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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

LUIZA DIAS FLORES

Ocupar:
composições e resistências kilombolas

Rio de Janeiro
Outubro 2018
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Ocupar:
composições e resistências kilombolas

LUIZA DIAS FLORES

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Museu Nacional, como parte dos requisitos necessários à obtenção
do título de Doutora em Antropologia.

Marcio Goldman, Orientador

José Carlos Gomes dos Anjos, Coorientador

RIO DE JANEIRO

Outubro de 2018
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Ocupar:
composições e resistências kilombolas

Luiza Dias Flores

Tese de doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutora em Antropologia Social.
Banca examinadora:

_______________________________________________________________
Presidente, Dr. Marcio Goldman (PPGAS/MN/UFRJ)

____________________________________________________________
Dr. José Carlos Gomes dos Anjos (PPGS/UFRGS)

_________________________________________________________________
Dra. Ana Claudia Cruz da Silva (PPGA/Departamento de Antropologia)

__________________________________________________
Dra. Cecilia Mello (IPPUR/UFRJ)

__________________________________________________________
Dra. Denise Dornelles - Yashodhan (Comunidade Kilombola Morada da Paz)

__________________________________________________________
Dra. Maria Elvira Benítez (PPGAS/MN/UFRJ)

_________________________________________________________
Dra. Maria da Consolação Lucinda (ONG Nova América) - Suplente

__________________________________________________________
Dra. Olívia Maria Gomes da Cunha (PPGAS/MN/UFRJ) - Suplente

RIO DE JANEIRO
Outubro de 2018
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Aos que sentem as urgências, sonham e criam outras


possibilidades de existência.
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Agradecimentos

Ao fim de um processo aparentemente tão solitário como é a escrita de uma tese, me


vejo povoada de bons encontros. Afinal, o mundo é um lugar perigoso, mas é também vívido
e alegre. Agradeço aos que fazem da minha vida, e deste cisco no olho que foi a escrita da
tese, um instante mais leve e sempre surpreendente.

Agradeço à Irmandade da Nação Muzunguê, àquelas irmãs que permanecem e àquelas


que passaram por ela. Nosso reencontro deixou marcas profundas em mim e me ensinou o
valioso sentido da irmandade. Sou grata por aprender e viver a magia da existência ao lado de
vocês. Nós sabemos… e isso basta. Tenho todas e todos, onde quer que estejam, no melhor
lugar de mim. Agradeço aos pitocos, aos omadês e aos odomodês pelas nossas tantas
conversas, risadas e brincadeiras. Sobretudo por me ensinarem sobre sensibilidade.

Agradeço às Yas e Baba por acolherem a proposta desta tese. Sei que foi desafiador
para vocês, tanto quanto foi para mim. Agradeço a possibilidade da construção dessa aliança.
Dentre todos os ensinamentos ao longo desse processo de convivência, sem dúvida o mais
bonito e valioso está no arrepio e, mesmo que eu tentasse, não poderia descrevê-lo. Que a tese
seja o começo de uma relação neste tempo, já que, sabemos, este tempo é o meio de outro
tempo.

Agradeço a todas as pessoas que passaram e continuam passando pela Morada da Paz
com as quais pude trocar sorrisos, abraços e carinhos. Que haja Morada em cada uma de nós e
que possamos ser sempre semeadoras e semeadores de relações mais cuidadosas.

Agradeço ao meu orientador, Marcio Goldman, e ao meu coorientador, José Carlos dos
Anjos, pelos diálogos, pelas ideias, pelas críticas, pelos acolhimentos de tantas ordens e pelas
leituras atentas. Registro aqui, na falta de uma melhor oportunidade, minha profunda
admiração, desde o início de minha caminhada acadêmica, e a honra de tê-los por perto ao
final dessa trajetória. Se as Ciências Sociais têm sentido na minha vida, é muito por conta dos
escritos, das aulas e das provocações ao pensamento produzidas por vocês, que me animam a
crer que, sim, outra ciência é possível (e urgente).

Agradeço ao Gabriel Banaggia e à Maria Elvira os comentários durante a qualificação;


à Suzane Vieira e Fabiana Maizza, os comentários durante a ANPOCS sobre parte do material
que aqui apresento; à Cecilia Mello o acolhimento no estágio docência. Agradeço à generosa
banca de doutorado a receptividade: Ana Cláudia, Cecília, Consolação, Maria Elvira e
Yashodhan.
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Das ruas de Porto, agradeço àquelas e àqueles que as fazem Alegres. À Krishna, irmã
de tantas vidas em uma só. À Sara, Paulo, Juliana, Alex, Eduardo, Nino, Luis Felipe, Carol,
porque entre nossas diferenças de rotas, há um mundo de carinho. Seguimos, aos trancos e
barrancos, por outras margens mais rebeldes. Agradeço à Priscila, Márcio, Lucas, Joice,
Flávio, Norberto, a presença nos momentos de fragilidade e nos momentos de potência, e a
cumplicidade que aumenta a cada ano. À Vitória, Juliano e Vinícius, a amizade construída no
cotidiano do apilho.

Agradeço à Ana de Carli e Patrícia Pinheiro as profundas e intensas conversas.


Amizades que a vida possibilitou e que a Morada, sem saber, fortaleceu. Tem muito de vocês
aqui. Agradeço à Roberta Dariewicz e à Julia Dutra, que acompanharam esse percurso, à
Milena Cassal e à Elba da Silva, presentes dos Orixás que levo para a vida – e lá se vão quase
10 anos! Agradeço ao Marco Antônio Poglia, com quem as trocas de ideias são sempre
fundamentais – tão bom ter com quem falar a mesma língua; à Izabella Bosisio, à Janaína
Brujes, ao Henrique Lahude, Tobias Gomes; ao GeAfro, tudo o que mobiliza; e a tantas outras
queridas e queridos com quem cruzei os olhares, as palavras e as andanças pelos pagos.

Aos carinhos cariocas, minha família em terras chiadas! Agradeço à Ana Paula Morel
(a quem devo tantas alegrias), à Rosinha (por fazer do mundo um lugar mais florido), à
Georgia Pereira, à Natália Velloso, à Ana Luisa, à Clarice Green, ao Felipe Magaldi, à Lívia
Abdalla (os acolhimentos amigos fundamentais pra vida! Quero vocês sempre perto); à
Viviane Cid e à Caroline Brito (as misturas de sensibilidade e acidez que nos provocam
gargalhadas); à Nina Vicent, à Juliana Athayde, ao Pedro Cazes e às “mafaldas” espalhadas
pelo mundo, presentes do mestrado que levo comigo; ao Paulo Henrique Flores, Alexandre
Mendes, Samuel Jaenish, as boas trocas. Ao Nansi, as boas ideias, e aos colegas do
PPGAS/Museu Nacional, os compartilhamentos – em especial ao Lucas Marques, Luis
Alvarez, Carol Maia, Carolina Castellitti, Cecília Díaz, Cauê Machado, Anderson Pereira,
Aline Nascimento, Fernando Vieira, Marlise Rosa. Sobretudo, agradeço os inumeráveis
carinhos que o Rio me possibilitou.

Agradeço ao PPGAS/Museu Nacional, às funcionárias e aos funcionários, às


professoras e aos professores, com quem tive o prazer de conviver. Defendo essa tese em um
contexto muito diferente do que eu esperava. O incêndio no Museu Nacional deixou marcas
profundas de dor, causadas pelo descaso público com a educação, com as memórias e com as
pesquisas desenvolvidas ao longo de muitos anos. Que possamos, juntas e juntos, nos
reinventar.
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Agradeço à Paquetá os banhos de pôr-do-sol, reenergizando-me a cada lua cheia e


guardando muitos dos meus pensamentos e sentimentos em suas paisagens. Agradeço à
família que de forma tão calorosa me acolheu: Zeka, Pedro, Natália, Vicente, Renato.
Sobretudo, agradeço às bruxinhas paquetaenses, que possibilitaram o último retorno ao Rio
ser pleno de amor, cumplicidade e partilhas. Especialmente a presença, o suporte e a amizade
de Ana Cláudia Bastos, Natasha Troise, Joelma Araújo, Damiana Bregalda, Fernanda Pradal e
Luiza Boechat.

Agradeço à minha família - mãe Cissa, pai Neco, irmãos Carol e Digo, tia Adi, tia Pati
e vó Nilza - o acompanhamento de minhas idas e vindas e o incentivo a navegar sem medo.
Grata por serem meu principal porto seguro em tempos de bravas tormentas e incontáveis
desânimos. À minha mãe, inspiração de força, e ao meu pai, que me ensinou de tantas formas,
e com tantos tropeços nossos, a não aceitar o injusto. Agradeço a vocês principalmente o
apoio incondicional para a finalização desse texto. Espero um dia retribuir tanto ou mais. À
minha sobrinha Luci, fonte inigualável de alegria, que mostra-me desde o momento em que
veio ao mundo o verdadeiro sentido da palavra amor, embalando essa tese com saudades,
sorrisos metálicos e histórias inventadas.

Agradeço ao feminismo, nas suas muitas variações anticapitalistas e anticoloniais, e a


todas aquelas incontáveis e inomináveis que me ensinaram ao longo dos anos, especialmente
nos últimos, com diferentes tons e intensidades, que o feminismo é o contrário da solidão.

Agradeço profundamente a guiança às entidades, com quem eu aprendo tanto sobre os


detalhes e os mistérios da existência. Especialmente ao orixá que conduz meus passos, Xangô.
Agradeço ao Seu Sete e à Mãe Preta os caminhos abertos e os colos reconfortantes,
principalmente os ensinamentos de reconhecer quem sou e de lembrar, em tempos tão
tenebrosos, que a luta é urgente onde quer que estejamos e que “nada justifica a falta de
esperança”.

Agradeço à vida, enquanto possibilidade de transformação e de rebeldia,

“e que seja amor, amor e amor”.


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Há portas que só se abrem pelo lado de dentro. (Mãe Preta)

A verdade é amor e amor é vida livre. (Abdullah Ocalan)


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Resumo

Esta tese pretende descrever como a ideia de ocupar se apresenta enquanto estratégia
elaborada pela comunidade kilombola Morada da Paz, frente a uma guerra cósmica. Ocupar
surge no entrecruzamento de dois usos dados ao termo: o primeiro elaborado pelas religiões
de matriz africana do Rio Grande do Sul, o Batuque; o segundo elaborado pelos diversos
movimentos sociais, em especial as ocupações de secundaristas e universitários que
ocorreram durante 2016. A partir de novas configurações, a Morada da Paz utiliza a ocupação
como uma estratégia de luta e participação naquilo que denominam guerra cósmica – uma
guerra que envolve humanos e não-humanos e que engendra, envolve, mobiliza diferentes
estruturas sociais que pertencem ao que nós denominaríamos de ‘política’. A partir disso,
apresento como a Morada da Paz ocupa diferentes ideias, na exata medida em que é ocupada
por elas, e as transforma em ferramentas de ação no mundo. Os capítulos que constituem essa
tese têm por intuito desenvolver quatro destas ideias, a saber: a borda, o feminino, o kilombo e
a pele de papel. Ao final da tese trago algumas considerações para pensarmos sobre a
ocupação que a Morada da Paz desenvolve sobre o texto etnográfico e algumas de suas
consequências para a Antropologia.
Palavras-chave: Quilombo. Ecologia. Mulheres negras. Resistência. Cosmopolítica.
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Abstract
This thesis intends to describe how the idea of occupying presents itself as a strategy
elaborated by the kilombola community Morada da Paz, facing a cosmic war. Occupy arises
in the intertwining of two given uses to the term: the first one, elaborated by the afro-brazilian
religion of Rio Grande do Sul, the Batuque; the second one, elaborated by many social
movements, especially at Schools and Universities, in occupations that occurred during 2016.
From new configurations, the Morada da Paz uses the occupation as a strategy of fight and
participation in what they denominate cosmic war - a war that involves human and non-
human and engenders, engages, mobilizes different social structures that belong to what we
would call “politics”. From this, I present how Morada da Paz occupies different ideas, in the
exact measure that it is occupied by them, and turns them into action tools in the world. The
chapters that constitute this thesis are intended to develop four of these ideas, namely: the
Border, the Feminine, the Kilombo and the Paper Skin. At the end, I present some
considerations to think about the occupation that Morada da Paz develops on the ethnographic
text and some of its consequences for Anthropology.
Keywords: Quilombo. Ecology. Black women. Resistance. Cosmopolitics.
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Sumário

1. INTRODUÇÃO......................................................................................................14
1.1 A chegança.....................................................................................................................16
1.2 Ocupar............................................................................................................................24
1.3 Os capítulos....................................................................................................................43

2. OCUPAR A BORDA...............................................................................................46
2.1 Reencontrar....................................................................................................................51
2.1.1 Centro espírita ou projeto?.....................................................................................66
2.2 Reconhecer: A chegada no território..............................................................................75
2.2.1 Plano de ocupação.................................................................................................80
2.2.2 Reencontros no território........................................................................................90
2.3 Recuperar.......................................................................................................................97
2.3.1 Universal..............................................................................................................101
2.3.2 Afrobudígena.........................................................................................................112
3.3. Nação Muzunguê....................................................................................................116
2.3.4 Nomes crísticos.....................................................................................................120
2.3.5 Hierarquia circular...............................................................................................123
2.4 Sonhar..........................................................................................................................129

3. OCUPAR O FEMININO......................................................................................134
3.1 Somos as que ficaram...................................................................................................137
3.2 O feminino e o masculino.............................................................................................143
3.3 A bruxa que nos habita.................................................................................................147
3.4 Anunciamento...............................................................................................................154
3.4.1 Tempo de guerra...................................................................................................158
3.5 O poder da criação.......................................................................................................161
3.5.1 A feminilização do mundo....................................................................................168
3.6 A curandeira.................................................................................................................172
3.6.1 Transmigração......................................................................................................181
3.7 A vida............................................................................................................................183

4. OCUPAR O KILOMBO........................................................................................188
4.1 O perigo da representação............................................................................................193
4.1.1 Pescaria com vara................................................................................................201
4.1.2 Alianças................................................................................................................205
4.2 Os Roubos....................................................................................................................215
4.2.1 Ekonomia do Afeto................................................................................................216
4.2.1.1 Instituto CoMPaz..........................................................................................222
4.2.2 Pedagogia do Encantamento................................................................................228
4.2.2.1 Ponto de Cultura Omorodê...........................................................................230
4.2.2.2 Escola ComKola Kilombola Epé L’aiyè.......................................................237
4.2.2.3 O saber e o conhecer....................................................................................241
4.3 A felicidade...................................................................................................................251
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5. OCUPAR A PELE DE PAPEL.............................................................................253


5.1 Os desconfortos da antropóloga...................................................................................254
5.1.1 Um “nós” intercessor............................................................................................257
5.1.2 Contra a amnésia..................................................................................................263
5.2 Os acessos....................................................................................................................272
5.3 Palavra é magia...........................................................................................................277
5.4 Devemos sentipensar....................................................................................................283

REFERÊNCIAS.......................................................................................................287

GLOSSÁRIO............................................................................................................ 298

ANEXOS................................................................................................................... 305
Anexo I - Carta à Morada da Paz.......................................................................................305
Anexo II – Mapas...............................................................................................................307
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Lista de Ilustração

Figura 1: Casa Bio....................................................................................................................46


Figura 2: Fogueira - Terreiro de Chão Batido 2018.................................................................51
Figura 3: Velha Centenária.......................................................................................................75
Figura 4: Caminho dos Mestres...............................................................................................80
Figura 5: Buda e a horta de todos nós......................................................................................98
Figura 6: Okan Ilu 2016.........................................................................................................129
Figura 7: Área Central - Terreiro de Chão Batido 2016.........................................................133
Figura 8: Labirinto dos Sete Caminhos..................................................................................134
Figura 9: Ocupação Mulheres Mirabal 2017.........................................................................154
Figura 10: Terreiro de Chão Batido 2016...............................................................................172
Figura 11: Horta de todos nós................................................................................................187
Figura 12: Cadeira de leitura 2016.........................................................................................188
Figura 13: Kariri-Xocó e Fulni-ô e Yas - Okan Ilu 2017.......................................................205
Figura 14: Apoiwá CoMPaz...................................................................................................217
Figura 15: Vivência Kilombola 2016.....................................................................................228
Figura 16: Colônia de Férias..................................................................................................236
Figura 17: Okan Ilu 2017.......................................................................................................251
Figura 18: Irmandade e Convidados - Okan Ilu 2017............................................................254
Figura 19: Irmandade 2018....................................................................................................286
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1. Introdução1

Meu primeiro encontro com a comunidade Morada da Paz ocorreu em 2013, em um


mutirão de bioconstrução organizado pelo coletivo Senda Viva, parceiro da comunidade.
Nesse mutirão, revestimos com barro os fardos de palha que formavam as paredes da Casa
Bio, uma das construções que participam da área central da Comunidade Morada da Paz.
Formada majoritariamente por mulheres negras e suas filhas e filhos, as integrantes
identificaram-se como uma comunidade espiritual, e, desde o início de nossa estadia, que
durou quatro dias, fomos convidadas a muitos ritos de chegança. Não basta adentrar o
colorido portão que demarca a entrada da comunidade. É preciso saber chegar.
Elas nos recepcionaram ao redor de uma fogueira e explicaram um pouco do
funcionamento da comunidade. Ensinaram-nos que ali era preciso inspirar profundamente e,
acompanhado por gestos com as mãos em direção ao fogo, expirar com intensidade – o
chamado “fazer o ru!”, como nos ensinaram as crianças. Depois nos convidaram a percorrer
uma trilha, chamada trilha da Paz, em silêncio, para saudar todos os seres que habitam as
matas. Em meio à trilha, havia um espaço que nos foi apresentado como o cantinho do Seu
Sete. Seu Sete, também conhecido como Exu-Rei, foi referenciado como o pai da
comunidade. Seguimos a trilha e, mais adiante, encontramos o canto dos pretos-velhos, com
algumas estatuetas e sementes de lágrimas de nossa senhora, postas ao centro. Fiquei sabendo,
posteriormente, que a mãe daqueles que ali residiam é uma preta velha conhecida como Mãe
Preta, a Yaba ancestral. Após cruzar um pequeno córrego, saímos da mata e fomos
convidadas a circundar um olho de Hórus 2 desenhado com tijolos na grama à beira de um
calmo açude. A trilha já estava por acabar. Percorremos o caminho dos mestres – que liga a
área central da fogueira e das casas ao açude - de volta ao ponto inicial, e, no meio do
caminho, encontramos um santuário a céu aberto, com uma pequena estátua de Buda.
Seguimos, cruzamos a entrada do Templo, espaço onde acontece a maior parte dos rituais, e,
enfim, chegamos novamente à fogueira.
1 Ao longo do texto adotarei algumas marcações que aqui desejo frisar. Expressões, frases curtas e longas que
fazem parte do repertório discursivo dos integrantes da Morada da Paz aparecerão em itálico. As frases longas
serão acompanhadas de aspas duplas. Aspas duplas também servirão para grifar frases ou expressões oriundas
de autores com os quais dialogo ao longo do trabalho. Contudo, os conceitos, utilizados como ferramentas
descritivas, não serão marcados, mas estarão acompanhados por breves explanações, seja ao longo do texto,
seja via nota de rodapé. Expressões ou palavras que necessitem, pelo contexto, qualquer tipo de destaque,
estarão em aspas simples. Ressalto também que por solicitação das mais velhas da comunidade os nomes das e
dos integrantes da comunidade foram omitidos e optei por sua abreviação. Disseram-me que seria preferível
não identificar diretamente as pessoas para resguardá-las. As abreviações foram feitas a partir dos nomes
crísticos recebidos pelas entidades da Morada da Paz.
2 Trata-se de um símbolo muito popular que dizem ser oriundo do Egito Antigo e que significa proteção,
restabelecimento da saúde, intuição e visão.
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Esse primeiro contato com a Morada da Paz produziu em mim uma espécie de
encantamento. Mulheres negras, moradoras de uma comunidade espiritual rural, onde todas as
integrantes são filhas de um Exu e de uma Preta-velha. Mulheres negras que definiram suas
práticas espirituais como universalistas, a partir da relação estabelecida entre três matrizes:
budismo tibetano mahayana, práticas afro-brasileiras – incluindo Umbanda, Candomblé e
Batuque – e xamanismo indígena mbyá-guarani. Tal como narravam a si próprias, uma
comunidade espiritual feminina kilombola, altamente preocupada com a consciência
ecológica. Uma comunidade espiritual feminina kilombola sustentável, que desenvolve
projetos sociais com as crianças, adolescentes e adultos da região em que se localiza, sobre
educação ambiental e afro-brasileira.
Situada na BR-386, entre os municípios de Triunfo e Montenegro, a Comunidade
participa da região metropolitana de Porto Alegre e encontra-se na divisa entre duas regiões: a
microrregião São Jerônimo, conhecida como região carbonífera - visto que o solo é rico em
carvão mineral -, cuja base da economia é o Polo Petroquímico; e a microrregião de
Montenegro, cuja economia predominante está nas produções agrícolas, com principal
destaque às monoculturas de acácia e eucalipto. De Porto Alegre, encontra-se a 60 km de
distância, trajeto comumente feito pelas integrantes da comunidade e por seus visitantes,
através de ônibus ou de carro. Afinal, muitas delas trabalham e estudam em Porto Alegre.
A Comunidade foi fundada nesse local em 2002, por um grupo de amigos que desde
1998 constituía o grupo Cosmos, grupo de estudos sobre mediunidade e paranormalidade que
se encontrava periodicamente em Porto Alegre. O deslocamento dessas pessoas do meio
urbano para o meio rural foi resultado de uma orientação recebida das entidades com as quais
trabalhavam. Atualmente, desenvolvem seus atendimentos espirituais, denominados
Muzunguês. Também realizam trabalhos sociais com jovens e crianças, que levou à criação,
em 2013, do Ponto de Cultura Omorodê – Ponto de Cultura da Infância. O Ponto de Cultura
surge como uma das ferramentas de atuação da Comunidade Morada da Paz para trabalhar
com educação ambiental e afro-brasileira. Há também o Instituto CoMPaz, criado em 2015,
outra ferramenta da Comunidade Morada da Paz que tem por intuito garantir a autonomia
financeira daqueles que dela participam. Desde 2016, encontra-se também no processo de
criação e formalização a Escola ComKola Kilombola Epê L’ayiê, escola comunitária de
educação infantil.
Há uma organização básica da comunidade em grupos. Encontramos as Yas e Baba, as
mais velhas da comunidade, que constituem o chamado grupo base, que consiste em cinco
pessoas (quatro mulheres e um homem) responsáveis pelas principais decisões; as Egbomis,
as irmãs mais velhas da comunidade; as Iaôs, as iniciadas mais novas. Há também os
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Odomodês, os jovens, os Omadês, as crianças e os Pitocos, que são as crianças de até 5 anos
de idade. Esses grupos dividiam-se entre moradores e demoradores, com exceção das Yas e
Baba, que são todas moradoras. Os demoradores eram aqueles que demoravam a morar na
comunidade, que passavam parte das semanas no território Morada da Paz, mas residiam em
outra cidade. As mais velhas demoradoras participavam em média há cinco anos, para mais.
No caso de algumas, foram inclusive cofundadoras da Comunidade. Todos esses grupos
compunham a corrente espiritual durante os trabalhos de atendimento desenvolvidos pela
comunidade, que em 2014 foi chamada de Irmandade da Nação Muzunguê. Durante o
desenvolvimento desse trabalho existiam dezessete moradores, dezessete demoradores.
Porém, no início do ano de 2018, essas configurações mudaram. Alguns demoradores
passaram a ser moradores e os demais demoradores desligaram-se da comunidade. Após esse
acontecimento, as entidades orientaram as mais velhas para que não houvesse mais
demoradores.
Se na época em que conheci a Morada não me ocorreu realizar um trabalho acadêmico
no local - pois os fluxos que me levaram ao território foram de outra ordem, vinculado aos
movimentos de permacultura e posterior retorno pelas vivências espirituais -, foi apenas no
final de 2015 que isso se tornou uma possibilidade. Assim sendo, esta tese é resultado da
experiência que tive com a Comunidade Morada da Paz a partir de dezembro de 2015,
incluindo os anos de 2016, 2017 e 2018. Claro que o material que apresento com mais vigor é
pautado nas minhas vivências em 2016 e primeiro semestre de 2017, constituindo em média
um ano e meio de trabalho de campo. Mas incluo aqui o ano de 2017 e 2018, pois as mais
velhas da comunidade acompanharam toda a escrita, e muitas das reflexões que se seguem
resultaram também de suas leituras e comentários posteriores.

1.1 A chegança

Sempre me disseram, quando narravam outras relações que estabeleceram no passado,


que era preciso saber sair da comunidade para que a relação não fosse carregada de maus
sentimentos. E há diversas saídas narradas pelas mais velhas, em que algumas pessoas
souberam sair e outras não. Da mesma forma que é preciso saber sair, e que cada saída será
única e particular, também é preciso saber chegar. Saber chegar ao território quando se está
fora dele, pautado por uma série de ritos de chegança como já descritos, mas também saber
chegar à comunidade quando não se pertence a ela, independente dos motivos que animam os
sujeitos a procurá-la. Assim como cada saída é singular, cada chegada também o é.
Narro aqui um pouco do meu percurso: comecei o doutorado em 2014 e reservei o ano
de 2015 para realizar trabalho de campo no Maranhão. Havia feito um campo exploratório
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ainda no primeiro ano de doutorado para pensar possibilidades de pesquisa. Em 2015, no


início do ano, mudei-me para São Luis. Meu interesse, pautado por aquilo que me motivava
desde o mestrado, estava em pensar o que Goldman chamou de “relação afroindígena”, num
claro exercício de pensar teorias etnográficas que fugissem das clássicas atribuições de
mestiçagem e sincretismo – ferramentas utilizadas para camuflar desigualdades e que
sustentam projetos políticos perversos. Eu desejava trabalhar mais diretamente com
Antropologia da Religião, especialmente as chamadas religiões afro-brasileiras. Soube que no
Maranhão havia um tipo de manifestação religiosa chamada Tambor da Mata, em que os
praticantes incorporavam espíritos de animais. Vi ali a possibilidade de realizar minha
pesquisa.
Com o auxílio de um funcionário do IPHAN, conheci a festa de São Bilibeu, ou
Bilibreu, que acontecia no município de Viana, distante umas quatro horas da capital. São
Bilibeu, um santo de madeira, pintado de preto, dito ser um antigo negro escravizado, cujos
devotos, em sua homenagem, realizavam uma brincadeira de caçada da onça. Fiquei curiosa
com essas relações e resolvi ir até o local. Cheguei a Viana e me dirigi até Taquaritiua - o
povoado onde realizavam a festa -, procurando por seu Pedrinho, conhecido como curador e
chefe de uma casa de cura. Ele era o guardião de um dos santos (depois vim a saber que havia
dois São Bilibeu na comunidade). Lá, fiquei sabendo que a comunidade estava em um
processo de afirmação identitária como índios Gamella. Apresentei-me em uma assembleia,
onde coloquei minhas intenções, e fui calorosamente acolhida. A relação foi se estreitando e
permaneci no local cerca de quatro meses, tendo acordado com a comunidade que eu
realizaria o laudo antropológico que necessitavam. Contudo, por complicações locais, devido
à luta pela terra, discordâncias, conflitos internos da comunidade e uma série de intervenções
de mediadores da causa contrários a minha presença, passei a ser vista com incômodo por
parte dos meus interlocutores. Solicitei uma assembleia para esclarecer o que estava
ocorrendo e foi decidido por voto que eu não permanecesse no local.
Foi o meu primeiro ‘não’ ouvido como antropóloga. Ainda que circunstancial, como o
desenrolar das relações mostraram, causou muito impacto sobre mim. Estava no Maranhão,
sem financiamento de pesquisa para além da bolsa, e depois de praticamente metade do tempo
que eu havia previsto para o trabalho de campo precisava reorientar minhas rotas de pesquisa.
Decidi, em função dos custos, que não eram poucos, e de um sonho-presságio que eu havia
tido antes de tudo acontecer3, realizar meu trabalho de campo no Rio Grande do Sul. O

3 Mais ou menos um mês antes de tudo o que levou a minha saída de Taquaritiua, eu sonhei com um caboclo
muito bravo que me questionava o que eu queria com o povo dele e afirmava contundentemente que ali não
era o meu lugar. Depois desse sonho, uma série de situações começaram a acontecer, levando a minha saída.
Independente das interpretações e julgamentos que se dê a isso, fato é que esse sonho teve efeitos sobre mim.
Um deles foi ter saído do Maranhão e retornado ao Rio Grande do Sul.
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segundo semestre de 2015 foi seguido de buscas e experimentações movidas pelos interesses
de pesquisa – trabalhar com religião de matriz africana, de preferência no meio rural, e pensar
a relação afroindígena.
Percorri muitos rincões através de uma rede de contatos e amizades até encontrar o
quilombo São José, situado na cidade de Piratini/RS. As questões que emergiam dali eram
radicalmente diferentes daquelas que se apresentavam no Maranhão. Uma comunidade negra
no pampa gaúcho. O terreiro que existia era chefiado por um casal recentemente chegado ao
local, que não fazia parte da comunidade quilombola, mas localizava-se na região, saído da
cidade de Pelotas. As religiões que marcavam os pertencimentos mais antigos eram,
sobretudo, a católica e o espiritismo kardecista, questão que muito me intrigou, pois havia
toda uma outra composição feita com o kardecismo e com práticas de benzedura. Paralelo a
isso, e junto com professoras da UFPel e militantes da Pastoral Afro, deu-se início uma série
de encontros com lideranças de quilombos locais de formação política, nesse contexto de
afirmação identitária quilombola.
Permaneci cerca de dois meses na comunidade, pois o trabalho de campo no quilombo
São José tinha algumas dificuldades práticas, visto a configuração espacial ser bastante
extensa, o que demandaria estruturas de deslocamento que não possuo. O vizinho mais
próximo da casa onde eu me hospedei estava há cerca de uma hora de caminhada. As casas
eram por demais distantes e eu dependia do transporte de terceiros que, por sua vez, não
realizavam os deslocamentos com frequência. O tempo do doutorado já estava em seu limite
para novas reconfigurações de pesquisa, mas, após diálogos com o orientador e com as
lideranças do quilombo São José - a quem entreguei toda a sistematização das informações e
histórias que eu havia registrado até então -, decidi apostar em outro local de pesquisa, onde
os deslocamentos fossem mais fáceis. Havia outras alternativas na região, mas também,
através de redes e contatos, a Morada da Paz surgiu como possibilidade e despertou meu
interesse. Pretendia continuar minha participação nas reuniões com lideranças quilombolas de
Piratini, mas os engajamentos na Morada da Paz eram tão intensos que não consegui conciliar.
A ideia de realizar um trabalho de campo na comunidade Morada da Paz ocorreu em
dezembro de 2015. Resolvi procurar as moradoras para averiguar se existiria essa
possibilidade e, por isso, fui a uma das datas sagradas da comunidade, aberta ao público
externo. Tratava-se do Okan Ilu - tambor do coração, ritual que se propõe a saudar e cultuar o
Ayan, o Orixá do tambor. Ao final do evento, aproveitei para conversar com Ys., uma das Yas
fundadoras e líder espiritual da comunidade, sobre meus interesses de pesquisa e meu desejo
de consultá-las sobre essa possibilidade. Marcamos de conversar com mais calma na quinta-
feira seguinte.
19

