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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

LUIZA DIAS FLORES

Ocupar:
composições e resistências kilombolas

Rio de Janeiro
Outubro 2018
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Ocupar:
composições e resistências kilombolas

LUIZA DIAS FLORES

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Museu Nacional, como parte dos requisitos necessários à obtenção
do título de Doutora em Antropologia.

Marcio Goldman, Orientador

José Carlos Gomes dos Anjos, Coorientador

RIO DE JANEIRO

Outubro de 2018
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Ocupar:
composições e resistências kilombolas

Luiza Dias Flores

Tese de doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutora em Antropologia Social.
Banca examinadora:

_______________________________________________________________
Presidente, Dr. Marcio Goldman (PPGAS/MN/UFRJ)

____________________________________________________________
Dr. José Carlos Gomes dos Anjos (PPGS/UFRGS)

_________________________________________________________________
Dra. Ana Claudia Cruz da Silva (PPGA/Departamento de Antropologia)

__________________________________________________
Dra. Cecilia Mello (IPPUR/UFRJ)

__________________________________________________________
Dra. Denise Dornelles - Yashodhan (Comunidade Kilombola Morada da Paz)

__________________________________________________________
Dra. Maria Elvira Benítez (PPGAS/MN/UFRJ)

_________________________________________________________
Dra. Maria da Consolação Lucinda (ONG Nova América) - Suplente

__________________________________________________________
Dra. Olívia Maria Gomes da Cunha (PPGAS/MN/UFRJ) - Suplente

RIO DE JANEIRO
Outubro de 2018
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Aos que sentem as urgências, sonham e criam outras


possibilidades de existência.
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Agradecimentos

Ao fim de um processo aparentemente tão solitário como é a escrita de uma tese, me


vejo povoada de bons encontros. Afinal, o mundo é um lugar perigoso, mas é também vívido
e alegre. Agradeço aos que fazem da minha vida, e deste cisco no olho que foi a escrita da
tese, um instante mais leve e sempre surpreendente.

Agradeço à Irmandade da Nação Muzunguê, àquelas irmãs que permanecem e àquelas


que passaram por ela. Nosso reencontro deixou marcas profundas em mim e me ensinou o
valioso sentido da irmandade. Sou grata por aprender e viver a magia da existência ao lado de
vocês. Nós sabemos… e isso basta. Tenho todas e todos, onde quer que estejam, no melhor
lugar de mim. Agradeço aos pitocos, aos omadês e aos odomodês pelas nossas tantas
conversas, risadas e brincadeiras. Sobretudo por me ensinarem sobre sensibilidade.

Agradeço às Yas e Baba por acolherem a proposta desta tese. Sei que foi desafiador
para vocês, tanto quanto foi para mim. Agradeço a possibilidade da construção dessa aliança.
Dentre todos os ensinamentos ao longo desse processo de convivência, sem dúvida o mais
bonito e valioso está no arrepio e, mesmo que eu tentasse, não poderia descrevê-lo. Que a tese
seja o começo de uma relação neste tempo, já que, sabemos, este tempo é o meio de outro
tempo.

Agradeço a todas as pessoas que passaram e continuam passando pela Morada da Paz
com as quais pude trocar sorrisos, abraços e carinhos. Que haja Morada em cada uma de nós e
que possamos ser sempre semeadoras e semeadores de relações mais cuidadosas.

Agradeço ao meu orientador, Marcio Goldman, e ao meu coorientador, José Carlos dos
Anjos, pelos diálogos, pelas ideias, pelas críticas, pelos acolhimentos de tantas ordens e pelas
leituras atentas. Registro aqui, na falta de uma melhor oportunidade, minha profunda
admiração, desde o início de minha caminhada acadêmica, e a honra de tê-los por perto ao
final dessa trajetória. Se as Ciências Sociais têm sentido na minha vida, é muito por conta dos
escritos, das aulas e das provocações ao pensamento produzidas por vocês, que me animam a
crer que, sim, outra ciência é possível (e urgente).

Agradeço ao Gabriel Banaggia e à Maria Elvira os comentários durante a qualificação;


à Suzane Vieira e Fabiana Maizza, os comentários durante a ANPOCS sobre parte do material
que aqui apresento; à Cecilia Mello o acolhimento no estágio docência. Agradeço à generosa
banca de doutorado a receptividade: Ana Cláudia, Cecília, Consolação, Maria Elvira e
Yashodhan.
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Das ruas de Porto, agradeço àquelas e àqueles que as fazem Alegres. À Krishna, irmã
de tantas vidas em uma só. À Sara, Paulo, Juliana, Alex, Eduardo, Nino, Luis Felipe, Carol,
porque entre nossas diferenças de rotas, há um mundo de carinho. Seguimos, aos trancos e
barrancos, por outras margens mais rebeldes. Agradeço à Priscila, Márcio, Lucas, Joice,
Flávio, Norberto, a presença nos momentos de fragilidade e nos momentos de potência, e a
cumplicidade que aumenta a cada ano. À Vitória, Juliano e Vinícius, a amizade construída no
cotidiano do apilho.

Agradeço à Ana de Carli e Patrícia Pinheiro as profundas e intensas conversas.


Amizades que a vida possibilitou e que a Morada, sem saber, fortaleceu. Tem muito de vocês
aqui. Agradeço à Roberta Dariewicz e à Julia Dutra, que acompanharam esse percurso, à
Milena Cassal e à Elba da Silva, presentes dos Orixás que levo para a vida – e lá se vão quase
10 anos! Agradeço ao Marco Antônio Poglia, com quem as trocas de ideias são sempre
fundamentais – tão bom ter com quem falar a mesma língua; à Izabella Bosisio, à Janaína
Brujes, ao Henrique Lahude, Tobias Gomes; ao GeAfro, tudo o que mobiliza; e a tantas outras
queridas e queridos com quem cruzei os olhares, as palavras e as andanças pelos pagos.

Aos carinhos cariocas, minha família em terras chiadas! Agradeço à Ana Paula Morel
(a quem devo tantas alegrias), à Rosinha (por fazer do mundo um lugar mais florido), à
Georgia Pereira, à Natália Velloso, à Ana Luisa, à Clarice Green, ao Felipe Magaldi, à Lívia
Abdalla (os acolhimentos amigos fundamentais pra vida! Quero vocês sempre perto); à
Viviane Cid e à Caroline Brito (as misturas de sensibilidade e acidez que nos provocam
gargalhadas); à Nina Vicent, à Juliana Athayde, ao Pedro Cazes e às “mafaldas” espalhadas
pelo mundo, presentes do mestrado que levo comigo; ao Paulo Henrique Flores, Alexandre
Mendes, Samuel Jaenish, as boas trocas. Ao Nansi, as boas ideias, e aos colegas do
PPGAS/Museu Nacional, os compartilhamentos – em especial ao Lucas Marques, Luis
Alvarez, Carol Maia, Carolina Castellitti, Cecília Díaz, Cauê Machado, Anderson Pereira,
Aline Nascimento, Fernando Vieira, Marlise Rosa. Sobretudo, agradeço os inumeráveis
carinhos que o Rio me possibilitou.

Agradeço ao PPGAS/Museu Nacional, às funcionárias e aos funcionários, às


professoras e aos professores, com quem tive o prazer de conviver. Defendo essa tese em um
contexto muito diferente do que eu esperava. O incêndio no Museu Nacional deixou marcas
profundas de dor, causadas pelo descaso público com a educação, com as memórias e com as
pesquisas desenvolvidas ao longo de muitos anos. Que possamos, juntas e juntos, nos
reinventar.
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Agradeço à Paquetá os banhos de pôr-do-sol, reenergizando-me a cada lua cheia e


guardando muitos dos meus pensamentos e sentimentos em suas paisagens. Agradeço à
família que de forma tão calorosa me acolheu: Zeka, Pedro, Natália, Vicente, Renato.
Sobretudo, agradeço às bruxinhas paquetaenses, que possibilitaram o último retorno ao Rio
ser pleno de amor, cumplicidade e partilhas. Especialmente a presença, o suporte e a amizade
de Ana Cláudia Bastos, Natasha Troise, Joelma Araújo, Damiana Bregalda, Fernanda Pradal e
Luiza Boechat.

Agradeço à minha família - mãe Cissa, pai Neco, irmãos Carol e Digo, tia Adi, tia Pati
e vó Nilza - o acompanhamento de minhas idas e vindas e o incentivo a navegar sem medo.
Grata por serem meu principal porto seguro em tempos de bravas tormentas e incontáveis
desânimos. À minha mãe, inspiração de força, e ao meu pai, que me ensinou de tantas formas,
e com tantos tropeços nossos, a não aceitar o injusto. Agradeço a vocês principalmente o
apoio incondicional para a finalização desse texto. Espero um dia retribuir tanto ou mais. À
minha sobrinha Luci, fonte inigualável de alegria, que mostra-me desde o momento em que
veio ao mundo o verdadeiro sentido da palavra amor, embalando essa tese com saudades,
sorrisos metálicos e histórias inventadas.

Agradeço ao feminismo, nas suas muitas variações anticapitalistas e anticoloniais, e a


todas aquelas incontáveis e inomináveis que me ensinaram ao longo dos anos, especialmente
nos últimos, com diferentes tons e intensidades, que o feminismo é o contrário da solidão.

Agradeço profundamente a guiança às entidades, com quem eu aprendo tanto sobre os


detalhes e os mistérios da existência. Especialmente ao orixá que conduz meus passos, Xangô.
Agradeço ao Seu Sete e à Mãe Preta os caminhos abertos e os colos reconfortantes,
principalmente os ensinamentos de reconhecer quem sou e de lembrar, em tempos tão
tenebrosos, que a luta é urgente onde quer que estejamos e que “nada justifica a falta de
esperança”.

Agradeço à vida, enquanto possibilidade de transformação e de rebeldia,

“e que seja amor, amor e amor”.


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Há portas que só se abrem pelo lado de dentro. (Mãe Preta)

A verdade é amor e amor é vida livre. (Abdullah Ocalan)


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Resumo

Esta tese pretende descrever como a ideia de ocupar se apresenta enquanto estratégia
elaborada pela comunidade kilombola Morada da Paz, frente a uma guerra cósmica. Ocupar
surge no entrecruzamento de dois usos dados ao termo: o primeiro elaborado pelas religiões
de matriz africana do Rio Grande do Sul, o Batuque; o segundo elaborado pelos diversos
movimentos sociais, em especial as ocupações de secundaristas e universitários que
ocorreram durante 2016. A partir de novas configurações, a Morada da Paz utiliza a ocupação
como uma estratégia de luta e participação naquilo que denominam guerra cósmica – uma
guerra que envolve humanos e não-humanos e que engendra, envolve, mobiliza diferentes
estruturas sociais que pertencem ao que nós denominaríamos de ‘política’. A partir disso,
apresento como a Morada da Paz ocupa diferentes ideias, na exata medida em que é ocupada
por elas, e as transforma em ferramentas de ação no mundo. Os capítulos que constituem essa
tese têm por intuito desenvolver quatro destas ideias, a saber: a borda, o feminino, o kilombo e
a pele de papel. Ao final da tese trago algumas considerações para pensarmos sobre a
ocupação que a Morada da Paz desenvolve sobre o texto etnográfico e algumas de suas
consequências para a Antropologia.
Palavras-chave: Quilombo. Ecologia. Mulheres negras. Resistência. Cosmopolítica.
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Abstract
This thesis intends to describe how the idea of occupying presents itself as a strategy
elaborated by the kilombola community Morada da Paz, facing a cosmic war. Occupy arises
in the intertwining of two given uses to the term: the first one, elaborated by the afro-brazilian
religion of Rio Grande do Sul, the Batuque; the second one, elaborated by many social
movements, especially at Schools and Universities, in occupations that occurred during 2016.
From new configurations, the Morada da Paz uses the occupation as a strategy of fight and
participation in what they denominate cosmic war - a war that involves human and non-
human and engenders, engages, mobilizes different social structures that belong to what we
would call “politics”. From this, I present how Morada da Paz occupies different ideas, in the
exact measure that it is occupied by them, and turns them into action tools in the world. The
chapters that constitute this thesis are intended to develop four of these ideas, namely: the
Border, the Feminine, the Kilombo and the Paper Skin. At the end, I present some
considerations to think about the occupation that Morada da Paz develops on the ethnographic
text and some of its consequences for Anthropology.
Keywords: Quilombo. Ecology. Black women. Resistance. Cosmopolitics.
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Sumário

1. INTRODUÇÃO......................................................................................................14
1.1 A chegança.....................................................................................................................16
1.2 Ocupar............................................................................................................................24
1.3 Os capítulos....................................................................................................................43

2. OCUPAR A BORDA...............................................................................................46
2.1 Reencontrar....................................................................................................................51
2.1.1 Centro espírita ou projeto?.....................................................................................66
2.2 Reconhecer: A chegada no território..............................................................................75
2.2.1 Plano de ocupação.................................................................................................80
2.2.2 Reencontros no território........................................................................................90
2.3 Recuperar.......................................................................................................................97
2.3.1 Universal..............................................................................................................101
2.3.2 Afrobudígena.........................................................................................................112
3.3. Nação Muzunguê....................................................................................................116
2.3.4 Nomes crísticos.....................................................................................................120
2.3.5 Hierarquia circular...............................................................................................123
2.4 Sonhar..........................................................................................................................129

3. OCUPAR O FEMININO......................................................................................134
3.1 Somos as que ficaram...................................................................................................137
3.2 O feminino e o masculino.............................................................................................143
3.3 A bruxa que nos habita.................................................................................................147
3.4 Anunciamento...............................................................................................................154
3.4.1 Tempo de guerra...................................................................................................158
3.5 O poder da criação.......................................................................................................161
3.5.1 A feminilização do mundo....................................................................................168
3.6 A curandeira.................................................................................................................172
3.6.1 Transmigração......................................................................................................181
3.7 A vida............................................................................................................................183

4. OCUPAR O KILOMBO........................................................................................188
4.1 O perigo da representação............................................................................................193
4.1.1 Pescaria com vara................................................................................................201
4.1.2 Alianças................................................................................................................205
4.2 Os Roubos....................................................................................................................215
4.2.1 Ekonomia do Afeto................................................................................................216
4.2.1.1 Instituto CoMPaz..........................................................................................222
4.2.2 Pedagogia do Encantamento................................................................................228
4.2.2.1 Ponto de Cultura Omorodê...........................................................................230
4.2.2.2 Escola ComKola Kilombola Epé L’aiyè.......................................................237
4.2.2.3 O saber e o conhecer....................................................................................241
4.3 A felicidade...................................................................................................................251
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5. OCUPAR A PELE DE PAPEL.............................................................................253


5.1 Os desconfortos da antropóloga...................................................................................254
5.1.1 Um “nós” intercessor............................................................................................257
5.1.2 Contra a amnésia..................................................................................................263
5.2 Os acessos....................................................................................................................272
5.3 Palavra é magia...........................................................................................................277
5.4 Devemos sentipensar....................................................................................................283

REFERÊNCIAS.......................................................................................................287

GLOSSÁRIO............................................................................................................ 298

ANEXOS................................................................................................................... 305
Anexo I - Carta à Morada da Paz.......................................................................................305
Anexo II – Mapas...............................................................................................................307
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Lista de Ilustração

Figura 1: Casa Bio....................................................................................................................46


Figura 2: Fogueira - Terreiro de Chão Batido 2018.................................................................51
Figura 3: Velha Centenária.......................................................................................................75
Figura 4: Caminho dos Mestres...............................................................................................80
Figura 5: Buda e a horta de todos nós......................................................................................98
Figura 6: Okan Ilu 2016.........................................................................................................129
Figura 7: Área Central - Terreiro de Chão Batido 2016.........................................................133
Figura 8: Labirinto dos Sete Caminhos..................................................................................134
Figura 9: Ocupação Mulheres Mirabal 2017.........................................................................154
Figura 10: Terreiro de Chão Batido 2016...............................................................................172
Figura 11: Horta de todos nós................................................................................................187
Figura 12: Cadeira de leitura 2016.........................................................................................188
Figura 13: Kariri-Xocó e Fulni-ô e Yas - Okan Ilu 2017.......................................................205
Figura 14: Apoiwá CoMPaz...................................................................................................217
Figura 15: Vivência Kilombola 2016.....................................................................................228
Figura 16: Colônia de Férias..................................................................................................236
Figura 17: Okan Ilu 2017.......................................................................................................251
Figura 18: Irmandade e Convidados - Okan Ilu 2017............................................................254
Figura 19: Irmandade 2018....................................................................................................286
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1. Introdução1

Meu primeiro encontro com a comunidade Morada da Paz ocorreu em 2013, em um


mutirão de bioconstrução organizado pelo coletivo Senda Viva, parceiro da comunidade.
Nesse mutirão, revestimos com barro os fardos de palha que formavam as paredes da Casa
Bio, uma das construções que participam da área central da Comunidade Morada da Paz.
Formada majoritariamente por mulheres negras e suas filhas e filhos, as integrantes
identificaram-se como uma comunidade espiritual, e, desde o início de nossa estadia, que
durou quatro dias, fomos convidadas a muitos ritos de chegança. Não basta adentrar o
colorido portão que demarca a entrada da comunidade. É preciso saber chegar.
Elas nos recepcionaram ao redor de uma fogueira e explicaram um pouco do
funcionamento da comunidade. Ensinaram-nos que ali era preciso inspirar profundamente e,
acompanhado por gestos com as mãos em direção ao fogo, expirar com intensidade – o
chamado “fazer o ru!”, como nos ensinaram as crianças. Depois nos convidaram a percorrer
uma trilha, chamada trilha da Paz, em silêncio, para saudar todos os seres que habitam as
matas. Em meio à trilha, havia um espaço que nos foi apresentado como o cantinho do Seu
Sete. Seu Sete, também conhecido como Exu-Rei, foi referenciado como o pai da
comunidade. Seguimos a trilha e, mais adiante, encontramos o canto dos pretos-velhos, com
algumas estatuetas e sementes de lágrimas de nossa senhora, postas ao centro. Fiquei sabendo,
posteriormente, que a mãe daqueles que ali residiam é uma preta velha conhecida como Mãe
Preta, a Yaba ancestral. Após cruzar um pequeno córrego, saímos da mata e fomos
convidadas a circundar um olho de Hórus 2 desenhado com tijolos na grama à beira de um
calmo açude. A trilha já estava por acabar. Percorremos o caminho dos mestres – que liga a
área central da fogueira e das casas ao açude - de volta ao ponto inicial, e, no meio do
caminho, encontramos um santuário a céu aberto, com uma pequena estátua de Buda.
Seguimos, cruzamos a entrada do Templo, espaço onde acontece a maior parte dos rituais, e,
enfim, chegamos novamente à fogueira.
1 Ao longo do texto adotarei algumas marcações que aqui desejo frisar. Expressões, frases curtas e longas que
fazem parte do repertório discursivo dos integrantes da Morada da Paz aparecerão em itálico. As frases longas
serão acompanhadas de aspas duplas. Aspas duplas também servirão para grifar frases ou expressões oriundas
de autores com os quais dialogo ao longo do trabalho. Contudo, os conceitos, utilizados como ferramentas
descritivas, não serão marcados, mas estarão acompanhados por breves explanações, seja ao longo do texto,
seja via nota de rodapé. Expressões ou palavras que necessitem, pelo contexto, qualquer tipo de destaque,
estarão em aspas simples. Ressalto também que por solicitação das mais velhas da comunidade os nomes das e
dos integrantes da comunidade foram omitidos e optei por sua abreviação. Disseram-me que seria preferível
não identificar diretamente as pessoas para resguardá-las. As abreviações foram feitas a partir dos nomes
crísticos recebidos pelas entidades da Morada da Paz.
2 Trata-se de um símbolo muito popular que dizem ser oriundo do Egito Antigo e que significa proteção,
restabelecimento da saúde, intuição e visão.
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Esse primeiro contato com a Morada da Paz produziu em mim uma espécie de
encantamento. Mulheres negras, moradoras de uma comunidade espiritual rural, onde todas as
integrantes são filhas de um Exu e de uma Preta-velha. Mulheres negras que definiram suas
práticas espirituais como universalistas, a partir da relação estabelecida entre três matrizes:
budismo tibetano mahayana, práticas afro-brasileiras – incluindo Umbanda, Candomblé e
Batuque – e xamanismo indígena mbyá-guarani. Tal como narravam a si próprias, uma
comunidade espiritual feminina kilombola, altamente preocupada com a consciência
ecológica. Uma comunidade espiritual feminina kilombola sustentável, que desenvolve
projetos sociais com as crianças, adolescentes e adultos da região em que se localiza, sobre
educação ambiental e afro-brasileira.
Situada na BR-386, entre os municípios de Triunfo e Montenegro, a Comunidade
participa da região metropolitana de Porto Alegre e encontra-se na divisa entre duas regiões: a
microrregião São Jerônimo, conhecida como região carbonífera - visto que o solo é rico em
carvão mineral -, cuja base da economia é o Polo Petroquímico; e a microrregião de
Montenegro, cuja economia predominante está nas produções agrícolas, com principal
destaque às monoculturas de acácia e eucalipto. De Porto Alegre, encontra-se a 60 km de
distância, trajeto comumente feito pelas integrantes da comunidade e por seus visitantes,
através de ônibus ou de carro. Afinal, muitas delas trabalham e estudam em Porto Alegre.
A Comunidade foi fundada nesse local em 2002, por um grupo de amigos que desde
1998 constituía o grupo Cosmos, grupo de estudos sobre mediunidade e paranormalidade que
se encontrava periodicamente em Porto Alegre. O deslocamento dessas pessoas do meio
urbano para o meio rural foi resultado de uma orientação recebida das entidades com as quais
trabalhavam. Atualmente, desenvolvem seus atendimentos espirituais, denominados
Muzunguês. Também realizam trabalhos sociais com jovens e crianças, que levou à criação,
em 2013, do Ponto de Cultura Omorodê – Ponto de Cultura da Infância. O Ponto de Cultura
surge como uma das ferramentas de atuação da Comunidade Morada da Paz para trabalhar
com educação ambiental e afro-brasileira. Há também o Instituto CoMPaz, criado em 2015,
outra ferramenta da Comunidade Morada da Paz que tem por intuito garantir a autonomia
financeira daqueles que dela participam. Desde 2016, encontra-se também no processo de
criação e formalização a Escola ComKola Kilombola Epê L’ayiê, escola comunitária de
educação infantil.
Há uma organização básica da comunidade em grupos. Encontramos as Yas e Baba, as
mais velhas da comunidade, que constituem o chamado grupo base, que consiste em cinco
pessoas (quatro mulheres e um homem) responsáveis pelas principais decisões; as Egbomis,
as irmãs mais velhas da comunidade; as Iaôs, as iniciadas mais novas. Há também os
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Odomodês, os jovens, os Omadês, as crianças e os Pitocos, que são as crianças de até 5 anos
de idade. Esses grupos dividiam-se entre moradores e demoradores, com exceção das Yas e
Baba, que são todas moradoras. Os demoradores eram aqueles que demoravam a morar na
comunidade, que passavam parte das semanas no território Morada da Paz, mas residiam em
outra cidade. As mais velhas demoradoras participavam em média há cinco anos, para mais.
No caso de algumas, foram inclusive cofundadoras da Comunidade. Todos esses grupos
compunham a corrente espiritual durante os trabalhos de atendimento desenvolvidos pela
comunidade, que em 2014 foi chamada de Irmandade da Nação Muzunguê. Durante o
desenvolvimento desse trabalho existiam dezessete moradores, dezessete demoradores.
Porém, no início do ano de 2018, essas configurações mudaram. Alguns demoradores
passaram a ser moradores e os demais demoradores desligaram-se da comunidade. Após esse
acontecimento, as entidades orientaram as mais velhas para que não houvesse mais
demoradores.
Se na época em que conheci a Morada não me ocorreu realizar um trabalho acadêmico
no local - pois os fluxos que me levaram ao território foram de outra ordem, vinculado aos
movimentos de permacultura e posterior retorno pelas vivências espirituais -, foi apenas no
final de 2015 que isso se tornou uma possibilidade. Assim sendo, esta tese é resultado da
experiência que tive com a Comunidade Morada da Paz a partir de dezembro de 2015,
incluindo os anos de 2016, 2017 e 2018. Claro que o material que apresento com mais vigor é
pautado nas minhas vivências em 2016 e primeiro semestre de 2017, constituindo em média
um ano e meio de trabalho de campo. Mas incluo aqui o ano de 2017 e 2018, pois as mais
velhas da comunidade acompanharam toda a escrita, e muitas das reflexões que se seguem
resultaram também de suas leituras e comentários posteriores.

1.1 A chegança

Sempre me disseram, quando narravam outras relações que estabeleceram no passado,


que era preciso saber sair da comunidade para que a relação não fosse carregada de maus
sentimentos. E há diversas saídas narradas pelas mais velhas, em que algumas pessoas
souberam sair e outras não. Da mesma forma que é preciso saber sair, e que cada saída será
única e particular, também é preciso saber chegar. Saber chegar ao território quando se está
fora dele, pautado por uma série de ritos de chegança como já descritos, mas também saber
chegar à comunidade quando não se pertence a ela, independente dos motivos que animam os
sujeitos a procurá-la. Assim como cada saída é singular, cada chegada também o é.
Narro aqui um pouco do meu percurso: comecei o doutorado em 2014 e reservei o ano
de 2015 para realizar trabalho de campo no Maranhão. Havia feito um campo exploratório
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ainda no primeiro ano de doutorado para pensar possibilidades de pesquisa. Em 2015, no


início do ano, mudei-me para São Luis. Meu interesse, pautado por aquilo que me motivava
desde o mestrado, estava em pensar o que Goldman chamou de “relação afroindígena”, num
claro exercício de pensar teorias etnográficas que fugissem das clássicas atribuições de
mestiçagem e sincretismo – ferramentas utilizadas para camuflar desigualdades e que
sustentam projetos políticos perversos. Eu desejava trabalhar mais diretamente com
Antropologia da Religião, especialmente as chamadas religiões afro-brasileiras. Soube que no
Maranhão havia um tipo de manifestação religiosa chamada Tambor da Mata, em que os
praticantes incorporavam espíritos de animais. Vi ali a possibilidade de realizar minha
pesquisa.
Com o auxílio de um funcionário do IPHAN, conheci a festa de São Bilibeu, ou
Bilibreu, que acontecia no município de Viana, distante umas quatro horas da capital. São
Bilibeu, um santo de madeira, pintado de preto, dito ser um antigo negro escravizado, cujos
devotos, em sua homenagem, realizavam uma brincadeira de caçada da onça. Fiquei curiosa
com essas relações e resolvi ir até o local. Cheguei a Viana e me dirigi até Taquaritiua - o
povoado onde realizavam a festa -, procurando por seu Pedrinho, conhecido como curador e
chefe de uma casa de cura. Ele era o guardião de um dos santos (depois vim a saber que havia
dois São Bilibeu na comunidade). Lá, fiquei sabendo que a comunidade estava em um
processo de afirmação identitária como índios Gamella. Apresentei-me em uma assembleia,
onde coloquei minhas intenções, e fui calorosamente acolhida. A relação foi se estreitando e
permaneci no local cerca de quatro meses, tendo acordado com a comunidade que eu
realizaria o laudo antropológico que necessitavam. Contudo, por complicações locais, devido
à luta pela terra, discordâncias, conflitos internos da comunidade e uma série de intervenções
de mediadores da causa contrários a minha presença, passei a ser vista com incômodo por
parte dos meus interlocutores. Solicitei uma assembleia para esclarecer o que estava
ocorrendo e foi decidido por voto que eu não permanecesse no local.
Foi o meu primeiro ‘não’ ouvido como antropóloga. Ainda que circunstancial, como o
desenrolar das relações mostraram, causou muito impacto sobre mim. Estava no Maranhão,
sem financiamento de pesquisa para além da bolsa, e depois de praticamente metade do tempo
que eu havia previsto para o trabalho de campo precisava reorientar minhas rotas de pesquisa.
Decidi, em função dos custos, que não eram poucos, e de um sonho-presságio que eu havia
tido antes de tudo acontecer3, realizar meu trabalho de campo no Rio Grande do Sul. O

3 Mais ou menos um mês antes de tudo o que levou a minha saída de Taquaritiua, eu sonhei com um caboclo
muito bravo que me questionava o que eu queria com o povo dele e afirmava contundentemente que ali não
era o meu lugar. Depois desse sonho, uma série de situações começaram a acontecer, levando a minha saída.
Independente das interpretações e julgamentos que se dê a isso, fato é que esse sonho teve efeitos sobre mim.
Um deles foi ter saído do Maranhão e retornado ao Rio Grande do Sul.
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segundo semestre de 2015 foi seguido de buscas e experimentações movidas pelos interesses
de pesquisa – trabalhar com religião de matriz africana, de preferência no meio rural, e pensar
a relação afroindígena.
Percorri muitos rincões através de uma rede de contatos e amizades até encontrar o
quilombo São José, situado na cidade de Piratini/RS. As questões que emergiam dali eram
radicalmente diferentes daquelas que se apresentavam no Maranhão. Uma comunidade negra
no pampa gaúcho. O terreiro que existia era chefiado por um casal recentemente chegado ao
local, que não fazia parte da comunidade quilombola, mas localizava-se na região, saído da
cidade de Pelotas. As religiões que marcavam os pertencimentos mais antigos eram,
sobretudo, a católica e o espiritismo kardecista, questão que muito me intrigou, pois havia
toda uma outra composição feita com o kardecismo e com práticas de benzedura. Paralelo a
isso, e junto com professoras da UFPel e militantes da Pastoral Afro, deu-se início uma série
de encontros com lideranças de quilombos locais de formação política, nesse contexto de
afirmação identitária quilombola.
Permaneci cerca de dois meses na comunidade, pois o trabalho de campo no quilombo
São José tinha algumas dificuldades práticas, visto a configuração espacial ser bastante
extensa, o que demandaria estruturas de deslocamento que não possuo. O vizinho mais
próximo da casa onde eu me hospedei estava há cerca de uma hora de caminhada. As casas
eram por demais distantes e eu dependia do transporte de terceiros que, por sua vez, não
realizavam os deslocamentos com frequência. O tempo do doutorado já estava em seu limite
para novas reconfigurações de pesquisa, mas, após diálogos com o orientador e com as
lideranças do quilombo São José - a quem entreguei toda a sistematização das informações e
histórias que eu havia registrado até então -, decidi apostar em outro local de pesquisa, onde
os deslocamentos fossem mais fáceis. Havia outras alternativas na região, mas também,
através de redes e contatos, a Morada da Paz surgiu como possibilidade e despertou meu
interesse. Pretendia continuar minha participação nas reuniões com lideranças quilombolas de
Piratini, mas os engajamentos na Morada da Paz eram tão intensos que não consegui conciliar.
A ideia de realizar um trabalho de campo na comunidade Morada da Paz ocorreu em
dezembro de 2015. Resolvi procurar as moradoras para averiguar se existiria essa
possibilidade e, por isso, fui a uma das datas sagradas da comunidade, aberta ao público
externo. Tratava-se do Okan Ilu - tambor do coração, ritual que se propõe a saudar e cultuar o
Ayan, o Orixá do tambor. Ao final do evento, aproveitei para conversar com Ys., uma das Yas
fundadoras e líder espiritual da comunidade, sobre meus interesses de pesquisa e meu desejo
de consultá-las sobre essa possibilidade. Marcamos de conversar com mais calma na quinta-
feira seguinte.
19

Nada do que acontece na comunidade é visto como separado do que chamam


espiritualidade. Minha presença ali e meu desejo em realizar uma pesquisa não foram vistos
como algo apartado disso, portanto. Fui na quinta-feira até o local, pronta para conversar
sobre a possibilidade de realizar um trabalho de campo, praticamente com um texto em mãos
do que falar. Mal sabia eu que estava indo, na verdade, para a quinta do Axé, um movimento
de atendimento espiritual realizado para pessoas específicas que recebem orientação das
entidades para tal. Assim que cheguei, fui encaminhada ao Templo, local onde acontece a
maior parte dos trabalhos espirituais, as chamadas das entidades, e duas das moradoras me
receberam em frente ao peji/congá para fazer o chamado das tuas [minhas] entidades, o que
possibilitaria o alinhamento dos chakras. Dali me acompanharam por uma trilha, denominada
trilha xamânica, até um local específico, no meio da mata, onde Ys. me aguardava.
Visto toda essa situação, foi com bastante embaraço que expus meus interesses de
fazer pesquisa no local e foi com bastante cuidado que Ys. me ouviu e me instigou a falar dos
motivos que me levavam até lá. Contei das experiências que tive nos demais espaços, dos
meus interesses de pesquisa e das preocupações que me perpassavam, pois meu tempo de
doutorado estava em vias de acabar. Disse-me, por fim, que precisaria consultar as entidades e
o conselho das Yas e Baba (as mães e o pai, as mais velhas e fundadoras) da comunidade, pois
as decisões são realizadas conjuntamente. Antes de sair me pediu que eu escrevesse uma carta
para a Morada da Paz, explicitando quais seriam minhas intenções de trabalho e como eu as
conheci. Disse-me ainda que elas demorariam a dar a resposta, pois logo entrariam em retiro e
depois sairiam em diligência para a Índia, mas que a resposta logo viria.
Escrevi a carta como me foi solicitada, e nos meses seguintes trabalhei como
ecoeducadora voluntária na Colônia de Férias Curumim-Omadê, uma das ações do Ponto de
Cultura Omorodê realizada no território. Dias depois recebi uma ligação para comparecer à
comunidade. Algumas das Yas me receberam na Casa Bio, casa que ajudei a construir anos
atrás e que, naquele momento, encontrava-se terminada. Li minha carta (ANEXO 1) e
reafirmei tudo o que havia escrito: em resumo, desenvolver uma etnografia que se proponha a
descrever como a comunidade relaciona espiritualidade, ecologia e política - o que Ys. disse
ser o coração da comunidade - com o intuito de confrontar certos saberes hegemônicos
instituídos pelos clássicos conhecimentos acadêmicos. Discorri sobre meus interesses em
pensar as “relações afroindígenas” e seus efeitos, e da importância de pensar a escrita da tese
não sobre a Morada, mas 'com' a Morada. Enfim, nada além do que compartilho com colegas
e professores da Universidade.
Deixaram claro que não tinham interesse em uma tese sobre a comunidade, pois os
próprios moradores já desenvolveram alguns trabalhos acadêmicos: teses, dissertações e
20

trabalhos de conclusão. O que despertou o interesse delas em minha proposta foi basicamente
aquilo que falei de mais pretensioso, ainda que sincero: “confrontar os saberes hegemônicos”.
Viram na minha escrita uma forma de reverberar as ideias da Comunidade para dentro dos
meios acadêmicos, de outro modo. Apontaram, primeiramente, minha ousadia nos desejos de
pesquisa: “Que morra de ousada!”, exclamaram entre risos, ainda que isso não fosse
propriamente uma brincadeira. Depois, disseram-me que, para realizar pesquisa no território,
eu precisaria realmente morrer e renascer de outra forma. “A sua tese já está pronta. Quem
precisa estar pronta é você”, me disseram. “É preciso fazer um mergulho para poder
escrever”, completaram4. Morrer para renascer implica em passar por uma série de ritos e
assumir muitos compromissos. Eu titubeei, questionei o fato de eu aceitar entrar, tendo em
vista a construção de uma tese, para ter certeza que isso estava acordado. Depois de longa
conversa, em que acordamos que nem elas e nem eu sabíamos as consequências possíveis
dessa relação, aceitei os termos que estavam propondo.
Escrevo, portanto, como alguém que iniciou seu trabalho de campo no mesmo
momento em que se iniciou na Nação Muzunguê. Poderiam ter negado a construção desta
pesquisa, mas colocaram a possibilidade desse processo de iniciação. Contudo, não foi apenas
a ousadia que fez com que aceitassem a escrita desta tese. As entidades que me acompanham,
segundo me disse Yb., uma das Yas da comunidade, pediram para trabalhar naquele terreiro.
Mas a ousadia e o pedido das entidades também não foram suficientes. Recentemente Ys. me
disse que não desejavam ninguém pesquisando a comunidade, mas confiaram em Mãe Preta,
que foi quem orientou para que essa pesquisa acontecesse. Foi assim que, um pouco antes do
retiro de minha iniciação, as entidades trouxeram às mais velhas da comunidade o nome pelo
qual eu seria chamada e reconhecida, o nome crístico, como dizem, que manifesta a força ou
o ser de cada sujeito. Nasci e passei a ser reconhecida como Folaiyan, “aquela que caminha
com dignidade”.
Aceitaram o desenvolver desta pesquisa não por uma confiança prévia ou tácita em
mim, afinal, pouco me conheciam. Mas por uma confiança na relação possível entre nós, que
contou com a mediação de um humano, o coorientador desta tese, que tem uma relação de
amizade com a comunidade, e de um não-humano, Mãe Preta. Principalmente, sem dúvida, de
Mãe Preta, que acompanha e guia a comunidade e a vida daqueles que dela participam. De
início, não raras foram as investidas desconfiadas e os testes feitos comigo, principalmente
das mais velhas - que produziram em mim inúmeros desconfortos e muitas reflexões éticas.
Sobre isso, variaram consideravelmente minhas percepções sobre ser pesquisadora, ser iaô, e
4 Durante o ano de 2017, esteve presente na comunidade outra pesquisadora, do Rio de Janeiro, cuja pesquisa
era sobre ecovilas. Soube, após um momento em que ela estava bastante triste, que as mais velhas colocaram a
ela a mesma questão de morte e renascimento, que foi negado por ela, e por isso lhe foi negada a possibilidade
de realizar trabalho de campo no local.
21

ser ambas - muito pelo fato de que passei a sentir, a ver e a perceber, involuntariamente, o
mundo de outra forma. De fato, estava fazendo “trabalho de campo”, ainda que por vezes eu
esquecesse isso… O tempo da produção desta tese foi um constante surfar nessas categorias,
alterando minhas aproximações, distanciamentos e reelaborações desses pertencimentos.
Por tanto vivido na comunidade, muitas vezes a tese não fazia mais sentido. Sentia-me
como Jorge Luis Borges descreveu “o etnógrafo” – depois de conhecer os “segredos” com
aqueles com quem fez seu trabalho de campo, a produção de sua pesquisa não passava de
simples “frivolidade”. Uma vivência, contudo, pautada em culpa, do homem branco cujos
antepassados massacraram índios com os quais ele foi conviver para a sua pesquisa – e talvez
seja sobretudo por isso que o personagem atribuiu à ciência da qual faz parte a tal
“frivolidade”. Carregado de ironia, o personagem de Borges se transforma em um
bibliotecário de Yale. Não pretendeu “virar índio”, como questionou a ele seu orientador, pois
para ele, o que os indígenas “me ensinaram é bom em qualquer lugar e para qualquer
circunstância”. Também não levou a cabo sua pesquisa como etnógrafo.
Esse conto me chegou enquanto eu passava por uma série de dilemas. Em alguns
momentos a tese parecia algo que não seria concluída. Primeiro pelo receio (e culpa) de
assumir o lugar daquela que ‘extrai’ conhecimentos alheios, os “segredos” – como o
conhecimento ocidental majoritário tem se erguido ao longo dos anos. Segundo, pois não
fazia mais sentido frente à grandiosidade do vivido (sentia a mesma “frivolidade” descrita por
Borges em relação à Antropologia), acompanhado de um desejo constante, que surgiu durante
essa trajetória, de viver a Morada sem ser pesquisadora. Não porque os outros da irmandade
lembravam-me desse papel, aliás, pareciam pouco lembrar, mas pelo compromisso da escrita.
A culpa, contudo, produzia uma impossibilidade criativa. Primeiro porque me fazia assumir o
papel do crítico, numa atribuição de que nenhuma ciência serve - um niilismo pueril. E isso
acarretava, por vezes, a negação da Antropologia e do quanto foi ela que me levou à Morada -
o que é, de fato, hipocrisia. A culpa decompõe com a criação.
Outras vezes a tese surgia como compromisso assumido com a comunidade e com
Mãe Preta – para além do compromisso assumido com a Universidade. Toda vez que nos
encontrávamos, ela, incorporada em Ys., perguntava-me como estavam os escrevinhados e
trazia orientações valiosas para a escrita e para a vida. De toda forma, não me deixava
esquecer o que eu fazia ali, e aquilo, vez ou outra, aparecia como fardo. Outras vezes ainda, e
talvez esse seja o melhor dos efeitos em que eu poderia me engajar, a tese surgia como uma
ferramenta, uma chave para abrir “portas que só se abrem pelo lado de dentro”, como diz
Mãe Preta. E que esse dentro fosse, sobretudo, a Antropologia. Nestes momentos, o fardo do
lugar de pesquisadora dava espaço para uma possibilidade de criação investida de desejo, não
22

livre de uma série de cuidados. Eu flutuei por todas essas sensações até a conclusão deste
texto e seria falso se eu o negasse. Mas, sem dúvida, se eu o concluo, é porque desejo fazer da
tese uma chave para abrir portas pelo lado de dentro.
Penso que o meu envolvimento com a Morada da Paz pode ser radicalmente
contraposto à experiência de Flacksman (2014) no terreiro do Gantois, em Salvador. A autora
desenvolveu sua pesquisa em um dos terreiros soteropolitanos mais conhecidos e com fama
de ser um lugar muito fechado aos pesquisadores, diferente de outros terreiros famosos na
cidade. Ao longo de seu processo, o tensionamento sobre ser pesquisadora e uma pretendente
à feitura do santo foi constante. Muitas filhas e filhos da casa supunham que ela se utilizava
da sua pesquisa de doutorado para “furar a fila” das feituras do santo, tal como ela narra ter
acontecido no terreiro com outros antropólogos. Assim que a família de santo soube dos
interesses escusos desses outros pesquisadores - interessados em fazer o santo e utilizando-se
da pesquisa como um meio para tal -, expulsaram-nos do terreiro. Flacksman percebeu, então,
que explicitar que seu desejo era somente fazer a pesquisa, e não se iniciar, foi o que a
permitiu desenvolver seu trabalho na casa com tranquilidade.
No caso vivenciado na Morada da Paz isso ocorreu diferente. A situação a que eu fui
convidada a participar como iniciada, na medida em que convidei a Morada da Paz a
participar de uma tese de doutorado, coloca em questão um ponto interessante. Há um
discurso operante em um plano molar de “nós por nós” e de “nada sobre nós sem nós”, de que
nada será feito sem a participação dos membros da comunidade e que não só seria necessário
eu me tornar um membro, mas também ter meu trabalho continuamente acompanhado pelas
mais velhas. Na Morada da Paz, negam a ausência de participação, numa clara alusão da
importância da representatividade. Mas há, sobretudo, uma molecularidade que perpassa essas
concepções, que está diretamente atrelada à noção de espiritualidade e de guerra cósmica
que pretendo desenvolver mais aprofundadamente na conclusão desse texto.
Os lugares de pertencimento variam nessa relação que é continuamente feita e refeita.
Eu, que comecei a relação com a Morada como demoradora, no início de 2018 passei a ser
uma aliança, alguém que não mais participa da comunidade, mas estabelece com ela uma
relação próxima. Mas se os pertencimentos variam, há algo que surge como condição de
possibilidade para todas essas formas de relações, que chamo - na falta de um termo melhor -
de composição contracolonizadora, em que esta Tese aparece como um dos substratos iniciais.
Composição eu retomo de Deleuze (2002, 2017), porque não poderia dizer ser um pacto,
acordo ou negociação, na medida em que essas percepções partem de uma noção de pessoa
que exclui uma série de componentes não-humanos em interação.
23

Composição porque partes das relações que me constituem encontraram-se com partes
das relações que constituem as pessoas que fazem e criam a Morada da Paz, fazendo com que
as envolvidas no problema que ali emergia – a construção de uma Tese que se “propõe a
confrontar os saberes hegemônicos” a partir das práticas e saberes desenvolvidas na Morada
da Paz – engajassem-se nas suas possibilidades de solução, em diferentes posições, é claro.
Permitindo-me ser, através das forças que me atravessam, vetor para a potencialização da
Morada e dos desejos que levaram as mais velhas e as entidades a aceitarem minha presença
ali, da mesma forma que a Morada foi e é um vetor de potência em mim que, dentre tantos
fluxos do qual sou composta, também um vetor de novas imagens do pensamento a partir da e
para a Antropologia.
Contracolonizadora porque foi sobretudo sobre ‘confrontar os saberes hegemônicos’ o
início desta composição. O conceito de contracolonização eu retomo de Santos (2015), tanto
de seu livro, mas principalmente a partir de duas falas que realizou no Programa de Pós-
graduação em Antropologia do Museu Nacional/UFRJ, onde negou o termo descolonização
dizendo que para ‘des’-colonizar é preciso saber colonizar, para então desfazê-la. Negou tanto
o saber colonizar, como desfazer algo que foi feito e produz suas consequências. Ele cunha,
portanto, o termo contracolonização, se bem entendi, como uma forma de confrontar e
desestabilizar o colonialismo, mesmo quando esse se apresenta em situações não tão
instituídas. Não pretende desfazer o que foi feito, mas confrontá-lo sempre que se apresentar,
mesmo nos momentos onde o colonialismo parece não estar. Por conta desta composição
contracolonizadora, o exercício nesta tese é sobretudo descrever como a Morada da Paz, de
forma experimental, ou seja, de forma pragmática e especulativa, realiza uma “ontologia do
presente”5, uma interrogação profunda sobre a atualidade, e experimentações sobre
possibilidades de emancipação, produzindo com o corpo e com o território o que Foucault
realizou com a historiografia e a filosofia.
O recurso que utilizo para tal é tomar a tradução etnográfica como a possibilidade de
simetrização dos saberes aqui articulados (GOLDMAN, 2008, 2009). Como antropóloga, não
pretendendo falar nem mais nem menos do que minhas irmãs e irmãos, em uma tentativa de
escapar às clássicas e infelizes hierarquizações de saberes. Dessa forma, não pretendo falar
5 Sugiro que a Morada da Paz faz com o corpo e o território algo semelhante ao que Foucault realiza com o
trabalho historiográfico e filosófico, ancorado na arqueologia e genealogia, que denominou de “ontologia do
presente”, que consiste na interrogação sobre a atualidade, identificando nela dispositivos de subjetivação e a
emergência de novos modos de relação do sujeito consigo e com os outros. Desejava não impor uma
perspectiva totalizante e global da constituição de si, mas fomentar práticas de autonomia. E por conta disso,
nos estudos sobre os governos dos outros e governos de si, volta-se à Antiguidade, ao Iluminismo, ao Kant em
uma pesquisa histórica através dos eventos que nos levaram a nos constituir o que somos, a nos perceber como
sujeitos do que fazemos e pensamos. Contrapõe a ontologia do presente às questões da filosofia sobre as
condições em que um conhecimento verdadeiro é possível. Suas questões são: “o que é a atualidade? Qual é o
campo atual das nossas experiências? Qual é o campo atual das experiências possíveis? (FOUCAULT, 2010, p.
21).
24

pela Morada da Paz (problemáticas representatividades), mas com ela, através dela e diante
dela, para, assim, falar ‘como’ Morada, questão que deixo para desenvolver ao final da tese.
Para esta empreitada, elegi uma noção chave elaborada pela Morada da Paz, para
conduzir as reflexões que apresento. Trata-se da ideia de ocupar. Ocupar aparece nesta tese
de duas formas. Primeiro, como um termo a ser descrito. Ou seja, como foi elaborado e como
funciona no cotidiano da comunidade, posto em diálogo com uma série de materiais
etnográficos, filosóficos e políticos. É sobretudo isso que farei nas páginas que se seguem.
Segundo, a partir dessa descrição de como a Morada da Paz operacionaliza essa ideia,
pretendo utilizá-la também na condução dos capítulos que aparecerão ao longo desta tese, que
tratam respectivamente das noções de borda, feminino, kilombo e pele de papel. Convido a
leitora e o leitor à primeira parte deste percurso.

1.2 Ocupar

A primeira vez que ouvi o termo ocupar foi em um ipadê, como denominam as rodas
de conversa, durante a vivência na comunidade de um grupo de militância negra de Porto
Alegre, composto de pessoas de meia idade, com muitos anos de engajamento. No ipadê de
apresentação e recepção, um dos visitantes tentou traçar alguns aspectos que aproximavam e
diferenciavam os objetivos de seu coletivo daqueles da Morada da Paz. Disse que buscou a
vivência na comunidade Morada da Paz pois ambos os grupos desejavam “valorizar o
comunalismo e o saber ancestral”. O que os diferencia, contudo, segundo ele, é que a Morada
da Paz seria um “coletivo espiritual” e eles seriam um “coletivo político”, pois buscam
recuperar o comunalismo vivido pelos “ancestrais quilombolas” e trazer essas “ideias
comunais para dentro da política”.
Foi então que Ys. respondeu a ele: “mas nós somos sujeitos políticos! Não se trata de
política partidária, mas é politica. Temos práticas de permacultura, temos o Instituto
CoMPaz, o Ponto de Cultura Omorodê e estamos construindo a ComKola. Trabalhamos com
a ocupação! Ocupação das mentes, dos espaços, dos diálogos, dos corações”. Sua fala fez
menção a uma expressão trazida por Mãe Preta, a Yaba ancestral da comunidade, sobre a
importância da comunidade se dedicar a ocupar mentes e corações - colocação que surgiu
novamente durante o rito Terreiro de Chão Batido, em junho de 2016, onde ocorreu um ipadê
para conversar e dialogar sobre isso com os participantes visitantes.
Sugiro pensar a noção de ocupar desenvolvida pela Morada e apresentada nesse
diálogo como um ponto nodal da encruzilhada (ANJOS, 2006, 2008) de duas noções de
ocupação, uma oriunda dos movimentos sociais e outra oriunda das casas de Batuque.
Encruzilhada é uma noção do pensamento afrorreligioso e apresenta-se, através do trabalho
25

de Anjos, como uma outra forma de pensar a diferença que não seja pela diluição da mesma,
como instituída pelos modos de atuação do Estado-nação. Tal como a definiu o autor, “a
religiosidade afro-brasileira tem um outro modelo para o encontro das diferenças que é
rizomático: a encruzilhada como ponto de encontro de diferentes caminhos que não se fundem
numa unidade, mas seguem como pluralidades.” (2008, p. 80)
A fala de Ys. conectava-se explicita e diretamente a diferentes situações que não se
confundem, mas na Morada afetam-se mutuamente. Na época em que esse diálogo aconteceu,
as escolas públicas estaduais de muitos municípios do Rio Grande do Sul e do Brasil foram
ocupadas pelos estudantes secundaristas que exigiam do Estado atenção à educação básica. A
tática de ocupar as escolas permitiu aos estudantes construir novas relações de produção de
conhecimento, não mais pautadas pela relação aluno-professor, mas pelas comunidades.
Jovens, incluindo os alunos da rede pública, que se dispunham a realizar atividades e oficinas
com os estudantes e demais públicos interessados, enquanto professores, pais e comunidade
em geral contribuíam com arrecadação de alimentos e demais itens necessários para a
permanência da ocupação. Alunos realizavam assembleias onde as decisões eram tomadas
coletivamente, limpavam e organizavam os espaços, aprendendo na prática e no cotidiano
como fazer uma ocupação.
Essas informações chegaram à Morada de inúmeros modos e despertou seu interesse e
curiosidade. Uma das escolas em que leciona Ik., antiga egbomi (irmã mais velha) da
comunidade, foi ocupada pelos alunos; a UERGS, Universidade em que estuda Al., outra
antiga egbomi, foi ocupada pelos estudantes; os alunos do colégio de ensino fundamental em
que muitas das crianças da Morada estudam cogitaram a possibilidade de ocuparem a escola –
seria a primeira escola rural ocupada no RS, movimento que não aconteceu, mas foi bastante
incentivado pelas mais velhas; Im., também antigo egbomi, foi em algumas escolas realizar
oficinas de Maracatu; eu estive em algumas escolas auxiliando nos funcionamentos cotidianos
e na vigília noturna. Além disso, durante o curso prático de Jardins Filtrantes que ocorreu na
comunidade este era o tema central entre muitos dos inscritos no curso. Ou seja, as ocupações
nas escolas, no MinC, nas Universidades e em outros espaços, foram tema de boa parte dos
assuntos conversados. A luta dos secundaristas pela educação e o desejo de construir uma
escola diferente através das ocupações se conectou aos desejos da Morada da Paz e sua luta
por outro mundo possível.
*
Em termos jurídicos, o conceito de ocupação nasce profundamente atrelado ao
conceito de propriedade individual, característica fundamental do Direito moderno. O direito
a propriedade é um dos institutos basilares da Constituição Federal Brasileira, caracterizado
26

como o direito “de usar, gozar e dispor da coisa, bem como de reavê-la do poder de quem
quer que injustamente a possua ou detenha”6. Compreende-se que as coisas podem ser
apropriadas através de uma relação “jurídica contratual”, que implica relação entre duas
pessoas, por exemplo uma relação de compra e venda, ou por “captura”, onde não há relação
entre pessoas, mas apenas entre o sujeito e o bem. A primeira aquisição é denominada
“derivada”, pois o bem já foi propriedade de outrem, e a segunda é denominada “originária”,
pois o bem não tem ou nunca teve um proprietário.
O direito a propriedade, do ponto de vista do Estado-nação, é considerado como o
mais importante direito real. Nessa lógica, a ocupação só é possível, então, quando não há um
proprietário anterior, caso contrário, é considerada “invasão”, argumento muito utilizado por
latifundiários e empreiteiros contrários às ações dos movimentos de luta pela terra e por
moradia. Há duas implicações fundamentais nessa ideia de ocupação que gostaria de salientar.
Primeiro, só é possível ocupar aquilo que não tem proprietário (seja porque nunca teve, seja
porque foi abandonado). Segundo, assim que foi ocupado, o sujeito que ocupa tem a posse,
podendo derivar disso a propriedade – pelo usucapião. Caso um imóvel privado seja ocupado
e seja alegado ao Estado que não cumpre com sua função social, o imóvel pode ser
desapropriado, tornando-se propriedade do Estado ou passado a outros particulares que se
tornarão proprietários. Ou ainda, quando um imóvel ocupado é propriedade do Estado, pode-
se buscar negociações com o mesmo para que aqueles que ocupam tenham a concessão de uso
do espaço. Portanto, terão a posse, enquanto o proprietário será o Estado.
Todo proprietário é possuidor, mas nem todo possuidor é proprietário, ainda que
detenha “alguns dos poderes inerentes à propriedade” (art. 1196 do Direito Civil). O que
diferencia o possuidor do proprietário é principalmente sua capacidade de venda do imóvel. E
se faço esse breve apanhado de como o Direito moderno entende a ocupação é para
demonstrar que, nessa perspectiva, toda ocupação é uma forma de contrainventar
propriedades e indivíduos proprietários. Desse modo, quando partimos para a análise dos
movimentos dos trabalhadores rurais sem-terra ou daqueles que lutam por moradias dignas
nas áreas urbanas, tornar-se um proprietário através da ocupação ou fazer do Estado
proprietário para se ter a posse, de forma coletiva e de concessão de uso, é o que vai garantir
às pessoas a permanência no imóvel ou terra. Mas novos contornos surgem para o conceito de
ocupação através desses movimentos sociais, em que a ocupação é vista não como uma forma
de produzir proprietários, ou não reduzida a isso, mas como uma ferramenta política de
explicitação das desigualdades sociais e invenção de outros modos de se fazer política.

6Artigo 1228 da Constituição Federal.


27

O principal argumento jurídico acionado pelos manifestantes do MST e dos


movimentos de luta por moradia no meio urbano é de que os prédios e as terras que foram
ocupadas encontram-se ociosos, o que é considerado crime pela Constituição Federal. De
acordo com Boulos (2012), ativista do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) que
escreveu um livro chamado “Por que ocupamos?”, nos artigos 5 e 170 da Constituição Federal
está previsto que toda propriedade precisa cumprir com sua função social, ou seja, a
propriedade tem que ter algum uso (seja por moradia, trabalho ou qualquer outra ação que
traga “benefícios para a sociedade”). Ocupar, portanto, para esses movimentos urbanos, é uma
estratégia de fazer valer a Lei expressa na Constituição Federal, que garante a moradia como
um direito social e a obrigatoriedade da função social da propriedade. Como dizem os gritos
das ruas, “Se morar é um privilégio, ocupar é um direito” ou ainda, “se morar é um direito,
ocupar é um dever”.
No que se refere à luta dos trabalhadores rurais, que inspiraram e inspiram muito do
que há no conceito de ocupação, essa ferramenta política está profundamente vinculada à luta
pela reforma agrária e pelo fim dos latifúndios. Foi uma estratégia utilizada para pressionar o
Estado a tomar as medidas cabíveis para democratizar o uso da terra. Durante os anos 80, no
início da criação do que então seria denominado MST – Movimento Sem-Terra, o lema
vigente entre os trabalhadores rurais era “ocupação é a única solução” - negando qualquer
negociação possível com o então governo nacional7 e utilizando-se da ocupação como uma
forma de obrigá-lo a lidar com o problema da terra. Parece-me que os trabalhadores rurais
sem-terra e aqueles que lutam por moradia nos centros urbanos têm em comum a utilização da
ocupação como uma ferramenta para usufruir coletivamente de um bem, seja um pedaço de
terra, seja um prédio abandonado no centro da cidade, explicitando e nos obrigando a ver e
pensar sobre as desigualdades sociais inerentes à ideia de propriedade e de posse. Aqueles que
foram impedidos, pela ausência de oportunidades, de participar do jogo capitalista de compra
e venda, utilizam-se da ocupação como um meio de garantir a gerência autônoma e coletiva
da vida.
Mas a ocupação não é utilizada apenas quando se almeja a posse permanente do
espaço ocupado. Há outras formas de ocupação, como demonstraram os secundaristas e
universitários nas mobilizações nacionais de 2015 e 2016, ou como nos lembram os
movimentos sem-terra, indígenas, quilombolas ou da luta por moradia, quando ocupam os
prédios governamentais responsáveis pela demarcação das terras ou pela garantia de
habitações. Essas ocupações são, a princípio, movidas por certas pautas reivindicatórias
concretas – pressionar para que o Estado cumpra seu papel na garantia dos direitos – e são
7 Ocupação é a única solução foi o lema surgido no primeiro encontro nacional do MST em 1985. Mais
informações, ver Morissawa (2001).
28

respaldadas juridicamente pelo direito à livre manifestação. São temporárias e acontecem


como um meio de travar o funcionamento da máquina burocrática estatal, obrigando-nos a
atentar para as pautas daqueles que reivindicam e produzindo novos sentidos e significados
para aqueles espaços públicos.
O que há de mais interessante nesses movimentos, a meu ver, não são apenas as pautas
que mobilizam, nem os argumentos jurídicos utilizados para convencer o Estado da
legitimidade da ação (ainda que sejam fundamentais, principalmente como uma estratégia
para tentar fazer com que sua força repressiva seja minimamente contida). O que há de mais
interessante, e que transversaliza todas as formas de ocupar aqui descritas, é o que se produz
no processo. Inventam-se outras lógicas de relações, de troca, de solidariedade, outros afetos e
desejos. Produz-se um tempo-espaço de um cotidiano inventivo, permanente ou temporário,
nos obrigando a pensar sobre a lógica do capital que sempre faz prevalecer a propriedade em
detrimento da vida8.
Nesse sentido, acredito que o modo como a ocupação é vivida e conceituada pelos
diversos movimentos sociais vai de encontro à concepção jurídica de ocupação. O que os
diversos movimentos sociais parecem apontar, muito próximo de quando Davi Kopenawa
designa os brancos como o “povo da mercadoria”, é que sempre há um proprietário para tudo.
Um prédio no centro da cidade, ainda que esteja há anos abandonado, pertence a uma
empreiteira que está esperando o momento certo do ‘boom’ imobiliário para construir mais
um arranha-céu; o latifúndio, ainda que a terra seja grilada e parte dela esteja em desuso,
pertence ao fazendeiro, pelo menos nos falsos papéis; a Escola ou Universidade, ainda que
não contemplem os anseios de educação da comunidade escolar ou universitária, pertencem
ao Estado – enquanto ente burocrático e abstrato. Porque o termo correlato da mercadoria é o
proprietário e o possuidor. Há sempre um dono para cada coisa.
Porém, encontramos entre os movimentos sociais uma dupla relação. Enquanto
acionam a propriedade através da mínima garantia de direitos, que é o modo como o Estado
procede, também negam a propriedade como única e exclusiva forma de lidar com os espaços
e com as pessoas. Por conta disso, os indígenas dizem que não é a terra que pertence ao
homem, mas o homem que pertence à terra; os sem-terra afirmam que “não podemos ser
senhores do ambiente, apenas administradores, encarregados de cuidar” (MST, 2000, p. 7); e

8 A fala de uma estudante que participou dos movimentos de ocupações em São Paulo demonstra muito da
capacidade de subversão dos espaços e dos afetos a partir das ocupações: “A gente tem várias enormes árvores
na escola e nunca fez uma aula fora, nunca fez uma aula para descobrir quais as espécies das árvores, nunca
fez uma aula embaixo da árvore. Sempre em parques, em passeios da escola, se tinha uma árvore eu subia.
Quando a gente ocupou a escola, a primeira coisa que eu falei foi ‘nossa, a gente vai poder subir na árvore!’.
Me lembro que uma vez eu subi e minha professora me perguntou ‘o que você está fazendo?’. ‘Ué? Subindo
na árvore!’. ‘Desce daí!’. E isso ficou na minha cabeça… Uma árvore é vista como uma coisa tão
extraordinária, tão perigosa...” (COLETIVO CONTRAFILÉ, 2016, p. 13)
29

os trabalhadores sem-teto afirmam que a luta por moradia não é a luta pela manutenção dos
privilégios, ou para a garantia de casa para alguns poucos, mas para que todos possam ter
onde morar. De alguma forma é isso que os secundaristas fizeram também. Lembraram que as
escolas públicas não são propriedades do Estado, mas é ele, enquanto administrador, e a
Escola que devem responder aos anseios da comunidade escolar.
Ocupar, enquanto estratégia política, é uma ação. E obriga a todos aqueles que
presenciam a ação a se posicionarem, como atenta um dos trabalhadores sem-terra: “A
ocupação (…) é uma forma de luta contundente, não deixa ninguém ficar em cima do muro,
obriga a todos os setores da sociedade a dizerem se são a favor ou contra. Não há, enfim,
oportunidade para escamotear o problema social” (MST, 2000, p. 18). A ocupação obriga a
tomada de posição, tanto por aqueles que ocupam ou que têm seu imóvel ocupado, quanto por
aqueles que observam o movimento acontecer. Principalmente, claro, obriga o Estado, como
agente regulador de conflitos, a se posicionar. Dessa forma, me parece que a ocupação gera
um impasse porque bloqueia, em um sobressalto, o fluxo ‘normal’ das coisas.
Nessas perspectivas, toda ocupação implica tomar para si o mundo que nos foi negado
participar – o mundo da posse e da propriedade. Seja pelo uso da terra, seja pelo luta pela
moradia ou pela educação. Ocupar implica também em enfrentar as lógicas capitalísticas, que
tão facilmente nos desapossaram do mundo, em criar outros modos de inventá-lo ou, como
Pelbart (2016) designou em relação às ocupações dos secundaristas, apresentar uma nova
“imaginação política”, em que desejos se potencializam e materializam-se em ações e
tomadas de decisões coletivas. Ocupar, dessa forma, é explicitar as desigualdades na exata
medida em que se inventa outro território, uma linha de fuga às propriedades.

De pronto, já não se tolera o que antes se tolerava, e passa-se a desejar o que antes
era impensável. Isso significa que a fronteira entre o intolerável e o desejável se
desloca – e sem que se entenda como nem por quê, de pronto parece que tudo
mudou: ninguém aceita mais o que antes parecia inevitável (a escola disciplinadora,
a hierarquia arbitrária, a degradação das condições de ensino), e todos exigem o que
antes parecia inimaginável (a inversão das prioridades entre o público e o privado, a
primazia da voz dos estudantes, a possibilidade de imaginar uma outra escola, um
outro ensino, uma outra juventude, inclusive uma outra sociedade!). (PELBART,
2016)

O termo ocupação aparece na Morada como uma ação política, como entendida pelos
movimentos sociais, mas também aparece como é utilizado pelos adeptos do Batuque, religião
de culto aos Orixás muito comum no Rio Grande do Sul, para designar a relação estabelecida
entre Orixás e humanos. Em um ipadê, uma das Yas comentou que as Yalorixás e Babalorixás
utilizavam o termo para designar o processo de manifestação do Orixá, também denominado
30

Santo9. Ou seja, dizem que “o Santo ocupa o seu cavalo”, sendo o cavalo o sujeito que o
manifesta. Nesse movimento que ocorre nas casas de Batuque, o corpo é o território ocupado.
De todo modo, na Morada da Paz muito dificilmente encontramos o termo ocupar
referenciando tais situações, sendo mais comum o termo incorporação. Na verdade, é incrível
a intensa criatividade dos adeptos de terreiro para nomear essa relação – ocupar, incorporar,
virar, receber, dar passagem, manifestar – que se contrapõe com as clássicas nomeações da
antropologia, um tanto empobrecidas, como possessão e transe.
Essa relação complexa entre Orixás e humanos dá-se por uma noção de pessoa em que
o ser humano, tal como Goldman nos diz sobre o Candomblé Angola, “é pensado (…) como
uma síntese complexa, resultante da coexistência de uma série de componentes materiais e
imateriais - o corpo (ara), o Ori, os orixás, o Erê, o Egum, o Exu” (GOLDMAN, 1985, p. 38).
Ou, talvez, como a descreveu um dos interlocutores de Opipari, durante seu trabalho de
campo com casas de Candomblé em São Paulo:
O ser humano é a mesma coisa que na Igreja católica, ele tem um corpo e uma alma,
independente de qualquer outra coisa que ele venha a ter um dia, tá? Mas, para mim,
ele tem um corpo e uma alma, é normal, só que ele tem alguma coisa a mais, são
essas coisas que completam ele tudo. (OPIPARI, 2009, p. 189).

Assim, as religiões afro-brasileiras nos apresentam uma outra forma de pensar a


constituição da pessoa, que não a unidade fechada (do binarismo espírito e corpo) e
homogênea do indivíduo, em que o Direito moderno ocidental se assenta. Os sujeitos são
permeados por outros seres, por outros componentes imateriais que os “completam”. Por
conta disso, os iniciados no culto aos Orixás desenvolvem intensas técnicas de cuidado para a
manutenção das relações que estabelecem com esses outros. De modo geral, é aspecto comum
em diversos terreiros que haja uma série de ritualísticas complexas que vinculam os humanos
aos Orixás, ou seja, que envolvem a “feitura” (como se diz no Candomblé e no Batuque) tanto
do Santo, quanto do Ori (cabeça) do sujeito iniciado (ver Goldman 2005a; 2009). Mas,
importante dizer, a feitura em questão efetiva uma relação que já existia entre humano e
Orixá, antes da sua feitura10. Dessa forma, Rabelo nos diz, “a feitura abre o caminho para que
9 Existe toda uma discussão sobre a equivalência ou não desses termos para os próprios adeptos das religiões de
matriz africana (ver Opipari, 2009, cap. IV). Aqui tomo por equivalentes. De modo geral, Orixás podem ser
percebidos como potências inerentes aos elementos e forças da natureza (Ogum o ferro, Xangô trovão,
Iemanjá mar, por exemplo); mas também podem assumir formas humanas (Ogum guerreiro, Xangô justiceiro,
Iemanjá senhora mãe). E cada um destes Orixás possui diversas “qualidades”, manifestadas em diferentes
nomes. No Candomblé e no Batuque, ao iniciado será designado um Orixá com suas qualidades específicas. E,
como nos diz Goldman (2012, p. 275), é a partir do processo de feitura, ou seja, com uma série de ritualísticas,
que estabelecerão uma relação mais substancial entre humano e Orixá que passa a ser chamado de Santo. Na
Morada da Paz a designação Santo não é utilizada, apenas muito raramente, em conversas informais. E, como
não há um processo de feitura tal como nas casas de Candomblé e Batuque, essa distinção entre Santo e Orixá
não existe.
10Assim nos narra Rabelo (2014, p. 81) sobre Dona Detinha, Ya, ainda que sem casa aberta, com quem conviveu
no Ilê Axé Alá Key Koysan, da Nação Ketu, em Salvador: “Na iniciação são feitos o orixá e seu filho humano,
ou melhor, é efetivada uma relação entre eles, relação que já existia (embora não soubesse, dona Dete sempre
31

essa relação seja objeto de investimentos e cuidados e, neste sentido, institui uma
história”(2014, p. 81).
Como lembrou Exu-Tiriri ao etnógrafo Barbosa Neto (2012b), “cada casa é um caso”,
o que me leva a considerar que os modos rituais de estabelecer as relações entre Orixás e
humanos variam consideravelmente nas muitas perspectivas que comumente são
categorizadas como “religiões de matriz africana” ou “religiões afro-brasileiras” e, da mesma
forma, varia como se entende as intensidades de manifestações. Dentre os iniciados há
aqueles, pois nem todos o são, que são ocupados pelo Santo. De modo geral, esse processo de
incorporação é entendido como a manifestação de um fragmento de uma força muito maior,
cuja intensidade seria insuportável ao corpo humano. Nas casas de Batuque e Candomblé os
iniciados que o Santo ocupa manifestam o Orixá que é dito, através do jogo de búzios, ser “o
dono da cabeça” e o manifestam, sobretudo, em momentos rituais. Há outras manifestações de
outros seres que não Orixás, como nas Umbandas, Candomblé Angola, Candomblé de
Caboclo e outros tantos cultos, por exemplo, em que um mesmo médium pode manifestar
diferentes entidades – como chamam na Morada os seres invisíveis que povoam o cosmos. No
caso da Morada da Paz, por exemplo, é comum que um médium manifeste diferentes
entidades, incluindo Orixás, em um mesmo espaço ritual. E as manifestações podem
acontecer também fora do espaço ritual, pois dizem que “as entidades sabem quando
precisam vir”, me explicou certa vez Ak..
Voltando à questão que desejo desenvolver, o Santo, quando ocupa, não ocupa um
corpo vazio. É uma força tão potente, que o sujeito acaba dando passagem ou dando corpo,
como dizem na Morada, para o Santo ocupar. Goldman descreve isso como um processo
semelhante ao de morte: “Isto porque são os próprios deuses que se manifestam, e para que
isto se torne possível é necessário que, não o corpo, mas aquilo que o anima se afaste, num
movimento semelhante ao que ocorre na morte, cedendo assim o espaço no qual se encarnará
o orixá” (GOLDMAN, 1985, p. 47). Pelo que pude aprender de minhas vivências na Morada,
essa incorporação, ou ocupação, é produzida em um ímpeto. A depender do sujeito e do
contexto, um ímpeto produzido pelo auxílio dos tambores, dos cânticos e das rezas sagradas,
mas não necessariamente.
A aproximação entre a entidade e o médium, ou o Santo e seu cavalo, pode ocorrer de
muitas formas. Na Morada da Paz, há casos em que, dizem, a entidade está apenas
encostando11. E quando se manifesta, diz-se que pode ser de modo semiconsciente ou

foi filha de Oxum e, portanto, sempre sofreu a interferência deste orixá em sua vida), mas que ainda não foi
propriamente cultivada”.
11Certa vez, em uma chamada das entidades dedicada às pombas-giras e aos exus, eu tive um verdadeiro ataque
de riso. Estava plenamente consciente, não senti no corpo nada que se assemelhasse aos processos de
incorporação pelos quais eu já passei. Mas não conseguia parar de rir. Assim que a chamada terminou, a
32

inconsciente. Há médiuns que não lembram de absolutamente nada do que ocorreu no


processo de manifestação e há médiuns que acompanham o que acontece como se fossem
‘espectadores’ dos movimentos e falas manifestados a partir de seu próprio corpo. E, devido a
essas variações na relação entre sujeito e Orixá, cada incorporação e cada desincorporação
são muito particulares, variam conforme a entidade que se manifesta e conforme o médium
em questão. Nas casas de Batuque e Candomblé, até onde eu sei, a ocupação é atribuída
apenas às manifestações inconscientes e no caso das casas de Batuque, o sujeito que manifesta
o Orixá não sabe que o faz. Para a Morada da Paz, é impossível não saber que se entrará em
um processo de incorporação, ainda que a manifestação seja inconsciente.
É interessante perceber que nas relações entre entidades e médiuns, as forças que
ocupam não são forças que ‘possuem’ o sujeito, pois o termo possuir não é equivalente ao
termo ocupar, como me explicou Ys.. Ao contrário disso, Ys. me disse que “possuído” é uma
palavra utilizada de forma pejorativa, principalmente pelas religiões neopentecostais, para
designar os processos de incorporação: “ele está possuído”. Essa concepção pejorativa dá a
conotação de que aquilo que está possuindo o sujeito é externo a ele mesmo, pois concebe o
sujeito como uma unidade bem delimitada. No Batuque, disse-me ela, o Santo não possui, o
Santo toma, o Santo ocupa. E, nesse processo, as forças que ocupam, que podem ser um ou
mais Orixás, nada mais são do que as forças que constituem o próprio sujeito – e em um
processo de singularização são também constituídas por ele - mas que não são o sujeito em
si12.
Por isso, na Morada da Paz, brinca-se com os usos da linguagem, tais como uma frase
que muito falamos no cotidiano: “o Xangô de Al.”, por exemplo. Logo uma das Yas nos
corrige, mesmo entendendo o que estamos querendo dizer com isso, “não é o Xangô que é de
Al., mas Al. que é filha de Xangô!”. Al., que é filha de Xangô, também manifesta Oxalá, e
outras tantas entidades com as quais têm cruza, mas que não a ‘possuem’. Ainda assim,
compartilha-se a ideia de que uma entidade que se manifesta em um sujeito é singular, tal
como “o Xangô de Al.”, mesmo que um sujeito possa vir a manifestar uma entidade que
‘normalmente’ se manifesta em outra pessoa. Mãe Preta, por exemplo, durante o grupo

irmandade inteira foi até a cozinha para jantar e começamos a falar sobre a chamada. As egbomis e Yas que
estavam ali presente comentaram que eu estava com uma gira e eu fui enfática em dizer que não, que tinha
plena certeza de que não estava incorporada. Riram da minha ingenuidade por minha insistência em negar –
afinal, eu “sabia” o que era estar incorporada e eu tinha certeza que aquilo não era incorporação. Até que Yb.,
perdendo a paciência com minha teimosia, ironicamente me questionou: “Folaiyan, quanto tempo do dia tu
acha que tu é tu mesma?”
12Lembro-me de uma passagem descrita por dos Anjos (2006, p. 109) em seu trabalho de campo realizado em
uma casa de Batuque no RS, em que vemos a descontinuidade da relação Orixá/humano: “É o caso dessa mãe
de santo que se referindo ao comportamento ético de um de seus filhos-de-santo dizia: ‘às vezes, a pessoa tem
um santo bonito, um santo muito bom, mas o aparelho é ruim. Ai não dá pra manter ele em casa’”. Fica patente
nessa fala a cisão entre o status conferido pelo orixá no momento da incorporação (“de se ocupar”) e o caráter
cotidiano do indivíduo.
33

Cosmos - onde a Morada se originou -, manifestava tanto em Ys. quanto em outra médium
que não mais participa do grupo, quando Ys. não podia ser canal.
Se nos termos dos movimentos políticos a ocupação opera em outro regime de verdade
que não aquele sustentado pelo conceito de propriedade, nos termos das religiões de matriz
africana e da espiritualidade vivida na Morada da Paz, a ocupação, ou seja, o processo de
manifestação do Orixá, opera em outro regime que não o da individualidade. Refiro-me
àquela imagem do indivíduo cujas fronteiras do Eu são bem demarcadas, cuja racionalidade
fornece as bases para se ter o controle sobre o que se é, sobre o ‘seu’ corpo, sobre ‘seus’
pensamentos e ações. O indivíduo como proprietário e possuidor de si mesmo 13, cuja relação
que estabelece com a divindade é pela transcendência – uma divindade que, de alguma forma,
está fora do mundo. Acredito que foi dos Anjos (2008) quem melhor contrastou a concepção
de pessoa afro-religiosa com a concepção de pessoa da modernidade ocidental,
demonstrando-nos que num ritual de terreiro não existe apenas uma prática, mas uma filosofia
da identidade.
A ocupação pode ser definida e utilizada de muitas formas, mas o que me parece
transversal na definição do termo, levando em consideração seus diferentes usos aqui
apresentados, é: tomar de sobressalto algo que disseram e tentaram nos convencer ter um
proprietário – seja o corpo, seja o território. Ocupar é um ímpeto, uma força contagiante com
grande capacidade de mobilização e que nos obriga a atentar ao processo e às questões que ele
coloca. Interessante perceber que o termo “obrigação” nas casas de Candomblé e Batuque
também é muito utilizado e refere-se ao cuidado e ao cultivo da relação que o iniciado precisa
ter e manter com a divindade. No corpo do médium, ocupação é o coração que palpita em um
crescente de intensidade - a tontura, as dores, o suor frio que toma conta das mãos, a fraqueza
das pernas que tiram o equilíbrio do corpo. Obriga-nos a atentar para uma força externa que
afeta um corpo que, mesmo de idade avançada, dança por longas horas, distribuindo seu axé.
Em 2015 e 2016, com os secundaristas, uma onda produzida em um crescente se
espalhou por todo Brasil, de jovens ocupando suas escolas e universidades, obrigando-nos a
todos, envolvidos ou não no processo, atentar para o desmantelamento da educação pública.
Ocupar é o inesperado, quando se surpreende aqueles que se consideram “proprietários”, mas
também o urgente, para aqueles que não encontram outras possibilidades de lutar pela vida, de
13O Comitê Invisível caracterizou bem a individualização ocidental em “A Insurreição que vem” (2013, p. 17-
18): “EU SOU AQUILO QUE SOU. O meu corpo pertence-me. Eu sou eu, tu és tu, e isto não vai nada bem.
Personalização de massa. Individualização de todas as condições — de vida, de trabalho, de infelicidade.
Esquizofrenia difusa. Depressão galopante. Atomização em pequenas partículas paranóicas. Histerização do
contacto. Quanto mais quero ser Eu, maior é a sensação de vazio. Quanto mais me exprimo, mais me esgoto.
Quanto mais vou atrás das coisas, mais cansado fico. Eu ocupo-me, tu ocupas-te, nós ocupamo-nos do nosso
Eu como num entediante balcão de atendimento. Tornamo-nos os representantes de nós próprios — estranho
comércio, fiadores de uma personalização que se assemelha, afinal, a uma amputação. Afiançamos até a ruína,
com uma falta de jeito mais ou menos disfarçada.”.
34

afirmar sua existência: “ocupo para existir”, dizem os secundaristas de São Paulo 14. Talvez um
adepto das religiões afro-brasileiras dissesse o mesmo, só que ao contrário: “sou ocupado para
existir”15 ou, em outro sentido de ocupação, como cuidado de si e portanto com o Outro, “me
ocupo com o Orixá para existir”16.
O interessante dessa aproximação entre os movimentos sociais e a cosmovisão afro-
religiosa é que o primeiro toma a ocupação como uma ação a ser exercida, pois são os
movimentos sociais que ocupam. Já o segundo faz dos sujeitos aqueles que são ocupados, e a
centralidade da ocupação está na relação entre essas forças e o corpo. Uma certa passividade
do humano que é só aparente, pois a ocupação só acontece, como dito, através de uma série de
ritualísticas que reforçam e refazem a vinculação estabelecida entre entidades e humanos. Isso
porque - e talvez possamos elencar como outro elemento transversal nessas formas de
ocupação, na medida em que ocupamos - também somos ocupados por certas forças que
constituem aquilo que ocupamos. Um território, por exemplo, com suas constituições
próprias, quando ocupado, de alguma forma também ocupa aqueles que o ocuparam, na
medida em que apresenta certos biomas, características, necessidades. Algo semelhante ocorre
nos terreiros, onde é certo que Al. é de Xangô, na exata medida em que o Xangô se manifesta
de modo singular em Al.. No processo de ocupação, ambos os termos da relação se
constituem e se afetam mutuamente.
A Morada da Paz, quando nos fala em ocupar mentes e corações utiliza o verbo
ocupar como uma ação a ser exercida por ela – humanos e não-humanos que ali trabalham
juntos -, afinal, é a Morada que se coloca no papel de ocupar. Uma ação experimental e
criativa, produzida em um ímpeto que obriga o pensamento e a tomada de posição, mas não
mobiliza esse verbo do mesmo modo que os movimentos sociais. Não busca garantia de
direitos perante o Estado, muito menos a posse, temporária ou permanente, de imóveis para a
gerência da vida. Ao mesmo tempo, não utiliza a expressão no mesmo sentido dado à
ocupação nas casas de Batuque, ou como se refere aos processos de incorporação. Ainda que

14Frase encontrada no livro A Batalha do Vivo, de autoria do coletivo Contrafilé com vários secundaristas que
participaram das manifestações de 2014.
15Recentemente, em conversa com uma das antigas demoradoras, ela me dizia que passou muitas noites em
claro sem conseguir dormir, o que dificultava consideravelmente seu trabalho e a gerência de sua vida de modo
geral. Foi a um centro espiritualista próximo a sua casa e uma entidade se manifestou dizendo que há tempos
trabalha com ela e que ela precisava voltar ao trabalho espiritual. Foi conversado com a entidade para que
desse o tempo necessário para ela encontrar algum lugar onde trabalhar, mas que ela precisaria conseguir
descansar para lidar com o curso da vida diária. Segundo ela, “estava quase enlouquecendo!”
16Rabelo (2014, p. 225), ao narrar a relação estabelecida ente o iniciado e o otá (que no candomblé é a pedra no
qual o Orixá é assentado) durante o ossé (termo para referir o banho no assentamento de santo): “O corpo, sem
dúvida, afeta – dirige-se a uma situação, concentra-se no poder das mãos e ativamente se engaja com as coisas,
pondo em movimento certas relações entre elas. Também é afetado: invadido pelo cheiro, impactado pela
dureza da pedra, desafiado pela resistência do sangue coagulado e mobilizado por um espetáculo. Nesse
envolvimento sensível transforma-se e vem a assumir nova identidade. É o filho de santo que se faz no
cuidado com o orixá. No outro polo do corpo móvel e senciente, a pedra converte-se também em algo novo, é
o santo que se revela enquanto objeto de cuidado.”
35

o central nas suas ações esteja, sim, nos corpos e na relação com forças e seres invisíveis que
o perpassam. E também em uma atenção ao ímpeto de ocupar, que obriga as forças
estabelecidas a “darem passagem” a um outro modo de existência. De todo modo, ocupar
mentes e corações me parece atuar na decomposição das relações que sustentam as noções do
indivíduo e da propriedade, sustentáculos da modernidade ocidental.
Para a Morada, o cosmos é povoado de forças e seres invisíveis que atravessam,
apropriam-se, interagem, habitam, fortalecem ou enfraquecem os seres visíveis, os sujeitos, os
grupos, os objetos, o que convencionamos chamar de ‘natureza’ e tudo mais que seria da
ordem de uma dada materialidade física. As forças cósmicas são conhecidas pelos seus
efeitos, por aquilo que provoca nos corpos, situações e territórios. O colonialismo, o
capitalismo, o racismo, o machismo e a devastação ambiental são percebidos como
materializações das forças cósmicas destrutivas, cujas existências são anteriores as suas
materializações. Além dessas forças que povoam o cosmos serem dadas a ver nas suas
consequências materiais, a comunicação com elas ocorre também através do que chamam
mediunidade. A mediunidade, para a Morada da Paz, é um aspecto orgânico que constitui
todos os seres, ou seja, não é um dom que apenas alguns têm ou algo a ser desenvolvido.
Antes de tudo, é algo a ser reconhecido, visto que fomos ensinadas a ignorá-la. Dá-se pelos
pontos energéticos que constituem os corpos dos sujeitos, os chamados chakras através dos
quais essas energias ou seres adentram ou perpassam os sujeitos e produzem efeitos. Foi
caracterizada por Ik., egbomi da comunidade, como uma atenção ao detalhe.
Certa vez nos reunimos em Porto Alegre com a finalidade única e exclusiva de
fazermos uma oração coletiva com o intuito de “emanar paz ao mundo”. Logo depois de
realizada, algumas pessoas da irmandade começaram a falar de compras e do dinheiro que
necessitávamos para ritualísticas específicas. Ik. disse que não era momento para conversar
sobre isso, mas mesmo assim insistiram. A situação acabou gerando tensionamentos entre
todos. Já era noite e algumas pessoas precisavam pegar ônibus de volta às suas casas, outras
estavam imersas nos gastos e custos que precisariam arcar. Nesse contexto de tensionamento
uma das crianças começou a chorar e uma das iaôs sentiu dor de barriga. Em meio a essas
situações simultâneas, Exu se manifestou em Tj., iaô e antiga demoradora, para limpar o
local, fazendo com que todos permanecessem em silêncio e interrompessem o assunto. Foi
depois dessa situação que Ik. nos repreendeu por abrirmos um campo energético de
tensionamentos, e disse que era necessário atentar às situações, aos momentos, pois somos
médiuns e “mediunidade é detalhe”.
Ys. me explicou que “a espiritualidade não tem lado”. Ou seja, essas forças e seres
invisíveis podem ser de potência, das luzes, ou destrutivas, energias densas, que servem às
36

trevas - expressões que aparecerão no decorrer da descrição que aqui eu apresento. Não é
possível reduzir a ideia de forças das trevas e forças das luzes nos termos cristãos de Deus e
Diabo ou Bem e Mal. Primeiro porque, se bem entendi, tanto em um quanto em outro não há a
existência de figuras únicas. Para fazer um trocadilho com as comuns perseguições policiais,
que são, diga-se de passagem, por demais cristãs, nem nas luzes ou nas trevas há líderes. São
os propósitos comuns, explicam-me as Yas, entre diferentes forças, entidades e seres que
possibilitam a unidade. O que formam esses dois mundos em guerra são as relações que
consolidam e ao que servem. É possível que um mesmo sujeito conecte-se com essas duas
forças, fazendo dos corpos um território em disputa. Por isso continuamente as Yas nos
alertam para a necessidade de vigiar nossas ações, formas-pensamentos e formas-sentimentos,
para não dar passagem a elementos e seres que trabalham para as forças das trevas.
Suas designações são anteriores, na medida em que sabem que forças das trevas e
forças das luzes agem sobre o mundo visível, mas elas só são dadas a conhecer quando se
encontram com os sujeitos que, então, as designam. São dadas a conhecer pelos efeitos que
produzem, sejam eles nefastos, sejam eles benéficos. Por isso, penso essas relações, entre
luzes e trevas respectivamente como bons encontros e maus encontros, nos termos propostos
por Espinosa – que eu recupero aqui através de Deleuze (2002, 2017). Quero dizer com isso
que é importante diferenciarmos as luzes e as trevas dos valores moralizantes e transcendentes
de Bem e de Mal para pensá-los por diferenças qualitativas dos modos de existência. O bom
encontro ocorre quando um “um corpo compõe diretamente a sua relação com o nosso, e, com
toda ou com uma parte de sua potência, aumenta a nossa”, fortalecendo nossa potência de
agir, por exemplo quando nos alimentamos. O mau encontro pauta-se, ao contrário, pela
decomposição. É quando um corpo, ao nos encontrar decompõe a relação do nosso, apesar de
compor com as nossas partes, “mas sob outras relações que aquelas que correspondem à nossa
essência”, por exemplo quando ingerimos veneno, como o agrotóxico que decompõe as
relações do nosso corpo produzindo câncer.
Bom e mau têm pois primeiro sentido, objetivo, mas relativo e parcial: o que
convém à nossa natureza e o que não convém. E, em consequência, bom e mau têm
um segundo sentido, subjetivo e modal, qualificando dois tipos, dois modos de
existência do homem: será dito bom (ou livre, ou razoável, ou forte) aquele que se
esforça, tanto quanto pode, por organizar os encontros, por se unir ao que convém à
sua natureza, por compor a sua relação com relações combináveis e, por esse meio,
aumentar sua potência. Pois a bondade tem a ver com o dinamismo, a potência e a
composição de potências. Dir-se-á mau, ou escravo, ou fraco, ou insensato, aquele
que vive ao acaso dos encontros, que se contenta em sofrer as consequências, pronto
a gemer e a acusar toda vez que o efeito sofrido se mostra contrário e se revela a sua
própria impotência. (DELEUZE, 2012, p. 28-9)

Mas fraco ou forte também não são instâncias absolutas. O fraco é aquele que,
qualquer que seja sua força, está separado de sua potência de agir. O forte, ao contrário, está
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pleno de sua potência de agir. São ambas consequências de afecções passivas, porque se
explicam por um corpo exterior, que produzem sobretudo paixões, ou afetos, alegres e/ou
tristes. As paixões alegres são aquelas que existem nos bons encontros, que aumentam a
potência de agir, e as tristes são aquelas que existem nos maus encontros, que diminuem a
potência de agir. Há, sem dúvida, um esforço da Morada para organizar, ao máximo,
encontros com paixões alegres - é disso que se trata a guerra cósmica que travam, onde
ocupar surge como uma estratégia de guerra.
Há tempos a Yaba ancestral Mãe Preta tem nos alertado para a importância de não
perdermos a esperança e o desejo de construir um outro mundo possível. Tem atentado para
tomarmos cuidado com o medo, tristeza, ódio, egoísmo, sede de poder e tudo mais que gera a
destruição, pois o que as forças das trevas querem, como diz, é que desistamos da alegria, do
amor, da solidariedade e da esperança, ou seja, que acreditemos que esses sentimentos não
nos pertencem. O que as forças das trevas querem, segundo Mãe Preta, é que acreditemos que
as trevas venceram e tomaram o mundo e os sujeitos, ou seja, que “não tem mais jeito. Mas
tudo tem jeito nessa vida, viu?”, diz enquanto pita seu cachimbo. Ocupar mentes e corações é
negar essa posse do mundo e dos sujeitos pelas forças das trevas. É, portanto, habitar o
mundo com outras formas de sentir e de pensar, produzir novos engajamentos, suscitar novos
acontecimentos – o que, para a Morada da Paz, só poderia ocorrer através da aliança
estabelecida entre humanos e não-humanos. Como disse Mãe Preta, enquanto dançávamos
“para as almas” ao redor de uma panelinha de fogo após um longo dia de Muzunguê – como
são chamados os atendimentos espirituais -, “é tempo de anjos e homens caminharem juntos”.
Nesse sentido, acredito que ocupar possa ser aproximado à ideia de “retomada” dos
Tupinambá da Serra do Padeiro, que encontramos na etnografia de Ubinger (2012). Diz-nos a
autora que através de uma percepção espiritual os Tupinambá da Serra elaboram suas
investidas atuais para a “retomada” de suas terras. Por um passado colonial regado por
mortes, dizem que a terra do qual são oriundos está “doente de sangue” e que precisa ser
curada para poder libertar aqueles Tupinambá que foram mortos e dizimados pelo poder
colonial e pelas guerras. Por morrerem antes do tempo, encontram-se presos a este mundo.
Essa “cura”, dizem os indígenas, precisa ocorrer através de uma resposta tupinambá que não é
elaborada nos mesmos termos de “derrame de sangue”, mas pela cura de um território doente.
É com vistas à cura que as “retomadas” são necessárias, retomadas da terra, da cultura e da
vida indígena de modo em geral, como um meio de libertar os Tupinambá que foram mortos.17

17Conforme diz o Cacique Babau: “(...) Os Tupinambá não trabalham pra quem é vivo, não luta pra quem tá
vivo, o qual pode ser enxergado pelos olhos e pode ser derrubado por uma simples pedra no caminho. (...) Nós
luta em nome de Tupã, o qual deixou, pra nossa proteção sobre a terra, os encantados, e o Tupinambá, ele é
simplesmente vinte por cento matéria, e o restante, espiritualidade. Nós acredita no reino dos encantados e nós
sabemos que a ligação direta para a existência do ser Tupinambá é a garantia do território, do território livre,
38

A dissertação de Ubinger traz dados valiosos sobre essa relação entre seres humanos e
não-humanos – sejam os espíritos dos antepassados, sejam os encantados. E aqui vale um
adendo: encantados, para os Tupinambá, são espíritos que não morreram, mas por alguma
benção divina transformaram-se em uma força da natureza, ou seres enviados por Tupã para
comunicação com os humanos. Sem dúvida, o mais marcante para mim entre os diferentes
momentos de territorialização dos Tupinambá no sul da Bahia ocorreu na década de 1950, e
tem como protagonista o Velho João de Nô, que, segundo os indígenas, sofria de “loucura”
pois recebia de forma descontrolada muitos encantados e visões do futuro. O pai de João de
Nô, visto a situação do filho, decidiu levá-lo a sua tia em Salvador, que era ninguém menos
que Mãe Menininha, Yalorixá do terreiro de Gantois, para que pudesse curá-lo. Ela, por sua
vez, disse que não poderia fazer isso, pois ele já tinha o poder da cura e afirmou ainda que ele
precisava voltar à Serra do Padeiro, pois tinha “uma sentença a cumprir”. Ao voltar, contam
os indígenas, ele próprio se curou com um banho de ervas e passou a curar outros.
Na época, o Caboclo Tupinambá manifestava-se em João de Nô e dizia aos indígenas
que “essa terra ia voltar a ser uma aldeia indígena”. Passou a receber inúmeras mensagens que
alertavam sobre a necessidade de “retomar o território dos indígenas, além de uma preparação
espiritual para o momento adequado a este procedimento de ‘resgate cultural e espiritual’, na
tentativa de ‘levantar a aldeia’”. O tempo foi passando e na década de 80 os índios Pataxó,
vizinhos dos Tupinambá, negociavam com a FUNAI a demarcação de suas terras, mas João
de Nô, que na época havia falecido, disse que os encantados avisaram “que ainda não era o
momento certo para entrarem no movimento indígena”, pois precisavam se fortalecer
espiritualmente e “esperar os guerreiros” que constituem a geração das lideranças Tupinambá
que atua hoje (UBINGER, 2012, p. 52).
Assim como a Morada da Paz vive e direciona suas lutas em função de uma guerra
cósmica, os Tupinambá da Serra do Padeiro também vivenciam constantes “guerras
espirituais”, como chamou Ubinger, que afetam os corpos dos humanos, principalmente pela
atuação dos mortos que vivem vagando pelo mundo e não encontraram paz, pois não têm uma
terra onde descansar. Dessa forma, “retomar” a terra implica tanto o descanso dos
antepassados, mas também o bem-estar físico e espiritual dos tupinambá humanos. Além
disso, são os encantados, principal aliança estabelecida pelos Tupinambá, que querem a terra,
como informa à Ubinger (p. 70) dona Rosa:

de tudo isso que vocês vê sobre essa terra.(…) Tupinambá vive ali há centenas de anos. Quando Cabral aqui
chegou, Tupinambá já morava na terra, terra dos encantados, altar sagrado ‒ nossa terra, e nós não arredamos
um passo até agora. (...) Nós não abrimos mão da terra, falei pra eles: morrerei na prisão, mas nós não
negociamos nosso direito pela terra, porque esse direito é de nossos antepassados, que morreram lutando e dos
nossos netos e bisnetos, que virão no futuro.” (UBINGER, 2012, p. 59)
39

É, porque não é nós que quer, é uma coisa que é os encantados que quer o território,
é deles, né, e se não fosse deles não tava tendo essa briga toda né, por essas terras,
então é pedido deles que a terra tem que ser dos índios, dos antepassados e tem que
continuar né, e é onde é pra manter a luta da terra pra manter também os encantados
né, porque eu digo assim, se a gente não lutar, daqui a uns dias aí acaba tudo né, os
brancos tomaram, como vinham tomando conta, e ninguém liga, ninguém acredita
nos encantados mesmo, e aí tudo vai passando né…

Parece-me profundamente interessante a reciprocidade alertada por Ubinger dessa


aliança. Os encantados protegem os humanos e lhes dão informação de como proceder na luta
pela terra. Mas, simultaneamente, necessitam dos indígenas humanos para “manter sua ‘força’
espiritual”. Diz-nos ela que “se os índios não acreditassem nesses entes, não seguissem seus
conselhos ou não lutassem para assegurar a Terra Indígena, os encantados também perderiam
seu poder ou ‘força’ espiritual e potencialmente desapareceriam” (idem, p. 70). Na Morada da
Paz acredito que a relação é percebida de modo diferente. As entidades, que ocupam um papel
análogo aos encantados, visto serem elas que trazem orientações à comunidade, não
deixariam de existir, mas sua ação no mundo seria menor, mais contida, acarretaria um
distanciamento entre humanos e não-humanos e dificultaria a participação deles na guerra
cósmica, abrindo a possibilidade de maior investida pelas forças das trevas.
Outra relação entre ocupar e “retomar” é o fato de a luta Tupinambá estar diretamente
relacionada a um território que foi “roubado” dos antepassados dos atuais Tupinambá. No
caso da Morada, a luta não está restrita à questão da terra, ainda que passe por ela como um
território de resistência negra. Porém, se entendemos “retomada” não apenas do território
físico, mas da composição de um modo de existência, novamente “retomada” e ocupação se
aproximam. E aproximam-se também do conceito de “reclaim”, como sugeriu Goldman
(2015) em relação à “retomada”18, que foi traduzido por “reativar”19.
“Reclaim” é oriundo das bruxas neopagãs norte-americanas, especialmente do
Reclaiming Tradition Witchcraft, uma organização fundada no início dos anos 80, identificada
como ecofeminista, tendo uma de suas principais fundadoras e participantes a ativista, bruxa e
anarquista Starhawk. O termo surgiu a partir da luta antinuclear e propõe, basicamente,

18Segundo o autor, “devem ser entendidas literalmente no sentido proposto por Stengers para a noção de
reclaim: não simplesmente lamentar o que se perdeu na nostalgia de um retorno a um tempo passado, mas sim
recuperar e conquistar ao mesmo tempo” (GOLDMAN, 2015, p. 656)
19Segundo Jamile Pinheiro Dias, tradutora do texto “Reativar o Animismo”, de Isabelle Stengers: “Stengers
explicita que “‘reclaiming’ é uma aventura tanto empírica quanto pragmática, pois não significa
primordialmente retomar o que foi confiscado, mas aprender o que é necessário para habitar novamente o que
foi destruído. ‘Reclaiming’, na verdade, está irredutivelmente associado a ‘curar’, ‘reapropriar’,
‘aprender/ensinar de novo’, ‘lutar’, ‘tornar-se capaz de restaurar a vida onde ela se encontra envenenada’”.
Decidimos pela tradução do verbo “to reclaim” como “reativar” a fim de abarcar o potencial terapêutico e
político da ideia aqui proposta. Entretanto, nenhuma opção bastará em si como satisfatória. Fica o leitor
advertido, primeiramente, de que a história do termo passa pela ligação entre magia e espiritualidade e
transformação social e política; e, em segundo lugar, de que o “reativar” em jogo diz respeito não a um gesto
nostálgico de repetição do passado, mas a ações e práticas situadas, norteadas pelo empirismo e pelo
pragmatismo” (Id., 2017, p. 8).
40

estreitar as relações entre política e espiritualidade, conectando o que chamam de religião da


Deusa20 com uma série de atos e organizações de desobediência civil não-violentas 21, assim
como práticas comunitárias de permacultura.
Starhawk e suas companheiras “reativam” uma forma de relação com o mundo através
do que ela chama também de Antiga Religião ou Feitiçaria, um modo de lidar com forças da
natureza que foi brutalmente dizimado no processo inquisitorial mais perverso vivido na
Europa: a caça às bruxas. A caça às bruxas, como nos lembra Federici (2017), marca também
o início dos cercamentos dos campos comuns e da instauração da propriedade privada, com a
expropriação das terras e consequente expulsão dos camponeses de seus lares. Não apenas
praticantes da Arte, como Starhawk chama, mas sobretudo mulheres de modo geral,
principalmente as mais pobres, que provocavam a ira, a inveja ou a cobiça nos poderosos da
época, assim como homossexuais ou livre pensadores, eram queimadas em praça pública
nesse mesmo evento de caça às bruxas. O conhecimento das práticas de feitiçaria foi cada vez
mais destruído, assim como os encontros entre bruxas e bruxos eram proibidos. A transmissão
de conhecimento ficou reduzida a algumas famílias, tanto no velho continente quanto com os
imigrantes que chegavam às Américas.
Esse processo de perseguição e devastação das práticas de bruxaria faz a autora
aproximar a repressão experimentada pelas bruxas europeias e norte-americanas daquela
época com a repressão ainda hoje vigente aos cultos de matriz africana (STARHAWK, 1993,
p. 22). Assim como os cercamentos e a expulsão dos camponeses com o advento da
propriedade privada podem ser aproximados aos frequentes “roubos” de terras indígenas,
como colocaram os Tupinambá – que, como observou Stengers (2015b), não implica apenas
em expropriar bens, mas também conexões 22. “Reativar”, nas ideias neopagãs, implica em
20Como a autora coloca: “O simbolismo da Deusa não é uma estrutura paralela ao simbolismo de Deus-Pai. A
Deusa não governa o mundo; ela é o mundo. Presente em cada um de nós, cada indivíduo pode conhecê-la
interiormente, em toda a sua magnífica diversidade. Ela não legitima o governo de um sexo pelo outro e não
cede autoridade a governantes de hierarquias temporais. Em Feitiçaria, cada um de nós deve revelar a sua
própria verdade. A divindade é vista em suas formas próprias, sejam elas masculinas ou femininas, pois a
deusa possui o seu aspecto masculino. A sexualidade é um sacramento. A religião é uma questão de reunião,
com o divino dentro de nós e as suas manifestações externas em todo o universo humano e natural”
(STARHAWK, 1993, p. 26).
21A título de exemplo, sugiro a leitura do capítulo Seattle, no livro Webs of Power (Id., 2002), onde a autora nos
possibilita acompanhar todo o processo dos grupos de comunicação não-violenta organizados em atos de
desobediência civil, em 1999, contra a OMC e suas decisões autoritárias que afetam questões trabalhistas,
direitos humanos e ambientais. A autora narra tanto o processo organizativo, quanto sua execução e
consequências. Narra seu período na prisão e como a espiritualidade atravessa todos esses momentos.
22 Em entrevista, Isabelle Stengers (2015b) nos diz: “No fim de A feitiçaria capitalista nós evocamos as
feiticeiras neopagãs nos Estados Unidos. É um movimento político próximo aos anarquistas que faz lembrar
que a Europa se tornou moderna erradicando a cultura camponesa anunciando assim o que faria sofrer aos
povos e civilizações colonizados. Essa destruição em nome do progresso começou a ser feita dentro das
próprias fronteiras. As feiticeiras neopagãs procuram não esquecer que o capitalismo não apenas explora mas
expropria: ele captura práticas e inteligências coletivas e as redefine a seu modo pela destruição e a
apropriação. (…) A inteligência coletiva é sempre uma inteligência ‘conectada’, ou seja, se define em relação a
uma situação e às conexões múltiplas que ela cria, sociais ou territoriais por exemplo. O capitalismo funciona
destruindo toda conexão, inclusive aquela do passado, e considera como suspeita e perigosa toda inteligência
41

reapropriar-se de todas essas práticas de magia e bruxaria que tentaram destruir e que, por um
trabalho quase bem-feito do capitalismo e da igreja, foram praticamente eliminados da
modernidade. É, portanto, recuperar um modo de vida que foi devastado, não para resgatar o
passado por inteiro - viver o passado novamente -, pois “reativar” implica sobretudo uma
possibilidade de experimentação e criação no presente, como diz Isabelle Stengers (cujo
trabalho dentro da filosofia da ciência foi criado muito em diálogo com as práticas e reflexões
de Starhawk).

Reativar”, “retomar”, ocupar parecem-me estratégias que envolvem o que Pignarre e
Stengers (2011, p. 130) chamaram de “técnicas de empoderamento” 23. Técnicas de
empoderamento, nos dizem os autores, são modos de desenfeitiçar e de se proteger dos
feitiços produzidos pelo capitalismo, e eu diria também pelo colonialismo, que nos impedem
de pensar e de criar. Essas técnicas, dizem, não se apresentam a partir de uma teoria que as
legitima e que demanda adesão. Ao contrário, são experimentadas e só se validam na medida
em que são eficazes, que tornam possível aquilo que não podem explicar. É por isso que
retomam a noção de receita, que foi utilizado de forma pejorativa para designar técnicas não-
científicas, pois as receitas, e esse é o motivo das recriminações em torno dela, não podem
explicar porque funcionam através de termos que transcendem sua própria execução, ou seja,
não são generalizáveis para outras situações.

