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MAX HORKHEIMER – A FUNÇÃO SOCIAL DA FILOSOFIA (1940)

(272) Quando em uma conversa aparecem os conceitos de física, química,


medicina ou história, os participantes, em geral, associam com eles algo muito
concreto. Se chega a surgir uma divergência de opiniões, podem consultar um
dicionário ou algum dos manuais correntes, ou recorrer a um especialista mais ou
menos destacado na matéria em questão. A definição de cada uma dessas ciências
se deduz de sua posição na sociedade atual. Mesmo que elas possam no futuro
fazer grandes progressos, ainda que seja previsível que, por exemplo, a física e a
química cheguem a se fundir algum dia, todavia, ninguém se interessa realmente
por definir esses conceitos de outro modo que não seja relacionando-os com as
atividades científicas que neste momento se enquadram em tais denominações.

Com a filosofia não ocorre o mesmo. Suponhamos que perguntássemos a


um professor de filosofia o que é a filosofia. Se tivermos sorte e nos depararmos
por acaso com um especialista que não recuse por princípio as definições, ele nos
dará alguma. Mas se aceitarmos essa definição, logo comprovaremos,
presumivelmente, que não é, de modo algum, a que se reconhece em geral e em
todas as partes. Então poderíamos nos dirigir a outras autoridades ou ler manuais
modernos e antigos. Isso só aumentaria a nossa confusão. Muitos pensadores,
entre os quais Platão e Kant que são considerados autoridades, veem a filosofia
como uma ciência exata que possui um critério de verdade próprio, um campo de
investigação e um objeto específicos. Esta concepção esteve representada em
nosso tempo principalmente por Edmund Husserl em seu último período. Outros
pensadores, como Ernst Mach, entendem a filosofia como continuação e síntese
das ciências especiais com vistas à formação de um todo unitário. Também
Bertrand Russel considera que a tarefa da filosofia seria “a análise lógica seguida da
síntese lógica”. 1 Neste caso coincide inteiramente (273) com a de L. T. Hobhouse,
2
segundo o qual “a filosofia tem como meta (...) uma síntese das ciências” Esta
concepção remonta a Auguste Comte e Herbert Spencer: para estes, é a totalidade
do saber humano. Daí que, posteriormente, ela fosse ciência independente para
alguns e disciplina auxiliar para outros.


Traduzido do espanhol Max HORKHEIMER. “La función social de la filosofía”. In:________. Teoría
Crítica. Trad. do alemão por Edgardo Albizu e Carlos Luis. Buenos Aires: Amorrortu, 1990, p.272-288.
Tradução do espanhol para o português por Rafael Cordeiro Silva.
1
B. RUSSEL. Logical atomism. In: MUIRHEAD, J. H. (ed.) Contemporary British Philosophy, v.1, p.379.
2
L. T. HOBHOUSE. The philosophy of development. In: ibid., p.152.

1
Se bem que a maioria dos autores de obras filosóficas acentue o caráter
científico da filosofia, há também alguns – e não precisamente os piores – que
puseram isso em dúvida com um ímpeto particular. Para Schiller, cujos ensaios
filosóficos tiveram talvez maior influência que seus dramas, o fim da filosofia
consistia em introduzir uma ordem estética em nossos pensamentos e ações. Seus
resultados deveriam ser medidos apenas segundo o critério da beleza. Outros
poetas como Hölderlin e Novalis, representaram posições similares, e ainda
filósofos puros, como Schelling, por exemplo, se aproximaram em muitas de suas
afirmações à posição sustentada por aqueles. Também Henri Bergson insiste em
que a filosofia se acharia estritamente relacionada com a arte e, em todo caso, não
seria uma ciência.