Nada do que acontece na comunidade é visto como separado do que chamam


espiritualidade. Minha presença ali e meu desejo em realizar uma pesquisa não foram vistos
como algo apartado disso, portanto. Fui na quinta-feira até o local, pronta para conversar
sobre a possibilidade de realizar um trabalho de campo, praticamente com um texto em mãos
do que falar. Mal sabia eu que estava indo, na verdade, para a quinta do Axé, um movimento
de atendimento espiritual realizado para pessoas específicas que recebem orientação das
entidades para tal. Assim que cheguei, fui encaminhada ao Templo, local onde acontece a
maior parte dos trabalhos espirituais, as chamadas das entidades, e duas das moradoras me
receberam em frente ao peji/congá para fazer o chamado das tuas [minhas] entidades, o que
possibilitaria o alinhamento dos chakras. Dali me acompanharam por uma trilha, denominada
trilha xamânica, até um local específico, no meio da mata, onde Ys. me aguardava.
Visto toda essa situação, foi com bastante embaraço que expus meus interesses de
fazer pesquisa no local e foi com bastante cuidado que Ys. me ouviu e me instigou a falar dos
motivos que me levavam até lá. Contei das experiências que tive nos demais espaços, dos
meus interesses de pesquisa e das preocupações que me perpassavam, pois meu tempo de
doutorado estava em vias de acabar. Disse-me, por fim, que precisaria consultar as entidades e
o conselho das Yas e Baba (as mães e o pai, as mais velhas e fundadoras) da comunidade, pois
as decisões são realizadas conjuntamente. Antes de sair me pediu que eu escrevesse uma carta
para a Morada da Paz, explicitando quais seriam minhas intenções de trabalho e como eu as
conheci. Disse-me ainda que elas demorariam a dar a resposta, pois logo entrariam em retiro e
depois sairiam em diligência para a Índia, mas que a resposta logo viria.
Escrevi a carta como me foi solicitada, e nos meses seguintes trabalhei como
ecoeducadora voluntária na Colônia de Férias Curumim-Omadê, uma das ações do Ponto de
Cultura Omorodê realizada no território. Dias depois recebi uma ligação para comparecer à
comunidade. Algumas das Yas me receberam na Casa Bio, casa que ajudei a construir anos
atrás e que, naquele momento, encontrava-se terminada. Li minha carta (ANEXO 1) e
reafirmei tudo o que havia escrito: em resumo, desenvolver uma etnografia que se proponha a
descrever como a comunidade relaciona espiritualidade, ecologia e política - o que Ys. disse
ser o coração da comunidade - com o intuito de confrontar certos saberes hegemônicos
instituídos pelos clássicos conhecimentos acadêmicos. Discorri sobre meus interesses em
pensar as “relações afroindígenas” e seus efeitos, e da importância de pensar a escrita da tese
não sobre a Morada, mas 'com' a Morada. Enfim, nada além do que compartilho com colegas
e professores da Universidade.
Deixaram claro que não tinham interesse em uma tese sobre a comunidade, pois os
próprios moradores já desenvolveram alguns trabalhos acadêmicos: teses, dissertações e
20

trabalhos de conclusão. O que despertou o interesse delas em minha proposta foi basicamente
aquilo que falei de mais pretensioso, ainda que sincero: “confrontar os saberes hegemônicos”.
Viram na minha escrita uma forma de reverberar as ideias da Comunidade para dentro dos
meios acadêmicos, de outro modo. Apontaram, primeiramente, minha ousadia nos desejos de
pesquisa: “Que morra de ousada!”, exclamaram entre risos, ainda que isso não fosse
propriamente uma brincadeira. Depois, disseram-me que, para realizar pesquisa no território,
eu precisaria realmente morrer e renascer de outra forma. “A sua tese já está pronta. Quem
precisa estar pronta é você”, me disseram. “É preciso fazer um mergulho para poder
escrever”, completaram4. Morrer para renascer implica em passar por uma série de ritos e
assumir muitos compromissos. Eu titubeei, questionei o fato de eu aceitar entrar, tendo em
vista a construção de uma tese, para ter certeza que isso estava acordado. Depois de longa
conversa, em que acordamos que nem elas e nem eu sabíamos as consequências possíveis
dessa relação, aceitei os termos que estavam propondo.
Escrevo, portanto, como alguém que iniciou seu trabalho de campo no mesmo
momento em que se iniciou na Nação Muzunguê. Poderiam ter negado a construção desta
pesquisa, mas colocaram a possibilidade desse processo de iniciação. Contudo, não foi apenas
a ousadia que fez com que aceitassem a escrita desta tese. As entidades que me acompanham,
segundo me disse Yb., uma das Yas da comunidade, pediram para trabalhar naquele terreiro.
Mas a ousadia e o pedido das entidades também não foram suficientes. Recentemente Ys. me
disse que não desejavam ninguém pesquisando a comunidade, mas confiaram em Mãe Preta,
que foi quem orientou para que essa pesquisa acontecesse. Foi assim que, um pouco antes do
retiro de minha iniciação, as entidades trouxeram às mais velhas da comunidade o nome pelo
qual eu seria chamada e reconhecida, o nome crístico, como dizem, que manifesta a força ou
o ser de cada sujeito. Nasci e passei a ser reconhecida como Folaiyan, “aquela que caminha
com dignidade”.
Aceitaram o desenvolver desta pesquisa não por uma confiança prévia ou tácita em
mim, afinal, pouco me conheciam. Mas por uma confiança na relação possível entre nós, que
contou com a mediação de um humano, o coorientador desta tese, que tem uma relação de
amizade com a comunidade, e de um não-humano, Mãe Preta. Principalmente, sem dúvida, de
Mãe Preta, que acompanha e guia a comunidade e a vida daqueles que dela participam. De
início, não raras foram as investidas desconfiadas e os testes feitos comigo, principalmente
das mais velhas - que produziram em mim inúmeros desconfortos e muitas reflexões éticas.
Sobre isso, variaram consideravelmente minhas percepções sobre ser pesquisadora, ser iaô, e
4 Durante o ano de 2017, esteve presente na comunidade outra pesquisadora, do Rio de Janeiro, cuja pesquisa
era sobre ecovilas. Soube, após um momento em que ela estava bastante triste, que as mais velhas colocaram a
ela a mesma questão de morte e renascimento, que foi negado por ela, e por isso lhe foi negada a possibilidade
de realizar trabalho de campo no local.
21

ser ambas - muito pelo fato de que passei a sentir, a ver e a perceber, involuntariamente, o
mundo de outra forma. De fato, estava fazendo “trabalho de campo”, ainda que por vezes eu
esquecesse isso… O tempo da produção desta tese foi um constante surfar nessas categorias,
alterando minhas aproximações, distanciamentos e reelaborações desses pertencimentos.
Por tanto vivido na comunidade, muitas vezes a tese não fazia mais sentido. Sentia-me
como Jorge Luis Borges descreveu “o etnógrafo” – depois de conhecer os “segredos” com
aqueles com quem fez seu trabalho de campo, a produção de sua pesquisa não passava de
simples “frivolidade”. Uma vivência, contudo, pautada em culpa, do homem branco cujos
antepassados massacraram índios com os quais ele foi conviver para a sua pesquisa – e talvez
seja sobretudo por isso que o personagem atribuiu à ciência da qual faz parte a tal
“frivolidade”. Carregado de ironia, o personagem de Borges se transforma em um
bibliotecário de Yale. Não pretendeu “virar índio”, como questionou a ele seu orientador, pois
para ele, o que os indígenas “me ensinaram é bom em qualquer lugar e para qualquer
circunstância”. Também não levou a cabo sua pesquisa como etnógrafo.
Esse conto me chegou enquanto eu passava por uma série de dilemas. Em alguns
momentos a tese parecia algo que não seria concluída. Primeiro pelo receio (e culpa) de
assumir o lugar daquela que ‘extrai’ conhecimentos alheios, os “segredos” – como o
conhecimento ocidental majoritário tem se erguido ao longo dos anos. Segundo, pois não
fazia mais sentido frente à grandiosidade do vivido (sentia a mesma “frivolidade” descrita por
Borges em relação à Antropologia), acompanhado de um desejo constante, que surgiu durante
essa trajetória, de viver a Morada sem ser pesquisadora. Não porque os outros da irmandade
lembravam-me desse papel, aliás, pareciam pouco lembrar, mas pelo compromisso da escrita.
A culpa, contudo, produzia uma impossibilidade criativa. Primeiro porque me fazia assumir o
papel do crítico, numa atribuição de que nenhuma ciência serve - um niilismo pueril. E isso
acarretava, por vezes, a negação da Antropologia e do quanto foi ela que me levou à Morada -
o que é, de fato, hipocrisia. A culpa decompõe com a criação.
Outras vezes a tese surgia como compromisso assumido com a comunidade e com
Mãe Preta – para além do compromisso assumido com a Universidade. Toda vez que nos
encontrávamos, ela, incorporada em Ys., perguntava-me como estavam os escrevinhados e
trazia orientações valiosas para a escrita e para a vida. De toda forma, não me deixava
esquecer o que eu fazia ali, e aquilo, vez ou outra, aparecia como fardo. Outras vezes ainda, e
talvez esse seja o melhor dos efeitos em que eu poderia me engajar, a tese surgia como uma
ferramenta, uma chave para abrir “portas que só se abrem pelo lado de dentro”, como diz
Mãe Preta. E que esse dentro fosse, sobretudo, a Antropologia. Nestes momentos, o fardo do
lugar de pesquisadora dava espaço para uma possibilidade de criação investida de desejo, não
22

livre de uma série de cuidados. Eu flutuei por todas essas sensações até a conclusão deste
texto e seria falso se eu o negasse. Mas, sem dúvida, se eu o concluo, é porque desejo fazer da
tese uma chave para abrir portas pelo lado de dentro.
Penso que o meu envolvimento com a Morada da Paz pode ser radicalmente
contraposto à experiência de Flacksman (2014) no terreiro do Gantois, em Salvador. A autora
desenvolveu sua pesquisa em um dos terreiros soteropolitanos mais conhecidos e com fama
de ser um lugar muito fechado aos pesquisadores, diferente de outros terreiros famosos na
cidade. Ao longo de seu processo, o tensionamento sobre ser pesquisadora e uma pretendente
à feitura do santo foi constante. Muitas filhas e filhos da casa supunham que ela se utilizava
da sua pesquisa de doutorado para “furar a fila” das feituras do santo, tal como ela narra ter
acontecido no terreiro com outros antropólogos. Assim que a família de santo soube dos
interesses escusos desses outros pesquisadores - interessados em fazer o santo e utilizando-se
da pesquisa como um meio para tal -, expulsaram-nos do terreiro. Flacksman percebeu, então,
que explicitar que seu desejo era somente fazer a pesquisa, e não se iniciar, foi o que a
permitiu desenvolver seu trabalho na casa com tranquilidade.
No caso vivenciado na Morada da Paz isso ocorreu diferente. A situação a que eu fui
convidada a participar como iniciada, na medida em que convidei a Morada da Paz a
participar de uma tese de doutorado, coloca em questão um ponto interessante. Há um
discurso operante em um plano molar de “nós por nós” e de “nada sobre nós sem nós”, de que
nada será feito sem a participação dos membros da comunidade e que não só seria necessário
eu me tornar um membro, mas também ter meu trabalho continuamente acompanhado pelas
mais velhas. Na Morada da Paz, negam a ausência de participação, numa clara alusão da
importância da representatividade. Mas há, sobretudo, uma molecularidade que perpassa essas
concepções, que está diretamente atrelada à noção de espiritualidade e de guerra cósmica
que pretendo desenvolver mais aprofundadamente na conclusão desse texto.
Os lugares de pertencimento variam nessa relação que é continuamente feita e refeita.
Eu, que comecei a relação com a Morada como demoradora, no início de 2018 passei a ser
uma aliança, alguém que não mais participa da comunidade, mas estabelece com ela uma
relação próxima. Mas se os pertencimentos variam, há algo que surge como condição de
possibilidade para todas essas formas de relações, que chamo - na falta de um termo melhor -
de composição contracolonizadora, em que esta Tese aparece como um dos substratos iniciais.
Composição eu retomo de Deleuze (2002, 2017), porque não poderia dizer ser um pacto,
acordo ou negociação, na medida em que essas percepções partem de uma noção de pessoa
que exclui uma série de componentes não-humanos em interação.
23

Composição porque partes das relações que me constituem encontraram-se com partes
das relações que constituem as pessoas que fazem e criam a Morada da Paz, fazendo com que
as envolvidas no problema que ali emergia – a construção de uma Tese que se “propõe a
confrontar os saberes hegemônicos” a partir das práticas e saberes desenvolvidas na Morada
da Paz – engajassem-se nas suas possibilidades de solução, em diferentes posições, é claro.
Permitindo-me ser, através das forças que me atravessam, vetor para a potencialização da
Morada e dos desejos que levaram as mais velhas e as entidades a aceitarem minha presença
ali, da mesma forma que a Morada foi e é um vetor de potência em mim que, dentre tantos
fluxos do qual sou composta, também um vetor de novas imagens do pensamento a partir da e
para a Antropologia.
Contracolonizadora porque foi sobretudo sobre ‘confrontar os saberes hegemônicos’ o
início desta composição. O conceito de contracolonização eu retomo de Santos (2015), tanto
de seu livro, mas principalmente a partir de duas falas que realizou no Programa de Pós-
graduação em Antropologia do Museu Nacional/UFRJ, onde negou o termo descolonização
dizendo que para ‘des’-colonizar é preciso saber colonizar, para então desfazê-la. Negou tanto
o saber colonizar, como desfazer algo que foi feito e produz suas consequências. Ele cunha,
portanto, o termo contracolonização, se bem entendi, como uma forma de confrontar e
desestabilizar o colonialismo, mesmo quando esse se apresenta em situações não tão
instituídas. Não pretende desfazer o que foi feito, mas confrontá-lo sempre que se apresentar,
mesmo nos momentos onde o colonialismo parece não estar. Por conta desta composição
contracolonizadora, o exercício nesta tese é sobretudo descrever como a Morada da Paz, de
forma experimental, ou seja, de forma pragmática e especulativa, realiza uma “ontologia do
presente”5, uma interrogação profunda sobre a atualidade, e experimentações sobre
possibilidades de emancipação, produzindo com o corpo e com o território o que Foucault
realizou com a historiografia e a filosofia.
O recurso que utilizo para tal é tomar a tradução etnográfica como a possibilidade de
simetrização dos saberes aqui articulados (GOLDMAN, 2008, 2009). Como antropóloga, não
pretendendo falar nem mais nem menos do que minhas irmãs e irmãos, em uma tentativa de
escapar às clássicas e infelizes hierarquizações de saberes. Dessa forma, não pretendo falar
5 Sugiro que a Morada da Paz faz com o corpo e o território algo semelhante ao que Foucault realiza com o
trabalho historiográfico e filosófico, ancorado na arqueologia e genealogia, que denominou de “ontologia do
presente”, que consiste na interrogação sobre a atualidade, identificando nela dispositivos de subjetivação e a
emergência de novos modos de relação do sujeito consigo e com os outros. Desejava não impor uma
perspectiva totalizante e global da constituição de si, mas fomentar práticas de autonomia. E por conta disso,
nos estudos sobre os governos dos outros e governos de si, volta-se à Antiguidade, ao Iluminismo, ao Kant em
uma pesquisa histórica através dos eventos que nos levaram a nos constituir o que somos, a nos perceber como
sujeitos do que fazemos e pensamos. Contrapõe a ontologia do presente às questões da filosofia sobre as
condições em que um conhecimento verdadeiro é possível. Suas questões são: “o que é a atualidade? Qual é o
campo atual das nossas experiências? Qual é o campo atual das experiências possíveis? (FOUCAULT, 2010, p.
21).
24

pela Morada da Paz (problemáticas representatividades), mas com ela, através dela e diante
dela, para, assim, falar ‘como’ Morada, questão que deixo para desenvolver ao final da tese.
Para esta empreitada, elegi uma noção chave elaborada pela Morada da Paz, para
conduzir as reflexões que apresento. Trata-se da ideia de ocupar. Ocupar aparece nesta tese
de duas formas. Primeiro, como um termo a ser descrito. Ou seja, como foi elaborado e como
funciona no cotidiano da comunidade, posto em diálogo com uma série de materiais
etnográficos, filosóficos e políticos. É sobretudo isso que farei nas páginas que se seguem.
Segundo, a partir dessa descrição de como a Morada da Paz operacionaliza essa ideia,
pretendo utilizá-la também na condução dos capítulos que aparecerão ao longo desta tese, que
tratam respectivamente das noções de borda, feminino, kilombo e pele de papel. Convido a
leitora e o leitor à primeira parte deste percurso.

1.2 Ocupar

A primeira vez que ouvi o termo ocupar foi em um ipadê, como denominam as rodas
de conversa, durante a vivência na comunidade de um grupo de militância negra de Porto
Alegre, composto de pessoas de meia idade, com muitos anos de engajamento. No ipadê de
apresentação e recepção, um dos visitantes tentou traçar alguns aspectos que aproximavam e
diferenciavam os objetivos de seu coletivo daqueles da Morada da Paz. Disse que buscou a
vivência na comunidade Morada da Paz pois ambos os grupos desejavam “valorizar o
comunalismo e o saber ancestral”. O que os diferencia, contudo, segundo ele, é que a Morada
da Paz seria um “coletivo espiritual” e eles seriam um “coletivo político”, pois buscam
recuperar o comunalismo vivido pelos “ancestrais quilombolas” e trazer essas “ideias
comunais para dentro da política”.
Foi então que Ys. respondeu a ele: “mas nós somos sujeitos políticos! Não se trata de
política partidária, mas é politica. Temos práticas de permacultura, temos o Instituto
CoMPaz, o Ponto de Cultura Omorodê e estamos construindo a ComKola. Trabalhamos com
a ocupação! Ocupação das mentes, dos espaços, dos diálogos, dos corações”. Sua fala fez
menção a uma expressão trazida por Mãe Preta, a Yaba ancestral da comunidade, sobre a
importância da comunidade se dedicar a ocupar mentes e corações - colocação que surgiu
novamente durante o rito Terreiro de Chão Batido, em junho de 2016, onde ocorreu um ipadê
para conversar e dialogar sobre isso com os participantes visitantes.
Sugiro pensar a noção de ocupar desenvolvida pela Morada e apresentada nesse
diálogo como um ponto nodal da encruzilhada (ANJOS, 2006, 2008) de duas noções de
ocupação, uma oriunda dos movimentos sociais e outra oriunda das casas de Batuque.
Encruzilhada é uma noção do pensamento afrorreligioso e apresenta-se, através do trabalho
25

de Anjos, como uma outra forma de pensar a diferença que não seja pela diluição da mesma,
como instituída pelos modos de atuação do Estado-nação. Tal como a definiu o autor, “a
religiosidade afro-brasileira tem um outro modelo para o encontro das diferenças que é
rizomático: a encruzilhada como ponto de encontro de diferentes caminhos que não se fundem
numa unidade, mas seguem como pluralidades.” (2008, p. 80)
A fala de Ys. conectava-se explicita e diretamente a diferentes situações que não se
confundem, mas na Morada afetam-se mutuamente. Na época em que esse diálogo aconteceu,
as escolas públicas estaduais de muitos municípios do Rio Grande do Sul e do Brasil foram
ocupadas pelos estudantes secundaristas que exigiam do Estado atenção à educação básica. A
tática de ocupar as escolas permitiu aos estudantes construir novas relações de produção de
conhecimento, não mais pautadas pela relação aluno-professor, mas pelas comunidades.
Jovens, incluindo os alunos da rede pública, que se dispunham a realizar atividades e oficinas
com os estudantes e demais públicos interessados, enquanto professores, pais e comunidade
em geral contribuíam com arrecadação de alimentos e demais itens necessários para a
permanência da ocupação. Alunos realizavam assembleias onde as decisões eram tomadas
coletivamente, limpavam e organizavam os espaços, aprendendo na prática e no cotidiano
como fazer uma ocupação.
Essas informações chegaram à Morada de inúmeros modos e despertou seu interesse e
curiosidade. Uma das escolas em que leciona Ik., antiga egbomi (irmã mais velha) da
comunidade, foi ocupada pelos alunos; a UERGS, Universidade em que estuda Al., outra
antiga egbomi, foi ocupada pelos estudantes; os alunos do colégio de ensino fundamental em
que muitas das crianças da Morada estudam cogitaram a possibilidade de ocuparem a escola –
seria a primeira escola rural ocupada no RS, movimento que não aconteceu, mas foi bastante
incentivado pelas mais velhas; Im., também antigo egbomi, foi em algumas escolas realizar
oficinas de Maracatu; eu estive em algumas escolas auxiliando nos funcionamentos cotidianos
e na vigília noturna. Além disso, durante o curso prático de Jardins Filtrantes que ocorreu na
comunidade este era o tema central entre muitos dos inscritos no curso. Ou seja, as ocupações
nas escolas, no MinC, nas Universidades e em outros espaços, foram tema de boa parte dos
assuntos conversados. A luta dos secundaristas pela educação e o desejo de construir uma
escola diferente através das ocupações se conectou aos desejos da Morada da Paz e sua luta
por outro mundo possível.
*
Em termos jurídicos, o conceito de ocupação nasce profundamente atrelado ao
conceito de propriedade individual, característica fundamental do Direito moderno. O direito
a propriedade é um dos institutos basilares da Constituição Federal Brasileira, caracterizado
26

como o direito “de usar, gozar e dispor da coisa, bem como de reavê-la do poder de quem
quer que injustamente a possua ou detenha”6. Compreende-se que as coisas podem ser
apropriadas através de uma relação “jurídica contratual”, que implica relação entre duas
pessoas, por exemplo uma relação de compra e venda, ou por “captura”, onde não há relação
entre pessoas, mas apenas entre o sujeito e o bem. A primeira aquisição é denominada
“derivada”, pois o bem já foi propriedade de outrem, e a segunda é denominada “originária”,
pois o bem não tem ou nunca teve um proprietário.
O direito a propriedade, do ponto de vista do Estado-nação, é considerado como o
mais importante direito real. Nessa lógica, a ocupação só é possível, então, quando não há um
proprietário anterior, caso contrário, é considerada “invasão”, argumento muito utilizado por
latifundiários e empreiteiros contrários às ações dos movimentos de luta pela terra e por
moradia. Há duas implicações fundamentais nessa ideia de ocupação que gostaria de salientar.
Primeiro, só é possível ocupar aquilo que não tem proprietário (seja porque nunca teve, seja
porque foi abandonado). Segundo, assim que foi ocupado, o sujeito que ocupa tem a posse,
podendo derivar disso a propriedade – pelo usucapião. Caso um imóvel privado seja ocupado
e seja alegado ao Estado que não cumpre com sua função social, o imóvel pode ser
desapropriado, tornando-se propriedade do Estado ou passado a outros particulares que se
tornarão proprietários. Ou ainda, quando um imóvel ocupado é propriedade do Estado, pode-
se buscar negociações com o mesmo para que aqueles que ocupam tenham a concessão de uso
do espaço. Portanto, terão a posse, enquanto o proprietário será o Estado.
Todo proprietário é possuidor, mas nem todo possuidor é proprietário, ainda que
detenha “alguns dos poderes inerentes à propriedade” (art. 1196 do Direito Civil). O que
diferencia o possuidor do proprietário é principalmente sua capacidade de venda do imóvel. E
se faço esse breve apanhado de como o Direito moderno entende a ocupação é para
demonstrar que, nessa perspectiva, toda ocupação é uma forma de contrainventar
propriedades e indivíduos proprietários. Desse modo, quando partimos para a análise dos
movimentos dos trabalhadores rurais sem-terra ou daqueles que lutam por moradias dignas
nas áreas urbanas, tornar-se um proprietário através da ocupação ou fazer do Estado
proprietário para se ter a posse, de forma coletiva e de concessão de uso, é o que vai garantir
às pessoas a permanência no imóvel ou terra. Mas novos contornos surgem para o conceito de
ocupação através desses movimentos sociais, em que a ocupação é vista não como uma forma
de produzir proprietários, ou não reduzida a isso, mas como uma ferramenta política de
explicitação das desigualdades sociais e invenção de outros modos de se fazer política.

6Artigo 1228 da Constituição Federal.


27

O principal argumento jurídico acionado pelos manifestantes do MST e dos


movimentos de luta por moradia no meio urbano é de que os prédios e as terras que foram
ocupadas encontram-se ociosos, o que é considerado crime pela Constituição Federal. De
acordo com Boulos (2012), ativista do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) que
escreveu um livro chamado “Por que ocupamos?”, nos artigos 5 e 170 da Constituição Federal
está previsto que toda propriedade precisa cumprir com sua função social, ou seja, a
propriedade tem que ter algum uso (seja por moradia, trabalho ou qualquer outra ação que
traga “benefícios para a sociedade”). Ocupar, portanto, para esses movimentos urbanos, é uma
estratégia de fazer valer a Lei expressa na Constituição Federal, que garante a moradia como
um direito social e a obrigatoriedade da função social da propriedade. Como dizem os gritos
das ruas, “Se morar é um privilégio, ocupar é um direito” ou ainda, “se morar é um direito,
ocupar é um dever”.
No que se refere à luta dos trabalhadores rurais, que inspiraram e inspiram muito do
que há no conceito de ocupação, essa ferramenta política está profundamente vinculada à luta
pela reforma agrária e pelo fim dos latifúndios. Foi uma estratégia utilizada para pressionar o
Estado a tomar as medidas cabíveis para democratizar o uso da terra. Durante os anos 80, no
início da criação do que então seria denominado MST – Movimento Sem-Terra, o lema
vigente entre os trabalhadores rurais era “ocupação é a única solução” - negando qualquer
negociação possível com o então governo nacional7 e utilizando-se da ocupação como uma
forma de obrigá-lo a lidar com o problema da terra. Parece-me que os trabalhadores rurais
sem-terra e aqueles que lutam por moradia nos centros urbanos têm em comum a utilização da
ocupação como uma ferramenta para usufruir coletivamente de um bem, seja um pedaço de
terra, seja um prédio abandonado no centro da cidade, explicitando e nos obrigando a ver e
pensar sobre as desigualdades sociais inerentes à ideia de propriedade e de posse. Aqueles que
foram impedidos, pela ausência de oportunidades, de participar do jogo capitalista de compra
e venda, utilizam-se da ocupação como um meio de garantir a gerência autônoma e coletiva
da vida.
Mas a ocupação não é utilizada apenas quando se almeja a posse permanente do
espaço ocupado. Há outras formas de ocupação, como demonstraram os secundaristas e
universitários nas mobilizações nacionais de 2015 e 2016, ou como nos lembram os
movimentos sem-terra, indígenas, quilombolas ou da luta por moradia, quando ocupam os
prédios governamentais responsáveis pela demarcação das terras ou pela garantia de
habitações. Essas ocupações são, a princípio, movidas por certas pautas reivindicatórias
concretas – pressionar para que o Estado cumpra seu papel na garantia dos direitos – e são
7 Ocupação é a única solução foi o lema surgido no primeiro encontro nacional do MST em 1985. Mais
informações, ver Morissawa (2001).
28

respaldadas juridicamente pelo direito à livre manifestação. São temporárias e acontecem


como um meio de travar o funcionamento da máquina burocrática estatal, obrigando-nos a
atentar para as pautas daqueles que reivindicam e produzindo novos sentidos e significados
para aqueles espaços públicos.
O que há de mais interessante nesses movimentos, a meu ver, não são apenas as pautas
que mobilizam, nem os argumentos jurídicos utilizados para convencer o Estado da
legitimidade da ação (ainda que sejam fundamentais, principalmente como uma estratégia
para tentar fazer com que sua força repressiva seja minimamente contida). O que há de mais
interessante, e que transversaliza todas as formas de ocupar aqui descritas, é o que se produz
no processo. Inventam-se outras lógicas de relações, de troca, de solidariedade, outros afetos e
desejos. Produz-se um tempo-espaço de um cotidiano inventivo, permanente ou temporário,
nos obrigando a pensar sobre a lógica do capital que sempre faz prevalecer a propriedade em
detrimento da vida8.
Nesse sentido, acredito que o modo como a ocupação é vivida e conceituada pelos
diversos movimentos sociais vai de encontro à concepção jurídica de ocupação. O que os
diversos movimentos sociais parecem apontar, muito próximo de quando Davi Kopenawa
designa os brancos como o “povo da mercadoria”, é que sempre há um proprietário para tudo.
Um prédio no centro da cidade, ainda que esteja há anos abandonado, pertence a uma
empreiteira que está esperando o momento certo do ‘boom’ imobiliário para construir mais
um arranha-céu; o latifúndio, ainda que a terra seja grilada e parte dela esteja em desuso,
pertence ao fazendeiro, pelo menos nos falsos papéis; a Escola ou Universidade, ainda que
não contemplem os anseios de educação da comunidade escolar ou universitária, pertencem
ao Estado – enquanto ente burocrático e abstrato. Porque o termo correlato da mercadoria é o
proprietário e o possuidor. Há sempre um dono para cada coisa.
Porém, encontramos entre os movimentos sociais uma dupla relação. Enquanto
acionam a propriedade através da mínima garantia de direitos, que é o modo como o Estado
procede, também negam a propriedade como única e exclusiva forma de lidar com os espaços
e com as pessoas. Por conta disso, os indígenas dizem que não é a terra que pertence ao
homem, mas o homem que pertence à terra; os sem-terra afirmam que “não podemos ser
senhores do ambiente, apenas administradores, encarregados de cuidar” (MST, 2000, p. 7); e

8 A fala de uma estudante que participou dos movimentos de ocupações em São Paulo demonstra muito da
capacidade de subversão dos espaços e dos afetos a partir das ocupações: “A gente tem várias enormes árvores
na escola e nunca fez uma aula fora, nunca fez uma aula para descobrir quais as espécies das árvores, nunca
fez uma aula embaixo da árvore. Sempre em parques, em passeios da escola, se tinha uma árvore eu subia.
Quando a gente ocupou a escola, a primeira coisa que eu falei foi ‘nossa, a gente vai poder subir na árvore!’.
Me lembro que uma vez eu subi e minha professora me perguntou ‘o que você está fazendo?’. ‘Ué? Subindo
na árvore!’. ‘Desce daí!’. E isso ficou na minha cabeça… Uma árvore é vista como uma coisa tão
extraordinária, tão perigosa...” (COLETIVO CONTRAFILÉ, 2016, p. 13)
29

os trabalhadores sem-teto afirmam que a luta por moradia não é a luta pela manutenção dos
privilégios, ou para a garantia de casa para alguns poucos, mas para que todos possam ter
onde morar. De alguma forma é isso que os secundaristas fizeram também. Lembraram que as
escolas públicas não são propriedades do Estado, mas é ele, enquanto administrador, e a
Escola que devem responder aos anseios da comunidade escolar.
Ocupar, enquanto estratégia política, é uma ação. E obriga a todos aqueles que
presenciam a ação a se posicionarem, como atenta um dos trabalhadores sem-terra: “A
ocupação (…) é uma forma de luta contundente, não deixa ninguém ficar em cima do muro,
obriga a todos os setores da sociedade a dizerem se são a favor ou contra. Não há, enfim,
oportunidade para escamotear o problema social” (MST, 2000, p. 18). A ocupação obriga a
tomada de posição, tanto por aqueles que ocupam ou que têm seu imóvel ocupado, quanto por
aqueles que observam o movimento acontecer. Principalmente, claro, obriga o Estado, como
agente regulador de conflitos, a se posicionar. Dessa forma, me parece que a ocupação gera
um impasse porque bloqueia, em um sobressalto, o fluxo ‘normal’ das coisas.
Nessas perspectivas, toda ocupação implica tomar para si o mundo que nos foi negado
participar – o mundo da posse e da propriedade. Seja pelo uso da terra, seja pelo luta pela
moradia ou pela educação. Ocupar implica também em enfrentar as lógicas capitalísticas, que
tão facilmente nos desapossaram do mundo, em criar outros modos de inventá-lo ou, como
Pelbart (2016) designou em relação às ocupações dos secundaristas, apresentar uma nova
“imaginação política”, em que desejos se potencializam e materializam-se em ações e
tomadas de decisões coletivas. Ocupar, dessa forma, é explicitar as desigualdades na exata
medida em que se inventa outro território, uma linha de fuga às propriedades.