Não se engane: quem diz receita não está dizendo uma técnica fraca e de segunda
ordem. Se as receitas do empoderamento não se referem a uma teoria que as
justifica, é porque a questão da justificação é uma questão pobre em relação ao que o
seu sucesso designa, o evento de um devir. Tais receitas não explicam, e não visam
assegurar a reprodução do que é uma questão de sucesso, à maneira de um protocolo
experimental, e mais ainda, que visam definir este sucesso por condições que o
tornariam reprodutível. Um evento não é reproduzível, mas é possível explorar as
possibilidades de realizar sua repetição, que é arriscada e diferente a cada vez.
(STENGERS; PIGNARRE, 2011, p. 133, tradução minha)

Trago esse ponto porque não pretendo supor que “reativar”, “retomar” e ocupar sejam
a mesma coisa, nem abarcá-los em uma teoria generalizante. São, sobretudo, diferentes
receitas, com suas respectivas técnicas, para lidar com a devastação do mundo orquestrada
pelo capitalismo e colonialismo que segue seu curso. São, portanto, receitas de resistência,
como nos diz Sztutman (2018), em que resistência implica em não aceitar o dado das coisas,
mas em pensar, tomar os problemas para si, e criar outras possibilidades de existência. Mas há
coletiva que reivindica suas conexões”.
23Stengers faz uma reavaliação sobre este termo - “empowerment” -, e seus muitos usos em outro contexto (ver
2014, p. 29). Também Sztutman (2018, p. 348), quando nos diz: “Para falar do desenfeitiçamento, Pignarre e
Stengers tomam emprestado outro termo do vocabulário ativista (do feminismo, do movimento negro):
empowerment. ‘Empoderamento’ não me parece contudo a melhor tradução, poderíamos talvez pensar em
‘autodeterminação’. De todo modo, quando Stengers e Pignarre se referem a técnicas de empowerment, estão
pensando na habilidade de imaginar, de mover-se sem medo, de criar novas lutas, tendo em vista sempre
devires minoritários.”
42

um aspecto transversal a esses três termos e aos modos como são utilizados, que é, sobretudo,
pensar com outros (humanos e não-humanos) para resistir. Uma prática denominada por
Stengers (2014) de cosmopolítica.
O conceito de cosmopolítica é proposto pela filósofa da ciência em um exercício de
pensar a relação entre Ciência e Política. O termo não trata simplesmente de uma relação
entre cosmologia e política e nem supõe que o cosmos seja um “mundo comum” partilhado
em uma paz perpétua. Isso porque, como diz a autora, esse mundo em que nos detemos a
conhecer os ‘fatos’, através das ferramentas técnicas da Ciência moderna, são os ‘nossos’
saberes, mas também estão investidos dos ‘nossos’ valores. E não basta o ‘respeito pelos
outros’ ou ‘igualdade de direitos’ para excluir essa diferença. Nesse sentido, cosmopolítica
não pretende definir o que é o ‘Bem’ para um mundo comum. Cosmos também não deseja
englobar a tudo e todos, inclusive aqueles que não querem ser englobados.

O cosmos, tal como figura no termo cosmopolítica, designa o desconhecido destes


mundos múltiplos, divergentes; as articulações que poderiam chegar a ser capazes,
contra a tentação de uma paz que se quer final, ecumênica, no sentido em que uma
transcendência teria o poder de exigir ao que diverge que se reconheça como uma
expressão meramente particular do que constrói a convergência de todos.
(STANGERS, 2014, p. 22)

O cosmos surge como um “operador de igualdade”, quando entendemos operar como


“criar uma inquietude das vozes políticas”, “uma sensação de que a arena política está
povoada por sombras do que não tem, não pode ter ou não quer ter voz política” e que,
portanto, não cumpriria nenhuma das exigências da política – expressar os objetivos ou as
propostas para a construção de um mundo comum. Cosmopolítica, dessa forma, não tem a ver
com um programa consolidado, mas com um “espanto”, ou talvez com aquele súbito ímpeto
da ocupação dos movimentos sociais, que não espera um acordo ‘pacífico’ com o Estado ou
um “mundo comum” com os interesses do latifúndio, das empreiteiras ou do capital. Que
obriga uma tomada de posição em dois sentidos: obriga a pensar sobre o que está
acontecendo, tanto àqueles que ocupam, quanto àqueles que são meros espectadores da ação -
o espanto que nos acomete desde as jornadas de junho de 2013 e que, sem dúvida, foi
prolongado pelos secundaristas em 2015 e 2016: afinal, “que estamos fazendo?”; e obriga ao
cuidado e ao cultivo de outras relações possíveis, como o adepto das religiões de matriz
africana que se obriga ao cuidado com o Orixá, não por uma Lei externa, mas como um modo
de cuidar de si cuidando de Outro.
Dar uma dimensão cosmopolítica aos problemas políticos não diz respeito às respostas
que obteremos, mas às perguntas que são postas, onde o pensamento coletivo é construído
‘em presença’ daqueles que fazem existir sua insistência. Cosmopolítica, segundo a autora, é
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nomear o modo como o cosmos inventa a maneira na qual a política, que é criação do mundo
moderno ocidental, pode fazer existir as repercussões do que se vai dizer, do que constrói suas
razões legítimas e do que se mantém surdo a essas legitimidades. É dessa forma, tomada pela
proposta cosmopolítica de Stengers, que penso o ocupar. Ocupar como uma invenção
cosmopolítica, na medida em que as integrantes da Morada da Paz se colocam na obrigação
de pensar e agir com outros. Dessa forma, ocupar não é “bom para pensar”, como se o
exercício do pensamento estivesse relegado à antropóloga em uma clara hierarquização dos
saberes. Ocupar é um pensamento em si, e me aventuraria a dizer que as mais velhas e as
entidades aceitaram a produção desta tese pois viram que o pensamento antropológico talvez
fosse ‘bom para ocupar’.
O que me cabe fazer nas próximas páginas é sobretudo descrever como a Morada da
Paz ocupa. Não com o intuito, é evidente, de esgotar a sua criatividade ou dar conta de uma
totalidade inexistente, seja do que ‘é’ a comunidade, seja do que são as pessoas que dela
participam, seja dos problemas (e soluções) que a Morada cria para pensar e agir. O que
apresento é sempre parcial e fruto daquilo que chamei composição contracolonizadora, mas
que nos traz, enquanto antropólogas e antropólogos, algumas possibilidades de imaginação.

1.3 Os capítulos

A tese é composta por quatro capítulos. Cada capítulo eu nomeei através dos termos
que a Morada utiliza para fazer a si mesma. Minha intenção foi pensar que assim como a
Morada da Paz ocupa corpos, territórios, diálogos, mentes e corações, ela também ocupa
ideias, na medida em que também é ocupada por elas, dotando-as não apenas de um novo
sentido, mas de um novo pragmatismo.
O primeiro, que denominei Ocupar a Borda, pode ser lido de muitas formas. Primeiro,
e principalmente, como a Morada da Paz toma o conceito de borda da permacultura, fazendo
dele outra coisa. Estende suas noções para outras finalidades, para outras composições que
respondem ao desejo de não participar de uma percepção política que opera pelo binarismo
centro e periferia. Ao contrário, institui a borda como um espaço a ser habitado e que, para
tal, precisa ser criado. Essa criação, que denominei ‘pragmática da borda’, envolve quatro
ações principais – reencontrar, reconhecer, recuperar e sonhar –, que são também
experimentações de uma resposta à “intrusão de Gaia”. Utilizando-me desses termos, e do
modo como são postos em funcionamento na comunidade, apresento como a Morada da Paz
começou, quem são suas principais protagonistas, como participam de um território físico e
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quais são as bases que sustentam a existência e permanência da comunidade. Trata-se de um


capítulo que apresenta aos leitores uma compreensão básica da história da comunidade.
O segundo capítulo eu denominei Ocupar o feminino. A comunidade retoma uma
designação tão cara aos debates sobre gênero, o feminino. Quando ouvimos o termo, logo
associamos às características de gênero ou de sexo. É um termo amplamente divulgado e que
muito nos acomete desde o início de nossa socialização no mundo. Aqui, ocupar ganha outros
contornos, porque nos obriga a duvidar daquilo que sabemos que é feminino para
experimentar um outro uso possível. O feminino, na Morada da Paz, surge como força. Não
como identidade apenas, tampouco como consequência de um sistema de gênero opressor,
somente. O feminino existe em relação com o masculino e suas relações são múltiplas, cujas
atribuições variam de acordo com os contextos. Na comunidade, é acionada como uma força
criativa capaz de agir no mundo. É sobretudo dessa forma que a Morada da Paz constrói sua
existência enquanto uma curandeira, não apenas entre os humanos, mas em uma perspectiva
ecológica de “interconexão com toda a vida”.
O terceiro capítulo eu nomeei Ocupar o kilombo. Aqui temos que perceber que ocupar
também opera de outra forma. Ocupar o kilombo é sim ocupar um território quilombola – tal
como reconhecido pelo Estado -, e também adotar uma identidade singular de kilombola (com
k), afirmando-se não remanescentes, mas sobreviventes de um passado escravagista. Mas é,
sobretudo, criar linhas de fuga aos modelos instituídos, que operam inclusive na língua.
Linhas de fuga que são como o “a mais”, dito pelo interlocutor de Opipari quando respondeu
a ela sobre aquilo que existe para além da mente e do corpo, na percepção do que é a pessoa
no candomblé. Há um “a mais” à identidade kilombola, que gera uma série de leituras em
negativo daquilo que não se quer ser, para conseguir fazer de outro modo. Trata-se de um
constante traçar o diferencial. Ocupar o kilombo está atrelado a esses movimentos, e o
conceito que me auxilia nessa descrição é o de “máquina de guerra”. Esse capítulo me parece
ser sobre aquilo que se nega, e os motivos que levam à negação, não para julgar, mas para
afirmar a si mesmo. Para além disso, obriga-nos a pensar as questões e os desafios que
surgem desse processo. Por isso apresento as relações de vizinhança e de distanciamento que
as integrantes da Morada estabelecem com outros movimentos e coletivos – sejam eles
permaculturais, negros, feministas, classistas ou outros –, um modo particular de realizarem
alianças e as experimentações atuais que possibilitaram a criação de duas ideias fundamentais
para a Morada, a Pedagogia do Encantamento e a Ekonomia do Afeto.
Por fim, denominei o último capítulo, que é também a conclusão, de Ocupar a pele de
papel, onde desenvolvo como a Morada da Paz ocupou o texto etnográfico. Essa finalização
refere-se sobretudo ao que posso contribuir para o pensamento antropológico através da
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relação que estabeleço com a Morada, permitindo que o texto seja por ela ocupado de muitas
formas. Não apenas num esforço da antropóloga na busca de uma simetrização de saberes –
como requer toda antropologia que me parece interessante –, mas com a participação
constante e ativa das mais velhas da comunidade na composição do texto. Que esta tese possa
fortalecer as potências revolucionárias da Morada da Paz, da mesma forma que a Morada da
Paz fortalece as potências contracoloniais da Antropologia. Esse é o esforço aqui,
independente se bem feito ou não - e as responsabilidades sobre isso, evidente, cabem
exclusivamente a mim.
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2. Ocupar a Borda
Não é na periferia que se formam novos nômades.
(Deleuze)

Figura 1: Casa Bio

Acredito que foi em um dos encontros da Gira de Amotara, trabalho realizado com
mulheres, que aconteceu essa fala. Estávamos sentadas em um ipadê, termo em iorubá para
designar as rodas de conversa, na Casa Bio, rodeadas por paredes construídas com fardos de
palha e barro. Em um determinado momento, Ys. nos dizia que, do modo como ela entendia o
mundo, não existia centro e periferia. Ela não concebia a Morada como periferia, pois não
adotava algum Outro como centro - seja esse outro o homem, o capitalismo, o colonizador, o
branco, a cidade, ou o que for. Também não tinha como propósito fazer da Morada o centro,
pois “sabemos o nosso tamanho. Sabemos que não somos maior e nem menor que ninguém.
Somos um jeito de ser e de viver”. Ela preferia outro termo, oriundo da permacultura, para
designar a Morada da Paz e suas práticas: a borda. Mas não apenas caracterizou a Morada
dessa forma, como incitou as ouvintes a também produzirem bordas em seus cotidianos: “É
preciso habitar a borda, criar a borda!”, dizia-nos enfaticamente.
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Naquele momento, não sabia ao certo o que significava borda, mas entendi como Ys.
colocou o conceito em funcionamento. Mais adiante, com o passar do tempo compartilhando
a vida na comunidade, percebi que a própria Casa Bio, oriunda de um processo de
bioconstrução, era recheada de bordas. Lembro-me de um lagarto que inúmeras vezes vi
cruzar a casa por dentro, cuja passagem para seus trânsitos nada mais era do que uma borda: o
encontro entre o piso de madeira e a parede de barro. Reparei também nas inúmeras
rachaduras das paredes de barro da Casa Bio por onde os insetos bordavam seus trânsitos. As
bordas eram feitas desses movimentos de ir e vir. Estávamos em uma casa viva.
Movida pela utilização desse conceito, fui buscar em textos sobre Ecologia e
Permacultura como ele é elaborado para tentar compreendê-lo melhor. O conceito de “efeitos
de borda” aparece de diversas formas em estudos de Ecologia. Seja no sentido aproximativo
ao conceito de “ecótono”, seja no sentido distinto deste segundo termo. Ecótono, borda e
fronteira são conceitos que tratam de zonas de transições entre dois ecossistemas, mas são
concebidos de diferentes formas, na análise de Milan e Moro (2016):

Bordas, ecótonos e fronteiras não são, portanto, sinônimos, e sim aspectos diversos
da representação da realidade. Ecótono é um conceito funcional ecológico e borda
um conceito espacial geográfico. Um ecótono pode ser estudado unicamente por
suas qualidades intrínsecas, enquanto bordas e fronteiras só tem sentido se estudadas
em função de suas qualidades extrínsecas. Ou seja, pela variação entre elementos
adjacentes, pelos fluxos existentes, ou não, de energia ou matéria, pelo efeito do
afastamento espacial gradual a partir de um limite.

As autoras demonstram que, apesar de pautarem-se nessas distinções, alguns


pensadores aproximaram o conceito de “efeito de borda” ao conceito de “ecótono” e, ao longo
dos anos, seus juízos sobre esses “efeitos de borda” variaram. Alguns biólogos afirmavam que
os ecótonos foram percebidos como um espaço de transição de um ecossistema a outro que
produzia um aumento positivo da biodiversidade local. Outros alertavam para os perigos
desse efeito, quando as áreas de transições afetavam diretamente as áreas em relação, seja
com a diminuição de espécies ou alteração na flora. Ou seja, não seria apenas uma área de
transição, mas também de tensionamento entre os dois ecossistemas em relação. Na
perspectiva das autoras, pode ser que a borda (enquanto um recorte espacial) coincida com a
região denominada “ecótono”, que implica uma série de processos de mudanças bióticas e
abióticas nas zonas mais fronteiriças de um ecossistema, produzindo uma condição do habitat
diferente daquela do interior, cuja principal característica é a instabilidade:

Significa que é uma área de tensão muito instável sem padrões próprios de
variabilidade e cuja estrutura (proporção de espécies, fisionomia, etc.) depende
inteiramente das tensões que se impõem a dois ecossistemas adjacentes e da relação
destes com os demais que o cercam. (MILAN; MORO, 2016, p.78)
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Há também pesquisas citadas pelas autoras que designam como ecótonos aquelas
bordas naturais, produzidas sem a intervenção humana, diferente das chamadas bordas
antrópicas, produzidas pela ação humana. Essas são caracterizadas da seguinte forma:

Em bordas naturais, as comunidades adjacentes possuem seu conjunto característico


de espécies acrescido daquelas pertencentes à outra comunidade, existindo, portanto,
uma sobreposição de espécies que buscam condições e recursos em uma situação de
equilíbrio (GATES; GYSEL, 1978). Por outro lado, bordas antrópicas estabelecem
influências negativas adjacentes, que afetam a densidade e a composição das
comunidades animais e vegetais que podem levar a alterações na riqueza,
diversidade, abundância, mortalidade, dinâmica sucessional, densidade
populacional, entre outros tipos de desequilíbrios (MILAN; MORO, 2016, p. 84)

Nos escritos sobre permacultura o conceito de borda assume um sentido mais prático,
visto que a permacultura não se propõe apenas a analisar processos, mas pensar e produzir
uma integração de agricultores com a biodiversidade local. Ali a borda também é concebida
como um espaço de transição entre dois ecossistemas. Peguemos o exemplo de um contraste
entre água e terra. A borda seria todo o intervalo que existe entre a água de um rio e a terra:
seria, portanto, aquela região úmida, composta de barro, onde se originam uma fauna e uma
flora particular, com elementos oriundos desses dois ecossistemas em relação e cujas
composições não são facilmente estruturadas – nem aquela oriunda da água, nem aquela
própria de ambientes de terra seca. Mas o encontro entre esses dois ambientes permite a
criação de um ambiente transitório, porém fundamental. Afinal, é ele que, de alguma forma,
permite que os dois ecossistemas coexistam e, ao mesmo tempo, se transformem. A borda nos
alerta para o caráter dinâmico dos ecossistemas e suas constantes variações, não sem riscos.
Pois há sempre o risco do alargamento da borda, que pode prejudicar a existência de um
desses ecossistemas. De todo modo, com a borda, nem tudo se torna terra, nem tudo se torna
água. Nem por isso a terra não será afetada pela existência da água e vice-versa.
A partir desses exemplos, o permacultor Mollison (1994, p. 27) nos alerta para a
importância de levar em consideração as bordas no desenho permacultural:

Os assentamentos exitosos e permanentes tem tido sempre os recursos de, pelo


menos, dois ambientes. (…) Podemos localizar nossas casas e assentamentos de
maneira que obtenhamos vantagem dos recursos de dois ou mais ecossistemas ou
podemos incrementar a complexidade de nossas propriedades pelo desenho e criação
de nossos próprios ecossistemas variados. Se não estamos localizados perto de uma
fonte de água, podemos fazer barragens e açudes, se vivemos em um terreno plano
podemos utilizar maquinarias para criar montes ao redor, se não possuímos um
bosque, podemos fazer nosso próprio bosque, ainda que seja em uma pequena
extensão. Até dentro de uma propriedade maior, podemos pensar em termos de
“bordas” para localizar elementos menores. Por exemplo, uma barragem pode ter
uma única forma e profundidade ou podemos construí-la com profundidades e
formas variadas.
49

Ocupar a borda é uma prática já conhecida por qualquer permacultor, seja na avaliação
do território a ser habitado, seja na produção de bordas para seu desenho permacultural. Da
mesma forma, acredito que a utilização que Ys. faz do conceito está próximo às utilizações da
Permacultura porque implica uma ação no mundo, a necessidade de criar bordas. Contudo,
Ys. torce esse conceito na medida em que o utiliza para outra finalidade, para pensar e
produzir a Morada da Paz e suas ações criativas, que rejeitam o centro, assim como rejeitam
ser postas ou colocarem-se na periferia de algum suposto centro. Dessa forma, retoma a borda
como espaço de produção da vida, como lembrou Mj., antiga iaô da comunidade, com uma
frase de impacto que Ys. lhe disse: “quero animá-la a viver na borda cortante do tempo.
Nasça para a vida a cada minuto!”.
Há aqui o primado das relações e das potencialidades que implicam, em detrimento
das estruturas ou dos poderes constituídos. Sigo Ys. e tomo a Morada como uma borda. É a
borda um território existencial24 a ser criado. Um espaço “entre” que não deseja impor-se
como centro, como uma estrutura estabelecida ou uma verdade absoluta, nem mesmo como
periferia de algum suposto centro, como ela caracterizou. O “entre” emerge como um lugar
habitável, mas também um lugar a ser produzido. Ocupar a borda, esse “entre”, é, parece-me,
conceber o caráter processual da Morada e entender que nada está fixado em normativas pré-
estabelecidas25.
É preciso lembrar: são mulheres negras saídas de Porto Alegre para fazer morada na
zona rural de Triunfo, saídas de uma percepção de espiritualidade vivida momentaneamente –
em terreiros e em casas espíritas –, para buscar uma vivência cotidiana e integral; saídas de
um modo de vida que consideravam adoecedor ou, como me disseram, insuportável
(incluindo os hábitos alimentares pautados em industrializados, agrotóxicos, transgênicos, e o

24A noção de território existencial, oriunda de Deleuze e Guattari, implica em agenciamentos que envolvem
elementos materiais e imateriais que constituem modos de existência. Território implica uma articulação entre
os sentidos etológico, subjetivo, sociológico e geográfico do conceito, um agenciamento de seres, fluxos e
matérias. Em um sentido amplo, Guattari e Rolnik (2007, p. 388) nos dizem: “Os seres existentes se organizam
segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território
pode ser relativo, tanto a um espaço vivido quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente
‘em casa’”.
25A borda também aparece intensamente ao longo da obra de Deleuze e Guattari, principalmente no platô
chamado devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível: “Nem indivíduo, nem espécie, o que é o anômalo?
É um fenômeno, mas um fenômeno de borda. Eis nossa hipótese: uma multiplicidade se define, não pelos
elementos que a compõem em extensão, nem pelas características que a compõem em compreensão, mas pelas
linhas e dimensões que ela comporta em ‘intensão’. Se você muda de dimensões, se você acrescenta ou corta
algumas, você muda de multiplicidade. Donde a existência de uma borda de acordo com cada multiplicidade,
que não é absolutamente um centro, mas é a linha que envolve ou é a extrema dimensão em função da qual
pode-se contar as outras, todas aquelas que constituem a matilha em tal momento; para além dela, a
multiplicidade mudaria de natureza”. Ou ainda: “Ora ainda a borda é definida, ou duplicada por um ser de uma
outra natureza, que não pertence mais à matilha, ou jamais pertenceu, e que representa uma potência de outra
ordem, agindo eventualmente tanto como ameaça quanto como treinador, outsider..., etc.” (DELEUZE;
GUATTARI, 1997a, p. 20)
50

consumo de modo mais amplo), para produzir um outro modo de vida, pautando-se na ideia
de que outro mundo é possível. Engajam-se num processo de fazer a borda, onde nada é
garantido de antemão.
Essa feitura é composta por diferentes agenciamentos que, na Morada da Paz, são
nominados de quatro diferentes formas: reencontrar, reconhecer, recuperar, sonhar. Em um
agenciamento não há aquele que afeta e aquele que é afetado. A relação é sempre dupla ou,
como nos diz Deleuze, de uma dupla-captura. Todo agenciamento é coletivo, pondo em jogo
“em nós e fora de nós, populações, multiplicidades, territórios, devires, afetos,
acontecimentos”, visto que todo agenciamento é fruto de outros agenciamentos e, portanto,
“nós só podemos agenciar entre os agenciamentos” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 43, 44).
Há outro aspecto que acredito seja importante lembrar sobre o modo como esses conceitos
aparecem no trabalho de Deleuze e de Guattari. Trata-se, sobretudo, da heterogênese
constituinte de um agenciamento. Guattari nos diz que um agenciamento é uma “noção mais
ampla do que aquela de estrutura, sistema, forma, processo etc. Um agenciamento comporta
componentes heterogêneos, tanto quanto de ordem biológica, social, maquínica, gnoseológica,
imaginária.” (Glossário esquizoanálise, 1986, p. 287 apud SILVA, 2004, p.23).
Reencontrar, reconhecer, recuperar, sonhar são agenciamentos que constituem o que
chamo de uma ‘pragmática da borda’. Durante o tempo dedicado ao trabalho de campo eles
me chamavam a atenção e, sempre que possível, retomava-os em notas. Mas havia, da minha
parte, uma insuficiência em distingui-los em seus sentidos, ainda que eu me utilizasse desses
mesmos verbos para pensar e produzir narrativas junto aos meus amigos e irmãos. Foi,
contudo, mergulhando nas narrativas sobre o surgimento da comunidade para a composição
textual, que percebi algo que estava muito evidente, mas que eu demorei para compreender.
Primeiro, são verbos que designam ações. Portanto, só ganham sentido quando postos em
funcionamento. Talvez, se eu questionasse alguém da comunidade, houvesse algumas
reticências e demoras para elaborar uma resposta para a questão “afinal, o que é um
reencontro ou um reconhecimento? Como diferenciá-los?”. Mas, sem dúvida, muito
rapidamente me assinalariam quando se reencontra algo ou alguém ou quando se reconhece
algo. Segundo, parecem derivações de uma mesma ideia, pois tratam, sobretudo, de
agenciamentos constituintes da borda em que a Morada da Paz produz a si mesma. Contudo,
ao longo da escrita fui percebendo algumas de suas sutis diferenças.
O exercício que realizo neste capítulo é desenvolver esses quatro verbos como me
foram apresentados, funcionando nas narrativas de construção e surgimento da Comunidade
Morada da Paz enquanto borda. As informações que apresento foram escutadas durante os
ipadês, onde as Yas narraram suas histórias para visitantes e integrantes da Irmandade, ou em
51

conversas paralelas. Não pretendo, com isso, esmiuçar uma biografia coletiva e muito menos
dos indivíduos que compõem a comunidade. Isso, sem dúvida, as mais velhas são muito mais
competentes que eu para fazer. Mas descrever como reencontrar, reconhecer, recuperar e
sonhar funcionam como ferramentas narrativas.

2.1 Reencontrar

Figura 2: Fogueira - Terreiro de Chão Batido 2018

A noção de reencontrar tem muitas formas de conceitualização. Uma delas, que me


foi ensinada em um dos cursos de Desformação26 desenvolvido pela comunidade, diz respeito
aos registros akáshicos, como já disse, uma espécie de consciência cósmica que resguarda em
si todas as possibilidades temporais do que foi ou poderia ter sido, do que é ou pode ser e do
que será ou poderá ser. O encontro entre duas pessoas, portanto, está contido nesses registros
akáshicos que todos os seres, através do exercício mediúnico, podem ter acesso. A
materialização desse encontro, portanto, é um reencontro, o que faz de todo encontro físico
um reencontro cósmico. Mas é dito reencontro também, e com maior frequência, para
designar os encontros que produzem efeitos, ou seja, que produzem uma espécie de

26A Desformação é um espaço de estudo prático sobre a mediunidade, desenvolvida no território.


52

excedente, uma potência que transforma mutuamente os seres em relação e abre


possibilidades de novas criações.
Nesse sentido, nem todo encontro físico é um reencontro, pois o reencontro deixa
marcas no mundo e potencializa conjuntamente as partes reencontradas. E é assim
reconhecido porque esse excedente é produto de uma história muito mais abrangente – seja
uma reencarnação passada que uniu as duas partes da relação, seja por um propósito
necessário a este tempo que possibilitou o contato entre essas mesmas partes. Os motivos são
variados e são sempre compreendidos a posteriori, ou seja, depois que o encontro se efetiva
enquanto reencontro. A frase que mais escutamos é “nos reencontramos”. Dessa forma, é
preciso acontecer o encontro para saber se este é um reencontro. A Morada da Paz, e antes
dela o grupo Cosmos, só foi possível por conta de uma série de reencontros que pretendo aqui
descrever.

***
Em 1998, Ed., ex-marido de Ys., fez uma viagem para o interior de São Paulo a
trabalho. Ele havia sido contratado para cuidar da iluminação em um evento, realizado por
diversos grupos que trabalhavam com o Mestre Ramatís 27, além de pesquisadores e cientistas
da Nasa. O objetivo do encontro era pôr em diálogo a espiritualidade e a ciência para um fim
em comum: fazer um “chamado pela Paz”. Esse “chamado pela Paz” alertava sobre a
crescente onda de devastação e guerra que se espalhavam pelo planeta Terra e a necessidade
das pessoas mobilizarem-se, fazendo com que pelo menos 3% a 5% da humanidade “vibrasse
em paz”. A constatação dos grupos que lá se reuniram era de que caso isso fosse alcançado, o
planeta Terra passaria da terceira para a quarta dimensão, com menos devastações e guerras.
Isso porque compartilhavam uma percepção trazida pelas entidades de que as sombras, o ódio
e a raiva estavam cobrindo quase 50% da humanidade, e foi dada a incumbência aos humanos
de produzir uma frente de ação sobre isso que seria, então, articularem-se para que a
humanidade vibrasse em paz pelo menos nesse acréscimo de 3% a 5%.
Assim que Ed. retornou a Porto Alegre, trouxe uma série de materiais do evento e, em
diálogo com Ys., concluíram que desejavam responder a esse chamado. Surge, assim, o Grupo
Cosmos em Porto Alegre, que tinha como princípio o estudo prático da mediunidade e da
paranormalidade com o objetivo de engajar-se na luta pela paz. Depois desse chamado houve
outro em 2008 e outro em 2012. Fato é que, segundo El., a humanidade não conseguiu vibrar
em paz de 3% a 5% naquele primeiro chamado – e não me foi dito se nos outros o objetivo foi

27Mestre Ramatís é uma conhecida entidade da Grande Fraternidade Branca e Universal. Há grupos que
trabalham especificamente com ele. Agregam grupos umbandistas, espiritualistas e, também, alguns centros
espíritas.
53

alcançado. Porém, analisando o momento de criação do grupo Cosmos, as mais velhas


constataram que a partir de 1998, ou próximo dessa data, muitos grupos começaram a surgir
com propósitos semelhantes, ainda que com formas diferentes. O Grupo Cosmos, em uma
ampla perspectiva, foi mais um desses grupos criados e articulados. Contudo, é importante
compreendermos que a possibilidade de criação e sustentação do grupo Cosmos só se deu por
uma série de reencontros anteriores e concomitantes a sua consolidação, que se entrecruzam e
se afetam. Reencontros entre pessoas, entidades, espaços, práticas e ideias.
A primeira formação do Grupo Cosmos, pelo que lembro, contou com a participação
de Ys., Ed. e outras duas pessoas. Aos poucos, os integrantes foram convidando mais
interessados para somarem-se. Ys., recém-formada em Serviço Social, convidou El., sua então
colega e amiga. Eduardo, que trabalhava no Hospital de Clínicas, convidou Ol., que
trabalhava no mesmo local, para participar do Cosmos. Ol., por sua vez, convidou suas filhas,
genros e sobrinhas – o que inclui Yb., Al, Bg., Ym. e Ik. Bg., na época namorado de Yb.,
estendeu o convite para sua mãe, Ly.. Evidente que outras tantas pessoas passaram pelo grupo
Cosmos, mas me referirei aqui especialmente àquelas que permaneceram na sua derivação, a
Comunidade Morada da Paz. Mais adiante, enquanto os encontros do grupo aconteciam na
Rua Dona Sofia, no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, algumas pessoas da região
frequentavam a pequena casa para receber passes e orientações. Foi assim que Ak. conheceu o
grupo e iniciou sua participação.
Mas como bem me lembra Ym. – quando pergunto a ela como as pessoas mais antigas
da Morada se conheceram –, essa é apenas uma possibilidade narrativa. Talvez a mais pobre,
visto a potência do conceito de reencontro para as pessoas da comunidade. Pois a formação
do grupo Cosmos não se dá apenas em uma cadeia de convites aleatórios. Afinal, por que
aquelas pessoas responderam ao chamado? Por que permaneceram na comunidade? São
questões que tocam as pessoas que ali se envolvem. E a resposta para tal está posta num
momento muito anterior na escala temporal, dada a saber por sonhos e intuições. As pessoas
que ali se encontram são pessoas que já estiveram juntas em outros momentos, “em outras
batalhas”, como me disseram. E seu reencontro no presente foi fundamental para possibilitar
a criação do que se tornou a Comunidade Kilombola Morada da Paz, que, por sua vez, só foi
possível por uma série de encadeamentos e fluxos que perpassavam as trajetórias de cada
uma. Mas, afinal, que fluxos são esses? Como ocorreram esses reencontros?
Ys. e Ed. desejavam iniciar um grupo que respondesse ao chamado feito no evento em
São Paulo, mas seus interesses não surgiram de forma aleatória. Houve uma confluência de
desejos entre o que fora apresentado em São Paulo e a vivência do casal em Porto Alegre. Ys.
nasceu em Porto Alegre e viveu parte de sua vida em Viamão, cidade da região Metropolitana
54

da capital. Filha de uma professora da rede estadual de ensino, de um pai não muito presente e
neta de duas Yalorixás. Desde pequena, conversava com os espíritos e com as entidades que a
acompanhavam. Sempre que podia, espiava as feituras rituais das casas de suas avós. Sua avó
paterna, com quem tinha mais relação, era feita na bacia de Oyó, e sua avó materna, na bacia
de Cabinda-Maçambi. Contou-nos em ipadê que sempre pairou a questão em sua família
sobre a casa em que Ys. faria a cabeça. Enquanto suas avós materna e paterna estavam
ansiosas em saber, a sua bisavó, caracterizada por Ys. como uma verdadeira bruxa, disse que
ninguém iria pôr a mão na cabeça de sua bisneta, pois Ys. era das sete linhas.
A designação de Ys. como das sete linhas pode ser compreendida de várias formas. Na
Morada, parece-me, a conotação dada à ideia de sete linhas é de que a cabeça do médium não
pertence a um Orixá específico, como no caso do Batuque ou do Candomblé. E que, portanto,
um mesmo médium pode receber muitas entidades, ou seja, tem um sentido mais próximo ao
que seria considerado na Umbanda. O comentário de sua bisavó, portanto, poderia estar
vinculado a isto: Ys. não pertenceria àquela ritualística própria do Batuque, pois já pertencia,
de alguma forma, às sete linhas. No caso narrado, esse pertencimento traz também uma
semelhança com alguns casos que encontramos nos materiais etnográficos sobre as religiões
de matriz africana onde, de alguma forma, certas pessoas não poderiam ser iniciadas, pois já
nasceram “feitas”28. Ys. parece ser um desses casos, o que fez com que ninguém “colocasse a
mão” em sua cabeça.
Sendo assim, ainda que acompanhasse as feituras ritualísticas das casas de suas avós
desde criança, Ys. não se iniciou no Batuque. Contudo, conta que Yemanjá e Oxalá a
desejavam como filha e assim a tomaram, mesmo sem nenhum procedimento ritualístico
tradicional do Batuque. De alguma forma, disse-me, ela já era filha de Yemanjá e Oxalá, visto
que seus pais biológicos eram respectivamente filhos de Yemanjá, sua mãe, e Oxalá, seu pai.
Ainda que fosse bastante curiosa e próxima das práticas ritualísticas de sua avó paterna, Ys.
conta que havia questões que não a deixavam confortável no terreiro. Uma delas era o fato de
muitas das ações não serem ditas, explicadas para ela. Com o passar do tempo, para além de
algumas discordâncias familiares, passou a se distanciar do terreiro.
Certa vez, quando tinha seus 17 anos, um de seus tios, que é cego, pediu para que ela o
levasse até um determinado lugar. Ela o acompanhou e, ao chegar, viu que se tratava de um
Centro Espírita Kardecista. Com alegria em rememorar esses momentos, Ys. relatou que ali,
assim que chegaram, um homem se apresentou para recebê-los e disse a ela, de forma um
tanto ríspida, que estavam atrasados. Incomodada com o modo como o senhor dirigiu a
28Esse é um tema bastante abordado pela literatura sobre religiões de matriz africana. Goldman, em seu artigo
sobre dom e iniciação (2012) aborda essa questão. Na Morada da Paz, a expressão “feitura” não é utilizada
para falar dos processos de iniciação. Contudo, é utilizada quando para tratar dos processos realizados pelas
casas de Batuque ou Candomblé.
55

palavra a ela, decidiu esperar seu tio no lado de fora do centro, até a sessão finalizar. Fez esse
mesmo percurso muitas vezes depois, a pedido de seu tio, sempre aguardando do lado de fora,
até que, por curiosidade e interesse, resolveu adentrar e participar da sessão. Conta que desde
então não mais saiu do centro, onde trabalhou cerca de 10 anos como médium.
Foi lá onde conheceu Mãe Preta. Contou-nos que naquele centro, ainda que se
apresentasse como Centro Espírita Kardecista para aqueles que procuravam atendimento e
conforto espiritual, aconteciam muitas outras manifestações nos seus rituais internos. Havia
uma senhora de mais idade que recebia Mãe Preta. Certa vez essa senhora, já muito doente,
disse a Ys. que Mãe Preta a havia escolhido para ser o seu canal depois que ela fizesse a
passagem, ou seja, falecesse. Dito e feito. Entre risos – quando estávamos no carro voltando
de Porto Alegre para o território da comunidade –, El. e Ys. relembravam esses
acontecimentos. El., que na época era amiga de Ys., disse que foi ao encontro dela quando a
viu sentada na calçada chorando, pois havia incorporado uma preta velha, mesmo depois de
ter se afastado das práticas rituais dos terreiros. Foi ali, em um Centro Espírita Kardecista, que
reencontrou Mãe Preta, com quem passou a compartilhar a vida inteira29.
Em um dos ipadês com alguns visitantes, Ys., ao narrar a sua história, disse que “a
ancestralidade chama”, que o Santo chama e não há como fugir. Acredito que seu encontro
com Mãe Preta carrega muito desses chamados. Certa vez conversávamos sobre a vida e então
falamos sobre Mãe Preta. Seria a mesma entidade que se manifestava naquela senhora do
centro espírita? “Talvez sim, talvez não”, respondeu ela. Durante a conversa, percebi que são
perguntas que parecem não fazer sentido. Fato é que Mãe Preta, naquele contexto, disse que a
queria como canal. E logo depois Ys. dá passagem para uma preta velha chamada Mãe Preta.
Parece-me que o que importa, no fim das contas, é o que Mãe Preta é capaz de mobilizar na
comunidade.
Enquanto participava do centro espírita, Ys. também cursava Serviço Social na
PUCRS. Era um curso novo e casava muito com os interesses da então jovem mulher. As
injustiças do mundo sempre a incomodaram, e pensou que o Serviço Social poderia ser uma
das formas de atuar para diminuir essas mazelas. Sua família não teria condições de pagar as
mensalidades e por isso conseguiu uma bolsa de estudos. Assim foi parar na PUCRS
(Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul). El. conheceu Ys. na Universidade,
pois eram colegas de turma. Contou-nos El. que, no primeiro dia de aula, Ys. já se fez
conhecer. Enquanto todos estavam na sala à espera do professor, na algazarra comum de

29A relação estabelecida entre Ys. e Mãe Preta pode ser aproximada a inúmeros casos relatados em terreiros de
matriz africana sobre o “santo de herança”(SOARES, 2014; GOLDMAN, 2012), ainda que essa herança não
passe pelo “sangue”, como em outros casos. Isso significa que uma entidade que trabalha com uma
determinada pessoa passa a trabalhar com outra após o falecimento da primeira. Esse procedimento, na
Morada da Paz, ocorreu com duas entidades principais: Mãe Preta e Xangô Agodô.
56

início de faculdade, Ys. tentava, em vão, fazer alguma dinâmica de apresentação entre os
colegas. El. contou que olhava para aquilo e ria, perguntando-se o que estaria ela tentando
fazer. Elas, as únicas negras da turma, construíram uma amizade que tem durado muitos anos.
El., naquela época, morava na zona norte de Porto Alegre, com seus pais. Vinha de
uma família de tradição sambista oriunda da cidade de Pelotas e arredores, sobrinha
emprestada de Giba-Giba30. A família de sua mãe era de Canguçu, região próxima a Pelotas e
uma das cidades do Rio Grande do Sul onde há mais quilombos. Diferente da história de Ys.,
sua família não tinha nenhum pertencimento a terreiros de Batuque, contudo, praticavam
muito a benzedura e a cura com ervas, principalmente a família de sua mãe. Conta que sua
avó, antes de El. nascer, frequentou um tempo a Umbanda, mas apenas isso. Já ela, desde
muito nova era frequentadora assídua de centros espíritas e terreiros de umbanda, ainda que
não tivesse participado ativadamente como médium em nenhum. Contudo, nutria muita
curiosidade com a mediunidade e a espiritualidade, querendo entender seus funcionamentos.
Formou-se em Serviço Social com o auxílio financeiro de seus pais e, enquanto cursava,
percorria muitos espaços onde aprendia sobre a espiritualidade. Em um determinado
momento encontrou um local ao qual dedicou-se como médium, a chamada Ordem da
Confraria.
El. possui uma mediunidade muito diferente de Ys. (aliás, todas as mediunidades são
diferentes, mas tecem entre si algumas semelhanças). Assim que entrei na comunidade, El.
disse-me que não trabalhava com o processo de mediunidade inconsciente, tal como outras
Yas da comunidade, e sua atuação passava por outros meios, que não incorporação. Sentia a
presença das entidades e intencionava suas forças às ações que desenvolvia, por exemplo,
com a manipulação de elementos da natureza. Na Ordem da Confraria, contou El., aprendeu a
entender os porquês dos atos mágicos – porque e como acender uma vela, porque e como
utilizar um elemento, etc. Aprendeu que mediunidade não se dá apenas por um processo de
incorporação, mas também ocorre a partir de muitas outras manifestações, tais como intuição,
manipulação energética de elementos ritualísticos, canalizações como escritas, desenhos,
melodias, entre outras tantas formas. Isso porque a Ordem da Confraria configurava-se como
um espaço de estudo da mediunidade, para além dos atendimentos espirituais que realizavam.
Por isso, tinham muitos cursos de formação, para os mais variados níveis, mesclando saberes
umbandistas e esotéricos.
Pelos relatos de El. e Ys., quando falam da Ordem da Confraria, não há dúvidas sobre
a importância que esse espaço teve para a posterior construção do grupo Cosmos e para uma
série de conhecimentos absorvidos e desenvolvidos no que se tornou, então, a Comunidade

30Giba Giba foi um importante carnavalesco do estado.


57

Morada da Paz. Isso ficou para mim bastante evidente quando, em uma das Desformações, El.
sentiu-se emocionada lembrando que era ela quem, alguns anos atrás, durante seu tempo na
Confraria, aprendia sobre essas mesmas questões que estavam sendo ali abordadas. Primeiro,
a compreensão da mediunidade como um aspecto orgânico e parte da condição existencial de
todos os seres vivos. É por isso que volta e meia as Yas discordam dos termos de alguns
centros espíritas que falam em “desenvolver a mediunidade”. Em resposta, dizem que
“mediunidade não se desenvolve, pois já se nasce com ela”. Segundo a percepção de que os
sujeitos são compostos por muitos corpos e pontos energéticos, os chakras.
A Ordem da Confraria, localizada no bairro Bom Jesus, da cidade de Porto Alegre, é
um espaço de estudo que agrega uma série de pessoas, muitos deles estudantes e acadêmicos,
interessadas em compreender e aprimorar seus conhecimentos e vivências sobre mediunidade.
Logo que El. iniciou seus estudos no local, convidou Ys. para participar. A partir desse
convite, Ys. e Ed. também estudaram e trabalharam durante um tempo na Confraria, antes da
criação do grupo Cosmos. Foi lá que Ys. reencontrou Seu Sete e pomba-gira Elo. Seu Sete
apareceu pela primeira vez para Ys. através de uma outra médium, que era clarividente. Essa
médium já havia visto Seu Sete próximo a ela, mas ele ainda não havia se manifestado. Eis
que, próximo ao peji, ao altar, ela pediu para Ys. se ajoelhar e entregou a ela uma faca.
Imediatamente Seu Sete se manifestou.
Desde sempre, contam, Seu Sete teve uma postura muito firme e presente, assim como
Mãe Preta, na condução da construção do grupo Cosmos e da Comunidade Morada da Paz.
Acompanharam o processo desde o início e, por isso, por tudo o que produzem e cuidam, são
considerados a Mãe e o Pai da comunidade e de todos que dela participam. Foi na Confraria
também que pomba-gira Elo se manifestou pela primeira vez em Ys.. Elo trabalhava nos
atendimentos espirituais abertos realizados na Confraria e era muito requisitada pelas
consulentes. Muitas das vezes que se manifestou em Ys., contou-nos um pouco da sua
história. Assim que começou a trabalhar com Ys., realizava trabalhos para mulheres que a
procuravam querendo encontrar um “par de calças” ou para afastar “um rabo de saia”. Ou
seja, sempre às voltas de problemas amorosos. Elo realizava esses trabalhos para suas
consulentes e em troca pedia perfumes, flores, lenços, brincos, vestidos ou rubro (como
chama batom). Como seus trabalhos eram certeiros, sempre recebia muitos presentes.
A mediunidade de Ys. é uma “mediunidade inconsciente”. É interessante conversar e
ouvi-la dizer que passou a vida inteira querendo tornar-se consciente dos processos que
aconteciam com ela durante a incorporação, sem depender de alguém para saber o que
acontecia, e de todo seu processo de aceitação de sua mediunidade e das relações de confiança
estabelecidas no grupo Cosmos e na Morada da Paz entre os cambonos (aqueles que auxiliam
58

e zelam pela segurança da entidade e do médium) e os médiuns. Por ser uma “médium
inconsciente”, toda vez que pomba-gira Elo deixava o corpo e Ys. retornava a si, não
lembrava de absolutamente nada do que havia acontecido. Via apenas uma porção de
presentes recebidos, com os quais não sabia o que fazer. Aquele excesso de dádivas a
incomodava. E havia um aspecto da Confraria que tornava muito desconfortável o trabalho
que desenvolvia, pois os cambonos não contavam a ela o que havia acontecido durante os
atendimentos ou como Elo realizava o seu trabalho. Certa vez alguém lhe disse quais os
trabalhos que Elo desenvolvia e Ys. ficou profundamente desgostosa deles.
Em conversa com Elo, Ys. disse que não trabalharia mais com ela se continuasse a
realizar trabalhos por “troca”. Essa relação entre Elo e Ys. contou com a mediação de Mãe
Preta que concordou com a decisão de Ys.. Elo, quando manifestada, contou, então, que toda
vez que tentava se aproximar de seu canal, havia um guardião, que estava ali atendendo uma
orientação de Mãe Preta, para que ela não tivesse acesso. Por isso narrou-nos as muitas vezes
que se aproximava e sentia a negação de Ys. em recebê-la, fato que a deixava muito triste. Ao
mesmo tempo, não queria abrir mão dos presentes que recebia. Então passou a vagar por
muitos terreiros, manifestando-se em outros corpos, mas sentia muita falta do canal que havia
escolhido para si: Ys.. Foi todo um longo processo para aceitar, então, não trabalhar mais por
“troca”, tal como o grupo Cosmos desenvolvia seu trabalho e a Morada da Paz deu
seguimento.
A saída de Ys. da Ordem da Confraria não ocorreu no mesmo tempo de El.. Ys. e Ed.,
que também havia iniciado seus estudos na Confraria, saíram no momento em que receberam
o “chamado para vibrar em paz” – como narrado anteriormente. Ainda que tenha aprendido
muito na Confraria, Ys. não concordava com a ética desenvolvida no local, principalmente no
que dizia respeito a relação entre médiuns e cambonos, visto a história com Elo. Como
percebia alguns procedimentos que considerou antiéticos, resolveu se afastar. Mas seu
afastamento não foi realizado por sua livre e espontânea vontade. Foi Seu Sete quem colocou
um ponto final na relação com o grupo. Ys. conta que cada médium da confraria possuía uma
sala para si, para guardar seus escritos e seus estudos. Em um determinado momento, como
um meio de pôr fim àquela relação, Seu Sete colocou fogo na sala. Queimou todos os objetos,
todos os materiais escritos e fotocopiados que Ys. guardava de anos de estudos sobre
mediunidade e paranormalidade. E disse que Ys. não precisaria mais de nenhum daqueles
materiais. Que começaria algo diferente. Seu Sete não é dado a atos de pouco valor. Ainda
hoje, aparece em situações consideradas muito densas. E naquela situação não foi diferente.
Assim que Ys. e Ed. se afastaram da Confraria para iniciar o grupo Cosmos, não
romperam por completo. Havia um trânsito entre esses coletivos. Algumas pessoas eram
59

convidadas pelo grupo Cosmos para realizar falas ou conduzir grupos de estudos. El.
continuou trabalhando na Confraria quando Ys. e Ed. criaram o Cosmos. E foi a partir de um
convite de Ys. que El. foi pela primeira vez ao Cosmos, que já funcionava como um grupo
organizado. El. conta que foi convidada para fazer um movimento de dança e quem a recebeu
foi Mãe Preta, com sua gargalhada e hospitalidade particular. Assim que foi pela primeira vez,
El. passou a frequentar com mais assiduidade até o momento em que resolveu sair da
Confraria, pois começou a perceber ações e comportamentos com os quais também não
concordava.
Paralelo a esses movimentos, antes da criação do grupo Cosmos, encontravam-se as
duas recém formadas. Seus respectivos companheiros acompanhavam as ações que
desenvolviam em torno da espiritualidade. Ed. de uma forma mais incisiva, pois também foi
fundador do grupo Cosmos, e o companheiro de El. de modo menos participativo, mas
convivia nas atividades que realizavam. O período inicial como assistentes sociais também
não foi fácil para nenhuma das duas, que precisavam se desdobrar em muitas para conseguir
sustentar a vida. Ys., como tinha o hábito da discussão durante as aulas na Universidade,
recebeu o convite para realizar mestrado na mesma instituição. E só realizou mediante o
recebimento de uma bolsa. El. foi trabalhar como assistente social, principalmente com
crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidade.
Paralelo a esses reencontros, de entidades, de espaços e de pessoas, outros eram
estabelecidos. Ed., engenheiro que então trabalhava no Hospital de Clínicas, conheceu por lá
Ol., que trabalhava na lavanderia do Hospital. Assim como estendeu o convite a outras
pessoas para participarem do Cosmos, convidou Ol. que, por sua vez, decidiu ir. Ol. morava
com suas filhas, irmãs e sobrinhas no bairro Partenon, numa rua comumente referida por
todas da comunidade como “Amália”. “Era praticamente uma comunidade”, relembra Ik.,
sobrinha de Ol., que cresceu no local. Seu pai trabalhava como caminhoneiro e foi sua mãe
quem cuidou de todos os filhos. Ali Ol. cresceu e educou suas filhas, que hoje também
participam da Morada.
Na verdade, Ol., que em termos de idade é a mais velha e carinhosamente chamada de
“vó”, foi uma das principais agregadoras da comunidade. Sua história é uma entre tantas
histórias de resistência das mulheres negras no contexto da diáspora africana. Oriunda de uma
família simples, Ol. precisou trabalhar desde cedo para auxiliar seus pais, por isso não
conseguiu finalizar o Ensino Médio. Logo casou com um rapaz do bairro cujo irmão veio a se
casar com uma de suas irmãs, conhecida com carinho como T. I., mãe de Ik. e de Ym.. O
casamento foi de muita ausência por parte de seu companheiro, tanto financeira quando
afetivamente. Ol. desdobrava-se para criar suas duas filhas, Yb. e Al., trabalhando e contando
60

com o auxílio de suas irmãs. Assim como a progenitora de Ik. e Ym., Ol. trabalhou boa parte
de sua vida como diarista, até que, depois de separada, resolveu voltar a estudar. Concluiu os
seus estudos no EJA e prestou a prova de concurso para trabalhar no Hospital de Clínicas,
sendo aprovada e chamada. Foi assim que conheceu, então, Ed..
Ol. sempre frequentou centros de Umbanda e centros espíritas, assim como suas filhas
e sobrinhas. Mas ela não gostava muito das casas onde havia sacrifício de animais, dos
trabalhos “fortes” como disse certa vez - o que fez com que a irmandade toda risse, visto que
outras tantas pessoas frequentaram durante muito tempo essas mesmas casas. Assim que
chegou na casa onde aconteceria o atendimento do grupo Cosmos, na rua Dona Sofia do
bairro Menino Deus, conheceu Ys., que a recebeu com muita simpatia. Eram poucas as
pessoas que trabalhavam como médiuns naquele contexto. Uma média de três ou quatro
integrantes para atender quem estava na assistência. Ys. perguntou se Ol. poderia auxiliá-los e
Ol., muito prestativa, disse que sim. Logo, então, Ys. pediu para que fizesse a preleção, ou
seja, que lesse um pequeno texto para todos os presentes e comentasse sobre ele, antes de
iniciarem os atendimentos. Ol., ainda que assustada, fez o que Ys. havia solicitado e ali se
iniciou uma relação de anos de participação, de amizade e de estudo. A mediunidade de Ol.
também se distingue das mediunidades de Ys. e El.. Enquanto Ys. é reconhecida por seus
intensos processos de incorporação, El. trabalha com as entidades de forma consciente, com a
manipulação de objetos rituais. Ol. trabalha com a mediunidade através de seus processos
criativos e intuitivos - é, sem dúvida, uma das pessoas mais habilidosas na feitura de
artesanatos e costuras.
Assim que começou a frequentar o grupo Cosmos, Ol. convidou suas filhas para
participar. Al. tinha apenas treze anos na época e Yb. tinha dezessete anos. Convidou também
algumas de suas sobrinhas, como Ik., Ym. e Aa.. Todas tinham um vínculo com terreiros de
Umbanda e centros espíritas, como frequentadoras. Mas Ik. e Aa. possuíam um vínculo ainda
mais intenso, pois foram “feitas” em um terreiro de linha cruzada 31. Ik., quando narrou sua
história, disse que vem de uma família onde o pai era muito ausente, não ajudava em nada, e
era bastante violento. Sua mãe, por conseguinte, tinha um “padrão vibracional de suprir o
alimento”, trabalhava muito, por isso ficava muito tempo fora de casa. Sua tia, irmã de sua
mãe, era quem fazia os corres de acompanhar a ela, a sua irmã e algumas de suas primas e
primos até o colégio e outros espaços. Aliás, disse-nos que desde sempre havia uma relação de
solidariedade intensa entre suas tias e sua mãe, pois nunca faltava comida para ninguém, nem
cuidados básicos, muito em função dessas redes de solidariedade. Com vistas a auxiliar a sua
mãe com a manutenção da casa, tanto Ik. quanto Ym. começaram a trabalhar desde cedo.

31Trata-se de casas que trabalham com Umbanda, Quimbanda e Batuque.


61

Ik. contou que na família havia muitos movimentos “estranhos”, que começaram com
a prima dela, Aa., e depois com ela mesma. Aa. recebia pomba-gira a qualquer momento…
Estavam tomando café e a pomba-gira se apresentava, estavam em qualquer atividade
cotidiana e a Gira fazia-se presente. Ik. era muito próxima de Aa. e as duas saíram em busca
de terreiros que poderiam segurar Aa.. Percorreram muitas casas de religião, até encontrar um
terreiro muito simples, um casebre localizado em Viamão. Lá, a mãe de santo garantiu que iria
segurá-la. Aa. e Ik., que não eram muito diferentes em relação à mediunidade, começaram a
frequentar mais aquele terreiro – onde logo numa gira de Exu Ik. incorpora uma pombagira –
e decidiram se iniciar na casa. Primeiro no que consiste o lado da Umbanda e depois na
Nação, como é conhecido o Batuque.
Contudo, com o tempo, Ik. começou a se incomodar com certas situações que
ocorriam no terreiro. Quando decidiu iniciar-se na Nação, a mãe de santo designou-a filha de
Iansã com Ogum. Certa vez, antes de sua iniciação, acompanhou sua mãe de santo e irmãs de
santo em uma festa de Batuque onde incorporou. Sua mãe de santo rapidamente empurrou e
repreendeu a entidade que estava manifestada, machucando o corpo de Ik.. Isso porque,
segundo as regras de sua casa, era percebido como um desrespeito o Orixá de um filho-de-
santo se manifestar primeiro na casa de outra pessoa. Contou também que em outro contexto,
em uma sessão de Umbanda, na casa de sua mãe de santo, Ik. deu passagem para Oxum,
entidade que não era esperado Ik. manifestar. Isso gerou um tensionamento entre ela e a mãe
de santo, que a repreendeu por isso. Essas situações e as lógicas de incorporação da casa não
eram conversadas, nem estudadas, nem explicadas para aquelas que estavam se iniciando.
Não entendia o porquê da entidade não poder se manifestar e não entendia o que ela deveria
fazer para a entidade não se manifestar, pois o Orixá se manifesta quando deseja, disse-me
ela. Ik., assim como Ys., possui uma mediunidade inconsciente e seus processos são muito
intensos. Como diz Mãe Preta, são médiuns sem rodinhas.
Sem rodinha é uma expressão utilizada por Mãe Preta para se referir a um tipo de
mediunidade. Como dito, na comunidade, trabalha-se com a ideia de que a “mediunidade é
orgânica”, ou seja, compõe todos os corpos dos humanos e animais, participa da vida
cotidiana de todas as pessoas e pode se manifestar de inúmeras formas. Há quem se expresse
pela pintura, pela música, pela escrita, pela fala; há processos intuitivos, sonhos, clarividência,
escuta; há relações em que as entidades estão encostadas no médium; e há processos de
incorporação consciente e inconsciente. Ao conceber a mediunidade como um elemento
orgânico, constituinte de todos os corpos, percebe-se o corpo humano – e dos animais também
– formados por uma série de pontos energéticos, chamados de chakras. Esses chakras, cujos
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mais conhecidos são sete32, foram didaticamente explicados por Mãe Preta como buraquinhos
de entrada e captação do cosmos, a partir do qual os sujeitos são atravessados pelas mais
diversas forças.
Fato é que Ik., naquela época, não tinha muita noção do que era a mediunidade. Nem
conhecia essa expressão, que, aliás, não é comum nas casas de Batuque. Foi descobri-la no
grupo Cosmos, quando resolveu ir a um dos encontros, junto com sua prima Aa., a convite de
sua tia Ol.. Aa. também frequentou um tempo, mas não continuou. Já Ik. começou a se
envolver com o Cosmos. Sentia-se, a princípio, culpada por frequentar dois lugares ao mesmo
tempo, como se isso fosse uma espécie de traição com o terreiro de sua mãe de santo. Com o
tempo optou, então, por ficar apenas no grupo Cosmos. E decidiu “lavar a cabeça” e se
tornar, ela mesma, a “guardiã de sua própria cabeça”. Ik. lembra com carinho como foi o seu
encontro com o grupo. Na época, trabalhava na Pizza Hut de um Shopping, e assim que
chegou ao grupo Cosmos foi recebida por todos. Ys., ao se aproximar de Ik., questionou se
ela, por acaso, trabalhava com comida, e Ik., surpreendida, respondeu que sim. Logo Ys.
comentou sobre a potência da comida, pois a partir dela se pode nutrir ou matar alguém. Fala
que Ik., em ipadê, relembrou com carinho, pois descortinou uma série de possibilidades e
poderes da espiritualidade presentes nas atividades cotidianas que na época realizava.
Durante um tempo Ik. permaneceu tanto no terreiro em Viamão, quanto no grupo
Cosmos. Mas assim que lavou sua cabeça, passou a participar apenas deste último. Houve um
processo de negociação com as entidades que respondiam através dela para fazer a transição,
visto que as ritualísticas são consideravelmente diferentes. Havia entidades que se
manifestavam no terreiro anterior e que não se manifestaram mais durante seu trabalho no
grupo Cosmos. Da mesma forma, houve entidades que a acompanharam, e outras que
passaram a desenvolver uma relação com ela apenas no grupo Cosmos. Iansã, por exemplo,
nasceu no terreiro que Ik. frequentava e, através de um processo de negociação e conversa
com a entidade, manifestou-se no grupo Cosmos. “Eu acho que é a mesma… ou pode não ser
também, sei lá”, disse-me Ik. em um determinado momento. Mas parece ser um comum
acordo entre todos que a Iansã de Ik., assim como a Iemanjá de Ys. são de Batuque ou da
Nação. Mesmo que Ik. tenha lavado a cabeça e que Ys. nunca tenha passado por um processo
de feitura das casas de Nação, com sangue animal.
Da mesma forma, a Padilha, gira que trabalha com Ik., manifestou-se pela primeira
vez no terreiro de Viamão, e foi todo um processo de negociação com a gira para ela não

32Os Chakras são pontos energéticos que constituem todo o corpo. Através deles nos relacionamos com o
cosmos. São sete, a saber: o chakra coronário, localizado no centro da cabeça; o chakra frontal, localizado na
testa; o chakra laríngeo, localizado na região da nuca e garganta; o chakra cardíaco, no coração; o chakra plexo
solar, na região do estômago; o chakra esplênico ou sexual; localizado na região da bexiga/útero; e o chakra
básico, localizado próximo ao ânus.
63

trabalhar mais por “troca”, nem com álcool ou cigarros, assim como aconteceu com pomba-
gira Elo. Isso porque as Giras que são permitidas entrar na Comunidade Morada da Paz são
alinhadas com a pomba-gira Elo, ou são por ela resgatadas para um processo de diálogo
quando ali incorporadas. Ainda que algumas entidades tenham acompanhado Ik. nesse
percurso para o grupo Cosmos, outras não a acompanharam. E os motivos para isso também
variam. Ou porque não aceitaram as ritualísticas ali desenvolvidas, ou porque foram entidades
que se aproximaram dela por indicação e sugestão da mãe de santo anterior. Como, por
exemplo, quando a mãe de santo orientou que Ik. trabalharia com uma determinada entidade
que, de fato, ela trabalhou durante o tempo em que esteve lá, mas que não mais se manifestou
assim que saiu da casa.
Das fundadoras da Comunidade Morada da Paz e parentes de Ol., Ik. foi a única que
percorreu esse caminho por um terreiro de linha cruzada. Tanto a sua irmã, Ym., quanto suas
primas Al. e Yb., experienciaram e iniciaram os estudos dos processos mediúnicos no grupo
Cosmos, ainda que relembrem momentos de suas infâncias onde os processos intuitivos e
alguns desmaios constituíam parte do que chamam mediunidade. Dentre todas, Ym., hoje
Yakekerê – mãe pequena - da Comunidade Morada da Paz, foi a última a frequentar o
Cosmos. Ym., irmã de Ik., também cresceu na Amália, rodeada de suas tias. Desde de cedo
começou a trabalhar para auxiliar sua mãe. É mais velha que Ik. apenas alguns anos, sendo a
segunda filha mais velha de uma família de quatro filhos. Ym. sempre foi muito
independente, e desde jovem nutriu um desejo intenso de sair da casa de sua mãe. Na época,
trabalhava na parte administrativa de uma empresa e, assim que conheceu um rapaz, um
pouco mais velho que ela, resolveu morar com ele. O que aparece com destaque nas falas de
Ym. e de Ik. é a ausência do pai, a busca eterna para que ele pagasse uma pensão para auxiliar
nos gastos da casa, o trabalho intenso da mãe para mantê-las e a necessidade que elas tiveram,
desde jovens, de auxiliar economicamente em casa.
É muito interessante que Ol. e T.I. (como é conhecida a mãe de Ik. e Ym.), irmãs da
família Rocha, tenham casado ambas com dois irmãos da família David. E que tenham sido
exatamente as mulheres filhas de T.I. e Ol. que ajudaram a fundar a Comunidade Morada da
Paz. Ym. contou-nos, em uma reflexão sobre sua própria trajetória familiar, que percebia
haver um processo de negação da espiritualidade e da ancestralidade na geração de suas tias
e mães, tanto na família Rocha, quanto na família David. Primeiro, havia a avó delas, a avó
Mc., mãe de seu pai, que era mãe de santo em um terreiro. Depois, na geração seguinte,
apenas a Ir., irmã de sua mãe, trabalhava a espiritualidade em seu terreiro. Terreiro esse em
que Ik. e Ym. espiavam, sempre que podiam, os rituais que eram proibidos para as crianças
participarem – contam entre risos. Os seus outros tios e tias negavam a espiritualidade.
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Segundo Ym. aconteceu que essa negação teve consequências na geração futura, onde
Ik. e Aa., por exemplo, tiveram um processo muito intenso de mediunidade e que, de início,
não sabiam muito como lidar, e seu irmão mais velho também, o que levou a seu
envolvimento com drogas. Acabou que a negação da espiritualidade por uma certa geração
gerou, por consequência, o reencontro quase forçado da espiritualidade pela geração
posterior, dela, de sua irmã Ik. e de suas primas Aa., Al. e Yb.. Ym., apesar de frequentar
muitos terreiros como consulente, veio trabalhar como médium apenas no grupo Cosmos.
Hoje, dentre todas as entidades com as quais trabalha, desenvolve uma relação muito intensa
com Ogum Beira-mar que é, também, um dos principais guardiões da comunidade. Formou-se
recentemente em Ciências Sociais pela UFRGS, desenvolvendo sua pesquisa sobre as práticas
de brincadeira desenvolvidas pela comunidade, criando o conceito de etnoludicidade33.
Yb. e Al. eram as mais novas da família a integrar o grupo Cosmos. Al. tinha apenas
treze anos quando começou e Yb. dezessete. Na época, Yb. estava concluindo o ensino médio
e trabalhava em uma pequena empresa. Havia conhecido há pouco um rapaz, durante uma
temporada na praia, com o qual estava saindo e namorando - era o Bg.. Foi durante esse
período que convidou seu então namorado para conhecer o Cosmos, espaço de trabalho
espiritual que estava frequentando. Bg., nessa época, estava terminando o curso de Economia
na UFRGS e não sabia muito bem o rumo que tomaria na condução da sua vida. Tudo o
conduzia para trabalhar em uma empresa, como economista. Mas ao frequentar o grupo
Cosmos sua vida também teve grandes transformações.
A relação que Bg. tinha com a espiritualidade era a mesma que Yb.. Frequentava vez
ou outra alguns centros espíritas ou centros de umbanda. Contou-me entre risos que sua mãe,
que é branca, era mais batuqueira que a família de seu pai, que é negra. Quando os dois
casaram, Ly., sua mãe, não tinha o hábito de frequentar terreiros, e uma irmã de seu pai levou-
a para conhecer. Depois, passou a frequentar mais que a família de seu então companheiro.
Contou-me da lembrança de uma casa, no Bairro Santana, que muito frequentou e cuja
entidade guia da casa era um Caboclo, o Caboclo Arirajara, e outra casa, guiada por uma
senhora, cuja entidade que ali respondia era o Índio Campo Verde. “Tu vê, era um caboclo!”,
ressalta Bg., “meus ancestrais!”, destacando a relação espiritual com os povos indígenas. Bg.
trabalha muito com Oxossi e tem uma forte relação com os caboclos, com o chamado povo da
terra. Porque, além disso, é ele um dos grandes responsáveis e guardiões da gestão ambiental,
dos plantios e do manejo das hortas da comunidade Morada da Paz. São elementos que se
vinculam ao povo da terra, ao cuidado com o que é chamado pela comunidade e por algumas
entidades caboclas que ali respondem de Pacha Mama.

33 Como denomina os diferentes modos de brincar dos povos tradicionais.


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Foi Bg. que aproximou Ly. do grupo Cosmos. Assim como recebeu o convite de Yb.,
estendeu o convite para a sua mãe, que começou a participar. Como muitas das histórias de
mulheres, Ly. queria muito sair da casa de seus pais e ter sua vida independente. E o meio
pelo qual poderia fazer isso, naquela época, seria através do casamento. Acabou casando com
um rapaz, pai de Bg., mas sofria com essa relação, pois ele bebia bastante e discutiam muito.
Tentou retornar a casa de seus pais, mas sua mãe aconselhou-a a permanecer no casamento,
pois essa havia sido a sua escolha. Assim que Bg. e seu irmão tornaram-se adultos, e Bg.
anunciou para a família que iria casar, Ly. resolveu então se separar. Era pedagoga, professora
do município, e com o salário que recebia, sem preocupações financeiras com os filhos que já
estavam independentes, conseguiria se sustentar sem se submeter ao casamento que há tempos
já não desejava. E assim o fez.
Ly. conheceu o grupo Cosmos quando este ainda funcionava na pequena casa no bairro
Menino Deus, na Rua Dona Sofia. Aliás, devo dizer que todas essas histórias e trajetórias se
entrecruzaram enquanto o grupo Cosmos funcionava neste bairro, a primeira casa que
hospedou o recém formado coletivo. No bairro Menino Deus, na mesma época, também
morava Ak. com suas primas e tia. Em um dado momento elas perceberam que as crianças do
bairro começaram a sumir pela tarde. Depois de um tempo, descobriram que frequentavam a
casa onde funcionava o grupo Cosmos, local onde aconteciam aulas de capoeira, de inglês, de
reforço escolar e outras tantas atividades para crianças e adolescentes desenvolvidas pelo
grupo.
De início, as primas de Ak. frequentavam os atendimentos espirituais do grupo
Cosmos. “Diziam que toda semana chegavam lá mulheres negras lindíssimas e que faziam
trabalhos espirituais”, conta. Enquanto suas primas frequentavam, Ak. nunca se interessou
em participar. Nessa época, ela trabalhava como médium no terreiro de Umbanda de sua tia,
para o qual estava prometida como sucessora. Foi lá que começou a trabalhar com o Ogum de
Malê, com a pomba-gira Cigana, com as pretas velhas Tia Chica e Maria Gorda e com o Exu
Marabô. Ela havia sido escolhida por sua tia para dar seguimento ao terreiro, mas como se
aproximou do grupo Cosmos, acabou por não dar continuidade. Ak. é dessas médiuns sem
rodinha que nunca lembra que passou por um processo de incorporação e sempre desconfia
quando alguém afirma sua incorporação, o que é motivo de divertimento para todos - “Eu?
Incorporada? Mas eu não tava incorporada!!”.
Assim que suas primas começaram a parar de frequentar o Cosmos, Ak. resolveu se
aproximar – e enquanto contava sua história em ipadê todas riram com seu comportamento
“do contra”. Começou a frequentar o Cosmos e trabalhar ali como médium. Ela nos contou
que seu vínculo com terreiros é antigo e passa por toda a sua família por parte de pai. Sua tia,
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com quem morou, era irmã de seu pai, que era alabê nas festas de Batuque, filho de Xangô.
Mas o grupo Cosmos acabou tendo que se mudar do bairro Menino Deus, por uma porção de
fatores – pelo valor, pela necessidade de um espaço maior, por uma busca de maior conexão
com o ambiente rural. Dentre elas, o desejo comum e a orientação das entidades a procurarem
um espaço mais afastado, com maior “contato com a natureza”, para desenvolverem seus
projetos coletivos. Alugaram uma casa no bairro Vila Nova. Isso fez com que Ak., por
dificuldades financeiras de nem sempre ter condições para pagar a passagem até o local onde
o grupo Cosmos se instaurou, não conseguisse participar com assiduidade dos encontros,
ainda que muitas pessoas do grupo auxiliassem no transporte, seja com dinheiro para a
passagem, seja com carona.

2.1.1 Centro espírita ou projeto?

As mais velhas contam que subiam a ladeira da rua Cerrito, uma lomba muito
íngreme, para chegar até a casa que alugaram. Volta e meia aparecem na Morada da Paz umas
fotos antigas, daquele tempo, onde todos eram muito jovens, com vinte e poucos anos,
vestidos de branco e pés descalços, sentados no chão de uma casa de madeira, rodeados de
flores e dividindo alimentos. Era uma casa relativamente pequena, localizada em uma zona
mais rural da cidade. Ficaram cerca de dois anos no Menino Deus e quando houve a
necessidade coletiva de um “contato maior com a natureza” decidiram mudar-se para o bairro
Vila Nova, onde ficaram mais dois anos. É com muita saudade do vivido que as mais velhas
narram as experiências que tiveram no grupo Cosmos, suas descobertas e experiências com a
mediunidade e a espiritualidade, e a construção coletiva de relações de amizade tão
duradouras.
A noção de que a espiritualidade constitui toda a vida, e não é apenas vivida nos
momentos em que estão no terreiro ou no centro espírita, foi algo que foi aprendido
cotidianamente e constitui um dos pilares centrais da vida comunitária. Certa vez El. e Ys.
narraram um encontro que fizeram no Parque Marinha do Brasil, um parque de Porto Alegre,
sem nenhuma intenção ritualística, apenas para se encontrarem e partilharem algum alimento.
Fato é que aquele encontro derivou uma série de conversas que envolviam a espiritualidade.
Eis que o tempo rapidamente fechou e tiveram que sair do local, pois uma fortíssima
tempestade iniciaria. A reflexão que fizeram a partir disso é de que haveriam de tomar mais
cuidado com o que fosse dito e em quais contextos dizer. Concluíram que era preciso ter
cuidado com os encontros que realizavam, visto que interferiam no mundo. E o mundo, por
sua vez, interferia em seus encontros. Mas seguiram ainda mais na reflexão. A interferência,
por si só, não é problemática. A questão é que não sabem a quais propósitos certas
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interferências atuam. E por não saberem, precisavam tomar cuidado. Narrativas como essa são
constantemente tecidas e refletidas.
Conceber a espiritualidade como presente em todo e qualquer momento, incluindo um
ingênuo piquenique em um parque, traz algumas consequências, principalmente no que
consiste a certas orientações recebidas das entidades. As entidades, cujas histórias e origens
são as mais diversas, constituem diferentes seres que habitam o cosmos. Trata-se de um termo
genérico que abarca orixás, devas, mestres ascensionados e mestres ascensionais, caboclos,
pretos velhos, elementares, alguns eguns, espíritos de mortos, extraterrestres e tantos outros
seres que povoam o cosmos, como me foi ensinado. Na verdade, essas categorias de definição
das entidades são menos substancialmente demarcadas do que parece, e há intensos processos
de rasuras e fluxos de continuidade entre elas. Pretendo desenvolver sobre essas concepções
mais adiante, mas aqui é importante destacar que entidades são sobretudo seres que se
manifestam via incorporação, intuição, visualização, escuta ou sonho, que auxiliam no
processo de construção do que é a Morada da Paz e do que foi, também, o grupo Cosmos.
Muitas das entidades que se manifestaram no início do grupo Cosmos não mais se
manifestam. Outras, que há anos não se manifestavam, tornaram-se novamente presentes.
Outras, ainda, vieram apenas uma vez, trouxeram informações importantes, e informaram que
não mais voltariam, a menos que certos comportamentos e ações mudassem entre os
integrantes da comunidade. Cada entidade, portanto, tem seus ciclos de comunicação que se
relacionam com dias específicos, condições climáticas, necessidades de um determinado
tempo ou qualquer outra questão. Baba Afra, por exemplo, um dos principais guardiões e
Mestres que atuam na comunidade é caracterizado por ser uma entidade muito elevada e que
só se manifesta em tempos nublados. Foi-me explicado por Ym. que isso ocorria devido à
“densidade da terra”. O tempo nublado, de alguma forma, funcionava como uma capa
protetora que permitia a comunicação de humanos e não-humanos. Por isso, algumas vezes,
quando o tempo estava por muitos dias nublados, mesmo sem a incorporação de Baba Afra,
ouvi algumas vezes Ym. e Ys. comentarem que “Baba Afra estava na Terra”. O tempo
nublado acaba por ser ele próprio uma manifestação da entidade - relações essas fundamentais
para o que a comunidade volta e meia chama de eco-espiritualidade.
Uma das entidades fundamentais para todo o percurso e configuração do grupo
Cosmos e que, até onde sei, pouco ou nada se manifesta na Morada da Paz, foi Djey. Djey me
foi apresentado como um cavaleiro guardião que habita a constelação de Orion, que seria,
portanto, um extraterrestre. Sua manifestação no grupo Cosmos acontecia apenas uma vez ao
ano, sempre no mesmo dia, e trazia uma série de orientações que deveriam ser seguidas pelas
pessoas do grupo. Suas orientações funcionavam em etapas: cada vez que os sujeitos
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conseguiam atingir certas etapas, novas eram apresentadas. Aliás, sinto que até hoje a Morada
funciona dessa forma, e o objetivo é, sempre, “a busca por sermos pessoas melhores”, como
me disse certa vez Ym.. Foi Djey quem orientou a necessidade do grupo estudar a cultura dos
povos tradicionais, indianos, indígenas, africanos, entre outros, estudos que ocorriam sempre
no dia 13 de cada mês, dedicado à “celebração dos povos”. A partir disso, inúmeros
conhecimentos derivados das culturas orientais foram estudados e vivenciados pela
comunidade.
Uma de suas orientações foi a suspensão do consumo de carne, da bebida alcoólica e
do cigarro. Foi quando estávamos sentadas, pós-almoço de um domingo em um retiro que
realizamos na comunidade, que Ys. e Ak. contaram um pouco de como certas práticas
adentraram o cotidiano de cada pessoa. Disseram que não foi nada fácil para boa parte dos
membros do grupo abrir mão de certos hábitos, visto que muitos – se não todos – estavam
acostumados com o famoso churrasco no domingo, regado à cerveja. Sem contar que boa
parte também fumava. Parar o consumo de carne, álcool e tabaco foi processual para todos os
membros do então grupo. Orientaram-me da mesma forma, quando entrei na comunidade.
Entendem que nem todos conseguem realizar essas rupturas rapidamente e que cada pessoa
tem seu tempo específico para as transformações em seus hábitos. Como dizem as Yas, é
processual, mas isso não implica que a diminuição do consumo dessas substâncias seja
suficiente. É necessário interrompê-lo.
Entre risos, contudo, lembram os galetos que realizavam no bairro Menino Deus para
angariar fundos para seus projetos. Lembram que quando receberam a orientação para parar
de comer carne, já alocados na Cerrito, não havia muitos restaurantes vegetarianos na cidade.
Aliás, disseram que os vegetarianos eram vistos com “estranheza”. Nem mesmo elas sabiam
muito bem como ser vegetarianas. Eram estudantes, grande parte em busca de emprego ou em
empregos precários, e não tinham dinheiro para quase nada. Por isso, juntavam-se na casa que
alugaram na Cerrito para cozinhar, a partir da contribuição espontânea de cada membro, pois
sairia mais barato. Como não sabiam muito bem ter uma alimentação vegetariana variada,
viviam de arroz e brócolis. Ys. e Ak. contaram isso dando gargalhadas: “todo dia era dia de
arroz e brócolis”. O motivo para a interrupção do ingestão de carne foi trazido por Djey, que
disse a elas que tal consumo implica ingerir a dor e o sofrimento dos animais abatidos,
sentimentos condensados na carne consumida.
A mesma interrupção aconteceu em relação ao uso da bebida alcoólica e do cigarro,
que eram substâncias recorrentes no cotiano de muitas pessoas da irmandade. Não foi fácil
para ninguém, contam-nos, porque interferia diretamente nos hábitos e prazeres
desenvolvidos por cada um. O cigarro e o álcool, como nos é dito até hoje e como foi dito por
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Djey no início do grupo Cosmos, tem implicações no nosso corpo búdico, nos chakras
constituintes – trata-se de um dos corpos que constitui a noção de pessoa na Morada e do qual
tratarei mais adiante. Mais recentemente, quando eu já participava da corrente espiritual,
também chamada Irmandade, foi orientado também o não consumo de cebola e de alho com
essa mesma finalidade. Orientação semelhante encontramos nas práticas indianas de
alimentação ayurveda, pois, como dizem com frequência na comunidade, “a espiritualidade é
uma só”. O que as mais velhas nos ensinam é que estes elementos queimam os chakras,
dificultando, portanto, a comunicação mediúnica ou intensificando-a descontroladamente.
Nesse sentido, lembram de uma antiga médium que trabalhava no Cosmos que não podia
beber nada de álcool, pois logo dava passagem para alguma entidade. O problema, claro, não
é dar passagem, mas o contexto onde isso ocorre e qual entidade responderia.
Neste sentido, o álcool e o tabaco não são utilizados no cotidiano dos integrantes da
comunidade, mas são utilizados em momentos rituais específicos. O tabaco, com maior
frequência, utilizado principalmente pelas pretas velhas e pretos velhos. O álcool é utilizado
moderadamente pelos exus e giras em situações muito específicas – nada comparado às festas
de exu que encontramos majoritariamente nos terreiros. Isso porque entende-se que são
importantes portais de acesso, de comunicação e de cura – tais como o uso do tabaco para
curar enfermidades, como as práticas oriundas do xamanismo mbyá-guarani, ou o uso do
álcool para limpar certos ambientes. Mãe Preta, por exemplo, é reconhecida por seu cachimbo
e seus sopros curativos. Mas não apenas ela. Ys. também faz uso do tabaco para determinadas
situações de cura. E o uso desse elemento, que é um elemento de Mãe Preta, faz-nos perceber
que há uma imbricada relação entre Mãe Preta e Ys..
Da mesma forma que o álcool e o tabaco são apenas utilizados ritualisticamente, o
mesmo foi falado por Mãe Preta sobre a ayahuasca e a maconha. O assunto sobre o chá surgiu
depois de um Muzunguê, ritual de acolhimento e atendimento espiritual, quando uma
consulente grávida disse à Mãe Preta que frequentava algumas sessões de ayahuasca. Em um
momento em que estávamos muitos da Irmandade, Mãe Preta comentou sobre os efeitos do
chá no corpo das pessoas. Disse-nos que há grupos que fazem bom uso do chá, um uso
consciente, mas há outros que utilizam de forma desmedida e descompromissada. Aí que
reside, para ela, o perigo, pois a substância quando mal utilizada pode permitir a entrada de
seres e energias densas ou o descontrole do sujeito que toma.
Sobre a maconha, contudo, sua questão foi mais fundo. Alguns dos irmãos, antes de
entrarem na Morada da Paz, tinham o hábito de fumar maconha, com muita frequência. A fala
de Mãe Preta foi direcionada a esses irmãos, mas também a toda Irmandade, dizendo que ela
bem sabia que a planta, em si, é sagrada e com poderes de cura, assim como o chá. Porém,
70

questionou como a substância tem sido utilizada, de forma recreativa. Indagava como poderia
ser uma coisa boa de se colocar para o corpo, visto que carrega consigo muitas mortes de
jovens e crianças, muito sofrimento das mães, usos de armas, pobreza e miséria, entre tantos
outros aspectos que envolvem o tráfico de drogas. Da mesma forma que quando consumimos
carne colocamos para dentro do nosso corpo a dor e o sofrimento do animal abatido, quando
consumimos maconha colocamos para dentro do nosso corpo essa série de relações que a
constitui. As coisas, portanto, são estabelecidas por relações que, por sua vez, atuam na
construção dos corpos dos sujeitos.
Contudo, junto com a orientação de Djey para a interrupção do consumo de carne, de
álcool e do tabaco, ainda no grupo Cosmos, vieram outras. Trouxe também conhecimentos
oriundos da matriz budista, tais como o uso do gongo – que é utilizado diariamente em
horários e em um percurso específico ao longo do território da Morada da Paz – e a
importância da disciplina. Havia uma série de práticas e experimentações orientadas por essa
entidade. Por vezes ficavam dias no interior da casa, todos juntos, e só eram orientados a
saírem em um determinado horário. Eram inúmeros os desafios que eram postos para o grupo
e que foram intensificados com a passagem do tempo.
Contam que ele estipulava minutos para limparem a cozinha, organizarem o banheiro e
iniciarem os trabalhos espirituais. O tempo era rigorosamente cronometrado. Isso vai ao
encontro de uma situação que aconteceu comigo e Ik., quando íamos entrar no Templo, no
início da minha participação na Irmandade. Eu tirei os meus calçados e deixei-os levemente
tortos ao lado da porta da entrada, por onde adentram os integrantes da Irmandade. Ela
chamou minha atenção para deixá-los retos e alinhados. “Isso faz parte da espiritualidade”, e
completou, “é algo que aprendemos com o tempo”. A disciplina era uma característica muito
marcante no cotidiano do grupo Cosmos, assim como continua sendo no cotidiano da Morada.
Os ritos diários têm horários específicos para acontecer, como, por exemplo, o toque do
gongo. O mesmo com os ritos semanais e mensais. Além disso, há uma profunda preocupação
com a organização e limpeza, visto que são elementos constituintes da espiritualidade.
Limpar e harmonizar são termos que servem para o cuidado com os corpos - uma porção de
fluidos utilizados cotidianamente e banhos realizados quando assim forem orientados -, mas
também para os ambientes em que se vive.
Lembro-me de uma situação que vivenciamos durante um ipadê. Estávamos em roda,
sentados ao ar livre na área central da comunidade. Como de praxe, estávamos rodeados de
crianças, que se movimentavam livremente pelo espaço. As crianças, que variam entre 1 a 5
anos, corriam pelo espaço, enquanto conversávamos assuntos pragmáticos do funcionamento
cotidiano. Eis que, quando percebemos, elas estavam atrás da Casa de Ferramentas, onde
71

guardamos todos os materiais utilizados para a lida com a terra. Atrás dessa casa havia uma
porção de entulhos, tais como garrafas de vidro, caixas inutilizadas, ferros enferrujados.
Espaço, portanto, nada adequado para crianças pequenas. Preocupados, alguns irmãos foram
ao local retirar as crianças e Ys. fez uma importante reflexão. Disse-nos que as crianças são
profundamente sensitivas e que elas perceberam que há ali um campo denso, em desarmonia,
capaz de envolvê-las e provocar algum acidente. O que as crianças nos ensinaram, naquele
momento, a partir da fala da Ys., é que precisávamos atuar naquele espaço, limpá-lo e
harmonizá-lo, para evitar qualquer situação desagradável. A disciplina e a manutenção da
limpeza e harmonia, ensinamentos trazidos por Djey, até hoje ecoam no cotidiano da
comunidade.
Voltemos um pouco ao passado. A casa que alugaram na rua Cerrito, no bairro Vila
Nova, foi um dos lugares mais intensos da história do Cosmos, onde começaram a aprofundar
os níveis de solidariedade entre as pessoas do grupo. Perceberam que mesmo tendo se
afastado do centro da cidade, muitos consulentes que frequentavam o Cosmos para os
atendimentos acompanharam o deslocamento do grupo. Também perceberam que apesar de
tantas dificuldades dos médiuns para chegar até o local, as relações de solidariedade não
acabaram, ao contrário, intensificaram. Ym., na época, morava na Restinga, Ik., Ol., Al. e Yb.
no bairro Partenon, Ys. e El., na zona Norte da cidade, ou seja, todos lugares muito distantes
do bairro Vila Nova, que fica na zona sul da cidade de Porto Alegre.
Com carinho e nostalgia, contam que sempre que alguém precisava de ajuda, seja para
ficar com alguma criança, auxiliar na mudança de casa, acolher outros em sua própria casa,
seja no auxílio financeiro com passagem de ônibus ou outra questão semelhante, todos
estavam muito engajados em prestar esse tipo apoio. Mas junto com esses apoios também
havia incentivos, e um dos principais foi em relação ao estudo como uma ferramenta de
autonomia e libertação. Tanto para a educação formal, escolar e universitária, como também
para os estudos sobre mediunidade que ocorriam no grupo, muitos deles, como já dito,
orientados pelas entidades.
Contudo, as ações do grupo, desde quando existiam na rua Dona Sofia, não eram
apenas focadas nos estudos de mediunidade e nos atendimentos espirituais, pois realizavam
também atividades com crianças e adolescentes da região, entre outras ações. Contam que se
na Dona Sofia desenvolviam mais trabalhos de assistência social, na Cerrito o atendimento
era mais direcionado aos espíritos. Deslocavam-se em missões para abrigos, presídios e asilos
e, além do trabalho realizado nos locais, traziam consigo muitos espíritos – nas suas mais
variadas formas –, a quem direcionavam suas atenções e seus serviços. Por isso, permaneciam
muito tempo enclausurados na casa alugada, desenvolvendo esses trabalhos. Havia também
72

uma percepção coletiva de aproximação com a natureza, sendo que nenhum dos integrantes
possuía experiência com o meio rural, com o cuidado de plantas ou de animais. Essa
preocupação passou a existir desde a Dona Sofia, como me disse Bg., e se intensificou na
Cerrito. Aos poucos, devido ao vegetarianismo, foram conhecendo outros grupos que
possuíam éticas e ações semelhantes, tais como os restaurantes vegetarianos da cidade.
Em meio a todo esses processos e novidades que iam se apresentando às pessoas, seja
através das entidades, seja através dos estudos orientados, seja através dos reencontros que
desenvolveram ao longo do tempo, chegou um determinado momento em que Mãe Preta
trouxe uma importante provocação para o grupo: afinal, “vocês querem ser centro espírita ou
projeto?”. Confesso que nas inúmeras vezes que ouvi as fundadoras da Morada da Paz
relembrando essa frase de Mãe Preta eu pouco, ou nada, entendi. Por centro espírita eu
entendo um espaço única e exclusivamente de atendimento espiritual. Talvez com trabalhos
de caridade, como é costume ter nas casas espíritas kardecistas ou de umbanda. Aliás, percebi
também, nesse início da minha convivência na Morada da Paz, que o conceito de caridade
nunca foi utilizado e que os trabalhos sociais desenvolvidos pela Morada jamais foram
denominados dessa forma. E ouvi de Ys., certa vez, que a caridade servia mais ao alívio do
ego e da consciência do sujeito que auxilia do que, de fato, a um desejo de transformação do
mundo. Naquele momento em que Mãe Preta fez a pergunta, sabiam apenas que não queriam
ser um centro espírita, sem viver a espiritualidade cotidianamente. “Você vai lá, recebe seu
axé ou seu passe, volta pra casa e segue tudo igual”, comentou Yb. certa vez em tom crítico.
Mas, afinal, o que seria projeto? Assim que Mãe Preta levantou essa questão, cerca de
15 pessoas que se encontravam na rua Cerrito, e que desenvolveram ali uma convivência
bastante aproximada, foram para um sítio. Nesse sítio, não havia água encanada, nem comida,
nem nada. Porém passaram lá 12 horas consecutivas para decidir se queriam ser um centro
espírita ou um projeto. Ys. em um ipadê comentou que “da Dona Sofia para a Cerrito foi o
caminho de saber o que não queríamos. Da Cerrito para a Morada foi a construção do que
queríamos”, pois “a vida cotidiana já nos era insuportável”. Não queriam mais viver a
espiritualidade apenas alguns dias da semana, não queriam mais estar cada um em sua casa,
desejavam morar juntos. Não queriam mais viver na cidade, com suas muitas formas de
poluição, não queriam mais se alimentar de industrializados, de alimentos com agrotóxico ou
transgênicos. “Queríamos educar nossos filhos de outra forma”, continuou sua fala, “com
relações mais verdadeiras, mais amorosas”.
Escolheram ser um projeto, mas confesso que cada vez que escutava essa história eu
não entendia muito bem no que isso consistia. Aos poucos fui aprendendo que projeto carrega
muitos sentidos. Pode ser um projeto de vida em comum – a construção de uma comunidade
73

como residência –, ou pode ser um espaço que desenvolve projetos sociais variados, e não
apenas destinado ao acolhimento espiritual, tal como outros tantos centros espíritas. A
Morada da Paz é ambos, mas ainda assim não só. Foi quando as Yas me disseram que havia
um projeto de construção da comunidade Morada da Paz acordado entre seres humanos e não-
humanos, para durar dez mil anos, que eu entendi: a Morada da Paz é, antes de tudo, um
projeto de mundo, envolvendo humanos e não-humanos na sua construção. Assim que fizeram
sua escolha, logo veio a orientação de Mãe Preta para que então a construíssem: “vocês
querem ser projeto? Então sejam!”, dizia ela. E isso começava por morarem juntos, em um
local mais próximo à natureza e intensificarem suas vivências sobre a espiritualidade.
Paralelo a esses movimentos de construção coletiva do que pretendem ser, sem dúvida
estava um assunto que percorria diversas esferas da vida pública, política e acadêmica na
passagem do século, no que diz respeito à insistência da natureza nos seus desejos coletivos.
Tratava-se da entrada das questões ecológicas como uma pauta internacional. Na introdução
de sua tese de doutorado, Ys. nos apresenta seus percursos nos meios acadêmicos e na
fundação da Comunidade Morada da Paz, percursos esses que se encontraram e
potencializaram-se mutuamente em 2001 – ano que marca tanto sua iniciação no doutorado,
quanto a moradia no território que seria, então, a comunidade Morada da Paz. Um dos
aspectos mais interessantes na narrativa da autora e fundadora da comunidade parece-me a
relevância dada pelo então grupo Cosmos, grupo anterior a constituição da Morada da Paz,
“aos princípios norteadores da Carta da Terra, a unidade nas ações e o respeito à
diversidade” (DORNELLES, 2008, p. 31).
Ainda hoje, na comunidade, encontramos constantemente referências à Carta da Terra,
importante documento produzido pós-Rio-92/Agenda 21 e que foi amplamente divulgado em
2000 por uma entidade internacional independente, chamada Comissão da Carta da Terra. O
grupo Cosmos e sua escolha por ser projeto, portanto, reencontrava-se com modos de vida
não-ocidentais, orientações trazidas pelas entidades para o estudo no dia dedicado a
“celebração dos povos”, da mesma forma que reencontrava fluxos globais, tais como
preocupações ecológicas e luta por Justiça Ambiental.
Ao retomar o início da formação do grupo Cosmos em 1998, que atendeu a um
chamado de luta pela paz e da necessidade de um crescimento de 3 a 5% da “humanidade
vibrar em paz”, como havia me dito El., encontramos, por exemplo, o protocolo de Kyoto,
assinado por grandes potências mundiais em 1997, com o compromisso de diminuírem em
5% a emissão de gases causadores do efeito estufa. A pauta da Justiça Ambiental 34, ganhava
34Com o desenvolvimento tecnológico e industrial dos países ditos “desenvolvidos”, muitos rearranjos foram
realizados com o intuito de inserir indústrias poluentes (com grandes prejuízos ao meio ambiente e à saúde e
bem-estar da população) nos países “em desenvolvimento” ou “de terceiro mundo”. Como apontam Acselrad,
Mello e Bezerra (2009, p. 8-9): “Do mesmo modo, é nas áreas de maior privação socioeconômica e/ou
74

maior notoriedade nos Estados Unidos, mas não apenas, sendo a Carta da Terra um
documento em profundo diálogo com esses movimentos. A Rede de Justiça Ambiental
Brasileira, por exemplo, foi criada em 2001, mesmo ano em que os integrantes do grupo
Cosmos davam seus primeiros passos em direção à construção do que seria a Comunidade
Morada da Paz.
Poderíamos sobrecodificar a narrativa desenvolvida pelas mais velhas a partir do dito
‘contexto mais amplo’, onde os grandes temas globais, como a crise ecológica, ‘explicariam’
a criação da Morada da Paz como uma comunidade sustentável atuante na educação
ambiental. Mas, numa perspectiva reversa, é o tal ‘contexto mais amplo’ – eclodindo uma
porção de grupos preocupados com os efeitos ecológicos globais – que seria consequência de
um grande “chamado cósmico”. Foi nesse sentido que El. narrou o acontecido. Na época, em
1998, foi informado pelas entidades que ocorreria um chamado global para a luta pela paz.
Segundo ela, foi um chamado cósmico que foi atendido por diferentes grupos “com
roupagens diferentes”: tanto por grupos que desenvolviam, cada um a seu modo, a
espiritualidade, quanto por coletivos que não tinham a espiritualidade como elemento central
e aglutinador, ainda que sejam percebidos, pela Morada da Paz, como partes desse chamado
cósmico.
Foi o reencontro entre os integrantes do grupo Cosmos, e destes com as entidades
orientadoras dos trabalhos, com os diversos fluxos globais das pautas ecológicas ou,
poderíamos dizer, com a “intrusão de Gaia” (STENGERS, 2015a) no pensamento e nas
práticas políticas, que impulsionou a escolha de ser projeto e possibilitou a construção do que
hoje é a Comunidade Morada da Paz. Nesse meio tempo, muitos dos integrantes que
compunham a comunidade em seu início saíram, restando em grande parte, como apresentado
aqui, mulheres negras. Como elas mesmas colocam: “somos as que ficaram”, questão que
pretendo desenvolver no próximo capítulo.

habitadas por grupos sociais e étnicos sem acesso às esferas decisórias do Estado e do mercado que se
concentram a falta de investimento em infraestrutura de saneamento, a ausência de políticas de controle dos
depósitos de lixo tóxico, a moradia de risco, a desertificação, entre outros fatores, concorrendo para suas más
condições ambientais de vida e trabalho. Para designar esses fenômenos de imposição desproporcional dos
riscos ambientais às populações menos dotadas de recursos financeiros, políticos e informacionais, tem sido
consagrado o termo injustiça ambiental. Como contraponto, cunhou-se a noção de justiça ambiental para
denominar um quadro de vida futuro no qual essa dimensão ambiental da injustiça social venha a ser superada.
Essa noção tem sido utilizada, sobretudo, para constituir uma nova perspectiva a integrar as lutas ambientais e
sociais.”
75

2.2 Reconhecer: A chegada no território

Figura 3: Velha Centenária

Assim que Mãe Preta deu a orientação de que eles procurassem um lugar na zona rural
para fazer morada, todos iniciaram a busca, desde o ano 2000. Sem saber qual seria o lugar
predestinado a eles, questionaram a Yaba ancestral sobre como descobririam esse lugar. Mãe
Preta disse, então, que “duas velhas centenárias mostrariam o caminho”. É entre muitas
gargalhadas que contam que toda vez que uma senhora idosa se aproximava, ficavam
apreensivas pensando que seria ela, então, quem daria alguma pista sobre qual seria o lugar
em que se estabeleceriam. Enquanto as duas velhas centenárias não apareciam, buscavam
também pelos jornais algum terreno que estivesse à venda na região metropolitana de Porto
Alegre. Muitos dos terrenos anunciados não eram possíveis de serem comprados com os
salários que ganhavam. Para além da busca que empreendiam, havia também informações
sobre o local que chegavam aos integrantes do grupo Cosmos via mediunidade.
Além da informação trazida por Mãe Preta (incorporada em Ys. ou em outra antiga
médium do grupo que também dava passagem à entidade), de que duas velhas centenárias
mostrariam o caminho, um antigo médium do grupo Cosmos canalizou por desenho como era
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a entrada do território e desenhou em um papel. Lembro que a canalização, assim como a


incorporação e a intuição são formas de manifestação da mediunidade. Enquanto isso, todos
os integrantes do grupo Cosmos ainda procuravam o local. Até que Ys., viajando de uma
cidade do interior do Estado até Porto Alegre – percurso que fazia com muita frequência, pois
nessa época ela era professora em uma faculdade do interior –, intuiu que encontrariam o
terreno que buscavam em uma determinada região da BR-386.
Após a fala de Mãe Preta, o desenho canalizado pelo antigo médium e a intuição de
Ys., iniciaram a busca naquela região específica, que fica entre os municípios de Triunfo e de
Montenegro. Até que, então, encontraram um anúncio condizente com o valor que poderiam
pagar e foram até o local averiguar e conversar com o proprietário. Das quinze pessoas que
constituíam o grupo Cosmos, doze afirmaram o desejo de consolidação do coletivo enquanto
projeto. Porém, apenas algumas pessoas estavam presentes nesse primeiro contato, pois nem
todas podiam se deslocar. Lembro que apenas Ys. e Ak. aparecem nos registros fotográficos,
carinhosamente guardados pela comunidade. Dizem que a entrada do território foi tal como
descrita pelo tal médium, tanto a porteira como a distribuição de determinadas árvores. O
terreno era vendido por um senhor que utilizava o território para plantio de eucalipto e, em
termos de estrutura, havia somente uma pequena casa de madeira, bastante mal cuidada, com
um quarto.
Mas o que chamou a atenção daqueles que ali estavam, foram duas enormes figueiras,
centenárias, que foram mantidas pelo antigo dono. Descobriram, mais tarde, que havia não
apenas aquelas duas, mas outras espalhadas pelo território. Contam que foi no reencontro com
essas figueiras que entenderam a mensagem trazida por Mãe Preta. As velhas centenárias não
eram humanas, tal como esperavam encontrar, eram árvores. Quando as mais velhas narram
essa história, destacam sempre a mudança de perspectiva que Mãe Preta provocou nelas.
Passaram a reconhecer as árvores como seres vivos, ancestrais, que trazem informações e
histórias. Assim que reencontraram o território, que viram por desenho, via canalização, foi o
momento de mobilização para a sua compra, a fim de iniciarem a construção do que viria a
ser Morada da Paz.
A compra de um espaço coletivo foi um passo bem grande dado pelos integrantes do
grupo Cosmos. Quando foi feita a questão de quem moraria no território, algumas pessoas
disseram que não morariam. Ak., por exemplo, que hoje é moradora, foi uma dessas pessoas.
Houve um grande divisor de águas com a compra do território, nesse sentido. Isso porque o
local não é perto e nem de fácil acesso a Porto Alegre – naquele tempo o acesso era muito
mais difícil do que é hoje em dia. E, mais do que isso, o território precisaria ser
continuamente trabalhado, investido, e nem todos estavam dispostos a isso. Além do mais,
77

havia a questão financeira. Para a compra do território houve pessoas do grupo que venderam
seus carros e suas casas, os bens mais caros e permanentes que alguém poderia ter, para
juntarem o dinheiro necessário. Todos deram aquilo que poderiam contribuir para tal.
A questão financeira desde aquela época foi concebida como um assunto “denso”, pois
o dinheiro é um elemento de poder, como Ys. nos disse. Como todo elemento de poder, “pode
ser usado para todos os lados”, o que demanda muita sabedoria para manuseá-lo. Por isso,
Mãe Preta orientava para que isso não fosse motivo de conversa na época do grupo Cosmos,
como me disse Ik., após vivermos uma situação na irmandade bastante espinhosa em relação
aos gastos. Ou seja, ainda hoje, nas nossas reuniões de gastos mensais, o dinheiro ainda
produz um campo denso, como é costume designar, principalmente em um grupo cujos
membros têm vivências e possibilidades financeiras bastante díspares. Naquele momento de
compra coletiva de um território não foi diferente. Como alavancar um projeto coletivo e
espiritual sem cair na armadilha da posse, ou seja, na proporção de maior status e privilégio
àquelas pessoas que mais contribuíram financeiramente? Adotar a perspectiva da posse seria
ir de encontro ao que acreditavam ser a espiritualidade e à solidariedade que experienciavam
enquanto grupo.
Algumas estratégias foram elaboradas na época, que até hoje constituem as
perspectivas desenvolvidas pela comunidade no que chamam Ekonomia do Afeto (que
pretendo desenvolver mais adiante). A primeira delas é apostar que, enquanto coletivo, cada
um fornece aquilo que pode oferecer em termos de dinheiro – isso evita, conforme nos dizem
as mais velhas, cairmos em situações acusatórias que só tendem a dissolver os laços de
solidariedade –; a segunda é abandonar a ideia do dinheiro como única forma de contribuição
e adotar a perspectiva do recurso. Há muitas formas de recursos que não apenas o financeiro:
o tempo é um recurso, a natureza fornece recursos, a espiritualidade também fornece
recursos. Ao ampliar a noção de recurso, o dinheiro enquanto elemento de poder é posto
como mais um elemento e não como o central. São, sem dúvida, tentativas para não resvalar
na centralidade do dinheiro e em tudo o que essa centralidade pode causar – principalmente
em um contexto que, como caracterizou Mãe Preta em uma de suas manifestações, “tem o
dinheiro como Deus”.
Dessa forma, para dar conta das desigualdades econômicas internas, que
evidentemente existiam, adotaram como estratégia a coletivização de qualquer ganho
financeiro. Muitos trabalhavam e todo o dinheiro recebido era coletivizado e decidido em
ipadês quais seriam seus direcionamentos. Seja para estruturas da comunidade, passagens
para deslocamentos, necessidades de compras individuais, seja para qualquer outra demanda.
78

A coletivização, portanto, foi uma estratégia adotada frente aos perigos que o próprio dinheiro
pode causar. Até hoje é mantida essa organização financeira comunitária.
Foi no dia 24 de dezembro de 2001 que se mudaram de vez para o local. Eram em
média umas 10 pessoas, todas morando na única casa que havia no terreno. Nessa época, Ys. e
El. eram recém-mães. Dm. e Ay., os respectivos filhos delas, nasceram no mesmo dia e eram
muito pequenos quando decidiram comprar o território, tinham menos de um ano de idade. A
preferência para os confortos necessários era dada aos bebês. Contam que as condições de
moradia a que se submeteram eram bastante precárias. Contudo, foram ações fundamentais
para a concretização da comunidade. A casa em que moravam precisava de inúmeros reparos,
pois quando era tempo de chuva, boa parte dela alagava. Aos poucos, foram se habituando ao
território e investindo nos cuidados para que ele se tornasse um lugar mais confortável.
Como já dito, o território se situa na BR-386, em uma zona rural entre os municípios
de Triunfo e Montenegro. Encontra-se na Depressão Central do Estado, em uma região
conhecida como Vale do Caí. Participa da região metropolitana de Porto Alegre, na divisa
entre a microrregião São Jerônimo (conhecida como região carbonífera, visto o solo ser rico
em carvão mineral, e cuja base da economia é o Polo Petroquímico), e a microrregião de
Montenegro, cuja economia predominante está nas monoculturas de acácia e eucalipto. Como
destaca Dornelles (2008, p. 31), “adquirimos, na localidade de Vendinha, município de
Triunfo/RS, um espaço de 4,2 hectares com mata nativa, açude, córrego, etc...”. Além dessas
configurações, bastante interessantes, boa parte do território na época era utilizado para
plantação de eucaliptos, fato que gerou um longo processo de recuperação do solo.
De Porto Alegre, o terreno encontra-se a aproximadamente 55 km de distância, trajeto
comumente feito pelas moradoras da comunidade, desde que fizeram do território sua
moradia. Nessa época, Ys. era professora em uma Faculdade do interior do Estado e iniciava
seu doutorado na PUC, também em Serviço Social. Yb. e Ik. trabalhavam para o governo do
Estado, na PROCERGS35 e cursavam respectivamente Pedagogia na PUC e Letras na FAPA.
El. já trabalhava na Secretaria Municipal de Saúde, Ym. trabalhava em uma empresa de
contabilidade, atuando na área administrativa, e Bg., assim que se formou em Economia na
UFRGS, também trabalhava em uma empresa como economista. Ol. continuava em seu
emprego no Hospital de Clínicas, onde trabalhou até se aposentar. Ou seja, todos os
fundadores da Comunidade Morada da Paz, muitos morando no local, mantinham vínculos
empregatícios na cidade de Porto Alegre e em outras localidades, o que possibilitava manter e
investir economicamente na consolidação da comunidade.