Todavia, isto não é tudo. Não só quanto ao caráter geral da filosofia as


opiniões se afastam umas das outras; também com respeito a seu conteúdo
encontramos as opiniões mais diversas. Todavia, há, por exemplo, alguns
pensadores para quem a filosofia teria a ver com os conceitos e leis supremas do
ser: em última instância, com o conhecimento de Deus. É o caso das escolas
aristotélicas e neotomistas. Na sequência está a concepção, relacionada àquela,
segundo a qual a filosofia se ocuparia do assim chamado a priori. Alexander a
descreve como “o estudo empírico do não empírico ou a priori, e daqueles
problemas que derivam da relação do empírico com o a priori” (espaço, tempo e
divindade). 3 Outros autores, que descendem dos sensualistas ingleses e da Escola
de Fries e Apelt, consideram a filosofia como a ciência da experiência interior.
Segundo os positivistas lógicos, como Carnap, ela se ocupa essencialmente de
problemas linguísticos; para Windelband e Rickert – cuja escola tem muitos
adeptos também nos Estados Unidos – se consagra a valores universais,
principalmente a verdade, a beleza, o bem, o sagrado.

Por último, tampouco existe uma concepção unitária sobre o método. Os


neokantianos creem que a atividade filosófica (274) deveria consistir na análise de
conceitos e em sua redução aos elementos últimos do conhecimento. Bergson e
Max Scheller consideram a “intuição de essências” como o ato filosófico decisivo. O
método fenomenológico de Husserl e Heidegger é a antítese do empiriocriticismo
de Mach e Avenarius, e a lógica de Russel, Whitehead e seus discípulos, o inimigo

3
S. ALEXANDER. Space, time and deity. Londres, 1920, v.1, p.4.

2
declarado da dialética hegeliana. O modo de filosofar depende, para William
James, do caráter e da experiência de quem filosofa.

Mencionamos todas essas definições para demonstrar que a situação na


filosofia difere das demais atividades intelectuais. Por mais que nelas existam
muitos pontos de controvérsia, admite-se uma orientação geral. Os principais
representantes de cada ciência estão mais ou menos de acordo quanto ao objeto e
ao método. Em filosofia, ao contrário, a refutação de uma escola por outra implica
geralmente sua recusa total, a negação de suas teorias fundamentais como
radicalmente falsas. Esta atitude, certamente, não é compartilhada por todas as
escolas. Uma filosofia dialética, por exemplo, que seja fiel a seus princípios, tenderá
a conservar a verdade relativa dos diferentes pontos de vista e a integrá-los à sua
própria teoria, mais abrangente. Outras correntes, como o positivismo moderno,
são menos elásticas e simplesmente excluem do campo do conhecimento grande
parte da literatura filosófica, em especial os grandes sistemas do passado. Em
suma, podemos considerar como fato demonstrado que quem utiliza a expressão
“filosofia” divide com seu público muito pouco mais que uma ideia vaga.

As ciências particulares abordam problemas que devem ser tratados porque


surgem do processo vital da sociedade em um momento dado. Tanto os problemas
isolados como sua adjudicação a disciplinas específicas derivam, em última
instância, de necessidades da humanidade em suas formas de organização
passadas e presentes. Isto não significa que cada investigação científica satisfaça
uma necessidade urgente. Muitos trabalhos científicos levaram a resultados dos
quais a humanidade poderia muito bem prescindir. A ciência não constitui
nenhuma exceção quanto ao mal uso de energias que se observa em todos os
domínios da cultura. Mas também é certo que o desenvolvimento daquelas
disciplinas cujo valor para o presente imediato é duvidoso forma parte desse
direito de trabalho humano que é uma das condições necessárias do progresso
científico e tecnológico. Recordemos que certos ramos da matemática, que
inicialmente pareciam meras brincadeiras, mais (275) tarde resultaram sumamente
úteis. De modo que, ainda que haja tarefas científicas que não conduzam a uma
utilidade imediata, todas elas possuem um potencial de aplicabilidade, por distante
e indeterminada que pareça neste momento. Por sua essência, o trabalho científico
está em condições de enriquecer a vida em sua forma atual. Por isso sua atividade
está, em grande medida, pré-indicada, e as tentativas de modificar os limites entre

3
os distintos campos da ciência, de desenvolver novas disciplinas, de diferenciá-las
constantemente assim como de unificá-las, estão sempre determinados,
consciente ou inconscientemente, pelas necessidades sociais. Estas necessidades
influem também, ainda que de forma indireta, nos institutos e aulas universitários,
para não falar dos laboratórios químicos e dos departamentos de estatística das
grandes empresas industriais e das clínicas médicas.