De pronto, já não se tolera o que antes se tolerava, e passa-se a desejar o que antes
era impensável. Isso significa que a fronteira entre o intolerável e o desejável se
desloca – e sem que se entenda como nem por quê, de pronto parece que tudo
mudou: ninguém aceita mais o que antes parecia inevitável (a escola disciplinadora,
a hierarquia arbitrária, a degradação das condições de ensino), e todos exigem o que
antes parecia inimaginável (a inversão das prioridades entre o público e o privado, a
primazia da voz dos estudantes, a possibilidade de imaginar uma outra escola, um
outro ensino, uma outra juventude, inclusive uma outra sociedade!). (PELBART,
2016)

O termo ocupação aparece na Morada como uma ação política, como entendida pelos
movimentos sociais, mas também aparece como é utilizado pelos adeptos do Batuque, religião
de culto aos Orixás muito comum no Rio Grande do Sul, para designar a relação estabelecida
entre Orixás e humanos. Em um ipadê, uma das Yas comentou que as Yalorixás e Babalorixás
utilizavam o termo para designar o processo de manifestação do Orixá, também denominado
30

Santo9. Ou seja, dizem que “o Santo ocupa o seu cavalo”, sendo o cavalo o sujeito que o
manifesta. Nesse movimento que ocorre nas casas de Batuque, o corpo é o território ocupado.
De todo modo, na Morada da Paz muito dificilmente encontramos o termo ocupar
referenciando tais situações, sendo mais comum o termo incorporação. Na verdade, é incrível
a intensa criatividade dos adeptos de terreiro para nomear essa relação – ocupar, incorporar,
virar, receber, dar passagem, manifestar – que se contrapõe com as clássicas nomeações da
antropologia, um tanto empobrecidas, como possessão e transe.
Essa relação complexa entre Orixás e humanos dá-se por uma noção de pessoa em que
o ser humano, tal como Goldman nos diz sobre o Candomblé Angola, “é pensado (…) como
uma síntese complexa, resultante da coexistência de uma série de componentes materiais e
imateriais - o corpo (ara), o Ori, os orixás, o Erê, o Egum, o Exu” (GOLDMAN, 1985, p. 38).
Ou, talvez, como a descreveu um dos interlocutores de Opipari, durante seu trabalho de
campo com casas de Candomblé em São Paulo:
O ser humano é a mesma coisa que na Igreja católica, ele tem um corpo e uma alma,
independente de qualquer outra coisa que ele venha a ter um dia, tá? Mas, para mim,
ele tem um corpo e uma alma, é normal, só que ele tem alguma coisa a mais, são
essas coisas que completam ele tudo. (OPIPARI, 2009, p. 189).

Assim, as religiões afro-brasileiras nos apresentam uma outra forma de pensar a


constituição da pessoa, que não a unidade fechada (do binarismo espírito e corpo) e
homogênea do indivíduo, em que o Direito moderno ocidental se assenta. Os sujeitos são
permeados por outros seres, por outros componentes imateriais que os “completam”. Por
conta disso, os iniciados no culto aos Orixás desenvolvem intensas técnicas de cuidado para a
manutenção das relações que estabelecem com esses outros. De modo geral, é aspecto comum
em diversos terreiros que haja uma série de ritualísticas complexas que vinculam os humanos
aos Orixás, ou seja, que envolvem a “feitura” (como se diz no Candomblé e no Batuque) tanto
do Santo, quanto do Ori (cabeça) do sujeito iniciado (ver Goldman 2005a; 2009). Mas,
importante dizer, a feitura em questão efetiva uma relação que já existia entre humano e
Orixá, antes da sua feitura10. Dessa forma, Rabelo nos diz, “a feitura abre o caminho para que
9 Existe toda uma discussão sobre a equivalência ou não desses termos para os próprios adeptos das religiões de
matriz africana (ver Opipari, 2009, cap. IV). Aqui tomo por equivalentes. De modo geral, Orixás podem ser
percebidos como potências inerentes aos elementos e forças da natureza (Ogum o ferro, Xangô trovão,
Iemanjá mar, por exemplo); mas também podem assumir formas humanas (Ogum guerreiro, Xangô justiceiro,
Iemanjá senhora mãe). E cada um destes Orixás possui diversas “qualidades”, manifestadas em diferentes
nomes. No Candomblé e no Batuque, ao iniciado será designado um Orixá com suas qualidades específicas. E,
como nos diz Goldman (2012, p. 275), é a partir do processo de feitura, ou seja, com uma série de ritualísticas,
que estabelecerão uma relação mais substancial entre humano e Orixá que passa a ser chamado de Santo. Na
Morada da Paz a designação Santo não é utilizada, apenas muito raramente, em conversas informais. E, como
não há um processo de feitura tal como nas casas de Candomblé e Batuque, essa distinção entre Santo e Orixá
não existe.
10Assim nos narra Rabelo (2014, p. 81) sobre Dona Detinha, Ya, ainda que sem casa aberta, com quem conviveu
no Ilê Axé Alá Key Koysan, da Nação Ketu, em Salvador: “Na iniciação são feitos o orixá e seu filho humano,
ou melhor, é efetivada uma relação entre eles, relação que já existia (embora não soubesse, dona Dete sempre
31

essa relação seja objeto de investimentos e cuidados e, neste sentido, institui uma
história”(2014, p. 81).
Como lembrou Exu-Tiriri ao etnógrafo Barbosa Neto (2012b), “cada casa é um caso”,
o que me leva a considerar que os modos rituais de estabelecer as relações entre Orixás e
humanos variam consideravelmente nas muitas perspectivas que comumente são
categorizadas como “religiões de matriz africana” ou “religiões afro-brasileiras” e, da mesma
forma, varia como se entende as intensidades de manifestações. Dentre os iniciados há
aqueles, pois nem todos o são, que são ocupados pelo Santo. De modo geral, esse processo de
incorporação é entendido como a manifestação de um fragmento de uma força muito maior,
cuja intensidade seria insuportável ao corpo humano. Nas casas de Batuque e Candomblé os
iniciados que o Santo ocupa manifestam o Orixá que é dito, através do jogo de búzios, ser “o
dono da cabeça” e o manifestam, sobretudo, em momentos rituais. Há outras manifestações de
outros seres que não Orixás, como nas Umbandas, Candomblé Angola, Candomblé de
Caboclo e outros tantos cultos, por exemplo, em que um mesmo médium pode manifestar
diferentes entidades – como chamam na Morada os seres invisíveis que povoam o cosmos. No
caso da Morada da Paz, por exemplo, é comum que um médium manifeste diferentes
entidades, incluindo Orixás, em um mesmo espaço ritual. E as manifestações podem
acontecer também fora do espaço ritual, pois dizem que “as entidades sabem quando
precisam vir”, me explicou certa vez Ak..
Voltando à questão que desejo desenvolver, o Santo, quando ocupa, não ocupa um
corpo vazio. É uma força tão potente, que o sujeito acaba dando passagem ou dando corpo,
como dizem na Morada, para o Santo ocupar. Goldman descreve isso como um processo
semelhante ao de morte: “Isto porque são os próprios deuses que se manifestam, e para que
isto se torne possível é necessário que, não o corpo, mas aquilo que o anima se afaste, num
movimento semelhante ao que ocorre na morte, cedendo assim o espaço no qual se encarnará
o orixá” (GOLDMAN, 1985, p. 47). Pelo que pude aprender de minhas vivências na Morada,
essa incorporação, ou ocupação, é produzida em um ímpeto. A depender do sujeito e do
contexto, um ímpeto produzido pelo auxílio dos tambores, dos cânticos e das rezas sagradas,
mas não necessariamente.
A aproximação entre a entidade e o médium, ou o Santo e seu cavalo, pode ocorrer de
muitas formas. Na Morada da Paz, há casos em que, dizem, a entidade está apenas
encostando11. E quando se manifesta, diz-se que pode ser de modo semiconsciente ou

foi filha de Oxum e, portanto, sempre sofreu a interferência deste orixá em sua vida), mas que ainda não foi
propriamente cultivada”.
11Certa vez, em uma chamada das entidades dedicada às pombas-giras e aos exus, eu tive um verdadeiro ataque
de riso. Estava plenamente consciente, não senti no corpo nada que se assemelhasse aos processos de
incorporação pelos quais eu já passei. Mas não conseguia parar de rir. Assim que a chamada terminou, a
32

inconsciente. Há médiuns que não lembram de absolutamente nada do que ocorreu no


processo de manifestação e há médiuns que acompanham o que acontece como se fossem
‘espectadores’ dos movimentos e falas manifestados a partir de seu próprio corpo. E, devido a
essas variações na relação entre sujeito e Orixá, cada incorporação e cada desincorporação
são muito particulares, variam conforme a entidade que se manifesta e conforme o médium
em questão. Nas casas de Batuque e Candomblé, até onde eu sei, a ocupação é atribuída
apenas às manifestações inconscientes e no caso das casas de Batuque, o sujeito que manifesta
o Orixá não sabe que o faz. Para a Morada da Paz, é impossível não saber que se entrará em
um processo de incorporação, ainda que a manifestação seja inconsciente.
É interessante perceber que nas relações entre entidades e médiuns, as forças que
ocupam não são forças que ‘possuem’ o sujeito, pois o termo possuir não é equivalente ao
termo ocupar, como me explicou Ys.. Ao contrário disso, Ys. me disse que “possuído” é uma
palavra utilizada de forma pejorativa, principalmente pelas religiões neopentecostais, para
designar os processos de incorporação: “ele está possuído”. Essa concepção pejorativa dá a
conotação de que aquilo que está possuindo o sujeito é externo a ele mesmo, pois concebe o
sujeito como uma unidade bem delimitada. No Batuque, disse-me ela, o Santo não possui, o
Santo toma, o Santo ocupa. E, nesse processo, as forças que ocupam, que podem ser um ou
mais Orixás, nada mais são do que as forças que constituem o próprio sujeito – e em um
processo de singularização são também constituídas por ele - mas que não são o sujeito em
si12.
Por isso, na Morada da Paz, brinca-se com os usos da linguagem, tais como uma frase
que muito falamos no cotidiano: “o Xangô de Al.”, por exemplo. Logo uma das Yas nos
corrige, mesmo entendendo o que estamos querendo dizer com isso, “não é o Xangô que é de
Al., mas Al. que é filha de Xangô!”. Al., que é filha de Xangô, também manifesta Oxalá, e
outras tantas entidades com as quais têm cruza, mas que não a ‘possuem’. Ainda assim,
compartilha-se a ideia de que uma entidade que se manifesta em um sujeito é singular, tal
como “o Xangô de Al.”, mesmo que um sujeito possa vir a manifestar uma entidade que
‘normalmente’ se manifesta em outra pessoa. Mãe Preta, por exemplo, durante o grupo

irmandade inteira foi até a cozinha para jantar e começamos a falar sobre a chamada. As egbomis e Yas que
estavam ali presente comentaram que eu estava com uma gira e eu fui enfática em dizer que não, que tinha
plena certeza de que não estava incorporada. Riram da minha ingenuidade por minha insistência em negar –
afinal, eu “sabia” o que era estar incorporada e eu tinha certeza que aquilo não era incorporação. Até que Yb.,
perdendo a paciência com minha teimosia, ironicamente me questionou: “Folaiyan, quanto tempo do dia tu
acha que tu é tu mesma?”
12Lembro-me de uma passagem descrita por dos Anjos (2006, p. 109) em seu trabalho de campo realizado em
uma casa de Batuque no RS, em que vemos a descontinuidade da relação Orixá/humano: “É o caso dessa mãe
de santo que se referindo ao comportamento ético de um de seus filhos-de-santo dizia: ‘às vezes, a pessoa tem
um santo bonito, um santo muito bom, mas o aparelho é ruim. Ai não dá pra manter ele em casa’”. Fica patente
nessa fala a cisão entre o status conferido pelo orixá no momento da incorporação (“de se ocupar”) e o caráter
cotidiano do indivíduo.
33

Cosmos - onde a Morada se originou -, manifestava tanto em Ys. quanto em outra médium
que não mais participa do grupo, quando Ys. não podia ser canal.
Se nos termos dos movimentos políticos a ocupação opera em outro regime de verdade
que não aquele sustentado pelo conceito de propriedade, nos termos das religiões de matriz
africana e da espiritualidade vivida na Morada da Paz, a ocupação, ou seja, o processo de
manifestação do Orixá, opera em outro regime que não o da individualidade. Refiro-me
àquela imagem do indivíduo cujas fronteiras do Eu são bem demarcadas, cuja racionalidade
fornece as bases para se ter o controle sobre o que se é, sobre o ‘seu’ corpo, sobre ‘seus’
pensamentos e ações. O indivíduo como proprietário e possuidor de si mesmo 13, cuja relação
que estabelece com a divindade é pela transcendência – uma divindade que, de alguma forma,
está fora do mundo. Acredito que foi dos Anjos (2008) quem melhor contrastou a concepção
de pessoa afro-religiosa com a concepção de pessoa da modernidade ocidental,
demonstrando-nos que num ritual de terreiro não existe apenas uma prática, mas uma filosofia
da identidade.
A ocupação pode ser definida e utilizada de muitas formas, mas o que me parece
transversal na definição do termo, levando em consideração seus diferentes usos aqui
apresentados, é: tomar de sobressalto algo que disseram e tentaram nos convencer ter um
proprietário – seja o corpo, seja o território. Ocupar é um ímpeto, uma força contagiante com
grande capacidade de mobilização e que nos obriga a atentar ao processo e às questões que ele
coloca. Interessante perceber que o termo “obrigação” nas casas de Candomblé e Batuque
também é muito utilizado e refere-se ao cuidado e ao cultivo da relação que o iniciado precisa
ter e manter com a divindade. No corpo do médium, ocupação é o coração que palpita em um
crescente de intensidade - a tontura, as dores, o suor frio que toma conta das mãos, a fraqueza
das pernas que tiram o equilíbrio do corpo. Obriga-nos a atentar para uma força externa que
afeta um corpo que, mesmo de idade avançada, dança por longas horas, distribuindo seu axé.
Em 2015 e 2016, com os secundaristas, uma onda produzida em um crescente se
espalhou por todo Brasil, de jovens ocupando suas escolas e universidades, obrigando-nos a
todos, envolvidos ou não no processo, atentar para o desmantelamento da educação pública.
Ocupar é o inesperado, quando se surpreende aqueles que se consideram “proprietários”, mas
também o urgente, para aqueles que não encontram outras possibilidades de lutar pela vida, de
13O Comitê Invisível caracterizou bem a individualização ocidental em “A Insurreição que vem” (2013, p. 17-
18): “EU SOU AQUILO QUE SOU. O meu corpo pertence-me. Eu sou eu, tu és tu, e isto não vai nada bem.
Personalização de massa. Individualização de todas as condições — de vida, de trabalho, de infelicidade.
Esquizofrenia difusa. Depressão galopante. Atomização em pequenas partículas paranóicas. Histerização do
contacto. Quanto mais quero ser Eu, maior é a sensação de vazio. Quanto mais me exprimo, mais me esgoto.
Quanto mais vou atrás das coisas, mais cansado fico. Eu ocupo-me, tu ocupas-te, nós ocupamo-nos do nosso
Eu como num entediante balcão de atendimento. Tornamo-nos os representantes de nós próprios — estranho
comércio, fiadores de uma personalização que se assemelha, afinal, a uma amputação. Afiançamos até a ruína,
com uma falta de jeito mais ou menos disfarçada.”.
34

afirmar sua existência: “ocupo para existir”, dizem os secundaristas de São Paulo 14. Talvez um
adepto das religiões afro-brasileiras dissesse o mesmo, só que ao contrário: “sou ocupado para
existir”15 ou, em outro sentido de ocupação, como cuidado de si e portanto com o Outro, “me
ocupo com o Orixá para existir”16.
O interessante dessa aproximação entre os movimentos sociais e a cosmovisão afro-
religiosa é que o primeiro toma a ocupação como uma ação a ser exercida, pois são os
movimentos sociais que ocupam. Já o segundo faz dos sujeitos aqueles que são ocupados, e a
centralidade da ocupação está na relação entre essas forças e o corpo. Uma certa passividade
do humano que é só aparente, pois a ocupação só acontece, como dito, através de uma série de
ritualísticas que reforçam e refazem a vinculação estabelecida entre entidades e humanos. Isso
porque - e talvez possamos elencar como outro elemento transversal nessas formas de
ocupação, na medida em que ocupamos - também somos ocupados por certas forças que
constituem aquilo que ocupamos. Um território, por exemplo, com suas constituições
próprias, quando ocupado, de alguma forma também ocupa aqueles que o ocuparam, na
medida em que apresenta certos biomas, características, necessidades. Algo semelhante ocorre
nos terreiros, onde é certo que Al. é de Xangô, na exata medida em que o Xangô se manifesta
de modo singular em Al.. No processo de ocupação, ambos os termos da relação se
constituem e se afetam mutuamente.
A Morada da Paz, quando nos fala em ocupar mentes e corações utiliza o verbo
ocupar como uma ação a ser exercida por ela – humanos e não-humanos que ali trabalham
juntos -, afinal, é a Morada que se coloca no papel de ocupar. Uma ação experimental e
criativa, produzida em um ímpeto que obriga o pensamento e a tomada de posição, mas não
mobiliza esse verbo do mesmo modo que os movimentos sociais. Não busca garantia de
direitos perante o Estado, muito menos a posse, temporária ou permanente, de imóveis para a
gerência da vida. Ao mesmo tempo, não utiliza a expressão no mesmo sentido dado à
ocupação nas casas de Batuque, ou como se refere aos processos de incorporação. Ainda que

14Frase encontrada no livro A Batalha do Vivo, de autoria do coletivo Contrafilé com vários secundaristas que
participaram das manifestações de 2014.
15Recentemente, em conversa com uma das antigas demoradoras, ela me dizia que passou muitas noites em
claro sem conseguir dormir, o que dificultava consideravelmente seu trabalho e a gerência de sua vida de modo
geral. Foi a um centro espiritualista próximo a sua casa e uma entidade se manifestou dizendo que há tempos
trabalha com ela e que ela precisava voltar ao trabalho espiritual. Foi conversado com a entidade para que
desse o tempo necessário para ela encontrar algum lugar onde trabalhar, mas que ela precisaria conseguir
descansar para lidar com o curso da vida diária. Segundo ela, “estava quase enlouquecendo!”
16Rabelo (2014, p. 225), ao narrar a relação estabelecida ente o iniciado e o otá (que no candomblé é a pedra no
qual o Orixá é assentado) durante o ossé (termo para referir o banho no assentamento de santo): “O corpo, sem
dúvida, afeta – dirige-se a uma situação, concentra-se no poder das mãos e ativamente se engaja com as coisas,
pondo em movimento certas relações entre elas. Também é afetado: invadido pelo cheiro, impactado pela
dureza da pedra, desafiado pela resistência do sangue coagulado e mobilizado por um espetáculo. Nesse
envolvimento sensível transforma-se e vem a assumir nova identidade. É o filho de santo que se faz no
cuidado com o orixá. No outro polo do corpo móvel e senciente, a pedra converte-se também em algo novo, é
o santo que se revela enquanto objeto de cuidado.”
35

o central nas suas ações esteja, sim, nos corpos e na relação com forças e seres invisíveis que
o perpassam. E também em uma atenção ao ímpeto de ocupar, que obriga as forças
estabelecidas a “darem passagem” a um outro modo de existência. De todo modo, ocupar
mentes e corações me parece atuar na decomposição das relações que sustentam as noções do
indivíduo e da propriedade, sustentáculos da modernidade ocidental.
Para a Morada, o cosmos é povoado de forças e seres invisíveis que atravessam,
apropriam-se, interagem, habitam, fortalecem ou enfraquecem os seres visíveis, os sujeitos, os
grupos, os objetos, o que convencionamos chamar de ‘natureza’ e tudo mais que seria da
ordem de uma dada materialidade física. As forças cósmicas são conhecidas pelos seus
efeitos, por aquilo que provoca nos corpos, situações e territórios. O colonialismo, o
capitalismo, o racismo, o machismo e a devastação ambiental são percebidos como
materializações das forças cósmicas destrutivas, cujas existências são anteriores as suas
materializações. Além dessas forças que povoam o cosmos serem dadas a ver nas suas
consequências materiais, a comunicação com elas ocorre também através do que chamam
mediunidade. A mediunidade, para a Morada da Paz, é um aspecto orgânico que constitui
todos os seres, ou seja, não é um dom que apenas alguns têm ou algo a ser desenvolvido.
Antes de tudo, é algo a ser reconhecido, visto que fomos ensinadas a ignorá-la. Dá-se pelos
pontos energéticos que constituem os corpos dos sujeitos, os chamados chakras através dos
quais essas energias ou seres adentram ou perpassam os sujeitos e produzem efeitos. Foi
caracterizada por Ik., egbomi da comunidade, como uma atenção ao detalhe.
Certa vez nos reunimos em Porto Alegre com a finalidade única e exclusiva de
fazermos uma oração coletiva com o intuito de “emanar paz ao mundo”. Logo depois de
realizada, algumas pessoas da irmandade começaram a falar de compras e do dinheiro que
necessitávamos para ritualísticas específicas. Ik. disse que não era momento para conversar
sobre isso, mas mesmo assim insistiram. A situação acabou gerando tensionamentos entre
todos. Já era noite e algumas pessoas precisavam pegar ônibus de volta às suas casas, outras
estavam imersas nos gastos e custos que precisariam arcar. Nesse contexto de tensionamento
uma das crianças começou a chorar e uma das iaôs sentiu dor de barriga. Em meio a essas
situações simultâneas, Exu se manifestou em Tj., iaô e antiga demoradora, para limpar o
local, fazendo com que todos permanecessem em silêncio e interrompessem o assunto. Foi
depois dessa situação que Ik. nos repreendeu por abrirmos um campo energético de
tensionamentos, e disse que era necessário atentar às situações, aos momentos, pois somos
médiuns e “mediunidade é detalhe”.
Ys. me explicou que “a espiritualidade não tem lado”. Ou seja, essas forças e seres
invisíveis podem ser de potência, das luzes, ou destrutivas, energias densas, que servem às
36

trevas - expressões que aparecerão no decorrer da descrição que aqui eu apresento. Não é
possível reduzir a ideia de forças das trevas e forças das luzes nos termos cristãos de Deus e
Diabo ou Bem e Mal. Primeiro porque, se bem entendi, tanto em um quanto em outro não há a
existência de figuras únicas. Para fazer um trocadilho com as comuns perseguições policiais,
que são, diga-se de passagem, por demais cristãs, nem nas luzes ou nas trevas há líderes. São
os propósitos comuns, explicam-me as Yas, entre diferentes forças, entidades e seres que
possibilitam a unidade. O que formam esses dois mundos em guerra são as relações que
consolidam e ao que servem. É possível que um mesmo sujeito conecte-se com essas duas
forças, fazendo dos corpos um território em disputa. Por isso continuamente as Yas nos
alertam para a necessidade de vigiar nossas ações, formas-pensamentos e formas-sentimentos,
para não dar passagem a elementos e seres que trabalham para as forças das trevas.
Suas designações são anteriores, na medida em que sabem que forças das trevas e
forças das luzes agem sobre o mundo visível, mas elas só são dadas a conhecer quando se
encontram com os sujeitos que, então, as designam. São dadas a conhecer pelos efeitos que
produzem, sejam eles nefastos, sejam eles benéficos. Por isso, penso essas relações, entre
luzes e trevas respectivamente como bons encontros e maus encontros, nos termos propostos
por Espinosa – que eu recupero aqui através de Deleuze (2002, 2017). Quero dizer com isso
que é importante diferenciarmos as luzes e as trevas dos valores moralizantes e transcendentes
de Bem e de Mal para pensá-los por diferenças qualitativas dos modos de existência. O bom
encontro ocorre quando um “um corpo compõe diretamente a sua relação com o nosso, e, com
toda ou com uma parte de sua potência, aumenta a nossa”, fortalecendo nossa potência de
agir, por exemplo quando nos alimentamos. O mau encontro pauta-se, ao contrário, pela
decomposição. É quando um corpo, ao nos encontrar decompõe a relação do nosso, apesar de
compor com as nossas partes, “mas sob outras relações que aquelas que correspondem à nossa
essência”, por exemplo quando ingerimos veneno, como o agrotóxico que decompõe as
relações do nosso corpo produzindo câncer.
Bom e mau têm pois primeiro sentido, objetivo, mas relativo e parcial: o que
convém à nossa natureza e o que não convém. E, em consequência, bom e mau têm
um segundo sentido, subjetivo e modal, qualificando dois tipos, dois modos de
existência do homem: será dito bom (ou livre, ou razoável, ou forte) aquele que se
esforça, tanto quanto pode, por organizar os encontros, por se unir ao que convém à
sua natureza, por compor a sua relação com relações combináveis e, por esse meio,
aumentar sua potência. Pois a bondade tem a ver com o dinamismo, a potência e a
composição de potências. Dir-se-á mau, ou escravo, ou fraco, ou insensato, aquele
que vive ao acaso dos encontros, que se contenta em sofrer as consequências, pronto
a gemer e a acusar toda vez que o efeito sofrido se mostra contrário e se revela a sua
própria impotência. (DELEUZE, 2012, p. 28-9)

Mas fraco ou forte também não são instâncias absolutas. O fraco é aquele que,
qualquer que seja sua força, está separado de sua potência de agir. O forte, ao contrário, está
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pleno de sua potência de agir. São ambas consequências de afecções passivas, porque se
explicam por um corpo exterior, que produzem sobretudo paixões, ou afetos, alegres e/ou
tristes. As paixões alegres são aquelas que existem nos bons encontros, que aumentam a
potência de agir, e as tristes são aquelas que existem nos maus encontros, que diminuem a
potência de agir. Há, sem dúvida, um esforço da Morada para organizar, ao máximo,
encontros com paixões alegres - é disso que se trata a guerra cósmica que travam, onde
ocupar surge como uma estratégia de guerra.
Há tempos a Yaba ancestral Mãe Preta tem nos alertado para a importância de não
perdermos a esperança e o desejo de construir um outro mundo possível. Tem atentado para
tomarmos cuidado com o medo, tristeza, ódio, egoísmo, sede de poder e tudo mais que gera a
destruição, pois o que as forças das trevas querem, como diz, é que desistamos da alegria, do
amor, da solidariedade e da esperança, ou seja, que acreditemos que esses sentimentos não
nos pertencem. O que as forças das trevas querem, segundo Mãe Preta, é que acreditemos que
as trevas venceram e tomaram o mundo e os sujeitos, ou seja, que “não tem mais jeito. Mas
tudo tem jeito nessa vida, viu?”, diz enquanto pita seu cachimbo. Ocupar mentes e corações é
negar essa posse do mundo e dos sujeitos pelas forças das trevas. É, portanto, habitar o
mundo com outras formas de sentir e de pensar, produzir novos engajamentos, suscitar novos
acontecimentos – o que, para a Morada da Paz, só poderia ocorrer através da aliança
estabelecida entre humanos e não-humanos. Como disse Mãe Preta, enquanto dançávamos
“para as almas” ao redor de uma panelinha de fogo após um longo dia de Muzunguê – como
são chamados os atendimentos espirituais -, “é tempo de anjos e homens caminharem juntos”.
Nesse sentido, acredito que ocupar possa ser aproximado à ideia de “retomada” dos
Tupinambá da Serra do Padeiro, que encontramos na etnografia de Ubinger (2012). Diz-nos a
autora que através de uma percepção espiritual os Tupinambá da Serra elaboram suas
investidas atuais para a “retomada” de suas terras. Por um passado colonial regado por
mortes, dizem que a terra do qual são oriundos está “doente de sangue” e que precisa ser
curada para poder libertar aqueles Tupinambá que foram mortos e dizimados pelo poder
colonial e pelas guerras. Por morrerem antes do tempo, encontram-se presos a este mundo.
Essa “cura”, dizem os indígenas, precisa ocorrer através de uma resposta tupinambá que não é
elaborada nos mesmos termos de “derrame de sangue”, mas pela cura de um território doente.
É com vistas à cura que as “retomadas” são necessárias, retomadas da terra, da cultura e da
vida indígena de modo em geral, como um meio de libertar os Tupinambá que foram mortos.17

17Conforme diz o Cacique Babau: “(...) Os Tupinambá não trabalham pra quem é vivo, não luta pra quem tá
vivo, o qual pode ser enxergado pelos olhos e pode ser derrubado por uma simples pedra no caminho. (...) Nós
luta em nome de Tupã, o qual deixou, pra nossa proteção sobre a terra, os encantados, e o Tupinambá, ele é
simplesmente vinte por cento matéria, e o restante, espiritualidade. Nós acredita no reino dos encantados e nós
sabemos que a ligação direta para a existência do ser Tupinambá é a garantia do território, do território livre,
38

A dissertação de Ubinger traz dados valiosos sobre essa relação entre seres humanos e
não-humanos – sejam os espíritos dos antepassados, sejam os encantados. E aqui vale um
adendo: encantados, para os Tupinambá, são espíritos que não morreram, mas por alguma
benção divina transformaram-se em uma força da natureza, ou seres enviados por Tupã para
comunicação com os humanos. Sem dúvida, o mais marcante para mim entre os diferentes
momentos de territorialização dos Tupinambá no sul da Bahia ocorreu na década de 1950, e
tem como protagonista o Velho João de Nô, que, segundo os indígenas, sofria de “loucura”
pois recebia de forma descontrolada muitos encantados e visões do futuro. O pai de João de
Nô, visto a situação do filho, decidiu levá-lo a sua tia em Salvador, que era ninguém menos
que Mãe Menininha, Yalorixá do terreiro de Gantois, para que pudesse curá-lo. Ela, por sua
vez, disse que não poderia fazer isso, pois ele já tinha o poder da cura e afirmou ainda que ele
precisava voltar à Serra do Padeiro, pois tinha “uma sentença a cumprir”. Ao voltar, contam
os indígenas, ele próprio se curou com um banho de ervas e passou a curar outros.
Na época, o Caboclo Tupinambá manifestava-se em João de Nô e dizia aos indígenas
que “essa terra ia voltar a ser uma aldeia indígena”. Passou a receber inúmeras mensagens que
alertavam sobre a necessidade de “retomar o território dos indígenas, além de uma preparação
espiritual para o momento adequado a este procedimento de ‘resgate cultural e espiritual’, na
tentativa de ‘levantar a aldeia’”. O tempo foi passando e na década de 80 os índios Pataxó,
vizinhos dos Tupinambá, negociavam com a FUNAI a demarcação de suas terras, mas João
de Nô, que na época havia falecido, disse que os encantados avisaram “que ainda não era o
momento certo para entrarem no movimento indígena”, pois precisavam se fortalecer
espiritualmente e “esperar os guerreiros” que constituem a geração das lideranças Tupinambá
que atua hoje (UBINGER, 2012, p. 52).
Assim como a Morada da Paz vive e direciona suas lutas em função de uma guerra
cósmica, os Tupinambá da Serra do Padeiro também vivenciam constantes “guerras
espirituais”, como chamou Ubinger, que afetam os corpos dos humanos, principalmente pela
atuação dos mortos que vivem vagando pelo mundo e não encontraram paz, pois não têm uma
terra onde descansar. Dessa forma, “retomar” a terra implica tanto o descanso dos
antepassados, mas também o bem-estar físico e espiritual dos tupinambá humanos. Além
disso, são os encantados, principal aliança estabelecida pelos Tupinambá, que querem a terra,
como informa à Ubinger (p. 70) dona Rosa:

de tudo isso que vocês vê sobre essa terra.(…) Tupinambá vive ali há centenas de anos. Quando Cabral aqui
chegou, Tupinambá já morava na terra, terra dos encantados, altar sagrado ‒ nossa terra, e nós não arredamos
um passo até agora. (...) Nós não abrimos mão da terra, falei pra eles: morrerei na prisão, mas nós não
negociamos nosso direito pela terra, porque esse direito é de nossos antepassados, que morreram lutando e dos
nossos netos e bisnetos, que virão no futuro.” (UBINGER, 2012, p. 59)
39