35Companhia de Processamento de Dados do Estado do Rio Grande do Sul.


79

Se em final de 2001 eles mudaram para o local, independente das condições de vida
que ali existiam, foi apenas no início de 2002 que a comunidade Morada da Paz foi registrada
como ONG. Foi a forma que encontraram de criar uma pessoa jurídica coletiva para ser o
proprietário da terra. O nome, a construção de seus princípios, a formalização de seu estatuto
e a criação de sua forma jurídica ocorreram nesse meio tempo. O nome foi escolhido por um
antigo morador da comunidade, muito em função de como o grupo Cosmos havia começado,
numa tentativa de atender a um chamado global pela paz. Os princípios, criados desde aquela
época, são os mesmos até hoje e são rigorosamente seguidos. Caso haja a quebra dos
princípios, o integrante é convidado a sair da comunidade, a menos que haja possibilidade de
reconstrução dessas mesmas relações. São eles: determinação, respeito, receptividade,
compreensão, humildade, solidariedade e unidade.
Os meses que sucederam o dia 24 de dezembro de 2001 foram para delinear os
objetivos coletivos e como se organizariam. Esse movimento foi construído a base de muitos
embates de ideias e de perspectivas de vida. Contam as mais velhas que havia membros que
pensavam a aquisição do território como um espaço recreativo de final de semana, para
chamar a família e os amigos, mas isso ia de encontro às intenções espirituais que
mobilizavam. Era preciso, então, focar a energia na construção do que seria o estatuto, que
daria as condições necessárias para pensarem o que desejariam construir naquele espaço e
como se constituiriam enquanto coletivo. Isso é narrado sempre como um processo duro,
permeado de conflitos pessoais, que derivou a saída de algumas pessoas que “não
aguentaram a vida em comunidade”, como disse certa vez uma das Yas.
Em seu processo de fundação, a comunidade se organizou com a seguinte estrutura –
tomo aqui as informações apresentadas por Ys. em sua tese de doutorado cujo tema é a
participação e atuação da assistente social na construção de uma comunidade sustentável: um
Conselho Curador, “para zelar pelos princípios filosóficos da comunidade”; um Conselho
Gestor, “para operacionalizar as demandas administrativas” (DORNELLES, 2008, p. 76); e
sete áreas organizacionais que não foram referenciadas pela autora. A proposta de assim se
organizarem, diz-nos, permitiria fugir à lógica verticalizada da hierarquia funcional, buscando
uma organização que se pensasse mais horizontal. Os objetivos que constam até hoje no
estatuto da Comunidade são: a) promoção e qualificação educacional; b) desenvolvimento e
valorização ambiental; c) produção agroecológica de hortifrutigranjeiros para autoconsumo e
comercialização do excedente; d) promoção da saúde holística; e e) investigação da dinâmica
social. A Morada da Paz ganhava seus primeiros contornos enquanto projeto.
Enganam-se aqueles que pensam que as fundadoras não passaram por intensos
julgamentos de pessoas externas – seja das suas famílias, seja dos companheiros que
80

abandonaram esse projeto coletivo. Foram chamadas de loucas, de produtoras de uma seita,
irresponsáveis e tantos outros adjetivos acusatórios. Mas, apesar disso, a vida também trazia
muitas belezas. Foi durante esse período inicial que muitas crianças nasceram na comunidade,
para além dos primogênitos Ay. e Dm.. Yd., segunda filha de Ys., Sh. e Ns., filhas de Yb. e
Bg., e In., filha de Ym., chegaram no Ayê, termo em iorubá para designar o mundo dos
humanos. “A primeira leva de bacuri”, como costuma dizer Mãe Preta. A chegada de um
maior número de crianças impulsionou a Morada a realizar mais trabalhos com esse público.
Contam as mais velhas que de início o Cinepipoca, a Colônia de Férias e o Brincando
CoMPaz eram atividades que realizavam com as crianças da comunidade e que, com o tempo,
Mãe Preta orientou que compartilhassem com outras pessoas. Foi assim que muitos dos
projetos que hoje constituem a Comunidade nasceram e, com seus desenvolvimentos, levaram
à criação do Ponto de Cultura da Infância Omorodê, surgido em 2013, e da Escola ComKola
Kilombola Epè Layè, surgida em 2016. Apresentarei melhor o Ponto de Cultura e a ComKola
no terceiro capítulo desta tese.

2.2.1 Plano de ocupação

Figura 4: Caminho dos Mestres


81

Assim que delinearam basicamente o que seriam, iniciaram um intenso processo para
entender o lugar onde estavam e elaborar um “plano de ocupação do território”, termo
utilizado quando os fundadores chegaram ao local, que encontrei no Trabalho de Conclusão
de Curso de Gestão Ambiental de uma antiga irmã da comunidade. Bm., em seu trabalho, nos
diz que “a ocupação dos espaços foi executada a partir do Plano de Ocupação, criado para
que o modo de assentamento fosse ordenado e menos nocivo para o meio ambiente”
(GOULART, 2016, p. 20), e segue:

O Plano de Ocupação foi desenvolvido a partir dos princípios do “desenho


permacultural” ou design36, o que torna o território um espaço planejado para
práticas ecológicas e torna os indivíduos envolvidos seres em constante construção
de um novo modo de vida e no aprimoramento das práticas. A preocupação com o
meio ambiente e as formas de assentamento no espaço foram aproximando pessoas e
possibilitando a construção de parcerias com atores sociais que desenvolvem
projetos nessa área.

Permacultura é uma prática criada durante a década de 70 na Austrália, e Mollison a


define como:

um sistema de desenho para a criação de meio ambientes humanos sustentáveis. A


palavra em si mesma é uma contração não só de agricultura permanente, mas
também de cultura permanente, pois as culturas não podem sobreviver por muito
tempo sem uma base agricultural sustentável e uma ética do uso da terra. (…) Em
um certo nível, a permacultura trata com plantas, animais, construções e
infraestruturas (água, energia, comunicações). Contudo, a permacultura não trata
sobre esses elementos em si mesmos, mas sobre as relações que podemos criar entre
eles pela forma em que os localizamos na paisagem. (MOLLISON, 1994, p. 5)

Interessante perceber que o desenho permacultural construído na comunidade não


tinha por questão apenas o manejo da terra e de técnicas de agricultura orgânica, mas envolvia
uma série de outros aspectos, tais como um modo de gerenciamento de finanças, cuidado de
saúde e espiritualidade, educação e cultura, compreendendo todos esses aspectos da vida de
forma integrada. Contam as mais velhas que esse desenho permacultural, que permitiu a
execução do Plano de Ocupação, foi realizado com a ajuda de um casal de amigos, moradores
de outra comunidade rural do interior do estado. Ou seja, é notável que toda a construção e
planejamento territorial contou com a formação e auxílio de uma rede de atores humanos e,
como veremos mais adiante, não-humanos.
Depois daquele pequeno galpão existente quando chegaram ao território, aos poucos
foram construindo outras estruturas. Hoje o território possui cinco casas principais,

36“O design se refere a um planejamento que envolve, além dos aspectos técnicos das ações necessárias, uma
adequação temporal e econômica de sua implementação, além de uma predisposição a adequar-se às condições
ambientais do local onde se aplica respeitando sua dinâmica ecológica e se valendo positivamente dos recursos
locais.” (GOULART, 2016, p. 22, nota de pé de página)
82

localizadas todas relativamente próximas e ao redor de uma grande fogueira, caracterizada


como uma fundamental firmação energética da comunidade, do domínio de Seu Sete e de
Xangô Agodô, por onde toda e qualquer pessoa que adentra o território deve circundar. Além
dessas 5 casas, há outras duas, mais afastadas – o Templo e a Casa Mapuche. O território
conta também com dois pomares, duas hortas, a Horta dos pitocos, que é de domínio das
crianças da Escola ComKola Epè Layê, e a Horta de todos nós, onde plantam hortaliças e
legumes para consumo interno, um açude, um espaço dedicado às galinhas e patos, um espaço
destinado às cabras e quatro trilhas principais – o Caminho dos Mestres, a Trilha da Paz, a
Trilha Xamânica e a Trilha do Sultão das Matas.
A Casa Flor foi construída com madeira, e trata-se do local aonde apenas os
moradores têm acesso. Contam-nos as mais velhas, e Bm. descreve em seu trabalho, que essa
casa começou como uma pequena casa pré-fabricada, onde dormiam todos os moradores e
que, com o tempo, foi crescendo por meio de “puxadinhos”. Hoje é formada por sete quartos,
a sala dos Anciões e a Sala da Ecogestão. Mais adiante foi construída a Casa Verde, feita de
alvenaria, que constitui a casa com maior circulação de pessoas. Nos eventos organizados pela
Morada, a Casa Verde normalmente acolhe as pessoas externas. Seu espaço comporta a
biblioteca, a sala audiovisual, onde nos reunimos para assistir a filmes, tanto nos momentos de
lazer quanto nas atividades audiovisuais realizadas com as crianças e jovens, a lavanderia
coletiva, dois banheiros com chuveiro e o TASA (Templo Alquímico de Saúde Alimentar), que
consiste na cozinha e no refeitório. Próximo à cozinha, que conta com duas grandes pias, há
uma área aberta conhecida como bolicho. Lá, encontra-se outra pia, onde lavamos as louças
maiores em dias de eventos e rituais, e um forno de barro, construído durante uma das
atividades abertas que a Morada realiza com jovens, o chamado Ipadê da Juventude.
Essas foram as duas primeiras casas que surgiram. Ao lado da Casa Flor existia
também a Casa Yurtdésica, criada por bioconstrutor contratado. A Yurt foi construída com
bambu, retirados do próprio território, com o formato de uma cabana e coberta por lona. Na
Morada, era o espaço da Farmacinha Viva, onde uma série de plantas fitoterápicas eram
cultivadas, assim como os berçários de plantas a serem plantadas posteriormente.
Infelizmente, devido a uma forte tempestade relativamente recente, a estrutura havia se
desmanchado. Algumas das plantas continuam no local, outras foram levadas a uma estufa,
construída posteriormente, próximo à horta, através da assistência técnica da EMATER37.
Mais recentemente, encontramos ao lado da Casa Verde, a Casa Geodésica (fruto de
um projeto oriundo do Ponto de Cultura Omorodê), construída por um parceiro bioconstrutor
que desenvolve uma série de trabalhos com bambu. Ml., além de ser alguém muito próximo
37 Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural. Trata-se de uma empresa pública criada em 1966 que
presta serviço à população do campo.
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da Morada, é genro de um dos membros do Conselho Externo 38 da comunidade, do qual


falarei mais adiante. Além disso, Ml. e sua família são moradores do CEBB, o Centro de
Estudos Budistas Bodisatva, situado na cidade de Viamão, na região metropolitana de Porto
Alegre. A Casa Geodésica era utilizada para uma série de atividades, mas principalmente
atividades vinculadas ao Ponto de Cultura Omorodê. Atualmente é o principal espaço da
ComKola.
Há também a Casa Bio, que existe por meio de uma doação recebida durante o Fórum
Social Mundial de 2005, que ocorreu em Porto Alegre. Como parte das atividades do Fórum,
três casas foram criadas por um grupo de permacultores, que incluía tanto integrantes da ONG
Amigos da Terra, quanto do que então se tornou o IPEP – Instituto de Permacultura e Ecovilas
do Pampa. Durante esse mesmo Fórum, a Morada da Paz participou propondo uma mesa de
diálogo sobre sustentabilidade e espiritualidade. Foi essa participação que levou a
comunidade a entrar em contato com as pessoas envolvidas na criação dessas três estruturas, e
a pleitear uma das casas criadas por esse grupo de permacultores. Em 2005, com a doação da
Casa Bio, foi a primeira vez que a Morada da Paz abriu as portas de seu território para a
presença de pessoas externas, durante longos dias. Para a sua construção e finalização, foram
realizados diversos mutirões ao longo dos anos.
A. C., minha amiga pessoal e através de quem eu pude conhecer a Morada da Paz, foi
uma das permacultoras envolvidas no processo de construção dessas casas. As três casas
foram doadas para diferentes comunidades e, conta A. C., que apenas a Casa Bio, situada na
Morada da Paz, encontra-se em funcionamento. No momento da vinda da Casa Bio para a
comunidade, havia um objetivo específico: a construção do Templo onde as ritualísticas
pudessem acontecer. Foi com o intuito de cumprir essa função que a Casa Bio chegou até o
local. Contam que para a sua montagem foi preciso que as pessoas envolvidas na sua doação
estivessem presentes para erguer a estrutura. Por isso, foi a primeira vez na história da
comunidade que pessoas externas dormiram no território. Antes, por orientação das entidades,
as atividades que aconteciam eram pontuais, referentes à educação ambiental, e não envolvia
o pernoite. Foi com a chegada dessa casa que outra dinâmica passou a ser adotada.
A Casa Bio é uma casa feita de barro, conhecimento que chegou até a América Latina
através da forçada diáspora africana, explicou-me Ys.. Ela traz “a força dos povos africanos”,
assim me foi dito. Ela mexeu em muitos aspectos da vida comunitária. A equipe que
compareceu ao território foi bastante variada e contam as mais velhas que havia um rapaz, de
São Paulo e com descendência japonesa, que trouxe um aspecto que as fez refletir sobre quem
eram e algumas implicações da própria Morada. Ele disse a elas que a Morada era um

38 Trata-se de um grupo de pessoas próximas que são também conselheiras sobre ações a serem realizadas.
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quilombo contemporâneo, pois era formada por mulheres negras e homens negros oriundos
do meio urbano, que decidiram morar em uma região rural, e com uma forte dimensão
cultural e espiritual de matriz africana. Foi a primeira vez que alguém caracterizou a
comunidade como um quilombo contemporâneo, e isso trouxe outras tantas consequências
posteriores de recuperação de práticas e conhecimentos africanos.
Se essas são as casas que ocupam o espaço central de circulação, é importante ressaltar
que há também outros espaços. Um deles é a Casa Mapuche, situada próxima à entrada do
território. É o local de dormitório de S. P., agricultor, que não participa das ritualísticas da
Morada da Paz, mas divide o cotidiano com todos e trabalha no local com a terra, auxiliando
nos cultivos e em outros serviços gerais da Morada. Ressalto que S. P. chegou à comunidade
através de um dos membros do Conselho Externo da Morada que, conhecendo seu trabalho de
recuperação de solo e cultivo, e, sabendo de seu desejo em ter um espaço de moradia e
trabalho, convidou-o a conhecer a comunidade. Desde então S. P. mora no local. Além da
Casa Mapuche, há também o atual Templo, cuja estrutura foi construída por mutirão da
comunidade sob a orientação de Ié., amigo e antigo membro da irmandade. A estrutura do
Templo, diferente de todas as outras casas aqui narradas, é construída com compensado de
madeira. Antes do atual Templo ser construído, os atendimentos espirituais, tais como os
Muzunguês, aconteciam na Casa Bio.
Para além das casas, naquela época em que pensavam o Plano de Ocupação, também
pensavam como seriam gerenciados as águas e o lixo. Afinal, ocupar um espaço pautado no
que Ys. chama em sua tese de consciência ecológica implica em questionar sobre todas as
relações que estabeleceriam com o entorno, incluindo suas construções, o manejo das plantas,
relações com a flora e fauna local, tratamento da água e esgoto e manejo dos lixos – sejam
eles orgânicos ou secos. Para o manejo dos lixos, são realizados o processo de compostagem
com os alimentos orgânicos, cujo resultado é utilizado para recuperação do solo e cultivo de
hortaliças, e a separação do lixo seco, que é levado ao local para recolhimento pelos serviços
municipais – exceto os papéis, que são utilizados nos fogões à lenha. Já a água, utilizada para
abastecer as caixas d'água e também para consumo, é derivada de um córrego que percorre a
mata nativa preservada dentro do território, e puxada por uma bomba de pressão elétrica.
Foi em uma oficina de criação de um Jardim Filtrante, ocorrida em 2016 e ministrada
por um permacultor convidado – a partir de um projeto de educação ambiental visando o
manejo das águas realizado pela Morada da Paz – que Ys. ouviu uma conversa minha com
Im., antigo egbomi da comunidade. Conversávamos sobre a criação de fossas ecológicas de
baixo custo, visto que foi necessário para a criação do Jardim Filtrante a construção de
espaços para a caixa de gordura, outro para o misturador de águas – cinzas e negras - e um
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terceiro para uma fossa biodigestora. Im. está concluindo sua formação em Arquitetura e eu o
questionava sobre formas ecológicas de fossa que não fossem as clássicas acimentadas, mas
que garantissem, minimamente, que não haveria contaminação do solo pelos dejetos.
Ys. ouviu nossa conversa e, mobilizada pelos nossos interesses, comentou que isso foi
uma grande preocupação para elas, quando chegaram ao território. Afinal, como reconhecer
os processos ecológicos locais e atuar na diminuição do impacto que a presença humana
produz, principalmente na produção de lixo e no tratamento do esgoto? Contou que, dentro
das condições que elas tinham, foram experimentando algumas formas de cuidado com a
água. A primeira fossa, referente à Casa Flor, foi construída com cimento e, para diminuir o
uso de água, construíram uma cisterna. Criaram uma cisterna para a captura da água da chuva
que é utilizada nos banheiros existentes dentro dela. A segunda tentativa foi referente à fossa
do banheiro do ‘camping’. Trata-se de uma área aberta, com algumas poucas árvores, que é
utilizada para acampamento pelas pessoas que vão ao território para qualquer atividade
organizada na comunidade. Nesse local, a fossa foi construída a partir de dois estágios:
primeiro um filtro, que serve como um meio de tratamento com bactérias, depois a fossa
propriamente dita, também acimentada. Na Casa Verde, no ano de 2016, a tentativa foi propor
uma outra forma de cuidado com a água, mais complexa, a partir dos Jardins Filtrantes. Trata-
se, portanto, de uma série de experimentações.
O curso Jardins Filtrantes foi realizado através do projeto Ojù Ayie, escrito pela
Morada em parceria com a A. C.. Esse projeto visava uma atenção maior ao cuidado com a
água em todo o território. Foram realizados, com ele, vários trabalhos de educação ambiental,
incluindo a criação do Jardim. Para tal, fez-se uma chamada externa a todos que estivessem
interessados em acompanhar o curso por algum módico valor, referente ao ‘camping’ e à
alimentação. O curso ocorreu em dois dias, envolvendo tanto teoria quanto prática. O intuito é
diminuir o impacto no ambiente, atuando diretamente no tratamento das águas cinzas,
utilizadas em banhos e na cozinha, e das águas negras, com dejetos.
A ideia é que as águas da cozinha passem pela caixa de gordura e as águas do banheiro
passem pela fossa biodigestora, caracterizada por utilizar determinadas substâncias que
eliminam micróbios e bactérias dos dejetos expelidos. No final do processo é produzido um
adubo natural líquido que não agride o meio ambiente. Dessa fossa, as águas passam para
outro espaço onde ocorrem suas misturas e, por fim, são levadas a uma espécie de lago onde
encontramos determinadas plantas aquáticas, preferencialmente nativas na região. Na
comunidade, a principal planta que realiza esse processo é a taioba. Essas plantas alimentam-
se dos resquícios de dejetos que encontram nas águas, purificando-as. O Jardim Filtrante foi
um projeto muito recente, comparado ao plano de ocupação de quando haviam chegado ao
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território. Contudo, é fundamental pensá-lo como participante de uma consciência ecológica


que sustenta a lógica comunitária e que está diretamente associado à prática de reconhecer os
processos locais e atuar de forma a produzir menor impacto destrutivo.
Esse reconhecimento não está apartado da relação que estabelecem com as entidades.
Ao contrário, fazem parte de um mesmo processo. Contam que assim que chegaram ao
território não sabiam trabalhar na terra, pois nunca tiveram essa experiência – visto que todos
eram oriundos de espaços urbanos. Foi quando conheceram, pela primeira vez, o Laska,
manifestado em Ys.. Dizem que Laska vinha apenas uma vez ao ano, em um dia específico, e
trazia ensinamentos importantes de como deveriam lidar com o ambiente em que estavam.
Lembram, entre risos, que quando plantaram seu primeiro pomar, que fica ao lado de onde
hoje está situada a Casa Verde, alguns fungos apareceram nas mudas de árvores e, como não
sabiam o que fazer, passavam as tardes do final de semana esfregando seus galhos e troncos
com uma escova de dente para retirar o fungo. Foi Laska quem as ensinou como deveriam
proceder.
O reencontro com Laska se deu de inúmeras formas. Se no início da construção da
Morada da Paz sua presença era restrita a um dia do ano, em 2016 Laska voltou a se
manifestar, trazendo informações valiosas sobre o mundo. Disseram-me que Laska se chama
assim pois em uma de suas reencarnações foi a lasca de uma árvore. Em outra, contudo, foi
um combatente da guerra do Paraguai, habitando as regiões fronteiriças da América Latina – é
sob essa forma que se manifesta. Quando aparece manifestado, pede sempre um mate, uma
canção nativista e fala de forma indelicada, bruta, com um carregado sotaque gaúcho. Não
foram poucas as vezes que sua fala trazia a cadência das milongas platinas, apresentando suas
mensagens em formato de poesia.
Morar no meio rural para pessoas oriundas da cidade não foi nada fácil no início. Não
apenas porque não tinham o hábito de plantar, e precisaram aprender como fazer (assim como
aprender a lidar com seus lixos, a tratar os dejetos que produziam, a construir moradias que
não produzissem tanto impacto no ambiente e saber consertá-las quando necessário), mas
porque também não tinham o hábito de lidar com animais silvestres, com a mata, com as
estrelas, com a lua, com as tempestades, com os elementos vivos do entorno, a chamada
natureza. Havia uma série de medos e desconfortos em relação a isso. Ys. e El. me contavam
esses momentos e suas dificuldades em razão de algumas vontades, que volta e meia ainda
aparecem na Comunidade Morada da Paz. Dizem que sempre surge alguém afirmando que
construirá uma “ecovila” com os amigos, em busca de dicas ou informações com as mais
velhas. “Não sabem o quão difícil é”, disse-me entre risos El..
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Enquanto falavam das dificuldades que enfrentaram no início da construção da


comunidade, Ys. e Bg. narraram uma situação emblemática. Viviam um momento de maior
dificuldade financeira. Estavam recém-chegados no território, com uma pequena casa pré-
fabricada de um quarto onde dormiam todos juntos. Criaram uma porção de dívidas a pagar,
incluindo empréstimos, pois haviam dado apenas um valor de entrada para o pagamento do
território. Além disso, faltavam muitos eletrodomésticos que facilitariam a vida, tais como
máquina de lavar, fogão, entre outros, até mesmo um carro para os deslocamentos. Sem contar
o tempo que dedicavam aos seus empregos e também às crianças recém-nascidas. Além disso,
já haviam iniciado seus trabalhos com educação ambiental com crianças e jovens da região,
sob orientação das entidades.
Envoltos nas dificuldades financeiras que se apresentavam, recebem a visita de um
representante da Coca-Cola. Contaram-me que o representante trouxe uma proposta muito
tentadora. Ao perceber que a comunidade estava criando uma forte relação com as
comunidades do entorno, trouxe como proposta a doação de uma série de bens (fogão,
geladeira, máquina de lavar, etc…) em troca de que divulgasse a marca da Coca-Cola. Essa
proposta gerou uma série de questões internas, amplamente debatidas pelas mais velhas,
pesando suas necessidades imediatas e os riscos de se vincular a uma empresa com a qual não
concordam – a comunidade não consome refrigerante e acredita que seu consumo tem efeitos
perversos nos corpos.
Em meio a esse dilema, consultam Mãe Preta, que alertou para a existência de duas
vias de ação. Não me recordo exatamente dos termos utilizados, mas tratava-se de um
caminho mais imediato, com consequências nem tão boas, visto que a comunidade poderia
tornar-se um meio de disseminação das forças que desejavam combater, e de outro caminho
mais longo, porém verdadeiro, segundo a verdade que a Comunidade havia traçado para si.
Alertou ainda que titubear frente a essa proposta tentadora demonstrava que precisavam ter
mais fé, o grande motor da Morada da Paz. Sem o acordo com a Coca-Cola, os problemas
financeiros continuaram e, também por orientação de Mãe Preta, tentaram diminuir suas
dimensões vendendo parte da madeira de eucaliptos que existiram no território – o que gerou,
também, a recuperação do solo onde hoje existe a Horta de todos nós. Outra parte dos
eucaliptos não foi retirada, também por orientação de Mãe Preta, pois serviria como um muro
de proteção do território. Soube disso durante um intenso vendaval, quando percebi que os
eucaliptos diminuíam consideravelmente o impacto do vento sobre o terreno. Comentei sobre
isso com El. e foi nesse momento que me contou dessa orientação de Mãe Preta.
Dentre os muitos aprendizados, há um deles fundamental nessa relação com o
território em que estavam, orientado por Laska. “Vocês precisam colocar o mato pra dentro
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de vocês”, foi a frase que ele trouxe, naqueles momentos iniciais. Pelo que Ys. me conta, a
orientação foi ainda mais além. Laska, com a sua fala bruta, lembrava que não adiantaria de
nada saírem da cidade para o meio rural sem mudar o modo de pensamento. Por isso dizia que
elas não deveriam levar as suas “firulas” e “penduricalhos” da cidade para o campo. Era
preciso, antes, “colocar o mato para dentro” e não, o que seria a lógica inversa, colocar a
cidade que as constitui para fora. Depois de 10 anos sem se manifestar fisicamente na
Comunidade, Laska retorna em 2016 e, lembro bem, uma de suas primeiras falas, entre
abraços e risadas, foi que as mais velhas não aguentaram e trouxeram ainda algumas de suas
“firulas” – referindo-se aos panos e adornos que constituem o território. Todos nós rimos de
suas colocações. Foi Laska também quem trouxe algumas orientações sobre como colocar o
“mato para dentro”: permanecer por longos períodos no território, realizar trilhas na mata
escura e sem nenhum tipo de iluminação, aprender e permitir-se andar pelo território de pés
descalços, ouvir os animais, entender que no campo o tempo é vivido de outra forma. Esses
foram alguns dos elementos que Ys. trouxe a mim nessa conversa.
Reconhecer, portanto, carrega em si a possibilidade de pôr para dentro de si o que
constitui um determinado ambiente, entendido aqui como um conjunto de relações. Mas,
sobretudo, trata-se de aceitar compor com esse ambiente. Reconhecer os seres que constituem
o território em que estão é, antes de tudo, uma política da relação. E essa política inclui a
transformação ou a desformação, como diz Mãe Preta, de um tipo de mentalidade, e de afetos,
para fazer com que outros possam passar. O reencontro com o território, como já descrito a
cima, levou à necessidade do reconhecimento das figueiras como velhas centenárias, por
exemplo, como seres que informam – visto que elas informaram sobre o local onde a Morada
da Paz acabou se desenvolvendo. Colocar o mato para dentro carrega um tanto desse
processo ocorrido junto às figueiras, na medida em que implica o reconhecimento de que há
relações estabelecidas no local entre seres não-humanos muito antes da chegada deles,
humanos, e de que é preciso pôr para dentro essas relações, para então saber compor com
elas, e não colocá-las sob o juízo da lógica da cidade.
Na comunidade, isso se dá não apenas pelas orientações das entidades, mas também
por uma produção de conhecimentos coletivos sobre o espaço. Recentemente o território foi
expandido, pois se decidiu comprar mais 4,2 hectares das terras vizinhas. Essa nova aquisição
foi chamada Terra D'água, pois conta com uma nascente de água, e é um local onde estão
sendo desenvolvidas práticas de agrofloresta. Na época, alguns dos demoradores, os
participantes da irmandade que não moravam no local, receberam a orientação das entidades
de construir na Terra D'água uma casa para habitar. No início de 2018 ela já estava pronta.
Ou seja, passaram a ser moradores. Porém, enquanto todos esses processos se desenvolviam,
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ainda durante o período de negociação com o antigo proprietário da terra, foram feitas
algumas excursões ao local, e um dos motivos era firmar algumas forças em pontos
energéticos. Há todo um processo investigativo coletivo de reconhecimento das forças que
constituem os espaços a partir do qual elas são firmadas.
As Yas e egbomis saíram juntas para realizar o reconhecimento do território na Terra
D'água. Muitas vezes, contam com o auxílio de Seu Sete manifestado para esse trabalho.
Outras vezes, contam com suas percepções e intuições que compartilham com os demais
médiuns e vão, dessa forma, produzindo uma percepção comum de um campo energético
acessado. El., certa vez, disse-me que com o auxílio de cantos e orações, dentro de um
processo mediúnico, cada um descreve suas sensações e percepções e, caso não fique claro
como reconhecer aquele ponto energético, deixam para firmá-lo em outro momento, pois, às
vezes, o momento pode não ser propício. Quando assim é, voltam ao local e realizam o
mesmo procedimento de compartilhamento de sensações e percepções. Normalmente essa
firmação conta com algum elemento físico posto no local.
O reconhecimento dos espaços é, portanto, um processo coletivo, onde atuam humanos
e não-humanos, que passa por intensas e cuidadosas percepções das forças que atuam no
local, no respeito às águas, à terra e às entidades que nelas habitam. É o oposto, como disse-
me Ys., do processo de colonização, que implica uma imposição. Porém, também oposto da
ideia da não relação, da falta de contato, de uma preservação intocada. Assim que entrei na
irmandade, no afã de descobrir o que significava uma série de objetos dispersos pelo
território, El. me passou um dos maiores ensinamentos que eu poderia ter naquele momento:
sinta. O reconhecimento passa por esse desenvolvimento de sensibilidade.
Lembro, certa vez, que Ns., omadê de nove anos, veio correndo ao meu encontro para
comentar sobre a “chacina” que realizaram na estrada que dá acesso à comunidade. Chacina?,
eu perguntei, surpresa com o peso da palavra. E ela, demonstrando espanto pela minha
indiferença com o ocorrido, explicou-me que a chacina tinha sido cometida pelo poder
municipal que havia matado ou decepado os galhos das árvores ao longo da estrada. Eu, de
fato, não havia percebido. Nem havia sentido a dor que Ns. sentiu, a ponto de denominar o
ocorrido como “chacina”, quando voltava da escola. Em outro momento, eu e ela colhíamos
cidrozinho para fazer chá e pedíamos licença para a planta para poder arrancar suas folhas,
como é ensinado na comunidade a todos que ali chegam. Ensinava-me a retirar as folhas com
cuidado, para não machucar a planta, e dizia-me que era preciso aprender a “ouvir o que a
Terra fala”. Ali eu aprendia o que é reconhecer.
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2.2.2 Reencontros no território

Depois dos primeiros reencontros na formação do grupo Cosmos, que levaram à


chegada ao território onde seria construída a comunidade Morada da Paz, novos reencontros
se sucederam. Um deles foi com S. P., um dos moradores da comunidade, como já apontei,
mas que não participa da vida espiritual ali vivida, visto que é evangélico – ainda que não
frequente nenhuma igreja. S. P. chegou ao local pelo ano de 2010, através de um amigo da
comunidade que também constitui o seu Conselho Externo. Além dele, outras pessoas
também se aproximaram da comunidade. Boa parte desses novos reencontros, aliados com
alguns antigos, formaram a base dos chamados demoradores.
An., na época, cursava Licenciatura em Dança na UFRGS e trabalhava na
brinquedoteca que existe na Faculdade de Educação. Lá conheceu Yb. que, na época, cursava
Pedagogia na PUC e trabalhava no mesmo local. Foi através de Yb. que se aproximou da
comunidade, e iniciou uma série de reencontros com o que chama ser sua ancestralidade.
Neta de uma mãe de santo da cidade de Viamão, An. foi criada por sua avó até uma certa
idade, quando foi morar com um casal de filhos-de-santo de sua avó, que resolveu criá-la
como sua própria filha, também em Viamão. Após a morte de sua avó, o cuidado dos Orixás
que a protegem foi passado para sua madrinha, processo que afastou consideravelmente An.
do Batuque.
An. até hoje carrega consigo, com muita emoção, tudo aquilo que sua avó guardou e
preparou de sua vida espiritual. Lembra com carinho que foram os Orixás quem auxiliaram
sua chegada no Ayê, visto que seu parto teve uma porção de complicações. Contou-me que era
“filha de Bará”, mas que precisou ter “sua cabeça trocada” para poder nascer com segurança.
Passou a ser “filha de Oxum”. Depois da morte de sua avó, foi morar com seus pais adotivos,
encontrando vez ou outra sua mãe de sangue ou, como chamam da comunidade, progenitora.
Auxiliava muito sua mãe adotiva com o cuidado de outras crianças durante a adolescência e,
nesse meio tempo, começou a desenvolver um gosto pelo teatro. Trabalhava como caixa de
supermercado quando decidiu iniciar uma formação em teatro junto com o grupo Ói Nóis
Aqui Traveiz39, e foi através dessa experiência que decidiu tentar o vestibular da UFRGS para
Licenciatura em Dança, um dos cursos de graduação recentemente criados e que estava com
suas primeiras turmas.
No momento que conheceu Yb., ficou bastante surpreendida com seu estilo de vida.
Encontravam-se na Brinquedoteca da Faculdade de Educação da UFRGS, e An. admirava o
fato de Yb. não comer carne, não beber, morar em outro município – mais distante que
39A chamada Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz desenvolve uma Escola de Teatro Popular com cursos
abertos e possibilidade de bolsa para os interessados.
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Viamão – e ainda ter tempo para trazer sua própria comida de casa! Relembrou esses fatos
entre risadas. Foi então que Yb. lhe disse que vivia em uma comunidade. “Comunidade?”,
questionou An., que nunca havia ouvido falar nessa possibilidade. Yb. convidou-a para
conhecer o local e An. prontamente foi, com o objetivo de realizar uma oficina de dança com
as crianças. Desde então passou a ser uma frequentadora assídua, uma das primeiras
demoradoras da comunidade, depois de Ik. – que de início foi moradora e depois passou a ser
demoradora. Demoradoras porque, como dizem as mais velhas, demoram a morar no
território, em contraposição aos moradores que lá residem. Quando An. se aproximou da
comunidade, ainda não existia a Irmandade da Casa da Sétima Ordem ou, então, a Nação
Muzunguê. Isso fez parte de outro processo que descreverei mais adiante.
Sua aproximação ocorreu pelos idos de 2010 e foi um processo gradual. Primeiro
começou com oficinas de dança, mas logo os laços foram se estreitando, inclusive no que se
referia ao cuidado espiritual. Até o momento em que An. recebeu as orientações para
participar dos rituais desenvolvidos na Morada. Foi então que, disse, voltou-se a sua
ancestralidade, recuperando tudo aquilo que sua avó havia aprontado para ela e levando até a
Morada da Paz. Seria necessário que Oxum aceitasse fazer parte daquela casa, sob novas
ritualísticas, visto que a casa não trabalha com sangue animal e, disse-me ela, Oxum aceitou.
Entretanto, foi na Morada que reencontrou Cabocla Jurema, uma das principais entidades que
a acompanha e guia.
Oferecia oficinas de dança não apenas para as crianças da comunidade, mas também
de outra comunidade próxima com quem a Morada da Paz tem um vínculo bem forte,
chamada Vila Pimenta. Trata-se sobretudo de uma comunidade muito carente, à margem de
dois municípios, Triunfo e Montenegro, que não recebe atenção de nenhum dos dois, afetada
constantemente pela falta de água e de saneamento básico. Durante muito tempo a Morada
buscou essa aproximação com pais e crianças da região e muitas delas, ainda hoje, participam
da Colônia de Férias organizada no território. Na época, o deslocamento de um lugar a outro
era realizado ou pelo carro da própria comunidade, que depois de um tempo foi adquirido, ou
por transporte cedido pela prefeitura de Triunfo.
An. conta que sempre trabalhou com crianças, desde sua adolescência, quando ajudava
sua mãe. Depois de se formar em Licenciatura em Dança, deu aulas durante muito tempo no
bairro Restinga, em Porto Alegre, no SASE – Serviço de Apoio Sócio-educativo. Tratava-se
de um serviço realizado em parceria com a Fundação de Assistência Social e Cidadania
(FASC), atendendo crianças e adolescentes entre 6 e 14 anos, no turno inverso ao da escola
regular. Atuava como contratada e sofria com os atrasos de pagamentos devido aos muitos
cortes de verbas realizados pelo governo do Estado durante o ano de 2016. Acabou sendo
92

demitida. Foi então que, por orientação das entidades e junto a outras pessoas da comunidade,
começou a estudar para a prova de mestrado da Faculdade de Educação da UFRGS,
concorrendo às vagas direcionadas para as populações indígenas e quilombolas. De todas as
que tentaram, foi a única que passou. Entrou com o objetivo de desenvolver um trabalho com
a comunidade.
Cada pessoa que participou da comunidade, durante esse tempo, chegou a ela de
formas muito diversas. Foi através de um evento chamado JardinAção, que acontece todos os
anos no Jardim Botânico de Porto Alegre – local que, vale dizer, desde 2016 é ameaçado de
extinção pelo poder público local –, que Tj. chegou até a Morada. Por muitos anos
consecutivos a comunidade esteve presente nesse evento, levando suas brincadeiras e suas
atividades. Trata-se de um projeto de Educação Ambiental desenvolvido pela Fundação
Zoobotânica do Rio Grande do Sul, fundação responsável pelo Jardim Botânico, que
disponibiliza o espaço para que diferentes organizações, entidades e grupos possam apresentar
os trabalhos que vêm desenvolvendo nas áreas da saúde, cultura e meio ambiente. O ingresso
para a entrada é um quilo de alimento, a ser doado para diversos projetos sociais.
O reencontro de Tj. com a Morada foi por volta dos anos de 2012 e 2013, e desde
então iniciou uma profunda aproximação. Sua trajetória com o que é chamado espiritualidade
destoa bastante das trajetórias até então descritas. Iniciou suas buscas espirituais quando saiu
da casa de seus pais, na região metropolitana, e foi morar em Porto Alegre. Formada em
Administração, trabalhou em diversas empresas até se tornar funcionária pública do Estado.
Nesse meio tempo, foi se aproximando de uma série de vivências através de casas espíritas e
espiritualistas, práticas de yoga, retiros budistas, até realizar sua formação em Heiki. Foi pelo
budismo, de alguma forma, mas também por todos os projetos que a comunidade realizava,
que esse reencontro foi possibilitado. Assim que começou a participar das ritualísticas da
comunidade, começou a experienciar os processos de incorporação das entidades, aprender a
lidar com elas, e a colocar seus conhecimentos de Heiki também a serviço nos atendimentos
espirituais. Conta que na época que se aproximou da Morada não havia um número tão grande
de demoradoras, e nem havia um lugar específico onde os pertences delas eram colocados.
Chegava ao território e montava sua barraca para permanecer ali. A relação era bem diferente.
Com a passagem dos anos, muito recentemente, aliás, Tj. tornou-se mãe de Uh., nome
trazido pelas entidades, através de um processo mediúnico de Ys.. Um novo reencontro
ocorreu. Digo isso, pois cada criança que nasce atrelada a Morada da Paz tem um valor muito
especial. Uh., como nos diz Ys., é o “ser da terra”, ou seja, manifesta em si essa força. Cada
criança que nasce é carinhosamente acolhida pela comunidade, assim como suas mães, pois
são percebidas como potências transformadoras. É claro que tudo isso depende dos processos
93

educativos que se desenvolverão. Por isso é tão importante para a comunidade o trabalho com
crianças e jovens. Uh., assim como todas as outras crianças, é assim percebido.
Eu conheci Tj. em suas aproximações iniciais com a comunidade, no ano de 2013,
durante o mutirão de bioconstrução da Casa Bio. Foi um mutirão organizado por A. C. junto
com o coletivo de bioconstrução Senda Viva, formado por duas arquitetas que também
passaram a ser minhas amigas, C. e R.. O mutirão tinha por objetivo fazer a primeira camada
de barro para cobrir a Casa Bio, cuja estrutura interna é de fardos de palha. Éramos quase 20
pessoas, saindo de Porto Alegre, para participar da atividade. Todas mulheres, exceto dois
homens, dentre eles Im., que também conhecia pela primeira vez a Comunidade. A atividade
rendeu uma série de reencontros muito singulares, amizades que permanecem até hoje e
também novas pessoas que, a partir de então, começaram a participar com mais assiduidade
das atividades desenvolvidas na comunidade.
Foi o que ocorreu com Bm. e Im., que na época eram namorados. Decidiram participar
do mutirão, pois Im. cursava Arquitetura na UFRGS e tinha bastante interesse pelas técnicas
de bioconstrução. Bm. cursava Gestão Ambiental e interessada nos processos de
Permacultura. Foram três dias de trabalho no território, para preparo do barro e início da
colocação da primeira camada. Logo depois, durante o ano de 2014, houve outro mutirão para
a finalização da Casa Bio. Desde aquele momento, Bm. começou a se aproximar mais da
comunidade. Na época também realizou um curso de formação de doula e, logo em 2014,
propôs junto com a comunidade uma roda materna no local. Na época, Yb. estava grávida de
Mc. e havia outras tantas mulheres grávidas, participantes de uma rede de relação da Morada,
que se aproximaram. Paralelo a isso, Im. também se envolveu com a comunidade,
organizando com as crianças oficinas de Maracatu, que acabaram gerando a criação do
Maracatu de Pijama, com várias apresentações nos eventos da Morada. Afinal, há alguns
anos Im. participava de um grupo de Maracatu de Porto Alegre.
Nesse processo, também com uma aproximação gradual, Bm. e Im. começaram a
participar da comunidade como demoradores. Mais adiante engravidaram, processo que
derivou outro reencontro, com A.M., também nome trazido pelas entidades através de Ys..
Aliás, tanto a gravidez de Bm. quanto de Tj. foram informadas por Mãe Preta muito antes de
qualquer das duas pensarem em engravidar. Mas os reencontros não pararam por aí. Im.
tornou-se alabê da casa, vivenciando sua mediunidade através da relação com o tambor, como
explicam na comunidade. Bm. também iniciou uma série de relações com entidades, tais
como Oxum Docô, Oxum Bimum e Cabocla Jurema. Em relação aos chamados “povos da
terra”, que são os caboclos, há outras situações mais profundas e interessantes na história de
Bm.. Certa vez, um caboclo manifestado em outra pessoa disse que trabalharia com ela
94

“assim que estivesse pronta”, pois ele havia trabalhado com outro membro de sua família de
sangue. Não se fala em “herança de sangue” na Morada da Paz, tal como encontramos no
trabalho etnográfico de Soares (2014), no interior da Bahia, mas a relação é muito semelhante.
Bm., oriunda de Alegrete, cidade do extremo oeste do estado, próximo às fronteiras
com Uruguai e Argentina, conta que nunca soube de nenhum familiar seu que tivesse alguma
aproximação com a Umbanda ou qualquer religiosidade de matriz africana, e que cresceu sem
muito contato com a família de seu pai. Depois dessa situação específica, foi procurar mais
informações sobre sua família e descobriu que seu avô, pai de seu pai, com quem nunca teve
contato, havia trabalhado com um caboclo, o Caboclo Tupinambá, durante muito tempo.
Depois, contudo, acabou se afastando da religião. Contou-me essa história surpreendida, tanto
quanto eu fiquei ao ouvir. Havia recuperado sua própria história familiar a partir desse
reencontro.
Após a construção da Casa Bio, em 2013, voltei à comunidade outra vez, mas já em
2014 eu me mudei para o Rio de Janeiro para cursar as disciplinas do Doutorado. Nesse meio
tempo, Or. e Bl. chegaram até a comunidade. Seus percursos foram bem diferentes dos
demais. Bl. havia cursado Educação Física no Centro Universitário Metodista IPA, em Porto
Alegre e, assim que terminou, foi morar em Florianópolis e dar aulas por lá. Or. havia
começado e trancado o curso de Agronomia na UFRGS, quando saiu para viajar.
Conheceram-se durante um acampamento em Santa Catarina e se aproximaram através da
capoeira. Ambos são capoeiristas. Começaram a se relacionar durante essa viagem e
decidiram partir de Santa Catarina para outros estados em um “mochilão”. Acabaram por
conhecer uma comunidade espiritual da União do Vegetal, onde permaneceram um tempo.
Receberam um convite para permanecer na comunidade, mas não se sentiram à vontade com
o modo como ela era estruturada. Porém, saíram de lá com o desejo de morar em uma
comunidade rural espiritual.
Durante suas viagens, Bl. engravidou e os dois, cujas famílias são do Rio Grande do
Sul, resolveram voltar para o estado, dizendo às famílias que gostariam de morar em uma
comunidade rural espiritual e que procurariam essa possibilidade. A tia de Bl., que a criou,
comentou que uma prima sua participava de uma comunidade espiritual bem próximo a Porto
Alegre. Sua prima era Ys.. Bl. não tinha nenhum contato direto com Ys. e também não era
próxima das práticas de terreiro de sua família. Foi na comunidade que conheceu tudo isso, e
recuperou suas práticas familiares ancestrais. A primeira vez que estiveram no território, foi
para o Muzunguê, e chegaram até o local já com a intenção de saber como poderiam vir a
morar, pois gostariam de criar seu filho em uma comunidade rural espiritual. As mais velhas
acolheram os desejos deles, pois, disse-me Bl., Ky., a criança que viria ao mundo, “pediu
95

para nascer no território”. Eles passaram a morar no território por um tempo, e foi nesse
processo que Ky. nasceu. O nascimento de Ky. foi um momento muito importante e
inesperado para a comunidade.
Bl. havia se preparado para parir no próprio território e chamou G.T., parteira e
liderança Kaingang com a qual Bl. havia feito amizade para acompanhar seu parto. G. T.
aceitou, porém, no dia em que Ky. estava para nascer, Bl. entrou em contato com ela e
descobriu que exatamente naquela semana um integrante de sua família havia falecido, e isso
a impedia de realizar o parto segundo ritualísticas de seu povo. Bl. sentia as contrações e, sob
orientação de Mãe Preta, foram as Yas e as egbomis, junto com o pai da criança, Or., quem
auxiliaram o momento do parto, ocorrido na Casa Bio. Todos os momentos em que há essa
oportunidade, Bl. relata o impacto que teve essa experiência em sua vida.
Bl. e Or. já estavam morando no território e com Ky. nos braços quando eu me
reaproximei da Morada, no final de 2015, no primeiro Okan Ilu – ritual aberto dedicado ao
tambor. Assim como todas as trajetórias aqui narradas, meu encontro também é compreendido
como um reencontro. Cheguei através da Universidade, com uma proposta de pesquisa no
local. Já conhecia a comunidade desde 2013, e apresentei as minhas intenções que, por fim,
levaram a uma série de ritualísticas de iniciação. Nesse segundo encontro com a Morada da
Paz muita coisa havia mudado em mim e na comunidade. Além da presença de Bl. e Or., Ak. e
sua filha Od. também moravam no local.
Ak., que participou do grupo Cosmos, tinha decidido não se mudar para a comunidade
Morada da Paz em sua formação inicial, e deu continuidade a sua vida em Porto Alegre ao
lado de seu companheiro e sua filha. Em um curto momento de sua vida, iniciou-se em uma
Casa de Candomblé onde participou por um tempo. Saiu logo depois do nascimento de Od..
Nunca perdera por completo o contato com as pessoas da Comunidade Morada da Paz e
frequentava vez ou outra alguns de seus atendimentos espirituais. Por desejo de sua filha, que
sempre pedia para sua mãe morar na Morada, por convite das mais velhas e visto que seu
casamento já não a estava satisfazendo, decidiu mudar-se para a comunidade. Além de
diversas entidades com as quais trabalhava no centro de Umbanda da sua tia, como já dito
anteriormente, foi feita no Candomblé como filha de Oxum, mas diz nunca ter trabalhado com
ela via incorporação, ainda que manifeste na Morada da Paz uma Oxum – que ela diferencia
da Oxum do Candomblé.
Após meu processo de iniciação, mais quatro ocorreram: de O.T., Aj., My. e Mj..
Porém, dentre nós cinco, Mj. é quem tem mais experiência na comunidade. Formada em
Serviço Social, conheceu Ys. no meio universitário. Fez seu mestrado na USP e escreveu toda
a sua dissertação enquanto residia na Morada. Ficou cerca de 3 anos morando no território até
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que resolveu sair, pois se envolveu com um rapaz e desejou constituir uma família com ele
fora do território. Depois de alguns anos afastada, aproximou-se novamente do território em
2016. Seu companheiro é Pg., filho do Mestre Borel. Mj., antes de conhecer a Morada,
também fez parte de um terreiro, tendo sido “feita” em casa de Batuque. Por conta disso, é
conhecida como S. de Ogum. Apesar dessa sua trajetória, foi conhecer seu companheiro no
território Morada da Paz, e não foram poucas as vezes que Mj. e Ys. disseram-me que Pg.
também pertence ao território, visto que “seu pai está aqui”. Isso porque há uma relação
muito bonita entre Mestre Borel e o território.
Desde que conheço a Morada, pensei que Xangô Agodô fosse o Orixá que, de alguma
forma, tivesse maior atuação em Ys., pois o vi em muitos momentos manifestado. Mas ele
não chegou através de relações de família consanguínea de Ys., nem mesmo das forças que
ela traz consigo – lembro aqui que Yemanjá e Oxalá pediram Ys. como filha. Xangô Agodô
chegou ao território por outro caminho, através do Mestre Borel. Borel foi um antigo e
famoso alabê da cidade. Uma das figuras centrais dos cultos de matriz africana e da história
negra em Porto Alegre, de modo geral. Fez muito sucesso também no carnaval das Tribos
Carnavalescas e das Escolas de Samba, e veio a falecer em 2011, aos 85 anos.
Borel e a Morada da Paz tinham uma relação próxima, uma amizade produzida ao
longo de alguns anos. Antes de morrer, Borel pediu que seu espírito pudesse ser acolhido pelo
território da Morada da Paz, para que através da Morada ele fosse conduzido. Pediu também a
Ys. que cuidasse de seu filho, Pg., o que faz com que Ys. o considere como filho. Mestre
Borel manifestava Xangô Agodô. Inclusive, foi Xangô Agodô quem ensinou o próprio Pg.,
quando era ainda criança, a bater tambor. E hoje Pg. é, segundo me disseram, um dos
pouquíssimos alabês conhecedor dos toques da nação Oyó.
É de praxe, nas casas de Batuque, o ritual funerário quando alguém do povo de santo
morre. Ys. me explicou, com toda a paciência do mundo, que nesse rito, o aressum, que é “um
movimento de dessacralização”, existem duas possibilidades que dependem da escolha do
Orixá. Há a possibilidade do Orixá ser liberto do Ori daquele que virou ancestral para voltar
ao Orun, ao mundo das entidades, ou ele pode escolher ficar no Ayê, no mundo dos humanos,
através de outra pessoa. Neste caso, Xangô Agodô, que, como me disse, tem profunda aversão
à morte, decidiu ficar, e a pessoa escolhida para manifestá-lo foi Ys.. O Xangô Agodô
manifestado por Ys., portanto, é o Xangô que se manifestava em Mestre Borel.

*
No início de 2018 novas configurações foram dadas a esses reencontros que ocorreram
no território. Algumas demoradoras tornam-se moradoras, como Or., Bl., Ky., Aj. e O.T..
97

Algumas moradoras tornam-se demoradoras, como Al. Porém, após um longo ipadê ocorrido
entre demoradoras e as mais velhas da comunidade, produziu-se um rompimento. Uma
divergência de desejos e perspectivas de mundo se manifestou e uma separação ocorreu,
fazendo com que as demoradoras deixassem de fazer parte da comunidade. Foi um momento
doloroso para todas as envolvidas, tanto àquelas que permaneceram quanto às que saíram.
O rompimento aconteceu bem no processo de iniciação de novos membros. Mãe Preta,
frente a esse novo contexto, trouxe a orientação de que não haveria mais demoradores, apenas
moradores, e que os novos integrantes, se assim desejassem, deveriam tornar-se também
moradores. Eu, que me incluía na categoria demoradores, passei a ser uma aliança da
comunidade. Ou seja, não fazia mais parte da Morada, mas estabelecia com ela uma relação
de fortalecimento. Dentre aqueles que receberam o chamado para se iniciar, apenas uma
pessoa respondeu afirmativamente, tornando-se um morador, o Ni. Jovem, terminando o
Ensino Médio e, na época, namorado de Dm., filha mais velha de Ys. Para as mais velhas,
essa ruptura mostrou a necessidade de estabelecer bases mais sólidas e a inviabilidade de
“manter um pé lá e um pé cá”, que configurava o cotidiano dos demoradores. Parte do tempo
viviam em Porto Alegre ou arredores, com os compromissos e relações que norteavam suas
vidas fora da comunidade, e parte do tempo estavam na Morada, com os compromissos e
demandas em que consistiam a vida comunitária. Dentre tantas reconfigurações e
regenerações vividas pela Morada, essa foi mais uma. O que, para as mais velhas, demonstra a
capacidade de resiliência e dedicação total à vida espiritual daquelas que, novamente, são “as
que ficaram”.

2.3 Recuperar

Assim que comecei a frequentar a comunidade, contaram-me que o território era


utilizado para o plantio de eucalipto. Foram necessários longos anos para que transformassem
parte do solo em terreno propício para o plantio ou para a mata nativa aflorar. Isso só pode ser
feito através de diversas técnicas de adubagem, em que a compostagem foi um dos processos
principais. S. P. é quem mais se dedica ao plantio de hortas e à recuperação dos solos junto
com Bg.. Disse-me que o processo seria mais rápido com a utilização de químicas específicas
para tal, mas que as Yas pediram para ele trabalhar na recuperação do solo apenas com
materiais orgânicos.
98

Figura 5: Buda e a horta de todos nós

O mesmo processo de recuperação que realizam com o solo local ocorre também em
função de uma série de ritualísticas desenvolvidas na comunidade – demandam tempo e
dedicação. Desde 2005, com a construção da Casa Bio, com a “força dos povos africanos”
trazidas pelas suas paredes de barro e com a primeira, mas não única, manifestação externa de
que o território seria um território quilombola, iniciaram intensos processos de reaproximação
com o que seria a cultura africana. Evidente que esse não é percebido como o motivo
principal para essa série de transformações ocorridas na comunidade, mas, sem dúvida, foi um
daqueles encontros que são reencontros, ou seja, que produzem efeitos. Não imediatos, assim
como a recuperação do solo não o é, mas processual e prolongado, permeado de outros
reencontros.
Entre os anos de 2011 e 2012, Baba Afra manifestou-se pela primeira vez na
comunidade, através do corpo de Ys.. Baba Afra, como me foi dito, é um mestre ascensional
que faz a guardiania das ritualísticas africanas. Em uma das manifestações de Mãe Preta,
enquanto estávamos todos sentados em círculo no Templo para ouvir suas histórias, ela nos
disse que a Terra estava sob o governo, no sentido de regência, de dois mestres ascensionais:
Baba Afra, que traz a força dos povos do Oriente, e Mestra Ravena, que traz a força dos povos
99

do Ocidente. E, quando qualquer pessoa narra a história da comunidade, conta que foi Baba
Afra “quem trouxe a força da ancestralidade africana” para o local.
Mas é preciso, sobretudo, entender como a ancestralidade africana é pensada e
vivenciada nesse processo de recuperação. Certa vez, em uma vivência com um coletivo de
jovens negros universitários articulado na militância pan-africana e em diálogo com a
perspectiva afrocêntrica, Ys. fez um comentário que muito contribuiu para o meu
entendimento dessa questão. Havia um rapaz, estudante de história e poeta, que dizia a ela o
quanto a vivência no território fez com que encontrasse um meio de reverenciar os seus
ancestrais. Compartilhava com Ys. os sentimentos de revolta e de resistência gerados na
diáspora forçada do povo negro e nos descendentes daqueles sujeitos escravizados. Falava de
como os colonizadores destruíram suas memórias, suas práticas e seus modos de vida. Ys.
pareceu muito feliz com a colocação dele, concordando com suas falas e com a importância e
o dever de honrar os ancestrais e reverenciá-los, mas, ponderava ela, “nem todos os ancestrais
foram bons”. E continuou: “por isso, precisamos escolher quais os ancestrais queremos
reverenciar e quais ancestrais não queremos reverenciar”. Seu pensamento seguia,
argumentando que houve ancestrais maldosos, como o capitão do mato que trabalhava para o
colonizador. “E esse nós não queremos reverenciar. Nós temos o papel de escolher quais
ancestrais recuperar e por quais motivos honrá-los”.
Essa conversa teve outras derivações, e seu desenvolvimento foi bastante significativo,
afinal, tratava-se de um encontro entre um coletivo negro com uma trajetória de 20 anos de
experiência conversando com um coletivo de militância negra que dava seus passos iniciais.
Mas sobretudo investia a ancestralidade de um pragmatismo muito próprio. Como diz Ys.,
recuperar o passado é como um pescador com sua vara de pesca. Você escolhe o peixe a ser
pescado, um por um. Muito diferente de resgatar o passado, cuja imagem seria do pescador
com uma rede de pesca, retirando do fundo do mar até mesmo elementos que não são
desejados.
Certa vez questionei Yb. se foi Baba Afra quem orientou que buscassem a certificação
da Fundação Cultural Palmares e ela me disse que não diretamente, mas foi a partir de sua
manifestação e seu constante acompanhamento dos trabalhos desenvolvidos na comunidade
que elas, as Yas, e também Mãe Preta, começaram a atentar para essas possibilidades. Foi em
meados dos anos de 2011 que iniciaram um processo de solicitação à Fundação Cultural
Palmares da certificação como Comunidade Quilombola. Contam que, para tal, negaram a
mediação de qualquer associação quilombola já instituída no Rio Grande do Sul, seja a Frente
Quilombola ou o IACOREQ, pois não queriam depender de terceiros. Iniciaram o processo
100

com o auxílio de um frequentador da comunidade que trabalhava na Secretaria de


Desenvolvimento Rural do Estado.
Solicitar a certificação à Fundação Cultural Palmares trouxe alguns tensionamentos
que são interessantes de serem descritos. Um deles foi em relação à grafia do próprio termo
quilombola. Na comunidade, não se afirmam como quilombola, mas como kilombola, e os
motivos para isso são variados. Em termos discursivos, as Yas explicam que utilizam esse
conceito como um meio de recuperar a matriz bantu do termo, aludindo diretamente ao seu
significado: fortaleza, povoação, união. Mas suas consequências, acredito, apresentam-se
mais profundas. Ym., quando me contava como ocorreu todo o processo de solicitação, disse
que precisaram correr atrás de uma série de documentos para dar conta da burocracia
necessária. Disse-me que em todos os documentos referenciaram a comunidade como uma
comunidade Kilombola, e não Quilombola, pois o Q seria advindo da “língua do
colonizador”. “Mas não adianta, né, Folaiyan, a gente entregou tudo com K e o colonizador
nos respondeu tudo com Q!”, disse-me com seu característico sorriso.
Adotar o K como uma autorreferência pode soar ao desavisado como uma mera busca
‘essencializante’, uma espécie de ‘pureza africana’. As mais velhas nos mostram, em suas
práticas, que o K na grafia de kilombola visa produzir na linguagem uma fuga das atribuições
dadas pelo Estado, enquanto poder centralizador, para a consolidação de outras formas de
relações. É por isso que, em uma daquelas longas conversas que tive com Ys., enquanto
falávamos dos papéis dos mediadores nas relações com os quilombos, e das formas
organizativas dos próprios quilombos na experiência que ela e eu havíamos tido em outros
territórios, ela lamentava, em função de muitas disputas políticas internas observadas – muitas
delas partidárias –, que havia muito quilombo que não era kilombo, no sentido anteriormente
dado. Mas isso não as impede, contudo, de reforçar a atribuição de si e dos outros em seus
escritos como kilombolas. Afinal, entende-se que as palavras têm poder, e o K é uma forma de
recuperar a força da ancestralidade africana. A diferença na língua é também diferença de
mundo, questão que pretendo discutir com mais ênfase no terceiro capítulo.
A fala de Ik. me chamou bastante atenção durante uma conversa que tivemos. A
solicitação de reconhecimento da comunidade enquanto kilombola serve a outros propósitos.
Não está interessada, especificamente, em definir aquele território como negro ou como
quilombola. O autorreconhecimento, perante o Estado, não tem como intuito finalizado em si
mesmo a produção de uma identidade étnica/racial. A finalidade é muito mais ampla, e está
relacionada ao fato de que a Morada da Paz tem por projeto existencial e comunitário a
duração de dez mil anos de existência. É entre risos que se diz e que se ouve isso das mais
velhas, mas isso não diminui a seriedade do projeto. Autodeclarar-se e ser reconhecido como
101

um território quilombola, na língua do Estado, é uma estratégia de vida e de sobrevivência


kilombola, na língua da comunidade.
Acompanhei também outros movimentos, por exemplo, a relação que estabelecem
com a Permacultura – com o qual iniciei esse capítulo – e suas técnicas agroflorestais e
agroecológicas. A comunidade, desde seu início, como podemos acompanhar na tese de Ys.,
tinha por preocupação a sustentabilidade e o desenvolvimento do que ela chama de
consciência ecológica. Com o fato de se tornarem um kilombo, e em conversa com Bg. após
uma experiência que teve em um encontro de agrofloresta – onde reuniram-se acadêmicos,
técnicos agroflorestais e agricultores –, percebi um intenso processo reflexivo sobre as
práticas oriundas da permacultura. Ele me disse que toda a experiência de viver de forma
integrada com o entorno, com a natureza, entendendo seus processos ecológicos, é nada mais
do que saber ancestral, que é preciso recuperar e reverenciar.
Mas a recuperação da força da ancestralidade africana, trazida por Baba Afra, não
ocorreu apenas com a definição do território kilombola, que veio a ser certificado no ano de
2016. Toda a organização da comunidade sofreu consideráveis transformações. Incluem-se
nesse processo a organização sócio-política, a chamada hierarquia circular, a construção da
Nação Muzunguê e da Irmandade da Casa da Sétima Ordem, uma série de ritualísticas
recuperadas, tais como o rito das Geledès, e os nomes crísticos para designar cada pessoa da
Irmandade. Contudo, para entrar em cada um desses aspectos, será necessário uma breve
apresentação daquilo que denominam universal e espiritualidade afrobudígena.

2.3.1 Universal

Em um dos primeiros momentos que estive na comunidade, nos idos de 2013, na


tentativa de dizer como a espiritualidade é ali trabalhada, definiram-se como universalistas. O
universal, a partir do qual a Morada da Paz se identifica, está vinculado à chamada Grande
Fraternidade Branca e Universal (GFBU). Essa não é considerada uma linha ou matriz com a
qual a Morada da Paz trabalha, mas funciona, se bem entendo, como um quadro a partir do
qual pode-se trabalhar com as diferentes linhas. De modo geral a GFBU é uma “ordem
cósmica”, o “governo oculto do Cosmos”, como disse Ys., onde atuam inúmeros mestres
ascensionais – entidades que nunca viveram na Terra, mas que atuam em sua proteção – e
mestres ascensionados – entidades que viveram na Terra e que alcançaram outra condição
espiritual e, portanto, não mais retornaram (Martin Luter King, Gandhi e Mandela foram
usados como exemplos). Mas os mestres não são os únicos que atuam, há também Devas,
Orixás, Budas, Caboclos, entre outras tantas entidades existentes.
102

O “Branca”, que está presente no GFBU, é vinculado à ideia de luz, de claridade.


Tanto que início no de 2018, em um retiro que ocorreu no território, Bg. trouxe alguns
recentes textos escritos por Ys. para estudo sobre a Nação Muzunguê, em que ela não mais
chamava de Grande Fraternidade Branca e Universal, mas Grande Fraternidade
Resplandescente e Universal. Intrigada, perguntei o motivo da mudança e Bg. explicou-me
que tem a ver com o que o termo “branca” carrega, que pode vir a ser interpretado como
superioridade racial de um povo sobre outro. Trouxe também a crítica às referências da
Grande Fraternidade possíveis de ser encontradas em livros e na internet, que trazem figuras
dos mestres ascensionais e ascensionados como pessoas brancas, com exceção do Baba Afra.
Resplandescente, por sua vez, traz a noção de luz, sem cair na ambiguidade perversa que o
termo “branca” pode induzir. Por isso, passarei a utilizar a sigla GFRU.
Uma das principais referências trabalhadas na Comunidade para tal são os escritos e
conhecimentos de Helena Blavatsky, fundadora da Sociedade Teosófica em Nova Iorque no
século XIX, e pesquisadora de diferentes religiosidades. É verdade que as informações sobre a
Grande Fraternidade sempre foram muito esparsas no cotidiano da Morada da Paz e, volta e
meia, era Mãe Preta quem trazia algumas informações sobre isso. É importante dizer, a GFRU
não é uma instituição. Como me explicaram, a Morada da Paz não segue nenhuma instituição
específica, pois sustentam que isso seria limitar muito a espiritualidade e o estudo da
mediunidade. Dessa forma, o universal de que falam não tem relação ao modo como
poderiam ser caracterizadas certas religiões, a partir de uma Igreja transnacional centralizada
e hierarquizada.
Há muitas informações sobre a GFRU e é visível que há leituras e interpretações
diversas a respeito dela, se formos fazer uma rápida busca pela internet. No caso da Morada
da Paz, que é o que me interessa, as entidades e as Yas nos dizem que a Nação Muzunguê
encontra-se na Casa da Sétima Ordem. Trata-se de uma casa que faz parte da décima terceira
loja da GFRU. A sétima ordem corresponde às ritualísticas, por isso há muitos ritos na
Morada da Paz, que participa da décima terceira loja, governada pelo mestre ascensional
Baba Afra. Baba Afra é o mestre ascensional que corresponde aos saberes e vivências dos
povos africanos, o que justifica as ritualísticas praticadas na Morada da Paz serem oriundas
dos povos negros. Por isso se reconhecem como povo de terreiro. Demorei para entender o
que essa ordenação cósmica significa e percebi que há muitas informações sobre isso que nem
mesmo as Yas e egbomis sabem. Informações que vão sendo transmitidas pelas entidades aos
poucos, como disse-me certa vez El..
Perguntei às Yas e egbomis se sabem quais são as outras lojas e casas que constituem a
GFRU e se conhecem outros grupos que compõem a GFRU. Disseram-me que sabem de
103

alguns grupos, das mais variadas religiões, mas não possuem conhecimento sobre o todo. Ys.
contou-me sobre sua participação em um evento em Salvador onde alguns desses grupos se
encontraram – Harekrishnas, Budistas, Umbandistas, Espíritas, Povos indígenas, dentre
outros. São grupos que possuem um propósito em comum e vinculam-se à Grande
Fraternidade. Porém, vejo que nominar e identificar quais os grupos participam e vinculam-
se à GFRU também não é uma questão para a comunidade de modo geral. Esses aspectos da
ordenação cósmica, ainda que sejam informações importantes para entender a complexidade e
amplitude das relações espirituais, não têm, de fato, nenhum grande efeito prático no
cotidiano da comunidade.
O que tem maior relevância é a compreensão de quais forças servem e de que todo o
médium é capaz de dar passagem para qualquer entidade. Mestres, Orixás, Devas, caboclos,
extraterrestres, almas santas, espíritos desencarnados em busca de auxílio, até mesmo seres
que “atuam no mundo das trevas”, como ocorre nos processos de transmigração. É possível,
inclusive, incorporar “o ser” de uma árvore, da terra, de um cachorro ou de um bebê que
ainda está para nascer – como acorreu no caso das crianças nascidas recentemente na
comunidade40.
Nesse sentido, o universalista de que fala a Comunidade tem a ver com essa expansão
do estudo e da vivência da mediunidade em que muitos seres e povos podem vir a se
manifestar. Isso me remete a uma fala de El. em um dado ritual. Ela comentou que na Morada
tem-se um certo “alcance energético”, em que “conseguimos acessar certos povos e seres que
habitam o cosmos”, e que se sabe nomear e trabalhar com alguns deles. Outros não, mas sabe-
se que existem. Outros ainda, nem se sabe da existência. Por isso, disse ela, “precisamos ter
muito respeito para com todos. Precisamos respeitar ainda mais aquilo que não conhecemos,
pois não sabemos com que forças trabalham”. Dessa forma, o sentido dado ao termo
universal trabalhado na Morada contrasta, a meu ver, com o modo como usualmente o
tratamos – eu arriscaria dizer – no pensamento ocidental moderno.
O universal não implica uma certa homogeneização dos seres e povos em questão (não
são todos iguais, nem mesmo são tratados ritualmente da mesma forma), nem tampouco uma
certa arrogância de que se tem acesso e conhecimento sobre a essência de tudo (reconhecer
que não se conhece tudo e todos é um dos pilares centrais para se viver a espiritualidade da
Morada da Paz). Também não implica um ecumenismo generalizado, uma tentativa de criar
uma nova religião a partir da soma de todas as outras, como alguns caracterizam o que

40Isso aconteceu com Uh., filho de Tj., que ainda estava em sua barriga, com A.M., filho de Bm. e Im., quando
também não era nascido, e com Ky., filho de Bl. e.Or. Nos três casos, Ys. foi a mensageira que trouxe aos pais
o nome dos espíritos que reencarnariam como seus filhos, e informações de estudos e orientações que
auxiliassem o processo de gestação e de acompanhamento da criança.
104

chamam de Movimento Nova Era41. Aliás, religião é um dos termos que não agrada em nada
às integrantes da comunidade. “Religião significa re-ligar, mas o nosso povo, negro e
indígena, já nasceu ligado, não precisa se re-ligar”, comentou Ys. em uma oficina ofertada
pela comunidade durante o Fórum Social das Resistências42.
Eu gostaria de prolongar um pouco mais a discussão sobre o universal próprio da
Morada, e retomar algumas discussões a respeito do culto às entidades. As religiões
monoteístas, em particular todo o projeto político desenvolvido pelo catolicismo, sustentam a
ideia de que só existe um Deus, portanto, todas as demais crenças e divindades não existem –
ou seja, universalizam sua verdade e a tornam coextensiva a toda a humanidade, negando a
existência de outras divindades e fés. Nisso consistiu o projeto político colonizador que tanto
conhecemos e que constantemente é lembrado pelas mais velhas. Por outro lado, encontramos
formas religiosas/espirituais que não negam a existência de outras divindades e cultos,
tomando-as também como verdade. Ordep Serra (1995), em seu livro Águas do Rei,
apresenta duas possibilidades para esse segundo grupo: o “ecletismo”, caracterizado por ele
como práticas religiosas que teriam como “propósito realizar uma síntese de várias, senão de
todas, as religiões”. Como exemplos, destacou a Umbanda, o rito de Omolocô e o que chamou

41Seria possível ler e pensar a Comunidade Morada da Paz como mais um caso dos movimentos neo-rurais
espiritualistas que constituem o “movimento Nova Era” ou “espírito Nova Era”? A partir de um olhar pouco
atento, talvez fosse. Nova Era, segundo Magnani (2000, p. 10) é um movimento originado nos Estados Unidos
pelas décadas de 50 e 60, cujo termo deriva da astrologia, referente a Era de Aquário, uma era de
transformação. No Brasil, segundo o mesmo autor, essa prática ganhou notoriedade durante a década de 80. A
relação com a natureza e preocupações ambientalistas, os vínculos estabelecidos com o ocultismo e com
práticas espirituais do Oriente são elementos que, de uma forma ou de outra, são caracterizados pela
bibliografia como Nova Era (BORGES, 2011). Ou a chamada Nova Era Popular (NAP), como aponta Oliveira
(2009), onde religiosidades populares brasileiras são acrescentadas nessas relações. É caracterizada pela
bibliografia antropológica como sendo uma religião própria da pós-modernidade, pautada pelo sincretismo e
pelo culto ao Eu. E é compreendida pela literatura como uma espécie de produto da modernidade, onde o
sagrado e o religioso são vividos de modo fluido, sem a presença de instituições religiosas, voltada ao
desenvolvimento individual de cada sujeito e vinculada a um mercado específico de métodos alternativos de
cura e cuidado pessoal. Cada indivíduo produz seus próprios cultos, com aquilo que escolhe para si,
combinando os elementos os mais diversos de modo aleatório. A Nova Era seria a manifestação dessas
espiritualidades nascidas em um contexto de “declínio da tradição” (RUDIGER, 1996). Nas palavras de
Oliveira (2009, p. 45): “Desse modo, uma nova forma de lidar com o sagrado emerge por meio de uma nova
proposta de síntese”. Porém, acredito que precisamos atentar para alguns pontos. Primeiro, porque a
comunidade Morada da Paz não se identifica como parte desse “movimento Nova Era”, “culturas da Nova
Era” ou “espírito Nova Era”. Além disso, as práticas rituais desenvolvidas na Morada da Paz, antes de
significarem algum “declínio da tradição”, configuram-se como uma recuperação de práticas e conhecimentos
ritualísticos tradicionais. Parte do incômodo que tenho com esses conceitos é que muitas das comunidades com
as quais os antropólogos se envolvem não se dizem Nova Era (MALUF, 2003; CAMPANELLA e
CASTELLANO, 2015; OLIVEIRA, 2009; CARNEIRO e STEIL, 2009). É portanto um conceito externo, e
suas implicações na descrição devem ser levadas em consideração. Em relação a essas implicações, acredito
que acionar essa perspectiva – e a vasta bibliografia que a acompanha – pode, de alguma forma, camuflar
técnicas e modos de pensar a mistura, em benefício de uma ideia de modernidade, individualidade e
sincretismo que são externas à própria comunidade.
42O Fórum Social das Resistências é uma consequência do Fórum Social Mundial, realizado, durante muitos
anos, na cidade de Porto Alegre. Trata-se de um espaço de encontro de diferentes organizações sociais,
organizado em Grupos de Trabalho e Oficinas. No ano de 2016, ocorreu de forma descentralizada pela cidade.
105

de “cultos messiânicos modernos como o da 'Fraternidade Universal'”. Em contraste ao


“ecletismo” e suas sínteses, o autor aponta o “pluralismo religioso de princípio”:

Mas em outras instâncias, se está presente o que chamei de “pluralismo religioso de


princípio”, a orientar a exploração criativa dos espaços comuns entre sistemas
historicamente avizinhados, não se propõe o desiderato eclético: não se afirma um
projeto de síntese “gnóstica” dessa ordem. É o caso que estudo: os adeptos do
candomblé admitem perfeitamente a legitimidade de outras religiões e insistem no
caráter singular do seu rito, descrevendo a dedicação ao mesmo como uma
necessidade imposta a determinadas pessoas (ou grupos) por Deus, pelos Orixás,
pelo destino. Mas aqueles que se dedicam ao culto dos Orixás e se dizem também
católicos, fazem diferença entre candomblé e catolicismo: não pretendem que a
prática simultânea dessas religiões constitua uma nova religião, na qual tanto o rito
católico quanto o culto dos Orixás estejam compreendidos e superados. (SERRA,
1995, p. 14)

Ou seja, o culto do Candomblé não é impeditivo de outros cultos, mas não forma com
eles um novo culto. A discussão de Ordep Serra se prolonga sobre os modos como o
Candomblé lida com a diferença. Ao definir esse contraste, traz uma situação presenciada por
ele bastante interessante, que aconteceu em um terreiro baiano. Um viajante de São Paulo
chega à mãe de santo para pedir auxílio. Ele havia estado na Índia a negócios e passou por
uma situação bastante delicada. Recebeu, na época, um conselho de um amigo indiano para
que fizesse uma oferenda a uma divindade lá cultuada. Resolveu seguir o conselho e
conseguiu sair da situação delicada em que estava. Voltou a São Paulo e, passado algum
tempo, sentiu que precisava fazer uma oferenda ao seu benfeitor, mas não sabia como
proceder, pois na capital paulista não havia templos dessa divindade.
Decidiu, então, procurar um terreiro de candomblé. A mãe de santo, ouvindo a história
do rapaz, deu a seguinte solução: pediu para que entregasse ao ogã da casa a oferenda que
havia trazido e que dissesse a ele o nome da entidade. Solicitou ao ogã que colocasse na casa
de Exu. O que Serra destaca desse fato é a solução encontrada pela Mãe Tatá. Sendo Exu “o
grande mensageiro e intérprete, um viajante de todos os caminhos, que anda por quanto
mundo existe e 'troca língua' como quer” (SERRA, 1995, p. 18), poderia ir ao encontro do
“santo estrangeiro” e fazer a entrega da oferenda do moço de São Paulo. Ou seja, o
candomblé utiliza das suas próprias práticas e teologia para lidar com a diferença. A mãe de
santo não buscou conhecer qual seria o santo estrangeiro ou como seria o seu culto para dar
conta do pedido do viajante paulista, mas utilizou-se de recursos da sua própria religião, e das
divindades que dela participam para tal.
Esse exemplo de “pluralismo religioso de princípio” e da resolução encontrada pela
mãe de santo a partir dos termos do próprio candomblé é sucedida de outra situação, ocorrida
com a visita de um deputado. Esse, sem religião e sem interesse em iniciar-se na religião, foi
106

motivo de conjecturas, por parte da mãe de santo, sobre quais seriam seus Orixás regentes.
Não com a intenção de atraí-lo para o culto, pois sabe-se que nem todos são chamados pelos
Orixás. A reflexão que Serra faz a partir dessa situação narrada é que, ainda que haja uma
perspectiva particularista desenvolvida pelo candomblé, este aceita a existência de outras
formas religiosas como verdade, embora mantendo a sua como lógica a partir da qual lida
com a diferença. Mas também supõe que a sua verdade é passível de ser universalizada, na
medida em que “todo mundo tem Orixá”, ainda que haja uma dimensão específica do rito,
nessa cosmologia, como uma religião de mistério, onde apenas alguns são levados, pelo
destino, a iniciar-se nos terreiros.
A discussão que isso gera sobre universalismo e particularismo segue-se a partir de
algumas provocações oriundas do pensamento de Manoela Carneiro da Cunha sobre a relação
dos Nagôs com as Religiões Universais. Afinal, o que seria uma religião universal?, questiona
a autora. Nesse artigo, em diálogo com outros autores, a antropóloga apresenta diferentes
conceituações para o universal. Seguindo seu argumento, Serra (1995, p. 25) nos diz que

[...] pode-se deixar de lado uma definição “draconiana” segundo a qual “religião
universal” supõe a existência efetiva (não bastaria a simples potencialidade de
expansão ecumênica) de uma Igreja transnacional, mais ou menos hierarquizada e
centralizada. Cabe rejeitar, também, a definição “trivial” (obviamente muito elástica)
que exigiria só a verificação da competência das divindades de um sistema religioso
sobre todo o universo. Resta outra definição, mais sólida: Será universal a religião
que “professe ser adequada a todos os seres humanos, por oposição àquela que se
julga privativa de um grupo social, seja de uma família, linhagem, cidade, etnia...”.
Mesmo essa definição é considerada um tanto problemática pela etnóloga, “pois
supõe uma distinção, ela própria universal, entre a humanidade em geral e grupos
sociais particulares”, quando é sabido que “a noção de humanidade, no mais das
vezes, se confunde com as fronteiras do grupo social”.

O pensamento de Manoela Carneiro da Cunha conduz o autor à seguinte reflexão: para


que se fale em religião universal, não é necessário afirmar a existência de apenas um Deus, é
preciso assegurar o “alargamento das fronteiras do grupo de culto”, ou seja, a aceitação de
potenciais adeptos, a coextensão de suas práticas de culto a toda a humanidade. Por outro
lado, não universal serão aqueles grupos de culto que apontam que seu deus é bem seu, e por
isso mesmo não excluem a possibilidade da existência de outros deuses, “tão específicos
quanto ele próprio”, ou seja, que não se estendem para toda a humanidade, mas é coextensiva
do grupo social particular. Essa elaboração, feita por Carneiro da Cunha e apresentada por
Serra, leva o autor a concordar com a antropóloga quando esta afirma que no caso brasileiro,
quem se universalizou foi a religião iorubá, visto que toda humanidade, independente de
grupos sociais específicos, tornou-se passível de ser chamada pelos Orixás, ainda que nem
107

todo mundo possa ser iniciado. O que leva à constatação de que “religiões politeístas podem
ser universais”.
A Morada é uma comunidade kilombola e se autorreferencia também como um
terreiro. Mas, definitivamente, é muito diferente dos terreiros de Batuque ou de Candomblé.
Nesse sentido, acredito que o conceito de universal desenvolvido na Morada da Paz possa
tecer algumas relações com a discussão de Ordep Serra. Em primeiro lugar, a Morada elabora
uma crítica, como já havia apontado, entre os conceitos de espiritualidade e religião. Optam
por utilizar o conceito de espiritualidade, pois não precisam se “re-ligar” com o sagrado,
visto que, para elas, os povos negros e indígenas já “nascem ligados”. O que, evidentemente,
remete à relação entre imanência e transcendência, em que apenas esta última sustentaria a
necessidade de “re-ligar”. Mas essa separação, que é cara à Morada da Paz, não parece fazer
sentido para Ordep Serra. Contudo, acredito que aí resida a questão central em que consiste o
universal para a Morada da Paz.
Quando falam em espiritualidade, falam em um sentido muito amplo, desenraizado de
grupos e cultos específicos. Existe uma percepção na comunidade de que qualquer pessoa –
mesmo outras espécies que não a humana – é médium, e expressa sua mediunidade das mais
variadas formas. Isso porque entendem que a mediunidade é orgânica, assim como a
respiração ou a fome. A mediunidade, tal como a concebem, é aquilo que permite a
comunicação entre os seres – sejam eles humanos ou não-humanos – que povoam o cosmos.
Quando falam em espiritualidade, de antemão estão aceitando a existência de inúmeras
formas, seres e grupos de culto porque a espiritualidade é muito mais vasta do que aquela que
a Morada trabalha – que denominaram afrobudígena. Assim, pensar a coextensão para “toda
a humanidade” é algo que não faz sentido algum na percepção da Morada. Pois a
mediunidade é constituinte de todos os humanos e não-humanos. “Todo mundo tem Orixá”?
Poderíamos perguntar. E acredito que teríamos como resposta, diferente de qualquer terreiro
de Candomblé: ninguém “tem” Orixá, mas os Orixás existem em tudo e todos.
Mas tentarei seguir o raciocínio de Ordep Serra, a partir da forma singular que a
espiritualidade tomou na Morada da Paz, e que está atrelada ao conceito de afrobudígena.
Começo, então, pela dualidade apresentada pelo autor entre “ecletismo” e “pluralismo
religioso de princípio”. O primeiro fundamenta-se sobre a produção de uma unidade possível
entre diferentes formas religiosas, onde o autor localiza, de forma pouco desenvolvida, a dita
“Fraternidade Universal”. De fato, não sei bem a que ele está se referindo, mas numa leitura
apressada é muito óbvio que vinculemos à Morada da Paz, visto que se referencia como
participante da Grande Fraternidade Resplandescente e Universal. Portanto, a Morada da Paz
estaria localizada nisso que ele chama “ecletismo”. Mas confesso que não me dou por
108

satisfeita. Primeiro, porque não fica claro a que ele está se referindo com “cultos messiânicos
da Fraternidade Universal”. Segundo porque não existe uma pretensão, na Morada da Paz, de
fazer uma síntese, nem de várias e nem de todas as formas religiosas.
Contudo, de fato, existe ali algo que não pode ser caracterizado como o “pluralismo
religioso de princípio” apresentado pelo autor. Isso porque existe uma noção de ‘unidade’ na
comunidade que articula três matrizes centrais, a saber, o budismo tibetano Mahayana, as
religiões de matriz africana e o xamanismo mbyá-guarani. Ao mesmo tempo em que se
propõe a articular essas matrizes, não encontraremos na Morada da Paz necessidade alguma
de se identificar como elas. Como muitas vezes ouvi na comunidade, “não, nós não somos
Budistas, nem do Batuque e nem da Umbanda e não praticamos o xamanismo tal como os
povos indígenas”. Ou seja, não ocorre, como os exemplos traçados pelo Serra, articulação de
diferentes práticas demarcadas e diferenciadas no tempo e no espaço – por exemplo, afirmar-
se candomblecista e católico.
Na Morada da Paz não existem essas separações. As entidades se manifestam num
mesmo momento ritualístico ou, até mesmo, em momentos não ritualísticos, quando precisam
transmitir alguma mensagem ou interferir em alguma situação específica que esteja
acontecendo na comunidade. Um exemplo disso foi quando, em ipadê, durante uma conversa
séria e tensa que estávamos tendo sobre a participação de uma pessoa da irmandade no
comprometimento com as compras mensais que realizamos, Ogum de Malê manifestou-se em
Ak. para resolver os tensionamentos pessoais que estavam sendo ali gerados e nos auxiliou
nos processos de limpeza e transmigração dos desentendimentos.
De toda forma, se existe um processo de síntese, não me parece ser uma espécie de
síntese generalizada. Afinal, como podemos notar, existe uma gama de diferentes linhas do
budismo que poderiam ser acionadas para a construção da espiritualidade ali vivida. Mas não
falam de todos esses budismos, apenas do budismo tibetano mahayana. Da mesma forma,
seria muito possível e plausível a comunidade acionar o xamanismo indígena em um sentido
genérico, como parte de sua vivência espiritual – afinal, existe uma gama de vivências
espirituais que assim fazem, principalmente a partir da ayahuasca ou dos indigenismos
andinos –, mas também não ocorre assim. O xamanismo que constitui a espiritualidade ali
vivida é nominado como mbyá-guarani. Contudo, a Morada da Paz se afirma como terreiro e
o desenvolver ritualístico dos Muzunguês, que são os atendimentos espirituais, assemelham-se
às casas de Umbanda, ainda que também não sejam exatamente isso – pois em um mesmo
espaço-tempo ritual manifestam-se as entidades do Batuque, do Candomblé e da Umbanda,
que são percebidas como linhas com “diferentes alcances energéticos”, mas parte de uma
mesma matriz caracterizada como Africana. Ou até mesmo Orixás, que a princípio não são
109

definidos a partir dessa diversidade de linhas – e as explicações para isso são variadas,
primeiro porque a entidade não vê necessidade em falar qual linha pertence, e quando for o
caso ela falará, ou porque simplesmente não faz diferença substantiva no trabalho prático que
a Morada realiza.
Se a Morada for definida, a partir das caracterizações de Serra, como “ecletismo”, é
importante salientar que, nem tudo é interessante conectar e nem tudo se sabe como conectar.
Não há uma pretensão, nem das Yas e nem das entidades que ali se manifestam, de buscar
conhecer todas as religiões para poder encontrar uma fórmula que as sintetize em uma única
espiritualidade, como, acredito, foi o caso de Helena Blavatsky. Nem por isso seria a ausência
de relação. Lembro rapidamente dois fatos diferentes, que podem aqui servir de exemplo. O
primeiro, foi vivenciado a partir de um encontro de agroecologia de que Ys. e Ol.
participaram. Lá, no sul da Bahia, conheceram os Pataxó e os Tupinambá. Sultão das Matas,
um caboclo com o qual uma senhora Pataxó trabalhava via incorporação, manifestou-se e,
conversando com Ys., disse que trabalharia na Morada da Paz. Desde então, passou a se
manifestar no território.
Outro fato ocorrido, diferente dos processos de incorporação que já são familiares
para a Morada, foi vivido com os Kariri-Xocó e Fulni-ô. Quatro representantes dessas etnias
estiveram no território da Morada em final de 2017 para um rito aberto, chamado Okan Ilu.
Em um dado momento, durante uma ritualística vivida apenas pelas pessoas que participam
da Irmandade, foi consagrada a Jurema Sagrada. O chá foi preparado pelos indígenas e todo o
ritual de consagração foi realizado por eles, com seus cantos e suas danças. Na Morada não se
utiliza substância alguma, mas a partir da condução dos indígenas que a utilizam, e sob
permissão das entidades que guiam os trabalhos no território, o chá foi servido em ritual. O
interessante dessa experiência é que, diferente da manifestação de Sultão das Matas, que
passou a participar do território, o chá não foi incorporado nas ritualísticas da comunidade.
Ainda que não tenha sido incorporado, isso não invalida a possibilidade de relação e
experimentação com essa outra prática espiritual.
Como contou Ys., há inúmeros grupos espirituais, das mais diferentes formas, que se
vinculam à GFRU, e nem por isso se identificam com uma única religião. Disse ela que há
harekrishnas, xamanismos indígenas, terreiros de Umbanda, centros espíritas kardecistas,
budistas, dentre outros tantos grupos que não parecem ter a pretensão de buscar uma unidade
em suas formas religiosas. Todos os cultos e todos os deuses são verdadeiros na perspectiva
da Morada da Paz, nem por isso têm por objetivo agregar todas as práticas espirituais para
além daquelas que vivem, sob a orientação das entidades que ali se manifestam. Até porque,
110

como El. destacou, há perigo nisso. São procedimentos delicados que demandam cuidado. E
por cuidado entendo o conhecimento de como operacionalizá-los.
Toda semana há o que se nomina chamada das entidades. Um momento, que ocorre
no Templo, onde se trabalha com as entidades que ali se manifestam. Cada chamada é
dedicada a entidades específicas – exus, orixás de frente, povos da terra e pretos velhos, mães
das águas e povo do oriente 43, e assim segue mensalmente. Em uma chamada dedicada aos
Povos da Terra, lembro uma fala de Ys. que muito me tocou. Disse ela que o chamado era
para que todas as entidades relacionadas com os povos da terra se manifestassem – não
apenas os caboclos, mas também os devas, conhecidos como elementais e elementares, e
outros tantos povos de que se sabe ou não da existência. Assim como, em uma outra chamada
das entidades dedicada às mães das águas, Ys. nos disse que seria destinada não apenas às
divindades que já conhecemos, mas também a outras que habitam águas que porventura
viermos a acessar.
Afinal, uma oração recebida por canalização fazia referência a sete mães das águas, e
apenas quatro são conhecidas (Nanã, Yemanjá, Oxum, Obá). Essa abertura, que não restringe
as manifestações às entidades já conhecidas do panteão africano, conta com todo um aparato
de proteção – um tempo ritual específico, as chamadas das entidades, estão sob a permissão e
o cuidado das entidades que regem o território. Volta e meia, durante os rituais, as Yas dão o
comando para que se manifestem e desenvolvam o seu trabalho apenas as entidades que
sejam permitidas. Sinto que é necessário olhar com atenção essas singularidades para
percebermos no que consiste o universal desenvolvido pela Morada. Não se trata do universal
do pensamento ocidental colonial, que dizima a diferença. Também não se trata de uma
espécie de mosaico aglutinador de toda e qualquer forma religiosa, que visa também uma
unidade totalizante com seus contornos conhecidos. E, de fato, não constitui o que Serra
chamou de pluralismo religioso.
Mas continuemos o diálogo com Ordep Serra, no que consiste à Morada como um
grupo de culto. Serra, concordando com Carneiro da Cunha, desenvolve a ideia de que as
religiões iorubás no Brasil são universais, na medida em que se estendem a toda a
humanidade, ou seja, qualquer pessoa pode ser chamada pelos Orixás, ainda que nem todos o
sejam. Na Morada da Paz ocorre definitivamente o mesmo. Muitas pessoas frequentam a
Morada. Muitas delas desejam, inclusive, passar pelo processo de iniciação. Contudo, nem
todas são chamadas a isso. E daquelas que recebem o chamado, nem todas desejam se iniciar.
Dessa forma, os chamados não são para todos e não acontecem sempre, e aqueles que aceitam
se iniciar compõem barcas de iniciação que acontecem de dois em dois anos.
43Povo do Oriente se refere aos xamãs (tanto os xamãs tibetanos, mas também xamãs indígenas e médicos
espirituais, como o doutor Tchelo) que atuam diretamente nos processos de cura dos corpos físicos.
111

As Yas e Mãe Preta sempre nos lembram de que o importante para a Morada não é o
número de filhos e filhas, mas pessoas “de coração puro e valoroso que tenham
disponibilidade”. Há casos, inclusive, de pessoas feitas em outras casas de Batuque ou de
Umbanda, mas que pelos mais variados motivos abandonaram suas casas, cujas entidades
respondem durante os Muzunguês, os atendimentos espirituais mensais. Muitas são
orientadas, seja pelas entidades, seja pelas Yas, a retomarem seus trabalhos espirituais nas
casas de onde vieram, “pois é lá que precisam trabalhar”. Mas vejamos, o sistema de crença
vivenciado na Morada da Paz é coextensivo a toda humanidade? É, sem dúvida, porque a
mediunidade é compreendida como parte orgânica de todo ser. Isso implica em dizer que
todos trabalharão com as entidades que respondem ou responderiam na Morada? Não
necessariamente. Há entidades que não respondem na Morada e que podem responder – das
mais diversas formas – em outros contextos.
Ainda assim, qualquer pessoa é um potencial adepto. Mas, como no Candomblé, nem
todos recebem o chamado das entidades que, vale dizer, são quem escolhem a casa onde o
sujeito trabalhará. Dentro da perspectiva desenvolvida pela Morada da Paz, que aceita a
existência de muitas formas ritualísticas de trabalhar a espiritualidade, nem todos os
chamados serão para trabalhar com os Orixás, assim como nem todos os chamados da
espiritualidade serão para trabalhar na Morada da Paz. É curioso perceber as nuances das
relações. Enquanto Serra narra as elucubrações da mãe de santo sobre os Orixás regentes do
deputado – uma prática muito comum nos mais variados terreiros que eu conheci –, na
Morada da Paz isso não ocorre. Ainda que, sim, nos processos de iniciação certas entidades
são acionadas como forças manifestantes no sujeito da iniciação.
Sinto que o conceito de universal desenvolvido pela Morada da Paz não está muito
preocupado com quem pode ou não participar de suas práticas espirituais ou se é coextensiva
ou não a toda humanidade. Nem tampouco se o que fazem é uma síntese afrobudígena ou
processos de “pluralismo religioso” – questões que, evidentemente, são problemas colocados
pelos Candomblés e Linhas Cruzadas com grande investimento teórico-prático de seus
praticantes nas definições e negociações das fronteiras.
No caso da Morada da Paz a fronteira que interessa é outra. Porque dizem
constantemente que a espiritualidade é uma só, independente das inúmeras formas
ritualísticas que assumem e que possibilitam, evidentemente, acessos muito diferenciados às
forças que atuam no cosmos. Ainda que a espiritualidade seja uma só, é preciso destacar que
“a espiritualidade não tem lado”, como disse Ys.. E aí reside a grande questão que, acredito,
importa na prática cotidiana da comunidade Morada da Paz: a que lado determinada prática
espiritual serve? Com quais práticas podemos nos conectar, ou seja, quais práticas fortalecem
112

o propósito espiritual desenvolvido pela Morada? Com quais práticas não se pode conectar?
E, nesse sentido, o que importa é menos as configurações teológicas realizadas pelas mais
diversas formas espirituais e mais como elas são ou podem ser utilizadas pragmaticamente –
seja momentânea ou continuamente.

2.3.2 Afrobudígena

A espiritualidade vivida na comunidade está pautada nas relações afrobudígenas desde


a sua formação, mas foi em 2016 que esse termo começou a ser utilizado como uma forma de
caracterização de suas práticas rituais. Como muitos dos termos que emergem na Morada,
alguns trazidos por Mãe Preta e outros inventados no cotidiano, esse surgiu em meio a boas
gargalhadas. Eu iniciava minha aproximação com a comunidade quando conversei com Sh.,
filha adolescente de Yb.. Perguntei como era essa relação entre três matrizes, e ela foi me
explicando até que, entre risos, disse que a Morada era “afrobudígena”. Desde então, o termo
foi incorporado no modo como pensam suas práticas.
A relação afrobudígena é da ordem da prática. Foi, e é, um processo de recuperação,
como dizem, oriundo das orientações de entidades para o estudo dessas três matrizes, tal
como descrevi no início do capítulo. Mas também emerge de outros tantos agenciamentos,
seja das trajetórias das mais velhas, cada uma com seus pertencimentos familiares em
terreiros, seja também de desejos individuais em seus reencontros. Lembro-me aqui de uma
conversa com El., em que me disse que antes de entrar no grupo Cosmos já sentia certa
afinidade com a cultura indiana, pois achava lindos os trajes, as pinturas e a religiosidade.
Com o desenrolar do tempo, as entidades disseram-lhe que ela era formada, no plano cósmico,
por três matrizes, a africana, cuja nação específica não recordo, a indiana e a tupinambá.
No cotidiano da comunidade não existem distinções sobre que práticas pertenceriam a
quais matrizes, e foi apenas com uma convivência alargada que pude acompanhar alguns
comentários e reflexões a respeito. De fato, há algo em comum, em um sentido bem amplo e
raso, nessas três matrizes: todas são politeístas. Sejam as religiões afro-brasileiras, cujo
politeísmo nos é mais familiar, seja o budismo, com suas muitas Taras e Budas, seja o
xamanismo mbyá-guarani, com os muitos deuses que se originam de Ñande Ru, concebido
como o grande criador. Mas é do sentido prático, ou seja, de como funcionam no cotidiano,
que me interessa falar aqui, sobretudo daquilo que é recuperado para a construção da
espiritualidade vivida na Morada da Paz.
O dia, como sempre, começa cedo na Morada da Paz. Acorda-se às cinco horas da
manhã para iniciar os preparativos do café e da organização do dia, ainda que o corpo muitas
vezes reclame mais alguns minutos de sono. Antes de mais nada, assim que levantam de suas
113

camas, cada pessoa da irmandade circunda uma grande fogueira na área central da
comunidade, passando as mãos pelo corpo e em estalos contínuos com os dedos. Dali, parte-
se para o chamado caminho de oração, onde uma árvore, cuidadosamente cercada por
arbustos bem podados, serve como centro. Cada um, com a mão no chakra cardíaco, situado
no coração, vai proferindo em voz baixa suas orações para o início do dia. Após esse percurso,
volta-se para a fogueira, inspira-se fundo e com um movimento de expiração e de braços
esticados solta-se três profundos “ru!” em direção ao fogo – o famoso fazer o ru! Esse rito,
explicou An., é para “encaminhar as energias negativas para o fogo e iniciar o dia em uma
condição de harmonia”. Após isso, a primeira coisa a fazer é dirigir-se ao templo,
cumprimentar Seu Sete e bater cabeça em frente ao congá, ou peji, para os Orixás. São os
chamados foribalés, ou conhecidas também como prostrações. Foribalé, explicam-me, é o
nome em iorubá para a prática de reverência. Prostração é o nome dado pelos indianos.
Afinal, “a espiritualidade é uma só”.
O foribalé é constituído por três movimentos centrais: mãos unidas postas,
primeiramente, sobre a cabeça, reverenciando o que é chamado de consciência cósmica e ao
Olorum, em referência ao chakra coronário, depois, em frente à testa, em referência ao Ori,
cabeça, ao chakra frontal e, por fim, em frente ao okan, o coração, que constitui o chakra
cardíaco. Após esse movimento, fica-se de joelhos, com a testa posta ao chão e os braços
estendidos em direção ao peji. Esse movimento é feito três vezes seguidas. Contam, com
admiração, que os indianos fazem esse movimento com muita rapidez em frente aos seus
altares. O foribalé é feito em quatro lugares diferentes no Templo. Primeiro em frente ao peji,
onde se encontram todos os Orixás. Peji esse, é importante dizer, que não conta com imagens,
apenas as quartinhas, sinos e elementos sagrados dedicados a cada Orixá. Depois, esses
mesmos movimentos são feitos em frente ao peji de Mãe Preta – o espaço com seus pertences,
onde fica quando manifestada –, depois em frente a uma panelinha de fogo que se encontra no
centro do terreiro – em referência à Seu Sete – e, por fim, em frente a uma grande e
imponente escultura em madeira de Xangô.
Ao sair do Templo, sobe-se para a Casa Verde, a casa com maior circulação de
pessoas, onde estão dispostas a cozinha, uma sala de estar e uma salinha da televisão.
Entramos pela porta de acesso à cozinha, onde encontramos um quadro branco com as
orientações das preces práticas do dia. Já ouvimos o movimento dos passos apressados de
todos se encaminhando para as suas funções e aproveitamos os encontros inevitáveis para
cumprimentar quem quer que se seja: “Namastê Odirè!”, é a saudação dada, seguida de
carinhosos abraços. Namastê, do sânscrito, significa “o deus que habita em mim saúda o deus
que habita em você”; Odirè, do iorubá, significa “para que seja o melhor de seus dias”.
114

Louças para lavar, roupas para secar, grama para cortar e rastelar, crianças para banhar,
alimentar, fazer dormir e, principalmente, brincar.
É preciso varrer a Casa Bio, a Casa Verde, o Templo e harmonizar os banheiros (o que
fica dentro da Casa Verde, o do ‘camping’ e o banheiro seco/ecológico, que fica próximo ao
Templo). E tem madeira para o fogão à lenha? Lembraram de catar gravetos para fazer fogo?
É preciso levar e esvaziar o lixo orgânico na composteira! Além dessas, que são as ações
rotineiras do cuidado de uma casa rural, há também os inúmeros preparativos e cuidados
ritualísticos que envolve ser uma comunidade espiritual. Esses, em sua grande maioria, ficam
aos cuidados das Yas e das egbomis, mas não apenas. Há também o trabalho de plantio e
cuidado com os animais, que envolve a Irmandade, mas principalmente Bg. e S.P..
As preces práticas são organizadas pelas Yas ou egbomis e funcionam de forma
bastante rotativa. Se hoje uma pessoa fica com as crianças, amanhã certamente auxiliará na
feitura do almoço, e assim segue. São preces práticas porque partem da ideia de que a
espiritualidade existe em todas as ações que se desempenha e que o processo meditativo é
ativo – a agilidade e a excelência são constantemente lembradas e desejadas em todas as ações
desempenhadas. Mas essa meditação ativa que constitui o dia a dia da comunidade não tarda
em ser motivo de risada entre a própria irmandade sobre as expectativas supostamente criadas
por aqueles que ali visitam. Or., certa vez, após um “ritual aberto”, chamado Terreiro de
Chão Batido, comentou que as pessoas chegam à comunidade pensando que ali seriam “todos
zen”, que passavam os dias meditando em silêncio, visto ser uma comunidade espiritual. Mal
imaginavam “as correrias e loucurinhas” que constituem os dias na Morada da Paz,
principalmente em datas com atividades e ritualísticas abertas.
Em um ipadê de reflexão sobre um determinado Muzunguê, realizado sempre um dia
depois do atendimento espiritual, as mais velhas comentavam sobre como poderiam melhorar
a logística dos atendimentos, visto que o número de pessoas que frequentavam os Muzunguês
ultrapassava o número de assentos disponíveis. Uma das irmãs comentou sobre as constantes
falas que ocorriam durante o rito e como isso interferia no trabalho realizado. Eis que Ys.
comentou que seria preciso educar as pessoas a estarem naquele ambiente, visto que muitas
estavam acostumadas a outros terreiros onde as regras de conduta eram outras.
Um dos aspectos que ressaltou foi o uso de sapatos, visto ser ali um território sagrado:
“O ideal seria a pessoa estar descalça desde a porteira de entrada, visto que todo o território
é o terreiro”. Mas retirar o sapato para adentrar o Templo já é algo com que as pessoas
geralmente não estão acostumadas. Uma irmã comentou, em tom de surpresa, que há terreiros
que nem para cumprimentar o Orixá o consulente retira seus sapatos. Outro aspecto foi o
silêncio. É solicitado, antes de iniciarem os trabalhos do Muzunguê, que os consulentes
115

mantenham-se em silêncio e em oração. Mas essa também não é uma prática comum nos
terreiros, pois “isso vem mais do budismo”, lembrou-nos Ys..
Essa concepção do território todo como um terreiro, ou seja, como sagrado, é atribuída
mais às práticas budistas do que às práticas afro-brasileiras, ainda que ambas se encontrem na
sacralização da vida e dos diversos seres que constituem a natureza. Assim como também as
preces práticas e a noção de meditação ativa são atribuídas ao Budismo. O cuidado com o
corpo – seja com o não consumo de carne e de álcool, seja com a compreensão de que o corpo
é formado por pontos energéticos, os chakras –, também é caracterizado como um
conhecimento advindo do budismo, mas constantemente conectado com experiências
oriundas da matriz afro-brasileira. Por exemplo, o chakra coronário e o chakra frontal,
localizados acima e à frente da cabeça, estão relacionados ao Ori, por onde passa a relação
direta com os Orixás e com o Olorun – e que, nos processos de iniciação, é lavado com ervas
maceradas, também designado “sangue vegetal”, como disse certa vez o Cosminho, ao me
ensinar a macerar as ervas para produção de banhos de limpeza e harmonização. Outras
experiências advindas da manifestação dos Orixás são constantemente conectadas aos
chakras: palpitações no coração, relacionadas ao chakra cardíaco, e pontadas ou queimações
na região do estômago, vinculados ao chakra do plexo solar.
Mas, afinal, “por que o Budismo Tibetano Mahayana?”, questionei. E Yb. me
respondeu porque a comunidade coloca-se ao serviço da espiritualidade e da humanidade. O
Budismo Tibetano Mahayana é o budismo vivido e professado pelos Dalai Lamas. Não se
trata, como me explicam, de um budismo para viver a espiritualidade apenas para si, na busca
de seu próprio bem-estar exclusivamente, mas para ofertar aos outros esse mesmo bem-estar.
Tal budismo é o mesmo vivido tanto no Centro de Estudos Budistas Brasileiro (CEBB)
localizado em Viamão, cidade vizinha a Porto Alegre, quanto em Três Coroas, na região
serrana do Estado, onde existe um Templo Budista. Outro aspecto de conexão estabelecida
entre o Budismo e as religiões afros passa pela incorporação.
A princípio, pelo que se conhece do budismo, afirmaríamos a inexistência de
processos de incorporação em suas práticas. Contudo, as Yas e egbomis explicaram-me que
no Budismo Tibetano Mahayana há experiências de incorporação, ainda que raras. Eu fiquei
bastante curiosa com esse fato. Perguntei como funcionava a incorporação para o budismo e
foi El. quem me explicou. Disse-me que havia uma relação específica entre os Dalai Lamas e
o chamado “Oráculo”, uma entidade à qual os Dalai Lamas se conectavam em busca de
orientações para tomadas de decisões44.

