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CAPÍTULO 1

A POLÍTICA DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA


1.1 A filosofia da ciência como questão política
“Nos tempos modernos a ciência é muito respeitada.” Esta é a sentença que abre o livro do
qual este é uma seqüência (Chalmers, 1982). Quinze anos dando aulas numa faculdade de artes,
bem como a inclinação para algumas formas da filosofia e da sociologia contemporânea, me
proporcionaram uma idéia da quantidade de ressalvas de que essa afirmativa necessita. A ciência
geralmente é considerada desumanizadora, dando um tratamento insatisfatório a povos, sociedades
e natureza, nela considerados objetos. A alegada neutralidade e isenção de valores da ciência é
percebida por muita gente como não-autêntica, idéia estimulada pelo fenômeno, cada vez mais
comum, do desacordo entre especialistas, em lados opostos de uma discussão politicamente
suscetível acerca da substância do fato científico. A destruição e a ameaça de eliminação de nosso
meio ambiente resultantes de avanços tecnológicos são em geral consideradas algo que compromete
a ciência. Existem aqueles que consideram a faculdade de artes muito deficiente e distanciada do
mundo masculino e opressivo da ciência e voltam-se para o misticismo, as drogas ou para a
filosofia francesa contemporânea. Embora certamente reste o argumento de que um alto apreço pela
ciência e uma generosa avaliação de seu campo constituam importante componente da ideologia
contemporânea, abundam as posições oponentes.
O fato das questões que dizem respeito ao estatuto da ciência serem politicamente
importantes não escapou a muitos filósofos e, mais recentemente, a sociólogos da ciência. Foi assim
que, em 1973, Imre Lakatos (1978b, p. 6-7) resumiu o assunto numa transmissão radiofônica:
O problema da demarcação das fronteiras entre a ciência c a pseudociência tem sérias
implicações ... para a institucionalização da crítica. A teoria de Copérnico foi proibida pela
Igreja católica em 1616 por ser considerada pseudocientífica. Em 1820, foi retirada do Index,
porque àquela altura a Igreja acreditou que os fatos a haviam comprovado e, portanto, ela se
tornara científica. O Comitê Central do Partido Comunista Soviético, em 1949, declarou
pseudocientífica a genética mendeliana e matou os que a defendiam em campos de concentração,
como aconteceu ao acadêmico Vavilov (depois do assassinato de Vavilov, a genética mendeliana
foi reabilitada). Contudo, manteve-se o direito do partido decidir o que é científico e publicável e
o que é pseudocientífico e passível de punição. O novo establishment liberal do Ocidente também
exerce o direito de negar a liberdade de palavra ao que é considerado pseudocientífico, como já
se viu na discussão a respeito de raça e inteligência. Todos esses julgamentos inevitavelmente
baseavam-se em alguma espécie de critério de demarcação. Esta é a razão por que o problema
dos limites entre a ciência e a pseudociência não é um pseudoproblema de filósofos de poltrona:
ele tem sérias implicações éticas e políticas.
Naturalmente, Lakatos tinha grande consideração pela ciência, como Karl Popper, cujos
passos apaixonadamente seguiu. Popper (1966, p. 369) explica como a sua defesa da racionalidade
em geral, e da ciência em particular, é uma tentativa de ir contra o “relativismo intelectual e moral”,
considerado por ele a “principal doença filosófica de nosso tempo”. Não é incomum que os
defensores de um elevado estatuto da ciência vejam-se como defensores da racionalidade, da
liberdade e do modo de vida ocidental, já que, afinal de contas, “o que realmente está em jogo é
nada menos que o futuro progresso de nossa civilização” (Theocharis e Psimopoulos, 1987, p. 597).
Paul Feyerabend é um dos filósofos mais lidos que se opõe a e zomba dessas venerações da
ciência. Segundo algumas de suas formulações mais radicais, as atitudes atuais em relação à ciência
equivalem a nada menos que uma ideologia representando um papel afim ao que desempenhou o
cristianismo na sociedade ocidental, algumas centenas de anos atrás, e da qual devemos nos livrar.
Feyerabend (1975) diz que a ciência moderna não tem características que a tornem superior e
distinta do vodu ou da astrologia. Em seu livro mais recente (1987), ele glorifica um “adeus à
razão”, onde “razão” deve ser lida como o modo de racionalidade que os filósofos, que defendem

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para ela alguma situação privilegiada, presumem distinguir a ciência. Nas últimas décadas, tornou-
se cada vez mais comum os sociólogos voltarem sua atenção para a dimensão social da ciência e,
em especial, para os processos implicados na construção social do conhecimento científico. Essas
investigações levaram a maioria deles a questionar as explicações ortodoxas atribuídas ao estatuto
privilegiado da ciência, e alguns deles a assumir posturas semelhantes à defendida por Feyerabend.