É, porque não é nós que quer, é uma coisa que é os encantados que quer o território,
é deles, né, e se não fosse deles não tava tendo essa briga toda né, por essas terras,
então é pedido deles que a terra tem que ser dos índios, dos antepassados e tem que
continuar né, e é onde é pra manter a luta da terra pra manter também os encantados
né, porque eu digo assim, se a gente não lutar, daqui a uns dias aí acaba tudo né, os
brancos tomaram, como vinham tomando conta, e ninguém liga, ninguém acredita
nos encantados mesmo, e aí tudo vai passando né…

Parece-me profundamente interessante a reciprocidade alertada por Ubinger dessa


aliança. Os encantados protegem os humanos e lhes dão informação de como proceder na luta
pela terra. Mas, simultaneamente, necessitam dos indígenas humanos para “manter sua ‘força’
espiritual”. Diz-nos ela que “se os índios não acreditassem nesses entes, não seguissem seus
conselhos ou não lutassem para assegurar a Terra Indígena, os encantados também perderiam
seu poder ou ‘força’ espiritual e potencialmente desapareceriam” (idem, p. 70). Na Morada da
Paz acredito que a relação é percebida de modo diferente. As entidades, que ocupam um papel
análogo aos encantados, visto serem elas que trazem orientações à comunidade, não
deixariam de existir, mas sua ação no mundo seria menor, mais contida, acarretaria um
distanciamento entre humanos e não-humanos e dificultaria a participação deles na guerra
cósmica, abrindo a possibilidade de maior investida pelas forças das trevas.
Outra relação entre ocupar e “retomar” é o fato de a luta Tupinambá estar diretamente
relacionada a um território que foi “roubado” dos antepassados dos atuais Tupinambá. No
caso da Morada, a luta não está restrita à questão da terra, ainda que passe por ela como um
território de resistência negra. Porém, se entendemos “retomada” não apenas do território
físico, mas da composição de um modo de existência, novamente “retomada” e ocupação se
aproximam. E aproximam-se também do conceito de “reclaim”, como sugeriu Goldman
(2015) em relação à “retomada”18, que foi traduzido por “reativar”19.
“Reclaim” é oriundo das bruxas neopagãs norte-americanas, especialmente do
Reclaiming Tradition Witchcraft, uma organização fundada no início dos anos 80, identificada
como ecofeminista, tendo uma de suas principais fundadoras e participantes a ativista, bruxa e
anarquista Starhawk. O termo surgiu a partir da luta antinuclear e propõe, basicamente,

18Segundo o autor, “devem ser entendidas literalmente no sentido proposto por Stengers para a noção de
reclaim: não simplesmente lamentar o que se perdeu na nostalgia de um retorno a um tempo passado, mas sim
recuperar e conquistar ao mesmo tempo” (GOLDMAN, 2015, p. 656)
19Segundo Jamile Pinheiro Dias, tradutora do texto “Reativar o Animismo”, de Isabelle Stengers: “Stengers
explicita que “‘reclaiming’ é uma aventura tanto empírica quanto pragmática, pois não significa
primordialmente retomar o que foi confiscado, mas aprender o que é necessário para habitar novamente o que
foi destruído. ‘Reclaiming’, na verdade, está irredutivelmente associado a ‘curar’, ‘reapropriar’,
‘aprender/ensinar de novo’, ‘lutar’, ‘tornar-se capaz de restaurar a vida onde ela se encontra envenenada’”.
Decidimos pela tradução do verbo “to reclaim” como “reativar” a fim de abarcar o potencial terapêutico e
político da ideia aqui proposta. Entretanto, nenhuma opção bastará em si como satisfatória. Fica o leitor
advertido, primeiramente, de que a história do termo passa pela ligação entre magia e espiritualidade e
transformação social e política; e, em segundo lugar, de que o “reativar” em jogo diz respeito não a um gesto
nostálgico de repetição do passado, mas a ações e práticas situadas, norteadas pelo empirismo e pelo
pragmatismo” (Id., 2017, p. 8).
40

estreitar as relações entre política e espiritualidade, conectando o que chamam de religião da


Deusa20 com uma série de atos e organizações de desobediência civil não-violentas 21, assim
como práticas comunitárias de permacultura.
Starhawk e suas companheiras “reativam” uma forma de relação com o mundo através
do que ela chama também de Antiga Religião ou Feitiçaria, um modo de lidar com forças da
natureza que foi brutalmente dizimado no processo inquisitorial mais perverso vivido na
Europa: a caça às bruxas. A caça às bruxas, como nos lembra Federici (2017), marca também
o início dos cercamentos dos campos comuns e da instauração da propriedade privada, com a
expropriação das terras e consequente expulsão dos camponeses de seus lares. Não apenas
praticantes da Arte, como Starhawk chama, mas sobretudo mulheres de modo geral,
principalmente as mais pobres, que provocavam a ira, a inveja ou a cobiça nos poderosos da
época, assim como homossexuais ou livre pensadores, eram queimadas em praça pública
nesse mesmo evento de caça às bruxas. O conhecimento das práticas de feitiçaria foi cada vez
mais destruído, assim como os encontros entre bruxas e bruxos eram proibidos. A transmissão
de conhecimento ficou reduzida a algumas famílias, tanto no velho continente quanto com os
imigrantes que chegavam às Américas.
Esse processo de perseguição e devastação das práticas de bruxaria faz a autora
aproximar a repressão experimentada pelas bruxas europeias e norte-americanas daquela
época com a repressão ainda hoje vigente aos cultos de matriz africana (STARHAWK, 1993,
p. 22). Assim como os cercamentos e a expulsão dos camponeses com o advento da
propriedade privada podem ser aproximados aos frequentes “roubos” de terras indígenas,
como colocaram os Tupinambá – que, como observou Stengers (2015b), não implica apenas
em expropriar bens, mas também conexões 22. “Reativar”, nas ideias neopagãs, implica em
20Como a autora coloca: “O simbolismo da Deusa não é uma estrutura paralela ao simbolismo de Deus-Pai. A
Deusa não governa o mundo; ela é o mundo. Presente em cada um de nós, cada indivíduo pode conhecê-la
interiormente, em toda a sua magnífica diversidade. Ela não legitima o governo de um sexo pelo outro e não
cede autoridade a governantes de hierarquias temporais. Em Feitiçaria, cada um de nós deve revelar a sua
própria verdade. A divindade é vista em suas formas próprias, sejam elas masculinas ou femininas, pois a
deusa possui o seu aspecto masculino. A sexualidade é um sacramento. A religião é uma questão de reunião,
com o divino dentro de nós e as suas manifestações externas em todo o universo humano e natural”
(STARHAWK, 1993, p. 26).
21A título de exemplo, sugiro a leitura do capítulo Seattle, no livro Webs of Power (Id., 2002), onde a autora nos
possibilita acompanhar todo o processo dos grupos de comunicação não-violenta organizados em atos de
desobediência civil, em 1999, contra a OMC e suas decisões autoritárias que afetam questões trabalhistas,
direitos humanos e ambientais. A autora narra tanto o processo organizativo, quanto sua execução e
consequências. Narra seu período na prisão e como a espiritualidade atravessa todos esses momentos.
22 Em entrevista, Isabelle Stengers (2015b) nos diz: “No fim de A feitiçaria capitalista nós evocamos as
feiticeiras neopagãs nos Estados Unidos. É um movimento político próximo aos anarquistas que faz lembrar
que a Europa se tornou moderna erradicando a cultura camponesa anunciando assim o que faria sofrer aos
povos e civilizações colonizados. Essa destruição em nome do progresso começou a ser feita dentro das
próprias fronteiras. As feiticeiras neopagãs procuram não esquecer que o capitalismo não apenas explora mas
expropria: ele captura práticas e inteligências coletivas e as redefine a seu modo pela destruição e a
apropriação. (…) A inteligência coletiva é sempre uma inteligência ‘conectada’, ou seja, se define em relação a
uma situação e às conexões múltiplas que ela cria, sociais ou territoriais por exemplo. O capitalismo funciona
destruindo toda conexão, inclusive aquela do passado, e considera como suspeita e perigosa toda inteligência
41

reapropriar-se de todas essas práticas de magia e bruxaria que tentaram destruir e que, por um
trabalho quase bem-feito do capitalismo e da igreja, foram praticamente eliminados da
modernidade. É, portanto, recuperar um modo de vida que foi devastado, não para resgatar o
passado por inteiro - viver o passado novamente -, pois “reativar” implica sobretudo uma
possibilidade de experimentação e criação no presente, como diz Isabelle Stengers (cujo
trabalho dentro da filosofia da ciência foi criado muito em diálogo com as práticas e reflexões
de Starhawk).

Reativar”, “retomar”, ocupar parecem-me estratégias que envolvem o que Pignarre e
Stengers (2011, p. 130) chamaram de “técnicas de empoderamento” 23. Técnicas de
empoderamento, nos dizem os autores, são modos de desenfeitiçar e de se proteger dos
feitiços produzidos pelo capitalismo, e eu diria também pelo colonialismo, que nos impedem
de pensar e de criar. Essas técnicas, dizem, não se apresentam a partir de uma teoria que as
legitima e que demanda adesão. Ao contrário, são experimentadas e só se validam na medida
em que são eficazes, que tornam possível aquilo que não podem explicar. É por isso que
retomam a noção de receita, que foi utilizado de forma pejorativa para designar técnicas não-
científicas, pois as receitas, e esse é o motivo das recriminações em torno dela, não podem
explicar porque funcionam através de termos que transcendem sua própria execução, ou seja,
não são generalizáveis para outras situações.

Não se engane: quem diz receita não está dizendo uma técnica fraca e de segunda
ordem. Se as receitas do empoderamento não se referem a uma teoria que as
justifica, é porque a questão da justificação é uma questão pobre em relação ao que o
seu sucesso designa, o evento de um devir. Tais receitas não explicam, e não visam
assegurar a reprodução do que é uma questão de sucesso, à maneira de um protocolo
experimental, e mais ainda, que visam definir este sucesso por condições que o
tornariam reprodutível. Um evento não é reproduzível, mas é possível explorar as
possibilidades de realizar sua repetição, que é arriscada e diferente a cada vez.
(STENGERS; PIGNARRE, 2011, p. 133, tradução minha)

Trago esse ponto porque não pretendo supor que “reativar”, “retomar” e ocupar sejam
a mesma coisa, nem abarcá-los em uma teoria generalizante. São, sobretudo, diferentes
receitas, com suas respectivas técnicas, para lidar com a devastação do mundo orquestrada
pelo capitalismo e colonialismo que segue seu curso. São, portanto, receitas de resistência,
como nos diz Sztutman (2018), em que resistência implica em não aceitar o dado das coisas,
mas em pensar, tomar os problemas para si, e criar outras possibilidades de existência. Mas há
coletiva que reivindica suas conexões”.
23Stengers faz uma reavaliação sobre este termo - “empowerment” -, e seus muitos usos em outro contexto (ver
2014, p. 29). Também Sztutman (2018, p. 348), quando nos diz: “Para falar do desenfeitiçamento, Pignarre e
Stengers tomam emprestado outro termo do vocabulário ativista (do feminismo, do movimento negro):
empowerment. ‘Empoderamento’ não me parece contudo a melhor tradução, poderíamos talvez pensar em
‘autodeterminação’. De todo modo, quando Stengers e Pignarre se referem a técnicas de empowerment, estão
pensando na habilidade de imaginar, de mover-se sem medo, de criar novas lutas, tendo em vista sempre
devires minoritários.”
42

um aspecto transversal a esses três termos e aos modos como são utilizados, que é, sobretudo,
pensar com outros (humanos e não-humanos) para resistir. Uma prática denominada por
Stengers (2014) de cosmopolítica.
O conceito de cosmopolítica é proposto pela filósofa da ciência em um exercício de
pensar a relação entre Ciência e Política. O termo não trata simplesmente de uma relação
entre cosmologia e política e nem supõe que o cosmos seja um “mundo comum” partilhado
em uma paz perpétua. Isso porque, como diz a autora, esse mundo em que nos detemos a
conhecer os ‘fatos’, através das ferramentas técnicas da Ciência moderna, são os ‘nossos’
saberes, mas também estão investidos dos ‘nossos’ valores. E não basta o ‘respeito pelos
outros’ ou ‘igualdade de direitos’ para excluir essa diferença. Nesse sentido, cosmopolítica
não pretende definir o que é o ‘Bem’ para um mundo comum. Cosmos também não deseja
englobar a tudo e todos, inclusive aqueles que não querem ser englobados.

O cosmos, tal como figura no termo cosmopolítica, designa o desconhecido destes


mundos múltiplos, divergentes; as articulações que poderiam chegar a ser capazes,
contra a tentação de uma paz que se quer final, ecumênica, no sentido em que uma
transcendência teria o poder de exigir ao que diverge que se reconheça como uma
expressão meramente particular do que constrói a convergência de todos.
(STANGERS, 2014, p. 22)

O cosmos surge como um “operador de igualdade”, quando entendemos operar como


“criar uma inquietude das vozes políticas”, “uma sensação de que a arena política está
povoada por sombras do que não tem, não pode ter ou não quer ter voz política” e que,
portanto, não cumpriria nenhuma das exigências da política – expressar os objetivos ou as
propostas para a construção de um mundo comum. Cosmopolítica, dessa forma, não tem a ver
com um programa consolidado, mas com um “espanto”, ou talvez com aquele súbito ímpeto
da ocupação dos movimentos sociais, que não espera um acordo ‘pacífico’ com o Estado ou
um “mundo comum” com os interesses do latifúndio, das empreiteiras ou do capital. Que
obriga uma tomada de posição em dois sentidos: obriga a pensar sobre o que está
acontecendo, tanto àqueles que ocupam, quanto àqueles que são meros espectadores da ação -
o espanto que nos acomete desde as jornadas de junho de 2013 e que, sem dúvida, foi
prolongado pelos secundaristas em 2015 e 2016: afinal, “que estamos fazendo?”; e obriga ao
cuidado e ao cultivo de outras relações possíveis, como o adepto das religiões de matriz
africana que se obriga ao cuidado com o Orixá, não por uma Lei externa, mas como um modo
de cuidar de si cuidando de Outro.
Dar uma dimensão cosmopolítica aos problemas políticos não diz respeito às respostas
que obteremos, mas às perguntas que são postas, onde o pensamento coletivo é construído
‘em presença’ daqueles que fazem existir sua insistência. Cosmopolítica, segundo a autora, é
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nomear o modo como o cosmos inventa a maneira na qual a política, que é criação do mundo
moderno ocidental, pode fazer existir as repercussões do que se vai dizer, do que constrói suas
razões legítimas e do que se mantém surdo a essas legitimidades. É dessa forma, tomada pela
proposta cosmopolítica de Stengers, que penso o ocupar. Ocupar como uma invenção
cosmopolítica, na medida em que as integrantes da Morada da Paz se colocam na obrigação
de pensar e agir com outros. Dessa forma, ocupar não é “bom para pensar”, como se o
exercício do pensamento estivesse relegado à antropóloga em uma clara hierarquização dos
saberes. Ocupar é um pensamento em si, e me aventuraria a dizer que as mais velhas e as
entidades aceitaram a produção desta tese pois viram que o pensamento antropológico talvez
fosse ‘bom para ocupar’.
O que me cabe fazer nas próximas páginas é sobretudo descrever como a Morada da
Paz ocupa. Não com o intuito, é evidente, de esgotar a sua criatividade ou dar conta de uma
totalidade inexistente, seja do que ‘é’ a comunidade, seja do que são as pessoas que dela
participam, seja dos problemas (e soluções) que a Morada cria para pensar e agir. O que
apresento é sempre parcial e fruto daquilo que chamei composição contracolonizadora, mas
que nos traz, enquanto antropólogas e antropólogos, algumas possibilidades de imaginação.

1.3 Os capítulos

A tese é composta por quatro capítulos. Cada capítulo eu nomeei através dos termos
que a Morada utiliza para fazer a si mesma. Minha intenção foi pensar que assim como a
Morada da Paz ocupa corpos, territórios, diálogos, mentes e corações, ela também ocupa
ideias, na medida em que também é ocupada por elas, dotando-as não apenas de um novo
sentido, mas de um novo pragmatismo.
O primeiro, que denominei Ocupar a Borda, pode ser lido de muitas formas. Primeiro,
e principalmente, como a Morada da Paz toma o conceito de borda da permacultura, fazendo
dele outra coisa. Estende suas noções para outras finalidades, para outras composições que
respondem ao desejo de não participar de uma percepção política que opera pelo binarismo
centro e periferia. Ao contrário, institui a borda como um espaço a ser habitado e que, para
tal, precisa ser criado. Essa criação, que denominei ‘pragmática da borda’, envolve quatro
ações principais – reencontrar, reconhecer, recuperar e sonhar –, que são também
experimentações de uma resposta à “intrusão de Gaia”. Utilizando-me desses termos, e do
modo como são postos em funcionamento na comunidade, apresento como a Morada da Paz
começou, quem são suas principais protagonistas, como participam de um território físico e
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quais são as bases que sustentam a existência e permanência da comunidade. Trata-se de um


capítulo que apresenta aos leitores uma compreensão básica da história da comunidade.
O segundo capítulo eu denominei Ocupar o feminino. A comunidade retoma uma
designação tão cara aos debates sobre gênero, o feminino. Quando ouvimos o termo, logo
associamos às características de gênero ou de sexo. É um termo amplamente divulgado e que
muito nos acomete desde o início de nossa socialização no mundo. Aqui, ocupar ganha outros
contornos, porque nos obriga a duvidar daquilo que sabemos que é feminino para
experimentar um outro uso possível. O feminino, na Morada da Paz, surge como força. Não
como identidade apenas, tampouco como consequência de um sistema de gênero opressor,
somente. O feminino existe em relação com o masculino e suas relações são múltiplas, cujas
atribuições variam de acordo com os contextos. Na comunidade, é acionada como uma força
criativa capaz de agir no mundo. É sobretudo dessa forma que a Morada da Paz constrói sua
existência enquanto uma curandeira, não apenas entre os humanos, mas em uma perspectiva
ecológica de “interconexão com toda a vida”.
O terceiro capítulo eu nomeei Ocupar o kilombo. Aqui temos que perceber que ocupar
também opera de outra forma. Ocupar o kilombo é sim ocupar um território quilombola – tal
como reconhecido pelo Estado -, e também adotar uma identidade singular de kilombola (com
k), afirmando-se não remanescentes, mas sobreviventes de um passado escravagista. Mas é,
sobretudo, criar linhas de fuga aos modelos instituídos, que operam inclusive na língua.
Linhas de fuga que são como o “a mais”, dito pelo interlocutor de Opipari quando respondeu
a ela sobre aquilo que existe para além da mente e do corpo, na percepção do que é a pessoa
no candomblé. Há um “a mais” à identidade kilombola, que gera uma série de leituras em
negativo daquilo que não se quer ser, para conseguir fazer de outro modo. Trata-se de um
constante traçar o diferencial. Ocupar o kilombo está atrelado a esses movimentos, e o
conceito que me auxilia nessa descrição é o de “máquina de guerra”. Esse capítulo me parece
ser sobre aquilo que se nega, e os motivos que levam à negação, não para julgar, mas para
afirmar a si mesmo. Para além disso, obriga-nos a pensar as questões e os desafios que
surgem desse processo. Por isso apresento as relações de vizinhança e de distanciamento que
as integrantes da Morada estabelecem com outros movimentos e coletivos – sejam eles
permaculturais, negros, feministas, classistas ou outros –, um modo particular de realizarem
alianças e as experimentações atuais que possibilitaram a criação de duas ideias fundamentais
para a Morada, a Pedagogia do Encantamento e a Ekonomia do Afeto.
Por fim, denominei o último capítulo, que é também a conclusão, de Ocupar a pele de
papel, onde desenvolvo como a Morada da Paz ocupou o texto etnográfico. Essa finalização
refere-se sobretudo ao que posso contribuir para o pensamento antropológico através da
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relação que estabeleço com a Morada, permitindo que o texto seja por ela ocupado de muitas
formas. Não apenas num esforço da antropóloga na busca de uma simetrização de saberes –
como requer toda antropologia que me parece interessante –, mas com a participação
constante e ativa das mais velhas da comunidade na composição do texto. Que esta tese possa
fortalecer as potências revolucionárias da Morada da Paz, da mesma forma que a Morada da
Paz fortalece as potências contracoloniais da Antropologia. Esse é o esforço aqui,
independente se bem feito ou não - e as responsabilidades sobre isso, evidente, cabem
exclusivamente a mim.
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2. Ocupar a Borda
Não é na periferia que se formam novos nômades.
(Deleuze)

Figura 1: Casa Bio

Acredito que foi em um dos encontros da Gira de Amotara, trabalho realizado com
mulheres, que aconteceu essa fala. Estávamos sentadas em um ipadê, termo em iorubá para
designar as rodas de conversa, na Casa Bio, rodeadas por paredes construídas com fardos de
palha e barro. Em um determinado momento, Ys. nos dizia que, do modo como ela entendia o
mundo, não existia centro e periferia. Ela não concebia a Morada como periferia, pois não
adotava algum Outro como centro - seja esse outro o homem, o capitalismo, o colonizador, o
branco, a cidade, ou o que for. Também não tinha como propósito fazer da Morada o centro,
pois “sabemos o nosso tamanho. Sabemos que não somos maior e nem menor que ninguém.
Somos um jeito de ser e de viver”. Ela preferia outro termo, oriundo da permacultura, para
designar a Morada da Paz e suas práticas: a borda. Mas não apenas caracterizou a Morada
dessa forma, como incitou as ouvintes a também produzirem bordas em seus cotidianos: “É
preciso habitar a borda, criar a borda!”, dizia-nos enfaticamente.
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Naquele momento, não sabia ao certo o que significava borda, mas entendi como Ys.
colocou o conceito em funcionamento. Mais adiante, com o passar do tempo compartilhando
a vida na comunidade, percebi que a própria Casa Bio, oriunda de um processo de
bioconstrução, era recheada de bordas. Lembro-me de um lagarto que inúmeras vezes vi
cruzar a casa por dentro, cuja passagem para seus trânsitos nada mais era do que uma borda: o
encontro entre o piso de madeira e a parede de barro. Reparei também nas inúmeras
rachaduras das paredes de barro da Casa Bio por onde os insetos bordavam seus trânsitos. As
bordas eram feitas desses movimentos de ir e vir. Estávamos em uma casa viva.
Movida pela utilização desse conceito, fui buscar em textos sobre Ecologia e
Permacultura como ele é elaborado para tentar compreendê-lo melhor. O conceito de “efeitos
de borda” aparece de diversas formas em estudos de Ecologia. Seja no sentido aproximativo
ao conceito de “ecótono”, seja no sentido distinto deste segundo termo. Ecótono, borda e
fronteira são conceitos que tratam de zonas de transições entre dois ecossistemas, mas são
concebidos de diferentes formas, na análise de Milan e Moro (2016):

Bordas, ecótonos e fronteiras não são, portanto, sinônimos, e sim aspectos diversos
da representação da realidade. Ecótono é um conceito funcional ecológico e borda
um conceito espacial geográfico. Um ecótono pode ser estudado unicamente por
suas qualidades intrínsecas, enquanto bordas e fronteiras só tem sentido se estudadas
em função de suas qualidades extrínsecas. Ou seja, pela variação entre elementos
adjacentes, pelos fluxos existentes, ou não, de energia ou matéria, pelo efeito do
afastamento espacial gradual a partir de um limite.

As autoras demonstram que, apesar de pautarem-se nessas distinções, alguns


pensadores aproximaram o conceito de “efeito de borda” ao conceito de “ecótono” e, ao longo
dos anos, seus juízos sobre esses “efeitos de borda” variaram. Alguns biólogos afirmavam que
os ecótonos foram percebidos como um espaço de transição de um ecossistema a outro que
produzia um aumento positivo da biodiversidade local. Outros alertavam para os perigos
desse efeito, quando as áreas de transições afetavam diretamente as áreas em relação, seja
com a diminuição de espécies ou alteração na flora. Ou seja, não seria apenas uma área de
transição, mas também de tensionamento entre os dois ecossistemas em relação. Na
perspectiva das autoras, pode ser que a borda (enquanto um recorte espacial) coincida com a
região denominada “ecótono”, que implica uma série de processos de mudanças bióticas e
abióticas nas zonas mais fronteiriças de um ecossistema, produzindo uma condição do habitat
diferente daquela do interior, cuja principal característica é a instabilidade:

Significa que é uma área de tensão muito instável sem padrões próprios de
variabilidade e cuja estrutura (proporção de espécies, fisionomia, etc.) depende
inteiramente das tensões que se impõem a dois ecossistemas adjacentes e da relação
destes com os demais que o cercam. (MILAN; MORO, 2016, p.78)
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Há também pesquisas citadas pelas autoras que designam como ecótonos aquelas
bordas naturais, produzidas sem a intervenção humana, diferente das chamadas bordas
antrópicas, produzidas pela ação humana. Essas são caracterizadas da seguinte forma:

Em bordas naturais, as comunidades adjacentes possuem seu conjunto característico


de espécies acrescido daquelas pertencentes à outra comunidade, existindo, portanto,
uma sobreposição de espécies que buscam condições e recursos em uma situação de
equilíbrio (GATES; GYSEL, 1978). Por outro lado, bordas antrópicas estabelecem
influências negativas adjacentes, que afetam a densidade e a composição das
comunidades animais e vegetais que podem levar a alterações na riqueza,
diversidade, abundância, mortalidade, dinâmica sucessional, densidade
populacional, entre outros tipos de desequilíbrios (MILAN; MORO, 2016, p. 84)

Nos escritos sobre permacultura o conceito de borda assume um sentido mais prático,
visto que a permacultura não se propõe apenas a analisar processos, mas pensar e produzir
uma integração de agricultores com a biodiversidade local. Ali a borda também é concebida
como um espaço de transição entre dois ecossistemas. Peguemos o exemplo de um contraste
entre água e terra. A borda seria todo o intervalo que existe entre a água de um rio e a terra:
seria, portanto, aquela região úmida, composta de barro, onde se originam uma fauna e uma
flora particular, com elementos oriundos desses dois ecossistemas em relação e cujas
composições não são facilmente estruturadas – nem aquela oriunda da água, nem aquela
própria de ambientes de terra seca. Mas o encontro entre esses dois ambientes permite a
criação de um ambiente transitório, porém fundamental. Afinal, é ele que, de alguma forma,
permite que os dois ecossistemas coexistam e, ao mesmo tempo, se transformem. A borda nos
alerta para o caráter dinâmico dos ecossistemas e suas constantes variações, não sem riscos.
Pois há sempre o risco do alargamento da borda, que pode prejudicar a existência de um
desses ecossistemas. De todo modo, com a borda, nem tudo se torna terra, nem tudo se torna
água. Nem por isso a terra não será afetada pela existência da água e vice-versa.
A partir desses exemplos, o permacultor Mollison (1994, p. 27) nos alerta para a
importância de levar em consideração as bordas no desenho permacultural:

Os assentamentos exitosos e permanentes tem tido sempre os recursos de, pelo


menos, dois ambientes. (…) Podemos localizar nossas casas e assentamentos de
maneira que obtenhamos vantagem dos recursos de dois ou mais ecossistemas ou
podemos incrementar a complexidade de nossas propriedades pelo desenho e criação
de nossos próprios ecossistemas variados. Se não estamos localizados perto de uma
fonte de água, podemos fazer barragens e açudes, se vivemos em um terreno plano
podemos utilizar maquinarias para criar montes ao redor, se não possuímos um
bosque, podemos fazer nosso próprio bosque, ainda que seja em uma pequena
extensão. Até dentro de uma propriedade maior, podemos pensar em termos de
“bordas” para localizar elementos menores. Por exemplo, uma barragem pode ter
uma única forma e profundidade ou podemos construí-la com profundidades e
formas variadas.
49

Ocupar a borda é uma prática já conhecida por qualquer permacultor, seja na avaliação
do território a ser habitado, seja na produção de bordas para seu desenho permacultural. Da
mesma forma, acredito que a utilização que Ys. faz do conceito está próximo às utilizações da
Permacultura porque implica uma ação no mundo, a necessidade de criar bordas. Contudo,
Ys. torce esse conceito na medida em que o utiliza para outra finalidade, para pensar e
produzir a Morada da Paz e suas ações criativas, que rejeitam o centro, assim como rejeitam
ser postas ou colocarem-se na periferia de algum suposto centro. Dessa forma, retoma a borda
como espaço de produção da vida, como lembrou Mj., antiga iaô da comunidade, com uma
frase de impacto que Ys. lhe disse: “quero animá-la a viver na borda cortante do tempo.
Nasça para a vida a cada minuto!”.
Há aqui o primado das relações e das potencialidades que implicam, em detrimento
das estruturas ou dos poderes constituídos. Sigo Ys. e tomo a Morada como uma borda. É a
borda um território existencial24 a ser criado. Um espaço “entre” que não deseja impor-se
como centro, como uma estrutura estabelecida ou uma verdade absoluta, nem mesmo como
periferia de algum suposto centro, como ela caracterizou. O “entre” emerge como um lugar
habitável, mas também um lugar a ser produzido. Ocupar a borda, esse “entre”, é, parece-me,
conceber o caráter processual da Morada e entender que nada está fixado em normativas pré-
estabelecidas25.
É preciso lembrar: são mulheres negras saídas de Porto Alegre para fazer morada na
zona rural de Triunfo, saídas de uma percepção de espiritualidade vivida momentaneamente –
em terreiros e em casas espíritas –, para buscar uma vivência cotidiana e integral; saídas de
um modo de vida que consideravam adoecedor ou, como me disseram, insuportável
(incluindo os hábitos alimentares pautados em industrializados, agrotóxicos, transgênicos, e o

24A noção de território existencial, oriunda de Deleuze e Guattari, implica em agenciamentos que envolvem
elementos materiais e imateriais que constituem modos de existência. Território implica uma articulação entre
os sentidos etológico, subjetivo, sociológico e geográfico do conceito, um agenciamento de seres, fluxos e
matérias. Em um sentido amplo, Guattari e Rolnik (2007, p. 388) nos dizem: “Os seres existentes se organizam
segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território
pode ser relativo, tanto a um espaço vivido quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente
‘em casa’”.
25A borda também aparece intensamente ao longo da obra de Deleuze e Guattari, principalmente no platô
chamado devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível: “Nem indivíduo, nem espécie, o que é o anômalo?
É um fenômeno, mas um fenômeno de borda. Eis nossa hipótese: uma multiplicidade se define, não pelos
elementos que a compõem em extensão, nem pelas características que a compõem em compreensão, mas pelas
linhas e dimensões que ela comporta em ‘intensão’. Se você muda de dimensões, se você acrescenta ou corta
algumas, você muda de multiplicidade. Donde a existência de uma borda de acordo com cada multiplicidade,
que não é absolutamente um centro, mas é a linha que envolve ou é a extrema dimensão em função da qual
pode-se contar as outras, todas aquelas que constituem a matilha em tal momento; para além dela, a
multiplicidade mudaria de natureza”. Ou ainda: “Ora ainda a borda é definida, ou duplicada por um ser de uma
outra natureza, que não pertence mais à matilha, ou jamais pertenceu, e que representa uma potência de outra
ordem, agindo eventualmente tanto como ameaça quanto como treinador, outsider..., etc.” (DELEUZE;
GUATTARI, 1997a, p. 20)
50

consumo de modo mais amplo), para produzir um outro modo de vida, pautando-se na ideia
de que outro mundo é possível. Engajam-se num processo de fazer a borda, onde nada é
garantido de antemão.
Essa feitura é composta por diferentes agenciamentos que, na Morada da Paz, são
nominados de quatro diferentes formas: reencontrar, reconhecer, recuperar, sonhar. Em um
agenciamento não há aquele que afeta e aquele que é afetado. A relação é sempre dupla ou,
como nos diz Deleuze, de uma dupla-captura. Todo agenciamento é coletivo, pondo em jogo
“em nós e fora de nós, populações, multiplicidades, territórios, devires, afetos,
acontecimentos”, visto que todo agenciamento é fruto de outros agenciamentos e, portanto,
“nós só podemos agenciar entre os agenciamentos” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 43, 44).
Há outro aspecto que acredito seja importante lembrar sobre o modo como esses conceitos
aparecem no trabalho de Deleuze e de Guattari. Trata-se, sobretudo, da heterogênese
constituinte de um agenciamento. Guattari nos diz que um agenciamento é uma “noção mais
ampla do que aquela de estrutura, sistema, forma, processo etc. Um agenciamento comporta
componentes heterogêneos, tanto quanto de ordem biológica, social, maquínica, gnoseológica,
imaginária.” (Glossário esquizoanálise, 1986, p. 287 apud SILVA, 2004, p.23).
Reencontrar, reconhecer, recuperar, sonhar são agenciamentos que constituem o que
chamo de uma ‘pragmática da borda’. Durante o tempo dedicado ao trabalho de campo eles
me chamavam a atenção e, sempre que possível, retomava-os em notas. Mas havia, da minha
parte, uma insuficiência em distingui-los em seus sentidos, ainda que eu me utilizasse desses
mesmos verbos para pensar e produzir narrativas junto aos meus amigos e irmãos. Foi,
contudo, mergulhando nas narrativas sobre o surgimento da comunidade para a composição
textual, que percebi algo que estava muito evidente, mas que eu demorei para compreender.
Primeiro, são verbos que designam ações. Portanto, só ganham sentido quando postos em
funcionamento. Talvez, se eu questionasse alguém da comunidade, houvesse algumas
reticências e demoras para elaborar uma resposta para a questão “afinal, o que é um
reencontro ou um reconhecimento? Como diferenciá-los?”. Mas, sem dúvida, muito
rapidamente me assinalariam quando se reencontra algo ou alguém ou quando se reconhece
algo. Segundo, parecem derivações de uma mesma ideia, pois tratam, sobretudo, de
agenciamentos constituintes da borda em que a Morada da Paz produz a si mesma. Contudo,
ao longo da escrita fui percebendo algumas de suas sutis diferenças.
O exercício que realizo neste capítulo é desenvolver esses quatro verbos como me
foram apresentados, funcionando nas narrativas de construção e surgimento da Comunidade
Morada da Paz enquanto borda. As informações que apresento foram escutadas durante os
ipadês, onde as Yas narraram suas histórias para visitantes e integrantes da Irmandade, ou em
51

conversas paralelas. Não pretendo, com isso, esmiuçar uma biografia coletiva e muito menos
dos indivíduos que compõem a comunidade. Isso, sem dúvida, as mais velhas são muito mais
competentes que eu para fazer. Mas descrever como reencontrar, reconhecer, recuperar e
sonhar funcionam como ferramentas narrativas.