A filosofia carece de tais guias. É certo que nela se depositam grandes


esperanças: se lhe pedem que encontre soluções para os problemas que as ciências
não tratam de maneira alguma ou tratam de modo insatisfatório. Mas a práxis
social não oferece nenhuma pauta para a filosofia: esta não pode conduzir a êxitos
de nenhuma espécie. O que os filósofos isolados podem eventualmente oferecer a
este respeito se reduz a resultados que não são especificamente filosóficos.
Pensemos, por exemplo, nas descobertas matemáticas de Descartes e Leibniz, nas
investigações psicológicas de Hume, nas teorias físicas de Ernst Mach. Os inimigos
da filosofia dizem, por sua vez, que no caso de ter ela um valor, já não seria
filosofia, mas ciência positiva. Todo o restante de seus sistemas seria só
palavreado; o que estes sistemas sustentam seria interessante algumas vezes, mas
em geral aborrecido e em todos os casos inútil. Os filósofos, por sua vez, mostram
uma pertinaz indiferença frente ao juízo do mundo exterior. Desde o processo de
Sócrates, é evidente que mantêm uma relação tensa com a realidade tal qual ela é,
especialmente com a comunidade em que vivem. Essa tensão assume às vezes a
forma de uma perseguição aberta; em outras ocasiões se manifesta, simplesmente,
em que sua linguagem não é compreendida. Se veem obrigados a viver em
segredo, seja física ou intelectualmente. Também os cientistas entraram às vezes
em conflito com a sociedade de seu tempo. Mas aqui devemos retornar à
mencionada diferença entre elementos filosóficos e elementos científicos e
inverter os termos: as causas da perseguição residiam nas concepções filosóficas
destes pensadores, não em suas teorias científicas. Inimigos implacáveis de Galileu,
entre os jesuítas, aceitavam que lhe (276) fosse permitido expor publicamente sua
teoria heliocêntrica no caso de que ele a incluísse no contexto filosófico e teológico
adequado. Ademais, Alberto Magno já havia tratado esta teoria em sua Summa,
sem que fosse perseguido por causa disso. Por outro lado, o conflito entre
cientistas e sociedade, pelo menos na Idade Moderna, não está referido a
conceitos fundamentais, mas a doutrinas isoladas, que em tal momento e em tal

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país não são toleradas por esta ou aquela autoridade, mas que em outro país, na
mesma época ou pouco depois, são admitidas e ainda celebradas.