Collins e Cox (1976), por exemplo, defendem explicitamente um ponto de vista relativista
intransigente, com o argumento de que não há uma diferença intrínseca entre o método da ciência e
o método empregado por Marian Keech e seus seguidores para convencer os outros da autenticidade
de sua maneira de lidar com seres extraterrestres.
As páginas que seguem contêm minha tentativa de esclarecer essas discussões a respeito do
estatuto da ciência. Uma investigação detalhada da prática científica exigirá que nos unamos a
Feyerabend e aos sociólogos contemporâneos na rejeição de boa parte da filosofia ortodoxa da
ciência. Entretanto, procurarei resistir ao relativismo radical freqüentemente defendido por esses
autores e tentarei elaborar uma defesa restrita da ciência, interpretando o que acredito estar correto
nas noções tradicionais da objetividade e isenção de valores da ciência. Ou melhor, espero que um
exame detalhado da maneira como é fabricado (num certo sentido de “fabricar”: construir,
elaborar) o legítimo conhecimento científico mostre como ele pode ser diferenciado de suas
fabricações (num segundo sentido de “fabricar”: montar). No capítulo final mostrarei por que não
desejo que minha defesa restrita do estatuto epistemológico da ciência seja equiparada à defesa do
tipo de atitude que prega “manter a política longe da ciência”, atitude que deixa sem
questionamento o campo político, já incontestável dentro da ciência.
1.2 A estratégia positivista
O principal objetivo dos positivistas lógicos, que floresceram em Viena durante as décadas de
20 e 30 e cuja significativa influência ainda persiste, era fazer a defesa da ciência e distingui-la do
discurso metafísico e religioso, que a maioria deles descartava como bobagem não-científica. Eles
procuravam construir uma definição ou caracterização geral da ciência, incluindo os métodos
apropriados para sua construção e os critérios a que recorrer para fazer sua avaliação. Com isso em
mãos, visavam defender a ciência e criar dificuldades para a pseudociência, mostrando como a
primeira se ajusta à caracterização geral, e a última não. Os detalhes da concepção de ciência
oferecidos pelos positivistas foram rejeitados ou radicalmente alterados nas últimas décadas. Não
obstante, a estratégia geral contida em sua tentativa de defender a ciência ainda tem muitos adeptos.
Ou seja, como ainda pressupõem normalmente os filósofos, cientistas e outros, para defender a
ciência devemos recorrer a uma explicação geral de seus métodos e padrões. Além do mais, os
positivistas não foram os primeiros a tentar uma caracterização geral da ciência. O Novum organum
de Francis Bacon, o Discurso sobre o método de René Descartes e a Crítica da razão pura de
Immanuel Kant são notáveis precursores dos esforços dos positivistas para elaborar uma explicação
geral da ciência e seus métodos.
A caracterização geral da ciência buscada pelos filósofos a que me referi pretendia ser
universal e a-histórica. Universal, no sentido de que se tencionava que fosse igualmente aplicada a
todas as teses científicas. Os positivistas buscavam, por exemplo, uma “teoria unificada da ciência”
(Hanfling, 1981, capítulo 6) que pudessem empregar para a defesa da física e da psicologia
behaviorista e para criticar com severidade a religião e a metafísica. A explicação que se buscava
para a ciência seria a-histórica no sentido de que deveria aplicar-se tanto às teorias passadas como
às contemporâneas e às futuras. Por conveniência, refiro-me ao objetivo de defender a ciência por
meio do recurso a uma explicação universal e não-histórica de seus métodos e padrões como
estratégia positivista, já que esta foi uma proeminente característica do positivismo lógico.