2.1 Reencontrar

Figura 2: Fogueira - Terreiro de Chão Batido 2018

A noção de reencontrar tem muitas formas de conceitualização. Uma delas, que me


foi ensinada em um dos cursos de Desformação26 desenvolvido pela comunidade, diz respeito
aos registros akáshicos, como já disse, uma espécie de consciência cósmica que resguarda em
si todas as possibilidades temporais do que foi ou poderia ter sido, do que é ou pode ser e do
que será ou poderá ser. O encontro entre duas pessoas, portanto, está contido nesses registros
akáshicos que todos os seres, através do exercício mediúnico, podem ter acesso. A
materialização desse encontro, portanto, é um reencontro, o que faz de todo encontro físico
um reencontro cósmico. Mas é dito reencontro também, e com maior frequência, para
designar os encontros que produzem efeitos, ou seja, que produzem uma espécie de

26A Desformação é um espaço de estudo prático sobre a mediunidade, desenvolvida no território.


52

excedente, uma potência que transforma mutuamente os seres em relação e abre


possibilidades de novas criações.
Nesse sentido, nem todo encontro físico é um reencontro, pois o reencontro deixa
marcas no mundo e potencializa conjuntamente as partes reencontradas. E é assim
reconhecido porque esse excedente é produto de uma história muito mais abrangente – seja
uma reencarnação passada que uniu as duas partes da relação, seja por um propósito
necessário a este tempo que possibilitou o contato entre essas mesmas partes. Os motivos são
variados e são sempre compreendidos a posteriori, ou seja, depois que o encontro se efetiva
enquanto reencontro. A frase que mais escutamos é “nos reencontramos”. Dessa forma, é
preciso acontecer o encontro para saber se este é um reencontro. A Morada da Paz, e antes
dela o grupo Cosmos, só foi possível por conta de uma série de reencontros que pretendo aqui
descrever.

***
Em 1998, Ed., ex-marido de Ys., fez uma viagem para o interior de São Paulo a
trabalho. Ele havia sido contratado para cuidar da iluminação em um evento, realizado por
diversos grupos que trabalhavam com o Mestre Ramatís 27, além de pesquisadores e cientistas
da Nasa. O objetivo do encontro era pôr em diálogo a espiritualidade e a ciência para um fim
em comum: fazer um “chamado pela Paz”. Esse “chamado pela Paz” alertava sobre a
crescente onda de devastação e guerra que se espalhavam pelo planeta Terra e a necessidade
das pessoas mobilizarem-se, fazendo com que pelo menos 3% a 5% da humanidade “vibrasse
em paz”. A constatação dos grupos que lá se reuniram era de que caso isso fosse alcançado, o
planeta Terra passaria da terceira para a quarta dimensão, com menos devastações e guerras.
Isso porque compartilhavam uma percepção trazida pelas entidades de que as sombras, o ódio
e a raiva estavam cobrindo quase 50% da humanidade, e foi dada a incumbência aos humanos
de produzir uma frente de ação sobre isso que seria, então, articularem-se para que a
humanidade vibrasse em paz pelo menos nesse acréscimo de 3% a 5%.
Assim que Ed. retornou a Porto Alegre, trouxe uma série de materiais do evento e, em
diálogo com Ys., concluíram que desejavam responder a esse chamado. Surge, assim, o Grupo
Cosmos em Porto Alegre, que tinha como princípio o estudo prático da mediunidade e da
paranormalidade com o objetivo de engajar-se na luta pela paz. Depois desse chamado houve
outro em 2008 e outro em 2012. Fato é que, segundo El., a humanidade não conseguiu vibrar
em paz de 3% a 5% naquele primeiro chamado – e não me foi dito se nos outros o objetivo foi

27Mestre Ramatís é uma conhecida entidade da Grande Fraternidade Branca e Universal. Há grupos que
trabalham especificamente com ele. Agregam grupos umbandistas, espiritualistas e, também, alguns centros
espíritas.
53

alcançado. Porém, analisando o momento de criação do grupo Cosmos, as mais velhas


constataram que a partir de 1998, ou próximo dessa data, muitos grupos começaram a surgir
com propósitos semelhantes, ainda que com formas diferentes. O Grupo Cosmos, em uma
ampla perspectiva, foi mais um desses grupos criados e articulados. Contudo, é importante
compreendermos que a possibilidade de criação e sustentação do grupo Cosmos só se deu por
uma série de reencontros anteriores e concomitantes a sua consolidação, que se entrecruzam e
se afetam. Reencontros entre pessoas, entidades, espaços, práticas e ideias.
A primeira formação do Grupo Cosmos, pelo que lembro, contou com a participação
de Ys., Ed. e outras duas pessoas. Aos poucos, os integrantes foram convidando mais
interessados para somarem-se. Ys., recém-formada em Serviço Social, convidou El., sua então
colega e amiga. Eduardo, que trabalhava no Hospital de Clínicas, convidou Ol., que
trabalhava no mesmo local, para participar do Cosmos. Ol., por sua vez, convidou suas filhas,
genros e sobrinhas – o que inclui Yb., Al, Bg., Ym. e Ik. Bg., na época namorado de Yb.,
estendeu o convite para sua mãe, Ly.. Evidente que outras tantas pessoas passaram pelo grupo
Cosmos, mas me referirei aqui especialmente àquelas que permaneceram na sua derivação, a
Comunidade Morada da Paz. Mais adiante, enquanto os encontros do grupo aconteciam na
Rua Dona Sofia, no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, algumas pessoas da região
frequentavam a pequena casa para receber passes e orientações. Foi assim que Ak. conheceu o
grupo e iniciou sua participação.
Mas como bem me lembra Ym. – quando pergunto a ela como as pessoas mais antigas
da Morada se conheceram –, essa é apenas uma possibilidade narrativa. Talvez a mais pobre,
visto a potência do conceito de reencontro para as pessoas da comunidade. Pois a formação
do grupo Cosmos não se dá apenas em uma cadeia de convites aleatórios. Afinal, por que
aquelas pessoas responderam ao chamado? Por que permaneceram na comunidade? São
questões que tocam as pessoas que ali se envolvem. E a resposta para tal está posta num
momento muito anterior na escala temporal, dada a saber por sonhos e intuições. As pessoas
que ali se encontram são pessoas que já estiveram juntas em outros momentos, “em outras
batalhas”, como me disseram. E seu reencontro no presente foi fundamental para possibilitar
a criação do que se tornou a Comunidade Kilombola Morada da Paz, que, por sua vez, só foi
possível por uma série de encadeamentos e fluxos que perpassavam as trajetórias de cada
uma. Mas, afinal, que fluxos são esses? Como ocorreram esses reencontros?
Ys. e Ed. desejavam iniciar um grupo que respondesse ao chamado feito no evento em
São Paulo, mas seus interesses não surgiram de forma aleatória. Houve uma confluência de
desejos entre o que fora apresentado em São Paulo e a vivência do casal em Porto Alegre. Ys.
nasceu em Porto Alegre e viveu parte de sua vida em Viamão, cidade da região Metropolitana
54

da capital. Filha de uma professora da rede estadual de ensino, de um pai não muito presente e
neta de duas Yalorixás. Desde pequena, conversava com os espíritos e com as entidades que a
acompanhavam. Sempre que podia, espiava as feituras rituais das casas de suas avós. Sua avó
paterna, com quem tinha mais relação, era feita na bacia de Oyó, e sua avó materna, na bacia
de Cabinda-Maçambi. Contou-nos em ipadê que sempre pairou a questão em sua família
sobre a casa em que Ys. faria a cabeça. Enquanto suas avós materna e paterna estavam
ansiosas em saber, a sua bisavó, caracterizada por Ys. como uma verdadeira bruxa, disse que
ninguém iria pôr a mão na cabeça de sua bisneta, pois Ys. era das sete linhas.
A designação de Ys. como das sete linhas pode ser compreendida de várias formas. Na
Morada, parece-me, a conotação dada à ideia de sete linhas é de que a cabeça do médium não
pertence a um Orixá específico, como no caso do Batuque ou do Candomblé. E que, portanto,
um mesmo médium pode receber muitas entidades, ou seja, tem um sentido mais próximo ao
que seria considerado na Umbanda. O comentário de sua bisavó, portanto, poderia estar
vinculado a isto: Ys. não pertenceria àquela ritualística própria do Batuque, pois já pertencia,
de alguma forma, às sete linhas. No caso narrado, esse pertencimento traz também uma
semelhança com alguns casos que encontramos nos materiais etnográficos sobre as religiões
de matriz africana onde, de alguma forma, certas pessoas não poderiam ser iniciadas, pois já
nasceram “feitas”28. Ys. parece ser um desses casos, o que fez com que ninguém “colocasse a
mão” em sua cabeça.
Sendo assim, ainda que acompanhasse as feituras ritualísticas das casas de suas avós
desde criança, Ys. não se iniciou no Batuque. Contudo, conta que Yemanjá e Oxalá a
desejavam como filha e assim a tomaram, mesmo sem nenhum procedimento ritualístico
tradicional do Batuque. De alguma forma, disse-me, ela já era filha de Yemanjá e Oxalá, visto
que seus pais biológicos eram respectivamente filhos de Yemanjá, sua mãe, e Oxalá, seu pai.
Ainda que fosse bastante curiosa e próxima das práticas ritualísticas de sua avó paterna, Ys.
conta que havia questões que não a deixavam confortável no terreiro. Uma delas era o fato de
muitas das ações não serem ditas, explicadas para ela. Com o passar do tempo, para além de
algumas discordâncias familiares, passou a se distanciar do terreiro.
Certa vez, quando tinha seus 17 anos, um de seus tios, que é cego, pediu para que ela o
levasse até um determinado lugar. Ela o acompanhou e, ao chegar, viu que se tratava de um
Centro Espírita Kardecista. Com alegria em rememorar esses momentos, Ys. relatou que ali,
assim que chegaram, um homem se apresentou para recebê-los e disse a ela, de forma um
tanto ríspida, que estavam atrasados. Incomodada com o modo como o senhor dirigiu a
28Esse é um tema bastante abordado pela literatura sobre religiões de matriz africana. Goldman, em seu artigo
sobre dom e iniciação (2012) aborda essa questão. Na Morada da Paz, a expressão “feitura” não é utilizada
para falar dos processos de iniciação. Contudo, é utilizada quando para tratar dos processos realizados pelas
casas de Batuque ou Candomblé.
55

palavra a ela, decidiu esperar seu tio no lado de fora do centro, até a sessão finalizar. Fez esse
mesmo percurso muitas vezes depois, a pedido de seu tio, sempre aguardando do lado de fora,
até que, por curiosidade e interesse, resolveu adentrar e participar da sessão. Conta que desde
então não mais saiu do centro, onde trabalhou cerca de 10 anos como médium.
Foi lá onde conheceu Mãe Preta. Contou-nos que naquele centro, ainda que se
apresentasse como Centro Espírita Kardecista para aqueles que procuravam atendimento e
conforto espiritual, aconteciam muitas outras manifestações nos seus rituais internos. Havia
uma senhora de mais idade que recebia Mãe Preta. Certa vez essa senhora, já muito doente,
disse a Ys. que Mãe Preta a havia escolhido para ser o seu canal depois que ela fizesse a
passagem, ou seja, falecesse. Dito e feito. Entre risos – quando estávamos no carro voltando
de Porto Alegre para o território da comunidade –, El. e Ys. relembravam esses
acontecimentos. El., que na época era amiga de Ys., disse que foi ao encontro dela quando a
viu sentada na calçada chorando, pois havia incorporado uma preta velha, mesmo depois de
ter se afastado das práticas rituais dos terreiros. Foi ali, em um Centro Espírita Kardecista, que
reencontrou Mãe Preta, com quem passou a compartilhar a vida inteira29.
Em um dos ipadês com alguns visitantes, Ys., ao narrar a sua história, disse que “a
ancestralidade chama”, que o Santo chama e não há como fugir. Acredito que seu encontro
com Mãe Preta carrega muito desses chamados. Certa vez conversávamos sobre a vida e então
falamos sobre Mãe Preta. Seria a mesma entidade que se manifestava naquela senhora do
centro espírita? “Talvez sim, talvez não”, respondeu ela. Durante a conversa, percebi que são
perguntas que parecem não fazer sentido. Fato é que Mãe Preta, naquele contexto, disse que a
queria como canal. E logo depois Ys. dá passagem para uma preta velha chamada Mãe Preta.
Parece-me que o que importa, no fim das contas, é o que Mãe Preta é capaz de mobilizar na
comunidade.
Enquanto participava do centro espírita, Ys. também cursava Serviço Social na
PUCRS. Era um curso novo e casava muito com os interesses da então jovem mulher. As
injustiças do mundo sempre a incomodaram, e pensou que o Serviço Social poderia ser uma
das formas de atuar para diminuir essas mazelas. Sua família não teria condições de pagar as
mensalidades e por isso conseguiu uma bolsa de estudos. Assim foi parar na PUCRS
(Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul). El. conheceu Ys. na Universidade,
pois eram colegas de turma. Contou-nos El. que, no primeiro dia de aula, Ys. já se fez
conhecer. Enquanto todos estavam na sala à espera do professor, na algazarra comum de

29A relação estabelecida entre Ys. e Mãe Preta pode ser aproximada a inúmeros casos relatados em terreiros de
matriz africana sobre o “santo de herança”(SOARES, 2014; GOLDMAN, 2012), ainda que essa herança não
passe pelo “sangue”, como em outros casos. Isso significa que uma entidade que trabalha com uma
determinada pessoa passa a trabalhar com outra após o falecimento da primeira. Esse procedimento, na
Morada da Paz, ocorreu com duas entidades principais: Mãe Preta e Xangô Agodô.
56

início de faculdade, Ys. tentava, em vão, fazer alguma dinâmica de apresentação entre os
colegas. El. contou que olhava para aquilo e ria, perguntando-se o que estaria ela tentando
fazer. Elas, as únicas negras da turma, construíram uma amizade que tem durado muitos anos.
El., naquela época, morava na zona norte de Porto Alegre, com seus pais. Vinha de
uma família de tradição sambista oriunda da cidade de Pelotas e arredores, sobrinha
emprestada de Giba-Giba30. A família de sua mãe era de Canguçu, região próxima a Pelotas e
uma das cidades do Rio Grande do Sul onde há mais quilombos. Diferente da história de Ys.,
sua família não tinha nenhum pertencimento a terreiros de Batuque, contudo, praticavam
muito a benzedura e a cura com ervas, principalmente a família de sua mãe. Conta que sua
avó, antes de El. nascer, frequentou um tempo a Umbanda, mas apenas isso. Já ela, desde
muito nova era frequentadora assídua de centros espíritas e terreiros de umbanda, ainda que
não tivesse participado ativadamente como médium em nenhum. Contudo, nutria muita
curiosidade com a mediunidade e a espiritualidade, querendo entender seus funcionamentos.
Formou-se em Serviço Social com o auxílio financeiro de seus pais e, enquanto cursava,
percorria muitos espaços onde aprendia sobre a espiritualidade. Em um determinado
momento encontrou um local ao qual dedicou-se como médium, a chamada Ordem da
Confraria.
El. possui uma mediunidade muito diferente de Ys. (aliás, todas as mediunidades são
diferentes, mas tecem entre si algumas semelhanças). Assim que entrei na comunidade, El.
disse-me que não trabalhava com o processo de mediunidade inconsciente, tal como outras
Yas da comunidade, e sua atuação passava por outros meios, que não incorporação. Sentia a
presença das entidades e intencionava suas forças às ações que desenvolvia, por exemplo,
com a manipulação de elementos da natureza. Na Ordem da Confraria, contou El., aprendeu a
entender os porquês dos atos mágicos – porque e como acender uma vela, porque e como
utilizar um elemento, etc. Aprendeu que mediunidade não se dá apenas por um processo de
incorporação, mas também ocorre a partir de muitas outras manifestações, tais como intuição,
manipulação energética de elementos ritualísticos, canalizações como escritas, desenhos,
melodias, entre outras tantas formas. Isso porque a Ordem da Confraria configurava-se como
um espaço de estudo da mediunidade, para além dos atendimentos espirituais que realizavam.
Por isso, tinham muitos cursos de formação, para os mais variados níveis, mesclando saberes
umbandistas e esotéricos.
Pelos relatos de El. e Ys., quando falam da Ordem da Confraria, não há dúvidas sobre
a importância que esse espaço teve para a posterior construção do grupo Cosmos e para uma
série de conhecimentos absorvidos e desenvolvidos no que se tornou, então, a Comunidade

30Giba Giba foi um importante carnavalesco do estado.


57

Morada da Paz. Isso ficou para mim bastante evidente quando, em uma das Desformações, El.
sentiu-se emocionada lembrando que era ela quem, alguns anos atrás, durante seu tempo na
Confraria, aprendia sobre essas mesmas questões que estavam sendo ali abordadas. Primeiro,
a compreensão da mediunidade como um aspecto orgânico e parte da condição existencial de
todos os seres vivos. É por isso que volta e meia as Yas discordam dos termos de alguns
centros espíritas que falam em “desenvolver a mediunidade”. Em resposta, dizem que
“mediunidade não se desenvolve, pois já se nasce com ela”. Segundo a percepção de que os
sujeitos são compostos por muitos corpos e pontos energéticos, os chakras.
A Ordem da Confraria, localizada no bairro Bom Jesus, da cidade de Porto Alegre, é
um espaço de estudo que agrega uma série de pessoas, muitos deles estudantes e acadêmicos,
interessadas em compreender e aprimorar seus conhecimentos e vivências sobre mediunidade.
Logo que El. iniciou seus estudos no local, convidou Ys. para participar. A partir desse
convite, Ys. e Ed. também estudaram e trabalharam durante um tempo na Confraria, antes da
criação do grupo Cosmos. Foi lá que Ys. reencontrou Seu Sete e pomba-gira Elo. Seu Sete
apareceu pela primeira vez para Ys. através de uma outra médium, que era clarividente. Essa
médium já havia visto Seu Sete próximo a ela, mas ele ainda não havia se manifestado. Eis
que, próximo ao peji, ao altar, ela pediu para Ys. se ajoelhar e entregou a ela uma faca.
Imediatamente Seu Sete se manifestou.
Desde sempre, contam, Seu Sete teve uma postura muito firme e presente, assim como
Mãe Preta, na condução da construção do grupo Cosmos e da Comunidade Morada da Paz.
Acompanharam o processo desde o início e, por isso, por tudo o que produzem e cuidam, são
considerados a Mãe e o Pai da comunidade e de todos que dela participam. Foi na Confraria
também que pomba-gira Elo se manifestou pela primeira vez em Ys.. Elo trabalhava nos
atendimentos espirituais abertos realizados na Confraria e era muito requisitada pelas
consulentes. Muitas das vezes que se manifestou em Ys., contou-nos um pouco da sua
história. Assim que começou a trabalhar com Ys., realizava trabalhos para mulheres que a
procuravam querendo encontrar um “par de calças” ou para afastar “um rabo de saia”. Ou
seja, sempre às voltas de problemas amorosos. Elo realizava esses trabalhos para suas
consulentes e em troca pedia perfumes, flores, lenços, brincos, vestidos ou rubro (como
chama batom). Como seus trabalhos eram certeiros, sempre recebia muitos presentes.
A mediunidade de Ys. é uma “mediunidade inconsciente”. É interessante conversar e
ouvi-la dizer que passou a vida inteira querendo tornar-se consciente dos processos que
aconteciam com ela durante a incorporação, sem depender de alguém para saber o que
acontecia, e de todo seu processo de aceitação de sua mediunidade e das relações de confiança
estabelecidas no grupo Cosmos e na Morada da Paz entre os cambonos (aqueles que auxiliam
58

e zelam pela segurança da entidade e do médium) e os médiuns. Por ser uma “médium
inconsciente”, toda vez que pomba-gira Elo deixava o corpo e Ys. retornava a si, não
lembrava de absolutamente nada do que havia acontecido. Via apenas uma porção de
presentes recebidos, com os quais não sabia o que fazer. Aquele excesso de dádivas a
incomodava. E havia um aspecto da Confraria que tornava muito desconfortável o trabalho
que desenvolvia, pois os cambonos não contavam a ela o que havia acontecido durante os
atendimentos ou como Elo realizava o seu trabalho. Certa vez alguém lhe disse quais os
trabalhos que Elo desenvolvia e Ys. ficou profundamente desgostosa deles.
Em conversa com Elo, Ys. disse que não trabalharia mais com ela se continuasse a
realizar trabalhos por “troca”. Essa relação entre Elo e Ys. contou com a mediação de Mãe
Preta que concordou com a decisão de Ys.. Elo, quando manifestada, contou, então, que toda
vez que tentava se aproximar de seu canal, havia um guardião, que estava ali atendendo uma
orientação de Mãe Preta, para que ela não tivesse acesso. Por isso narrou-nos as muitas vezes
que se aproximava e sentia a negação de Ys. em recebê-la, fato que a deixava muito triste. Ao
mesmo tempo, não queria abrir mão dos presentes que recebia. Então passou a vagar por
muitos terreiros, manifestando-se em outros corpos, mas sentia muita falta do canal que havia
escolhido para si: Ys.. Foi todo um longo processo para aceitar, então, não trabalhar mais por
“troca”, tal como o grupo Cosmos desenvolvia seu trabalho e a Morada da Paz deu
seguimento.
A saída de Ys. da Ordem da Confraria não ocorreu no mesmo tempo de El.. Ys. e Ed.,
que também havia iniciado seus estudos na Confraria, saíram no momento em que receberam
o “chamado para vibrar em paz” – como narrado anteriormente. Ainda que tenha aprendido
muito na Confraria, Ys. não concordava com a ética desenvolvida no local, principalmente no
que dizia respeito a relação entre médiuns e cambonos, visto a história com Elo. Como
percebia alguns procedimentos que considerou antiéticos, resolveu se afastar. Mas seu
afastamento não foi realizado por sua livre e espontânea vontade. Foi Seu Sete quem colocou
um ponto final na relação com o grupo. Ys. conta que cada médium da confraria possuía uma
sala para si, para guardar seus escritos e seus estudos. Em um determinado momento, como
um meio de pôr fim àquela relação, Seu Sete colocou fogo na sala. Queimou todos os objetos,
todos os materiais escritos e fotocopiados que Ys. guardava de anos de estudos sobre
mediunidade e paranormalidade. E disse que Ys. não precisaria mais de nenhum daqueles
materiais. Que começaria algo diferente. Seu Sete não é dado a atos de pouco valor. Ainda
hoje, aparece em situações consideradas muito densas. E naquela situação não foi diferente.
Assim que Ys. e Ed. se afastaram da Confraria para iniciar o grupo Cosmos, não
romperam por completo. Havia um trânsito entre esses coletivos. Algumas pessoas eram
59

convidadas pelo grupo Cosmos para realizar falas ou conduzir grupos de estudos. El.
continuou trabalhando na Confraria quando Ys. e Ed. criaram o Cosmos. E foi a partir de um
convite de Ys. que El. foi pela primeira vez ao Cosmos, que já funcionava como um grupo
organizado. El. conta que foi convidada para fazer um movimento de dança e quem a recebeu
foi Mãe Preta, com sua gargalhada e hospitalidade particular. Assim que foi pela primeira vez,
El. passou a frequentar com mais assiduidade até o momento em que resolveu sair da
Confraria, pois começou a perceber ações e comportamentos com os quais também não
concordava.
Paralelo a esses movimentos, antes da criação do grupo Cosmos, encontravam-se as
duas recém formadas. Seus respectivos companheiros acompanhavam as ações que
desenvolviam em torno da espiritualidade. Ed. de uma forma mais incisiva, pois também foi
fundador do grupo Cosmos, e o companheiro de El. de modo menos participativo, mas
convivia nas atividades que realizavam. O período inicial como assistentes sociais também
não foi fácil para nenhuma das duas, que precisavam se desdobrar em muitas para conseguir
sustentar a vida. Ys., como tinha o hábito da discussão durante as aulas na Universidade,
recebeu o convite para realizar mestrado na mesma instituição. E só realizou mediante o
recebimento de uma bolsa. El. foi trabalhar como assistente social, principalmente com
crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidade.
Paralelo a esses reencontros, de entidades, de espaços e de pessoas, outros eram
estabelecidos. Ed., engenheiro que então trabalhava no Hospital de Clínicas, conheceu por lá
Ol., que trabalhava na lavanderia do Hospital. Assim como estendeu o convite a outras
pessoas para participarem do Cosmos, convidou Ol. que, por sua vez, decidiu ir. Ol. morava
com suas filhas, irmãs e sobrinhas no bairro Partenon, numa rua comumente referida por
todas da comunidade como “Amália”. “Era praticamente uma comunidade”, relembra Ik.,
sobrinha de Ol., que cresceu no local. Seu pai trabalhava como caminhoneiro e foi sua mãe
quem cuidou de todos os filhos. Ali Ol. cresceu e educou suas filhas, que hoje também
participam da Morada.
Na verdade, Ol., que em termos de idade é a mais velha e carinhosamente chamada de
“vó”, foi uma das principais agregadoras da comunidade. Sua história é uma entre tantas
histórias de resistência das mulheres negras no contexto da diáspora africana. Oriunda de uma
família simples, Ol. precisou trabalhar desde cedo para auxiliar seus pais, por isso não
conseguiu finalizar o Ensino Médio. Logo casou com um rapaz do bairro cujo irmão veio a se
casar com uma de suas irmãs, conhecida com carinho como T. I., mãe de Ik. e de Ym.. O
casamento foi de muita ausência por parte de seu companheiro, tanto financeira quando
afetivamente. Ol. desdobrava-se para criar suas duas filhas, Yb. e Al., trabalhando e contando
60

com o auxílio de suas irmãs. Assim como a progenitora de Ik. e Ym., Ol. trabalhou boa parte
de sua vida como diarista, até que, depois de separada, resolveu voltar a estudar. Concluiu os
seus estudos no EJA e prestou a prova de concurso para trabalhar no Hospital de Clínicas,
sendo aprovada e chamada. Foi assim que conheceu, então, Ed..
Ol. sempre frequentou centros de Umbanda e centros espíritas, assim como suas filhas
e sobrinhas. Mas ela não gostava muito das casas onde havia sacrifício de animais, dos
trabalhos “fortes” como disse certa vez - o que fez com que a irmandade toda risse, visto que
outras tantas pessoas frequentaram durante muito tempo essas mesmas casas. Assim que
chegou na casa onde aconteceria o atendimento do grupo Cosmos, na rua Dona Sofia do
bairro Menino Deus, conheceu Ys., que a recebeu com muita simpatia. Eram poucas as
pessoas que trabalhavam como médiuns naquele contexto. Uma média de três ou quatro
integrantes para atender quem estava na assistência. Ys. perguntou se Ol. poderia auxiliá-los e
Ol., muito prestativa, disse que sim. Logo, então, Ys. pediu para que fizesse a preleção, ou
seja, que lesse um pequeno texto para todos os presentes e comentasse sobre ele, antes de
iniciarem os atendimentos. Ol., ainda que assustada, fez o que Ys. havia solicitado e ali se
iniciou uma relação de anos de participação, de amizade e de estudo. A mediunidade de Ol.
também se distingue das mediunidades de Ys. e El.. Enquanto Ys. é reconhecida por seus
intensos processos de incorporação, El. trabalha com as entidades de forma consciente, com a
manipulação de objetos rituais. Ol. trabalha com a mediunidade através de seus processos
criativos e intuitivos - é, sem dúvida, uma das pessoas mais habilidosas na feitura de
artesanatos e costuras.
Assim que começou a frequentar o grupo Cosmos, Ol. convidou suas filhas para
participar. Al. tinha apenas treze anos na época e Yb. tinha dezessete anos. Convidou também
algumas de suas sobrinhas, como Ik., Ym. e Aa.. Todas tinham um vínculo com terreiros de
Umbanda e centros espíritas, como frequentadoras. Mas Ik. e Aa. possuíam um vínculo ainda
mais intenso, pois foram “feitas” em um terreiro de linha cruzada 31. Ik., quando narrou sua
história, disse que vem de uma família onde o pai era muito ausente, não ajudava em nada, e
era bastante violento. Sua mãe, por conseguinte, tinha um “padrão vibracional de suprir o
alimento”, trabalhava muito, por isso ficava muito tempo fora de casa. Sua tia, irmã de sua
mãe, era quem fazia os corres de acompanhar a ela, a sua irmã e algumas de suas primas e
primos até o colégio e outros espaços. Aliás, disse-nos que desde sempre havia uma relação de
solidariedade intensa entre suas tias e sua mãe, pois nunca faltava comida para ninguém, nem
cuidados básicos, muito em função dessas redes de solidariedade. Com vistas a auxiliar a sua
mãe com a manutenção da casa, tanto Ik. quanto Ym. começaram a trabalhar desde cedo.

