (yãta):
Nokenós yãtaontem ashakĩpesca com tingui tsatsapeixe otimapouco pichtxapequeno akapegar Ontem na pesca com tingui pegamos
pouco peixe.
303

nokenós miavocê hewegostar/ficar feliz ai(presente) Nós gostamos de você.


Passado:
Nokenós maricotia anipagrande oĩva’iver+va’i (passado) Nós vimos uma cotia grande.
Nokenós namachinasonhar+china (passado) Nós sonhávamos.
Nokenós matxocaiçuma amapa’oibeber+ pa’oi Nós bebemos caiçuma.
Nokenós namasonhar yamẽta passado Nós sonhamos.

Nesse quadro de possibilidades de expressar ações passadas, -china tem o efeito


temporal que os verbos em português têm quando no pretérito imperfeito. Isto é, indica um
hábito ou evento recorrente no passado ou a continuidade de um acontecimento em relação a
outro.
Em resumo, -china é simultaneamente um sufixo de verbo que indica um certo
pretérito imperfeito, uma continuidade, um verbo e um substantivo para pensar e pensamento.
Eã chinãnai. Eu penso. Eã chinãvai. Eu pensei. Eã chinãchina. Eu pensava. E vopi, também,
é um verbo, morrer, e um estado, um processo de doença com morte eminente.
Portanto, podemos dizer que vopichina, pelo aspecto processual que as duas palavras
carregam, poderia ser definido como um processo de morte, um pensamento de morte e um
pensamento moribundo.
vopi (v.morrer) + china (suf. pretérito imperfeito) = morria, um processo do passado
vopi (moribundo) + china (suf. pretérito imperfeito) = um estado continuo no passado de
doença com morte
vopi (v.morrer) + china (pensamento) = pensamento de morte
vopi (moribundo) + china (pensamento) = pensamento moribundo

Assim pessoas em estado vopichina são pessoas em processo de morte, com desejo de
morrer. E é por isso que a tristeza precisa ser interrompida, porque a morte, a relação com o
morto não acaba enquanto houver vínculo do vivo com o morto, enquanto estiver em
vopichina. O morto recente é a presença do yochĩ, é a tormenta dos vivos e dos mortos, do
saudoso e do ausente. Quando no entanto se consegue superar a dor e a tristeza da morte e
afastar o pensamento da ausência, a pessoa deixa de estar vopichina e entra num estado
chamado de vopiyamẽta. O morto pensado por vopiyamẽta é rememorado na reciclagem do
seu nome e não é mais um potente yochĩ visitante, mas um ancestral. Yamẽta como vimos é
304

um sufixo para passado remoto178, onde os vivos e os mortos estão separados e os mortos são
indiferenciados, dessubjetivados.
Tal como o morto, o ausente pela distância, pela separação dos corpos precisa ser
esquecido. No caso dos parentes presos, por exemplo, eles estão substancialmente apartados
de seus parentes consubstanciais, correndo o risco de se desaparentarem. Seus corpos estão
sofrendo uma espécie de esquecimento enquanto o pensamento segue conectado, triste e
saudoso. Assim tudo se passa como se os presos entrassem numa espécie de vopichina. O
estado moribundo de vopichina vem para eles por duas vias: pela violência que sofrem, que
desestabiliza a relação entre seus yochĩ pelo excesso, pela abruptalidade e que assim os
adoece (vopi); e pelo pensamento (china), que fica vagando pela aldeia e pela vida dos
parentes ausentes. Simultaneamente, os parentes da aldeia e os presos ficam vopichina,
pensando na ausência e esquecendo-se dos presentes, desejando morrer.
Com tudo isso quero dizer que as mortes na aldeia citadas na carta da liderança sobre a
condição dos presos (um suicídio e duas mortes) e os quatro suicídios seguidos do
atropelamento estão imbricados porque são eventos que os enxertam num contexto de
vopichina, de processo de morte, de pensamento de morte179. Isto é, a violência da BR causa
nos noke koĩ pensamentos moribundos, os tornam vopi, moribundos em estado de morte
eminente, com desejos de morte.
O propósito dessa extensa digressão é justamente demonstrar como a BR representa,
sobreposta e simultaneamente, impactos ambientais e sócio-culturais de grandes dimensões.

Degradação do território e da condição de pessoa

Um outro exemplo do impacto ambiental com consequências sobre os corpos de


parentes é quanto à correlação entre a debilidade de produção dos roçados, a escassez de caça,
presença de comida de yara e as disposições dos corpos para a socialidade e a reprodução
cultura.
Os adultos têm orgulho em lembrar que antigamente era impossível visitar a casa de
alguém sem tomar cuias e mais cuias de atsa maxto (caiçuma de macaxeira). Em encontros,
reuniões, para ir a roça, numa pescaria, o atsa matxo sempre acompanhava, para matar a sede
e também alimentar. Trata-se, portanto, de um dos principais alimentos tradicionais prescritos
à primeira infância, e de extrema importância para a sociabilização, parte de toda a vida
178
Noke voyamẽta (nós nos mudamos), me disseram sobre quando cruzaram a ponte do jacaré.
179
Algo similar ao que Keifenheim (2002) afirma sobre os huni kuin.
305

social. Hoje, contudo, poucas são as mulheres que se dispõem a fazer atsa matxo e, se elas o
fazem, muitas são as crianças que se recusam a beber. Hoje, o atsa matxo foi substituído pelo
café com açúcar. Nas primeiras conversas sobre o consumo atual de caiçuma o principal
argumento dos homens era de que as mulheres hoje têm preguiça de mastigar macaxeira para
fazer caiçuma. Diante da contestação veemente das mulheres de que não se trata de preguiça,
me pareceu pertinente investigar o que está subjacente a esse argumento tão amplamente
agenciado pelos noke koĩ quando interpelados sobre o consumo de matxo. Se por um lado os
homens acusam as mulheres de preguiçosas por não prepararem mais caiçuma, por outro, as
mulheres revidam devolvendo a acusação de preguiça aos homens que já não botam roçados
grandes o suficiente para ter macaxeira para comer acompanhando a carne e para fazer
caiçuma180. Em geral essa troca de acusações é tomada como a justificativa nativa e portanto
incontestável. Mas essa é a impressão à primeira vista, parte de um discurso já viciado, basta
passar um tempo na aldeia, comer, dormir e acordar em suas casas, que a complexidade
dessas acusações vai ganhando dimensões mais densas.
Por um lado, a acusação de preguiça até encontra ressonância na teoria noke koĩ sobre
o corpo. Preguiça é a tradução que os noke koĩ fazem de tikish. Tikish é uma disposição do
corpo, uma espécie de desânimo e inadequação à reprodução social, expressa no desinteresse
pelas atividades comuns. A pessoa tikishya (que tem tikish) é incapaz de participar da
reprodução social e de corresponder ao que se espera dela. A definição da condição de
homens e mulheres como tikishya nos dias do hoje reverbera na teoria noke koĩ da
alimentação, uma vez que descumprindo as dietas e consumindo comida da cidade seus
corpos já não têm as qualidades desejáveis a um corpo de noke koĩ.
Contudo, a complexidade do problema não termina aí. Além dos alimentos da cidade,
os conhecimentos da cidade também têm forte participação nessa transformação. A ausência
do atsa matxo não é só for falta de roça, por preguiça ou esquecimento, mas por essa e outras
práticas sociais serem condenadas pela lógica de higienização disseminada pela escola e pelas
palestras de sensibilização oferecidas pela equipe de saúde. As rotinas e horários
estabelecidos pela escola, aliados a essa lógica da higienização, têm feito com que muitas
crianças e jovens se recusem a acompanhar seus pais em atividades cotidianas, como caçadas,
pescarias, idas ao roçado, mexer com a terra, se sujar.
Para fazer o matxo, as mulheres têm que cozinhar, amassar, colocar na boca, mascar e
cuspir a macaxeira. As enfermeiras do posto fazem palestra para a comunidade, para todas as

180
Parece ser um discurso comum. Calavia Sáez (2006a) afirma que o mesmo ocorre entre os yaminawa.
306

mulheres, falando para não fazer mais matxo, porque contamina as crianças, transmite
doenças. Informações que contradizem as histórias e a memória de quando os antigos
tomavam muito matxo e as crianças só comiam matxo, e eram todos fortes, não ficavam
fracos, não tinham doença. Mas a equipe de saúde indígena diz que não é bom a mãe fazer
caiçuma para as crianças beberem. E quando se fala da higiene pessoal, entra também o
matxo, porque as mulheres têm que lavar as mãos, escovar os dentes. E quando na sala de
aula, as crianças ouvem sobre saúde e higiene nas aulas de ciências, não querem mais andar
descalças, mexer na terra, muito menos beber matxo.
O descuidado do corpo causa tikish, quem tem tikish não tem disposição para trabalhar
no roçado. Uma das causas do tikish por descuidado do corpo é a infração de dietas, que no
caso da TI campinas gera um ciclo vicioso. A baixa produtividade dos roçados - por
diferentes razões; ambientais e de contato - impede o seguimento das dietas e força os noke
koĩ a comeram comida de yara. A comida de yara por sua vez causa tikish e impede
investimento de esforços em um roçado de produtividade que garanta corpos fortes. Os corpos
com tikish não têm disposição para preparar a caiçuma que produziria roçados extensos. Os
roçados pequenos, por sua vez, não produzem atsa suficiente para sobrar para a caiçuma que
faria os corpos forte para por roçado.
Os homens com tikish entorpecidos pela comida yara não têm disposição para abrir
roçados que produziriam subtância essencial à força e vigor do seu corpo. O tikish age sobre
as capacidades e qualidades de noke ro’apa acumuladas no corpo. E por isso a ação contra o
tikish se dá pela mesma via que ele entra, no corpo através de substâncias.
A macaxeira é o que produz sangue e sêmen e por vários fatores isso se conecta à
produção de pessoas. As crianças são geradas por sangue e sêmen e depois alimentadas por
leite que também é resultado da macaxeira. O peso e estabilidade do seu corpo no futuro
também estão ligados à ingestão da macaxeira que como vimos produz o sangue que carrega
as substância de parente.
Assim pessoas com tikish não são incapazes de reproduzir apenas a vida social mas
também corpos físicos. Sem a macaxeira, sem a caiçuma, há pouco sangue e há pouco sêmen,
há corpos fracos e anti-sociais, incapazes de gerar corpos de crianças e de reproduzir o corpo
social.
Pessoas sem tikish plantam macaxeira e fabricam caiçuma em quantidades suficientes
para reproduzirem-se fisica e culturalmente. Pessoas sem tikish fazem filhos, corpos e roçados
e caiçuma, todos saudáveis e adequados, koĩ, como deve ser.
307

Homens e mulheres são responsáveis por gerar filhos e roçados, pela manuntenção dos
corpos e das condições para se ter caiçuma. Mas às mulheres cabe mais explicitamente o
cuidado dos filhos, do roçado e o preparo da caiçuma. Ainda que o compromisso de manter os
corpos fortes e saudáveis seja de todos do grupo de substância, o ônus da debilidade dos
corpos recai sobre as mulheres, que por tikish já não produzem mais caiçuma o que replica os
homens que por tikish abrem roçados insuficientes.
Fazer filhos, corpos, roçados e caiçuma são expressões de pessoas ro’apa, sem tikish e
pessoas ro’apa se expressam em filhos e corpos saudáveis, roçados e caiçuma abundantes.
Nesse sentido, a mudança no padrão de assentamento e as condições ambientais da TI são
fatores de forte impacto sobre a relação de subsistência com consequências nas conformações
de corpos e do parentesco.

Terra e território – resistência política versus produtividade

As pressões ambientais do entorno têm comprometido as práticas de manejo


tradicionais em pelo menos dois sentidos. Por um lado, a escassez dos recursos de caça, pesca
e plantio os impede de manter o modo tradicional de lidar com a terra. A degradação do solo
já não permite contar com as capoeiras como repositório de sementes. As frequentes invasões
e o aumento populacional, além das pressões causadas pela BR e pelos ramais, comprometem
áreas de refúgio de caça e a oferta de peixe nos igarapés. Por outro lado, as tentativas do
governo de buscar alternativas de manejo comuns a assentados e noke koĩ sempre se baseiam
em propostas que visam a modificar o comportamento dos indígenas através de formações
técnicas e conceitos de gestão fundados em noções de preservação e conservação
ambiental181.
Sobre esse conflito entre técnicas e manejo da terra e dos recursos um mito e uma ação
histórica nos ajudam a entender os diferentes e aparentemente contraditórios posicionamentos
dos noke koĩ. O que chamamos aqui de ação histórica são as atuais alternativas apresentadas
pelo Estado para enfrentar a degradação ecológica e a consequente insegurança alimentar.
Em 2007, como parte do componente indígena do plano de mitigação da pavimentação
da BR 364, o governo do Acre iniciou o etnozonemento da TI Campinas. Um dos objetivos

181
Três exemplos claros disso são a formação de AAFIs (agente agroflorestal indígena), os projetos de
etnozoneamento de terras indígenas e os recentes cursos de agricultor agroflorestal, agente de desenvolvimento
cooperativista, agricultor familiar, orgânico e piscicultura do Pronatec Indígena.
308

desse projeto era criar uma ferramenta de diagnóstico e planejamento dos recursos da TI, que
ajudasse e empoderasse os noke koĩ na gestão do território. Como demonstra Pessoa (2010) o
etnozoneamento revelou diferentes posicionamentos dos noke koĩ sobre suas prática de
manejo. A autora afirma: “segundo os AAFIs [agentes agroflorestais indígenas] entrevistados,
antes de iniciarem sua formação e trazerem novos conceitos de gestão para compartilhar com
os demais moradores da TI, os Katukina [noke koĩ] tinham práticas de manejo que não eram
compatíveis com a sustentabilidade ambiental do território.” (p.144). As práticas de manejo
tradicionais passam a ser apontadas como degradantes aos recursos naturais e isso é explicado
por viverem hoje em uma terra demarcada da qual não podem se mudar e por tanto estão
sempre usando a mesma área sem descanso para que o solo se recupere. Essa posição no
entanto não é consenso entre os noke koĩ, muitos discordam da insustentabilidade das práticas
tradicionais. E, como afirma Pessoa (2010), “não são todos que concordam em adotar as
novas práticas de manejo propostas e, muitos o fazem apenas por uma imposição das
lideranças” (2010: 146-147). Paralelamente ao etnozoneamento e à formação de agentes
agroflorestais indígenas estão as propostas de criação de hortas comunitárias, quintais de
hortaliças, viveiros de mudas, sistema agroflorestais e incentivos à produção de excedente.
Essas alternativas são vistas por alguns como desconhecimento por parte dos órgãos do
governo da realidade noke koĩ. Sobre essas alternativas, Poá, AAFI da aldeia Samaúma, disse
certa vez: “o governo não conhece a gente, não passa de aldeia em aldeia, não come com a
gente, não dorme com a gente. Eles só vêm para reunião, só vêm fazer política, ou vêm dar
coisas que a gente não sabe como usar, não tem conhecimento, nunca nem vimos”.
Cada uma desses alternativas do governo choca com o modo de vida noke koĩ por uma
peculiaridade: as hortas comunitárias e os quintais de hortaliças são uma proposta de plantio
de produtos que os noke koĩ não têm hábito de comer, tais como couve, alface, cebolinha; os
viveiros de mudas e os sistemas agroflorestais conflitam com as definições noke koĩ de
plantas plantadas e não plantadas que vimos no capítulo anterior. Por fim, os incentivos à
produção de excedente são o maior equívoco, que baseando-se na experiência de alguns
grupos noke koĩ já terem tentado vender arroz e banana na cidade, veem na produção de
excedente uma solução para a escassez de caça e debilidade dos roçados. O equívoco no
entanto está no objetivo da venda de excedente, que na experiência passada era de obter
mercadorias como sal, sabão, roupas e coisas do tipo e não para comprar comida.
Mas as alternativas do governo são descritas por alguns como uma oportunidade de
através do próprio trabalho melhorar de vida, adaptar-se à realidade de terra indígena
demarcada e ter mais alimento. Para outros no entanto, significam aumento do tempo de
309

trabalho e substituição de seus conhecimentos pelo modo de vida yara. Ambas as posições no
entanto encontram respaldo em um mito que fala de roçado, técnicas de plantio e escassez.
O mito conta que kapã yochĩ (um homem quatipuru) possuía uma técnica de plantio
que dispensava muito trabalho e que rendia um roçado de alta produtividade da noite para o
dia182. Ao apresentar essa técnica aos noke koĩ num momento de escassez de alimentos ele
estabelece uma relação de aliança com o sogro e se casa com duas irmãs. O mito, melhor
contado por Txoki, como veremos a seguir, associa alteridade, técnica de plantio, abundância
e relações sociais.

Mito do homem quatipuru – (Kapã Yochĩ)

Essas duas moças não tinham nada: nem roça, nem banana, nem outras coisas para
comer. Estavam sofrendo de necessidade. Um dia combinaram para ajuntar ao menos um aruá
dentro do igarapé.
Essas duas moças foram pegar o caminho, até a passagem do igarapé, e subiram por
dentro do igarapé. Ajuntando aqueles aruázinhos para poder comer, peixinhos pequenininhos.
Vinham ajuntando, ajuntando, ajuntando, até que, na beira do igarapé, acharam coco de
aricurí, que estava caindo. Pegaram um coco de aricuri, descascaram e comeram. Acharam
que era gostoso, e aí uma falou:
– Vamos pegar desse pé de aricuri. Vamos reparar ali em cima. Pode ser que tenha
mais.
Elas subiram no barranco. Ali tinha acabado o coco de aricuri. Tinha quatipuru.
Quatipuru desceu, correu, saiu na carreira e foi embora. Aí elas esculhambaram com o
quatipuru, deram tanto nome nele!
– Quatipuru... comeu todo o coco de aricuri, podia ter deixado para nós.
Procurou mas não achou mais coco de aricuri, desceram dentro do igarapé, saíram e
vieram ajuntando aqueles aruázinhos. Lá mais para frente, chegou um homem na beira do
barranco. Ele falou para essas duas moças:

182
Lagrou aponta que entre os huni kuin, nos cantos rituais pakadin dos vegetais, uma figura importante
invocada é o yuxibu do quatipuru (kapa yuxibu) para o qual pedem para deixar as plantas crescerem. “Esta
figura mitológica ofereceu aos parentes da sua esposa o conhecimento das plantas cultivadas, num tempo em que
estes, tendo perdido o conhecimento da plantação aprendido com Nete, eram forçados a comer terra. O genro
‘transformou toda qualidade de plantas’ (yunu xadabu damiwaniki) e as pessoas podiam viver em abundância”
(Lagrou 2007: 506).
310

– Ei moças! O que é que vocês estavam dizendo ali? Eu escutei tudo, vocês me
esculhambaram.
– Ah! Não foi com você não, era quatipuru. Nós estamos sofrendo de fome, não temos
nada, nem roça, nem banana, nem outras coisas para comer. Meu pai e meu irmão foram
plantar roça, para poder tirar arapuá lá de dentro da mata. Foram de dormida e nós ficamos
sozinhas com a mamãe.
– Não era quatipuru não. Era eu. Que jeito você dá no roçado que está fazendo faltar?
É coisa bem fácil de resolver. Se você quiser me levar eu ajudo vocês.
– Vamos embora. Vamos te levar lá para casa.
Essas duas moças levaram esse homem. Chegou lá, no aceiro do terreiro, ele ficou lá
em cima do pau. Elas foram lá para casa delas e falaram para a mãe:
– Olha mamãe, nós encontramos com um homem ali na beira do igarapé. Nós
vínhamos ajuntando aruá e achamos um coco de aricuri que estava caindo. Cotia, paca e
quatipuru estavam acabando com o coco e, procurando, achamos só um. Aí quatipuru desceu,
saiu na carreira, nós esculhambamos com o quatipuru. Lá mais adiante, apareceu um homem,
que não foi quatipuru, não era com ele. Aí falou para nós: ‘Que jeito que você faz no plantio
que está fazendo falta?’ Aí ele contou para ela: ‘É a coisa mais fácil que gente faz, se você
quiser me levar, eu faço plantio para você.’ ‘Vamos embora.’ Aí levamos ele lá para perto da
aceiro do terreiro, aí chegou: ‘você fica que eu vou falar para a mamãe’.
E a mãe perguntou:
– Foi quatipuru?
E elas responderam:
– Não, não é quatipuru não …. é quatipuru, mas é gente, pessoa. Ajuda em muitas
coisas.
A mãe mandou chamar ele:
– Oooh rapaz! Você está aqui!
– É. Sua filha encontrou comigo por acolá. Conversei com ela: ‘você não tem nada
para comer, nem tem roça, nem tem nada. É coisa muito fácil de fazer. Você está fazendo
falta. Se você quiser me levar, amanhã você tudo tem’. Aí me convidaram para eu vir até
aqui.
Quando foi cinco horas, pediu uma espiga de milho que estava deixada assim, de
canto na casa. Pediu para essas duas moças:
– Mas olha, meninas, vocês tirem uma espiga de milho daquelas para mim.
– Não é para comer não, é que papai deixou para plantar.
311

– Rapaz, aquele monte de milho, vai plantar tudo, aonde é que ele vai plantar aquele
monte de milho? Eu planto só uma espiga de milho, o roçado do tamanho que eu quero.
Aquele monte de milho, onde é que ele vai plantar?
Até que ela trepou, tirou espiga de milho. Tirou duas espigas, uma assou para ele,
outra ficou. Ele comeu toda a espiga de milho assado, e pediu:
– Olha, meninas, falem para tua mãe que vocês vão tomar banho agora, para ela tomar
banho agora, para não sair mais hoje de tarde. Não sair de fora nem para o terreiro. Eu vou
sair sozinho.
As duas meninas foram tomar banho, pediu para a mãe delas tomar banho, ajuntaram
lenha para não sair para fora. Aí falaram para ele:
– Oh, nós estamos tudo prontinha.
– É, eu vou sair e vou lá no roçado. – respondeu o homem.
Já tinha tocado fogo no roçado. Aí levou espiga de milho, um galho de maniva, um
pedaço de olho de cana, tudo que tinha plantio. Na tardezinha lá, passa andando por cima do
pau para lá e para cá jogando pedaço de maniva, debulhava o milho, sacudia assim com a mão
e tudo, ananá e o que tiver plantado. Quando o dia passou, ele veio do roçado:
– Bom, eu já fiz o trabalho que eu quero fazer para vocês. Amanhã vocês tudo tem.
Amanhã vocês tudo tem.
Anoiteceu. Quando foi outro dia, sete horas, as meninas já querem sair, mas não:
– Vocês não podem sair agora, só depois de eu sair, quando eu pedir para vocês
saírem, vocês saem, mas enquanto eu não falar nada para vocês, vocês não podem sair.
Aí quando foi a altura do dia, ele saiu:
– Vocês ficam aí, não vão sair não.
Ele foi reparar. Quando chegou, num canto tem um milho chegando, milho verde,
banana, cana, ananá, todo tem! Foi olhar: banana madura nos pés. Ele foi reparar e depois
voltou. Aí falou para as duas meninas:
– Olha, agora vocês saem. Vocês saem, pode sua mãe sair também, podem olhar.
Repara lá no roçado.
A mãe e as duas meninas saíram, e fizeram uma maravilha: era roça, banana, cana,
ananá, tudo tem. Tiraram muito milho para fazer a pamonha. Quando foi outro dia:
– Maninha, vamos buscar papai, que ele vai demorar. Ele disse que ia passar uns três
dias procurando arapuá para tirar, nós já estamos tudo bem, nós vamos chamar ele para vir
embora para casa.
312

Saíram e levaram banana madura, ananá, mamão. Aquilo que elas podiam levar elas
levaram. Aí convidaram o homem para ir também. Andaram um bom pedaço, andou, andou,
até que escutou o bater de onde é que eles estão acampados. Pai delas estava deitado, irmão
delas também, a cunhada delas estava sentada:
– Oi papai, quer comer banana?
Ai o velho falou:
– Onde minha filha? Dessa banana madura?
Aí ela contou tudo pra ele, assim assim:
– Homem fez conosco. Ele veio mais nós, ficou bem aí.
– Pode chamar ele para vir aqui conversar comigo.
As duas meninas foram chamar ele para conversar com o pai. Pegaram no braço dele e
levaram. O velho levantou:
– Oh meu genro! O que é que é isso, meu genro!
O velho estava todo alegre, animado. O cunhado abraçou ele também. E aquelas duas
moças ficaram todas as duas sendo mulher dele. Levaram ele para casa, e quando chegaram,
era uma maravilha de plantio, tudo tem: é mamão, banana, inhame, abacaxi, batata, tudo tem.
Lá ficou assim.
E o sogro dele gostava dele, cunhado dele gostava dele. Quando chegou outro ano, ele
falou para o sogro:
– Meu sogro, vamos colocar roçado. Agora você dá um quebradinho, do tamanho que
você quiser, pode ficar daqui ao outro igarapé, atravessar aquele igarapé, do tamanho que
você quiser, você pode tirar o pique. Eu vou fazer.
Aí foram. O homem foi, e ele tem uma maleta de fogo dessa altura, que ele levou
também. O cunhado dele foi também. O homem e o sogro foram dar o quebradinho e o
cunhado ficou. O sogro foi tirar o pique, e ele escutava, e gritava:
– Ainda é perto, anda para mais adiante.
E só onde ninguém mais escutou o grito dele, de lá ele cortou. Quando foi umas horas,
ele escutou o barulho do fogo, e falou:
– Ihh, rapaz! Meu cunhado mexeu na maleta!
Correu para trás, e corria, corria para trás; o fogo! Já veio quebrando de lá para cá.
Quando chegou no canto que ele cobriu, o cunhado já tinha aberto a mala de fogo. O cunhado
dele já tinha se queimado todinho, só sobrou mesmo o coração, o resto tinha queimado
todinho. Aí ele chorou. Aí o cunhado dele, aquele coração, falou para ele:
313

– É, eu já perdi minha vida, mas o culpado não é você, o culpado era eu mesmo, que
não tenho capacidade, que não tenho costume de ir nessas coisas, mas eu mexi, eu fiquei
queimado. Mas o culpado não era você, o culpado era eu mesmo.
Aí o cunhado pediu que desse um pedaço de gordura para ele, e falou:
– Você me sopra e joga ali no canto, que eu vou virar o paruacu.
Ele mexeu, mexeu, tacou, soprou, soprou e jogou num canto. Aí o cunhado virou
paruacu. Subiu no alto dos pau e foi embora. De lá mesmo esse homem, subiu e foi embora.
Esse homem perdeu o cunhado dele, ficou com vergonha, e de lá mesmo foi embora. Assim
ficou.

Os que apóiam as análises e as alternativas do governo associam a perda da maleta de


fogo do quatipuru à oportunidade dessas alternativas. Defende-se que as técnicas que vêm de
fora sempre os ajudaram e que recusar as novas alternativas é correr o risco de mais uma vez
perder a oportunidade de ter roçados abundantes183. Por outro lado, os que criticam as
alternativas insistem que os projetos do governo não se adéquam à realidade noke koĩ que,
diferente da maleta de fogo do quatipuru, aumentam o tempo de trabalho, e que o excedente
não interessa aos noke koĩ, que não veem vantagem em produzir comida para vender, para em
seguida comprar comida. Diante da improdutividade do roçado e da falta de fonte de proteína
animal, comprar alimentos é apontado como uma estratégia de sobrevivência, e não um
expectativa de modo de vida.
A afirmação de que o governo não os conhece e por isso lhes dá coisas que não sabem
usar, que nunca nem viram, não foi explicitamente associada à maleta de fogo do quatipuru,
mas acredito que exista certo rendimento nessa associação uma vez que, tal como a maleta de
fogo, as técnicas yara são técnicas importadas de fora que prometem abundância e que os
noke koĩ não logram incorporar, seja por desconhecerem (nunca nem terem visto) e
manejarem mal ou por não se adequarem ao seu modo de vida.
Outros paralelos podem ser traçados entre o mito do homem quatipuru e as
alternativas yara. Tal como esse mito, a ação histórica das políticas públicas de alternativas
agrícolas também associa alteridade (os yara) e técnicas de plantio para uma vida de fartura,

183
Um paralelo semelhante é apontado por Lima (1994) sobre o “fracasso” de projeto entre os noke koĩ. A
autora conta que os problemas dos projetos, sobretudo a cooperativa, são comparados por seu informante Mane
às perdas da maleta de fogo do quatipuru e da pedra da vida eterna em outro evento mítico. Segundo Mane,
como em ambas as situações míticas, os projetos fracassam porque eles próprios não sabem preservar o que lhes
traria benefícios.
314

mas, no lugar de abundância, o governo propõe a produção de excedentes, e com isso tira o
foco das relações sociais e, em seu lugar, privilegia a ordem econômica.
Vendo as práticas de manejo tradicional como anacrônicas à realidade atual de terra
indígena e incompatíveis com a sustentabilidade ambiental do território184, as alternativas do
governo propõem uma substituição das técnicas tradicionais. Nesse sentido, para que as
ferramentas do etnozoneamento e as formações de AAFIs e do Pronatec Indígena consigam
instituir um manejo sustentável dos recursos na área é preciso antes de tudo mudar as práticas
indígenas (cf. Correia 2007). Se, para uns é a oportunidade de ter a maleta de fogo outra vez,
na prática o que se nota é uma recusa de implementar esses projetos. Trata-se da recusa a
formas mais intensivas de horticultura de que falamos no capítulo anterior. Mesmo os que
defendem as oportunidades do governo mantêm a produtividade do roçado no limite
sustentável, não produzem excedentes, não fazem quintais, hortas nem viveiros de mudas. A
explicação para isso me parece estar numa resistência política dos noke koĩ que é pois o
próprio modo de vida. A agricultura de baixa produtividade e o hábito do consumo imediato
sem provisões ou intenções de guardar para mais tarde não são sintomas de uma sistema de
pobreza, ao contrário são reflexos de um outro sistema, contra capitalista de recusa à
produção de excedente e a acumulação. A fartura que as alternativas do governo promete é de
excedente e não de abundância. A abundância para os noke koĩ existe mesmo na escassez
porque confiam na reciprocidade que impede a necessidade; a abundância vem das relações e
não da acumulação de excedente. O excedente tira o foco das relações sociais e privilegia a
ordem econômica. O modo noke koĩ está focado no social ao passo que as alternativas do
governo se fixam no econômico.
Assim, uma consequência da idéia de produzir excedente para vender é a
monetarização do modo de vida que termina por individualizar o consumo de alimentos,
atualizando o que frequentemente têm dito: “come quem tem dinheiro”. Isso, em uma
economia baseada no compartilhamento comum dos bens de caça, roçado e coleta, representa
um grave conflito social, já que transforma os parentes, uns frente aos outros, em pessoas
sovinas, mesquinhas. Sobre esse conflito, Ni’i, cacique de Waninawa, afirma: “antigamente,
matava um veado e todo mundo comia. A cultura do yara que é diferente. Duvido que se yara
matar um boi hoje, dá pedaço pra vizinho dele. Yara é miserável desde a origem dele. Se nós

184
Pessoa (2010), em sua dissertação em desenvolvimento sustentável sobre etnozoneamento e gestão territorial
em terra indígena no Acre afirma: “Observa-se, então, que o manejo ambiental, outrora intrínseco à̀ cultura e ao
modo de vida Katukina, vem sendo abalado por uma série de pressões, tanto internas, quanto externas à TI.
Diante desta situação, práticas de manejo ditas tradicionais, utilizadas num passado onde não haviam limites
territoriais definidos, passaram a degradar os recursos naturais de seu agora reduzido território” (2010: 145).
315

matarmos um veado, todo mundo da aldeia participa, e no outro dia já não tem mais. Faz
festa, planeja outra atividade, todo mundo brinca. A cultura do índio é assim”.
A diferença entre o homem quatipuru e o governo pode ser resumida pela seguinte
fórmula levistraussiana: a maleta de fogo (técnica de plantio) : aliança (relação social) ::
SAFs/hortas/viveiros/excedentes : economia.
Onde um privilegia a economia, o outro privilegia as relações. Talvez o maior
equívoco entre as alternativas do governo e o modo de vida noke koĩ que impede sua
implementação esteja na certeza de uma ilusão produtivista em que, tal como evidenciou
Sahlins (1972), o capitalismo e o desenvolvimento produtivo pudesse satisfazer as
necessidades materiais e culturais.
A pobreza para os noke koĩ está na escassez não de recursos, mas de relações sociais,
assim como a abundância está na certeza da reciprocidade e não de provisões. O acúmulo e a
produção de excedentes são para os noke koĩ, para além de sem propósito, fonte
desigualdades, econômicas e de poder.
A imposição dos projetos do governo pelas lideranças corrobora essa idéia. E nesse
sentido, a recusa a produtividade é também uma forma política de resistir a ordens coercitivas
e a acumulação de recursos, econômicos e de poder.
317

CAPÍTULO 4 – MOBILIDADE E PODER POLÍTICO

Mobilidade e resistência

No capítulo 1 demonstramos a correlação entre as formas de moradia noke koĩ – atuais


e de outros tempos – e a mobilidade do grupo e como, a despeito de várias oportunidades de
fixação, ele mantêm a mobilidade. Sobre os movimentos recentes, no capítulo anterior,
dissemos que nos anos 1990, entre os noke koĩ, a tendência da mobilidade era do Gregório ao
Campinas e que entre 2014 e 2016, houve uma inversão dessa tendência; da TI Campinas para
a TI Gregório. Apesar de ser o fluxo mais intenso, Gregório-Campinas não é a única
tendência de mobilidade dos noke koĩ. Paralelamente a esse fluxo vem se dando a sua
inversão e uma reivindicação de uma área entre os igarapés Miolo e Forquilha, localizados
onde atualmente é uma reserva extrativista contígua a TI Campinas/Katukina. No contexto
dos recentes deslocamentos para o Gregório, essa reivindicação ganhou força.
Tal como o fluxo recente da TI Gregório para a TI Campinas nos anos 1990, a
inversão atual dessa tendência e a insistência sobre a área no igarapé Miolo tiveram como
disparador uma série de eventos. A vinda do Gregório para o Campinas, como vimos, teve
como principais motivações a morte de um parente por feitiçaria e conflitos com o patrão
seringalista. A inversão recente de sentido do fluxo e a reivindicação do Miolo se devem
também a um contexto de mortes, acusações de feitiçaria e conflitos.
A seguir tentarei reconstruir um pouco da história recente dos noke koĩ para
contextualizarmos não só os fluxos de deslocamento dos noke koĩ, mas sobretudo a
reivindicação da área do igarapé Miolo e as implicações políticas ao redor dessa reivindicação
que envolvem mortes, conflitos e acusações de feitiçaria.

Miolo – Ecologia e anterioridade histórica

Em 2008 é oficializada a reivindicação da área do Miolo. Além das duas dimensões da


ecologia da TI, essa reivindicação se apoia ainda no argumento de anterioridade histórica de
ocupação da área, que pode ser, segundo relatos dos noke koĩ, comprovado materialmente
pela presença de capoeiras onde houveram roças e aldeias antigas, sepulturas e até vestígios
de cerâmica. A história noke koĩ por outro lado levanta uma série de dados muito mais
318

interessantes. Um mito amplamente disseminado entre os pano, e transcrito no capítulo


anterior, conta que, em busca de um lugar para viver, os noke koĩ toparam com um rio muito
grande, difícil de atravessar. Negociaram com um jacaré para que ele servisse de ponte em
troca de uma limpeza de suas costas e de carne de caça. O jacaré concordou e impôs como
condição que os noke koĩ não comessem carne de jacaré. Para atravessar todos exibiam seus
dentes para mostrar que cumpriram o trato e não comeram jacaré. Muitos já tinham
atravessado quando o Jacaré viu entre os dentes de um deles um fiapo de carne de seu parente.
Irritado ele submerge e os que atravessam ficam separados dos que ficaram do outro lado.
A ocupação mais recente do Miolo está relacionada a esse mito do Jacaré-ponte
porque parece ser a continuação da sequência histórica de deslocamentos dos noke koĩ. Txoki,
um pajé rezador de aproximadamente 94 anos, na aldeia Waninawa, conta que os noke koĩ
depois de terem atravessado o jacaré se dividiram em marubo e katukina, nomes dados pelos
yara aos dois grupos de noke koĩ separados depois que o jacaré afundou. Os que os yara
chamam de katukina (e hoje se auto-denominam outra vez de noke koĩ), separados dos
marubo, sofreram muitos ataques de outro grupo, os Hoshonawa, muitas vezes descritos como
um grupo violento, que captura mulheres e mata maridos.
Em algumas narrativas, os Hoshonawa ocupam o lugar de um grupo pano qualquer ou
dos yawanawa. A associação com os yawanawa pode ter dupla explicação: uma porque há
entre os yawanawa um segmento onomástico denominado hoshonawa, e outra porque uma
importante liderança yawanawa, Antonio Luiz, era chamado Hoshonawa. Ele seria filho desse
grupo pano agressivo, mas teria sido criado pelos yawanawa. Outras vezes, porém, os
Hoshonawa são identificados como um grupo indígena mais distante linguística e
culturalmente, como sendo os Kulina (Madiha). E, ainda outras vezes, como sendo os yara
(brasileiros e peruanos), já que hosho significa cor branca.
Na tentativa de fugir desses ataques, conflitos e ameaças de feitiçaria, os noke koĩ
viviam se deslocando. Certa vez estavam no rio Ituí quando surgiram ameaças de feitiçaria.
Com medo e querendo evitar o conflito, atravessaram, em um colchão de paxiúba185, o rio
Juruá, mais ou menos na boca do igarapé Campinas. Muitos Varinawa que subiam o Juruá
foram atacados novamente, uns dizem que por Hoshonawa, outros dizem que pelos peruanos.
As perseguições eram intensas por toda a região do Gregório, Liberdade e Juruá. Fugindo
todo o tempo, os noke koĩ não tinham canto certo. Alguns contam que quando a correria dos

185
Colchão de paxiúba é usado regionalmente para se referir a balsas feitas de paxiúba. Os pano não são muito
náuticos, tem pouca tecnologia de barco, talvez por viverem há muito tempo nos interflúvios.
319

peruanos diminuiu, eles estavam de novo na boca do Campinas e de lá foram para um pouco
antes do Liberdade, na confluência dos rios Mesquita (Tsatsawaka) e Juruá.
De lá foram para o Liberdade, na região do igarapé Miolo. Foi lá que os noke koĩ
encontraram com Manoel de Pinho, o Toshpiya, o primeiro yara com quem fizeram contato
pacífico, o primeiro de vários patrões dos noke koĩ. O acordo de pacificação e trabalho foi
feito tendo como condição quatro mulheres noke koĩ para se casarem com Toshpiya.
Uma das mulheres de Toshpiya estava grávida na época que se juntou a ele e seu filho
Vari Shiña, Oscar, quando nasceu foi criado por Toshpiya, descrito como sendo o pai, não
legítimo, mas o pai de criação de Vari Shiña. É dele que surge uma linha de importantes
lideranças noke koĩ fluentes no trato interétnico com os yara. Vari Shiña foi pai de Washme
que por sua vez era pai de Orlando Viño. Vari Shiña foi quem liderou anos mais tarde alguns
noke koĩ a irem buscar o patrão Antonio Carioca no Rio Gregório, seu filho Washme, até hoje
lembrado como pajé forte e grande liderança, foi quem encabeçou uma série de
deslocamentos de seringal para seringal, dos afluentes da margem esquerda do rio Tarauacá,
passando pelo Gregório até o Liberdade, além de negociações com os militares por trabalho
na BR e com seringalistas e a Funai na década de 1980 para demarcação da TI Campinas.
Orlando Viño, filho de Washme e neto de Vari Shiña, seguiu a linhagem e, até morrer em
2015, foi uma forte e importante liderança. Esse local é portanto o lugar de origem da história
recente da linhagem de lideranças igualmente recentes dos noke koĩ.
A morte de Orlando, liderança da linhagem de Toshipya, instaura uma instabilidade
política e uma nova fase de deslocamentos latentes há anos. Junto à retomada das pajelanças
vem o enrijecimento político e a concentração de poder.
A disputa pela legitimidade da demanda do igarapé Miolo é parte de uma disputa entre
lideranças, faz parte de um contexto de disputa de poder político, de forte concentração e
hierarquização do poder e de estratégias de contornar essas condições.
320

Gráfico 8 - Lideranças descendentes de Toshpiya


321

Chefia e política

Antes de apresentar o contexto atual de rivalidade política, sua relação com as recentes
acusações de feitiçaria e os movimentos de deslocamento, gostaria de fazer uma breve
exposição acerca de algumas concepções noke koĩ de chefia e política.
Entre os noke koĩ nota-se que a política é desmembrada em vários agentes. Tudo se
passa como se houvesse uma recusa em assumir sozinho um poder político. Tal impressão vai
de encontro com a recorrente recusa a concentração de poder tão comum nas terras baixas
sulamericanas. Além de pajés (relações políticas entre homens e alteridades) e chefes
(relações políticas entre homens) existe uma rama de derivações desses dois tipos: caciques,
lideranças e agentes indígenas – responsáveis pelas relações políticas entre noke koĩ e yara –;
mulheres mais velhas, yoshavo – que concentram suas filhas e netos ao seu redor e que têm
influência sobre as outras mulheres e que portanto se encarregam das relações políticas entre
mulheres – e mulheres em idade adulta, aĩvo, a quem competem as relações políticas entre
mulheres e alteridades pela desubjetivação da carne e, sobretudo, pelo conhecimento em fazer
os desenhos kene.
Essa fragmentação da dimensão política é de extrema importância, como veremos
novamente mais adiante, para a concepção noke koĩ de política. Ao lado da constante
possibilidade de desconfiança e acusações de sovinice e agressividade, a fragmentação dos
papéis políticos corrobora com o princípio mais fundamental da política noke koĩ: a recusa a
valentia, quer no plano sociopolítico ou cosmopolítico. A política dos noke koĩ é fundada na
recusa do uso da força e da violência cósmica (feitiçaria).
O fato de estarem sempre desconfiados do caráter e prestígio da liderança,
frequentemente identificando-o a características de gente istxapa (sovina, egoísta, yopa) é
uma outra forma dessa recusa. O feiticeiro e o sovina são expressões de valentia; de violência
cosmopolítica e de concentração de poder. A valentia em lugar da generosidade e da
mediação pacífica sempre leva a fissão e a deslocamentos. A fragmentação do grupo e os
deslocamentos são pois a violência da sociedade contra a concentração de poder.
Daqui em diante vamos deixar um pouco de lado as várias figuras políticas noke koĩ e
nos concentraremos na figura da chefia de relações políticas entre homens. A decisão por
privilegiar a análise dessa figura deve-se ao fato de que o contexto atual de acusações e
deslocamentos que pretendo analisar tem se concentrado em questões que envolvem
sobretudo essa figura.
322

A chefia noke koĩ

A ideia de chefia para os noke koĩ passa necessariamente pela definição do que é ser
uma pessoa noke koĩ, isto é, de antes de tudo ser uma pessoa noke ro’apa: uma pessoa boa
mesmo, protótipo de como uma pessoa noke koĩ deve ser. A noke ro’apa é uma pessoa
pacífica, sem valentia, paciente, comedida, generosa, honesta, justa, saudável, sem tikish
(preguiça) e disposta. É com base nessas características que um chefe é definido como aquele:
a) capaz de aconselhar o grupo, já que é paciente, pacífico, e não valente, b) capaz de agregar
parentes, já que é generoso, honesto e justo e c) capaz de mobilizar os parentes a desempenhar
atividades coletivas (brincadeiras, caçadas, pescarias, abertura de roçados, construção de
casas), afinal está sempre disposto, não tem tikish e agrega muitas pessoas ao seu redor por
sua generosidade. Mas essas qualidades são esperadas de todos e são portanto o mínimo
necessário para um chefe. Sendo assim, o que faz com que uma pessoa seja entre todas as
outras um chefe? Como uma pessoa se constitui chefe?
Para tentar responder a essas perguntas apresentarei a seguir uma breve história (em
certo sentido recente) da relação dos noke koĩ com as posições de chefia acreditando que a
transformação dessa condição ao longo do tempo e da relação com os yara nos dará pistas
para entender mais sobre a política noke koĩ e sua influência no contexto autal186 .

