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SEMINÁRIO FILOSÓFICO INTERDIOCESANO SANTO AGOSTINHO

Filosofia Analítica

Anthony Quinton

Universidade de Oxford

A filosofia analítica começou com a chegada de Wittgenstein a Cambridge em 1912 para estudar
com Bertrand Russell e, como acabou por acontecer, para o influenciar de forma significativa.
Entre as duas guerras mundiais, devido à influência dos escritos de Russell e do Tratactus
Logico-Philosophicus (1922) de Wittgenstein, a filosofia analítica acabou por dominar a filosofia
britânica. Na década de trinta, as ideias de Russell e Wittgenstein foram adoptadas e
desenvolvidas de modo sistemático, e mais radical, pelos positivistas lógicos do círculo de Viena e
por Reichenbach e o seu círculo em Berlim. Surgiram ainda grupos de simpatizantes na Polónia e
na Escandinávia e alguns aderentes distintos dispersos pelos Estados Unidos (onde muitos dos
positivistas europeus se refugiaram ao escaparem a Hitler), como Nagel e Quine. A radical
alteração de ideias do derradeiro Wittgenstein, que regressou a Cambridge em 1929, mais
próximas agora do primeiro aliado de Russell, A. G. Moore, ganhou uma influência crescente; sob
o rótulo de "filosofia linguística" tornou-se preponderante nos países de língua inglesa de 1945
até aos anos sessenta. Desde a fase pós-positivista aos dias de hoje a filosofia de língua inglesa é
principalmente analítica, no antigo sentido pré-linguístico, ainda que contemple uma variadíssimos
métodos e doutrinas. 

Russell e Moore tornaram-se pensadores originais na primeira década do século ao romperem


claramente com o tipo de idealismo professado por Bradley no qual se formaram. Argumentaram
contra a perspectiva de que a realidade é por natureza mental, constituindo uma unidade não
analisável, e defenderam que a sua pluralidade inclui uma multiplicidade indefinida de coisas;
defenderam também que estas coisas pertencem a diferentes categorias fundamentais —
materiais e abstractas, tal como mentais. Minaram fatalmente a teoria idealista segundo a qual
todas as relações são internas, inerentes ao que relacionam e, de forma menos persuasiva, que os
objectos imediatos da percepção são conteúdos subjectivos da consciência. 

Durante este período o principal trabalho de Russell ocupou-se de lógica. Definiu os conceitos
básicos da matemática em termos puramente lógicos e procurou, com menor sucesso como mais
tarde se verificaria, deduzir os princípios fundamentais da matemática a partir unicamente de
leis lógicas. Com a sua teoria das descrições, forneceu um novo tipo de definição, as definições
contextuais, que não consistem em correlacionar sinónimos com sinónimos mas em regras que
permitem substituir frases onde a palavra a definir ocorre por frases onde não ocorre. Este
facto foi descrito por F. P. Ramsey como o "paradigma da filosofia". 

1
Trabalhando conjuntamente com Wittgenstein entre 1912 e 1914, Russell elaborou as concepções
reunidas sob a designação de "atomismo lógico", expostas de forma algo casuístico em Our
Knowledge of the External World (1914) e Philosophy of Logical Atomism (1918) e, de maneira
sistemática, mas obscura, no Tratactus de Wittgenstein. Sustentaram que o pensamento e o
discurso são analisáveis em proposições elementares que representam directamente estados de
coisas, complexos constituídos por relações que os termos lógicos "não", "e", "ou", "se" e, talvez,
"todos" simbolizam (Russell, ao contrário de Wittgenstein, considerou o último irredutível).

A verdade ou falsidade das proposições complexas resulta do modo como verdade e falsidade se
encontram distribuídas entre os componentes elementares. Algumas proposições são verdadeiras
qualquer que seja o valor de verdade dos seus componentes elementares e constituem as
verdades da lógica e da matemática.

Ambos acreditavam que a linguagem comum ocultava o verdadeiro conteúdo lógico das
proposições complexas, que só poderia tornar-se claro mediante o tipo de redução analítica
proposto. As proposições que não podem ser analisadas em asserções de facto elementares são
consideradas "metafísicas" — por exemplo, as proposições éticas e religiosas. Sustentaram
também que as proposições elementares representam o mundo tal como realmente é. No entanto,
extraíram daqui diferentes conclusões ontológicas. Wittgenstein concluiu que as proposições
elementares revelam a estrutura do mundo em geral. Russell, interpretando as proposições
elementares numa perspectiva empirista, defendeu que exibem os conteúdos imediatos dos
sentidos e concluiu, de acordo com o monismo neutral, que só existem acontecimentos
experienciáveis; as mentes que realizam as experiências e os objectos cuja existência é deste
modo atestada são apenas construções com base na experiência, e não objectos dela
independentes. Incluiu aqui a análise de partículas materiais, pontos no espaço e instantes
temporais, desenvolvidas no início dos anos vinte por A. N. Whitehead, com quem colaborou nos
primeiros trabalhos lógico-matemáticos. 