31Trata-se de casas que trabalham com Umbanda, Quimbanda e Batuque.


61

Ik. contou que na família havia muitos movimentos “estranhos”, que começaram com
a prima dela, Aa., e depois com ela mesma. Aa. recebia pomba-gira a qualquer momento…
Estavam tomando café e a pomba-gira se apresentava, estavam em qualquer atividade
cotidiana e a Gira fazia-se presente. Ik. era muito próxima de Aa. e as duas saíram em busca
de terreiros que poderiam segurar Aa.. Percorreram muitas casas de religião, até encontrar um
terreiro muito simples, um casebre localizado em Viamão. Lá, a mãe de santo garantiu que iria
segurá-la. Aa. e Ik., que não eram muito diferentes em relação à mediunidade, começaram a
frequentar mais aquele terreiro – onde logo numa gira de Exu Ik. incorpora uma pombagira –
e decidiram se iniciar na casa. Primeiro no que consiste o lado da Umbanda e depois na
Nação, como é conhecido o Batuque.
Contudo, com o tempo, Ik. começou a se incomodar com certas situações que
ocorriam no terreiro. Quando decidiu iniciar-se na Nação, a mãe de santo designou-a filha de
Iansã com Ogum. Certa vez, antes de sua iniciação, acompanhou sua mãe de santo e irmãs de
santo em uma festa de Batuque onde incorporou. Sua mãe de santo rapidamente empurrou e
repreendeu a entidade que estava manifestada, machucando o corpo de Ik.. Isso porque,
segundo as regras de sua casa, era percebido como um desrespeito o Orixá de um filho-de-
santo se manifestar primeiro na casa de outra pessoa. Contou também que em outro contexto,
em uma sessão de Umbanda, na casa de sua mãe de santo, Ik. deu passagem para Oxum,
entidade que não era esperado Ik. manifestar. Isso gerou um tensionamento entre ela e a mãe
de santo, que a repreendeu por isso. Essas situações e as lógicas de incorporação da casa não
eram conversadas, nem estudadas, nem explicadas para aquelas que estavam se iniciando.
Não entendia o porquê da entidade não poder se manifestar e não entendia o que ela deveria
fazer para a entidade não se manifestar, pois o Orixá se manifesta quando deseja, disse-me
ela. Ik., assim como Ys., possui uma mediunidade inconsciente e seus processos são muito
intensos. Como diz Mãe Preta, são médiuns sem rodinhas.
Sem rodinha é uma expressão utilizada por Mãe Preta para se referir a um tipo de
mediunidade. Como dito, na comunidade, trabalha-se com a ideia de que a “mediunidade é
orgânica”, ou seja, compõe todos os corpos dos humanos e animais, participa da vida
cotidiana de todas as pessoas e pode se manifestar de inúmeras formas. Há quem se expresse
pela pintura, pela música, pela escrita, pela fala; há processos intuitivos, sonhos, clarividência,
escuta; há relações em que as entidades estão encostadas no médium; e há processos de
incorporação consciente e inconsciente. Ao conceber a mediunidade como um elemento
orgânico, constituinte de todos os corpos, percebe-se o corpo humano – e dos animais também
– formados por uma série de pontos energéticos, chamados de chakras. Esses chakras, cujos
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mais conhecidos são sete32, foram didaticamente explicados por Mãe Preta como buraquinhos
de entrada e captação do cosmos, a partir do qual os sujeitos são atravessados pelas mais
diversas forças.
Fato é que Ik., naquela época, não tinha muita noção do que era a mediunidade. Nem
conhecia essa expressão, que, aliás, não é comum nas casas de Batuque. Foi descobri-la no
grupo Cosmos, quando resolveu ir a um dos encontros, junto com sua prima Aa., a convite de
sua tia Ol.. Aa. também frequentou um tempo, mas não continuou. Já Ik. começou a se
envolver com o Cosmos. Sentia-se, a princípio, culpada por frequentar dois lugares ao mesmo
tempo, como se isso fosse uma espécie de traição com o terreiro de sua mãe de santo. Com o
tempo optou, então, por ficar apenas no grupo Cosmos. E decidiu “lavar a cabeça” e se
tornar, ela mesma, a “guardiã de sua própria cabeça”. Ik. lembra com carinho como foi o seu
encontro com o grupo. Na época, trabalhava na Pizza Hut de um Shopping, e assim que
chegou ao grupo Cosmos foi recebida por todos. Ys., ao se aproximar de Ik., questionou se
ela, por acaso, trabalhava com comida, e Ik., surpreendida, respondeu que sim. Logo Ys.
comentou sobre a potência da comida, pois a partir dela se pode nutrir ou matar alguém. Fala
que Ik., em ipadê, relembrou com carinho, pois descortinou uma série de possibilidades e
poderes da espiritualidade presentes nas atividades cotidianas que na época realizava.
Durante um tempo Ik. permaneceu tanto no terreiro em Viamão, quanto no grupo
Cosmos. Mas assim que lavou sua cabeça, passou a participar apenas deste último. Houve um
processo de negociação com as entidades que respondiam através dela para fazer a transição,
visto que as ritualísticas são consideravelmente diferentes. Havia entidades que se
manifestavam no terreiro anterior e que não se manifestaram mais durante seu trabalho no
grupo Cosmos. Da mesma forma, houve entidades que a acompanharam, e outras que
passaram a desenvolver uma relação com ela apenas no grupo Cosmos. Iansã, por exemplo,
nasceu no terreiro que Ik. frequentava e, através de um processo de negociação e conversa
com a entidade, manifestou-se no grupo Cosmos. “Eu acho que é a mesma… ou pode não ser
também, sei lá”, disse-me Ik. em um determinado momento. Mas parece ser um comum
acordo entre todos que a Iansã de Ik., assim como a Iemanjá de Ys. são de Batuque ou da
Nação. Mesmo que Ik. tenha lavado a cabeça e que Ys. nunca tenha passado por um processo
de feitura das casas de Nação, com sangue animal.
Da mesma forma, a Padilha, gira que trabalha com Ik., manifestou-se pela primeira
vez no terreiro de Viamão, e foi todo um processo de negociação com a gira para ela não

32Os Chakras são pontos energéticos que constituem todo o corpo. Através deles nos relacionamos com o
cosmos. São sete, a saber: o chakra coronário, localizado no centro da cabeça; o chakra frontal, localizado na
testa; o chakra laríngeo, localizado na região da nuca e garganta; o chakra cardíaco, no coração; o chakra plexo
solar, na região do estômago; o chakra esplênico ou sexual; localizado na região da bexiga/útero; e o chakra
básico, localizado próximo ao ânus.
63

trabalhar mais por “troca”, nem com álcool ou cigarros, assim como aconteceu com pomba-
gira Elo. Isso porque as Giras que são permitidas entrar na Comunidade Morada da Paz são
alinhadas com a pomba-gira Elo, ou são por ela resgatadas para um processo de diálogo
quando ali incorporadas. Ainda que algumas entidades tenham acompanhado Ik. nesse
percurso para o grupo Cosmos, outras não a acompanharam. E os motivos para isso também
variam. Ou porque não aceitaram as ritualísticas ali desenvolvidas, ou porque foram entidades
que se aproximaram dela por indicação e sugestão da mãe de santo anterior. Como, por
exemplo, quando a mãe de santo orientou que Ik. trabalharia com uma determinada entidade
que, de fato, ela trabalhou durante o tempo em que esteve lá, mas que não mais se manifestou
assim que saiu da casa.
Das fundadoras da Comunidade Morada da Paz e parentes de Ol., Ik. foi a única que
percorreu esse caminho por um terreiro de linha cruzada. Tanto a sua irmã, Ym., quanto suas
primas Al. e Yb., experienciaram e iniciaram os estudos dos processos mediúnicos no grupo
Cosmos, ainda que relembrem momentos de suas infâncias onde os processos intuitivos e
alguns desmaios constituíam parte do que chamam mediunidade. Dentre todas, Ym., hoje
Yakekerê – mãe pequena - da Comunidade Morada da Paz, foi a última a frequentar o
Cosmos. Ym., irmã de Ik., também cresceu na Amália, rodeada de suas tias. Desde de cedo
começou a trabalhar para auxiliar sua mãe. É mais velha que Ik. apenas alguns anos, sendo a
segunda filha mais velha de uma família de quatro filhos. Ym. sempre foi muito
independente, e desde jovem nutriu um desejo intenso de sair da casa de sua mãe. Na época,
trabalhava na parte administrativa de uma empresa e, assim que conheceu um rapaz, um
pouco mais velho que ela, resolveu morar com ele. O que aparece com destaque nas falas de
Ym. e de Ik. é a ausência do pai, a busca eterna para que ele pagasse uma pensão para auxiliar
nos gastos da casa, o trabalho intenso da mãe para mantê-las e a necessidade que elas tiveram,
desde jovens, de auxiliar economicamente em casa.
É muito interessante que Ol. e T.I. (como é conhecida a mãe de Ik. e Ym.), irmãs da
família Rocha, tenham casado ambas com dois irmãos da família David. E que tenham sido
exatamente as mulheres filhas de T.I. e Ol. que ajudaram a fundar a Comunidade Morada da
Paz. Ym. contou-nos, em uma reflexão sobre sua própria trajetória familiar, que percebia
haver um processo de negação da espiritualidade e da ancestralidade na geração de suas tias
e mães, tanto na família Rocha, quanto na família David. Primeiro, havia a avó delas, a avó
Mc., mãe de seu pai, que era mãe de santo em um terreiro. Depois, na geração seguinte,
apenas a Ir., irmã de sua mãe, trabalhava a espiritualidade em seu terreiro. Terreiro esse em
que Ik. e Ym. espiavam, sempre que podiam, os rituais que eram proibidos para as crianças
participarem – contam entre risos. Os seus outros tios e tias negavam a espiritualidade.
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Segundo Ym. aconteceu que essa negação teve consequências na geração futura, onde
Ik. e Aa., por exemplo, tiveram um processo muito intenso de mediunidade e que, de início,
não sabiam muito como lidar, e seu irmão mais velho também, o que levou a seu
envolvimento com drogas. Acabou que a negação da espiritualidade por uma certa geração
gerou, por consequência, o reencontro quase forçado da espiritualidade pela geração
posterior, dela, de sua irmã Ik. e de suas primas Aa., Al. e Yb.. Ym., apesar de frequentar
muitos terreiros como consulente, veio trabalhar como médium apenas no grupo Cosmos.
Hoje, dentre todas as entidades com as quais trabalha, desenvolve uma relação muito intensa
com Ogum Beira-mar que é, também, um dos principais guardiões da comunidade. Formou-se
recentemente em Ciências Sociais pela UFRGS, desenvolvendo sua pesquisa sobre as práticas
de brincadeira desenvolvidas pela comunidade, criando o conceito de etnoludicidade33.
Yb. e Al. eram as mais novas da família a integrar o grupo Cosmos. Al. tinha apenas
treze anos quando começou e Yb. dezessete. Na época, Yb. estava concluindo o ensino médio
e trabalhava em uma pequena empresa. Havia conhecido há pouco um rapaz, durante uma
temporada na praia, com o qual estava saindo e namorando - era o Bg.. Foi durante esse
período que convidou seu então namorado para conhecer o Cosmos, espaço de trabalho
espiritual que estava frequentando. Bg., nessa época, estava terminando o curso de Economia
na UFRGS e não sabia muito bem o rumo que tomaria na condução da sua vida. Tudo o
conduzia para trabalhar em uma empresa, como economista. Mas ao frequentar o grupo
Cosmos sua vida também teve grandes transformações.
A relação que Bg. tinha com a espiritualidade era a mesma que Yb.. Frequentava vez
ou outra alguns centros espíritas ou centros de umbanda. Contou-me entre risos que sua mãe,
que é branca, era mais batuqueira que a família de seu pai, que é negra. Quando os dois
casaram, Ly., sua mãe, não tinha o hábito de frequentar terreiros, e uma irmã de seu pai levou-
a para conhecer. Depois, passou a frequentar mais que a família de seu então companheiro.
Contou-me da lembrança de uma casa, no Bairro Santana, que muito frequentou e cuja
entidade guia da casa era um Caboclo, o Caboclo Arirajara, e outra casa, guiada por uma
senhora, cuja entidade que ali respondia era o Índio Campo Verde. “Tu vê, era um caboclo!”,
ressalta Bg., “meus ancestrais!”, destacando a relação espiritual com os povos indígenas. Bg.
trabalha muito com Oxossi e tem uma forte relação com os caboclos, com o chamado povo da
terra. Porque, além disso, é ele um dos grandes responsáveis e guardiões da gestão ambiental,
dos plantios e do manejo das hortas da comunidade Morada da Paz. São elementos que se
vinculam ao povo da terra, ao cuidado com o que é chamado pela comunidade e por algumas
entidades caboclas que ali respondem de Pacha Mama.

33 Como denomina os diferentes modos de brincar dos povos tradicionais.


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Foi Bg. que aproximou Ly. do grupo Cosmos. Assim como recebeu o convite de Yb.,
estendeu o convite para a sua mãe, que começou a participar. Como muitas das histórias de
mulheres, Ly. queria muito sair da casa de seus pais e ter sua vida independente. E o meio
pelo qual poderia fazer isso, naquela época, seria através do casamento. Acabou casando com
um rapaz, pai de Bg., mas sofria com essa relação, pois ele bebia bastante e discutiam muito.
Tentou retornar a casa de seus pais, mas sua mãe aconselhou-a a permanecer no casamento,
pois essa havia sido a sua escolha. Assim que Bg. e seu irmão tornaram-se adultos, e Bg.
anunciou para a família que iria casar, Ly. resolveu então se separar. Era pedagoga, professora
do município, e com o salário que recebia, sem preocupações financeiras com os filhos que já
estavam independentes, conseguiria se sustentar sem se submeter ao casamento que há tempos
já não desejava. E assim o fez.
Ly. conheceu o grupo Cosmos quando este ainda funcionava na pequena casa no bairro
Menino Deus, na Rua Dona Sofia. Aliás, devo dizer que todas essas histórias e trajetórias se
entrecruzaram enquanto o grupo Cosmos funcionava neste bairro, a primeira casa que
hospedou o recém formado coletivo. No bairro Menino Deus, na mesma época, também
morava Ak. com suas primas e tia. Em um dado momento elas perceberam que as crianças do
bairro começaram a sumir pela tarde. Depois de um tempo, descobriram que frequentavam a
casa onde funcionava o grupo Cosmos, local onde aconteciam aulas de capoeira, de inglês, de
reforço escolar e outras tantas atividades para crianças e adolescentes desenvolvidas pelo
grupo.
De início, as primas de Ak. frequentavam os atendimentos espirituais do grupo
Cosmos. “Diziam que toda semana chegavam lá mulheres negras lindíssimas e que faziam
trabalhos espirituais”, conta. Enquanto suas primas frequentavam, Ak. nunca se interessou
em participar. Nessa época, ela trabalhava como médium no terreiro de Umbanda de sua tia,
para o qual estava prometida como sucessora. Foi lá que começou a trabalhar com o Ogum de
Malê, com a pomba-gira Cigana, com as pretas velhas Tia Chica e Maria Gorda e com o Exu
Marabô. Ela havia sido escolhida por sua tia para dar seguimento ao terreiro, mas como se
aproximou do grupo Cosmos, acabou por não dar continuidade. Ak. é dessas médiuns sem
rodinha que nunca lembra que passou por um processo de incorporação e sempre desconfia
quando alguém afirma sua incorporação, o que é motivo de divertimento para todos - “Eu?
Incorporada? Mas eu não tava incorporada!!”.
Assim que suas primas começaram a parar de frequentar o Cosmos, Ak. resolveu se
aproximar – e enquanto contava sua história em ipadê todas riram com seu comportamento
“do contra”. Começou a frequentar o Cosmos e trabalhar ali como médium. Ela nos contou
que seu vínculo com terreiros é antigo e passa por toda a sua família por parte de pai. Sua tia,
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com quem morou, era irmã de seu pai, que era alabê nas festas de Batuque, filho de Xangô.
Mas o grupo Cosmos acabou tendo que se mudar do bairro Menino Deus, por uma porção de
fatores – pelo valor, pela necessidade de um espaço maior, por uma busca de maior conexão
com o ambiente rural. Dentre elas, o desejo comum e a orientação das entidades a procurarem
um espaço mais afastado, com maior “contato com a natureza”, para desenvolverem seus
projetos coletivos. Alugaram uma casa no bairro Vila Nova. Isso fez com que Ak., por
dificuldades financeiras de nem sempre ter condições para pagar a passagem até o local onde
o grupo Cosmos se instaurou, não conseguisse participar com assiduidade dos encontros,
ainda que muitas pessoas do grupo auxiliassem no transporte, seja com dinheiro para a
passagem, seja com carona.

2.1.1 Centro espírita ou projeto?

As mais velhas contam que subiam a ladeira da rua Cerrito, uma lomba muito
íngreme, para chegar até a casa que alugaram. Volta e meia aparecem na Morada da Paz umas
fotos antigas, daquele tempo, onde todos eram muito jovens, com vinte e poucos anos,
vestidos de branco e pés descalços, sentados no chão de uma casa de madeira, rodeados de
flores e dividindo alimentos. Era uma casa relativamente pequena, localizada em uma zona
mais rural da cidade. Ficaram cerca de dois anos no Menino Deus e quando houve a
necessidade coletiva de um “contato maior com a natureza” decidiram mudar-se para o bairro
Vila Nova, onde ficaram mais dois anos. É com muita saudade do vivido que as mais velhas
narram as experiências que tiveram no grupo Cosmos, suas descobertas e experiências com a
mediunidade e a espiritualidade, e a construção coletiva de relações de amizade tão
duradouras.
A noção de que a espiritualidade constitui toda a vida, e não é apenas vivida nos
momentos em que estão no terreiro ou no centro espírita, foi algo que foi aprendido
cotidianamente e constitui um dos pilares centrais da vida comunitária. Certa vez El. e Ys.
narraram um encontro que fizeram no Parque Marinha do Brasil, um parque de Porto Alegre,
sem nenhuma intenção ritualística, apenas para se encontrarem e partilharem algum alimento.
Fato é que aquele encontro derivou uma série de conversas que envolviam a espiritualidade.
Eis que o tempo rapidamente fechou e tiveram que sair do local, pois uma fortíssima
tempestade iniciaria. A reflexão que fizeram a partir disso é de que haveriam de tomar mais
cuidado com o que fosse dito e em quais contextos dizer. Concluíram que era preciso ter
cuidado com os encontros que realizavam, visto que interferiam no mundo. E o mundo, por
sua vez, interferia em seus encontros. Mas seguiram ainda mais na reflexão. A interferência,
por si só, não é problemática. A questão é que não sabem a quais propósitos certas
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interferências atuam. E por não saberem, precisavam tomar cuidado. Narrativas como essa são
constantemente tecidas e refletidas.
Conceber a espiritualidade como presente em todo e qualquer momento, incluindo um
ingênuo piquenique em um parque, traz algumas consequências, principalmente no que
consiste a certas orientações recebidas das entidades. As entidades, cujas histórias e origens
são as mais diversas, constituem diferentes seres que habitam o cosmos. Trata-se de um termo
genérico que abarca orixás, devas, mestres ascensionados e mestres ascensionais, caboclos,
pretos velhos, elementares, alguns eguns, espíritos de mortos, extraterrestres e tantos outros
seres que povoam o cosmos, como me foi ensinado. Na verdade, essas categorias de definição
das entidades são menos substancialmente demarcadas do que parece, e há intensos processos
de rasuras e fluxos de continuidade entre elas. Pretendo desenvolver sobre essas concepções
mais adiante, mas aqui é importante destacar que entidades são sobretudo seres que se
manifestam via incorporação, intuição, visualização, escuta ou sonho, que auxiliam no
processo de construção do que é a Morada da Paz e do que foi, também, o grupo Cosmos.
Muitas das entidades que se manifestaram no início do grupo Cosmos não mais se
manifestam. Outras, que há anos não se manifestavam, tornaram-se novamente presentes.
Outras, ainda, vieram apenas uma vez, trouxeram informações importantes, e informaram que
não mais voltariam, a menos que certos comportamentos e ações mudassem entre os
integrantes da comunidade. Cada entidade, portanto, tem seus ciclos de comunicação que se
relacionam com dias específicos, condições climáticas, necessidades de um determinado
tempo ou qualquer outra questão. Baba Afra, por exemplo, um dos principais guardiões e
Mestres que atuam na comunidade é caracterizado por ser uma entidade muito elevada e que
só se manifesta em tempos nublados. Foi-me explicado por Ym. que isso ocorria devido à
“densidade da terra”. O tempo nublado, de alguma forma, funcionava como uma capa
protetora que permitia a comunicação de humanos e não-humanos. Por isso, algumas vezes,
quando o tempo estava por muitos dias nublados, mesmo sem a incorporação de Baba Afra,
ouvi algumas vezes Ym. e Ys. comentarem que “Baba Afra estava na Terra”. O tempo
nublado acaba por ser ele próprio uma manifestação da entidade - relações essas fundamentais
para o que a comunidade volta e meia chama de eco-espiritualidade.
Uma das entidades fundamentais para todo o percurso e configuração do grupo
Cosmos e que, até onde sei, pouco ou nada se manifesta na Morada da Paz, foi Djey. Djey me
foi apresentado como um cavaleiro guardião que habita a constelação de Orion, que seria,
portanto, um extraterrestre. Sua manifestação no grupo Cosmos acontecia apenas uma vez ao
ano, sempre no mesmo dia, e trazia uma série de orientações que deveriam ser seguidas pelas
pessoas do grupo. Suas orientações funcionavam em etapas: cada vez que os sujeitos
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conseguiam atingir certas etapas, novas eram apresentadas. Aliás, sinto que até hoje a Morada
funciona dessa forma, e o objetivo é, sempre, “a busca por sermos pessoas melhores”, como
me disse certa vez Ym.. Foi Djey quem orientou a necessidade do grupo estudar a cultura dos
povos tradicionais, indianos, indígenas, africanos, entre outros, estudos que ocorriam sempre
no dia 13 de cada mês, dedicado à “celebração dos povos”. A partir disso, inúmeros
conhecimentos derivados das culturas orientais foram estudados e vivenciados pela
comunidade.
Uma de suas orientações foi a suspensão do consumo de carne, da bebida alcoólica e
do cigarro. Foi quando estávamos sentadas, pós-almoço de um domingo em um retiro que
realizamos na comunidade, que Ys. e Ak. contaram um pouco de como certas práticas
adentraram o cotidiano de cada pessoa. Disseram que não foi nada fácil para boa parte dos
membros do grupo abrir mão de certos hábitos, visto que muitos – se não todos – estavam
acostumados com o famoso churrasco no domingo, regado à cerveja. Sem contar que boa
parte também fumava. Parar o consumo de carne, álcool e tabaco foi processual para todos os
membros do então grupo. Orientaram-me da mesma forma, quando entrei na comunidade.
Entendem que nem todos conseguem realizar essas rupturas rapidamente e que cada pessoa
tem seu tempo específico para as transformações em seus hábitos. Como dizem as Yas, é
processual, mas isso não implica que a diminuição do consumo dessas substâncias seja
suficiente. É necessário interrompê-lo.
Entre risos, contudo, lembram os galetos que realizavam no bairro Menino Deus para
angariar fundos para seus projetos. Lembram que quando receberam a orientação para parar
de comer carne, já alocados na Cerrito, não havia muitos restaurantes vegetarianos na cidade.
Aliás, disseram que os vegetarianos eram vistos com “estranheza”. Nem mesmo elas sabiam
muito bem como ser vegetarianas. Eram estudantes, grande parte em busca de emprego ou em
empregos precários, e não tinham dinheiro para quase nada. Por isso, juntavam-se na casa que
alugaram na Cerrito para cozinhar, a partir da contribuição espontânea de cada membro, pois
sairia mais barato. Como não sabiam muito bem ter uma alimentação vegetariana variada,
viviam de arroz e brócolis. Ys. e Ak. contaram isso dando gargalhadas: “todo dia era dia de
arroz e brócolis”. O motivo para a interrupção do ingestão de carne foi trazido por Djey, que
disse a elas que tal consumo implica ingerir a dor e o sofrimento dos animais abatidos,
sentimentos condensados na carne consumida.
A mesma interrupção aconteceu em relação ao uso da bebida alcoólica e do cigarro,
que eram substâncias recorrentes no cotiano de muitas pessoas da irmandade. Não foi fácil
para ninguém, contam-nos, porque interferia diretamente nos hábitos e prazeres
desenvolvidos por cada um. O cigarro e o álcool, como nos é dito até hoje e como foi dito por
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Djey no início do grupo Cosmos, tem implicações no nosso corpo búdico, nos chakras
constituintes – trata-se de um dos corpos que constitui a noção de pessoa na Morada e do qual
tratarei mais adiante. Mais recentemente, quando eu já participava da corrente espiritual,
também chamada Irmandade, foi orientado também o não consumo de cebola e de alho com
essa mesma finalidade. Orientação semelhante encontramos nas práticas indianas de
alimentação ayurveda, pois, como dizem com frequência na comunidade, “a espiritualidade é
uma só”. O que as mais velhas nos ensinam é que estes elementos queimam os chakras,
dificultando, portanto, a comunicação mediúnica ou intensificando-a descontroladamente.
Nesse sentido, lembram de uma antiga médium que trabalhava no Cosmos que não podia
beber nada de álcool, pois logo dava passagem para alguma entidade. O problema, claro, não
é dar passagem, mas o contexto onde isso ocorre e qual entidade responderia.
Neste sentido, o álcool e o tabaco não são utilizados no cotidiano dos integrantes da
comunidade, mas são utilizados em momentos rituais específicos. O tabaco, com maior
frequência, utilizado principalmente pelas pretas velhas e pretos velhos. O álcool é utilizado
moderadamente pelos exus e giras em situações muito específicas – nada comparado às festas
de exu que encontramos majoritariamente nos terreiros. Isso porque entende-se que são
importantes portais de acesso, de comunicação e de cura – tais como o uso do tabaco para
curar enfermidades, como as práticas oriundas do xamanismo mbyá-guarani, ou o uso do
álcool para limpar certos ambientes. Mãe Preta, por exemplo, é reconhecida por seu cachimbo
e seus sopros curativos. Mas não apenas ela. Ys. também faz uso do tabaco para determinadas
situações de cura. E o uso desse elemento, que é um elemento de Mãe Preta, faz-nos perceber
que há uma imbricada relação entre Mãe Preta e Ys..
Da mesma forma que o álcool e o tabaco são apenas utilizados ritualisticamente, o
mesmo foi falado por Mãe Preta sobre a ayahuasca e a maconha. O assunto sobre o chá surgiu
depois de um Muzunguê, ritual de acolhimento e atendimento espiritual, quando uma
consulente grávida disse à Mãe Preta que frequentava algumas sessões de ayahuasca. Em um
momento em que estávamos muitos da Irmandade, Mãe Preta comentou sobre os efeitos do
chá no corpo das pessoas. Disse-nos que há grupos que fazem bom uso do chá, um uso
consciente, mas há outros que utilizam de forma desmedida e descompromissada. Aí que
reside, para ela, o perigo, pois a substância quando mal utilizada pode permitir a entrada de
seres e energias densas ou o descontrole do sujeito que toma.
Sobre a maconha, contudo, sua questão foi mais fundo. Alguns dos irmãos, antes de
entrarem na Morada da Paz, tinham o hábito de fumar maconha, com muita frequência. A fala
de Mãe Preta foi direcionada a esses irmãos, mas também a toda Irmandade, dizendo que ela
bem sabia que a planta, em si, é sagrada e com poderes de cura, assim como o chá. Porém,
70

questionou como a substância tem sido utilizada, de forma recreativa. Indagava como poderia
ser uma coisa boa de se colocar para o corpo, visto que carrega consigo muitas mortes de
jovens e crianças, muito sofrimento das mães, usos de armas, pobreza e miséria, entre tantos
outros aspectos que envolvem o tráfico de drogas. Da mesma forma que quando consumimos
carne colocamos para dentro do nosso corpo a dor e o sofrimento do animal abatido, quando
consumimos maconha colocamos para dentro do nosso corpo essa série de relações que a
constitui. As coisas, portanto, são estabelecidas por relações que, por sua vez, atuam na
construção dos corpos dos sujeitos.
Contudo, junto com a orientação de Djey para a interrupção do consumo de carne, de
álcool e do tabaco, ainda no grupo Cosmos, vieram outras. Trouxe também conhecimentos
oriundos da matriz budista, tais como o uso do gongo – que é utilizado diariamente em
horários e em um percurso específico ao longo do território da Morada da Paz – e a
importância da disciplina. Havia uma série de práticas e experimentações orientadas por essa
entidade. Por vezes ficavam dias no interior da casa, todos juntos, e só eram orientados a
saírem em um determinado horário. Eram inúmeros os desafios que eram postos para o grupo
e que foram intensificados com a passagem do tempo.
Contam que ele estipulava minutos para limparem a cozinha, organizarem o banheiro e
iniciarem os trabalhos espirituais. O tempo era rigorosamente cronometrado. Isso vai ao
encontro de uma situação que aconteceu comigo e Ik., quando íamos entrar no Templo, no
início da minha participação na Irmandade. Eu tirei os meus calçados e deixei-os levemente
tortos ao lado da porta da entrada, por onde adentram os integrantes da Irmandade. Ela
chamou minha atenção para deixá-los retos e alinhados. “Isso faz parte da espiritualidade”, e
completou, “é algo que aprendemos com o tempo”. A disciplina era uma característica muito
marcante no cotidiano do grupo Cosmos, assim como continua sendo no cotidiano da Morada.
Os ritos diários têm horários específicos para acontecer, como, por exemplo, o toque do
gongo. O mesmo com os ritos semanais e mensais. Além disso, há uma profunda preocupação
com a organização e limpeza, visto que são elementos constituintes da espiritualidade.
Limpar e harmonizar são termos que servem para o cuidado com os corpos - uma porção de
fluidos utilizados cotidianamente e banhos realizados quando assim forem orientados -, mas
também para os ambientes em que se vive.
Lembro-me de uma situação que vivenciamos durante um ipadê. Estávamos em roda,
sentados ao ar livre na área central da comunidade. Como de praxe, estávamos rodeados de
crianças, que se movimentavam livremente pelo espaço. As crianças, que variam entre 1 a 5
anos, corriam pelo espaço, enquanto conversávamos assuntos pragmáticos do funcionamento
cotidiano. Eis que, quando percebemos, elas estavam atrás da Casa de Ferramentas, onde
71