Niaivo

Antes dos yara não havia liderança tal como a conhecemos hoje, como um cargo
político representativo, o que havia era um niaivo, uma espécie de chefe que cuidava de seu
grupo doméstico187. A maloca era gerida pelos mais velhos do grupo doméstico, entre eles

186
A história apresentada a seguir baseia-se em relatos de campo cotejados com informações históricas
disponíveis na bibliografia sobre a região e sobre os noke koĩ, sobretudo, Lima 1994, Jardim (monografia) e
Góes (2009). Ressalto que em alguns pontos, os dados coletados em campo divergem dos dados dos demais
pesquisadores.
187
Ainda que a descrição de niaivo nos leve a identificar um aspecto de liderança é preciso ter claro, que aqui
liderança refere-se a um papel específico de chefia da atualidade e não a um aspecto da condição de chefe.
Liderança é uma figura atual, um sucessor dos niaivo, como veremos adiante. Além de niaivo, Góes (2009)
identifica também o termo shaneivo para chefe, que talvez se aproxime do termo yaminahua xanëihu, onde xanë
significa maloca e cemitério. O xanëihu seria uma espécie de chefe cuja tradução seria dono da maloca, com
implicações importantes para a definição do seu papel. A aproximação com os noke koĩ se justificaria também
porque, segundo meus dados, shana, que talvez seja uma má interpretação linguística minha de shanẽ na hora de
grafar, é usado pelos noke koĩ para designar cemitério, no entanto nunca o vi sendo usado para se referir a
maloca. Entre os Kaxinawa o xanen ibu é usado para lideranças políticas, chefes de aldeia (Lagrou, 1998, 2007:
343, 357), isso porque os outros o seguem. Xane é um pássaro azul pequeno que onde vai os outros pássaros vão
atrás. Segundo Lagrou, “os Kaxinawa não usam as imagens de animais poderosos como onças, cobras e hárpias
323

destacava-se o niaivo, que era responsável por articular relações políticas com outros homens,
inclusive de outros grupos. O niaivo, em geral, era um senhor pai de mulheres, que propunha
deslocamentos e a construção da maloca, “doava” filhas para casamento, o que agregava
genros, unindo em torno de si uma família extensa. A rede de parentes, uma maloca grande e
a capacidade, tomada como inata, de mobilizar essa rede são as principais características de
um niaivo. A palavra nia'ai significa estar de pé188, o que ao meu ver parece relacionar-se a
qualidade mesti (força, resistência e prontidão ao trabalho), implicada na definição das
características do niaivo que veremos a seguir. A palavra ivo por sua vez expressa uma noção
de maestria amplamente discutida na etnologia ameríndia sob os termos de dono e mestre
(Fausto 2008, Cesarino 2010 ), similar a kande entre os suyá (Seeger 1981), ijar entre os
waiãpi (Gallois 1984), wököti para yawalapiti, (Viveiros de Castro 2002d). Aqui me permito a
uma breve digressão sobre esse conceito porque ele é importante para entendermos a ideia de
chefia que, ainda que não exista mais na forma que existia no tempo da maloca, tem efeitos e
ressonâncias sobre as novas formas de chefia atuais.
-ivo é grafado entre os pano de diferentes formas e tem traduções e consequências
sociocosmológicas muito parecidas com as noções de dono e mestre entre outros grupos
ameríndios189. Não conheço outros contextos de uso de ivo pelos noke koĩ, no entanto, quanto
ao niaivo o termo sempre me foi traduzido como aquele que domina certo contexto, no
sentido de aquele que tem autoridade. Confesso que me faltou explorar melhor o alcance
gramatical da palavra, no entanto, os noke koĩ deixam claro que ivo compõe um conjunto
léxico com termos como dono e mestre. Semanticamente, ivo carrega consigo ideias de
liderança, de domínio, autoridade e origem.
Déléage (2009), que pesquisou entre os Sharanawa, afirma que ifo (o mesmo que ivo)
pode ser traduzido por mestre, mas aponta três aspectos semânticos importantes para essa
categoria que me parecem ter um rendimento interessante para o ivo dos noke koĩ, são eles:
autoridade, origem/fabricação e comensalidade. A autoridade aparece na linguagem cotidiana

para significar liderança, mas a de um pequeno pássaro azul apresentado no canto ritual não como herói, mas
como vítima de uma expedição de caça. [...] no mito, xane está entre os vencedores, não pela força, mas pela
coragem, aquele que vai primeiro, o que vem a ser o significado da chefia na filosofia política ameríndia: que o
chefe político é aquele que outros desejam seguir, não alguém que acumula e demonstra poder, muito menos
poder coercitivo e físico.” (Lagrou 2007: 479).
188
Entre os yawanawa, niaihu é uma das palavras usadas para chefe e como aponta Carid Naviera (1999: 67)
significa textualmente dono da sombra e também o que fica em pé. Segundo o autor, essa segunda acepção ainda
haveria margem para um interpretação figurada do sentido de viver. Para os Yaminahua no Peru, Townsley
(1988: 77) traduziu o termo como standing-still person.
189
Algumas variáveis correspondentes a ivo com diferentes grafias entre os pano são: iwo, yaminahua, Townsley
1988, ibu entre os huni kuin (Mccallum 2001, Lagrou 2007 e.o), ihu para yaminawa no peru (Carid Naviera
2007), ibo para os shibipo conibo (Tournon 2012b), ifo em sharanawa (Déléage 2009), igbo entre os matis
(Erikson 1999) icbo, para matses (Matos 2014).
324

em que o termo é usado para designar a relação entre possuidor e suas posses, como no caso
de um dono de uma casa - pushu ifo - ou para se referir a posse de animais domésticos.
Assim, o autor vê uma correlação entre a posse e a autoridade: ter uma casa, uma flecha, um
macaco é ter autoridade sobre eles. E é nesse sentido que ele conecta a posição de chefe -
diaifo - a essa dimensão de posse relacionada a autoridade. Um ifo é uma pessoa com
autoridade sobre qualquer coisa, um objeto, um animal, uma criança, uma aldeia. Esse aspecto
de ifo coexiste a outro, a origem. Tem-se autoridade sobre o que se cria. Assim se é dono dos
objetos que se fabrica, dos filhos que também são fabricados, como os ancestrais são donos
porque são seres da origem. Assim, a autoridade resulta da origem, da criação (Déléage 2009:
119). O terceiro e último aspecto, a comensalidade cria autoridade e posse pela nutrição, os
filhos são de seus pais190.
Esses três aspectos de ifo entre os Sharanawa ilumina a noção de niaivo na medida em
que autoridade, fabricação e comensalidade encontram eco na definição de algumas
atribuições de um chefe niaivo. Um chefe niaivo é aquele capaz de mobilizar parentes para
construir a maloca e realizar atividades coletivas, aquele que tem autoridade para dar
conselhos e mediar conflitos e distribuir recursos. Nesse sentido, a maloca pertence ao chefe
não porque ele é chefe, mas antes ele é chefe e tem autoridade sobre a maloca (enquanto
coletivo), porque foi através da sua capacidade de mobilizar o coletivo que se criou a maloca
(construção e coletivo): ele “puxou a comunidade” para construi-la e por isso ele está na
origem e na fabricação da maloca. Com isso fica evidente a relação entre casa e chefia. O
chefe é o que organiza a casa, a maloca enquanto coletivo (Casa) e enquanto construção
(casa)191. A maloca se cria através da ação do niaivo e se destroi por ele, seja porque ele é
quem mobiliza parentes para mover-se entre territórios (desfaz e refaz assentamentos), seja
porque quando ele morre a maloca é abandonada (prática comum a muitos grupos pano).

190
Déléage propõe que esses três aspectos de ifo podem se combinar formando blocos semânticos. Ele propõe o
seguinte quadro (p119):
Autorité Genèse Commensalité
Propriétaire d’objets * *
Maître d’animal * *
domestique
Géniteur de sés * * *
enfants
Chef *
<<S’habituer>> *
Ancêtre *
A descrição de ifo para os Sharanawa não difere em essência daquela oferecida do conceito de ibu para os
Kaxinawa por Lagrou e McCallum.
191
Entre os yaminahua no Peru, uma palavra para chefe é xanëihu. Carid Naviera afirma "a palavra xanë-ihu,
traduzida pelos Yaminahua por ‘chefe’, ganha quase uma interpretação literal ao associar explicitamente a casa à
pessoa que organiza sua construção, com o matiz de que o significado de xanë ultrapassa o da construção stricto
sensu para significar, precisamente, a casa como algo mais do que uma construção” 2007: 98 .)
325

Quanto à ideia de posse e de autoridade em ivo, trata-se das mesmas que encontramos
sobre os roçados e suas áreas, isto é, de que o trabalho as cria; a autoridade implica numa
relação de cuidado e responsabilidade. É uma posse que se impõe como resultado do trabalho
e não da área192. Como vimos em um capítulo anterior, o roçado é de quem abriu mas só até
quando ele der frutos. Tal como a posse dos roçados, a posse da maloca e a autoridade sobre o
coletivo da maloca, se dá pelo investimento de trabalho e ambos (posse e autoridade) não são
definitivos.
A maloca como coletivo é a rede de parentes que cerca o chefe, são seus filhos, netos e
genros. Todos seus comensais, um corpo coletivo construído tal como o da maloca enquanto
construção. O niaivo é aquele que distribui seus recursos com generosidade, recursos esses
que compõem e constroem os corpos dos parentes, de modo que podemos dizer que o niaivo
está na origem do coletivo e na sua fabricação substancial. Como afirmou Cesarino (2010)
sobre essa relação entre os marubo, “o dono/duplo é descrito como seu fazedor, isto é, aquela
subjetividade que deu origem ou forma ao suporte corporal ou à carcaça visível para a posição
ou o campo relacional humano” (2010: 153)193.
No entanto, ainda que o niaivo esteja na origem, ou como dizem os noke koĩ, na
geração da maloca (construção e coletivo), é preciso destacar que niaivo e maloca se
constituem reciprocamente. Não há um sem o outro. O chefe é uma espécie de conselheiro,
mas quando a comunidade está em desacordo com suas decisões ele ouve os conselhos da
comunidade. Ambos, chefe e maloca constituem um o outro. Além do mais, a autoridade do
chefe coexiste com uma certa autonomia das famílias que podem se mudar a qualquer
momento. Ainda que parte da autoridade do niaivo venha da sua capacidade de fazer com que
várias pessoas se disponham a construir uma maloca e a morar juntas, sua qualidade ivo não
pressupõe dominação, subordinação ou dependência. A autoridade que surge com a
geração/criação se conforma no conhecimento da pessoa niaivo, na sua sabedoria e em suas
atitudes. Um niaivo sabe ouvir, domina sem submeter, é dono sem posse.
A chefia do niaivo se equilibra numa constante possibilidade de fragmentação do
grupo, na instabilidade de sua influência que oscila com os níveis de confiança e prestígio. O
niaivo se cola à imagem da maloca mas não se institucionaliza. O niaivo não tem um mandato
com missões e metas e os grupos internos à maloca gozam de autonomia. Essa não

192
Uma variação de sentido comum a outros grupos ameríndio que também tratam dessa noção de posse
implicada na de dono em sentidos diferente de propriedade : Costa, L. 2016 Carid Naviera 2007, Viveiros de
Castro 2002d).
193
Cesarino (2010: 153) aposta em um caráter recursivo da lógica de dono dos animais. Segundo ele, entre os
marubo, os donos-mestres das coletividades de corpos de sucuris, queixadas, pássaros ou samaúmas, reproduz (e
é reproduzida por) a relação dos donos de maloca (shovõ ivo).
326

institucionalização é o que (entre outras coisas, por instabilidade constante) garante o


equilíbrio entre seu prestígio e sua autoridade. A força do niaivo é uma qualidade de bom
trabalhador que se opõe ao que não trabalha, não caça e tem panema; o yopa. O niaivo mesti
(niaivo forte) é aquele que estimula os demais a trabalhar coletivamente por influência, sua
força mesti, entusiasma os demais. A construção da maloca exige um grande investimento de
trabalho e nesse sentido é um ótimo exemplo de trabalho de gente mesti, forte, com
disposição para o trabalho e sem tikish194. O niaivo precisa antes ser persuasivo, paciente,
saber ouvir, acumular prestígio e confiança enquanto distribui recursos. A força exigida do
niaivo deve ser em boa medida, nem pouca para que ele se torne um yopa cheio de tikish
(preguiça anti-social), nem muita para que seja um sovina agressivo.
O que faz, portanto, de uma pessoa comum um niaivo é uma economia política de
capacidades que podem ser para todos retraídas ou ampliadas. Organizar atividades
produtivas coletivamente, ser acompanhado e admirado, conhecido por “saber trabalhar com
o pessoal”, agregar pessoas, ter muitos filhos e muitas mulheres, concentrar muitos recursos
materiais e sociais, e ainda assim ser generoso são aspectos do niaivo que resultam de
agenciamento das qualidade de noke ro'apa. A diferença do niaivo para os demais homens é
de grau, afinal espera-se de todos que sejam noke ro'apa. A relação diferenciada com o
coletivo surge do manejo em intensidade e atitudes das características de uma pessoa mesti,
sem tikish; noke ro'apa.
De volta à correlação entre niaivo e a maloca, vemos que ela aponta para uma
importância desse espaço na definição de política, não pelas noções de autoridade, mas
sobretudo porque a casa figura como um ponto de articulações políticas. Erikson (1999)
afirma que para os matis, a mobilização de recursos humanos para a derrubada de mata e
construção da maloca equivale a principal forma de emergência do poder político entre os
matis: “un shobo representa la encarnación de una entidad política”, afirma (1999: 225).
Como vimos até aqui a casa é ponto central da atuação política do niaivo noke koĩ. É
na maloca que o niaivo atualiza suas especificidades enquanto uma espécie de chefe: onde
organiza atividades coletivas, reúne o coletivo extenso de parentes e distribui recursos, onde
sobretudo por comensalidade se constrói corpos de parente. O niaivo é o ivo (“dono”) da
maloca e esta é o epicentro das atividades coordenadas por ele. Através dela que ele pode
expressar, por sua forma peculiar de posse, a sua igualmente peculiar autoridade. A ruptura

194
Erikson (1999: 222) conta que para os matis a construção do shobo (maloca) é vista como a antítese da
preguiça. “Cuando los Matis glosan la virtud tonificante de sus rituales en términos de actividades productivas,
insisten para las mujeres en la preparación de cerveza, y para los hombres en la construcción de casas”.
327

com esse modelo de habitação implica necessariamente em grandes mudanças e obriga a


transformações na configuração política195. Sem a maloca o papel do niaivo se dilui.
Como para muitos grupos da região, as correrias da segunda metade do século 19
interromperam o regime de habitação dos noke koĩ e consequentemente alteraram a
disposição política do grupo. Por isso os noke koĩ dizem que com as correrias não existia
chefe. Não ter chefe era resultado de duas estratégias de fuga: se dividir em grupos pequenos
e não ser um alvo para os yara, já que uma maloca tornava a presença do grupo muito fácil de
se identificar. Como casa e chefe se coincidem, a ausência de um provocou a ausência do
outro.

Primeiros contatos: equívocos e desencontros

Figuras políticas e um novo modelo de chefia

Alguma posição de chefia e relação política entre homens volta a aparecer quando os
noke koĩ decidem fazer contato pacífico com um seringalista. Para além dos encontros entre
noke koĩ e yara que resultaram em mortes, não é possível precisar com exatidão qual foi o
primeiro contato entre eles em que se estabeleceu algum tipo de aliança. O encontro
frequentemente apontado como o primeiro diz respeito a uma história que vez por outra tem
sido contada como um mito, trata-se da narrativa de aliança de um noke koĩ com um dos
agentes das correrias.
Txoki conta assim: “Noke koĩ fez combinado com peruano, trazia peruano para matar
povo noke koĩ, mostrava onde o povo se escondia. O nome dele era Kamarate, esse homem.
Kamarate era valente e preguiçoso. Quando foi morar com peruano virou inimigo, vinha e
matava seu povo junto com peruano. Noke koĩ ia para todo canto com medo de morrer.
Kamarate vinha com peruano, levava mulher para os peruanos e matava o povo todinho.
Quando ficou velho ai voltou, veio morar com noke koĩ outra vez. Mas o povo não gosta de
gente valente… daí mataram ele”196.
Versões paralelas e comentários a essa história contam que esse parente noke koĩ
chamado Kamarate aliou-se aos caucheiros peruanos para, em troca de proteção individual,
ajudar a localizar as malocas indígenas, inclusive dos próprios parentes. Kamarate

195
Arhem (2001) faz uma interessante análise sobre esse processo de transformação entre regimes de habitação
entre os Makuna, um processo aliás, muito comum a muitos grupos indígenas.
196
Essa história é também apresentada por Lima (2000) e por Góes (2009) na voz de diferentes narradores.
328

identificava os assentamentos e chegou a se envolver nos ataques e mortes de seus parentes


noke koĩ. Kamarate prefigura assim um expoente noke koĩ que encarna em si a representação
de toda a anti-nokekoĩdade esperada: é valente (matador), mesquinho e desagregador. E assim
não só é a antítese de um noke ro’apa, como também de um niaivo. Sua relação de aliança se
dá por uma via egoísta que busca proteção apenas para si. Em lugar de proteger e construir
coletivo (maloca e corpos de parentes) ele o destrói. A primeira aliança dos noke koĩ com os
yara se deu portanto por uma aliança política individual pautada em atitudes muito distantes
da esperada de um chefe. A conduta de Kamarate se torna como veremos mais adiante o
parâmetro do que um chefe não deve ser.
O segundo encontro para aliança dos noke koĩ com os yara se dá próximo a afluentes
do rio Liberdade. Escapando dos ataques dos peruanos ora no rio Gregório e ora no
Liberdade, num momento entre fugas, os noke koĩ decidiram contatar um seringalista que
avistaram entre afluentes do Liberdade, nos domínios de um seringal conhecido como
Guarani197. Conta-se que Manoel de Pinho mariscava quando Mana e Rekichoi se
aproximaram. Eles negociaram proteção em troca de trabalho e mulheres.
Manoel de Pinho se casa com quatro mulheres noke koĩ198. Essa inserção, em certo
sentido, de Manoel de Pinho no plano do parentesco noke koĩ tem algumas consequências
interessantes. Como a maioria dos forasteiros com que os noke koĩ querem estabelecer
relação, Manoel de Pinho ganhou um nome na língua dos noke koĩ; Toshpiya, que significa
aquele que tem verruga. Segundo Jardim (2007: 18), o nome se devia a uma verruga que ele
trazia no nariz. Não em contrapartida, mas em consequência dos acordos da aliança com os
noke koĩ, Toshpiya insere os noke koĩ no trabalho de extração de seringa e no sistema de
aviamento.
Do seringal Guarani, Toshpiya levou os noke koĩ, sob sua proteção dos ataques
caucheiros, até outro seringal, o Rio Branco, no alto do rio Tauari, onde os organizou e
ensinou o trabalho na seringa. Segundo o modo regional de dizer, Toshpiya amansou os noke
koĩ, lhes deu armas, roupas, panelas e técnicas de trabalho. Alguns aspectos da condição de
Toshpiya entre os noke koĩ o aproximou de certa maneira da figura ausente do niaivo. Entre
esses aspectos podemos destacar a sua capacidade de coordenar o trabalho coletivo e agregar
diferentes segmentos (kamanawa, varinawa, satanawa, numanawa, nainawa e waninawa) em

197
Por razões que já tratamos nos capítulos anteriores, a localização desse encontro varia conforme o narrador.
Jardim (2007) afirma que se trata do rio Lorena, Hitse Ta'e, na língua noke koĩ. Outros dizem ser entre os
igarapés Miolo e Forquilha.
198
O número de mulheres varia segundo cada versão entre duas a cinco. Segundo os informantes de Góes (2009)
podem ter sido duas ou cinco, Jardim (2007) e meus próprios dados afirmam quatro.
329

um mesmo local. Além disso, o fato de ter se casado com mais de uma mulher noke koĩ o
inseriu duplamente entre os noke koĩ; pelo parentesco e pela política, sendo um não separado
do outro, o casamento em si que já era a própria expressão de aliança reforça o caráter político
da relação. Ademais, algumas das mulheres com que Toshpiya se casou já estavam grávidas
de homens noke koĩ e quando os bebês nasceram ele assumiu a criação. O caráter poligâmico
da sua aliança ainda implica numa prerrogativa típica de um niaivo, que concentrando
recursos (materiais e sociais) é sempre um genro desejável. Se por um lado Toshpiya não
mobiliza a construção de uma maloca e nem tem previamente prestígio e qualidade de um
noke ro’apa, por outro ele tem a confiança dos noke koĩ, ainda que sob uma circunstância de
vida e morte, e é capaz de mobiliza-los para o trabalho na seringa e para deslocamentos. Ele
não dispõe de uma maloca como epicentro da sua ação política, mas agrega um extenso
coletivo em torno do barracão e das colocações, que se tornam as territorialidades de ação
política de um novo modelo de chefia.
O encontro com Toshpiya reinstaura figuras políticas e recria um novo modelo de
chefia. Internamente recria uma chefia de poder político misto (interno e externo), o chefe
mediador, e cria outra de poder externo agressivo, o patrão. A princípio, ambas figuras se
concentram em Toshpiya. Garantindo proteção contra eventuais correrias e se casando com
mulheres noke koĩ, de início, Toshpiya traz de volta em sua pessoa a figura agregadora do
chefe. A oferta de trabalho em troca de proteção contra as perseguições permitiu a ele
articular em torno de si os distintos segmentos kamanawa, nomanawa, waninawa, varinawa,
satanawa e nainawa, que foram se consolidando como um corpo de parentes. Para Góes
(2009: 48), a capacidade do patrão do seringal de prover mercadorias e de liderar
arrendatários em guerras o aproxima estruturalmente da posição de chefia de certos grupos
pano. Porém, se por um lado inicialmente ele encarna o chefe pela capacidade de reunir
muitos parentes e articular as atividades do grupo, por outro, com o tempo, ele passa a exercer
a antítese do chefe: é sovina e violento. E nesse sentido, se aproxima de todos os demais
patrões da região que, como apontou Góes (2009) se assemelhavam às figuras sobrehumanas
do Inka e dos Yohashikonawa, ambos figuras mitológicas associadas a sovinice199. Além
disso, a coerção e a relação de submissão necessária à relação entre patrão e indígenas no
sistema de aviamento distanciam Toshpiya, enquanto patrão, da definição de chefe niaivo. Se
por um lado Toshpiya traz de volta a figura do chefe atualizando em si aspectos de um niaivo

199
Yohashikonawa, segundo Lima (2000), é povo sovina, a mim foi traduzido como povo miserável. Tal como o
Inka para outros grupos pano, o yohashikonawa são possuidores de bens e conhecimentos mas são sovina e se
recusam a compartilhar com outros seus bens e conhecimentos. Sobre o Inka entre os pano ver: Lagrou (1998,
2013) e McCallum (1996a); Calavia Sáez (2000).
330

tradicional, por outro, ele funda um novo tipo de chefia política, o patrão, que se assemelha à
antítese do niaivo, é sovina e valente, mas que agrega parentes em torno de uma
territorialidade, seja ela o barração ou a colocação.
Esse novo modelo de chefia instaurado por Toshpiya começa a se transformar a
medida em que um filho de uma de suas mulheres noke koĩ criado por ele passa a assumir um
papel mediador. Vari Shiña, filho adotivo de Toshpiya, aparece nos relatos como cacique do
tempo de Toshpiya. Fluente em português e treinado por Toshpiya para negociar borracha e
mercadoria, Vari Shiña, também conhecido como Oscar, é o primeiro noke koĩ reconhecido
como cacique depois do fim das correrias. Mas cacique não é niaivo. Convém ressaltar
inclusive que essa definição de Shiña como cacique é uma associação posterior feita nos dias
de hoje, já que no tempo de Shiña sequer existia esse papel político. Cacique é uma posição
política recente que vem aparecer com a demarcação da terra e com a intensificação da
presença do indigenismo oficial. Shiña é hoje definido como cacique sobretudo pelo forte
caráter representativo dessa função200. O cacique é um mediador institucionalizado que,
mesmo sendo representativo e institucionalizado, pode, em certo sentido, ser estruturalmente
aproximado do chefe por vários predicados que se espera dele, como saber ouvir as demandas
da comunidade e mobilizar trabalhos coletivos. Em resumo, o fato de atualmente Shiña ser
definido retroativamente como cacique e não como niaivo se deve a pelo menos dois
aspectos: a) porque apesar de corresponder a vários atributos de niaivo, Shiña inaugura entre
os noke koĩ uma nova posição de chefia àquele tempo um tanto indeterminada e b) pelo
caráter representativo da posição que ocupava nas tarefas de mediador. É preciso destacar que
essa posição híbrida de Shiña foi se transformando ao longo do tempo e que só com o fim da
relação com Toshpiya é que ela ganha contornos mais definidos. Com o tempo, Shiña Oscar
parece eclipsar a figura de chefia de Toshpiya que ainda patrão, dono do seringal, transfere as
negociações com as famílias a ele. Ele passa a ser o ponto de concentração das decisões e da
organização do trabalho.
Existem pelo menos quatro versões sobre o fim do trabalho dos noke koĩ com
Toshpiya, todas com importantes consequências para a figura política de Shiña Oscar. Alguns
dizem que Toshpiya e Oscar dividiram a liderança como chefe e patrão dos noke koĩ até que a
morte de Oscar levou Toshpiya a se mudar para Manaus. Outra versão conta que Toshpiya
teria vendido o seringal e ido para Manaus. Uma terceira versão diz que os noke koĩ
abandonaram Toshpiya em busca de outro patrão. Uma outra versão conta que Toshpiya foi

200
Para Góes (2009: 61) as principais diferenças entre chefes e caciques (e também entre esses e as lideranças
atuais) são o domínio da língua yara e as relações que isso pressupõe.
331

vítima de feitiço de pajé. Independente de como se deu o fim das relações com Toshpiya, o
mais importante aqui parece ser o fato de que Shiña Oscar passou gradativamente a ocupar
uma posição de chefia antes impensada, a de chefe representativo. Ele organizou
deslocamentos de famílias inteiras, buscou um novo patrão e continuou a exercer o papel de
mediador interétnico negociando borracha, trabalho e mercadoria.
Num momento em que os noke koĩ estavam espalhados pela região ao redor do alto
Tauari, nos igarapés Rio Branco, Forquilha e Miolo, uma parte dos noke koĩ vão para outro
seringal, o Primavera. Nesse mesmo momento, Oscar reúne e organiza várias famílias em
busca de outro patrão, dessa vez no Seringal Kaxinawa, no Rio Gregório.
Oscar é lembrado por ter conseguido patrão bom para os noke koĩ. Os irmãos
conhecidos como Carioca tinham fama entre os seringueiros de serem bons patrões (Carid
1999, Góes 2009, Jardim 2007). E foi justamente com um desses irmãos, Antonio Carioca,
que Oscar mediou o trabalho nas bandas do rio Gregório. Antonio Carioca levou os noke koĩ
para o seringal Sete Estrelas, próximo ao seringal Kaxinawa, onde estavam os yawanawa. O
papel mediador de Oscar no entanto tinha um efeito interno limitado. Enquanto muitos grupos
indígenas na região, como os yawanawa que também trabalharam para os Carioca, contavam
com um chefe mediador e responsável pela negociação de borracha e mercadorias, os noke
koĩ preferiam manter as negociações ao estilo dos seringueiros, isto é, por vínculos
individuais (Carid 1999: 32, Lima 1994). Ao invés de pagar a borracha a um chefe que
distribuiria as mercadorias entre os parentes, o pagamento aos noke koĩ não era feito por meio
do chefe. Esse servia apenas de intérprete e mediador eventual, o pagamento era feito
individualmente a cada um que tivesse trabalhado na produção das bolas de borracha201. Isso
conferia a função de Oscar um aspecto híbrido, sem contornos claros, ao mesmo tempo chefe
e representante. Ele era capaz de agregar famílias para um deslocamento, servia a um papel de
mediador interétnico para conseguir trabalho, mas não figurava o papel de patrão, não
concentrava nele a administração do trabalho produzido por cada parente. Ao mesmo tempo
que era representante era também um trabalhador para o patrão. Conta-se que, como outros
que trabalharam para os Carioca, Oscar tinha a confiança do patrão para ir a Manaus negociar
mercadorias para abastecer o barracão202. Foi depois de uma dessas viagens que Oscar sofreu
ataques de feitiçaria e morreu.

201
Esse sistema encontra respaldo na concepção noke koĩ da relação entre trabalho e posse que vimos
anteriormente.
202
Carid (1999) conta que o chefe yawanawa, Antonio Luiz tinha essa mesma prerrogativa com os Carioca. Com
a diferença que Antonio Luiz ia a Manaus buscar mercadoria que “ele repartia depois com seu grupo, o que dá
mostras de uma certa capacidade de autogestão”, afirma Carid (1999: 32).
332

Noke koĩ e yawanawa

A morte de Shiña Oscar por feitiçaria seria fruto das relações animosas entre os noke
koĩ e os yawanawa. Como é comum a outros grupos pano, as acusações de feitiçaria entre os
noke koĩ em geral são direcionadas a outro grupo. Não obstante, os yawanawa são conhecidos
entre os noke koĩ como grandes feiticeiros. Um dos seus chefes mais famosos da história
recente do grupo é inclusive muito respeitado por seus parentes por suas habilidades
feiticeiras (cf. Perez-Gil 1999). Os noke koĩ no entanto temem serem confundidos com
feiticeiros, inclusive porque como vimos para a sua dimensão política a feitiçaria significa
valentia e muitas vezes implica no fim das relações políticas e em fragmentação do grupo.
Ainda que haja casos de feitiçaria entre eles próprios, a maioria dos feitiços é atribuída aos
yawanawa, senão feito por eles, feito segundo seus métodos. Segundo Carid (1999) essas
acusações não tem sua contrapartida simétrica entre os yawanawa, onde, diferente de outros
pano, as acusações e os atos de feitiçaria e envenenamento ocorrem dentro do próprio grupo
(Perez Gil 1999: 40). As divergências com os yawanawa não se restringem ao plano
cosmopolítico. Algumas pessoas dizem que o contato entre os noke koĩ e os yawanawa teria
ocorrido quando Oscar levou várias famílias do seringal Rio Branco, no Tauari, para o
seringal Kaxinawa, no Gregório, onde já estavam os yawanawa. As versões sobre esse
encontro variam. Carid (1999: 36) conta que, segundo os yawanawa, os noke koĩ teriam
chegado ao Gregório fugindo de grupos Kulina e Djapa/Kanamari. O mesmo autor ressalta no
entanto que outros acontecimentos anteriores deixam claro que já havia antes disso relação
entre os noke koĩ e os yawanawa.
O primeiro contato com os yara é tema de disputa entre os grupos. Para os yawanawa,
o contato com os yara se deu com intermediação noke koĩ. “Ângelo Ferreira teria chegado
com ‘guarda-costas’ e mediadores Katukina”. Pensando serem peruanos, os yawanawa
levantaram as armas e um katukina (que pode ser outro grupo pano que não noke koĩ, já que
na época vários grupos assumiam esse etnônimo) teria intervindo dizendo que Ângelo
Ferreira era um líder como eles: “ele só quer conhecer vocês, não vem para matar ninguém, é
um líder” (Carid 1999: 29). Lima comenta sobre uma outra versão apresentada por alguns
pesquisadores (Funai 1982; Szmrecsányi 1991 apud Lima 1994) que segundo os yawanawa,
eles teriam intermediado o contato dos noke koĩ com os brancos. Lima acrescenta que os noke
koĩ afirmam que os yawanawa contam essa versão com a intenção de “forjar uma certa
superioridade, como se quisessem com isso dizer que já os submeteram” (Lima 1994:113).
333

De todo modo a versão mais corrente que ouvi nas narrativas dos noke koĩ é de que os
noke koĩ e os yawanawa sempre foram vizinhos próximos. Mas as divergências das versões
revelam a rivalidade entre os grupos. Noke koĩ e yawanawa sempre foram vizinhos próximos
mas também adversários frequentes, principalmente em questões envolvendo mulheres do
outro grupo. A captura de mulheres de grupos vizinhos é comum entre vários grupos Pano e
parece até hoje ser uma questão de hostilidade entre bravos (isolados) e outros grupos já
contatados como é o caso da relação entre os korubo e matis, que Arisi define como de
aliança potencial, mas também de guerra e disputa (2007: 120). Entre os noke koĩ e os
yawanawa o rapto de uma mulher noke koĩ é apontado como uma das origens da hostilidade
entre os dois grupos. Angelica, uma noke koĩ que se casou com uma expressiva chefia
yawanawa foi segundo relatos dos noke koĩ capturada e levada a força. A versão dos
yawanawa, no entanto, é outra. Carid conta que a versão yawanawa é de que Angelica teria
vindo como outros noke koĩ de fugas dos Kulina e Kanamari: “O chefe yawanawa seria quem
permitiu seu assentamento e intermediou sua chegada ao ser pedida proteção” (1999: 44-5).
Tanto as versões do casamento de Angelica com Antonio Luiz (chefe yawanawa), quanto as
versões quanto ao status étnico de seus filhos são ilustrativas da ambivalência da relação entre
noke koĩ e yawanawa. Para os yawanawa, os filhos de Angelica têm sangue noke koĩ e,
segundo Carid , “não têm problema algum em assim se reconhecerem” (1999: 44), já para os
noke koĩ apesar do vínculo genealógico, dificilmente alguém reivindica a ascendêcia
yawanawa203. Para Carid, “os Katukina concedem uma centralidade ou importância aos
yawanawa que não tem sua contrapartida simétrica, acusando-os constantemente de feitiçaria,
por exemplo.” (Carid 1999: 45)204. A acusação de que teria sido Antonio Luiz o responsável
pela morte de Shiña Oscar se funda justamente nessa acusação recorrente. Além do mais, essa
suspeita noke koĩ de que Shiña Oscar teria sido vítima de feitiço dos yawanawa se
fundamenta na origem dessa rivalidade pelo rapto de Angelica, já que ela era irmã de Shiña.

203
Dois irmãos noke koĩ no Campinas que reivindicam essa ascendêcia por terem pai yawanawa são
frequentemente criticados pelos noke koĩ. Quando agem de maneira que reprovam sempre lembram que os dois
irmãos fazem questão de dizer que são também yawanawa.
204
O pouco acesso que tive aos yawanawa, sobretudo na Funai e um yawanawa morador na TI Campinas, me
levam a crer, no entanto, que a hostilidade é mútua e que essa suposta desimportância dada pelos yawanawa
expressa uma certa tentativa de desprezar a rivalidade publicizada pelos noke koĩ.
334

Gráfico 9 - Angelica, Washme, Ro’a e Antonio Luiz

Antes de Shiña morrer, os conflitos entre yawanawa e noke koĩ já eram intensos,
houveram outros raptos de mulheres e também ataques às aldeias. Segundo os noke koĩ, o fato
de Shiña Oscar estar trazendo de Manaus muita mercadoria influenciou a decisão dos
yawanawa de matá-lo, a inveja teria sido uma forte motivação.
Quando Shiña morre, os noke koĩ por seus contratos individuais com os patrões já
tinham se espalhado pela área em muitas colocações: Burras, Mutum, Escondido e Tiburcio,
que mais tarde se tornariam aldeias noke koĩ e que depois viriam a ser ocupadas pelos
yawanawa. A morte de Shiña coincide com a venda do seringal, que sai da administração de
Antonio Carioca para Pedro Corrêa (Lima 1994). Pedro Corrêa contrata Zacarias para ser o
patrão de Sete Estrelas. Com a morte de Shiña, o patrão tenta instalar uma nova política de
pagamento entre os noke koĩ, não mais por contrato individual, mas a um chefe do grupo. Ele
tenta criar entre os noke koĩ uma chefia representativa com alta concentração de poder que se
aproximava mais da figura do patrão que do chefe, algo que até o momento não tinha tido
espaço no campo político noke koĩ205. Poa Jaqueira foi feito esse chefe-patrão dos noke koĩ,
mas conflitos na hora de distribuir o pagamento fez o seu prestigio ruir e sua posição de chefe
durou muito pouco. Viño Shere Damião assumiu a posição de intermediário deixada por Poa,
mas em seguida também sofreu ataques de feitiçaria e morreu.
Foi então que os noke koĩ se dividiram outra vez. Vários grupos se deslocaram para
diferentes seringais e de cada deslocamento reapareceu um niaivo. Ro’a, desgostoso com a
morte de seu pai Shere Damião e com o desentendimento com a representatividade do chefe,
convence várias famílias a se mudarem. O grupo que o segue vai para o seringal Forte da
Garça, para cima do riozinho Liberdade. Rona mobiliza um grupo de parentes e vão para o
seringal Sete Estrelas. Washme, filho do falecido Shiña Oscar, lidera outro grupo para o
seringal Santa Rita, no rio Tauari. Houve ainda na época um outro grande deslocamento, para
o seringal Universo, no rio Tarauaca, mas nenhum niaivo foi identificado a esse movimento.