O Círculo de Viena, liderado por Carnap e Schlick, adoptou a concepção segundo a qual a filosofia
consiste em análise lógica e que a lógica e a matemática são disciplinas analíticas (puramente
formais e empiricamente vazias). Seguiram Russell ao considerarem as proposições elementares
como relatos da experiência imediata e, com base nesta ideia, defenderam que o critério de
sentido é a verificação pela experiência. Os juízos de valor, desprovidos de significado à luz
deste critério, constituem imperativos (ou expressões de estados emocionais), e não asserções;
as asserções de conteúdo religioso e teológico seriam, na melhor das hipóteses, manifestações
poéticas. Rejeitaram, contudo, as ontologias analíticas dos seus predecessores. Contra
Wittgenstein, defenderam que a linguagem é convencional, e não pictórica ou representativa.
Contra Russell, sustentaram que os corpos e as mentes não são menos reais que os
acontecimentos, apesar de se tratar de construções e não de elementos. 

2
O Positivismo Lógico foi introduzido nos países de língua inglesa pelo livro de A. J. Ayer
Linguagem, Verdade e Lógica (1936). Mas, enquanto atingia o pico da fama filosófica, uma nova
tendência encontrava-se já em formação no círculo razoavelmente esotérico de Wittgenstein. A
linguagem, sustentava agora na sua nova encarnação filosófica, não é apenas descritiva ou factual;
possui uma multiplicidade de usos e o seu significado reside no modo como é empregue. Não
contém uma essência lógica cuja natureza cabe à análise revelar; tem, ao contrário, uma história
natural, e à filosofia compete a tarefa terapêutica de a descrever e de eliminar as dificuldades
conceptuais a que dá origem. As crenças que possuímos sobre os estados mentais de outras
pessoas, por exemplo, não podem ser analisadas com base nos indícios que deles temos; esses
indícios mantêm com as nossas crenças uma relação mais ténue que os "critérios" a que
recorremos para as considerar verdadeiras. Esta atitude de acolhimento, ao invés de uma
reconstrução ou interpretação em larga escala da discurso corrente, tem afinidades com a
prática de Moore relativamente ao senso comum e à linguagem comum. Esta prática assumiu
diferentes configurações em Oxford no pós-guerra: recorrendo alegremente a definições, com
Ryle, ou escrupulosamente lexicográfica, com A. J. Austin. Foi esta a filosofia linguística
centrada em Oxford de 1945 a 1960, quando desapareceu na sua forma original sem deixar rasto.

A análise filosófica, num espírito mais ou menos russelliano, mas assumindo variadíssimas
manifestações, manteve-se desde o seu renascimento nos anos sessenta até aos nossos dias. W.
V. Quine foi quem mais a desenvolveu, tendo contribuído para a sua difusão. Numa fase ainda
inicial da sua carreira rejeitou a ideia de que existe uma clara distinção entre verdades analíticas
e não analíticas. Esta rejeição colocou em causa a actividade de análise e assimilou a lógica, a
matemática e a filosofia a um resíduo empírico da ciência. A teoria verificacionista do significado
foi amplamente criticada, em grande medida por ser auto-refutante, em especial por Popper, que
baseou uma nova explicação da ciência na tese de que a falsificabilidade constitui o critério, não
do significado, mas do estatuto científico. Os dois espécimes mais notáveis de análise redutiva (a
concepção fenomenista dos objectos materiais como sistemas de aparências, actuais ou possíveis,
e a teoria comportamentalista dos estados mentais como disposições para agir de modo
determinado em circunstâncias particulares) foram, em geral, abandonadas e sujeitas a um
escrutínio minucioso nos trabalhos de vários materialistas australianos, por exemplo, D. M.
Armstrong e J. J. C. Smart. Defenderam que possuímos, ainda que de forma inerentemente
falível, uma consciência directa dos objectos materiais e que os estados mentais de que temos
consciência são, na realidade, idênticos aos estados do cérebro que produzem o comportamento. 

Não existe hoje assim muita análise nos trabalhos dos mais informados praticantes da filosofia
analítica, como Putnam e Nozick. Mas pensam e escrevem no espírito analítico, com respeito pela
ciência, e consideram-na um paradigma da crença racional, trabalhando em conformidade com o
seu rigor argumentativo, a sua clareza e determinação em pensar de um modo objectivo. 

Bibliografia

 Brand Blanchard, Reason and Analysis (Londres, 1962) 


 John Passmore, Recent Philosophers (Londres, 1985) 
 Bertrand Russell, The Philosophy of Logical Atomism (Londres, 1918) 
 Anders Wedberg, History of Philosophy, iii (Oxford, 1984) 

Oxford Companion to Philosophy (OUP, 1995, pp. 666-670) 

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Como é a Filosofia Analítica Possível?*

Simon Blackburn
Universidade da Carolina do Norte, Chapel Hill 

Pouco antes do início do presente século, deu-se um episódio digno de nota em Viena. Em 1894, a
Universidade encomendou a Gustav Klimt uma série de painéis que descrevessem o triunfo da luz
sobre as trevas. O primeiro painel, concluído por Klimt em 1900, representava a Filosofia. Os
Lentes esperavam, claro, qualquer coisa como a descrição rafaelina da escola de Atenas: Platão e
Aristóteles, e talvez Galileu, Hume, Kant e Mach, dissertando gravemente perante uma multidão
convenientemente impressionada que assistia e aprendia. Um tal painel confirmaria a natureza
racional e esclarecedora da filosofia e celebraria o seu reconhecido papel social. Mas Klimt,
fortemente influenciado por Schopenhauer, Wagner e Nietzsche, acabou por apresentar uma
tenebrosa representação do Vazio no qual a humanidade turbulenta vagueia sob o jugo todo-
poderoso da Paixão e da Vontade, não tendo o Conhecimento, representado por uma Esfinge de
formas bastante vagas e por uma inflexível figura de Medusa, claramente nenhum efeito no resto
dos trabalhos. O painel provocou um enorme tumulto, afirmando os Lentes, claro, que Klimt não
sabia o que estava a fazer. A filosofia analítica estava prestes a acabar ainda antes de ter
propriamente começado.