44Para além das falas das Yas, elas me indicaram ler os textos publicados pelo CEBB. Dessa forma, obtive
maiores informações a respeito disso no site do CEBB de Porto Alegre, onde há um texto específico sobre o
assunto. Ver: www.cebb.org.br/o-mahayana-e-os-aspectos-misticos/
116

A relação com o xamanismo mbyá-guarani tem menos implicações ritualísticas do que


as outras duas matrizes. Ela opera mais em uma compreensão de mundo, como disse Ys. em
uma Desformação, espaço dedicado ao estudo da mediunidade. Esse culto se dá porque eles
reverenciam a mãe terra, o pai sol e o respeito à vida. E, como disse Tj., uma das integrantes
da Irmandade, se alguém externo for visitar a comunidade não encontrará nada que os permita
reconhecer o xamanismo mbyá-guarani, pois essa linha se manifesta muito mais numa “forma
de entendimento e compreensão das vidas que nos cercam do que em termos rituais”. O
sonho, enquanto um processo divinatório, e o uso do tabaco, como elemento de cura, são
aspectos referenciados à dimensão do xamanismo mbyá-guarani. E, mesmo que essa
singularidade seja tomada como elemento constituinte da espiritualidade vivida na
comunidade, é notável a constante relação que estabelecem com outros povos indígenas, não
apenas os mbyá. De todo modo, a ritualística vivenciada na comunidade tem sua apresentação
muito fortemente pautada na matriz africana ou, como lembra Ys., nas matrizes africanas,
visto que são muitas.

3.3. Nação Muzunguê

Ao viver a espiritualidade a partir dessas três matrizes, levantei a questão sobre como
percebem as suas próprias práticas. Seriam budistas? De Batuque, Candomblé ou Umbanda?
Ou talvez praticantes do xamanismo indígena? Seriam tudo isso? A resposta foi outra. Não se
pensam budistas, nem do Batuque, Candomblé ou Umbanda. Muito menos de algum tipo de
xamanismo indígena mbyá-guarani. Se vão, como têm ido há alguns anos, a templos budistas,
não são reconhecidas como budistas. Se vão a espaços afrorreligiosos, como também
frequentam, não são reconhecidas como de Nação ou umbandistas, ainda que sejam
reconhecidas como de terreiro e algumas das Yas e Egbomis sejam reconhecidas como
“prontas”, nos termos do Batuque, ainda que não haja um processo de ‘feitura’. Isso porque a
nação que se vive na Morada da Paz é Nação Muzunguê, algo que inexiste no universo
afrorreligioso hegemônico – como a nação oyó, cabinda, jeje, ijexá, dentre outras.
A Nação Muzunguê surge no mesmo período em que Baba Afra traz suas orientações
de recuperar a “força da ancestralidade africana”. Quem trouxe o nome Muzunguê foi Mãe
Preta, e Ys. nos contou que Muzunguê é oriundo do kikongo, cujo significado se aproxima da
ideia de acolhimento. A Yabá ancestral, como é conhecida na comunidade, narrou uma antiga
história sobre isso. Disse-nos que na África antiga as pessoas tinham que percorrer longos
caminhos de uma tribo a outra para realizar uma visita ou transmitir uma mensagem. Quando
os viajantes chegavam, cansados, ofertavam a eles de um alimento e, conforme fosse a notícia
trazida, a tribo anfitriã realizava uma kizomba, ou seja, uma festa com música e dança.
117

Dessa forma, Muzunguê significa o acolhimento realizado com a oferta de alimento


sagrado àqueles que fazem a visita. A Nação Muzunguê, contudo, foi recuperada junto com a
formação da Irmandade da Casa da Sétima Ordem, em referência à Grande Fraternidade
Resplandescente e Universal. Surge na medida em que algumas pessoas foram se
aproximando da espiritualidade vivida na comunidade e tem seu início entre os anos de 2012
e 2013. Interessante perceber que as orientações e informações trazidas pelas entidades são
constantemente postas em relação e ampliadas com pesquisas e conexões históricas realizadas
pelas próprias Yas. Lembro-me, nesse sentido, de um caso que ocorreu quando o grupo
Bongar, grupo musical cujos integrantes são da Nação Xambá de Pernambuco, esteve conosco
no território durante o rito do Okan Ilu de 2016.
Nesse momento, em um ipadê em que os integrantes do Bongar contaram sua história
e a história da Nação Xambá, G., o vocalista e compositor do grupo, comentou que a partir de
uma série de pesquisas realizadas, encontraram a região no continente africano de onde a
nação Xambá seria proveniente. A partir disso, Ys. comentou que assim como a Nação Xambá
era conhecida unicamente em Pernambuco, a Nação Muzunguê também não era conhecida
em outra parte do continente latino-americano. Mas, pelas informações trazidas por Mãe
Preta, sabem que existiu uma Nação Muzunguê no continente africano cujas ritualísticas têm
sido recuperadas na Morada da Paz. Por ser oriunda da língua kikongo, presume-se que sejam
próximas da região onde hoje estão localizados os países Angola e Congo.
A recuperação da ritualística da Nação Muzunguê ocorre de forma processual, através
das orientações dadas pelas entidades que regem os trabalhos. Uma das recuperações
realizadas foi o rito das Geledés, que descreverei com maior detalhe no capítulo seguinte. Foi
esse rito, contudo, que trouxe uma nova ritualística de iniciação – constituída pelo corte dos
cabelos e por um retiro individual do iniciado. A partir dele, foram orientadas barcas de
iniciação. Em 2013, recuperou-se a Irmandade, mas foi no ano de 2016 que houve a primeira
barca com seis processos de iniciação. Outras pessoas foram chamadas a participar da
Irmandade, mas deveriam responder apenas dois anos depois, ou seja, em 2018, onde
ocorreria a segunda barca.
Outro aspecto que foi recuperado foi a utilização dos tambores nas ritualísticas. As
mais velhas contam que durante o grupo Cosmos e até mesmo no início da comunidade
Morada da Paz os tambores não eram utilizados. Os orins, como chamam as rezas sagradas
ou pontos, eram feitos apenas com voz e palmas. Foi o reencontro com Im. que trouxe a
experiência do Maracatu para a comunidade, que permitiu recuperar essa prática considerada
ancestral. Im. passou a ser o alabê da casa, e a sua presença incentivou e despertou o
interesse pelo tambor em Ay., filho adolescente de El.. Ay., desde muito pequeno, demonstrou
118

habilidades musicais incríveis, principalmente como baterista, mas não sentia interesse pelo
tambor. Aos poucos, com a aproximação de Im. e outros estímulos, incluindo incentivos de
Xangô Agodô, Ay. se tornou também alabê da casa. Mais tarde, Bl. também se tornou alabê.
A Nação Muzunguê desenvolve os ritos de atendimento espiritual tal qual a Morada já
realizava. Todo primeiro sábado de cada mês há um Muzunguê. Diferente de como ocorria
antes, cada mês corresponde a um Orixá, ou seja, o tempo está sob guardiania deste Orixá.
Em Janeiro ocorre o Trabalho dos Homens e das Mulheres, orientado e guiado pelas pomba-
giras. É considerado também um Muzunguê, apesar de ter uma série de elementos que os
singulariza – questões que apresentarei mais no capítulo seguinte. Em fevereiro e em março a
Morada da Paz fecha para o público externo, seguindo uma série de ritualísticas e retiros para
seus membros. Em março, há o chamado Muzunguê da Vacuidade, dedicado aos processos de
cura, com a presença e atuação de médicos e xamãs espirituais que trabalham sob a orientação
do doutor Tchelo, entidade que há tempos cuida da saúde dos integrantes. Esse muzunguê é
direcionado para pessoas específicas, e não é aberto à comunidade.
Em abril os trabalhos abertos iniciam, com o Muzunguê de Ogum. Este é seguido, em
maio, pelo das Yamis Ochorongás (chamadas de Mães Ancestrais), de Exu em junho, de
Xangô em julho, de Omulu em agosto, dos Ibeji em setembro, das Mães das águas em
outubro, de Iansã em novembro e, por fim, o Muzunguê Xamânico em dezembro, também
conhecido como Muzunguê de limpeza. Os Muzunguês, enquanto ritualística, são marcadores
temporais e as regências implicam modos de entendimento e de leitura do que ocorre naquele
tempo. Certa vez El. e Ys. comentaram que sentiam cada Muzunguê como a marcação do fim
de um tempo energético. Como se Exu reinasse no tempo até o Muzunguê de Exu, quando,
enfim, “passava o bastão do tempo” para Xangô. A leitura do tempo é feita sempre
coletivamente, nos ipadês de reflexão ocorrido após os Muzunguês. Esse é um espaço onde a
Irmandade se reúne para dialogar sobre tudo o que ocorreu durante o rito e aspectos que
precisariam ser melhor conduzidos. Não apenas os meses, mas também os anos, os dias e as
horas detêm regências energéticas. Por isso, há certos ritos que precisam ser realizados em
horários e dias específicos. O tempo de relógio é ele próprio constituído de tempos cósmicos
por onde circulam energias e seres.
Os Muzunguês ocorrem sempre no Templo, onde há um espaço destinado às mulheres
e outro aos homens na assistência. Logo que a assistência chega e se acomoda em seu assento,
recebe uma xícara de chá, servido por algumas pessoas da irmandade. Logo após, os trabalhos
iniciam. Não é permitido que pessoas adentrem o Templo após o início dos ritos. Cada
Muzunguê tem as suas particularidades, mas o que é de praxe em todos é iniciarmos com os
“orins de sustentação”, cantos dedicados às entidades regentes do território, a saber, Seu Sete,
119

Ogum Beira Mar, Yemanjá, Mãe Preta, Ibejis e, por fim, Oxalá. Após, há a invocação dos
“cavaleiros do quarto quadrante da Grande Fraternidade Resplandescente e Universal”,
seguida dos orins dos Exus e Giras que, como me explicaram, “são para limpar”. Logo
iniciam-se os Orins da entidade que rege os trabalhos. Há Muzunguês em que oferendas são
realizadas e levadas ao pé do peji, há outros que não. E, vale lembrar, nunca são utilizadas
carnes entre os alimentos.
Muzunguê, como podemos perceber, refere-se tanto à Nação quanto ao ritual de
atendimento espiritual. Refere-se também ao alimento ofertado durante o atendimento. Há o
muzunguê salgado, ofertado à assistência antes de iniciarem os orins do Orixá regente, e o
muzunguê doce, ofertado após a saída do consulente do atendimento, acompanhado por um
copo de água. Como dizem, o alimento “é um axé da casa” e a água serve para “realinhar os
corpos”. O tempo do ritual dura entre 4 a 5 horas, quando, enfim, a assistência se retira do
território.
Para além dos atendimentos espirituais, existem outras quatro datas sagradas onde
ocorrem rituais abertos, junto com atividades culturais no território da CoMPaz (abreviação
de Comunidade Morada da Paz). Elas são o Terreiro de Chão Batido que, como me
explicaram, “é quando Exu passa para Xangô a regência do tempo”, e acontece em junho, no
final de semana seguinte ao Muzunguê de Exu; o Okan Ilu – Tambor do Coração, que ocorre
em dezembro e é dedicado ao Ayan, Orixá que habita o tambor. Ayan não rege nenhum
Muzunguê e nunca o vi manifestar-se através da incorporação. Em todo Okan Ilu quem
aparece é Xangô Agodô que, como já dito, é o Orixá que acompanhou Mestre Borel, um dos
principais alabês do Rio Grande do Sul, e que ensinou Pg., filho de Mestre Borel, a tocar o
tambor.
Há também o Ano Novo Solar, comemorado em março, visto que a Comunidade não
segue o calendário gregoriano. Quando questionei o porquê de o Ano Novo ser em março, Bg.
me explicou que é quando o sol entra na constelação de Áries, ainda que a Astrologia não seja
um conhecimento desenvolvido na comunidade. As crianças, já habituadas com o Ano Novo
ocorrer em março, explicaram-me um pouco mais. Quando perguntei o porquê de ser em
março para Sh., ela me devolveu a pergunta: “por que comemorar o Ano Novo em dezembro
para janeiro? Quem inventou esse calendário?”. Ys. comentou comigo que não é apenas para
a Astrologia que segue-se dessa forma, mas também muitos povos orientais comemoram o
Ano Novo em outras datas que não segundo o calendário gregoriano, e sim de acordo com o
posicionamento dos astros. No caso da Morada, explicou Ys., o Ano Novo Solar está
vinculado ao início do equinócio de outono, onde “a força está nas raízes”. É também no Ano
Novo Solar que ocorre o Rito das Geledés, importante ritualística recuperada na comunidade.
120

A quarta data sagrada é chamada Labirinto dos 7 caminhos, que ocorre durante o mês
de agosto. O Labirinto é um processo meditativo conduzido por uma amiga das mais velhas,
que todo ano orienta esse processo. O espaço destinado a esse ritual existe, fisicamente, ao
lado do Templo. Inicialmente o labirinto foi construído com garrafas de vidro, mas logo
depois sua manutenção foi facilitada com o uso de pedras. Trata-se de um percurso individual
realizado pelos participantes e está vinculado, segundo me disseram, aos sete chakras
principais que constituem cada pessoa. Como as outras datas sagradas, também é um rito
aberto, porém, diferente dos demais, não conta com a participação das entidades
manifestadas. Pelo menos a princípio… Além dessas datas, que já são bastante conhecidas
por aqueles que frequentam o território, há também a Desformação, que ocorre sempre no
último sábado de cada mês. Trata-se de um espaço destinado ao estudo e prática da
mediunidade para pessoas da Irmandade e pessoas externas.

2.3.4 Nomes crísticos

Nas muitas trocas que realizo com diferentes pessoas da Irmandade, trocas de afeto e
de saberes, emprestei um livro para Ys. que muito me impactou politicamente. Tratava-se de
A Insurreição que vem, escrito pelo Comitê Invisível. Em um dos capítulos desse livro, o
Comitê Invisível disserta sobre como o capitalismo produz a individualidade do Eu. Em
diálogo indireto, acredito, com essas proposições, lembro de Ys. recuperar em um ipadê a
importância do Eu para a comunidade, visto que continuamente falam do Eu crístico e da
“essência do ser”.
Naquele ipadê, ela nos dizia que o Eu, constituinte dos saberes ali praticados, era
muito diferente do Eu individualista no modo como o capitalismo procede. Ela dizia que o Eu
crístico era basicamente o oposto do Eu individualista porque era, sobretudo, coletivo. E o
nome crístico estava em relação direta com esse Eu. Ao mesmo tempo em que ele designa
uma pessoa – afinal, é pelo nome crístico dado a nós no momento de iniciação que somos
reconhecidas e designadas cotidianamente na comunidade –, ele também designa uma força
compartilhada com outras pessoas. Desde meu processo de iniciação, deixei de ser chamada
Luiza para ser chamada Folaiyan. Mas, ainda que eu seja a única Folaiyan na comunidade,
dizem-me, existem outras Folaiyan no mundo. É por isso que o Eu crístico, manifestado a
partir de um nome, é sempre coletivo. Não tem por intenção a mera definição do sujeito, mas
a produção dele. Fazer com que a força que o constitui, na medida em que é nomeada, possa
ser expandida.
Nunca me foi dito, ao certo, de onde surgiu o termo “crístico”. É curioso como ele tem
mais uma função prática de designar a “força que cada um traz”, como definiu Mj., do que
121

propriamente um vínculo estabelecido com Cristo ou com o cristianismo. Contudo, acredito


que sua emergência venha da Grande Fraternidade Resplandescente e Universal. O Eu
crístico ou também força crística são termos que existem na comunidade desde seu
surgimento, antes da emergência dos nomes crísticos. Antes, entre as mais velhas, havia certas
guardianias que correspondiam a essas forças: “guardiã da força crística da unidade”,
“guardiã da força crística feminina”, e assim se seguia. Os nomes crísticos, de alguma forma,
trazem essas guardianias para a designação das pessoas. Há casos de o nome crístico não ter
necessariamente relação com a guardiania dada a uma determinada pessoa. Isso não significa
que ela perde a guardiania anterior, mas soma outras. Aliás, o sujeito nunca deixa de ter uma
determinada guardiania ou responsabilidade dentro do território. Sempre são incorporadas
outras.
Os nomes são recebidos, via muitos meios mediúnicos, por Ys.. É importante dizer que
na Morada não se faz uso de nenhum oráculo, tais como búzios ou jogo de cartas. São as
entidades que designam quais pessoas devem se iniciar na Nação Muzunguê e são também
elas, não sei se entidades guardiãs da Morada ou se entidades que vieram acompanhando o
sujeito a ser iniciado, que trazem o nome. Quando me disseram o nome que eu havia recebido,
disseram também que seu significado não necessariamente é “o que há de maior [em mim],
mas o que há de melhor”. Nomear é, nesse sentido, reconhecer a força que existe em cada
sujeito que recebe o nome. Não diz uma verdade impositiva e acabada sobre o sujeito, mas
atribui a ele, no momento em que ele aceita assim ser atribuído, um poder de manifestar e
sentir o que seu nome, e o nome de outros, suscita. Um modo de construir relações.
O primeiro nome crístico que surgiu na comunidade foi de Ys., ainda antes do
processo de recuperação. Conta que foi dado a ela por uma outra Ys. Harekrishna. Seu nome,
oriundo do sânscrito, designa “mãe de todos os filhos de deus”. Mas, com o surgimento da
Nação Muzunguê, todo integrante da Irmandade foi reconhecido a partir de um nome crístico
que varia sua origem entre o sânscrito, o iorubá e o guarani, a depender, como me dizem, das
relações cósmicas que cada sujeito desenvolve com esses povos. Ou seja, faz parte de um
processo de recuperação. O Eu crístico, manifestado no nome crístico, emerge como coletivo.
Trata-se de uma força que singulariza o sujeito, mas que está longe de ser uma forma de
individualizá-lo, como podemos ver nas relações com as entidades.
Algumas das entidades que acompanham cada sujeito e o nome crístico são nomeadas
no processo de iniciação, acompanhado pela lavagem do Ori com ervas. Há ali o
estabelecimento de um vínculo e um cuidado que é refeito com uma certa constância, não
apenas realizado no ritual de morte e renascimento que implica a iniciação. A constância
ocorre de inúmeras formas. Ressalto aqui três principais, que são: as orações ao longo dos
122

dias; o adosù que ocorre anualmente e que implica uma espécie de reatualização do
compromisso espiritual; e a realização do apoiwá, palavra que me foi dita designar saco de
criação em iorubá, ritualística também recuperada. Cada pessoa iniciada possui o seu
apoiwá, um conjunto de objetos de poder e ritualísticas específicas que devem ser realizadas
semanalmente. Como me disseram, são elementos que atuam no alinhamento do médium e no
fortalecimento do eu crístico. Ou seja, cada integrante da irmandade precisa fortalecer e
reatualizar constantemente os vínculos com as entidades singulares que acompanham os
sujeitos, com as entidades que regem a comunidade e com a força que constitui seu nome
crístico.
Quem “põe a mão”, ou seja, quem lava a cabeça e corta os cabelos do sujeito em
processo de iniciação, é Mãe Preta, manifestada em Ys.. Também aqui as relações diferem das
demais casas de religião, e há uma percepção bastante alargada da ideia de mãe. É certo que
Ys. é percebida como mãe de todos os que ali se iniciaram, inclusive mãe das demais Yas. É
certo também que para as demais iaôs, as Yas são todas percebidas e reverenciadas como
mães e Bg. como baba, pai. Mas nem Ys. e nem o conjunto de Yas são denominadas mães-de-
santo, pois, como costumam dizer, “santo não tem mãe”. É certo também que Mãe Preta é
reverenciada e reconhecida como mãe de todos que participam da comunidade, assim como
Seu Sete é reverenciado como o pai de todos.
Contudo as relações são ainda mais complexas. É comum ouvirmos falar, em terreiro
de Batuque ou Candomblé, que os Orixás correspondentes ao sujeito iniciado são seu ‘pai’ e
sua ‘mãe’. A Morada da Paz difere das casas de Candomblé ou Batuque porque a cabeça, ou
Ori, quando lavada no processo de iniciação, não é designada para um Orixá específico. Ys.
explicou que isso não significa dizer que a cabeça é aberta, como é dito em um sentido
pejorativo nos demais terreiros, mas também não significa que a cabeça é fechada a algum
Orixá específico, podendo o médium dar passagem a muitas entidades. Contudo, isso não
impede que, por exemplo, Al., ao comentar sobre sua presença no Muzunguê de julho,
dedicado à Xangô, diga “não posso faltar no Muzunguê do pai, né!”. Já que uma das
principais entidades que manifesta em Al. é Xangô.
Uma pessoa pode dar passagem a muitas entidades em uma mesma noite. Afinal,
como dizem na comunidade, cada pessoa traz consigo um universo de seres. Isso varia
conforme o médium e sua pré-disposição a essas relações. Como me foi ensinado, quanto
mais se está presente nas chamadas das entidades, mais sensível se está a esse tipo de relação
com elas. Ainda que um médium possa receber muitas entidades, é notável que há uma certa
recorrência em determinadas relações. Isso não faz com que o Orixá manifestado seja
“daquela pessoa”, pois, como me foi informado, é “a pessoa que é daquele Orixá”. Aliás, não
123

apenas dele. E, ainda que não haja uma identificação direta entre pessoa e Orixá, há uma
identificação indireta. Certas entidades desenvolvem uma relação mais constante com certos
médiuns e vice-versa, a ponto da pessoa ser diretamente relacionada à entidade, como é o
caso de An. e a Cabocla Jurema, de Bm. e Oxum ou de Ym. e Ogum. Ainda que sejam canais
para outras entidades, há uma relação mais profunda com algumas.
Certa vez, quando retornei ao território, depois de uma temporada no Rio de Janeiro,
Ak. comentou que Or. havia dado passagem para o Xangô que normalmente se manifesta
através de mim, durante uma chamada, e que foi muito bonito pois vários Xangôs
trabalharam juntos. Mas logo An. completou, alegrando-se por eu voltar ao território e
dizendo em tom jocoso que ele, Xangô, “deve estar com saudade do canal dele”, no caso, eu.
Afinal, ainda que outra pessoa o manifeste, há um processo de singularização das relações.
Situação semelhante ocorreu anos atrás e foi narrado por algumas irmãs. Havia algumas
situações complicadas envolvendo feitiço na Amália, rua de moradia de algumas pessoas da
irmandade, e Seu Sete precisaria se manifestar lá para solucionar a questão. Como Ys. não
poderia ir, foi dada a permissão, pelas entidades, de Ik. manifestar seu Sete. Ou seja, Seu Sete,
que normalmente se manifesta em Ys. e construiu uma relação muito intensa com ela como
canal, manifestou-se pontualmente em Ik..

2.3.5 Hierarquia circular

Comunidade, como dizem, deriva de “comum unidade”, e isso tem outras implicações.
Uma unidade que atua no acesso e apreensão de certos campos energéticos, mas também uma
unidade que precisa ser continuamente produzida e cuidada. Certa vez, Mãe Preta disse que
todos que constituímos a Nação Muzunguê, somos como “contas em um colar”. As contas não
são iguais, assim como cada pessoa tem suas especificidades, carrega histórias, forças e
atuações singulares, como vimos no tópico acima. Porém, ainda assim, constituem um mesmo
colar, uma mesma corrente. Há um trabalho constante, nesse sentido, para a manutenção do
que chamam unidade, desde a formação da comunidade, com uma intenção clara de não
adotar um formato vertical na organização comunitária – o que foi mostrado por Ys. em sua
tese, e apresentado anteriormente.
Quando iniciei meu trabalho de campo, fui continuamente alertada e repreendida sobre
a importância de cuidar com o que eu falo e em que condições. “Língua entre os dentes,
corpo em movimento”, disse, certa vez, Seu Sete. Logo que iniciei minha participação na
comunidade, voltava de ônibus a Porto Alegre junto com parte da Irmandade, e utilizava
aquele tempo de deslocamento para conhecer a história dos meus mais recentes irmãos e sanar
algumas dúvidas elaboradas no meu curto período de tempo no território. Quando houve a
124

oportunidade, algumas pessoas disseram no ipadê da irmandade sobre a importância de não


falarmos sobre certos assuntos no ônibus ou em outros locais que não fossem os ipadês ou,
pelo menos, conversas no território. Isso porque, seguiram, nunca sabemos quais os seres
podem estar atuando nesses lugares. Como alguém disse, “podemos abrir um campo fora de
contexto e isso ter consequências que não fazemos ideia, para nós da irmandade ou até
mesmo para as pessoas que estão no ônibus e que nem conhecemos”. A preocupação com a
manutenção da unidade é fundamental na Morada da Paz, que desenvolveu ferramentas
interessantíssimas para isso. Dentre elas, está a hierarquia circular, proposta organizativa
trazida por Baba Afra.
*
Em um determinado encontro de Desformação, em que trabalhamos para desembruxar
uma criança que havia atuado como um escudo de um feitiço realizado para atingir seus
progenitores45, um Exu encosta em mim. Logo que me recomponho, começo a descarregar
freneticamente em direção a uma pequena panelinha com fogo que se encontrava ao centro.
Descarregar implica em um movimento com as mãos, passando-as por todo o corpo e
estalando os dedos, em oração. Ys., que atendia a todos os participantes, dirigiu-se a mim e,
vendo meu comportamento, com muita seriedade, repreendeu-me: “Cuide bem do seu Exu,
ele existe para te ajudar, para te limpar. Sem Exu não se faz nada!”.
Após o trabalho realizado, todos os presentes se recompõem e sentam-se em círculo
para uma conversa. Ys. diz que o objetivo que nos propomos foi alcançado, conseguimos
dialogar com os seres que atuavam na criança e transmigrá-los – dissertarei sobre o conceito
de transmigração no próximo capítulo. Disse-nos também para termos a consciência de que
Exu é uma entidade nem boa e nem má, mas que precisa de comando. Retoma aquilo que
havia me dito, que Exu é fundamental e que sem ele nada funciona. Exu não é menos
importante que os Orixás maiores. Aliás, é por isso que sempre se oferta aos Exus antes de
qualquer trabalho com outros Orixás. Nem mais importante que os elementais e elementares,
seres que habitam os elementos da natureza – terra, fogo, água e ar. Todos atuam juntos, em
campos diferentes.
Importante dizer que Exu, na comunidade, tem a manifestação dos chamados “exus
catiços”, nos Candomblés do Rio de Janeiro, ou dos exus da Linha Cruzada. Contudo, são
considerados Orixás. Mas isso, como tudo, também varia. Aj., assim que entrou na irmandade,
sendo uma das mais novas iaôs, comentou que muitas das manifestações de Exu que ocorrem
na Morada não se assemelhavam às manifestações que conheceu em outras casas. Foi aí que

45O termo progenitor é utilizado para designar os pais biológicos. Mãe e Pai são, para a comunidade, Mãe Preta
e Seu Sete.
125

Ak., que é uma egbomi, concordando com ela, disse que sentia que muitos dos Exus não eram
eguns, mas vinham “de mundos intraterrestres”.
Ou seja, Oxalá é o criador, mas ele não dá conta daquilo que é próprio do campo de
Exu. O mesmo foi dito de Shiva, um Deva do hinduísmo, em outro contexto, quando
tomávamos café na cozinha. Ys. disse-nos que Shiva é aquele que “lida com o caos, com as
brincadeiras que nos são colocadas na vida, nos testa constantemente” para saber até onde
somos capazes. Sua atuação se assemelha a de Exu, “mas Shiva atua mais no corpo
emocional e menos no corpo material”, disse ela. Aproximam-se em alguns aspectos, mas
atuam em campos e corpos diferentes. Essa relação estabelecida entre as entidades, em que
cada entidade tem um campo energético específico, ainda que estejam em um modelo
hierárquico de manifestação – que vai de Exu à Oxalá –, constitui o que chamam de
hierarquia circular.
Não apenas referente às divindades e demais seres, mas a hierarquia circular também
se manifesta na organização política da comunidade. Existem as entidades guias, as Yas e
Baba, as Egbomis, as iaôs e os Omadês. A maior parte destes grupos são organizados em
conselhos que deliberam sobre os mais variados assuntos da comunidade em Ipadês, rodas de
conversa. Há o Conselho Sagrado – composto pelas entidades guias e todos os humanos que
participam da Fraternidade Resplandescente e Universal; o Conselho da Base, composto pelas
Yas e Baba, a saber, Ys., Ym., Yb., El., Bg.; o Conselho das egbomis, as irmãs mais velhas,
composto até 2017 por Ak., An., Al., Bm., Ol., Ik., Im., Dm.; e, por fim, o Conselho Olo Orê,
conhecido também como Conselho Externo, onde pessoas próximas à comunidade – mas que
não participam dela – são acionadas e consultadas para assuntos específicos. As iaôs, as
iniciadas, não constituem um conselho específico, mas participam dos Ipadês da Irmandade,
onde todos se reúnem.
Os omadês, as crianças, também não constituem um conselho específico, ainda que
realizem seus ipadês para deliberar assuntos dos seus interesses. Estes últimos, ainda que não
tenham passado pelos rituais de iniciação na Irmandade, que são feitos no mínimo com 15
anos de idade, vivem a espiritualidade de modo tão ou mais intenso que as próprias iaôs,
afinal, cresceram com esse convívio. Se em determinados contextos as iaôs, por serem
iniciadas, tem maiores responsabilidades e compromissos, em outros são os omadês, por
“serem crias da Morada”. Nessa relação com omadês a questão da iniciação fica bastante
interessante. Os dois odomodês, jovens, Ay. e Dm., participam da Nação Muzunguê com
responsabilidades e afazeres. Entraram quando fizeram 15 anos e puderam escolher se
desejariam o adosù, ou seja, a iniciação, ou não. Os demais não participam, em princípio,
ainda que participem da corrente durante os Muzunguês e durante as chamadas das entidades.
126

Isso porque, de alguma forma, por serem “crias da Morada” e estarem presentes em todos os
procedimentos rituais, já fazem parte46.
O Conselho Sagrado se reúne entre os dias 15 e 21 de cada mês, por isso essas datas
têm uma importância particular na comunidade. Entre esses dias são realizados ritos
específicos, com restrições alimentares e orações, por cada um dos integrantes da Casa da
Sétima Ordem. O Conselho Sagrado é presidido por Mãe Preta, a Yaba ancestral. Desde que
participo da Comunidade, pensei que o conselho sagrado dissesse respeito apenas ao território
Morada da Paz, mas Ys. me informou que não. Diz respeito a todo o planeta e muitas
entidades participam dele, entidades que nem ao menos se manifestam na comunidade. Aliás,
afirma que todos nós, inclusive as iaôs, fazemos parte do Conselho Sagrado, por isso a
importância de seguirmos os ritos que nos foram passados.
O Conselho Sagrado, principalmente através de Mãe Preta, Seu Sete, Ogum Beira-
mar, Ogum de Malê, pomba-gira Elo, Baba Afra, dentre outras entidades, atua diretamente no
andamento da comunidade a partir de orientações do que fazer e como fazer. Essas
orientações são recebidas principalmente pelas Yas e Baba, que avaliam as possibilidades de
serem realizadas. Há orientações que não são materialmente possíveis e, por isso, torna-se
necessário buscar alternativas que possam dar conta das orientações recebidas. No Ipadê do
Conselho das Yas e do Baba, chamado Ipadê da Base, deliberam sobre essas e outras
questões. Há também o Ipadê do Conselho das Egbomis, realizado apenas pelas “irmãs mais
velhas”, ainda que, às vezes, alguma Ya também participe.
Há também o Ipadê da Irmandade, quando moradores e demoradores reúnem-se; o
Ipadê das Yabas, quando apenas os moradores se reúnem, incluindo as crianças; Ipadê da
Ecogestão, composto pelos moradores para avaliar a questão financeira; Ipadê dos
sentimentos, ou “abertura de coração”, onde os sujeitos falam de tudo o que estão sentindo –
alegrias, desejos, incômodos; e o Ipadê do Conselho Olo Orê, composto por sujeitos externos
e pelas Yas e Baba, com finalidades específicas, “para que a comunidade não saia de seu
propósito”. Esses Ipadês cumprem funções diversas. Discussões práticas sobre gastos e
projetos, conversas sobre como todos têm se sentido ao longo da semana, estudos sobre
espiritualidade e mediunidade ou trocas de impressões sobre qualquer das atividades

46Essa relação também se aproxima ao que Goldman (2012) fala sobre os pertencimentos. Na casa onde realiza
seu intenso trabalho de campo, em um terreiro de Ilhéus, sul da Bahia, a mãe de santo da casa comenta que
seus filhos carnais não precisariam da “feitura”, ou seja, da iniciação, pois, de alguma forma, já eram “feitos”.
O autor trabalha com a ideia da circulação do axé. Por estarem muito próximos do terreiro, participam muito
intensamente de suas dinâmicas e isso, de alguma forma, não demandaria a “feitura” ritual, ainda que a façam.
Acredito que o mesmo poderia ser pensado em relação aos omadês. Não passa, sobretudo, por uma questão de
sangue – visto que são de famílias diferentes que se uniram na criação da comunidade – mas por convivência.
Mas isso não impede que realizem o adosù quando fizerem 15 anos, ou seja, escolherem o processo de
iniciação.
127

desenvolvidas no território. É importante dizer que o Ipadê é a base da comunicação no


território.
Fato é que cada um desses grupos – iaôs, egbomis e Yas – tem responsabilidades e
atuações diferentes dentro da Morada da Paz. Quando eu me iniciei, Ys. disse-me que as
egbomis seriam responsáveis por me acompanhar e ensinar os ritos. Seriam elas a quem eu me
dirigiria quando houvesse alguma dúvida. Certos assuntos, como aqueles referentes aos gastos
e administração de projetos e à manutenção do território, são exclusivos das Yas e Baba. Não
apenas deliberam sobre questões econômicas e estratégicas, mas também ritualísticas que
competem apenas a eles. Fato é que há assuntos e decisões particulares que competem às Yas
e Baba, no diálogo que estabelecem com as entidades do Conselho Sagrado. Outros assuntos
dizem respeito apenas às Egbomis e Yas, por exemplo.
Assim como existe o Ipadê das Yabas, onde todos os moradores do território se
reúnem, havia também o Ipadê dos demoradores (como já disse, aqueles que não moram no
território), composto por Egbomis e Iaôs. Esses são espaços em que discutiamos certas
demandas. Ocorriam mensalmente e havia duas pautas constantes: os gastos com o Templo –
seja com elementos necessários durante o mês inteiro, seja com os necessários para o
Muzunguê de cada mês –; e os gastos com alimentação – pois os demoradores realizavam suas
compras mensais, independente das compras dos moradores e das doações recebidas. Cada
demorador contribuía com um valor estipulado tanto para o Templo, quanto para a
alimentação. Havia também uma organização mensal das duplas responsáveis por essas
compras que, ao fim do processo, prestavam contas para todo o grupo.
Há uma hierarquia desenhada a partir desses diferentes conselhos. O que se argumenta
é que essa hierarquia não segue uma lógica verticalizada, de cima para baixo, em que uma
pessoa manda e outras obedecem, mas é semelhante à hierarquia estabelecida de Exu a Oxalá.
Nesse mesmo sentido, El. comentou comigo que cada uma só é o que é graças aos outros que
ali estão. Ys., a mãe de todos, só é Ys. porque existem as filhas, os filhos, as divindades e os
mestres que dialogam com ela. O mesmo vale para as egbomis, que só são irmãs mais velhas
porque existem as Yas e Baba e as iaôs. Ela tentou explicar melhor como funciona a
hierarquia circular, afirmando a interdependência entre todas as partes. Só existem iaôs
porque existem as Egbomis, Yas e Baba, da mesma forma, só existem Yas e Baba porque
existem Egbomis e iaôs.
Mesmo entre as Yas, cada qual recebe uma designação: Ys. é a mestra espiritual; Ym.,
Ya kekerê, é a guardiã da força e do comando no que consiste à gestão administrativa da
comunidade; El. é guardiã das ritualísticas; Yb., guardiã dos alimentos sagrados, principal
responsável por tudo o que ocorre na cozinha; e Bg., guardião de toda a lida com a terra. Além
128

disso, há o entrelaçamento e a interdependência entre os diferentes grupos que constituem o


que é a Comunidade Morada da Paz, uma “família espiritual”. Essas posições não parecem
ser totalmente fixas. No início de 2017, por exemplo, An. tornou-se uma egbomi. Ys. fez um
pedido a Mãe Preta, que foi atendido, para que Im. também participasse como um egbomi. Ou
seja, essas mudanças de pertencimento acontecem por orientação das entidades ou das Yas e
não possuem, até onde eu sei, ritos específicos.
Fato é que, dentro dessa grande família espiritual que constitui a Comunidade Morada
da Paz, há papéis diferenciados de acordo com o tempo de caminhada espiritual de cada um.
“Por isso, é necessário ter respeito com a história construída por outras pessoas, quando se
quer entrar num certo campo energético, saber reverenciar os mais velhos”, disse-me Ik..
Nesse sentido, o conceito de hierarquia circular possibilita descrever e localizar, ainda que
parcialmente, que “somos uma unidade, mas não somos iguais”, como El. me disse.
A imagem para descrever a hierarquia circular, como disse El., foi de uma espiral em
constante movimento. Uma espiral movente, capaz de variar a ordenação dos termos em
função de uma situação que se apresenta. El. é a regente, guardiã e cuidadora do Trabalho das
Mulheres, por exemplo. E quando esse rito está em questão, El. é uma figura de importância.
Os tambores são de responsabilidade e guardiania dos alabês, principalmente de Im., e após
sua saída passou a ser responsabilidade de Ay.. Quando se trata dos tambores, novamente a
espiral se move, colocando-os como figuras de importância. E assim sucessivamente, de
acordo com as responsabilidades em jogo. Yb. é a regente, guardiã e cuidadora do TASA
(Templo Alquímico de Saúde Alimentar), como chamam a cozinha. É a ela nos dirigimos para
pensar o cardápio do dia, as necessidades de compras, dentre outras questões. Ou seja, quando
a cozinha está em questão, é Yb. quem está em um lugar de destaque.
Porém, é preciso levar em consideração que uma responsabilidade está em constante
relação com as demais. O cuidado com os tambores, por exemplo, tem efeitos sobre a
ritualística e a chamada dos Orixás. O andamento organizativo da cozinha – com seus
horários de produção e de servida do café da manhã, almoço, lanche da tarde e janta – tem
efeitos sobre o andamento das demais atividades do dia – sejam elas ritualísticas, ipadês de
organização de outras atividades ou mesmo atividades de manutenção do território. Os
acordos realizados nos ipadês dos demoradores têm efeitos sobre, por exemplo, a organização
do TASA e do preparo dos Muzunguês, visto que seus elementos são comprados pelos
demoradores. E assim sucessivamente.
A hierarquia circular é um modo de organização com o intuito de permitir uma
descentralização das ações desempenhadas para a organização da comunidade. Ao apresentá-
la, assim como os nomes crísticos, a espiritualidade afrobudígena e a noção de universal,
129

tentei demonstrar como recuperam em suas práticas cotidianas uma série de elementos para a
construção de si. Passo agora para o quarto termo constituinte da ‘pragmática da borda’.

2.4 Sonhar

Figura 6: Okan Ilu 2016

A Morada da Paz, produzida na e enquanto borda, é um agenciamento de reencontros,


reconhecimentos e recuperações. Tentei apresentar essas noções a partir das narrativas e
experiências oriundas da comunidade – das relações com as entidades, com os espaços, com
outras pessoas, com práticas e ideias. Ao longo da escrita, percebi que reencontrar algo ou
alguém implicava a expansão de potencialidades. Como se cada acontecimento ou alguém
reencontrado fosse uma espécie de portal para caminhos não percorridos. Reconhecer opera
de outra maneira. Trata-se sobretudo de uma atenção sobre as potências existentes em algo ou
alguém reencontrado. Na comunidade, isso é posto em contraste com a ideia de controle e
colonização. E recuperar refere-se, sobretudo, a potências que tentaram extinguir num
passado. É o ato de voltar-se para esses mundos e tempos de extermínio e extinção,
130

produzidos pelos poderes coloniais, e trazer aquilo que se deseja ou de que se precisa 47. São
procedimentos que diferem, mas estão profundamente imbricados entre si.
Inspirada em Isabelle Stengers (2015a), acredito que a Morada da Paz nos apresente
uma série de pragmáticas que auxiliam a pensar uma resposta à “intrusão de Gaia”, sem cair
em duas alternativas alertadas pela autora: primeiro, a ideia de que não existe mais solução
para os problemas que nos cercam e estamos todos fadados à destruição; segundo, o
argumento de que é um problema momentâneo que logo passa. O que a autora chama de
“intrusão de Gaia” está vinculado a uma série de processos ecológicos e sociais oriundos do
desenvolvimentismo capitalista, tal como a destruição de inúmeras espécies da flora e da
fauna, o aquecimento global, o crescimento das empresas de transgênicos, os “desertos
verdes” das empresas de celulose, entre outras tantas. A intrusão seria, antes de tudo, um
evento, a partir de uma série de desastres que se anunciam:
Nomear Gaia como “aquela que faz a intrusão” é também caracterizá-la como cega
aos danos que provoca, à maneira de tudo o que é intrusivo. Por isso a resposta a ser
criada não é uma “resposta à Gaia”, e sim uma resposta tanto ao que provocou sua
intrusão quanto às consequências dessa intrusão” (STENGERS, 2015a, p.37)

A autora segue na sua reflexão. Primeiro, atenta-nos para o fato de que nomear Gaia
não é dizer a verdade, mas “atribuir àquilo que se nomeia o poder de nos fazer sentir e pensar
no que o nome suscita” (STENGERS, 2015a, p.37). E esse nome ela recupera tanto dos mitos
gregos quanto das elaborações desenvolvidas por Lovelock, que trouxe para o campo
científico o conceito de Gaia. Primeiro, entender Gaia como um agenciamento de relações,
um “enquadramento globalmente estável de nossas histórias, de nossos cálculos” (p. 38), e
não de modo separado, como a ciência vinha desenvolvendo seus estudos – seres vivos,
atmosfera, clima. Segundo, compreender Gaia como um “ser”, ou seja, não apenas com uma
história própria, mas com um regime de atividades. Gaia seria, para esse autor, algo coeso. O
que a autora nos coloca é que essa “coesão” de Gaia está cada vez menos tranquilizadora.
Gaia é suscetível, e por isso dever ser nomeada como um ser. Já não estamos lidando
com uma natureza selvagem e ameaçadora, nem com uma natureza frágil, que deve
ser protegida, nem com uma natureza que pode ser explorada à vontade. A hipótese é
nova. Gaia, a que faz a intrusão, não nos pede nada, sequer uma resposta para a
questão que impõe. Ofendida, Gaia é indiferente à pergunta “quem é o
responsável?” e não age como justiceira – parece que as primeiras regiões da Terra a
serem atingidas serão as mais pobres do planeta, sem falar de todos esses viventes
que não tem nada a ver com a questão. (p. 40)

47Acredito que a ideia acionada na comunidade Morada da Paz com o ato de recuperar pode ser aproximado às
reivindicações de que nos fala Stengers a partir das práticas desenvolvidas por Starhawk. Stengers (2017, p. 9)
nos diz: “Reivindicar o passado não é uma questão de ressuscitá-lo, de sonhar em trazer à vida alguma tradição
‘verdadeira’ e ‘autêntica’. É mais uma questão de reativação, ou antes, de sentir a fumaça em nossas narinas  -  
a fumaça que eu senti, por exemplo, quando enfatizei apressadamente o fato de não ‘acreditar’ que alguém
possa ressuscitar o passado.”.
131

Gaia, a intrusa, não está ameaçada. Ela continuará a existir, com seus micro-
organismos, como um “planeta vivo”. Quem está sob ameaça são os seres vivos que a
habitam, visto as mudanças de seu meio. A intrusão de Gaia provoca algo mais profundo:
“não existe um futuro previsível em que ela nos restituirá a liberdade de ignorá-la (...). Não
seremos mais autorizados a esquecê-la” (p. 41). A luta ganha uma urgência necessária, diz-nos
a autora. Porém, ela não se coloca no lugar de quem nos dirá qual outro mundo seria possível
construir. Não cabe a ela e nem a ninguém individual a resposta, “cabe a um processo de
criação cuja enorme dificuldade seria insensato e perigoso subestimar, mas que seria um
suicídio considerar impossível” (p. 44).
Lidar com a intrusão de Gaia é desenvolver uma arte particular, a arte de ter cuidado,
“à maneira dos povos antigos” (p. 53), que sabiam como não ofender Gaia. Ela nos diz “arte”
não no sentido de capacidade de ter cuidado, mas da importância de aprender e cultivar o
cuidado, “atentar para consequências que estabeleçam conexões entre o que estamos
acostumados a considerar separadamente” (p. 55). Ela nos diz “ter cuidado” no sentido de
resistir à tentação de julgar. Nesse sentido, Stengers afirma que não há fórmulas para a
resposta à intrusão de Gaia e o que nos cabe é, sobretudo, experimentar. Reencontrar,
reconhecer e recuperar não deixam de ser potentes ferramentas para resistir “à barbárie que
vem”, e resistir a essa tentação do julgamento e da colonização – ferramentas há séculos
utilizadas por aquilo que se configurou como Ocidente. São parte de um projeto experimental
da “arte de ter cuidado”, próprios daquilo que a Morada da Paz engendra.
A borda, que nega o centro e a periferia, implica também em largar mão das
ferramentas constituintes desses lugares em prol da criação de outras. Suas apostas parecem
ser semelhantes às de Audre Lorde, quanto à invenção de novas ferramentas para uma
“mudança genuína”. Afinal, como lembra a autora, direcionando sua fala para as feministas,
sobretudo às feministas brancas heterossexuais, “as ferramentas do senhor nunca vão
desmantelar a casa-grande”48. Abrir mão das ferramentas já conhecidas e adotar o processo de
experimentação não está livre de dificuldades. Pelo contrário, como bem lembram as mais
velhas sobre seus desafios financeiros, existenciais, políticos e sobre as tantas acusações que
enfrentaram ao longo do processo. Por outro lado, ao negar as ferramentas já constituídas,
também não há na Morada da Paz o desejo em fazer com que as ferramentas que utiliza na
48“Aquelas de nós que estão fora do círculo do que essa sociedade define como mulheres aceitáveis, aquelas de
nós que foram forjadas nos caldeirões da diferença – aquelas de nós que somos pobres, que somos lésbicas, que
somos Negras, que somos velhas – sabemos que sobrevivência não é uma habilidade acadêmica. É aprender a
estar sozinha, impopular e às vezes insultada, e a fazer causa comum com aquelas outras identificadas como
externas às estruturas, para definir e buscar um mundo no qual todas nós possamos florescer. É aprender a tomar
nossas diferenças e torná-las forças. Pois as ferramentas do senhor nunca vão desmantelar a casa-grande. Elas
podem nos permitir a temporariamente vencê-lo no seu próprio jogo, mas elas nunca nos permitirão trazer à tona
mudança genuína. E esse fato só é uma ameaça àquelas mulheres que ainda definem a casa-grande como sua
única fonte de suporte” (LORDE, 1984, p. 110-113).
132

construção de si ocupem o lugar do centro. Lembro-me mais uma vez das palavras de Ys.:
“nós não somos a verdade, somos uma verdade”. Existir enquanto borda é abrir-se ao
processo criativo e essa abertura não deseja impor-se enquanto totalidade absoluta.
*
Na época em que meu sogro me fez beber de yãkoana pela primeira vez, eu já tinha
visto a imagem do céu se quebrando e tinha ouvido suas queixas: “Mais tarde, se
não houver mais xamãs na floresta para me segurar, vou cair de novo na terra, como
no primeiro tempo! Mas dessa vez vou fazer viver em minhas costas gentes
diferentes desses brancos comedores de terra tão hostis a vocês!”. Desde então,
muitas vezes escuto em sonho o céu lançando estalos apavorantes e ameaçando
quebrar. Os espíritos órfãos dos antigos xamãs mortos estão a cortá-lo há tanto
tempo! Ele está coberto de feridas e repleto de placas desajustadas. E se todos os
xamãs sobreviventes até hoje forem por sua vez devorados pela epidemia xawara,
ele com certeza vai desmoronar como antigamente, quando era ainda novo e pouco
resistente. Pode levar muito tempo, mas penso que vai acabar acontecendo. Por
enquanto, quando os brancos esquentam o peito dele com a fumaça do metal que
arrancam da terra, os xapiri ainda estão conseguindo curá-lo, despejando nele
enxurradas de água de suas montanhas. Mas se não houver mais xamãs na floresta,
ele vai queimar aos poucos até ficar cego. Vai acabar sufocando e, reduzido ao
estado de fantasma, vai despencar de repente na terra. Aí seremos todos arrastados
para a escuridão do mundo subterrâneo, os brancos tanto quanto nós (KOPENAWA,
2015, p. 498)

“Pode levar muito tempo, mas penso que vai acabar acontecendo”… A fala de Davi
Kopenawa, preocupada com a queda do céu que ameaça a existência dos Yanomami, mas
também de todos os outros povos, visto a destruição da floresta, lembrou-me de uma
colocação que ouvi na Morada, quando relembraram uma mensagem de 1998 de Djey,
cavaleiro guardião que vez ou outra manifestava-se na comunidade. Diferente de Kopenawa,
que teme a queda do céu que está por vir, semelhante ao que seu povo experimentou nos
primeiros tempos, Djey dizia que o mundo já acabou: “O fim do século XX já traz o fim do
mundo. É tempo de criar outro”. A Morada da Paz, surgida em 2001, emerge a partir dessa
perspectiva, de que é necessário inventar outro mundo. Sinto que isso produz uma experiência
vivida do fim consumado, como a produção na experiência encarnada de outra temporalidade,
outra relação passado-presente-futuro (ou a não atribuição desses tempos), em que o que está
por vir de alguma forma já aconteceu, talvez como a primeira queda do céu para os
Yanomami.
O fim consumado ou em processo impõe a necessidade de criação que tem o seu
início, para a Morada da Paz, através do quarto termo que compõe a ‘pragmática da borda’, o
ato de sonhar. Como dizem, sonhar é o que move as pessoas e o mundo, é conectar com as
forças de um porvir. O ato de sonhar gera a possibilidade da ação criativa. Nesse sentido, o
convite feito por Ys., narrado no início desse capítulo, traz uma dimensão que acho
importante: o caráter experimental da borda, que na Morada se desenvolveu de um modo
específico, foi um convite aos ouvintes para também “criarem bordas”. Uma espécie de
133

chamado, também semelhante ao elaborado pelos zapatistas. Emiliano, zapatista e promotor


de educação, disse a Morel (2018, p. 117), durante seu trabalho de campo: “o zapatismo não
busca ser um modelo a que todos devem seguir igualmente, mas é um chamado para que os
povos lutem em seus modos com suas distintas geografias”.
Vejo zapatistas e kilombolas, em seus diferentes timbres, velocidades e alturas,
produzirem cantos que se encontram em uma mesma afinação como resposta à “intrusão de
Gaia”. Embalada por esses cantos, vem-me à mente um dia de sol, quando todos nós, adultos
e crianças, passeávamos pela Terra D'água, o terreno recentemente comprado. Mãe Preta
dava suas orientações para algumas das mais velhas, enquanto Ym., sentada à sombra de uma
árvore, sonhava em voz alta o que ela via naquele terreno tomado por capoeiras: “eu vejo
aqui as casas onde alguns de vocês vão morar. Vejo uma horta muito linda, plantações de
árvores… Um açude amplo para nos banhar, e em cima dele uma ponte de madeira por onde
as crianças da ComKola terão suas aulas para conhecer os peixes, as flores, as folhas... E
vejo a gente aqui, reunidos, esperando o sol se pôr...”. Talvez não tenham sido exatamente
essas palavras, pois no momento estava mais engajada nos seus sonhos do que em anotar suas
divagações. Lembro-me, sobretudo, do momento, do calor, do silêncio, das visões narradas
que passavam por dentro de mim e por dentro de outros tantos que ali estavam, humanos e
não-humanos. Da vida que se faz na borda.

Figura 7: Área Central - Terreiro de Chão Batido 2016


134

3. Ocupar o feminino

Seja sândalo que perfuma e não machado que fere.


Mas se for machado, seja certeiro.
(pomba gira Elô)

Figura 8: Labirinto dos Sete Caminhos

O feminino é outro dos termos utilizados pelas mais velhas para caracterizar a
comunidade Morada da Paz, concebido e produzido muito em função da percepção de que
foram elas, mulheres negras, “as que ficaram”. Porém, é necessário entender os seus próprios
contornos que, assim como a borda apresentada no capítulo anterior, também carrega suas
singularidades. O risco aqui, parece-me, é desenvolvermos um rápido olhar e inscrevermos o
pensamento da comunidade nos termos que não são os seus. Será necessário desacelerarmos o
pensamento para apreendermos no que consiste o feminino, entendendo-o em suas
aproximações e distanciamentos do modo como o feminino tem sido pensado e discutido nos
ambientes universitários e feministas – que marca o modo como o feminino emerge no
pensamento ocidental, atrelado ao conceito de gênero.
Scott (1995) dedica-se a pensar o gênero como uma importante categoria de análise
para o pensamento social, entendendo o feminino e o masculino como características sociais,
135

formadoras respectivamente da mulher e do homem, atribuídas e impostas a corpos sexuados.


O ponto central com a emergência do conceito de gênero é romper com percepções
essencialistas e biologizantes que atribuíam valores inerentes aos diferentes sexos. A
feminilidade e a masculinidade tornam-se atributos socialmente reconhecidos, características
hegemonicamente definidoras do que é ser homem e do que é ser mulher. Contudo, a partir da
categoria de gênero, suas atribuições foram percebidas como relacionais, em que uma inexiste
sem a definição da outra, e cuja relação é compreendida como uma relação de poder. Com o
intuito de desvincular as atribuições sociais dos corpos biológicos, Scott argumenta através do
conceito de gênero que as características atribuídas aos homens e às mulheres não são
‘naturais’, são antes constructos sociais, com historicidades próprias. O gênero, para a autora,
expõe o problema da diferença e das desigualdades binárias, de uma espécie de
encarceramento de homens e mulheres em papéis socialmente hierarquizados que só podem
ser determinados quando situados no tempo e espaço.
Entende-se, portanto, masculino e feminino como constructos sociais relacionais
formadores de identidades hierarquicamente posicionadas. Essa percepção de gênero,
complexificada pela análise interseccional trazida à tona pelas feministas negras
estadunidenses – em que um sistema de opressão não pode ser percebido como separado de
outros, tais como raça, classe e sexualidade –; pelos estudos das feministas materialistas
desenvolvidos na Europa e Estados Unidos, em suas análises históricas sobre a emergência
desse sistema de opressão; pelo feminismo radical e sua crítica à heteronormatividade; pelo
feminismo autônomo, com a crítica às políticas desenvolvimentistas e a burocratização dos
movimentos sociais; e pelas reflexões e teorizações de mulheres e feministas negras e
indígenas que constituem “Abya Yala”49 e que produzem conhecimento a partir de suas
comunidades e vivências, formam a base de diálogo através do qual o feminismo descolonial
debate e se constitui (MIÑOSO, 2017, p. 32-33)50.
Em diálogo com as feministas descoloniais, e a preocupação em produzir uma outra
percepção do feminismo, uma série de posições acerca desse sistema de gênero se apresenta.
Algumas, como o Feminismo Comunitário, sustentam que o patriarcado e o sistema de gênero
oriundo do poder colonial estabelecem um “entroncamento” com um patriarcado “originário”,

49Abya Yala é o nome em língua Kuna (habitante de regiões correspondentes ao Panamá e à Colômbia) do
continente posteriormente nominado pelos europeus que chegaram no continente de América. Significa “terra
em pleno amadurecimento” ou “terra de sangue vital”. (MIÑOSO; CORREAL; MUÑOZ, 2014, nota 1). Essa
denominação tem sido utilizada pelos movimentos descoloniais, tanto dentro dos meios acadêmicos quanto por
movimentos sociais diversos. Nos feminismos latinoamericano tem sido constante.
50Interessante perceber, inclusive, as críticas desenvolvidas a essa atribuição de “descolonial” nos mais
diversos campos, inclusive no Feminismo. Silvia Cusicanqui salienta como o descolonial faz parte de uma
produção academicista de conhecimento. Define-se como anticolonial, como uma luta constante. Nos diz: “o
descolonial é uma moda, o pós-colonial é um desejo, o anti-colonial é uma luta cotidiana e permanente” (ver
em: https://www.youtube.com/watch?v=ujiSiDEBaFQ, acessado 15 de outubro de 2018).
136

existente nas culturas indígenas51. Sustentam que esse patriarcado originário não é o mesmo
estabelecido pelo poder colonial, mas fortalecem-se mutuamente nesse “entroncamento”.
Outras, como Rita Segato, diz-nos a autora, desenvolvem o argumento de que todos os mitos
de origem encontrados nas diferentes culturas constituintes do Abya Yala subordinam as
mulheres. Outras ainda afirmam que o sistema de gênero (e de sexo) é herança do poder
colonial, como sustenta Lugones (2008, 2011) e Oyěwùmí (2017). Porém, mesmo entre elas
há muitas diferenças. Enquanto a última argumenta que gênero foi uma imposição do sistema
colonial a toda sociedade iorubá, Lugones sustenta que foi a linha divisória entre humanos e
não-humanos imposta pela colonialidade que determina quem são sujeitos de gênero e quem
não são.
De todo modo, é percebendo o sistema de gênero como uma herança capitalista e
colonial que parto, orientada pela provocação de Oyěwùmí de que seria possível romper com
uma percepção universalista e totalizadora do gênero como uma categoria de análise para a
compreensão de toda e qualquer cultura e povo. A autora desenvolve seu trabalho sobre a
cultura iorubá na Nigéria, e defende a tese de que não existia relações de gênero antes da
chegada do poder colonial. Por isso, sustenta que foi a presença forçada e violenta do poder
colonial em terras iorubanas que inventou mulheres e homens. Atenta para uma dimensão
ainda mais complexa, sobre a produção de conhecimento. Uma coisa é observarmos que o
sistema de gênero não existia em determinado lugar e que, com o colonialismo passa a existir
e, a partir disso, analisarmos e descrevermos aquela realidade a partir desse encontro nefasto
utilizando-se da categoria gênero para a produção da análise. Outra, diferente, é
questionarmos propriamente o artefato descritivo utilizado e sua universalidade analítica, a
partir daqueles com os quais a pesquisadora trabalha e que pensavam e pensam a si próprios
através de outros artefatos que não aqueles oriundos do contato colonial. Por isso, fez-se
necessário inscrever o debate de gênero em uma história dos discursos e questionar que outra
cartografia social se desenhava entre o povo Oyó-iorubá com o qual a autora trabalhou.
O ponto central, parece-me, é que, para ela, é o Ocidente quem produz e reproduz
sistemas de gênero. Estabelece uma relação substancializada, ainda que deseje romper com
isso, com o sexo, ou seja, com as definições corporificadas a partir de preceitos biológicos. Os
diferentes corpos, que são percebidos e nominados pelo povo iorubá, não derivam
características socialmente atribuídas e hierarquicamente organizadas, pois o corpo
genderificado, segundo ela, não era a base dos papéis sociais, nem o fundamento da
identidade. As relações de hierarquia que se manifestavam na cultura iorubá eram de

51Acredito que duas das principais ativistas e intelectuais que trabalham nessa perspectiva, ainda que derivem
dela práticas políticas radicalmente diferentes, são Julieta Paredes e Adriana Guzman (2014) e Lorena Cabnal
(2010).
137

senioridade e não de gênero, o que fazia com que as relações mudassem radicalmente de
acordo com quem se interagia – se mais novo ou mais velho –, assim como a posição do
próprio sujeito alterava ao longo do tempo, muito além da polaridade homem e mulher, a que
ela atribui um valor mais estático do que a variação etária.
Ela nos diz ainda que a organização social do mundo a partir de preceitos biológicos e
essencialistas é uma questão do ocidente, assim como o outro lado dessa mesma moeda, ou
seja, a necessária denúncia dessa organização que o conceito de gênero engendra e provoca.
Em momento algum rechaça a importância desse conceito, que percebe como fundamental
para compreender e denunciar as investidas coloniais. Porém, questiona seu caráter universal
e a-histórico, com uma provocação ao final de seu livro às pesquisadoras e aos pesquisadores
da cultura iorubá, mas que, acredito, pode ter maior extensão:
Perguntas como “por que se vitimiza ou subordina as mulheres?” ou “qual é a
divisão sexual do trabalho?” não são perguntas de primeira ordem em relação à terra
iorubá, porque ambas pressupõem o gênero. Algumas perguntas básicas para alguém
que tiver interesse na análise da organização social, poderiam ser “qual é a
concepção iorubá da diferença? O corpo se utiliza como evidência nesta
concepção?”. Um investigador ou investigadora com curiosidade sobre a diferença e
a hierarquia poderia perguntar “o que constitui uma diferença na terra iorubá?”
(OYEWÙMÍ, 2017, p. 288-289)

É sobretudo na esteira de Oyewùmí que gostaria de propor uma outra mirada ao que
nos dizem as mais velhas da comunidade Morada da Paz. O questionamento da autora sobre a
relevância do gênero como um artefato analítico universal me fez pensar, também, em que
medida outras formas de experiência, sentido e diferença são postas nos termos feminino e
masculino, muito além do modo como o pensamento ocidental, sobretudo o feminismo
branco, o concebe. O feminino e o masculino são termos constantes no cotidiano da
comunidade. Não raras as vezes se confundiam os termos mobilizados com as minhas
próprias concepções – oriundas de um feminismo branco. Foi um exercício constante de
suspender minhas pré-noções para entender de que forma o feminino era ocupado e posto em
funcionamento na comunidade.

3.1 Somos as que ficaram

Era um sábado ensolarado do mês março de 2017. Eu estava na Ocupação Mulheres


Mirabal esperando a chegada de duas Yas da Morada da Paz. Estavam atrasadas devido a ritos
importantes que aconteciam no território naquele mesmo dia, rituais de limpeza e
harmonização para o início do Ano Novo Solar. Havia cerca de 30 mulheres à espera junto
comigo. Negras, brancas, com idades variadas entre 20 e 60 anos, acompanhadas de suas
amigas, namoradas, mães, filhas ou companheiras de luta. O convite não havia sido restrito às
138

mulheres, mas eram elas que ali estavam – como comumente ocorre nos eventos da Morada
da Paz. Conversávamos e, enquanto aguardávamos a chegada das Yas, fui organizando o
espaço como de praxe realizamos na comunidade: um círculo de cadeiras, com um pequeno
vão de entrada e saída, um incenso aceso e alguns livros de poesia no centro da roda, pois a
proposta inicial do encontro era um sarau de poesia. O espaço, localizado no último andar do
casarão, era uma espécie de auditório, muito amplo.
A Ocupação Mulheres Mirabal, iniciativa do Movimento de Mulheres Olga Benário,
tem por principal interesse acolher mulheres e seus filhos e filhas, vítimas de violência
doméstica. Localizada no centro da cidade, o casarão que abriga a ocupação estava
abandonado há anos e pertencia à congregação católica dos salesianos. Funcionava ali uma
espécie de centro de atividades com jovens e crianças. Porém, não estava mais em uso há
quase 5 anos. Em novembro de 2016, então, as mulheres do movimento Olga Benário
decidiram ocupar e dar uma função social digna da estrutura daquele prédio. Trata-se de um
amplo casarão, de três andares, que, a partir do movimento iniciado por elas, passou a ser
palco de atividades, oficinas, encontros e tantas outras movimentações feministas.
Quando divulgaram a necessidade de criar um Comitê de Apoio à ocupação,
prontifiquei-me a participar. Minha ideia, aliada a outras amigas e companheiras feministas,
era começar um grupo de estudos de feminismo descolonial naquele espaço. Comentei com
Ys. desse meu desejo e ela solicitou que eu também representasse a Morada, pedindo o meu
“axé de fala e de escuta”, e colocasse a comunidade como um coletivo disposto a fortalecer a
Ocupação Mirabal. Assim fiz, e de lá saíram duas ações conjuntas. A primeira iniciou como
uma proposta de feira de economia solidária e ekonomia do afeto, tal como a Morada da Paz
denomina suas práticas econômicas. Contudo, após a saída da primeira reintegração de posse,
que deu um prazo de 30 dias para a desocupação do prédio, a ideia inicial da feira ampliou-se
e deu lugar a um grande festival, com música, exposição, feira e oficinas, como um meio de
dar visibilidade à luta pela permanência da Ocupação Mulheres Mirabal. A segunda proposta
foi um Sarau de poesia que possibilitasse o encontro com pessoas interessadas em conhecer a
história da Morada da Paz. Naquele sábado ensolarado do mês de março, aconteceu esse
segundo encontro52.
Dentre as Yas, foram Ys. e El.. Chegaram com outros integrantes da Irmandade, que
traziam consigo os tambores que foram postos no centro da roda. Iniciamos nossa conversa,

52A relação entre a Morada da Paz e a Ocupação Mulheres Mirabal rendeu ainda mais alguns encontros.
Primeiro no Festival Mirabal, onde participou com o Apoiwá, venda de produtos artesanais da comunidade,
depois com a doação de cucas e pães caseiros ofertados às famílias expulsas da ocupação Lanceiros Negros
pelas forças do Estado, e que foram temporariamente acolhidas pela Ocupação Mulheres Mirabal. Também
recebemos a orientação de Mãe Preta, durante uma das “chamadas” para irmos até a Mirabal realizar um
trabalho de “realinhamento energético” com as pessoas que lá estivessem abrigadas. Porém, por diversos
motivos, não pudemos adentrar o espaço e, portanto, não conseguimos realizar essa orientação.
139

cada uma pedindo o seu axé de fala e de escuta – prática comum durante os ipadês que
ocorrem na comunidade. Tanto as integrantes da comunidade, quanto as demais mulheres que
ali estavam assim o fizeram. Al., a guardiã dos orins sagrados, junto com Ay., único homem
no local, e Bl., ambos alabês da comunidade, abriram os trabalhos entoando para Exu Lonã.
Havia também duas pré-adolescentes, Sh. e Dh.. Eu estava no vão de abertura da roda, na
porta, para garantir, como fui ensinada, a manutenção energética daquilo que seria acionado,
dar a sustentação. Assim funciona todo e qualquer ipadê (roda de conversa) realizado na
Comunidade Morada da Paz e ali, naquele espaço, não foi diferente.
Depois do canto para Exu Lonã para abrir os trabalhos, fiz uma breve fala sobre a
finalidade daquele encontro, que se propunha inicialmente a ser um sarau de poesia, mas que
acabou tomando outra forma. Passei a palavra para as Yas que narraram sua história. Falaram
sobre o papel que a espiritualidade cumpre nas suas vidas, da interrogação provocada por
Mãe Preta sobre o que elas gostariam de ser – se centro espírita ou projeto –, sobre a
preocupação coletiva com a educação de seus filhos e sobre como chegaram a se tornar uma
comunidade formada majoritariamente por mulheres negras. O silêncio imperava. Às vezes
era entrecortado pelo choro de um bebê que estava no colo da mãe. Logo Ys., para deixar a
mãe confortável, pois parecia tensa com o choro, comentou que em todos os ipadês, ou
qualquer outro movimento realizado na Comunidade, contavam com a participação das
crianças de todas as idades. É assim, participando – com choro, correria, falas, brincadeiras –,
que as crianças escutam, sentem e aprendem, disse ela.
El., ao relatar como a Morada da Paz começou, disse que nunca se propuseram a ser
uma comunidade formada majoritariamente por mulheres. Ao contrário disso, havia um
número equilibrado de homens e mulheres quando tudo iniciou, boa parte deles casados com
elas. Também não se propuseram a ser uma comunidade negra “por ideologia”, expressão
usada por El., ainda que a maior parte dos integrantes, desde sempre, fossem negros. O que as
constitui enquanto coletivo é sobretudo o que chamam espiritualidade, aquilo que as faz
seguirem juntas, desde o início da comunidade em 2001, e até mesmo antes disso, quando em
1998 iniciaram o Grupo Cosmos. Disseram que espiritualidade vivida na comunidade é
chamada de afrobudígena, pautada pela articulação de três matrizes centrais, a saber: o
budismo tibetano mahayana, as práticas de matriz africana e o xamanismo mbyá guarani. E
que as principais entidades que guiam e orientam a espiritualidade ali vivida são Mãe Preta,
preta velha reconhecida como mãe da comunidade e também nominada “Yaba ancestral” e
Seu Sete, Exu reconhecido como pai da comunidade e nominado também como Exu-Rei. As
mulheres ali sentadas ouviam o relato das Yas com muita atenção e comoção. No decorrer da
conversa, não raro eu olhava para o lado e via alguma delas chorando.
140

Porém, ainda que iniciada de forma mais equilibrada no que consiste à participação de
homens e de mulheres, são elas, mulheres negras, “as que ficaram”. Essa expressão funciona
como um ritornelo53 na narrativa das mais velhas. Todos os eventos em que são convidadas a
falar, contam que em um dado momento, cujo marco temporal é 2005, “nos demos conta de
que fomos as que ficaram”. Descrever-se assim, parece-me funcionar como um ato conclusivo
de um percurso realizado – um dar-se conta de como são e onde estão enquanto coletivo –,
mas também como um ponto inicial de um percurso a ser realizado – um dar-se conta do que
podem fazer a partir disso.
Ser “as que ficaram” é para onde retornam constantemente e cada retorno realizado
impulsiona a produção de novos percursos criativos na construção coletiva da Morada da Paz.
Destaco aqui, como parte desse processo, o autorreconhecimento como comunidade
kilombola – o que levou à certificação da Fundação Cultural Palmares em 2016 – e a
constatação da comunidade de ser feminina, ou, como dito por Ym., de que a Morada é “uma
mulher vaidosa”. A partir dessa história narrada pelas Yas, paisagens imagéticas constituintes
da Morada foram abordadas naquele momento: a autonomia – “ser a revolução e não apenas
falar da revolução”, como diz Ys. –; a maternidade; a educação das crianças, pautada no que
chamam “valores civilizatórios africanos”; as relações com cônjuges; o empoderamento
sexual-afetivo com o auxílio dos ensinamentos transmitidos pelas entidades, principalmente
pelas pombas-giras; a luta por outro mundo possível, que inclua a convivência respeitosa com
“todos os seres que povoam o cosmos”; e os trabalhos realizados com escolas, jovens e
adultos sobre educação ambiental e kilombola.
Foram quase três horas ininterruptas de conversa. Quando as Yas abriram o espaço
para perguntas, para uma maior interação com as mulheres que as escutavam, o silêncio
novamente se fez presente. Houve uma ou outra intervenção, perguntas sobre como e quando
53“O ritornelo merece duas vezes seu nome: em primeiro lugar, como traçado que retorna sobre si, se retoma, se
repete; depois, como circularidade dos três dinamismos (procurar um território para si = procurar alcançá-lo).
Assim, todo começo já é um retorno, mas implica sempre uma distância, uma diferença: a reterritorialização,
correlato da desterritorialização, nunca é um retorno ao mesmo. Não há chegada, nunca há senão um retorno,
mas regressar é pensado numa relação avesso-direito, recto-verso com partir, e é ao mesmo tempo que se parte
e se regressa. Por conseguinte, há duas maneiras distintas de partir regressar, e de infinitizar esse par: a
errância do exílio e o apelo do sem-fundo, ou então o deslocamento nômade e o apelo do fora (a terra natal
sendo apenas um fora ambíguo: MP, 401). São duas formas de distanciamento de si: dilaceramento do si ao
qual não se cessa de retornar como a um estrangeiro, uma vez que ele está perdido (relação do Exilado com o
Natal, incluído no 2° tempo da primeira tríade); extirpação de si ao qual só se regressa como estrangeiro,
desconhecível ou tornado imperceptível (relação do Nômade com o Cosmo, 3° tempo da segunda tríade)”
(ZOURABICHIVILI, 2004, p. 51). Uso o conceito de ritornelo da obra de Deleuze e Guattari da forma menos
comprometida possível. O que me agrada na elaboração desse conceito é a ideia de um retorno possível ser
estabelecido, e que, contudo, nunca é o mesmo. Penso que a afirmação “somos as que ficaram”, em todas as
narrativas elaboradas pelas Yas, funciona como um ritornelo, um retorno a uma condição compartilhada que é
bastante frágil, pois, como sempre nos dizem, os questionamentos e as reflexões sobre suas escolhas de vida
estão sempre presentes. Dizer-se a que ficou é, de alguma forma, afirmar essa posição que não é permanente,
nem estática, mas uma escolha. É recontratar os termos da sua permanência. Dessa forma, é um retorno a um
território que é sempre retraçado, ou seja, um novo território.
141

acontece a Colônia de Férias, por exemplo, ou outras das atividades desenvolvidas pela
Morada da Paz. A partir do silêncio prolongado e das tímidas perguntas, iniciamos uma
dinâmica, puxada por Ys.. Afinal, para as integrantes da comunidade Morada da Paz, em todo
encontro é preciso sair do mental e levar em conta que “é possível conhecer com o arrepio”,
com o corpo, com as sensações. Foi então que Ys. pediu a todas que se levantassem e
caminhassem dentro do círculo formado pelas cadeiras. A partir de um comando dado por Ys.
todas deveriam parar de caminhar e abraçar a pessoa que estivesse mais próxima. Essa
dinâmica ocorreu várias vezes e, quando percebi, muitas das mulheres estavam chorando,
inclusive eu.
Era hora de finalizar o encontro, das Yas retornarem para o território e se alimentarem,
visto que, pelas correrias dos compromissos na comunidade e da ida à Mirabal, passaram
manhã e tarde daquele dia sem ingerir nada. El. havia levado um gongo tibetano, comprado
quando foram em diligência54 para a Índia e utilizado nos trabalhos realizados com as
mulheres. Pediu para fecharmos os olhos e nos concentrarmos, e foi passando por cada uma
ali presente, pelo lado de fora do círculo, fazendo vibrar nossos corpos, produzindo um estado
de tranquilidade. Como despedida, realizamos uma ciranda e nos abraçamos, ao som de
tambores e canções. Ao sairmos, muitas das mulheres presentes buscaram informações sobre
como ir até o território e prometeram visitas – presenças que, até hoje, são constantes nos
rituais e eventos da Morada da Paz.
Fato é que essa narrativa sobre “as que ficaram” não é incomum no relato de
mulheres, principalmente mulheres negras, fruto do abandono de seus cônjuges e dos
preterimentos que sofrem em uma sociedade racista (PACHECO, 2013; SOUZA, 2008).
Aliás, elas mesmas, Yas e egbomis, em outro momento, enquanto narravam suas histórias para
outro grupo que esteve na comunidade em uma vivência, comentavam que nas suas famílias
biológicas não era incomum os homens abandonarem suas companheiras. Elas, por sua vez,
tinham que se desdobrar para criar os filhos, trabalhar e cuidar da casa e de si. Ik. e Ym., que
são irmãs, relembraram que sempre viveram em comunidade de mulheres, pois no bairro
Partenon onde moravam, próximo às suas tias, havia uma relação de solidariedade constante
entre as mulheres da família, no cuidado dos filhos e filhas ou nas questões econômicas.
Contam que muitas vezes, quando em sua casa não havia o que comer, sua mãe prontamente
as mandava para a casa de uma tia – “comida não faltava”. Ou seja, “somos as que ficaram”,
de alguma forma, não soa estranho para essas histórias familiares, pois não são poucos os
relatos de abandonos paternos ou de cônjuges, e da força mobilizada pelas mulheres da
família na luta pela sobrevivência, delas e de seus filhos.

54Viagens realizadas de acordo com as orientações espirituais recebidas.


142

Porém, essa constatação e reflexão realizada pelas mais velhas de que “são as que
ficaram” não foi inscrita na mesma lógica narrativa das histórias que narraram sobre suas
mães e tias. Não se trata aqui de constatar o abandono de seus companheiros e a ausência
deles nas responsabilidades que lhes cabem. A relação com os homens, parece-me, não é a
mesma nesses dois casos, ainda que ambas as situações caracterizem as mulheres como “as
que ficaram” e que o sentimento de solidão seja algo que paire, vez ou outra, nos dois casos.
Os homens que saíram da comunidade assim o fizeram por diferentes motivos e, apesar das
muitas diferenças que os levaram a sair, as falas recorrentes sobre suas saídas são “não
souberam lidar com a vida em comunidade” e “não souberam lidar com as autoridades
femininas”. Porém, importante dizer, é desejo das mais velhas e mais novas que os homens se
aproximem e se sensibilizem pelos engajamentos da e na Morada da Paz55.
Ficar é resistir a todas as dificuldades que existem e existiram na construção da vida
comunitária. É, como disse Ys. durante essa conversa na Mirabal, um ato de abnegação. Ys.
contou que a construção da Morada da Paz foi fruto de uma urgência em desenvolver “um
jeito de ser e de viver” diferente daquilo que o mundo lhes apresentava. Principalmente,
destaca ela, para seus filhos. Lembrou que ela e El. engravidaram quase na mesma época, e
que Ay., filho de El., e Dm., filha de Ys., eram bebês quando iniciaram a comunidade.
Desejavam apresentar a seus filhos um outro modo de vida, em relação constante e
permanente com todos os seres que povoam o cosmos. “Abnegar-se”, explicou ela, é “ter
disponibilidade”, “colocar-se a serviço” de algo. No caso da Comunidade Morada da Paz,
colocaram-se a serviço da espiritualidade e das entidades que ali se manifestam, na luta por
um “outro mundo possível”.

55Dentro da literatura sobre mulheres e religiões afro-brasileiras, sem dúvida o trabalho de Landes (1967)
mostra-se fundamental. Landes argumenta que eram sobretudo as mulheres negras que detinham uma relação
de autoridade religiosa e política, por serem, no Candomblé baiano, os canais privilegiados de manifestação
dos Orixás, e por sua relativa independência frente aos homens, negros e brancos, de modo geral, e às
mulheres brancas submetidas aos ideais de feminilidade da época. Eram as mulheres negras do Candomblé
autoridades religiosas e políticas para a população negra baiana. Descartava, com isso, duas explicações
anteriores para uma maior presença de mulheres no sacerdócio: primeiro, que essa configuração matriarcal do
candomblé fosse herança africana, pautada por uma transmissão cultural (demonstrando que sua manifestação
ocorreu em solo americano e como consequência da dolorosa diáspora africana); segundo, o argumento
economicista elaborado por Herkovits, que desconsiderava a configuração matriarcal do candomblé, dizendo
que a presença feminina em maior escala se dava pelo fato de que seria menos custoso sustentar uma mulher
na casa de culto do que retirar o homem de seu trabalho produtivo (HARLEY, 1996). O argumento da autora
derivou para uma maior valorização das casas de Candomblé e para um certo purismo iorubá (valorização essa
que era compartilhada por outros intelectuais contemporâneos, como Bastide), em detrimento de outras casas
religiosas, com práticas mais heterogêneas como o Candomblé Angola ou a macumba no Rio de Janeiro, que
foram caracterizadas pela autora através da feitiçaria e por terem, como lideranças, maior número de homens.
De toda forma, frente ao processo de modernização, Landes argumentava que esse matriarcado que encontrava
nas casas de Candomblé estava profundamente ameaçado, localizando-o já no passado e em processo de
decadência e dissolução. Em contrapartida, ainda que a Morada não seja um exemplo das casas “puras” do
Candomblé baiano, ali também a presença feminina sobressai. Não é o caso de negarem a existência de
homens que manifestam as entidades, mas uma atenção especial para quem ficou, quem aceitou o
compromisso estabelecido com a espiritualidade em um ato de abnegação.
143

É como resistência, portanto, que precisamos ouvir a fala das mais velhas, quando
dizem “somos as que ficaram”. Entendo resistência não como uma oposição crítica a um
poder instituído, mas como atos de criação de outras formas de existência. Nesse sentido, Mãe
Preta constantemente lembra, “a Morada não é do enfrentamento, é do anunciamento”.
Anunciar, nesse caso, não implica em promover ou panfletar uma verdade como universal,
também não significa profetizar ou prognosticar o que está por acontecer, mas comunicar uma
outra forma possível de vida. A partir dessa resistência que emerge de mulheres negras,
pretendo aqui desenvolver como criam em suas práticas uma teoria muito singular do que é o
feminino, que é, sobretudo, um modo de atuar no mundo.

3.2 O feminino e o masculino

Estávamos nessas “correrias e loucurinhas” cotidianas. Algumas pessoas da


Irmandade estavam na cozinha, em diferentes funções: lavando a louça, varrendo o chão,
limpando a mesa. A cozinha se localiza na Casa Verde, o principal espaço de convivência da
comunidade, onde nos juntamos para assistir a filmes (na chamada salinha da TV), ou para
descansar no sofá da sala após longas horas de pé, depois de um dia de trabalho – termo
utilizado para as atividades espirituais, pois como me disse certa vez Oyá, manifestada em
Ym.: “o que vocês fazem aqui é trabalho, o que vocês fazem para ganhar patacas [dinheiro]
é outra coisa, é… como vocês chamam mesmo? Emprego”. A cozinha da Casa Verde é
também onde nos reunimos para auxiliar nos preparativos das refeições, conversar ao redor da
mesa, compartilhar o chimarrão e nos esquentar nos dias de inverno em torno da Maria
Fumaça, um grande fogão à lenha.
Iniciamos, então, uma conversa, em meio a muitas risadas provocadas pela observação
das crianças na mesa, que se divertiam com os alimentos. Falávamos sobre educação familiar,
os papéis das figuras maternas e paternas na educação da criança e adentramos, por fim, uma
longa conversa sobre o que seriam as energias do feminino e do masculino. O feminino e o
masculino são compreendidos na comunidade como energias ou forças que constituem todos
os sujeitos56. Há uma grande constatação coletiva de um profundo desequilíbrio dessas
energias no mundo e a busca constante é pelo seu equilíbrio. Como exemplo de que essas
noções não têm relação direta com gênero ou sexo, assim que eu realizei minha iniciação na
Nação Muzunguê, quando Ys. me apresentou todos os participantes da comunidade, Bg., a
única figura do sexo masculino entre as mais velhas, e que se reconhece como homem

56 Essa percepção não é exclusiva da comunidade, é evidente. Existe em outras filosofias e cosmologias.
Porém, o interessante é entendê-la pragmaticamente. E me cabe aqui entender como essa percepção é
vivenciada na comunidade Morada da Paz.
144

heterossexual, foi-me apresentado como “o homem mais feminino que existe”. Isso, é
importante dizer, nada tem a ver com sexualidade ou qualquer coisa que remeta a ‘afeminado’
– trejeitos e comportamentos comumente associados à feminilidade.
O feminino e o masculino em questão têm a ver com uma percepção de
complementariedade, aproximada à compreensão que se tem do Yin e Yang, mas não apenas,
afinal, disseram-me, “os Orixás também são femininos e masculinos”57. Nessa conversa que
tivemos na cozinha, estavam Yb., uma das Yas da comunidade, Tj., Or., Bm. e eu. Or. sendo o
único homem presente. Afinal, “o que é a energia do masculino e a energia do feminino?”,
perguntei. E perguntei porque, imbuída de um pensamento crítico feminista, certas
essencializações me incomodavam consideravelmente. Eis que Tj. inicia a explicação dizendo
que o masculino é mais vinculado ao poder de ação, à força e o feminino mais vinculado à
intuição, acolhida e cuidado. Bm. complementa, dizendo que também há o cuidado no
masculino, ainda que seja uma outra forma de cuidado. Contudo, a delicadeza, a atenção aos
detalhes, seriam características do feminino.
“O masculino é a força do caçador, que vai trazer a caça pra sua família”, “é a força
de Ogum que é guerreiro e que vai desbravar”, já “o feminino tem a ver com zelo, como o
cuidado das mães das águas”. “Mas existe Oyá, que é um orixá feminino da guerra”, disse.
Todas concordaram que sim, e Yb., como um modo de diferenciar Oyá dos demais “Orixás de
frente”, que são os Orixás guerreiros, salientou: “mas pode ver, ela usa da sensualidade na
guerra, por isso que dança assim”, mostrando-me com seu corpo o modo como Oyá dança. O

57 A título de comparação, é interessante perceber como os Orixás se apresentam na cultura Oyo-Yorubá


estudada por Oyewùmí. A autora nos apresenta como os pesquisadores, incluindo pesquisadores iorubá, após
o contato colonial, foram produzindo gênero entre as divindades com uma masculinização de Olodumarè e
uma sequente “patriarcalização” da religião. Contudo, de acordo com suas pesquisas sobre períodos anteriores
ao processo colonial, ela nos diz: “Assim como outras religiões africanas, a religião Iorubá tinha três
fundações. O primeiro era Olodumarè (Deus – Ser supremo). Olodumarè não tinha identidade de gênero, e é
duvidoso que era percebido como ser humano até antes da chegada do cristianismo e do islã em terra Iorubá.
O segundo, orixás (deidades), consistia nas expressões dos atributos do ser supremo e eram como seus
mensageiras ou mensageiros de Olodumarè para a humanidade. Eram o epicentro mais evidente da veneração
Iorubá. Ainda que havia Orixá macho e Orixá fêmea [anamacho e anahembras são os termos utilizados pela
autora para ressaltar o caráter biológico], essa distinção era intranscendente, como em muitas outras
instituições; tratava-se na realidade de uma distinção sem diferença. Por exemplo, tanto Xangô (deus do
trovão) e Oyá (deusa do Rio) eram conhecidos por sua raiva. Seria impossível que um censo de Orixá
determinasse sua distribuição por sexo já que se desconhece o número total de Orixás, pois continua se
expandindo. Aliás, Orixás não se pensavam em termos de gênero; alguns deles foram reconhecidos como
machos em certas localidades e como fêmeas em outras. O terceiro pilar era formado pelas e pelos ancestrais,
venerados por quem integrava cada linhagem e imediatamente identificáveis no baile de máscaras Egungun:
um culto de devoção para as e os ancestrais. Em geral, os únicos indicadores para conhecer quem veneraria
certo orixá eram o pertencimento a linhagem e a cidade de origem.” (OYEWÙMÍ, 2017, p. 234-235) Retiro
duas considerações desse trecho. Primeiro, de que seria possível e interessante pensar a produção do gênero e
sua relação com outras formas de pensamento em uma análise histórica da diáspora forçada do povo negro
para o continente americano. Segundo, de que, a partir da Morada, não afirmaria que as distinções entre os
Orixás masculinos e femininos seriam uma “distinção sem diferença” - afinal, ainda que Xangô e Oyá se
aproximem pela raiva, dificilmente conseguiria afirmar que suas raivas são as mesmas ou manifestam-se da
mesma forma. Talvez diria, como tentarei mostrar nas descrições, que há diferença sem hierarquia vertical.
145

que dá a entender, portanto, que a sensualidade é um dos atributos do feminino e uma arma de
Iansã.
Mesmo que, em um primeiro momento, o feminino seja vinculado à ideia de cuidado,
cura e acolhimento, e o masculino à ideia de desbravamento, ação e enfrentamento, é
interessante perceber, a partir do panteão africano trabalhado na comunidade, que os termos
se embaralham e se complexificam. É verdade que há entidades masculinas e femininas que
são associadas a essas respectivas ações no mundo. Mas se analisarmos o modo como as
entidades fazem-se presentes ou são acionadas no cotidiano da comunidade, podemos
perceber que existem três campos de atuação centrais que constituem ambas as forças – que
eu designo como a guerra, o acolhimento e a limpeza/sexualidade. No âmbito do feminino, as
entidades guerreiras são Obá, Oyá, Cabocla Jurema – ainda que haja também algumas Oxuns
e Yemanjás –, e no âmbito masculino, Ogum, Xangô, uma série de caboclos e também
Oxaguiã. As mães d'água – Oxum, Nanã e Iemanjá – e as pretas-velhas estariam mais
associadas ao cuidado e ao acolhimento, assim como os pretos-velhos e Oxalá. Sei que é
preciso ter cuidado com essas designações, pois qualquer pessoa da irmandade colocaria a
questão de que Xangô também acolhe e Mãe Preta também guerreia, por exemplo, ainda que
concordasse que Xangô está mais para a guerra do que Mãe Preta. E aí reside a complexidade
dos termos.
As Giras e Exus são as entidades acionadas em qualquer situação que demande
limpeza, principalmente no início – e às vezes ao final – de ritos realizados. Contudo, no
quesito sexualidade são as Giras as entidades acionadas, e não os Exus. É interessante
perceber que não há entidades masculinas que trabalham nesse quesito e são as Giras que
trabalham também com os homens da comunidade no que consiste à sexualidade. Lembro
vagamente que, certa vez, a pomba-gira Elô comentou conosco que o povo dela, o povo
cigano, estava à espera “de um corpo” para receber um cigano que gostaria de trabalhar ali.
Fico pensando que, talvez, seja para atuar nessa questão específica junto aos homens.
O ponto é que dentro do panteão de matriz africana a relação binária entre feminino e
masculino mostra-se profundamente múltipla. “O masculino é o poder ativo e o feminino é o
poder passivo e não é que um seja melhor que o outro, ao contrário, o equilíbrio dos dois que
é importante”, relembra Or.. “É gente, e tem momentos que a gente que é mulher tem mais a
força do masculino que do feminino. A gente pode perceber isso nas nossas relações de
casal”, salienta Yb., casada com Bg.. Então eu pergunto, “não existe alguma relação direta
entre as forças do feminino e do masculino com os papéis de gênero de homem e de mulher?”
O silêncio se prolonga, possibilitando a reflexão por parte de todos, inclusive a minha. Tj.
comenta que, para ela, a mulher seria a materialização da força do feminino, assim como o
146

homem seria a materialização da força do masculino. Mas isso não significa que em ambos
não houvesse a necessidade do equilíbrio dessas forças. “Por isso que existe o trabalho dos
homens e das mulheres”, comenta, “para alinhar com essas energias” nos corpos de homens
e mulheres.
Para a Morada da Paz, as forças do feminino e do masculino estão vinculadas ao
chakra básico, localizado diretamente no final da coluna vertebral. O chakra básico,
ensinaram-me, é aquele responsável pela “conexão com a Terra”, com a energia vital, com o
impulso criativo e com a sexualidade. É para ele que voltamos a atenção durante o trabalho
dos homens e das mulheres, ritual específico que ocorre no território. Trabalhar no seu
alinhamento, ou seja, reequilíbrio, implica em atuar diretamente nos órgãos que são afetados
por esse chakra, a saber, a próstata, o útero e membros inferiores. Ou seja, muitas questões
físicas e psíquicas são compreendidas como espirituais e podem estar associadas ao
desalinhamento energético desse chakra.
Os trabalhos dos homens e das mulheres possuem muitas variações de acordo com o
público que participa. Há trabalhos apenas para pessoas que fazem parte da Irmandade, outros
para moradores da comunidade e outros, que ocorrem duas vezes ao ano, são realizados para e
com pessoas externas. O trabalho das mulheres e o trabalho dos homens são práticas comuns
desde o grupo Cosmos, a partir do qual a comunidade foi derivada. E sempre foi ressaltada a
importância da complementariedade entre esses trabalhos. O primeiro é orientado e conduzido
pelas pombas-giras alinhadas (ou seja, que trabalham junto) com a pomba-gira Elô, uma das
entidades que se manifesta em Ys.. Já o segundo é orientado e conduzido por Ogum, tanto o
Ogum Beira Mar, manifestado em Ym., quanto Ogum de Malê, manifestado em Ak., mas
volta e meia conta com a participação de pomba-gira Elô nessa condução.
Os lugares onde esses trabalhos ocorrem também são diferentes, havendo um espaço
para o trabalho dos homens e outro para o trabalho das mulheres. Também não acontecem
nos mesmos momentos, variando conforme a lua: o primeiro acontece na lua cheia e o
segundo na lua crescente. Ou seja, há uma firmação dessas forças no espaço-tempo. Eu nunca
participei dos trabalhos dos homens. Aliás, a nenhuma mulher é dada essa possibilidade,
apenas quando estiver dando corpo para a manifestação de entidades. Mas sempre participei
dos trabalhos das mulheres, que são trabalhos fechados, para os quais somos orientadas a não
falar sobre o que ocorre durante o rito.
Há também esses mesmos trabalhos para pessoas externas à comunidade. Como dizem
as mais velhas, orientadas por Mãe Preta, “tudo o que fazemos para nós, é preciso fazer para
os outros”, ou seja, é “preciso saber ofertar”. Por isso, todo trabalho que realizam para si
também realizam para as pessoas de fora que “sentirem o chamado” daquele trabalho
147

específico. Quando são rituais abertos, ou seja, com a participação de pessoas que não fazem
parte da comunidade, o trabalho dos homens e o trabalho das mulheres acontecem no mesmo
dia, duas vezes ao ano – uma no verão e outra no inverno –, e são ritos que não são
divulgados em meios virtuais, apenas em convites pessoais. Acontecem ambos no mesmo dia
porque, como me explicaram, apenas o trabalho das mulheres ocorria de forma aberta.
Porém, como muitas traziam seus companheiros, que aguardavam o término do ritual no
território, iniciou-se, então, o trabalho dos homens com essas pessoas.
De modo geral, o trabalho desenvolvido pelas pomba-giras com as mulheres passa
pela atenção dada ao chakra básico. O uso da saia é um dos elementos centrais, pois direciona
a conexão desse chakra com a Terra. Todas as ações rituais que se desenvolvem nesses
trabalhos têm o intuito de ampliar as capacidades de autonomia afetiva, sexual, de cura e de
autocuidado. Segundo El., trata-se de um “espaço de fortalecimento e cuidado entre
mulheres”. E, principalmente, esse trabalho foi caracterizado por ela como um espaço de
resistência. Uma “resistência”, seguiu dizendo, “que não é para agredir o outro, mas para
afirmar quem somos”. Parte essencial desse processo de cura e de “conexão com o sagrado
feminino” é a reverência feita à ancestralidade. “Somos todas sementes, sementes que foram
lançadas à terra por essas mulheres” – referindo-se às mulheres ancestrais mães, avós,
bisavós – “somos árvores”.
No caso dos homens, trabalhos rituais com os quais eu não tive contato e nem acesso,
é muito comum ouvirmos da necessidade de desenvolverem outra masculinidade que não a
majoritária – fruto de um “desequilíbrio” dessas energias. Uma masculinidade mais
“sensível”, portanto, mais feminina. Não no sentido de negar a existência e a importância do
masculino, mas uma forma de produzir outro masculino, diferente de como ele
majoritariamente se apresenta. Em certas ocasiões que pomba-gira Elô apareceu, onde
estávamos homens e mulheres juntos, ela reforçava a necessidade dos homens aprenderem a
tocar uns nos outros e demonstrarem afetos entre si, com abraços e beijos. Esse parece ser o
“homem da Nova Era”, termo que consta na oração dedicada aos homens, onde as forças do
feminino e do masculino estariam em equilíbrio.