guardamos todos os materiais utilizados para a lida com a terra. Atrás dessa casa havia uma
porção de entulhos, tais como garrafas de vidro, caixas inutilizadas, ferros enferrujados.
Espaço, portanto, nada adequado para crianças pequenas. Preocupados, alguns irmãos foram
ao local retirar as crianças e Ys. fez uma importante reflexão. Disse-nos que as crianças são
profundamente sensitivas e que elas perceberam que há ali um campo denso, em desarmonia,
capaz de envolvê-las e provocar algum acidente. O que as crianças nos ensinaram, naquele
momento, a partir da fala da Ys., é que precisávamos atuar naquele espaço, limpá-lo e
harmonizá-lo, para evitar qualquer situação desagradável. A disciplina e a manutenção da
limpeza e harmonia, ensinamentos trazidos por Djey, até hoje ecoam no cotidiano da
comunidade.
Voltemos um pouco ao passado. A casa que alugaram na rua Cerrito, no bairro Vila
Nova, foi um dos lugares mais intensos da história do Cosmos, onde começaram a aprofundar
os níveis de solidariedade entre as pessoas do grupo. Perceberam que mesmo tendo se
afastado do centro da cidade, muitos consulentes que frequentavam o Cosmos para os
atendimentos acompanharam o deslocamento do grupo. Também perceberam que apesar de
tantas dificuldades dos médiuns para chegar até o local, as relações de solidariedade não
acabaram, ao contrário, intensificaram. Ym., na época, morava na Restinga, Ik., Ol., Al. e Yb.
no bairro Partenon, Ys. e El., na zona Norte da cidade, ou seja, todos lugares muito distantes
do bairro Vila Nova, que fica na zona sul da cidade de Porto Alegre.
Com carinho e nostalgia, contam que sempre que alguém precisava de ajuda, seja para
ficar com alguma criança, auxiliar na mudança de casa, acolher outros em sua própria casa,
seja no auxílio financeiro com passagem de ônibus ou outra questão semelhante, todos
estavam muito engajados em prestar esse tipo apoio. Mas junto com esses apoios também
havia incentivos, e um dos principais foi em relação ao estudo como uma ferramenta de
autonomia e libertação. Tanto para a educação formal, escolar e universitária, como também
para os estudos sobre mediunidade que ocorriam no grupo, muitos deles, como já dito,
orientados pelas entidades.
Contudo, as ações do grupo, desde quando existiam na rua Dona Sofia, não eram
apenas focadas nos estudos de mediunidade e nos atendimentos espirituais, pois realizavam
também atividades com crianças e adolescentes da região, entre outras ações. Contam que se
na Dona Sofia desenvolviam mais trabalhos de assistência social, na Cerrito o atendimento
era mais direcionado aos espíritos. Deslocavam-se em missões para abrigos, presídios e asilos
e, além do trabalho realizado nos locais, traziam consigo muitos espíritos – nas suas mais
variadas formas –, a quem direcionavam suas atenções e seus serviços. Por isso, permaneciam
muito tempo enclausurados na casa alugada, desenvolvendo esses trabalhos. Havia também
72

uma percepção coletiva de aproximação com a natureza, sendo que nenhum dos integrantes
possuía experiência com o meio rural, com o cuidado de plantas ou de animais. Essa
preocupação passou a existir desde a Dona Sofia, como me disse Bg., e se intensificou na
Cerrito. Aos poucos, devido ao vegetarianismo, foram conhecendo outros grupos que
possuíam éticas e ações semelhantes, tais como os restaurantes vegetarianos da cidade.
Em meio a todo esses processos e novidades que iam se apresentando às pessoas, seja
através das entidades, seja através dos estudos orientados, seja através dos reencontros que
desenvolveram ao longo do tempo, chegou um determinado momento em que Mãe Preta
trouxe uma importante provocação para o grupo: afinal, “vocês querem ser centro espírita ou
projeto?”. Confesso que nas inúmeras vezes que ouvi as fundadoras da Morada da Paz
relembrando essa frase de Mãe Preta eu pouco, ou nada, entendi. Por centro espírita eu
entendo um espaço única e exclusivamente de atendimento espiritual. Talvez com trabalhos
de caridade, como é costume ter nas casas espíritas kardecistas ou de umbanda. Aliás, percebi
também, nesse início da minha convivência na Morada da Paz, que o conceito de caridade
nunca foi utilizado e que os trabalhos sociais desenvolvidos pela Morada jamais foram
denominados dessa forma. E ouvi de Ys., certa vez, que a caridade servia mais ao alívio do
ego e da consciência do sujeito que auxilia do que, de fato, a um desejo de transformação do
mundo. Naquele momento em que Mãe Preta fez a pergunta, sabiam apenas que não queriam
ser um centro espírita, sem viver a espiritualidade cotidianamente. “Você vai lá, recebe seu
axé ou seu passe, volta pra casa e segue tudo igual”, comentou Yb. certa vez em tom crítico.
Mas, afinal, o que seria projeto? Assim que Mãe Preta levantou essa questão, cerca de
15 pessoas que se encontravam na rua Cerrito, e que desenvolveram ali uma convivência
bastante aproximada, foram para um sítio. Nesse sítio, não havia água encanada, nem comida,
nem nada. Porém passaram lá 12 horas consecutivas para decidir se queriam ser um centro
espírita ou um projeto. Ys. em um ipadê comentou que “da Dona Sofia para a Cerrito foi o
caminho de saber o que não queríamos. Da Cerrito para a Morada foi a construção do que
queríamos”, pois “a vida cotidiana já nos era insuportável”. Não queriam mais viver a
espiritualidade apenas alguns dias da semana, não queriam mais estar cada um em sua casa,
desejavam morar juntos. Não queriam mais viver na cidade, com suas muitas formas de
poluição, não queriam mais se alimentar de industrializados, de alimentos com agrotóxico ou
transgênicos. “Queríamos educar nossos filhos de outra forma”, continuou sua fala, “com
relações mais verdadeiras, mais amorosas”.
Escolheram ser um projeto, mas confesso que cada vez que escutava essa história eu
não entendia muito bem no que isso consistia. Aos poucos fui aprendendo que projeto carrega
muitos sentidos. Pode ser um projeto de vida em comum – a construção de uma comunidade
73

como residência –, ou pode ser um espaço que desenvolve projetos sociais variados, e não
apenas destinado ao acolhimento espiritual, tal como outros tantos centros espíritas. A
Morada da Paz é ambos, mas ainda assim não só. Foi quando as Yas me disseram que havia
um projeto de construção da comunidade Morada da Paz acordado entre seres humanos e não-
humanos, para durar dez mil anos, que eu entendi: a Morada da Paz é, antes de tudo, um
projeto de mundo, envolvendo humanos e não-humanos na sua construção. Assim que fizeram
sua escolha, logo veio a orientação de Mãe Preta para que então a construíssem: “vocês
querem ser projeto? Então sejam!”, dizia ela. E isso começava por morarem juntos, em um
local mais próximo à natureza e intensificarem suas vivências sobre a espiritualidade.
Paralelo a esses movimentos de construção coletiva do que pretendem ser, sem dúvida
estava um assunto que percorria diversas esferas da vida pública, política e acadêmica na
passagem do século, no que diz respeito à insistência da natureza nos seus desejos coletivos.
Tratava-se da entrada das questões ecológicas como uma pauta internacional. Na introdução
de sua tese de doutorado, Ys. nos apresenta seus percursos nos meios acadêmicos e na
fundação da Comunidade Morada da Paz, percursos esses que se encontraram e
potencializaram-se mutuamente em 2001 – ano que marca tanto sua iniciação no doutorado,
quanto a moradia no território que seria, então, a comunidade Morada da Paz. Um dos
aspectos mais interessantes na narrativa da autora e fundadora da comunidade parece-me a
relevância dada pelo então grupo Cosmos, grupo anterior a constituição da Morada da Paz,
“aos princípios norteadores da Carta da Terra, a unidade nas ações e o respeito à
diversidade” (DORNELLES, 2008, p. 31).
Ainda hoje, na comunidade, encontramos constantemente referências à Carta da Terra,
importante documento produzido pós-Rio-92/Agenda 21 e que foi amplamente divulgado em
2000 por uma entidade internacional independente, chamada Comissão da Carta da Terra. O
grupo Cosmos e sua escolha por ser projeto, portanto, reencontrava-se com modos de vida
não-ocidentais, orientações trazidas pelas entidades para o estudo no dia dedicado a
“celebração dos povos”, da mesma forma que reencontrava fluxos globais, tais como
preocupações ecológicas e luta por Justiça Ambiental.
Ao retomar o início da formação do grupo Cosmos em 1998, que atendeu a um
chamado de luta pela paz e da necessidade de um crescimento de 3 a 5% da “humanidade
vibrar em paz”, como havia me dito El., encontramos, por exemplo, o protocolo de Kyoto,
assinado por grandes potências mundiais em 1997, com o compromisso de diminuírem em
5% a emissão de gases causadores do efeito estufa. A pauta da Justiça Ambiental 34, ganhava
34Com o desenvolvimento tecnológico e industrial dos países ditos “desenvolvidos”, muitos rearranjos foram
realizados com o intuito de inserir indústrias poluentes (com grandes prejuízos ao meio ambiente e à saúde e
bem-estar da população) nos países “em desenvolvimento” ou “de terceiro mundo”. Como apontam Acselrad,
Mello e Bezerra (2009, p. 8-9): “Do mesmo modo, é nas áreas de maior privação socioeconômica e/ou
74

maior notoriedade nos Estados Unidos, mas não apenas, sendo a Carta da Terra um
documento em profundo diálogo com esses movimentos. A Rede de Justiça Ambiental
Brasileira, por exemplo, foi criada em 2001, mesmo ano em que os integrantes do grupo
Cosmos davam seus primeiros passos em direção à construção do que seria a Comunidade
Morada da Paz.
Poderíamos sobrecodificar a narrativa desenvolvida pelas mais velhas a partir do dito
‘contexto mais amplo’, onde os grandes temas globais, como a crise ecológica, ‘explicariam’
a criação da Morada da Paz como uma comunidade sustentável atuante na educação
ambiental. Mas, numa perspectiva reversa, é o tal ‘contexto mais amplo’ – eclodindo uma
porção de grupos preocupados com os efeitos ecológicos globais – que seria consequência de
um grande “chamado cósmico”. Foi nesse sentido que El. narrou o acontecido. Na época, em
1998, foi informado pelas entidades que ocorreria um chamado global para a luta pela paz.
Segundo ela, foi um chamado cósmico que foi atendido por diferentes grupos “com
roupagens diferentes”: tanto por grupos que desenvolviam, cada um a seu modo, a
espiritualidade, quanto por coletivos que não tinham a espiritualidade como elemento central
e aglutinador, ainda que sejam percebidos, pela Morada da Paz, como partes desse chamado
cósmico.
Foi o reencontro entre os integrantes do grupo Cosmos, e destes com as entidades
orientadoras dos trabalhos, com os diversos fluxos globais das pautas ecológicas ou,
poderíamos dizer, com a “intrusão de Gaia” (STENGERS, 2015a) no pensamento e nas
práticas políticas, que impulsionou a escolha de ser projeto e possibilitou a construção do que
hoje é a Comunidade Morada da Paz. Nesse meio tempo, muitos dos integrantes que
compunham a comunidade em seu início saíram, restando em grande parte, como apresentado
aqui, mulheres negras. Como elas mesmas colocam: “somos as que ficaram”, questão que
pretendo desenvolver no próximo capítulo.

habitadas por grupos sociais e étnicos sem acesso às esferas decisórias do Estado e do mercado que se
concentram a falta de investimento em infraestrutura de saneamento, a ausência de políticas de controle dos
depósitos de lixo tóxico, a moradia de risco, a desertificação, entre outros fatores, concorrendo para suas más
condições ambientais de vida e trabalho. Para designar esses fenômenos de imposição desproporcional dos
riscos ambientais às populações menos dotadas de recursos financeiros, políticos e informacionais, tem sido
consagrado o termo injustiça ambiental. Como contraponto, cunhou-se a noção de justiça ambiental para
denominar um quadro de vida futuro no qual essa dimensão ambiental da injustiça social venha a ser superada.
Essa noção tem sido utilizada, sobretudo, para constituir uma nova perspectiva a integrar as lutas ambientais e
sociais.”
75

2.2 Reconhecer: A chegada no território

Figura 3: Velha Centenária

Assim que Mãe Preta deu a orientação de que eles procurassem um lugar na zona rural
para fazer morada, todos iniciaram a busca, desde o ano 2000. Sem saber qual seria o lugar
predestinado a eles, questionaram a Yaba ancestral sobre como descobririam esse lugar. Mãe
Preta disse, então, que “duas velhas centenárias mostrariam o caminho”. É entre muitas
gargalhadas que contam que toda vez que uma senhora idosa se aproximava, ficavam
apreensivas pensando que seria ela, então, quem daria alguma pista sobre qual seria o lugar
em que se estabeleceriam. Enquanto as duas velhas centenárias não apareciam, buscavam
também pelos jornais algum terreno que estivesse à venda na região metropolitana de Porto
Alegre. Muitos dos terrenos anunciados não eram possíveis de serem comprados com os
salários que ganhavam. Para além da busca que empreendiam, havia também informações
sobre o local que chegavam aos integrantes do grupo Cosmos via mediunidade.
Além da informação trazida por Mãe Preta (incorporada em Ys. ou em outra antiga
médium do grupo que também dava passagem à entidade), de que duas velhas centenárias
mostrariam o caminho, um antigo médium do grupo Cosmos canalizou por desenho como era
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a entrada do território e desenhou em um papel. Lembro que a canalização, assim como a


incorporação e a intuição são formas de manifestação da mediunidade. Enquanto isso, todos
os integrantes do grupo Cosmos ainda procuravam o local. Até que Ys., viajando de uma
cidade do interior do Estado até Porto Alegre – percurso que fazia com muita frequência, pois
nessa época ela era professora em uma faculdade do interior –, intuiu que encontrariam o
terreno que buscavam em uma determinada região da BR-386.
Após a fala de Mãe Preta, o desenho canalizado pelo antigo médium e a intuição de
Ys., iniciaram a busca naquela região específica, que fica entre os municípios de Triunfo e de
Montenegro. Até que, então, encontraram um anúncio condizente com o valor que poderiam
pagar e foram até o local averiguar e conversar com o proprietário. Das quinze pessoas que
constituíam o grupo Cosmos, doze afirmaram o desejo de consolidação do coletivo enquanto
projeto. Porém, apenas algumas pessoas estavam presentes nesse primeiro contato, pois nem
todas podiam se deslocar. Lembro que apenas Ys. e Ak. aparecem nos registros fotográficos,
carinhosamente guardados pela comunidade. Dizem que a entrada do território foi tal como
descrita pelo tal médium, tanto a porteira como a distribuição de determinadas árvores. O
terreno era vendido por um senhor que utilizava o território para plantio de eucalipto e, em
termos de estrutura, havia somente uma pequena casa de madeira, bastante mal cuidada, com
um quarto.
Mas o que chamou a atenção daqueles que ali estavam, foram duas enormes figueiras,
centenárias, que foram mantidas pelo antigo dono. Descobriram, mais tarde, que havia não
apenas aquelas duas, mas outras espalhadas pelo território. Contam que foi no reencontro com
essas figueiras que entenderam a mensagem trazida por Mãe Preta. As velhas centenárias não
eram humanas, tal como esperavam encontrar, eram árvores. Quando as mais velhas narram
essa história, destacam sempre a mudança de perspectiva que Mãe Preta provocou nelas.
Passaram a reconhecer as árvores como seres vivos, ancestrais, que trazem informações e
histórias. Assim que reencontraram o território, que viram por desenho, via canalização, foi o
momento de mobilização para a sua compra, a fim de iniciarem a construção do que viria a
ser Morada da Paz.
A compra de um espaço coletivo foi um passo bem grande dado pelos integrantes do
grupo Cosmos. Quando foi feita a questão de quem moraria no território, algumas pessoas
disseram que não morariam. Ak., por exemplo, que hoje é moradora, foi uma dessas pessoas.
Houve um grande divisor de águas com a compra do território, nesse sentido. Isso porque o
local não é perto e nem de fácil acesso a Porto Alegre – naquele tempo o acesso era muito
mais difícil do que é hoje em dia. E, mais do que isso, o território precisaria ser
continuamente trabalhado, investido, e nem todos estavam dispostos a isso. Além do mais,
77

havia a questão financeira. Para a compra do território houve pessoas do grupo que venderam
seus carros e suas casas, os bens mais caros e permanentes que alguém poderia ter, para
juntarem o dinheiro necessário. Todos deram aquilo que poderiam contribuir para tal.
A questão financeira desde aquela época foi concebida como um assunto “denso”, pois
o dinheiro é um elemento de poder, como Ys. nos disse. Como todo elemento de poder, “pode
ser usado para todos os lados”, o que demanda muita sabedoria para manuseá-lo. Por isso,
Mãe Preta orientava para que isso não fosse motivo de conversa na época do grupo Cosmos,
como me disse Ik., após vivermos uma situação na irmandade bastante espinhosa em relação
aos gastos. Ou seja, ainda hoje, nas nossas reuniões de gastos mensais, o dinheiro ainda
produz um campo denso, como é costume designar, principalmente em um grupo cujos
membros têm vivências e possibilidades financeiras bastante díspares. Naquele momento de
compra coletiva de um território não foi diferente. Como alavancar um projeto coletivo e
espiritual sem cair na armadilha da posse, ou seja, na proporção de maior status e privilégio
àquelas pessoas que mais contribuíram financeiramente? Adotar a perspectiva da posse seria
ir de encontro ao que acreditavam ser a espiritualidade e à solidariedade que experienciavam
enquanto grupo.
Algumas estratégias foram elaboradas na época, que até hoje constituem as
perspectivas desenvolvidas pela comunidade no que chamam Ekonomia do Afeto (que
pretendo desenvolver mais adiante). A primeira delas é apostar que, enquanto coletivo, cada
um fornece aquilo que pode oferecer em termos de dinheiro – isso evita, conforme nos dizem
as mais velhas, cairmos em situações acusatórias que só tendem a dissolver os laços de
solidariedade –; a segunda é abandonar a ideia do dinheiro como única forma de contribuição
e adotar a perspectiva do recurso. Há muitas formas de recursos que não apenas o financeiro:
o tempo é um recurso, a natureza fornece recursos, a espiritualidade também fornece
recursos. Ao ampliar a noção de recurso, o dinheiro enquanto elemento de poder é posto
como mais um elemento e não como o central. São, sem dúvida, tentativas para não resvalar
na centralidade do dinheiro e em tudo o que essa centralidade pode causar – principalmente
em um contexto que, como caracterizou Mãe Preta em uma de suas manifestações, “tem o
dinheiro como Deus”.
Dessa forma, para dar conta das desigualdades econômicas internas, que
evidentemente existiam, adotaram como estratégia a coletivização de qualquer ganho
financeiro. Muitos trabalhavam e todo o dinheiro recebido era coletivizado e decidido em
ipadês quais seriam seus direcionamentos. Seja para estruturas da comunidade, passagens
para deslocamentos, necessidades de compras individuais, seja para qualquer outra demanda.
78

A coletivização, portanto, foi uma estratégia adotada frente aos perigos que o próprio dinheiro
pode causar. Até hoje é mantida essa organização financeira comunitária.
Foi no dia 24 de dezembro de 2001 que se mudaram de vez para o local. Eram em
média umas 10 pessoas, todas morando na única casa que havia no terreno. Nessa época, Ys. e
El. eram recém-mães. Dm. e Ay., os respectivos filhos delas, nasceram no mesmo dia e eram
muito pequenos quando decidiram comprar o território, tinham menos de um ano de idade. A
preferência para os confortos necessários era dada aos bebês. Contam que as condições de
moradia a que se submeteram eram bastante precárias. Contudo, foram ações fundamentais
para a concretização da comunidade. A casa em que moravam precisava de inúmeros reparos,
pois quando era tempo de chuva, boa parte dela alagava. Aos poucos, foram se habituando ao
território e investindo nos cuidados para que ele se tornasse um lugar mais confortável.
Como já dito, o território se situa na BR-386, em uma zona rural entre os municípios
de Triunfo e Montenegro. Encontra-se na Depressão Central do Estado, em uma região
conhecida como Vale do Caí. Participa da região metropolitana de Porto Alegre, na divisa
entre a microrregião São Jerônimo (conhecida como região carbonífera, visto o solo ser rico
em carvão mineral, e cuja base da economia é o Polo Petroquímico), e a microrregião de
Montenegro, cuja economia predominante está nas monoculturas de acácia e eucalipto. Como
destaca Dornelles (2008, p. 31), “adquirimos, na localidade de Vendinha, município de
Triunfo/RS, um espaço de 4,2 hectares com mata nativa, açude, córrego, etc...”. Além dessas
configurações, bastante interessantes, boa parte do território na época era utilizado para
plantação de eucaliptos, fato que gerou um longo processo de recuperação do solo.
De Porto Alegre, o terreno encontra-se a aproximadamente 55 km de distância, trajeto
comumente feito pelas moradoras da comunidade, desde que fizeram do território sua
moradia. Nessa época, Ys. era professora em uma Faculdade do interior do Estado e iniciava
seu doutorado na PUC, também em Serviço Social. Yb. e Ik. trabalhavam para o governo do
Estado, na PROCERGS35 e cursavam respectivamente Pedagogia na PUC e Letras na FAPA.
El. já trabalhava na Secretaria Municipal de Saúde, Ym. trabalhava em uma empresa de
contabilidade, atuando na área administrativa, e Bg., assim que se formou em Economia na
UFRGS, também trabalhava em uma empresa como economista. Ol. continuava em seu
emprego no Hospital de Clínicas, onde trabalhou até se aposentar. Ou seja, todos os
fundadores da Comunidade Morada da Paz, muitos morando no local, mantinham vínculos
empregatícios na cidade de Porto Alegre e em outras localidades, o que possibilitava manter e
investir economicamente na consolidação da comunidade.

35Companhia de Processamento de Dados do Estado do Rio Grande do Sul.


79

Se em final de 2001 eles mudaram para o local, independente das condições de vida
que ali existiam, foi apenas no início de 2002 que a comunidade Morada da Paz foi registrada
como ONG. Foi a forma que encontraram de criar uma pessoa jurídica coletiva para ser o
proprietário da terra. O nome, a construção de seus princípios, a formalização de seu estatuto
e a criação de sua forma jurídica ocorreram nesse meio tempo. O nome foi escolhido por um
antigo morador da comunidade, muito em função de como o grupo Cosmos havia começado,
numa tentativa de atender a um chamado global pela paz. Os princípios, criados desde aquela
época, são os mesmos até hoje e são rigorosamente seguidos. Caso haja a quebra dos
princípios, o integrante é convidado a sair da comunidade, a menos que haja possibilidade de
reconstrução dessas mesmas relações. São eles: determinação, respeito, receptividade,
compreensão, humildade, solidariedade e unidade.
Os meses que sucederam o dia 24 de dezembro de 2001 foram para delinear os
objetivos coletivos e como se organizariam. Esse movimento foi construído a base de muitos
embates de ideias e de perspectivas de vida. Contam as mais velhas que havia membros que
pensavam a aquisição do território como um espaço recreativo de final de semana, para
chamar a família e os amigos, mas isso ia de encontro às intenções espirituais que
mobilizavam. Era preciso, então, focar a energia na construção do que seria o estatuto, que
daria as condições necessárias para pensarem o que desejariam construir naquele espaço e
como se constituiriam enquanto coletivo. Isso é narrado sempre como um processo duro,
permeado de conflitos pessoais, que derivou a saída de algumas pessoas que “não
aguentaram a vida em comunidade”, como disse certa vez uma das Yas.
Em seu processo de fundação, a comunidade se organizou com a seguinte estrutura –
tomo aqui as informações apresentadas por Ys. em sua tese de doutorado cujo tema é a
participação e atuação da assistente social na construção de uma comunidade sustentável: um
Conselho Curador, “para zelar pelos princípios filosóficos da comunidade”; um Conselho
Gestor, “para operacionalizar as demandas administrativas” (DORNELLES, 2008, p. 76); e
sete áreas organizacionais que não foram referenciadas pela autora. A proposta de assim se
organizarem, diz-nos, permitiria fugir à lógica verticalizada da hierarquia funcional, buscando
uma organização que se pensasse mais horizontal. Os objetivos que constam até hoje no
estatuto da Comunidade são: a) promoção e qualificação educacional; b) desenvolvimento e
valorização ambiental; c) produção agroecológica de hortifrutigranjeiros para autoconsumo e
comercialização do excedente; d) promoção da saúde holística; e e) investigação da dinâmica
social. A Morada da Paz ganhava seus primeiros contornos enquanto projeto.
Enganam-se aqueles que pensam que as fundadoras não passaram por intensos
julgamentos de pessoas externas – seja das suas famílias, seja dos companheiros que
80

abandonaram esse projeto coletivo. Foram chamadas de loucas, de produtoras de uma seita,
irresponsáveis e tantos outros adjetivos acusatórios. Mas, apesar disso, a vida também trazia
muitas belezas. Foi durante esse período inicial que muitas crianças nasceram na comunidade,
para além dos primogênitos Ay. e Dm.. Yd., segunda filha de Ys., Sh. e Ns., filhas de Yb. e
Bg., e In., filha de Ym., chegaram no Ayê, termo em iorubá para designar o mundo dos
humanos. “A primeira leva de bacuri”, como costuma dizer Mãe Preta. A chegada de um
maior número de crianças impulsionou a Morada a realizar mais trabalhos com esse público.
Contam as mais velhas que de início o Cinepipoca, a Colônia de Férias e o Brincando
CoMPaz eram atividades que realizavam com as crianças da comunidade e que, com o tempo,
Mãe Preta orientou que compartilhassem com outras pessoas. Foi assim que muitos dos
projetos que hoje constituem a Comunidade nasceram e, com seus desenvolvimentos, levaram
à criação do Ponto de Cultura da Infância Omorodê, surgido em 2013, e da Escola ComKola
Kilombola Epè Layè, surgida em 2016. Apresentarei melhor o Ponto de Cultura e a ComKola
no terceiro capítulo desta tese.

2.2.1 Plano de ocupação

Figura 4: Caminho dos Mestres


81

Assim que delinearam basicamente o que seriam, iniciaram um intenso processo para
entender o lugar onde estavam e elaborar um “plano de ocupação do território”, termo
utilizado quando os fundadores chegaram ao local, que encontrei no Trabalho de Conclusão
de Curso de Gestão Ambiental de uma antiga irmã da comunidade. Bm., em seu trabalho, nos
diz que “a ocupação dos espaços foi executada a partir do Plano de Ocupação, criado para
que o modo de assentamento fosse ordenado e menos nocivo para o meio ambiente”
(GOULART, 2016, p. 20), e segue:

O Plano de Ocupação foi desenvolvido a partir dos princípios do “desenho


permacultural” ou design36, o que torna o território um espaço planejado para
práticas ecológicas e torna os indivíduos envolvidos seres em constante construção
de um novo modo de vida e no aprimoramento das práticas. A preocupação com o
meio ambiente e as formas de assentamento no espaço foram aproximando pessoas e
possibilitando a construção de parcerias com atores sociais que desenvolvem
projetos nessa área.

Permacultura é uma prática criada durante a década de 70 na Austrália, e Mollison a


define como:

um sistema de desenho para a criação de meio ambientes humanos sustentáveis. A


palavra em si mesma é uma contração não só de agricultura permanente, mas
também de cultura permanente, pois as culturas não podem sobreviver por muito
tempo sem uma base agricultural sustentável e uma ética do uso da terra. (…) Em
um certo nível, a permacultura trata com plantas, animais, construções e
infraestruturas (água, energia, comunicações). Contudo, a permacultura não trata
sobre esses elementos em si mesmos, mas sobre as relações que podemos criar entre
eles pela forma em que os localizamos na paisagem. (MOLLISON, 1994, p. 5)

Interessante perceber que o desenho permacultural construído na comunidade não


tinha por questão apenas o manejo da terra e de técnicas de agricultura orgânica, mas envolvia
uma série de outros aspectos, tais como um modo de gerenciamento de finanças, cuidado de
saúde e espiritualidade, educação e cultura, compreendendo todos esses aspectos da vida de
forma integrada. Contam as mais velhas que esse desenho permacultural, que permitiu a
execução do Plano de Ocupação, foi realizado com a ajuda de um casal de amigos, moradores
de outra comunidade rural do interior do estado. Ou seja, é notável que toda a construção e
planejamento territorial contou com a formação e auxílio de uma rede de atores humanos e,
como veremos mais adiante, não-humanos.
Depois daquele pequeno galpão existente quando chegaram ao território, aos poucos
foram construindo outras estruturas. Hoje o território possui cinco casas principais,

36“O design se refere a um planejamento que envolve, além dos aspectos técnicos das ações necessárias, uma
adequação temporal e econômica de sua implementação, além de uma predisposição a adequar-se às condições
ambientais do local onde se aplica respeitando sua dinâmica ecológica e se valendo positivamente dos recursos
locais.” (GOULART, 2016, p. 22, nota de pé de página)
82

localizadas todas relativamente próximas e ao redor de uma grande fogueira, caracterizada


como uma fundamental firmação energética da comunidade, do domínio de Seu Sete e de
Xangô Agodô, por onde toda e qualquer pessoa que adentra o território deve circundar. Além
dessas 5 casas, há outras duas, mais afastadas – o Templo e a Casa Mapuche. O território
conta também com dois pomares, duas hortas, a Horta dos pitocos, que é de domínio das
crianças da Escola ComKola Epè Layê, e a Horta de todos nós, onde plantam hortaliças e
legumes para consumo interno, um açude, um espaço dedicado às galinhas e patos, um espaço
destinado às cabras e quatro trilhas principais – o Caminho dos Mestres, a Trilha da Paz, a
Trilha Xamânica e a Trilha do Sultão das Matas.
A Casa Flor foi construída com madeira, e trata-se do local aonde apenas os
moradores têm acesso. Contam-nos as mais velhas, e Bm. descreve em seu trabalho, que essa
casa começou como uma pequena casa pré-fabricada, onde dormiam todos os moradores e
que, com o tempo, foi crescendo por meio de “puxadinhos”. Hoje é formada por sete quartos,
a sala dos Anciões e a Sala da Ecogestão. Mais adiante foi construída a Casa Verde, feita de
alvenaria, que constitui a casa com maior circulação de pessoas. Nos eventos organizados pela
Morada, a Casa Verde normalmente acolhe as pessoas externas. Seu espaço comporta a
biblioteca, a sala audiovisual, onde nos reunimos para assistir a filmes, tanto nos momentos de
lazer quanto nas atividades audiovisuais realizadas com as crianças e jovens, a lavanderia
coletiva, dois banheiros com chuveiro e o TASA (Templo Alquímico de Saúde Alimentar), que
consiste na cozinha e no refeitório. Próximo à cozinha, que conta com duas grandes pias, há
uma área aberta conhecida como bolicho. Lá, encontra-se outra pia, onde lavamos as louças
maiores em dias de eventos e rituais, e um forno de barro, construído durante uma das
atividades abertas que a Morada realiza com jovens, o chamado Ipadê da Juventude.
Essas foram as duas primeiras casas que surgiram. Ao lado da Casa Flor existia
também a Casa Yurtdésica, criada por bioconstrutor contratado. A Yurt foi construída com
bambu, retirados do próprio território, com o formato de uma cabana e coberta por lona. Na
Morada, era o espaço da Farmacinha Viva, onde uma série de plantas fitoterápicas eram
cultivadas, assim como os berçários de plantas a serem plantadas posteriormente.
Infelizmente, devido a uma forte tempestade relativamente recente, a estrutura havia se
desmanchado. Algumas das plantas continuam no local, outras foram levadas a uma estufa,
construída posteriormente, próximo à horta, através da assistência técnica da EMATER37.
Mais recentemente, encontramos ao lado da Casa Verde, a Casa Geodésica (fruto de
um projeto oriundo do Ponto de Cultura Omorodê), construída por um parceiro bioconstrutor
que desenvolve uma série de trabalhos com bambu. Ml., além de ser alguém muito próximo
37 Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural. Trata-se de uma empresa pública criada em 1966 que
presta serviço à população do campo.
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da Morada, é genro de um dos membros do Conselho Externo 38 da comunidade, do qual


falarei mais adiante. Além disso, Ml. e sua família são moradores do CEBB, o Centro de
Estudos Budistas Bodisatva, situado na cidade de Viamão, na região metropolitana de Porto
Alegre. A Casa Geodésica era utilizada para uma série de atividades, mas principalmente
atividades vinculadas ao Ponto de Cultura Omorodê. Atualmente é o principal espaço da
ComKola.
Há também a Casa Bio, que existe por meio de uma doação recebida durante o Fórum
Social Mundial de 2005, que ocorreu em Porto Alegre. Como parte das atividades do Fórum,
três casas foram criadas por um grupo de permacultores, que incluía tanto integrantes da ONG
Amigos da Terra, quanto do que então se tornou o IPEP – Instituto de Permacultura e Ecovilas
do Pampa. Durante esse mesmo Fórum, a Morada da Paz participou propondo uma mesa de
diálogo sobre sustentabilidade e espiritualidade. Foi essa participação que levou a
comunidade a entrar em contato com as pessoas envolvidas na criação dessas três estruturas, e
a pleitear uma das casas criadas por esse grupo de permacultores. Em 2005, com a doação da
Casa Bio, foi a primeira vez que a Morada da Paz abriu as portas de seu território para a
presença de pessoas externas, durante longos dias. Para a sua construção e finalização, foram
realizados diversos mutirões ao longo dos anos.
A. C., minha amiga pessoal e através de quem eu pude conhecer a Morada da Paz, foi
uma das permacultoras envolvidas no processo de construção dessas casas. As três casas
foram doadas para diferentes comunidades e, conta A. C., que apenas a Casa Bio, situada na
Morada da Paz, encontra-se em funcionamento. No momento da vinda da Casa Bio para a
comunidade, havia um objetivo específico: a construção do Templo onde as ritualísticas
pudessem acontecer. Foi com o intuito de cumprir essa função que a Casa Bio chegou até o
local. Contam que para a sua montagem foi preciso que as pessoas envolvidas na sua doação
estivessem presentes para erguer a estrutura. Por isso, foi a primeira vez na história da
comunidade que pessoas externas dormiram no território. Antes, por orientação das entidades,
as atividades que aconteciam eram pontuais, referentes à educação ambiental, e não envolvia
o pernoite. Foi com a chegada dessa casa que outra dinâmica passou a ser adotada.
A Casa Bio é uma casa feita de barro, conhecimento que chegou até a América Latina
através da forçada diáspora africana, explicou-me Ys.. Ela traz “a força dos povos africanos”,
assim me foi dito. Ela mexeu em muitos aspectos da vida comunitária. A equipe que
compareceu ao território foi bastante variada e contam as mais velhas que havia um rapaz, de
São Paulo e com descendência japonesa, que trouxe um aspecto que as fez refletir sobre quem
eram e algumas implicações da própria Morada. Ele disse a elas que a Morada era um