Passaram já mais de dez anos — dez anos que nos aproximaram do fim do século — desde que
Richard Rorty publicou A Filosofia e o Espelho da Natureza, proclamando uma vez mais o fim da
filosofia analítica. Se alguma coisa mudou nas correntes que Klimt, no princípio do século, e Rorty,
já mais para o fim, identificaram como fundamentalmente hostis à imagem que essa disciplina tem
de si mesma, foi no sentido de se tornarem mais fortes. É quase impossível ver como pode
praticar-se filosofia analítica em boa consciência.

Começarei por apresentar a minha própria sinopse do caso em disputa, deixando de lado quase
certamente tantas críticas tão importantes quantas as que incluí; mas isso será suficiente,
espero, para avançarmos. Muito do que irei dizer já é conhecido, mas acrescentarei algumas
dúvidas menos familiares acerca do método contemporâneo nas secções seguintes, nas quais
levanto dúvidas acerca de uma das indústrias contemporâneas mais populares — a «naturalização»
de áreas como a moral ou a semântica, conseguida à custa da identificação das propriedades em
causa com as propriedades de certa classe favorecida. Por fim, esboçarei uma resolução. Mas
comecemos pela acusação.

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1.
Não há uma filosofia primeira. Que quer isto dizer? Muitas pessoas diriam que Quine mostrou que
o a priori não existe e que uma filosofia primeira precisa de princípios a priori; logo não pode
existir nenhuma filosofia primeira. Mas esta conclusão não precisa de uma premissa assim tão
controversa. Quine não mostrou que o a priori não existe (os que pensam que ele fez literalmente
isso mesmo têm de verificar o conceito de demonstração que possuem, para que a sua posição não
se autodesconstrua de forma exemplarmente rápida).

A analiticidade continua a ser claramente atribuível a muitas equivalências lexicográficas; a


definição é um processo em aberto. (1) Na melhor das hipóteses, Quine mostrou algo muito mais
fraco: talvez que nenhuns princípios suficientemente substanciais para gerar um método
filosófico poderão ser a priori. Mesmo que frases como «os solteiros não são casados» e outras
semelhantes escapem à sua crítica, não servem para construir um método; envolvem unicamente
conceitos superficiais, ou conceitos em relação aos quais as definições de dicionário constituem
uma identificação crucial. Qualquer filosofia que procure dar uma posição «primeira», ou uma
perspectiva exterior de uma ou outra área de discurso, precisa de muitas mais coisas
substanciais e nada de mais substancial será conseguido a priori pelas ligações superficiais
exploradas nos dicionários. Uma filosofia primeira explorará categorias (verdade, existência,
descrição, facto, agência, conhecimento, etc.) cujas identidades terão determinadas raízes, serão
históricas, contingentes, situadas e sujeitas ao julgamento e à substituição, em função da sua
utilidade na prática. Não podemos vê-las como se mantivessem uma exigência sobre o pensamento
que fosse intemporal e à prova de culturas. No caso mais favorável possível, quando um conceito
substancial é introduzido explicitamente em certos termos, sujeita-se a tornar-se órfão, se
percebermos que dar-lhe uma vida própria acaba por funcionar bem. Ainda que Quine nos tenha
tornado receptivos apenas a isto, é mesmo assim suficiente para debilitar a filosofia primeira. E
se a filosofia primeira é o único conceito de filosofia que temos, podemos apagar a palavra
«primeira» da frase anterior.
2.
Não existe um ponto de Arquimedes, nem uma perspectiva lateral, nem uma doca seca, a partir da
qual possamos inspeccionar o progresso do nosso próprio barco científico ou valorativo, ou o de
qualquer outra actividade intelectual. As práticas assentam nos seus próprios pés. Não podemos
por isso dar realmente sentido ao juízo que afirma que o nosso barco se está a sair bem ou mal,
que vai em direcção à verdade ou que se afasta dela. Não há nada, no fim de todas as
investigações, que esteja destinado a reunir consenso, porque novas circunstâncias produzirão
novas questões, novas práticas e novas técnicas de aproximação. Claro que pensamos que os
nossos juízos são verdadeiros, ou quase, mas isto é porque são nossos; e dizer que são
verdadeiros não é mais do que uma maneira opcional de os fazer.
3.
Não há, por isso, Guardiães das Normas. A filosofia primeira não só aspirava a um ponto de vista
externo em relação aos discursos, mas também a um ponto de vista que tivesse autoridade
normativa. Um ponto de vista que revelaria e defenderia uma lógica comum no método científico e
que arbitraria as actividades intelectuais a partir das suas regras. Mas, mesmo que não o
tivéssemos já aprendido com Hume, teríamos já aprendido, a partir do fracasso das teorias
normativas da justificação e da confirmação e a partir de Goodman, de Kuhn, de Feyerabend e
dos seus sucessores, que não existe um ponto de vista normativo externo e privilegiado acerca de
uma disciplina intelectual. A «racionalidade» é em primeiro lugar uma palavra polémica e, em
segundo lugar, retrospectiva. Os sobreviventes da luta darwinista orgulham-se da sua capacidade
de adaptação e os sobreviventes científicos ou intelectuais da sua luta darwinista, na qual as