Imre Lakatos e Karl Popper são dois eminentes filósofos da ciência dos tempos recentes que
adotam a estratégia positivista, ainda que, é claro, sejam bastante críticos em relação à particular
explicação da ciência oferecida pelos positivistas. Imre Lakatos (l978, p. 168-9 e 189) acreditava
que o “problema central na filosofia da ciência” era “a questão de determinar as condições

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universais sob as quais uma teoria é científica”. Ele sugeria que a solução do problema “deveria
oferecer-nos uma orientação a respeito de quando a aceitação de uma teoria científica é racional e
quando é irracional” e esperava que isso nos ajudasse a “criar leis para lutar contra ... a poluição
intelectual”. Lakatos recorria a sua teoria da ciência para defender os físicos contemporâneos e
criticar o materialismo histórico e alguns aspectos da sociologia contemporânea, expressando o
caráter universal que atribuía à ciência, embora seu caráter a-histórico esteja evidente no uso que ele
fez para defender o caráter científico da revolução copernicana e também da einsteiniana. Alan
Musgrave (1974, p. 560) considera a solução de Popper para o relativismo “uma insistência em
padrões objetivos absolutos”. O próprio Popper (1972, p. 39; 1961, seção 29) buscava demarcar o
limite entre a ciência e a não-ciência em termos de um método que ele considerava característico de
todas as ciências, inclusive as sociais.
Não é incomum encontrarem-se os próprios cientistas em atividade expressando a idéia de
que uma explicação universal do método científico poderia ou deveria ser usada para defender ou
ajudar a aperfeiçoar a ciência. Assim, dois físicos contemporâneos (Theocharis e Psimopoulos,
1987) insistem em que a prática e a defesa da ciência deveriam exigir uma definição mais razoável
do método científico e deploram o quanto os cientistas em exercício ignoram essa definição.
Chegam mesmo a atribuir a essa ignorância o que consideram ser a doença atual da ciência. Outros
cientistas tentaram analisar as controvérsias contemporâneas a respeito dos sistemas satisfatórios de
classificação biológica voltando-se para uma “estrutura filosófica dos critérios de teorias e
metodologias científicas” (Bock, 1973, p. 381) e considerando o problema relativo à “natureza da
ciência” (Gaffney, 1 979, p. 80).
Até que ponto é amplo e profundo o sentimento de que uma defesa da ciência deve seguir a
estratégia positivista evidencia-se a partir da reação típica dos filósofos e sociólogos da ciência que
negaram a existência de algo como uma explicação universal e a-histórica do método e padrões
científicos capazes de orientar o trabalho dos cientistas ou de avaliar o mérito da ciência que estes
produzem. Essa reação parece motivada pelo pressuposto de que o abandono da noção de um
método ou conjunto de padrões universais necessariamente encerra um ceticismo radical em relação
à ciência, segundo o qual nenhuma teoria científica pode ser considerada melhor do que qualquer
outra; a ciência epistemologicamente equivale à astrologia ou ao vodu, e a avaliação das teorias
científicas é questão de opinião ou gosto, atitude resumida pelo slogan utilizado por Feyerahend
(1975, p. 28) para caracterizar sua teoria “anarquista” da ciência: “vale tudo”. Theocharis e
Psimopoulos (1987, p. 597) estão tão convencidos de que uma defesa da ciência exige recorrência a
uma explicação filosófica do método científico que parecem deixar implícito que deveriam ser
obstados aqueles que, como eu mesmo, insinuam outra coisa aos estudantes:
Podemos nos perguntar como é que muitas universidades pelo mundo afora proporcionam
a seus estudantes dc ciência cursos formais compulsórios sobre os rigores do método científico.
Em relação às universidades que proporcionam cursos optativos sobre as tendências atuais na
filosofia da ciência, será que seus corpos dirigentes têm consciência do fato de que muitos
professores desses cursos inclinam-se a sabotar o método científico?
No próximo capítulo, exponho meu argumento contra a estratégia positivista, que considero
bastante equivocada para os que desejam defender a ciência. Em capítulos subseqüentes, mostro por
que a rejeição do método universal não tem conseqüências que possam causar quaisquer
preocupações aos corpos dirigentes das universidades.
1.3 Métodos e padrões historicamente contingentes
Digo que a reação comum de horror em relação ao abandono de um método ou conjunto de
padrões a-históricos, que vê a mudança como um abandono total da racionalidade, resulta de uma
falha na distinção entre a rejeição do método ou conjunto de padrões universais e imutáveis, por um
lado, que defendo, e a rejeição de todo método e padrão, por outro, a que resisto. Como já disse em
outro texto (Chalmers, 1986, p. 26): “Não existe nenhum método universal. Não existe nenhum
padrão universal. Contudo, existem padrões a-históricos contingentes implícitos nas atividades

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bem-sucedidas. Isso não significa um vale tudo em questões epistemológicas”. Não são apenas
aqueles que adotam a estratégia positivista que deixam de fazer a distinção entre os métodos e
padrões universais absolutos e os métodos e padrões contingentes sujeitos à mudança. Feyerabend
(1975, p. 285), da mesma forma, não discrimina quando, depois de minar as explicações ortodoxas
do método científico, conclui que “o restante são opiniões estéticas, opiniões de gosto, preconceitos
metafísicos, ânsias religiosas, em resumo: o que resta são nossos anseios subjetivos”.