38 Trata-se de um grupo de pessoas próximas que são também conselheiras sobre ações a serem realizadas.
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quilombo contemporâneo, pois era formada por mulheres negras e homens negros oriundos
do meio urbano, que decidiram morar em uma região rural, e com uma forte dimensão
cultural e espiritual de matriz africana. Foi a primeira vez que alguém caracterizou a
comunidade como um quilombo contemporâneo, e isso trouxe outras tantas consequências
posteriores de recuperação de práticas e conhecimentos africanos.
Se essas são as casas que ocupam o espaço central de circulação, é importante ressaltar
que há também outros espaços. Um deles é a Casa Mapuche, situada próxima à entrada do
território. É o local de dormitório de S. P., agricultor, que não participa das ritualísticas da
Morada da Paz, mas divide o cotidiano com todos e trabalha no local com a terra, auxiliando
nos cultivos e em outros serviços gerais da Morada. Ressalto que S. P. chegou à comunidade
através de um dos membros do Conselho Externo da Morada que, conhecendo seu trabalho de
recuperação de solo e cultivo, e, sabendo de seu desejo em ter um espaço de moradia e
trabalho, convidou-o a conhecer a comunidade. Desde então S. P. mora no local. Além da
Casa Mapuche, há também o atual Templo, cuja estrutura foi construída por mutirão da
comunidade sob a orientação de Ié., amigo e antigo membro da irmandade. A estrutura do
Templo, diferente de todas as outras casas aqui narradas, é construída com compensado de
madeira. Antes do atual Templo ser construído, os atendimentos espirituais, tais como os
Muzunguês, aconteciam na Casa Bio.
Para além das casas, naquela época em que pensavam o Plano de Ocupação, também
pensavam como seriam gerenciados as águas e o lixo. Afinal, ocupar um espaço pautado no
que Ys. chama em sua tese de consciência ecológica implica em questionar sobre todas as
relações que estabeleceriam com o entorno, incluindo suas construções, o manejo das plantas,
relações com a flora e fauna local, tratamento da água e esgoto e manejo dos lixos – sejam
eles orgânicos ou secos. Para o manejo dos lixos, são realizados o processo de compostagem
com os alimentos orgânicos, cujo resultado é utilizado para recuperação do solo e cultivo de
hortaliças, e a separação do lixo seco, que é levado ao local para recolhimento pelos serviços
municipais – exceto os papéis, que são utilizados nos fogões à lenha. Já a água, utilizada para
abastecer as caixas d'água e também para consumo, é derivada de um córrego que percorre a
mata nativa preservada dentro do território, e puxada por uma bomba de pressão elétrica.
Foi em uma oficina de criação de um Jardim Filtrante, ocorrida em 2016 e ministrada
por um permacultor convidado – a partir de um projeto de educação ambiental visando o
manejo das águas realizado pela Morada da Paz – que Ys. ouviu uma conversa minha com
Im., antigo egbomi da comunidade. Conversávamos sobre a criação de fossas ecológicas de
baixo custo, visto que foi necessário para a criação do Jardim Filtrante a construção de
espaços para a caixa de gordura, outro para o misturador de águas – cinzas e negras - e um
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terceiro para uma fossa biodigestora. Im. está concluindo sua formação em Arquitetura e eu o
questionava sobre formas ecológicas de fossa que não fossem as clássicas acimentadas, mas
que garantissem, minimamente, que não haveria contaminação do solo pelos dejetos.
Ys. ouviu nossa conversa e, mobilizada pelos nossos interesses, comentou que isso foi
uma grande preocupação para elas, quando chegaram ao território. Afinal, como reconhecer
os processos ecológicos locais e atuar na diminuição do impacto que a presença humana
produz, principalmente na produção de lixo e no tratamento do esgoto? Contou que, dentro
das condições que elas tinham, foram experimentando algumas formas de cuidado com a
água. A primeira fossa, referente à Casa Flor, foi construída com cimento e, para diminuir o
uso de água, construíram uma cisterna. Criaram uma cisterna para a captura da água da chuva
que é utilizada nos banheiros existentes dentro dela. A segunda tentativa foi referente à fossa
do banheiro do ‘camping’. Trata-se de uma área aberta, com algumas poucas árvores, que é
utilizada para acampamento pelas pessoas que vão ao território para qualquer atividade
organizada na comunidade. Nesse local, a fossa foi construída a partir de dois estágios:
primeiro um filtro, que serve como um meio de tratamento com bactérias, depois a fossa
propriamente dita, também acimentada. Na Casa Verde, no ano de 2016, a tentativa foi propor
uma outra forma de cuidado com a água, mais complexa, a partir dos Jardins Filtrantes. Trata-
se, portanto, de uma série de experimentações.
O curso Jardins Filtrantes foi realizado através do projeto Ojù Ayie, escrito pela
Morada em parceria com a A. C.. Esse projeto visava uma atenção maior ao cuidado com a
água em todo o território. Foram realizados, com ele, vários trabalhos de educação ambiental,
incluindo a criação do Jardim. Para tal, fez-se uma chamada externa a todos que estivessem
interessados em acompanhar o curso por algum módico valor, referente ao ‘camping’ e à
alimentação. O curso ocorreu em dois dias, envolvendo tanto teoria quanto prática. O intuito é
diminuir o impacto no ambiente, atuando diretamente no tratamento das águas cinzas,
utilizadas em banhos e na cozinha, e das águas negras, com dejetos.
A ideia é que as águas da cozinha passem pela caixa de gordura e as águas do banheiro
passem pela fossa biodigestora, caracterizada por utilizar determinadas substâncias que
eliminam micróbios e bactérias dos dejetos expelidos. No final do processo é produzido um
adubo natural líquido que não agride o meio ambiente. Dessa fossa, as águas passam para
outro espaço onde ocorrem suas misturas e, por fim, são levadas a uma espécie de lago onde
encontramos determinadas plantas aquáticas, preferencialmente nativas na região. Na
comunidade, a principal planta que realiza esse processo é a taioba. Essas plantas alimentam-
se dos resquícios de dejetos que encontram nas águas, purificando-as. O Jardim Filtrante foi
um projeto muito recente, comparado ao plano de ocupação de quando haviam chegado ao
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território. Contudo, é fundamental pensá-lo como participante de uma consciência ecológica


que sustenta a lógica comunitária e que está diretamente associado à prática de reconhecer os
processos locais e atuar de forma a produzir menor impacto destrutivo.
Esse reconhecimento não está apartado da relação que estabelecem com as entidades.
Ao contrário, fazem parte de um mesmo processo. Contam que assim que chegaram ao
território não sabiam trabalhar na terra, pois nunca tiveram essa experiência – visto que todos
eram oriundos de espaços urbanos. Foi quando conheceram, pela primeira vez, o Laska,
manifestado em Ys.. Dizem que Laska vinha apenas uma vez ao ano, em um dia específico, e
trazia ensinamentos importantes de como deveriam lidar com o ambiente em que estavam.
Lembram, entre risos, que quando plantaram seu primeiro pomar, que fica ao lado de onde
hoje está situada a Casa Verde, alguns fungos apareceram nas mudas de árvores e, como não
sabiam o que fazer, passavam as tardes do final de semana esfregando seus galhos e troncos
com uma escova de dente para retirar o fungo. Foi Laska quem as ensinou como deveriam
proceder.
O reencontro com Laska se deu de inúmeras formas. Se no início da construção da
Morada da Paz sua presença era restrita a um dia do ano, em 2016 Laska voltou a se
manifestar, trazendo informações valiosas sobre o mundo. Disseram-me que Laska se chama
assim pois em uma de suas reencarnações foi a lasca de uma árvore. Em outra, contudo, foi
um combatente da guerra do Paraguai, habitando as regiões fronteiriças da América Latina – é
sob essa forma que se manifesta. Quando aparece manifestado, pede sempre um mate, uma
canção nativista e fala de forma indelicada, bruta, com um carregado sotaque gaúcho. Não
foram poucas as vezes que sua fala trazia a cadência das milongas platinas, apresentando suas
mensagens em formato de poesia.
Morar no meio rural para pessoas oriundas da cidade não foi nada fácil no início. Não
apenas porque não tinham o hábito de plantar, e precisaram aprender como fazer (assim como
aprender a lidar com seus lixos, a tratar os dejetos que produziam, a construir moradias que
não produzissem tanto impacto no ambiente e saber consertá-las quando necessário), mas
porque também não tinham o hábito de lidar com animais silvestres, com a mata, com as
estrelas, com a lua, com as tempestades, com os elementos vivos do entorno, a chamada
natureza. Havia uma série de medos e desconfortos em relação a isso. Ys. e El. me contavam
esses momentos e suas dificuldades em razão de algumas vontades, que volta e meia ainda
aparecem na Comunidade Morada da Paz. Dizem que sempre surge alguém afirmando que
construirá uma “ecovila” com os amigos, em busca de dicas ou informações com as mais
velhas. “Não sabem o quão difícil é”, disse-me entre risos El..
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Enquanto falavam das dificuldades que enfrentaram no início da construção da


comunidade, Ys. e Bg. narraram uma situação emblemática. Viviam um momento de maior
dificuldade financeira. Estavam recém-chegados no território, com uma pequena casa pré-
fabricada de um quarto onde dormiam todos juntos. Criaram uma porção de dívidas a pagar,
incluindo empréstimos, pois haviam dado apenas um valor de entrada para o pagamento do
território. Além disso, faltavam muitos eletrodomésticos que facilitariam a vida, tais como
máquina de lavar, fogão, entre outros, até mesmo um carro para os deslocamentos. Sem contar
o tempo que dedicavam aos seus empregos e também às crianças recém-nascidas. Além disso,
já haviam iniciado seus trabalhos com educação ambiental com crianças e jovens da região,
sob orientação das entidades.
Envoltos nas dificuldades financeiras que se apresentavam, recebem a visita de um
representante da Coca-Cola. Contaram-me que o representante trouxe uma proposta muito
tentadora. Ao perceber que a comunidade estava criando uma forte relação com as
comunidades do entorno, trouxe como proposta a doação de uma série de bens (fogão,
geladeira, máquina de lavar, etc…) em troca de que divulgasse a marca da Coca-Cola. Essa
proposta gerou uma série de questões internas, amplamente debatidas pelas mais velhas,
pesando suas necessidades imediatas e os riscos de se vincular a uma empresa com a qual não
concordam – a comunidade não consome refrigerante e acredita que seu consumo tem efeitos
perversos nos corpos.
Em meio a esse dilema, consultam Mãe Preta, que alertou para a existência de duas
vias de ação. Não me recordo exatamente dos termos utilizados, mas tratava-se de um
caminho mais imediato, com consequências nem tão boas, visto que a comunidade poderia
tornar-se um meio de disseminação das forças que desejavam combater, e de outro caminho
mais longo, porém verdadeiro, segundo a verdade que a Comunidade havia traçado para si.
Alertou ainda que titubear frente a essa proposta tentadora demonstrava que precisavam ter
mais fé, o grande motor da Morada da Paz. Sem o acordo com a Coca-Cola, os problemas
financeiros continuaram e, também por orientação de Mãe Preta, tentaram diminuir suas
dimensões vendendo parte da madeira de eucaliptos que existiram no território – o que gerou,
também, a recuperação do solo onde hoje existe a Horta de todos nós. Outra parte dos
eucaliptos não foi retirada, também por orientação de Mãe Preta, pois serviria como um muro
de proteção do território. Soube disso durante um intenso vendaval, quando percebi que os
eucaliptos diminuíam consideravelmente o impacto do vento sobre o terreno. Comentei sobre
isso com El. e foi nesse momento que me contou dessa orientação de Mãe Preta.
Dentre os muitos aprendizados, há um deles fundamental nessa relação com o
território em que estavam, orientado por Laska. “Vocês precisam colocar o mato pra dentro
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de vocês”, foi a frase que ele trouxe, naqueles momentos iniciais. Pelo que Ys. me conta, a
orientação foi ainda mais além. Laska, com a sua fala bruta, lembrava que não adiantaria de
nada saírem da cidade para o meio rural sem mudar o modo de pensamento. Por isso dizia que
elas não deveriam levar as suas “firulas” e “penduricalhos” da cidade para o campo. Era
preciso, antes, “colocar o mato para dentro” e não, o que seria a lógica inversa, colocar a
cidade que as constitui para fora. Depois de 10 anos sem se manifestar fisicamente na
Comunidade, Laska retorna em 2016 e, lembro bem, uma de suas primeiras falas, entre
abraços e risadas, foi que as mais velhas não aguentaram e trouxeram ainda algumas de suas
“firulas” – referindo-se aos panos e adornos que constituem o território. Todos nós rimos de
suas colocações. Foi Laska também quem trouxe algumas orientações sobre como colocar o
“mato para dentro”: permanecer por longos períodos no território, realizar trilhas na mata
escura e sem nenhum tipo de iluminação, aprender e permitir-se andar pelo território de pés
descalços, ouvir os animais, entender que no campo o tempo é vivido de outra forma. Esses
foram alguns dos elementos que Ys. trouxe a mim nessa conversa.
Reconhecer, portanto, carrega em si a possibilidade de pôr para dentro de si o que
constitui um determinado ambiente, entendido aqui como um conjunto de relações. Mas,
sobretudo, trata-se de aceitar compor com esse ambiente. Reconhecer os seres que constituem
o território em que estão é, antes de tudo, uma política da relação. E essa política inclui a
transformação ou a desformação, como diz Mãe Preta, de um tipo de mentalidade, e de afetos,
para fazer com que outros possam passar. O reencontro com o território, como já descrito a
cima, levou à necessidade do reconhecimento das figueiras como velhas centenárias, por
exemplo, como seres que informam – visto que elas informaram sobre o local onde a Morada
da Paz acabou se desenvolvendo. Colocar o mato para dentro carrega um tanto desse
processo ocorrido junto às figueiras, na medida em que implica o reconhecimento de que há
relações estabelecidas no local entre seres não-humanos muito antes da chegada deles,
humanos, e de que é preciso pôr para dentro essas relações, para então saber compor com
elas, e não colocá-las sob o juízo da lógica da cidade.
Na comunidade, isso se dá não apenas pelas orientações das entidades, mas também
por uma produção de conhecimentos coletivos sobre o espaço. Recentemente o território foi
expandido, pois se decidiu comprar mais 4,2 hectares das terras vizinhas. Essa nova aquisição
foi chamada Terra D'água, pois conta com uma nascente de água, e é um local onde estão
sendo desenvolvidas práticas de agrofloresta. Na época, alguns dos demoradores, os
participantes da irmandade que não moravam no local, receberam a orientação das entidades
de construir na Terra D'água uma casa para habitar. No início de 2018 ela já estava pronta.
Ou seja, passaram a ser moradores. Porém, enquanto todos esses processos se desenvolviam,
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ainda durante o período de negociação com o antigo proprietário da terra, foram feitas
algumas excursões ao local, e um dos motivos era firmar algumas forças em pontos
energéticos. Há todo um processo investigativo coletivo de reconhecimento das forças que
constituem os espaços a partir do qual elas são firmadas.
As Yas e egbomis saíram juntas para realizar o reconhecimento do território na Terra
D'água. Muitas vezes, contam com o auxílio de Seu Sete manifestado para esse trabalho.
Outras vezes, contam com suas percepções e intuições que compartilham com os demais
médiuns e vão, dessa forma, produzindo uma percepção comum de um campo energético
acessado. El., certa vez, disse-me que com o auxílio de cantos e orações, dentro de um
processo mediúnico, cada um descreve suas sensações e percepções e, caso não fique claro
como reconhecer aquele ponto energético, deixam para firmá-lo em outro momento, pois, às
vezes, o momento pode não ser propício. Quando assim é, voltam ao local e realizam o
mesmo procedimento de compartilhamento de sensações e percepções. Normalmente essa
firmação conta com algum elemento físico posto no local.
O reconhecimento dos espaços é, portanto, um processo coletivo, onde atuam humanos
e não-humanos, que passa por intensas e cuidadosas percepções das forças que atuam no
local, no respeito às águas, à terra e às entidades que nelas habitam. É o oposto, como disse-
me Ys., do processo de colonização, que implica uma imposição. Porém, também oposto da
ideia da não relação, da falta de contato, de uma preservação intocada. Assim que entrei na
irmandade, no afã de descobrir o que significava uma série de objetos dispersos pelo
território, El. me passou um dos maiores ensinamentos que eu poderia ter naquele momento:
sinta. O reconhecimento passa por esse desenvolvimento de sensibilidade.
Lembro, certa vez, que Ns., omadê de nove anos, veio correndo ao meu encontro para
comentar sobre a “chacina” que realizaram na estrada que dá acesso à comunidade. Chacina?,
eu perguntei, surpresa com o peso da palavra. E ela, demonstrando espanto pela minha
indiferença com o ocorrido, explicou-me que a chacina tinha sido cometida pelo poder
municipal que havia matado ou decepado os galhos das árvores ao longo da estrada. Eu, de
fato, não havia percebido. Nem havia sentido a dor que Ns. sentiu, a ponto de denominar o
ocorrido como “chacina”, quando voltava da escola. Em outro momento, eu e ela colhíamos
cidrozinho para fazer chá e pedíamos licença para a planta para poder arrancar suas folhas,
como é ensinado na comunidade a todos que ali chegam. Ensinava-me a retirar as folhas com
cuidado, para não machucar a planta, e dizia-me que era preciso aprender a “ouvir o que a
Terra fala”. Ali eu aprendia o que é reconhecer.
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2.2.2 Reencontros no território

Depois dos primeiros reencontros na formação do grupo Cosmos, que levaram à


chegada ao território onde seria construída a comunidade Morada da Paz, novos reencontros
se sucederam. Um deles foi com S. P., um dos moradores da comunidade, como já apontei,
mas que não participa da vida espiritual ali vivida, visto que é evangélico – ainda que não
frequente nenhuma igreja. S. P. chegou ao local pelo ano de 2010, através de um amigo da
comunidade que também constitui o seu Conselho Externo. Além dele, outras pessoas
também se aproximaram da comunidade. Boa parte desses novos reencontros, aliados com
alguns antigos, formaram a base dos chamados demoradores.
An., na época, cursava Licenciatura em Dança na UFRGS e trabalhava na
brinquedoteca que existe na Faculdade de Educação. Lá conheceu Yb. que, na época, cursava
Pedagogia na PUC e trabalhava no mesmo local. Foi através de Yb. que se aproximou da
comunidade, e iniciou uma série de reencontros com o que chama ser sua ancestralidade.
Neta de uma mãe de santo da cidade de Viamão, An. foi criada por sua avó até uma certa
idade, quando foi morar com um casal de filhos-de-santo de sua avó, que resolveu criá-la
como sua própria filha, também em Viamão. Após a morte de sua avó, o cuidado dos Orixás
que a protegem foi passado para sua madrinha, processo que afastou consideravelmente An.
do Batuque.
An. até hoje carrega consigo, com muita emoção, tudo aquilo que sua avó guardou e
preparou de sua vida espiritual. Lembra com carinho que foram os Orixás quem auxiliaram
sua chegada no Ayê, visto que seu parto teve uma porção de complicações. Contou-me que era
“filha de Bará”, mas que precisou ter “sua cabeça trocada” para poder nascer com segurança.
Passou a ser “filha de Oxum”. Depois da morte de sua avó, foi morar com seus pais adotivos,
encontrando vez ou outra sua mãe de sangue ou, como chamam da comunidade, progenitora.
Auxiliava muito sua mãe adotiva com o cuidado de outras crianças durante a adolescência e,
nesse meio tempo, começou a desenvolver um gosto pelo teatro. Trabalhava como caixa de
supermercado quando decidiu iniciar uma formação em teatro junto com o grupo Ói Nóis
Aqui Traveiz39, e foi através dessa experiência que decidiu tentar o vestibular da UFRGS para
Licenciatura em Dança, um dos cursos de graduação recentemente criados e que estava com
suas primeiras turmas.
No momento que conheceu Yb., ficou bastante surpreendida com seu estilo de vida.
Encontravam-se na Brinquedoteca da Faculdade de Educação da UFRGS, e An. admirava o
fato de Yb. não comer carne, não beber, morar em outro município – mais distante que
39A chamada Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz desenvolve uma Escola de Teatro Popular com cursos
abertos e possibilidade de bolsa para os interessados.
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Viamão – e ainda ter tempo para trazer sua própria comida de casa! Relembrou esses fatos
entre risadas. Foi então que Yb. lhe disse que vivia em uma comunidade. “Comunidade?”,
questionou An., que nunca havia ouvido falar nessa possibilidade. Yb. convidou-a para
conhecer o local e An. prontamente foi, com o objetivo de realizar uma oficina de dança com
as crianças. Desde então passou a ser uma frequentadora assídua, uma das primeiras
demoradoras da comunidade, depois de Ik. – que de início foi moradora e depois passou a ser
demoradora. Demoradoras porque, como dizem as mais velhas, demoram a morar no
território, em contraposição aos moradores que lá residem. Quando An. se aproximou da
comunidade, ainda não existia a Irmandade da Casa da Sétima Ordem ou, então, a Nação
Muzunguê. Isso fez parte de outro processo que descreverei mais adiante.
Sua aproximação ocorreu pelos idos de 2010 e foi um processo gradual. Primeiro
começou com oficinas de dança, mas logo os laços foram se estreitando, inclusive no que se
referia ao cuidado espiritual. Até o momento em que An. recebeu as orientações para
participar dos rituais desenvolvidos na Morada. Foi então que, disse, voltou-se a sua
ancestralidade, recuperando tudo aquilo que sua avó havia aprontado para ela e levando até a
Morada da Paz. Seria necessário que Oxum aceitasse fazer parte daquela casa, sob novas
ritualísticas, visto que a casa não trabalha com sangue animal e, disse-me ela, Oxum aceitou.
Entretanto, foi na Morada que reencontrou Cabocla Jurema, uma das principais entidades que
a acompanha e guia.
Oferecia oficinas de dança não apenas para as crianças da comunidade, mas também
de outra comunidade próxima com quem a Morada da Paz tem um vínculo bem forte,
chamada Vila Pimenta. Trata-se sobretudo de uma comunidade muito carente, à margem de
dois municípios, Triunfo e Montenegro, que não recebe atenção de nenhum dos dois, afetada
constantemente pela falta de água e de saneamento básico. Durante muito tempo a Morada
buscou essa aproximação com pais e crianças da região e muitas delas, ainda hoje, participam
da Colônia de Férias organizada no território. Na época, o deslocamento de um lugar a outro
era realizado ou pelo carro da própria comunidade, que depois de um tempo foi adquirido, ou
por transporte cedido pela prefeitura de Triunfo.
An. conta que sempre trabalhou com crianças, desde sua adolescência, quando ajudava
sua mãe. Depois de se formar em Licenciatura em Dança, deu aulas durante muito tempo no
bairro Restinga, em Porto Alegre, no SASE – Serviço de Apoio Sócio-educativo. Tratava-se
de um serviço realizado em parceria com a Fundação de Assistência Social e Cidadania
(FASC), atendendo crianças e adolescentes entre 6 e 14 anos, no turno inverso ao da escola
regular. Atuava como contratada e sofria com os atrasos de pagamentos devido aos muitos
cortes de verbas realizados pelo governo do Estado durante o ano de 2016. Acabou sendo
92

demitida. Foi então que, por orientação das entidades e junto a outras pessoas da comunidade,
começou a estudar para a prova de mestrado da Faculdade de Educação da UFRGS,
concorrendo às vagas direcionadas para as populações indígenas e quilombolas. De todas as
que tentaram, foi a única que passou. Entrou com o objetivo de desenvolver um trabalho com
a comunidade.
Cada pessoa que participou da comunidade, durante esse tempo, chegou a ela de
formas muito diversas. Foi através de um evento chamado JardinAção, que acontece todos os
anos no Jardim Botânico de Porto Alegre – local que, vale dizer, desde 2016 é ameaçado de
extinção pelo poder público local –, que Tj. chegou até a Morada. Por muitos anos
consecutivos a comunidade esteve presente nesse evento, levando suas brincadeiras e suas
atividades. Trata-se de um projeto de Educação Ambiental desenvolvido pela Fundação
Zoobotânica do Rio Grande do Sul, fundação responsável pelo Jardim Botânico, que
disponibiliza o espaço para que diferentes organizações, entidades e grupos possam apresentar
os trabalhos que vêm desenvolvendo nas áreas da saúde, cultura e meio ambiente. O ingresso
para a entrada é um quilo de alimento, a ser doado para diversos projetos sociais.
O reencontro de Tj. com a Morada foi por volta dos anos de 2012 e 2013, e desde
então iniciou uma profunda aproximação. Sua trajetória com o que é chamado espiritualidade
destoa bastante das trajetórias até então descritas. Iniciou suas buscas espirituais quando saiu
da casa de seus pais, na região metropolitana, e foi morar em Porto Alegre. Formada em
Administração, trabalhou em diversas empresas até se tornar funcionária pública do Estado.
Nesse meio tempo, foi se aproximando de uma série de vivências através de casas espíritas e
espiritualistas, práticas de yoga, retiros budistas, até realizar sua formação em Heiki. Foi pelo
budismo, de alguma forma, mas também por todos os projetos que a comunidade realizava,
que esse reencontro foi possibilitado. Assim que começou a participar das ritualísticas da
comunidade, começou a experienciar os processos de incorporação das entidades, aprender a
lidar com elas, e a colocar seus conhecimentos de Heiki também a serviço nos atendimentos
espirituais. Conta que na época que se aproximou da Morada não havia um número tão grande
de demoradoras, e nem havia um lugar específico onde os pertences delas eram colocados.
Chegava ao território e montava sua barraca para permanecer ali. A relação era bem diferente.
Com a passagem dos anos, muito recentemente, aliás, Tj. tornou-se mãe de Uh., nome
trazido pelas entidades, através de um processo mediúnico de Ys.. Um novo reencontro
ocorreu. Digo isso, pois cada criança que nasce atrelada a Morada da Paz tem um valor muito
especial. Uh., como nos diz Ys., é o “ser da terra”, ou seja, manifesta em si essa força. Cada
criança que nasce é carinhosamente acolhida pela comunidade, assim como suas mães, pois
são percebidas como potências transformadoras. É claro que tudo isso depende dos processos
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educativos que se desenvolverão. Por isso é tão importante para a comunidade o trabalho com
crianças e jovens. Uh., assim como todas as outras crianças, é assim percebido.
Eu conheci Tj. em suas aproximações iniciais com a comunidade, no ano de 2013,
durante o mutirão de bioconstrução da Casa Bio. Foi um mutirão organizado por A. C. junto
com o coletivo de bioconstrução Senda Viva, formado por duas arquitetas que também
passaram a ser minhas amigas, C. e R.. O mutirão tinha por objetivo fazer a primeira camada
de barro para cobrir a Casa Bio, cuja estrutura interna é de fardos de palha. Éramos quase 20
pessoas, saindo de Porto Alegre, para participar da atividade. Todas mulheres, exceto dois
homens, dentre eles Im., que também conhecia pela primeira vez a Comunidade. A atividade
rendeu uma série de reencontros muito singulares, amizades que permanecem até hoje e
também novas pessoas que, a partir de então, começaram a participar com mais assiduidade
das atividades desenvolvidas na comunidade.
Foi o que ocorreu com Bm. e Im., que na época eram namorados. Decidiram participar
do mutirão, pois Im. cursava Arquitetura na UFRGS e tinha bastante interesse pelas técnicas
de bioconstrução. Bm. cursava Gestão Ambiental e interessada nos processos de
Permacultura. Foram três dias de trabalho no território, para preparo do barro e início da
colocação da primeira camada. Logo depois, durante o ano de 2014, houve outro mutirão para
a finalização da Casa Bio. Desde aquele momento, Bm. começou a se aproximar mais da
comunidade. Na época também realizou um curso de formação de doula e, logo em 2014,
propôs junto com a comunidade uma roda materna no local. Na época, Yb. estava grávida de
Mc. e havia outras tantas mulheres grávidas, participantes de uma rede de relação da Morada,
que se aproximaram. Paralelo a isso, Im. também se envolveu com a comunidade,
organizando com as crianças oficinas de Maracatu, que acabaram gerando a criação do
Maracatu de Pijama, com várias apresentações nos eventos da Morada. Afinal, há alguns
anos Im. participava de um grupo de Maracatu de Porto Alegre.
Nesse processo, também com uma aproximação gradual, Bm. e Im. começaram a
participar da comunidade como demoradores. Mais adiante engravidaram, processo que
derivou outro reencontro, com A.M., também nome trazido pelas entidades através de Ys..
Aliás, tanto a gravidez de Bm. quanto de Tj. foram informadas por Mãe Preta muito antes de
qualquer das duas pensarem em engravidar. Mas os reen