A resistência da filosofia frente à realidade deriva de seus princípios


imanentes. A filosofia insiste em que as ações e os fins do homem não devem ser
produto de uma cega necessidade. Nem os conceitos científicos nem a forma da
vida social, nem o modo de pensar dominante nem os costumes prevalecentes
devem ser adotados como hábito e praticados sem crítica. O impulso da filosofia se
dirige contra a mera tradição e a resignação nas questões decisivas da existência;
ela empreendeu a ingrata tarefa de jogar a luz da consciência ainda sobre aquelas
relações e modos de reação humanos tão arraigados que parecem naturais,
invariáveis e eternos. Poder-se-ia argumentar que também a ciência, com seus
inventos e transformações tecnológicas, preserva a humanidade de se petrificar
dentro das vias convencionais prescritas pelos costumes. Se compararmos nossa
vida atual com a de trinta, cinquenta ou cem anos, poderemos verdadeiramente
afirmar que a ciência abalou os costumes e hábitos humanos. Não só a indústria e
os meios de transporte foram racionalizados; também o foi a arte. Um só exemplo
pode ser suficiente. Em épocas anteriores, um autor dramático elaborara
artisticamente os problemas humanos que o comoviam e só o fazia a seu modo, no
isolamento de sua vida privada. Se a obra chegava logo ao público, ele submetia
com isso seu mundo de ideias a uma confrontação com a realidade, contribuindo
assim para seu próprio desenvolvimento espiritual e da comunidade. Hoje a
produção das obras de arte, assim como sua recepção por meio do filme e do
rádio, está racionalizada em grande medida. Para a produção de um filme se
contrata toda uma equipe de experts e, desde o princípio, a meta não é a harmonia
com alguma ideia, mas com as opiniões do grande público, com o gosto da massa,
que foi primeiro cuidadosamente estudado e planejado por estes experts. Se um
produto artístico entra eventualmente em contradição com a opinião pública, isso
não se deve, em geral, a uma oposição (277) interna, essencial, como o
estabelecido, mas a uma estimativa inexata da reação do público e da imprensa por
parte dos produtores. Uma coisa é certa: nenhum domínio da indústria, seja
material ou intelectual, alcança hoje um estado de completa estabilidade; os usos,
os costumes não têm tempo de se sedimentar. Os fundamentos da sociedade atual
mudam constantemente pela intervenção da ciência. Dificilmente haverá alguma
atividade na economia ou na administração que não seja constantemente
simplificada e aperfeiçoada.
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Todavia, por trás de uma visão mais profunda se descobre que, apesar de
todos esses fenômenos, o modo de pensar e atuar dos homens não progrediu
tanto como se pôde crer. Pelo contrário, suas ações transcorrem, ao menos em
uma grande parte do mundo, muito mais mecanicamente que em outros tempos,
quando se achavam motivadas por uma consciência vivente ditada pela convicção.
O progresso tecnológico contribuiu, inclusive, para cimentar com mais firmeza
velhas ilusões e para produzir outras novas, sem que a razão pudesse fazer algo
contra isso. Precisamente a difusão e a industrialização das instituições culturais
fizeram que fatores significativos do amadurecimento intelectual não evoluíssem
ou desaparecessem totalmente. Isso pode residir na superficialidade dos
conteúdos, na debilidade dos órgãos intelectuais ou no fato de que algumas
faculdades criadoras do homem relacionadas com o indivíduo estejam a ponto de
desaparecer. A dupla entrada triunfal da ciência e da técnica foi assinalada
repetidas vezes nas últimas décadas por pensadores tanto românticos quanto
progressistas. Não faz muito tempo Paul Valéry descreveu essa situação com
notável eloquência. Conta como, sendo criança, foi levado ao teatro para ver a
encenação de um conto infantil. No conto, um menino era perseguido por um
gênio mal que empregava toda espécie de ardis diabólicos para assustá-lo e
capturá-lo. Esta noite, enquanto estava deitado, o gênio maligno se aproximou do
próprio Valéry, rodeado de chamas infernais e demônios; de imediato a habitação
pareceu transformar-se em um oceano e os lençóis em uma vela. Mal desaparecia
um fantasma e já aparecia outro. Mas finalmente os terrores perderam sua eficácia
na criança, e quando pareceu que recomeçavam, ele exclamou: “Voilà lês bêtisse
que recommencent!” (“eis que já retornam as bobagens!”). Um belo dia, conclui
Valéry, a humanidade poderá reagir do mesmo modo ante os descobrimentos da
ciência e as maravilhas da técnica.