3.3 A bruxa que nos habita

Estamos em um espaço chamado de Desformação. Trata-se de um evento aberto, não


divulgado nas redes sociais, mas sempre que possível, durante os rituais realizados na
Morada, é feito o convite para as pessoas participarem. Mãe Preta orientou a necessidade de
um espaço de estudo prático da mediunidade. Contam-me, entre risos, que no momento em
148

que receberam a orientação alguém sugeriu, então, que fosse um espaço de “formação”. Eis
que Mãe Preta responde, dizendo que não, que seria um espaço de des-formação.
“Deformação, Mãe Preta?”, pergunta alguém. E Mãe Preta, entre gargalhadas, responde que
não. Seu argumento foi de que deformar é mudar a forma, mas tendo-a como referência.
Desformar, contudo, é “tirar da forma”. Argumentou que nós, humanos, somos formatados
no modo como pensamos, sentimos e vivemos. É preciso, então, tirar das “caixinhas” a partir
das quais estamos habituados a viver e a sentir.
Trata-se de um espaço destinado, como me informaram, ao “estudo teórico-prático” a
quem quiser participar. Há casos de frequentadoras e frequentadores do Muzunguê que são
orientados a estarem. Esse espaço tem sofrido algumas alterações desde que entrei na
Comunidade, mudanças com o intuito de produzir melhorias no desenrolar dos trabalhos. Um
dos aspectos que foram alterados foi o tempo de duração. Inicialmente, acontecia no turno da
tarde, por volta das 14h até às 18h. Em ipadê com toda a irmandade, foi pensado que seria
mais interessante se expandíssemos o tempo da Desformação para dois turnos, com o intuito
de trabalharmos mais aspectos teóricos e práticos. Dessa forma, passamos a realizar das 10h
às 18h, cobrando um valor específico, por conta do almoço, para aqueles que tiverem a
disponibilidade de contribuir.
A Desformação se propõe a abordar diversos assuntos. Pode acontecer com
convidados externos, que possuem conhecimentos para contribuir com as reflexões que são
realizadas no território, ou também com conhecimentos que as Yas compartilham de suas
longas trajetórias de estudo e de experimentações acerca da mediunidade. O que me parece
importante ressaltar aqui é a dimensão prática e experimental desses momentos. Não são
estudos teóricos que caracterizam as Desformações, são sobretudo estudos práticos.
Em uma das primeiras Desformações que eu participei houve um trabalho, que narrei
em parte no capítulo anterior. Estávamos em pé, todas mulheres, algumas da irmandade e
outras de fora. Ys. nos conta uma história de uma criança que foi embruxada. O feitiço,
direcionado aos pais da criança, atingiu-a, pois as crianças são compreendidas como uma
espécie de “escudo energético” e por isso está mais vulnerável. É preciso, portanto,
desembruxar a criança. Algumas orientações são passadas sobre quem seria a ponte – na
ausência da criança, alguém cumpriria o papel de conexão com ela –, quem “daria o passe”
que emanaria energias à criança e aos demais envolvidos, e quem seriam as “doutrinadoras”.
Os demais seriam médiuns, canais dessas energias ou seres que a estavam embruxando ou de
entidades que poderiam contribuir para o processo. Éramos todas mulheres no local. De olhos
cerrados e concentração constante, começamos a respirar longa e lentamente sob os comandos
de Ys., que começa a falar de modo bastante incisivo: “acessem a bruxa que há em vocês!
149

Sintam! Isso não é de vocês! Permitam que essas sensações tomem conta do seu corpo! Vocês
são bruxas! Filhas, netas de bruxas! Então sejam!”. Nesse momento, a partir desse chamado,
as incorporações começaram a ocorrer. Foi a primeira vez que ouvi o termo bruxa na
comunidade Morada da Paz.
Uma fala semelhante foi feita durante um trabalho ritual chamado Gira de Amotara.
Trata-se de um trabalho que foi orientado por Mãe Preta e desenvolvido por El., em
articulação com toda a comunidade. Esse trabalho foi direcionado para mulheres e acontecia
em um local na cidade de Porto Alegre, ou seja, fora do território. O nome Gira de Amotara
foi assim designado porque a orientação dada por Mãe Preta para El. foi de que as mulheres
“precisavam se encontrar e girar”, sem maiores orientações – a metodologia ficou a cargo de
El. O nome Amotara foi cunhado em homenagem aos povos indígenas. Foi um termo
aprendido por Ys. e Ol. quando participaram de um encontro de Agroecologia que aconteceu
na cidade de Arataca/BA. Foram as mulheres Tupinambá que lá ensinaram esse nome a elas.
Amotara, termo em Tupinambá, significa amor a todos.
Mas voltemos à questão anterior. Foi em um momento da Gira de Amotara que uma
fala semelhante foi produzida. Uma fala com o intuito de provocar algo, provocar o
surgimento, o “acesso à bruxa” que existe em cada uma das mulheres que ali estavam. “Todas
nós somos bruxas, aprendemos com nossas ancestrais a sermos bruxas”, disse Ys.. Bruxa
essa que, a todo momento, é vinculada à ancestralidade feminina de cada uma, “celtas,
druidas, africanas, indígenas”, como disse certa vez El. durante um trabalho das mulheres.
É fundamental entendermos os múltiplos sentidos que o conceito de ancestralidade
carrega. Entende-se a relação estabelecida com as ascendências biológicas – mãe, vó, bisavó
–, assim como com os povos a partir dos quais elas descendem. Ancestralidade também tem
relação com os povos com os quais mantemos alguma conexão espiritual. Como já dito, assim
que entrei na comunidade, lembro-me de uma conversa que tive com El., que comentou que
as entidades haviam lhe dito que ela tinha uma relação muito forte e constante, por exemplo,
com os xamãs tibetanos, entre outros povos. Ancestralidade também carrega um sentido
muito mais amplo. Em uma Desformação, Ys. disse-nos que tudo aquilo que existiu e existe,
antes da nossa existência nesse planeta, é nosso ancestral. Usou como exemplo os raios de sol
que atravessavam a Casa Bio no momento de sua fala. Aqueles raios de sol, dizia ela, também
são nossos ancestrais, pois sem eles nossas mães, pais, avós, avôs, bisavós, e assim por
diante, não existiriam. Assim como as árvores, as matas, o ar e a terra são percebidos como
ancestrais.
Porém, essas noções de ancestralidade são acionadas em momentos muito diferentes,
de acordo com o que está sendo posto em questão no momento. Quando na presença de
150

coletivos negros, que são mobilizados pelas questões étnico-raciais, a ancestralidade acionada
será pautada nos povos africanos, dos quais as mais velhas descendem. Quando são trabalhos
realizados com mulheres, a ancestralidade acionada será a força feminina, dos mais diferentes
povos dos quais cada uma descende – descendência essa biológica e/ou espiritual. Já a
dimensão ecológica, na falta de um termo melhor, da ancestralidade, é invocada e
apresentada, sobretudo, nos trabalhos realizados de educação ambiental.
Acessar a “bruxa que nos habita”58 é ativar uma determinada noção de ancestralidade
como um mecanismo de fortalecimento e cura. Naquele contexto da Gira de Amotara, Ys.,
instigando-nos, com intensidade, a acessarmos a bruxa que nos habita, solta uma profunda e
alta gargalhada. Já não era mais Ys., era a Pomba-gira Elô. E foi assim, com graça, com força
e intensidade que conheci, pela primeira vez, a cigana Elô. Com ela, vieram também Pomba-
gira Rainha, manifestada em Ym., e a pomba-gira Cigana, manifestada em Ak..
Elô, Rainha, Dama da Noite, Mulambo, Cigana e Padilha – entidades que se
manifestam respectivamente em Ys., Ym., Yb., El., Ak. e Ik. – atuam conosco durante o
trabalho das mulheres. Elas ensinam, nas mais diversas situações, a importância do amor-
próprio, do empoderamento e autonomia das mulheres sobre seus corpos, ensinam sobre os
cuidados necessários referentes à sexualidade e atuam, muitas vezes, como conselheiras para
as relações conjugais. Sempre que estão presentes, ensinam às mulheres o poder de se usar um
rubro, um batom vermelho, e perfumar-se. Perfume e batom tornam-se não apenas elementos
cosméticos, mas elementos de poder, quando cuidadosamente preparados, que atuam no
fortalecimento dos corpos daquelas que usam.
O batom e o perfume, portanto, são elementos de poder, ou seja, objetos aos quais
conferimos, ritualisticamente, a capacidade de ação no mundo. Certa vez, em uma
Desformação, Ys. comentou algo que mexeu bastante comigo. Nenhum objeto com o qual ela
estava adornada – brincos, pulseiras, anéis – era usado sem uma intenção. Todo objeto,
portanto, é capaz de manifestar poder. A questão, contudo, é a intenção que conferimos a um
determinado objeto, como o preparamos, e o modo como o utilizamos. A mim mesma, antes
de retornar ao Rio de Janeiro para a escrita da tese, foi carinhosamente orientado pelas Yas e

58Recentemente, tenho ouvido Ys. elaborar melhor uma noção de que há bruxas e feiticeiras. Nem todas as
pessoas são bruxas, algumas seriam feiticeiras. Intrigadas, eu e algumas irmãs perguntamos qual seria a
diferença entre esses termos. Ys. nos explicou que as feiticeiras e os magos são aquelas pessoas capazes de
manipular os elementos, tais como o fogo, a terra, a água e o ar – e, claro, os seres que habitam cada um desses
elementos, que são respectivamente as “salamandras”, os “duendes”, as “sereias” e as “sílfides”. Precisam dos
elementos para realizar sua magia. As bruxas, entretanto, atuam sem precisar da manipulação desses elementos
porque “elas são esses elementos”. São capazes de transformar-se nesses próprios elementos com o intuito de
produzir algo. “Todas as pessoas da irmandade são bruxas?”, alguém pergunta, e ela responde que não. Que
há ali feiticeiras e bruxas e é importante que trabalhem juntas em nome do “propósito”. “Quem é bruxa e
quem é feiticeira?”, questiona alguém em outro momento. Ys. fica aparentemente incomodada com a questão
e nos provoca a fazer o básico, dentro dos princípios da Morada: “busquem se conhecer!”.
151

Baba: “não se sinta só”. Para isso, em momentos de solidão – tão próprio do período da
escrita –, que eu me adornasse e me perfumasse, como um meio de me conectar às giras
alinhadas com a pomba-gira Elô.
Dentre esses elementos de poder, sem dúvida o que mais caracteriza a Irmandade da
Nação Muzunguê é a saia envelope – por elas somos reconhecidas pelas pessoas externas,
visto toda a ritualística da Irmandade durante os Muzunguês, quando, cada uma das
integrantes pede o agô da saia para as Yas, ou seja, a permissão para seu uso durante os
trabalhos. Pelo que contam, a saia é um elemento muito antigo utilizado pelas pessoas da
comunidade. Quando eu iniciei na Irmandade, quem possuía saias de trabalho, como são
denominadas as saias ritualisticamente preparadas, eram as mais velhas. Com o passar do
tempo, como dizem, de acordo com o merecimento, cada integrante da irmandade foi
recebendo a orientação para ter sua própria saia de trabalho, incluindo os homens que, pelo
que lembro, até então não trabalhavam com esse elemento. As crianças também têm as suas
saias, meninas e meninos, e são ensinadas desde pequenas a utilizá-las. São saias que, muitas
vezes, pessoas da assistência que nos observam dentro do terreiro durante o Muzunguê,
comentam terem uma igual ou parecida. Mas, como Ys. comentou conosco certa vez, “nunca
é igual”. Não pela forma, nem pelas cores, é verdade, mas por aquilo que a saia comporta de
poder.
A saia é utilizada em todos os movimentos que a Morada realiza, mas também em
movimentos individuais de cada pessoa. É um objeto que produz pertencimento e vínculo
com a Irmandade, mas é singular de cada um – por isso, também é utilizada por aquelas
pessoas que saíram da comunidade. Age sobre o mundo quando utilizado, por exemplo, para
limpar e harmonizar ambientes, e age sobre os nossos próprios corpos quando o utilizamos.
Quem trouxe a saia como elemento de poder foi a pomba-gira Elô. E quando a trouxe,
ensinou às iniciadas como utilizá-la. Ela pode ser utilizada como saia, estabelecendo uma
conexão com a terra a partir do chakra básico. Segundo An., utilizada assim, ela tem a ver
com a “sensualidade do feminino”, mas também como uma “estratégia de guerra”. Elô
contou a ela, em um momento em que eu não estava presente, que no passado as mulheres
usavam a saia para esconder a adaga, ou seja, um meio de ocultar suas armas de guerra. Ela
pode ser utilizada sob os ombros, como um meio de proteção, um escudo. Pode ser utilizada
na cabeça, para proteger o ori e pode ser usada entrecruzada no corpo, como uma armadura.
A saia, assim como todos os elementos de poder, só possui sentido porque é utilizada.
Ela porta uma função. Em todo e qualquer movimento de desavença que acontece entre a
irmandade, a saia é acionada para limpar o ambiente, articulada com orações e comandos
dados, feitos em voz alta. É utilizada também para proteger as crianças, quando estão doentes
152

ou com qualquer forma de incômodo. Assim como os integrantes da Morada da Paz se


entendem como canais a serviço, os objetos de poder também estão a serviço e precisam de
comando para agir no mundo quando preparados e utilizados. Por isso, certa vez, El. disse-me
que precisávamos movimentar a saia para ativar as sílfides, seres que habitam o ar, e dar a elas
o comando necessário para aquilo que intencionamos fazer.
Os homens da comunidade também utilizam suas saias, normalmente amarradas como
armaduras. Porém, sempre as vestem como saias nos toques para as giras. Aliás, isso é um dos
aspectos interessantes da reflexão desenvolvida pelas mais velhas, quando ainda estavam no
Grupo Cosmos. Como me contaram, é comum ouvir, nos demais terreiros, que homens
heterossexuais não recebem pombas-giras, apenas os homossexuais. Ou seja, haveria uma
relação estreita entre a homossexualidade masculina e as pombas-giras. Sendo muitas
advindas de terreiros, tinham acesso a esses tabus, mas questionavam-se a respeito. Afinal, se
mulheres heterossexuais recebem Exus, porque homens heterossexuais não poderiam receber
Giras? Fato é que, segundo as mais velhas, todas as pessoas – homens e mulheres – são
médiuns e algumas são médiuns de incorporação. Ou seja, dão passagem para entidades,
independente se homens e mulheres. Todos, portanto, podem manifestar qualquer entidade
que queira fazer-se presente e que estabeleça com o canal alguma relação. E não há
diferenciações de gênero ou sexualidade nesse aspecto da incorporação. Tanto é que, na
Morada da Paz, fato que me chamou a atenção assim que entrei, tanto Or. quanto Bg. dão
passagem para as giras e Im., alabê da casa, certa vez narrou sua experiência de se “sentir
estranho” quando estava conduzindo um determinado toque de Gira. O que foi motivo de
risada, como o é em todas as ocasiões que alguém está se descobrindo em um processo de
incorporação.
Todos esses conhecimentos e práticas foram trazidos por pomba-gira Elô e é ela, assim
como outras giras que trabalham junto com ela, que orienta os trabalhos realizados com
mulheres na comunidade. Volta e meia Elô nos conta a sua história e comenta que, se antes
trabalhava com “troca”59 com o propósito de trazer um “par de calça” para alguma “rabo de
saia” que a procurasse, hoje já não trabalha dessa forma. Por isso, não realiza trabalhos para
trazer uma pessoa, ou fazer com que alguém encontre um namorado. Seu trabalho é no
sentido de fazer com que as mulheres que a procuram sintam-se bem como estão, de ensinar
as mulheres a cuidarem de si mesmas e a se amarem. Afinal, como ela mesmo nos disse em
um desses encontros, com seu espanhol sedutor, “não temos que procurar a felicidade fora,
mas precisamos saber encontrar a felicidade em nós”.

59Troca no sentido de realizar um “trabalho” requisitado por alguma consulente em troca de algum perfume,
rosas ou elementos do seu agrado.
153

O trabalho desenvolvido por Elô se dá em muitas escalas, e isso é importante ressaltar.


Das giras que se manifestam na Comunidade Morada da Paz é comum serem designadas
como “alinhadas com a pomba-gira Elô”. O alinhamento consiste em um trabalho que a
própria Elô tem realizado, de recuperação das Giras. Disseram-me, certa vez, que Elô adentra
os espaços “mais densos” para recuperar essas giras que realizam trabalhos por trocas
materiais e que “servem a todos os lados”. Dessa forma, as entidades permitidas de se
manifestarem na comunidade são aquelas “alinhadas com Elô”, que trabalham junto com ela.
Houve apenas uma vez, durante uma das chamadas de entidades que uma gira se manifestou
em Ak. pedindo por whisky, ao que duas pessoas da irmandade acudiram e argumentaram que
ali, naquele terreiro, se ela desejasse trabalhar haveria de ser sem o uso da bebida. Logo, pelo
que lembro, foi embora. Elô trabalha, portanto, na recuperação das mulheres não-humanas, as
Giras, e nos aconselhamentos e trabalhos com os corpos das humanas que procuram a
Morada. Mas também nos traz notícias e estabelece conexões com mulheres (humanas e não-
humanas) de longe, que precisam ser lembradas e fortalecidas.
Um exemplo disso também ocorreu durante a Gira de Amotara, quando Elô nos
questionou: “quantas de vocês sentiram-se sozinhas, solitárias, nos últimos dias?”. A
concordância silenciosa foi generalizada. Até que ela comentou: “essa solidão não é apenas
de vocês. O modo como ela se manifesta é a partir de lembranças da vida de cada uma, mas
a solidão que vocês sentiram é a solidão das muitas mulheres vítimas de violências e
injustiças espalhadas pelo mundo todo”. Comentou que por toda a América Latina há
tentativas de esterilização dos corpos das mulheres, medicinas que, sem o consentimento das
mulheres, as impedem de terem seus filhos. Comentou também sobre as mortes, as violências
e os abusos que estão sendo cometidos contra as travestis e transexuais, referindo-se a elas
como “mulher-macho”, em referência a um dos orins entoados na comunidade. Provocou-nos
a pensar sobre a solidão que nos acometia e a nos colocar em sintonia com essas mulheres,
para emanarmos energias capazes de fortalecer os seus corpos.
Sua fala contagiava-nos e engajava-nos em atos de cura. Disse-nos que era preciso que
nós nos mobilizássemos contra essas violências, que falássemos sobre isso onde quer que
estivéssemos. Pediu assim para Rb., uma amiga que estava a frente do Ocupa MinC em Porto
Alegre, que levantasse essa questão nas mobilizações que lá se seguiam. Pediu a mim, que
estava à frente da organização de um evento sobre pesquisa-militante, também em Porto
Alegre, que não deixasse de falar sobre essas violências de gênero na América Latina e no
mundo. Essa situação vivida com Elô explicita um movimento muito comum na comunidade.
A solidão, que facilmente poderia ser tratada de forma individual, foi coletivizada –
movimento que ocorre, a partir de outras composições, em diferentes encontros feministas.
154

Porém, mais do que isso, a solidão compartilhada foi propulsora de um trabalho espiritual
prático, que não cabe aqui relatar seus pormenores. Esse é o sentido do pôr-se a serviço que
tanto rege os trabalhos desenvolvidos na Morada da Paz. Afinal, ao conceber as mulheres que
ali estavam como canais, desvinculou-se a solidão como uma questão individual ou
constatação de uma opressão coletiva, somente. Transformou aquelas que ali estavam não em
‘vítimas’ da solidão, mas em canais capazes de transmigrar o sentimento de solidão em si, ao
conectar-se com a bruxa que habita cada uma, e com outras mulheres que ali não estavam,
mas que precisavam de auxílio.

Figura 9: Ocupação Mulheres Mirabal 2017

3.4 Anunciamento

Todo ano, no mês de junho, acontece um ritual aberto chamado Terreiro de Chão
Batido. É um rito que recebe pessoas externas, mas não é divulgado nas redes sociais. Como
já dito, ele ocorre uma semana após o Muzunguê de Exu e é onde “Exu passa para Xangô” –
ou seja, passa a regência do tempo para Xangô. Quando eu participei pela primeira vez do
Terreiro de Chão Batido, fui ensinada por El. e Ym. que esse rito tem por finalidade a
“celebração dos povos da terra”. A celebração, portanto, das sabedorias e resistências dos
155

povos negros e dos povos indígenas. Cada Terreiro possui um tema e, no ano de 2016, o tema
foi “O fortalecimento do Akaã”, conceito senegalês que significa “poder da resiliência e da
regeneração”, conforme nos disse Ys., aprendido por ela durante uma diligência que realizou
no Senegal60.
Estávamos na corrida para a arrumação do território, principalmente do descampado
central localizado entre a Casa Verde, casa de convivência, a Casa Flor, casa dos moradores, a
Casa Bio, onde acontecem alguns dos principais trabalhos, como as Desformações, e a
Geodésica, espaço destinado às atividades do Ponto de Cultura Omorodê e da Comkola.
Esperávamos as pessoas às 9hs, mas chegaram, em sua maioria às 10hs. Como de praxe,
passavam pela fogueira e faziam a trilha. Vieram pessoas de diferentes lugares, mas muitas já
frequentavam a Morada, em sua maioria mulheres. Quando já havia um bom número de
pessoas, começamos o ritual de abertura. A irmandade entrou para o redor da fogueira e os
demais ficaram do lado de fora. Entoamos, primeiramente, os orins de Seu Sete e de Mãe
Preta. Quem puxava os orins era Al. e todos nós acompanhávamos seus comandos. Enquanto
isso, Ys., El., Ym. e Egbomi Ik. desceram até o templo. Seguimos os cantos com um orin
dedicado à Exu Lonã, para abrir os trabalhos, até elas aparecerem novamente. Chegaram até
nós pela estrada que leva ao portão de entrada do território, jogando pipoca de costas. Eram as
pipocas de Omulu para trazer fartura e bonança. Assim que chegaram até a fogueira,
posicionaram-se em seus lugares e Al. começou a entoar orins para os exus e pomba-giras, e
logo Exu Caveira, manifestado em Ym., e pomba-gira Cigana, manifestada em Ak.,
apareceram. “Eles vêm para limpar”, ensinaram-me. Os trabalhos foram abertos.
Ys. deu as boas vindas a todas e todos e falou um pouco do tema norteador do Terreiro
de Chão Batido. Depois El. apresentou aos presentes a mais recente conquista da comunidade,
recebida durante o mês de maio daquele ano, que fazia da Morada da Paz um território
autodeclarado quilombola com certificação recebida pela Fundação Cultural Palmares. Após
um rápido momento de interação entre as pessoas, El. convidou os presentes para
participarem dos ipadês, rodas de conversa, que despertassem os seus interesses. Seriam
simultâneos, cada qual guiado por um Gba oya kan (como denominam o responsável pela sua
condução): o primeiro referente ao tambor e sua ancestralidade e guiado por Ogã Im.; o
segundo, referente à alimentação e ao plantio e guiado por Bg.; o terceiro denominado Rota
das Pombas-giras e guiado por Ym.; e, por fim, Ocupar mentes e corações, guiado por mim e
por O. T..

60Essa diligência, especialmente, foi fruto de um convite que a Morada da Paz recebeu para participar do GEN
África (Global Ecovillage Network). Foram representando a Casa Brasil (Conselho de Assentamentos
Sustentáveis das Américas).
156

Ao finalizarmos os ipadês, An. iniciou uma ciranda e nos organizamos em roda, no


descampado central da comunidade. Os visitantes ficaram em uma roda mais ampla e a
irmandade organizou-se em uma roda menor. O Amalá, comida dedicada à Xangô, havia sido
preparado enquanto estávamos nos ipadês e foi trazido, naquele momento, por Egbomi Ik., Al.
e Yb.. Como não se consome carne no território, tal como esse prato específico é preparado
nas casas de Batuque, ali o Amalá é preparado com soja. Havia sido previamente combinado,
pois antes de todo ritual aberto há combinações sobre o seu desenvolvimento, de que Al. traria
o amalá e, assim que entrasse na roda, entoaria um orin específico para o povo de Exu.
Ficamos todos na expectativa, mas Al. não iniciava o rezo até que Ys. decidiu “puxar o
ponto”. Al. comentou, posteriormente, que não via coisa alguma, apenas escutava o que
estava acontecendo, mas não conseguia lembrar do orin a ser cantado. Eis que, naquele
momento em que Ys. inicia o orin, Al. incorpora Xangô que dança com o Amalá sob a
espalda, próximo à nuca. “Xangô já estava na terra desde o preparo do Amalá”, comentou
mais tarde Ys.. Logo depois, demos início ao Sopro de Xangô.
O Sopro é um movimento que acontece com certa recorrência nos rituais abertos da
comunidade e é dedicado especialmente aos Orixás de frente, a saber, Ogum, Iansã e Xangô.
As pessoas que participam do sopro são designadas por Ys. e, na maior parte dos casos são
pessoas que possuem alguma relação com o Orixá, alguma cruza, como se costuma dizer. No
dia do terreiro de chão batido, o orin entoado foi aquele designado em todos os sopros de
Xangô, o “Samsa Krumakra”. Assim que o ritmo foi acelerando, os Xangôs começaram a se
manifestar. O primeiro orin a ser entoado depois do sopro foi o de Xangô Agodô, orixá que se
manifesta em Ys. e que já estava na Terra. O ritual teve seu seguimento. Pg., filho do falecido
Mestre Borel, que era “filho de Xangô Agodô”, foi convidado para tocar junto com os alabês
da casa e entoar o canto para o Xangô de seu pai. Xangô dançava. Quando passaram a entoar
os demais orins, para as entidades que Ak. chama de “Xangôs caboclos”, cada pessoa presente
se dirigia, de forma coordenada, até o amalá, depositava uma moeda e fazia seus
agradecimentos e pedidos. Assim que o rito terminou, foi ofertada uma pequena porção de
Amalá para cada pessoa, como uma forma de distribuição de axé, que devia ser comida com a
mão e em pé.
Já era meio da tarde, quase dezesseis horas quando, então, quatro grupos foram
divididos. O primeiro de homens, o segundo de mulheres mais novas, o terceiro de mulheres
mais velhas e o quarto de crianças. Foi solicitado que cada um trouxesse uma colher. Cada
grupo ficou ao redor de um amontoado improvisado de tijolos, onde seria colocada uma
grande bacia de alumínio com arroz e legumes picantes. Explicaram o que aconteceria. Trata-
se de um ritual vivido por Ys. no Senegal e que ela resolveu incorporar no Terreiro de Chão
157

Batido. Faz menção ao compartilhamento do alimento, comer em “comum unidade”. Logo


depois de comermos, como de costume nos eventos da Morada, cada um dirigiu-se à cozinha
para lavar o seu prato no que chamam lavagem ecológica – onde existem três bacias com
água, a primeira para tirar os resíduos, a segunda para passar a esponja e a terceira para
enxaguar. Essa técnica permite que menos água seja desperdiçada. O dia finalizou com sorteio
de algumas rifas vendidas, cujo prêmio eram produtos desenvolvidos pela CoMPaz, como um
meio de angariar fundos para a ComKola. Logo, Egbomi Ik. declamou um poema chamado
“quero ser tambor” e, por fim, as crianças da comunidade, que na época desenvolviam um
projeto chamado Maracatu de Pijama, sob a regência de Im., apresentaram-se. Enquanto isso,
os convidados já se dirigiam para seus carros. Era final da tarde.
No dia seguinte, como é comum em todas as atividades da comunidade, fizemos um
ipadê de avaliação. Todos falaram de suas impressões e sensações, mas o que interessa para
esse texto foram, principalmente, as falas de Ym. e El.. Ym. comentou sobre o andamento do
ipadê que guiou, chamado “Rota das pombas-giras”. Esse ipadê contou com a participação
especial de J., uma amiga da comunidade, militante feminista de um partido político,
moradora da cidade de Alvorada – localizada na região metropolitana de Porto Alegre – e que
esteve presente nas manifestações ocorridas em Brasília contra o golpe parlamentar, que
consistiu na retirada da presidenta Dilma Rouseff, do PT, de seu cargo e passar, portanto, a
função de presidente ao seu vice, Michel Temer, do PMDB. A partir dos relatos ouvidos
durante aquele ipadê, comentou conosco que sentia que Xangô era uma energia vinculada às
mulheres. A partir da sua experiência de vida e sua trajetória, havia visto só mulheres
incorporarem essa entidade, ou melhor, a maior parte. “Parece que essa força está nas
mulheres”. “Só vi um Xangô gritar no terreiro, que era do Mestre Chico 61!”. Dizia que essa
força da verdade e da justiça, segundo ela, parecia ser uma força profundamente feminina, o
que atenta novamente para a complexidade das forças do feminino e do masculino no panteão
africano.
Logo a palavra passou para El.. Ela comentou um pouco mais sobre a experiência que
teve no ipadê Rota das pomba-giras e sobre como pensava a Morada nesse contexto. El.
retomou a narrativa de J. e a expôs para todos nós, num comparativo com as práticas
desenvolvidas pela Morada da Paz. Segundo J., houve um momento em que ela estava em
cima do carro de som puxando a mobilização. Quando a polícia veio para atacar, todos os
homens presentes fugiram e deixaram as mulheres, os indígenas e os quilombolas na linha de
frente. El. olha para a Comunidade e nota que são exatamente essas forças que estão sendo

61Nascido em Pelotas, Mestre Chico é mestre Griô e músico. Tem atuado em trabalho com as comunidades
quilombolas. Estabeleceu vínculos com a Comunidade Morada da Paz durante o Terreiro de Chão Batido de
2012, onde transmitiu seus conhecimentos para a feitura do Amalá de Xangô.
158

mobilizadas ali. A maioria mulher, grande parte negra, e com muita participação das entidades
indígenas. Nesse momento, Ys. complementa dizendo que há também mulheres
“afroindígenas” na comunidade, como é o seu caso e de Mj..
El. continua elaborando os paralelos entre a ação da Morada da Paz e o relato de J.. J.
participou da tentativa de ocupação do gabinete da presidência durante a manifestação, e
narrou seus sentimentos de medo e solidão quando os policiais adentraram, agredindo-a com
chutes, spray de pimenta e outros aparatos repressivos. El. comentou, então, que o relato de J.
tecia muitos paralelos com as lutas travadas no Território. Diz que a Morada não está lá na
linha de frente, junto com os militantes, pois a Morada não se propõe a isso. Como diz Mãe
Preta, “a Morada não é do enfrentamento, é do anunciamento”, pois anuncia outro mundo
possível. Contudo, faz um trabalho semelhante com os trabalhos de transmigração, onde se
vê e se lida com muitos “seres e energias densas”, tanto quanto quem está na linha de frente
enfrentando o aparato policial. E complementou: “que bom que podemos ser um portal de
acolhimento para essas militantes que fazem a frente dos movimentos”. A Morada, nesse
sentido, não é do enfrentamento, mas exerce o papel de um “espaço de cura”. Recebe essas
militantes e auxilia na “reconstrução de seus corpos espirituais”.

3.4.1 Tempo de guerra

Em março de 2016 a comunidade se preparava para o Ano Novo Solar. Trata-se de um


“ritual aberto” em comemoração do início de um novo ciclo anual. Por “ritual aberto”,
entende-se os ritos que pessoas que não fazem parte da irmandade podem comparecer, em
contraste com os “rituais fechados”, que podem ser ritos específicos para as moradoras e
moradores da comunidade ou ritos que envolvam tanto as moradoras e moradores quanto as
demoradoras e demoradores. Dentre esses rituais abertos, há aqueles que são divulgados nos
meios virtuais e outros que circulam apenas de boca a boca. Nesse caso, o ritual foi divulgado
pelos meios virtuais, incluindo blog, facebook, e-mails e whatsapp.
Como já dito, a data celebrada de início de Ano não segue os padrões do calendário
gregoriano. Segundo dizem, pautam-se pelo movimento dos astros: é o início do equinócio de
outono. Fato é que, dentro de intensas pesquisas que vêm realizando ao longo do tempo, as
Yas e Baba perceberam, e assim me disseram, que muitos dos povos ditos tradicionais,
portanto não-brancos e não-ocidentais, comemoram o novo ano próximo ao mês de março, e
não em dezembro. Os chineses e os indianos foram utilizados como exemplos.
A comemoração de 2016 teve uma importância singular. Foi um marco na minha vida,
sem dúvida, mas um marco no tempo ritual da Morada da Paz. Isso porque no dia dessa
comemoração realizou-se, também, a apresentação aberta das Geledés, máscaras produzidas e
159

utilizadas pelos Orixás. Há quatro anos estavam se preparando para a execução desse rito que
teve sua primeira manifestação no ano de 2016, ano bissexto, lembraram-me. Esse rito, de
origem iorubá, dizem-nos, é desempenhado só por mulheres e se propõe ao culto da força da
ancestralidade feminina. Quem trouxe esse rito aos cuidados da comunidade foi a Yabá
ancestral Mãe Preta, e o motivo de tê-lo recuperado é porque o mundo entraria em épocas
muito difíceis, “muito densas”, e seria necessário o “poder das guerreiras” e a “força da
unidade” para enfrentar esses novos ciclos.
Se tem algo que tenho aprendido com as mais velhas da comunidade, é que todo ritual
é permeado de perigo, pois invoca-se e provoca-se algo no mundo e todo cuidado é pouco
para que os efeitos disso não saiam dos comandos dados. Quando se recupera um novo rito, o
cuidado ainda é maior. Afinal, é um novo rito para aquelas pessoas que ali o desenvolvem e
participam, desafiador para essas que se propuseram a sustentar a força ali provocada. Afinal,
trata-se de um antigo rito recuperado, mas um novo rito desempenhado. A força está por ser
um rito ancestral e o perigo está na sua nova materialização, na sua condução. Por conta dos
perigos que envolvem qualquer ritualística, é importante lembrar que o tempo de sua
maturação e execução é muito anterior a sua materialização. Houve todo um trabalho intenso
das Yas e Egbomis para a feitura do Rito das Geledés, ritual das máscaras. Máscaras essas que
foram produzidas por mãos amigas da comunidade.
Quem faz as máscaras importa tanto quanto quem as usará ou qual será sua finalidade.
No caso das Geledés, era importante que fossem produzidas e confeccionadas pelas mãos de
uma mulher, disse certa vez Ys. em um ipadê. Mas também não seria de qualquer mulher
artista. Foi orientado por Mãe Preta que fossem feitas por uma pessoa específica. A pessoa
designada para essa função foi M., companheira de S., moçambicano, recém-doutor em
Antropologia pela UFRGS, que vive há algum tempo no Brasil, ambos muito próximos da
Morada da Paz. Assim como foi orientado por Mãe Preta quem faria as máscaras, também foi
orientado quais pessoas da Irmandade passariam pelo rito das Geledés e doariam seus cabelos
para a feitura das máscaras. E assim foi feito.
Seis mulheres da comunidade, todas mulheres negras, passaram pelo rito. Um rito de
fortalecimento da guerra que não implicou apenas o ofertório dos cabelos para a confecção
das máscaras, mas uma série de ritualísticas a serem seguidas a partir de então. Ou seja, ele
marcou um novo tempo na Morada da Paz. A partir desse tempo, os processos de iniciação na
Nação Muzunguê seguiriam uma forma específica de ritualística. Qualquer pessoa que
adentrasse também teria seus cabelos cortados e, então, plantados junto a uma árvore. As
orientações ritualísticas dadas àquelas que fizeram o Rito das Geledés, incluindo tabus
alimentares e orientações comportamentais e de vestimenta, seriam também dadas às pessoas
160

que se iniciassem na Irmandade da Nação Muzunguê. E naquele ano de 2016, quando havia a
primeira manifestação aberta das Geledés durante o Ano Novo Solar, com os Orixás de Frente
dançando com suas máscaras, eu me encontrava em retiro de iniciação. Fui a primeira desse
novo ciclo ritual e, depois de mim, outras mulheres também passaram pela iniciação.
O próximo Rito das Geledés acontecerá, segundo dizem, no próximo ano bissexto,
mas as máscaras produzidas nesse ciclo ritual continuarão a ser apresentadas no processo de
ocupação dos Orixás durante as comemorações do novo Ano. No Ano Novo Solar de 2017 eu
estava presente na celebração. Foi solicitado às pessoas externas que viessem de roupas claras
ou brancas e que trouxessem velas e alimentos para compartilhar. Após a recepção dos
visitantes, as Yas pediram que a irmandade inteira se encontrasse, então, em círculo, na área
central do território, um descampado que existe entre as casas de circulação. Algumas das Yas
e Egbomis foram convidadas por Ys. a fazerem um círculo interno, de mãos dadas. A
atmosfera estava permeada por uma espécie de tensão ritualística. Algo aconteceria e toda
atenção seria necessária. Os tambores saúdam Xangô e um orin tem seu início. Al. entoa, Im.,
Ay. e Bl. rufam os tambores – rum, rumpi e lé, respectivamente. O sopro de Emi, ou “sopro
da vida”, tem seu início entre aquelas que se encontram de mãos dadas – um ritual que não
deixa de guardar algumas semelhanças com a “Balança de Xangô” realizada no Batuque
gaúcho, ainda que não sejam a mesma coisa.
A Balança de Xangô, também conhecida como “roda-de-quatro-pé”, foi descrita pelo
clássico trabalho de Norton Correia. Trata-se de um ritual dentro de uma festa de Batuque,
quando se toca para o orixá Xangô. Nela, todos os prontos devem participar e cada um, em
roda, entrelaça seus dedos aos que estão ao seu lado, pois a balança não pode se romper.
Chama-se balança, segundo os informantes de Correa (1998, p. 193), “porque ela balança para
frente e para trás”. Argumenta-se que a balança não pode se romper pois seu rompimento
indicaria a morte de alguém da casa. É o momento ritual em que a maior parte dos Orixás que
não estavam manifestados, apresentam-se. Ritualmente são organizadas duas balanças, uma
para os orixás mais jovens e outra para os orixás velhos.
O Sopro de Emi, ainda que tenha proximidades com a balança de Xangô tem muitas
diferenças. O sopro é realizado apenas para os Orixás de Frente (Ogum, Iansã e Xangô) e
ocorre nas festividades, nos Muzunguês, do mês correspondente ao Orixá. No caso de Xangô,
acontece também no Terreiro de Chão Batido. O sopro também é um ritual dentro de outro
ritual, onde algumas pessoas indicadas por Ys. apresentam-se no centro da roda formada por
toda a irmandade e entrelaçam suas mãos. A informação dada é que as mãos também não
podem se soltar. Diferente da balança, os médiuns que compõem o sopro são, normalmente,
161

aqueles que possuem alguma cruza com o Orixá em questão e que podem vir a ser
“ocupados” pelo Santo. Ou seja, num Sopro de Xangô, as médiuns manifestarão aquele Orixá.
Da mesma forma que a balança, o movimento também é feito para frente e para trás e
o ritmo e intensidade dos movimentos aumentam com o aumento da velocidade dos tambores.
Quando os Orixás apresentam-se na terra, é Ys. quem dá o comando para as mãos se soltarem
e as entidades poderem dançar. Quando questionei as mais velhas, em ipadê, sobre o porquê
de as mãos não poderem ser soltas, Ys. respondeu-me que não é porque alguém
necessariamente morrerá, mas se trata de perceber a potência das energias ali mobilizadas. O
Sopro de Emi, também conhecido como “o Sopro da vida” é um momento ritual em que uma
“fenda” é produzida, uma fenda de comunicação entre os mundos. É um espaço de muita
potência e, por isso mesmo, de muito perigo. As mãos entrelaçadas são para dar a sustentação
e o comando necessários àquela energia ali apresentada. Como se o círculo formado fosse o
espaço em que essa fenda é aberta.
Em uma dança circular de aproximação e distanciamento em torno do centro, onde
havia um pequeno caldeirão de ferro com fogo, dançavam com o orin “Samsa Krumakra”,
trazido por An. à comunidade e ofertado à Xangô. Os toques, assim como os corpos em
movimento, iniciaram em velocidade lenta e seguiram em um crescente de intensidade.
Aquelas que ficaram no círculo maior foram orientadas para dar a sustentação necessária ao
que acontecia ao centro. Os corpos em frenesi, dançavam em passos e movimentos acelerados
– o Santo em seu processo de ocupação –, o tambor e as vozes que evocavam a força de
Xangô estavam no ápice da sua força. Ys. orientou o momento em que o círculo pôde, enfim,
ser desfeito. Rapidamente os Orixás romperam a corrente em giros constantes e gritos
potentes. Eram gritos de guerra. Exu, Xangô, Oyá, Ogum e Omulu nos presentearam com
suas manifestações e seus movimentos ritmados. Logo algumas Egbomis que se encontravam
na sustentação do rito conduziram os Orixás para a Casa Bio, enquanto os demais seguiram
entoando os orins. Quando retornaram, todos os Orixás trajavam belas máscaras bordadas
com búzios e com longos cabelos costurados, cabelos estes ofertados por aquelas que
participaram do Rito das Geledés em 2016. Os santos dançavam mascarados. Giravam e
distribuíam seu axé para todos os presentes. Os corpos ocupados eram de mulheres negras,
fundadoras da Comunidade Morada da Paz, e a força invocada naquele ritual era a força da
ancestralidade feminina. É tempo de guerra.

3.5 O poder da criação


162

Foi em uma quinta-feira. As chamadas de entidades aconteciam todas as quintas-feiras


e as sextas-feiras vésperas de Muzunguê. Funcionam como um importante espaço de
aprendizagem para aqueles que estão chegando. É onde aprendemos a nos relacionar com os
Orixás e demais entidades – tanto aquelas que incorporam em outros médiuns, quanto aquelas
que se aproximam e nos querem como canais –, assim como aprendemos a manipular os
elementos ritualísticos do Templo, local onde ocorrem as chamadas e os Muzunguês. É o
momento também em que temos as mais longas conversas com Mãe Preta, manifestada em
Ys..
Sempre que Mãe Preta se apresenta o ambiente fica descontraído, com muita risada e
divertimento. Ela se manifesta no corpo de Ys., mas contam as mais velhas que durante o
grupo Cosmos havia outra médium que também “dava passagem” para Mãe Preta. Toda vez
que ela chega, com seus trejeitos característicos, entoamos o seu canto, a vemos dançar no
meio do terreiro e sentar em seu congá. Ol. é a principal cambona de Mãe Preta, mas volta e
meia ela pede para outras pessoas desempenharem esse papel. Com seu cachimbo (chamado
por ela também de xanduca) em mãos, feito por Ay. durante sua estadia com os mbyá-guarani,
pita seu fumo enquanto tece suas reflexões e orientações para a comunidade.
A chegada de Mãe Preta entre nós é sempre motivo de alegria e carinho. As consultas
são variadas, caso alguém da irmandade tenha interesse ou necessidade de conversar com
Mãe Preta, a preta-velha não tarda em saudar os consulentes, seus filhos, com abraços
carinhosos, fumaça de seu cachimbo por entre seus corpos e, como despedida, fraternais
palavras: “forças e proteção pro seu caminho”. Quando são orientações de encaminhamentos
ritualísticos ou de funcionamento da comunidade, as orientações são feitas para as Yas, que
portam sempre consigo folhas brancas e canetas para anotar qualquer demanda ou pedido
realizado. Quando são informações e orientações para toda a irmandade, é comum pedir para
que todos nós nos sentemos no chão, que no Templo é coberto de serragem, para ouvir seus
ensinamentos.
Foi em um desses momentos de orientação coletiva que se desenvolveu essa conversa
com Mãe Preta. Ela nos contou, entre risadas e pitos de seu cachimbo, que Adão e Eva,
personagens da Bíblia, existiram de verdade. “Alguns dizem que não existiram, outros dizem
que existiram… Mas existiram sim. Só que não é a história que contam por aí!”. Adão e Eva
viviam juntos no paraíso, foram criados juntos, “ela não saiu da costela do Adão, não!”.
Conta então que Eva e Adão se aproximam de uma árvore frondosa, carregada de frutas. Bem
disseram para ela não comer, mas ela resolveu arriscar. Quando Eva come a maçã ela
descobre algo incrível, que nunca alguém havia apresentado a ela. Ela descobre o “poder da
criação”, de “desafiar o dado das coisas e de criar o novo”. Quando Eva come a maçã,
163

segundo Mãe Preta, ela cria outro mundo possível. “Dizem que é pecado, mas não é pecado
não! Não sei de onde que tiraram esse negócio de pecado… Ainda dizem que ela foi expulsa
do paraíso, mas ela não foi expulsa, não! Ela quem resolveu sair!”, diz entre gargalhadas. Foi
só depois de Eva morder a maçã e descobrir o “poder da criação” que Adão resolveu segui-
la. A fala de Mãe Preta foi no sentido de reforçar e renovar a todas e todos ali presentes em
“seguirem o propósito” traçado coletivamente na Morada da Paz e de não aceitarem o “dado
das coisas” do mundo.
Tal concepção desenvolvida por Mãe Preta remeteu-me a duas outras situações
vivenciadas. A primeira tem a ver com os processos de gestação. A figura da mãe constitui
uma das imagens sobre a Morada da Paz produzida pelas Yas. Ym. volta e meia comentava
que “a Morada é uma mulher vaidosa, que gosta de ser arrumada pelos seus filhos” e ouvi
algumas vezes Ys. comentar que “a Morada está grávida, grávida de outro mundo”. A
Morada emerge enquanto um território físico, mas também enquanto uma entidade singular62
que é mulher e mãe – daqueles que lá moram e que cuidam dela, mas também de outro
mundo. A gestação aparece como uma das manifestações de criação do novo.
Além disso, a Morada da Paz coloca-se como um espaço de acolhimento a muitas
gestantes e aos “espíritos que virão ao mundo”. Bm., uma das antigas egbomis, é doula e
assim que começou a participar da Morada criou junto com as mais velhas algumas rodas de
conversa sobre maternidade e gestação. Aliás, muitas das mulheres que Bm. acompanhava
frequentavam com constância os eventos da Morada. My., também antiga iaô, é parteira e
passou a frequentar a Morada junto com outras parteiras que a convidaram. Há uma rede de
mulheres que trabalham com essas questões que frequentam a Morada. Além disso, muitas
das irmãs que são mães, quando grávidas, receberam mensagens de seus próprios filhos, que
ainda estavam na barriga, através de trabalhos espirituais desenvolvidos pelas Yas. Esses seres
contaram quem são, de onde vêm e demais orientações dadas para seus pais para que tenham,
quando nascidos, um desenvolvimento pleno de acordo com seus “propósitos espirituais”.
Cada gestação é vista como uma possibilidade, percebendo a vida gerada como uma
oportunidade de ação e engajamento na transformação de si e do mundo – tanto daquele que
nasce, quanto daquelas e daqueles que geram e cuidam.
A segunda situação ocorreu durante outra chamada, em momento em que Seu Sete,
manifestado no corpo de Ys., e Ogum Beira Mar, manifestado no corpo de Ym., realizaram
um “trabalho forte”. Assim como Mãe Preta apresenta-se fumando seu cachimbo, seu Sete,
quando aparece, pede logo sua faca. Só algumas pessoas têm a permissão para dar a ele seu

62Parece que há uma relação semelhante entre os indígenas AwajunWiupi, quando referem-se ao território como
um irmão, como aponta Marisol de la Cadena (2018). Território é acionado, portanto, enquanto um pedaço de
terra, aos olhos do Estado, mas também enquanto uma entidade viva.
164

elemento. De olhos semi-abertos, rosto fechado e poucas palavras, dança e ri apontando sua
faca para todos os lados. Disseram-me certa vez que assim “ele corta o mau”, “corta as
energias densas”. Quem conhece Seu Sete sente muito respeito e um tanto de temor. Eu
mesma, quando ele se apresenta, fico bastante apreensiva, o que é sempre motivo de risada
nos momentos de descontração, principalmente pelas Yas, que provocam as mais novas entre
risos: “Ué, mas tu tem medo do teu pai?”.
Logo depois que terminaram, Mãe Preta se manifestou em Ys.. Não é incomum que
Mãe Preta apareça logo depois de algum trabalho pesado, pois, como me explicaram certa
vez, sua presença no corpo da Ys. auxilia o processo de transição do transe, de uma entidade
que mexe “com energias densas” para o “realinhamento dos corpos” da própria médium. Mãe
Preta cuida de toda a irmandade, e cuida especialmente da saúde e do corpo de seu principal
canal, Ys.. Mas se manifestou também para nos explicar o que havia acontecido. O trabalho
realizado foi direcionado aos omadês, às crianças da comunidade. Ali, Mãe Preta narrou sobre
a diferença existente entre homens e mulheres e, portanto, entre as duas “levas” de crianças na
comunidade. A primeira “leva” são crianças que variam entre 7 a 15 anos e são todas
mulheres, com exceção de Ay.. A segunda leva, com idade até quatro anos, é marcadamente
masculina, com exceção de Ad., filha de uma antiga iaô demoradora. Fato é que essa
constatação de duas “levas”, uma de mulheres e outra de homens, chama a atenção da
irmandade como um todo.
Disse-nos que o trabalho que havia sido realizado tinha por intuito cortar as energias
negativas que chegavam até os progenitores, aos pais biológicos, e que afetavam as crianças
menores. Foi preciso, portanto, “fazer um trabalho” sobre os pais para que essas energias não
alcançassem as crianças. Isso porque essas crianças específicas, que são majoritariamente
meninos, tem maior dependência dos progenitores do que as meninas, que vieram na primeira
“leva”. “As mulheres vêm prontas, são mais firmes nas suas caminhadas”, por isso vieram
primeiro, para “abrir os caminhos”. Em contrapartida, os meninos não vêm prontos, “não são
tão firmes em seus propósitos”, são mais suscetíveis às “energias densas” e por isso
demandam maior atenção. Em outro momento, El. retomou a fala de Mãe Preta. Disse-nos
que existem diferentes relações de dependência entre os progenitores e as filhas e os filhos.
Ainda que as primeiras venham “mais firmes em seus propósitos” do que os segundos, todos
os seres estão sujeitos a relações com as ditas “energias densas”. A relação varia não em
natureza, mas em intensidade.

*
165

Se, por acaso, tomássemos única e exclusivamente a questão da gestação biológica


para análise, poderíamos cair em uma certa concepção de feminino pautada única e
exclusivamente nas capacidades reprodutivas de um sexo, num essencialismo do feminino
que consiste menos no que a Morada da Paz parece estar nos dizendo e mais num modo de
conceptualização produzido pelas sociedades capitalistas ocidentais. O corpo físico e as suas
capacidades reprodutivas aparecem como mais uma, porém não a única e nem exclusiva
forma a partir da qual a criação pode ocorrer. E é importante destacar isso, parece-me, para
opormos à perspectiva capitalista sob a qual as feministas marxistas têm denunciado através
de uma análise histórica da opressão de gênero.
Federici (2017) nos apresenta como os papéis de gênero e a invisibilidade do trabalho
reprodutivo das mulheres foram criados com o desenvolvimento do capitalismo na Europa.
Apresenta-nos dados valiosos sobre como a caça às bruxas foi um evento fundamental na
emergência do capitalismo e que, no entanto, foi pouco – ou nada – levado em consideração
pelas análises marxistas que, por sua vez, contribuíram para a invisibilidade do trabalho
reprodutivo em detrimento do trabalho produtivo – aquele que é considerado e pago – que foi
delegado majoritariamente aos homens. Segundo ela, as mulheres não são invisíveis frente ao
capital, pelo contrário, o trabalho que desempenham é fundante de todo o sistema e é
sobretudo sua invisibilidade produzida pelo capital que o sustenta.
Federici nos mostra que a caça às bruxas, como um evento histórico, produziu uma
série de violências às mulheres e confinamentos sociais a partir da separação do trabalho
produtivo e reprodutivo, com a expropriação das terras campesinas comunais e o surgimento
do trabalhador “livre”. Primeiro, sair das terras comunais implicava adotar uma vida de
trabalhadora migrante que, muitas vezes, expunham-nas a uma série de violências masculinas,
dificuldades de mobilidade para aquelas que tinham filhos ou impossibilidade de sustento em
um contexto histórico onde emergiam como confinadas ao trabalho reprodutivo não-pago.
Muitas dessas mulheres, principalmente as mais velhas, foram deixadas à mendicância pelas
ruas. Essas, diz-nos a autora, eram as mais acusadas de bruxaria. Outras, as mais novas, eram
incorporadas no mercado através da prostituição. Era sobretudo o salário masculino que
comandava o trabalho das mulheres, dando início a uma outra constituição familiar, base do
capitalismo, a família nuclear63, que não apenas assegurava a reprodução da força de trabalho
como também a transmissão da propriedade.
Além disso, houve uma série de medidas de disciplinamento dos corpos. Por exemplo,
a destituição de saberes compartilhados entre mulheres sobre métodos contraceptivos que
63“Como resultado, o cercamento físico operado pela privatização da terra e o cercamento das terras comunais
foram ampliados por meio de um processo de cercamento social: a reprodução dos trabalhadores passou do
campo aberto para o lar, da comunidade para a família, do espaço público (a terra comunal, a Igreja) para o
privado.” (FEDERICI, 2017, p. 163)
166

passaram a ser regulados pelo Estado, através da criminalização e assistencialismos (o que


gerava a necessidade de levantamento de dados sobre natalidade e mortalidade e, por fim,
maior controle social), pela Igreja, através do julgamento moral e perseguição, e pela ciência,
então emergente, na figura do médico como dotado de legitimidade na produção de verdades.
Segundo a autora, o Estado, a Igreja e a Ciência desempenharam papéis fundamentais para o
controle populacional – com a peste negra e suas consequências que se prolongaram por
séculos, por exemplo, isso se tornou uma questão fundamental – que, por sua vez, precisava
acompanhar o desenvolvimento do capitalismo. Não à toa Federici nos diz que o controle de
abortos, infanticídios e a contracepção tornaram-se uma questão seríssima de Estado, sujeita à
pesadas penas.
O texto de Federici é riquíssimo em detalhes sobre como ocorreu o disciplinamento
dos corpos das mulheres através de diferentes percepções de feminilidade – artefatos de
controle operantes, em suas análises, ao longo dos séculos XV-XVIII. Se num primeiro
momento foi necessário impor uma imagem das mulheres através da demonização e
hostilidade64, após a bem-sucedida caça às bruxas – que destruiu uma série de relações
coletivas femininas –, criou-se outra: mulheres como seres assexuados, obedientes, passivos,
destacando inclusive o instinto materno feminino como algo a ser elogiado. A relação entre
mulher e maternidade passa, portanto, por todo um sistema de configuração relacionado à
reprodução de força de trabalho e à interdependência da mulher, enquanto esposa e filha, ao
homem.
A partir desses argumentos, a teoria feminista marxista produziu uma forte crítica a
essa estrutura de poder que subordina mulheres ao espaço privado e a um trabalho não-
remunerado, em que a condição de mulher nasce atrelada aos papéis de mãe, como máquina
reprodutiva, e esposa, oriundos de uma estrutura patriarcal, heteronormativa e burguesa
europeia. No início da minha relação com a Morada, a imagem de mãe acionada provocou-me
um certo estranhamento e receio de uma perpetuação de um imaginário que serve à
exploração das mulheres, o “instinto materno”, e demorei um tempo para perceber que seria
necessário romper com determinadas pré-noções estabelecidas se eu quisesse compreender de
que feminino falam.

64Segundo a autora: “Não é exagero dizer que as mulheres eram tratadas com a mesma hostilidade e com o
mesmo senso de distanciamento que se concedia aos ‘índios selvagens’ na literatura produzida depois da
Conquista. O paralelismo não é casual. Em ambos os casos, a depreciação literária e cultural estava a serviço
de um projeto de expropriação. Como veremos, a demonização dos povos indígenas americanos serviu para
justificar sua escravidão e o saque de seus recursos. Na Europa, o ataque contra as mulheres justificou a
apropriação de seu trabalho pelos homens e a criminalização de seu controle sobre a produção. O preço da
resistência era, sempre, o extermínio. Nenhuma das táticas empregadas contra as mulheres europeias e contra
os sujeitos coloniais poderia ter obtido êxito se não tivesse sido sustentada por uma campanha de terror. No
caso das mulheres europeias, foi a caça às bruxas que exerceu o papel principal na construção de sua nova
função social e na degradação de sua identidade social.” (FEDERICI, 2017, p. 203)
167

Comparativamente, acredito que podemos traçar duas principais diferenciações.


Primeiro, a não separação entre a divisão público e privado. O modo de organização da
comunidade não impõe uma separação entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo.
Mesmo que, num primeiro olhar, possamos perceber que há trabalhos que são mais
desenvolvidos pelos homens da comunidade e outros mais desenvolvidos por mulheres, essas
ações são constantemente subvertidas – homens cozinham e dão banho nas crianças tanto
quanto mulheres cortam lenha, cuidam dos animais e trabalham na horta. Ou, poderíamos
pensar, entre aqueles que não trabalham fora, em um emprego formal, e aqueles que
trabalham. Mas isso também não faz sentido, pois quem trabalha fora são mulheres, e não
homens, e o dinheiro que recebem é coletivizado com toda a comunidade.
Segundo, não existe uma relação consubstancial entre os papéis de mãe e de esposa. O
nascimento de uma criança não é reportado ao núcleo familiar, mas à espiritualidade. A mãe é
o receptáculo a partir do qual um ser poderá vir ao mundo e ser agente de transformação na
vida daqueles que o cercam e na sua própria. Lembro-me de Ym. contando que em um
determinado momento de sua vida Ys. disse que ela precisaria pensar em como seria sua vida
com uma filha, pois havia um ser querendo nascer através dela. Conta, entre risos, que na
época não queria ter filho algum e mal conseguia pensar nessa possibilidade. Depois de um
tempo, envolveu-se com uma pessoa que era próxima à comunidade e acabou engravidando
sem, contudo, planejar. Contou-me isso para dizer que há coisas que independem da nossa
vontade. Mas se isso ocorreu com ela, não é dado para a comunidade que ocorrerá com todas
as mulheres. A gestação enquanto processo biológico não é definidor do feminino ou de
mulheres.
É evidente que a figura do pai é importante, mas está longe de ter a centralidade tal
qual imposta pelo “patriarcado do salário”, como diz Federici. Não foram poucas vezes que
ouvi as Yas dizendo que há encontros que precisam acontecer para determinados seres virem
ao mundo, o que não significa que aquela relação perdurará – aliás, isso é o que menos
importa. A imagem de pai e de esposo, ou de mãe e de esposa, são totalmente dissociadas. E,
como Mãe Preta sempre diz, “para criar uma criança é preciso uma comunidade inteira”,
dizendo-nos em uma das chamadas de entidades que nos tempos atuais, onde há a
necessidade de maiores alianças por conta das reconfigurações do que é entendido por
família, a família nuclear já estaria falida. Ou seja, há um deslocamento feito aqui. O papel da
mãe é desvinculado do papel de esposa e da reprodução da força de trabalho.
Se trago esses pontos é para afirmar que os sentidos de feminino acionados (e
criticados) pelo feminismo materialista não são os mesmos do feminino acionado pela Morada
e, portanto, tenho minhas dúvidas se a crítica ao suposto essencialismo caberia aqui. Isso fica
168

mais evidente, acredito, nas diferentes situações aqui narradas sobre esse feminino enquanto
poder de criação. Primeiro na figura da Eva, reelaborando um mito cristão fundante de um
imaginário de hierarquização de homens e mulheres, onde a saída do paraíso é fruto de uma
transgressão desejada e não de expulsão e pecado; segundo, na figura da gestação, tanto em
relação à atenção que a Morada tem com mulheres gestantes quanto com o seu entendimento,
enquanto território, como uma mãe e gestante – a gestação apresenta-se, novamente, como um
princípio criativo de mundo; e, terceiro, na percepção das primeiras crianças da comunidade,
majoritariamente mulheres, que vieram para “abrir os caminhos”, ou seja, que desbravam,
junto com as adultas e adultos, o início dessa nova forma de vida, pois são “mais firmes nos
propósitos”. Sem localizarmos o entendimento da gestação em referência a essas outras
situações, perdemos a compreensão de que o feminino é percebido como poder da criação,
não um modo de controle sobre um trabalho reprodutivo não-remunerado ou como um sexo
específico. E, mesmo assim, a gestação é uma forma possível do feminino, sem ser por ela
definido.

3.5.1 A feminilização do mundo

Desde outubro de 2016 novas movimentações têm acontecido na Comunidade Morada


da Paz a partir da relação com a Faculdade de Educação (FACED) da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), que será melhor abordada nos próximos capítulos. Fato é
que, por orientação de Mãe Preta recebida por Ys., houve algumas mobilizações para a
construção, dentro da FACED, do Grupo de Pesquisa CoMPaz. Trata-se de um grupo
formado, majoritariamente, por integrantes da comunidade, com a participação de alguns
alunos de graduação e da professora V., do curso de Educação no Campo em que trabalha com
Educação e Mídias Digitais.
A primeira ação do grupo de pesquisa foi participar de um edital de Prorext (Pró-
Reitoria de Extensão) da Universidade para angariar alguma verba que possibilitasse a
construção e execução de um primeiro projeto de pesquisa. Receberam em início de julho de
2017 a notícia de que o projeto havia sido aprovado, com o título “Pedagogia do
Encantamento e Ekonomia do Afeto: cartografia subjetiva em território feminino kilombola”.
Para esse projeto, realizaram-se encontros quinzenais na FACED com o intuito de ler, discutir
e pensar coletivamente a sua construção. As pessoas da comunidade que participavam desse
grupo de pesquisa eram, a saber, Ys., Ym., Bg., Ik., An., Mj., O. T. e eu. Mas com a saída dos
demoradores da comunidade o grupo se reconfigurou.
Os objetos centrais do projeto serão conceitos criados e elaborados pela própria
comunidade, a saber, a pedagogia do encantamento e a ekonomia do afeto, que se em um
169

dado momento foram criados para nominar práticas já em curso na comunidade, agora
receberão maior atenção e reflexão conceitual. As reuniões do grupo de pesquisa acontecem
sempre na FACED, em alguma sala de aula que esteja vaga. A sua execução é tal qual os
ipadês desenvolvidos na comunidade. Fazemos uma roda, abrimos com o “canto da unidade”
e cada qual pede o seu “axé de fala e de escuta” – inclusive aqueles que não compõem a
Irmandade. Ao centro da roda é comum ter uma mesa com uma toalha e comidas que cada
pessoa traz para compartilhar com os demais. Foi nesse contexto que estávamos quando
iniciamos a leitura e reflexão do projeto ainda em elaboração. Precisávamos definir alguns
termos centrais, assim como organizar o cronograma – trazido por V. – e o orçamento –
organizado por OT. e Bg.. Infelizmente, naquele dia, as Yas e Baba não puderam comparecer
ao grupo de pesquisa. Todavia, enviaram suas sugestões pela internet.
Dentre tantas questões que surgiram nesse momento, e que deixo para desenvolver em
outra parte da tese, trago uma situação específica. V., então, nos perguntou: “Por que a
comunidade é feminina? O que caracteriza a comunidade como feminina?”. Ficamos um
tempo pensando sobre isso. A resposta mais rápida seria pautada na ideia de que, como OT.
havia dito naquele momento, a comunidade é formada majoritariamente por mulheres,
principalmente mulheres negras. Mas logo Mj. trouxe uma reflexão semelhante a uma fala
que ouvi de Ym. em outro momento, quando revisávamos a versão final desse mesmo projeto.
O comentário de Mj. era no sentido de que havia também homens na comunidade, e que ali
trabalhavam com a ideia da complementariedade entre homens e mulheres, assim como das
forças do feminino e do masculino. Logo Ik. recuperou a história da comunidade e o fato das
mulheres, que hoje são a maioria, serem aquelas “que ficaram”. Nesse mesmo contexto,
relembrei um fato que me aconteceu, em que Ik. estava presente, quando Ys. me apresentou
Bg. como o “homem mais feminino”, e comentei que talvez o feminino não tenha a ver com
gênero, necessariamente, concordando com a fala de Mj. sobre a importância das forças
feminina e masculina na constituição da comunidade.
Mas, afinal, como pensar o feminino? Foi então que Ik. fez a seguinte reflexão: “a
comunidade sempre foi uma força feminina, mesmo quando o número de homens era igual.
Sempre se pensou como fazer, como falar, como conviver com mais cuidado, mais afeto, com
mais flexibilidade”. A criação e existência da Comunidade Morada da Paz está estreitamente
vinculada a essas noções. Aliás, essas formam parte das estratégias elaboradas por elas para
viverem de forma radicalmente diferente às relações “insuportáveis” que encontravam no
mundo. O interessante de perceber aqui é que o “mais” acionado por Ik. denota, claro, que há
um “menos” e que diz respeito ao mundo “aí fora”, como ela designou, que é marcado pela
“inflexibilidade”, que caracteriza a força masculina – “um mundo de violência, de mortes, de
170

desrespeitos, de desigualdades, onde as pessoas mal se olham”, disse com pesar. “Mas tem
momentos que a energia masculina é importante pra comunidade”, lembrou Mj., “por
exemplo, quando se estabeleceram os princípios norteadores precisou de uma força mais
dura, mais inflexível”. Consideração com a qual todas concordaram, ainda percebendo que o
masculino acionado dentro da comunidade é diferente do masculino acionado “aí fora”, visto
que trabalha com a ideia de um equilíbrio com o feminino. O que me leva a crer que o
masculino também é múltiplo.
*
Optei por descrever quadros de acontecimentos onde emergem o feminino e o
masculino e as designações de homem e de mulher para demonstrar que elas não estão
separadas do cotidiano da comunidade. Ao contrário disso, permeiam todas as ações do dia a
dia, os ritos elaborados, as vidas gestadas, as reflexões de pesquisa desenvolvidas, as
elaborações de si como mulheres e como homens. Tanto o feminino quanto o masculino,
percebidos na Morada da Paz como forças, são fundamentais. A busca é, portanto, do
equilíbrio entre elas. Percebemos na descrição também como o feminino ao mesmo tempo
compõe com as diferenças sexuais e de gênero, mas não é reduzido a elas.
Se num primeiro momento o feminino e o masculino são caracterizados por
determinados atributos – como desbravar e cuidar –, é interessante perceber que essas
qualidades são embaralhadas de acordo com as situações vivenciadas. E se há relação entre a
mulher, enquanto gênero, e o feminino, enquanto força, esses termos também são
recombinados quando Mãe Preta nos diz que as mulheres vieram primeiro – em referência às
primeiras crianças da comunidade – para “abrir os caminhos”, características que, a princípio,
seriam masculinas. Ou, também, quando Xangô foi associado ao feminino. Penso, portanto,
que o feminino e o masculino são cortes relacionais estabelecidos em uma mesma linha de
continuidade, que variam conforme as situações vivenciadas e contextualmente acionadas.
Ou seja, não são tão evidentes e tão facilmente fixados em determinadas qualidades,
assim como não são tão evidentes e tão facilmente fixados em corpos – o que permite que Ys.
caracterize Bg. como o “homem feminino” e que Yb. desenvolva a reflexão de que ela, casada
com Bg., expressa a força masculina na relação. O que acredito que seja importante de
destacar é o fato de o feminino e o masculino só existirem quando em relação, em que as
características atribuídas a cada qual não são qualidades intrínsecas e estanques do que seria a
“essência” do feminino e do masculino, mas “imagens que possibilitam acessos”
(STARHAWK, 1988, p. 88). Nesse sentido, possibilitam diferenciações e ações no mundo65.
65O contexto a partir do qual Starhawk elabora sua reflexão é o neopaganismo norteamericano. Evidente que há
inúmeras diferenças entre suas percepções sobre tais forças e as desenvolvidas pela Morada da Paz, destaco
apenas uma, que me parece central: a primeira parte da ideia de invocação e a segunda dos processos de
incorporação. Mas o que me interessa aqui, sobretudo, é a atenção dada por Starhawk a essas forças: “As
171

Há um nomadismo do feminino e masculino que não se apreende em sistema de gênero


ou sexo e que percorre corpos, movimentos, ações. Penso que, talvez, as múltiplas imagens
por onde o feminino e o masculino se apresentam são formas, são códigos através dos quais a
Morada habilmente mobiliza forças, tal como o faz o artista plástico, nas palavras de Deleuze
e Guattari (1997b, p. 134):
Cada forma é como o código de um meio, e a passagem de uma forma a outra é uma
verdadeira transcodificação. Mesmo as estações são meios. Há aí duas operações
coexistentes, uma através da qual a forma se diferencia de acordo com distinções
binárias, outra através da qual as partes substanciais enfermadas, os meios ou
estações, entram numa ordem de sucessão que pode ser a mesma nos dois sentidos.
Mas, sob essas operações, o artista plástico arrisca uma aventura extrema, perigosa.
Ele ventila os meios, separa-os, harmoniza-os, regulamenta suas misturas, passa de
um a outro. O que ele afronta assim é o caos, as forças do caos, as forças de uma
matéria bruta indomada, às quais as Formas devem impor-se para fazer substâncias,
os Códigos, para fazer meios. Prodigiosa agilidade.

O rito das Geledés nos mostra que é tempo de guerra e que a Morada da Paz se
constitui como uma frente de batalha, onde o cuidado e a cura são as principais estratégias e
os objetos de poder são as principais ferramentas. Isso denota uma dimensão fundamental de
sua existência: atuar no cuidado e na cura é uma “escolha política”, concepção que recupero
de bell hooks (1990) em sua análise sobre o papel das mulheres afro-americanas no cuidado
com a casa e com sua família, nunca entendida em um sentido nuclear, mas em termos de
comunidade: a comunidade negra. A escolha política dessas mulheres, diz hooks, não é,
necessariamente, formulada discursiva ou ideologicamente. Mas, através dos muitos
exemplos que traz, mostra-nos que são escolhas feitas por essas mulheres durante os períodos
escravagista e pós-escravagista que prezavam pela manutenção da vida e do bem-estar da
comunidade negra, mesmo nas situações indignas produzidas pela supremacia branca.
Ainda que o contexto seja diferente, parece-me que as mulheres que constituem a
Morada da Paz também fizeram a escolha política de atuar, em tempos de guerra, com o
cuidado e com a cura. Sinto que essa dimensão da escolha, trazida por hooks, coloca uma
questão fundamental. Optar por esse modo de agir no mundo não corrobora com uma ideia de
“papel natural” no que compete à mulher e à feminilidade, principalmente no que consiste aos
papéis naturalizados da mulher negra como mãe preta66 através das definições dadas pelo
imagens, os símbolos, os aspectos, são chaves de entrada e não definições. Não há uma natureza masculina ou
feminina subjacentes – há a realidade que experienciamos, nos nossos diferentes corpos, nos diferentes
impactos que a cultura tem em cada sexo.” (1988, p. 74)
66Recupero aqui as palavras de Lélia Gonzalez sobre o papel da “Mãe Preta” sob os olhos do poder colonial
branco e sua releitura: “...tanto a ‘mãe Preta’ quanto o ‘pai João’ têm sido explorados pela ideologia oficial
como exemplos de integração e harmonia raciais, supostamente existentes no Brasil. Representariam o negro
acomodado, que passivamente aceitou a escravidão e a ela correspondeu segundo a maneira cristã, oferecendo
a outra face ao inimigo. Entretanto, não aceitamos tais estereótipos como reflexos ‘fiéis’ de uma realidade
vivida com tanta dor e humilhação. Não podemos deixar de levar em consideração que existem variações
quanto às formas de resistência. E uma delas, é a chamada ‘resistência passiva’ (…) Mais precisamente, coube
à ‘mãe Preta’, enquanto sujeito-suposto-saber, a africanização do português falado no Brasil (…) e,
consequentemente, a própria africanização da cultura brasileira.” (GONZALEZ, 1982, p. 93-94)
172

poder colonial branco. É, antes de tudo, um modo de resistir frente ao que “está aí”. Se até
aqui meu esforço foi apresentar a perspectiva do feminino produzida por essas mulheres
negras, pretendo agora descrever como mobilizam essa força para agir no mundo.

3.6 A curandeira

Figura 10: Terreiro de Chão Batido 2016

Bell hooks, quando desenvolve a ideia de que o cuidado e a cura realizados pela mulher
negra norte-americana são “escolhas políticas”67, ela toma a casa, espaço de gestão da mulher
negra, como lugar de resistência e de fortalecimento da comunidade negra frente à sociedade
de supremacia branca e capitalista. Mostra-nos que a luta das mulheres por ocupar espaços

67Retomo as considerações feitas por bell hooks (1990) ao descrever a importância que as mulheres negras
tiveram na gerência da casa – e nas práticas de cuidado e cura que ali se desenvolviam – para os processos de
resistência da comunidade negra estadunidense. A autora diferencia as percepções teórico-políticas das
mulheres negras das mulheres brancas, em relação à vida pública e à vida privada. As feministas brancas
percebem a vida privada como um espaço politicamente neutro e as mulheres negras percebem como um
espaço político de fortalecimento. O que bell hooks sugere é que, na perspectiva das mulheres negras, o
privado, o lugar da casa, do cuidado e da cura, não é politicamente neutro. Ao contrário, é um dos principais
alicerces de resistência das famílias negras, contra a supremacia branca, capitalista e patriarcal. A escolha
política emerge no texto de books não corroborando com uma noção de política “consciente” ou elaborada
discursivamente, mas como uma prática fundamental para a existência e sobrevivência da comunidade negra.
173

públicos, percebendo os espaços privados como politicamente neutros e invisíveis, diz


respeito a uma concepção feminista branca que não condiz com a realidade das mulheres
negras. Busca, portanto, revalorizar o papel dessas mulheres na gestão da casa e em sua
atuação de cuidado e cura da comunidade negra como fundamental para a luta contra as
opressões do contexto estadunidense.
Na Morada da Paz, cujo nome já carrega o sentido de “casa”, espaço protagonizado
por mulheres negras, ocorre de maneira semelhante, por se tratar de um espaço destinado ao
cuidado e à cura, mas também bastante diferente, visto que bell hooks trata esses espaços
como de fortalecimento restrito à comunidade negra. Poderíamos justificar essa diferença
devido ao contexto histórico, onde o segregacionismo racial não opera do mesmo modo nos
Estados Unidos e no Brasil, onde a “miscigenação” seria a resposta para o fato da Morada da
Paz ser um espaço de cura e cuidado não restrita à comunidade negra. Não descarto essa
colocação, mas acredito ser mais interessante se compreendermos a cura e o cuidado a partir
dos termos da comunidade, em que a espiritualidade ocupa papel central e atenta-nos para
uma multiplicidade de seres, objetos e pessoas que se encontram em relação.
A Morada da Paz se caracteriza como uma comunidade feminina e não se
autoidentifica como feminista, pois não surge como uma comunidade formada
majoritariamente por mulheres “por ideologia” sobre as questões concernentes a gênero.
Também não se reivindica uma comunidade restritamente negra, ainda que seja kilombola – e
Ys. sempre relembra que Palmares era um kilombo de maioria negra, mas também formado
por outros os sujeitos índios, mestiços e brancos, que comungavam da vida coletiva
igualitária. Contudo, isso não implica que ignorem os marcadores sociais. Aliás, casos
cotidianos de machismos, racismos e desigualdades sociais são comumente comentados,
refletidos e combatidos espiritual e argumentativamente no cotidiano da comunidade. E
também não impede que a Morada crie parcerias e alianças com esses mesmos movimentos,
como desenvolverei no próximo capítulo. Implica dizer que, mesmo essas noções sendo
importantes e fundamentais, elas não são suficientes.
Quando uma mulher negra, estudante universitária e pan-africanista que frequentou a
Morada da Paz durante um tempo questionou Ys. sobre a existência de brancos na
comunidade, Ys. lhe respondeu: “nós não sabemos quem realmente foi o feitor!”, ou seja, a
existência de cada sujeito é compreendida para além dos invólucros identitários, pois adotam
uma concepção reencarnacionista. O mesmo pode ser dito para as questões de gênero. Por
exemplo, quando realizamos o encontro na Mirabal, as Yas frisaram várias vezes que desejam
que mais homens participem da comunidade e que sua participação é fundamental. Contudo,
se gênero e raça não foram as principais ferramentas discursivas utilizadas no surgimento da
174

comunidade, foram produzidas ao longo do tempo, atreladas à constatação “somos as que


ficaram”. São, antes de mais nada, ferramentas que falam e produzem aquilo que se é na vida
comunitária, e auxiliam na construção de um projeto espiritual68 que é profundamente aberto a
todos os seres que povoam o cosmos.
Por espiritualidade entende-se a conexão que qualquer ser pode estabelecer com
quaisquer forças que participam do cosmos. O conceito de cosmos é o espaço por excelência
da diferença. Atenta para o fato de que há inúmeros povos e seres que o habitam – incluindo
ar, sol, árvore, cachorro, homens brancos, mulheres negras, eguns, divindades e outros tantos
possíveis de nomear em suas diferenças, outros que não se sabe nomear e outros, ainda, que
nem ao menos se sabe da existência. A espiritualidade possibilita que essa heterogeneidade
possa se comunicar, através do que é chamado de mediunidade. Essa, por sua vez, pode ser
realizada de muitas formas, por conversas, visões, sonhos, sensações, incorporações,
intuições, criações, entre outras tantas. No cosmos também há muitos perigos, pois nem
sempre sabemos lidar com certas forças e nem sempre certas forças aumentam nossas
potências. Há aquelas que nos “atacam” e nos fazem adoecer. Tendo em vista isso, Tj. trouxe
esta outra imagem, que aqui pretendo dissertar, a partir do modo como a Morada age no
mundo enquanto força do feminino: a Morada como uma curandeira.
*
O Muzunguê, sem dúvida, é um dos principais momentos de acolhimento às pessoas
externas, realizado sempre no primeiro sábado de cada mês em um espaço da comunidade
chamado de Templo. Como já dito, Muzunguê, palavra da língua Kigongo segundo me
disseram as Yas, significa acolhimento com a oferta de um alimento sagrado. Por isso, é
ofertado um alimento salgado, no início dos trabalhos e um alimento doce ao final. Os
alimentos variam conforme as entidades a quem são dedicados os Muzunguês. São nesses
espaços que pessoas das mais diversas origens se aproximam da Comunidade Morada da Paz
para “receber um axé”. As médiuns que normalmente “dão passagem para as entidades” são
as mais velhas. Digo normalmente, pois há sempre variações conforme as orientações. Mas
são mais frequentemente essas mulheres, mulheres negras, que realizam os atendimentos.
Durante todo o Muzunguê os tambores e os orins, os cantos sagrados, não param de
ser entoados. Assim que as entidades se manifestam e se posicionam com seus elementos de
trabalho, são Yb. e An. quem comumente conduzem o consulente à entidade manifestada.

68Quando conversava sobre o porquê de buscarem o reconhecimento do território como território kilombola, Ik.
me disse que isso veio a partir da orientação de uma entidade, Baba Afra, com o intuito de preservar aquele
território. Pois há um projeto de existência da comunidade para dez mil anos, conforme orientação de Baba
Afra. Não sabem quem dará a continuidade necessária à comunidade, se homens, se mulheres, se negros, se
indígenas ou se brancos, se as crianças crescidas na comunidade ou se pessoas externas que chegaram ou ainda
chegarão. O objetivo, como me disse Ik. é garantir “os princípios e o propósito existencial da comunidade”.
175

Conversas, orientações de banhos ou defumações, limpezas em objetos de outros parentes,


limpezas nos corpos dos sujeitos são realizadas, auxiliadas sempre por uma cambona ou
cambono. Por vezes, caso haja necessidade, algumas pessoas são orientadas pelas entidades
para a chamada Quinta do axé, movimento de atendimento individualizado.
A Quinta do axé é um espaço singular, onde certos casos são redirecionados para um
maior trabalho de alinhamento das entidades e dos corpos. Quando eu recém havia entrado na
comunidade, ocorria todas as quintas-feiras. Mas devido às muitas atividades que a Morada da
Paz realiza e, disseram-me, ao enorme envolvimento energético que a Quinta do Axé
demanda, a logística foi transformada. Ocorre, no momento, duas vezes ao mês e demanda
sempre agendamento prévio. O Muzunguê e a Quinta do Axé são dois movimentos de
atendimentos espirituais que não envolvem custo financeiro. No entanto, devido aos amplos
gastos com alimentação e com elementos rituais, realizamos um pequeno catálogo com
materiais que poderiam ser doados para a comunidade por quem desejasse. Normalmente as
pessoas que frequentam os Muzunguês e as Quintas do Axé contribuem com doações. Esse
atendimento não é indicado a todas as pessoas e quem orienta para tal são as entidades. Ys.,
certa vez, contou-nos entre risos que um parente seu queria muito ir à Quinta do Axé e ficava
chateado que nunca era orientado para tal nos Muzunguês. Reclamou sobre isso para Ys. que
respondeu a ele que nada tinha que fazer, visto que as orientações eram realizadas pelas
entidades e não por ela.
Porém, a perspectiva da Morada da Paz implica humanos e não-humanos. Dessa
forma, o cuidado e a cura aparecem como modos de lidar com os diferentes seres que habitam
o cosmos. Curar aspectos ancestrais, curar os sentimentos – como vimos no caso da solidão
das mulheres – e também curar os corpos físicos, cujas enfermidades que se manifestam são,
na maior parte dos casos, percebidas como oriundas de enfermidades que primeiramente se
manifestam nos demais corpos constituintes da pessoa. Nesse sentido, em uma Desformação
as Yas nos ensinaram que existem vinte e um “corpos astrais” conhecidos. Contudo,
apresentaram-nos apenas cinco deles que são, respectivamente, os corpos: átmico, búdico,
vontade, mental, físico. Segundo as explicações de Ys., pelas minhas anotações,

O primeiro, o corpo átmico, é o sopro de Olorum. Está relacionado a tudo que


existe. Raio de sol, animal, tudo é produzido pelo sopro de Olorum. E tudo isso tem
memória, memória dos tempos passados. O átmico traz essas memórias e o búdico
relaciona essas memórias ao tempo. Não ao tempo do relógio, mas do Kindembo,
senhor do Tempo, e do Exu, senhor do movimento. O búdico é uma teia, os chacras
estão ligados a ele. É pela teia búdica que adoecemos e morremos. Nenhuma doença
começa no físico. Começa no búdico, onde algo está provocando uma disritmia, algo
ataca os chacras e essa teia que eles compõem. O corpo da vontade é maior que o
mental. Está mais ligado ao búdico que ao corpo mental. Já o corpo mental tem que
ser reconhecido e acalentado. Cria modelos, cria códigos de aceitação. É o menor
corpo, mas que mais atua. O corpo mental é quem cria as necessidades de aceitação
176

ou demarcação de um espaço. O corpo mental é quem cria as vaidades e quer


sempre se impor. (Caderno de estudo, 25/06/2016)

Assim que entrei na comunidade, conversando com El., disse que havia tomado um
comprimido para dor de cabeça na semana anterior. Ela me repreendeu dizendo que a
irmandade evitava o uso de qualquer medicamento sem consultar as Yas e as entidades –
aquelas que são aptas a avaliar se é o caso de uso dos fármacos ou de receitar as dosagens de
chás ou alimentos a serem ingeridos. Um dos motivos, disse-me ela, é a necessidade de
conhecermos o nosso corpo e as causas de determinadas dores e mal-estares. Ensinou-me,
então, que a dor de cabeça pode sinalizar muitas coisas. Uma alimentação desregrada,
energias que possam ter “atacado” uma outra pessoa da irmandade, ou qualquer outra pessoa
próxima a nós – e que pela proximidade também nos afeta –, ou ainda qualquer “energia
densa” que tenha nos atravessado ou “atacado”. Nesses últimos casos, a orientação que
recebemos é transmigrar, com a ajuda do elemento fogo e orações, essas energias. Os
fármacos, explicou-me El., impedem-nos de ter consciência sobre o nosso próprio corpo e
atuar na sua causa – agem apenas nas suas consequências. De alguma forma decompõe com
as relações do nosso corpo.
Os fármacos são evitados, mas não são de todo negados. Mãe Preta diz que tem vezes
que as enfermidades, que iniciam no corpo búdico, afetam de tal maneira o sujeito que só com
os medicamentos e conhecimentos dos “burros da terra”, dos médicos, para curar. Foi o caso
que aconteceu, certa vez, com Ak.. Seu pé acabou desenvolvendo uma grande infecção.
Foram feitas pastas de erva caseiras para o tratamento, benzeduras, mas não havia jeito de
curar. Então Mãe Preta orientou que Ak. procurasse um “burro da terra” e, além dos
tratamentos desenvolvidos na Morada, iniciou o tratamento com antibiótico. A seriedade da
questão foi-me explicada por ela como fruto de um “feitiço” feito por seu ex-marido, por ela
ter saído de casa e ido viver na Morada. Informação que ela recebeu de Ogum de Malê, uma
das entidades com as quais trabalha. Mesmo com a utilização de fármacos, continuou o uso de
ervas, benzeduras e orações. Afinal, uma técnica não é impeditiva da outra e são sobretudo as
ervas, as benzeduras, orações e transmigrações que atuam contra os “ataques” espirituais.
Importante destacar que a lógica que opera na comunidade é de que a saúde do corpo
físico inicia com a alimentação. O corpo precisa estar forte para não sucumbir aos “ataques”.
Seguem-se diversas orientações alimentares trazidas pelas entidades, principalmente pelos
“médicos do espaço”, dentre os quais Doutor Tchelo, que se manifesta em Ys., é um dos
principais. Algumas orientações são individuais e outras são coletivas. Por exemplo, foi
orientado para todos da irmandade o consumo de beterraba e cenoura crua para todo café da
manhã, almoço e janta. A orientação é porque esses dois alimentos são raízes e “servem para
177

nos aterrar”, buscar uma conexão com a terra e com a concentração e atenção. Já alimentos
industrializados, alimentos transgênicos ou com agrotóxicos são evitados de modo geral. Mas
nem sempre é possível evitar, visto que a comunidade recebe muitas doações de alimento,
especialmente do Banco de Alimentos do CEASA, onde possui cadastro.
Enquanto conversávamos durante o almoço sobre os transgênicos, agrotóxicos e o
modo como a indústria está se alastrando, Yb. comentou: “por isso que a gente tem que
irradiar pro alimento sempre! Irradia!”. Irradiar é transmitir ao alimento aquilo que se deseja
consumir para fortalecer os corpos. Para isso, como de praxe, em todas as refeições realizadas
na comunidade, canta-se um orin trazido pela pomba-gira Elô como um mecanismo de
irradiação. Mas irradiar é também, pelo modo como Yb. trouxe a questão, uma forma de
combater o que vem junto com certos alimentos. Se o alimento está “carregado de energia
densa” – como são caracterizados os transgênicos e os alimentos com agrotóxicos –, é preciso
irradiar para fazer com que seu efeito sobre os corpos não seja destrutivo ou, pelo menos,
tenha menor impacto.
A flora e a fauna também recebem cuidado. Não foram poucos os movimentos de
cuidado com cachorros que são constantemente abandonados na estrada que dá acesso ao
território e que muitas vezes são adotados pela própria comunidade ou cuidados – pois muitos
vem machucados – e dados para adoção para outras pessoas. Isso porque a percepção
reencarnacionista da Morada da Paz é aproximada à matriz Budista, em que existe a
possibilidade de se reencarnar das mais diversas formas. Como aprendi, desenvolvem a ideia
de que são os hábitos de cada pessoa que designará o modo como reencarnará. Segundo Ys.,
isso não implica ser mais ou menos evoluído, ou seja, não há uma linearidade evolutiva entre
as espécies. Implica apenas que talvez aquela forma permita ao sujeito ter certas experiências
importantes para a sua “caminhada espiritual”.
Um exemplo disso foi durante o ano de 2016, quando uma situação profundamente
dolorosa ocorreu na comunidade. Um jovem negro, parente próximo de algumas pessoas da
irmandade, foi brutalmente assassinado pelo tráfico da comunidade em que morava. Ele foi
acolhido, quando desencarnado, pelas entidades que trabalham na Morada da Paz e Mãe Preta
trouxe a informação de que ele reencarnaria como cachorro em sua próxima vida. Outro
exemplo é uma entidade que volta e meia se apresenta na comunidade, trazendo notícias de
outras localidades, chamado Laska69. Como disse no primeiro capítulo, contou-nos que em

69Laska é uma entidade muito carismática e bastante política. Atua nos processos de guerra nas regiões
fronteiriças da América Latina e traz sempre notícias do que vem acontecendo no mundo. Em uma de suas
vindas contou-nos dos projetos de devastação da Amazônia, das mortes dos povos tradicionais e do quanto
precisávamos estar alertas e agir sobre esses projetos. Ainda que tenha tido uma vida na terra, não é
considerado um egum.
178

uma de suas encarnações veio como uma lasca de árvore e em outra como humano nascido na
região fronteiriça do Rio Grande do Sul, tendo sido morto na Guerra do Paraguai.
Aliás, a relação que a Morada da Paz tem com os animais em geral é muito peculiar.
Ali não são realizados sacrifícios animais e não se come carne, pois, como me explicaram, seu
consumo implica “colocar para dentro de nossos corpos o sofrimento dos animais”. As
galinhas e os patos criados fornecem ovos para consumo, mas “só morrem de velhice”. As
cabras auxiliam com o pasto, mas também não servem de alimento. Apenas os peixes, que
vivem no açude, são consumidos, ainda que raramente. Yb. me explicou: “a gente conversou
com o 'ser dos peixes' e esses peixes que estão no açude aceitaram vir ao mundo para servir
de alimento”. Houve, portanto, um processo de negociação espiritual para que pudessem ser
consumidos.
Fato é que todo e qualquer animal, incluindo as aranhas que volta e meia aparecem no
interior das casas, não são mortas. São cuidadosamente retiradas dos locais e postas para o
lado de fora da casa. Nesse sentido, as crianças foram as minhas principais professoras de
como lidar com esses insetos. Já baratas e ratos, todavia, são caracterizados de outra forma.
Por vezes são postos venenos para ratos pelos espaços, pois tem épocas que infestam os
ambientes. Eles “servem ao… outro lado”, disse-me certa vez Al., com ar misterioso, mas
certificando-se de que eu tivesse entendido o que isso significava. Como eles servem? Eu
perguntei. E ela contou que são seres que ficam nos “rodeando, escondidos, para ouvir o que
estamos dizendo e saber o que estamos sentindo para aproveitar disso”.
Essa perspectiva que chamo de abertura também diz respeito à flora local e aos
processos de plantio. Assim que eu entrei na irmandade, próximo ao portão de entrada do
território, havia uma pequena horta com moranga e hortaliças. Contudo, havia uma
preocupação generalizada, pois elas não vingavam. Explicaram, então, que seria preciso saber
o que estava acontecendo com ela, comunicar-se com a terra, para saber qual medida
adotariam em relação à horta. Foi em um ipadê que Ys. comentou que fariam um trabalho de
transmigração com a terra durante a semana. Foram até a horta, onde criariam um “campo
energético” de concentração e ação a partir de defumações, orações e cantos, para, segundo
disse, “incorporar o ser da terra” e saber das suas necessidades. Assim que o processo foi
finalizado, a mensagem recebida foi de que “a terra precisa de descanso”, “o solo tem que
ser renovado”. Por isso decidiram transpor aquela horta para outro espaço do território e
utilizar aquele local para a criação de um pomar com laranjeiras e bergamoteiras.
Mas curar também se vincula a outros aspectos, por exemplo, todo o trabalho de
recuperação do solo no território, solo esse marcado pelo plantio de eucalipto. Nos dezesseis
anos da comunidade, conseguiram reflorestar, com a mata nativa, uma boa porção de terra que
179

antes era utilizada para monocultura de eucalipto. Um pequeno córrego que hoje perpassa a
mata, ligado à fonte que utilizamos para consumo, antes era inexiste. Voltou a correr a partir
do cuidado com a mata nativa. S. P., agricultor que há alguns anos vive na Morada da Paz,
ainda que não participe da Irmandade, certa vez comentou comigo sobre as dificuldades de
cultivo naquela terra. Por conta de tantos anos de monocultura de eucalipto a terra ficou
“fraca”. Disse-me que se colocassem fertilizantes químicos, ela poderia vingar mais, mas as
Yas orientaram que esse processo seria apenas com elementos naturais, com compostagem e
com fertilizantes orgânicos. Por isso o processo de recuperação, como dissertado no capítulo
anterior, é mais lento.
Certa vez, Bm. e Bg. foram representando a comunidade em um Encontro de
Agrofloresta, onde havia pesquisadores e extensionistas de Universidades e comunidades
locais. Perguntei para Bg. como havia sido e ele disse, sem muito ânimo, que “é aquela coisa
de Universidade, né”. Contou que, para ele, tudo aquilo que falavam e que colocavam como
agrofloresta nada mais é do que conhecimento ancestral. Perguntaram a ele se na Morada da
Paz havia um espaço destinado à agrofloresta e Bg. respondeu que na Morada não existe “um
espaço para agrofloresta”, pois tudo é. O girassol que se planta na entrada do território chama
abelha e, portanto, polinização que, por sua vez, afeta a plantação de milho que fica lá perto
do açude. Essa visão compartimentada da agrofloresta, ele seguiu me explicando, dá razão a
uma ideia que não percebe que tudo está em relação: “quiseram saber quantos hectares tem a
Morada”, disse rindo, “mas a Morada é tudo!”. É por conta dessa perspectiva que Bg. disse,
durante um Plantio ComVida – uma atividade destinada às pessoas externas à comunidade
para um mutirão de plantio – “quando a gente cuida da Morada a gente tá cuidando de toda
a Terra, que é nossa Mãe, porque pode até ter uma cerca ali, mas está tudo em relação”. “A
gente cuida da natureza e ela cuida da gente”, comentou sobre a importância dos plantios de
alimentos e ervas medicinais desenvolvidos na comunidade.
O que fica evidente é que os processos de cura perpassam os mais diversos sujeitos, a
fauna, a flora e também os eguns, os espíritos dos mortos que recorrem à Morada, muitas
vezes, como um lugar de acolhida e de cuidado. Os eguns são os espíritos dos mortos, e
muitos vagam perdidos no mundo, pois “ainda não encontraram o caminho”. Alguns,
inclusive, nem sabem que morreram. Esses são cuidados e encaminhados nos processos de
Muzunguê e Quinta do Axé, pois como costumam dizer ao fim de cada Muzunguê, “cada
pessoa que chega até a Morada traz consigo um mundo” – seja de entidades, seja de “seres e
energias densas”, seja de eguns que vagam e se aproximam de pessoas como forma de ter
acesso ao mundo terreno e “que servem a todos os lados”.
180

Eu nunca presenciei uma situação onde algum espírito recentemente desencarnado


tenha se manifestado na comunidade, mas são inúmeros os relatos das mais velhas sobre os
acolhimentos realizados pela Morada da Paz e por todas as entidades que ali trabalham, de
parentes próximos e falecidos das Yas e Egbomis. Há casos, inclusive, de eguns que foram
acolhidos e que resolveram trabalhar junto às entidades que se manifestam na Morada em prol
dos processos de cura. Um exemplo é o irmão de Ym. e Ik. que, depois de sua morte, foi
acolhido pelas entidades que trabalham na Morada da Paz e, logo, começou a trabalhar junto a
equipe do doutor Tchelo.
Além de englobar uma multiplicidade de seres, é notável que a cura opera nas mais
variadas situações. Quando pessoas dirigem-se ao território para uma vivência no kilombo –
como muitos integrantes dos movimentos negros –; quando grupos escolares dirigem-se à
comunidade, que desenvolve ações de educação ambiental e afro-brasileira – principalmente
escolas da rede pública de ensino; ou quando se deslocam para ações em escolas, outras
comunidades e universidades, em todas essas situações a irmandade, independente de quem
vá, “está a serviço” da espiritualidade, portanto, dos processos de cura. Por conta disso cada
deslocamento e cada visita realizados no território são precedidos de rituais de limpeza e
transmigração. Ocorre também por orientação das entidades. Como no caso aqui narrado
sobre a solidão das mulheres, há orientações das entidades que alertam para os variados
“ataques” que tem acontecido no mundo. Uma delas, trazida por Laska, uma entidade que
atua nas regiões fronteiriças da América Latina, foi sobre as forças que querem adonar e
destruir os recursos naturais existentes da Amazônia Azul. Pediu, então, para que cuidássemos
das fontes de água existentes no território da comunidade e irradiássemos para os povos que
são diretamente impactados naquela região.
Como Ys. certa vez colocou em um ipadê, a lógica de cuidado que opera dentro da
comunidade demanda tempo e se diferencia da lógica externa, que ela caracterizou como “da
Byer comprando a Monsanto”70, em que a mesma empresa produz o veneno e o remédio, que
nada mais é do que um outro veneno. Ela seguiu dizendo que “o capitalismo nos desumaniza”
e que o cuidado e a cura desenvolvidos pela Morada não compactuam com o imediatismo dos
fármacos, que muitas vezes são utilizados para que os sujeitos “não sintam o mundo” e por
isso eles são evitados. Esse tempo que constitui o cuidado e a cura da Morada engendra uma
noção de espiritualidade como “aquela que nos fortalece, mas que também nos faz
trabalhar”, como disse Ik.. Todo o processo de cuidado e de cura está vinculado a uma ideia
de “luta pela paz” que demanda muito trabalho espiritual. Mas como Ik. disse, essa paz “não

70Em 2016 a Byer, uma das principais companhias farmacêuticas e de produtos químicos, anunciou a compra da
Monsanto, líder mundial em herbicidas e engenharia genética de sementes, principalmente de sementes
transgênicas de milho, trigo e soja.
181

implica uma pacificação do ser, uma neutralidade do ser, como os fármacos às vezes
produzem. Implica estar bem, por exemplo, tomar um banho de açude para se recompor e
voltar a servir o astral, voltar a sentir as dores do mundo para poder transmigrar”. Essa fala
de Ik. para mim é muito relevante, pois traz uma dimensão fundamental de como a
comunidade percebe a cura e a espiritualidade. Servir e ser sujeito dos processos de cura não
é estar ausente do mundo, transcender a realidade, numa suposta paz inabalável. A
estabilidade da pessoa nunca é assegurada. Ao contrário, trata-se de encarnar constantemente
o mundo e suas dores, com atenção e cuidado71.

3.6.1 Transmigração

Acredito que ao longo do texto tenha ficado bastante evidente o conceito de


transmigração e o modo como ele é utilizado nas práticas da Morada da Paz. Transmigrar é
mudar o estado das coisas, é afastar “os seres e as energias densas”. Tomemos o exemplo de
uma enfermidade qualquer. O corpo, quando está com uma temperatura muito elevada, não se
encontra em seu estado saudável. É preciso, portanto, tomar as medidas necessárias – seja
com chás, xaropes ou com os remédios dos “burros da terra” –, mas principalmente localizar
o que está causando a febre e transmigrá-la. A terra para plantio, quando não está vingando,
também não se encontra saudável. É preciso, portanto, realizar o mesmo processo de
localização das causas para poder transmigrá-las. Quando acontece qualquer desavença entre
dois membros da irmandade e que é percebido por um terceiro, logo vem a orientação: “vão
para a fogueira!”. Porque o fogo é o elemento fundamental de todo e qualquer trabalho de
transmigração.
O fogo tem a capacidade de transformar o estado das coisas: a madeira que vira brasa,
o papel que vira cinza, os sentimentos que precisam ser transformados e são jogados ao fogo
71A estabilidade da pessoa nunca é assegurada. Algo que me lembra do que Belaunde (2017) escreveu acerca do
bem viver e da delicadeza necessária na construção das cerâmicas awajum, etnia indígena localizada em
território peruano. O argumento da autora era de que o viver bem, acionado por esse povo específico não era o
mesmo professado pelo discurso plurinacional que, por sua fez, tomava o conceito de viver bem e o atrelava à
plena execução e garantia de políticas públicas. A autora ressalta que viver bem, ideia que existe em diferentes
etnias indígenas, não apenas não é o mesmo que dizem os Estados-nações, como também não significa a
mesma coisa para as diferentes etnias. No caso que ela nos apresenta, o viver bem está bastante atrelado à
prática da cerâmica, cujas técnicas de produção se aproximam também às técnicas de produção da pessoa e
ambas requerem muita “delicadeza”. Ela nos diz: “viver bem não é um retorno à inocência. Quem não sabe
que a cerâmica quebra, nunca se tornará mestra da olaria. As técnicas de produção de pessoas e de cerâmica
salientam o fato de que viver bem é um fazer sempre em processo e precisa de delicadeza e exclusividade.
Cada peça de cerâmica feita à mão é única, bem como cada pessoa e seus relacionamentos. Além disso, antes
de fabricar novas panelas, já se sabe que inevitavelmente quebram. É necessário agir com cuidado para
manipular a forma da argila e das relações sociais, ainda que sejam pouco duradouras. Essa vontade de
começar, e recomeçar, que move as pessoas que foram criadas para fazer as coisas por si mesmas, aciona um
tempo muito diferente do tempo das políticas públicas. O tempo da cerâmica inicia-se com a evidência da
quebra; talvez seja por isso que as práticas indígenas do viver bem sempre têm um pé na guerra. Porém, a
fragilidade não é um limite externo, mas uma qualidade primordial, até poderíamos dizer inerente, do viver
bem.” (BELAUNDE, 2017, p. 197)
182

em gestos com as mãos, estalos de dedos e orações específicas. Mas a transmigração não é a
cura. É um processo pragmático, mágico, que visa a cura, ou seja, o “alinhamento
energético”. O termo transmigração é acionado constantemente nas mais variadas situações,
mas é nos trabalhos de transmigração que repousa sua maior seriedade e seu maior sentido.
Esses trabalhos estão vinculados aos chamados seres. Esses não são como os eguns, pois sua
atuação serve a uma finalidade, tem uma intenção e um propósito. São seres das trevas que se
“plasmam” nas coisas, nas pessoas, nos ambientes. Evita-se constantemente falar sobre para
não “atrair”. Quando nos processos de transmigração, eles não se apresentam por livre e
espontânea vontade, por isso é preciso buscá-los sempre que necessário – seja por algum
“feitiço” feito, seja por qualquer desarmonia encontrada.
Utilizam-se de uma troca de olhares, uma palavra, um sonho, um alimento, um
acontecimento, uma doença. São muitas as formas de “ataques” que esses seres realizam. E
quanto mais sensível um médium, mais sentirá os “ataques”. E quanto maior a consciência
sobre esse processo, mais conseguirá transmigrá-los. Lembro-me de uma vez Ys. e Ym.
comentarem sobre um olhar que Ys. recebeu e que, logo depois, a fez ficar doente. Ou, outro
exemplo, uma sequência de situações desastrosas que me ocorreram durante uma viagem que
fiz a São Paulo – depois de eu narrar para Ym., ela me disse: “é, você foi atacada!”. Se a
Morada da Paz entende que toda pessoa é um canal, entende portanto que é continuamente
atravessada por forças de “todos os lados”. A série de ritos, de orientações de alimentação, de
transmigração na fogueira, de limpezas, vigilância constante sobre os pensamentos, por
exemplo, servem para não permitir a entrada desses seres. Ou melhor, para que esses seres
não “ataquem” e não se “utilizem” dos sujeitos, dos ambientes, ou das coisas, para cumprir as
suas finalidades destrutivas.
Estávamos nós em um rito fechado de preparação de objetos de poder. Em um dado
momento, em relação a esses objetos, El. nos diz que precisávamos tomar cuidado com as
perguntas externas sobre esses mesmos objetos, porque “a curiosidade pode ser perigosa,
pois não sabemos a intenção”. Ela continuou. Muitas vezes, a pessoa que faz a pergunta não
faz com intenção de maldade, “mas há seres que se aproveitam disso” para seus objetivos. Ou
seja, usam de situações, pessoas, palavras, para cumprirem seus objetivos que são,
evidentemente, opostos aos da Morada da Paz. Lidar com esses seres, portanto, é lutar contra
as trevas, cujo objetivo é produzir no mundo, como fui ensinada, controle, devastação e dor.
Nos trabalhos de transmigração, que ocorrem sempre com processos de incorporação, todo o
movimento de “busca” desses seres, por processos mediúnicos, tem uma finalidade de fazer
com que saiam das trevas e apresentem quem são seus mandatários, aqueles que orquestram a
sua atuação. Ys. sempre nos diz que se a unidade, e a disciplina necessária para construí-la, é
183

fundamental para os que servem à luz, é importante perceber que “nas trevas também tem
unidade”.
Suas manifestações são violentas, o ambiente fica pesado e lembro de sentir isso
principalmente na densidade da respiração. Era a isso que El. se referiu quando comparou os
trabalhos da Morada, ao encontro da J., militante feminista, com a Política Militar em
Brasília. Nem todo médium tem as condições necessárias de adentrar certos mundos para
“buscá-los”, ou seja, condições de “trabalhar na zona do agrião”, como costumam dizer de
forma jocosa, nos momentos de descontração na comunidade. Mas também nem sempre é
muito claro quem tem essas capacidades e quem não tem. São procedimentos profundamente
perigosos e densos. E um dos seus perigos, como dito, é a “pessoa não voltar inteira”, como
em algum momento comentou My.. Ou seja, parte dela fica atrelada a essas “energias
densas”, podendo levar a inúmeras consequências trágicas. Por isso os processos de limpeza,
após os trabalhos de transmigração, são fundamentais. Trago esses elementos aqui com uma
finalidade específica. Quero demonstrar que toda cura, que engendra processos de
transmigração, é um embate entre forças que envolve uma série de composições:
negociações, alianças, escutas, confrontos, entre seres humanos e não-humanos.

3.7 A vida

Como é possível perceber, a espiritualidade é central para aquelas “que ficaram”,


mulheres negras fundadoras da comunidade. A partir dela, a força do feminino é elaborada em
articulação com o masculino, constituindo-se através dessa relação de forma múltipla e
situacional. Age no mundo fazendo da Morada da Paz uma curandeira não apenas para
humanos, mas também para todos os não-humanos, pois entende-se que tudo está em relação.
A cura, desempenhada pela Morada, implica “sentir as dores do mundo”, para poder
transmigrá-las, sendo as transmigrações atos mágicos, que levam à cura, a partir dos quais
combatem seres e forças destrutivas.
Através da cura nos mostram que, do modo como entendem, não é possível separar as
bases materiais da espiritualidade, ou seja, do conjunto de seres que povoam o cosmos, tal
como Shiva e Mies (1993) também se referem ao que chamam “espiritualidade do terceiro
mundo”. Contrapõem essa inseparabilidade ao que chamam “espiritualidade do primeiro
mundo”72 que, para elas, se tornou um outro nicho de mercado, “a 'cobertura de açúcar'
72É evidente que poderíamos questionar o que seriam o “primeiro” e “terceiro mundo”, conceitos utilizados sem
qualquer nota explicativa. Termos que parecem pouco potentes para dar conta das complexidades dos fluxos
religiosos e espirituais, na medida em que homogenizam as formas como mulheres muito diferentes pensam,
sentem e se relacionam com a espiritualidade. Da mesma forma que parecem impedir haver outros modos de
viver a espiritualidade no “primeiro mundo”, que não seja “a cobertura de açúcar do bolo material”, parecem
descartar a existência de uma espiritualidade capturada pelos fluxos capitalistas no que seria “terceiro mundo”.
184

idealista do 'bolo' material do padrão de vida ocidental”. Um exemplo disso, dizem-nos, são
as muitas espiritualidades da Nova Era e do movimento esotérico que constituem todo um rol
de mercadorias, na lógica capitalista ocidental, pautado em elementos extraídos de contextos
orientais ou de outros povos não-ocidentais. Uma série de práticas de cura são lembradas
pelas autoras como constituintes dessa captura realizada pelo capitalismo, que produz uma
espiritualidade “que quer simplesmente 'comida sem suor', não se preocupando de onde vem
nem de quem é o suor que envolve.” (MIES e SHIVA, 1993, p. 31, 32)
Mobilizadas por ideias semelhantes sobre a relação entre as materialidades (e as lutas
políticas para a sua garantia) e a espiritualidade, Lorena Cabnal e Bernarda López, indígenas
maya-xinka e autoidentificadas como feministas comunitárias, realizaram recentemente uma
entrevista denominada “La sanación como camino cósmico-político” (2016)73. Nessa
entrevista, narram suas experiências com a Red de Sanadoras Ancestrales da Guatemala,
coletivo criado como um espaço de fortalecimento e cura entre mulheres indígenas,
principalmente do meio rural, a partir de seus conhecimentos ancestrais maya-xinka. A
questão central levantada por Lorena e Bernarda é a luta contra o patriarcado e contra a
colonização, principalmente devido às violências contra mulheres indígenas rurais. Suas
técnicas de cura partem do princípio da relação, pautado pelos conhecimentos desenvolvidos
pelas mulheres ancestrais, onde “se sara tu, saro yo; se saro yo, sara tu”, diz Bernarda em
algum momento da entrevista. Para elas, a resistência baseada na cura permite que um ritual
de mulheres possa servir para curar a si, as feridas que atingem as mulheres ancestrais que as
habitam e as mulheres que sofrem ao redor do mundo. Diz Lorena Cabnal:

A cura como caminho cósmico-político nos convoca a sentir não apenas o corpo,
como temos, de uma maneira consciente, uma memória corporal como as
enfermidades, como também o que a psicologia ocidental coloca. Além de uma
subjetividade há uma quantidade de memórias para curar e é justamente aí que as
diferentes opressões se instalaram em nós. (…) Para nós é importante fazer uma
reconexão com a natureza. O sistema patriarcal nos mutilou praticamente os afetos e
as formas de curar com a natureza. Se impõe um sistema capitalista, que
mercantiliza a natureza (…). Então recuperar a sabedoria dos povos, das mulheres,
das diferentes práticas ancestrais para a vida, creio que também é um ato político de
resistência” (…) “Se eu, por exemplo, não me questiono ou sinto que estou bem
porque me alimento bem e porque durmo bem, faço exercício, mas de pronto não me
questiono como exerço o poder e o controle e a violência contra as crianças, contra
os animais ou contra a natureza é porque aí tenho algo, uma enfermidade política.
Estou cega para ver de que maneira não consigo… ou seja, está tão naturalizado que
para mim não tenho enfermidade. (…) Quando não começo a sentir dor porque vejo
uma menina violentada, ver a violência sexual, ver como a terra se depreda, como se
extrai a pedra sem que isso me doa é porque tenho naturalizado uma quantidade de
enfermidades que tenho, posso dizer que são uma quantidade de enfermidades
provenientes de um sistema de construção sobre o meu corpo. Falar politicamente é
questionar-me ante a vida. (transcrição e tradução feitas por mim)

73La sanación como camino cósmico-político: https://www.youtube.com/watch?v=TZlsGfoe328


185

Parece-me que a Morada da Paz, assim como a Red de Sanadoras Ancestrales


compartilham uma percepção de “interconexão de toda a vida” (STARHAWK, 2002, p. 231),
em que os sujeitos não são pensados apartados do que comumente chamamos “natureza”, ao
contrário, são constantemente afetados por essas exterioridades e compõem com elas o
mundo. Na Morada, a relação que estabelecem com a terra, com os alimentos, com os
fármacos e químicas nos permite perceber uma outra formulação, que se distancia
radicalmente da percepção compartilhada pelo Ocidente do que é “natureza”, nos termos de
Latour (2004, p. 54), aquilo “que permite recapitular em uma só série ordenada a hierarquia
dos seres”, oriundos de uma separação entre o que seria objetivo e subjetivo – separação essa
que é política. A exterioridade que convencionalmente chamamos “natureza” age e atua nos
corpos dos sujeitos e estes, igualmente, agem e atuam nela. A Morada nega tanto a ânsia de
controle dessa exterioridade para obter resultados que servem aos humanos – como, por
exemplo, o uso de fertilizantes químicos para apressar a produção –, como também nega
qualquer imaginário romântico de proteção a uma natureza intocada ou harmoniosa. A cura
parte dessa ação.
Tanto a colocação de Al. sobre os ratos e baratas nos informam disso, quanto também
uma outra situação de ataque ou de brincadeira que vivemos na comunidade. Alguns dias
antes do Muzunguê de Exu, o galinheiro foi invadido pela madrugada. Na manhã seguinte,
encontramos muitas galinhas mortas, quase vinte. Primeiro desconfiamos dos cachorros, mas
eles estavam presos – aqueles que sabemos matarem galinhas. Muito provavelmente,
disseram, foi uma raposa do mato. Mas o fato de isso ter acontecido próximo ao Muzunguê de
Exu fez com que outras reflexões acontecessem. A situação foi lida como uma espécie de
ataque, pois não se sabe de que Exu se trata e a quem obedece, como me disse na época Ik., e
também como uma “brincadeira de Exu” para nos testar, como trouxe Ys. A questão é que
não existe uma “natureza” romantizada e pacífica, nem mesmo uma “natureza” perigosa e
descontrolada. A ação que desenvolvem não é nem do afastamento e “preservação”, nem de
controle e uso. O que há são seres e forças com os quais a Morada da Paz se coloca em
relação, onde a cura e o cuidado aparecem como formas de ação.
O que me parece central aqui, e esse é o principal argumento que eu gostaria de
retomar, é que existe uma relação traçada pela Morada da Paz entre feminino e a natureza que
é radicalmente diferente daquela traçada – ou atribuída – pelas feministas brancas do ocidente
a esses mesmos termos. E aqui me refiro tão precisamente a uma gama de pensadoras que
emergiram a partir e com a célebre tese defendida por Simone de Bouvoir, cujos
questionamentos estavam assentados nessa recorrente correlação de mulher à natureza e
homem à cultura – importantíssimo movimento de romper com essas simetrias
186

hierarquizantes. Essa crítica feminista a uma correlação entre mulher e natureza teve suas
consequências inclusive na Eco92, quando algumas feministas que se denominavam
Ecofeministas, incluindo Mies e Shiva, foram profundamente criticadas por essencialismo
pelas demais, que viam nas relações entre mulher e natureza a perpetuação da lógica patriarcal
ocidental da biologização do gênero (RODRIGUEZ, 2013).
Esse rechaço, parece que teve efeitos nos próprios trabalhos antropológicos. E lembro
aqui de uma entrevista feita com a etnóloga Luisa Belaunde (DAINESE; SERAGUZA, 2016)
em que ela contou um pouco das dificuldades de diálogo, durante início dos anos 1990,
quando iniciou seus interesses de doutorado, para tangenciar alguns temas que não eram
muito bem vistos pelas feministas da época, especificamente a questão da menstruação. Ou,
se eram temas antropológicos, eram a partir de uma perspectiva que via a reclusão das
mulheres indígenas em processo de menstruação como uma forma de subordinação. Com
ambas as percepções a etnóloga gostaria de romper, pois interessava a ela muito mais os
afetos, a cosmologia em questão. Sinto, no trabalho de campo desenvolvido com a Morada da
Paz, algo próximo de Belaunde. Sinto que a antropologia nos ensina – e poderia produzir
efeitos inclusive sobre o pensamento feminista – a hesitar sobre nossas próprias categorias de
definição do mundo quando na relação com outros que não nós. Oyewumí fez isso em relação
ao conceito de gênero enquanto uma categoria universal de análise.
No caso da Morada da Paz, movimento protagonizado por mulheres negras, o que
chamam de feminino não é o mesmo que o pensamento ocidental atribui como tal, e o que
chamam por vezes de natureza, Terra ou Pacha Mama, ou seja, um conjunto de
exterioridades com os quais compõem o mundo, também não parece ser o mesmo que o
pensamento ocidental atribui como tal. Contudo, me parece que não apenas as definições dos
termos são diferentes, como também as relações que estabelecem entre si. A crítica feminista
alertou-nos para as estratégias do patriarcado de produzir uma relação de semelhança entre o
feminino e a natureza: selvagens ou incontroláveis e, posterior, domesticáveis. A crítica
ecofeminista alerta-nos para, novamente, uma relação de semelhança entre mulheres e a
natureza: ambas são sujeitas aos processos de opressão e tentativa de controle. A relação que a
Morada estabelece entre feminino e natureza, contudo, não parece ser da ordem da
semelhança ou correspondência, mas da ação. É na relação a partir dessas outras
configurações que surge a imagem da Morada da Paz como curandeira. Não como
passividade ou servilidade, mas como uma forma de guerrear. Afinal, o que está em jogo é
uma guerra cósmica em que os lados em disputa, a força das trevas e a força da luzes se
apropriam, engendram, adentram, cruzam e usam corpos, materialidades, pensamentos,
sentimentos, ações, relações.
187

Figura 11: Horta de todos nós


188

4. Ocupar o kilombo

Se não fizermos o impossível enfrentaremos o impensável.