205
Lima (1994) chama de tentativa de reindianizar os noke koĩ.
335

O que dizem sobre o seringal Universo é que depois das mortes por feitiço de Shiña Oscar e
Shere Damião e de Antonio Carioca deixar o seringal “cada um ficou por conta própria”,
muitos seguiram a proposta de deslocamento de alguns homens, outros se dispersaram em
grupos de pequenas famílias pela região atrás de outro patrão. O lugar da chefia nesse
momento podia ser ocupado por duas figuras: a) um niaivo que fosse também
simultaneamente mediador com yara e b) o patrão do seringal, que desempenhasse o papel de
controlar a produção de borracha e o pagamento de mercadorias.
Pouco tempo depois da retomada dos deslocamentos, o grupo que havia seguido Ro’a
migrou com ele para o seringal Japurá, na foz do Riozinho Liberdade. Alguns anos depois,
foram para o seringal Santa Rita, onde reencontraram com outros noke koĩ que tinham ido
para lá com Washme, filho de Shiña Oscar.
É na colocação Bezerra no igarapé do Boi, do seringal Santa Rita, que se reúne um
grupo de parentes que terá logo em seguida forte impacto sobre a configuração da chefia entre
os noke koĩ, inclusive nos dias de hoje. É lá que se concentram as famílias de Ro’a André,
Washme Assis, Viña Manuel Rosa, Mani Zé Pequeno, Ero Francisco e Meke. É
principalmente desses homens que surgem as lideranças da atualidade. Todos eles são
lembrados até os dias de hoje como homens importantes, de prestígio e com capacidades de
chefia. Entre eles se destaca Washme.
Tal como seu pai Oscar que havia sido adotado por Toshpiya e aprendeu com ele o
trato com os yara, Washme foi “tutelado” por Antonio Carioca na sua formação como
mediador entre parentes e patrões206. A notável semelhança de trajetória com seu pai, também
apontada por Góes (2009), no entanto, não termina ai. Ele era fluente em português e no trato
interétnico, mas também tinha a capacidade de congregar em torno de si um grupo extenso de
parentes. Washme foi responsável por vários deslocamentos entre seringais depois que
Carioca deixou o Gregório.
Quando já estavam no igarapé do Boi, Washme foi, acompanhado do pajé rezador
(shoitiya) Mani, para o seringal Recanto, no rio Campinas, próximo de onde hoje começa a
terra indígena Campinas/Katukina. Lá o patrão Queléu conta para eles sobre a abertura da
estrada na região. Washme vai até o tenente responsável pela obra e combina com os militares
do 7o Batalhão de Engenharia de Construção o trabalho para os parentes. Ele então volta à
colocação Bezerra para buscar os parentes para trabalharem na estrada. No ano seguinte vai

206
Góes conta que Antonio Carioca levou Washme do seringal Sete Estrelas para o seringal Kaxinawa, onde
viviam os yawanawa para que ele aprendesse a falar português e fazer contas básicas de matemática (infinito
povoado p.42).
336

ao Sete Estrelas e consegue convencer várias famílias de lá a irem para a estrada. Do Sete
Estrelas vieram, entre outras, as famílias de Pe'o, Vari Kene, Vari Pera e Vari Mai, que
destaco por serem também figuras importantes na ascendência de várias lideranças atuais207.
A capacidade de Washme de congregar os parentes dispersos é contada com
entusiasmo, destacando a sua forte influência sobre os parentes e o seu valor enquanto bom
chefe.
Como vimos, depois que Shiña Oscar morreu de feitiço, os parentes se dispersaram
pela região em busca de trabalho na seringa, seja seguindo a iniciativa de um parente que
encarnava qualidades niaivo, seja por conta própria. Me parece curioso o fato deles se
referirem a essa dispersão como uma busca por um patrão. Essa expressão me parece ter duas
referências interessantes: a busca por um patrão como razão de deslocamento substitui a
antiga busca mítica pelas cabeceiras dos rios que inaugura a existência dos noke koĩ como um
povo em deslocamento em busca de um lugar para viver. Antes dos patrões, como vimos, os
noke koĩ viviam andando porque estavam em busca das cabeceiras, de um lugar para viver
que nunca chegava. Depois do contato, a razão para circular (mudar-se ou viajar) deixou de
ser a busca pelas cabeceiras para ser a busca por um patrão. Outra referência interessante
dessa expressão é a ideia de chefia que ela revela. Tal como um chefe agrega parentes e
concentra recursos, o patrão também concentra parentes e recursos. O que distingue, no
entanto, patrão e chefe é que a concentração de um não tem a mesma natureza que a do outro.
Enquanto o patrão concentra recursos – humanos e materiais – para acumular bens e exercer
força, o chefe concentra recursos humanos e distribui recursos materiais para acumular
relações. Assim patrão e chefe não podem teoricamente nunca se sobrepor. Com exceção de
Toshpiya, nenhum patrão nunca congregou os noke koĩ em torno de si da mesma maneira que
fazia um chefe. As coagulações do grupo por oito ou dez anos em um mesmo seringal nunca
foram estáveis e, ainda que seus contratos com os patrões fossem individuais, a sua
concentração dependia da presença de um chefe de prestígio. Por isso quando Shiña Oscar
morre de feitiço eles dispersam e só voltam a se concentrar novamente sob a influência de
Washme. Evidentemente, não foi só Washme o responsável por essa reconcentração. Muitos
contam que suas irmãs e cunhados iam atrás dos parentes dispersos convidá-los para irem
viver juntos sob o argumento de que tinham trabalho bom, com patrão bom na br.
Sobre a influência autônoma de parentes próximos na reconcentração dos noke koĩ
após o conflito com patrão e a morte de Oscar, proponho uma breve digressão para

207
Ver gráfico 8.
337

contextualizarmos a importância do parentesco nas decisões políticas dos deslocamentos e o


caráter autônomo dos grupos apesar de uma figura de chefia.
A cooparticipação de chefes e outros parentes para influenciar deslocamento destaca,
ao meu ver, o papel político de outros agentes, que em lugar de se sobrepor ao do chefe corre
paralelamente a este. Para Góes, há uma divisão na atuação de agente de parentesco da ação
de agente políticos em contextos de fragmentação. Ele afirma:
No caso de Txoki foram doze anos trabalhando individualmente com um patrão rio
abaixo. É notável ter sido sua irmã o vetor de reaproximação entre ele e seus
familiares Katukina no rio Gregório, pois sugere que em ocasiões de fragmentação e
distanciamentos extremos não são os laços políticos, territoriais e econômicos
promovidos pelos chefes e sim as relações de consanguinidade que são mobilizadas.
O contraste entre o pedido de sua irmã que enfatiza a saudade e as relações pessoais
e o convite de Washime, com que Txoki explica sua chegada ao Campinas, é nítido.
Washime buscava articular agrupamentos domésticos em um novo território, era a
construção e expansão da comunidade seu intuito, e para isso enfatizou justamente a
capacidade produtiva de Txoki para agregá-lo a um novo espaço (2009: 53).

Ao meu ver, as esferas da política e do parentesco não estão separadas, são apenas
facetas de um mesmo aspecto: o desejo de fazer parentesco e acumular relações. Mesmo a
intenção de Washme de articular agrupamentos domésticos em torno de si não é meramente
uma intenção de articular grupos em um novo território, e exclusivamente relacionada a
poder, e ainda que fosse meramente política, seria só na medida em que o prestígio político de
um chefe vem de sua capacidade de ter um extensa rede de parentesco. Além do mais a
política entre os noke koĩ, como para outros grupos, não me parece uma esfera exclusiva dos
chefes. Outra ideia imbricada nessa divisão é a de que as irmãs enquanto mulheres estariam
ligadas a vida interna e ao parentesco enquanto os chefes, homens, pertenceriam a esfera
externa da política. Sabe-se no entanto que as mulheres também ocupam dimensões políticas
da mesma maneira que os homens são influentes nas relações de parentesco.
Como já foi dito, entre os noke koĩ nota-se que a política é desmembrada em vários
agentes. Mesmo no passado, quando niaivo tinha forte influência sobre o grupo, havia outras
figuras políticas. Além dos chefes, responsáveis pelas relações políticas entre homens, a
dimensão política da vida social dos noke koĩ inclui também os pajés, responsáveis pelas
relações políticas entre homens e alteridades sociocósmicas. Há também outros chefes, como
as mulheres mais velhas, yoshavo, que concentram suas filhas e netos ao seu redor e que têm
influência sobre as mulheres e nesse sentido se encarregam das relações políticas entre
mulheres. Tem-se ainda um outro tipo de relação política que é administrada por mulheres em
idade adulta, aĩvo, a quem estão atribuídas as relações políticas entre mulheres e alteridades –
pela desubjetivação da carne e pela habilidade em produzir desenhos kene.
338

Essa fragmentação da dimensão política em muitos atores tem sido frequentemente na


literatura e no indigenismo restrita apenas ao homens, aos papéis de chefe e pajé, sendo que as
mulheres aparecem apenas na medida que assumem uma dessas posições masculinas208. No
entanto, entre os noke koĩ, as mulheres assumem um papel muito importante no
deslocamento dos grupos, na coesão do coletivo e nas decisões políticas. Essa influência, no
entanto, me pareceu ignorada nas relações interétnicas com os yara, em que a dimensão
política das mulheres é muitas vezes obviada. Uma situação muito exemplar dessa
desconsideração diz respeito a situações de atendimento médico na aldeia.
Um dos principais problemas enfrentados pela equipe médica está nos diferentes
entendimentos quanto aos cuidados com a saúde. As enfermeiras muitas vezes acham que o
atendimento por um pajé a uma pessoa muito doente atrasa o atendimento considerado por
elas mais eficaz da medicina. A queixa geral das enfermeiras é que os pacientes são levados
para atendimento no pajé e quando já estão quase morrendo são levados ao posto de saúde. E
assim, grande parte dos desentendimentos giram em torno da tentativa de levar os parentes
doentes para serem internados no hospital da cidade. O fato do tratamento dado aos indígenas
na cidade e, sobretudo no hospital, ser baseado em muito preconceito contribui para que
ninguém queira ser internado. Acrescenta-se a isso o fato das mulheres noke koĩ em sua
maioria não falarem português. Esses fatores criam nas mulheres forte resistência em levar as
crianças para serem atendidas no hospital. Como a condução à internação depende do
consentimento dos pais, muitas vezes as enfermeiras tentam recorrer a alguém que elas
acreditam ter mais poder político para convencer as mães (ou em alguns casos a obrigá-las) a
levar a criança ao hospital. Em geral essa pessoa com esse poder é identificada pela equipe de
saúde na figura da liderança geral ou do cacique da aldeia. Os homens no entanto não têm
influência sobre as decisões das mulheres sobre como criar os filhos e muitas vezes se
recusam a esse papel. As avós e as irmãs da mãe em geral têm muito mais autoridade para
intervir nessas situações, mas seus papéis políticos são simplesmente ignorados. Há de se
admitir que isso não é uma dificuldade apenas da equipe médica, mas de todo o indigenismo
que na maior parte das ações ignora a participação das mulheres na vida política do coletivo,
concedendo a elas espaços separados como organizações ou associações de mulheres, em
geral voltadas a práticas de saúde ginecológicas ou apenas a atividades ligadas à produção de
artesanato. Nas vezes que pude observar a relação de indigenistas com mulheres que ocupam

208
Ainda que seja a posição mais frequente não podemos ignorar os trabalhos de McCallum 1999, 2001, Lagrou
2010, Lasmar 1999, Costa et al. 2015, Rebelo, F. 2014. e.o. que chamam a atenção para o papel de liderança das
mulheres.
339

hoje posições de relações políticas majoritariamente masculinas, como liderança, notei que
elas são tratadas de maneira muito diferente de como são tratados os homens lideranças. Elas
têm muito menos credibilidade e sabendo disso estão sempre acompanhadas de um marido,
ou outro cacique.
Apesar desse contexto interétnico, e mesmo com as transformações recentes na esfera
política das comunidades, a fragmentação da política nos noke koĩ se mantém ramificada em
diferentes atores políticos. Essa fragmentação de agentes políticos funciona como uma
estratégia eficaz em impedir que alguém assuma as decisões sozinho, concentre em si todos o
destino da sociedade e que a autonomia dos grupos familiares seja comprometida. Além do
mais essa evitação, ou melhor, prevenção concorda ainda com a recorrente recusa à
concentração de poder tão comum em outros grupos na américa indígena e tão enfatizada
entre os noke koĩ quanto ao caráter da pessoa noke ro'apa.
De volta à reconcentração dos noke koĩ dessa vez na área da atual TI Campinas, é
preciso destacar o papel mediador de Washme em barganhar com o tenente a mão de obra dos
parentes em troca de autorização para se colocarem na área da br. Depois do fim do trabalho
de derriba e destocagem para abertura da estrada, alguns parentes voltaram para o Sete
Estrela, outros se dispersaram entre colocações ao redor da br, às margens da estrada e na
aldeia Olinda. A estrada passa a funcionar como as margens dos rios e dos seringais: para
escoar a produção, para acessar mercadorias e atendimento médico. Washme e sua família
extensa moravam um pouco afastados da Olinda principal, que passou a ser chamada de
Olinda de cima em contraste com a colocação de Washme que chamaram de Olinda de baixo.
O fato de Washme morar afastado dos demais parentes mesmo ocupando posição de
chefia é muita vezes justificado pelo fato dele ter sido, como fora também seu pai, além de
chefe, shoitiya, isto é rezador. Shoiti é traduzido para o português como reza, e descrito como
canto de cura, – ya, como já vimos anteriormente, faz da palavra a qualidade daquele que a
tem. Assim, literalmente, shoitiya quer dizer aquele que tem canto de cura. Os shoitiya,
traduzido como rezadores, em geral, como as demais especialidades de pajé, precisam se
afastar do convívio social para desenvolver suas capacidades. Ainda que seja muito recorrente
a sobreposição de chefia e rezador entre os noke koĩ e que muitas vezes ser shoitiya seja
descrito como um ponto positivo para um chefe, há certo descompasso entre a capacidade do
chefe de reunir um grupo de influência extenso e o isolamento do pajé. O chefe agrega grupos
domésticos em torno de si e da sua casa. Ele é o ponto focal de parentesco do seu grupo.
Sendo poligâmico, tem uma extensa parentela e muitos recursos sociais e materiais. Ao chefe
cabe sustentar a dinâmica social, ele precisar estar perto e presente para mobilizar atividades
340

coletivas. A concentração de um grupo extenso depende da sua presença, pois ele ocupa o
centro das atividades coletivas. O pajé, por sua vez, está a margem das atividades coletivas,
sua rede de parentes é pequena, afinal para desenvolver suas capacidades é preciso abster-se
de relações sexuais e de certos alimentos, em geral consumidos coletivamente. Além disso, o
pajé não caça e portanto não acumula recursos materiais209. O consumo intensivo de rapé e
cipó o isola das atividades comuns do cotidiano e dos centros de convívio social. Muitos pajés
noke koĩ são conhecidos por não parar quieto, por não ter canto certo e por se distanciarem
dos centros habitacionais.
Chefe Pajé
Agrega grupos domésticos em torno de si e da sua Não para quieto, não tem canto certo, distancia-se dos
casa centros habitacionais
É o ponto focal de parentesco do grupo Tem pequena rede de parentes
Poligâmico Abstém de atividades sexuais
Ampla descendência Pequena descendência
Sustenta a dinâmica social Consumo intensivo de rapé e cipó
Mobiliza atividades coletivas Isola-se das atividades comuns do cotidiano
Ocupa o centro das atividades coletivas Não caça, abstém de certos alimentos, está a margem
das atividades coletivas
Tem que estar perto, a aglutinação do grupo depende Mora afastados das concentrações de parentes
da sua presença
Acumula recursos sociais e materiais Acumula apenas recursos sociais

Tabela 22 - Chefes e pajés: atributos

Ainda que em grupos pano como os huni kuin (Deshayes & Keifenheim 1994, Erikson
& Santos Granero 1988, Lagrou 1998), o princípio dual de organização social exija que
chefes e pajés pertençam a metades opostas e exerçam funções que não se sobreponham e
que, portanto, devem ser funções separadas, é comum, entre outros grupos pano que chefes
sejam também pajés210. Além de várias figuras noke koĩ, esse é o caso também, por exemplo,
de Antonio Luiz Yawanawa (Carid 1999, Ferreira Oliveira 2012) e João Tuxáua Marubo
(Cesarino, 2011). Para Townsley (1993) essa figura entre os yaminawa seria consequência de
um certo declínio na organização política tradicional depois do contato com os não-índios que
teria introduzido a união dos dois domínios por uma supervalorização da figura do pajé.
De fato, chefe e pajé são em realidade duas (de outras) figuras distintas da dimensão
política e uma importante característica dessa dimensão é justamente a sua diluição em várias
esferas da sociedade, fragmentada em diferentes figuras políticas. Por outro lado, a dimensão
política indígena não separa a política entre os homens da política entre homens e outros. Isso

209
Para os Kaxinawa, há incompatibilidade entre as posições de chefe e pajé justamente porque o chefe é um
hiper-caçador ao passo que o pajé nem sequer caça (Kensinger 1995, Lagrou 1998).
210
A ideia de que as funções de chefe e pajé não podem ser acumuladas é muito comum na literatura Pano, como
aponta Erikson (1999), Townsley (1993) sobre os yaminawa, Braun (1975 apud Erikson 1999) para os Isconawa
e Kensinger 1977, Deshayes (1992) e Lagrou (1998) sobre os huni kuin. Lagrou, no entanto, pondera que, na
verdade, a complementaridade necessária é a de líder ritual (que seria o xamã vertical de Hugh-Jones 1994) e
líder político. As qualidades de pajé podem se encontrar em lideranças (Lagrou, comunicação pessoal).
341

não é um aspecto exclusivo dos noke koĩ, pelo contrário, está amplamente disseminado entre
as populações ameríndias das terras baixas sulamericanas, onde a política entre homens e a
política entre homens e outros compõem uma só política211. Essa indiscernibilidade da
dimensão política ameríndia é o que levou muitos autores a chamar essa dimensão da vida
social indígena de cosmopolítica (Stengers 1997, Latour Viveiros de Castro 2008, Sztutman
2005, Lima 2012)212. Nesse sentido, as diferenças qualitativas de articulação política entre
chefes e pajés não são contraditórias, se opõem mas não necessariamente se excluem. O chefe
articula relações entre homens e, ainda que eventualmente tenha que lidar com homens de
outros grupos e outras sociedades, sua influência política é baseada no parentesco e por isso
limitadas para as relações externas. Sua articulação e mobilização são internas. A sua arena
política é a do parentesco, de aliança no interior do grupo, suas qualidade e conhecimentos
são noke koĩ. O pajé por outro lado, articula relações entre homens e outros seres, articula e
mobiliza seres exteriores a sua própria sociedade, sua influência política é baseada em
relações com alteridades externas às sociedades de homens e externas a sua própria sociedade
e por isso ela é limitada para as relações internas. A sua arena política é a da aliança, mas da
aliança externa ao grupo, assim como suas capacidades e conhecimentos. Essas diferenças de
arena e idioma políticos não são no entanto excludentes, antes a sua concentração em uma
mesma pessoa é vista pelos noke koĩ como muito positiva.
Chefe Pajé
Articula relações entre homens Articula relações entre homens e outros seres
A influência política do chefe é baseada no parentesco A influência política do pajé é baseada em relações
e por isso limitada para as relações externas com alteridades extremas, invisíveis externas a própria
sociedade e por isso limitada para relações internas
Articula e mobiliza internamente Articula e mobiliza com seres exteriores a sua própria
sociedade
A arena política é do parentesco (aliança no interior do A arena política é da aliança (externa ao grupo)
grupo)
Tabela 23 - Chefes e pajés: semelhanças e diferenças

211
Convém esclarecer que o quadro acima (tabela 22) que divide em dois os atributos de chefes e pajés tem a
intenção instrumental de expor aspectos esperados de um e de outro, o que não significa um dualismo de
posições políticas, afinal ambos podem ser sobrepor.
212
Stengers definiu cosmopolítica com base no rompimento da ideia de política com os conceitos modernos de
sociedade, natureza e cultura, e que portanto nos serve como uma maneira de suspender uma única versão de
política. Esse rompimento é essencial para se entender a política que inclui outros cosmos, agências e atores que
não são exclusivamente de um só cosmo, de uma só natureza, mas que pelo contrário, inclui outros pontos de
vista que têm por referência outros corpos que tornam visíveis outros mundos e outras naturezas. Como bem
sintetizou Goldman (2014): “Se bem entendo a autora, esse modo de utilização [do termo cosmopolítica] é o de
uma espécie de princípio de precaução — uma “questão” ou “proposição” como diz ela — que visa evitar a
universalização de nossa noção de política. Noção que, como sabemos, se constituiu exatamente pela expulsão
de tudo o que não é “humano” do “cosmos” de seu campo de alcance” (Goldman 2014).
342

Além do mais as duas figuras políticas não têm só contrastes, há também semelhanças
que corroboram para a aprovação da sobreposição das duas213. Pajés e chefes mobilizam
relações, carregam poderes equivalentes, ao mesmo tempo que distribuem o fardo do poder.
Ambos fazem coletivos, transladam coletivos, fazem festa, negociações e estabelecem
acordos. Ambos desempenham atividades masculinas, e ainda que cada um aja num domínio
político próprio, ambos conduzem relações diplomáticas, ambos não falam por outros, não
são figuras representativas, antes reproduzem pensamentos dos antigos e trazem para o
interior do grupo conhecimentos externos de outros grupos/sociedades. Além disso, tanto para
um quanto para o outro, a comunicação com seus interlocutores é temporária e depende da
manutenção de certas condições e qualidades. O corpo do pajé é como a maloca (construção e
coletivo) do chefe: os dois são o núcleo das relações. Enquanto o pajé estabelece uma relação
entre seu corpo e outros, o chefe o faz entre malocas. Ambos estão sujeitos constatemente a
desconfiança de todos, seja de que são sovinas ou feiticeiros, condições essas potenciais e
latentes inerentes a seus pápeis.
Chefe Pajé
Atividade masculina
Relação política de homens com outros homens Relações políticas entre homens e seres
humanos e não-humanos
Ambos conduzem relações diplomáticas com mundo externo
Alteridades yara, outros indígenas, outras Alteridades cósmicas, animais, espíritos e plantas
sociedades
Não representam, não falam por outros
Sugere posicionamento frente discurso interno Arremeda o discurso do outro

Reproduz o pensamento de outros


De chefes antepassados Dos antigos e das alteridades donas de
substâncias e animais
Trazem conhecimentos externos de outras sociedades para o interior do grupo
Comunicação temporária com seus interlocutores, o domínio não é permanente
Depende da manutenção das qualidades de Depende de dietas: restritivas e prescritiva s de
chefe, da aglutinação do grupo consumo de certas substâncias
Manutenção da maloca Manuntenção do corpo
Ambos estão sob constante desconfiança
Como sovina Como feiticeiro
Tabela 24 - Chefes e pajés: outras semelhanças e diferenças

A sobreposição de funções políticas no entanto é sempre de pajé sobre chefe, no


sentido de que um pajé noke koĩ nunca será um chefe, ao passo que é muito comum chefes
virarem pajé. Isso por pelo menos dois motivos principais: a) o poder do pajé é na dimensão
cósmica e não na social e b) porque, como apontou Carid (1999: 79) “é mais útil para o
exercício da chefia as capacidades do pajé do que para as funções de pajé exercer a
chefatura”. Além disso é possível para um chefe conciliar o aprendizado xamânico com a
213
Mais uma vez a exposição por contraste nas tabelas 23 e 24 dos aspectos de chefe e pajé não significa a
cristalização dessas posições em um dualismo, apenas tem o intuito de demonstrar sobre o que se funda a
compatibilidade parcial das funções de figuras de chefia e figuras do xamanismo que veremos a seguir.
343

chefia, enquanto para um pajé a conformação do seu corpo impede que esteja a disposição da
comunidade. Ademais, há mais de um tipo de conhecimento xamânico cujas exigências em
alguns casos podem ser mais flexíveis a ponto de permitir conciliar as funções. Sobre essa
última razão, o conhecimento xamânico entre os noke koĩ, como entre outros grupos pano
(Lagrou 1998, 2007; Carid 1999, etc), tendo subjacente a noção de yochĩ está disseminado na
sociedade e portanto não está concentrado apenas nas mãos de um especialista. Tem-se por
exemplo o caso dos ervateiros e dos rezadores shoitiya. Um ervateiro é um conhecedor das
plantas do mato que curam (ou adoecem) e sua iniciação depende apenas da sua vontade
individual, aprende-se com quem já sabe técnicas de cura para cada doença sem interação
com espíritos. As iniciações e formações de shoitiya e romeya no entanto exigem o encontro
com uma cobra que lhe transmita conhecimentos. Ainda assim, a formação do shoitiya exige
menos restrições que a de romeya. A quantidade de conhecimento, o grau de conhecimento e
o tipo de conhecimento e habilidade xamânicos podem variar, assim como a intensidade da
relação com os espíritos donos da caças, da floresta e dos conhecimentos de cura. Essa
variação pode ser pelo tamanho da cobra, pelo conhecimento que ela revela e pelo tipo de
encontro – vê-la ou senti-la, viva ou morta. Além disso, se tornar-se um pajé independe da
vontade individual do aprendiz que é escolhido pela cobra dona dos conhecimentos de cura, a
intensidade da relação de aprendizado de romeya e shoitiya depende (entre outras coisas) da
dedicação individual na construção de um corpo pajé. Assim que a dificuldade em conciliar as
duas posições políticas – chefe e pajé – pode ser remediada por uma formação com diferentes
graus de conhecimento conforme a disposição. Alguns optam por desenvolver mais
habilidades com a idade e com o afastamento da função de chefe. Para Góes, o ciclo de vida
tem forte influência no abrandamento das diferenças entre chefes e pajés, no enfraquecimento
das capacidades cinegéticas e no distanciamento das atividades cotidianas ao longo da vida.
Ele afirma: “ser mestï (forte – atributo do chefe) é especialmente um atributo de adultos
jovens, ser romeya (pajé) é uma possibilidade idealmente exercida por idosos” (p.117). No
caso de Washme o ciclo de vida pode ter sido importante na sua formação como pajé forte. E
por isso o seu isolamento e as suas capacidades de pajé só foram possíveis quando os noke
koĩ já estavam reunidos na região da br.
Por outro lado para um romeya tornar-se um chefe é preciso abrir mão do
condicionamento de um corpo imprescidível para sua função. Para se tornar um chefe um pajé
teria que se tornar menos pajé, isto é, deixar em certa medida de ser pajé. Se as qualidades e
habilidades de pajé agregam positivamente a função de chefe o mesmo não ocorre com o pajé
344

que se torna chefe. Tornar-se chefe é enfranquecer-se como pajé, enquanto torna-se pajé é
fortalecer-se como chefe.
Além do mais, como argumentei incialmente, o poder do pajé está mais na dimensão
cósmica que na social. O seu prestígio está nas articulações bem sucedidas no plano
cosmopolítico, e não entre humanos da própria sociedade. O pajé transita por domínios
políticos que além de sociais são cósmicos. Ao pajé cabe mais do que articular sócio-
políticamente, ele atua cosmopolíticamente. O seu poder político e a sua influência estão
sobretudo fora da própria sociedade e ainda que seu prestígio tenha influência no interior do
grupo, ela não é sua esfera privilegiada.
Voltando a hipótese de Townsley (1993) de que a união dos papéis de pajé e chefe em
uma mesma pessoa seja consequência do contato, me parece que essa correlação entre o
contato e a sobreposição de chefia e xamanismo tem mais fertilidade se substituirmos o chefe
da enunciação por patrões. Toshpiya, Ângelo Ferreira e Felizardo Cerqueira são três exemplos
de patrões que tinham entre os índios a fama de terem capacidades mágicas (cf. Piedrafita
2008: 285). Além de se aproximarem dos chefes assumindo atributos similares ao do chefe,
como agregar e articular diferentes grupos de parente214, esses patrões exibiam poderes
mágicos. Sobre Felizardo Cerqueira, Piedrafita afirma: “os Kaxinawá acreditavam que
Felizardo era possuidor de ‘poderes mágicos’, que lhe permitiam ‘esconder-se sem deixar
rastro’, ‘passar sem ser notado’ e não ser alvejado por armas de fogo, atributos que davam
confiança aos Kaxinawá ao se engajarem com ele nas atividades da ‘polícia de fronteira’.
(2008: 285).
O prestígio dos pajés e a valorização de suas habilidades no mundo sobrenatural me
parecem ter servido antes para inserir esses patrões entre os índios do que para agradar a
expectativa dos não indígenas, que segundo Townsley constituiram o pajé como figura de
intermediação valorizada entre indígenas e não indígenas. A hipótese de Townsley parece
indicar que o contato transformou pajés em chefes. Com base nos argumentos acima, ao meu
ver, no entanto, o chefe pajé, ao menos nos noke koĩ, é antes um chefe com algumas
capacidades xamânicas do que um pajé ocupando a posição de chefe.
A minha hipótese é de que a figura de chefes pajé influenciou a inserção dos patrões
no mundo indígena e de que a influência do contato nessa figura vem para, em certo sentido e
por pouco tempo, desestimular essa sobreposição, na medida em que os chefes se vêem
obrigados a assumir entre os parentes os papéis marcados por valentias e agressividades na

214
A Toshpiya é reconhecida a capacidade agregação dos atuais clãs noke koĩ em um mesmo grupo.
345

organização do trabalho antes exclusivos dos patrões. Os poderes sobrenaturais eram


dispensáveis para a administração dos barracões, para a qual bastava um chefe que fosse
diplomata apenas das relações sociopolíticas. Esse é o caso do chefe representativo que
tentou-se instaurar entre os noke koĩ quando estavam no seringal Sete Estrelas. É também o
caso das recentes figuras de liderança que veremos adiante.
Mesmo afastado do principal agrupamento de casas, Washme ainda exerceu
importante papel de chefe entre os noke koĩ até meados da década de 1990, quando começam
a surgir essas figuras de liderança de aldeia. Um surto de sarampo levou ao abandono da
aldeia Olinda de cima em direção da área ocupada por Washme e sua família, o Olinda de
baixo. Quando o preço da borracha caiu no mercado, todos que estavam espalhados por
colocações nos arredores desceram para as margens da BR e para junto de Washme. Nesse
momento, além de manter forte poder aglutinador, Washme ainda exerceu o papel de
diplomata mediador entre sociedades e foi até Rio Branco na companhia do pajé Rekã
reivindicar o reconhecimento oficial da ocupação noke koĩ da área do Campinas. Washme
administrava na época um conflito com seringalistas pela ocupação da área na br. Em Rio
Branco o contato com a CPI do Acre trouxe aos noke koĩ não só a possibilidade de
formalização da demarcação da terra como também uma espécie de cooperativa em
substituição ao barracão dos patrões e cursos de formação de professores. Esse foi o início de
uma nova fase política do contato que fez surgir novas figuras políticas.
A cooperativa foi administrada inicialmente por Rona, um pajé shoitiya que, depois
das duas mortes por feitiço no Gregório, havia mobilizado parte do grupo em um
deslocamento. Nesse mesmo momento um grupo que havia ido para o Seringal Santa Rita
com Washme abriu uma nova aldeia, Martins. A força da chefia de Washme começava a se
enfraquecer. A cooperativa, a estrada, a presença do indigenismo, a formação de professores
indígenas e a formação de um novo núcleo de casas criaram um ambiente de novas
possibilidades de acesso e contato com o mundo dos yara (mercadorias e conhecimentos)
independente dos patrões, e independente também do chefe mediador. Junto com a
demarcação da terra indígena, a presença do indigenismo trouxe capacitação em língua
portuguesa, cursos de formação e certo preparo de jovens indígenas para o trato nas relações
com os yara e seus projetos, governamentais e de ongs. E assim fragmentaram o poder
aglutinador de Washme em lideranças jovens, caciques e professores.
A pavimentação da BR também é apontada por Góes (2009) e por Martins (2006)
como fortemente associada a criação de uma nova figura política de representação entre os
noke koĩ. Góes (2009: 62) conta que em uma comunicação pessoal com Lima, ela lhe disse
346

que ao longo dos primeiros anos da pavimentação o IMAC (Instituto do Meio Ambiente do
Acre) remunerou indígenas que se fizessem responsáveis por fiscalizar a TI. Martins (2006)
afirma que esses cargos criados pelo governo era chamados de fiscais de estrada. Além disso,
o autor ainda afirma que a possibilidade de reivindicar medidas mitigatórias pelas obras da
estrada fez com que às novas aldeias que iam surgindo fossem atribuídas certa infra-estrutura
(escola, posto de saúde) e cargos. (op. cit.: 50). Foram justamente a ocupação desses cargos e
a formação de jovens indígenas em articulação interétnica que criaram a figura recente da
liderança entre os noke koĩ.
O rompimento com os patrões seringalistas – pela queda do mercado da borracha e
principalmente pela demarcação da terra – e o acesso sem intermediários à cidade e às
mercadorias levaram muitos a abandonar as colocações isoladas na mata e também
incentivaram a mudança de muitos outros do Gregório para o Campinas. Tudo isso colaborou
para a expansão dos agrupamentos, que estavam espalhados por toda a estrada. A
intensificação das relações com o Estado, remunerando jovens para fiscalizar o território e
mitigando impactos da estrada com cargos e benfeitorias, e a presença do indigenismo,
formando jovens bilíngues para articular projetos com yara foram decisivos para o simultâneo
processo de surgimento de novas aldeias e instituicionalização da figura dos caciques. Como
vimos no capítulo 1, há uma relação intrínseca entre a fundação de aldeias e a eleição de
caciques, já que as antigas colocações se tornaram aldeias através da institucionalização da
chefia em caciques. Vendo benefícios em instituir aldeias (benfeitorias e cargos
remunerados), jovens bilíngues com formação para articular projetos transformaram os
agrupamentos dispersos em aldeias, assumindo um papel representativo de mediação com os
yara e institucionalizando a chefia desses agrupamentos na figura de caciques. O novo modelo
de chefia de jovens lideranças encontrou na dispersão territorial dos agrupamentos noke koĩ
ao longo da BR um substrato territorial para institucionalizarem a figura representativa do
cacique como chefia215.
Assim como a chefia precisou se adequar em certo momento da presença da empresa
seringalista à organização do trabalho e às relações políticas do seringal, com fim da relação
com o patrão e com a demarcação da terra surge uma nova demanda adaptativa das relações
políticas. Os caciques ensaiam uma replicação da política do mundo yara que vai ser

215
Para Martins, a transformação dos fiscais de estrada em caciques foi uma “manobra estratégica [que]
claramente visou eliminar uma incômoda diferença de remuneração – e, por extensão, de status simbólico –
entre, de um lado, professores, agentes de saúde e de saneamento e aposentados, e de outro, a liderança efetiva
de cada aldeia” (Martins 2006:51). Essa análise não é descabida mas me parece ignorar a importante influência
do indigenismo na criação e institucionalização do papel de chefia.
347

intensificada com a figura da liderança, uma nova chefia que se apresenta como um cacique
revisitado, dessa vez assumindo o seu aspecto moderno por usar uma linguagem nativa de
resgate da tradicionalidade que se adapta a ideologia das ongs, das cidades e dos estrangeiros.
Essa consonância de discurso entre lideranças e agentes políticos externos corresponde às
expectativas do indigenismo que valida a legitimidade dessa figura de chefia. O chefe
liderança é pois uma figura inseparável da essência de um chefe que ao ganhar participação
no exterior perde atributos internos (inclusive habilidades de pajé) e se enfraquece
internamente, isto é, perde valor sociológico e socio-cósmico, precisando ser
institucionalizado e legitimado por outros agente políticos externos. A liderança se impõe
como uma chefia que primeiro se extravia no mundo exterior para depois voltar para dentro. É
o seu forte aspecto externo no entanto que confere ao grupo o caráter de unidade étnica. É
essa mesma exterioridade que dá coerência política ao grupo como unidade étnica. Essa nova
habilidade da chefia de representar um coletivo, uma unidade étnica tem como consequência
uma hierarquização das demais figuras de chefia. E é assim que logo em seguida surgem o
presidente de associação e a figura polêmica da liderança geral.

Liderança – a figura política atual

A forte imposição do contato com os yara sobre o modo de morar e sobre a


subsistência tornou o mediador criado por ele uma espécie de chefe que conjuga capacidade
de coesão e agregação social com representação, negociações e acesso a mercadoria.
Proponho a seguir uma descrição da atual figura de relação política entre homens na TI
Campinas.

Chefia e identidade étnica

O contexto de institucionalização da figura de chefia entre os noke koĩ hoje tem forte
influência do agenciamento de questões de identidade étnica e por isso é interposto por
questões de afiliação clânica que, tradicionalmente ligado a segmentos de afiliação materna,
passam através da posição de lideranças a assumir formas ligadas a segmentos de afiliação
partena na defesa da representação clânica.
Como vimos existem vários tipos de figuras de relações políticas nos noke koĩ: pajé,
chefe, cacique, liderança, senhora mais velha, mulheres que pintam etc. A mais recente delas
348

é de poder político entre homens, a liderança. A liderança enquanto uma figura masculina de
poder político concilia a capacidade agregadora do chefe e a representatividade de figuras
democráticas do mundo yara. À custa de seu prestígio como chefe, a liderança se apropria e
concentra em si qualidades desses dois domínios. No entanto, a pertinência da sua
representação do grupo é frequentemente questionada e por isso tem sido comum entre os
noke koĩ um certo manejo político de questões de identidade étnica a fim de garantir sua
legitimidade frente aos yara e simultaneamente poder reclamar frente a seus parentes a
herança de sua posição e a jurisdição da sua ação política. O manejo da regra de afiliação
clânica é uma expressão desta última estratégia.