Nem todos os filósofos compartilham – nem nós – a concepção pessimista


de Valéry acerca do progresso científico. (278) Mas deve-se admitir que nem os
resultados da ciência em si mesma nem o aperfeiçoamento dos métodos
industriais se identificam diretamente com o verdadeiro progresso da humanidade.
É notório que os homens, em que pesem o avanço da ciência e da técnica,
empobrecem material, emocional e espiritualmente. Ciência e técnica são só
elementos de uma totalidade social, e é muito possível que, apesar dos avanços
daquelas, outros fatores, até a totalidade mesma não evolua; que os homens
decaiam cada vez mais e se tornem infelizes; que o indivíduo como tal seja anulado
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e que as nações marchem para seu infortúnio. Temos a sorte de viver em um país
que se expandiu até alargar meio continente as fronteiras nacionais que poderiam
dar motivo para uma guerra.  Mas na Europa, enquanto os meios de comunicação
se tornavam mais rápidos e melhores, se encurtavam as distâncias e as formas de
vida se tornavam cada vez mais semelhantes, as barreiras aduaneiras não fizeram
mais que aumentar, as nações se armaram febrilmente, e as relações exteriores,
assim como a situação interna de cada país, foram se aproximando de um modo
cada vez mais claro a um estado de guerra, até que ela terminou por produzir-se.
Esta situação antagônica se impõe também em outras partes do mundo, e ninguém
sabe se o resto do planeta estará em condições de manter-se à margem de suas
mais graves consequências, nem por quanto tempo o estará. O racionalismo
individual pode ir acompanhado de um completo irracionalismo geral. Os atos de
indivíduos que, na vida diária, passam com toda justiça por racionais e úteis,
podem resultar prejudiciais e até destrutivos para a sociedade. Por isso, em
períodos como o atual, é preciso recordar que a melhor vontade para realizar algo
útil pode ter como consequência o contrário; simplesmente porque essa vontade
pode ser cega, frente ao que rebaixa os limites de sua especialidade ou de sua
profissão, porque ela se encontra no mais próximo e desconhece a verdadeira
essência daquilo que só pode ser esclarecido em uma conexão mais ampla. O “eles
não sabem o que fazem” do Novo Testamento se refere somente a malfeitores. Se
é que as palavras não hão de aplicar-se a toda humanidade, então não está
permitido ao pensar constranger as ciências especializadas ou a aprendizagem
prática de um ofício: a esse pensar que tenta esclarecer os supostos tanto materiais
quanto intelectuais que habitualmente são aceitos sem discussão alguma, e que
imprime fins humanos a todas (279) aquelas relações cotidianas que são realizadas
e justificadas quase cegamente.

Quando se disse que a tensão entre a filosofia e a realidade é fundamental,


não comparável às dificuldades ocasionais que deve afrontar a ciência na vida da
sociedade, isso se referia à tendência, inerente à filosofia, a não deixar que o
pensamento se interrompa em nenhuma parte e a submeter a um controle
especial todos aqueles fatores da vida que, de modo comum, são tidos por forças
fixas, incontrastáveis, ou por leis eternas. Precisamente com isto teve a ver o
processo de Sócrates. À exigência de submeter-se aos costumes sancionados pelos


O autor redigiu este trabalho nos Estados Unidos (N. T.)

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deuses e de adaptar-se incondicionalmente a um modo de vida herdado pela
tradição, ele opôs que o homem deve analisar suas ações e configurar ele mesmo
seu destino. Seu Deus habitava nele, ou seja, em sua razão e em sua vontade. Hoje
a filosofia já não discute acerca dos deuses, mas a situação do mundo não é menos
crítica. Nós a aceitaríamos se estivéssemos dispostos a afirmar que razão e
realidade estão reconciliadas e a autonomia do homem na sociedade atual
estivesse assegurada. A filosofia se vê impossibilitada para isso; não perdeu nada
de sua relevância originária.