Recorrendo-se aos padrões contingentes, idéia que defendo, será possível bloquear o caminho
para um tipo de relativismo cético às vezes apoiado por Feyerabend e por alguns dos sociólogos da
ciência, que discutiremos mais adiante neste livro? O fato de que uma resposta afirmativa não é
uma resposta direta evidencia-se na reação comum desses que adotam a estratégia positivista para
posturas como a minha. Isso foi levantado, por exemplo, por Barry Gower (1988) em sua crítica a
algumas de minhas idéias publicadas anteriormente. Se há padrões implícitos nas atividades bem-
sucedidas, como sustento, como essas atividades podem ser avaliadas de fora? Mais
especificamente: se a física aristotélica incorporasse padrões aristotélicos e a física de Galileu
incorporasse padrões galileanos, como poderíamos estar em posição de dizer que a física de Galileu
é superior à aristotélica, como desejariam os defensores da ciência? Quando se adotam padrões
aristotélicos, a física de Aristóteles é superior, ao passo que, adotando-se os padrões galileanos, o
julgamento é invertido, Tout comprendre, c´est tout pardonner (Compreender tudo é tudo perdoar),
resume Gower (1 988, p. 59). Para dizer que a física de Galileu é um avanço em relação à física
aristotélica não precisaríamos de algum superpadrão aplicável a ambas? Isto não nos leva de volta à
necessidade de um método universal? Da mesma forma, meus oponentes podem observar que
existem métodos e padrões inerentes na astrologia ou na parapsicologia e chegar à conclusão de que
a minha postura não deixa espaço para a crítica dessas atividades, já que eu me nego a recorrer aos
padrões universais para avaliar os métodos e padrões implícitos em quaisquer atividades, por mais
distanciadas que estejam de qualquer ciência ortodoxa. Acompanhando essa linha da argumentação,
os defensores da estratégia positivista podem dizer que não há meio caminho como esse a que aludi
para falar de padrões contingentes implícitos nas atividades bem-sucedidas. Em relação à noção de
sucesso aqui mencionada, meus críticos podem insistir, como Gower, que uso essa idéia
gratuitamente, a menos que eu tenha alguma caracterização universal do sucesso. Não há meio
caminho, como aparentemente insinua essa linha de argumentação. Ou temos padrões absolutos
específicos para uma explicação universal da ciência ou temos o relativismo cético, e a opção entre
a teoria evolucionária e a ciência da criação torna-se uma questão de gosto ou de fé.
A tentativa que faço neste livro de apreender o campo entre o método universal e o
relativismo cético continua mais ou menos da seguinte forma. De modo bastante pragmático, e de
olho no que a ciência física já conseguiu realizar, tento especificar qual é a meta da ciência. A meta
da física é estabelecer teorias e leis extremamente gerais e aplicáveis ao inundo. O quanto essas leis
e teorias são realmente aplicáveis ao mundo deve ser determinado no confronto entre elas e o
mundo, da maneira mais rigorosa possível, segundo as técnicas habituais existentes. Além do mais,
compreende-se que a generalidade e o grau de aplicabilidade de leis e teorias estão sujeitos a um
constante aperfeiçoamento. Tendo assim especificado a meta da ciência, depois de havê-la
elaborado e ilustrado com exemplos, para torná-la um pouco menos inócua, e depois de argumentar
que esta é uma meta não-utópica muitas vezes satisfeita na ciência, estou em posição de avaliar
métodos e padrões com base no ponto de vista a que eles atendem. Como a meta da ciência
certamente terá de ser avaliada em relação a outros objetivos e outros interesses, uma vez adotada
essa meta, a extensão alcançada pelos diversos métodos e padrões não é uma questão de opinião
subjetiva, mas de fato objetivo a ser determinado de maneira prática.