Afiliação clânica e chefia

As primeiras aldeias da TI Campinas são fundadas por lideranças sobretudo de dois


clãs216; Varinawa e Kamanawa. Como vimos, em 1972, os noke koĩ se concentravam todos
em um aldeamento, conhecido como Olinda217. Entre 1975 e 1978, a população se mudou
para uma área próxima, Olinda de Baixo, já ocupada por Washme, uma chefia hoje reclamada
como do clã kamanawa. A fragmentação do grupo começa pouco depois do fim das obras de
abertura da BR com várias pequenas colocações ao longo da BR que em seguida tornam-se
aldeias. Martins, hoje conhecida como Varinawa, foi aberta em 1984 por Ro’a (satanawa),
Vari Kene (varinawa) e Pe’o (varinawa), entre outros menos expressivos na política
interétnica: Mani (waninawa) e Poko (já falecido e de clã não identificado). Em 1990, Vari
Kene varinawa, um dos fundadores de Martins, já não morava mais lá, e sim às margens do
Campinas com sua mulher, Sharã kamanawa. É lá que seu filho, Kapiyo kamanawa funda a
aldeia Campinas. Assim vemos que tanto Olinda de Baixo quanto Martins e Campinas (as três
primeiras aldeias da TI Campinas) são fundadas pelo movimento inaugural de chefes que se
tornam ascendentes de recentes lideranças: Washme kamanawa; Vari Kene varinawa e Pe’o
varinawa.
Como acabamos de ver, a abertura de novas aldeias é produto da institucionalização
de poderes políticos através da criação de representantes. Esse ligação intrínseca entre a
fundação de aldeias e a eleição de cacique se expressa no fato de que os diversos
agrupamentos não se tornam aldeia até que tenham um cacique institucionalizado. Seriam

216
Convém lembrar que como vimos anteriormente o termo clã é um conceito noke koĩ, apropriado por eles
como tradução em português para se referir a segmentos internos envolvidos com categorias de nomes coletivos.
217
Hoje não existe mais aldeia no local, onde era a Olinda foram construídos o colégio e o pólo de saúde.
349

dois processos de um mesmo movimento: fundação das aldeias e institucionalização do


cacique. Se por um lado os agrupamentos surgem enquanto aldeias como produto de poderes
políticos institucionalizados, por outro, antes da sua oficialização em um modelo territorial de
aldeia dentro de TI, os agrupamentos se formaram em torno de chefes de família, capazes de
agregar grupos domésticos em torno de si. É sobre essa característica agregadora do chefe, se
apropriando dela, que se funda a figura do cacique, um híbrido de chefe e representante, que
tem por função institucionalizar o território em aldeia. Teríamos aí uma estrutura mais ou
menos assim:
cacique : aldeia : TI : : chefe : agrupamento : território

O cacique emerge junto com a aldeia num processo de transformação da chefia e da


territorialidade, consequente da transformação dos modos de morar, não mais em malocas,
mas em colocações. As lideranças atuais surgem desses chefes-caciques. Uma nova
transformação na figura da chefia, agora em liderança, transforma outra vez a relação com o
território. Num processo gradativo de cristalização da noção de movimento e instabilidade da
dimensão política chefes cedem lugar a caciques e estes às lideranças, que gradualmente
cristalizam o grupo de parentes em unidade étnica, o território em aldeias e a chefia em
representação. Para isso se apropriam de discursos de identidade clânica e invertem a regra de
afiliação.
Sendo a consequência de gradativas porções de exterioridade introduzidas pelas
relações de contato, a liderança é uma figura política que, como já foi dito, replica qualidades
do mundo político democrático dos yara. Em parte instituida por agentes políticos yara, a
liderança reproduz interna e externamente um discurso político que corresponda
positivamente às ideias e convicções que os yara tem da política e da indianidade necessária
aos índios. Assim as lideranças se apropriam de um discurso que não é tradicional mas
tradicionalista (isto é, com referências a sociedade de seus antigos parentes) para ter
reconhecida sua legitimidade representativa no mundo do yara. Afinal é essa dimensão
exterior da sua atuação como chefe que permite que ele fale em uma unidade noke koĩ
paralelamente a questões de identidade clânica. É justo o argumento tradicionalista da
identidade clânica que fundamenta politicamente a ideia de uma chefia representativa de uma
unidade étnica.
Simultaneamente articulam-se identidade étnica, afiliação clânica, chefia e território.
A própria condição de ocupação de certa pessoa desse cargo de liderança aciona esse discurso
350

e assim tudo se passa como se as características do chefe pudessem ser herdadas e a linha de
reclamo dessas heranças fossem os clãs.
Assim se Pe’o era varinawa e sua mulher satanawa, esperava-se (como vimos, pela
regra tradicional de afiliação a segmentos maternos) que seus filhos assumissem uma
identidade satanawa, no entanto, a herança da chefia e seus aspectos, como o traço agregador,
é reclamada como uma herança clânica. E assim, os filhos de Pe’o assumem a posição de
liderança, as características de chefe (agregador e diplomata), o seu clã e a função
representativa de sua aldeia.
A imbricação entre identidade étnica (afiliação clânica), território e chefia, se expressa
também na recente re-nomeação das aldeias218. Atualmente em lugar de referências
topográficas – nomes de rios, igarapés ou presença de plantas – as aldeias têm sido nominadas
pelos nomes dos clãs das lideranças. Assim, nos últimos anos, algumas aldeias passaram a
reivindicar novos nomes: Campinas e Martins perderam os nomes dos igarapés próximos a
elas e passaram a ser Kamanawa e Varinawa respectivamente. Samaúma, mais timidamente,
também ganhou um nome clânico, Satanawa, mas a referência é feita apenas por lideranças,
professores e agente indígenas. Bananeira e Masheya não entraram no jogo e não reivindicam
novos nomes, apenas em raros momentos Bananeira é referida, tal como Masheya, pelo nome
na língua; Maniya219.
No complexo das aldeias da TI Campinas, Masheya e Bananeira ocupam um lugar
distinto das demais. Nenhuma das duas é composta por uma família de lideranças e suas
relações com as instâncias institucionais são raras e distanciadas. Masheya, como vimos, foi
aberta no lugar de uma antiga colocação do sogro de uma importante liderança kamanawa,
mas com o objetivo, não de criar uma extensa rede de influência dessa liderança, mas antes de
abrigar famílias dispersas que vinham chegando do Gregório na forte onda de deslocamento
que havia começado nos anos 1990. Além disso, essa liderança kamanawa desempenhava em
Masheya um duplo papel. Se nas relações interétnicas ele tinha um contato intenso com
instituições e parceiros não indígenas, na aldeia, seu papel era muito mais próximo de chefe
(agregador de grupos domésticos através da construção da aldeia, isto é, fazendo coletivos e
motivando atividades coletivas) do que de liderança. Como a maioria das lideranças, ele não
era cacique de Masheya, apesar de seu forte prestígio, e como liderança desempenhava uma
função mais generalizante de representação dos noke koĩ, paralela à função da liderança geral.
Além disso, nenhum de seus filhos ou irmãos têm cargos de liderança em Masheya e por isso

218
Já registrada por Góes em 2008 (Góes 2009).
219
(masheurucum+ yater e manibanana+yater).
351

sua extensão clãnica na qualidade de chefe sempre teve pouco peso. Já Bananeira é uma
aldeia descrita pelos das demais aldeias como isolada, seus moradores não visitam outras
aldeias e não se envolvem nas decisões coletivas interétnicas. Com exceção de uma yara
casada com noke koĩ na aldeia Kamanawa, Bananeira é a única aldeia que abriga yara, são
duas famílias. Em Bananeira, as lideranças, professores e agente indígenas são todos da
mesma família, mas não do mesmo clã. O cacique de Bananeira coincide com a liderança,
mas o seu papel nas relações institucionais é meramente representativo e de baixa
participação e legitimidade entre as demais lideranças. Dados esses contextos específicos a
reivindicação dos nomes de clãs a essas aldeias não faz, para seus moradores, muito
sentido220.
Mas a marcação do etnônimo não se restringe às aldeias. Ela pode ser notada também
nos nomes próprios das pessoas, que atualmente se identificam assim, por exemplo: Washme
Kamanawa, Tapo Varinawa. Além do nome das unidades internas chamadas por eles de clãs,
algumas crianças nascidas recentemente têm em seus documentos o etnônimo étnico geral;
noke koĩ, José Noke koĩ, em lugar do Katukina que alguns jovens já tinham em seus
documentos; Edinaldo da Silva Katukina, por exemplo.
Essa ênfase na diferença clânica expressa nos nomes das aldeias tem pelo menos duas
dimensões: uma que circunscreve o domínio de atuação do poder da liderança numa
referência espacial; e outra, que termina sendo uma consequência da primeira, que é uma
contraposição social entre os grupos.
Sobre a circunscrição do poder de liderança numa referência espacial é importante
destacar a forte influência que a presença da BR teve sobre a dinâmica política. Além da
institucionalização da figura dos caciques a partir dos fiscais de estrada, a BR teve
implicações sobre as atividades masculinas e a organização social com graves consequências
na dimensão política.
A mais grave consequência alimentar dos impactos da BR, a escassez de caça, teve
uma influência determinante no contexto de consolidação da equação espaço territorial,
liderança e etnônimo clânico. No lugar de caça, parentesco e chefe provedor dos dois,
surgiram a comida comprada com salário, as alianças com instituições (e outros não
indígenas) e a figura política da liderança. A escassez de caça e da própria atividade de
caçador transformou a atividade masculina. Com a BR e suas consequências ecológicas, a
pajelança e caça assumem novas funções. Como dizem alguns, agora se “caça recursos e se

220
O que reforça o argumento de que o discurso da identidade clânica e a cristalização do grupo e do território é
consequente da interação com a política yara.
352

toma oni [ayahuasca] para mirar projeto”. Não podendo ser caçador, o que resta é ser
liderança (professor, agente indígena) ou terapeuta de medicina tradicional para estrangeiros.
O acesso à comida da cidade e aos cargos indígenas remunerados pelo estado elevam a
importância das lideranças, que diferentemente dos chefes não agregam nem articulam
agrupamentos familiares com ocupações territoriais221, em lugar disso investem em alianças
por recursos a uma jurisdição territorial, as aldeias.
chefe : caça : : liderança : recurso
chefe : parentesco : : liderança : aliança
chefe : grupos domésticos : : liderança : aldeia
Em lugar da mediação entre agrupamentos familiares e coesão das redes de parentesco
que tendem a mover-se e dispersar, se tem as mediações com os yara. Um chefe articula
pessoas, parentesco e território, ao passo que uma liderança articula coletivos, alianças e
aldeias.
As chefias do tempo da mediação com o patrão da seringa se renovam com o
surgimento das associações, que se dá num momento de luta por direitos fundiários e étnicos,
e conclama questões de etnicidade, identidade e tradicionalidade. Demarcada a terra, as
políticas de mitigação da BR 364 se tornam a nova luta dos noke koĩ. Com a promessa de
conferir autonomia aos indígenas na gestão de seus interesses comunitários, é criada a
Associação Katukina do Campinas em 1999.
Um estado só pode negociar com outro estado, ou com uma forma política que se
assemelhe a ele, caso contrário seus tratados podem não ter validade. É tendo isso como
premissa que, para negociar mitigações, o estado exige (e é endossado por outros órgãos
indigenistas não governamentais) que haja uma representação, uma instituição através da qual
se possa negociar e gerir políticas de mitigação. Com uma estrutura política alienígena frente
às formas noke koĩ de organização política, a associação institucionaliza o poder político dos
noke koĩ em figuras de presidente de associação, liderança geral e CNPJ. Numa tentativa de
conciliar política tradicional e gestão de questões políticas de cunho yara, como as mitigações
e projetos, a AKAC fixa definições de fronteira étnicas. E assim a circunscrição do poder de
liderança numa referência espacial suscita contraposição social entre os grupos.
Esse realce de diferenças frequentemente recorre a referências históricas de duas
maneiras: a criação da recente sucessão de lideranças descendentes do primeiro patrão dos

221
Os grupos domésticos, como vimos no capítulo 1, se constituem por parentes em laços de cooperação que
vivem próximos e que frequentemente se movem juntos.
353

noke koĩ (como já foi relatado anteriormente sobre o encontro dos noke koĩ com o Toshpiya)
e nas histórias de surgimento dos clãs.
As referências históricas para a marcação de diferença clânica é a constituição de uma
certa linhagem kamanawa de lideranças. Se quando encontraram com Toshpiya eram muitos
dos varinawa e poucos dos demais (Tastevin 1924, Góes 2009, Lima 1994), a linhagem de
lideranças que surge do encontro com o seringalista Manoel de Pinho é kamanawa, e é a que
termina resultando no grupo de maior expressividade política da TI Campinas.

Gráfico 10 - Lideranças kamanawa

Quanto à história do surgimento dos clãs, segundo a mitologia, como vimos, os noke
koĩ quando surgem eram um e viraram vários. Segundo uma versão em Jardim (2007),
coletada em uma oficina do governo do estado222, os noke koĩ emergiram da terra e depois de
um encontro com Naina Sheni, uma preguiça velha e poderosa, eles se dividiram em clãs.
Segundo a versão de Txoki em 2014, os noke koĩ nasceram um povo só e depois foram
divididos por Piñotxe, um demiurgo que cria as coisas pelo seu próprio poder. Depois que se
separaram dos marubo, os noke koĩ se espalharam, e só se uniram de novo como noke koĩ
com o contato.
Nesse mito de origem que continua no mito do jacaré-ponte, cada clã surge do mesmo
buraco na terra. Mesmo depois da divisão, eles não se separam, já que a divisão separa os
noke koĩ em dois grupos mas os dois grupos mantêm todos os clãs. A prova disso, segundo os
noke koĩ, é que até hoje os seis clãs podem ser identificados entre os marubo, o outro grupo
que se separou deles na travessia.
222
Góes (2009) chama a atenção para o fato desse contexto em que foi coletada essa versão conferir uma
dimensão étnica ao mito não encontrada em outras versões.
354

A origem simultânea e comum dos clãs é atribuída por alguns como a evidência da
paridade e indistinção de privilégio, prestígio ou prerrogativa entre eles223. Apesar dessa
fundacional indistinção moral entre os clãs, atualmente nota-se claramente uma assimetria
vertical entre os clãs, consequente da combinação entre identidade clânica, cargos de
lideranças e territorialização das chefias em aldeias. A concentração das decisões sobre o
destino do grupo em algumas lideranças, cristalizada no território sob a forma de aldeia,
confere, através dessa combinação, características do clã à liderança (e vice e versa), e o clã
passa a ocupar no conjunto uma posição hierárquica na escala de prestígio e/ou legitimidade.
A correspondência entre clã e aldeia se instaura na medida em que ambos se constituem como
elementos políticos, um doador de qualidade às lideranças, o outro, jurisdição do poder. No
entanto, a conexão entre a figura da liderança, sua referência espacial (a aldeia) e a distinção
social de clãs é frequentemente desqualificada por muitos, inclusive por algumas outras
lideranças. Assim como a própria concentração das decisões em um chefe político, a
solidificação de certos aspectos em um clã, bem como a prerrogativa de um sobre outros, são
rejeitadas pelas pessoas comuns (não lideranças). A despeito dessa rejeição, nota-se que os
kamanawa têm instituído, pela forte expressão política de lideranças dentro e fora da TI, essa
conexão entre clã, liderança e aldeia. Assim, a liderança é kamanawa, porque seu clã é
kamanawa, e a aldeia é Kamanawa porque a liderança é kamanawa. E a liderança é
kamanawa porque sua mãe é kamanawa, e ele é liderança porque a última importante
liderança geral também era Kamanawa e, sendo ele kamanawa, ele recebeu, assim como a
aldeia, os aspectos da liderança já falecida224.
Em uma relação recíproca de atribuição de qualidades, clã e liderança associados
propiciam um tipo de poder político entre homens que transforma territorialidades em aldeias,
isto é, em áreas de influência política. E nesse contexto, a reivindicação de uma nova terra
indígena e a criação de novas aldeias são ameaças a essa composição territorial de poder que é
pois uma composição de natureza política. A eminência a toda hora de uma disjunção entre
política e território suscita nas lideranças atuais ações que freiem a constante deslegitimação

223
Góes apresenta ainda uma outra versão, dessa vez contada por um yawanawa, sobre a origem dos povos em
que os noke koĩ surgem juntos com os yawanawa e os Shanenawa (um povo frequentemente confundido com os
noke koĩ quando são referidos como katukina). Os noke koĩ teriam surgido com um chapéu de pelo de onça e
por isso eram kamanawa, o povo da onça.
O fato dos noke koĩ serem kamanawa na origem se deve, segundo a narrativa, ao chapéu de pelo de onça que
portavam ao surgir. No entanto é preciso ter em mente que quem contou essa história a Góes foi um yawanawa
casado com uma kamanawa e fortemente agregado à rede de influências das lideranças kamanawa. Com isso
quero dizer que a relação desse contador com os kamanawa pode estar conferindo certa ênfase na predominância
dos kamanawa sobre os demais desde a origem.
224
Cabe notar que a liderança geral atual foi instituída como tal pela liderança geral anterior, hoje já falecido.
355

da concentração de poder expressa, a uma só vez, em um território do tipo terra indígena, em


um clã e em uma liderança representativa.
Sobre os kamanawa, se ouve de alguns uma associação entre o comportamento do
animal que dá nome ao clã; kamã (onça) e o propósito político das lideranças kamanawa:
“dominar os noke koĩ como a onça domina a floresta”225. É preciso destacar aqui a
especificidade do sentido de dominar nesse contexto. Várias vezes ouvi os caciques usando
essa palavra para expressar sua jurisdição, dizendo: “eu domino essa aldeia”, referindo à
aldeia como seu domínio, sua área de influência e não como seu lugar de controle,
superioridade e mando que a expressão pode nos sugerir. Assim, “eu domino essa aldeia” diz
mais sobre os alcances da sua alçada que sobre uma ação tirana sobre moradores da aldeia.
Nesse sentido, dominar os noke koĩ pode também estar se referindo ao desejo de ser a
liderança, o chefe, de todos os noke koĩ, o que de todo modo não deixa de ser uma
concentração de poder que desperta a desconfiança dos noke koĩ.
Por hora, nos interessa saber que a prevalência do domínio kamanawa não é
facilmente aceita pelas outras aldeias. A equação que soma território, política e etnônimo é
frequentemente deslegitimada pelas pessoas comuns. O próprio movimento de expansão
imperialista (ou quase estatal) dessa territorialidade a que pretendem alguns se esbarra nas
consequências dessa expansão no composição social dos grupos e nas demandas dentro da
aldeia de uma fragmentação espacial e social226.
A expansão da família pelo crescimento da população tende a construir uma relação
entre o grupo e o território. E isso se expressa na definição tradicional de chefe; aquele que
mobiliza grupos domésticos, que mantém agregados de famílias em torno da maloca. Mas,
como veremos, essa própria expansão gera a fragmentação justamente pela concentração de
poder. Como vimos no capítulo anterior, as filhas querem viver após o casamento próximas a
suas mães e isso é um fator desarticulador para uma casta de lideranças assentadas em figuras
masculinas. As aldeias, apesar de hoje carregarem os nomes dos clãs das lideranças,
evidentemente são compostas por pessoas de todos os clãs. As lideranças kamanawa do
Campinas/Kamanawa, que são as lideranças mais expressivas da TI em termos de
representatividade institucional e de concentração de decisões, são quatro homens, que
225
Góes (2009) afirma ter ouvido isso de uma liderança kamanawa. Eu ouvi isso de uma outra liderança
kamanawa, filho de yawanawa.
226
É preciso termos claro que esses alguns, em geral lideranças, que entram em conflito com as demandas
internas de pessoas comuns (nem chefes nem pajés), não são bons selvagens corrompidos pela civilização, antes
eles parecem ocupar um lugar já há muito previsto na cosmologia noke koĩ (anterior ao contato com os yara);
trata-se do parente em transformação por destabilização de seus laços relacionais que os fariam noke koĩ noke
ro’apa, destabilização essa que muitas vezes resulta numa transformação em um tipo de outro que é a antítese do
noke koĩ: valente e não generoso.
356

reclamam o clã da mãe, kamanawa, e que, se não inverterem a regra de transmissão de


afiliação extinguirão a sucessão de líderes kamanawa, assim como se suas mulheres não
quiserem viver no Campinas ou já não forem de lá. Um grupo de irmãos homens é, portanto,
não em termos de liderança, mas de relações de parentesco, um prejuízo aos domínios do
chefe.
Quanto às demandas internas de uma fragmentação espacial e social que limitem a
pretensão imperialista, temos como exemplos a recente inversão do fluxo de deslocamento
territorial da TI Campinas para o Gregório, a abertura da aldeia Waninawa em 2012 e o
pedido varinawa de demarcação da área do igarapé Miolo.
Entre vários fatores, a concentração de decisões pela valentia em um clã, uma aldeia e
uma liderança é um dos fatores que também motivam os varinawa a fazerem um pedido de
demarcação227. A institucionalização das figuras políticas (masculinas) em lideranças criou,
na conjunção com os reivindicações étnicas, um contexto político tenso entre lideranças de
diferentes clãs. Um exemplo disso é uma certa tensão e dissenso entre kamanawa e satanawa,
sobretudo quanto a presença de yara na TI em busca de medicina tradicional, atividade
dominada majoritariamente (mas não exclusivamente) pelos satanawa. A rivalidade entre
kamanawa e varinawa no entanto parece na atualidade a mais acirrada das confrontações entre
lideranças e seus clãs.
Para a questão das reivindicações teritoriais nos interessa de maneira peculiar essa
contraposição política entre lideranças kamanawa e varinawa. É sobre ela que vamos discutir
a seguir.

Rivalidades clânicas e dispersão territorial: varinawa versus kamanawa

A principal liderança varinawa se contrapõe às lideranças kamanawa por um estilo de


exercício da liderança de menor alcance político interético. Como alguns outros caciques,
Tapo tem maior influência em relação a grupos domésticos do que em articulações
interétnicas. Se por um lado a principal liderança kamanawa tem um currículo de vasta
experiência em relações interétnicas – foi professor, coordenador da OPIRJ, chefe de posto da
Funai e presidente da associação –, por outro, a principal liderança varinawa tem poucas

227
Esse mesmo motivo é a principal razão do recente surgimento da aldeia Waninawa, que se conforma como
dissedência da aldeia Kamanawa, segundo eles, pela superpopulação, por causa da cachaça e da presença do
forró, mas sobretudo, por causa de comportamentos violentos e opressores das lideranças kamanawa. É notável
que enquanto uma dissidência motivada pela desaprovação do comportamento das lideranças kamanawa que
Waninawa já nasça com nome clânico.
357

relações com o yara e nenhuma legitimidade com os órgãos indigenistas, sobretudo a


Funai228.
Além disso, assim como muitos outros na TI Campinas, o que incomoda os varinawa é
o autoritarismo, como eles mesmo descrevem, das lideranças da aldeia Campinas/Kamanawa.
Eles são frequentemente acusados de usarem a associação para decidir por todas as aldeias e
de reclamarem e proíbirem outras aldeias (como Samaúma e Bananeiras) de negociar
medicina tradicional com o estrangeiro, ainda que em Campinas229 também se negocie
aplicações de kãpo e pajelanças. Nesse contexto de acusações, o cacique de Varinawa é
enfático em dizer que os kamanawa ameaçam os varinawa com o que eles traduzem como
poder político.
Diante da rivalidade entre lideranças desses dois clãs, a reivindicação do igarapé
Miolo foi feita pelos varinawa diretamente às instituições governamentais, sem que nem a
associação, nem a liderança geral (nem de outras aldeias) fossem envolvidas.
A ausência da associação no processo de reivindicação tem consequências. Uma delas
é sobre a legitimidade do processo. A baixa inserção atual dos varinawa nas instâncias
institucionais tende a invalidar a reivindicação, por uma suposta falta de representatividade
dos varinawa como unidade. Outra consequência é que a reivindicação acaba se tornando um
conflito entre aldeias e clãs, ainda que para as pessoas comuns a vida cotidiana siga sem a
influência disso: elas seguem se casando entre si e se mudando de aldeia. A influência é
mesmo sobre as questões de política do grupo entre homens lideranças e aliados.
Os órgãos indigenistas, sobretudo a Funai local230, numa tentativa de solidificar a
representatividade e ampliar a interferência da associação, firmam com as lideranças
kamanawa, que ocupam cargos na associação noke koĩ (AKAC), um acordo provisório de
exclusividade em falar e decidir para todos os noke koĩ231.

228
As relações varinawa com yara se restringem ao CIMI e ao padre Heriberto (Herbert Douteil) em Cruzeiro do
Sul.
229
Nessa parte em que estamos discutindo nome de clã e aldeia, para evitar a confusão sobre o que estamos
falando, aldeia ou clã, optei por referir a aldeia Kamanawa pelo nome antigo, Campinas.
230
Certa vez o chefe da divisão técnica da Funai local explicou que não existe outra maneira de fazer política
indigenista, que é preciso um porta-voz, um representante – “não dá para ouvir todo mundo” – ainda que esse
seja um modelo de política discrepante com a prática e com a concepção da maioria dos noke koĩ que não são
lideranças.
231
Góes (2009) conta que em 2009, havia no escritório do componente indígena do DERACRE de Cruzeiro do
Sul um informativo em que o presidente da AKAC na época “desautorizava o atendimento a qualquer
reivindicação de lideranças katukina [noke koĩ] que não houvesse previamente passado por sua avaliação. Desta
forma exigia que todo documento elaborado por algum Katukina deveria ser assinado por ele próprio enquanto
presidente da AKAC para ter alguma legitimidade.” (p.131). Ainda que seja uma solicitação vinda de dentro do
grupo, é preciso ter em mente que isso frui da necessidade das relações políticas interétnicas.
358

Numa atitude de legitimar a associação frente a essas iniciativas de pequenos grupos, a


Funai regional só aceita processar documentos de indígenas que tenham uma declaração de
residência emitida pela associação comprovando a residência em TI. O reconhecimento da
legitimidade exclusiva da associação para representar interesses dos noke koĩ implica no
acirramento das rivalidades internas, uma vez que reifica o predomínio político dos
kamanawa, que afinal são as lideranças a frente da AKAC (cf. Ramos 1997 e Albert 2000).

Redes de parentesco e práticas opressoras; “cultura” e identidade étnica; demarcação da


fronteira étnica e diluição

A reivindicação do Miolo e a maneira como ela vem se dando institucionalmente


revela não só uma rivalidade entre clãs, mas sobretudo, as consequências da transformação da
política nativa pós contato. Em primeiro lugar a reivindicação é fruto dessa rivalidade que por
sua vez resulta da nova chefia representativa, que tem que ser tradicionalista mas também
democrática. Como vimos, por exigência e influência das alianças com instituições e
parceiros não indígenas que vêem os índios como uma unidade étnica, as lideranças se vêem
empurradas a congregar, sob sua influência política, redes de grupos domésticos cada vez
maiores. Mantê-las extensas no entanto nunca foi fácil, mas com chefias que os alguns noke
koĩ reconhecem como agressivas, essa tarefa se tornou ainda mais difícil. Como veremos
adiante a agressividade e a valentia são aspectos que compõem a antítese da política noke koĩ
e basta desconfiar do caráter generoso e pacífico de um chefe para que a dispersão crie a
fragmentação do grupo. Por outro lado, o aumento dessas redes também disparam entre os
grupos domésticos uma tendência a dispersão e aí entram as práticas e atitudes de valentia e
opressão por parte das lideranças.
O plano de gestão, feito num contexto de política interétnica expressa esse acordo
sobre a validade de uma decisão independente ao dizer: “Toda iniciativa para criação de uma
nova aldeia ou moradia deve ser conversada e acordada por todas as aldeias. E as famílias não
podem ficar mudando constantemente de aldeia; 2) A família que mudar para uma nova aldeia
só será registrada depois de um ano [...]”
A resistência da liderança geral e presidente da AKAC na época em que foi aberta a
aldeia Waninawa em assinar um documento que a reconhecia como aldeia se deve, segundo
os waninawa, a essa tentativa desesperada das lideranças em conter a dispersão e garantir a
concentração das decisões. E é isso que se sente quando se nota um desencorajamento da
359

AKAC e liderança geral acerca da reivindicação independente dos varinawa da área do


igarapé Miolo e das mudanças para o Gregório. Evidentemente como se pode imaginar, essa
exigência da AKAC por primazia sobre as decisões dos grupos domésticos não se efetiva
plenamente. A despeito de imposições ao coletivo noke koĩ, os varinawa, os satanawa, os
waninawa etc seguem burlando a representatividade da AKAC. E a concentração (tanto de
decisões quanto territorial) se revela um tiro pela culatra ao prestígio e à capacidade de coesão
das lideranças, já que segundo suas próprias definições, a concentração sempre leva a fissão.
Não podemos no entanto obviar uma dimensão importante nesse quadro político, a
participação fantasma do governo e da Funai. A concentração da população em uma terra e
sob o comando de uma chefia institucionalizada é exigida pelos órgãos de política pública,
que têm seus indicativos de saúde, educação e benefícios comprometidos toda vez que uma
família se muda sem comunicar ao distrito de saúde e fazer a transferência escolar da criança.
Em relações estreitas com o governo do estado do Acre, a Funai local assume esse papel de
sovina do sovina, de hoshonawa do kamarate, exigindo das lideranças o controle e a
contenção das dispersão.
Tudo se passa como se se tratasse de três dimensões do poder político entre homens:
uma política interétnica de lógica institucional, uma política aldeã local e uma política entre
aldeias. A primeira exige da liderança ser um pouco Kamarate, se criar entre yara e trair de
certa maneira os parentes mas dessa vez para justamente defendê-los, usando a “cultura”
como moeda de troca, como instrumento político, que dê eficácia a suas barganhas com yara
ainda que sob o custo da sua legitimidade frente aos parentes.
A política aldeã cria um híbrido entre chefe e liderança que usa do artifício de
mobilização de certos aspectos da identidade do grupo para negociar o bem estar de um
coletivo que se pretende autônomo. Institucionaliza-se territorialidade e fronteira étnica. Por
último, a política entre aldeias transforma a dinâmica sociopolítica, insere a disputa. Assim
que em 2008, a crise política entre varinawa e kamanawa se acirrou em discordâncias, mútuas
acusações e difamação de suas respectivas lideranças. Outras lideranças, sobretudo as ligadas
à AKAC tentam isolar os varinawa afirmando que a reivindicação da área no igarapé Miolo é
uma demanda despropositada e exclusiva dos varinawa. Apesar de frequentemente dizerem
que a princípio só os varinawa vão se mudar, a liderança varinawa sempre apresenta um
contraponto unificador, justificando que a reivindicação é para todos os noke koĩ.
Nesse sentido, a proposta do plano de gestão de revisão dos limites da TI seria uma
iniciativa muito mais conservadora, com maiores chances de manter os aldeamentos do
mesmo tamanho e sob a mesma representação, do que a criação de uma nova terra. Tudo se
360

passa como se a proposta da associação fosse uma proposta para um grupo de contornos
delimitados, para uma unidade étnica centralizada pela figura representativa da AKAC, uma
instância política credenciada para propor gestão territorial, ao passo que a reivinidicação do
Miolo seria orientada por uma lógica política mais horizontal e de fragmentação territorial,
em que vale a lógica da autonomia. Esse descompasso entre o modelo político indigenista
baseado na representação e o modelo noke koĩ horizontal de política cria conflitos internos,
desacordos e críticas às iniciativas moleculares dentro do grupo étnico, e aos modos de se
estabelecer relações com os yara, seja na representação frente a órgãos estatais, seja na
relação com terapeutas e pesquisadores.
É preciso, no entanto, ter claro que o papel representativo e por vezes opressor a que
são impelidas essas lideranças são decorrentes da institucionalização de relações de poder sob
definições alienígenas ao contexto indígena, bem como da imposição de órgãos indigenistas
da absorção de certas formas yara de regimento político. Como vimos, a própria delimitação
étnica em nomes próprios e em espaços territoriais, sob formas cristalizadas de identidade são
consequências de manejo/uso de conceitos de cultura exigidos pelos contextos de aliança com
instituições e parceiros yara. Não se trata simplesmente de corrompimento dos indígenas pelo
contato, antes me parece um foto nítida de uma estratégia política em curso de transformação
dos noke koĩ frente a relações duradouras com o Estado e suas variantes, que compõe uma
série de transformações em diversas esferas nos últimos 120 anos da vida noke koĩ.
As institucionalizações e cristalizações, as concepções de si e fronteiras com os outros
se transformam em “cultura”, com aspas tal como definido por Carneiro da Cunha (2009), um
uso local da noção de cultura em uma lógica interétnica.
A noção de cultura no caso noke koĩ é um agenciamento de conceitos yara que
pontencializa as identidades clânicas, que, por sua vez, se tornam uma maneira de mostrar o
que é um noke koĩ de certo clã ou que eles são índios legítimos, tendo inclusive categorias
antropológicas que os yara esperam encontrar em indígenas de verdade. Isso ressoa na
avaliação que os noke koĩ fizeram do veredicto do juiz na condenação do noke koĩ acusado de
assassinato. Diante do argumento do juiz de que o réu se tratava de um índio aculturado, não
só o preconceito foi sublinhado pelos parentes na carta de pedido de revisão da pena, mas
também o fato de ser do conhecimento de todos que os noke koĩ falam língua própria e
preservam sua cultura.
A comunidade acredita que a declaração do Juiz de Direito que proferiu a sentença
no caso de Sérgio Katukina, o Sr. José Vagner, foi parcial e preconceituoso,
afirmando que “o réu condenado é aculturado, fala português normalmente,
frequenta a cidade, faz uso de dinheiro, recebe benefícios do Estado e tem costumes
no país” (Jornal A Voz do Norte, Sessão de Polícia, Cruzeiro do Sul-Acre, 24 de
361

Marco a 04 e Fevereiro de 2013, pág. 14) sendo que, qualquer pessoa que conheça
minimamente o povo Katukina pode perceber que se mantém fortemente
preservadas sua língua e sua cultura, apesar do histórico brutal do contato com os
não índios desde a época dos seringais e atualmente com a BR 364 cortando nosso
território de uma extremidade à outra. (carta Varinawa anexo S).

Tudo isso não significa no entanto que a afirmação e delimitação étnica e clânica que
os noke koĩ fazem hoje seja uma performance ou coisa para inglês ver. Trata-se antes de uma
inclusão dos yara e seus conceitos e demandas na definição de suas identidades. Essas
reivindicações de reconhecimento clânico, além do mais, têm efeitos sobre eles e suas vidas
cotidianas. Se não por nós, por eles, são levados muito a sério.
Sendo a cultura sem aspas uma lógica interna de uma sociedade, em contraposição à
“cultura” (com aspas) por esta referir-se a uma lógica interétnica232, podemos dizer que no
caso noke koĩ o agenciamento desse conceito, isto é, o seu uso com aspas, expressa uma
lógica de fronteira étnica dentro do próprio grupo; o interétnico aqui é o interclânico.
Isso encontra eco no que a literatura pano vem evidenciando há muitos anos acerca
dos etnônimos e usos do termo nawa.
Como já foi amplamente dito, nawa é indissociável de uma conotação relacional
referida à alteridade. Nawa reúne para muitos grupos pano várias alteridades. Como disse
Lagrou (2007:159), o conceito nawa “é paradigmático para a ambiguidade pano com relação
à definição de fronteiras entre o ‘eu’ e o ‘outro’ ”. Na panologia, diz-se que nawa pode se
referir a uma alteridade radical (animais, inimigos, não indígenas), a outros grupos pano como
parte de seus etnônimos (yawanawa; shanenawa); a outros grupos pano de certa área (os
nawa do Purus) e pode também indicar clãs e seções. Ou seja, refere-se a uma gama
relacional de alteridades diversas, que podem ser outros radicalmente outros; outros de si
mesmo e ainda expressar a identidade de uma parte da própria comunidade.
No caso noke koĩ, como para outros pano também, dois outros conceitos complicam
essa conceituação comum, trata-se de –vo e yara.
Nawa ainda que seja também referente a uma diferenciação interna em diferentes
gradações – outros de si mesmo (outros índios) e outros no interior do próprio grupo
(metades, clãs e seção) – nunca é usado para falar de si, nawa é outro sempre. A auto
identificação nunca usa nawa, usa –vo, um pluralizador233.

232
É preciso termos em mente que essa distinção entre cultura (sem aspas) e “cultura” (com aspas) não pretende
ser nem empírica, nem fenomenológica, antes tem uma natureza analítica.
233
Lagrou aponta que a versão Kaxinawa de –vo, -bu, é usada como um pluralizador para as quatro gerações
alternadas de doadores de nomes que constituem o sistema onomástico: 1) awabu♂ e awabuaubu♀, 2) yawabu♂ e
yawabuainbu♀, 3)dunubu♂ e dunubuainbu♀ e 4) kanabu♂ e kanabuaibu♀.
362

O plural em noke vana é expresso por três artifícios: 1) por quantificador, números de
um a cinco; 2) por termos, ravi, que indica uma dupla, westi, que é 1 ou único, só, oti, que
expressa muitos (otima pouco e otipa muito) e 3) por item afixal (Falchi 2015), –vo, usado
para mais de dois. A especificidade de –vo está em expressar coletividade e ser usado apenas
para pessoas234. Quando ligado a outra palavra indica o plural de sujeitos humanos como nos
casos aĩvomulheres, honivohomens, kamanawavo, noke koĩvo.
Um txirĩti (canção de festa) noke koĩ nomeia todos os clãs e sugere um pertencimento
desses coletivos a um coletivo maior que é o que chamamos de etnia, o noke koĩvo.
noke koĩ, noke koĩ
noke koĩ, kamanawa
kamanawa, kamanawa

noke koĩ, noke koĩ


noke koĩ, waninawa
waninawa, waninawa

noke koĩ, noke koĩ


noke koĩ, satanawa
satanawa, satanawa

noke koĩ, noke koĩ


noke koĩ, nainawa
nainawa, nainawa

noke koĩ, noke koĩ


noke koĩ, nomanawa
nomanawa, nomanawa

noke koĩ, noke koĩ


noke koĩ, varinawa
varinawa, varinawa

Os nomes dos clãs são compostos por nomes de animais (kamaonça, nomajuriti,
satalontra), de planta (wanipupunha) ou elementos da natureza (varisol e naicéu) e a palavra nawa,
indicando assim o povo da onça (kamanawa), o povo do juriti (nomanawa) e assim por diante.
A presença do verso “noke koĩ, noke koĩ” antes da apresentação do clã no verso seguinte
indica, segundo Ni’i, que esse clã compõe os noke koĩ. E assim a canção apresenta todos os
clãs que conformam os noke koĩ. Atualmente essa canção tem sido entoada no violão pelos

234
Segundo Falchi (2015), quando ligado à marcadores de tempo, -vo permite sujeito nulo e, nesse caso podem
aparecer também facultativamente ligado ao verbo.

(Aguiar 1994)

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)


363

jovens num ritmo muito diferente do à capela dos velhos. Além disso, todos os etnônimos
aparecem seguidos de –vo, ainda que já carreguem na sua composição a palavra nawa.

Noke kamanawavo, Noke kamanawavo


Nawavo, Noke kamanawavo

Noke Waninawavo, Noke waninawavo


Nawavo, Noke waninawavo

Noke satanawavo, Noke satanawavo


Nawavo, Noke satanawavo

Noke nainawavo, Noke nainawavo


Nawavo, Noke nainawavo

Noke nomanawavo, Noke nomanawavo


Nawavo, Noke nomanawavo

Noke varinawavo, Noke varinawavo


Nawavo, Noke varinawavo

Ainda que a etnia (noke koĩ) não apareça, o sentido agregador dos clãs está expresso
por essa dupla nawavo e por noke antes do coletivo do clã; noke nainawavo, por exemplo.
Noke é uma palavra que denota gente, nós e nosso. E que por isso se contrapõe a nawa, este
usado exclusivamente para se referir a outro ainda que um outro interno ou de si mesmo.
Ao lado de nawa, outro marcador de fronteira de alteridade é a palavra yara. Em 2009,
em uma conversa com Noya, comentei alguma coisa que se referia aos não indígenas da
cidade usando a palavra nawa. Rapidamente ele, como meu professor, me corrigiu dizendo
que quem fala nawa para não indígenas são os huni kuin, outros índios. Os noke koĩ dizem
yara ou branco. Em 2013 notei que ele usava nawa alternado com yara. Achei que talvez
estivesse traduzindo yara para mim, por pensar que como yara talvez eu pensasse que todos
os pano são iguais, afinal na região é comum ouvir indígenas e não indígenas, sobretudo
pessoas ligadas ao indigenismo, usando o termo nawa como regionalismo. Várias outras
vezes, notei que as lideranças noke koĩ falavam nawa em reuniões com instituições yara, mas
nas conversas na língua na aldeia não se ouvia referência a nawa, falava-se mesmo só yara.
Isso reforçou a minha suspeita sobre uma certa antecipação dos parentes em relação as
homogeneizações dos yara sobre os índios. Em 2015, assumindo que em português se diz
nawa para se referir a yara, usei o termo e fui corrigida por Yaka, tal como Noya havia feito
em 2009, inclusive usando o mesmo argumento. Como regionalismo e/ou língua de contato
interétnico (usada apenas em situações de contato, quer com outros pano ou com os yara)
pairava a dúvida sobre a natureza da incorporação do termo pelos noke koĩ frente uso corrente
de yara. Uma reunião na escola, no entanto, mostrou que o palpite de consequência de uma
364

tentativa homogeinização provocada pelo contato talvez fosse uma pista. Ao fim da reunião, a
liderança geral disse “Haux haux”, provocando a curiosidade por saber porque usar uma
expressão marcadamente conhecida como dos huni kuin. A resposta que obtive da liderança
foi que haux haux não é do huni kuin, é pano. Os parentes não endossaram a explicação, mas
também não negaram. O indigenismo desempenha um importante papel como agente
homogeneizador na região e elaborador de uma ideologia de índio acreano. A histórica
supressão das diferenças culturais entre os grupos a um projeto de índio acreano é explícita
nas políticas públicas do governo do estado. Uma série de mecanismos políticos projeta uma
imagem unívoca dos grupos da região, que convém lembrar são pano, arawá e aruak. A
imposição de lideranças representativas pelas instituições yara é emblemática dessa tentativa
de homogeneização cultural dos grupos e se reflete nos discursos das lideranças que,
diferentemente das falas nas aldeias, usam livremente os termos de outros grupos como língua
indígena genérica.
O agenciamento de aspectos culturais numa virada retradicionalizante em relações de
fronteira étnica podem ser notados também na relação com os vizinhos extrativistas e
assentados. Antes, conta-se, que esses yara conviviam com os noke koĩ quando todos eram
seringueiros. Hoje eles não sabem mais como os índios vivem e têm medo das aldeias e dos
indígenas. As duas novas gerações estão vivendo a relação de 120 anos atrás de
estranhamento, inclusive sobre as mesmas bases ideológicas – para os extrativistas e
assentados, os índios são um povo sem lei, sem deus e atrasado, e para os indígenas, os yara
são sovinas e violentos. Esse reavivamento de uma relação tensa de contato se associa
diretamente à estratégia de agenciamento da “cultura” de ambos, dos seringueiros, que antes
“contaminados” pela cultura indígena, hoje são uma identidade tradicional à parte, e dos
indígenas, que antes amansados, “aculturados” pela cultura do yara, hoje reivindicam um
modo tradicional de vida.