Por esta razão se colocam discussões na filosofia e, se elas se referem a seu


conceito, são muito mais radicais e irreconciliáveis que nas ciências. A filosofia, em
oposição a outras disciplinas, não tem um campo de atividade fixamente
delimitado dentro do ordenamento existente. Este ordenamento de vida, com sua
hierarquia de valores, constitui um problema em si mesmo para a filosofia. Se a
ciência pode ainda ser acudida por dados estabelecidos que lhe assinalam o
caminho, a filosofia, em contrapartida, deve sempre confiar em si mesma, em sua
própria atividade teórica. A determinação de seu objeto forma parte de seu
programa em medida muito maior que no caso das ciências especiais, ainda hoje,
quando estas se encontram tão concentradas em problemas de teoria
metodológica. O que já foi exposto explica por que a filosofia encontrou muito mais
eco na vida européia do que nos Estados Unidos. A expansão geográfica e o
desenvolvimento histórico fizeram que determinados conflitos sociais, que na
Europa eram gerados pelas condições objetivas e estavam firmemente implantados
nelas, nos Estados Unidos, onde urgia ocupar a terra e cumprir as tarefas
cotidianas, alcançassem ínfima importância. Os problemas básicos da vida foram
solucionados de maneira prática e as tensões que alimentam o pensamento teórico
em determinadas situações históricas não cobraram tanta significação. Nos Estados
Unidos, o pensamento teórico ficou muito atrasado com respeito à comprovação e
acumulação de fatos. Se esta classe de atividade satisfaz as exigências que também
ali se colocam ao conhecimento, isso é um problema não tratado aqui.

(280) As definições de muitos autores modernos, das quais citamos


algumas, não conseguem desentranhar aquilo que é característico da filosofia
quanto à diferença de todas as ciências particulares. Daí que não poucos filósofos
olhem com inveja seus colegas de outras faculdades, os quais se encontram em
uma situação muito melhor, pois têm um campo de trabalho delimitado de

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maneira precisa e cuja utilidade social é indiscutível. Estes autores se esforçam por
“vender” a filosofia como uma classe especial de ciência ou, ao menos, por
demonstrar que ela é muito útil às ciências especiais. Desta forma, a filosofia já não
é a crítica, mas a servidora da ciência e da sociedade em geral. Semelhante ponto
de vista adere à tese de que seria impossível um pensar que transcendesse as
formas dominantes da atividade científica e, com isso, o horizonte da sociedade
atual. O pensar deveria, antes ao contrário, aceitar modestamente as tarefas que
lhe colocam as necessidades, sempre renovadas, da administração e da indústria, e
cumprir essas tarefas de uma maneira geralmente admitida. Se estas tarefas, por
sua forma e conteúdos, são úteis à humanidade no momento histórico atual, ou se
a organização social que as engendra é adequada para o homem, eis aí perguntas
que, aos olhos destes filósofos, não são científicas, mas assunto de decisão pessoal,
de valoração subjetiva; estão subordinadas ao gosto e ao temperamento do
indivíduo. A única posição filosófica que se pode reconhecer nessa atitude é a
concepção negativa de que não há uma verdadeira filosofia, de que o pensamento
sistemático, em momentos decisivos da vida, deve retirar-se para um segundo
plano; em uma palavra: o ceticismo e o niilismo filosóficos. Antes de continuar, é
necessário opor o modo de conceber a função social da filosofia, exposto aqui, a
outra concepção, representada por diferentes ramos da sociologia moderna, que
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identifica a filosofia com uma função social geral, a saber: a ideologia. Esta
posição sustenta que o pensar filosófico, ou melhor dito, o pensar como tal, seria
simples expressão de uma situação social específica. Cada grupo social, (281) os
Junker**alemães, por exemplo, desenvolveria um aparato conceitual de acordo
com sua situação, assim como determinados métodos e estilos de pensar. A vida
dos Junker estivera ligada, durante séculos, a uma regulamentação específica da
herança; suas relações com as dinastias de reis dos quais dependiam, e com seus
súditos, haviam apresentado traços patriarcais. Em consequência, todo seu pensar
se moveria dentro das formas da sucessão geracional orgânica e ordenada do
crescimento biológico. Tudo apareceria sob a forma dos organismos e vínculos
naturais. A burguesia liberal, em contrapartida, de cuja sorte ou desgraça depende
seu êxito nos negócios, e que aprendeu por experiência que tudo deve ser reduzido
ao comum denominador do dinheiro, havia desenvolvido uma forma de pensar
muito mais abstrata e mecanicista. Sua filosofia e seu estilo intelectual se
4
Cf. Karl Mannheim. Ideologie und Utopie. Bonn: 1929.
**
Membros da nobreza constituída por grandes proprietários de terras nos estados alemães
anteriores e durante o Segundo Reich (1871-1918). (N. T. brasileiro)