(Boochkin)

Figura 12: Cadeira de leitura 2016

São as entidades, sobretudo, mas também as mais velhas com frequência, que
designam a comunidade como povo. Vem-me à mente a voz irreverente de Ym., em um
momento de descontração na cozinha “aqui é nós por nós! O meu povo é esse! O meu povo é
a Comunidade Morada da Paz!”. No meu processo de iniciação, Ys. disse-me que eu estava
entrando para a comunidade e que teria que “saber honrar o [meu] povo a partir de agora”,
“que este é o [meu] povo, [minha] família”. Mãe Preta volta e meia também diz algo nessa
mesma direção, quando nos avisa de algum trabalho ou de algum alcance que o “povo daqui”
fez com algum outro “povo de lá” no mundo espiritual. Ou quando uma entidade se manifesta
dizendo que gostaria de trabalhar com o povo daqui, porque “[nesta] terra tem verdade”,
como ocorreu com Sultão das Matas.
189

Mãe Preta com alguma frequência nos diz para não nos esquecermos de onde viemos,
não nos esquecermos do nosso povo e de quem somos – referindo-se, sobretudo, às forças
cujos nomes crísticos carregam. O ‘de onde viemos’ está relacionado à comunidade onde
renascemos no processo de iniciação. Renascer na comunidade é fazer parte do povo que ali
existe e daquele território. E ser parte desse povo é dedicar a vida a um propósito comum.
Devido a isso é que dedicam um espaço dos retiros realizados para pensarmos sobre o
“projeto de vida”. O projeto de vida é algo individual, onde cada sujeito constrói no papel o
que deseja para a sua vida pessoal a curto, médio e longo prazo. Mas a vida pessoal não está
descolada de uma vida coletiva. Funciona sempre em relação com a comunidade, no sentido
de pensar e planejar o que se deseja construir para o fortalecimento do território. A noção de
povo continuamente evocada pelos humanos e entidades carrega uma forte noção de
pertencimento ao lugar, pautado por uma relação de renascimento no território (o processo de
iniciação), pela dedicação à comunidade em seus cuidados e projetos, e por um “jeito de ser e
de viver” singular, constituído por objetos de poder, ornamentos, formas de alimentação,
projetos de vida, ritualísticas cotidianas, etc.
É verdade que, no total, beira a trinta pessoas compondo a comunidade, um número
relativamente pequeno quando pensamos na ideia de povo. Mas é verdade também que cada
integrante humano traz consigo outros tantos integrantes não-humanos que ali respondem e
que compartilham esse “jeito de ser e de viver”. Comentava com as Yas sobre a minha relação
com determinados elementos de poder e El. disse-me que eles, além de nos identificarem
entre os humanos, nos “identificam no mundo espiritual”, em que os mais diversos povos
“sabem a que forças e entidades respondemos”. Ou seja, se é um povo não apenas entre os
humanos, mas também entre os não-humanos. E, além disso, não apenas as pessoas são
reconhecidas pelos não-humanos, como são por eles vinculadas a outros não-humanos aos
quais respondem.
Povo na Morada pode ser compreendido em diferentes escalas. Aciona-se o termo para
designar a si como povo negro, como os descendentes de africanos na América. É utilizado
também para referenciar povos que habitam o cosmos. Há também o povo que vive no
kilombo Morada da Paz e que responde como tal. Mas, ainda que alguém saia da comunidade
e não responda mais como Morada, é comum ouvirmos que quando alguém se torna Morada
nunca deixa de ser. Não é porque houve saídas da comunidade que Mãe Preta e Seu Sete
deixam de ser os pais e guias daqueles que saíram, ou que estes não façam mais parte do povo
que constitui a Morada. As relações, a partir de feituras ritualísticas, foram seladas não apenas
no plano material, mas principalmente no plano espiritual. Por mais distanciamento que possa
190

existir entre os sujeitos que participaram da Morada, Mãe Preta diz com frequência que “o rio
sempre corre para o mar”. Segundo ela, uma vez Mãe, sempre Mãe.
Povo é utilizado também para designar pertencimentos de outros seres – humanos ou
não-humanos. O “povo de lá”, o “povo da fulana” - referindo-se a alguém -, o “povo que foi
resgatado” por algum trabalho espiritual. Marca o modo como o povo da Morada constrói
suas relações de alteridade com outros – sejam eles humanos ou não. A partir dessas relações
de alteridade é que o Terreiro de Chão Batido me foi apresentado como uma “data de
celebração dos povos da terra”, especialmente os povos indígenas, africanos e orientais (nas
suas muitas e diferentes manifestações), com os quais a Morada se faz afrobudígena. A
expressão “povos da terra” às vezes é utilizada para referenciar os povos indígenas nas
Américas. Os caboclos, por exemplo, quando se manifestam no terreiro, são referenciados
como “povos da terra”. Outras vezes é utilizada para designar todos os povos que constroem
uma relação de respeito e “verdade” com as diferentes formas de vida que habitam o mesmo
território, não se entendendo apartados ou proprietários da terra, mas parte dela, compondo
com ela74, com principal destaque aos povos negros e indígenas.
A Morada da Paz como povo surge dos reencontros apresentados no primeiro capítulo.
Não se pauta por uma relação de sangue, de parentesco, racial, sexual ou geográfica
originária, ou seja, não são esses os modos pelos quais constroem uma percepção de si 75.
Aliás, nem mesmo o critério de ‘humanidade’ é o que define, visto que há entidades que
também participam de algumas configurações assumidas pelo conceito de povo. Implica,
sobretudo, um ato constante de fazer-se da terra, compartilhando coletivamente “um jeito de
ser e de viver” enraizado em um território. Os laços que vinculam o povo ao território são
espirituais. Por isso a iniciação é um renascimento e, quando se nasce no território, como
filhas e filhos de Mãe Preta e Seu Sete, esses laços perduram por muitas vidas sucessivas,
onde novos reencontros podem acontecer.
É isso que faz com que o povo se constitua desde e com a terra em que habita. É claro
que, para o Estado, o povo da Morada é considerado ‘dono’ da terra, no sentido de
proprietário, visto que no início da comunidade a terra em que estão foi comprada e, mais

74Essa é uma concepção muito usual, tanto entre os povos indígenas (KOPENAWA e ALLBERT, 2015;
VIVEIROS DE CASTRO, 2017), como entre os povos negros (SANTOS, 2015).
75É claro que essas relações e termos nem sempre querem dizer o que as concepções ocidentais presumem, por
exemplo: o “sangue”, entre os Tupinambá, aparece como um perpetuador de um “modo de ser índio”
(COUTO, 2008, p. 79), mesmo em um contexto de mistura inter-racial com negros e brancos. Algo semelhante
encontramos em outros contextos de mistura racial, como em Caravelas, com o Movimento Cultural
Artemanha (MELLO, 2003) ou entre a Tribo Carnavalesca Os Comanches em Porto Alegre (FLORES, 2013),
onde o sangue e o fenótipo são acionados como produtores de um modo “índio” de ser. Da mesma forma,
“tocar parenteza” entre os quilombolas de Caetité não presume necessariamente vínculos biológicos,
concebido mais como “uma performance de conexidade que atualiza alguns vínculos de uma rede de cognação
indefinidamente extensível (ALENCAR, 2015, p. 46). Essas outras possibilidades de configuração, contudo,
não são encontradas na comunidade Morada da Paz para sua definição de povo.
191

adiante, receberam a certificação do Estado como território quilombola. Mas a Morada não
constrói sua relação com o território por meio da posse, da cerca, do registro, e sim por meio
de um intenso processo de fazer-se da terra, reconhecer suas forças, “incorporar o mato” e
construir com os seres que lá habitam uma relação de respeito e de “verdade”76. Relações
essas que caracterizam o que seria o kilombo, diferente do quilombo com o qual o Estado
trabalha, “a língua do colonizador”, como colocou Ym.. Mas o Estado não entende esse outro
mundo manifestado no k, assim como não entende a composição de um povo kilombola,
como a Morada se reconhece, desde uma terra que não seja definida pela lógica da
propriedade privada, sendo ele o agente regulador daquilo que Davi Kopenawa chamou de o
“povo da mercadoria”77. O kilombo é externo ao Estado.
Lembro aqui, como já descrito no primeiro capítulo, que se apresentaram ao Estado
como kilombolas, pois percebem que há uma distância entre o q e o k que não é apenas de
ordem linguística, mas de concepção de mundo. Um das diferenciações é que não se
consideram remanescentes dos africanos escravizados, pois viram no dicionário que
remanescente é aquele que sobra, que resta. Consideram-se sobreviventes, netas e netos
daqueles que resistiram. Ocupar o kilombo com k é, para a Morada, recuperar a matriz bantu
do termo, aludindo diretamente ao seu significado: fortaleza, povoação, união. Mas não é uma
mera busca ‘essencializante’ ou por uma ‘pureza africana’. Da mesma forma, ainda que seja
um artefato de identidade, no sentido de se reconhecer e nomear kilombola, não é somente
isso. Utilizar o k na atribuição de kilombo é expressar na linguagem uma exterioridade ao
Estado, fazendo do kilombo, através de uma série de práticas, uma “máquina de guerra”78.

76A “verdade” foi algo que sempre me intrigou nas conversas que se desenrolavam na Morada. Foi denominada
por Mãe Preta como “a linguagem da espiritualidade”. Mãe Preta nos dizia que ali, naquele território, “não se
pode garantir um coração feliz, mas se pode garantir um coração verdadeiro”. Assim referenciou a Morada da
Paz, e os seus compromissos. Algo próximo às falas do povo de santo sobre o “compromisso”. Por exemplo,
Dona Rita, com quem Soares conviveu em seu trabalho de campo sobre os Candomblés de Belmonte,
comentava com ela que “não gosta de puxar o guia das pessoas para trabalhar, pois acha que a vida no santo é
muito difícil, exige muito compromisso e muita obrigação.” (2014, p. 148) Mas essa verdade não se propõe
totalizante, como Ys. sempre nos diz: “não somos a verdade, somos uma verdade”. Sinto que há algumas
questões a serem desenvolvidas em outro momento em relação a essa noção de “verdade”, como
compromisso, na Morada.
77Nas palavras de Kopenawa, na melhor descrição do que seria a sociedade branca capitalista, cunhado por ele
como “povo da mercadoria”: “Seu pensamento se esfumaçou e foi invadido pela noite. Fechou-se para todas as
outras coisas. Foi com essas palavras da mercadoria que os brancos se puseram a cortar todas as árvores, a
maltratar a terra e a sujar os rios. Começaram onde moravam seus antepassados. Hoje já não resta nada de
floresta em sua terra doente e não podem mais beber a água de seus rios. Agora querem fazer a mesma coisa na
nossa terra” (2015, p. 407-8)
78Conceição Evaristo recupera um clássico texto da historiadora Beatriz Nascimento sobre kilombo/quilombo.
Nascimento, em uma abordagem histórica nos apresenta como os sentidos dados ao termo foram se
transformando. Desde o kilombo, ainda no continente africano e sua posterior atualização a partir de Palmares,
em que era percebido como uma unidade de guerra, até sua recente conceitualização como uma imagem de
resistência do povo negro. Conceição Evaristo nos diz que quilombo surge “não mais como uma mística de
guerra bélica declarada, mas como esforço de combate pela vida”, em que as religiões afro-brasileiras se
apresentam como aquelas que fortalecem o corpo e a mente como instrumentos de luta, ao operarem com “a
força vital, máquina-de-guerra existencial e fisica” (2010, ver em: http://seguindopassoshistoria.blogspot.com/
192

Quando a comunidade ocupa a concepção de kilombo, parece-me, compõe com um


movimento denominado por Abdias do Nascimento de quilombismo. Ou melhor, talvez fosse
mais interessante dizer que o modo como kilombo é ocupado pela Morada é uma modulação
disso que o autor caracterizou como uma “ideia-força, energia que inspira modelos de
organização dinâmica desde o século XV” (NASCIMENTO, 1980, p. 256). O quilombismo,
para o autor, é um movimento de inúmeras práticas associativas, ilegais ou toleradas pelo
poder colonial e estatal, que sustentavam e sustentam a necessidade de assegurar a “existência
do ser” da população negra, resgatando a dignidade e liberdade através da organização de uma
sociedade livre79.
As diferentes formas associativas encontradas – terreiros, irmandades, comunidades,
escolas de samba – constituiriam uma “práxis afro-brasileira” característica do quilombismo
que, contudo, não é pré-estabelecida, pois para Nascimento o “quilombismo está em constante
reatualização, atendendo exigências do tempo histórico e situações do meio geográfico.
Circunstância que impôs aos quilombos diferenças em suas formas organizativas” (idem, p.
256). O interessante, parece-me, daquilo que Abdias do Nascimento nos traz é a percepção do
quilombismo como uma “ideia-força”, uma força de emancipação frente a uma sociedade que
sobrecodifica e aprisiona o negro em função de uma estrutura racista. Entendo kilombo,
portanto, como uma modulação dessa “ideia-força” que, engendra, contudo, incessantes
produções diferenciantes. Não apenas em relação à figura do Estado, como a máquina
burocrática a quem a comunidade se dirigiu para obter o reconhecimento como comunidade

2013/05/literatura-negra-uma-voz-quilombola-na.html). A autora não desenvolve o que entende por máquina


de guerra, mas para mim, é impossível não aludir ao trabalho de Clastres e a posterior elaboração feita por
Deleuze e Guattari. Por isso, retomo esse conceito, entendendo o kilombo como uma máquina de guerra, no
que consiste à ação política desenvolvida pela Morada, mas também como uma máquina de guerra na própria
atividade do pensamento. Deleuze e Guattari (1997c) sustentam que a lei do Estado opera através da
interioridade e exterioridade. As máquinas de guerra, que são exteriores à forma-Estado, e aos aparelhos de
Estado, com seus movimentos de captura e interiorização, coexistem e concorrem em um mesmo campo de
interação. Estado sempre existiu, mas, da mesma forma, as máquinas de guerra sempre existiram e existirão –
como aquilo que ameaça os aparelhos de Estado e cuja multiplicidade não é capaz de ser totalmente
interiorizada pela forma-Estado.
79Conforme o autor: “Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre,
solidariedade, convivência, comunhão existencial. Repetimos que a sociedade quilombola representa uma
etapa no progresso humano e socio-político em termos de igualitarismo econômico. Os precedentes históricos
conhecidos confirmam essa colocação. Como sistema econômico, o quilombismo tem sido a adequação ao
meio brasileiro do comunitarismo e/ou ujumaaísmo da tradição africana. Em tal sistema as relações de
produção diferem basicamente daquelas prevalecentes na economia espoliativa do trabalho, chamada
capitalismo, fundada na razão do lucro a qualquer custo, principalmente o lucro obtido com o sangue do
africano escravizado. Compasso e ritmo do quilombismo se conjugam aos mecanismos operativos do sistema,
articulando os diversos níveis da vida coletiva cuja dialética interação propõe e assegura a realização completa
do ser humano. Nem propriedade privada da terra, dos meios de produção e de outros elementos da natureza.
Todos os fatores e elementos básicos são de propriedade e uso coletivo. Uma sociedade criativa no seio da qual
o trabalho não se define como uma forma de castigo, opressão ou exploração; o trabalho é antes uma forma de
libertação humana que o cidadão desfruta como um direito e uma obrigação social” (NASCIMENTO, 1980, p.
264)
193

quilombola, mas, como veremos, também a tudo aquilo que poderia se apresentar como um
modelo, de forma a estabelecer com ela uma relação de hierarquia ou sobrecodificação.

4.1 O perigo da representação

No início de 2017 aconteceu em Porto Alegre o Fórum Social das Resistências no qual
a Morada da Paz e o Instituto CoMPaz participaram. A primeira realizou uma oficina sobre
Pedagogia do Encantamento, pensada através da construção da Escola ComKola Kilombola
Epé'Layê e o segundo realizou uma oficina sobre Ekonomia do Afeto. Além dessas atividades,
participaram da feira de Economia Solidária com a venda de seus artesanatos. Por essa
participação a Morada recebeu o convite para compor o grupo de Economia Solidária na
Marcha de abertura do Fórum.
Foram apenas os demoradores para a Marcha. Chegamos no local da concentração, na
Esquina Democrática80, em horários diferentes. Boa parte estava na casa de Bm. finalizando o
estandarte que levaríamos. Bm., com sua belíssima habilidade na costura, teceu um estandarte
com retalhos de tecidos que foi bastante elogiado do início ao fim do percurso. A Marcha
havia iniciado seus primeiros passos quando nos encontramos. Observávamos atentas seu
deslocamento, sua cadência e seus blocos muito bem constituídos e serializados, desejosas de
encontrar algum rosto conhecido para compor o bloco da Economia Solidária. Porém,
encontramos ninguém. Sabíamos que seria necessário nos posicionar na Marcha para seguir
seu percurso, mas não sabíamos muito bem onde e como nos colocar.
Enquanto observávamos, vimos que a primeira leva de pessoas carregavam bandeiras
da CUT, do MST, de sindicatos em geral e partidos políticos de esquerda. A Morada tem
nenhuma vinculação partidária, por isso, deixamos passar. Mais adiante passaram grupos de
feministas negras cujas pautas de empoderamento dialogam com algumas práticas da Morada.
Achamos prudente não nos colocarmos naquele espaço, pois a Morada não se reconhece
como feminista. Passaram grupos do Movimento Negro com o qual a Morada também dialoga
em muitos de seus trabalhos, mas não se sente participante deles. Passaram também algumas
poucas lideranças de terreiro, figuras já bastante conhecidas na cidade de Porto Alegre por seu
engajamento político e partidário. Eram poucos, carregando seus agês e faixas. Concordamos
em nos posicionar logo atrás deles, visto que, entre tantos grupos ali colocados, a Morada da
Paz, na nossa percepção naquele momento, mais se aproximava dos povos de terreiro. Assim
o fizemos.

80Para quem não conhece Porto Alegre, é na chamada Esquina Democrática, no centro da cidade, onde as
principais mobilizações políticas acontecem.
194

Retomamos esse fato em um ipadê no território com as mais velhas e narramos todo o
desenrolar dessa reflexão coletiva sobre como nos posicionar na Marcha em movimento. Foi
quando Ys. nos falou que devíamos parar de procurar um espaço para nos “encaixar”, pois
“nada e nem ninguém nos representa”, e seguiu: “as associações quilombolas não nos
representam, os terreiros não nos representam, a economia solidária não nos representa”,
pois “nosso propósito é outro”. Onde quer que entrássemos naquela Marcha, seríamos nada
além de Comunidade Morada da Paz, nem mesmo se entrássemos junto ao grupo de
Economia Solidária, de onde partiu o convite para estarmos lá. Chamou-me profundamente a
atenção essa fala de Ys. sobre a não representação por parte de outros coletivos. Pois, ao
mesmo tempo em que estabelece relações, não se considera parte. É preciso, parece-me,
entender quais são as produções de diferença realizadas pela comunidade frente a esses
grupos e que tipo de relação estabelecem com eles.
O primeiro grupo em massa que vimos passar era uma mescla de bandeiras da CUT,
MST, PT entre outros partidos políticos considerados de esquerda e suas organizações de
base. Sabíamos de antemão que ali não entraríamos, pois a Morada da Paz não estabelece uma
relação direta com partidos políticos. Aliás, isso foi uma das questões acordada desde a
fundação da comunidade, pois percebem que lideranças políticas poderiam se utilizar da
comunidade para fazer suas campanhas, sem real benefício à população. Partem da
perspectiva de que sindicatos e partidos políticos adotam uma abordagem materialista que
elas não concordam, desde quando Ys. e El. ainda eram estudantes de Serviço Social, onde há
um majoritário posicionamento marxista. Não lembro com detalhes a história, mas me lembro
de Ys. contar que em uma dada disciplina de Educação no Campo, curso de graduação que ela
tem feito na UFRGS, discutiu com uma professora de formação marxista sobre esse mesmo
assunto.
Se bem me lembro, a professora argumentava, em tom jocoso, que sem matar a fome
não se poderia ter nada, nem fé. Argumento este que poderia justificar qualquer tipo de ação
para conseguir alimento ou, até mesmo, qualquer tipo de alimento para matar a fome. Ys.,
ainda que compartilhe da ideia de que o capitalismo deva ser combatido, respondeu a ela que
não, que era a fé quem sustentava um sujeito mesmo em meio a fome e outras tantas
dificuldades, e o fazia procurar alimento. Seu argumento foi no sentido de que nem tudo é
justificado pelo discurso materialista, que é a principal ferramenta discursiva dos partidos
políticos e sindicatos que se articulam através da luta classista. Há também a discordância
com o modo de organização, em que, dizem, há muita “sede de poder” que, por sua vez, serve
a certas “forças destrutivas”. Apesar disso, há vários militantes de partidos políticos que
desenvolvem com a Morada uma relação de amizade. Por exemplo, ela tem se relacionado
195

com algumas pessoas do MST, principalmente com os assentamentos de Nova Santa Rita,
município próximo do território. Relação essa que passa tanto por encontros em feiras e em
coletivos de Economia Solidária, como também por atividades do Ponto de Cultura Omodorê
que levaram para a escola do MST.
Como vimos no capítulo anterior, quando questionadas se são um coletivo feminista,
visto serem majoritariamente mulheres, respondem que não, pois há homens que compõem a
comunidade e que o propósito existencial é espiritual e não o fim do patriarcado e do
machismo. De forma semelhante refletem sobre o movimento negro. Dizem que não
participam do que chamam de movimento negro, ainda que sejam majoritariamente “negras
em movimento”. E o motivo para tal é porque há brancos que compõem a comunidade – o que
gera muitos questionamentos por parte dos movimentos negros sobre a Morada. A existência
de brancos, assim como a existência de homens, é explicada de forma semelhante: o propósito
é espiritual. Partem de uma perspectiva reencarnacionista em suas elaborações e lembram aos
que questionam que “nós não sabemos quem foi o feitor”.
O machismo e o racismo também são percebidos como formas a partir das quais
“forças cósmicas” provocam a destruição. E o que está em questão é o combate a essas forças
que engendram tais relações. Reconhecem que há desigualdades e que devem ser combatidas.
Porém, distanciam-se de quaisquer atitudes que julguem ser exclusivistas ou pautadas pelo
“rancor”, assumindo uma postura reativa de “enfrentamento”, como comentou Ys. após certo
encontro produzido por algumas movimentações negras em Porto Alegre. Aliás, comentário
semelhante foi feito após um fato na Universidade, onde algumas alunas expuseram
publicamente ações de um colega acusando-o de misoginia – acusação considerada por
demais violenta por Ys., mesmo que não concordasse com as ações do rapaz. Ainda que
discordem de certas práticas caracterizadas pelo “rancor”, não deixam de frequentar
determinados espaços de luta e resistência da população negra e de mulheres, sempre que
possível.
Aliás, recentemente, por orientação de Mãe Preta, a Morada começou a participar do
CODENE (Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra) e, ainda que
seja considerado um espaço “espinhoso” – por aquilo que volta e meia denominam “sede de
poder” –, também é um espaço que permite certas ações. Por exemplo, é desejo da Morada
estabelecer maior vínculo com outros territórios quilombolas e o CODENE poderia ser um
meio através do qual isso aconteceria. Como Mãe Preta costuma dizer, e sobre o CODENE
não foi diferente, “há portas que só abrem do lado de dentro”.
Também não se consideram uma ecovila, ainda que tenham participado da Rede
Global de Ecovilas, que levou Ys. para um evento no Senegal onde foi como porta-voz da
196

Morada da Paz. Como vimos no primeiro capítulo, muito de suas práticas dialogam com a
permacultura e com outras comunidades sustentáveis. Porém, não são ecovilas porque são,
sobretudo, um espaço que “recupera saberes ancestrais”, especialmente dos povos africanos,
incluindo os afrodiaspóricos, mas também dos povos indígenas e indianos. Reconhecem a
importância dos conhecimentos desenvolvidos através da permacultura, que muito foram
utilizados na construção do que é hoje a comunidade Morada da Paz. Porém, questionam-se
também se a permacultura não seria apenas uma forma de apropriação pelo conhecimento
ocidental dos saberes que há tempos os povos – aqueles que foram massacrados e invadidos
pelos poderes coloniais – colocavam em prática em seu dia a dia, como disse Bg. em uma
conversa que tivemos e descrevi no capítulo anterior. Mas há ainda mais diferenciações.
A Morada da Paz recebeu em seu território uma pesquisadora do Rio de Janeiro que
desenvolvia uma pesquisa sobre Ecovilas. Não lembro quais eram suas questões e interesses,
mas visitava algumas localidades e a Morada surgiu como uma possibilidade. Eu escutava sua
conversa com Bg., que dizia a ela que a Morada não se considera uma ecovila. Além dos
motivos já citados, Bg. também destacou dois aspectos. Primeiro, o fato da Morada da Paz
colocar-se a serviço da espiritualidade. A Morada não passou a existir porque desejavam sair
da cidade e buscar outro modo de vida. Mas outro modo de vida e sair da cidade eram ações
necessárias (e urgentes) para a vivência espiritual e para os trabalhos que desenvolveriam.
Segundo, afastam-se de um certo movimento de capitalização das ecovilas. Muitas delas,
dizia ele a ela enquanto fazíamos a trilha da paz, encontram na permacultura um modo de
ganhar dinheiro – cursos esses que são bastante caros – onde o intuito de criar uma relação
dos humanos mais integrado com outros seres, acaba sendo mais um modo de acumular
recursos para si.
Também não se consideram parte do que se chama Economia Solidária. Ainda que
participem de alguns espaços onde vendem seus produtos, distanciam-se dessa concepção,
pois acreditam que por mais que surja como uma ruptura com a economia capitalista, ela
ainda é pautada por uma percepção individualista dos ganhos de recursos financeiros, aspecto
que geraria desigualdade entre os sujeitos e a consequente inexistência de relações mais
afetivas e de cuidado com o outro. Por isso, desenvolvem o que chamam de Ekonomia do
Afeto, que tratarei com mais profundidade nas páginas que se seguem.
Consideram-se um terreiro, mas não apenas. Aliás, foi devido a isso que optamos por
adentrar na marcha próximo às lideranças afrorreligiosas. Percebem que os terreiros possuem
um funcionamento que não abrange as práticas comunitárias desenvolvidas pela Morada.
Questionam, para si, a vivência da espiritualidade descolada das práticas cotidianas e
questionam o modo como a tradição desenvolvida nos demais terreiros impede
197

experimentações e ampliações de conhecimentos sobre a espiritualidade. Mas o que as


distanciam dos demais terreiros, principalmente aqueles que figuram na arena política com
maior ênfase, são suas articulações com partidos políticos e espaços dentro do Estado que,
segundo elas, acabam por beneficiar apenas aqueles que se colocam como representantes, e
não a totalidade do povo de santo que, porventura, pense diferente. Novamente caracterizam
essas relações pela “sede de poder”.
Nunca ouvi críticas a respeito dos terreiros em função de suas ritualísticas, apenas
elaborações de que “isso não nos serve” – semelhante é dito de casas espíritas. O mesmo vale
para o sacrifício animal realizado por casas de Candomblé e de Batuque. Certa vez El. e Ys.
me disseram que uma jornalista as havia procurado em 2015, ano em que ocorria uma
acirrada disputa entre ambientalistas e lideranças de terreiro sobre a proibição de sacrifício
animal81. O intuito da jornalista era apresentar terreiros que existem sem o uso do sacrifício
animal e viram na Morada essa possibilidade. Ao perceberem os usos que poderiam fazer
disso – de “ataque” aos terreiros –, as mais velhas negaram a entrevista e informaram à tal
jornalista que apesar de não utilizarem sangue animal em suas ritualísticas percebiam a
importância dos demais terreiros, enquanto saberes ancestrais, e respeitavam suas ritualísticas
tal como são.
Consideram-se um kilombo, como já disse. Para além dos elementos já apresentados,
argumentam que os quilombos não vivenciam uma espiritualidade comum, o que abre brecha
para uma série de rachas e disputas internas, muitas delas vinculadas tanto a diferentes formas
religiosas – como o aumento de igrejas evangélicas que, para as mais velhas, afastam os
sujeitos de suas ancestralidades – como também vinculadas a questões partidárias ou de quem
possui mais recurso financeiro, que enfraquecem o sentido de “comum unidade”, como
entendem o que é um kilombo com k.
Questionam, sobretudo, o papel adotado por alguns mediadores da questão quilombola
e sua “sede de poder”, a partir de algumas situações que vivenciaram ao longo dos anos e
constataram, inclusive, as imposições que certos mediadores colocavam para alguns
quilombolas. De todo modo, a percepção que possuem é que muitos deles acabam
“vampirizando” as comunidades para benefício próprio. Mas a desconfiança que possuem não
implica uma negação à priori da relação. Um exemplo disso foi com uma pessoa, que passou
a ser amiga da comunidade, e trabalha na Secretaria de Desenvolvimento Rural,
principalmente com terras quilombolas e indígenas. De tanto ouvir sobre a comunidade,
contatou-a para conhecer e dar uma assessoria a respeito da possibilidade de solicitarem o
81Este foi um projeto criado pela Deputada Estadual Regina Becker do PDT. Em 2003, a prática de sacrifício
havia sido barrada com a aprovação do Código Estadual de Proteção aos Animais pela Assembléia Legislativa.
Um ano depois, visto a organização dos povos de terreiro, o parlamento voltou atrás em suas decisões,
percebendo que isso feria a liberdade religiosa prevista na constituição.
198

registro de autorreconhecimento quilombola ao Estado. Quando nos conhecemos, ele contou,


entre risos, que seus contatos iniciais com a Morada foram motivo de desconfiança por parte
das mais velhas e que somente aos poucos foram construindo uma aproximação. Foi com o
auxílio dele que a Morada solicitou a certificação à Fundação Cultural Palmares.
Para além dessas relações, acredito que se a Universidade fosse uma ala dessa Marcha,
poderíamos fazer uma análise semelhante, visto que todas as mais velhas da comunidade, e
muitas das mais novas, tem formação universitária. Estabelecem uma relação com diferentes
Universidades e, inclusive, criaram um grupo de pesquisadores kilombolas na Faculdade de
Educação da UFRGS. Ainda que participem da Universidade, estabelecem com ela uma
relação de constante aproximação e distanciamento, pois consideram um espaço dominado
pelo ego, pela competitividade, e que se utiliza de saberes dos povos tradicionais para si
própria, o que também caracterizam como “sede de poder”. De toda forma, desenvolvem a
partir da Universidade uma série de vivências, leituras, reflexões e práticas sobre o que
chamam de Ekonomia do Afeto e Pedagogia do Encantamento, questões que pretendo
desenvolver mais adiante.
Em relação à cadência e serialização dos blocos constituintes da Marcha, a Morada
parecia instituir outro ritmo, pautado por movimentos aparentemente invisíveis, não apenas
evidenciado no ipadê posterior, mas também na finalização da Marcha. Não houve um ponto
de encontro final, como é de praxe, e houve uma certa dispersão dos coletivos exatamente
numa encruzilhada, entre a rua José do Patrocínio e a Avenida Loureiro da Silva, próximo ao
Largo Zumbi dos Palmares. Ali, no cruzamento entre duas vias, a Marcha parou. Esperamos
um tempo, mas a situação produziu em nós desconforto pelo movimento truncado. Foi Mj.
quem alertou que estávamos bem em uma encruzilhada e que, talvez, fosse hora de irmos
embora e tomarmos os banhos de limpeza que foram orientados. Durante o ipadê onde esse
fato também foi narrado, nosso relato foi acompanhado por trocas de olhares entre as mais
velhas que pareciam compreender o que aquilo implicava. Havia movimentos operantes
naquela Marcha que rompiam com a cadência e serialização dos blocos.
Existe uma espécie de cartografia desenvolvida pela comunidade, onde localizam e
marcam suas distâncias e aproximações com outros que são, é importante ressaltar,
fundamentais para a construção do que é a Morada. Penso que poderíamos traçar dois
principais aspectos de distanciamentos. O primeiro passa pelo que dizem “sede de poder” e as
“energias densas” que participam disso, como caracterizam certas relações conflituosas e
impositivas que encontram nas representações em instâncias decisivas do Estado, em
lideranças políticas partidárias ou em espaços instituídos da organização da sociedade civil.
Como parte desta “sede de poder” encontramos o perigo do utilitarismo – tais como possíveis
199

apropriações da Universidade, dos partidos políticos, das ecovilas ou de diferentes


mediadores, capazes de “vampirizar” certas situações em benefício próprio. Neste aspecto, é
interessante perceber que o utilitarismo nas relações é atravessado também por utilitarismos
energéticos, como forças que “usam” pessoas, relações ou materialidades para produzir algo
destrutivo82. O segundo é a perspectiva reencarnacionista da comunidade, que a afasta de
certos espaços políticos que adotam outras centralidades em suas lutas, tais como gênero, raça
ou classe – que, por vezes, são pautadas pelo “rancor” e por ações reativas, do
“enfrentamento”, como motor da mobilização.
Um exemplo do que seria esse “enfrentamento” foi narrado nesse mesmo ipadê sobre
o Fórum Social das Resistências. El. disse-nos que antes de iniciarem a participação na feira
do Fórum, Seu Sete se manifestou e “preparou os corpos” dos moradores que sairiam do
território e que os efeitos desse preparo só foram entendidos depois de alguns acontecimentos
durante o evento. A Morada participava com sua banca de vendas de artesanatos na Feira de
Economia Solidária, localizada no Parque Redenção. Ali, no mesmo local, uma série de
oficinas e mesas redondas aconteciam. Em um dado momento, bem próximo à banca da
Morada, um rapaz surge, bastante alterado, agredindo verbalmente um grupo de pessoas que
estava em oficina. Identificou-se como membro do MBL (Movimento Brasil Livre), um
movimento nacional articulado de extrema-direita que vem ganhando popularidade desde
2013. Tão logo suas agressões iniciaram, ele foi afastado do local por outros movimentos ali
presentes. Depois, ficou rondando o local, tentando provocar as pessoas que lá estavam, mas
sem sucesso.
Após esse fato, entenderam a importância do zelo e do cuidado de Seu Sete que,
segundo El., deu àqueles integrantes da Morada que lá estavam a proteção necessária ou,
como ela colocou, “como se tivesse nos vestido de uma capa de invisibilidade àquelas
energias que estavam tentando tumultuar e provocar tensionamentos”. Neste momento, El.
também chamou a atenção de uma das pessoas da irmandade, que presenciou a situação, pois
ela, durante o acontecido, “abriu o campo para troca de olhares” com ele e tornou-se
vulnerável àquelas energias. Ressaltou que, nesses momentos, é importante que não se
estabeleça este tipo de relação, pois essas “energias densas poderiam nos encontrar” e, com
isso, as agressões se direcionarem para as pessoas da comunidade. Foi por isso que, durante o
ocorrido, chamaram a atenção desta irmã para que baixasse os olhos e aceitasse a
invisibilidade como um artefato de guerra.

82Comentei mais desenvolvidamente no capítulo anterior, mas esse uso que as forças cósmicas em guerra fazem
dos sujeitos não é corroborar com uma passividade destes. Ao contrário, se essas forças viram nos sujeitos ou
nas coisas uma possibilidade de uso é porque houve, de alguma forma, certa abertura à conexão. Para não
serem utilizados por certas forças é preciso ter atenção constante.
200

Não cruzar os olhares está vinculado a um ensinamento trazido por Mãe Preta, e
apresentado no capítulo anterior, de que “a Morada não é do enfrentamento”. Enfrentar
implica um processo de reação frente a uma atitude do outro, caracterizada principalmente por
compor com ele um mesmo “campo energético”, para usar uma expressão da Morada da Paz,
onde o rancor e o ódio são considerados os principais motores. Como as Yas me ensinaram
em inúmeros momentos em que eu ia para as mais diversas manifestações políticas, a atitude
reativa encontra-se, de alguma forma, presa ao modus operandi daquilo a que responde. Por
isso, obedece ao funcionamento do outro e, para usar uma expressão que ouvi de El., “não é
senhora de si”, pois está submetida a uma atitude externa. Está, portanto, refém daquilo que o
outro manifesta. A emancipação, nesta perspectiva, jamais poderia emergir de um movimento
reativo. E esses conhecimentos na Morada, como me ensinou El., vêm do budismo.
Além disso, essa situação nos apresenta um aspecto interessante. O perigo é constante
e eminente, pois todos na comunidade são passíveis de serem atravessados por essas mesmas
“energias densas”, como o caso da chamada de atenção feita por El. à troca de olhares. Não
existe sujeito (coletivo ou não) que esteja invulnerável a elas 83. “Nada e nem ninguém nos
representa”, disse Ys. E sua fala soa-me como um intenso e profundo desejo de
autodeterminação. Contudo, o que sustento é que não se trata de uma negação prévia a um
representante, como se fosse um princípio ideológico da comunidade a não-representação. O
que há é a impossibilidade da representação. Volto a dizer, não implica a impossibilidade da
relação, que é sempre parcial e nunca totalizante. Deixar-se representar seria, acima de tudo,
perigoso. E o risco estaria na fuga dos “propósitos” que guiam a comunidade, o risco de “se
esquecer de si” como um território de luta e de fortalecimento frente às guerras cósmicas em
jogo.
*
A Morada da Paz opera uma geometria política das distâncias, quando observa em
negativo todos aqueles com quem estabelece zonas de contato, de proximidade, para traçar
uma linha de fuga, incapturável às formas instituídas. Primeiro, afasta-se pela dimensão
reencarnacionista e pela impossibilidade da representação por qualquer outra pauta que não
fosse a guerra da qual participam. “Sede de poder” e “rancor” surgem como elementos que a
afasta de possíveis articulações, pois considera essas características perigosas e nocivas ao
trabalho que desenvolvem naquilo que chamam de guerra cósmica. Mas o que há de comum
entre essas duas concepções? Percebo que essas duas dimensões não necessariamente
caminham juntas, ou seja, pode-se ter “sede de poder” e não se ter “rancor” e vice-versa.
83É exatamente por isso que se seguem inúmeros procedimentos ritualísticos no cotidiano comunitário. A cada
retorno ao território após algum trabalho externo realizado pela Morada, seguem-se diversos rituais de limpeza
– seja banho de limpeza e harmonização, seja descarregos na fogueira. Há, portanto, que se ter muito cuidado
na tecitura dessas relações políticas, que são também espirituais.
201

Porém, ambas compartilham de uma verticalidade fundante das relações. Por “sede de poder”,
o desejo de dominar e se utilizar de outros e de buscar benefícios para si; por “rancor”, uma
reação violenta a uma atitude também violenta, que, por sua vez é dependente desses outros.
De um lado, o desejo de dominar, de outro uma reação ao dominador. Ambos portanto,
pautados e aprisionados por uma relação de dominação.
Se estas são algumas das formas através das quais certas “energias densas” se
manifestam, é com a afirmação de si e com a criação de outros modos de relação que a
comunidade adentra essa “guerra cósmica”. Ou, poderíamos dizer, com aquilo que Nietzsche
chamou de “vontade de potência”84, a força motriz da vida.

4.1.1 Pescaria com vara

Foi quando Ys. passou uma noite em minha casa, no Rio de Janeiro, no início de 2018,
que conversamos mais diretamente sobre a pescaria. Já tinha ouvido esse termo algumas
vezes na comunidade, como análogo ao processo de recuperar, desenvolvido no primeiro
capítulo. Mas, em nossa conversa, ele recebeu outro tratamento. Ela me contava dos desejos
que tinha de desenvolver junto às mulheres da Vila Pimenta um projeto de ekonomia do afeto.
Contou-me ainda que tentaram algo do tipo há alguns anos, mas precisaram sair do local, pois
começaram a receber ameaças – tanto do tráfico, quanto dos maridos que se sentiram
profundamente incomodados com o fato de suas esposas desenvolverem artesanatos e outras
habilidades como um meio de ganhar seus próprios recursos financeiros. Conversávamos
sobre os desejos que tinha de retomar esse projeto e sobre os perigos inerentes a esse tipo de
ação.

84Seria impossível não fazer um paralelo aqui com Nietzsche em dois aspectos. Tanto a crítica que o autor faz ao
ressentimento, de caráter reativo que imputa a culpa a alguém ou a si mesmo, como uma das maiores
evidências de fraqueza que ele combate (2008, p. 19), quanto a diferenciação feita por Deleuze, onde ele nos
diz que a Vontade de Potência em Nietzsche não é querer a potência ou querer os valores já estabelecidos. Ao
contrário, vontade de potência, em sua forma intensiva, está em dar e em criar. Portanto, vontade de potência
não é uma vontade que quer a potência ou que deseja dominar. Com efeito, uma tal interpretação apresentaria
dois inconvenientes. Se a vontade de potência significasse querer a potência, ela, evidentemente, dependeria
dos valores estabelecidos, honrarias, dinheiro, poder social, pois esse valores determinam a atribuição e
recognição da potência como objeto de desejo e de vontade. E a vontade que quisesse uma tal potência
somente a obteria lançando-se numa luta ou num combate. Ademais, perguntemos: quem quer a potência dessa
maneira? quem deseja dominar? Precisamente aqueles que Nietzsche chama de escravos, fracos. Querer a
potência é a imagem que os impotentes constroem para si da vontade de potência. Nietzsche sempre viu na
luta, no combate, um meio de seleção, mas que funcionava a contrapelo, e que redundava em benefício dos
escravos e do rebanho. Entre as mais bombásticas palavras de Nietzsche encontramos: “tem-se sempre que
defender os fortes contra os fracos”. Sem dúvida, no desejo de dominar, na imagem que impotentes constroem
para si da vontade de potência, reencontra-se ainda uma vontade de potência: porém, no mais baixo grau. A
vontade de potência, em seu mais elevado grau, sob sua forma intensa ou intensiva, não consiste em cobiçar e
nem mesmo em tomar, mas em dar e em criar. Seu verdadeiro nome, diz Zaratustra, é a virtude que dá. E que a
máscara seja o mais belo dom, isso dá testemunho da vontade de potência como força plástica, como a mais
elevada potência da arte. A potência não é o que a vontade quer, mas quem quer na vontade, isto é, Dionísio
(DELEUZE, 2010a, p. 157-8).
202

Disse a ela que nesses momentos seria muito importante ter uma “rede” de apoio,
principalmente de advogadas que poderiam orientar e dar a devida proteção jurídica às
mulheres que precisassem e lembrei de algumas organizações com essa finalidade. Foi
quando Ys. comentou que não gostava muito da ideia de rede e que preferia a ideia de
pescaria. Afinal, explicou-me ela, quando se joga a rede no mar, vem até aquilo que não
gostaríamos que viesse. Quando se pesca com vara, escolhe-se bem quem se quer para
compor os movimentos e as ações. Havia entendido o uso do termo quando falavam em
recuperar ritos ou ações de mundos que foram devastados, mas agora ela acionava esse termo
em relação a coletivos e grupos contemporâneos. A pescaria surge como uma estratégia de
ação na construção de articulações, e explicitou um tanto dos meus vícios em pensar e fazer
política.
Fiquei confusa com a conversa, até entender que ali se manifestava um “equívoco” 85.
Eu acionava “rede” como uma ferramenta de análise das organizações políticas, ela acionava
uma ferramenta de obtenção de alimento, no caso, o peixe. Eu me referi a “rede” como um
modo de entender e nominar relações entre pessoas e/ou grupos com afinidades políticas
frente a uma situação específica: em casos de violência contra mulher, aciona-se pessoas que
dão assistência jurídica a esse tipo de situação. “Rede” seria um conceito de análise da relação
entre grupos. Ela, por sua vez, atrelou a rede a uma ação em que há um sujeito executante, no
caso ela – aquela que joga a rede para obter o alimento, mas que prefere, contudo, pescar com
vara, pressupondo melhor qualidade no que será pescado. Ela falava como aquela que pesca,
portanto, como agente da ação que busca o alimento para a sua nutrição e permanência. Eu,
contudo, como aquela que objetiva e observa a extensão de articulações formadas.
Demorei para entender que falávamos de lugares e corpos muito diferentes, mas
quando percebi, senti que deveria amplificar os ruídos que nossa conversa produzia. Quando
Ys. me contou da técnica da pescaria com vara como opção estratégica, disse-me que ao
longo dos anos a Morada teve experiências não muito boas nessas relações de rede entre
organizações. Ou seja, um coletivo que se relaciona com outro coletivo, a princípio com
ideias e ações semelhantes, mas sem implicação pessoal e afetiva entre os sujeitos em relação.
Para a Morada, as relações só podem ocorrer com engajamento afetivo. Se bem entendi, não

85Penso o equívoco tal como apresentado por Viveiros de Castro (2004), como parte de um processo de tradução
constituinte da Antropologia na relação de alteridade, onde não se silencia o Outro, assumindo uma
univocidade inexistente, mas adotando a diferença como perspectiva. No caso que aqui apresento, retomo o
exemplo desenvolvido pelo autor que ilustra o equívoco. Na relação entre o jaguar e o humano, o primeiro vê
como cerveja aquilo que o segundo vê como sangue. A comunicação entre essas diferenças se dá por uma
“equivocação controlada”, compreendendo que apesar do conceito (cerveja e sangue) ser compartilhado, a
coisa em si emerge como diferente a depender de quem diz. Os conceitos e as coisas estão conectados apenas
parcialmente e uma mesma palavra pode se referir a diferentes coisas, a depender de quem a profere e em que
mundo. No caso que aqui apresento “rede” aparece como um conceito que, dependendo de quem o profere,
tem diferentes implicações.
203

interessava a ela propriamente as organizações – independente se condiziam com os interesses


pontuais da Morada –, pois com elas pode vir “até o que não se quer”. Desejavam pessoas, de
carne, osso e história, com as quais poderiam contar para o fortalecimento das ações
comunitárias. Importava mais pescar pessoas com habilidades específicas – que podem
participar de grupos, organizações e instituições ou não.
Assim realizam as articulações, fundamentais para sua manutenção, visto que a
Morada não se concebe, e nem se sustentaria, como uma mônada fechada em si mesma. Ao
contrário, desde seu surgimento estabelece relações de parceria e de aliança nas ações que
desenvolve através da pescaria com vara. Como me ensinaram, parceria e aliança não são a
mesma coisa. Parceiros são relações pontuais, onde o vínculo estabelecido é menos
duradouro. Aliança, contudo, implica durabilidade. Como Ys. comentou, há algumas pessoas
que possuem uma relação de aliança com a comunidade e que sabem que podem contar com
o território a qualquer momento e para qualquer demanda, assim como a comunidade sabe
que pode contar com essas pessoas nas mesmas situações. Há, nessas relações, o que Ys.
chamou de uma “matéria energética da gratidão” que não se encontra em qualquer relação.
Por isso, para elas, relações de parceria não são relações de aliança, ainda que possam vir a
se tornar.
Recupero aqui uma diligência realizada, onde as diferenças entre pescaria com vara e
rede ficaram mais evidentes. Recebi a incumbência de participar junto com Ym. de uma
reunião no Quilombo dos Alpes, que fica em uma região rural da cidade de Porto Alegre. Uma
das principais protagonistas da luta do Quilombo dos Alpes é Jj., uma senhora de longa
história de resistência, filha de Xangô, conhecedora de todos os cantos do território que
compõe o quilombo – que, por sua vez, é alvo constante de invasões policiais e da
especulação imobiliária. O encontro em questão era uma conversa entre diversas frentes do
movimento negro e quilombola sobre a atual conjuntura e possibilidades de ação conjunta.
Quem chamou a Morada da Paz para esse encontro foi uma militante antiga do movimento
negro, que atualmente tem trabalhado com população de rua e tem acompanhado de perto a
construção da Escola ComKola Kilombola Epe L’ayiè.
Chegamos ao local, nós três, e encontramos Jj. na sede da associação do quilombo. Ela
nos convidou para conhecer a região junto com um grupo universitário que havia chegado
para visitação. Foi a primeira vez que estive no Quilombo dos Alpes e fiquei bastante
maravilhada com a extensão do território, a vista esplêndida da cidade, e com a pedreira que
existe no local, de uma imponência digna de seu guardião, Xangô. Tocaram-me também as
narrativas de violência que o território e seu povo têm sofrido. A quantidade de balas de arma
de fogo espalhadas pela pedreira materializa os receios daqueles que ali moram e resistem. Jj.
204

contava sua história de luta, de resistência e de fé com muito apreço e compartilhava conosco
seus sonhos e projetos para o local. Dentre eles, uma escola infantil que permitisse às mães e
pais trabalharem tranquilos. Era um desejo muito semelhante àquele que esboçava seus
primeiros passos na Morada da Paz. Ym. e Jj. conversavam sobre a vida, sobre suas famílias e
lutas. É uma relação de amizade. Volta e meia, Jj. contata a Morada e vice-versa para as
questões mais diversas, inclusive em relação a atendimentos espirituais.
Entendi, contudo, a pescaria quando o encontro – ao qual fomos destinadas a estar –
tomou corpo em uma roda de conversa com diversos militantes da causa negra e quilombola.
Antes do encontro iniciar, Ym. havia me alertado para observar os “fluxos energéticos”, e de
que o silêncio nesses espaços poderia ser um grande aliado. Fala semelhante ouvi de El., em
outro contexto, sobre a necessidade de sabermos nos preservar, visto que palavra é poder. Ali
eu era uma iaô, uma das poucas brancas do local, acompanhando uma mais velha. As pessoas
que lá estavam eram e são importantes nomes da militância negra da cidade de Porto Alegre e
a conversa começou com uma roda de apresentação onde cada um informava a organização na
qual estava implicado. Depois, desenvolveu-se um longo discurso por um dos participantes,
no sentido de explicitar aos demais a conjuntura política – as reformas que o então governo
Temer estava propondo e os impactos sobre a população negra e quilombola.
Tão logo ele cessou a fala, seguimos para os encaminhamentos, pois a hora já estava
avançada. O que restou do encontro foi uma possibilidade de articulação entre quilombos e
terreiros, voltada para a geração de renda, que se perdeu no momento em que nos despedimos
e voltamos para nossas casas. O terreno das ideias, ainda que arado naquela roda de conversa,
não foi “preenchido de uma vida nova”86. Saímos do encontro e retornamos ao território para
“descarregar” na fogueira, como é de praxe em toda diligência feita, e logo encontramos Ys.,
que perguntou como estava Jj. e sua família. Sem dúvida, as relações estabelecidas naquela
reunião contrastaram-se com as relações afetivas que se desenvolveram minutos antes entre
Ym. e Jj. e que denotavam uma relação despretensiosa de amizade. Em suas conversas não
havia pauta e nem encaminhamentos, era apenas o entrelaçamento de duas vidas que
compartilhavam seus cotidianos e seus anseios.
Enquanto voltávamos para o território, eu e Ym. conversamos muitos sobre como se
desenvolveu aquele encontro. Não houve julgamento moral algum, por parte de Ym., sobre o
modo como ele se desenvolveu, mas uma trivial incredulidade nos seus frutos. Conhecia, pelo
menos à distância, as pessoas que ali estavam e como teciam algumas de suas relações e
articulações políticas. E, após dissertar sobre essas relações – de alianças e de contrastes – que

86Retiro essa expressão do Comitê Invisível (2016, p. 197): “Habitar plenamente é tudo o que podemos opor ao
paradigma do governo. Podemos lançar-nos contra o aparelho de Estado; mas se o terreno ganho não for
imediatamente preenchido de uma vida nova, o governo acabará por tomá-lo de volta”.
205

ali se estabeleciam, pontuou-me o óbvio: “não é assim que a gente se relaciona, né,
Folaiyan”. Daquele encontro, a pescaria foi reforçada com Jj., ainda que nenhum
encaminhamento tenha sido tirado, apenas o desejo de uma nova visita. A situação parece nos
ensinar um aspecto fundamental das articulações feitas pela Morada da Paz: a dissolução
dessa falsa separação entre espontaneidade e organização87, em que os engajamentos
cotidianos, a vida em seu curso e seus laços afetivos são as bases para qualquer possibilidade
de transformação.

4.1.2 Alianças

Figura 13: Kariri-Xocó e Fulni-ô e Yas - Okan Ilu 2017

87Como coloca o Comitê Invisível (Ibidem, p. 198): “Raul Zibechi escreve sobre a insurreição aymara de El
Alto na Bolívia em 2003: ‘(…) O problema é que não estamos dispostos a considerar que as relações de
vizinhança, de amizade, de camaradagem, de família, que se forjam na vida cotidiana, são organizações ao
mesmo nível que o sindicato, o partido ou mesmo o Estado. (...) Na cultura ocidental, as relações criadas por
contrato, codificadas através de acordos formais, são muitas vezes mais importantes do que as lealdades
tecidas por laços afetivos.’ (...) Devemos conceder aos detalhes mais cotidianos, mais ínfimos da nossa vida
comum, a mesma atenção que concedemos à revolução. Pois a insurreição é o deslocamento num terreno
ofensivo desta organização que não é apenas uma, e que é inseparável da vida comum. Ela é um salto
qualitativo no seio do elemento ético e não a rutura por fim consumada com o cotidiano. (...) Assim se dissolve
a estéril distinção entre espontaneidade e organização. Não há de um lado uma esfera pré-política, irrefletida,
‘espontânea’ da existência e de outro uma esfera política, racional, organizada”.
206

Através da pescaria a Morada constrói suas relações de parceria e, sobretudo, de


aliança. E são nesses termos que percebem e analisam muitos dos seus movimentos de
viagens e deslocamentos. Perguntei para Ys. se as diligências, como chamam essas viagens ou
deslocamentos que realizam, têm como intuito a pescaria, e ela me disse que sim. Tal como a
participação no Fórum Social das Resistências foi um espaço possível de pesca, as diligências
também são. Assim tem acontecido nas diversas viagens que realizam para a Índia, onde volta
e meia alguém da comunidade passa por processos de iniciação no budismo tibetano
mahayana. E foi assim, também, que aconteceu em uma diligência realizada no sul da Bahia,
na cidade de Arataca, em um encontro de Agroecologia que contou com a participação de uma
série de comunidades da região, no Assentamento Terra Vista.
Quem me narrou essa história foi Ys. Ela e Ol. foram para o encontro em Arataca.
Havia muitos indígenas da região, principalmente Pataxó e Tupinambá. Em um dado
momento, houve um toré88 com índios mais velhos. Ys. e Ol. foram convidadas a participar do
toré, mas, como me disse Ys., preferiram “ficar na sustentação”. Segundo Ys., isso fez com
que os mais velhos tivessem interesse em se aproximar delas. Após esse toré, as mulheres
indígenas e negras, que ela chamou de “bruxas”, juntaram-se informalmente para uma
conversa, enquanto pitavam seus cachimbos. Ys. e Ol. resolveram participar. Naquela
conversa combinaram fazer um ritual na manhã seguinte, próximo ao rio. Ys. acabou não indo
ao tal ritual. M. Pataxó, uma das indígenas que estavam presentes, encontrou-a e disse que era
muito importante que ela estivesse naquele ritual. Constrangida por ter faltado ao encontro
combinado, Ys. pediu desculpas por não ter aparecido. Porém, mais tarde houve outro toré e
novamente Ys. foi convidada a entrar. Acabou por aceitar o convite.
Naquele toré, Sultão das Matas se manifestou em M. Pataxó e conversou com Ys.. O
caboclo lhe perguntou se “na sua terra tinha a verdade”, olhando bem nos seus olhos, e Ys.
respondeu a ele que sim. Contou-me que Sultão das Matas a analisou dos pés a cabeça… e
logo disse que trabalharia “na sua terra, com seu povo”, pois “lá mora a verdade”. Foi assim
que Sultão das Matas passou a manifestar na Morada da Paz. Ele, como me disse Yb., é a
entidade que traz a força dos povos indígenas que lutam pelas suas terras. É um “encantado”,
disse-me Ys., ou seja, um espírito indígena que auxilia na luta dos povos indígenas na Terra,
explicou-me. Em outro momento, El. disse que Sultão das Matas veio trabalhar na Morada
para fazer um “chamado para a guerra”. Uma guerra que não é como a conhecemos, aquela
que leva ao ódio e à dor, pois é uma guerra pela paz. Segundo ela, ele veio trabalhar com as
entidades que aqui já estão e chamar outras entidades que aparecerão para que se alinhem na
luta pela paz. Ao chegar aqui, tornou-se também um guardião desse espaço. Por isso foi feito
88Toré é uma dança ritual compartilhada por diferentes povos indígenas do nordeste, que mescla dança, religião,
luta e brincadeira, acompanhada por cantos sagrados.
207

uma trilha em reverência a ele, conhecida como a trilha do Sultão. A partir da aliança com
esta entidade, construiu-se uma aliança também com a luta dos povos indígenas humanos,
como se Sultão das Matas fosse uma extensão das lutas travadas por encantados e indígenas
humanos.
Semelhante podemos dizer da diligência realizada em 2016 em uma aldeia Guarani
Mbyá. Sobre isso, lembro que soube apenas depois, quando a diligência já havia ocorrido, em
um ipadê com toda a irmandade. Foram as mais velhas que narraram o fato para toda a
Irmandade. Mãe Preta havia orientado que Ay., filho adolescente de El., permanecesse alguns
dias, uma semana ao todo, em uma aldeia indígena da Amazônia. Como não havia condições
disso acontecer, pela falta de dinheiro e tempo, visto que Ay. ainda cursava suas aulas na
Escola, Mãe Preta concordou com que essa diligência se realizasse mais próxima. Foram,
então, de carro até Cantagalo, uma região da cidade de Viamão, cidade vizinha a Porto Alegre,
onde há algumas aldeias indígenas Mbyá.
Já estiveram outras vezes no local e conheceram lá um cacique com quem mantiveram
contato. Porém, ao tentarem chegar novamente à aldeia, perderam-se pelo caminho e
acabaram chegando em outra aldeia Mbyá. Resolveram parar, confiar nas entidades que as
acompanhavam, e conversar com o cacique da aldeia. Como acreditam que nada acontece por
simples acaso, confiaram de que deveriam estar exatamente naquele local. O cacique, cujo
nome não me recordo, estava bastante desconfiado do que aquelas mulheres negras queriam
com ele e com seu povo. As mais velhas disseram o que as tinha movido até o local e
contaram da orientação dada por Mãe Preta, para que Ay. permanecesse uma semana com
eles. Para surpresa delas, o cacique disse que os seus mais velhos disseram que algo do tipo
aconteceria e prontamente acolheu a proposta delas – o que foi refletido posteriormente ser
resultado das alianças pré-estabelecidas por Mãe Preta com as entidades que os regem. No
dia seguinte, chegaram novamente ao local com Ay. e com alguns alimentos para a semana.
Ay. voltou à Morada com muitas histórias para compartilhar. Ficou impressionado com
as semelhanças entre a comunidade e a aldeia. Contou-nos que as conversas também ocorriam
em círculo, muitas vezes ao redor do fogo, que as crianças também recebiam um nome dado
pela comunidade, que os Guarani também possuem diversos ritos. Contou-nos das
dificuldades de alimentos que tinham na comunidade e dos aprendizados que teve com os
mais velhos da aldeia. A pedido de Mãe Preta, aprendeu através dos saberes indígenas a fazer
um cachimbo, a xanduca, e a presenteou. Ela, logo que recebeu seu presente, divertiu-se com
o tamanho do cachimbo. Era realmente muito grande! Mas esse cachimbo, produzido por
mãos kilombolas da Morada da Paz em território indígena Mbya Guarani, não era apenas um
cachimbo. Como Mãe Preta nos disse, aquela xanduca era o marco de uma relação, de uma
208

“aliança espiritual entre os povos”. Afinal, objetos também produzem relações e, no caso em
questão, relações entre mundos89.
Poderíamos, contudo, expandir a própria noção de diligência, que implica ir ao encontro
(e a trabalho espiritual) de outros que precisam de auxílio, ou com os quais pode haver um
fortalecimento mútuo – como o que ocorreu durante um trabalho de transmigração. Eu não
estava presente, mas soube de um determinado trabalho que os médiuns foram orientados a
buscar, ir ao encontro de outros seres para auxiliar, tudo o que poderia ser dor, medo, tristeza
ou qualquer desses sentimentos que poderiam atravessar os povos indígenas. Nessa busca,
contaram-me que um determinado povo foi alcançado. Um povo que há tempos vagava sem
rumo no “plano astral” e que, sob orientação de Mãe Preta, foi alcançado pelas forças que a
Morada da Paz mobiliza. Nele havia uma anciã, que é uma de suas lideranças, e que
recentemente se manifestou na Comunidade, através da incorporação.
Informou ser da etnia capucã (a escrita segue o modo como foi dito por ela) e contou
que seu povo foi dizimado pela guerra – não sabemos ao certo que guerra e em que época. As
que sobraram, que foram sobretudo mulheres e crianças, adotaram o suicídio coletivo – ao
comer terra – como estratégia de fuga da violência que sofriam. Esse povo tinha por
característica as decisões espirituais e políticas serem realizadas por mulheres, e a anciã que
se manifestou foi e é uma dessas lideranças.
Disse-nos que a Morada, sob orientação de Mãe Preta, havia auxiliado-a e seu povo,
que vagavam pelo mundo espiritual. E que, em troca, colocaram-se à disposição para auxiliar
na construção de um projeto a ser germinado no território Morada da Paz, trazido por Mãe
Preta. Ali se solidificou uma aliança. Mãe Preta, então, solicitou a ela que auxiliassem na
construção do que seria a Multiversidade dos Povos, projeto que ainda se encontra em
processo de maturação. O que a anciã de nome Iupacã nos trouxe foi que a Multiversidade
trará a força das ancestrais “sangomas, morubixabas, carides, tocau”, dos povos da terra, e
que “mulheres que foram esquecidas foram chamadas” a auxiliar nessa construção. “Mulheres
ancestrais virão para trazer seus pensamentos” e para isso “é preciso reunir o povo e sonhar
juntos nessa lua. Para que acessem os campos do sol, da chuva, do vento da Multiversidade”.

89O cachimbo, Sultão das Matas, M. Pataxó e outros que aparecerão ao longo dessa escrita, aparecem como
mediadores, nos termos cunhados por Latour quando elabora suas proposições sobre a Teoria Ação-Rede. O
mediador transforma, traduz, distorce, modifica o significado ou os elementos que vincula. (LATOUR, 2012,
p. 65). No caso do cachimbo dado a uma Preta Velha que, com ele, realiza seus “trabalhos”, o cachimbo é um
mediador que produz alianças entre mundos visíveis – a aldeia Mbyá e a comunidade kilombola, as quais volta
e meia se visitam –, mas também entre mundos invisíveis que, muitas vezes, nós humanos não percebemos e
nem nos é dado a conhecer de antemão. “Alianças espirituais”, concepção constante na Morada da Paz, muitas
vezes aparecem como uma grande incógnita de relações, de que muito pontualmente obtemos algumas
informações através das entidades, especialmente através de Mãe Preta. A sensação que tenho é de que há mais
relações a partir da feitura do cachimbo do que nos é dado a conhecer. A cadeia de associações produzidas por
este mediador, por exemplo, é sempre parcialmente conhecida por nós, humanos.
209

Outra importante diligência realizada pela comunidade foi sua participação no


encontro da Rede Global de Ecovilas que aconteceu em Senegal em 2014. Ys. foi
representando a comunidade e, importante dizer, foi a primeira vez que alguma integrante da
comunidade esteve no continente africano. Essa diligência permitiu trazer à comunidade uma
ritualística singular que foi incorporada durante o Terreiro de Chão Batido, que acontece um
final de semana após o Muzunguê de Xangô. Trata-se de um modo particular de comer, onde
homens e mulheres são separados, cada sujeito portando uma colher à mão, e em cada grupo
alimentam-se em uma mesma bacia.
Mas, acredito, nas narrativas que ouvi sobre essa diligência específica, não me lembro
de relato algum sobre alianças construídas no local – seja com humanos, seja com não-
humanos. O que ouvi, contudo, foram reflexões muito contundentes de Ys. sobre sua
experiência em território africano, no qual estava muito ansiosa para estar, visto ser o
território dos seus ancestrais. Contou-nos que a experiência que teve no Senegal foi bastante
tocante, pois pôde ver de perto parte da África. Pôde circular por alguns movimentos,
conhecer iniciativas interessantes, perceber, como ela mesma disse, aspectos de uma “forte
ancestralidade”, “muita força”, “muita raiz”, “muita verdade no continente onde tudo
começou”. Um momento de reencontro com as forças ancestrais que permanecem vivas e
pulsantes. Porém, viu também como a colonização se instalou por lá.
Essa conversa, que fazia os nossos olhos brilharem, aconteceu durante a manhã de
preparação para o Muzunguê de Xangô. No final de semana seguinte, aconteceria o Terreiro
de Chão Batido, momento dedicado à celebração dos povos. Enquanto nos narrava sua
experiência, também compartilhava reflexões sobre o mundo, sobre os movimentos negros
atuais. Disse-nos que sentia que tudo isso de que se tem falado sobre afrocentricidade não se
trata, para ela, de um retorno à África, pois a África atual é muito diferente do que se imagina.
Ainda que haja “muita força ancestral”, ela viu muita pobreza, muita colonização – seja
cristã, seja muçulmana. Por isso, disse ela pensando em voz alta, “afrocentricidade talvez seja
algo como resiliência”. Não o retorno às origens – no sentido de voltar ao continente africano
–, mas a capacidade de se reinventar, de se regenerar em meio a devastação. Não apenas aqui
no Brasil, ou nas Américas, mas na própria África haveria essa necessidade de resiliência.
Seguindo em suas reflexões, disse-nos que, para ela, a prova viva da capacidade
inventiva do povo negro, de sua resiliência, são os terreiros. Trouxeram seus Orixás e, apesar
de toda a violência e extermínio, criaram meios de continuar cultuando suas divindades, em
um formato diferente do modo como eram cultuados no continente africano. El. terminava de
servir o seu café para sentar conosco à mesa e Ys. dizia a ela, com quem há anos divide a vida
e suas reflexões: “Afrocentricidade é resiliência, capacidade de se regenerar”. Naquele ano
210

de 2016, Akaã foi o tema do Terreiro de Chão Batido, uma das palavras centrais que aprendeu
no Senegal e que, em português, foi traduzido por ela como resiliência. Pescou-se um
conceito.
*
Seu comentário, na simplicidade de um café da manhã às vésperas de um atendimento
espiritual, levou-me a relembrar, entre goles de café e garfadas de banana com aveia, Roger
Bastide, e seus efeitos nos textos e aulas de Marcio Goldman, e escritos de Achille Mbembe,
por onde eu dava meus primeiros passos. Goldman (2011a) retoma Bastide com o intuito de
reativar certas potências de seu trabalho, cujos críticos, até então, haviam escanteado – a
combinação entre a perspectiva etnográfica e sociológica como um meio de entender as
religiões africanas no Brasil, sustentando a ideia de que a segunda só seria possível se a
análise partisse da primeira. A questão norteadora do pensamento de Bastide não era diferente
dos demais pensadores da época: afinal, o que fazia com que o candomblé continuasse a
existir, apesar de todas tentativas de extermínio, e não derivasse em outra forma religiosa
como a umbanda, espiritismo ou qualquer outra mais “integrada” à recente nação? Ou então
em formas simplificadas ou libertárias como a macumba?
A resposta ensaiada por Bastide, diz-nos Goldman, não é simples. Certas vezes, afirma
que os candomblés são “nichos” que sobrevivem por inércia, quando as condições
“exteriores” (da “sociedade abrangente”) são favoráveis. Outras vezes, sublinha o caráter
ativo na produção desses nichos, que escapam à “determinação infraestrutural”. Ou seja, para
o autor, após a retirada forçada e violenta desses povos – que trouxeram também o cuidado
com seus Deuses – de seu território de origem para outra sociedade, há um processo de
adaptação que é seguido de um processo de criação, que faria dos terreiros de candomblé
“nichos”, entendidos por Goldman como linhas de fuga, relativamente autônomos frente à
“sociedade abrangente”.
Em uma nota de seu artigo, Goldman retoma a noção de ilha de Deleuze. Segundo este
autor, há duas concepções de ilhas: continentais e oceânicas. As primeiras seriam derivações
do continente, nascidas por uma desarticulação, fratura. As segundas, ilhas originárias,
surgem de erupções submarinas que trazem “ao ar livre um movimento subterrâneo”,
desaparecem e logo retornam, “não se tem tempo de anexá-las”. Ainda nos diz Deleuze que
essas ilhas nos apresentam uma oposição profunda entre terra e oceano: em que algumas
lembram que o mar está sob a terra (e pode se aproveitar de qualquer decaimento das
estruturas), outras lembram que a terra está sob o mar, cujas forças podem romper a
superfície. Goldman, por sua vez, propõe-nos despretensiosamente imaginar que os terreiros-
ilhas de Bastide “começaram ‘continentais’, na medida em que nasceram de uma separação de
211

sua terra de origem, mas que, muito rapidamente, se tornaram ‘oceânicos’, na medida em que
adquiriram o poder de emergir de todas as partes e em várias direções.” (2011a, nota 5)
Ilhas continentais que, brutalmente, separaram-se do continente, cujas forças oceânicas
não descansaram em propor o desmantelamento de suas estruturas, que se transformaram, na
América, em ilhas submersas que irrompem o oceano, em toda parte e várias direções. Mas a
imagem da transformação dessas ilhas a partir da diáspora negra ganha outra conotação com a
fala de Ys., quando nos diz que após sua viagem ao Senegal também encontrou um intenso
processo colonizador, em que “a África de hoje não é aquilo que imaginamos”, como diz em
tantos contextos. As fragmentações e transformações dessas ilhas não ocorreram apenas na
diáspora, como é o caso dos terreiros, mas no interior do próprio continente africano. E a
resiliência aparece como um grande conector dessas diferentes experiências.
Sua fala, em relação a isso, remeteu-me diretamente ao trabalho de Mbembe (2001). O
autor apresenta em seu artigo uma retomada da literatura africana sobre si, e assenta suas
análises críticas sobre dois posicionamentos teóricos que ele denominou marxista, e
nacionalista, e nativista. Ambos pautavam-se através da tradição e da demarcação racialista da
construção do self africano, produzindo, segundo autor, dois aprisionamentos – do tempo
como espaço e da identidade como geografia. A consequência disso, para ele, é a
compreensão de uma identidade africana concebida como substância. Contrapõe-se a isso,
argumentando que ela é constituída de práticas do self e que não pode ser reduzida ao sangue,
à raça, à geografia ou à tradição. E nos diz: “Apenas as diversas (e interconectadas) práticas
através das quais os africanos estilizam sua conduta podem dar conta da densidade da qual o
presente africano é feito”. Ou, como nos diz em outro momento, a identidade africana é uma
identidade em devir90.
O encontro de Ys. com Senegal, como parte de um processo de pensar a si mesma
enquanto negra e kilombola, fez emergir um sentido singular da noção de afrocentricidade 91

90Em outro momento, o autor nos diz: “Não existe uma identidade negra, na mesma medida que existem livros
de revelação. Há uma identidade em devir que se alimenta simultaneamente das diferenças entre os Negros,
tanto do ponto de vista étnico, geográfico, como linguístico, e de tradições herdeiras do encontro com Todo o
Mundo” (MBEMBE, 2014, p. 167)
91O conceito de afrocentricidade foi, principalmente, cunhado por Molefi Asante (2009), a partir dos Estudos
Negros desenvolvidos nos Estados Unidos. O autor nos diz: “O paradigma Afrocêntrico é uma mudança
revolucionária no pensamento proposto como uma correção construtural da desorientação negra,
descentramento e falta de agência negra.. O termo usado por Asante é information; mas, foi traduzido por
conhecimento ao invés de informação. A Afrocentrista formula a pergunta: ‘O que as pessoas africanas fariam
se não existissem pessoas brancas?’. Em outras palavras, quais as respostas naturais deveriam se dar nos
relacionamentos, atitudes em relação ao meio ambiente, padrões de parentesco, preferências por cores, tipo de
religião, referências históricas de povos africanos se não tivesse ocorrido nenhuma intervenção do
colonialismo e escravização? Afrocentricidade responde esta questão assegurando o papel central do sujeito
africano dentro do contexto histórico africano, por conseguinte, removendo a Europa do centro da realidade
africana”. A partir da fala de Ys., penso que o problema é descentrado novamente. Retira-se o branco (Europa,
Ocidente) do centro da questão e encontra-se a “realidade africana” não como uma identidade substancial, mas
como aberta à criação, à resiliência.
212

como parte de uma identidade em devir: não um retorno à África geográfica, como talvez
desejassem alguns críticos que insistem em afirmar que os movimentos negros americanos
pautam-se por uma “África mítica”, ou “África inventada”, mas como resiliência, uma
capacidade de regeneração em meio às adversidades a partir do local em que se encontram,
em meio aos mundos que foram devastados e fragmentados pelo poder colonial e que
conectam experiências de Negros na diáspora e no continente africano 92. Pescou-se um
conceito, Akaã, e com ele se criou também uma aliança, quando comungam outras
possibilidades de futuro entre os diferentes povos negros.
*
Clastres (2011, p. 248), ao analisar as sociedades indígenas, argumenta que a guerra é o
fundamento dessas sociedades, pois é ela quem garante os processos de fragmentações dos
grupos e suas autonomias, impedindo qualquer possibilidade de unificação. Negam, dessa
forma, a submissão a uma lei unificadora capaz de suprimir as diferenças e substituir o
múltiplo pelo Um. O ímpeto guerreiro que caracteriza essas sociedades faz com que elas não
fiquem fechadas em si mesmas, mas abertas a outras intensidades a partir da violência
guerreira. Não compactuam com a guerra de todos contra todos, o que resultaria em
dominação ou extermínio, mas também não aceitam a aliança de todos com todos, que
resultaria na dissolução da diferença. Ao mesmo tempo, para que a guerra ocorra, os índios
precisam produzir alianças que garantam a sua autonomia e, diz-nos o autor, só existem
alianças porque existem inimigos. A partir disso, em diálogo com a obra de Levi-Strauss,
sustenta que as alianças não precedem a guerra, mas é a guerra que é anterior à aliança. Para
essas sociedades, a diferença e a busca pela autonomia precedem as relações de troca.
Evidente que a guerra da qual fala Clastres e a guerra na qual se engaja a Morada não
são as mesmas, mas o ímpeto guerreiro que faz das alianças fundamentais para a continuidade
das autonomias se aproximam. Na Morada da Paz, pelo menos nas diligências que pude
acompanhar, essas alianças são sobretudo, mas não exclusivamente, com coletivos negros e
indígenas. As diligências feitas pela comunidade são, em sua maioria, realizadas com o intuito
de estreitar tais relações, assim como muitas das ações que desenvolve (principalmente as
chamadas “datas sagradas” como o Okan Ilu – O tambor do coração e o Terreiro de Chão
Batido). São meios de reatualizar essas alianças.
Na percepção na comunidade, os povos negros e os povos indígenas são vítimas do
colonialismo ocorrido nestas terras que chamamos América Latina. Dividem, portanto, uma

92Tanto no continente africano quanto fora dele, como Ys. trouxe em sua fala, seria necessário recuperar o que
há de força ancestral em meio à colonização, tal como a própria Morada fez com certos ritos – e refiro-me
aqui novamente ao rito de Omulu – que, como dizem, “nem em África existe mais”. Recuperações estas
realizadas através da relação entre humanos e entidades.
213

mesma investida violenta oriunda, sobretudo, do terceiro termo da relação, que por sua vez
constitui o falacioso mito da democracia racial: o branco. Compartilham um passado de
resistência e de violência, cujas consequências ainda são vistas e sentidas no presente – o
racismo, a expropriação de terras, o genocídio, a cosmofobia93 são algumas das manifestações
dessas violências94. Na perspectiva da Morada, o branco não é visto como povo, pelo menos
nunca ouvi tal designação, mas como o colonizador – ainda que reconheçam, por exemplo, o
povo cigano, o povo celta, o povo druida….Mesmo assim, nada impede que uma pessoa
branca tenha suas conexões espirituais com diferentes povos, pois, como dizem, partem de
uma perspectiva reencarnacionista95.
Oriundas dessa aproximação que o colonialismo impôs, ainda que suas diferenças
sejam bem conhecidas – indígenas como os “donos da terra” e negros como violentamente
arrancados de suas terras e trazidos à América –, as definições identitárias não implicam
diretamente aliança. Elas podem despertar o interesse e a possibilidade da aliança, uma
aliança em potencial, mas nunca a definem. Não há espécie alguma de romantismo ou
essencialismo, podendo indígenas e negros, assim como tudo no mundo, ser atravessados, das
mais variadas formas, por aquilo que chamam “energias densas”, inclusive por forças que
engendram o próprio colonialismo. Nesse sentido, a guerra cósmica não é identitária, uma
guerra de povos negros e indígenas contra o branco, pois aquilo que se combate é capaz de
perpassar todos os corpos, sujeitos e grupos.
De todo modo, é inegável o interesse das mais velhas em estabelecer relações
sobretudo com os povos negros e indígenas. E, parece-me, que o interessante aqui são as
virtualidades imanentes dos sujeitos com quem se constrói aliança, que permitiria a Morada
acessar e compor não apenas com estes outros, mas com certos outros destes outros – as
forças que os mobilizam, as entidades que os acompanham96. Sultão das Matas, um encantado

93Termo cunhado por Antônio Bispo dos Santos, caracterizado como o terror psicológico produzido pela
perspectiva monista e monoteísta do mundo. Trata-se do horror aos demais seres que povoam o cosmos.
(SANTOS, 2015, p. 31)
94Importante lembrar as inúmeras mortes de defensoras e defensores dos direitos humanos espalhadas por toda
América Latina, efetuadas brutalmente por milícias ou pelos Estados-nação. Estes últimos, utilizando-se da Lei
antiterrorismo para criminalizar ativistas que lutam pela vida de seus povos e das terras em que habitam (como
o caso de diversos indígenas do povo Mapuche no Chile ou como Lolita Chaves, feminista comunitária
indígena da Guatemala). Pesquisas de 2016 levantadas pela ONG Global Witness apresentam dados
alarmantes de assassinatos de ativistas em defesa da terra, onde o Brasil figura como o país com mais
assassinatos – a maioria de indígenas. (ver em: https://www.globalwitness.org/en/campaigns/environmental-
activists/defender-la-tierra/)
95Ainda que, sobre isso, eu me pergunte se não haveria, para a Morada da Paz, uma certa disposição dos
brancos a estarem “menos firmes nos seus propósitos”, mais suscetíveis às “forças densas”, tal como foi dito
dos homens em relação às mulheres no capítulo anterior. De fato, nunca ouvi tal colocação, mas não a pensaria
impossível…
96Seria interessante perceber, tal como Losonczy (2006) fez entre os índios Emberá e os afro-colombianos de
Chocó, como as relações estabelecidas entre a Morada da Paz e os diferentes povos indígenas que lá
frequentam são percebidas por estes últimos, a partir de seus próprios termos. Na ausência de informações a
respeito, detenho-me apenas na perspectiva da Comunidade Morada da Paz.
214

que trabalha com M. Pataxó, por exemplo, após o contato desta com Ys., passou a se
manifestar via incorporação na Morada da Paz, solidificando, no território, o compromisso do
kilombo com a luta dos povos indígenas; ao mesmo tempo, Mãe Preta, em trabalho conjunto
com os humanos médiuns do kilombo, resgatou, via transmigração, espíritos de um povo
indígena que precisava de auxílio que, por sua vez, aceitou fortalecer os projetos
desenvolvidos no território kilombola; Ay., que foi aprender e viver em uma aldeia Mbya
Guarani, recebeu a incumbência de construir uma xanduca para Mãe Preta através dos
saberes indígenas, que é um artefato de cura – portanto um artefato de guerra – tanto para os
Mbyá, quanto para a preta velha, selando uma aliança, a partir da troca de saberes e usos,
entre esses dois povos.
Essas alianças, nos termos da comunidade, não passam apenas pela molaridade das
identidades pré-estabelecidas, mas por aquilo que há de molecular, os fluxos e devires que
perpassam tais segmentações, e servem à guerra em curso. Denomino de “relação
afroindígena” (GOLDMAN, 2014a, 2015, 2017), que não conduziria apenas a uma união de
conjuntos afros e indígenas prévios, mas antes a “um modo particular de articular diferenças.
Neste sentido, é a própria relação que é afroindígena”. Ou, como encontramos na etnografia
de Mello, que realizou seu trabalho junto aos artistas de Caravelas que, por sua vez, criaram o
conceito de afroindígena com a mesma habilidade que criam suas obras artísticas,
afroindígena não seria da “ordem da identidade, nem do pertencimento, mas do devir”.
(MELLO, 2003, p. 95)
Contrasto essa relação com o material etnográfico oriundo da minha dissertação de
mestrado (FLORES, 2013). Também inspirada pelas reflexões de Goldman e Mello, busquei
descrever as vivências e a complexidade das ideias que aprendi junto à Tribo Carnavalesca Os
Comanches, em Porto Alegre. No caso em questão, um coletivo tradicionalmente
caracterizado como “afro” afirmava-se “índio” no carnaval da cidade, em um jogo-ritual que
denominavam “guerra”. O que tento apresentar é que, ao variar suas identidades de índio e de
negro segundo os contextos que se apresentavam, os índios negros eclipsavam intensas
relações afroindígenas, cujos termos operavam em uma linha de indiscernibilidade, em que os
advérbios de intensidade, mais e menos, marcavam a relação. Utilizavam-se dos conceitos de
“índio” e de “negro” para produzir a “guerra” na avenida, assim como utilizavam-se do
conceito de “branco”. O “branco”, entretanto, aparecia aos comancheiros como um elemento
que impedia o “fluxo afroindígena”, como um bloqueador – seja quando manifestado em seu
sentido expressivo na estética do desfile ou quando aparecia como o Estado, agente que opera
a estratificação do espaço urbano, inscrevendo nele a segregação racial sentida pelos meus
interlocutores. Dessa forma, construir alianças com o “branco”, para os comancheiros, tal qual
215

construída entre “índios” e “negros”, seria impossível, pois implicaria o fim da “guerra”. No
caso da Morada, a construção da aliança também é impossível, mas se estabelece outro tipo
de relação: o roubo.

4.2 Os Roubos

Não se constrói aliança com o colonizador, pois implica diretamente com o problema
da dominação de que falávamos anteriormente. A única relação viável com ele é quando se
utiliza a “tática do Robin Hood”, como disse Ys., “pegar dos ricos para distribuir aos
pobres”. É dessa forma que lidam com as diferentes instâncias do Estado, mas também com
os espaços de conhecimento, tal como as Universidades. Não foram poucas as vezes que ouvi
essa expressão de Ys., que falava entre risos. Lembro-me de uma vez em que essa expressão
apareceu, quando conjecturava a possibilidade de conseguir um ônibus da prefeitura para
trazer as pessoas da Vila Pimenta para alguma atividade na Morada, por exemplo. Mas
também é possível pensá-la em tantas outras situações. Relembro aqui a definição de kilombo
com k da Morada, que surge em um processo de diferenciação do quilombo com q, na
“linguagem do colonizador”. Ali, recorreu-se à certificação quilombola da Fundação Cultural
Palmares não apenas pelo reconhecimento, por parte da máquina burocrática do Estado, como
um dos “remanescentes de quilombo”, mas para garantir que aquele território possa existir
como kilombo, território de luta pela paz, por 10 mil anos, como me disse Ik. Saquearam o
Estado.
A tática Robin Hood envolve o roubo de recursos. Não se refere apenas a dinheiro,
mas aos recursos tal como entendido pela Morada, de forma mais abrangente. Roubar um
modo de funcionamento de ensino que seja socialmente aceito para fazer de outra forma –
como a criação da ComKola; roubar um modelo alternativo de economia, conhecido e
desenvolvido em ambiente universitário, para operar outra diferenciação – como ocorre com
a ekonomia do afeto; roubar uma forma de sistematização do conhecimento universitário, para
fazer com que o pensamento kilombola ali desenvolvido se autorrepresente e se
autorreferencie e não seja apropriado por teoria externa alguma – como acontece com a
pedagogia do encantamento e o grupo de pesquisadores kilombolas. Dessa forma, o roubo é
sempre parcial, precisamente porque “é o contrário de plagiar, de copiar, de imitar, de fazer
como” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 6).
Só é possível atuar com o roubo nesses espaços do colonizador quando os sujeitos
assumem a postura de “undercommons”, de fugitivos às lógicas instituídas, que se utilizam
destas estruturas para fomentar outros modos de existência, um trabalho sobre o trabalho que
esses espaços requerem. Constroem alianças nesses espaços, mas apenas com outros fugitivos
216

que, sem dúvida, são permeados de perigos, pois há o risco constante da captura. É dessa
forma que Harney e Moten (2013) desenvolvem suas ideias sobre as Universidades
estadunidenses e que aqui tomo emprestadas para pensar como a Morada da Paz elabora seus
roubos do colonizador. Segundo os autores, as Universidades como espaço do esclarecimento
estão, também, povoadas de refugiados, fugitivos, que recusam a profissionalização
capitalística que se impõe nos espaços universitários, na igual medida em que recusam a
crítica da profissionalização elaborada pelos que se dizem “esclarecidos”. Os
“undercommons” estão na universidade sem, por isso, ser da universidade. Argumentam que
o trabalho desempenhado pelos “undercommons” não se compara com o dos acadêmicos
críticos, pois ser um crítico:
[...] é estar contra a Universidade e estar contra a Universidade é reconhecê-la e ser
reconhecido por ela (…). E este ato de estar sempre contra já exclui os modos não
reconhecidos de política, o além da política já em andamento, a para-organização
criminal desacreditada. (HARNEY; MOTEN, 2013, p. 31)

A atuação que desempenham é, sobretudo, utilizar os recursos disponíveis para fazer


com eles outra coisa, para alimentar modos outros de existência e do fazer político. É como
“undercommon”, parece-me, que a Morada da Paz estabelece suas relações com os espaços do
colonizador, com o qual a única relação possível é criminal, de roubo. Pretendo aqui dissertar
especialmente sobre dois conceitos centrais que são elaborados a partir e através destes
roubos: Ekonomia do Afeto e Pedagogia do Encantamento. Trata-se de conceitos criados
através de processos experimentais e desenvolvidos pela comunidade ao longo dos anos.

4.2.1 Ekonomia do Afeto

O conceito de ekonomia do afeto surge muito tempo depois de já consolidadas as


formas de administrarem seus recursos. Foi Bg. quem me explicou, dizendo que o conceito
originário é formado por duas palavras, “oikos”, que significa casa, e “nomos” que
significaria costume, administração. Ou seja, ekonomia designa portanto a administração de
uma casa. Ou, no caso da Morada da Paz, um modo de gerenciar a comunidade. Há dois
aspectos centrais que constituem essa ekonomia. Primeiro, é a percepção do que são os
recursos. Segundo, a perspectiva coletivizante de gastos e ganhos.
217

Figura 14: Apoiwá CoMPaz

Para a comunidade tudo pode ser recurso: o tempo e a presença, os braços disponíveis
para auxiliar no plantio ou na construção de estruturas dentro do território, pessoas dispostas a
cuidar das crianças, a cozinhar, a tecer relações com outros coletivos externos, todo trabalho e
dedicação de tempo dados à comunidade são percebidos como recursos. O que chamam
espiritualidade, e suas muitas ferramentas, fornece recursos de cura, de cuidado, de
“manutenção energética”. A natureza oferece recursos, de cura, de alimento e nutrição, de
moradia. As doações97, de comida, de roupa (a partir da qual a comunidade seleciona o que
deseja para si e o restante alimenta o brechó que realizam), de materiais de construção ou
outros. Materiais reciclados podem ser recursos de artesanato, assim como retalhos de
tecidos. O dinheiro, portanto, não é concebido como o único recurso. Ao contrário, é tomado
como um entre tantas possibilidades.
Ainda durante o grupo Cosmos, Mãe Preta orientou que não falassem sobre dinheiro,
pois este é considerado um “objeto de poder muito denso”, que pode ser usado “para o bem e
para o mal”. Para fazer bom uso dele, conforme pensa a comunidade, era preciso “saber
usar”. Se começassem a trazer a questão financeira para o coletivo, segundo ela, dariam

97Tudo aquilo que a comunidade recebe e não utiliza, repassa para outras pessoas e, assim, nutre novas relações
de solidariedade.
218

abertura para a entrada de certas “energias densas” que poderiam, inclusive, acabar com o
próprio grupo. Desde o Cosmos, quando começaram a intensificar o convívio, as comidas e
demais bens partilhados eram comprados coletivamente. Quem podia dispor de maior recurso
financeiro, cobria maiores gastos. Quem dispunha de outros recursos, por exemplo tempo ou
certas habilidades, também se colocava para o coletivo. Havia um desejo fundante que
norteava todas essas criações de como lidar com os recursos: o desejo de estarem juntos. Essa
criação processual, seguindo as orientações das entidades, culminou no que hoje chamam de
Ekonomia do Afeto, e esse conceito surgiu como uma radicalização da Economia Solidária
com a qual a Morada tem mantido alguma relação. Mas creio que seja importante entender
como esse conceito emerge no cotidiano. Afinal, foi lá que ele foi gestado.
Assim que mudaram para a comunidade e desenvolveram o ipadê como a forma por
excelência onde tudo era conversado, criaram o ipadê da ecogestão. Quem participa desses
ipadês são apenas os moradores, e as informações que me chegaram vieram de conversas
informais ou de comentários em ipadês. Dirigem para ele todas as demandas de compras
individuais ou coletivas necessárias. Na ecogestão, são discutidos os gastos com comida –
para além das doações que recebem –, pagamento de luz, gasolina, passagens de ônibus,
materiais para a lida da roça ou manutenção da comunidade, empréstimos realizados ou
demais gastos mensais. De início, vale lembrar, havia os custos com a compra do território e,
mais recentemente, os custos com a compra da terra d’água, um novo pedaço de terra
comprado pela comunidade. Ambos são mantidos pela ecogestão. Mas a ecogestão, parece-
me, não apenas serve para o pagamento e a prestação de contas dos gastos realizados como
também para o planejamento de onde o dinheiro será investido ou de como conseguir criar os
meios de obter fundos para as ações que precisam desenvolver.
Para além dos gastos coletivos, há também as demandas individuais. Sempre que um
omadê (como são chamadas as crianças), odomodê (como são chamados os adolescentes) ou
adulto tem alguma demanda a ser feita para uso pessoal, levam também para a ecogestão –
seja um creme de cabelo, um batom ou um tênis. As demandas pessoais são acolhidas, tal
como as demandas coletivas. Até mesmo os pedidos dos pitocos (como chamam as crianças
menores de até 5 anos) quando desejam algum brinquedo ou outra coisa. Porém, as demandas
coletivas são primeiramente sanadas para então se debruçarem sobre as demandas pessoais.
Muitas vezes, por questões orçamentárias, os desejos pessoais são deixados para os meses
seguintes.
Como já havia dito nos capítulos anteriores, quando iniciei minha aproximação com a
Morada da Paz a comunidade se sustentava com dois salários. Logo, com a saída de Yb. de
seu trabalho, passou a ter o recurso financeiro mensal apenas do salário de El. Dizem as mais
219

velhas que foi um grande desafio quando Mãe Preta orientou que “trocassem salário por
projeto”. De início isso não foi aceito com facilidade. Gerou muita reflexão e negociação com
as próprias entidades. Contudo, a provocação que Mãe Preta fazia para elas era se gostariam
de ser, de fato, “a mudança que queremos ver no mundo”. Os questionamentos sobre “viver
de salário” não foram facilmente absorvidos pelas moradoras e demoraram algum tempo,
muitas delas, para adotar as orientações que receberam. Até mesmo El., no início de minha
participação na comunidade, disse que recebeu essa mesma orientação de Mãe Preta, mas
decidiu não se desligar do trabalho, pois sentia que ali também desempenhava um papel
importante, inclusive espiritual.
Não existe tipo algum de romantismo por parte das mais velhas sobre “viver de
projetos”, e os receios de arriscar permearam todas. Um dos riscos é cair em uma outra
possibilidade, que também não é satisfatória para elas, como “viver de editais” que, pelo que
entendo, não é o mesmo que “viver de projetos”. Em algumas das reuniões de estruturação do
que então se tornou o Instituto CoMPaz, Ys. alertava-nos para o risco de depender não mais
de um salário e de um patrão, mas de editais de financiamento. Na concepção dela, de nada
adiantava trocar uma vida de dependência por outra, tão desgastante quanto. Isso, evidente,
não invalidava a participação em editais. A dependência era um risco a que, contudo,
precisávamos estar atentos, para não nos deixar englobar. Ao mesmo tempo, ao longo desses
ipadês, não havia – e não há – uma saída evidente para as questões financeiras que se
apresentam.
Porém, pelo que entendi, “viver de projetos”, como Mãe Preta sugeriu, implica dedicar
a vida às ações em que se acredita. Ações que atuam na “mudança que queremos ver no
mundo”. Ter um trabalho fixo com salário acaba por reduzir o tempo dos projetos que
poderiam ter um impacto de transformação. Ao mesmo tempo, “viver de editais”, ainda que
possam financiar os projetos que se deseja executar, também está permeado de riscos. Um
deles, como tanto nos lembram as mais velhas, diz respeito aos próprios financiadores. Desde
que iniciaram sua trajetória como comunidade, acordaram que não aceitariam patrocínio ou
editais de empresas que vão contra os princípios norteadores da comunidade. E esse acordo
perdura no tempo, pois, disseram-me, não poderiam aceitar dinheiro de uma empresa que
servia às forças com as quais não desejavam e não desejam se aliar. Hoje, em termos
financeiros, a comunidade se mantém, além do salário fixo, com alguma verba de editais
aprovados – seja através do Ponto de Cultura Omorodê ou do Instituto CoMPaz –, com a
pequena verba oriunda da venda dos produtos do Apoiwá CoMPaz e com doações da rede de
apoio que ampara muitas das ações desenvolvidas.
220

Assim como os moradores realizam seus ipadês da ecogestão, os demoradores


também desenvolviam práticas semelhantes. Realizávamos ipadês para pensar e dividir os
gastos de alimento e de compras para ritualísticas do Templo, sejam as compras fixas
necessárias, sejam as compras direcionadas a cada Muzunguê. O que fazíamos, contudo, era
uma contribuição para a alimentação e para o Templo, visto que muitos outros gastos eram
cobertos pelos moradores. Os ipadês dos demoradores ocorriam para dividirmos os gastos,
recolhermos o dinheiro para as compras mensais, definirmos as duplas que seriam
responsáveis tanto para as compras do Templo, quanto pelas compras de alimento e, por fim, a
prestação de contas do mês anterior, acompanhada de relatos sobre como foi a relação entre as
duplas e as dificuldades encontradas.
Quando alguém da irmandade não possuía dinheiro para contribuir com as compras
mensais, os demais supriam as necessidades do coletivo. Isso, claro, não sem haver, às vezes,
tensionamentos ou desconfortos. Um dos aspectos que me chamaram a atenção, assim que
entrei na Morada, foi a condução dessas conversas pelas irmãs mais velhas, a saber, sua
clareza sobre as desigualdades raciais, econômicas e sociais que constituem a heterogeneidade
dos demoradores. Os privilégios nunca foram ignorados ou aplainados, mas também não
foram utilizados como material discursivo para constranger quem quer que fosse. O discurso
acionado era sobre o compromisso com a espiritualidade, as compras da ritualística que
precisavam ser feitas e a unidade do coletivo com o qual os sujeitos haviam decidido se
comprometer.
Aspectos afetivos também eram trabalhados ao longo destes ipadês e compartilhados
em coletivo ou em pequenos grupos. Sentimentos de culpa por não contribuir com o valor
mensal, visto não se ter nem mesmo o valor da passagem para poder se deslocar até a Morada,
muitas vezes devido ao desemprego ou ausência de emprego formal. Sentimentos de que se
está dando dinheiro a mais que os demais e, por isso, sentir-se prejudicada financeiramente.
Sentimento de vergonha por não poder bancar os gastos, visto o salário que se recebe estar
atrasado ou parcelado98. Sentimentos conflituosos, como esses, emergiam tanto em relação ao
dinheiro quanto, também, em relação à dedicação de tempo que dispunham com o território.
Tais sensações acalmavam-se com duas formulações claras e precisas que foram
trazidas por Ik., de que: primeiro, é preciso comprar o que tiver que ser comprado, assim
como é preciso cumprir com as demandas que foram orientadas – impreterivelmente,
principalmente quando diz respeito às ritualísticas –; e segundo, é preciso confiar na
irmandade como um todo, quando aqueles que não possuem os recursos financeiros ou de

98Algumas pessoas da irmandade, professores do Estado do RS, tiveram seus salários parcelados pelo então
governador Ivo Sartori com a desculpa de não se ter dinheiro dedicado à educação para quitar dívidas
contraídas com o governo federal.
221

tempo dizem não poder contribuir. Afinal, se não há confiança abre-se espaço para as dúvidas,
acusações e consequentes afastamentos entre pessoas irmãs. Aqueles que contribuem, muitas
vezes a mais, não são percebidos como fazendo algum favor. Isso é outro aspecto que derivou
muita conversa ao longo destes ipadês. Não há favores individuais; trata-se, sobretudo, do
compromisso de todos com a corrente. Apesar dessas verdades norteadoras, volta e meia havia
conflitos, os chamados “desalinhos”, entre os demoradores, conflitos que eram resolvidos
com muitos ipadês, às vezes acalorados, e com o auxílio das entidades e das Yas.
Todo esse cuidado material e afetivo que envolve a gestão de recursos que a
comunidade, desde sua fundação, desenvolve, culminou no conceito de ekonomia do afeto.
Com este conceito, a Morada nos apresenta uma possível alternativa de gestão de finanças em
processo de criação e experimentação. Mais do que isso, é um modo de não compactuar com
certas “forças cósmicas” destrutivas que se alimentam e produzem muito do sistema
capitalista de gerência da vida.
Um dos aspectos centrais na ekonomia do afeto é a relação que estabelecem com os
gastos. Como Ys. certa vez nos disse, a vida que desejam não é ganhar mais dinheiro para ter
uma vida de consumo maior e, a partir disso uma suposta ‘melhor’ qualidade de vida. Este
não é o seu ideal de vida. Querem ganhar dinheiro para poder desenvolver mais ações que
gerem processos de transformação. A qualidade de vida que adotam não é ganhar mais, mas
gastar menos. A questão que me parece fundamental nessa perspectiva é a concepção de que
não consumir não é percebido como um processo de privação, mas de construção de outra
relação com o consumo e com os produtos. Quando decidiram coletivizar a vida, reduziram os
bens de consumo necessários para mantê-la, processo que não foi fácil. Por exemplo, contam
entre risos que no início da comunidade uma pessoa colocava arroz como comida
fundamental e outra aspargos, o que gerava uma série de debates.
A dissonância entre os desejos de consumo e gastos foram trabalhados, até
desenvolverem uma perspectiva comum de diminuir ao máximo as compras. Hoje, por
exemplo, as roupas utilizadas são majoritariamente oriundas de doações, assim como os
alimentos. Toda vez que alguém sai do território para trabalhar ou para qualquer atividade,
leva-se comida para se manter ao longo do dia. São pequenas ações, hoje incorporadas na
comunidade, que diminuem consideravelmente os gastos coletivos. Ações como essas, fazem
também a perpetuação da vida coletiva. É claro que trabalhar essa perspectiva entre as
crianças e adolescentes é ainda mais complicado, principalmente levando em consideração
suas experiências no colégio ou em outros espaços de socialização fora da comunidade.
Momentos esses em que a pedagogia do encantamento e a ekonomia do afeto se entrelaçam e
constituem desafios para a atuação no mundo.
222

O que ancora esse meio de viabilizar a vida e as ações é, sem dúvida, os muitos
desafios e vivências conjuntas que tiveram e que culminaram na criação e na continuação da
comunidade. Há aqueles que passaram pela comunidade e não se engajaram nessa forma de
vida coletiva e há, sobretudo, “aquelas que ficaram”. E nada disso seria possível e viável se,
em meio a tantos desafios e transformações de si nesses processos, não houvesse doses
cavalares de alegria e satisfação na manutenção da vida coletiva. Volto a dizer, a ekonomia do
afeto só se faz possível na comunidade pois a relação que desenvolvem com o consumo não é
pautada pela lógica da privação individual, mas da alegria e da satisfação, em meio aos tantos
desafios, em construírem juntas “um outro mundo possível”. Foi com o intuito de fortalecer
essa perspectiva que criaram o Instituto CoMPaz.