Os defensores da estratégia positivista normalmente se apresentam como defensores da
ciência e da racionalidade, e seus opositores, como inimigos da ciência e da racionalidade. Neste
ponto, estão enganados. Ao adotar uma estratégia em defesa da ciência condenada à falha, estão
servindo de joguete nas mãos do movimento contra a ciência, que tanto temem, e tornam o trabalho
de Paul Feyerabend fácil demais. H. M. Collins (1983, p. 99-101), um sociólogo da ciência de quem

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discordo em uma série de oportunidades neste livro, expressa de modo admirável o que tento
demonstrar:
Enquanto a autoridade científica é legitimada em relação a filosofias insatisfatórias da
ciência, é fácil para os leigos desafiar essa autoridade. É muito simples mostrar que a atividade
científica em qualquer caso particular não está de acordo com os cânones das filosofias que a
legitimam. Estão se cumprindo os temores daqueles que fazem objeção ao relativismo com base
em suas conseqüências anárquicas, não como resultado do relativismo, mas como resultante de
uma confiança exageradamente prolongada nas mesmas filosofias que se supõe cercarem a
autoridade científica. Esta cerca parece ser feita de palha. Se novas cercas tiverem de ser
construídas, elas deverão ter sua base na atividade científica.
Gosto de pensar que a defesa da ciência que ofereço neste livro é superior às defesas no estilo
positivista, porque é sustentável e porque deixa claro o terreno em que a ciência deve ser defendida.
1.4 A crítica da pseudociência
Neste livro procuro retratar a física como um empreendimento objetivo e progressivo. A
maneira como elaboro minha argumentação exige um exame minucioso do que a física já realizou e
de como isto foi realizado. Particularmente, a minha formulação da meta da ciência chegou a uma
configuração bastante pragmática, servindo aos tipos de leis e teorias estabelecidas pelo
desenvolvimento de métodos satisfatórios na física. Como a minha argumentação assume essa
forma, há limites necessários que determinam até que ponto minha análise pode servir de base para
criticar áreas do conhecimento estranhas à física. Se alguma área do conhecimento, como a
psicologia freudiana ou o materialismo histórico de Marx (para tomarmos dois dos alvos favoritos
dos filósofos da ciência), tivesse de receber uma crítica fundamentada no fato de não se ajustar à
minha caracterização da física, isso implicaria que todo conhecimento autêntico deve adaptar-se aos
métodos e padrões da física. Não me sinto preparado para esta pressuposição e penso que seria
muito difícil defendê-la.
À luz de minha análise, um tipo de crítica possível é contestar pretensos conhecimentos
apresentados como se fossem científicos no mesmo sentido da física, talvez porque pretendam ter
sido construídos de acordo com métodos similares aos da física e, conseqüentemente, apresentados
como se tivessem um estatuto epistemológico semelhante ao desta ciência. Se o criacionismo, a
parapsicologia, a eugenia ou o que Marian Keech diz a respeito dos seres extraterrestres (Collins e
Cox, 1976) são defendidos por serem considerados científicos no mesmo sentido em que a física é
científica, acredito que as ponderações apresentadas neste livro indiquem como se pode repudiar
esse tipo de pretensão.
Quando nos voltamos para campos como o da teoria ou história social, dos quais
plausivelmente se pode afirmar terem objetivos um pouco diferentes e, analogamente, métodos e
padrões também diferentes da física, minha explicação da ciência não tem muito a oferecer, nem
pretende ter muito a oferecer em relação à maneira como as teorias nesses campos poderiam ser
avaliadas. No máximo, minha análise e defesa da física podem ser tomadas como indicação do
modo de proceder em outros casos, ou seja, na tentativa de identificar as metas implicadas, as
práticas desenvolvidas para corresponder a essas metas e o grau de sucesso obtido.
Na penúltima seção de What is this thing called science?, resumi minha atitude em relação a
essas questões da seguinte maneira:
Como agora está claro, acredito que não existe nenhuma concepção atemporal e universal
da ciência e do método científico que possa atender objetivo de avaliar todas as pretensões de
conhecimento. Não temos os recursos para chegar a isso e para defender essas idéias. Não
podemos defender ou rejeitar com legitimidade pontos do conhecimento porque eles se ajustem
ou não a determinados critérios já prontos da cientificidade. A coisa é bem mais séria do que
isso. Se, por exemplo, desejamos assumir uma postura esclarecida sobre determinada versão do
marxismo, teremos de investigar quais são esses objetivos, quais os métodos empregados para

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chegar a eles, até que ponto eles foram atingidos e quais as forças ou fatores que determinam seu
desenvolvimento. Estaríamos então em posição de avaliar a versão do marxismo em termos da
conveniência daquilo a que almeja, do quanto seus métodos permitem que essas metas sejam
atingidas e dos interesses a que atende. (Chalmers, 1982, p. 169)
Espero que a discussão exposta nos próximos capítulos venha a esclarecer e desenvolver mais
o conteúdo dessas observações e possa mostrar por que não sinto nenhuma necessidade de voltar a
elas.

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