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teorias são concebidas e ou morrem ou sobrevivem, orgulham-se da sua racionalidade. Mas uma
consideração séria da situação histórica a partir da qual as teorias e as ideologias emergem não
mostra nenhuma assimetria de racionalidade, mais visível a partir de uma perspectiva privilegiada
e filosófica. Claro que os cientistas e ideólogos individuais, assim como os seus seguidores, podem
exibir, por vezes, o seu quinhão de fragilidade humana: terão sido casmurros, excessivamente
confiantes, tacanhos, descuidados e ter-se-ão enredado em projectos absurdos, como toda a
gente.

Mas estes juízos fazem-se melhor na caverna de primeira ordem do urso, onde tem lugar a luta
pela sobrevivência. A caverna do urso não reconhece quaisquer árbitros durante a prova e quando
esta chega ao fim os historiadores estão numa posição muito melhor do que os filósofos para
descrever com o detalhe necessário e lúcido os estilos exibidos pelos vários concorrentes.
Efectivamente, é especialmente improvável que um filósofo possa entrar pela ciência adentro e
distribuir prémios de racionalidade. Mesmo na improvável eventualidade de ele ser melhor do que
qualquer outra pessoa a identificar a casmurrice e tudo o resto, não é provável que estes traços
sejam vulgarmente visíveis ou mesmo particularmente comuns na vanguarda da investigação. A
luta darwinista por uma voz na disciplina de primeira ordem já os terá exterminado. (2)

Por causa disto não há epistemologia normativa, nem nenhuma filosofia da ciência que possa
desempenhar o seu papel tradicional. Há a ciência e há a história da ciência, nenhuma das quais
poderá ser executada especialmente bem por pessoas com prática noutras áreas, como na
filosofia. Também podemos constituir uma claque de apoio à nossa equipa, assegurando que uma
certa ciência está a sair-se bem. Uma vez que os padrões do que é sair-se bem, nesta maneira de
ver as coisas, são estabelecidos pelos próprios cientistas, esta não é uma ocupação
particularmente nobre.

4.
Não há maneira de nos livrarmos da diversidade. A ética não é crítica literária nem história,
biologia, física ou psicologia — e nenhuma destas é a mesma actividade do que qualquer das
outras. É de esperar o pluralismo porque há tantos tipos bons de descrições de coisas quantos os
propósitos ao descrevê-las. A perspectiva do físico não é a mesma que a do historiador ou do
biólogo — mas, afinal, a perspectiva que se tem da Torre Eifell quando a vemos de Montmartre é
diferente da que se tem a partir do Invalides. Acreditar numa redução é exactamente como
procurar alcançar uma perspectiva da Torre Eifell a partir de Montmartre que seja a partir do
Invalides — como se pensássemos: o Invalides oferece-nos em geral uma perspectiva mais
próxima e melhor; portanto, por que razão não poderá a perspectiva de Montmartre ser visível a
partir dela?

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5.
Porque não podemos negar a diversidade, porque não há redução nem epistemologia, também não
há ontologia. Mesmo Quine vacilou neste aspecto — e a sua timidez é ilustrativa. Quine pensou (ou
escreveu como se o pensasse) que uma afirmação existencial presente numa ciência fazia duas
coisas. Dizia qualquer coisa de primeira ordem que precisava de dizer e, se a deixássemos
sozinha, exprimia uma outra coisa, sinistra, um «compromisso ontológico» ou ónus filosófico, uma
causa de preocupação e dificuldade para pensadores sérios com consciências ônticas delicadas.

Mas isto é contar a mesma coisa duas vezes. «Existe um número entre o seis e o oito» diz uma só
coisa — que qualquer criança da terceira classe compreende e aceita. «Num átomo neutro existe
o mesmo número de protões e electrões» é uma tese elementar de química física. Estas frases
não exprimem também um compromisso «ontológico» filosoficamente oneroso. Pensar que o fazem
é ansiar por uma redução, ou acreditar que alguém que não um matemático ou um físico, como um
Guardião das Normas, tem algo a dizer acerca delas (que são inaceitáveis por atravancar a sua
paisagem deserta, por exemplo). Mas os pontos 1, 2 e 3 mostram que isto é uma fantasia. Uma
preferência por paisagens desertas não pode ser diagnosticada como uma postura filosófica — na
melhor das hipóteses será uma postura política. Equivale a desejar privilegiar um certo discurso
com cujas quantificações nos sentimos particularmente confortáveis. Qualquer pessoa pode ter
um tal desejo, ou o seu oposto, mas não unicamente por motivos racionais — e, sobretudo, não o
tem por ter olhos especialmente bons para detectar perigos ontológicos escondidos, invisíveis
para a física ou para a matemática.