Fronteira identitária e noção de cultura: delimitação e diluição

Esses processos complexos de marcação de fronteira identitária, como vimos, se


estendem das relações interétnicas para dentro grupo e se tornam, ao lado do uso da noção de
cultura, um sintoma da especificidade noke koĩ frente às políticas públicas. Poderíamos dizer
que é uma processo de retradicionalização que exige uma suposta destradicionalização da
figura de chefe para garantir a tradição. Um novo tipo de chefe surge suprindo a deficiência
365

da posição do chefe de grupos domésticos por ser periférico, tomando para si as atribuições
deste em nome da luta pela “cultura” de seu povo.
Um sinal de que, apesar da consonância com a ideologia indigenista, suas posturas e
decisões são tão devedoras das relações de contato com o yara quanto das relações que tem no
interior do grupo. Se o uso da noção de cultura (“cultura”) serve à lógica interétnica, o uso
dos conceitos de fronteira identitária serve à cultura (sem aspas), isto é, à lógica interna das
relações políticas.
É bom lembrar que o conflito, a violência e a desconfiança entre noke koĩ e yara só
foram freados no encontro com o Toshpiya que, ensinando português e se entregando de certa
maneira ao parentesco ao casar com várias mulheres e criar filhos noke koĩ, deu início a uma
sucessão de mediadores entre indígenas e yara.
Diante disso, ao criar, essa “linhagem”, criou-se também um grupo. Os noke koĩ
contam que antes de trabalhar na seringa, os clãs estavam dispersos e que Toshpiya e a oferta
de pacificação e trabalho uniu os clãs. É negociando unidade étnica e concentração de poder
por parentesco (casar-se com quatro noke koĩ e criar um filho noke koĩ) que Toshpiya cria
uma unidade noke koĩ, que por ser provisória requer sua constante reinvenção.

Práticas opressoras e de valentia e deslocamentos

Kamanawa, satanawa, varianawa, waninawa e numanawa, com contornos bem


defindos, passam a representar grupos e interesses, além, é claro, de conferir certo aspecto
étnico à política sob a forma estatal. Evidentemente quem controla as questões políticas de
cunho interétnico são as lideranças e, no caso da TI Campinas o agravante é a concentração
desse controle no monopólio de um clã. A associação – instância privilegiada de negociação
com yara, sobretudo para recursos materiais – reifica as fronteiras de identidade étnica e
impõe a representação que passa, nesse contexto de reivindicações de identidade clânica a ser
representação dos grupos étnicos. Assim, a associação dos Katukina do Campinas (AKAC)
que é composta exclusivamente por homens kamanawa e filhos de uma kamanawa com um
yawanawa, tem a sua legitimidade discutida pelas pessoas comuns e a atuação política dos
kamanawa é sempre vista com desconfiança. Além da legitimidade, também a autoridade da
AKAC e dos kamanawa é questionada e isso se deve em grande parte por não corresponder às
expectativas que os noke koĩ têm dos chefes, uma vez que se trata de um modelo
representativo e alienígena aos conceitos políticos noke koĩ.
366

Não só a concentração de poder e a ausência de gerencia de questões de grupos


domésticos (organizar caçadas, festas, abertura de roçados) por dedicação a assuntos
interétnicos que prejudicam a legitimidade das lideranças. A violência e a avareza são outros
dois aspectos de peso e muito usados pelos noke koĩ para questionar as lideranças.
Como visto, essas lideranças fruto do contato às vezes encarnam o papel do
personagem histórico, o Kamarate235. A atualização dessa narrativa é apontada várias vezes
como o chefe, que sendo criado no mundo do yara, tende a trair seus parentes. As lideranças –
em geral quase todas as que são kamanawa – são identificadas a Kamarate e tratadas com
desconfiança e deslegitimidade. Mas a atualização do Kamarate se renova na figura da
liderança.
Uma liderança que centraliza as decisões e concentra recursos e valentia é vista como
ameaçadora e um risco a saúde e bem estar dos parentes, como já vimos, uma espécie de
parente em desaparentamento, em devir inimigo. E nesses casos, o remédio é sempre a
evitação do conflito em lugar de uma postura guerreira enfrentadora e belicosa236.
As relações políticas masculinas, tanto do chefe quanto do pajé, nas concepções noke
koĩ da dimensão política, não estão baseadas em agressividade e opressão, antes trata-se de
posições frágeis e instáveis. As qualidades exigidas para desempenhar cada um desses papéis
não é suficiente para garantir o poder. As chefias e também o prestígio do pajé são
permanentemente questionados e assim a atualização dessas qualidades exigidas, isto é, o
próprio exercício do poder, não garante sua conservação. Apesar de ser parte do papel do
chefe e portanto do seu exercício de poder, a palavra do chefe é frequentemente desobedecida,
mas isso não significa que ela não tenha importância, significa apenas que não é impositiva. A
virtualidade do que é dito pelo chefe se contrasta em generosidade com o discurso por
exemplo do patrão seringalista, que tendo seu poder fundado na coerção e na violência, é
sempre um sovina em potencial. A palavra do pajé, por outro lado, quando não é secreta, é
enigmática e não se dirige à comunidade. Ainda assim sua recusa a atender um chamado pode

235
Como vimos, conta-se que no tempo das correrias um parente noke koĩ aliou-se aos caucheiros. Ajudando-os
a localizar as malocas indígenas, inclusive dos próprios parentes, Kamarate chegou a participar das matanças de
seus parentes noke koĩ. Com o fim das perseguições a aliança de Kamarate com os caucheiros chega ao fim e ele
tenta voltar para seus parentes. Os noke koĩ desconfiados da legitimidade do seu arrependimento mas com medo
de que ele os matassem caso recusassem seu retorno, aceitaram que ele ficasse entre eles. No entanto o medo da
valentia de Kamarate era constante e por isso decidiram matá-lo.
236
Para Góes (2009) o ethos de não violência em um contexto de extrema debilidade social pela pequena
concentração populacional causada pelas doenças de yara e pelas constantes fugas nos tempos das correias
parece ter sido uma estratégia circunstancial. Para mim, me parece mais que isso, pois se conecta a outros
aspectos da vida, como a construção do corpo e da socialidade, além de ser o princípio fundacional da dimensão
política dos noke koĩ como veremos a seguir.
367

resultar em acusações de sovinice e no limite de feitiçaria, afinal poderia estar se recusando a


curar por ser o feiticeiro por trás da doença.
Sobre essa fragilidade do poder político indígena, Clastres (2003) afirma que o fato da
política nessas sociedades não estar estabelecida com base em razões econômicas (troca) mas
numa recusa à coerção é o que justifica a vulnerabilidade do poder. Entre os noke koĩ as
qualidades exigidas para o desempenho das funções políticas servem justamente para evitar a
violência e essa coerção, de que fala Clastres, na relação política. Isso de modo que a
fragilidade desse poder é própria, senão estrutural, das relações políticas noke koĩ, que sejam
elas cósmicas ou sociais.
Assim que quando um chefe ou um pajé revela traços de valentia ele perde prestígio e
poder, afinal o exercício do seu poder está, entre outros aspectos, em ser pacífico, deixando de
sê-lo deixa também de ser reconhecido como chefe e muitas vezes tem como consequência a
dispersão do grupo. A valentia de um chefe ou de um pajé traz a desconfiança quanto a sua
capacidade de exercer o poder e de estabelecer relações políticas do tipo noke koĩ. A
agressividade é um aspecto de kamã, não é um atributo de chefe nem de pajé noke koĩ.
A concentração do poder político de chefe e pajé correria o risco de resultar em
concentração de poder político em uma só pessoa caso não houvessem mecanismos de
desestabilizar o exercício desses poderes. Nesse sentido, as acusações de feitiçaria e sovinice
corroboram o propósito estruturante da dimensão política noke koĩ: afastam a opressão, a
violência e a concentração de poder do horizonte das relações políticas. Ao desprestigiar um
chefe que detém qualidades e habilidades de duas figuras políticas (chefe e pajé) ele perde
eficácia política. Acusar um chefe de valente e sovina são formas muito comuns de
deslegitima-lo. Alguém muito valente é visto como um perigo não só físico a comunidade,
mas sobretudo à sobrevivência da comunidade enquanto noke koĩ. É o caso já citado do
Kamarate que se deixou afetar pela valentia dos caucheiros peruanos e por isso mesmo depois
de arrependido foi morto pelos próprios parentes, afinal sua valentia e ruptura com a
sociedade e com as qualidades noke koĩ fizeram dele uma ameaça. Entre outras versões,
conta-se que o fim da relação dos noke koĩ com Toshpiya está relacionada a sua valentia.
Tornando-se violento, Toshpiya teria tido o mesmo destino de Kamarate: uma eliminação
violenta, mas definitiva. Toshpiya, segundo conta alguns, teria sido alvo fatal de feitiço de um
pajé noke koĩ. Outros casos de patrões seringalistas considerados cruéis e violentos tinham
soluções menos drásticas, o grupo se dispersava e o seringal era abandonado. A importância
econômica cedia lugar à recusa a concentração de poder pela recusa à violencia. A opção dos
noke koĩ por não retribuir em vingança as mortes por feitiçaria e a violência dos patrões
368

revela uma notável recusa a belicosidade que se expressa na opção por deslocar-se. Aqui a
mobilidade serve como meio de expressão política da recusa a opressão e a violência
(sociopolítica e cosmopolítica).
A separação entre as figuras do chefe e do pajé como resultado de uma certa
incompatibilidade no exercício de cada uma das funções, é apontada por Erikson (1986)
justamente porque toma o chefe pano como um chefe guerreiro. Ele afirma que a
incompatibilidade de atividades impede a sobreposição de funções: enquanto o pajé precisa
dormir para sonhar, o chefe precisa estar em vigília antes da guerra. Mas no caso noke koĩ
essa incompatibilidade perde sentido, em primeiro lugar, porque não há uma valorização de
atributos guerreiros, as guerras e conflitos são retratados com pesar e não com honra e
orgulho. O atributo valorizado num chefe é o da pacificidade e da mediação. A força de chefe
não significa valentia, nem guerreira nem de outro tipo, o que não significa que ele seja um
covarde, a sua força de chefe no entanto está na pacificação, na mediação e na atenuações dos
conflitos sociopolíticos. Aqui a aproximação entre chefe e pajé nada tem a ver com a
violência, mas com o tipo de interlocução (cf. Viveiros de Castro 2008). A recusa à
belicosidade e ao conflito em favor da mediação e atenuação das agressões sociopolíticas
ecoa na recusa a feitiçaria na dimensão cósmica.
Tal como a recusa a violência física há uma recusa a violência sobrenatural. As
pessoas temem pajés conhecidos como capazes de feitiçaria e esse temor não revela de forma
alguma mais respeito, pelo contrário, pessoas em geral acusadas de feitiçaria perdem o
prestígio e são vistas como valentes e perigosas. Não só pajés são capazes de agressões
sobrenaturais. Como já foi dito o conhecimento xamânico não está concentrado nas mãos dos
especialistas, antes encontra-se disseminado e entre as técnicas de agressão, algumas podem
ser ensinadas. É o caso por exemplo dos envenenamentos, de modo que não se precisa ser
grande pajé para executa-las. As rezas e os feitiços no entanto exigem algum conhecimento
mais especializado e por isso as acusações quanto a esses tipos de agressões só ocorrem para
chefes pajés e pajés (shoitiya e romeya). A sobreposição das funções de chefe e de pajé
portanto contam ainda com mais essa desestabilização potencial do seu poder político. A
valentia do plano sociopolítico ganha contornos espirituais no plano cosmopolítico onde o
chefe pajé tem, por sua qualidade pajé, certa transitoriedade. Assim que o poder do chefe pajé
pode ser destituído por uma dupla via por sovinice e por acusações de valentia sociopolítica e
cosmopolítica – violência e feitiçaria. Se a princípio o acúmulo das funções parece um
privilégio e uma concentração de poder, logo a estrutura do poder político noke koĩ revela seu
princípio maior de recusa a essa concentração por meio dessas potenciais acusações.
369

A opção dos noke koĩ por não retribuir em vingança as mortes por feitiçaria e a
violência dos patrões revela uma notável recusa a belicosidade que se expressa na opção por
deslocar-se. Aqui a mobilidade serve como meio de expressão política da recusa a
agressividades; a opressão e a violência (sociopolítica e cosmopolítica).
Diante da autoridade excessiva, o artifício recorrente é a dispersão. Esta idéia é a base
da evitação do confronto guerreiro dos noke koĩ que se mudavam frequentemente de seringal,
fugindo das arbitrariedades e violência dos patrões da seringa. A dispersão é uma tendência
de múltipla influência e entre elas está a ilegitimidade de atitudes agressivas237.
É nesse contexto de definições dos limites da ação política que o confronto entre as
unidades internas e a forte concentração e hieraquização das decisões coletivas entre as
lideranças da TI Campinas culminam na inversão recente do sentido do fluxo de
deslocamento de uma TI para outra e na reivindicação do Miolo, como estratégias de
contornar as valentias, as forças opressivas e as mortes por feitiçaria.

237
Para Góes (2009), a ilegitimidade da coerção expressa uma horizontalidade assimétrica, cujo principal
aspecto não é o igualitarismo, mas uma abertura que impede a institucionalização de relações coercitivas.
371

CONCLUSÃO – REPRODUÇÃO E TRANSFORMAÇÃO: A MOBILIDADE NOKE


KOĨ E SUA POTÊNCIA TRANSFORMACIONAL

Se em dezembro de 2013 as minhas primeiras impressões sobre a TI


Campinas/Katukina eram de que as ações do governo apresentavam um sério risco de
transformar os noke koĩ em miseráveis, com o tempo o panorama de insegurança alimentar,
violência latente e mudanças radicais foi revelando outras dimensões. Em lugar de perda da
coesão interna, de aculturação e desintegração, os noke koĩ mostravam estruturas em
transformação.
O contexto político que se desenrolou no meu último ano em campo mostrou a
atualização de processos e estratégias próprios da reprodução noke koĩ do seu modo de vida.
A pesquisa desenvolvida nessa tese resultou em perceber uma dinâmica de
transformação própria aos noke koĩ (mas não exclusiva a eles) em que a relação entre a
transformação histórica e a transformação estrutural é mutuamente constitutiva.
As casas do PNHR e a postura dos noke koĩ em modificá-las e abandoná-las
mostraram a atualização de uma potência de alteração dos eventos históricos em que a
estrutura do sistema próprio dos noke koĩ se efetiva e se transforma paralelamente às
mudanças que esses eventos trazem. Como outras coisas do mundo yara, o desejo e atração
dos noke koĩ pelas casas do governo apontou não para uma objetivação dos valores yara, em
termos yara, mas para a própria capacidade das casas de ser foco da atualização de uma
potência de alteração.
O que quero dizer é que a etnografia mostrou que as casas do PNHR não são parelalas
e justapostas às casas de antes, como a mesma coisa, isto é, não se trata de um elemento
tradicional travestido de novidade, mas de uma novidade tomada com a mesma simetria de
abordagem que daríamos ao tradicional. Uma vez trazidas pelos noke koĩ para dentro de seus
sistemas, as casas do governo não se mantêm como um elemento externo e estrangeiro, ao
contrário se tornam parte do interior da sociocosmologia noke koĩ.
Nesse sentido é importante chamar atenção que essa apropriação dos noke koĩ das
casas do governo não são respostas adaptativas, mas resultado de processos noke koĩ de
reprodução de estruturas transformativas.
Os eventos catalizadores dessa tese mostraram que os noke koĩ não lutam contra a
mudança, não a vêem como um obstáculo. A mudança não significa para eles anomia, perda
372

ou desagregação. Pelo contrário como vimos ao longo dessa tese, eles estão empenhados em
transformar as novidades históricas e essas transformações para os noke koĩ são muitas vezes
orientadas pelo movimento que é, em vários sentidos a própria mudança, que, por definição, é
carregada de potência transformadora.
A maneira como os noke koĩ encaram as mudanças históricas impostas pela relação de
contato com o estado e as potências perigosas de tornar-se yara estão longe de serem formas
de resistência baseadas em continuidade frente a mudanças. Os noke koĩ parecem pelo
contrário efetivar pelo menos duas estratégias de reprodução e transformação: a atualização
de um modo transformacional de autorreprodução – que se dá por exemplo, na reprodução da
mobilidade –; e na objetivação da sua própria cultura como moeda de negociação e mediação
interétnica.
O que essa tese tentou demonstrar foi que além de sobreviventes do contato, os noke
koĩ fazem mais do que dar continuidade a uma tradição estanque ou meramente a sua
existência física, em lugar disso, eles têm conseguido incorporar (inclusive literalmente em
seus corpos) a ordem resultante do contato em seu próprio mundo através de processos de
transformação que, antes de serem estratégias novas, são o modo próprio de se reproduzirem a
si mesmos e o seu mundo.

Algumas considerações pontuais

No capítulo um, vimos que a relação dos noke koĩ com o empreendimento
habitacional do governo aponta para uma transformação relacional enquanto efeito da relação
com o estado e que os noke koĩ se transformam nessa relação mantendo, apesar da estrada,
das políticas públicas de fixação e da diminuição de seu território, estratégias de evitação para
não se tornarem sovinas, violentos e nem se desaparentarem entre si.
As mudanças estruturais são na verdade transformações estruturais que ocorrem desde
muito antes mesmo do contato com as diversas variantes do estado. A peculiaridade noke koĩ
na estratégia de trabalho na seringa, por exemplo, reproduzindo uma mobilidade transformada
mas sempre praticada, interfiriu, como vimos, no modo como se deu a novidade histórica da
presença não-indígena, tendo consequências importantes para a ocupação territorial dos noke
koĩ dada a instalação dos seringais. A maneira como a mobilidade dos noke koĩ se
transformou desde a invasão yara é consequência da reprodução ininterrupta dessa prática ao
longo desses anos, uma reprodução da estrutura que é a própria transformação.
373

O capítulo 1 abordou a correlação entre casa e mobilidade e podemos verificar que


essa relação indica que as formas de moradia ao longo da história e os padrões noke koĩ de
deslocamento sofreram e promoveram a transformação um no outro simultaneamente. Isso se
dá, como vimos, de maneira que ainda que não extamente como antes (e justamente como
sempre foi, isto é, se transformando) que a mobilidade foi atualizada pelos noke koĩ, quer
diante da instalação de seringais e seu modo de viver e morar, quer diante dos projetos
habitacionais do presente. Não obstante essas e outras oportunidades de se assentarem
definitivamente, a mobilidade foi mantida pelos noke koĩ, e para isso foi preciso que eles
atualizassem outras estruturas.
A organização social e territorial dos noke koĩ se caracteriza através do tempo pela
mobilidade. Como vimos na segunda parte do capítulo 1, a rede de relações sociais e suas
dinâmicas implicadas na composição da aldeia, dos grupos domésticos e das casas estão
profundamente marcadas pelo princípio da mobilidade.
Nesse capítulo1, tentei demonstrar como todo um universo conceitual noke koĩ ao
redor da casa pode prover esclarecimentos acerca de pelo menos quatro aspectos importantes
que permeia toda essa tese: as conectividades (relatedness), os corpos, o espaço físico e a
mobilidade. Os deslocamentos estão diretamente relacionados às concepções noke koĩ de
conectividade e são, aliás, a razão mesma de se aceitar esse termo (relatedness ou
conectividade) como melhor definidor das relações de aparentamento. É no espaço das casas
que se constrói corpos de parente e nesse sentido a mobilidade contribui com a manutenção
dessas relações entre todos os noke koĩ. O espaço incluindo as casas e a organização social
incluindo os corpos têm implicações mútuas. Fazem parte de um mesmo universo conceitual,
tal como afirmou Carsten (1995).
A mudança no padrão arquitetônico das casas alterou o panorama da organização
espacial. Apesar dessas mudanças no entanto aspectos sociais presentes nas antigas malocas
são trazidos a ordenação espacial do grupo doméstico, que também sofre transformações, mas
força a inovação histórica a também se transformar.
O manejo noke koĩ do parentesco, frisando ora o grupo, ora a aliança, impulsiona o
princípio de mobilidade de oscilação entre assentamento e deslocamento, fazendo com que o
parentesco seja marcado (e em certo sentido definido) por essa mobilidade. Se por um lado os
deslocamentos desfazem parentesco com os que ficam para trás, fragilizando laços de
comensalidade e cooperação fundamentais para a conformação de corpos de parente, de outro,
são justamente os deslocamentos que permitem que parentes dispersos e distantes não deixem
374

de ser parente. A mobilidade se mostra portanto consequência e efeito das relações de


parentesco.
Como vimos, ainda que o aldeamento hoje seja reconhecido pelos parentes como um
valor territorial a existência dessa forma de organização espacial não impede que as aldeias
sejam abandonadas ou multiplicadas. A transformação atual do padrão de moradia se dá como
vimos num contexto de política interétnica que exige dos noke koĩ articular estratégias
políticas que simultaneamente impediriam efeitos negativos de afecções yara em seu modo de
vida e permitiram a efetivação de seus próprios interesses. A mobilidade então aparece aí
como agente dessa estratégia, adequando princípios que antes os faziam abandonar as
malocas, roçados e relações de conflito, e que agora os permitem abrir mão de casas, aldeias e
representatividade na política interétnica em busca da contra efetivação de afecções sovinas e
violentas.
O capítulo 2 se foca na estrutura noke koĩ de território e mobilidade. É a partir das
concepções noke koĩ de território, subistência e descontinuidades entre espaços e seres que
tento iluminar aspectos importantes da concepção noke koĩ de mobilidade. Nesse capítulo
vimos como através de categorias noke koĩ de descontinuidades do espaço e dos seres se dá a
articulação desse grupo entre mobilidade, subsistência e território.
Vimos que o movimento se relaciona tanto aos roçados quanto à caça e à coleta. Mais
que uma estratégia de subsistência, vimos que a mobilidade é parte da relação com os roçados
e com as atividades de coleta e que as relações com os cultivares, com a mata e com as
plantas (cultivadas e não cultivadas) definem para os noke koĩ o território.
Nesse capítulo vimos que a mobilidade para os noke koĩ não se conecta à subsistência
nem pela sazonalidade da presença de espécies, nem pela agricultura.
O território, como os noke koĩ o concebe, inclui na sua definição a mobilidade. E
nessa condição as plantas de subsistência extrapolam a agricultura e incluem as plantas não
cultivadas, que por sua vez também inclui o movimento, pelas mudanças constantes de espaço
como técnica e como consequência. Vimos que, portanto, a relação entre as plantas
comestíveis não-cultivadas e a mobilidade tem para os noke koĩ consequências para além da
importância da mobilidade e da circulação territorial na biodiversidade das florestas.
Concluímos que se por um lado a mobilidade noke koĩ não parece incompatível com a
agricultura, por outro, a coleta não é contraditória ao sedentarismo. O que a etnografia revelou
é que os noke koĩ valorizam a vida semi-sedentária com possibilidade de mobilidade, prezam
pelo roçado e apreciam as plantas da mata. Para eles, mobilidade e agricultura, coleta e
sedentarismo não são excludentes nem opostos.
375

Quanto a descontinuidade do espaço, vimos que a forma de nominar um lugar é um


índice de outras relações, pois revela uma prevalência da ação e da relação sobre os nomes, e
que isso tem implicação na ideia das fronteiras de um território, que são para os noke koĩ
móveis e dadas em conformidade com uma rede de caminhos de movimento e de relações que
não são fixas nem permanentes.
Dando continuidade ao tema do capítulo 2, o capítulo 3 tenta esboçar uma concepção
noke koĩ de território. Analisando os deslocamentos transregionais entre aldeias, terras
indígenas e o espaço urbano tentei delinear padrões de deslocamento e de assentamento e
descrever como se dão as dispersões e as retrações. Por meio disso, pude confirmar que
“território” e “deslocamento” não são categorias excludentes do ponto de vista noke koĩ, pelo
contrário fazem parte do ser noke koĩ. E com isso chegamos a conclusão de que o território
para os noke koĩ não é um local definido geograficamente, mas um lugar onde se possa viver
segundo preceitos éticos para a vida noke koĩ. O lugar ideal inclui na sua definição a mudança
em vários sentidos, de deslocamento territorial e de transformação. A mobilidade aparece
simultaneamente como parte da definição de território e parte do que é ser noke koĩ, e nesse
sentido se revela como condição para uma vida propriamente noke koĩ.
Os fluxos de deslocamento dos noke koĩ se mostram atados à cosmologia espacial
noke koĩ e tendo isso em vista busquei notar as transformações no modo de vida e na
mobilidade enquanto estratégia política dos noke koĩ. Se no passado a mobilidade era uma
prática decorrente do próprio modelo de assentamento, hoje essa mobilidade se mantém como
uma válvula de escape ao sedentarismo, à centralização de poder e às afecções perigosas.
Tanto os deslocamentos da TI Rio Gregório à TI Campinas quanto as novas ondas de
deslocamento mostram semelhanças com o padrão tradicional de deslocamento mas, mais que
isso, são sobretudo uma transformação desse padrão de sedentarismo que entre outros
aspectos inclui evidentemente maior dependência da agricultura e do mundo yara. A
reprodução da estrutura de mobilidade exige nesse contexto que os noke koĩ negociem suas
definições com a ideia de fronteiras territoriais e terras oficiais num processo de
transformação dessa estrutura.
O último capítulo retoma a nota etnográfica quanto ao evento da morte de uma
importante liderança, que tem como consequência a atualização da mobilidade pela circulação
entre TIs e por uma reivindicação territorial. Com isso, vimos que num contexto de
enrijecimento político e centralização das decisões, motivações aparentemente idênticas a de
outros deslocamentos do passado são trazidas à tona e sofrem transformações. Vimos que esse
evento disparou a atualização da mobilidade de outros tempos, que ao se reproduzir se
376

transformou. Sob a consciência de que “antigamente não é mais hoje” a atualização dessa
estrutura lida com um contexto de retomada das pajelanças, de forte objetivação da própria
cultura e de inovação do contexto político em formas tidas como perigosas.
A disputa pela legitimidade da reivindicação territorial e da circulação entre territórios
exige dos noke koĩ estratégias para contornar essas condições. O que verificamos nesse
capítulo é que justamente a estrutura e a sua transformação é que são acionadas como recurso
para se desviar do poder coercitivo e das afecções violentas de feitiçaria. Assim, frente a
questões sócio e cosmopolíticas, a mobilidade e a objetivação de aspectos da sua cultura
(como fronteiras étnicas e conhecimentos xamânicos) atualizam e transformam as concepções
noke koĩ de política, e criam estratégias de contornar as transformações perigosas, as valentias
e as forças coercitivas.
O fato de hoje não ser mais antigamente não significa que houveram apenas mudanças
profundas e nocivas com perdas culturais e desgaste de vínculos tradicionais. Antes essa
expressão aponta para um importnte aspecto da reprodução da estrutura que é o de sempre se
transformar. O modo de ocupação das casas do governo, a relação com a estrada, com as
novas formas políticas e os recentes deslocamentos entre TIs e reivindicação territorial
mostram que a estrutura tradicional interfere nas novidades históricas ao mesmo tempo que se
modifica. Nesse sentido, a mobilidade entre os noke koĩ tem se mostrado uma constante à
prova da história, funcionando como uma estratégia política de negociação e posicionamento
e de fuga às ferocidades latentes.
377

REFERÊNCIAS

ACRE, Governo do Estado.


2008. Atlas do Estado do Acre / Governo do Estado do Acre. Rio Branco: FUNTAC,
Fundação de Tecnologia do Estado do Acre.

2012. Assessoria Especial De Assuntos Indígenas do Gabinete do Governador Situação dos


Povos e Terras Indígenas no Estado do Acre.

AGÊNCIA AC.
2012. Projeto de habitação Indígena vai construir mais de 180 casas no Acre. Notícias do
Acre. 21 jun. 2012. Disponível em <http://www.agencia.ac.gov.br/noticias/acre/projeto-de-
habitacao-indigena-vai-construir-mais-de-180-casas-no-acre> Acesso em: 21 ago. 2012.

AGUIAR, Maria Sueli.


1987. Os clãs dos índios Katukina. Cadernos de Estudos Linguísticos, 12, pp. 45-48.

1988. Elementos de descrição sintática para uma gramática do Katukina. Dissertação


(Mestrado em Linguística)-Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas.
Disponível em: <http://cutter.unicamp.br/ document/?code=000036522>

1993. Aspectos morfológicos do Katukina-Pano. In: Seminário do Gel, 41. Ribeirão Preto:
[s.n.], p. 151-158.
Disponível em: <http://www.gel.org.br/arquivo/anais/1308074186_19.aguiar_maria.pdf>.

1994. Analise descritiva e teórica do Katukina-Pano. Tese de Doutorado - Instituto de Estudos


da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas.

ALBERT, Bruce.
2000. Associações indígenas e desenvolvimento sustentável na Amazônia brasileira, in Povos
Indígenas no Brasil 1996-2000. São Paulo: ISA.

2002. O ouro canibal e a queda do céu: uma crítica xamânica da economia política da
natureza (Yanomami). In: ALBERT, Bruce; RAMOS, Alcida Rita. Pacificando o branco:
cosmologias do contato no norte-amazônico. São Paulo: UNESP, 2002. p.239-274.

ALBERT, Bruce; RAMOS, Alcida Rita.


2002. Pacificando o branco: cosmologias do contato no norte-amazônico. São Paulo: UNESP.

ALEXIADES, Miguel N., (Ed.)


2009. Mobility and Migration in Indigenous Amazonia: Contemporary Ethnoecological
Perspectives. NED - New edition, 1 ed., Berghahn Books.

ALMEIDA, Mauro W.
1993. A Criação da Reserva Extrativista do Alto Juruá: Conflitos e Alternativas para
Conservação. Manuscrito, disponível em: <https://mwba.files.wordpress.com/2010/06/1993-
378

almeida-a-criacao-da-reserva-extrativista-do-alto-jurua-fao-em-portugues.pdf> acessado em
04/03/2017

2012. As colocações como forma social: sistema tecnológico e unidade de recursos naturais.
Mediações, Londrina, v.17 (1), p. 121-152.

ANDRADE, R.; BECKER, S.


2013. E a chaminé? Relatos etnográficos sobre políticas públicas e a terra indígena (ti) de
Panambizinho. Espaço Ameríndio: UFRGS, v. 7, p. 172-204.

ANP, Agência Nacional de Petróleo.


2013. Mapa dos Blocos da Bacia do Acre/Madre de Dios. Disponível em
<http://crjurua.blogspot.com.br/2013/09/mapa-dos-blocos-anp-bacia-do-acremadre.html>
acesso em: 05/03/2017.

AQUINO, Terri Vale de.


1985. A imemorialidade da área e a situação atual do povo Poianáua. Rio Branco: CPI/AC.

ARHEM, Kaj.
2001. From longhouse to village: structure and change in the Colombian Amazon in: Rival, L.
e Whitehead, N. (orgs.). Beyond the visible and the material. Oxford: Oxford University
Press, pp. 123-55.

ARISI, Barbara.
2007. Matis e Korubo: contato e índios isolados no Vale do Javari, Amazônia. Dissertação
(mestrado). Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina.

2011. A dádiva, a sovinice e a beleza [tese]: economia da Cultura Matis, Vale do Javari,
Amazônia. Tese (doutorado) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina.

AVELINO de CASTRO, Damiana.


2013. Wesiti Noke koĩ – Brincadeiras noke koĩ: Arte, Expressão e Conhecimento. TCC,
UFAC: Cruzeiro do Sul.

BACHELARD, Gaston.
1978. A Poética do Espaço. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural.

BALÉE, William.
1988. Indigenous Adaptation to Amazonian Palm Forests. Principles, v. 32, n. 2, p. 47-54.

1989. Nomenclatural patterns in Ka' apor ethnobotany. Journal of Ethnobiology, 9(1): 1-24.

1992. People of the fallow: a historical ecology of foraging in lowland South America. In:
REDFORD, K. H.; PADOCH, C. (Eds.). Conservation of neotropical forests: working from
traditional resource use. New York: Columbia University Press. p. 35-57.

1993. Indigenous Transformation of Amazonian Forests : An Example from Maranhão,


Brazil. In: L'Homme, tome 33 n°126-128. La remontée de l'Amazone. pp. 231-254.
379

1994. Footprints of the Forest: Ka’apor ethnobotany- the historical ecology of plant utilization
by Amazonian People. Columbia Univ.Press, New York.

2006. The research program of historical ecology. Annual Review of Anthropology. Vol. 35,
pp5.1-5.24.

BALÉE, William (Ed.).


1998. Advances in Historical Ecology. New York: Columbia Univ. Press.

BERLIN, Brent; BREEDLOVE, Dennis; RAVEN, Peter


1973. General principles of classification and nomenclature in folk biology. American
Anthropologist, 75, 214-242.

BERTRAND-RICOVERI, P.
1996. Un aspecto de la dialéctica masculino-feminino en la mitología shipibo.
Anthropologica, Vol. 14, Nº. 14, págs. 81-103.

BODENHORN, Barbara.
2000. He used to be my relative: exploring the bases of relatedness. In: Carsten, Janet (ed.)
Cultures of Relatedness: New Approaches to the Study of Kinship.

BOURDIEU, Pierre.
2002 [1970]. A casa ou o mundo invertido. In: CORRÊA, Mariza (org). Ensaios sobre a África
do Norte. Textos Didáticos, n. 46. Campinas. IFCH/UNICAMP, pp. 89-112.

CABRAL de OLIVEIRA, Joana.


2012. Entre plantas e palavras. Modos de constituição de saberes entre os Wajãpi (AP). Tese
(Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo.

CAIUBY NOVAES, Sylvia.


1983. As Casas na organização social do espaço Bororo. In: Habitações Indígenas. Editora
Nobel e EDUSP. São Paulo, pp. 57-76.

CAIUBY NOVAES, Sylvia (org).


1983. Habitações Indígenas. São Paulo: Nobel/ Ed. da Universidade de São Paulo.

CALAVIA SAEZ, Oscar.

2000. O inca pano: mito, história e modelos etnológicos. Mana, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p.
07-35.

2002. "Nawa, Inawa". Ilha, 4(1):35-57, Florianópolis.

2004. Mapas Carnales. El territorio y la sociedad Yaminawa. In Surrallès, Alexandre &


Garcia Hierro, Pedro: Tierra adentro. Territorio indígena y percepción del entorno.
Copenhague: IWGIA. pp. 121-135.

2006a. O Nome e o Tempo Yaminawa: etnologia e história dos Yaminawa do rio Acre. São
Paulo: Editora UNESP / ISA; Rio de Janeiro: NUTI. 479 pp.
380

2015. O território, visto por outros olhos. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 58, n. 1, p.
257-284.

2006b. Autobiografia e sujeito histórico indígena: considerações preliminares. Novos estud. -


CEBRAP, São Paulo , n. 76, p. 179-195.

CALAVIA SÁEZ, Oscar; CARID NAVIERA, Miguel; PÉREZ GIL, Laura.


2003. O saber é estranho e amargo: sociologia e mitologia do conhecimento entre os
Yaminawa. Campos, 4: 9-28.

CARID NAVEIRA, Miguel.


1999. Yawanawa : da guerra a festa. Dissertação de Mestrado Florianópolis : UFSC.

2007. Yama yama: os sons da memória. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em


Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.

CARIGNANI, Gisele; AZEREDO, Jaucele; FERREIRA, Andréa.


2007. Permanência ou alteração dos processos construtivos das habitações indígenas e
urbanas: município de Barra dos Bugres, MT. Encontro Latino-Americano Sobre Edificações
E Comunidades Sustentáveis, 2, Campo Grande, MS.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela.


1998. Pontos de vista sobre a floresta amazônica: xamanismo e tradução. Mana [online].
1998, vol.4, n.1, pp. 7-22.

2009. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela; ALMEIDA, Mauro W. B.


2001. Populações Indígenas, Povos Tradicionais e Preservação na Amazônia, in:
Biodiversidade na Amazônia Brasileira, F.Capobianco et. Al. (orgs.). São Paulo: ISA/Estação
liberdade.

CARNEIRO, Robert L.
1983. The cultivation of manioc among the Kuikuru of the Upper Xingu. In: HAMES, R. B.;
VICKERS, W. T. (Orgs.). Adaptive Responses of Native Amazonians. New York: Academic
Press. p. 65-111.

CARRINHO, Rosana.
2012. Habitação de interesse social em aldeias. Santa Catarina: UFSC. Dissertação de
Mestrado.

CARSTEN, Janet.
2000. Cultures of Relatedness. New Approaches to the Study of Kinship. Cambridge:
Cambridge University Press.

2004. Uses and Abuses of Substance. In: CARSTEN, Janet. After Kinship. Cambridge
University Press: Cambridge, p. 109-135.

CARSTEN, Janet; HUGH-JONES, Stephen (eds.).


381

1995. About the House: Lévi-Strauss and Beyond. Cambridge: Cambridge University Press.

CASTELLO BRANCO, José M. B.


1947. Caminhos do Acre. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de
Janeiro, Imprensa Nacional, v.196, p. 74-225.

1950. O Gentio Acreano. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de


Janeiro, v. 207, p. 3-78.

1961. Povoamento da Acreania. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de


Janeiro, Imprensa Nacional, v. 250, p. 118-256.

CEF, Caixa Econômica Federal.


2012. Manual do Programa Nacional de Habitação Rural, [s.i.], [s.n.]

CESARINO, Pedro de Niemeyer.


2008. Babel da floresta, cidades dos brancos? Os Marubo no trânsito entre dois
mundos. Novos estud. - CEBRAP, São Paulo , n. 82, p. 133-148.

2010. Donos e Duplos: relações de conhecimento, propriedade e autoria entre


Marubo. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 53, n. 1, p. 147-197.

2011. Oniska: poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo: Perspectiva /Fapesp.

CLASTRES, Pierre.
2003. A Sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac Naify.

2004. Arqueologia da violência: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify.

CLEMENT, C. R.
1992. Domesticated palms. Principes, v. 36, p. 70-78.

CLEMENT, C. R. et. Al.


2009. Domestication of Peach Palm (Bactis gasipaes): the roles of human mobility and
migration In Miguel N. Alexiades (ed.). Mobility and migration in indigenous Amazonia:
contemporary ethnoecological perspectives. 117-140.

COELHO DE SOUZA, Marcela S.


2009. Três nomes para um sítio só: a vida dos lugares entre os Kisêdjê. In: IV Congresso da
Associação Portuguesa de Antropologia, Lisboa. Anais do IV Congresso da Associação
Portuguesa de Antropologia.

COLPRON, Anne-Marie.
2005. Monopólio masculino do xamanismo amazônico: o contra-exemplo das mulheres xamã
shipibo-conibo. Mana, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 95-128.

2009. Cosmologies chamaniques et utilisation de psychotropes parmi les Shipibo-Conibo de


l’Amazonie occidentale Drogues, santé et société, 8(1), 57–91.

CONKLIN, Beth A.
382

1989. Images of Health, Illness and Death among the Wari' (Pakaas Novos) of Rondônia,
Brazil. Ph.D. Dissertation, San Francisco: University of California.

CONKLIN, Harold C.
1974. The relation of Hanunoo culture to the plant world. University Microfilms, Ann Arbor,
Michigan.

CORREIA, Cloude de Souza.


2007. Etnozoneamento, etnomapeamento e diagnóstico etnoambiental: Representações
cartográficas e gestão territorial em terras indígenas no Estado do Acre. Tese de doutorado
apresentada no Departamento de Antropologia/ICS/UnB. Brasília.

COSTA, Gisele C.; SOUZA, Regina C. A.


2015. Caciques mulheres e construção de territorialidades no vale sanfranciscano - Bahia.
RDE - Revista de Desenvolvimento Econômico , v. especial, p. 377-407.