4.2.1.1 Instituto CoMPaz

O Instituto CoMPaz surgiu em 2015, criado pro moradores e demoradores, como uma
forma de dar início e sustentação ao que Mãe Preta havia sugerido – “viver de projetos”. Mais
do que isso, seria uma forma de aliar os diferentes desejos – de moradores e demoradores – de
desenvolverem ações que lhes fossem prazerosas, atuantes na criação de um mundo que se
deseja e, ao mesmo tempo, fornecessem as bases materiais para suas vidas.
De início, ele foi pensado pelas mais velhas como mais um braço da comunidade,
assim como o Ponto de Cultura Omorodê, mas localizado fora do território. Tem como
endereço um espaço localizado na cidade de Montenegro. A princípio, tal como foi
imaginado, teria a característica de compor com pessoas que não fazem parte da Morada.
Seria um espaço criado pela comunidade, mas aberto à participação de pessoas externas. Essa
era a ideia que Ys. havia comentado comigo. Porém, quando levada ao grande grupo,
discutiu-se muito sobre como seria a participação dessas pessoas externas, visto que a
comunidade trazia consigo uma série de práticas de “um jeito de ser e de viver” e seria
preciso, pelo menos em sua fase inicial, que fosse gestionada por pessoas internas à
comunidade.
Na época, quem tomou essa responsabilidade para si foram sobretudo os demoradores,
por orientação das Yas. Seria esse o grupo responsável por alavancar os projetos, tanto para
que possibilitassem o sustento de membros da comunidade que não residiam no território,
quanto para os membros residentes. Assim que o Instituto CoMPaz foi criado, ainda demorou
um tempo para desenvolver suas primeiras ações. Foi, sobretudo, em 2016 que ele começou a
tomar corpo e desenvolver suas atividades. Pensávamos juntos, por provocação das mais
velhas, como fazer, quais os meios para alavancar recursos, principalmente recursos
223

financeiros. Ys. nos incitava a observar quais habilidades tínhamos, enquanto grupo, e como
poderíamos atuar, para alcançar certas respostas.
Com o passar do tempo, foram delineadas três frentes de atuação para o Instituto
CoMPaz, também trazido por Ys.: “projetos”, “cursos” e “feiras”. Os “projetos” são aqueles
focados na escrita de projetos para editais de órgãos financiadores. Projetos variados, de
acordo com os interesses e necessidades da Comunidade Morada da Paz. Recentemente,
início de 2018, o Instituto CoMPaz teve seu primeiro projeto aprovado pelo edital Elas nas
Exatas, chamado “Atinuke – Kilombo Ciência”. Visa a relação entre o departamento de
Astrofísica da UFRGS, através do professor A., que tem se aproximado da Morada da Paz, a
comunidade kilombola e uma escola estadual rural da região. O intuito é desenvolver com as
jovens mulheres da escola e do kilombo, principalmente as mulheres negras, o gosto pelos
conhecimentos da astronomia, articulando vivências e saberes kilombolas com o
conhecimento oriundo das Universidades sobre estudo dos astros.
Outra frente de atuação são as elaborações dos “Cursos”. Ainda não houve experiência
nesse sentido, visto que o Instituto está dando seus primeiros passos. De todo modo, por
“Cursos” pensa-se em modalidades que poderiam ser realizadas no território da comunidade.
O primeiro curso pensado foi de customização dos containers adquiridos para a ComKola. A
ideia seria chamar alguém para ministrar o curso e cobrar um determinado valor para as
pessoas interessadas, já que os containers já foram adquiridos. Interessante notar que tanto as
“Feiras” quanto os “Cursos” são formas de fugir do aprisionamento que “viver de edital”
poderia causar. Além disso, com a saída de demoradores e com a incorporação de alguns
demoradores como moradores houve mudanças na configuração do Instituto. Antes, os
responsáveis por tocar o Instituto eram mais propriamente os demoradores. Agora, tornou-se
outra frente de atuação dos moradores.
Porém o percurso do Instituto CoMPaz iniciou mesmo com as “Feiras” e vendas de
produtos e artesanatos. No início de 2016, Or. e Bl., que haviam deixado de ser moradores e
tornado-se temporariamente demoradores, faziam pães e doces para vender e retirar dessas
vendas seus sustentos. Or. havia aprendido a fazer pão com El., que muitas vezes, em dia de
Muzunguê, vendia seus pães para obter mais recursos para a comunidade. De modo paralelo,
Ys., Yb. e eu conversávamos sobre formas de comprar grãos de melhor qualidade e menor
custo do que no mercado. Pensei na cooperativa do MST existente no município de Nova
Santa Rita, muito próximo à Morada da Paz, e no arroz orgânico que vendem, e fui atrás
desses contatos.
Encontrei esses contatos no Contraponto – um espaço de Economia Solidária que
existe na Universidade –, onde alguns integrantes do MST daquela região trabalham. E foi lá,
224

conversando com uma das integrantes, que pensei que poderia ser interessante à comunidade
vender seus produtos, como os alimentos produzidos por Or., Bl. e El., no próprio
Contraponto. Levei a proposta para as mais velhas que logo começaram essa aproximação.
Or. e Yb. ficaram encarregados de participar das reuniões organizativas do Contraponto, onde
todos os coletivos que vendem produtos no local participam. Ali, há tanto produtos
alimentícios quanto artesanatos. Foi acordado entre os coletivos que não haveria produtos
repetidos, para não gerar concorrência entre eles mesmos. Também acordaram uma série de
porcentagens sobre os ganhos a serem distribuídos, questões discutidas nas reuniões mensais
que ocorriam. Havia também alguns coletivos que ficavam responsáveis pelos atendimentos
na loja que recebiam um determinado valor, de acordo com as vendas. Os responsáveis pelos
atendimentos atuam de forma rotativa e são membros de coletivos escolhidos em reunião.
O Contraponto é uma Associação de produtores da Economia Solidária que possui
uma loja relativamente pequena, construída pelos arquitetos da UFRGS com materiais
sustentáveis, principalmente madeira, e baseada em técnicas de bioconstrução, que fica
próxima à FACED (Faculdade de Educação). Trata-se de um projeto oriundo do NEA (Núcleo
de Economia Alternativa), sediado na Faculdade de Ciências Econômicas, que abriga a
Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares/ITCP do Departamento de Economia.
Este não foi o primeiro momento em que a comunidade teve contato com a Economia
Solidária. Lembro aqui que Bg. tem formação em Economia e durante sua trajetória
debruçava-se sobre essas outras práticas econômicas possíveis, no contrafluxo da economia
capitalista. Porém, foi a primeira participação da comunidade em um coletivo de Economia
Solidária. Tal participação evidenciou uma série de questões.
Yb. e Or. eram os principais representantes da Morada da Paz nas reuniões, e voltavam
ao território com muitos estranhamentos sobre o modo como algumas pessoas do coletivo
agiam. Passaram a narrar suas experiências, principalmente em contraposição ao modo como
a vida financeira se desenvolvia na Morada. Contaram-nos que na Associação, o dinheiro
recebido era repartido de modo proporcional aos preços e às vendas de cada coletivo. Se um
coletivo vendesse pães e outro brincos, cada qual receberia de acordo com as vendas de seus
produtos. Isso permitia que determinados coletivos retirassem diferentes valores ao final do
mês. Outro aspecto que narraram foi o descuido entre os coletivos. Pessoas que se tratavam de
forma ríspida e que estavam interessadas apenas em receber a quantia que seria direcionada
ao seu coletivo, sem se preocupar com os demais.
É claro que há muitas relações de amizade que se desenvolvem na Associação, mas a
ausência de cuidado nessas situações chamou a atenção de Yb. e Or.. E suas impressões eram
constantemente narradas para nós, os demais, para refletirmos sobre os outros e sobre a
225

própria Morada. Enquanto a participação no Contraponto se estabelecia, havia outro processo,


concomitante, se desenvolvendo na comunidade. O Instituto CoMPaz começou a criar uma de
suas principais frentes de atuação – a produção e venda de produtos artesanais, tanto no
Contraponto como também em feiras de Economia Solidária. Tratava-se do que foi chamado
como Apoiwá CoMPaz. Apoiwá é um termo em iorubá que, segundo as mais velhas, pode ser
traduzido como “saco de criação”. Foi utilizado para a criação do mundo e da vida por
Olorum, segundo histórias que me narraram na comunidade.
Diferentes habilidades manuais foram reunidas para criar o Apoiwá CoMPaz, ou seja,
a produção desses artesanatos e sua criação animou a comunidade como um todo. Ol., Bl.,
Yb., Aj., Bm., Or., Ak. e eu compomos um primeiro grupo. Aj. foi orientada para ser a Gba
Oya kan, ou seja, a responsável por tocar as “Feiras” do Instituto CoMPaz, orientada por Yb..
Atuava na organização e preparo das feiras, compra de materiais e entrega dos pedidos,
quando fosse o caso. Or., Bl. e Yb. ficaram responsáveis pela produção de alimentos (pães,
bolos, flocadas, haribol), pois há tempos vinham desenvolvendo essas habilidades e desejos;
Bm., Ol., Ak. e Bl., pelas costuras e produções com tecidos (brincos, abayomis, cartucheiras,
bolsas, cadernos); e eu participava com produção de ímãs de geladeira e postais. Com a saída
de algumas pessoas da irmandade o grupo se reconfigurou, mas permaneceu com as vendas
dos produtos.
Enquanto nos organizávamos nas confecções e vendas, e observando a experiência que
acontecia no Contraponto, pensamos a entrada e distribuição do dinheiro de forma diferente.
Por orientação de Ys., que acompanhava e orientava os processos do Instituto CoMPaz,
organizamos a entrada e a saída de recursos financeiros da seguinte forma: 15% do que
entrasse ficaria para a Comunidade, para gastos como eletricidade e manutenções; 15% para
uma caixa do Instituto CoMPaz, com o intuito de acumularmos algum dinheiro para possíveis
compras necessárias; 15% para materiais que seria necessário comprar para a feitura de mais
produtos; e o restante seria distribuído igualmente entre todos os artesãos, independente de
custos dos produtos ou de maior ou menor venda de algum item específico.
Qual era a expectativa em jogo, afinal? Sabia-se, aliás, sempre se soube, que dessa
forma a entrada de dinheiro individual seria muito pequena e, talvez, não suficiente para
manter a vida de alguém. Mas esse seria o início de algo que no futuro, especulavam, poderia
se consolidar como um outro modelo de funcionamento. Quando Ys. trouxe essa sugestão,
reforçou que não vivem na comunidade através de uma perspectiva individual, mas com uma
perspectiva coletiva. Questionou-nos sobre como poderíamos ficar satisfeitos em ganhar mais
que outro irmão, sabendo que, talvez, ele esteja precisando de dinheiro para manter suas
despesas. Questionou-nos também sobre o que seria a tal Economia Solidária, já que faltava,
226

em sua percepção, solidariedade. O ponto central do seu argumento, e de sua proposição, era
que uma lógica econômica que continuasse pautada pelos ganhos individuais talvez não
rompesse o suficiente com o modo de funcionamento da economia capitalista, pois ainda
carregava consigo a ideia de meritocracia. Seria preciso, segundo ela, aprofundar os sentidos
de solidariedade, desenvolver a afetividade entre as pessoas participantes.
Foi em meio a essa conversa, ocorrida em ipadê, que surgiu com vigor e potência o
conceito de ekonomia do afeto. Todos se empolgaram com o próprio termo, que passou a
nomear um modo particular de pensar os recursos e, principalmente, de se contrapor ao
individualismo constituinte de muitas das formas de relações econômicas. Mas, importante
dizer, não diz respeito apenas ao recurso financeiro. Como tudo na Morada da Paz, a
ekonomia ali desenvolvida pauta-se, sobretudo, pela espiritualidade. Foi El. quem atentou
para a importância de ter em vista que um produto não é constituído apenas de matéria-prima
e força de trabalho, mas também de uma “matéria energética”, que o artesão imprime no
produto durante o processo de criação. Por isso são fundamentais os bons pensamentos e a
alegria. Lembro-me, novamente, de Ik. quando narra seu encontro com Ys.. Na época, Ik.
trabalhava na Pizza Hut de um shopping, e Ys. disse a ela que era possível nutrir e matar
alguém através da comida, destacando a importância que existia naquele trabalho.
Conhecendo um pouco da cosmovisão desenvolvida na comunidade, a partir da magia,
sinto que a fala de Ys. para Ik. referia-se sobretudo à “matéria energética” ali elaborada. Seria
possível intencionar, através de pensamentos, energias venenosas ou de nutrição às pessoas
que consomem o alimento. Foi também neste sentido que El. desenvolveu seu pensamento.
Houve um tempo em que boa parte da comunidade mudou-se para Salvador, na Bahia. Lá, El.
produzia e vendia pães. Ela e a comunidade que lá estava percebiam a venda não apenas como
um modo de obter recursos financeiros, mas também distribuir certas forças. Por isso, todo o
pão feito, assim como qualquer elemento vendido pelo Apoiwá CoMPaz é, de alguma forma,
sacralizado. A feitura dos pães é precedida, por exemplo, de uma série de ritualísticas,
cânticos e orações. Na casa de costura, onde as mãos artesãs trabalham com linhas, sempre
encontramos um incenso aceso, algum orin sendo entoado e o espaço devidamente preparado
para o trabalho. Ou seja, nada está fora do que se entende por espiritualidade99.
O “material energético” condensado nos produtos vendidos é utilizado para a mesma
finalidade cósmica, espiritual, de luta. A participação nas feiras também. Em alguns ipadês
sobre a questão, acredito que especificamente sobre a participação da Morada da Paz em uma
feira de venda de produtos artesanais em um evento sobre Saúde da População Negra que
99Seria interessante uma discussão mais aprofundada sobre o contraste entre essa concepção de produção e
venda da Morada da Paz e a lógica capitalista. Enquanto esta atua para a coisificação do mundo –
principalmente nos ditos bens industrializados –, a Morada da Paz produz a animação do mundo – inclusive
nos bens que produz para venda.
227

ocorreu em Porto Alegre, conversamos sobre as diferentes possibilidades de nos aproximar


das pessoas e de, também, convidá-las a participar dos eventos e das ações que acontecem na
Morada da Paz. Lembro-me de El. contando sobre a importância da conversa com as pessoas
naqueles espaços de venda, assim como a importância de um sorriso ou de um abraço
ofertado como ferramentas de cuidado e cura.
*
Na Morada da Paz, as entidades nos dizem que o “trabalho de verdade” é aquilo que
fazemos ali, na comunidade, e o que fazemos para “ganhar patacas” é emprego. Trabalho,
assim concebido, difere profundamente da noção marxista, que está atrelada à noção de
salário, de venda da força de trabalho do proletário ao burguês e aos processos de alienação –
do trabalhador sobre o seu produto e do trabalhador sobre si mesmo. “Trabalho de verdade” é
aquele que está atrelado à espiritualidade, à guerra cósmica, e que engendra processos
coletivos e criativos – aliás, como dito em outro lugar, os processos criativos são concebidos
como processos mediúnicos. Neste sentido, parece haver um deslocamento da preocupação na
Morada da Paz em relação às condições materiais de existência, para me utilizar novamente
do palavreado marxista. Afinal, há outras materialidades em jogo, que são tão fundamentais
quanto as bases materiais de que nos fala Marx, na perspectiva da Morada da Paz. Tal como a
“matéria energética”, fundamental para a vida de todos que constituem a comunidade e para a
própria comunidade enquanto um corpo-coletivo, e que também se imprime nos objetos
criados e vendidos.
“Trabalho de verdade”, numa contraposição à abordagem marxista, também rasura o
que Bookchin, em sua análise particular do marxismo, vai chamar de uma imposição da
necessidade sobre a liberdade. O autor, enquanto anarquista, direciona sua crítica ao conceito
de autogestão a partir de uma perspectiva marxista, que atrelou a noção de autonomia
necessariamente à gestão da existência material. Ele recupera a ideia de que o conceito de
autonomia, da Grécia, percebida como autogoverno, é anterior ao conceito de autogestão –
nessa percepção economicista criticada pelo autor. A perspectiva marxista de tomada dos
meios de produção – cuja principal imagem é a da fábrica –, ao atrelar autonomia à gerência
material acaba por negar a capacidade de autonomia criativa dos sujeitos no interior da
própria fábrica. Nessa concepção, diz-nos o autor, a fábrica é o “reino da necessidade”
(BOOKCHIN, 2010, p. 93), parafraseando o próprio Marx, o que impede que ela seja, então,
do domínio da liberdade.
O “domínio da necessidade” tem assim fronteiras muito vastas e relativas. Ele
depende, na verdade, da visão que cada um de nós tem da liberdade. Separar
necessidade e liberdade não passa de um pressuposto ideológico, pois é bem
possível que a liberdade não seja determinada pela necessidade, mas, pelo contrário,
a determine. (p. 96)
228

O autor sustenta então que, para que a necessidade não se imponha à liberdade, para
que caminhem juntas, é preciso construir as bases para que o trabalho não exista apenas como
trabalho árduo e violento, ainda que coletivo, mas que haja espaço para a ludicidade e para a
alegria. A ekonomia do afeto, parece-me, surge como um processo experimental da
articulação entre a necessidade e a liberdade.

4.2.2 Pedagogia do Encantamento

Figura 15: Vivência Kilombola 2016

Não pretendo conceitualizar a pedagogia do encantamento ou construí-la como um


corpo teórico. Aliás, tenho dúvidas se isso não a faria perder sua potência de constantes
transformações, pautadas nas orientações e práticas espirituais desenvolvidas na Morada.
Também não pretendo dar conta de uma ampla discussão sobre Antropologia da Educação,
visto a falta de tempo e falta de conhecimento sobre a área. Minha intenção é tentar descrever
como a pedagogia do encantamento se manifesta no cotidiano comunitário, como vem sendo
pensada e criada e que tensionamentos faz emergir. De modo geral, sinto que pode ser vista e
pensada em três situações distintas que, todavia, interpenetram-se: a vida espiritual do sujeito
229

que pertence à Nação Muzunguê ou que frequenta os espaços de Desformação – espaço


dedicado ao estudo prático da mediunidade; as atividades constituintes do Ponto de Cultura
da Infância Omorodê, onde se desenvolvem projetos e vivências com crianças e adolescentes;
e, por fim, a construção da Escola Comkola Kilombola Epè'Layê.
Cada uma dessas situações são modulações no que consiste a pedagogia do
encantamento, que coexistem no cotidiano da Morada. Constituem também um continuum
das experiências das mais velhas que fez emergir o próprio conceito. Como já descrito no
primeiro capítulo, a Morada da Paz surge como uma comunidade espiritual e seus fundadores
passaram por uma série de situações de aprendizado com as entidades que guiam seus
trabalhos. Suas vidas pessoais foram, cada vez mais, pautadas pelas suas entregas ao que
chamam de espiritualidade. Processo este concebido na Morada como desformação.
Aqui é preciso fazer uma breve diferenciação. Existe a Desformação, que implica um
tempo e espaço dedicados ao estudo prático da mediunidade, com pessoas que fazem parte e
outras que não fazem parte da comunidade. Mas entende-se também a desformação como um
processo a partir do qual todo sujeito passa na medida em que aceita viver a espiritualidade
nos termos propostos pela Morada da Paz. É sobretudo deste processo que pretendo falar.
Desformar é, como Mãe Preta diz, “tirar da forma” em que fomos formatados, ou “aprender
a desaprender” o modo como fomos ensinados. Surge como central nos processos de
aprendizagem desenvolvidos pela comunidade, pois “aprender a desaprender” é uma forma
de “aprender a aprender” (BATESON, 1991) de outro modo.
Bateson, em seus estudos e experimentos sobre processos de aprendizagem, apresenta-
nos o conceito de “deuteroaprendizagem”, uma meta-aprendizagem que implica, sobretudo, a
apreensão do contexto a partir do qual se aprende. Para o autor, nas experiências de
aprendizagem há não apenas o aumento da frequência da resposta condicionada, mas também
uma aprendizagem de outra ordem, mais abstrata, onde o sujeito desenvolve maior capacidade
em lidar com contextos de um determinado tipo – ou seja, começa a atuar como se certos
contextos fossem já esperados. Dessa forma, não apenas resolve os problemas que aparecem,
mas torna-se cada vez mais capacitado para resolver problemas daquela ordem, ao aprender a
se orientar para determinados tipos de contextos.
“Aprender a desaprender” como colocam as mais velhas, parece-me dizer respeito
sobretudo a um dar-se conta dos contextos de aprendizagem que aprendemos a aprender, e
encontrar neles os seus limites – que são expostos através de outros modos, com novos
contextos em que o aprendizado possa acontecer, o que está diretamente associado à
pragmática da borda que desenvolvi no primeiro capítulo. Aqui pretendo desenvolver como a
230

comunidade trabalha com esse processo de desformação na criação do que chamam


pedagogia do encantamento.

4.2.2.1 Ponto de Cultura Omorodê

Quando fundaram e mudaram-se para a Comunidade Morada da Paz, Ay. e Dm.


tinham alguns meses de vida, e é com muita risada que ouvimos suas mães narrarem as
experiências iniciais com a maternidade. Ys. e El., amigas e colegas de profissão, engajadas
politica e culturalmente nos movimentos da cidade, principalmente via o Serviço Social,
jamais cogitaram tornarem-se mães. Eram seus companheiros quem mais desejavam filhos.
El. conta que, em um certo dia, acordou pensando diferente. Decidiu que queria engravidar.
Ys. reagiu a isso meio assustada pois, conta em gargalhadas, ela mesma fugia dos amigos que
tinham filhos! Um mês depois que El. contou estar grávida, Ys. descobriu também estar.
Ambas tornam-se mães juntas, no mesmo dia, no mesmo quarto de hospital.
A vinda das crianças não estava nos planos delas, mas estava nos planos de todo o
mundo espiritual que as acompanhava. Nas corridas da vida cotidiana, de trabalho,
revezavam-se para ficar com as crianças. Todas as mais velhas e fundadoras da comunidade
participavam dessa rede de apoio, quando El. ou Ys. tinham compromissos. O cuidado e
educação das crianças, portanto, desde o grupo Cosmos, sempre foi coletivo. A mudança para
o território da Morada da Paz fez aguçar essas relações. Nesse percurso, novas crianças foram
nascendo, como In., filha de Ym., Sh. e Ns., filhas de Yb. e Bg. Contam que foi um grande
desafio para todas aprender a criá-las, pois não tinham experiência, e foram as entidades que
as ensinaram e auxiliaram. Não foram poucas as vezes que algumas entidades manifestaram-
se para chamar a atenção para o modo como educavam as crianças.
Disseram que, certa vez, em uma situação específica de que agora não me recordo,
uma entidade se manifestou dizendo que enquanto não souberem educar as crianças, a partir
das orientações que já havia dado, ela não mais retornaria para orientar. Foi a última vez que
ela se manifestou. Para as mais velhas, as crianças não são entendidas como seres atrelados
aos seus progenitores. Ao contrário, estes possibilitaram a vinda daquelas para o Ayê, mas
cada uma delas tem sua própria trajetória espiritual e de vida. Resta àquelas e àqueles que se
comprometeram em educá-las serem suas cuidadoras, para que possam desenvolver suas
capacidades com plenitude para seguir seus rumos. É, sobretudo, por isso que o trabalho com
crianças e jovens é tão importante para a comunidade, pois são elas que darão continuidade à
luta pela paz.
Ym. me contou que as atividades que hoje constituem o Ponto de Cultura Omorodê
eram atividades que as mais velhas desenvolviam com suas filhas. Cada uma das ações nasceu
231

dessa forma. Quando essa “primeira leva de bacuris”, como diz Mãe Preta, era mais jovem,
as mais velhas resolveram criar uma espécie de “Colônia de Férias” para suas filhas e outras
crianças próximas, filhos e filhas de amigas e amigos ou parentes. Com o passar do tempo,
Mãe Preta trouxe a orientação de que não poderiam viver apenas para si o que
experimentavam, que seria necessário ofertar a outras pessoas, crianças e adolescentes, o que
viviam ali, afinal, a Morada da Paz é um lugar que se coloca a serviço de outros. Resultou no
que hoje é a chamada “Colônia de Férias Curumim-Omadê”, que iniciou em 2008. Omadê,
em iorubá, segundo me foi dito, significa criança. O mesmo vale para curumim, em tupi. Com
o avançar da idade dessa “primeira leva”, as entidades e as mais velhas foram percebendo a
importância de criar um espaço dedicado aos jovens que se proponha a dialogar com o mundo
cultural deles, principalmente com as tecnologias a partir das quais desenvolvem boa parte de
suas socializações. Assim, iniciou o chamado “Ipadê da Juventude”, em 2014, com o intuito
de interconectar tecnologia e ancestralidade entre os jovens, os chamados odomodês, termo
também em iorubá.
Nesse percurso, antes mesmo de se tornarem Ponto de Cultura, alugavam uma
pequena casa na área mais central do distrito de Vendinha do município de Triunfo, onde se
localiza a comunidade, para reunir as crianças da região em sessões de cinema com pipoca e
demais atividades socioeducativas, assim como desenvolver com as mulheres da região cursos
de artesanato para geração de renda. Com o passar do tempo, contudo, não conseguiram
manter o aluguel e o cuidado com a casa, o que fez com que os projetos ali desenvolvidos
passassem a ser realizado no território, dentro de outras atividades. Todas essas ações com
crianças e jovens passaram a compor o Ponto de Cultura da Infância Omorodê, em 2013.
Enquanto isso, as crianças moradoras da comunidade viviam intensamente as atividades
realizadas na Morada da Paz e a vida em sala de aula das escolas formais, afinal, todas as
omadês estudam em escola estadual situada no distrito de Vendinha, pois cursam o Ensino
Fundamental. Os odomodês, que são Ay. e Dm. estudam em escolas estaduais de ensino médio
– ele formou-se no final de 2017 100 e ela cursa o ensino médio em uma escola em Porto
Alegre.
Tornar-se Ponto de Cultura foi uma possibilidade de acesso a verbas estatais para
projetos que a Morada já desenvolvia há tempos. Com isso, possibilitou a expansão de suas
atividades. Também permitiu que entrassem em uma rede de Pontos de Cultura onde
conheceram outras tantas iniciativas com trabalhos semelhantes. Mas, como Ys. sempre diz,

100Ay. passou para o curso de História na UFRGS através das políticas de ações afirmativas. Porém, devido a
recentes mudanças no sistema de cotas da universidade, motivo de duras críticas por parte dos movimentos
negros organizados, Ay. perdeu o prazo de uma das etapas e, assim como outros tantos ingressos por ações
afirmativas, perdeu sua vaga na Universidade. O que foi considerado, enquanto conversávamos, como mais
uma das situações em que o racismo se materializa.
232

os Pontos de Cultura não representam o que é a Morada, sendo eles apenas uma das frentes de
atuação comunitária. Quando participaram de um dos encontros dos Pontos de Cultura para
discutir sobre os atrasos nos repasses de verbas, com a saída do PT do governo federal,
notaram que, para muitos Pontos de Cultura, caso não houvesse verba parariam os trabalhos
que desenvolviam com jovens e crianças. Isso, para a Morada da Paz, é inconcebível. “Nós
sempre fizemos e vamos continuar fazendo. Com ou sem o dinheiro do governo”, disse-me
Ym. Isso porque, é importante destacar, os projetos que desenvolvem são sobretudo
“trabalhos espirituais”, ainda que, muitas vezes, não sejam verbalizados dessa forma.
Certa vez fui orientada a acompanhar Ak. e Bl. em uma atividade que aconteceria no
Colégio Estadual de Ensino Fundamental, que fica próximo ao território, para fazer o registro
com fotos e vídeos. As crianças da comunidade estudaram lá por algum tempo e as mais
velhas construíram uma relação de parceria com algumas professoras. A comunidade foi
convidada para fazer um trabalho de contação de história com as crianças, atividade que
realiza há algum tempo chamado “Cadeira de Leitura”, protagonizado por Vó Chica,
personagem desempenhado por Ak.. Fomos e, durante o percurso, percebi que havia muitas
igrejas evangélicas ao redor da escola. Não comentei a respeito disso, mas senti muito
fortemente o contraste entre nossos corpos adornados e o espaço, povoado de igrejas
evangélicas. Afinal, estávamos nós vestidas “a trabalho”, como dizemos na comunidade, com
torso e roupas brancas e com a nossa “saia de trabalho”.
O racismo que as crianças moradoras da comunidade sofrem no ambiente escolar,
principalmente levando em consideração a pouca presença negra nas escolas da região, são de
muitas ordens e a espiritualidade que vivenciam inclui-se nisso. Uma das situações mais
emblemáticas me foi narrada por Ak. sobre sua filha Od., cujo cabelo e cor de pele foram
utilizados para acusações e deboches pelos colegas de classe. Voltou duas vezes para casa
calada, sem contar para nenhum adulto o que havia acontecido. Sua mãe perguntou às demais
crianças, que estudam no mesmo colégio que Od., que contaram o acontecido. Ak., então, foi
consultar Ys. sobre como proceder nessa situação. Ys. reuniu todos os omadês e odomodês em
um ipadê para lhes contar uma história que havia acontecido com ela. Essa história quem me
narrou com bastante emoção foi Ak.
Ys. contou a todos que quando estava no colégio também sofreu inúmeras situações de
racismo. Em uma delas, havia uma apresentação que aconteceria no seu colégio em que os
personagens seriam materiais de higiene pessoal. Cada criança começou a escolher qual
produto gostaria de ser. Ys. disse que queria ser o sabonete e todos da sua sala riram de sua
cara, pois ela não poderia ser um sabonete por conta da sua cor. Foi então que voltou para
casa arrasada, sem saber o que fazer, e narrou o acontecido para sua mãe. Imediatamente ela a
233

e levou no mercado e comprou um sabonete Phebo, da cor de Ys. e lhe perguntou: “você
resolve ou eu resolvo?”. Ys. então pegou o sabonete e foi resolver a questão em seu colégio,
participando da apresentação como gostaria. Ak. me disse que após essa conversa, “as
crianças saíram muito mais empoderadas, sabe”. Od., então, de 12 anos, assumiu seu cabelo
black power com orgulho. Sempre quis ser poetisa e depois de uma atividade que fizemos
durante um Terreiro de Chão Batido, Od. se pôs a escrever poesias. Assina como “Od. do
Black” todas as suas produções, que tratam de sua afirmação identitária como negra.
Tendo em vista inúmeras situações como essa, de intolerância racial e religiosa, foi
que as mais velhas decidiram trabalhar nas escolas da região, propondo atividades como estas.
A Vó Chica é uma personagem contadora de histórias encenada por Ak. Tem sua vestimenta
própria, sempre colorida, fala de um modo muito doce e costuma entreter as crianças com
suas histórias de tempos passados. Quando chegamos ao local, fomos recebidas pelas
professoras com animação. Aguardamos a organização da escola até pedirem para nos
dirigirmos ao ginásio e organizarmos as cadeiras como gostaríamos. Chegamos e organizamos
em círculo, pois é assim que tudo acontece na comunidade Morada da Paz. Bl. havia levado o
tambor, pois a história que a Vó Chica contaria seria a de Ayan 101, um jovem menino que
adorava o toque do tambor. As crianças chegaram e se posicionaram na roda. Estavam
bastante tímidas, mas aos poucos foram se soltando. Vó Chica, então, solicita que todos
levantassem e cantassem com ela uma música para Lonã, aquele que abre os caminhos.
Cantamos, como de praxe fazemos em todas as aberturas de ipadês. Logo se acomodaram
para ouvir a história que a Vó Chica contaria. Ao final, fizemos uma dinâmica de grupo e uma
ciranda.
Fiquei curiosa com o fato de Ak. em momento algum ter dito que Lonã é um Exu e
que Ayan é uma divindade. Ao final da atividade, quando voltamos para o território, perguntei
a ela se tinha sido intencional ela não ter dito, visto os muitos preconceitos existentes. Ela
disse que nem lembrava do que havia dito. Ak. e Vó Chica, a personagem, desenvolvem uma
relação muito especial. Isso porque, muitas vezes, há um outro ser mediando esta relação: a
Tia Chica, preta-velha com a qual Ak. trabalha. Ak., que tem uma “mediunidade
inconsciente”, muitas vezes nada lembra do que diz e do que ocorre durante algumas de suas
contações de história, muito provavelmente por um processo de incorporação, o que é motivo
de divertimento para o restante da Irmandade, pois ela insiste em dizer que não incorpora
durante as contações. Fato é que existe uma relação complexa de realidades bastante porosas
entre a personagem, a contadora de história e a entidade com a qual Ak. trabalha. Há uma
série de interpenetrações e influências mútuas que, para a Morada, nada foge do normal e não

101Na mitologia dos Orixás, Ayan é designado como o Orixá do Tambor.


234

parece buscar estabelecer fronteiras. Afinal, o trabalho que desenvolvem com jovens e
crianças é, sobretudo, espiritual e sabem que suas ações são guiadas pelas entidades.
Mas isso, claro, não é abertamente revelado. São constituintes da vida daqueles que
partilham uma noção de mundo comum e que nem sempre explicitam para outros públicos,
pois isso é o que permite continuarem seus trabalhos. Quando Vó Chica – ou, talvez, Tia
Chica? – chama o Ipadê Lonayê sem informar aos presentes o que aquilo implica para a
Morada, o pedido de benção e proteção a um Exu, o ocultamento é uma forma de driblar a
investida contrária que se manifestaria, seja pelas professoras, seja pelos alunos. O que se
apresentava como “cultura negra” e “ludicidade” para crianças e professoras ali presentes,
encarnava para nós – que ali estávamos – uma ritualística fundamental para o trabalho
espiritual em curso. O que não descarta, sobremaneira, que o trabalho espiritual seja também
“cultura negra” e “ludicidade”.
Assim como essas, há várias atividades que constituem o Ponto de Cultura, que
acontecem anualmente. Trata-se da Colônia de Férias, Ipadê da Juventude, Cadeira de
Leitura durante a Feira do Livro de Porto Alegre, Vivência Kilombola e o Brincando CoMPaz.
A Colônia de Férias e o Ipadê da Juventude acontecem um após o outro. Muitos dos jovens
que participam da Colônia ficam alguns dias a mais para o Ipadê. Contudo, o foco dado a
cada um desses eventos é diferente, o primeiro desenvolvendo a importância do “brincar” e
da “etnoludicidade”, ideias muito importantes para a Morada da Paz (DAVID, 2015), e o
segundo desenvolvendo vivências que conectem saberes ancestrais com linguagens
tecnológicas.
Atualmente a Morada tem tido um público variando de cinquenta a oitenta crianças e
jovens durante a Colônia de Férias. Tem duração média de quatro dias com uma intensa
programação envolvendo oficinas e brincadeiras. Para que a criança participe é solicitado às
famílias que contribuam com alimentos não-perecíveis e algum valor, variando conforme a
possibilidade financeira da família, e com uma série de itens que não podem faltar nas malas
das crianças, incluindo barracas. Caso algumas das crianças não tenham barraca, a
comunidade dá jeito de providenciar com empréstimos ou doações. O Ipadê da Juventude,
atividade que precede a Colônia, tem duração de três dias. São nesses dois momentos onde
crianças e jovens externos permanecem mais tempo dentro do território. Todos que ali
decidem estar seguem as ritualísticas da comunidade, tais como o caminho de oração após
acordar e antes do almoço e do lanche, a lavagem da louça, onde cada criança lava a sua, e as
trilhas quando indicadas. São espaços, sobretudo, dizem as mais velhas, de experienciarem o
“jeito de ser e de viver kilombola”.
235

Para a execução dessas atividades a Morada da Paz conta com a Rede de


Ecoeducadores, formada por pessoas externas que desejam trabalhar como voluntárias.
Anualmente, portanto, faz-se um chamado para aquelas e aqueles que desejam participar, seja
como cuidadoras e cuidadores, seja como oficineiras e oficineiros, propondo atividades. Após
a inscrição dos Ecoeducadores a comunidade cria a programação da Colônia e do Ipadê, com
as oficinas que serão ofertadas naquele ano. Antes de entrar na Nação Muzunguê, participei da
Colônia de Férias e do Ipadê da Juventude como voluntária, ou seja, a partir da Rede de
Ecoeducadores. Após o Uciriri, como foi chamada a construção da Casa Bio, esse foi o
período em que estive mais tempo dentro do território antes de me iniciar na Irmandade.
Não existe uma formação para ser ecoeducador. O que existe é um encontro entre
interessados e a comunidade, onde a segunda conta um pouco da história das atividades
desenvolvidas, do contexto das crianças que normalmente são acolhidas, de como a
comunidade funciona no dia a dia e quais os aspectos de comportamento que se esperam dos
ecoeducadores. Qualquer tipo de manifestação de violência, seja física ou verbal, não é bem-
vinda, e o acolhimento às crianças, a disponibilidade em servir e a valorização e respeito a
toda forma de vida são acionados como elementos fundamentais para o trabalho. Os
ecoeducadores são formados em sua maioria por estudantes universitários e pais, entre os seus
20 a 30 anos, que conheceram a Morada através de suas muitas atividades ou atendimentos
espirituais. Não há restrição de gênero para participar, mas é notável o grande número de
mulheres.
O público infantil para as atividades é bastante variável, e há uma preocupação
constante na comunidade para que haja integração entre as diferentes realidades sociais. Não
apenas variam de idade, com crianças de 5 a 15 anos, mas também de realidades sociais, que
são muito díspares. Há crianças de famílias de classe média e classe média alta e crianças de
classe média baixa e classe popular. Uma das questões fundamentais para as Yas é a
participação das crianças da Vila Pimenta, uma pequena comunidade existente próximo à
Morada, bem na fronteira entre os municípios de Triunfo e Montenegro. Desde que a
comunidade foi fundada, preocupa-se em manter uma relação relativamente constante com
essa população. Um exemplo disso é o convite anual para as crianças participarem da Colônia
de Férias. Para tal, algumas vezes contam com o transporte público cedido pelo município de
Triunfo. Mas, quando isso não ocorre, buscam com o carro da própria Morada.
Há outros públicos frequentes. An., que durante muito tempo trabalhou como
educadora do SASE na Restinga – um conhecido bairro negro da periferia de Porto Alegre –,
volta e meia convidava seus alunos a participarem da Colônia. Tornaram-se também
frequentadores assíduos. Há crianças que participam desde a primeira edição da Colônia.
236

Além das diferenças sociais que marcam a heterogeneidade do grupo participante, há também
uma variedade de pertencimentos religiosos. Aliás, esta é uma dimensão que a Morada da Paz
faz questão de reforçar: há crianças evangélicas, espíritas, mórmons e os diferentes
pertencimentos religiosos nunca foram pauta de discussão durante os dias de atividade.
A Colônia de Férias e o Ipadê possibilitam uma imersão em um estilo de vida que
para muitos é novidade. Outro projeto que possibilita uma imersão de um dia é a Vivência
Kilombola, que consiste em visitas de escolas públicas ao local, onde são realizadas
brincadeiras, ipadês e demais vivências no território. Há também as atividades denominadas
Cadeira de Leitura, de contação de história com a Vó Chica, e o Brincando CoMPaz, onde
são levadas aos colégios e demais espaços – como por exemplo o JardinAção, que acontece
no Jardim Botânico de Porto Alegre – brincadeiras tradicionais que foram recuperadas pela
comunidade. Aliás, alguns dos produtos vendidos nas feiras de artesanato que a comunidade
realiza são jogos que compõem as atividades do Brincando CoMPaz, tais como: jogo de
memória, dominó, cinco marias, entre outros. Todas essas experiências vividas culminaram na
posterior criação da ComKola.

Figura 16: Colônia de Férias


237

4.2.2.2 Escola ComKola Kilombola Epé L’aiyè

Além dos Omadês e Odomodês há também os chamados Pitocos, que são as crianças
de até cinco anos de idade. Também participam das atividades da Colônia de Férias e de
outras ações desenvolvidas pela comunidade. Porém, diferente das demais que tiveram
experiências desde pequenas – muitas delas também frequentaram escolinhas de ensino
infantil – com o processo de escolarização que conhecemos, essa “segunda leva”, formada
majoritariamente por meninos, desenvolve-se já na Escola ComKola Kilombola Epe’Layè,
que se encontra em um processo de construção desde 2016. A ComKola não deixa de ser fruto
da experiência que a comunidade vem desenvolvendo com as atividades já descritas. Através
de uma orientação de Mãe Preta para que a comunidade traçasse novas rotas, somado ao fato
da grande quantidade de crianças de até cinco anos, filhos de “moradores” e “demoradores”,
iniciou-se esse projeto. A chamada gba oyá kan, ou seja, a responsável pela condução do
projeto é Yb., cuja formação é em Pedagogia. Quando iniciei o convívio intenso com a
Morada, Yb. havia recém parido A.N., seu quarto filho, e encontrava-se em licença
maternidade de seu emprego na PROCERGS. Nesse período, recebeu a orientação de Mãe
Preta de que iniciaria esse projeto e de que deveria, para poder dedicar-se, largar seu emprego
– que, há algum tempo, já não a estava satisfazendo. Sem pestanejar, Yb. seguiu a orientação.
Sinto que foi principalmente a partir da emergência da ComKola que o conceito de
pedagogia do encantamento passou a ser utilizado com mais frequência, ainda que seu
surgimento seja anterior. Em uma das muitas conversas que tive com Ys., ela me dizia que
entendia a ComKola não como uma escola de educação infantil, tal como vem sendo pensada
e construída, mas como um espaço de desformação para todas as idades. Porém, há
determinadas estratégias desenvolvidas que levaram à conclusão de que poderia ser
importante iniciarem esse processo com a construção de uma Escola de Educação Infantil e,
dessa forma, com o apoio de diversas pessoas externas à comunidade, começaram a
caminhada para a construção do Projeto Político-Pedagógico (PPP).
A primeira vez que ouvi o termo pedagogia do encantamento foi através de Yb.,
enquanto conversávamos sobre a ComKola. Questionei a ela o que isso implicava, ou melhor,
qual o seu significado, e ela me disse que o encantamento é a valorização da imaginação
infantil, que nada mais é do que mediunidade, e da percepção de que o mundo que nos cerca é
vivo e animado. Seria, portanto, fundamental destacar o encantamento do mundo para as
crianças, pois é a partir da percepção de que “tudo é vivo” que será possível trabalhar com
elas a importância das relações respeitosas e afetuosas (entre elas e entre outros seres). Não
238

sei se foi tendo essa questão em vista, mas é curioso perceber que o nome dado à ComKola
foi Epe'Laiyè, termo em iorubá traduzido como “Terra Viva”.
Inicialmente, o nome escolhido para a escola foi “Terra Pura”, mas, como me
explicou Ys., as mais velhas começaram a questionar sobre o que seria “puro” e os riscos de
isso ser conectado, por pessoas externas, a uma noção de pureza que massacrou boa parte da
população judaica durante o Holocausto. Não apenas por esse motivo, mas também, disse-me
ela, por questionarem se existe de fato algo puro no mundo, visto que os processos, as
pessoas, os seres estão em constante transformação. E esse é, sobretudo o sentido de vida, de
vivacidade. Não poderiam, portanto, falar em pureza. Por isso, optaram por chamar a
ComKola de Epe'Laiyê. Como todo projeto que surge na comunidade, a ComKola também foi
orientação das entidades, e foram atribuídos guias para a sua construção. Como disse Yb., a
ComKola é guiada pelos povos da terra, pelo Sultão das Matas e pela Cabocla Jurema. São
eles que darão a sustentação para a sua construção. Ou seja, o encantamento, a percepção de
que tudo é vivo, não é apenas uma técnica pedagógica. É uma perspectiva de mundo
formadora da ComKola.
O que a ComKola parece colocar em questão é, sobretudo, como fazer com que os
espaços de escolarização – continuamente ferramenta de “formatação” dos sujeitos, para usar
uma expressão de Mãe Preta, que organiza o conhecimento “em caixinhas” e pautada pelo
“cocurutu”, o “corpo mental”, também expressões de Mãe Preta – orientem-se e se
desenvolvam a partir dos processos de ensino-aprendizagem desenvolvidos pela comunidade
na qual a escola se encontra. Ou seja, não se deseja apenas inserir nas Escolas formais, na
falta de um termo melhor, o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira – pauta
que a Morada não apenas defende como também realiza através de vivências com jovens e
crianças de escolas públicas, no território e nas escolas, através do Ponto de Cultura
Omorodê. O que a Comkola deseja é algo mais radical, construir um espaço de aprendizado
cujas bases e premissas sejam oriundas da comunidade em que ela se encontra. Uma escola,
portanto, ComKola. Afinal, como disse a Yaba Ancestral Mãe Preta, a Escola “tira a cola das
relações” com o mundo, com as entidades, com as pessoas ao redor, a ComKola, por sua vez,
a mantém.
Com o surgimento da ComKola houve algumas transformações na comunidade,
fazendo com que o cotidiano dos pitocos e suas atividades passassem a ser sistematizadas. Na
Casa Verde foi dedicado um banheiro de uso exclusivo dos pitocos para banhos, trocas de
fraldas e de roupas e escovações dentárias, e a Geodésica tornou-se o espaço exclusivo da
ComKola. Para além desses espaços, foram adquiridos pela comunidade quatro containers
que serão customizados para atender às demandas da ComKola. Dois deles dedicados aos
239

alojamentos dos educadores, carinhosamente chamados na comunidade de educamores, um


para a recepção e outro para uma sala de leitura. Esses containers serão customizados através
de cursos a serem oferecidos através do Instituto CoMPaz.
Os atuais educamores são os pais das crianças ou participantes da comunidade com
formação em licenciatura, que desenvolveram coletivamente um calendário de cuidado e de
atividades no território. Este é, sobretudo, um objetivo das mais velhas: fazer com que a
ComKola se estabeleça a partir das suas bases comunitárias, com o envolvimento contínuo
dos pais. Não é desejo, portanto, adentrar a lógica da prestação de serviços como uma Escola
Infantil, que recebe as crianças e as retorna aos pais no final do dia. Deseja-se que os pais se
envolvam na construção do que é a ComKola. Mas, afinal, como construir a ComKola como
uma escola comunitária e, ao mesmo tempo, aberta a outras pessoas que não moram na
comunidade e que desejam participar? Tudo isso ainda está em vias de construção, mas algo
que tem norteado as estratégias das mais velhas e das pessoas envolvidas é a chamada
Pedagogia da Alternância102, que constitui uma das principais bases da Educação no Campo.
Outro aspecto que merece ser destacado nesse processo é a relação com o Estado. Foi
decidido pelas mais velhas que a ComKola, como uma escola kilombola e escola comunitária,
não seria uma escola estadual quilombola, como seria possível via a política de educação
diferenciada para comunidades quilombolas e indígenas prevista por lei pelo Governo
Federal. Estávamos Yb., Ys. e eu reunidas conversando sobre os caminhos estratégicos que a
comunidade trilharia para a construção da ComKola. A conversa foi no sentido de pensar
como isso poderia funcionar, levando em consideração o projeto de vida da Comunidade
Morada da Paz, ou seja, dez mil anos de existência. Com recentes movimentos internos da
comunidade, algumas crianças e pais deixaram de fazer parte da ComKola, fato que levou Ys.
a refletir sobre os rompimentos e sobre como a ComKola poderia se manter independente
dessas impermanências.
É algo ainda a ser pensado e maturado pelas mais velhas, mas naquele momento eu
levantei a possibilidade de se tornarem uma escola vinculada ao Governo Federal. Eis que Yb.
diz que isso já havia sido pensado por elas e que chegaram à conclusão de que se assim fosse
teriam que construir a ComKola “do jeito deles”, ou seja, entrariam em longos processos de
negociação com a prefeitura da cidade de Triunfo. Disse isso fazendo caras e bocas de
desgosto, pois a Morada da Paz vem há tempos buscando relações com a prefeitura, sempre

102“A Pedagogia da Alternância surgiu no Brasil em 1969, por meio da ação do Movimento de Educação
Promocional do Espírito Santo (MEPES), (...). O objetivo primordial era atuar sobre os interesses do homem
do campo, principalmente no que diz respeito à elevação do seu nível cultural, social e econômico”
(TEIXEIRA; TRINDADE; BERNARDTT, 2008, p. 229). A ideia é que se alternem os tempos em que os
jovens permaneçam na escola – dedicada a trabalhar questões também no ambiente rural – e os tempos na
comunidade familiar rural, onde colocariam em prática os conhecimentos trabalhados na escola.
240

desgastantes, para solucionar problemas práticos e cotidianos do entorno – tais como solicitar
alguma melhoria na estrada que leva à comunidade ou a construção da ponte para atravessar
um pequeno córrego próximo à BR. Até mesmo, através de participações da comunidade em
instâncias de decisão municipal sobre assistência social, entre outras ações. Conhecendo a
máquina burocrática da cidade de perto, optaram por não vincular a ComKola a essas
estruturas governamentais.
Para exemplificar as dificuldades no que consiste à aplicabilidade de uma educação
diferenciada, recupero a tese de Silva (2013). O autor acompanhou o desenrolar dos processos
da construção de uma escola quilombola na comunidade de Casca, localizada no município de
Mostardas, no RS. Silva relata toda a organização política da comunidade, através da
Associação Comunitária Dona Quitéria, para levar a demanda aos representantes políticos do
município, para a construção de uma escola quilombola pautada em uma educação
diferenciada. Seu relato, contundente, aborda uma série de mediadores acionados – Instituto
de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombos (IACOREQ), Programa de
Educação Antirracista no Cotidiano Escolar e Acadêmico (UFRGS) – para a negociação com
o poder público, com vistas a construir um programa político-pedagógico diferenciado para a
comunidade de Casca. Proposta esta que foi negada pelo governo local. Foi sugerido também
um espaço de formação antirracista dos professores da rede pública, que também foi negado
pelos gestores. Outro aspecto que foi demandado pela comunidade foi a escolha da
professora. Desejavam que fosse uma pessoa já conhecida por todos, negra e com formação
dentro das políticas antirracistas. Indicaram esse nome que, contudo, também foi negado.
O caso de Casca explicita as dificuldades e as resistências oriundas desse processo de
busca de uma educação quilombola. É evidente que há pontos que complexificam as questões.
No caso de Casca, não se referiam a uma Escola Infantil, mas de Ensino Fundamental e
multisseriada – que implica maior rigor curricular. De todo modo, o exemplo de Casca e as
suas dificuldades de articulação com os poderes locais exemplificam porque a Morada da Paz
pensa a construção da ComKola de forma apartada dos poderes estatais, prezando por sua
autonomia sobre seu funcionamento. Por exemplo, os educamores, muitos deles sem
formação pedagógica, são pais que atuam em conjunto na formação das crianças. Formam-se
educamores no processo de construção da própria escola, em ipadês de estudos e partilhas
sobre suas experiências. Decidiram, então, construir a ComKola como uma escola
comunitária, onde os custos de seu funcionamento serão divididos entre todos os pais
envolvidos e contarão com doações das redes de apoio da comunidade que acreditam nessa
iniciativa.
241

Saliento que esse processo ainda se encontra em elaboração, assim como o Projeto
Político-Pedagógico da ComKola. Porém, penso ser importante destacar como vem
acontecendo e quais são os dilemas pelos quais as idealizadoras do projeto passam ao longo
do percurso. Todos esses questionamentos e decisões foram pensados durante alguns
encontros realizados, inicialmente, com o auxílio de Tn.. Tn. é uma antiga conhecida das mais
velhas da comunidade, pedagoga, militante do movimento negro, atuante nas lutas da
população de rua, que tem auxiliado o processo de construção do Projeto Político Pedagógico
e todos os protocolos para sua formalização. Os encontros ocorriam às segundas-feiras no
território e foram criados ipadês específicos, tanto com pais, educamores e demais pessoas
interessadas em auxiliar na construção da proposta. Nesses encontros iniciais foram
delineados alguns pontos que são importantes para os próximos passos. A ComKola se
pautaria pelos “valores civilizatórios africanos”, não compactuaria com a ideia de “aluno”, ou
seja, aquele em quem falta a luz, mas seriam, antes, educamados, assim como não haveria a
figura de professores com qualquer conotação de “iluminado”, mas educamores.
Esses encontros, por sua vez, derivaram em outra proposta, chamada Encontros
Dialógicos. São encontros mensais e abertos às pessoas externas, que se mantiveram às
segundas-feiras, para refletir e compartilhar temas centrais na condução do que seria a
ComKola. A cada encontro havia um tema e convidados com experiência no assunto para
conversar, que eram sempre externos à comunidade. A intenção dos Encontros Dialógicos é
consolidar um debate mais profundo que possibilite à comunidade pensar e construir as bases
do que querem para a ComKola. Muitos estudantes, mas também professores da rede pública
de ensino, participaram desses encontros, ocorridos durante o ano de 2017, que abarcaram
temas como saúde, dança, literatura, espiritualidade, etnoludicidade, entre outros. Esses
encontros têm por intuito trabalhar temas centrais da pedagogia do encantamento, que se
pautam em uma diferenciação central entre o saber e o conhecer.

4.2.2.3 O saber e o conhecer

Foi Seu Sete, na saída da minha iniciação, quem primeiro me ensinou: “aquela que
não sabe aprende com o que vê”. Em outro contexto, disse-nos “língua entre os dentes, corpo
em movimento”. Esses são ensinamentos complementares que me levam à compreensão, sem
dúvida angustiante para quem foi ensinada a sempre perguntar, de que é pelos corpos e pela
observação que se aprende. No momento em que me tornei um membro da Irmandade da
Nação Muzunguê, de poucas palavras, de olhar penetrante e severo, carregando consigo sua
faca que corta todos os males, Seu Sete passou a faca próxima ao meu corpo, “cortando” as
“energias densas” e preparando meus corpos para os dias que viriam. A cada corte dado,
242

sugava aspectos invisíveis que os tinham atravessado até então, e tinha a sensação de que
também os deixava abertos, expostos às vivências que eu teria como uma iniciada. Como se
meus corpos, carregados de cortes invisíveis aos olhos do corpo físico, fossem o meio através
do qual eu seria capaz de aprender de outra forma. Essa percepção daquele momento da
iniciação foi aguçada com uma série de falas posteriores. Lembro-me, sobretudo, da fala que
ouvi de Ys. em uma desformação: “não se conhece só com a mente, é possível conhecer com
o arrepio”.
Tal frase martelou em minha cabeça por muitos meses, e foi dita no momento em que
se fazia um contraponto à prevalência e a relevância dadas ao corpo mental no modo como
“aprendemos a aprender”, desde o berço, pautado pela separação entre corpo e mente. Aqui há
um aspecto interessante. Em diversos momentos, a separação corpo e mente é lembrada de
forma crítica pelas mais velhas, que nos dizem que somos sujeitos integrados, não
concordando com essa separação criada pela perspectiva ocidental dominante. O argumento,
contudo, é ainda mais refinado. Não se trata de dizer que é tudo uma coisa só, mas que o
sujeito é composto por diferentes corpos, como já havia dito no capítulo anterior - corpo
átmico, corpo búdico, corpo da vontade, corpo mental, corpo físico. Ensinaram-nos apenas
cinco, mas dizem as mais velhas que há 21 corpos conhecidos que constituem os sujeitos, ou
seja, pode ser que haja outros ainda desconhecidos. Na Morada da Paz, o dualismo cartesiano,
que em algum momento da história ocidental dividiu o sujeito em corpo e mente, é explodido
em muitos corpos interligados, que o constituem. E é com esses diferentes corpos interligados
que “aprendemos a aprender” de outra forma.
Ys. sempre diz que saber e conhecer são processos diferentes, e que na Morada há
saberes e não conhecimentos. Perguntei qual seria a diferença entre os dois, pois me pareciam
a mesma coisa. E ela me responde que saberes são vividos, utilizados na prática cotidiana, e
conhecimentos não, são obtidos a partir de uma observação distanciada. O conhecimento está
preso ao corpo mental, que dentre todos é o menor corpo, mas o que mais atua, segundo fui
ensinada durante uma das Desformações. “O corpo mental tem que ser reconhecido e
acalentado”, dizia Ys, “é aquele que cria modelos, cria códigos de aceitação, de
demarcação do espaço, cria as vaidades e quer sempre se impor”.
Em momento algum foi negada a importância do corpo mental nessa perspectiva
integrada. O problema, contudo, é a relevância excessiva que lhe foi dada em detrimento de
outros. O conhecimento, como oriundo do corpo mental, e fundante da educação que se
encontra nas escolas e universidades, pauta-se por uma lógica de acumulação e extração –
como Ys. diz, “beber da fonte sem cuidar da fonte”. Transformar saberes de outros em
acúmulos de conhecimentos para si, sem retornos a estes outros, ou seja, sem integração.
243

Afinal, “o que você faz com o que conhece”? Essa é uma questão que sempre me foi feita, de
diversas formas, por Ys.. Não apenas para mim, mas para todos da Irmandade. Não é uma
questão retórica ou simplesmente epistemológica, como comumente trataríamos. Em uma
comunidade espiritual, que é um kilombo e terreiro, essa questão é da ordem da magia,
palavra é magia, dizem, e se encontra em relação com a importância do segredo, o karó, e do
silêncio como estratégias de manutenção da vida.
Se o conhecimento está diretamente relacionado ao corpo mental, sinto que o saber só
pode ser produzido na integração entre os diferentes corpos que constituem os sujeitos. Por
isso, o saber só existe quando se vive. Recuperando a fala de Ys. que trouxe no primeiro
parágrafo desta sessão, e conectando com suas reflexões sobre a diferença entre conhecimento
e saber, sinto que poderia dizer que sabemos apenas quando conhecemos com o arrepio.
Neste sentido, o saber e o conhecer, na forma como Ys. elaborou, são formas de aprender
análogas ao que Antônio Bispo dos Santos (2015) denomina “orgânico” e “sintético”,
aspectos traçados por ele em relação à territorialidade. Bispo parte da elaboração de duas
formas de pensar: monista e politeísta. Dentro do pensamento monista, na sua análise da
Genesis, Bispo nos diz que os colonizadores, sujeitos deste pensamento, foram
desterritorializados por seu Deus quando este disse que “as ervas eram espinhosas e daninhas,
que para se alimentarem tinham que comer do suor do próprio corpo, ou seja, transformar os
elementos da natureza em produtos manufaturados e/ou sintéticos” (SANTOS, 2015, p. 96).
Como foram desterritorializados pelo seu Deus, este povo monoteísta tem por fundamento a
invasão e a posse, para usufruto próprio, de outros territórios.
Em contraposição, os povos politeístas, dos quais emergem um pensamento plurista,
interagem com seus Deuses e Deusas de uma forma territorializada e “biointegrativa”, ou seja,
constituem os espaços em que se encontram. Não precisam invadir outros para seu bem viver
e estabelecem com demais territórios e povos relações de interação e visita (p. 97). Em
recentes palestras que Santos realizou, desenvolveu o argumento sobre o orgânico e o
sintético como formas de saberes. Disse que o saber orgânico envolve o ser e o sintético o ter.
Parece-me que aquilo que Santos chama de sintético e orgânico, quando trata da relação que
os diferentes povos têm com os territórios, poderia ser pensado como análogo aos modos de
aprender que a Morada nos apresenta, com a diferenciação entre o saber e o conhecimento. O
conhecimento, como algo desterritorializado, é sintético. A invasão e posse, características do
sintético, tem por correlato a extração e acumulação, características do conhecimento. A
integração, característica do orgânico, tem por correlato a vivência, característica do saber.
Para a Morada da Paz, parece-me que o saber implica uma responsabilidade e envolve
um processo muito mais lento e cuidadoso. Por isso, nem todos sabem de certos aspectos das
244

ritualísticas desenvolvidas na comunidade. Há determinados espaços e determinadas


ritualísticas em que não me é permitido participar, visto eu ser nova como iaô. Lembro-me
também de um dos muitos ipadês da irmandade quando Ys. falava-nos sobre o consumo de
carne. Há um saber compartilhado, no território, sobre isso, de que quando consumimos
carne, consumimos também o sofrimento do animal abatido. Um saber comungado entre
todos que ali decidiram estar. Saber as consequências do consumo da carne e mesmo assim
decidir por comê-la é uma responsabilidade que cabe àquele sujeito que sabe, ela nos dizia.
Afinal, sabendo, sabe-se também que as ações têm consequências. Há uma responsabilidade
partilhada no saber com seres humanos e com seres não-humanos, uma responsabilidade
“biointegrativa”, nos termos de Bispo, pois todos os elementos e seres que constituem um
determinado território estão em relação.
As consequências da ação, no exemplo citado do consumo de carne, podem fortalecer
ou enfraquecer a constituição da corrente espiritual que é a Irmandade, e interferir no
equilíbrio energético do próprio sujeito. “O que afeta um, afeta a todos”, diziam-me quando
eu havia recém entrado na irmandade. “A espiritualidade é um caminho sem volta”,
alertavam-me as mais velhas, precisamente porque se descortinam outras formas de
aprendizado. Cabe ao sujeito fazer bom uso do saber que ali vivenciou. Essa responsabilidade
“biointegrativa” não se encontra naquele que conhece. Afinal, a pergunta de Ys. ressoa
constantemente: o que você faz com o que conhece?
Essa contraposição, entre saber e conhecer, não tem o intuito de destruir ou de acabar
com os espaços universitários ou escolares, mas não deixa de tensionar como lidam com os
processos de aprendizagem e, principalmente, com a sua finalidade. Certa vez, ouvi um relato
de Al. que me auxiliou a entender como a Morada se relaciona com os espaços de
conhecimento. Al., antiga egbomi, é uma fundadora da comunidade e iniciou com doze ou
treze anos sua participação, trazida por Ol., sua mãe. Quando a comunidade foi criada, optou
por não vir morar, de início. Acabou por dar continuidade ao desejo que sua mãe tinha de ter
uma filha formada em Nutrição e, por isso, iniciou seus estudos no Centro Universitário
Metodista IPA, mas não sentia que o curso a realizava.
Depois desse relato, Al. nos disse que naquele momento em que cursava Nutrição,
“não estava pronta para entrar na academia. Se eu entrasse, ela que entraria dentro de mim!
Faria esquecer do que eu sou, do que eu realmente sou”. Atualmente, Al. é estudante de
música na UERGS e estuda violão. Como disse, Al. não está na academia para ter um título,
apenas, ou seja, não deseja apenas aprender uma técnica. Faz, e se realiza nele, porque seu
nome é Al. e sua guardiania são os orins sagrados – é Al. quem entoa os orins nos ritos.
Existe, portanto, um compromisso espiritual e comunitário que dá o sentido para aquilo que
245

realiza dentro dos meios acadêmicos. Interessante perceber que há uma relação cuidadosa
para que a Universidade não “entre para dentro” do sujeito, mas também para que a entrada
na Universidade não seja negada a ele – afinal, como Ys. disse em outro momento, quando
algumas pessoas da comunidade tentaram uma prova de mestrado da UFRGS e não passaram,
“há forças que não nos querem lá dentro”, precisamente porque a Universidade é um espaço
do colonizador.
O conhecimento e a prática de estudo que o envolve não são descartados ou ignorados,
porém é preciso saber o que se faz com aquilo que se conhece. Em relação aos estudos
oriundos dos ambientes de conhecimento, lembro-me de Ys. comentando conosco sobre a
importância de ler, escrever, pesquisar. Certa vez estávamos em um ipadê onde Aj. trouxe um
material sobre o Calendário Maia para estudarmos. Segundo informações que trouxe, o
calendário Maia significa também a “contagem sagrada dos Kins”. As informações que
trouxe eram muito interessantes, mas, como ela mesma havia colocado, não contemplava a
complexidade do que seria o calendário Maia. Ys., ao final, pegou a palavra e disse-nos que o
estudo, a leitura e a pesquisa são fundamentais para qualquer processo mediúnico. Se
determinados aspectos, assuntos, o que seja, chega-nos através da intuição ou por orientação
das entidades, é importante que nos dediquemos a estudá-lo, pois o estudo “fortalece e
amplia” os processos mediúnicos. Aquilo que chega como conhecimento pode auxiliar a
expansão dos saberes que já são desenvolvidos. Mas, para isso, é importante “saber quem se
é”.
Naquele momento em que Al. fez sua fala estávamos juntos de muitos estudantes de
graduação negros, e a conversa seguiu com outros comentários dos presentes. Depois da fala
de Al. e de demais participantes, Ys. comentou que percebia as Universidades como espaços a
serem ocupados, afinal, “há portas que só se abrem pelo lado de dentro”. E continuou
dizendo que estar na Universidade ou em qualquer outro lugar não é ruim e nem bom, pois as
vezes é preciso entrar em certos lugares para conseguir abrir algumas portas. Mas para fazer
esse movimento, é fundamental que se saiba “quem se é e o que se quer”. E, diz, nem sempre
é fácil saber isso. Quando não sabemos quem somos, são os lugares que nos fazem. Outras
vezes, quando sabemos quem somos, “não são os lugares que nos fazem, somos nós que nos
fazemos em todos os lugares”. O mesmo é dito para as crianças que, muitas vezes, voltam
desanimadas do colégio em que estudam. Reclamam das matérias e da inutilidade de muitas
delas, e Ys. novamente diz que “há portas que só se abrem pelo lado de dentro” para justificar
a importância da Escola e, de alguma forma, mudar a perspectiva das crianças sobre a
chateação da sala de aula.
246

As crianças e adolescentes volta e meia comentam conosco sobre suas percepções e


seus incômodos em ir para o colégio. Sh. está quase terminando o ensino fundamental e
possui um gosto muito particular na lida com plantas e animais. De modo geral diz gostar de
ir à escola, mas não foram poucas as vezes que voltava desanimada das aulas. Dizia-me que
muitas vezes aprendia mais na Morada da Paz do que no colégio, e utilizou como exemplo as
aulas de ciências para seu argumento: “aqui tu interage com as plantas, com os bichos, na
aula não”. Dm., adolescente que cursa o ensino médio, dizia-nos que a única coisa que a
motivava a ir à escola era poder ter os meios de, mais tarde, cursar Pedagogia e Psicologia na
Universidade. Pois assim poderia se formar, viajar e trabalhar na construção da ComKola,
dentro da comunidade. Não são diferentes, parece-me, dos entendimentos das mais velhas.
Ym., por exemplo, formou-se em Bacharelado em Ciências Sociais recentemente e cursa
Licenciatura, no momento. Certa vez perguntei a ela se gostaria de dar aula, e ela me disse
que, de fato, não sentia vontade disso, mas possuía um propósito comunitário, que é a
construção da ComKola e ser Licenciada em Ciências Sociais serviria ao propósito da
comunidade.
Há, portanto, encontros entre estes dois modos de aprendizagem, o conhecer e o saber,
nas experiências dos adultos, dos jovens e das crianças da comunidade, pois todos
desenvolvem atividades em Universidades e Escolas públicas, inclusive algumas das mais
velhas que também cursaram a pós-graduação. Mas, para além disso, há uma forma muito
singular de apropriação dos espaços de conhecimento para que sirvam aos saberes
desenvolvidos na comunidade e seus “propósitos espirituais”. Quando Ys. nos diz que “há
portas que só abrem pelo lado de dentro”, acredito que ela esteja falando não apenas das
portas que um título é capaz de abrir em termos de oportunidade – formar-se em um curso de
graduação permite atuar e ser ouvida em determinadas áreas, por exemplo. Mas, pelo que
conheço da comunidade Morada da Paz, essa é apenas uma das ferramentas. A Universidade e
as Escolas surgem como espaços de conhecimentos, que podem ser roubados para servir aos
saberes já desenvolvidos, mas também como espaços que possibilitam novas alianças.
Com a participação de Ym. cursando Licenciatura em Ciências Sociais e de Ys.
cursando Educação no Campo, a Morada da Paz está muito presente na FACED (Faculdade
de Educação da UFRGS). Em certo evento universitário, foi convidada a participar como
comunidade kilombola. Nesse evento, conheceram um professor universitário de origem
Quechua e o convidaram para conhecer o território em um dos momentos mais importantes
para a Morada da Paz, o rito aberto chamado Okan Ilu – Tambor do Coração. Era véspera
desse rito, que, naquele ano, celebraria os povos indígenas. Uma das orientações que as
entidades deram, há tempos, à Morada, é traçar redes de solidariedade e contato com os povos
247

da América Latina e da África. Dessa forma, o encontro com esse professor foi visto com
muita alegria por parte das mais velhas. No Okan Ilu foram reunidas diversas etnias indígenas
– Mbyá Guarani, Kaingang, Cariri-xocó e Fulni-ô e Mapuche –, somado a esse pesquisador e
professor Quechua, que fez uma fala muito emocionada. Ou seja, os espaços de conhecimento
acabam sendo meios de traçar novas alianças e possibilidades de articulação e ação.
Outro exemplo foi como conheceram a D. R., importante referência do quilombo de
Casca e antiga integrante de um dos poucos terreiros da Nação Oyó que existem no Rio
Grande do Sul. O encontro entre D. R. e a Morada da Paz ocorreu através de Ym., em uma
saída de campo que realizou durante a sua graduação em Ciências Sociais. Essa relação
atravessou os interesses da própria Universidade, possibilitando relações de amizade e
alianças espirituais muito mais intensas para a comunidade, que volta e meia recebe convites
para participar das festas que acontecem no terreiro de D. R.. E volta e meia a Morada tem o
desejo de trazê-la para visitar o território. Em 2017, algumas pessoas estiveram presentes em
uma das festas do terreiro de D. R., onde algumas das entidades que respondem na Morada, lá
responderam e saudaram o terreiro anfitrião – relação esta que é percebida com muito carinho
entre as mais velhas. Além disso, a Nação Oyó é muito importante para a comunidade, pois é
a nação em que a vó de Ys. foi feita, o que reforça a importância da aliança com D. R..
Outra importante aliança, parte das pescarias da Morada, foi com V., professora do
curso de Educação do Campo na UFRGS que tem acompanhado de perto a construção da
ComKola e os Encontros Dialógicos. Foi através de Ys. que V. conheceu a Morada, visto que
Ys. atualmente é aluna do curso de Educação do Campo na UFRGS. A partir da orientação de
Mãe Preta, Ys. convidou V. para conhecer o território e iniciar, com os integrantes da
comunidade, um Grupo de Pesquisa chamado Okaran. Esse grupo, que se reúne na Faculdade
de Educação e funciona como um ipadê, submeteu um projeto de extensão para o PROEXT
da Universidade, através de V. como orientadora, que visa a construção de uma cartografia
sobre os conceitos criados pela comunidade de Pedagogia do Encantamento e Ekonomia do
Afeto. Projeto este que se encontra em andamento.

*
Em um dos recentes momentos que estive no território aconteceu uma conversa
interessante entre mim, V. e Ys.. V. dizia à Ys. sobre a importância de desenvolverem espaços
em que a comunidade possa falar sobre como desenvolve suas próprias “metodologias
pedagógicas”, e não apenas convidar “especialistas” de fora para conduzir conversas sobre
Educação, como havia acontecido durante os chamados Encontros Dialógicos. Dizia ela que a
Morada da Paz tinha metodologias interessantíssimas que precisavam ser apresentadas. Um
248

exemplo elencado por ela foi sobre a roda na formação dos ipadês, com cantos e danças. Ys.,
reflexiva e interessada sobre aquilo que estava sendo dito, comentou: “é, é que nunca
chamamos metodologia. Isso, para nós, é rito...”.
V. observava essa prática dos ipadês como métodos pedagógicos, e os integrantes da
Morada como ritualísticas. Eu, que participava ativamente da conversa com V. e Ys., fiquei
refletindo sobre esse diálogo e sobre as diferentes concepções ali envolvidas. Ys., assim como
as demais Yas, tem bastante interesse em pensar e construir a ComKola. Seu comentário não
foi no intuito de negar a importância de se pensar essa metodologia e sistematizá-la,
cartografar o que consistiria a pedagogia do encantamento e, até mesmo, colocá-la em relação
com outras formas metodológicas possíveis e já conhecidas. Foi apenas uma constatação de
que o modo como V. construía o seu entendimento sobre alguns funcionamentos da Morada
era diferente do modo como a Morada, na figura da Ys., pensava a si mesma. Claro que
qualquer pessoa da irmandade sabe que as ritualísticas são métodos, ou seja, formas de fazer
algo para um determinado fim. O fim, contudo, é outro e está vinculado àquilo que chamam
espiritualidade, em que a palavra, por ser entendida como poder, requer uma série de
cuidados rituais.
Sugiro aqui que entendamos os ipadês como “comunidades de aprendizados”
(HOOKS, 2017). Ao desenvolver suas reflexões sobre práticas educativas libertárias,
contrastando com os modos como os espaços escolares funcionam, bell hooks propõe uma
“pedagogia engajada”, e desenvolve suas reflexões através do trabalho de Paulo Freire e do
monge budista Thich Nhat Hanh. Ambos trazem a percepção de que a educação, como prática
de liberdade, só pode acontecer quando realizada coletivamente, em uma “comunidade de
aprendizado”, e a partir da práxis – o agir e refletir sobre o mundo a fim de modificá-lo. Mas
enquanto Freire, diz-nos a autora, desenvolve suas preocupações mais em função da mente,
Hanh propõe uma abordagem holística e integral do sujeito. Ainda assim, ampara-se nas
elaborações destas duas referências para recuperar a importância do bem-estar de alunos e
professores que constituem a “comunidade de aprendizado” atualizada em uma sala de aula.
Uma “comunidade de aprendizado” implica uma preocupação para além das salas de
aula, um acompanhamento da vida dos alunos pelos professores – como tanto descreve sobre
suas experiências como aluna, estudante de uma escola negra, em plena segregação racial
estadunidense – e o engajamento destes no compartilhamento de experiências pessoais com os
alunos. Assim como todas as partes encontram-se implicadas na relação de ensino-
aprendizagem, há a importância de que aquele que ministra as aulas invista também em seu
bem-estar, para poder acolher as demandas que emergirão da sala de aula. Isto me parece ser o
249

grande opositor do modo como a educação tem operado nas salas de aula formais, a partir da
separação entre interação social e trabalho intelectual103.
O bem-estar, portanto, é fundamental. Nas palavras de Hanh, recuperada pela autora, o
professor é comparado ao curador, aquele que auxilia nos processos de cura de outros: “se a
pessoa que ajuda estiver infeliz, não poderá ajudar muita gente” (HOOKS, 2017, p. 28). Claro
que há muitas diferenças entre aquilo que a Morada apresenta e o que hooks coloca. Primeiro,
hooks desenvolve suas ideias no interior da lógica universitária e escolar. A Morada da Paz,
por sua vez, desenvolve suas práticas do interior da lógica comunitária e espiritual. De todo
modo, a atenção dada por hooks ao bem-estar e ao cuidado, principalmente quando retoma a
figura do professor como um curador, parece-me muito próximo ao que a Morada da Paz
desenvolve com suas práticas ritualísticas que caracterizam o ipadê.
Todo ipadê acontece em roda. A roda, a circularidade, é um dos aspectos mais
importantes para a comunidade Morada da Paz. É assim que entendem suas organizações
comunitárias, tais como a hierarquia circular, a formação da corrente espiritual durante os
Muzunguês, os espaços de escuta e de aprendizado quando as mais velhas contam suas
histórias e compartilham seus saberes. O círculo é, portanto, a base através da qual todas as
ações são desenvolvidas na comunidade. “O fluxo energético é circular”, disse certa vez Ys.,
“não é linear”. Os ipadês obedecem esse fluxo. Quando um ipadê é aberto, seja lá qual for o
tema a ser conversado, inicia-se, com um incenso, o chamado “canto da unidade”, um toque
para Exu Lonã, e são pré-estabelecidas algumas regras de conduta fundamentais. Todos da
irmandade precisam portar suas saias de trabalho, por exemplo. Há um espaço designado
como a porta, por onde as pessoas entram e saem. As pessoas que sentam e guardam a porta
normalmente são egbomis. Assim que se abre um ipadê há um fluxo de entrada e saída que é
previamente acordado e incorporado no cotidiano daqueles que vivem a comunidade. Quando
são visitantes, prontamente são ensinados a como entrar e sair. Entra-se sempre pela esquerda
dentro do fluxo da roda e se sai pela direita. “Por que isso?”, perguntei. “Porque se não, pode
quebrar o fluxo energético do ipadê”, explicou-me An.. Ys., recentemente, disse-me que todo
ipadê funciona em sentido horário, pois os colonizadores faziam os negros africanos
circularem no sentido anti-horário ao redor de um grande baobá para esquecerem de suas
raízes. Circundar em sentido horário é um ato de jamais esquecer as atrocidades do passado.

103“A ideia da busca do intelectual por uma união de mente, corpo e espírito tinha sido substituída pela noção de
que a pessoa inteligente é intrinsecamente instável do ponto de vista emocional e só mostra seu melhor lado no
trabalho acadêmico. Isso queria dizer que pouco importava que os acadêmicos fossem drogados, alcoólatras,
espancadores de esposa ou criminosos sexuais; o único aspecto importante da nossa identidade era o fato de
nossa mente funcionar ou não, ou sermos capazes de fazer nosso trabalho na sala de aula.” (HOOKS, 2017, p.
29)
250

Os ipadês ocorrem, portanto, em círculo, e não há um lugar específico para acontecer.


Às vezes ocorre no “cantinho da sabedoria”, onde há uma enorme e velha figueira, ou na
Casa Bio, onde as cadeiras são organizadas em círculo precisamente para os ipadês. Pode
ocorrer no Templo ou em qualquer outro canto do território. Quando há poucas cadeiras e a
necessidade de sentar ao chão, são as mais novas que o fazem. As mais novas, importante
dizer, não em termos de idade, mas de pertencimento à Morada. Os ipadês funcionam através
dos axé de fala e axé de escuta. Há ipadê em que não é dado axé de fala a todos. Certas vezes,
principalmente em função de algum tensionamento ocorrido dentro do território ou alguma
dificuldade de compreensão sobre um determinado tema ou situação, as Yas dão apenas o axé
de escuta à pessoa. Ter o axé de fala e o axé de escuta é sempre um compromisso com a
comunidade dentro e fora do território.
Pedir axé de fala é chamado agoyê mojubá. Em todo o ipadê somos orientadas a pedir
o agoyê mojubá. O agô, ou seja, o consentimento dado pelas Yas é fundamental, e me foi
explicado por Ik. como uma relação de respeito pela história percorrida pelas mais velhas.
Quando se pede o agoyê mojubá, deixa-se claro a quem se pede licença com aquela fala e
aquela escuta – às mais velhas, às entidades guias, à ancestralidade, à Irmandade e a todos os
outros seres humanos e não-humanos presentes –, e explicita-se com que intenção dirige-se a
fala e a escuta. Esse processo é, como explicou certa vez El., para que possamos ter
consciência de como dirigimos nossa fala e nossa escuta e para que os outros possam preparar
os seus ouvidos e suas atenções de acordo com nossa intencionalidade. Constitui um ato de
cuidado consigo e com os outros.
Quando há movimentos que fogem a essa intencionalidade, o agoyê mojubá é
acionado para que o coletivo perceba a situação e possa reconstruir uma relação harmônica.
Foi assim que aconteceu durante um ipadê bastante sério dos demoradores. O intuito foi
questionar e tensionar um dos integrantes da Irmandade sobre sua pouca participação nas
preces práticas comunitárias. Depois de todos pedirem seus agoyê mojubá, uma das irmãs
mais velhas salientou que o dito integrante havia pedido seu axé de fala, mas não o seu axé de
escuta. O que, segundo ela, informava bastante sobre sua falta de disposição em ouvir as
demais pessoas. A partir disso, uma sequência de trabalhos espirituais foram realizados para,
de alguma forma, trazer novamente a harmonia para o grupo que estava em ipadê. O ipadê,
portanto, é o espaço por excelência de troca, de fala e de escuta, de aprendizado, de acordos
comunitários e resoluções de conflitos.
E por que, nos termos da Morada, há a necessidade de um ipadê, com toda a
ritualística que o envolve, para conversar? Porque entende-se que a fala e a escuta são
sagradas e que é preciso preparar um ambiente seguro energeticamente e acolhedor para que
251

elas ocorram, com o intuito de evitar qualquer “atravessamento” que possa fazer algum mal,
seja ao coletivo, seja a alguma pessoa específica. Dizem que “as palavras têm poder” e por
isso demandam cuidado – o que, como vimos, é uma das formas a partir das quais a
comunidade participa da guerra cósmica em curso, refletindo e agindo sobre o mundo através
de aprendizados coletivos. É de cuidado que se trata.

4.3 A felicidade

Figura 17: Okan Ilu 2017

Ao longo deste capítulo tentei traçar uma série de considerações. Sugiro pensar o
kilombo como uma “máquina de guerra”, que opera intensas linhas de fuga aos modelos que
se apresentam. Nega qualquer forma de relação que poderia se pautar pela dominação e pela
“fuga dos propósitos” da comunidade. Ao mesmo tempo, não se pensa apartada do mundo, e
por isso desenvolve suas pescarias, modos de buscar e construir alianças, fundamentais para
a garantia da sua autonomia. Apresento como essas alianças ocorrem, sobretudo, com povos
negros e indígenas – não passam por uma atribuição identitária prévia, mas por algo que se dá
necessariamente no encontro que estabelecem. A partir disso, questiono-me que lugar
ocuparia o branco nessas relações, se é que ocuparia algum lugar, e derivo disso o fato de o
252

branco não ser pensado como um povo, tal como o negro e o indígena, mas através da figura
do colonizador, com o qual a única relação possível é “criminal”, através do “roubo”.
Por fim, descrevi como dois conceitos fundamentais para a Morada são
experimentados e criados através desses “roubos”: a ekonomia do afeto, como uma fuga das
relações estabelecidas pelo viver de salário e viver de editais, ainda que “roubem” os recursos
dessas formas para viver de projeto; e uma fuga do individualismo e da meritocracia, que
acreditam estar presente na Economia Solidária, ainda que “roubem” dela certas ideias e
configurações para fomentar as suas próprias práticas de ekonomia do afeto. Da mesma
forma, utilizam-se dos espaços universitários para lhes “roubar” os recursos – conhecimentos,
contatos que possam gerar possíveis alianças, modos de sistematização das ideias – que
possam ser úteis às práticas desenvolvidas na Morada. Mas como todo roubo, diz-nos
Deleuze, trata-se de um duplo roubo. Ao “roubarem”, é a Morada da Paz que fornece aos
pensamentos duros e aos modelos previamente estabelecidos “uma corrente de ar fresco”.
Finalizo essas descrições com um trecho escrito pelo Comitê Invisível. Não porque
explica o que a Morada desenvolve – pois as ações que ele desenvolve na França são
radicalmente diferentes das ações desenvolvidas pela Morada da Paz. Cito-o porque coloca
em palavras um aspecto fundamental de suas práticas revolucionárias, que é também crucial
para as mais velhas, e que tive o privilégio de vivenciar, de “conhecer com o arrepio”, ao
acompanhar e participar desses processos criativos que aqui descrevo – nas suas urgências,
nas suas dificuldades, mas, sobretudo, no “sentimento de que a potência aumenta”: a
felicidade.

Ficar retido no plano ofensivo é ficar, por fim, sem ideias sagazes e tornar insípida a
abundância dos meios. Deixar de se mover teoricamente é ter a certeza de que se
será pego desprevenido pelos movimentos do capital e de que se perderá a
capacidade de pensar a vida em nossos locais. Renunciar à construção de mundos
através de nossas mãos é se condenar a uma existência espectral. ‘O que é a
felicidade? O sentimento de que a potência aumenta – de que um obstáculo está
prestes a ser ultrapassado’, escreve um amigo. Tornar-se revolucionário é se entregar
a uma felicidade difícil, mas imediata (COMITÊ INVISÍVEL, 2016, p. 283-4).
253

5. Ocupar a pele de papel

O que é preciso é pegar alguém que esteja fabulando,


em “flagrante delito de fabular”.
(Deleuze)

Lembro-me dos conselhos de Latour (2006, p. 344) a um estudante, quando diz que
finalizar um texto é basicamente parar “quando tiver escrito as suas 50.000 palavras” –
quando se corta a rede de associações a partir da qual o pesquisador deteve-se em mapear, em
seguir, em descrever. Ou seja, não há um fim do trabalho, o que há são os prazos, limites e a
necessidade de um ponto final. Talvez por isso, ou me justificando através disso, este último
capítulo não leve como título Conclusão – acredito que seja mais um capítulo, onde novas
questões são postas, mas as urgências da vida e dos prazos levam-me a pontuar o fim. Para
celebrá-lo, com a alegria e com o cansaço que marcam o fim de um percurso, faço uma breve
recapitulação do que foi dito.
O intuito da tese foi buscar dar uma consistência através da prática antropológica ao
modo como a Morada da Paz desenvolve isso que chama de ocupar: uma estratégia utilizada
frente a uma guerra cósmica em curso. Ocupar, contudo, surge na encruzilhada de duas
outras noções – de um lado, aquela acionada pelos praticantes do Batuque, de outro, aquela
acionada pelos movimentos sociais. Próximo às noções de “reativar”, das bruxas neopagãs
estadunidenses, ou de “retomar”, dos povos indígenas e em especial dos Tupinambá, ocupar
emerge como uma invenção cosmopolítica, na medida em que as integrantes da Morada da
Paz se colocam na obrigação de pensar e agir no mundo com outros, os que são deixados à
parte pela política – esta que, bem ou mal, nós, enquanto antropólogas e antropólogos,
herdamos dos gregos.
Apresentei como a Morada da Paz ocupa três noções principais que, de alguma forma,
também a ocupam, na medida em que incidem sobre ela. Primeiro a borda, termo que
recupera da permacultura. Depois o feminino, termo que recupera das clássicas noções de
gênero. Por fim o kilombo, termo oriundo de um modo de organização africana, mas que
existe na comunidade muito em função de um processo de autorreconhecimento, certificado
pelo Estado, como território quilombola. Quando a Morada da Paz ocupa esses termos,
transforma-os em outra coisa, trazendo para a noção de ocupação uma série de outros com os
quais pensa e age para resistir às barbáries que incidem sobre o mundo. De todo modo, prefiro
ler os capítulos da seguinte maneira: o primeiro nos diz através de que ferramentas a Morada
da Paz foi e é criada; o segundo, através de que ferramentas ela atua no mundo; e o terceiro,
254

através de que ferramentas ela traça seu diferencial para se afirmar enquanto uma
singularidade.
A Morada da Paz ocupa espaços, diálogos, mentes e corações, mas também ocupa
ideias – a borda, o feminino, o kilombo – que, por sua vez, também a ocupam, pensando aqui,
como dito na introdução, que a ocupação implica uma dupla captura. Ao ocupá-las, a Morada
as transforma, e faz delas ferramentas de ação frente a uma guerra cósmica em curso. Como
eu disse na introdução, e retomo aqui, ocupar não é ‘bom para pensar’, como se o exercício
do pensamento estivesse relegado à antropóloga em uma clara hierarquização dos saberes.
Ocupar é um pensamento em si, inscrito em corpo e território, e me aventuro a dizer que as
mais velhas e as entidades aceitaram a produção desta tese pois viram que o pensamento
antropológico talvez fosse ‘bom para ocupar’. É sobretudo sobre isso que gostaria de dissertar
nestas páginas finais.

Figura 18: Irmandade e Convidados - Okan Ilu 2017

5.1 Os desconfortos da antropóloga

Desde o início do meu envolvimento, as Yas demonstraram-se bastante interessadas


em acompanhar o desenvolvimento do meu trabalho de escrita. Os motivos pareciam ser
variados: interesses nas trocas de saberes – novos pontos de conexão entre resistências de
255

povos originários da América Latina surgiram em nossas conversas; acompanhamento de


como a Morada será apresentada para a Universidade e como seus saberes serão descritos e
postos em relação com os conhecimentos acadêmicos – visto que muitas pessoas que
passaram pelo território escreveram sobre a Morada sem ter o consentimento da comunidade
ou sem retornarem suas produções a ela; e, também, acompanhar o cuidado que devo ter com
a palavra, visto que ali entendem que “a palavra é magia”. Essa intensa participação das Yas e
demais irmãs e irmãos na própria produção textual não foi livre de mal-estares de minha
parte, mas permitiu evidenciar a ânsia da autoria, como um espaço da individualização.
Alguns meses depois que iniciei minha relação com a Morada, em 2016, diversos
espaços sob os cuidados do Ministério da Cultura foram ocupados, principalmente pela classe
artística, o que ficou conhecido como OcupaMinc. Eu, Ik. e El., respectivamente uma iaô,
uma egbomi (irmã mais velha) e uma Ya (mãe da comunidade), fomos orientadas por Ys. para
irmos a uma reunião do OcupaMinc, onde muitos coletivos e comunidades compareceriam em
demonstração de solidariedade e apoio à luta pela permanência do Ministério da Cultura.
Fomos representando a comunidade Morada da Paz. Na roda de apresentação, senti-me
profundamente desconfortável em me manifestar como alguém de uma comunidade
kilombola, tal como as demais fizeram. Eu sendo a única branca.
Após o evento, conversei com Ik. e El. sobre isso, sobre minha dificuldade em me
apresentar como alguém da Morada da Paz, por respeito à história delas, mulheres negras, que
foi arduamente construída ao longo dos anos. Preferível que elas falassem sobre a Morada e
que eu apenas as acompanhasse. Isso foi retomado na Comunidade e repercutiu em situações
diversas ao longo do tempo. Um incômodo entre nós se desenhou. De um lado, eu, branca,
iniciada na Irmandade muito em função da escrita de um trabalho acadêmico, insistia em me
referir às integrantes da comunidade Morada da Paz como ‘vocês’ em relação a mim. De
outro lado, elas reclamavam do fato de eu as colocar como ‘vocês’ em contraposição a mim,
visto que “somos” uma Irmandade. ‘Eu não sou negra’, argumentei. “Essa é uma ideia
essencialista do que é um kilombo! E você não é a única branca aqui”, contra-argumentaram.
‘Eu não tenho um longo vínculo com o território, tal como vocês’, insisti. “Como assim? Se
você, Folaiyan, nasceu aqui?”, questionaram-me em outro momento. ‘Eu não sou uma
fundadora da comunidade e desejo respeitar a trajetória de vocês’, aleguei. “Você não precisa
ser uma Ya para poder ser da Comunidade. Você é uma iaô e tem axé de fala como iaô”,
responderam-me.
Isso não apenas se apresentou na ida ao OcupaMinc, mas também em outras tantas
situações, inclusive quando o assunto se referia à tese. Eu, acostumada em trabalhar com
coletivos negros, sempre me posicionei e fui apontada como a antropóloga branca cujo
256

esforço é jamais ‘falar como’ meus interlocutores, respeitando os termos daquilo que
chamamos representatividade. Ali, contudo, a situação se inverte. Não ‘falar como’ Morada
implica, para elas, um distanciamento inexistente, visto que faço parte da Irmandade e estou
“mergulhada até o último fio de cabelo”, disse certa vez Ys.. Os ‘outros’ da antropóloga são,
então, questionados, quando me dizem “os outros não somos nós, são eles!”. Eles quem? “A
Ciência, a Universidade e os conhecimentos colonialistas”. O lugar da antropóloga exige,
pelas situações que o próprio trabalho de campo coloca, um deslocamento e uma atenção
especial para os novos delineamentos realizados sobre o tão retomado Grande Divisor que
tem fundamentado a antropologia: ‘nós’ e os ‘outros’.
Favret-Saada, decidida a trabalhar com a feitiçaria entre os camponeses do Bocage,
encontrou o mais absoluto mutismo entre seus interlocutores referente ao assunto. Isso
porque, diz-nos a antropóloga, os camponeses sabiam que ali se estabeleceria novamente o
jogo do Grande Divisor, em que a antropóloga ocuparia o melhor lugar – a Ciência, a
Modernidade e o Real – e eles o pior – a crença, o atraso e o falso. Foi apenas quando
experimentou ocupar o lugar de enfeitiçada ou desenfeitiçadora, que seus amigos do campo
passaram a falar sobre feitiçaria com ela. Isso colocou a antropóloga em um dilema:

[...] se ‘participasse', o trabalho de campo se tornaria uma aventura pessoal, isto é, o


contrário de um trabalho; mas se tentasse ‘observar’, quer dizer, manter-me à
distância, não acharia nada para 'observar'. No primeiro caso, meu projeto de
conhecimento estava ameaçado, no segundo, arruinado (FAVRET-SAADA, 2005, p.
157).

Encontrei-me em uma situação semelhante, com incômodos também parecidos. Se não


aceitasse entrar na Irmandade, não poderia fazer trabalho de campo na Morada. E mesmo que
minha presença fosse permitida, talvez não presenciaria situações e eventos de suma
importância para pensar com e sobre as práticas comunitárias ali desenvolvidas. Porém,
aceitar entrar na Irmandade implica aceitar participar ativamente, exige um engajamento e
uma disponibilidade muito além da simples escrita de um trabalho acadêmico. Implica dispor-
se aos afetos, às forças que ali se manifestam, correndo riscos e tomando as precauções
necessárias para habitar o mundo, que é por demais perigoso, visto a guerra cósmica em
curso. Implica conceber as relações com as pessoas que constituem a comunidade de forma
radicalmente diferente (não como meros interlocutores), e conceber a própria escrita de outro
modo.
A participação da antropóloga francesa, sutilmente exigida pelos camponeses do
Bocage, aproxima-se àquela mais explícita realizada na Morada da Paz. Se o mutismo inicial
foi o modo como os camponeses de Bocage lidaram com o Grande Divisor, a Morada da Paz
257

lidou de outra forma, como se dissesse a mim ‘você pode escrever se você se engajar em uma
guerra cósmica, compreender e permitir que o seu trabalho seja fruto da mediunidade, que
você se disponha a conhecer com o arrepio, que sua palavra seja magia e que, portanto, você
seja uma de nós’. Um “nós”, como demonstrarei mais adiante, que se encontra em constante
composição, pois não é dado previamente, não é da ordem de uma simples adesão. O que
aproxima os camponeses do Bocage e as kilombolas da Morada da Paz é que ambos recusam
o perverso jogo do Grande Divisor que os colocam, pelas muitas experiências que já tiveram,
sempre no pior lugar104. Contudo, também recusam uma Grande Unidade, pacífica, em que as
diferenças seriam subsumidas ou neutralizadas.
Durante alguns minutos depois do café da manhã, após a leitura de um dos meus
textos iniciais para a qualificação, sérios questionamentos me foram feitos por Ys.: como eu
confronto meus próprios “demônios”, ou seja, as forças deletérias do colonialismo e do
cientificismo que também me habitam, na medida em que havia me colocado como parte de
um ‘nós’ que não as englobava, mas que englobava a Antropologia? Quais forças, agenciadas
em palavras, eu acionava na composição da escrita? Naquele momento, essas questões
pareciam me inserir em um dilema, tal qual esboçado por Favret-Saada. De um lado, uma
antropologia narcisista e, de outro, uma clássica antropologia distanciada. Observando minha
angústia e o abismo em que eu me encontrava – como bem descreveu Favret-Saada, a
sensação de um projeto de conhecimento de um lado ameaçado e, de outro lado, arruinado –
Ys. contou-me que, certa vez, quando ela se sentiu à beira de um abismo e pediu socorro à
Mãe Preta, a Yaba Ancestral lhe deu um único conselho (que, naquele momento, serviu
apenas para aumentar o desespero, pois não implicava resposta concreta alguma ao problema
que colocava): “aprenda a voar”. Com estas palavras finalizamos nossa conversa.
A investida sobre a própria escrita etnográfica reembaralhou as questões abordadas por
mim enquanto antropóloga. Ao perguntar a elas sobre o ocupar, questão central desta tese, a
resposta que eu obtive foi ser ocupada por um “nós”, eu e o texto, o que me obrigou a outro
tipo de relação com as minhas próprias práticas antropológicas.

5.1.1 Um “nós” intercessor

Eu não tenho muito a dizer da Antropologia, como uma única, vasta e totalizante
disciplina – se é que alguém poderia dizê-la nessas condições. Apenas posso discorrer sobre
seus efeitos em mim, ou seja, sobre a minha prática antropológica ou etnográfica (e eu tomo

104Acredito que o convite feito a mim pelas mais velhas da comunidade encontra ecos numa importante
discussão elaborada por Lila Abu-Lughod na defesa de uma escrita contra a cultura. Para a autora, o conceito
de cultura ou diferença cultural serve para a construção do Outro, “forçando separações que inevitavelmente
carregam um senso de hierarquia” (ABU-LUGHOD, 1991, p. 466).
258

os termos como sinônimos105). De todo modo, o meu processo criativo enquanto antropóloga
só existe em função daquilo que aprendi com outros que vieram antes de mim e que me
ensinaram, de diferentes maneiras, sobre o que é e como fazer Antropologia. Herdo,
sobretudo, a designação de uma certa partilha entre ‘nós’, as antropólogas e antropólogos, e os
‘outros’ da antropologia. Mas é importante entender como eu entendo e de onde provém isso
– sobretudo como um recurso textual artificialmente criado pela antropóloga para fazer
emergir contrastes na prática etnográfica.
É bem verdade que o Grande Divisor sempre assombrou as Ciências de modo geral – e
a Antropologia principalmente, como a disciplina que lida com a alteridade –,
substancializando uma separação ‘nós’ e ‘outros’. Um Grande Divisor que atribui direta ou
indiretamente um valor de superioridade e inferioridade aos termos da relação através de
generalidades, muitas vezes empobrecedoras do encontro etnográfico. Aos ‘outros’, é claro,
cabendo a inferioridade, o primitivo, aqueles a quem os evolucionistas pensaram – e
desejaram, eu diria – que chegariam um dia a ser como ‘nós’, os ocidentais. Mesmo quando
negam a Grande partilha da humanidade entre ‘nós’ e ‘outros’, ela pode ser reatualizada,
como Goldman e Lima (1999) nos dizem, em dualidades que sobrecodificam a diversidade e a
complexidade dos mundos pesquisados. E vemos a reprodução, inclusive em antropologias
contemporâneas, das oposições complexo – simples; moderno – tradicional; escrita – oral;
entre outras que reinscrevem os ‘outros’ numa insistente assimetria com o ‘nós’.
Mas como os mesmos autores nos dizem, não basta simplesmente negar o Grande
Divisor, ainda mais depois de tudo o que o Ocidente, em nome da Ciência, do Progresso e do
Capital, produziu aos povos não ocidentais. Como se fosse possível esquecer o passado
colonial e suas consequências no presente, inclusive o papel desempenhado pela
Antropologia. O Grande Divisor não existe como um princípio substancial, um atributo dado
aos termos da relação, mas ele foi brutalmente criado pelo ‘nós’ dessa partilha, inscrito em
corpo e território a partir daquilo que chamamos colonialismo. Da mesma forma que negar a
existência do racismo no Brasil – como o velho e enfadonho mito da democracia racial – não
impedirá que ele se manifeste cotidianamente e corpos sejam feridos ou mortos, fruto de um
longo e dolorido processo histórico. Negar a partilha operada pelo cientificismo e pelo poder
colonial não impedirá que ela se manifeste em ‘nossas’ práticas científicas.