Não acontecerá antes isso porque conquistaram uma função judiciosa especial, que lhes permite
avaliar de forma independente tal discurso, não tanto em termos de verdade, mas como escolhas
de quadros de referência e coisas semelhantes? Só a prática pode determinar se a escolha de
uma linguagem matemática, física, psicológica, modal, moral ou religiosa é vantajosa para nós. O
filósofo pode, como um amador com sorte, contribuir para o reconhecimento da excelência ou
debilidade de um discurso qualquer, mas não existe uma profissão que consista em ter sorte. E
quando um discurso ou uma forma de vida morre, como aconteceu efectivamente com a forma de
vida religiosa no Ocidente, tal nunca acontece por não resistir ao escrutínio de Minerva, mas
porque as consolações e as promessas que oferece acabaram por perder o poder de nos animar. A
única coisa que o filósofo pode fazer é conduzir o carro funerário, proclamando que sabia antes
das outras pessoas que o paciente estava morto.

O que tem a tendência de passar por ontologia é apenas um exercício de «guarda-livros» —


ensaios sobre a adequação expressiva de uma maneira ou outra de dizer coisas. (3)

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6.
Por razões análogas, não sobra um assunto especial nas ciências intencionais ou na teoria do
significado, tal como esta tem sido entendida na tradição. O colapso da epistemologia ensina-nos
a não achar o conhecimento da psicologia particularmente misterioso. O colapso do reducionismo
leva-nos a perceber que existem muitas maneiras de descrever os seres humanos, constituindo os
idiomas intencionais uma delas.

A quantidade de trabalho produzido na intersecção entre a ciência cognitiva e a filosofia da


mente pode parecer refutar esta conclusão fácil. Mas uma inspecção mais cuidadosa sugere que
ou este trabalho não é propriamente filosófico (por exemplo, o trabalho de pessoas como Marr ou
o dos conexionistas), ou que, quando o é, é escravo dos mesmíssimos preconceitos e ambições de
primeira ordem que esta crítica mostra não terem bases (por exemplo, ao depender de
concepções ingénuas de redução, ou de caracterizações ingénuas do que um facto natural tem de
ser, ou do «realismo»). Efectivamente, se a filosofia influenciou a prática da ciência cognitiva,
exceptuando os casos em que se constituiu como claque de apoio, é de recear que o tenha feito
sobretudo negativamente, uma vez que a contribuição que introduz na conversa é possivelmente
uma insistência inoportuna em distinções e perspectivas sem crédito. Precisam os cientistas
cognitivos dos honestos serviçais e criadas de Locke? Por que haviam de precisar, se têm
máquinas para isso? A criada filosófica é muito provavelmente o tipo de pessoa que poderia ter
segredado a Alexander Graham Bell que o telefone era um sonho contraditório, porque falar com
alguém requer conceptualmente que se esteja na sua presença. O melhor que o aliado filosófico
da ciência cognitiva pode provavelmente fazer é oferecer protecção mafiosa, intimidando os
jogadores com a sugestão de que sem os seus serviços os outros filósofos virão estragar o jogo
todo.

Se, nesta área, há moscas na garrafa das moscas, tal filosofia não é adequada para lhes mostrar a
saída; a via da sabedoria será esperar que o progresso científico dissolva toda a garrafa,
juntamente com os insectos que a povoam.(4)

7.
Não há uma Ciência Fregeana do Sentido. Uma Ciência Fregeana do Sentido exige que
determinadas proposições objectivas tenham relações lógicas específicas, de maneira a que os
Guardiães das Normas possam perseguir os pensadores marginais que transgridam essas relações.
Mas Wittgenstein, Collingwood e outros autores mostram-nos que o conteúdo tem de ser
naturalizado. É uma depuração do uso que as pessoas fazem das suas frases e sobretudo das
inferências que acham natural fazer. Logo, não há um ponto de vista a partir do qual a lógica
possa ditar uma ampla satisfação com o status quo, nem uma sua ampla revisão. Podemos intentar
acções de saque limitadas ou locais contra certos vícios, como acontece na Introdução ao
Pensamento Crítico, mas isso dificilmente é suficiente para sustentar uma vida intelectual.

Quanto ao projecto de fundar qualquer coisa chamada metafísica em qualquer coisa chamada
lógica, trata-se sempre de um disfarce para um qualquer tipo de investigação epistemológica
sobre a aprendizagem ou transmissão da linguagem — investigação que herda, enquanto tal, todos
os defeitos da epistemologia normativa e que tem, muitas vezes, alguns defeitos próprios, como
quando se trata da epistemologia da moda (o verificacionismo ou uma crença ingénua na
transparência dos factos em relação às mentes em circunstâncias favoráveis), exibida
confiantemente como o fundamento «lógico» incontroverso da restante filosofia. (5)

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8.

Não há nenhuma teoria ética. Seria necessário mais do que alguns comentários gerais para fazer
abalar os últimos bastiões dos Guardiães das Normas. Mas eu irei sugerir como poderíamos abalá-
los, porque isso nos permitirá tirar uma lição geral em relação à prática da filosofia. Suponhamos
que uma teoria ética ou política aspiraria a duas coisas: simplificaria e explicaria a aparente
complexidade dos juízos éticos ou políticos quotidianos; e ganharia, assim, autoridade didáctica
ditando, ou pelo menos certificando, veredictos em casos novos e em casos sob disputa. Mas
então temos de reconhecer que as melhores descrições do que é a ética e de como ela é
efectivamente conduzida sugerem fortemente que não há, de facto, lugar para tal teoria. Estas
descrições dão-nos uma ideia dos dilemas e das considerações rivais que frequentemente nos
confundem. A resposta filosófica é inventar um processo de alcançar um «equilíbrio reflexivo»,
no qual o peso certo dessas considerações emergirá de uma maneira ou de outra, «resolvendo» de
uma maneira ou de outra os dilemas. Mas o que se descreve em termos optimistas como um
equilíbrio reflexivo, como se um equilíbrio estável e eivado de autoridade tivesse sido alcançado,
é efectivamente muito mais uma questão de ficar emperrado. É descobrir que considerações
rivais e em conflito se limitam a encravar, de maneira que a resolução a tomar terá de se alcançar
muito mais através da escolha arbitrária de uma ou outra alternativa do que através da operação
de um processo de raciocínio.