COSTA, Luiz.
2007. As faces do jaguar. Parentesco, história e mitologia entre os Kanamari da Amazônia
Ocidental. Tese de Doutorado, Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

2013. Alimentação e comensalidade entre os Kanamari da Amazônia Ocidental. Mana,


vol.19, n.3, pp. 473-504.

2016. Virando Funai: Uma Transformação Kanamari. Mana, Rio de Janeiro , v. 22, n. 1, p.
101-132.

COSTA, Maria Heloísa Fenélon; MALHANO, Hamilton Botelho.


1986. Habitação indígena brasileira. In: RIBEIRO, Berta. (Org.). Suma etnológica brasileira.
Petrópolis, RJ: Vozes; Finep.

d'ANS, André-Marcel.
1991. Le dit des vrais hommes (mythes, contes, légendes et traditions des Indiens
Cashinahua). Paris: Gallimard.

DÉLÉAGE, Pierre.
2009. Le Chant de l’anaconda. L’apprentissage du chamanisme chez les Sharanahua.
Nanterre: Société d’ethnologie.

DESCOLA, Philippe.
1992. Societies of nature and the nature of society. In: KUPER, Adam (Org.).
Conceptualizing society. Londres/New York: Routledge. p. 107-126.

1997. Ecologia e Cosmologia. In CASTRO, Edna; PINTON, Florence. Faces do Trópico


Úmido, Edit. Cejup, Belem.

1998. Estrutura ou sentimento: a relação com o animal na Amazônia. Revista Mana, Rio de
Janeiro, vol. 4, n. 1, p. 23-45.

2005. Par-delà nature et culture. Paris: Gallimard, 2005.


383

2014. La selva culta: simbolismo y praxis en la ecología de los Achuar. Lima: Institut français
d’études andines.

DESCOLA, Philippe; PÁLSSON, Gísli (eds.).


1996. Nature and Society: anthropological perspectives. London: Routledge.

DESHAYES, Patrick.
1992. Paroles chassées. Chamanisme et chefferie chez les Kashinawa. Journal de la Societé
des Americanistes, v.LXXVIII-II,p. 95-106.

DESHAYES, Patrick; KEIFENHEIM, Barbara.


1994. Penser l'Autre chez les Indiens Huni Kuin de l'Amazonie. Paris, L'Harmattan.

DUMONT, Louis.
1953. “The Dravidian Kinship terminology as na expression of marriage”, publicado na Man,
53, pp. 34-39.

DURKHEIM, Emile; MAUSS, Marcel.


2005. Algumas formas primitivas de classificação. In: Mauss, Marcel. Ensaios de Sociologia.
São Paulo: Perspectiva, p.399-455.

ELETRONORTE, Eletrobrás.
2012. Relatório R3 Caracterização e Análise Sócioambiental: Linha de Transmissão 230 kV
Rio Branco / Feijó / Cruzeiro do Sul e Subestações Associadas – C1. 25 abr. 2012.
Manuscrito.

ERIKSON, Philippe.
1986. Altérité, tatouage et anthropophagie chez les pano: la belliquese quête du soi. Journal
de la Société des Américanistes, Paris, 1986, LXXII, pp. 185-210.

1990. Les Matis d'Amazonie. Parure des corps, identité ethnique et organisation sociale.
These de docteur, Université de Paris X – Nanterre.

1992. Uma singular pluralidade: a etno-história pano In: Cunha, Manuela Carneiro da (org.)
História dos índios no Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal de
Cultura, FAPESP, p. 239-252.

1993. Une nébuleuse compacte: le macro-ensemble Pano, L‘Homme 126-128. pp. 45-58.

1996. La Griffe des Aïeux. Marquage du corps et démarquage ethnique chez les Matis
d'Amazonie. Paris: Editions Peeters.

1999. El Sello de los Antepasados. Quito, Ecuador: Abya Yala/IFEA.

ERIKSON, Phillipe & SANTOS-GRANERO, Fernando.


1988. Politics in Amazonia in Man: Journal of the Royal Anthropological Institute 23 (1):
164:67

FALCHI, F. L.
384

2013. Revisão fonêmica do Katukina Páno. 2013. Monografia (Bacharelado em Estudos


Linguísticos)-Faculdade de Letras, Universidade Federal de Goiás, Goiânia.

2015. A aplicabilidade de conceitos de palavra à língua Noke Koĩ. Dissertação (Mestrado em


Letras e Linguística) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia.

FALCHI, Flávia Leonel; AGUIAR, Maria Suelí de.


2011. Fonêmica preliminar da língua Katukina (Páno). In: Reuniao anual da SBPC, 63,
Goiânia. Anais. Goiânia: [s.n.], p. 1-15.

FARIA, Ivan Dutra.


2008. Compensação ambiental: os fundamentos e as normas; a gestão e os conflitos. Textos
para discussão 43. Brasília: Consultoria Legislativa do Senado Federal. Disponível em
<http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD43-IvanDutraFaria.pdf>,
acesso em 31 de janeiro de 2012.

FAUSTO, Carlos.
1997. A dialética da predação e familiarização entre os Parakanã da Amazônia Oriental: por
uma teoria da guerra ameríndia. Tese de doutorado, Rio de Janeiro, PPGAS/Museu
Nacional/UFRJ.

2001. Inimigos fiéis: história, guerra e xamanismo na Amazônia. São Paulo: Edusp.

2002. Banquete de gente: comensalidade e canibalismo na Amazônia. Mana, Rio de Janeiro,


v. 8, n. 2, p. 7-44.

2008. Donos demais: maestria e domínio na Amazônia. Mana, Rio de Janeiro , v. 14, n. 2, p.
329-366.

FERREIRA OLIVEIRA, Aline.


2012. Yawa-nawa: alianças e pajés nas cidades. Dissertação de Mestrado em Antropologia
Social, PPGAS/UFSC.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.


2010. Dicionário da língua portuguesa. 5. ed. Curitiba: Positivo.

FLOWERS, N. M.
1983. Seasonal factors in subsistence, nutrition, and child growth in a Central Brazilian Indian
community. In: Adaptive Responses of Native Amazonians (R. B. Hames & W. H. Vickers,
eds.), pp. 357-390, New York: Academic Press.

FUNAI, Fundação Nacional do Índio.


2006. Resumo do relatório de revisao de limites da Terra Indígena Rio Gregório.
Referência:Processo nº713/2006/FUNAI/BSB. Diário Oficial da União – Seção 1, p. 34-38.
03 abr. 2006. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/diarios/526028/pg-34-secao-1-
diario-oficial-da-uniao-dou-de-03-04-2006/pdfView> Acesso em: 04/03/2017.

2008. Levantamento Etnoecológico das Terras Indígenas do Complexo Bacia do Rio Juruá:
Kaxinawá da Praia do Carapanã, Kampa do Igarapé Primavera e Kulina do Igarapé do Pau. /
BANT, Astrid; PESSOA, Marina. – Brasília: FUNAI/PPTAL/GTZ.
385

2012a. Informações Gerais das Terras Indígenas do Estado do Acre. Manuscrito.

2012b. Relatório de visita a penitenciária: denúncia de maus tratos. Coordenação Regional do


Juruá/AC - CRJ. Manuscrito.

2013. Relatório de atividade executada: levantamento prévio de possíveis impactos sobre


abertura do ramal Boa Hora, próximo aos limites da Terra Indígena Campinas/Katukina.
Coordenação Regional do Juruá/AC - CRJ. 12 set. 2013. Manuscrito.

2014a. Informação Técnica 18/CRJ/FUNAI/2014. Considerações a respeito do Programa


Nacional de Habitação Rural (PNHR) componente “Minha Casa Minha Vida – Indígena”.
Coordenação Regional do Juruá/AC - CRJ. 21. nov. 2014. Manuscrito.

2014b. Ata de reunião com lideranças Noke Koĩ (Katukina Pano) da Terra Indígena
Campinas/Katukina. Coordenação Regional do Juruá - CRJ. Coordenação Regional do
Juruá/AC. 13 mar. 2014. Manuscrito

G1/AC.
2014. Índios recebem casas do governo no interior do Acre. G1, Acre. 06 fev. 2014.
Disponível em <http://glo.bo/1isZyCe>. Acesso em: 06 fev. 2014.

GALLOIS, Catherine.
2004. Sentidos e formas no habitar indígenas: entre mobilidade e sedentarização. Estudo de
caso entre os Wajãpi do Amapá. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ (Dissertação de Mestrado).

GALLOIS, Dominique.
1984. O pajé waiāpi e seus "espelhos" Revista De Antropologia, 27/28, 179-196

GEORADAR
2011. Mapa: Relatório de Controle Ambiental e Plano de Controle Ambiental para Atividade
de Pesquisa Geofisica Terrestre na Bacia do Acre.

GILLESPIE, Susan
2000. Lévi-Strauss Maison and société à maisons. In: GILLESPIE, Susan & JOYCE, Rosemary
(Eds.). Beyond Kinship. Social and Material Reproduction in House Societies. Philadelphia:
University of Pennsylvania Press, pp. 22–52.

2007. When is a House? In The Durable House: House Society Models in Archaeology,
edited by Robin A. Beck Jr., pp. 25–50.

GILLESPIE, Susan; JOYCE, Rosemary (Eds.)


2000. Beyond Kinship. Social and Material Reproduction in House Societies. Philadelphia:
University of Pennsylvania Press.

GÓES, Paulo Roberto.


2007. A natureza do saber: o lugar do conhecimento na práxis Katukina. Espaço Ameríndio
(UFRGS), v. 1, p. 116-145.2009. Infinito povoado: domínios, chefes e lideranças em um
grupo indígena do alto Juruá. Dissertação de Mestrado. Curitiba, UFPR.
386

GOLDMAN, Irving.
1963. The Cubeo: Indian of the Northwest Amazon. University of Illinois Press.

GOLDMAN, Márcio
2014. Dois ou Três Platôs de uma Antropologia de Esquerda. Cosmos e Contexto. Revista
Eletrônica de Cosmologia e Cultura , v. 24, p. 1-7.

GOLDMAN, Márcio; LIMA, Tânia Stolze.


1999. Como se faz um grande divisor? In: GOLDMAN, M. Alguma antropologia. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, p. 83-92.

GONZÁLEZ RUIBAL, Alfredo.


2006. House societies vs. kinship-based societies: An archaeological case from Iron Age
Europe. Journal of Anthropological Archaeology 25 (1), p. 144–73.

GOW, PETER.
1991. Of mixed blood: kinship and history in Peruvian Amazonia. Oxford: Clarendon Press.

1995. Land, People and Paper in Western Amazonia. In Eric Hirsh and Michael O´Hanlon
(eds), The Anthropology of Landscape: Perspectives on Place and Space. Oxford: Clarendon
Press.

1997. O parentesco como consciência humana: o caso dos Piro. Mana, Estudos de
Antropologia Social 3(2): 39-66.

GRINKER, Roy.
1996. Reconstructing the House in Anthropology. American Anthropologist 98(4), pp. 86-89.

GROSS, Daniel R.
1975. Protein Capture and Cultural Development in the Amazon Basin.” American
Anthropologist, vol. 77, no. 3, pp. 526–549.

HAMBERGER, Klaus.
2005. Por uma teoria espacial do parentesco. Mana, 11(1), p. 155-199.

HORNBORG, Alf.
1993. Panoan marriage sections: A comparative perspective. Ethnology 32, p. 101–108.

2005. Ethnogenesis, Regional Integration, and Ecology in Prehistoric Amazonia: Toward a


System Perspective. Current Anthropology, vol. 46, no. 4, pp. 589–620.

HOWARD, Catherine.
2002. A domesticação das Mercadorias: estratégias Waiwai. In: Albert, Bruce & Ramos,
Alcida Rita (eds.). Pacificando o Branco. Cosmologias do contato no Norte Amazônico. São
Paulo: Editora UNESP, pp. 25-26.

HUGH-JONES, Christine.
387

1977. Skin and soul: the round and the straight. Social time and social space in Pirá-Paraná
society. Actes du XLIIe Congrès International des Américanistes (Social time and social
space in Lowland South American societies). Paris: Société des Americanistes, pp. 185-204.

1979. From the Milk River: Spatial and Temporal Processes in the Northwest
Amazon. Cambridge: Cambridge University Press.

HUGH-JONES, Stephen.
1979. The Palm and the Pleiades: Initiation and Cosmology in Northwest Amazonia.
Cambridge: Cambridge University Press.

1993. Clear Descent or Ambiguous Houses? A Re-Examination of Tukanoan Social


Organisation. L'Homme, tome 33 n°126-128, pp. 95-120.

1994. Shamans, prophets, priests and pastors. In: N. Thomas & C. Humphrey
(orgs.), Shamanism, history and the state. Ann Arbor: Michigan University Press. pp. 32-75

1995. Inside-out and back-to-front: the androgynous house in northwest Amazon. In:
CARSTEN, Janet e HUGH-JONES, Stephen (eds.). About the House: Lévi-Strauss and Beyond.
Cambridge: Cambridge University Press, p. 226-252.

2014. Caixa de Pandora: estilo alto-rio-negrino. Revista de Antropologia da UFSCAR R@U,


6 (1), pp. 155-173.

HUNN, Eugene.
1982. The Utilitarian Factor in Folk Biological Classification. American Anthropologist, 84:
830–847.

IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.


2010. Censo Demográfico 2000 – Terras Indígenas. Disponível em:
<http://www.censo2010.ibge.gov.br/terrasindigenas/>.

IGLESIAS, Marcelo Manuel Piedrafita.


2008. Os Kaxinawá de Felizardo: correrias, trabalho e civilização no AltoJuruá. Tese
(Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional/Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social Rio de Janeiro: UFRJ/MN/ PPGAS.

INGOLD, Tim.
2000. The Perception of the Environment: essays on livelihood, dwelling and skill. London:
Routledge

2007. Lines: a brief history. London: Routledge.

2011. Being alive: essays on movement, knowledge and description. New York: Routledge.

ISA, Instituto Sócioambiental.


2009. Verbete Katukina. In: Povos Indígenas no Brasil. Disponível em:
<http://pib.socioambiental.org/pt/povo/katukina-pano> .

JARDIM, Luiz Marcelo.


388

2007. Caminhando com os Noke Koï: Trajetória Histórica e Mitológica de um povo Pano.
Monografia de conclusão de curso. Departamento de Filosofia e Ciências Sociais,
Universidade Federal do Acre.

JURUÁ ONLINE.
2015. Katukinas bloqueiam BR364 para exigir cumprimento de promessas. Acre. 26 out.
2015. Disponível em <http://www.juruaonline.net/politica/katukinas-bloqueiam-br364-para-
exigir-cumprimento-de-promessas-do-governo-estadual/>. Acesso em: 26 out. 2015.

KEIFENHEIM, Barbara.
1990. Nawa : Un concept clé de l'altérité chez les Pano. In: Journal de la Société des
Américanistes. Vol. 76, pp. 79-94.

2002. Suicide à là kashinawa: le désir de l'au-delà ou la séduction olfactive et auditive par les
esprits des morts. Journal de la Societé des Americanistes, v. 88, pp. 91-110.

KELLY, José A.
2005. "Notas para uma teoria do "virar branco"". Mana, 11(1) :201-234.

KENSINGER, Kenneth.
1977. Cashinahua Notions of Social Time and Social Space. Actes du XLJIe Congres
International des Americanistes. Vol. II, 233-244. Paris.

1995a. Panoan kinship terminology and social organisation. In: KENSINGER, Kenneth M. How
Real People Ought to Live: The Cashinahua of Eastern Peru. Prospect Heights, IL: Waveland
Press, Inc., p. 157-174.

1995b. Cashinahua siblingship. In: KENSINGER, Kenneth M. How Real People Ought to Live:
The Cashinahua of Eastern Peru. Prospect Heights, IL: Waveland Press, Inc., p. 95-100.

1995c. How Real People Ought to Live. The Cashinahua of Eastern Peru. Illinois: Waveland
Press.

KOHN, Eduardo.
2013. How forests think: toward an anthropology beyond the human. University of California
Press, Berkeley: 267p.

KROEBER, Alfred Louis.


1925. [1876-1960] Handbook of the Indians of California. Washington: Govt. print. off.

KUPER, Adam.
1980. Symbolic Dimensions of the Southern Bantu Homestead. Africa 5(1): 8–23.

1993. The ‘House’ and Zulu Political Structure in the Nineteenth Century. The Journal of
African History, 34, pp 469-487.

LADEIRA, Maria Elisa.


1982. A troca de nomes e a troca do cônjuges: uma contribuição ao estudo do parentesco
timbira. São Paulo : USP. (Dissertação de Mestrado).
389

1983. Uma aldeia Timbira. In: NOVAES, Sylvia Caiuby (Org.). Habitações indígenas. São
Paulo : Nobel ; Edusp, p. 11-32.

LAGROU, Elsje Maria.


1991. Uma etnografía da cultura Kaxinawá: entre a Cobra e o Inca. Dissertação (Mestrado em
Antropologia Social). Florianópolis - Universidade Federal de Santa Catarina.

1996, “ Xamanismo e Representação entre os Kaxinawa ” pp.197-231 in J. Langdon (org.),


Novas Perspectivas sobre Xamanismo no Brasil, Florianopolis : Ed. da UFSC.

1998. Caminhos, Duplos e Corpos. Uma abordagem perspectivista da identidade e alteridade


entre os Kaxinawa. Tese de Doutorado em antropologia social, FFLCH/USP, São Paulo.

2000. Homesickness and the Cashinahua self: a reflection on the embodied condition of
relatedness. In: Joanna Overing & Alan Passes (orgs.), The anthropology of love and anger:
the aesthetics of conviviality in native Amazonia. London and New York: Routledge. pp. 151-
169.

2002. O que nos diz a arte kaxinawa sobre a relação entre identidade e alteridade? Mana
[online], vol.8, n.1, pp. 29-61.

2007. A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa,
Acre).Rio de Janeiro: Topbooks 2007

2010. Arte ou artefato? Agência e significado nas artes indígenas. IN: Proa – Revista de
Antropologia e Arte [on-line]. Ano 02, vol.01, n. 02.

2013a. Chaquira, el inka y los blancos: las cuentas de vidrio en los mitos y en el ritual
kaxinawa y amerindio. Revista Española de Antropología Americana, Norteamérica, 43.

2013b. “Controlar la Fluidez de la Forma: La Sanación con el uso del “Nixi Pae” (“cipó
forte”) entre los Cashinahua”. In Labate, Beatriz C. & Bouso, José Carlos (orgs.). Ayahuasca
y Salud, Barcelona, Los Libros de La Liebre de Marzo, pp. 120-142

LANNA, Marcos.
2005. A noção de 'casa': Considerações a partir de R. Firth e dos Tikopia. Anthropológicas,
Recife, v. 16, n.1

LASMAR, Cristiane.
1999. Mulheres indígenas: representações. Revista Estudos Feministas. 7 (1 e 2), 143-156.

LATHRAP, Donald W.
1970. The Upper Amazon. London: Thames & Hudson.

1973 "The Antiquity and Importance of Long-Distance Trade Relationships in the Moist
Tropics of Pre-Columbian South America, " World Archaeology, 5(2): 170-186.

LATOUR, Bruno.
1994. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34.
390

2000. Ciência em ação. São Paulo: UNESP.

2004. “Whose Cosmos ? Which Cosmopolitics ? A Commentary on Ulrich Beck’s Peace


Proposal ?” In Common Knowledge, Vo. 10 Issue 3, pp.450-462.

LEA, Vanessa.
1986. Nomes e nekrets: uma concepção de riqueza. Tese de doutorado, PPGAS, Museu
Nacional, Universidade Federal de Rio de Janeiro (UFRJ).

1993. Casas e casas Mebengokre (Jê). In: VIVEIROS DE CASTRO, E. e CARNEIRO DA CUNHA,
M. (orgs.) Amazônia: Etnologia e História Indígena. São Paulo: NHII/USP/FAPESP.

LÉVI-STRAUSS, Claude.
1952. The Use of Wild Plants in Tropical South America. Economic Botany, vol. 6, no. 3, pp.
252–270.

1968. The concept of primitiveness. In LEE, R. B. & DEVORE, I. (org.), Man the Hunter,
Chicago, Aldine Publishing Company, p. 349-52.

1970. O Pensamento selvagem. São Paulo, Ed. Nacional.

1975. Totemismo Hoje. Petrópolis: Vozes.

1981. A organização social dos Kwakiutl. In: A via das máscaras. Lisboa: Editorial
Presença/Martins Fontes.

1984. Minhas palavras. São Paulo: Brasiliense.

1996. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras.

2004 [1964]. O cru e o cozido: Mitológicas I. São Paulo: Cosac Naify.

LIMA, Edilene Coffaci.


1994. Katukina: História e Organização Social de um grupo Pano do Alto Juruá Dissertação
de Mestrado. São Paulo: PPGAS USP.

1997. A onomástica Katukina é Pano? Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 40 no 2.

2000a. Com os Olhos da Serpente: Homens, Animais e Espíritos nas concepções Katukina da
Natureza. Tese de Doutorado. São Paulo: PPGAS USP.

2000b. A morte e os destinos dos mortos entre os Katukina (pano). In: XXIV Encontro Anual
da Anpocs, Programa e Resumos, Petrópolis: Anpocs, p. 91-91.

2000c. BR-364: no caminho dos Katukina. In: Carlos Alberto Ricardo. (Org.). Povos
Indígenas no Brasil 1996-2000.. São Paulo: Instituto Socioambiental, p. 575-578.

2001. Os Katukina das Terras Indígenas do Rio Campinas e do Rio Gregório. (versão
preliminar). Revisão do componente indígena do EIARIMA da BR 364. Curitiba,.
Manuscrito.
391

2001b. Erros repetidos: a pavimentação da BR-364 e os Katukina. Curitiba: Campos. Revista


de Antropologia Social.

2002. Classificação dos animais do alto Juruá pelos Katukina. In: Manuela Carneiro da
Cunha; Mauro B. de Almeida. (Org.). Enciclopédia da Floresta. O alto Juruá: práticas e
conhecimentos das populações. São Paulo: Companhia das Letras, v. , p. 437-443.

2005a. Kampu, kampo, kambô: o uso do sapo-verde entre os Katukina. Revista do


IPHAN 32: 254-267

2005b. De kampô a Phyllomedusa bicolor: velhos e novos usos da secreção do sapo-verde dos
Katukina. Comunicação apresentada no XXIX Encontro Anual da ANPOCS – Caxambu/
MG.

2005c. Os impactos do asfaltamento da BR-364 na vida dos Katukina do rio Campinas.


Página 20, Rio Branco (AC).

2007. ‘Remédio da Ciência’ e ‘Remédio da Alma’: os usos da secreção do kambô


(Phyllomedusa bicolor) nas cidades. Revista Campos 8: 71-90

2008. “A expansão urbana do kampô: notas etnográficas”. In LABATE, Beatriz C. et. alli
(orgs.). Drogas e Cultura: novas perspectivas. Salvador: EDUFBA.

2008. As novas formas do kampô: elementos de uma sociologia da disseminação urbana dos
saberes nativos. In. Lenaerts, Marc e Spadafora, Ana María (eds.). Pueblos indígenas, plantas
y mercados. Amazonía y Gran Chaco. Bucharest, Zetabooks. pp. 169-197.

2009. Entre o mercado esotérico e os direitos de propriedade intelectual: o caso kampô


(Phyllomedusa bicolor). In Kleba, John e Kishi, Sandra (orgs.). Dilemas do acesso à
biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais – direito, política e sociedade. Belo
Horizonte: Editora Fórum.

2011. Sobre mortes e omissões. In: Fany Ricardo; Beto Ricardo. (Org.). Povos Indígenas no
Brasil 2006-2010. 1ed.São Paulo: Instituto Socioambiental

2013. Nosso conhecimento vale ouro: sobre o valor do trabalho de campo, Anuário
Antropológico, I, pp. 73-98.

LIMA, Tânia Stolze.


1996. O dois e seu multiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia Tupi.
Mana. Estudos de Antropologia Social, 2: 21-47.

2005. Um Peixe Olhou Para Mim. O povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo:
UNESP/ISA/NUTI.

2012. Por uma cartografia do poder e da diferença nas cosmopolíticas ameríndias. Revista de
Antropologia, São Paulo, v. 54, n. 2.
MACDONALD, Charles.
392

1987. Histoire d’un projet: De la notion de “maison” chez Lévi-Strauss à la com- paraison des
sociétés en Asie du Sud-Est insulaire. In: MACDONALD, Charles. De la hutte au palais:
Sociétés “à maison” en Asie du Sud-Est insulaire, pp. 3–12. Paris: Centre National de la
Recherche Scientifique.

MAIZZA, Fabiana.
2012. Cosmografia de um mundo perigoso. Espaço e relações de afinidade entre os Jarawara
da Amazônia. São Paulo: Edusp/ Nankin Editorial.

2014. Sobre as crianças-planta: o cuidar e o seduzir no parentesco Jarawara. Mana, Rio de


Janeiro , v. 20, n. 3, p. 491-518.

MARTINS, Homero Moro.


2006. Os Katukina e o Kampô: aspectos etnográficos da construção de um projeto de acesso a
conhecimentos tradicionais. Dissertação de Mestrado. Brasília – DF. PPGAS UNB.

MATOS, Beatriz.
2008. Os Matsés: aspectos históricos e contemporâneos. CTI. Manuscrito. Disponivel em:
<http://www.trabalhoindigenista.org.br/Docs/MatosBA_Os-Matsés-aspectos-historicos-e-
contemporaneos.pdf> Acesso em março de 2013.

2009. Os Matsés e os Outros – elementos para a etnografia de um povo indígena do Javari.


Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Rio de Janeiro.

2014. A Vista dos Espíritos: ritual, história e transformação entre os Matses da Amazônia
brasileira. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: Museu Nacional/ PPGAS/ UFRJ.

MCCALLUM, Cecilia.
1996a. Morte e pessoa entre os kaxinawá. Mana, Rio de Janeiro , v. 2, n. 2, p. 49-84.

1996b. The body that knows: from Cashinahua epistemology to a medical anthropology of
lowland South America. Medical Anthropology Quarterly 10, 347-72.

1999. Aquisição de gênero e habilidades produtivas : o caso Kaxinawá. Estudos Feministas,


Rio de Janeiro : UFRJ/IFCS, v. 7, n. 1/2, p. 157-75.

2001. How Real People are Made. Gender and Sociality in Amazonia, Providence-Oxford,
Berg Press.

2015. Espaço, pessoa e movimento na socialidade ameríndia: sobre os modos Huni Kuin de
relacionalidade. Revista de Antropologia, [S.l.], v. 58, n. 1, p. 223-256.

MCCALLUM, Cecília; BUSTAMANTE, Vania.


2012. Parentesco, gênero e individuação no cotidiano da casa em um bairro popular de
Salvador da Bahia. Etnográfica, Lisboa, v. 16, n. 2, p. 221-246.

MEGGERS, Betty.
1976. Amazônia: A Ilusão de um Paraíso. Belo Horizonte: Editora Itatiaia.
393

MELATTI, Julio Cezar.


1977. Estrutura Social Marúbo: Um Sistema Australiano na Amazônia. Anuário
Antropológico/76. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p.83-120.

1985a. "Os patrões Marúbo". Anuário Antropológico/83: 155-198.

1985b. "A origem dos brancos no mito de Shoma Wetsa". Anuário Antropológico/84: 109-
173.

1989. "Shoma Wetsa: a história de um mito". Ciência Hoje, nº 53. Rio de Janeiro: SBPC, p.
56-61.

2001. 9ª aula: Conquista e perda do fogo. Disponível em:


http://www.juliomelatti.pro.br/mitos/m09fogo.pdf acessado em 04/03/2017.

MELATTI, Julio Cezar (org.).


1981. Javari. São Paulo: CEDI (volume 5 da Coleção Povos Indígenas no Brasil, dirigida por
Carlos Alberto Ricardo).

MICHAELIS.
1998. Moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Companhia Melhoramentos.

MONTAGNER, Delvair.
1985. O mundo dos espíritos: Estudo etnográfico de cura marúbo. Tese (Doutorado).

2007. Construção da etnia Náwa. Revista de Estudos e Pesquisas, FUNAI, Brasília, v.4, n.1,
p. 33-108.

MONTAGNER, Delvair; MELATTI, Julio Cezar.


1975. Relatório sobre os índios Marubo. Série Antropologia 13. Brasília: UnB-IH-DAN.

1986. A maloca Marúbo: organização do espaço. Revista de Antropologia 29. São Paulo:
USP-FFLCH-DCS.

MORAN, Emilio F.
1990. A ecologia humana das populações da Amazonia. Petrópolis [RJ]: Ed. Vozes.

1995. Disaggregating Amazonia: a strategy for understanding biological and cultural


diversity. In L. E. Sponsel (Ed.), Indigenous peoples and the future of Amazonia (pp. 71-95).
Unversity of Arizona Press.

MORIM DE LIMA, Ana Gabriela.


2016. Brotou batata para mim, cultivo, gênero e ritual entre os Krahô (TO, Brasil). Tese
(Doutorado em Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia) - Universidade
Federal do Rio de Janeiro.

MPF, Ministério Público Federal.


2011. Nota técnica nº 016/2011 Elaboração de laudo pericial acerca de reivindicação
territorial dos Katukina da Aldeia Varinawa. 04 mar. 2011. Manuscrito.
394

NEVES, Eduardo G.
2006. Arqueologia da Amazônia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

OPPENHEIM, Victor.
1936. Notas ethnographicas sobre os indígenas do Alto Juruá (Acre) e Valle do Ucayali
(Peru). Annaes da Academia Brasileira de Sciencias, vol.8, p.145-155.

OVERING, Joanna.
1975. The Piaroa. A people of the Orinoco Basin. Oxford, Claredon Press.

2006. O fétido odor da morte e os aromas da vida: poética dos saberes e processo sensorial
entre os Piaroa da bacia do Orinoco. Rev. Antropol., São Paulo , v. 49, n. 1, p. 19-54.

PARKIN, Robert.
2013. Relatedness as Transcendence: The Renewed Debate over the Significance of Kinship.
Journal of the Anthropological Society of Oxford. 5 (1), p. 1-26.

PATTERSON, Mary.
2005. Introduction: reclaiming paradigms lost. The Australian Journal of Anthropology, v.16
(1), p. 1-17.

PEREZ GIL, Laura.


1999. Pelos caminhos de Yuve: cura, poder e conhecimento no xamanismo yawanawa.
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Florianópolis - Universidade Federal de
Santa Catarina

2001, O sistema médico yawanawa : cura, poder e iniciação xamânica, Cadernos de Saúde
pública (Rio de Janeiro), 17(1):333-344.

PESSOA, Marina Margarido.


2010. O “Etnozoneamento em Terras Indígenas” do Acre como ferramenta de Gestão
Territorial: O caso da Terra Indígena Campinas/Katukina. Brasília: Universidade de Brasília.
Dissertação de mestrado.

PORTAL BRASIL.
2014. Minha Casa Minha Vida chega aos povos indígenas do País. 19 abr. 2014. Disponível
em <http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2014/04/minha-casa-minha-vida-chega-aos-
povos-indigenas-do-pais >. Acesso em: 07 fev. 2015

RAMOS, Alcida Rita.


1995. Por falar em paraíso terrestre. Série Antropologia 191. Brasília: UnB-IH-DAN.

1997. The Indigenous Movement in Brazil. A Quarter Century of Ups and Downs, In Cultural
Survival Quarterly, Vol. 21, Issue 2.

REBELO, Francine. 2014.


Mulheres Caciques: Uma etnografia sobre as representações de gênero a respeito de
lideranças femininas Guarani em Santa Catarina.. In: 29ª Reunião Brasileira de Antropologia,
2014, Natal/RN. GT's aprovados - 060. Movimentos indígenas, políticas indígenas e
indígenas na política: Repensando a política interétnica indígena para o Século XXI, p. 1-17.
395

RICARDO, Carlos Alberto; RICARDO, Fany (org.)


2011. Povos Indígenas no Brasil 2006/2010. 1ª ed.São Paulo: Instituto Socioambiental.

RIVAL, Laura.
1998. Domestication as a historical and symbolic process: wild gardens and cultivated forests
in the Ecuadorian Amazon. In BALÉE, W. (ed.). Advances in Historical Ecology. New York:
Columbia Univ. Press.

2001. "Seed and clone: the symbolic and social significance of bitter manioc cultivation". In:
L. Rival & N. Whitehead (eds.), Beyond the visible and the material: the amerindianization of
society in the work of Peter Rivière. Oxford, New York: Oxford University Press. pp. 57-79.
2005. "The growth of family trees: understanding Huaorani perceptions of the forest". In: A.
Surrallés & P. García Hierro (eds.), The land within: Indigenous territory and the perception
of environment. Copenhagen: IWGIA. pp. 90-109.

2016. Huaorani Transformations in Twenty-First-Century. Ecuador: Arizona press.

RIVET, Paul.
1920. Les Katukina, étude linguistique. Journal de la Société des Américanistes, XVIII:55-63.

RIVIÈRE, Peter.
1984. Village composition. In: RIVIÈRE, Peter. Individual and society in Guiana: a
comparative study of amerindian social organization. Cambridge: Cambridge University
Press, pp. 30-49.

1995. Houses, places and people: community and continuity in Guiana. In: CARSTEN, J.,
HUGH-JONES, S. (Eds.), About the House. Lévi-Strauss and Beyond. Cambridge University
Press, Cambridge, pp. 189–205.

ROE, Peter G.
The Boa and the Hunter. In: ROE, Peter G. 1982. The Cosmic Zygote: Cosmology in the
Amazon Basin. New Jersey: Rutgers University Press, p. 52.

ROSA DA SILVA, Fernando.


2012. A Alimentaçao e Dieta do povo Noke Koi. (TCC). Cruzeiro do Sul: UFAC.

ROOSEVELT Anna
1980. Parmana. Prehistoric maize and manioc subsistence along the Orinoco and Amazon
rivers. Academic Press.

ROSS, Eric Barry, et al.


1978. Food Taboos, Diet, and Hunting Strategy: The Adaptation to Animals in Amazon
Cultural Ecology [and Comments and Reply]. Current Anthropology, vol. 19, no. 1, pp. 1–36.

SAHLINS, Marshall.
1972. Stone AgeEconomics.Chicago: Aldine-Atherton.

2008. Metáforas históricas e realidades míticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
396

2011a “What Kinship Is (part one)”. In JRAI ,17-1.

2011b “What Kinship is (part two)”. In JRAI, 17-2.

SCHNEIDER, David.
1984. A critique of the study of kinship. University of Michigan Press.

SEEGER, Anthony.
1981. Nature and society in central Brasil. Cambridge: Harvard University Press.

SEEGER, Anthony; DA MATTA, Roberto; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo.


1987 [1979]. "A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras". In: João Pacheco
de Oliveira Filho(ed.) Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro: Marco
Zero.

SEEGER, A.; VIVEIROS DE CASTRO, E. B.


1979. Terras e territórios indígenas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

SEMA/AC, Secretaria de Meio Ambiente do Estado Do Acre.


2006. Programa Estadual de Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado do Acre.
Zoneamento Ecológico-Econômico do Acre Fase II: documento Síntese. Rio Branco.

2012. Plano estadual de recursos hídricos do Acre – Rio Branco: SEMA.

SHAPIRO, Warren.
2008. What human Kinship is primarily about: toward a critique of the new kinship studies.
Social Anthropology. 16, 2,137-153.

SHERE KATUKINA, Benjamim André et alli.


2004. Kene Yositi. Rio Branco: Secretaria de Educação/AC.

SILVA, Aracy Lopes da.


1983. Xavante: casa – aldeia – chão – terra – vida. In: CAIUBY NOVAES, Sylvia (org).
Habitações Indígenas. São Paulo: Nobel/ Ed. da Universidade de São Paulo.

SILVANO, R. et. Al.


2001. Peixes do Alto rio Juruá (Amazonas, Brasil). São Paulo, Editora da Universidade de
São Paulo, 298p.

SISKIND, Janet.
1973. To Hunt in the Morning. New York: Oxford University Press.

STENGERS, Isabelle.
1997a. Cosmopolitiques I. Paris: La Découverte.

1997b. Cosmopolitiques II. Paris: La Découverte.

STRATHERN, Marilyn.
397

1980. No nature, no culture: the Hagen case. In C. MacCormack & M. Strathern (eds.)
Nature, Culture and Gender, pp 174-222. Cambridge: Cambridge University Press.

1992. Reproducing the future: anthropology, kinship and the new reproductive technologies.
Manchester: Manchester University Press.

SZTUTMAN, Renato.
2005. O profeta e o principal: a ação política ameríndia e seus personagens. Tese (Doutorado
em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, São Paulo.

TASTEVIN, Constant.
1924. Entre os índios do Alto Juruá. In: Carneiro da Cunha, Manuela (org.) (2009). Tastevin,
Parrissier: Fontes sobre índios e seringueiros do Alto Juruá. Rio de Janeiro: Museu do Índio.
(Série Monografias), p. 109-126.

1926. O Alto Tarauacá. In: Carneiro da Cunha, Manuela (org.) (2009). Tastevin, Parrissier:
Fontes sobre índios e seringueiros do Alto Juruá. Rio de Janeiro: Museu do Índio. (Série
Monografias), p. 172-206.
1928. O “Riozinho da Liberdade”. In: Carneiro da Cunha, Manuela (org.) (2009). Tastevin,
Parrissier: Fontes sobre índios e seringueiros do Alto Juruá. Rio de Janeiro: Museu do Índio.
(Série Monografias), p. 227-237.

TAYLOR, Anne-Christine
1993. Remembering to forget: identity, mourning and memory among the Jivaro. Man 28:
653-678.

2000. Le sexe de la proie. L’Homme, 154-155, 309-334.

2001. Pets, Wives and Affines : a Jivaroan Perspective on Mariage. In Beyond the Visible and
the Material : The Amerindianization of Society in the Work of Peter Rivière (L. Rival et N.
Whitehead, eds), Oxford : Oxford University Press.

TEIXERA-PINTO, Márnio.
2002. História e Cosmologia de um Contato: a atração dos Arara. In: ALBERT, Bruce &
RAMOS, Alcida. (Org.). Pacificando o branco: Cosmologias do Contato no Norte-Amazônico.
São Paulo: Ed. UNESP.

TOURNON, Jacques.
2002. La merma mágica. Vida e historia de los Shipibo del Ucayali. Lima: CAAAP.

2012a. La Clasificación De Los Vegetales Entre Los Shipibo-Conibo. Pontificia Universidad


Católica del Perú.

2012b. Como los Shipibo-Conibo nombran y clasifican los animales. Anthropologica


del Departamento de Ciencias Sociales, [S.l.], v. 11, n. 11, p. 91-108.

TOURNON, Jacques; CAÚPER PINEDO, Samuel.


2012. Los shipibo-conibo y la fauna acuática. Anthropologica del Departamento de
Ciencias Sociales, [S.l.], v. 12, n. 12, p. 29-61.
398

TOWNSLEY, Graham.
1988. Ideas of order and patterns of change in Yaminahua Society. Tese de doutorado,
Cambridge University.

1993. "Song Paths: the ways and means of yaminahua shamanic knowledge.". L'Homme,
33(2-4) :449-468 Paris .

TRIBUNA DO JURUÁ, AC.


2013. Índios katukinas são beneficiados programa de habitação rural. Acre, 06 ago. 2013.
Disponível em <http://www.tribunadojurua.com.br/cruzeiro-do-sul/indios-katukinas-sao-
beneficiados-programa-de-habitacao-rural/>. Acesso em: 07 ago. 2013.

TURNER, Terence.
1993. Da cosmologia à história: resistência, adaptação e consciência social entre os Kayapó.
In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo; CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (org.). Amazônia.
Etnologia e história indígena. São Paulo: NHII/USP/Fapesp.

VAN VELTHEN Lúcia Hussak.


1996. Comer verdadeiramente: produção e preparação de alimentos entre os wayanas.
Horizontes antropológicos 4. Porto Alegre: Editora UFRGS.

VIEGAS, Susana.
2003. “Eating with your favorite mother: time and socielity in a brazilian amerindian
community” J. Roy. Am. Inst. (N.S.) 9 – 21-37.

VIEIRA, José Glebson.


2015. “Todo caboclo é parente”. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 58(1), pp. 285-
317.

VILAÇA, Aparecida.
1992. Comendo como gente. Formas do Canibalismo Wari’. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.