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caracterizariam por suas tendências não hierárquicas, mas niveladoras. O mesmo
poderia se dizer de outros grupos, tanto anteriores como atuais. Assim dever-se-ia
perguntar à filosofia de Descartes, por exemplo, se seus conceitos correspondem
***
aos dos grupos aristocráticos ou jesuíticos da corte, à noblesse de robe , ou aos
da baixa burguesia ou da massa. Qualquer esquema de pensamento, qualquer
atividade filosófica ou cultural em geral pertenceriam a um grupo social específico,
do qual proviriam e a cuja existência estariam fortemente ligados. Todo sistema de
pensamento seria “ideologia”.

Esta concepção é, sem dúvida, até certo grau, correta. Muitas das ideias
hoje difundidas resultariam simples ilusões se fossem analisadas do ponto de vista
de sua base social. Mas não basta relacioná-las a qualquer grupo social, como faz
essa escola sociológica. Deve-se aprofundar mais e desenvolvê-la a partir do
processo histórico no qual esses mesmos grupos sociais encontram explicação.
Tomemos um exemplo. Na filosofia cartesiana, a forma de pensar mecanicista,
especialmente a matemática, tem significativa importância. Caberia inclusive
afirmar que toda filosofia é só uma generalização do pensamento matemático.
Poderíamos, é certo, tratar de encontrar um grupo da sociedade que possuísse um
caráter correspondente a este modo de pensar, e possivelmente na época de
Descartes encontraríamos algum. Mas mais complexo, ainda que mais adequado,
seria investigar o sistema de produção de então e mostrar como a um membro da
burguesia ascendente, justamente por sua atividade no comércio e na manufatura,
lhe era necessário calcular de modo exato se quisesse assegurar e estender seu
poder no mercado competitivo (282) que acabava de surgir. O mesmo se pode
dizer daqueles que, na ciência e na técnica, eram, por assim dizer, seus agentes e
cujos inventos e demais trabalhos científicos revestiram de importância na
nascente luta entre indivíduos, cidades e nações que caracterizou a época
moderna. Para todos estes sujeitos, era natural que contemplassem o mundo sob
um aspecto matemático. E posto que sua classe, no transcurso do desenvolvimento
social, chegou a ser característica de toda a sociedade, esta forma de ver se
difundiu muito mais além dos limites da burguesia. A sociologia segue sendo
insuficiente. Necessitamos de uma teoria geral da história. Do contrário, corremos
o perigo de relacionar filosofemas significativos com grupos insignificantes ou, em
todo o caso, não decisivos, ou de interpretar mal a importância de um grupo

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Na França, sob o Antigo Regime, a noblesse de robe reunia todos os nobres que ocupavam funções de
governo, principalmente na justiça e nas finanças. (N.T. brasileiro)