Mas suponha, ao invés, que emergiu realmente uma sistematização que seja a que melhor se
conforma e a que de algum modo explique intuições existentes. Como é exactamente que isso
deverá conferir-lhe autoridade didáctica? As intuições existentes são as convicções
irreflectidas de um tipo específico de animal, com uma experiência, história e enquadramento
cultural (muito) específicos. Tal enquadramento incluirá em grande parte o contágio de atitudes,
emoções e crenças de outros familiares, mentores e pares imperfeitos, operando em
circunstâncias nas quais algumas formas de vida funcionam e outras não, e nas quais algumas
atitudes estavam na moda e outras eram demasiado caras para serem funcionais. A «teoria»
implícita ou tácita que melhor sistematiza a selva de atitudes gerada por um tal processo não
merece mais respeito do que as próprias atitudes; uma vez que tudo o que pode ser dito sobre
elas é que emergiram num dado momento sob outras circunstâncias e que sobreviveram até agora,
então isso pode não ser grande coisa.

Isto vê-se claramente se imaginarmos uma empresa análoga conduzida pelos que têm, numa outra
esfera, atitudes visivelmente mergulhadas nas trevas da ignorância. Imagine um grupo de novos-
ricos do nível estético que os faz ter carpetes com flores, loiças de quarto de banho cor-de-rosa
e ornamentos patéticos. Suponha que este grupo começa a sistematizar os processos que
conduzem ao equilíbrio reflexivo estético. Por mais que achem que os princípios daí resultantes
são intuitivos, centrais e até mesmo úteis («as coisas que dão aconchego são mais bonitas do que
as que não o dão»), o exercício é completamente fútil quer porque está a inventar um sistema em
vez de o descobrir, quer porque não é previsível que haja qualquer hipótese de o sistema
inventado melhorar as suas faculdades de ajuizar em novas ocasiões. Poderia fazê-lo — mas isso
seria por acaso. Sistematizar um equilíbrio estético seria um exercício de racionalização de um
status quo que não precisa de ser racionalizado mas antes diagnosticado e, no caso que descrevi,
abandonado.

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Mas, em qualquer caso, é uma ilusão esperar que emirja uma teoria que melhor justifique as
intuições actuais e os guias dos casos futuros. Chegamos a essas intuições não através de um
exercício sincrónico de selecção e avaliação, mas através de uma evolução histórica: as teorias
que os participantes anteriores nessa história poderiam ter usado para justificar as suas
intuições a si mesmos são, muito provavelmente, virtualmente ininteligíveis para nós e não há
razão para imaginar uma síntese única que abranja todos os sedimentos heterogéneos. Quando
vemos como os pontos foram dispostos vemos também que não há razão para esperar que exista
uma curva que melhor se lhes adapte, nem para seguir qualquer uma delas em direcção a novas
regiões. Seria como redigir as equações geométricas que melhor se adaptam à forma de uma
árvore e acreditar que encontrámos um princípio que subjaz ao seu desenvolvimento.

Uma teoria ética, no sentido em causa, exige a crença de que a selva de pressões, às quais a
tomada de decisões responde, revela uma estrutura oculta — uma ordem teórica oculta — à
espera do filósofo que irá revelar um sistema oculto, que contenha uma autoridade normativa
oculta. Mas uma compreensão realista (histórica e cultural) da razão pela qual os elementos da
mistura existem sugere que não é provável que se encontre nenhum elemento individualmente
(porquê um sistema? Porquê a autoridade, quando reflectimos sobre o modo como a obtivemos?) e
é quase impossível que os encontremos juntos. Há um racionalismo implícito na procura da teoria,
como se a inteligência comum da humanidade tivesse ditado (em lugar de Deus) uma ordem oculta
nos vários sedimentos, cuja natureza e desenvolvimento o iniciado pudesse ter o privilégio de
desvendar. Mas não há razão para acreditar nisto no caso dos sedimentos intelectuais e morais
das águas constantemente renovadas da necessidade e da história culturais. A crença de que há
uma tal ordem é surpreendentemente análoga à confiança no Argumento do Desígnio: uma vez que
há complexidade, tem de haver uma arquitectura inteligível, cujos planos possam ser desvendados
através de suficiente pensamento. Não há razão para acreditar nisso e, mesmo que substituamos
a Evolução pelo Desígnio, assumindo uma confiança do tipo da de Burke na sabedoria herdada dos
tempos, continua a não haver razão para acreditar nisso. É improvável que o que evoluiu seja uma
capacidade magistral para pensar nos problemas da vida de modo coerente e sujeito a princípios;
será antes uma série de «kludges» ou respostas parciais e ad hoc a pressões que, na melhor das
hipóteses, fizeram com que os nossos genes tenham sido úteis em algumas circunstâncias
restritas. Procurar a teoria torna-se uma espécie de numerologia, como procurar códigos ocultos
nos sonetos de Shakespeare, ou como procurar uma geometria racional numa árvore, ou um
significado racional no modo preciso como os seixos estão dispostos num aglomerado geológico.