1996. “Cristãos sem fé: alguns aspectos da conversão dos Wari’ (Pakaa-Nova)”. Mana.
Estudos de Antropologia Social 2 (1): 109-137.

2000. “O que significa tornar-se Outro? Xamanismo e contato interétnico na Amazônia”.


Revista Brasileira de Ciências Sociais 15 (4): 56-72.

2002. “Making kin out of others in Amazonia”. The Journal of the Royal Anthropological
Institute 8 (2) 347-365.

2005. “Chronically unstable bodies. Reflexions on Amazonian corporalities”. The Journal of


the Royal Anthropological Institute 11 (3): 445-464.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo.


1977. Indivíduo e sociedade no Alto Xingu: os Yawalapiti. Rio de Janeiro: PPGAS/MN/
UFRJ, (Dissertação de Mestrado).

1986. Araweté, os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar / ANPOCS.


399

1996a. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana, 2(2) Rio de Janeiro.

1996b. Ambos os três: sobre algumas distinções tipológicas e seu significado estrutural na
teoria do parentesco. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. Anuário Antropológico/95, pp. 9-91.

1999. Etnologia brasileira. In: MICELI, Sergio (org.). O que ler na ciência social brasileira
(1970-1995). São Paulo/Brasília: Sumaré/Anpocs/Capes.

2001. A propriedade do conceito. Trabalho apresentado na XXV Reunião da Anpocs.

2002a. O problema da afinidade na Amazônia. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A


inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac & Naify, p. 87-180.

2002b. Perspectivismo e multinaturalismo na América Indígena. A inconstância da alma


selvagem e outros ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify.

2002c. Atualização e contra-efetuação do virtual: o processo do parentesco. In: VIVEIROS DE


CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac & Naify, p. 401-456.

2002d. "Esboço de cosmologia Yawalapiti". A inconstancia da alma selvagem e outros


ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify.

2002e. O nativo relativo. Mana, vol.8, n.1, pp.113-148.

2004. Perspectival Anthropology and the Method of Controlled Equivocation. Tipití 2(1): 3-
22.

2008. Xamanismo transversal: Lévi-Strauss e a cosmopolítica amazônica. In: QUEIROZ, R.


de C.; NOBRE, R. F. (Org.). Lévi-Strauss: leituras brasileiras. Belo Horizonte: Editora
UFMG, p. 79-124.

WATERSON, Roxana.
1995. Houses and Hierarchies in Island Southeast Asia. In: CARSTEN, Janet e HUGH-JONES,
Stephen (eds.). 1995. About the House: Lévi-Strauss and Beyond. Cambridge: Cambridge
University Press, p. 47-68.

YANO, Ana Martha Tie.


2015. Carne e tristeza - sobre a culinária caxinauá e seus modos de conhecer. Tese
(Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo.
401

GLOSSÁRIO

noke vana português arapaçu-de-taoca,


choĩ rapi arapaçu-riscado
aĩ mulher/esposa
eã eu
aima solteiro
ebo'ote cadeira
aĩvo mulher
sipa waka enguia
aka socó
epa pai e tio paterno
akai tomar
epoa'i enterrar
akaĩ apai beber
ewa mãe/ irmã da mãe
akiki chupar
ewe pesado
akõki guardar
ewema leve
amẽ capivara
ha'a ele/ela
amo lanterna/lâmpada
um tipo de cobra hai assim
amo rono grande haka socó boi
amo savã espelho haka koro socózinho
amo tarã lamparina hana língua
anash cipó de amarrar hana kara aracuã-pintado
anipa muito grande hano ali
anipa koĩ enorme haskama negação
ano paca haske tonara por que
asha tingui hato ele
asha sapo hatõra cadê
atãnã matar hatovo eles
atia'i pegar havio maracujá do mato
atishkĩ respirar hawa flor
atsa macaxeira hawa'ai fazer
atsa matxo caiçuma hawe afirmação
atxa cabo hawẽ seu
awa anta hawei o quê
awa mani banana d'água hawera o que (pergunta)
awa mapo tsatsa peixe pescada haya ter
awa rono cobra coral hee formiga de fogo
awama cru heho sapo
ayãsh koĩ cipó titica hene kamã lontra e ariranha
camarão mapi hepe palha
caramujo notxo heshvi pele
chãcha gavião-de-anta hewe contente
chai pássaro hewe'i alegrar
chichi quati hewi rir
mão-pelada
chichi kamã quati-do-nariz-branco hia afirmação

chino koĩ macaco prego hicha'i escrever

chinõ mana macaco-cairara hichi semente

chipi hosho soim branco hichi estrela

chipi kepãya soim bigodeiro hichi'ai escrever

choa tsatsa peixe pataca-do-cão hichina nevoeiro


402

hikoa'i voltar, acoar isã açai


hima formiga preta ishi envira
himi sangue isko japo
hina doméstico/ cavalo iso macaco preto
hina rabo istxapa feio, que não presta
hina pênis itivi sapota
hina'ai andar ĩto menino
hini liquido itxa avó
hini awa peixe boi itxi cascável
hishi envira iwa panela
hitashi canela iwa'i mentir
hiwi árvore iwi arraia
hiwi manvi galho ruim, feio, estragado,
ixtxapa que não serve
hiwi vai pique de caça
kãchi morcego hematófago
hiwi'aki gostar
kai caminho, br, ir
hoa'e chegou
kai'ai correr
hoa'i chegar
kaitxo tchau
hoaitxo olá, cheguei
kaivo parente próximo
hochĩ vermelho
kãkã abacaxi
hochĩ hosho rosa
kãkachi bacu
hoĩti coração
kamã cachorro doméstico
honi homem
kamã carnivóros valentes
honitĩ esconder
kamã hõchi jaguarundi
hono caititu jaguarundi / onça
cachorro-do-mato- kamã hõchi vermelha
hono kamã preto
kamã keneya onça-pintada
horiwe chamar, venha
ariramba-do-paraíso kamã ketsĩ gato-palheiro
horo e ariramba-da-mata kamã koĩ onça
hosho branco kamã koro onça-parda
hosho garça-branca kamã txeshe onça preta
hovo saco escrotal kamaya pulga
ia piolho kamãtxi jirau
iã lagoa kana relampago
piranambu e kana arara
pintadinho, jundiá,
ichichi mandim kana nesho cágado-vermeho
ichkĩ peixe bode-de-garra kana neshõ tracaja de igapo
ichtõko quadril kanea'i criar
iki querer kapa quatipuru
imi menina kapa koro quatipuru
inã igapo kape jacaré
ina'i dar kapi café
iniki vender kapino cupuaçu
inkawã namorar kãpo philomedusa color
ino borduna kara ave do mato
ĩpa pisi jararaca kari batata
ipi palha karo lenha
ipo bodó kasha lábio
ipote cobertor katãwe ir embora
isa ouriço-cacheiro kãti arco
403

katseki contar urubu-da-cabeça-


kosko preta
katsitaro uacarí-branco
kõta coco
kawe convidar para ir
kota'ai queimar
kẽcho tatu-de-rabo-mole
kote lençol
kemo cuspir
desenho, barba, letra, koxo boto
kene parede, dinheiro ma negação
kene hori quarto ma'i terra
kene oro fresta entre tábuas machi areia
kene pitashtĩ esteio machi vaĩ peixe braço-de-moça
kene voshnata janela acará-boi, bocão,
maĩ cara-ferrugem
keneiti pintura
maĩ kaya'i cigarrinha-do-campo
keneoriti preso
maĩ kotxõya tucunaré
keniatĩ caneta
mai poto poeira
kepoti porta
maĩ txeshe peixe cará
kesa lábio
mai'iki trabalhar
kespo vaso
pacarana ou paca de maiti cocar, chapéu
kestavo rabo maitxo caiçuma
ketsĩ gato maka rato
kevo jacu maka pãtxoya coelho
kevo haka carão make piranha
kevo isã bacaba maki'aki matar
kewãti lima para amolar makovo isã patua
kichi coxa mana heho rã
kikai buscar mana rono jiboia
kini buraco mana yawich tatu-açú
kini rono cobra de buraco mana'i esperar
kene vanakĩ ler mani banana
kĩtxa prato capitão-de-coroa e
maria-mirim, bico
ko'ĩ ko'ĩ anu-preto manĩ chai chato de orelha preta
koata'i queimadura mani yora bananeira
verdadeiro,
apropriado, mani kãchi morcego frutivoro
koĩ adequado, prototipo mani noa sopa de banana
koichika uirapuru-verdadeiro mãpa barata
koka tio materno mapará peixe mapará
koki paneiro mapo cabeça
koma nambu mapo'iki dor de cabeça
koma koĩ inhambú-preto mari cotia
koni poraquê maro buriti
kopãtxo baiacu mashasha barro duro
kora taboca mashe urucum
korã borracha maska nunca
korã hiwi seringueira picapau-chocolate e
maskere voĩ picapau-amarelo
kori'i pescar
matõ vocês
koritĩ anzol
matsiki frio
koro roxo, marrom
matsotĩ vassoura
koro mani banana maça
matxaya peixe cuiu-cuiu
koshã cedro
matxe iki cheio
kõsha matá-matá
404

matxi morno neatĩ quatro


matxo mingau jabuti-machado e
cangapará (cágado-
me'eki trabalhar nẽsa de-barbicha)
mechĩ amarelo neona abelha
meshai arrancar ni vari hoje
meshko traíra ni'ai de pé
metash braço ni'i floresta
mẽtsis unha ni'i mispanẽ terra baixa
metxa molhado ni'i txava andar no mato
metxa'i molhar ni'i txosho mato cerrado
mevi mão, cinco ni'i võko folha do mato
mevĩ galho ni'itĩ caçar
mevi napash palma da mão ni'iai ramal
mevi vo'õsh dedo nikawe atenção
mia você nino aqui
mira curica nishõ macaco-da-noite
mirá maracanã-guaçu nivo aranha
inambé de coroa,
peitoril, urubuzinho e niwi vento
formigueiro-grande, noa rio grande
mishmi pretinho nocha peixe jiju (jeju)
moka wãshi chumbo noĩ minhoca
mokawa espingarda noiva'i gostar
monõ caibro noke nós, nosso, gente
monotĩ festa noma juriti
mosha espinho noma hõchi rolinha-roxa
mosho vatõ piau aracu noma hosho pomba-galega
na'ĩ bicho preguiça noni pegada
nacha'i morder nõno pato
nachi nadar, tomar banho notxo korawa anu-coroca
nachi oini passear oa ai
banheiro para tomar
nachitĩ banho oi chuva
nai céu oina'i ver
bicho preguiça-real e oitini inverno
naĩ preguiça-comum
okima raso
naki trovão
okiyãta anteontem
nama'i sonhar
okoiki tossir
nami carne
onamaki amassar
nami rxoshi carne moquinhada
onãtxi mala
nane jenipapo
oni ayahuasca
naneta dentro
opo mosquiteiro
napi mosquito
oshe lua
nasikĩ latir
ostĩ sozinho
natxi tia partena
oti muito
nawesheni capoeira
otima pouco
nawesheni oke capoeira alta
oto saco
nawesheni okema capoeira baixa
otxi irmão mais velho
nea jacamim
pa'aiki gritar
nea este
pa'eti várzea
nearama agora
pai'ai querer
405

paĩ'ai subir tuim e periquito-de-


asa-azul e marcanã-
paĩki gripe pitso do-buriti
paitxa pousar pitxo murmuru
paka lança pivai comeu
pake'ai derrubar poa inhame
paketa'i pular poi irmão sexo oposto
pakevai nascer poko intestino
pakitai cair ponã azul
pakitai parir pona chai pássaros azuis
pako broto popo coruja
pakoma nambu galinha poraquê koni
pana isã açai preguiça-de-coleira e
posẽ preguiça-de-hoffmann
pana isã matxo vinho de açai
poshto barriga
pano tatu canastra
posto hichano peixe cangati
pano prima cruzada
poto pó
panteta'ai abrigar
poyã toko biceps
pãtxo orelha
poyãneiki dor
papa pai
ra sufixo pergunta
papi'ai carregar
ra'o planta que cura
parama barro duro
raka'i sentar
paras lama
rakata deitado
pasa caldo
rakata'i deitar
pasha verde
raketa'i assustar
pati corda
raketi medo
pavi brinco
ramaska talvez
payo podre
rami perto
pe'i folha e telhado
rani pena
pemãna costas
raõti remédio
peri paxiubinha
rari sobrinha
peshe tapiri
ravi dois
pesho toko ombro
ravĩna'i vergonha
pi'hichiki iratauá-pequeno
ravo sho joelho
pia sobrinho
rayo peixe mocinha
pichi costela
rayose sogros do marido
pichi piri cabeça-encarnada
rechti sardinha
pichira faca
rekĩ nariz
pichkĩ sovaco
rini'ai limpar
pini'ai cansar
rira'ai cortar
pinitai cansado
rishki golpear, bater
pinõ beija-flor
rishkiti terçado
pipa'i comer
risis linha
pirote arco
riviwa flor
pisi masho mucura
riwi vana rádio
pisi nesho perema
macaco guariba ou
pisi'ai feder ro'o capelão
pistxa pequeno ro'o kamã cachorro-vinagre
pite comida roa'i curar
pite mirate cozinha roapa bonito, bom
pite samati dieta roe machado
406

roka voshpo macaco paruacú shomaya moça


rome tabaco shomo vaso
romeka'i fumar shõpa mamão
romeya pajé shoroĩti bola
rona'ia saudade shotxi peito
rono cobra shovo casa
capitão-de-fronte- shovo kano caibro
dourada e guarda-
rono chai várzea shovo txio esteio
roro farinha sive também
maçarico-pintado e sina bravo
roroĩ trinta-réis-grande
sinoa'i serrar
sa'ai semente
sipa waka peixe sarapó
saiki cantar, piar
ta'e pé
shẽiki assoviar
ta'e vo'osh dedão do pé
sha'e tamanduá
ta'o paxiuba
sha'o osso
ta'e shaka sapato
sha'o jacundá, peixe sabão
ta'o kãchi morcego (maior)
sha'o voĩ limpa-folha-do-buriti
taka fígado
shai weti peixe bico-de-pato
takara galinha
shaka casca
take cunhado
shako vasho peixe bodé-cachimbo
tãko tracajá
shana cemitério
tama amendoim
shana quente sanã-do-capim e
shata bico tama txashkõ frango-d'água-azul
shavama amanha tamo bochecha
shavamaka de manhã tana saber
shawã arara-vermelha tana'i descobrir
gato-do-mato tanakoĩ conhecedor
(maracajá) e
ta'o paxiuba
shawã kamã Jaguatirica
jurara e muçuã e taoro fresta entre tábuas
irapucá e tartaruga- taosh mata aberta
shawe da-amazônia
jabutitinga, jabuti- tapo jirau
amarelo e tari roupa
shawe koĩ jabutipiranga tãshã pulmão
sheki milho tava doce
shemẽ jupará tavata cana
shenã ingá taweti colar
sheniya homem velho te'a igarapé
sheta dente tẽpo garganta
shete urubu tesho pescoço
shevi vagina rapazinho-do-boné-
shevõ jaci testeroã vermelho
carcará e cauré e
shina'i ciúmes tete gavião-carijó
shio pium tete hosho gavião-pedrês
shoi assado tete txio gavião-azul
shoia'i assar ti'i fogo
tucano-grande-de preguiça,
shoke papo-branco tikish indisposição
shoma leite, peito tisho diarreia
shomavero mamilo bacurau e bacurau-
to'hosh chintã
407

to'oya grávida vanawe leia


maitaca-de-cabeça- vari sol
tõchi azul
varĩ chai pássarinhos
tokã peixe bode-cachimbo
varĩ tete uiraçu-falso
toke longe
varitini verão
toko cozinhar
variwĩti relógio
tokoata cozido
variyama sombra
tonõ mandim
vasho tamboatá
topari matrinchã
vatõ piau
tovitxa'i quebrar
vatxi ovo
tsa'ati enxada
vava neto
tsãka cotiara
vavawã sogros da esposa
tsano colher
vawa papagaio
tsatsa peixe
vechpi sobrancelha
tsave cunhada
vemãna testa
txa'esh martinho
cunhado para ego vena novo
masculino e primo vene marido
cruzado para ego
vepoĩ sêmen
txai feminino
verona rapaz
txaitxo avô
vetõna verde, não maduro
txaka massa de mandioca
vi'i carapanã
txãka peixe bode-tábua
via'i comprar
txakatava beiju
xexéu e inhapim e vimi fruta, arroz
txana japiim inverno, tempo de
martim-pescador- vimitini fruta
verde e martim- vina caba
txarash pescador-grande
viño buriti
txashkõ jacanã
viño pa'eti buritizal
txasho veado
peixe cachorra e vinova'i perder
txashõ paka agulhão viva'i levar
txere periquito vo sufixo plural
txeshe preto vo'o cabelo
txiki gavião-miudinho vo'oshti pente
tximiati caneta voati tarrafa
txipi aplicador de rapé vohe hosho peixe cascuda
txipo depois voĩ pica-pau
txisho bunda voi shoma leite de vaca
txitxo irmã mais velha voka chão
txo'o irmao mais novo voka irara
txoka rede võko embauba
va'ikai caminhar voko maĩ peixe soia
vai caminho, estrada vopi doente
vaĩ surubim e pintado vopia'i adoecer, morrer
vaĩna'i roubar vowe pacu
vake filhote wai roçado
vakish escuro wa'i chorar
vana língua wai vana'i botar roçado
vana'i conversar waka água
vanaiki plantar wani pupunha
408

warã jerimum
warã shõpa melancia
wasa macaco-de-cheiro
washme algodão
wasi capim
wasi chai pássaros
wero olho
wesi'i brincar
wesiti brincadeira, jogo
westi um
wetsa irmão mais novo
irmão do mesmo
wetsa sexo
wĩti coração
ya ter
ya'i com
yama não tem
yami noite
yãta ontem
yãtaka de tarde
yapa piaba
yara não indígena
yawa queixada
yawich tatu
yawich anipa Tatu quinze-quilos
yawich koĩ tatu-galinha
yo'a panela
yochĩ alma
yochini hiti bodó
yoina bicho
yõka goiaba
yoma bagré, gororoba
yome filho
yomevo crianças
yonata'i ter febre
yora corpo
yoshavo mulher velha
yosia'i crescer
yositi aprender
yotãtini tempo frio
yotxi pimenta
yovi taioba
409

ANEXOS
411

ANEXO A – Descrições sobre as habitações de alguns grupos pano no período da borracha


(Castello Branco 1950, p. 31-33).
412
413
415

ANEXO B - Documento expedido pela liderança geral através da associação reconhecendo


Waninawa como aldeia.
417

ANEXO C – G1/AC. Índios recebem casas do governo no interior do Acre. G1, Acre, 06 fev.
2014. Disponível em <http://glo.bo/1isZyCe>. Acesso em: 06 fev. 2014

ENTRE Índios recebem casas do governo no interior do Acre


Povos contemplados são dos municípios de Tarauacá e Cruzeiro do Sul.
No total, foram entregues mais de 160 casas aos povos indígenas no Acre.
Francisco RochaDo G1 AC

Índios recebem casas no interior do Acre


(Foto: Francisco Rocha/G1)

O governo do Acre entregou nesta quarta-feira (5) mais de 160 casas em aldeias indígenas no interior do estado. As moradias foram construídas
por meio do Programa Nacional de Habitação Rural do Governo Federal (PNHR) em parceria com a Caixa Econômica Federal. No total, foram
investidos ao menos R$ 5,3 milhões.

Na primeira etapa do programa, foram contemplados os índios da etnia Katukina que ficam às margens da BR-364, em Cruzeiro do Sul e os
índios da Aldeia pinuya, localizada no município de Tarauacá.

Para o governador Tião Viana, o estado não pode deixar de dar assistência aos povos indígenas que tanto contribuíram para a história do Acre.
"A finalidade do Programa é oferecer mais dignidade às famílias que não têm condições construírem uma moradia melhor", explica.

Governador Tião Viana entrega casa a povos


indígenas no Acre (Foto: Francisco Rocha/G1)

Para o líder José Kaxinawa, que trabalha como assessor de assuntos indígenas no governo do Acre, a inclusão dos povos indígenas no PNHR é
uma forma de trazer mais dignidade ao povo, antes humilhado e discriminado pela sociedade.

“Nosso povo já não é mais o mesmo. Hoje vivemos agrupados em pequenos lotes de terras devido o crescimento das cidades. Nossa cultura não
é mais tão forte como era antes. Portanto, é preciso se adaptar a essa relação com os outros que não são índios. Com certeza essas casas vão
trazer mais dignidade ao povo indígena”, fala.

Ainda de acordo com o assessor, um dos motivos que levou o governo a contemplar os índios Katukinas, é devido ao impacto que eles sofreram
com a construção da BR-364, que corta a terra indígena. Outro fator, é em relação a área que pertence aos índios não ter mais madeira e nem
palheira para a construção de novas moradias.

A inclusão dos índios no programa PNHR foi comemorada na Aldeia. O cacique Fernando Katuna disse que os índios já sofreram muito
preconceito e hoje, querem também a modernidade dos não índios.

“A vida do nosso povo hoje é diferente, os índios eram considerados selvagens, nós não somos selvagens, somos donos da floresta e preservamos
419

ANEXO D – Portal Brasil. Minha Casa Minha Vida chega aos povos indígenas do País. 19
abr. 2014. Disponível em <http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2014/04/minha-casa-
minha-vida-chega-aos-povos-indigenas-do-pais >. Acesso em: 07 fev. 2015

imprensa local, mais de 200 indígenas se cadastraram para retirada de documentos


Menu
como a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP) e o Número de Informações Sociais
Infraestrutura (NIS), itens obrigatórios para participação no PNHR.
A meta é beneficiar centenas de famílias dos povos Kokama, Kambeba, Tikuna e
Minha Casa Minha Vida chega aos povos indígenas do País Kaixana, de comunidades em todo o estado e a previsão é de que residências sejam
construídas em dezenas de aldeias, beneficiando mais de 200 famílias.

Habitação Em Roraima, a Caixa Econômica Federal já assinou 150 contratos habitacionais do


MCMV, para unidades habitacionais em Pacaraima. As casas têm área total de 41,82
metros quadrados m², distribuídos em dois quartos, sala, banheiro, cozinha e área de
Indígenas estão cada vez mais inseridos no programa de habitação rural do serviço externa, com cerâmica em toda casa, em áreas molhadas, até 1,50 metros (m),
governo federal, informa Funai telha de barro e banheiro forrado com PVC. As moradias são construídas com
recursos do Orçamento Geral da União (OGU) em um investimento de R$ 3,84
por Portal Brasil publicado: 19/04/2014 09h48 última modificação: 30/07/2014 03h04 milhões.
Itens relacionados
As aldeias beneficiadas neste estado são a Taxi I e II, Surumu, Contão, Boca da Mata,
Entenda como funciona o Minha Casa Minha Vida
Sorocaima I e II, Barro, Ingarumã, Guariba, Roça, Maruwai, Bananal. Os
(http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2014/04/entenda-como-funciona-o-minha-
empreendimentos beneficiaram, de imediato, 150 famílias.
casa-minha-vida)
Cidades espera entregar 500 mil moradias até o fim de 2014 Entre os contratos que a Caixa Econômica Federal já assinou destacam-se os da
(http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2014/03/cidades-espera-entregar-500-mil- cidade de Nonoai (RS), para financiamento de construção de 254 casas por intermédio
moradias-ate-o-fim-de-2014) do Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR), beneficiando famílias indígenas
Ministro das Cidades entrega 636 unidades do MCMV no Ceará de cinco municípios do Rio Grande do Sul.
(http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2014/03/ministro-das-cidades-entrega-
636-unidades-do-mcmv-no-ceara) O investimento é superior a R$ 7,2 milhões. Na Aldeia Bananeiras, município de
Mais Médicos reforça atendimento em todo o País Nonoai, são construídas 96 casas. Mais 93 moradias em Planalto, 35 casas em Rio
(http://www.brasil.gov.br/saude/2014/04/mais-medicos-reforca-atendimento-em- dos Índios e as outras 30 nos municípios de Iraí e Gramado dos Loureiros.
todo-o-pais) As unidades possuem 54 m² distribuídos em dois quartos, banheiro, sala, cozinha,
Indígena auxilia servidores no atendimento em agência da Previdência Social varanda e área de serviço externa. O subsídio do Programa Minha Casa Minha Vida foi
(http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2014/04/indigena-auxilia-servidores- de R$ 25 mil por unidade. São R$ 2,4 milhões para Nonoai, R$ 2,3 milhões para o
no-atendimento-em-agencia-da-previdencia-social) município de Planalto, R$ 875 mil para Rio dos Índios e R$ 750 mil para Iraí e Gramado
dos Loureiros, totalizando R$ 6,3 milhões em subsídio. A contrapartida, em mão de
O cadastro de agricultores familiares ou trabalhadores rurais indígenas tem feito com obra sob a responsabilidade dos beneficiários, é de R$ 943,1 mil.
que índios de diversas regiões do País consigam ter acesso aos recursos de R$ 30,5
Casas em formato de ocas
mil (por família), disponibilizados pelo governo federal, para aquisição de material de
construção, reforma ou ampliação de habitações em área rural, por meio do programa Após um temporal que atingiu a aldeia Xucuru Cariri, em Caldas (MG), no ano
Minha casa Minha Vida (MCMV). Em certas comunidades, estuda-se a possibilidade passado, provocando destruição na aldeia, os mais de 100 moradores locais
de criação de casas em formato de ocas. conseguiram cadastrar-se no programa MCMV. A ideia é que sejam construídas 37
Conforme dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), indígenas estão cada vez casas, todas de alvenaria e de formas arredondadas, como se fossem ocas.
mais inseridos no plano governamental de implantação do Programa Nacional de O pedido dos moradores ainda está em estudo, assim como de outras comunidades
Habitação Rural (PNHR). que expressaram o mesmo desejo, morar em casas arredondadas, que caracterizam
Hoje, conforme dados do IBGE, há no País 817.963 indígenas, dos quais 502.783 as moradias dos povos indígenas do Brasil. Um dos problemas observados é que
vivem na zona rural e 315.180 habitam as zonas urbanas brasileiras. Esta população, estas casas teriam o tamanho reduzido - dos atuais 58 metros quadrados para menos
em sua grande maioria, vem enfrentando acelerada e complexa transformação social, de 50.
necessitando novas respostas para a sua sobrevivência física e cultural e garantia às Ideia parecida surgiu entre os índios yawanawá, no Acre, na ocasião de um festival que
próximas gerações melhor qualidade de vida. Neste cenário, as casas entregues aos reuniu arquitetos, designers, chefs de cozinha, entre outros profissionais que visitaram
povos indígenas por meio do MCMV consolidam o empenho em celebrar a cultura a comunidade comm 140 famílias e 800 índios que vivem nas margens do rio Gregório,
indígena nacional. numa área distante cerca de oito horas de canoa e mais sete horas por terra de Rio
As iniciativas podem ser vistas de Norte a Sul do Brasil. No estado do Amazonas, por Branco.
exemplo, o programa já chegou a comunidades indígenas das cidades de Tefé, Maraã, O cacique Biraci chegou a deixar as terras locais nos anos 1980, devido a problemas
Alvarães, Rio Preto da Eva e São Gabriel da Cachoeira, entre outras. Em Tefé, diz a de terras com outros grupos, voltando ao local para recuperar o território anos mais
tarde. A ideia é que as novas moradias sejam construídas por meio do MCMV,
concebidas por uma equipe de arquitetos e antropólogos, em formato de uma

estrutura circular de madeira, com sete casas separadas por espaços de convivência e
dispostas em torno de um grande terreno central, assim como são as comunidades
indígenas tradicionais.
A ideia é recuperar tradições da tribo, principalmente no que tange as habitações. A
madeira usada para as estruturas deve ser recolhida no local, assim como a palha para
a cobertura.
O projeto está em fase de aprovação no Programa Nacional de Habitação Rural e a
ideia é que a aldeia esteja pronta no fim do ano.
Fontes:
Portal Brasil com informacões da Funai
Todo o conteúdo deste site está publicado sob a licença Creative Commons CC BY
ND 3.0 Brasil
Reportar erro (http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2014/04/minha-casa-minha-vida-
chega-aos-povos-indigenas-do-pais/relatar-erros)
registrado em: Povos indígenas (http://www.brasil.gov.br/@@search?
Subject%3Alist=Povos%20ind%C3%ADgenas), MCMV
(http://www.brasil.gov.br/@@search?Subject%3Alist=MCMV), Roraima
(http://www.brasil.gov.br/@@search?Subject%3Alist=Roraima), Rio Grande do Sul
(http://www.brasil.gov.br/@@search?Subject%3Alist=Rio%20Grande%20do%20Sul),
Amazonas (http://www.brasil.gov.br/@@search?Subject%3Alist=Amazonas), Dia do
Índio (http://www.brasil.gov.br/@@search?
Subject%3Alist=Dia%20do%20%C3%8Dndio)
Assunto(s): Indígena (http://www.brasil.gov.br/@@search?
skos%3Alist=http%3A%2F%2Fvocab.e.gov.br%2F2011%2F03%2Fvcge%23indigena),
Habitação (http://www.brasil.gov.br/@@search?
skos%3Alist=http%3A%2F%2Fvocab.e.gov.br%2F2011%2F03%2Fvcge%23habitacao)
421

ANEXO E – Agencia AC.21 jun. 2012. Projeto de habitação Indígena vai construir mais de
180 casas no Acre. Agencia AC, Acre.
Disponível em <http://www.agencia.ac.gov.br/noticias/acre/projeto-de-habitacao-indigena-
vai-construir-mais-de-180-casas-no-acre> Acesso em: 21 ago. 2012.

8/21/12 Projeto de Habitação Indígena vai construir mais de 180 casas no Acre

…ac.gov.br/…/19932-‐‑projeto-‐‑de-‐‑habitacao-‐‑indigena-‐‑vai-‐‑construir-‐‑mais-‐‑de-‐‑180-‐‑casas-‐‑no-‐‑acre-‐‑.html 1/3
422

8/21/12 Projeto de Habitação Indígena vai construir mais de 180 casas no Acre

…ac.gov.br/…/19932-‐‑projeto-‐‑de-‐‑habitacao-‐‑indigena-‐‑vai-‐‑construir-‐‑mais-‐‑de-‐‑180-‐‑casas-‐‑no-‐‑acre-‐‑.html 2/3
423

8/21/12 Projeto de Habitação Indígena vai construir mais de 180 casas no Acre

Tweetar 0

…ac.gov.br/…/19932-‐‑projeto-‐‑de-‐‑habitacao-‐‑indigena-‐‑vai-‐‑construir-‐‑mais-‐‑de-‐‑180-‐‑casas-‐‑no-‐‑acre-‐‑.html 3/3
425

ANEXO F – Tribuna do Juruá, AC. 06 ago. 2013. Índios katukinas são beneficiados
programa de habitação rural. Acre, 06 ago. 2013. Disponível em
<http://www.tribunadojurua.com.br/cruzeiro-do-sul/indios-katukinas-sao-beneficiados-
programa-de-habitacao-rural/>. Acesso em: 07 ago. 2013.

HOME GERAL ACRE POLICIAL POLITICA ESPORTES EDUCAÇÃO CONCURSOS BRASIL MUNDO VÍDEOS LICITAÇÕES

Publicado  em  6  de  agosto  de  2013

Índios  katukinas  são  beneficiados


programa  de  habitação  rural
Curtir Compartilhar 0

Os  índios  da  etnia  katukina  estão  sendo


beneficiados   com   o   programa   Nacional
de   Habitação   Rural   (PNHR).   A
construção   de   casas   nas   aldeias   é   uma
política   compensatória   em   função   das
obras   da   BR   364,   que   corta   a   terra
indígena   em   quase   a   sua   totalidade.
Cerca   de   130   famílias   de   seis   aldeias
diferentes  estão  sendo  beneficiadas.

“O  projeto  foi  iniciado  no  ano  passado  e


ao   longo   dessa   caminhada   tivemos
muitos   desafios   e   dificuldades,
principalmente  na  questão  do  acesso  às
aldeias,   que   em   boa   parte   do   ano   fica
restrito  por  conta  das  chuvas.  Assim,  ver
o   material   chegando   e   as   casas
começando   a   serem   edificadas   é   muito
gratificante”,   declarou   o   coordenador
geral  da  Fundação  Nacional  do  Índio  (Funai)  no  Juruá,  Luiz  Valdenir  Nukini.

Ainda   segundo   ele,   nas   visitas   técnicas   para   a   apresentação   do   projeto   àquele   povo,
estão   sendo   realizados   trabalhos   de   resgate   da   cultura   milenar   da   habitação
tradicional.  As  casas  são  desenhadas  em  formato  de  oca,  mas  adaptadas  ao  conforto  e
a   modernidade   atual,   tudo   feito   em   consenso   entre   a   comunidade   e   os   arquitetos   do
governo  do  Estado  e  Caixa,  além  de  técnicos  da  Funai.
426

O   PNHR   utiliza   recursos   do   Orçamento   Geral   da   União   (OGU)   para   financiar   a


aquisição   de   material   para   a   construção   ou   conclusão/reforma/ampliação   de   unidade
habitacional   em   área   rural.   O   programa   oferece   subsídios   para   pessoa   física,
trabalhador   rural   ou   agricultor   familiar,   índios   e   extrativistas   com   renda   familiar   bruta
anual  de  até  R$  15mil.

Tribuna  do  Juruá  –  Jorge  Natal


427

ANEXO G – Juruá online, AC. 26 out. 2015. Katukinas bloqueiam BR364 para exigir
cumprimento de promessas. Acre. Disponível em
<http://www.juruaonline.net/politica/katukinas-bloqueiam-br364-para-exigir-cumprimento-
de-promessas-do-governo-estadual/>. Acesso em: 26 out. 2015).

10/26/2015 Katukinas bloqueiam BR364 para exigir cumprimento de promessas - Juruá Online - Notícias do Juruá, Acre, Tv Juruá, Juruá FM

26/10/2015,  13:21  |  Por:  Leandro

Katukinas bloqueiam BR364 para exigir


cumprimento de promessas
Os  indígenas  reivindicam  do  governo  do  estado  instalação  de  energia
elétrica  em  residências,  água  tratada,  melhorias  prometidas,  porém  ainda
não  cumpridas.
Um  protesto  dos  índios  katukinas
(noke  koe)  bloqueou  a  BR-­364
desde  as  duas  horas  da
madrugada  de  domingo  (26).    Os
indígenas  reivindicam  do
governo  do  estado  instalação  de
energia  elétrica  em  residências,
água  tratada,  além  de  outras
melhorias  já  prometidas,  porém
Protesto  fechou  a  BR  364  na  TI  Katukina
ainda  não  cumpridas.

Os  índios  bloquearam  a  rodovia


no  início  da  terra  indígena,  a  cerca  de  70  quilômetros  de  Cruzeiro  do  Sul.  Maurício
Katukina,  cacique  de  uma  das  aldeias,  listou  as  várias  reivindicações  que  resultaram  no
protesto.  Entre  elas,  algumas  promessas  que  segundo  ele  o  governo  do  estado  prometeu
e  não  cumpriu.

“Nos  prometeram  ligação  de  luz


nas  casas  novas  e  água  encanada,
ramal  nas  aldeias,  pois  está  sem
acesso  para  a  equipe  de  saúde.”
Maurício  diz  também  que  uma
das  aldeias  estaria  ainda  sem
açude  e  sem  a  escola  prometida.
Eles  também  pediram  mais  um
quebra  mola  na  aldeia  nova  para
Maurício  Katukina,  liderança  de  uma  das  aldeias
evitar  atropelamentos.

A  água  barrenta  retirada  de


igarapés  na  terra  indígena  estaria  causando  doenças  principalmente  nas  crianças,  uma
amostra  da  água  foi  exibida  pelos  índios  durante  o  protesto.

data:text/html;charset=utf-8,%3Cp%20class%3D%22blogdate%22%20style%3D%22box-sizing%3A%20border-box%3B%20margin%3A%200px%3B%20pad... 1/2
428

10/26/2015 Katukinas bloqueiam BR364 para exigir cumprimento de promessas - Juruá Online - Notícias do Juruá, Acre, Tv Juruá, Juruá FM

“temos  poços  artesianos  mas  como  foi  cortada  a  rede  de  energia,  eles  não  está
funcionando,  por  isso  estamos  tendo  problema  de  doença  como  diarreia  e  vômitos.”,
disse  o  cacique.

O  bloqueio  da  BR  causou  transtornos  aos  passageiros  dos  ônibus  que  fazem  a  linha
entre  Rio  Branco  e  Cruzeiro  do  Sul.

Ainda  pela  manhã  ocorreu  uma  reunião  na  FUNAI  com  a  presença  do  representante  do
governo  do  estado  no  Juruá,  PF,  Exército  e  Ministério  Público.  Por  telefone,  o
representante  do  governo  do  estado  no  Juruá,  Itamar  de  Sá  disse  que  uma  comissão  já
estaria  se  deslocando  para  a  BR  a  fim  de  negociar  a  liberação  da  pista.  Itamar  explicou
ainda  que  aquilo  que  for  de  competência  do  governo  será  afirmado  com  os  indígenas  e
na  quinta-­feira  deverá  ocorrer  uma  reunião  com  o  representante  da  Eletrobrás,  para
buscar  uma  solução  para  a  questão  da  energia  e  dos  poços  artesianos.

A  expectativa  é  de  que  a  BR  seja  liberada  ainda  na  tarde  desta  segunda-­feira  (26)

Reportagem  Genival  Moura

Juruá  On  Line

data:text/html;charset=utf-8,%3Cp%20class%3D%22blogdate%22%20style%3D%22box-sizing%3A%20border-box%3B%20margin%3A%200px%3B%20pad... 2/2
429

ANEXO H – Termos noke koĩ para partes do corpo e partes da casa

Partes da casa
assoalho (voka)
parede (shovo kene)
telhado (shovo shevata)
esteio (shovo txio)
cumeeira (shomo makã teseka)
sustentação do assoalho (tao kashete)
porta (kepoti)
janela (kene voshnata)
chão (voka)
esteio (kene pinashtĩ)
parede (kene)

Partes do corpo:
cabeça (mapo)
pescoço (tesho)
braço (metash)
mão (mevi)
coxa (kichi)
canela (hitashi)
barriga (poshto)
ombro (tesho toko)
pé (ta'e)
431

ANEXO I – Termos de parentesco noke koĩ


NOTAÇÃO DESCRIÇÃO GERAÇÃO
TERMO EGO
INGLESA
M Mãe +1
Ewa ♂♀
MZ Irmã da mãe +1
MM Mãe da mãe +2
FM Mãe do pai
MMZ Irmã da mãe da mãe +2
Itxa ♂♀
MFZ Irmã do pai da mãe +2
FMZ Irmã da mãe do pai +2
FFZ Irmã do pai do pai +2
MF Pai da mãe +2
FFB Irmão do pai do pai +2
Txaitxo ♂♀ FMB Irmão da mãe do pai +2
MFB Irmão do pai da mãe +2
MMB Irmão da mãe da mãe +2
F Pai +1
Epa ♂♀
FB Irmão do pai +1
Koka ♂♀ MB Irmão da mãe +1
Natxi ♂♀ FZ Irmã do pai +1
WM Mãe da esposa +1
Rayose ♂♀ WF Pai da esposa +1
DH Marido da filha
HM Mãe do marido +1
Vavawã ♂♀ HF Pai do marido
SW Esposa do filho -1
Vene ♀ H Marido
Awĩ ♂ W Esposa
B Irmão 0

MZS Filho da irmã da mãe 0
Wetsa
Z Irmã 0

MZD Filha da irmã da mãe 0
B Irmão 0

MZS Filho da irmã da mãe 0
Poi
Z Irmã 0

MZD Filha da irmã da mãe 0
Otxi ♂♀ elB Irmão mais velho 0
Txitxo ♂♀ elZ Irmã mais velha 0
Txo’o ♂♀ yB Irmão mais novo 0
432

yZ Irmã mais nova 0


♀ MBD Filha do irmão da mãe 0
Tsave
♀ FZD Filha da irmã do pai 0
♂ MBD Filha do irmão da mãe 0
Pano
♂ FZD Filha da irmã do pai 0
MBS Filho do irmão da mãe 0
Txai ♂♀
FZS Filho da irmã do pai 0
HZ Irmã do marido

HB Irmão do marido
WB Irmão da esposa
Take ♂
WZ Irmã da esposa
BW Esposa do irmão
♂♀
ZH Marido da irmã
S Filho -1
D filha -1
Vake ♂♀
BS Filho do irmão -1
ZD Filha da irmã -1
BS Filho do irmão -1
Pia ♂♀
ZS Filho da irmã -1
ZD Filha da irmã -1
Rari ♂♀
BD Filha do irmão -1
SS Filho do filho -2
DS Filho da filha -2
Vava ♂♀
DD Filha da filha -2
SD Filha do filho -2

Algumas observações
Entre os noke koĩ há distinção terminológica de geração em cinco níveis: G+2, G+1, 0,
G-1 e G-2. Há distinção entre consanguíneos e afins nas gerações G+1, 0 e G-1. Os termos
vocativos usados nessas gerações são os mesmos usados em referência, sendo que no último
caso eles são nasalizados, por exemplo, ewa é vocativo e ewã é referencia (Lima 2000a). Os
termos de parentesco dos noke koĩ correspondem a uma estrutura dravidiana assim como
outros grupos pano, no entanto, diferente de muitos deles, os noke koĩ não combinam
terminologia de referência dravidiana com terminologia vocativa do tipo kariera.
O uso de nomes pessoais é mais comum entre G-1 e G-2, sendo que os termos de
parentesco são usados não como vocativo, mas como referência.
433

Na geração do ego, os termos apontam para diferenças de idade e de gênero entre


irmãos. A diferença de gênero aparece em diferentes termos para ego masculino e ego
feminino, exceto em G-2.
Não há distinção terminológica entre FF (pai do pai), MF (mãe do pai), MM (mãe da
mãe), FM (pai da mãe), nem para sogros efetivos.
O quadro acima foi construído com base em dados de campo cotejados com diagrama
presente em Lima 2000a238.