105Ou, caberia dizer, em variação contínua, como sugere Goldman (2014c): “É nesse sentido que acredito que
opor etnografia e antropologia (no sentido de que a primeira não seria ‘ciência’) ‘não é a questão’. O e deveria
mesmo ser tomado aqui literalmente, no sentido de que passamos em variação contínua de um polo mais
analítico a um mais sintético e vice-versa. Apenas esse movimento pode nos tornar capazes de dizer algo
diferente dos saberes nativos sem supor que essa diferença seja uma superioridade — caso do cientificismo —
ou uma inferioridade — nas abordagens mais interpretativas ou fenomenológicas sempre lamentando a perda
da riqueza do mundo vivido etc.”
259

Não podemos negar que o Grande Divisor incide sobre o mundo e sobre a
Antropologia. Ainda assim, não podemos compor com ele se adotamos uma postura ética
contrária às violências que produz. Precisamos encará-lo de frente e atuar, sobretudo, como
intercessores, enquanto antropólogas e antropólogos, em um mundo que continuamente reduz
aquilo que os ‘outros’ da antropologia dizem e fazem à crença, à representação e à falsidade
em relação a um ‘nós’ que pressupõe acesso real e objetivo a uma ‘natureza universal’, à qual
todas as demais culturas estão submetidas, mas que somente ‘nós’ teríamos acesso. Pretensão
é pouco a esse ‘nós’ da relação. Se há um papel a ser desempenhado pela antropóloga e pelo
antropólogo é, sobretudo, fazer com que os ditos ‘outros’ não sejam relegados a esse lugar. E
isso produz um efeito interessante, porque negar esse lugar aos ‘outros’ afeta diretamente as
concepções universalizantes do ‘nós’ da Antropologia – e da ciência do Ocidente, e tudo mais
que a acompanha.
O ponto central para a Antropologia é negar qualquer tipo de inferioridade ou
superioridade conferido ao ‘nós’ ou ao ‘outro’, mas produzi-los enquanto recursos textuais
para fazer emergir as diferenças em relação. Ou seja, atuar, enquanto antropóloga, não implica
dizer que a verdade do ‘outro’ da antropologia ‘na verdade’ é crença, portanto falsidade. Nem
tampouco aceitar a verdade do ‘outro’ e reproduzi-la tal qual, o que impediria qualquer
produção criativa através das ferramentas que a antropologia proporciona. Ou seja, não
colocaríamos essa verdade em relação com outros vetores para além dela mesma. Assim, não
diríamos nada mais do que o já dito por aqueles com os quais optamos trabalhar. Como nos
diz Goldman (2014b), não se trata nem de criticar e nem de repetir o que falam os ‘outros’ da
antropologia. Trata-se, antes de tudo, de uma “aceitação” da pesquisadora e do pesquisador –
aproximar-nos ao máximo, e com o maior respeito, das verdades desses ‘outros’ para fazer
prolongar os efeitos que produzem em ‘nós’, enquanto antropólogas e antropólogos. Não se
trata de adotar verdades, “enquanto” antropólogas e antropólogos, mas de estabelecer relações
entre verdades.
A prática etnográfica seria, como Clastres sugere, um meio de estabelecer uma relação
com aqueles que não são os pesquisadores ocidentais, para “forjar uma nova linguagem
infinitamente mais rica; uma etnologia que, superando essa oposição tão fundamental em
torno da qual se edificou e afirmou nossa civilização, se transformaria por sua vez em um
novo pensamento (…) que encaminha nossa própria cultura a um pensamento novo” (1968, p.
2). O ‘outro’ da Antropologia, nos termos de Clastres, seria aquele que permitiria a ela forjar
uma nova linguagem para um pensamento outro, sem operar pela hierarquização dos saberes,
mas situando-se, ela mesma, na própria partilha, como nos diz Goldman.
260

Não tenho dúvidas de que foi isso que Clastres fez quando estudou com os povos
indígenas e desenvolveu teses importantíssimas que não corroboravam com a perspectiva que
os designava como sociedades “sem Estado”, como tão facilmente impuseram os
colonizadores aos nativos da América – os “sem fé, sem lei e sem rei”. Seriam, antes,
sociedades contra o Estado, onde o Um totalizador, pressuposto no pensamento ocidental e
imposto pelo processo colonial aos outros povos, jamais era permitido se constituir. E essas
considerações de Clastres, sem dúvida, não serviram apenas à Antropologia, mas alimentaram
os imaginários políticos europeus e suas ânsias por liberdade, como tantos movimentos
libertários ocorridos na França e em outras partes do mundo, assim como produziram efeitos
no pensamento filosófico da época – como bem sabemos, dentre tantos outros efeitos, a
influência dos povos indígenas, através de Clastres, no pensamento de Deleuze e Guattari.
Dito isso, uma dupla herança se produz no interior da própria Antropologia, e aqui
recupero duas citações de Goldman:

Como escrevi em outro lugar, se a antropologia faz parte do trabalho milenar da


razão ocidental para controlar e excluir a diferença (na medida em que foi destinada
a explicar de modo racional a falta de razão ou a desrazão dos outros e até mesmo a
nossa), ela jamais se limitou a ser apenas isso. O caráter intrinsecamente paradoxal
da antropologia foi explicitado há tempos por Pierre Clastres (1968), que sublinhou
que o fato de que lidar com saberes dominados e mundos alternativos fez com que a
antropologia, por mais enraizada que esteja na razão ocidental, jamais tenha
conseguido se livrar de um impulso que a conduz ao diálogo com essas “linguagens
estranhas” que o Ocidente não gosta de reconhecer. (GOLDMAN, 2014c)

Como observou Stengers, o problema de uma herança não é o fato de a recebermos,


mas o que fazemos com ela. Não me parece, entretanto, que a dupla herança da
antropologia derive, como se costuma repetir com demasiada frequência, de sua
ligação com tendências supostamente opostas do pensamento ocidental, Iluminismo
e Romantismo, individualismo e holismo, racionalismo e emocionalismo. Porque
tudo isso, claro, está do mesmo lado, o nosso. A originalidade da antropologia só
pode provir, como Clastres (1979) também sugeriu, de seu duplo vínculo com o que
ele denominava “a grande partilha entre a civilização ocidental e as civilizações
primitivas” (GOLDMAN, 2014b, p. 19)

Se há um ‘nós’, como aquelas e aqueles que desenvolvem práticas científicas oriundas


do Ocidente, que nem por isso seja paralisado pela culpa, pelas violências exercidas ao longo
dos anos em nome da Ciência, mas mobilizado pela vergonha: “vergonha que consiste em
assumir uma responsabilidade face àquilo ou àqueles sobre quem se escreve, ou melhor, com
quem ou diante de quem se escreve.”(GOLDMAN, 2014c). É bem verdade que herdo da
antropologia, ou pelo menos tento, essas noções e o princípio de simetrização 106 entre

106O conceito de simetrização é oriundo do pensamento de Latour e seus trabalhos


sobre a Ciência. Mas é necessário um adendo em relação a isso, que traço aqui através
de Goldman (2009). Ele nos diz: “Compreende-se perfeitamente que, ao estudar
cientistas, Latour tenha adoptado como método uma atenção, se não exclusiva, ao
menos privilegiada das suas práticas. Na medida em que tendemos a conceder à
261

diferentes saberes, mas parece-me que a colocação feita por Ys. de alguma maneira incide
nessa relação. Não no sentido de anulá-la, julgá-la ou criticá-la, mas no sentido de fazer com
que o “nós” criado pela Morada da Paz e manifestado por Ys. funcione como um intercessor,
e por isso desestabilize as noções e os funcionamentos em que eu estava, enquanto
antropóloga, bem assentada. Desestabilizar aqui não significa destruir ou desconstruir, mas
chacoalhar suas bases para que possamos ver, ali, outros elementos antes não percebidos. Isso
porque o “nós” é nada mais do que um outro à Antropologia que incide sobre ela.
Sinto que o “nós” acionado possui um efeito semelhante àquele deflagrado pela
paleoantropóloga Adrienne Zihlman, que conheci através da obra de Stengers e Despret. Seu
trabalho deslocava o olhar sobre o “homem caçador”, teoria já estabelecida, para a “mulher
coletora” e implicava aceitar o papel causal das mulheres nesse processo, “levando em
consideração que a ceifeira-coletora também precisava de ferramentas, que consistia em uma
inovação e que participava da evolução dos modos de ser humano” (STENGERS, DESPRET,
2014, p. 39, tradução minha). A pesquisadora não excluiu a teoria do homem caçador, mas
trouxe outras narrativas, enriqueceu a história! Mas isso, dizem-nos as autoras, não foi bem
aceito pela comunidade científica da qual ela faz parte. E sua rejeição foi ainda mais brutal,
pois seus colegas identificaram a proposição teórica elaborada com seu compromisso
feminista. Por conta disso Stengers e Despret retomam Haraway para nos dizer que:
A ciência de Zihlman não pode ser permitida coexistir com seu feminismo, que
transformou um gênero já marcado em política, que é quintessencialmente o ‘outro’
marcado para a ciência não marcada […]. As narrativas de hominização estão
inextricavelmente entrelaçadas às narrativas de cidadania, racionalidade e gênero.
(Ibidem, p. 40)

Aos olhos de seus acusadores, que bradavam a neutralidade da ciência, Zihlman surgia
como aquela que a “poluíra”. Eu acredito que o “nós” proposto por Ys. se assemelha a esse
caso na medida em que impõe uma marcação sobre o que é dito e sobre quem diz. Estabelece
um comprometimento, que está para além das práticas antropológicas, mas que de alguma
forma a “polui”. Fato é que na relação ‘nós e outros’ da antropologia foi transversalmente

ciência o direito de defnir a nossa realidade, o discurso dos cientistas teria, sem
dúvida, o poder de impor como pontos de vista os recortes e as categorias que, ao
invés, se trata de estudar. No entanto, não é assim que as coisas se passam quando
escutamos um ‘fetichista’ ou um adepto do candomblé. Os seus discursos, ao contrário
daqueles dos cientistas, tendem a ser considerados falsos ou, em todo o caso, como
enunciando uma verdade que não é a nossa; nesse sentido, possuem um potencial de
desestabilização dos nossos modos de pensar e defnir o real, que, creio, cabe aos
antropólogos explorarem. O que signifca que a simetria entre a análise das práticas
científcas e aquelas dos africanos ou do candomblé só pode ser obtida mediante a
introdução de uma assimetria compensatória, destinada a corrigir uma situação
assimétrica inicial. Mais ou menos que uma ‘antropologia simétrica’, tratar-se-ia então
de elaborar simetrizações antropológicas”.
262

posta uma relação “nós e outros” da Morada da Paz que não competem entre si, mas cujo
encontro produz transformações. Eu, participante de um ‘nós’, enquanto antropóloga – cujo
esforço é a produção de simetrizações de saberes com os ‘outros’ –, e de um “nós”, enquanto
Morada da Paz – onde o esforço é engajar-me em uma guerra cósmica contra os “outros”, que
são aqueles que produzem a destruição da vida.
Fui obrigada a atentar para o fato de que a busca por uma simetrização de saberes,
ainda que tenha implicações políticas para a Antropologia, de alguma forma não é suficiente
para aqueles com os quais eu constituo um “nós”. Não é suficiente porque, primeiro, não se
propõe a ser. Esse “nós” é fruto de um processo experimental e singular da relação que eu
estabeleci com a Morada da Paz. Não caberia à Antropologia supor esse “nós” previamente a
qualquer encontro etnográfico. Segundo, porque esse “nós” transborda as práticas
antropológicas, ainda que incida sobre elas. Se somos nós intercessores enquanto
antropólogas e antropólogos, na medida em que traduzimos para outra linguagem, a
antropológica, aquilo que ‘nossos’ interlocutores falam, com o intuito de simetrizar esses
saberes, fazendo com que os saberes que aprendemos com esses ‘outros’ desestabilizem os
saberes antropológicos, bem, parece-me dizer Ys., isso não é suficiente.
O “nós” marcado não me parece ter como intuito pura e simplesmente uma
constatação identitária. Ou, se tem, é o que menos importa. O interessante é, sobretudo, o que
o “nós” faz fazer, que é atentar e engajar a prática antropológica em uma guerra cósmica em
andamento, enquanto prática antropológica. Ele produz algo semelhante ao que Anjos (2017)
pontuou em um congresso de Antropologia, cujo impacto foi a total perplexidade e mutismo
daqueles que o assistiam. Impactado por uma imagem recente de um pai negro segurando
balas, munições de guerra, que atingiram seu filho e quatro amigos, e ao ler e comentar as
apresentações que foram realizadas na mesa em que participou no referido congresso, ele
questiona a si e a ‘nós’ todos: o que importa de fato para essas pessoas com as quais
trabalhamos?
Sou afetado pelas mãos desse pai do jovem, o pai cujo filho foi assassinado pela
polícia e que afirma: “Mas isso aqui é munição de guerra! É munição de guerra!”
Para um pai cujo filho está morrendo, não interessa se foi morto por munição de
guerra ou por uma arma de calibre 38. O gesto ressalta justamente o fato de que o
que importa é o fato de que se está em estado de guerra racial. E que é no interior
dessa guerra racial que as diferenças efetivamente importam; que as diferenças que
importam lá fora devem importar também nas nossas teorias; isto é, que a gente
possa fazer antropologia em estado de guerra, como relatório de guerra, em que a
guerra não possa ser muito facilmente lida como se fosse uma metáfora. Não
estamos fazendo como se estivéssemos em guerra, há uma guerra movida contra a
juventude negra! Essa é a diferença que importa. Então, os nossos mergulhos nos
textos nativos não podem, sob o risco da impertinência, se descolar do estado de
guerra. (ANJOS, 2017, p. 216)
263

É isso, exatamente, o que a Morada da Paz parece colocar quando me interpela como
parte de um “nós”. É preciso fazer da Antropologia relatório de guerra, diz-nos o autor. Mas,
na medida do possível, fazer desses relatórios munição de guerra para além, muito além dos
redutos do que é a Antropologia, ainda que atravessando-a com a insistência desse
questionamento que não é externo a ela: ‘o que de fato importa para essas pessoas?’. A guerra
de que nos fala Anjos é uma guerra racial. A guerra de que nos fala a Morada é uma guerra
cósmica que engendra essa guerra racial e tantas outras. Uma guerra que produz efeitos
destrutivos sobre as vidas e sobre os mundos. Anjos, no início de sua fala, retoma como o
poder tem se utilizado da “camuflagem” para ter maior incidência sobre os corpos. A
mestiçagem é uma de suas camuflagens – “raças não existem”, dizem alguns – para atuar
nessa guerra racial contra os corpos negros. A juventude negra segue sendo exterminada.
Mas ele faz um adendo sobre essa camuflagem. Pois na mestiçagem como
camuflagem não existe nada por trás, escondido, interno a ela. O que nos diz Anjos é que o
poderoso feitiço da mestiçagem colonial não tem nada por trás da pele como camuflagem
racial. Sugiro, então, visto a guerra cósmica em curso e na qual eu fabrico um “nós” com a
Morada, que o ‘nós’ que eu herdo da antropologia exista somente – e exclusivamente – como
camuflagem. Se eu entendi o que Anjos quis dizer, acredito que nesse caso haja algo por trás
que é, na verdade, outra pele. Pois se trata aqui sobretudo de peles e não de essências. Uma
outra pele que é preciso não esquecer… O contrafeitiço que “nos” cabe nessa guerra cósmica,
e que é meu dever prolongar através de um ‘nós’ do qual me camuflo, é, sobretudo, não
esquecer.

5.1.2 Contra a amnésia

O que me cabe aqui é demonstrar como eu aceitei habitar um “nós” – e ampliar seus
efeitos na reflexão antropológica –, como aquela que compartilha o fato de haver uma guerra
cósmica que engendra certas estruturas de poder. O modo que eu adotei, enquanto
antropóloga, a partir da provocação feita por Ys. sobre “aprender a voar”, foi fazer de todos
os tensionamentos que emergiram no processo de escrita parte do material etnográfico
apresentado na tese. Como um modo de possibilitar, e essa é a tentativa, um novo pensamento
sobre a própria etnografia, em que o “nós” que fui convidada a habitar é fruto. Ao vivenciar a
relação “nós e outros”, fui levada a sentir de modo mais contundente as questões que as
feministas há tempos têm colocado para as ciências em geral, inclusive a Antropologia, como
uma outra forma de organizar o conhecimento, entendendo-o como localizado 107. Os diálogos
107Destaco aqui o maravilhoso artigo de Haraway (1995, p. 18), em que nos diz: “Este é o olhar que inscreve
miticamente todos os corpos marcados, que possibilita à categoria não marcada alegar ter o poder de ver sem
ser vista, de representar, escapando à representação. Este olhar significa as posições não marcadas de Homem
264

que estabelecerei nas próximas páginas são sobretudo com Isabelle Stengers, Vincianne
Despret, Marylin Strathern e Lila Abu-Lughod. Digo isso previamente porque é importante
salientar que elas atuam no texto, mesmo quando não explicitamente evocadas.
Tomo emprestado, parcialmente, os contrastes desenhados por Strathern (2006),
quando contrapõe as produções da ciência social às produções feministas para realizar uma
crítica ao conceito de sociedade, com o intuito de extrair disso algumas comparações. Para
ela, o conhecimento feminista e o conhecimento da ciência social, ainda que compartilhem de
uma estrutura familiar e sua origem dentro do pensamento ocidental, carregam profundas
diferenças. Primeiro, o objetivo da pesquisa feminista não é uma descrição detalhada, “mas
expor os interesses que informam a própria atividade descritiva”. Assim, tem menos interesse
na relatividade dos pontos de vista constituintes da “sociedade” ou “cultura”, ferramentas
fundamentais da Antropologia. Ao contrário, “busca todas as maneiras pelas quais, para os
mundos que conhecemos, faria diferença reconhecer tanto as perspectivas das mulheres como
as dos homens.” (STRATHERN, 2006, p. 53) A partir dessa diferenciação, o conhecimento é
percebido de modo dual e manifesta um conflito.
Para a intelectual feminista, por oposição a outros intelectuais, o que interessa é a
promoção dos interesses das mulheres, e, neste sentido, a promoção de uma única perspectiva.
Importam menos os interesses internos à construção do conhecimento, a descrição adequada,
mas os externos – aqueles que provêm do mundo social da qual também fazem parte. O
contraste, para mim, pode ser resumido neste trecho:
É uma característica distintiva da ciência social o poder acomodar tal visão entre as
suas muitas posições. Entretanto, ao mesmo tempo, uma visão conflituosa do
conhecimento precisa desalojar todas as outras posições. Não se pode ser radical
pela metade. (STRATHERN, 2006, p. 54)

Enquanto as feministas compartilham a ideia de que todas as mulheres ocupam


posições comparáveis, em suas práticas intelectuais sustentam uma constante diferenciação de
posições que são criadas reciprocamente dependentes, afirmando-se umas em relação às
outras. Para elaborar um ponto de vista a partir do feminismo radical, é preciso evocar o
feminismo marxista e liberal para construir as bases sob as quais se fala e vice-versa. Dessa
forma, nenhum ponto de vista é individualmente autorreprodutivo e o feminismo é antes
plural que holístico. Não há uma forma totalizante que o condicione. Ele é um campo de
múltiplas perspectivas, onde uma evoca todas as outras. Contudo, diz-nos a autora, a cada

e Branco, uma das várias tonalidades desagradáveis que a palavra objetividade tem para os ouvidos feministas
nas sociedades científicas e tecnológicas, pós-industriais, militarizadas, racistas e dominadas pelos homens,
isto é, aqui, na barriga do monstro, nos Estados Unidos no final dos anos 80. Gostaria de uma doutrina de
objetividade corporificada que acomodasse os projetos científicos feministas críticos e paradoxais:
objetividade feminista significa, simplesmente, saberes localizados.”
265

perspectiva constituinte dessa pluralidade, existe uma perspectiva dual, um outrem ao qual o
pensamento feminista se posiciona: o patriarcado.
Existe uma finalidade específica no feminismo, ele visa uma ação prática – conhecer
para mudar a situação das mulheres. Se para a Antropologia, cujos principais artefatos são a
sociedade e a cultura a partir da qual o observador se deterá, o interesse está na descrição dos
diferentes pontos de vista que constituem a sociedade, para as antropólogas feministas são os
vários pontos de vista de mulheres que refletem as múltiplas experiências da condição
feminina. Enquanto a pluralidade da primeira está no ‘outro’ com o qual estuda (onde gênero
é uma abordagem possível entre outras, frente à sociedade enquanto ente totalizante), a
pluralidade da segunda está no ‘nós’ do qual a observadora faz parte. O que há são diferentes
modulações da interioridade e exterioridade. A autora segue em suas reflexões, mas a mim
interessa principalmente essa relação que o feminismo traz de sua intensa pluralidade interna.
Primeiro, é importante salientar que, assim como as feministas, a Morada da Paz
também estabelece uma relação dual entre as forças com as quais se alia e outras as quais
combate. Também estabelece uma relação com o conhecimento que visa a transformação do
mundo que habita. Deseja conhecer para transformar. Registrar no papel para que, em outro
tempo, outras pessoas possam recuperar o que ali é experienciado, disseram-me Ys. e Bg. em
um momento de leitura dos meus textos. Tanto que uma das orientações que recebi de Mãe
Preta foi transformar esta tese em um livro com uma “língua grossa”, que possa ser lido por
pessoas que não necessariamente fazem parte da Antropologia. Ou seja, há interesses de que
aquilo que a Antropologia possibilitou, através de suas ferramentas, possa ser utilizado para
outras finalidades, que instiguem a troca e a criação de outras formas de resistência.
Segundo, é importante salientar que esse “nós” não surgiu de uma construção prévia à
relação, e nem tem como base o compartilhamento de uma condição sócio-histórica ou
biológica, como poderia estar posto para algumas feministas a construção de um nós,
mulheres – ainda que isso seja também questionado dentro do feminismo, graças às feministas
negras e também às feministas descoloniais. A composição desse “nós” não é dada
previamente porque trata-se sobretudo de uma composição de forças. Existem forças que
atravessam a Morada da Paz que não atravessaram este texto – e isso está diretamente
vinculado aos acessos que cada um realiza –, assim como há forças que me atravessam que
também não o atravessaram. Mas há forças que emanam da Morada e outras que emanam de
mim, sendo a prática antropológica um dos vetores, que, de alguma forma, confluiram na
produção desse “nós”. Forças que são diferentes, sem dúvida, mas nem por isso se anulam. Ao
contrário, compõem entre si.
266

O “nós” surgiu de um processo de aprendizado com as mais velhas de que existe uma
guerra cósmica na qual uma série de relações de poder participam de forma destrutiva. Isso
implicou aceitar explicitamente, mesmo sem sabermos as consequências, que eu fosse afetada
por forças, concepções, práticas outras, diferentes daquelas a que eu estaria habituada. Surge
de um processo de iniciação que fortifica uma aliança frente a essa guerra. Mas se há uma
composição de forças, há também a possibilidade de fazer com que esse “nós” seja
prolongado. Prolongado no sentido de existir para além da Antropologia, como discuti na
seção anterior, mas também prolongado no interior da própria Antropologia. Fazer com que a
guerra cósmica exista na Antropologia, não apenas como algo a ser descrito, mas como algo a
partir do qual a própria antropóloga se construa. Fazer com que a minha prática antropológica
exista como tal, mas que não se esqueça de que existe uma guerra em curso.
Por conta disso, acredito que esse “nós” seja sobretudo uma luta contra a amnésia,
assim como Stengers e Despret colocaram em relação ao grito dado por Virgínia Woolf,
quando essa se negou a assinar junto com os homens um manifesto pela liberdade intelectual,
que tinha por intuito evitar uma ameaça de guerra – a investida nazista que estava por
acontecer –, num contexto onde mulheres não podiam frequentar Universidades e nem
desenvolver seus estudos tal como os homens de seu tempo. O tal manifesto era recheado de
boas intenções de pessoas que não queriam a guerra, mas também que não permitiam
comprometer os seus valores. A partir disso, Woolf negou corroborar com aquela situação, ver
aquilo que mais prezava ser mobilizado por seus inimigos, e produziu um grito: “não em
nosso nome!”, não em nome das “filhas e irmãs dos homens instruídos”. E, com esse grito,
interrompe qualquer tentativa de amnésia, de esquecimento, sobre as desigualdades e
silenciamentos que pesavam sobre as mulheres de seu tempo e daquelas que vieram antes.
Sinto que o “nós” elaborado pela Morada da Paz e o grito duro que me foi dito naquela
conversa em que Ys. me empurrava ao abismo e dizia-me “aprenda a voar” carrega um tanto
dessa luta contra o esquecimento, que provoca a pensar contra o consenso, na medida em que
desestabiliza as bases tão assentadas em que eu estava. O “nós” é um modo de criar uma
memória fonte de resistência, e todas as ritualísticas que fui ensinada a viver constituem
também meios de lembrar, de reviver, retroalimentar o “nós” que tecemos. Isso porque este
“nós” que se escreve no papel é antes de tudo inscrito em corpo e território que precisa,
sobretudo, ser prolongado ao papel – cabe a mim enquanto antropóloga operar essa passagem
de um registro a outro. O “nós” do qual participo lembra-me dos riscos do esquecimento, dos
perigos constantes de que o “nós” seja desfeito e, principalmente, das lutas que devem ser
travadas.
267

“Não em nosso nome” poderia ser, também, uma fala de Ys. quando defrontada com
meu texto inicial e sua operação ‘nós e outros’. O “nós” como todos os ‘outros’ do poder
colonial e capitalista que, em nome deles, foram e são dizimados, silenciados, torturados.
Como se me dissesse: não, não compactuarei com esse ‘nós e outros’ na medida em que você
não leva suficientemente a sério em seu texto a guerra em que estamos implicadas e na qual
você está mergulhada até o último fio de cabelo. Você não leva suficientemente a sério a
memória ancestral que é a nossa fonte de vida! Ancestral porque para a elaboração desse
“nós” muitos resistiram, muitos morreram e ainda morrem e sofrem – sejam humanos ou não-
humanos –, em nome das forças destrutivas que produzem o colonialismo e o capitalismo que
você disse querer combater! Um “nós” que não trata apenas dos humanos que constituem a
Morada, ainda que os englobe, mas todos os outros dos humanos – ancestralidades, entidades,
seres que constituem o cosmos e com os quais a Morada da Paz compõe a vida.
O “nós” que fui chamada a habitar é um convite para fazer prolongar ao texto e à
Antropologia essa memória ancestral que já não é apenas delas, das mais velhas. Na medida
em que me passaram o bastão da responsabilidade em participar desse “nós”, e assim eu
aceitei, essa memória ancestral passa a ser também minha. Eu me coloco no lugar, portanto,
de recuperar essa memória ancestral na medida em que participo de um “nós”. Mas
recuperar, como vimos no primeiro capítulo, não implica resgatar, ou seja, reviver tal como é
ou foi vivido. Mas trazer elementos de um determinado contexto e tempo para outro, onde ele
se confrontará com novas configurações e, por isso mesmo, será transformado. Da mesma
forma que a Morada recupera elementos de outros tempos e contextos e os transforma em
função do presente, devo recuperar elementos desenvolvidos no contexto em que a Morada
existe e transformá-los em função do que é a Antropologia. Portanto, retomando uma
colocação de Stengers e Despret, tomar para mim a transmissão dessa memória ancestral
“inclui saber que ser fiel à pergunta que alguém transmite requer sua transformação”. Ser fiel
às questões que permeiam a existência da Morada da Paz nesta guerra cósmica e tomá-las
através da Antropologia não é trair a luta travada pela Morada, mas escavar outras trincheiras.
Reativar o “nós” implica sentir e pensar sobretudo aquilo que ele é capaz de fazer em
mim. E o que sou capaz de fazer com ele. As feministas, quando afirmam um “nós”, o fazem
em função daquilo que desejam sobretudo se opor: o patriarcado. A dualidade da qual fala
Strathern. Isso não implica negar a complexidade e pluralidade inerente desse “nós”. Da
mesma forma que Strathern recupera um jogo de posicionalidades intrínseco ao feminismo – a
partir do qual a autora realiza sua crítica sobre o conceito de sociedade –, percebi que o risco
de uma falsa representatividade me obrigava a fazer o mesmo em relação a este “nós” e suas
268

diferenciações intrínsecas. Habitar o “nós” obrigou-me sobretudo a atentar para a questão da


posicionalidade e da audiência108.
Quando Ys. me provoca a escrever como um “nós” Morada da Paz, a partir de um
recente processo de iniciação, ela me convida a habitar um outro lugar dessa relação que, a
mim, não foi nada confortável visto esta clássica configuração de poder que atravessa e
constitui meu corpo (branca, acadêmica, classe média). Foi preciso “desacelerar o
pensamento” antes de aceitar habitar esse espaço de forma irresponsável – pelo menos a mim
que cheguei até a comunidade para fazer uma pesquisa! Fui tentando cavar os lugares
confortáveis para habitá-lo e percebi que eles não existiam como lugares fixos e bem
delimitados. Habitar este “nós” é habitar suas complexidades e diferenciações internas, que
são evocadas continuamente, de constante feitura das posicionalidades.
Neste “nós” existe uma diferenciação entre humanos e os não-humanos, ainda que
estes últimos atuassem constantemente sobre os primeiros e vice-versa, pois tudo é negociado.
Outra diferenciação é o fato de eu ser mulher branca em uma comunidade formada
majoritariamente por mulheres negras. Se, de alguma forma, o fato de ser reconhecida e me
reconhecer como mulher me permitia estar na maior parte dos espaços – rodas de conversas
ou determinados rituais exclusivos – e habitar de forma mais ‘confortável’, um “nós”
compartilhado, era evidente que minha experiência corporificada era entrecortada por outros
níveis de diferenciações. Uma delas, e talvez a mais contundente, é a racial. Ainda que haja
outras pessoas brancas na comunidade e ainda que Ys. tenha argumentado que um kilombo é
um espaço da diversidade, não raro essas diferenciações se faziam presentes e evidenciavam a
branquitude109, enquanto uma estrutura social de poder, na qual o meu corpo é um signo
participante e posicionado.
Certa manhã, após uma noite animada cantarolando pagodes dos anos 90, Yb. conta
entre risos para Ys. que eu e O.T. éramos “negras por dentro”, pois gostávamos de pagode.
Ys. disse que não concordava com essa expressão, pois se concordamos com a existência de
108Assim como Strathern, também Abu-Lughod (1991), quando esta contrapõe o modo como a relação eu e
outro se apresenta para a antropologia e o modo como se apresenta tanto na antropologia feminista, quanto nos
chamados “halfies”, ou seja, imigrantes e filhos de imigrantes, influenciou minhas reflexões. É sobretudo ela
quem trouxe com mais ênfase a dimensão da audiência como uma outra preocupação inerente a essas novas
delineações de nós e outros.
109O conceito de branquitude recupero da dissertação de Conceição, que faz uma ampla discussão sobre o tema:
“[...] partimos da ideia apresentada nos estudos contemporâneos da branquitude, em que esta surgia como
sendo fenômeno histórico, interseccional, relacional, um lugar estrutural de vantagem e de privilégio. Tal
fenômeno consistiria em práticas e identidades culturais complexas, que não necessariamente fossem
marcadas ou fixas, mas nas quais essas identidades eram referenciadas por certas noções de brancura firmadas
pela concepção de superioridade racial ‘branca’. Considerando esses aspectos, entendemos a branquitude
como paradigma, que agiria e operaria como valor simbólico e material dentro e para além de um modelo de
relações sociais desiguais instituídas a partir do sistema colonial escravista e que penetrara a nossa formação
como nação e como povo. A branquitude, portanto, ao longo da história brasileira agiu ocasionando efeitos,
através e nas relações de poder. Produzindo dessa maneira, violências de todos os tipos.” (CONCEIÇÃO,
2017, p. 193)
269

brancos com “alma negra”, também aceitamos a existência de negros com “alma branca”. E,
segundo ela, essa concepção daria razão ao racismo, onde se valoriza o negro de “alma
branca”. O que há são brancos e negros e, assim como há negros que são capitães do mato, há
brancos sensíveis às resistências negras. A questão é que as relações raciais não são ali
neutralizadas ou ignoradas, ainda que não sejam acionadas e fixadas. Elas emergem das
experiências vividas, das memórias, dos espaços de circulação, dos resquícios de uma
sociedade escravocrata e demarcam, continuamente, diferentes posicionalidades.
Posicionalidades estas que são investidas de poder. Ao sair de um Muzunguê, ou seja,
de um atendimento espiritual que acontece aos sábados, comentei com um grupo de egbomis
(irmãs mais velhas) que tinha percebido muitos parentes delas no atendimento. Logo uma das
irmãs disse-me, impaciente: “Não! É porque pra branco negro é tudo igual, né!”. Na hora me
muni das inúmeras justificativas para o meu comentário não ser entendido como racista. No
fim, a conversa derivou para outros lados, mas aqueles segundos produziram em mim um
forte mal-estar. Quase como um mal-estar da descoberta, do revelamento de alguns dos
muitos “demônios”, nas palavras de Ys., da branquitude que estavam ali presentes, comigo, e
que a fala impaciente de Ik. evidenciava.
A branquitude operante através do meu corpo, a partir do qual eu me posiciono no
mundo, ou era denunciada, como no caso exposto ou, também, desmontada pela
invisibilidade. Lembro-me aqui de uma situação interessantíssima que ocorreu durante uma
reunião do Grupo de Estudos Afro (GeAfro) que acontece na UFRGS. Uma das participantes,
mulher negra, havia estado junto com a mãe em alguma das atividades da Morada da Paz.
Quando conversamos, falou com empolgação das mais velhas da comunidade, das ações que
desenvolvem, dos trabalhos espirituais que ofertam. Eu, que estive em muitos dos momentos
narrados por ela, comentei que me lembrava dela e de sua mãe. Ela, na maior espontaneidade
e indiferença, disse não lembrar de mim. Na indiferença ou na impaciência, “nomeiam a
norma”110 e a desestabilizam. A branquitude, ao ser nomeada, obriga-me à posicionalidade de
uma mulher branca em meio à mulheres negras, com quem fabrico um “nós” que cada vez
mais mostra-se um recurso nada fixo, nem estável, nem totalizante.

110Conforme coloca Jota Mombaça: “Nomear a norma é o primeiro passo rumo a uma redistribuição
desobediente de gênero e anticolonial da violência, porque a norma é o que não se nomeia, e nisso consiste seu
privilégio. A não-marcação é o que garante às posições privilegiadas (normativas) seu princípio de não
questionamento, isto é: seu conforto ontológico, sua habilidade de perceber a si como norma e ao mundo como
espelho. Em oposição a isso, ‘o outro’ – diagrama de imagens de alteridade que conformam as margens dos
projetos identitários dos ‘sujeitos normais’ – é hipermarcado, incessantemente traduzido pelas analíticas do
poder e da racialidade, simultaneamente invisível como sujeito e exposto enquanto objeto. Nomear a norma é
devolver essa interpelação e obrigar o normal a confrontar-se consigo próprio, expor os regimes que o
sustentam, bagunçar a lógica de seu privilégio, intensificar suas crises e desmontar sua ontologia dominante e
controladora” (MOMBAÇA, 2016, p. 11)
270

Se retomo esses fatos aqui, não é para adotar a culpa por um signo que me constitui e
que me compromete, independente da minha boa vontade. Mas antes, por conta da ‘vergonha
de ser branca’, numa livre apropriação da “vergonha de ser um Homem” dito por Primo Levi
e retomado por Deleuze. Primo Levi refere-se aos fatos aterrorizantes que constituíram o
Holocausto e Deleuze, a partir das colocações do Primo Levi, nos diz que certamente não
haveria razão para pensarmos que somos todos responsáveis pelo nazismo, mas somos, de
alguma forma manchados por ele, mesmo os sobreviventes que tiveram que fazer concessões.
“Vergonha por ter havido homens para serem nazistas, vergonha de não ter podido ou sabido
impedi-lo, vergonha de ter feito concessões, é tudo o que Primo Levi chama de ‘zona cinza’”
(DELEUZE, 2010b, p. 217). O mesmo podemos pensar em relação à estrutura racial que
vivemos, fruto de uma relação tão aterrorizante e perversa quanto, ou mais, a que aconteceu
no Holocausto, que foi o processo de escravidão dos povos africanos trazidos às Américas.
Uma vergonha que
(…) nós não a experimentamos somete nas situações extremas descritas por Primo
Levi, mas nas condições insignificantes, ante a baixeza e a vulgaridade da existência
que impregnam as democracias, ante a propagação desses modos de existência e de
pensamento-para-o-mercado, ante os valores, os ideais e as opiniões de nossa época.
A ignomínia das possibilidades de vida que nos são oferecidas aparecem de dentro.
Não nos sentimos fora de nossa época, ao contrário, não cessamos de estabelecer
com ela compromissos vergonhosos. Esse sentimento de vergonha é um dos mais
poderosos motivos da filosofia. Não somos responsáveis pelas vítimas, mas diante
das vítimas. E não há outro meio senão fazer como o animal (rosnar, escavar o chão,
nutrir, convulsionar-se) para escapar ao ignóbil: o pensamento mesmo está por vezes
mais próximo de um animal que morre do que de um homem vivo, mesmo
democrata. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 130)

Outra questão que tangenciei anteriormente se impõe. Como escrever a partir de um


“nós” se o tempo de vivência que eu tinha na comunidade era tão pequeno? Afinal, eu recém
estava aprendendo a ser! Foi quando El. me explicou sobre a hierarquia circular, composto
por Iaôs, Egbomis e Yas e Baba. Eu falaria como “nós” a partir do lugar que eu ocupo como
uma iaô iniciando uma trajetória espiritual, com as responsabilidades de uma iaô iniciante.
Minha posição, segundo ela, não é nem melhor e nem pior que a posição de uma Ya, visto que
só existem Yas porque existem iaôs e vice-versa. Há uma relação de dependência mútua que,
nem por isso, constitui uma totalidade de perspectiva111.
Mas não apenas o tempo de iniciação aparecia como um corte diferenciador, também o
lugar que eu ocupava como demoradora, aquela que não mora na comunidade. Aliás, desde o
momento em que iniciei minha relação com a comunidade as pessoas designadas como
111Em outro momento, comentava muito seriamente com Ym. sobre as diferenças inerentes entre a minha
escrita e a escrita dela, que há alguns anos defendeu seu TCC em Ciências Sociais na UFRGS sobre a
etnoludicidade e a brincadeira na comunidade. Comentava com ela que minha escrita jamais seria como a dela,
pelo lugar que ela ocupa enquanto uma Ya e fundadora da Morada, e “escrever como Morada” produzia em
mim certos incômodos, pois eu não era uma das fundadoras, tal como ela. Ela concordou comigo, entendeu
meus incômodos, mas reforçou que “cada escrita é diferente”.
271

demoradoras e moradoras variaram bastante. Até que, início de 2018, após um rompimento
ocorrido entre as mais velhas e sete demoradoras, Mãe Preta orientou para que não houvesse
mais demoradores na comunidade e os novos iniciados passariam a morar no território. Eu,
que havia restado como única demoradora, reelaborei a relação com a comunidade a partir da
noção de aliança, termo que foi trazido por Ys. e que implica uma relação de troca e cuidado
mútuo, onde existe, nas palavras de Ys., “uma matéria energética da gratidão que alimenta a
relação”. Nestas contínuas variações deste “nós”, encontro-me pousada hoje, após dois anos,
em uma relação de aliança.
Aqui vale um adendo. A relação ‘pesquisadora’ e ‘nativos’ também compõe esse jogo
de posicionalidades. Primeiro, por eu ter entrado em um processo de iniciação, o que de
alguma forma me colocava em um lugar de ‘nativa’. Se em alguns momentos parte das
pessoas esquecia que eu também era ‘pesquisadora’ – e eu recebia orientações, tinha
compromissos e participava ativamente nos ipadês como qualquer outra demoradora –, em
outros essa diferença era consideravelmente marcada. Lembro-me de, certa vez, conversar
despretensiosamente com Ys. e ela me questionar, em um dado momento da conversa já em
curso, se aquilo seria uma entrevista. Questão que me pegou totalmente de surpresa porque
nem eu saberia dizer se aquilo serviria ou não para a composição da tese. Aliás, naquele
momento, a tese nem estava, a princípio, em questão na conversa. O que não ignorava o fato
de poder servir, mais adiante, como parte do material etnográfico.
Mas também porque muitas das mais velhas, e das mais novas, desenvolveram suas
teses, dissertações e trabalhos de conclusão sobre a comunidade, portanto, tão ‘pesquisadoras’
quanto eu. Porém, se isso é verdade, também é verdade que não significa que eu seja ‘nativa’
como elas, nem que elas sejam ‘pesquisadoras’ como eu. Não porque elas são mais ‘nativas’
que eu, nem porque me coloco em algum lugar de superioridade sobre a pesquisa feita, mas
simplesmente porque cada uma que ocupou ou ocupa o lugar de pesquisadora se conecta com
aspectos singulares – seja com aspectos da comunidade, seja com leituras e métodos de
pesquisa oriundos da Universidade – e, portanto, acessa diferentes registros, se conecta com
diferentes dimensões e forças, para a composição do que será escrito em suas pesquisas.
Falarei sobre isso mais adiante.
Da mesma forma, ocupa-se lugares diferentes enquanto ‘nativas’ – há as Yas e Baba,
as egbomis, as iaôs, os moradores, os demoradores, enfim, uma série de cortes operados nos
cotidianos dos sujeitos ‘nativos’ que permitem diferentes experiências, impossíveis de serem
hierarquizadas em maior ou menor acesso à ‘verdade’ do que ‘é’ a Morada. Se pensarmos pela
lógica operante na comunidade de hierarquia circular, apresentada no primeiro capítulo, isso
se torna ainda mais impensável. Ali a hierarquia é móvel, de acordo com os termos da relação
272

e as questões que se apresentam. Oxalá, por mais alto que esteja na hierarquia do panteão
africano não pode atuar nos campos energéticos que atua Exu. O que faz com que Exu esteja
no alto da hierarquia em determinadas situações. E vice-versa. O mesmo poderíamos pensar
para a relação entre ‘pesquisadoras’, nas suas muitas possíveis experiências, e ‘nativas’, nas
suas muitas possíveis experiências. Assim como as teóricas feministas evocam a pluralidade
de posições que constituem o feminismo – nunca supondo uma totalidade –, evoco também
essa pluralidade de posições que constituem esse “nós” do qual participo e do qual não posso
jamais me esquecer.
Apresentar uma série de posicionalidades em jogo nos ajuda a sair da base identitária e
fazer do “nós” um experimento do pensamento. Afinal, o que implica pensar, pesquisar,
escrever como Morada da Paz? O ponto que pretendo desenvolver agora é, sobretudo, como
as metodologias da Morada da Paz incidiram sobre as metodologias que aprendi com a
Antropologia. Não com o intuito de negá-las, mas transformando-as ou, talvez, desformando-
as.

5.2 Os acessos

Implicar-se, tal como fui convidada a fazer, tem suas consequências, e a principal
delas é aceitar passar por um processo de desformação. Aqui tentarei apresentar como ele se
manifestou na elaboração deste texto. Esta tese foi construída num contexto onde não me era
possível andar com caderno de anotações e caneta a fazer perguntas ou, simplesmente, tomar
nota simultaneamente a um determinado evento que acontecia na comunidade. Nem mesmo
tempo ocioso para descrever o que acontecia na comunidade havia, pois a Morada da Paz está
e nos coloca em constante ação. A rotina diária era acordar às cinco da manhã e dormir às
duas da manhã, quando não ocorria qualquer chamado imediato das entidades ou qualquer
outro trabalho que demandasse nossa presença. Se essa era a rotina dos demoradores, de
quinta a domingo, é importante ressaltar que essa é a rotina quase diária daqueles que moram
no território que, dependendo da situação e das orientações, ainda acordam antes das cinco ou
vão dormir depois das duas.
A sensação que tínhamos, e não era apenas minha visto ser compartilhada com os
outros demoradores, era de que a Morada existia e produzia outra temporalidade. O tempo do
relógio, como se costuma falar em referência às horas, não parecia ser o mesmo no território e
fora dele. O que vivíamos em um dia tinha a dimensão de uma semana pela intensidade dos
acontecimentos. No momento em que adentrávamos o ônibus de volta a Porto Alegre, era
incrível como o cansaço do trabalho realizado ao longo dos dias pesava sobre os corpos,
273

fazendo-nos pensar que o peso da massa corporal dentro e fora do território também variava.
Não que não houvesse cansaço, nem que não houvesse desejo de, por vezes, parar as preces
práticas ou deitar mais cedo – e isso, evidente, era feito quando sentíamos a necessidade e
quando possível. Mas nossa disponibilidade era consideravelmente outra e produzia efeitos
físicos.
Isso tudo teve consequências no modo como conduzi a composição dos meus cadernos
de campo. Era impossível, pelo fluxo dos acontecimentos na comunidade e suas atividades
cotidianas, andar com um caderno ou um gravador, nem eu queria isso, visto ter desenvolvido
uma relação com a comunidade muito além daquela de ‘pesquisadora’. Assim como era
impossível – e eu tentei algumas vezes – ter uma conversa prolongada, visando a tese,
enquanto desenvolvíamos nossas preces práticas. Por isso, o tempo que eu tinha em Porto
Alegre eu utilizava para compor os cadernos de campo, mais precisamente às segundas e
quartas-feiras, pois parte das terças e quintas também passava na Morada da Paz. Dividia meu
tempo em escrever o que havia registrado em minha memória – e buscava exercitá-la através
de uma narrativa cronológica –, além de realizar outras atividades demandadas pela
comunidade. Vez ou outra, quando achava que certas colocações eram muito importantes de
registrar, corria ao caderno para anotar entre uma atividade e outra. Entre as falas mais longas
que aqui apresento, muitas, se não todas, foram obtidas durante os ipadês, onde conseguia
registrar em papel com mais detalhamento. As expressões, contudo, retomo pelas recorrências
nas narrativas.
Não foram poucos os momentos em que eu estive bastante nervosa com essa situação
e também com a dificuldade de obter informações que eu julgava necessárias para a escrita da
tese – seja pela desconfiança inicial, quando comecei minha relação com a Morada, seja pela
impossibilidade das situações. Às vezes, diziam-me que o contexto não era propício para as
minhas perguntas, pois demandavam uma outra atenção para elaborar as respostas; em outras,
o tempo era muito restrito para que eu pudesse realizá-las, visto as correrias cotidianas da
comunidade. Certa vez, em um momento de incômodo, comentei com uma irmã o fato de eu
nunca conseguir perguntar ou nunca saber qual seria o momento adequado para minhas
perguntas. Ela me respondeu que os momentos ideais para eu perguntar o que quisesse eram
os ipadês, em que cada participante pede o seu agoyê mojubá, o “axé de fala e de escuta”,
permitindo que haja uma sustentação energética para o diálogo que se estabelecerá. De fato, o
ipadê foi a principal metodologia utilizada na composição dessa etnografia. Tanto para obter
respostas às minhas perguntas, para ouvir narrativas mais prolongadas, quanto para ter ciência
de uma série de acontecimentos da comunidade que não pude presenciar – seja por não estar
no território, seja por estar em outras funções dentro da comunidade.
274

Porém, muitas vezes nos reuníamos em ipadês para discutir assuntos urgentes, e o
tempo não permitia que eu fizesse as perguntas que eu julgava necessárias para a tese.
Respondi isso a ela, que reavaliou sua colocação e comentou que não havia problemas eu
perguntar fora dos ipadês, mas, para isso, era importante que eu atentasse e sentisse os
campos energéticos que permitiriam ou não que eu as realizasse. “Se estamos cozinhando e
você me pergunta algo sobre Exu, não vou responder porque Exu mexe com forças que
podem interferir no alimento e naqueles que irão se alimentar!”, respondeu-me, relembrando
um fato que havia recentemente nos acontecido, em tom de repreensão. Afinal, como escuto
de todas e todos, “palavra é magia” e entender os campos energéticos “também é
mediunidade!”, acrescentou ela. Participação em ipadês e percepção de campos energéticos
passaram a ser os meios da construção etnográfica. Não por uma escolha deliberada ou
qualquer romantismo da alteridade, nem por uma tentativa de dissolução em uma unidade
totalizante das metodologias da Antropologia e das metodologias da Morada da Paz, como se
fosse possível serem a mesma coisa. Mas pela viabilidade prática do cotidiano.
Depois de um tempo com a frustração da ausência de anotações e entrevistas, relaxei e
entendi que isso, exatamente isso, fazia parte do que seria minha experiência etnográfica.
Algo semelhante ao que Goldman descreve como “catar folha”, em relação aos trabalhos
desenvolvidos com o Candomblé, em que me cabia a paciência para “aprender a aprender” de
outra forma, como descrito no terceiro capítulo referente à ideia de desformação:

alguém que deseja aprender os meandros do culto deve logo perder as esperanças de
receber ensinamentos prontos e acabados de algum mestre; ao contrário, deve ir
reunindo “catando” pacientemente, ao longo dos anos, os detalhes que recolhe aqui e
ali as “folhas” com a esperança de que, em algum momento, um esboço plausível de
síntese será produzido. (GOLDMAN, 2006b, p. 24)

No caso em questão, isso implicaria dar uma atenção especial ao que a Morada da Paz
chama de mediunidade. A mediunidade implica, relembro aqui, toda forma de comunicação e
relação com o cosmos. Não se trata apenas do processo de incorporação, mas também de
intuições e canalizações. Quaisquer novidades que chegam à comunidade, sejam ritos ou
ideias, não são concebidas como meras criações espontâneas, mas acessos possibilitados pela
mediunidade. As obras literárias ou musicais de grandes nomes, por exemplo, são
consideradas frutos de processos mediúnicos. Os sujeitos conseguiram acessar certos
registros existentes e materializá-los neste plano. Dessa forma, o que chamamos de processo
criativo é um processo mediúnico de acesso às formas e informações pré-existentes. São os
chamados registros akáshicos – termo oriundo do sânscrito –, que, como dito no primeiro
capítulo, é um conjunto de informações de tudo o que já aconteceu, que poderia ter
acontecido, que acontecerá ou que poderá acontecer. É um mundo dos possíveis, onde nada é
275

determinado ou determinante, mas tudo pode vir a ser. Esses registros existem parcialmente
em tudo. Cada um de nós, por exemplo, pode acessar através da mediunidade uma série de
registros que nos constituem e outros tantos registros presentes no cosmos, que constituem
outros seres. Toda criação, portanto, é fruto da mediunidade que acessa esse tempo-espaço dos
possíveis e o materializa.
O trabalho realizado na Morada da Paz com os médiuns da irmandade é para que o
raio de acesso a esses registros e às forças que constituem o mundo se amplifique. Ou seja,
para que os médiuns estejam mais sensíveis a tudo aquilo que os circundam, munidos, claro,
dos cuidados necessários. Certa vez pedi orientação às Yas para um amigo que havia passado
por uma situação complicada e que, disse-me ele, “precisava fechar o corpo”. Elas
estranharam meu pedido e disseram-me que não trabalhavam com essa compreensão. Na
verdade, desejam expandir o corpo ao máximo, permitir que os seres e forças atravessem e
façam dos sujeitos canais de comunicação. O que realizam, contudo, são contínuos rituais de
limpeza e harmonização: banhos, orações, meditações, defumações, dietas alimentares e
outras práticas que marcam o cotidiano de qualquer integrante da Irmandade, visto que essa
expansão não é livre de perigos.
A comunicação, como já dito, acontece através dos chakras, pontos energéticos
localizados em diferentes partes do corpo físico. O médium é concebido como um canal de
comunicação entre os mundos através dos chakras, por onde as entidades entram. Há uma
atenção específica para certos chakras de acordo com as funções desempenhadas pelos
sujeitos. Por exemplo, os alabês, aqueles que tocam tambores durante as ritualísticas,
receberam a orientação de estar presentes em todas as chamadas das entidades realizadas para
trabalhar o chakra das mãos. Até 2017 Im. era o alabê principal da comunidade, Ay. o
segundo e Bl. a terceira. Com a saída de Im., Ny. passou a ser o terceiro. Na sequência dos
atabaques, o primeiro tocava o Rum, o tambor maior de som mais grave, o segundo tocava o
Rumpi e o terceiro tocava o Lé. Certa vez Ys. disse-me que os alabês praticavam suas
mediunidades, que ainda estavam aflorando, a partir do toque do tambor. Na medida em que
isso ocorria, iam acessando outros planos onde novos toques dos Orixás apareceriam a eles.
Contudo, ressaltou ela, a mediunidade nada tem a ver com o simples desenvolvimento
técnico, pois a técnica permite repetir determinados toques, mas não necessariamente acessar
outros.
Sem a mediunidade, portanto, a técnica é repetição. Isso não significa que a
mediunidade não implique um aprendizado técnico. É preciso tocar, tocar, tocar, cada vez
mais, para fazer com que o chakra das mãos se expanda e possibilite o acesso a outros toques.
O mesmo foi dito para a minha escrita. É preciso escrever, escrever, escrever para fazer com
276

que os chakras se expandam e outros planos sejam acessados. Por isso, Mãe Preta orientou-
me a fazer uma oração, riscar com o dedo na pele de papel uma encruzilhada e acender um
incenso antes de qualquer processo de escrita. Se tudo é ritual, a escrita não deixará de ser.
Com o olhar fixo em mim, daqueles que nos descortinam por completo, afirmou que meu
trabalho serviria para levar “as palavras de uma preta velha para o mundo de lá”, para o
“mundo dos escrevinhados”.
Não desejo com isso fomentar uma autoridade transcendente da escrita, como se a
responsabilidade daquilo que escrevo não fosse minha, mas das entidades. Uma compreensão
dessas ignoraria o fato, que a Morada da Paz coloca, de que qualquer comunicação com o
cosmos é singular e passa também pelos registros que constituem o próprio sujeito. Registros
esses que não se confundem com a memória, pois não são necessariamente conscientes.
Talvez mais próximos da ideia de inconsciente, porém, dizem respeito a uma temporalidade
outra, que a Morada refere como as muitas reencarnações dos sujeitos. Isso tem algumas
consequências importantes, pois essa noção desenvolvida pela Morada de alguma forma
impede a redução do inconsciente às representações clássicas das conceptualizações de
psicanalíticas, onde as relações são reduzidas às representações edipianas. Numa perspectiva
reencarnacionista, do modo como a Morada entende, trabalhar com esses arquétipos não faria
sentido, na medida em que um humano pode reencarnar como lasca de uma árvore! E isso não
é reduzido a meras metáforas ou representações.
O sujeito não apenas pode reencarnar, mas acessar, e essa é a questão central aqui,
certos registros das vidas que viveu em outros momentos, assim como também registros de
outros seres. Fluxos e encontros que estão para além ou aquém dos sujeitos. Por isso, mesmo
que outra pessoa se colocasse a descrever as mesmas questões que eu aqui apresento, sob os
mesmos cuidados, muito provavelmente acessaria outras ideias que gerariam outras
composições com o cosmos, com as entidades e com a própria comunidade. Acredito que o
aspecto central a se enfatizar diz respeito às composições que permitem acessos, que são,
sobretudo, um modo relacional de saber. Aquilo que se acessa como virtualidades imanentes
da relação estabelecida.
Nesse sentido, os acessos são os efeitos que provocam nas relações que constituem o
sujeito que acessa, e que envolve, como Favret-Saada (2005, p. 160) coloca em seu trabalho
com os camponeses do Bocage, “uma comunicação involuntária e não intencional” 112. O

112Como nos diz a autora, e acredito que muito se assemelhe às experiências que eu tive na Morada da Paz:
“Ora, nas etnografias, essas situações, apesar de banais e recorrentes, de comunicação involuntária e
desprovida de intencionalidade não são jamais consideradas como aquilo que são: as ‘informações’ que elas
trouxeram ao etnógrafo aparecem no texto, mas sem nenhuma referência à intensidade afetiva que as
acompanhava na realidade; e essas ‘informações’ são colocadas exatamente no mesmo plano que as outras,
aquelas que são produzidas pela comunicação voluntária e intencional. Poder-se-ia dizer, inclusive, que virar
um etnógrafo profissional é tornar-se capaz de maquiar automaticamente todo episódio de sua experiência de
277

interessante dos acessos, e do modo como a Morada da Paz entende a mediunidade, é que eles
acontecem tanto no processo do trabalho de campo, com essa comunicação involuntária e não
intencional, mas também é parte constituinte de qualquer atividade criativa, como a escrita da
tese. Aspecto semelhante ao que Deleuze coloca em relação ao trabalho filosófico. Aliás, essa
aproximação nos permite reconhecer que é possível fazer com diferentes meios o que a
Morada da Paz faz com suas vivências espirituais e ritualísticas específicas. Talvez seja
possível pensar que as vivências que nomeiam mediunidade de alguma forma reverberam
nisso que Deleuze chamou para a Filosofia (e eu acredito que para a escrita etnográfica
também poderíamos dizer semelhante) de trabalho clandestino e seus encontros:

Quando se trabalha, a solidão é, inevitavelmente, absoluta. Não se pode fazer escola,


nem fazer parte de uma escola. Só há trabalho clandestino. Só que é uma solidão
extremamente povoada. Não povoada de sonhos, fantasias ou projetos, mas de
encontros. Um encontro é talvez a mesma coisa que um devir ou núpcias. É do
fundo dessa solidão que se pode fazer qualquer encontro. Encontram-se pessoas (e
às vezes sem as conhecer nem jamais tê-las visto), mas também movimentos, ideias,
acontecimentos, entidades. Todas essas coisas têm nomes próprios, mas o nome
próprio não designa de modo algum uma pessoa ou um sujeito. Ele designa um
efeito, um ziguezague, algo que passa ou que se passa entre dois como sob uma
diferença de potencial: "efeito Compton", "efeito Kelvin". (DELEUZE; PARNET,
1998, p. 6)

5.3 Palavra é magia

Acessar e materializar no papel era seguido de acompanhamentos. Porque aprender a


lidar com aqueles que são interrogados durante a pesquisa, era também aprender a lidar com
os desafios da relação que interpelavam a etnógrafa e que se apresentavam de diversas formas
no cotidiano comunitário. No primeiro sábado de cada mês acontece o Muzunguê, ritual
aberto de atendimento espiritual, que é seguido de um ipadê de reflexão, uma roda de
conversa com toda a irmandade onde falamos de nossas sensações e percepções sobre o ritual.
A cada mês é solicitado para algumas pessoas escreverem um pequeno texto sobre suas
percepções acerca do ritual, que é lido no ipadê de reflexão seguinte. Desde que eu entrei na
Irmandade essa tem sido uma atividade constante minha. Escrever e ler para os demais
minhas percepções sobre os Muzunguês. As primeiras descrições, que eram as mesmas que eu
utilizava em meus diários de campo, eram massantes e detalhistas, até Ys., Im. e Ik. me
provocarem a escrever um texto “menos enquanto pesquisadora” e “mais enquanto uma iaô-
pesquisadora”113, em que a palavra não se pusesse tanto ao serviço da descrição dura – quem

campo em uma comunicação voluntária e intencional visando ao aprendizado de um sistema de representações


nativas”. (FAVRET-SAADA, 2005, p. 160)
113Interessante perceber os usos dos advérbios de intensidade, o que me faz pensar que não exista espaços
delimitados e fixos do que é “pesquisadora” e do que é “iaô”. O conhecimento que me cabe exercitar e que me
era solicitado naquele momento, parece-me, é a arte da dosagem. Poderia adotar a imagem do ciborgue
278

faz o que, como e onde – e mais às sensações do momento – velocidades, intensidades e os


campos energéticos. Afinal, é possível “conhecer com o arrepio!”.
Aceitei o desafio de escrever sob outras condições, porque boa parte dos diálogos que
tínhamos já aconteciam nesses outros termos. A passagem para o texto é que me era difícil.
Num primeiro momento, passei a compor dois textos sobre o mesmo acontecimento: um para
os meus diários de campo, com a ânsia de que nenhuma informação me escapasse, e outro
para ler entre meus irmãos, onde as informações sobre o ocorrido não eram tão relevantes,
mas sim as forças que me atravessavam, as percepções mais sutis. Aos poucos, tornou-se
impossível escrever meu diário de campo descolado de todas as forças que me atravessam e
que se intensificaram como o tempo de relação na Morada. É verdade, também, que isso me
parecia muito mais fascinante e assustador, motivo suficiente para ocupar meus pensamentos.
Com o passar dos meses, percebi que essa separação de escritas não fazia mais sentido.
Resolvi fazer dos meus próprios diários de campo o lugar em que a iaô-pesquisadora se
constitui. Ou seja, um misto de diário pessoal, onde questões muito íntimas eram postas em
jogo, e diário profissional114.
Durante o ipadê de reflexão, a leitura dos meus textos era seguida de certas correções
de termos e explicações sobre fatos que eu desconhecia. Mas o que queria com isso a
Irmandade, ao me colocar no papel de descrever os Muzunguês? Mais ainda, o que queria ao
propor que meu texto fosse menos duro, ao propor correções de termos durante minha leitura?
O que quer a comunidade quando diz que certos fatos, a maior parte deles, não podem ser
descritos? E a etnografia, e as descrições necessárias, como ficam? O que querem quando
desejam acompanhar a escrita do meu projeto, da qualificação e da tese? Afinal, ‘o texto é
meu’, e eu precisaria ‘garantir a minha autoria sobre o texto’ – foram falas que muito ouvi de
amigos antropólogos durante minhas crises de angústia. Porém, se levo a sério a pesquisa
etnográfica que me propus a fazer, e se meus irmãos e irmãs agem e refletem sobre meu
próprio fazer etnográfico, preciso levar a sério suas reflexões e ações sobre mim mesma e
sobre o meu trabalho. Neste sentido, a relação da antropóloga com a comunidade não termina
na feitura do trabalho de campo. A comunidade lê, discute e ocupa a pele de papel, como diz
Mãe Preta. E, assim, suas leituras e seus efeitos passam também a fazer parte do trabalho de
campo.

(HARAWAY, 2009) que não se constituiria como um supercontexto inscrever em si as teorias e práticas
antropológicas, tal como as teorias e práticas de uma iniciada na Nação Muzunguê, nem mesmo um corpo
compreensivo que incluiria ambas, mas um híbrido. Poderia também evocar a imagem da encruzilhada (ANJOS,
2006, p. 19), caracterizada como “um ponto ambíguo na religiosidade afro-brasileira, (…) porque ali tanto pode
ser o começo, a abertura de um fluxo, quanto o fim de um território existencial.”.
114Essa mistura, contudo, teve seus efeitos complicadores no momento posterior de leitura e de composição do
texto da tese. Isso porque o tempo das afecções e dos seus rendimentos reflexivos para e enquanto
Antropologia não obedecem o tempo dos prazos.
279

Todo texto escrito que constitui ou constituiu a feitura desta tese foi, primeiro, lido
pelas mais velhas da comunidade e avaliado por elas. Aprendi sobre a importância desse
primeiro movimento quando, durante a escrita da minha qualificação, enviei aos meus
orientadores o arquivo do texto com um anexo – uma espécie de mapa feito por mim
manualmente – que, segundo as Yas, eu não deveria ter enviado por consistir aquilo que
chamam de karó, o segredo, da comunidade – ou um deles, eu diria. O fato de eu ter enviado
sem o consentimento prévio das mais velhas produziu efeitos na própria Morada da Paz. A
exposição de algo que não deveria ser exposto exigiu novas ritualísticas de fortalecimento da
segurança energética do território. Seu Sete, em uma determinada situação, apresentou-se no
terreiro dizendo que a exposição havia produzido ataques, permitindo que certas forças
encontrassem a comunidade. Disse-me que eu não os senti por conta da minha ingenuidade,
mas Ys. sentiu. Era preciso que eu redobrasse os cuidados por conta disso.
Fato é que assim que eu havia feito o tal mapa, registrei por foto para anexar na
qualificação e o entreguei para a própria comunidade. O que me ocorreu naquele momento foi
que a comunidade poderia utilizar o mapa para trabalhar na ComKola – que estava dando seus
primeiros passos de criação. Passado alguns dias, Ys. me chamou para conversar e expôs a
situação, de que aquele mapa não poderia ser apresentado para pessoas externas, pois
constituía o karó. Questionou o meio que eu usei para enviá-lo aos orientadores e falei que
havia sido por e-mail. Disse-me que, então, o mapa estava na internet, seria uma informação
obtida por algum servidor, o que a deixou preocupada. Confesso não entender o que ela estava
dizendo naquele momento. Afinal, por que essa preocupação com cair ou não cair na internet?
Ela me explicou. Disse que a internet era um ambiente perigoso, pois toda e qualquer
força pode se apropriar do que ali está. Há informações que não podem ser deixadas em
registros e dispostas na internet. Por isso, para questões rituais, toda e qualquer troca de
informações precisava ser via ligação telefônica. Ys. contou-me que quando a Morada da Paz
se desmembrou temporariamente em dois grupos – aqueles que ficaram no território e aqueles
que foram morar temporariamente em Salvador há alguns anos atrás – as trocas de informação
eram passadas via telefone ou via e-mail. Mas, caso fossem transmitidas via e-mail, a
orientação das entidades era para que o destinatário lesse e logo apagasse a mensagem para
não deixar vestígios. E mesmo assim, disse ela, a mensagem ficaria registrada em algum
servidor. Fato é que o mapa havia sido enviado como anexo e acordamos que eu solicitaria
aos orientadores que apagassem aquela versão do arquivo e esperassem o envio de outra.
Houve outra situação emblemática em relação à tese. Visto os receios iniciais do que
minha escrita poderia vir a ser, quando Ys. leu um pequeno esboço da tese que produzi, ainda
com ideias iniciais, disse-me que precisava prestar atenção às palavras que eu utilizava, pois
280

palavra é magia. Eu fui aprender que palavra era magia desde o momento em que comecei a
participar da comunidade. Onde, como e o que falar ou não falar. A palavra é perigosa, mas é
também poderosa, capaz de produzir efeitos de cura, de acolhimento, de potência. Falar sobre
dinheiro, num certo contexto, gerou uma série de mal-estares, o que precisou da presença de
um Exu para limpar e harmonizar o espaço. Acionar a palavra bruxa e vinculá-la aos poderes
das mulheres ancestrais teve por efeito, em outro contexto, uma série de manifestações de
entidades. Com a escrita não é diferente, ela produz efeitos. Assim que Ys. leu esse esboço de
texto, ressaltou o fato de eu usar muito a palavra ‘explorar’ em meus escritos. ‘Explorar o
campo’, por exemplo. Ressaltou que ‘explorar’ é uma palavra profundamente vinculada ao
colonialismo, carregada de energias deletérias, densas. Aquilo que, lembrou-me ela, eu disse
querer combater.
Como coloca Starhawk em relação ao neopaganismo do qual participa, para a
linguagem da magia, uma palavra, uma imagem ou qualquer outro símbolo não tem um
significado intelectualmente atribuído, é mais um chamado de atenção: “Olhe, preste atenção
nessa coisa” (STARHAWK, 1988, p. 27). E é dessa forma, sobretudo, que encaro a fala de
Ys. quando apontou a recorrência do termo ‘explorar’ em meu texto. Seu questionamento me
fez prestar atenção à palavra e, consequentemente, para o contexto em que era acionada. Seu
comentário veio no mesmo momento em que me questionava sobre a separação entre ‘nós’,
acadêmicos, e elas enquanto o ‘outro’ que eu mobilizava no texto e me afirmava a existência
de um “nós”. Descolar seu comentário sobre a palavra ‘explorar’ desse contexto significativo
seria cair num certo substancialismo do termo, ignorar que seu poder existe de acordo com os
contextos em que é acionado. E, naquele contexto, do modo como estava sendo acionado, os
efeitos que produzia nela, como leitora e pertencente à comunidade, decompunha com as
relações da Morada, daí seu convite para compormos um “nós”. Trata-se, como Starhawk nos
coloca, do que pode dar ou não poder aos sujeitos da relação.

O idioma distribui poder. A palavra miserável é uma palavra que posso usar sobre
mim mesma; me dá poder para nomear e, assim, nomear meus próprios sentimentos.
Note que é um adjetivo. Descreve algo que estou fazendo (sentindo). É relacional. A
frase depressão anaclítica é um termo usado por profissionais quando falam de
outros do que deles próprios. Pode ser útil. Transmite, talvez, uma categoria
diagnóstica mais precisa, a uma história implícita mais completa, do que miserável.
Mas é útil para profissionais, não para mim. Não me dá nenhum poder para me
conectar com meus sentimentos porque transforma meu sentimento em um objeto,
uma condição, algo que tenho e, portanto, sou distanciada, alienada de como me
distancio daqueles que usam o termo sobre mim. (p. 24, tradução minha)

Talvez o uso do verbo ‘explorar’ ganhe novos usos e efeitos em diferentes contextos,
mas na situação em que estávamos ele parecia ser uma ferramenta que corroborava com um
Grande Divisor sem levar em consideração aquilo que realmente importa para Morada: a
281

guerra cósmica. Grande Divisor com o qual as integrantes da comunidade já possuem


algumas experiências não muito boas. De alguma forma, parece-me que Ys. chamava minha
atenção para o fato de que se as palavras são magia, ou seja, produzem efeitos, era preciso à
antropóloga atentar para aquelas que, de alguma forma, dão ou não poder àqueles com os
quais resolveu se engajar. Não bastava ser uma iniciada na Nação Muzunguê, participar da
vida ritual da comunidade. Era preciso sentir de outro modo, que implica também sentir com
outros um “nós” no texto, e prestar atenção às imagens e ideias ali reproduzidas e outras
possíveis que “dariam poder” a esse “nós” a ser tecido.
De início, penso que essa relação da Morada com os textos tinha por questão central
acompanhar o desenvolvimento de uma nova perspectiva sobre as coisas, em que a
antropóloga não mais atue por extração e exploração detalhista do que é feito na comunidade,
mas que consiga compartilhar percepções e ideias, visto os Ipadês de reflexão consistirem em
espaços de compartilhamento de experiências de um determinado ritual e um pensar coletivo
para melhor operacionalizá-lo. Porém, essas situações aqui apresentadas e as investidas sobre
minhas escritas como iaô-pesquisadora evidenciaram algo mais profundo, efeitos produzidos
pela feitura da tese que não são limitados a uma simples adesão a Irmandade, convencida de
suas perspectivas sobre o mundo, e participante com minhas boas intenções e
compartilhamento de ideias. Partilhar um “nós” não poderia ser da ordem da adesão, pois
implica um sentir compartilhado. Era preciso aprender a “sentir as palavras” 115 (KOROL,
2017) para a composição de um “nós” e assim “sentipensar”, como diz Cabnal, de outro
modo.
Ys. afirmou a construção de um “nós” conjunto, em que o outro é “a Ciência, a
Universidade e os conhecimentos colonialistas”. Apontou para as bases colonialistas que
historicamente sustentam a Ciência e para a necessidade de lutar contra isso, pois, afinal, o
colonialismo é uma das facetas dessas energias densas das forças das trevas, como diz Mãe
115“Sentir as palavras” é uma colocação trazida, em diálogo com Cláudia Korol, por Lorena Cabnal, feminista
comunitária Maya-Xinka da Guatemala, que implica um ato de descolonização frente à palavra dita e escrita.
Entendo sua colocação não como corroborando com uma percepção ocidental sustentada nos dualismos
homem x mulher, civilizado x primitivo, ambos tratados como equivalentes a outra clássica dualidade razão x
emoção, mas a apresentação de um outro regime de verdade que rompe com essas atribuições ocidentais. Ela
nos diz: “Eu queria convidá-las para que sintam minha palavra, que escutem minha palavra sentindo-a. Se vão
racionalizar, vamos pôr poder e mais poder à lógica racional, como um dos poderes colonizados pela
construção que foi internalizada profundamente em nossos corpos. Convido-as que não racionalizem o que
vou compartilhar. Só sintam minha palavra que não é de minha individualidade, mas vem de vários corpos de
mulheres indignadas, com quem temos tecido essa proposta. (...) Sentir a palavra é um ato de descolonização
da racionalidade que foi imposta, como uma maneira positiva de interpretar uma realidade. Somos corpos
sentipensantes. Com isso rebatemos o que a filosofia ocidental nos ensinou como ‘penso, logo existo’”
(KOROL, 2017, p. 298, tradução minha). Starhawk (e Isabelle Stengers através de Starhawk) também recupera
uma percepção de sentir em oposição à adesão quando se referem à Deusa. Como nos diz Stengers no posfácio
escrito ao livro de Starhawk, a Deusa não quer reconhecimento ou adoração, pois não implica adesão, mas
sentir. Esse sentir pode provocar as mais diversas experiências nas pessoas e, com isso, fazer com que pensem
diferente. Reativar na atualidade experiências tomadas como passadas obriga a pensar sobre o presente e pode
pôr em questão nossos hábitos e certezas bem estabelecidas. (STARHAWK, 1997 p. 322-3)
282

Preta116. Contudo, e isso talvez seja o mais interessante, esse “outro” não é externo a mim e,
por isso, há sempre o risco da captura por essas forças, o que demanda vigilância e precaução.
Nesse mesmo contexto ela pontuou sobre a necessidade de eu olhar e reconhecer os meus
próprios “demônios” para poder, de fato, lutar contra eles. Reconhecer que sou formada
também por essas bases colonialistas que ergueram a Antropologia, de alguma forma – não
para produzir paralisia, mas para saber o que fazer com ela. Reconhecer que sou formada por
essas forças, para tomar as devidas precauções a fim de neutralizá-las – não esquecer o “nós”
que fui convidada a compor junto com a Morada da Paz.
Fico pensando, novamente, em Favret-Saada. Ela aprendeu que para a feitiçaria a
palavra produz efeitos no mundo e, por isso mesmo, funciona a partir de um jogo de
posicionalidades. Não se poderia falar em feitiçaria sem ter sido afetado por ela. Assim como,
para a Morada da Paz, não se poderia falar na guerra cósmica em curso, que constitui o
propósito existencial da Morada, sem estar engajado nela. Mesmo quando esse engajamento
não é consciente, do indivíduo que fala, pode ser que outros falem através dele, podendo
“servir para todos os lados”. Assim, pelo menos, eu fui ensinada. Mas aqui tem uma
diferença, que sinto ser importante. A autora foi afetada pelas mesmas forças que afetam seus
interlocutores em campo e sua experiência produziu efeitos sobre a própria prática
antropológica. No caso que vivo com a Morada, a participação constante das mais velhas
sobre o próprio texto antropológico demonstrava que a ideia de que “a palavra é magia” não
apenas afeta a etnografia – obrigando a reelaborar o jogo de posicionalidades, inclusive –,
mas a própria etnografia é, para a Morada da Paz, magia. E, se não é apenas isso, pois é uma
prática antropológica que coloca problemas de uma dada ordem, através da disciplina da qual
‘nós’, pesquisadores, participamos, é também. E a insistência do “nós” parece não me permitir
esquecer disso. E bem, a questão aqui, não é crer ou não no que os ‘outros’ da antropóloga
creem. Mas tomar o bastão e levar a sério a questão: o que importa de fato para essas pessoas?
O que Ys. me propôs, de alguma forma, foi desformar-me, termo trazido por Mãe
Preta que, como vimos, significa “tirar da forma”, “tirar das caixinhas” em que eu, enquanto
antropóloga, estou assentada. No fim das contas, eu faço um trabalho etnográfico com a
Morada da Paz, registrando no papel aquilo que aprendo, na exata medida em que ela faz um
trabalho de desformação comigo, registrando nos corpos, inclusive no meu, os saberes que
produz, onde o próprio texto etnográfico está implicado. “Aprender a desaprender”, na exata
medida em que aprendo a aprender de outra forma.

116Aqui faz-se necessário uma certa desconfiança para que não caiamos em uma percepção totalizante sobre o
que se nomeia como colonialismo e cientificismo. Talvez devêssemos acionar novamente o princípio da
equivocação para pensar se o que a Morada da Paz, e especificamente Ys. nessa situação, denomina como
colonialismo e cientificismo seria o mesmo caracterizado, ainda que de forma crítica, pela Antropologia e pela
Filosofia. Questões que deixo para desenvolver em outro momento.
283

5.4 Devemos sentipensar

A Morada da Paz incide sobre meu corpo, incide sobre o texto, mas também incide –
lembro aqui que as mais velhas conhecem os meandros da Universidade tanto quanto eu –
sobre a política universitária em que eu me encontro. Sinto ser urgente sentirmos e pensarmos
(sentirmos para pensarmos, pensarmos para sentirmos, “sentipensarmos”, portanto, como diz
Lorena Cabnal), ‘nós’ – as antropólogas e os antropólogos que participam dessas estruturas
universitárias – com ‘outros’ em relação a isso. A questão de ocupar a pele de papel me levou
ao questionamento: de que maneira a cosmopolítica criada pela Morada da Paz incide sobre a
política universitária da qual eu, temporariamente, faço parte? Não tenho respostas, pois como
todas as boas respostas elas precisam ser coletivas!, só sinto as urgências e finalizo esta tese
com elas.
“Pensar nós devemos” é um grito insistente de Virginia Woolf reativada pelas filósofas
Stengers e Despret em outro contexto. “Pensar nós devemos” de Woolf foi um chamado às
mulheres para que tivessem prudência em aceitar adentrar espaços, como a Universidade, que
foram negados a elas e às que vieram antes delas. Mais do que isso, era um convite a negar
permanecer nesses espaços, em nome de uma memória ancestral. As filósofas reativam essa
fala de Woolf, mas a partir de outro contexto, outra situação, e por isso mesmo operam nela
uma transformação. Reconhecem-se, então, como as “filhas infiéis de Virgínia Woolf”, por
serem aquelas que entraram na Universidade e decidiram nela permanecer, mas, nessas
condições, não deixam de herdar de Woolf a insistência de uma memória ancestral. Herdar,
prolongar, aqui, não pode ser entendido em um sentido de filiação, pois ele engendra um
processo de transformação. Ser herdeira é estabelecer relação com algo muito potente, por
exemplo, um acontecimento, como as manifestações ocorridas em Seattle e os gritos por outro
mundo era possível (STENGERS; PIGNARRE, 2011, p. 4). Mas essa relação não implica
querer representar o que aconteceu, nem mesmo dar seguimento às formas e finalidades do
próprio acontecimento. Se eu bem entendi, é fazer reverberar toda a sua potência através de
outros meios e, com isso, ser capaz de suscitar novos acontecimentos.
Quando Stengers e Despret retomam a si o bastão que pegam de Woolf é sobretudo
para fazê-lo ecoar, reverberar de outra forma, nesse contexto em que escrevem, como
universitárias, pesquisadoras, como aquelas que adentraram e permaneceram na Universidade.
E destacam que fazer jus ao bastão que herdam de Woolf é, de alguma forma, opor-se à
reatualização das forças que negam a presença de certos sujeitos no espaço universitário sob a
argumentação universal e meritocrática do produtivismo – quantos artigos publicados, em
quais revistas publicadas, e outras formas quantitativas que nos cegam. É também explicitar o
284

que se esconde por trás da “democratização” moderna, que nada mais é do que a aceitação
daqueles que foram historicamente excluídos desses espaços na exata medida em que negam
que esses sujeitos afetem e reestruturem suas bases. Novamente a tolerância: aceitamos vocês,
desde que não façam estardalhaços, desde que não queiram alterar a ordem das coisas.
Pois bem, ninguém melhor do que as mais velhas da comunidade Morada da Paz para
saber disso. Mulheres negras e homem negro que passaram e passam pela graduação,
mestrado, doutorado e pós-doutorado, mas que resolveram ouvir o grito de Woolf (na verdade,
foram os conselhos de Mãe Preta, mas eu me permito aqui as conexões aleatórias) e disseram
– e eu aqui faço uma livre apropriação do que ouvi: esse lugar é perverso demais, muito
mobilizado por competitividade e egoísmos, e eu corro riscos de me perder de mim mesma.
Daqui podemos “roubar” o que nos serve, mas jamais permanecer. Podemos incomodar,
cutucar, produzir incômodos às estruturas bem estabelecidas, até mesmo fomentar que nossos
aliados que ali estão incomodem e causem estardalhaços, mas jamais permanecer. Não porque
não poderíamos, mas porque apostamos que a transformação do mundo, como acreditamos,
não venha propriamente das estruturas universitárias.
Recentemente, com as atuais notícias de cortes de verbas do CNPq e CAPES, Ys.
disse-me que entendia a necessidade de protestar contra essa situação e percebia com pesar o
desmantelamento da Universidade. Por outro lado, sentia que a lógica que sustenta a
Universidade tal qual ela se apresenta já estaria dada ao fracasso. Um dos aspectos elencados
por ela é a grande quantidade de mão de obra qualificada sem qualquer possibilidade de
entrada no mercado de trabalho. Como se reatualizasse Woolf, agora num tom de
questionamento, pensativa: lutar pela manutenção dessa lógica universitária, recheada de
arrogância? Em nosso nome? Aqueles que foram historicamente excluídos e, muito
recentemente, pelas Ações Afirmativas e outras políticas de democratização, participam desse
mundo, muitas vezes em condições precárias? Em nosso nome?
As questões que emergem sobre a Universidade são sentidas e manifestadas de forma
muito próximas pelas filósofas Stengers e Despret e pelas mais velhas da Morada da Paz. Mas
suas apostas foram diferentes. As primeiras resolveram permanecer na Universidade e pensá-
la como um espaço de criação e resistência – entendendo resistir como existir. Resistência ao
produtivismo, resistência aos espaços bem constituídos do que seria considerado “a
verdadeira filosofia”, resistência ao papel de juízas sobre os outros e resistência a
participarem das polêmicas que a herança da filosofia lhes coloca, preferindo antes a
possibilidade de rir e pensar junto com outros. As segundas viram em outros espaços a
possibilidade de criação e de resistência – também entendendo que resistir é existir –, pois
demandavam elementos vitais para as suas vidas que a Universidade não seria capaz de
285

possibilitar, aceitar, nem mesmo de tolerar. Preferiram resistir, rir e pensar junto com outros
em outros espaços.
Não se trata aqui de julgar uma ou outra postura, ou dizer qual seria a melhor ou a
mais acertada. A questão é: como prolongar o “nós” da Morada da Paz para ser capaz de
produzir algum estardalhaço, pequeno que seja, dentro dessa estrutura de que eu
temporariamente faço parte? Recebi uma série de orientações de Mãe Preta em relação à tese
– não mais a sua feitura, mas ao que fazer com ela depois de finalizada, pois as investidas
criativas da Morada da Paz continuam. Uma dessas orientações foi para que Ys. estivesse em
minha banca de defesa de doutorado, “enquanto Ys.”. Isso provocou questionamentos,
indagações, reticências minhas e de outras pessoas com as quais eu dividi essa questão.
Questionamentos de inúmeras ordens e, sem dúvida, pertinentes. Dentre eles, houve um que
pautava a separação ‘nós’ e ‘outros’, não no sentido de supor a hierarquização de saberes, mas
para demarcar, e assegurar, o que é a Antropologia, o seu modo de elaborar e pôr problemas,
que seriam diferentes dos problemas que, talvez, Ys. levantasse117.
O “nós” provocado pela Morada da Paz novamente incide sobre a relação ‘nós e
outros’, recurso da Antropologia. Não parece querer ferir ou derrubar o que é e o que constitui
a Antropologia. Mas também não parece comprometido com a manutenção dela por princípio.
Se o que ‘nos’ cabe, enquanto antropólogas e antropólogos (cujos pensamentos surgem nessa
partilha ‘nós’ e ‘outros’, com vistas à desestabilização dos ‘nossos’ próprios saberes), é
sobretudo sentir e pensar com ‘outros’, precisamos levar em consideração que esses ‘outros’
estão na e pensam a Universidade. Que a desestabilização dos ‘nossos’ próprios saberes sirva
à desestabilização das ‘nossas’ próprias estruturas de produção de conhecimento, sem
precisarmos supor heroísmos ou julgamentos de quem quer que seja. Afinal, isso só pode
ocorrer de modo experimental, sem sabermos quais serão suas consequências – para a
Antropologia, para a Universidade ou para os ‘outros’ da Antropologia.
Desde que iniciei minha relação com a Morada, Mãe Preta tem dito que a
Universidade, do jeito como está, já acabou e não vai mais existir. Para Mãe Preta, seria
preciso criar outras formas de produção e disseminação do conhecimento, junto com os povos
e seus saberes. Eu tomo essa fala de Mãe Preta como um convite. Não como um presságio
fatalista, mas como um convite a sentir de outra forma. Sentir um fim consumado e com isso
exercitar nossa capacidade de sonhar, como diria a Morada da Paz, ou de “fabular”, como
diria Stengers (e Deleuze). Não muito diferente disso fizeram as moradoras e os moradores da
comunidade Morada da Paz quando as entidades disseram a eles que o fim do mundo já

117O “enquanto Ys.” me remete ao fato de que, talvez sua presença na banca não tenha por intuito validar ou
verificar o que se diz sobre a Morada. Talvez sua presença mobilize e componha com forças, com as quais ela
saiba compor, que não participam da política acadêmica. Portanto, o “desconhecido” para ‘nós’.
286

estava posto e seria necessário criar outro. Juntos sonharam a possibilidade de outro mundo
possível e criaram a comunidade Morada da Paz. Eu tomo a fala de Mãe Preta como um
convite à criação e, para isso, não é preciso aderir à Morada ou à Mãe Preta. Mas permitir-se
sentir de outra forma para poder pensar de outro modo. Imaginar, ‘nós’ que estamos nas
Universidades, outras possibilidades de existência118.

Figura 19: Irmandade 2018

118Sem dúvida, os coletivos negros e indígenas são os principais protagonistas nos ambientes universitários
dessas experimentações.
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298

Glossário
A

Acesso/acessar: Expressão referente aos chamados registros akáshicos. Uma forma de


nomear a relação com os diversos seres que povoam o cosmos. Refere-se a uma percepção
aguçada sobre o que nos cerca. Relaciona-se com a mediunidade.
Adosù: Um processo ritual específico em que os iniciados firmam (e reafirmam) seu
comprometimento com o caminho espiritual.
Afrobudígena: Forma utilizada pela Morada da Paz de nomear a espiritualidade que
vivenciam e que implica a relação entre três matrizes, a saber: budismo tibetano mahayana,
xamanismo mbyá-guarani e religiões de matriz africana.
Agoyê mojubá: Expressão iorubá para pedir a benção dos mais velhos e das entidades para
que se possa falar e escutar. Também chamado de “axé de fala e de escuta”.
Aiyê: Termo em iorubá que significa Terra, mundo dos humanos.
Akaã: Conceito trazido por Ys. à comunidade quando esteve no Senegal. Foi traduzido como
resiliência ou regeneração.
Alabê: Aqueles responsáveis por tocar os tambores que fazem a comunicação entre o mundo
dos humanos e o mundo das entidades.
Alianças: Como denominam as relações que estabelecem que não seja de pertencimento à
comunidade, mas, como caracterizaram, relações de proximidade em que há uma “matéria
energética da gratidão” entre as partes envolvidas.
Alinhamento: Esse termo é utilizado em muitos sentidos. Quando se refere ao “alinhamento
dos chakras” quer dizer uma reestruturação dos corpos dos sujeitos que visa o seu bem-estar.
Quando se refere, por exemplo, “às entidades alinhadas com a pomba-gira Elo”, designa
aquelas que trabalham junto, de um mesmo modo que a pomba-gira Elo. Alinhamento
também é referido aos sujeitos, que, quando estão “alinhados”, estão de acordo com a
potência que manifestam. O desalinhamento é caracterizado por qualquer desarmonia nas
relações, nos sujeitos, nas situações. Alinhamento também é utilizado às conexões que os
sujeitos têm com determinado tipo de entidade. Ak., por exemplo, é alinhada com os pretos
velhos que trabalham com as almas.
Ancestralidade: Refere-se aos que vieram antes e que possibilitaram a existência dos que
estão hoje. Pode ser usado de diferentes formas, a depender do contexto.
Ano Novo Solar: Data comemorativa na Morada da Paz referente ao equinócio de outono.
Anunciamento: Termo trazido por Mãe Preta para designar as práticas desenvolvidas pela
Morada da Paz, em contraposição ao “enfrentamento”. É assim designado porque a Morada
da Paz seria a anunciação de um novo mundo possível.
Apoiwá: É assim chamado o saco de criação do mundo de Olorum. Na comunidade esse
nome é utilizado para referir o grupo de artesanato e as feiras para a venda dos artesanatos e
alimentos. Também é utilizado para referir elementos de poder que dizem respeito a cada
pessoa da irmandade. Cada qual tem o seu apoiwá que permite conexão com a espiritualidade.
Aressum: Ritual fúnebre das casas de Batuque.
Axé de fala e de escuta: Também chamado de agoyê mojubá, o axé de fala e de escuta é o
pedido de benção aos mais velhos e às entidades para que se possa falar e escutar. Também
escrito como asè de fala e asè de escuta.

Baba: Pai. Na Morada da Paz, refere-se ao Bg.


Bacuris: Termo utilizado por Mãe Preta para se referir às crianças da comunidade.
299

Bruxa/o: Termo polissêmico. Foi definido por Ys. como aquela e aquele que não precisa dos
elementos (terra, fogo, ar e água) para trabalhar, pois carrega esses elementos dentro de si. Foi
utilizado em contraposição à Feiticeira/o.
Burros da terra: Como Mãe Preta denomina os médicos humanos.

Campos energéticos: Também denominado apenas Campo, é uma expressão constante no


cotidiano da comunidade Morada da Paz, e refere-se à percepção das forças que atuam em
determinadas situações. Você estabelece um “campo energético” quando se relaciona com
alguém. Você pode criar um “campo energético” preparando-se para adentrar determinadas
relações ou espaços. Você pode acessar o “campo” de alguém ou de algo.
Canal: Como são denominados os médiuns.
Canalização: Uma das manifestações da mediunidade. Refere-se à materialização via escrita,
música ou imagem do que é acessado do Cosmos.
Casa Bio: Uma das casas da comunidade Morada da Paz, onde normalmente ocorrem os
Ipadês.
Casa Flor: Casa moradia.
Casa Geodésica: Casa da Comkola.
Casa Mapuche: Casa moradia.
Casa Verde: Casa de convívio, onde estão localizadas a biblioteca comunitária, a sala da TV
e a cozinha.
Casa Yurtdésica: Antiga casa que abrigava a Farmacinha Viva, com plantas medicinais e
berçário.
Chakras: São assim conhecidos os pontos energéticos que constituem os corpos dos sujeitos.
Diz respeito ao que é conhecido na comunidade como “corpo búdico”. Entende-se que os
corpos são formados por pontos energéticos que permitem a comunicação com o cosmos.
Através deles, forças, seres e entidades adentram e estabelecem relações com os sujeitos. Há
sete chakras principais: chakra coronário, localizado no centro da cabeça; o chakra frontal,
localizado na testa; o chakra laríngeo, localizado na região da nuca e garganta; o chakra
cardíaco, localizado no coração; o chakra plexo solar, localizado na região do estômago; o
chakra esplênico ou sexual, localizado na região da bexiga/útero; e o chakra básico, localizado
próximo ao ânus.
Chamada das entidades: Como são conhecidos os processos rituais semanais da
comunidade.
Chamado cósmico: Como foi denominado o principal motivo de criação do grupo Cosmos e,
posterior, da comunidade Morada da Paz. Sua criação, dizem-nos os fundadores, foi por
atenderem um “chamado cósmico” que as entidades faziam para que os humanos também
participassem de uma luta pela paz.
Chegança: Como é denominada uma série de ritualísticas de chegada ao território.
Comkola: Refere-se à Escola Kilombola criada pela comunidade. O termo foi trazido por
Mãe Preta e se refere ao fato de que a Escola, do modo como existe, “tira a cola das relações”.
A Comkola, em contraposição a isso, quer “manter a cola das relações”.
Corpos astrais: na Morada da Paz existe uma outra compreensão dos corpos. Cada sujeito é
composto por muitos corpos. São vinte e um os corpos conhecidos, mas os principais que nos
foram ensinados são cinco: corpo átmico, corpo búdico, corpo da vontade, corpo mental e
corpo físico.
Cosmos: Um conjunto de seres com os quais a Morada da Paz pode se aliar ou pode
combater. Refere-se tanto àqueles que se conhece, ou que se sabe nomear, quanto a diversos
seres que não se conhece, ou que não se sabe nomear.

D
300

Dar corpo: Expressão utilizada para se referir ao processo de incorporação.


Dar passagem: Expressão utilizada para se referir ao processo de incorporação.
Demoradores: Aquelas e aqueles que não moravam na comunidade, mas que participavam da
Irmandade da Nação Muzunguê.
Descarregar: Processo mágico em que diferentes elementos são possíveis de serem utilizados
para retirar dos corpos qualquer elemento que possa provocar desarmonia.
Desformação: Termo utilizado para designar diferentes processos. Primeiro, trata-se de um
encontro possibilitado pela comunidade de estudo prático da mediunidade. Segundo, é o
modo como nomeiam um processo mais intenso de “aprender a desaprender” o que nos foi
ensinado para poder “aprender a aprender” de outra forma.
Devas: São assim denominadas as entidades que habitam os elementos da natureza. As
sílfides habitam o ar, as sereias habitam a água, os duendes habitam a terra e as salamandras
habitam o fogo.
Diligência: Também chamada de missão, são as viagens e deslocamentos, físicos ou
espirituais, realizados pela comunidade a partir de orientações trazidas pelas entidades.
Duendes: Devas que habitam a terra.

Ecoespiritualidade: Termo cunhado pela comunidade para destacar e salientar uma relação
profunda entre o que chamam de espiritualidade e um conjunto de seres que habitam o
cosmos, em que consistiria a “natureza”.
Ecoeducadores: Como são denominados os voluntários que participam da Colônia de Férias
Curumim-Omadê.
Egbomi: São as irmãs mais velhas da comunidade.
Eguns: Como são denominados os espíritos dos mortos.
Elementos de poder: Como são denominados elementos mágicos. Como todo elemento, é
preciso “prepará-lo”, ou seja, nenhum elemento é mágico por si só. Para que ele tenha efeitos
no mundo, é preciso prepará-lo ritualisticamente.
Emprego: Como as entidades denominam as atividades que fazemos para conseguir dinheiro.
Energias/forças: Tudo aquilo que perpassa os corpos, os ambientes e os contextos e que
produzem efeitos. Podem ser energias ou forças de potência, de luz, ou de destruição, densas,
deletérias.
Enfrentamento: Termo utilizado em contraposição ao “anunciamento”. Refere-se à práticas
de reação e não de criação.
Entidades: Como são nomeados diversos seres não-humanos – Orixás, Devas, mestres,
extraterrestres, almas santas, entre outros.
Epé L'aiyè: Termo em iorubá que significa Terra Viva. Nome dado à Comkola.
Espiritualidade: O conjunto de forças e seres que habitam o cosmos.

Fazer a passagem: Desencarnar, morrer.


Feiticeira/o: Aquela ou aquele que precisa dos elementos para realizar seus trabalhos.
Contrapõe-se à Bruxa/o.
Firmações: Refere-se ao processo de “firmar” energeticamente e com elementos rituais
determinados objetos ou espaços.
Feminino/ masculino: Forças que atuam no mundo e que constituem os sujeitos.
Foribalé: Também chamado prostrações, refere-se ao processo de “bater cabeça” aos Orixás
no peji/congá.

G
301

Gba oya kan: Como são denominados os responsáveis por qualquer ação a ser desenvolvida
na comunidade. Aj., por exemplo, é a Gba oya kan do apoiwá. Ela é a responsável pela
organização das feituras dos artesanatos e participação nas feiras.
Geledés: Máscaras utilizadas pelas entidades.
Gira de Amotara: Atividade realizada com mulheres, em Porto Alegre. Amotara é um termo,
aprendido junto às indígenas Pataxó e Tupinambá que significa “amor a todos”.

Harmonização: Processo realizado, assim como a limpeza, com elementos de poder para o
alinhamento e fortalecimento dos corpos e ambientes.
Hierarquia circular: Modo de organização cósmico-política que constitui a comunidade.
Uma outra forma de pensar a descentralização de poder, que nega tanto a verticalidade quanto
a horizontalidade.
Horta de todos nós: Horta orgânica comunitária.

Iaô: Iniciada ao culto dos Orixás.


Incorporação: Processo mediúnico de manifestação das entidades.
Intuição: Processo mediúnico onde não há materialização, nem manifestação. A comunicação
com as entidades ocorre de modo mais sutil.
Ipadê: Roda de conversa. O meio através do qual a comunicação é baseada. Há muitas
formas de ipadê e os mais frequentes são:
Ipadê da base: ipadê dos fundadores da comunidade.
Ipadê da ecogestão: ipadê sobre a gestão da comunidade.
Ipadê da irmandade: ipadê onde toda a irmandade, moradores e demoradores
(quando havia), participam.
Ipadê das egbomis: ipadê das irmãs mais velhas.
Ipadê das Yabas: ipadê de todos os moradores da comunidade, incluindo as crianças.
Ipadê de refexão: ipadê que ocorre após qualquer ritualística aberta realizada pela
comunidade ou após qualquer evento no qual a comunidade tenha participado.
Ipadê do conselho Olo orê: ipadê do conselho externo consultivo e das fundadoras da
comunidade.
Ipadê dos demoradores: quando existiam os demoradores, havia o ipadê deles com
as mais velhas.
Irmandade: Como é denominado o conjunto de omadês, odomodês, pitocos, iaôs, egbomis,
Yas e Baba. Todos aqueles que são iniciados na Nação Muzunguê fazem parte da Irmandade,
também conhecida como Irmandade da Casa da Sétima Ordem.
Irradiar: Emanação de energias positivas via pensamento, orações ou atos mágicos a alguém.

Karó: Segredo.
Kizomba: Festividade.

Leva de bacuri: Como Mãe Preta designa as diferentes gerações de crianças.


Limpeza: Processo realizado, assim como a harmonização, com elementos de poder para a
limpeza energética, retirada de qualquer energia negativa, dos corpos e ambientes.

M
302

Meditação ativa: Como são nomeados os processos meditativos na comunidade,


concomitantes às ações cotidianas necessárias.
Médium: Todos os seres, pois a mediunidade é entendida como orgânica. Refere-se àqueles
que manifestam, de diferentes formas, relações com o cosmos.
Mediunidade: Modo de comunicação com o cosmos.
Mestres ascensionados: Mestres espirituais que guiam trabalhos e que tiveram alguma
reencarnação na terra, porém não mais reencarnam.
Mestres ascensionais: Mestres espirituais que guiam trabalhos na Terra, mas que nunca
existiram em corpo físico na terra.
Moradores: Aqueles que residem no território.
Muzunguê: Tem muitas conotações. Refere-se ao momento ritual de acolhimento espiritual
de pessoas externas, que ocorre mensalmente, mas também ao alimento servido que, para a
comunidade, é uma forma de distribuir axé. Durante o rito de acolhimento, há o muzunguê
salgado, dado no início do atendimento, e o muzunguê doce, dado ao final. Ambos variam
conforme a entidade regente do mês.

Namastê odirè: Saudação mais recorrente na comunidade. Significa “O deus que habita em
mim saúda o deus que habita em você para que este seja o melhor dos seus dias”. De forma
extensa, a saudação é seguida com os termos Bongar Bo si onan, que significa “na busca do
caminho espiritual”.
Natureza: Toda a exterioridade que constitui o mundo físico vivo.
Nomes crísticos: Nomes atribuídos pelas entidades a cada um dos iniciados. Diz respeito à
força ou ser que constitui o sujeito nomeado.

Odomodê: Jovens, adolescentes.


Okan: Coração.
Okan Ilu: Ritual aberto que ocorre na comunidade que significa “O tambor do coração”.
Olorum: A consciência cósmica, o criador do universo.
Omadê: Crianças.
Ori: Cabeça, o principal canal de conexão com o Cosmos.
Orientação: Como são denominados todos os encaminhamentos dados pelas entidades.
Constantemente diferenciam orientação de obrigação, dizendo que as entidades não obrigam
nada a ninguém, no sentido de constrangimento, mas orientam para auxiliar o melhor
desenvolvimento dos sujeitos em seus caminhos espirituais.
Orins: Como são chamados os toques e rezas sagrados.
Orins de sustentação: Como são chamadas as rezas sagradas às principais entidades que
guiam e protegem a comunidade.
Orixás: Divindades do Panteão Africano.
Orun: O mundo dos Orixás, o céu.

Parceria: Relação pontual que a comunidade desenvolve com outras pessoas ou coletivos
para determinados fins.
Patacas: Como as entidades referem-se ao dinheiro.
Peji: Ou congá, refere-se ao altar onde elementos sagrados são postos e cultuados.
Pitocos: Crianças menores de cinco anos.
Pontos energéticos: Também chamados de Chakras.
303

Preces práticas: Atividades cotidianas para o bom funcionamento comunitário.


Preleção: Leitura de texto ou fala feita antes de iniciar o Muzunguê.
Progenitor/progenitora: Como são denominados os pais e mães biológicos.
Propósitos espirituais: Os objetivos que regem e sustentam a existência comunitária.
Prostrações: Assim como o foribalé, é o movimento de prestar reverência às entidades em
frente ao Peji.

Quinta do Axé: Atendimento que ocorre de modo individualizado aos consulentes, após
orientação das entidades.

Recursos: Tudo aquilo que permite os meios necessários para desenvolver os trabalhos da
comunidade. Dinheiro, tempo, natureza, espiritualidade, tudo são recursos. É a base do que se
entende por ekonomia do afeto.
Reencarnação: Compreensão de que os sujeitos permanecem vivos após a morte do corpo
físico e podem voltar a viver neste mundo através de outro corpo físico.
Registros akáshicos: Um imenso arquivo da consciência cósmica que resguarda tudo o que
ocorreu ou poderia ter ocorrido; ocorre ou pode ocorrer; e ocorrerá ou poderá ocorrer.

Saidança: Rito que marca a saída de uma pessoa do território.


Salamandras: Seres que habitam o fogo.
Sereias: Seres que habitam a água.
Sílfedes: Seres que habitam o ar.
Sobreviventes: Surgem em oposição aos remanescentes de quilombos, pois os moradores da
comunidade não se entendem remanescentes, como aqueles que restam, mas como
sobreviventes de um processo nefasto de destruição dos povos negros nas américas.
Sopro de Emi/ Sopro da vida: Rito realizado na comunidade, principalmente nos
Muzunguês dedicados aos Orixás de Frente, no Ano Novo Solar e no Terreiro de Chão Batido.

TASA (Templo Alquímico de Saúde Alimentar): A cozinha.


Templo: Onde ocorre a maior parte das ritualísticas, as chamadas das entidades e os
Muzunguês.
Ter cruza: Expressão utilizada para designar a relação de aproximação que uma pessoa
estabelece com uma entidade.
Terra D'água: Terreno recentemente comprado pela comunidade.
Trabalho: Como referem-se a toda e qualquer atividade de cunho espiritual.
Transmigração: Ato mágico para a alteração de um estado. Transmigrar é mudar o estado
das coisas.

Uciriri: Atividade de construção da Casa Bio. Significa “construindo juntos”.


Universalista: Modo de entendimento da espiritualidade desenvolvida pela comunidade, em
que se aceita a existência de seres cultuados por diferentes matrizes religiosas ou espirituais.

X
304

Xanduca: Como Mãe Preta denomina seu cachimbo.

Yaba ancestral: Como Mãe Preta é reconhecida da comunidade. Mãe de todos.


Yas: As Mães.
305

Anexos
Anexo I - Carta à Morada da Paz

Queridas moradoras,
Conheci a Morada em 2013, na construção do Uciriri. No ano seguinte, mudei-me para
o Rio de Janeiro para iniciar o curso de doutorado em Antropologia Social no Museu
Nacional/UFRJ e pouco tive contato com a Morada da Paz. Em julho deste ano retorno ao Rio
Grande do Sul por diversos motivos, incluindo a possibilidade de realizar trabalho de campo
no estado. Em conversa recente com o professor José Carlos dos Anjos, ele sugeriu a
realização de um trabalho de campo junto com a Morada da Paz, caso as moradoras
concordassem. Foi assim que comecei a pensar nessa possibilidade e é por isso que escrevo
esta carta: para me apresentar, apresentar uma proposta de pesquisa e, principalmente, ouvir o
que vocês pensam sobre essa possibilidade.
Desde a graduação venho trabalhando junto à população negra. Meu Trabalho de
Conclusão foi junto ao grupo de teatro negro Caixa-Preta, descrevendo como a estética teatral
negra é pensada e elaborada pelos integrantes do grupo. Na dissertação trabalhei junto às
Tribos Carnavalescas, em especial a tribo Os Comanches. Trata-se de grupos negros que se
transformam em índios e que guerreiam entre si durante os dias de carnaval. Foi
acompanhando a elaboração do desfile e, concomitantemente, as elaborações conceituais dos
índios carnavalescos que percebi que os comancheiros formulam e colocam em relação de
modo bastante inovador os conceitos de índio, negro e branco, contrapondo-se radicalmente
ao tratamento dado a esses mesmos termos na ideia de mestiçagem – que serviu a um projeto
político de construção da nação e que camufla desigualdades e relações de poder. Dessa
forma, percebi que os comancheiros detêm uma perspectiva afroindígena pulsante e criativa
que podíamos pensar em oposição à perspectiva hegemônica branca, cujos conceitos de
mestiçagem e sincretismo são as principais ferramentas teórico-políticas.
Assim como trabalhei na dissertação, gostaria de dar continuidade à mesma proposta
teórico-política no doutorado: desenvolver uma capacidade de escuta e de experiência sobre
os conceitos e práticas elaborados pelas interlocutoras do campo a fim de provocar
questionamentos e transformações nas clássicas discussões antropológicas. Afinal, muitos dos
conceitos antropológicos servem e serviram de arma política contrária aos povos tradicionais.
Penso que o papel do acadêmico, em que hoje me encontro, seja contribuir para a resistência a
isso, formulando alternativas aos modos de pensamento já instituídos. Deixo claro, desde
então, que não desejo escrever uma tese sobre a Morada. Desejo escrever uma tese sobre a
Antropologia a partir dos conceitos, das práticas, das histórias que aprenderei com vocês. Se
para isso for necessário “morrer”, como sujeito cheio de concepções e sentimentos, estou
disposta e totalmente disponível.
Sou orientanda do professor Marcio Goldman que há tempos vem trabalhando com o
Candomblé e orienta muitos trabalhos realizados junto à população negra. Dessa forma,
desejo continuar meu trabalho com as populações afro-americanas, enfocando suas práticas de
resistência. Penso que a Morada seja um desses territórios de resistência.
Em um primeiro momento, aponto alguns pontos principais que me interessariam
pesquisar, caso vocês concordem:
→ O primeiro trata do protagonismo de mulheres negras. Pelas poucas conversas que
tivemos, percebo que a ancestralidade ancora e torna fundamental uma série de práticas e
conceituações sobre o que é ser mulher negra kilombola. Quem são essas mulheres negras
kilombolas? Como produzem-se assim? Que efeitos esses conceitos, do modo como são
pensados entre as moradoras do território, têm em algumas discussões acadêmicas sobre
teorias de gênero?
306

→ O segundo trata da relação estabelecida entre ecologia, religião, cultura e política.


Pouco conheço das práticas de vocês, mas tenho a sensação de que existe uma confluência
entre essas práticas que se potencializam mutuamente. Uma interfere na outra, ainda que eu
não saiba como. É nesse sentido que surgem conceitos como o de ecoespiritualidade ou
afrobudismo, por exemplo, e também que articulações afroindígenas se apresentam (seja com
os caboclos, entidades espirituais, seja com povos indígenas e quilombolas nos projetos
desenvolvidos pelo ponto de cultura Omorodê). Da mesma forma, decisões políticas e
estratégicas parecem ser produtos de uma intensa reflexão e experiência espiritual, com a
presença de muitos seres visíveis e invisíveis. Penso que há na Morada modos criativos de pôr
em relação conceitos e assuntos que continuamente os saberes ocidentais, acadêmicos, têm
tratado de formas especializadas, separadas e rígidas.
→ O terceiro está diretamente relacionado ao anterior e trata de uma concepção própria
do slogan que se propagou no mundo inteiro: “um outro mundo é possível”. Tomo esse slogan
porque foi falado tanto na construção do Uciriri, quanto no evento recente Okan Ilú. A ideia
pode percorrer outros lugares e grupos, mas me interessa saber como ela se materializa na
Morada da Paz. Como propõem um novo mundo possível? Como produzem uma alternativa
ao mundo individualizado e capitalista (como descreveu TC na oficina do Okan Ilu)?
Algumas pistas foram dadas no evento do dia 12 de dezembro, tais como: produzir-se na
“borda”, que se contrapõe à lógica de oposição centro/periferia; e o cuidado e relevância
dados à infância e aos sujeitos que podem dar continuidade a esse “outro mundo possível”.
São pistas que me tocaram, mas que, evidentemente, merecem maior atenção.
Penso que qualquer trabalho de pesquisa etnográfica demanda que estejamos dispostos
a aprender, abertos ao que falam nossos interlocutores. Seus desejos, seus interesses e suas
práticas. Sinalizei, com isso, alguns pontos que me interessariam pesquisar, mas evidente que
o diálogo com vocês apresentará outros tantos que eu nem imagino.
Trago aqui um interesse de pesquisa, surgido em uma conversa com o José Carlos dos
Anjos, mas gostaria de ressaltar pontos que para mim são muito importantes. Em primeiro
lugar, não espero ser uma observadora distante das práticas da Morada e sei que isso nem
seria permitido. Acredito que os trabalhos de campo mais interessantes são aqueles em que a
pesquisadora é profundamente afetada pelos sentimentos, práticas e concepções daqueles com
os quais deseja trabalhar. Quero realizar uma tese, mas quero também servir e potencializar de
alguma forma, que eu ainda não sei como, o trabalho realizado por vocês. Em segundo lugar,
não conheci a Morada da Paz pela academia, nem nutri interesse pelas atividades da Morada
através dela. Meu contato passou por outras esferas que eu muito valorizo. Prezo, acima de
tudo, a boa relação mantida e espero intensificar meu contato com a Morada, independente de
realizar ou não pesquisa com vocês. Minha admiração pela Morada e por vocês, pessoas que
compõem esse território, é infinitamente maior do que a realização de uma tese.
Desde já agradeço a leitura desta carta e fico à disposição para conversar.

Muito obrigada e ótimas festas de fim de ano!!


Abraços,
Luiza
Enviada em dezembro de 2015
307

Anexo II – Mapas

1) Município de Triunfo

Por Raphael Lorenzeto de Abreu - Image:RioGrandedoSul MesoMicroMunicip.svg, own


work, CC BY 2.5, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1143592
308

2) Distritos de Triunfo – destaque à localidade de Vendinha.

Fonte: Googlemaps

3) Imagem do território Morada da Paz:

Fonte: Goulart, 2016


309

4) Foto da estrutura da comunidade:

Fonte: Goulart, 2016

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