Não haverá, portanto, nenhuma teoria ética ou política. Em seu lugar, haverá lugar para a
advocacia prática e para o apoio activo a várias formas de vida. Podemos entregar-nos à filosofia
«fácil e óbvia» que consiste em «pintar [um certo objecto] com as cores mais favoráveis», de
modo a «ser agradável à imaginação e a prender as emoções». (6) Não se trata de afirmar que não
devia haver pessoas a fazer isto, mas antes que elas deviam reconhecer que isto é tudo o que
estão a fazer. Deviam vestir o hábito do evangelista e não o da Academia.

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II

Apresentei o caso em traços gerais e sinistros; a resposta pode parecer relativamente simples.
No fundo, sabemos que a filosofia analítica continua a existir de uma maneira ou de outra — e por
vezes de maneira admirável. Uma vez que ab esse ad posse, qualquer argumento que procure
mostrar que ela não pode existir tem de ser deficiente. Mas onde está a deficiência?

Eis um tipo de resposta que penso ser apelativa para variadíssimos filósofos. (7) Regressemos a
Quine. As nossas reacções podem passar por três fases. Em primeiro lugar, há o instinto básico
de que Quine não pode ter razão, uma vez que a definição, a abreviação e a introdução de termos
cuja única ligação seja através de uma equivalência de dicionário parecem constituir
características perfeitamente reconhecíveis da linguagem natural. Em segundo lugar, há a
reflexão de que esses termos não ajudam muito a definir um método, uma vez que não há
definições incontroversas de dicionário que forneçam nem mesmo os primeiros passos de soluções
dos Grandes Problemas Filosóficos. Assim, em terceiro lugar, podemos deitar mão à tábua de
salvação optimista, segundo a qual estes problemas substantivos e filosoficamente perenes
podem estar escondidos, sob a superfície lexicográfica, em conceitos que têm ligações teóricas
que merecem efectivamente um estatuto a priori análogo. Devia haver espaço para uma ciência —
a que poderíamos chamar ciência de Oxford — do que é constitutivo de tais conceitos. Uma
ciência a priori do conhecimento, da verdade e do resto revelaria as ligações teóricas ocultas —
ligações às quais estes conceitos respondem.

Por que razão descrevo isto como o deitar mão a uma tábua de salvação optimista? Porque não
consegue identificar a verdadeira razão pela qual as ligações triviais e superficiais funcionam
como a priori. Não consegue ver que o seu estatuto enquanto refutação de Quine depende
inteiramente do facto de as equivalências estarem à superfície, de serem unidimensionais e de
serem essenciais ao processo de ensino. É tentador pensar que, uma vez que há analiticidades
como estas, poderá haver também analiticidades teóricas ocultas. Mas isto não será assim se a
postura peculiar do analítico depender de o facto que mantém um conceito no seu lugar ser a sua
única ligação lexicográfica com uma definição. (8) Qualquer outra coisa que seja menos óbvia e mais
teórica não conseguirá alcançar o estatuto.(9)

Suspeito que a resistência a este aspecto resulta parcialmente de confundir a real complexidade
introduzida quando vemos os conceitos como sendo «mantidos no seu lugar» por uma rede ou teia
de ligações teóricas, em vez de o serem por um conjunto de listagens de condições necessárias e
suficientes. Admitida esta imagem, haverá sempre o perigo de um pedido especial para elevar
qualquer uma das ligações teóricas a algo « a priori» ou «constitutivo do conceito». Basta
relembrar o estatuto «a priori» de princípios teóricos como a luz se deslocar em linha recta, a
massa ser igual independentemente das propriedades dinâmicas de um corpo, o carácter infinito
do espaço, etc., para nos darmos conta do perigo. Para uma genuína ciência de Oxford seria
necessário não apenas :

(a) a identificação de uma ligação teórica como essencial ao nosso conceito,


  
mas também
(b) razões pelas quais o nosso conceito tem de ser o conceito que permite que uma certa
categoria geral de pensamento funcione.

11
 
 
E a dificuldade será a seguinte: seja o que for que tenha a tendência de tornar (a) fácil terá a
tendência de tornar (b) difícil. Expliquemo-nos: se nos convencermos a nós mesmos de um
qualquer caso de (a), a tendência será fazê-lo explorando o que diríamos perante casos reais e
possíveis; quanto mais nos apoiarmos neste método, menos conseguiremos ter em vista a
impropriedade de um conceito substituto e de um modo de caracterizar coisas que abandona a
ligação particular e privilegia uma outra. Acho que é por isto que o sintético a priori kantiano é
muito mais importante do que discussões recentes que procedem deste modo. Kant percebe
claramente que precisamos igualmente de (a) e de (b). De outro modo, a metafísica descritiva não
será realmente metafísica — será apenas descritiva.