238
Para mais sobre termos de parentesco entre os noke koĩ, ver Lima 1994 e2000a.
435

ANEXO J – Narrativa mítica que conta a origem dos animais, versão em: Lima (2000,
p.202):
“Não tinha caça, macaxeira, não existia nada. Só existia a floresta, mas dentro da
floresta não tinha nenhum tipo de bicho. Um dia, uma mulher chamou seu marido para
colher pama (fruta), no alto do pé. O marido estava lá em cima e a mulher ficou
embaixo esperando ele quebrar o galho para jogar para ela.. Lá em cima do pau ele
imitou macaco-preto. Assim que ele imitou, tinha um pau grande perto da pama, a
mulher estava embaixo e viu esse pau mexendo e de lá saiu só uma pessoa, um
homem. Era do pessoal que mora embaixo da terra (maeyushinvo). Essa pessoa saiu
com uma zarabatana. A mulher se escondeu. O marido dela, lá em cima, imitou de
novo a macaco-preto. O homem que saiu debaixo da terra assoprou com a zarabatana e
acertou na perna e depois no peito dele. O homem trepado na árvore imitou de novo o
macaco-preto e o maeyushin assoprou com a zarabatana e acertou no pescoço dele.
Ele começou a vomitar e caiu no chão. A mulher estava escondida vendo o que o
maeyushin estava fazendo com o marido dela. Quando ele caiu da árvore, maeyushin
colocou-o nas costas e entrou de novo no pau, para debaixo da terra. A mulher dele
saiu correndo para avisar seus parentes como foi e quem foi que matou o marido dela.
Quando chegou na maloca ela contou pro pessoal. Ela falou que havia sido um homem
que mora embaixo da terra. No outro dia, todos se reuniram e decidiram matar o
homem debaixo da terra, queriam vingar o parente morto. Saíram todos e foram
observar o pau de onde o homem tinha saído. Havia umas formigas pretas carregando
o cabelo do homem para fora de um buraco na terra. A mulher do homem morto falou
que tinha sido ali mesmo que tudo aconteceu. O pessoal começou a cavar buraco para
debaixo da terra. Todos homens e mulheres se reuniram, limparam em volta do pau
para cavar. Nesse tempo tinha um homem velho que colocou nome nos bichos
todinhos. Achou um bicho e colocou o nome de paca (ano). Cavaram mais e saiu um
tatu (yawish), depois saiu tatu canastra (pano). Esses bichos que foram debaixo da
terra procurar o povo do maeyushin. A paca não conseguiu ir. O tatu-canastra fez um
buraco bem grande embaixo da terra. Faltava só um pouco para chegar no
maeyushinvo (povo que mora embaixo da terra). Aí os Katukina reuniram todos. O
tatu fez um buraco bem pequeno para atravessar para a aldeia deles. Mandaram um
calango para ver se o homem estava em casa. O calango foi lá e encontrou somente
uma velha. O calango avisou o tatu canastra que só tinha uma velha lá. Aí mandaram o
jabuti. Jabuti foi para debaixo da terra e só viu a velha. Aí mandaram o veado ir olhar.
436

O veado foi e só viu a velha. Aí mandaram a tartaruga e o homem ainda não estava lá,
só o velha.
Nesse tempo, a onça não estava pintada. O pessoal reuniu e resolveu pintar a onça e o
gato. Pintaram a onça com jenipapo e ela ficou toda malhada. Aí a cotia que tinha
pintado uma onça ficou com preguiça de pintar uma outra com jenipapo e colocou só
urucum, por isso que existe essa onça vermelha. Aí mandaram a onça para debaixo da
terra, ela viu a velha e matou a velha. A onça subiu e avisou que tinha matado a velha,
que o homem não tinha chegado. Aí o homem da tribo dos maeyushinvo não era
homem, era um gavião do tamanho de um avião. Aí pensaram: a gente tem que tomar
cuidado que esse homem vai querer matar a gente. Koka Pino Txari239 que avisou que
esse homem era gavião grande. Koka Pino Txari fez as pessoas virarem veado, paca,
anta, macaco-preto, cotia... Ele que deu nome dos bichos. Por isso que quando a
criança está doente não pode comer carne de caça.
Aí o gavião grande chegou. Logo que chegou entrou no buraco que levava para
debaixo da terra. Chegando lá viu a mãe dele morta no terreiro. Ele falou:
- "Foi o pessoal de cima que matou minha mãe, eu vou lá matar tudinho."
O pessoal escutou a zoada do gavião. Koka pinho txarí avisou:
- "Corram logo senão o gavião vai pegar vocês todos."
O gavião espantou todos os bichos. Aí os homens viraram veado, outro virou
queixada, paca... Só tinha bicho que tinha quatro patas, não tinha ave de pena. Aí
Koka Pino Txari arrancou os cabelos da perna e assoprou. Virou jacamim, jacu,
nambu, tucano, arara....”

239
Um demiurgo.
437

ANEXO K – Materiais usados na identificação de espécies.

9/2/2014 Espécies  das  cidades  em  um  raio  de  50  km  de  Cruzeiro  do  Sul/AC

         09/02/2014  20:35:19

Espécies  das  cidades  em  um  raio  de  50  km  de  Cruzeiro  do  Sul/AC

[Família] Espécie Nome  Comum Sons Fotos


Accipitridae Accipiter  superciliosus gavião-­miudinho 0 1
Buteo  nitidus gavião-­pedrês 0 2
Buteogallus  schistaceus gavião-­azul 1 1
Elanoides  forficatus gavião-­tesoura 0 1
Leptodon  cayanensis gavião-­de-­cabeça-­cinza 0 1
Morphnus  guianensis uiraçu-­falso 0 1
Rupornis  magnirostris gavião-­carijó 0 5
Alcedinidae Chloroceryle  aenea martinho 0 1
Chloroceryle  amazona martim-­pescador-­verde 0 2
Megaceryle  torquata martim-­pescador-­grande 0 4
Apodidae Chaetura  brachyura andorinhão-­de-­rabo-­curto 1 0
Tachornis  squamata andorinhão-­do-­buriti 0 1
Aramidae Aramus  guarauna carão 0 1
Ardeidae Ardea  alba garça-­branca-­grande 0 1
Bubulcus  ibis garça-­vaqueira 0 2
Butorides  striata socozinho 0 3
Tigrisoma  lineatum socó-­boi 0 1
Bucconidae Bucco  macrodactylus rapazinho-­de-­boné-­vermelho 0 2
Chelidoptera  tenebrosa urubuzinho 0 2
Monasa  morphoeus chora-­chuva-­de-­cara-­branca 0 1
Monasa  nigrifrons chora-­chuva-­preto 0 1
Notharchus  hyperrhynchus macuru-­de-­testa-­branca 0 1
Capitonidae Capito  auratus capitão-­de-­fronte-­dourada 0 2

Capito  aurovirens capitão-­de-­coroa 0 1


Eubucco  richardsoni capitão-­de-­bigode-­limão 0 1
Caprimulgidae Hydropsalis  albicollis bacurau 0 1
Hydropsalis  climacocerca acurana 0 1
Hydropsalis  parvula bacurau-­chintã 0 1
Cardinalidae Habia  rubica tiê-­do-­mato-­grosso 1 0
Cathartidae Cathartes  aura urubu-­de-­cabeça-­vermelha 0 3
Cathartes  melambrotus urubu-­da-­mata 0 3
Coragyps  atratus urubu-­de-­cabeça-­preta 0 1
Sarcoramphus  papa urubu-­rei 0 2
Charadriidae Charadrius  collaris batuíra-­de-­coleira 0 3
Columbidae Columbina  talpacoti rolinha-­roxa 0 4
Patagioenas  cayennensis pomba-­galega 0 2
Corvidae Cyanocorax  violaceus gralha-­violácea 0 5
Cotingidae Cotinga  cayana anambé-­azul 0 2
Gymnoderus  foetidus anambé-­pombo 0 1
Lipaugus  vociferans cricrió 1 0
Cracidae Ortalis  guttata aracuã-­pintado 0 3
Cuculidae Crotophaga  ani anu-­preto 0 2
Crotophaga  major anu-­coroca 0 2
Piaya  cayana alma-­de-­gato 0 1
Dendrocolaptidae Dendrocincla  merula arapaçu-­da-­taoca 0 1
Dendrocolaptes  juruanus arapaçu-­barrado-­do-­juruá 0 1
Dendroplex  picus arapaçu-­de-­bico-­branco 0 1

http://www.wikiaves.com/especies.php?t=c&c=1200203&r=50&print=1 1/5
438

9/2/2014 Espécies  das  cidades  em  um  raio  de  50  km  de  Cruzeiro  do  Sul/AC

Xiphorhynchus  obsoletus arapaçu-­riscado 0 1


Falconidae Caracara  plancus caracará 0 3
Daptrius  ater gavião-­de-­anta 0 1
Falco  rufigularis cauré 0 2
Fringillidae Euphonia  chlorotica fim-­fim 0 2
Euphonia  chrysopasta gaturamo-­verde 0 1
Euphonia  minuta gaturamo-­de-­barriga-­branca 0 1
Furnariidae Berlepschia  rikeri limpa-­folha-­do-­buriti 0 2
Cranioleuca  vulpina arredio-­do-­rio 0 1
Furnarius  leucopus casaca-­de-­couro-­amarelo 0 2
Synallaxis  albigularis joão-­de-­peito-­escuro 0 1
Synallaxis  rutilans joão-­teneném-­castanho 1 0
Galbulidae Galbula  cyanicollis ariramba-­da-­mata 0 1
Galbula  dea ariramba-­do-­paraíso 0 3
Hirundinidae Atticora  fasciata peitoril 0 2
Progne  chalybea andorinha-­doméstica-­grande 0 2
Stelgidopteryx  ruficollis andorinha-­serradora 0 1
Tachycineta  albiventer andorinha-­do-­rio 0 2
Icteridae Cacicus  cela xexéu 0 4
Chrysomus  icterocephalus iratauá-­pequeno 0 3
Icterus  cayanensis inhapim 1 2
Molothrus  bonariensis vira-­bosta 0 1
Molothrus  oryzivorus iraúna-­grande 0 2
Procacicus  solitarius iraúna-­de-­bico-­branco 0 1
Sturnella  militaris polícia-­inglesa-­do-­norte 0 2
Jacanidae Jacana  jacana jaçanã 0 2
Passerellidae Ammodramus  aurifrons cigarrinha-­do-­campo 0 4
Passeridae Passer  domesticus pardal 0 1
Picidae Campephilus  melanoleucos pica-­pau-­de-­topete-­vermelho 0 3
Campephilus  rubricollis pica-­pau-­de-­barriga-­vermelha 0 3
0 1
Celeus  elegans pica-­pau-­chocolate

Celeus  flavus pica-­pau-­amarelo 0 1


Dryocopus  lineatus pica-­pau-­de-­banda-­branca 0 1
Melanerpes  cruentatus benedito-­de-­testa-­vermelha 0 5
Piculus  laemostictus pica-­pau-­de-­garganta-­pintada 0 1
Picumnus  rufiventris pica-­pau-­anão-­vermelho 1 0
Veniliornis  passerinus picapauzinho-­anão 0 3
Pipridae Ceratopipra  rubrocapilla cabeça-­encarnada 1 3
Manacus  manacus rendeira 0 1
Xenopipo  atronitens pretinho 0 1
Platyrinchidae Neopipo  cinnamomea enferrujadinho 1 1
Psittacidae Amazona  farinosa papagaio-­moleiro 0 1
Ara  chloropterus arara-­vermelha-­grande 0 1
Ara  severus maracanã-­guaçu 0 1
Aratinga  weddellii periquito-­de-­cabeça-­suja 0 6
Brotogeris  cyanoptera periquito-­de-­asa-­azul 1 3
Forpus  xanthopterygius tuim 0 2
Orthopsittaca  manilatus maracanã-­do-­buriti 0 1
Pionites  leucogaster marianinha-­de-­cabeça-­amarela 0 1
Pionus  menstruus maitaca-­de-­cabeça-­azul 0 2
Touit  purpuratus apuim-­de-­costas-­azuis 0 2
Rallidae Laterallus  exilis sanã-­do-­capim 0 1

http://www.wikiaves.com/especies.php?t=c&c=1200203&r=50&print=1 2/5
439

9/2/2014 Espécies  das  cidades  em  um  raio  de  50  km  de  Cruzeiro  do  Sul/AC

Porphyrio  martinicus frango-­d'água-­azul 0 1


Ramphastidae 0 4
Pteroglossus  castanotis araçari-­castanho

Pteroglossus  mariae araçari-­de-­bico-­marrom 0 1


Ramphastos  tucanus tucano-­grande-­de-­papo-­branco 0 2
Ramphastos  vitellinus tucano-­de-­bico-­preto 1 0
Rhynchocyclidae Hemitriccus  griseipectus maria-­de-­barriga-­branca 1 1
Hemitriccus  minimus maria-­mirim 1 0
Todirostrum  chrysocrotaphum ferreirinho-­de-­sobrancelha 0 2
Todirostrum  maculatum ferreirinho-­estriado 0 1
Tolmomyias  sulphurescens bico-­chato-­de-­orelha-­preta 1 0
Scolopacidae Actitis  macularius maçarico-­pintado 0 1
Sternidae Phaetusa  simplex trinta-­réis-­grande 0 2
Sternula  superciliaris trinta-­réis-­anão 0 1
Strigidae Athene  cunicularia coruja-­buraqueira 0 1
Lophostrix  cristata coruja-­de-­crista 0 1
Thamnophilidae Akletos  melanoceps formigueiro-­grande 1 2
Hylophylax  punctulatus guarda-­várzea 1 1
Hypocnemis  peruviana cantador-­sinaleiro 1 0

Hypocnemoides  maculicauda solta-­asa 1 1


Myrmotherula  axillaris choquinha-­de-­flanco-­branco 1 0
Myrmotherula  multostriata choquinha-­estriada-­da-­amazônia 1 3
Sciaphylax  hemimelaena formigueiro-­de-­cauda-­castanha 0 1
Sclateria  naevia papa-­formiga-­do-­igarapé 0 1

Thamnomanes  saturninus uirapuru-­selado 1 0

Thamnophilus  amazonicus choca-­canela 1 1


Thamnophilus  doliatus choca-­barrada 0 4
Thamnophilus  murinus choca-­murina 1 0
Thamnophilus  schistaceus choca-­de-­olho-­vermelho 0 1
Thraupidae Cissopis  leverianus tietinga 0 3
Cyanerpes  caeruleus saí-­de-­perna-­amarela 0 1
Cyanerpes  cyaneus saíra-­beija-­flor 0 2
Cyanerpes  nitidus saí-­de-­bico-­curto 0 1
Dacnis  cayana saí-­azul 0 3
Hemithraupis  flavicollis saíra-­galega 0 1
Lanio  penicillatus pipira-­da-­taoca 0 1
Paroaria  gularis cardeal-­da-­amazônia 0 1
Ramphocelus  carbo pipira-­vermelha 0 5
Ramphocelus  nigrogularis pipira-­de-­máscara 0 3
Saltator  azarae sabiá-­gongá-­da-­amazônia 0 3
Saltator  grossus bico-­encarnado 0 1
Sporophila  angolensis curió 0 2

Sporophila  castaneiventris caboclinho-­de-­peito-­castanho 0 4


Sporophila  lineola bigodinho 0 1
Sporophila  murallae papa-­capim-­de-­caquetá 0 1
Tangara  chilensis sete-­cores-­da-­amazônia 1 3
Tangara  episcopus sanhaçu-­da-­amazônia 0 2
Tangara  mexicana saíra-­de-­bando 0 1
Tangara  nigrocincta saíra-­mascarada 0 1
Tangara  palmarum sanhaçu-­do-­coqueiro 0 4
Tangara  velia saíra-­diamante 0 1
Tersina  viridis saí-­andorinha 0 1

http://www.wikiaves.com/especies.php?t=c&c=1200203&r=50&print=1 3/5
440

9/2/2014 Espécies  das  cidades  em  um  raio  de  50  km  de  Cruzeiro  do  Sul/AC

Volatinia  jacarina tiziu 0 4


Tinamidae Crypturellus  cinereus inhambu-­preto 1 0
Tityridae Iodopleura  isabellae anambé-­de-­coroa 0 2
Tityra  semifasciata anambé-­branco-­de-­máscara-­negra 0 1
Trochilidae Amazilia  lactea beija-­flor-­de-­peito-­azul 0 6
Anthracothorax  nigricollis beija-­flor-­de-­veste-­preta 0 2

Campylopterus  largipennis asa-­de-­sabre-­cinza 0 1


Chlorostilbon  mellisugus esmeralda-­de-­cauda-­azul 0 2
Florisuga  mellivora beija-­flor-­azul-­de-­rabo-­branco 0 2
Glaucis  hirsutus balança-­rabo-­de-­bico-­torto 0 1
Heliodoxa  aurescens beija-­flor-­estrela 0 1
Heliomaster  longirostris bico-­reto-­cinzento 0 1
Heliothryx  auritus beija-­flor-­de-­bochecha-­azul 0 1
Hylocharis  cyanus beija-­flor-­roxo 1 1
Phaethornis  ruber rabo-­branco-­rubro 0 2
Thalurania  furcata beija-­flor-­tesoura-­verde 0 3
Troglodytidae Cyphorhinus  arada uirapuru-­verdadeiro 1 0
Troglodytes  musculus corruíra 0 4
Trogonidae Pharomachrus  pavoninus surucuá-­pavão 0 1
Trogon  curucui surucuá-­de-­barriga-­vermelha 0 1
Trogon  melanurus surucuá-­de-­cauda-­preta 1 0
surucuá-­grande-­de-­barriga-­
Trogon  viridis 2 6
amarela
Turdidae Catharus  swainsoni sabiá-­de-­óculos 0 1

Turdus  amaurochalinus sabiá-­poca 0 1


Turdus  ignobilis caraxué-­de-­bico-­preto 0 3
Tyrannidae Attila  cinnamomeus tinguaçu-­ferrugem 1 0
Contopus  cooperi piui-­boreal 0 2
Elaenia  spectabilis guaracava-­grande 0 1
Empidonax  alnorum papa-­moscas-­de-­alder 0 1
Empidonomus  varius peitica 0 2
Griseotyrannus
peitica-­de-­chapéu-­preto 0 5
aurantioatrocristatus
Legatus  leucophaius bem-­te-­vi-­pirata 0 1
Myiarchus  tuberculifer maria-­cavaleira-­pequena 1 1
Myiodynastes  maculatus bem-­te-­vi-­rajado 0 3
Myiopagis  gaimardii maria-­pechim 0 1
Myiophobus  fasciatus filipe 0 1
Myiozetetes  luteiventris bem-­te-­vi-­barulhento 0 1

Ochthornis  littoralis maria-­da-­praia 0 2


Phaeomyias  murina bagageiro 0 1
Pitangus  sulphuratus bem-­te-­vi 0 1
Pyrocephalus  rubinus príncipe 0 7
Ramphotrigon  ruficauda bico-­chato-­de-­rabo-­vermelho 1 1
Tyrannopsis  sulphurea suiriri-­de-­garganta-­rajada 0 2
Tyrannulus  elatus maria-­te-­viu 0 1

Tyrannus  melancholicus suiriri 0 3

Tyrannus  savana tesourinha 0 3


Tyrannus  tyrannus suiriri-­valente 0 2
Vireonidae Hylophilus  thoracicus vite-­vite 1 0
Vireo  flavoviridis juruviara-­verde-­amarelada 0 1

http://www.wikiaves.com/especies.php?t=c&c=1200203&r=50&print=1 4/5
441
442
443
444
445

ANEXO L – Termos usados para animais criados na aldeia e seus correlatos silvestres,
extraído de Lima 2000a, p. 191.
Animal Silvestre Manso
Cotia Mari Tima
Paca Ano Txintxo
Queixada Yawa Pantxo
Veado Txasho Reish
Porco Hono Pintxo
Capivara Ame Keton
Anta Awa Ronpa
Coati Shishi Kashka
Tatu Yawish Pawish
Guariba Ro'o Kashma
Macaco-prego Shino kuin Txitxon
Macaco cairara Shino manan Txi'imi
Paruacu Roka voshpo Rishi
Soim Shipi Txipi
Macaco-preto Iso Poshto
Coruja Pupu Veshpi
Periquito Txere Veski
Periquito Pitso Shoke
Tucano Shoke Wero pisi
Jacu Kevo Hewe
Jacamim Ne'a Rontxo
Mutum Hansi Koshte
Aracuã Anakara Kashka
Papagaio Vawa Koro
Bico-de-brasa Tekon Tawin
Koa (macho)
Jaboti Shawe
Maya (fêmea)
447

ANEXO M – Narrativa mítica de origem do Nixi pae, em Lagrou 1991, p.167-9.

“Um homem foi caçar. Ele construiu um tapiri perto de um jenipapeiro para ver se a anta
chegava. A anta veio, mas não comeu os jenipapos. Pegou um na boca e jogou-o no lago:
txibun. Depois jogou outro e depois mais um outro: txibun, txibun. Do lago saiu uma cobra
que se transformou em uma linda mulher, toda desenhada com jenipapo. A mulher procurava
a anta que estava escondida atrás da árvore. Achou a anta e a anta pinicou ela. O homem,
escondido, olhava. "Que linda mulher", ele falava consigo mesmo, "eu quero esta mulher,
amanhã vou fazer a mesma coisa que a anta fez". A cobra voltou para o lago, e a anta foi
embora.
O homem voltou para casa. Em casa ele não conseguia esquecer o que tinha visto. Não queria
comer a comida que sua mulher lhe dava e não queria contar o que acontecera. Deitou-se na
rede mas não conseguia dormir.
Na manhã seguinte, o homem voltou para o lago. Pegou três jenipapos e jogou-os na água:
txibun, txibun, txibun. A cobra saiu da água pensando que quem estava lá era a anta. A cobra
era a mesma bela mulher do dia anterior e foi para a árvore onde encontrou o homem. Ela se
assuntou e perguntou ao homem: "o que você veio fazer aqui?". O homem falou: "estava aqui
ontem e vi que a anta penicou você. Queria fazer a mesma coisa".
"Espere um pouquinho", falou a cobra-mulher, "vamos conversar primeiro". Mas o homem era
teimoso e agarrou ela. A mulher se transformou em cobra e se enrolou no corpo do homem.
Ele ficou apavorado, e a cobra falou: "viu? Somos assim também. Se você quiser mesmo me
pinicar vai ter que conversar primeiro". Ela largou o homem, e era a mulher de novo. "Você
tem família?", perguntou. E o homem mentiu, "não, não tenho família. Sou solteiro". "Que
bom", falou a mulher, "sou solteira também. Estou procurando um marido para levar pra casa,
para ajudar meus pais. E vou transar com você somente se você me prometer que vai comigo
morar no lago". E o homem falou, "é, queria isso mesmo, queria me casar contigo".
O homem pinicou a mulher-cobra, e depois ela espremeu o sumo de uma folha nos seus olhos
para ele não ter medo. Mas ele tinha medo. Mesmo assim a mulher pegou o homem nas costas
e pulou com ele na água. O homem foi bem recebido pelas sucuris. Ele fazia roçado para sua
mulher e caçava com seu sogro. Ele ficou três anos e fez três filhos com a sua mulher.
Um dia a mulher avisou seu marido que as sucuris iam tomar Nixi pae, e que seria melhor ele
não tomar. "Não tome, você vai se assustar. Você não vai aguentar e vai gritar o nome da
minha gente. Se fizer isso, eles vão te matar". Mas o homem, teimoso como sempre, quis
tomar.
Ele foi junto com seu sogro cortar o cipó e a folha, e de noite sentou junto com a aldeia toda e
tomou um copo inteiro. A visão veio e o homem ficou com medo. Gritou: "as cobras estão me
engolindo". E as cobras ficaram brabas. No dia seguinte ninguém mais queria falar com ele,
448

ninguém o convidou para comer e ele saiu para a mata para ver se caçava alguma coisa. No
caminho ele encontrou um bodozinho, que falou para ele: "você está em perigo, as cobras vão
te matar. Vem comigo, vou te levar para o igarapé, onde escutei tua mulher chorar por você.
Ela está com muita saudade, faz três anos que você não volta pra casa e ela não tem quem cace
pra ela". E o homem se lembrou de sua família e ficou com muita saudade também. O bodó
botou remédio nos seu olhos e levou o homem para o igarapé de sua mulher.
Sua mulher levou um susto, porque pensava que seu marido estivesse morto. Mas quando viu
que era ele mesmo, vivo, ficou feliz e levou o homem pra casa. Serviu caiçuma, macaxeira e
banana cozida pra ele. O homem comeu, e quando foi dormir, pendurou sua rede bem alto
para as cobras não acharem ele. Assim ficou escondido durante um ano, quando seu filho
nasceu.
O homem foi procurar jenipapo para pintar seu filho recém-nascido, mas começou a chover e
os rios se encheram de água. O homem caiu com pé no igarapé, e uma cobra, seu filho menor,
pegou o dedão de seu pé. Depois veio sua filha maior que engoliu o pé e quando chegou sua
mulher, ela engoliu seu corpo inteiro, até os braços; mais não podia porque ele tinha os braços
abertos segurando uma árvore.
O homem gritava e seus parentes chegaram para salvá-lo. Mas seus ossos estavam quebrados
e ele ficou todo mole. Ele queria saber quando ia morrer e chamou os homens para segurar o
cipó e a folha do nixi pae. Os homens trouxeram todo tipo de cipó até acertar. O mesmo
aconteceu com a folha. Ele explicou então como preparar a bebida e depois de deixá-la esfriar,
a tomou de noite com os homens adultos da aldeia. O homem cantava os cantos que tinha
aprendido com as cobras. Cantou a noite inteira, o dia seguinte, mais uma noite e um dia e no
fim da terceira noite ele morreu.
Seu corpo foi enterrado e dos seus membros nasceram quatro tipos de cipó: o xane huni
(passarinho azul-gente), nasceu do seu braço direito; o baka huni (peixe-gente), nasceu de seu
braço esquerdo; da sua perna direita nasceu o xawan huni (arara-gente) e da sua perna
esquerda o ni huni (formiga-gente).”

Narrativa mítica de origem das plantas venenosas, em Lagrou 1991, p. 45-46 e 2007, p. 402.
“Yuxan kudu era a primeira a saber envenenar. Ela matava quando queria comer carne de
gente, crianças, homens, mulheres. Um dia, Yuxan kudu estava sentada num canto, contando
pedacinhos de carvão (txitxan). Para cada pedacinho de carvão, ela dizia o nome de quem
matou e contava o porquê. Agora essa menina, sua neta, escutou. E a velha contava: que foi
para o barranco para pegar o barro de fazer panela. Ela se inclinou tanto que sua coisa, xebi,
ficou exposta e seu genro viu e pegou ela. Ele fugiu, mas a velha se virou e viu suas costas.
Ela chorou. No igarapé, ela pegou o veneno com uma concha, cozinhou, guardou. Em casa,
449

ela misturou o veneno na comida do genro. Ele ficou com febre e cagava sem parar até morrer.
A velha assim contou.
A menina foi para casa e contou para a mulher do morto que foi a velha que fez. Os parentes
combinaram de matá-la. A velha escutou, disse que era mentira, mas mesmo assim fugiu.
Tawaxenibuxka, o homem cego, se levantou da rede e falou para o pai do morto para onde foi
que a velha tinha fugido. Foram atrás dela e acharam, mas ela sempre fugia. Era tempo de
fazer nixpu na aldeia dela. O pessoal foi para o esconderijo dela e disse, 'avó, tem festa da sua
neta, vem batisar seu xarapim', E a velha foi. O irmão veio pulando com um sabugo de milho
na bunda e a velha achava graça. Aí o outro irmão pegou, bateu pau nela. Ela morreu.
Botaram ela no fogo. E do sangue dela nasceu o veneno. De início todos sabiam, mas iam
esquecendo e agora sabem a folha, mas não sabem pegar sem morrer.”
451

ANEXO N – Narrativa mítica da perda da pedra da eternidade, em Lima 2000a, p.86.

“Logo que nós surgimos, outros nawa gritaram:


- "Como é que vocês vão viver daqui pra frente?"
Os nawa tinham a pedra do céu e um deles falou:
- "Vem pegar essa pedra, para vocês não morrerem."
E ninguém foi buscar essa pedra. O nawa gritou de novo. Nós respondemos:
- "O que é?"
E o nawa gritou de novo... Os Katukina mandaram um menino pequeno ir buscar esta pedra.
Quando o menino chegou lá onde os outros nawa estavam e aquele que tinha chamado, falou
que não daria a pedra para o menino, porque ele era pequeno e poderia jogar a pedra dentro
d'água. Então o nawa falou:
- "Já que vocês perderam a minha pedra… Eu queria dar a pedra para vocês, mas perderam [a
oportunidade de ter] a minha pedra. Agora vocês não vão ser muitos, porque a minha pedra ia
ajudar a aumentar a população de vocês. Mas vocês já perderam… Agora, quando um morre,
outro nasce, assim vocês vão viver a vida inteira e não vai aumentar a população de vocês."
Aí quem pegou essa pedra foi o calango, a cobra, o mulateiro. Por isso que a cobra, o calango
e o mulateiro não morrem, somente trocam a pele. Como nós não pegamos essa pedra, a gente
morre. Se tivéssemos pego esta pedra, a gente ficava bem velhinho, trocava o cabelo, a pele e
ficava novo”.
453

ANEXO O – Narrativa mítica do encontro com o povo miserável – (Yowachiko Nawavo)

No tempo que vem do alfabeto, veio subindo, parando, viu, não tinha nada. Quando chegou no
canto saiu desse plantio, roçado de natureza mesmo, que foi feito de deus. Aí chegou, chegou
nesse povo aqui e perguntou:
– “O que é que você come?”
– “Aqui tem macaxeira, tenho banana, tenho inhame, batata, todo tipo, ananá, é que nós
plantamos.”
– “E nós não temos e vocês vão dar para nós plantarmos também.”
– “Nós damos para você. Pode fazer o roçado, fazer o plantio de vocês.”
Aí pessoal colocou roçado, roçado grande para plantar todo o plantio. Colocaram o roçado. Aí
primeiramente, deram maniva para ele, cortado, todo cortado assim miudinho, maniva todo
cortado, uma ruma de maniva cortada, aí cozinham, cozinhavam toda a maniva, toda cortada,
cozinhavam a maniva e dava para ele. Levaram. Plantaram aquela maniva toda a manhã,
plantaram, encheu de roça.
Passou tempo, com o tempo não nascia. Estava cozida, não nascia. Aí eles foram de novo,
tirou o pedaço de maniva que estava plantado e a ponta de onde nasce estava apodrecendo
toda.
– “Rapaz! O que é que nós fazemos? Vamos lá de novo.”
Foram lá: – “e nós vamos roubar!”.
Quando chegou lá de novo:
– “Ah nós estamos aqui. Bora, nós vamos conhecer”.
Bebeu caiçuma, pamonha, banana, fazer um rango para eles comerem.
– “É nós vamos passar uns dois, três dias aqui”.
Aí ela, dona da casa, falou:
– “Ah meu marido, não tem lenha, marido, não tenho lenha”. Aí nesse foram, o pessoal que
foi lá atrás de maniva:
– “Ah me dê o machado que eu tiro lenha para você.”
Peguei o machado e sai para tirar lenha, chegou lá no roçado aí tirou galho do maniva com o
machado.
– “Ele é miserável, não pode pegar na mão, se pega na mão ele acha ruim.
Aí pegou, levou lá dentro da mata. Passou uns dias. Pegou na beira do caminho que eles
foram. Aí lá de novo, aí cortaram a lenha, quebrou outro galho, levou de novo, deixou lá no
canto, aí quando ele passou lá, levou lenha.
– “Nós vamos fazer muita caiçuma, com pouca lenha não dá.”
– “Ah, eu vou tirar de novo”.
454

Pegou machado e saiu para lá. Quebrou outro galho de maniva com machado e levou para o
canto. Quebrou mais outro. Aí foram lá olharam:
– “Ah rapaz, onde foi que tu colocou esses galhos de maniva.
– “ Está aqui” – pegou o machado
– “Não está aqui”
– “Está aqui, estava aqui ainda agora quando foram deixa a tora de lenha lá, estava aqui. Mas
eu mesmo não estou vendo aqui!”
– “Ah, você roubou.”
– “Não, senhor, não roubei não. Eu não roubo, nunca roubei nem roubo.”
– “Aonde foi esse pé de maniva que não está aqui, estava quebrado aqui, é para ser aqui, mas
não estou vendo”. – ele já estava reclamando.
Aí lá ficou. Saiu foram lá. Quando foi outro dia, saíram.
– “O dono da casa já está achando ruim conosco, vamos embora.”
Aí saíram, levaram os quatro galhos de maniva, levaram, cortaram, os que nasciam cortavam.
Cortou tudo bem miudinho, plantaram. Quando passou assim uma semana, está nascendo
bem, nascendo que é uma beleza.
– “Ah rapaz é por isso que nós... Aquele que ele dá para nós é cozido, por isso que não nasceu,
o que não está cozido já está nascendo bem. Ah nós vamos roubar o milho agora, vamos
roubar milho agora”.
Aí foram lá de novo.
– “A roça está nascendo, nós vamos roubar o milho”.
Aí chegou lá.
– “Ah vocês estão aí. Ah pode entrar dentro de casa, vamos comer; banana, macaxeira, o que
viesse estamos comendo caiçuma. Colocaram caiçuma, um panelaço de caiçuma e tudo e estão
tomando caiçuma.
– “Rapaz aquele milho, queria que você me arrumasse uma espiga de milho daquela para eu
comer assado” – para poder roubar. Para não ter o que dizer pediram para comer assado.
– “Aquela presta. A gente comeu muita coisa mas não milho.”
Estava adivinhando que estava querendo roubar e não queria dar.
– “Ah não! Eu quero comer assado”
Deu duas espigas. Aí o menino, só pediu para menino subir e tirar duas espigas de milho.
Estava prestando atenção no que que ele estava fazendo. Aí outro mandou pegar uma espiga e
assou. A mulher assou para ele, aquele ele estava comendo, o outro ficou com a outra espiga.
Aí debulhando o milho colocava dentro do buraco do minhoca dele, encheu até que:
– “Eu estou com vontade de mijar, eu vou mijar”.
455

Saiu, chegou no canto, já tinha um vasozinho para colocar o milho, colocou. Voltou de novo.
Aí conversava com ele, tomava caiçuma, animado, alegria. Aí colocava, enquanto conversava
com ele colocava meio caroço de milho no minhoca dele. Encheu, saia de novo:
– “ah vou mijar de novo”.
Lá de novo colocou um vaso junto daquele. Voltou. Vamos tomar caiçuma, conversava com
ele, todo animado. Conversaram.
– “Rapaz, eu já mijo.”
Quando enchia, deixava num canto. Aí deixava num canto. Ia lá tirava de dentro do minhoca
dele, colocava num vaso, voltava. Aí se deitou de novo, até que ele acabou de debulhar aquela
espiga de milho. Colocou o vaso.
Aí o dono da casa:
– “Rapaz, cadê a espiga de milho que tu estava na mão?”
– “ Rapaz, o menino levou, o menino levou.”
– “Oh menino, cadê a espiga de milho do homem?”
– “Ah ainda ninguém... não viu não.”
Aí ele que estava comendo aquele assado tinha um sabugo que tava assado.
– “Está aqui o sabugo, ele já tinha comido tudo.”
– “É nada, rapaz... esse estava assado, a outra espiga aí que ele estava na mão. Aquele
ninguém não viu” – reclamando.
Aí falou:
– “Vamos embora. Vamos embora, o dono da casa já está achando ruim que nós estamos aqui,
só reclamando e tudo, vamos embora”
Aí chegou lá, ele, lá para as casas deles:
– “Agora vamos plantar milho agora.”
Aí levaram, já tinha um vasozinho assim e um bocado de milho aí foram lá plantaram os
milhos, com espeque. Plantaram o milho, quando passou uma semana nasceu que uma beleza.
– “Aaaah é para ser assim! Toda vez que quando ele dava milho mas era cozido, não nascia.”
Aí roubaram o milho. Aí depois roubaram filho de banana. Filho de banana:
– “Oh Fulano, nós queríamos, nós viemos aqui para pedir banana para plantar lá, nós não
temos.”
– “Ah eu vou te dar pra você.”
Tirava aquele bem miudinho, tirava dois, três filhos de banana, aí cozinhava dentro da panela
de barro, colocava dentro da panela de barro e cozinhava, cozinhava, depois de cozinhar que
dava para ele. Eles foram e não nascia, morria mesmo, apodrecia mesmo e não dava. Assim
ele roubou de novo, roubou filho de banana.
456

– “Não... nós vamos passar dois dias aqui, vamos numa caçada, brincar mais vocês. Eu vim
para fazer a brincadeira com vocês.”
Aí por lá passaram animado, brincando com ele, dançando mariri, cantando. Quando foi
noite, aí o que os outros faziam aí o outro foi roubar o filho de banana, o outro vai roubar o
filho de banana, deixou lá no acero do mato, acero do roçado, roubaram seus quatro filho,
colocou.
– “Ó o filho de ananá.”
Ai ele deu para ele, mas era cozido. O filho de ananá, banana, levaram.
– “Vamos embora, vamos embora que vai outra vez que já está com dois dias que nós estamos
aqui, vamos embora.”
Aí saíram, foram lá, levaram os quatro filho de banana, um filho de ananá. Chegou lá para as
casas deles, aí plantaram. Plantaram banana assim um mês, banana abrolhou que já uma
beleza.
– “Aaaah é assim. Eu vou plantar banana, ananá e tudo.”
– “Vamos embora, nós vamos atrás de mais outras coisas.”
Aí foram mais atrás de batata, inhame. Passaram três dias lá mais ele, brincando, cantando
noite e os outros cantavam e o outro vai por aí para roubar, para deixar lá no acero do mato.
Assim que fizeram para fazer para eles. Aí foram, chegou um tempo, daí um ano, ele já deu
banana, roça, milho, ananá, tudo.
– “Aaah é para ser assim!”.
Aí lá assim ficou. O povo de miseráveis.
457

ANEXO P – Mapa de Etnozoneamento da SEMA/AC


459

ANEXO Q – Área desmatada na TI Campinas/Katukina por ano e foco de calor. Fonte:


<https://terrasindigenas.org.br/en/terras-indigenas/3636>
461

ANEXO R – Área demandada. Mapa de Etnozoneamento SEMA/AC 2007.


462

Resposta FUNAI a Reivindicação Katukina Memo nº986-CGID


463

ANEXO S – Carta da aldeia Varianawa ao MPF, à Funai e Governo sobre a situação dos noke
koĩ em cárcere.
464
465

ESBOÇOS GENEALÓGICOS
466
467
468
469
470
471
472
473
474

Você também pode gostar