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específico no todo da sociedade, e com isso a relação cultural dada. Mas esta não é
ainda a objeção mais importante. A aplicação estereotipada do conceito de
ideologia a toda estrutura de pensamento se baseia, em última instância, na ideia
de que não existe uma verdade filosófica e, portanto, nenhuma verdade para a
humanidade, de que todo pensar está “ligado ao ser”. Com relação a seus métodos
e a seus resultados, cada estrutura de pensamento pertenceria, pois, a uma classe
específica e teria validez somente para essa classe. Uma atitude semelhante frente
às ideias filosóficas não inclui, por exemplo, sua prova objetiva; tampouco se
pergunta por sua aplicabilidade prática, mas se limita a sua pertença, mais ou
menos complicada, a um grupo social. E isso ultrapassaria as exigências da filosofia.
Podemos ver facilmente que esta escola, que leva finalmente à fusão da filosofia
com uma ciência especial, a sociologia, retoma a posição cética que acabamos de
criticar. Não se preocupa por explicar a função social da filosofia... A verdadeira
função social da filosofia reside na crítica ao estabelecido... A meta principal dessa
crítica é impedir que os homens se abandonem àquelas ideias e formas de conduta
que a sociedade em sua organização atual lhes dita. Os homens devem aprender a
discernir a relação entre suas ações individuais e aquilo que se consegue com elas,
entre suas existências particulares e a vida geral da sociedade, entre (283) seus
projetos diários e as grandes ideias reconhecidas por eles. A filosofia descobre a
contradição na qual estão envolvidos todos os homens enquanto, em sua vida
cotidiana, estão obrigados a aferrar-se a ideias e conceitos isolados... (284) Quando
Platão pretende que o Estado seja regido pelos filósofos, não quer dizer com isso
que os governantes devam ser escolhidos entre os autores de manuais de lógica. O
espírito de especialização persegue, no mundo dos negócios, só o ganho; no
terreno militar, só o poder, e, na ciência, nada mais que o êxito em uma disciplina
determinada. Se este espírito não é controlado, provoca um estado anárquico na
sociedade. Platão equipara a filosofia com o esforço por unir e concentrar as
distintas possibilidades e modos do conhecimento, de tal maneira que aqueles
elementos parcialmente destrutivos se convertam em produtivos no verdadeiro
sentido. A isso apontava sua pretensão de que os filósofos deviam governar. Por
isso tinha pouca confiança nas convicções populares, que sempre se aferram a uma
única ideia, por melhor que ela possa ser em um determinado momento...

Os grandes filósofos aplicaram esta concepção dialética aos problemas


concretos da vida; seus pensamentos apontaram sempre para a organização
racional da sociedade humana. Mas esta organização era, ao menos durante o
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período de florescimento da filosofia, equivalente à realização da ideia do Bem...
Aristóteles, ainda que em sua Metafísica considerasse a autocontemplação da
alma, o comportamento teórico, como a mais alta felicidade, diz expressamente
que esta felicidade só é possível sobre uma base especificamente material, ou seja,
sob determinadas condições sociais e econômicas...

(285) Aquele que estude a filosofia moderna não somente nos manuais
comuns, mas seguindo sua história passo a passo, reconhecerá nela o problema
social como um motivo essencial. Bastaria mencionar Spinoza e Hobbes. O
Tractatus theologico-politicus foi a única obra importante que Spinoza publicou em
vida. Em outros pensadores, como Leibniz e Kant, uma análise mais profunda
descobre que precisamente os capítulos mais abstratos de sua obra, as teorias
metafísicas e lógico-transcendentais, se baseiam em categorias sociais e históricas.
Sem elas, seus problemas não se podem entender e nem resolver. Por isso, uma
análise exaustiva do conteúdo de filosofemas puramente teóricos resulta uma das
mais interessantes tarefas de uma investigação moderna da história da filosofia...

Mais além da importância, explícita ou implícita, consciente ou inconsciente,


que a investigação de problemas sociais reveste na filosofia, queremos insistir mais
uma vez em que a função social desta não consiste primariamente nisso, mas no
desenvolvimento do pensamento crítico e dialético. A filosofia é a tentativa
metódica e perseverante de introduzir a razão no mundo; isso faz que sua posição
seja precária e questionável. A filosofia é incômoda, obstinada e, ademais, carece
de utilidade imediata; é, pois, uma verdadeira fonte de contrariedades... O último
século da história da Europa mostra, de modo terminante, que os homens, por
mais que se sintam seguros, são incapazes de enquadrar suas vidas dentro de suas
ideias de humanidade. Um abismo separa os princípios, segundo os quais eles se
julgam a si mesmos e julgam o mundo, da realidade social que eles reproduzem por
meio de suas ações. Por (286) isso, todos seus juízos e ideias são equivocados e
falsos. Neste momento estão vivendo como se se precipitassem na desgraça ou de
que modo já estão imersos nela. Em muitos países se acham tão paralisados pela
barbárie que os espreita que quase já não podem reagir e se porem a salvo... Em
todo caso, hoje a dinâmica histórica total pôs a filosofia no centro da realidade
social, e a realidade social no centro da filosofia.

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