Como um primeiro exemplo simples, considere-se a indústria do debate sobre a questão de saber
se uma perspectiva moral ultrapassa necessariamente as considerações não morais; suponha-se
que decidimos que ultrapassa porque pensamos que naturalmente não diríamos («acharíamos que
seria contra-intuitivo dizer») que alguém tinha genuinamente uma perspectiva moral caso essa
pessoa permitisse que as considerações morais a ultrapassassem. E então? Mudemos o peso que
damos a essa característica. Se se objectar que isso seria mudar o conceito, Quine responderá
acertadamente que não temos nenhuma condição de identidade anterior, associada ao conceito,
que faça com que seja obrigatório, ou mesmo útil, dizer isso a menos que possa mostrar-se que o
novo conceito não poderia ter um papel essencial qualquer, de modo que o pensamento prático
entraria de algum modo em colapso na sua presença. Neste exemplo, há poucas ou nenhumas
perspectivas de o fazer, uma vez que as outras ligações teóricas do moral carregarão com o
fardo. Que acontece de errado quando descrevemos alegremente algumas pessoas como
possuindo uma moralidade que elas por vezes transgridem deliberadamente?

Para um exemplo mais interessante, considere-se a indústria da referência. Quando nos


referimos nós a uma coisa? Entre os elementos aos quais as nossas intuições respondem contam-
se

— Relações causais e históricas


— Capacidade de descrever
— Capacidade de identificar (não é a mesma coisa)
— Pertença a uma comunidade com qualquer dos elementos supra
— Poder ser tomado como tendo falado de
— Ser caridosamente interpretado como tendo falado de
— Ter a disposição de se comportar de formas associadas relativamente a  e sem dúvida
muitas mais (esta lista só demorou um par de minutos a formular).

12
Em cada categoria há, sem dúvida, subcategorias potencialmente importantes. Qual é a
verdadeira referência? Será que o povo se importa? Quase certamente que não: quando uma ou
duas destas estão presentes, as outras habitualmente também o estão. Será que uma «teoria
popular» ou implícita nos dá uma ordem com as propriedades atribuídas à teoria moral supra —
oferecendo uma sistematização das nossas intuições e ditando veredictos relativamente a novos
casos? Provavelmente não; por que precisámos afinal de desenvolver uma tal teoria? A referência
é um termo factivo e em casos primitivos a factividade é normalmente sobredeterminada pelas
amplas relações que temos com as coisas de que nos dispomos a falar. Por que razão deveria o
povo ter pensado seriamente sobre as dimensões do insucesso e sobre o quanto se importa com
isso à medida que os casos se tornam mais exóticos? Como poderia ele ter-se tacitamente
apropriado antecipadamente das engenhosas experiências mentais dos filósofos mais recentes,
que têm o ócio que lhes permite desenlear os fios da teia um a um, de modo a determinar se os
outros fios suportam a pressão? Uma vez mais vemos o racionalismo implícito, como se o ponto de
vista popular, sintetizado ao longo das eras, não nos deixasse um agregado de sedimentos para
nós nos apoderarmos conforme pudermos à medida que formos construindo, mas um granito pré-
formado e previamente amalgamado.

Serão os filósofos especialmente bons relativamente a (b), isto é estarão treinados para prever o
colapso de um modo de pensar quando uma ligação teórica favorita de um conceito profundo
perde o privilégio que lhe foi atribuído, seja ele qual for? A lição de Kant não é encorajadora.
Repare-se como teria sido fácil esperar que o pensamento mecânico formulado em termos de
massa entrasse em colapso dado que a massa em repouso e a massa em aceleração podem ser
diferentes, ou como é fácil esperar que o pensamento geométrico entre em colapso caso se
permita que a luz descreva um percurso curvo, ou caso se permita que o espaço tenha fronteiras.
Que filósofo teria dito antes da ciência matemática que um número poderia ser outra coisa para
além do 0 e de um dos seus sucessores? Suponha agora que damos voltas no nosso espírito às
verdades a priori constitutivas exibidas como conceitos difíceis: por exemplo, a de que quem tem
crenças tem de ter principalmente crenças verdadeiras, ou a de que as crenças causam acções.
Tudo o que parece que somos capazes de fazer é registar um anexo a essas verdades, talvez
porque se descobre que algumas possibilidades de contra-exemplos estão bloqueadas. Mas como
poderemos nós alguma vez prever as vantagens que poderiam decorrer de aprender a pensar de
forma ligeiramente diferente (e, claro, virando as costas à questão de saber se teremos então um
«novo» conceito)? Como poderemos sustentar que uma mudança que torne essa via natural seria
mais revolucionária e reformadora do que a falência da massa newtoniana ou a introdução dos
números racionais, dos reais, etc., na matemática? Como poderemos delimitar os modos como o
caleidoscópio se pode agitar?

13
III

Veremos que o pessimismo da secção i não é suavizado pelas tentativas conservadoras da secção
ii. O problema, segundo me parece, é duplo. Em primeiro lugar, a analogia geológica sugere que é
demasiado benevolente descrever-nos como possuindo uma teoria popular, ao invés de um
conjunto de paradigmas ou estereótipos herdados, ou coisas para dizer sem que se vislumbre a
possibilidade de possuírem estrutura e forma didáctica. Supor que as têm implica uma espécie de
racionalismo, conferindo ao povo os atributos tradicionais de Deus, e imaginando que,
diacronicamente, o povo terá resolvido as coisas à luz da razão à medida que avançava. Em
segundo lugar, mesmo que superemos este obstáculo e encontremos uma verdadeira teoria, o seu
direito a ser a teoria terá de ser estabelecido, se queremos privilegiar qualquer dos seus
elementos como constitutivos de uma noção de que precisamos, de um modo qualquer que seja
interessante.

Há uma maneira de pensar acerca destas coisas, derivada de Ramsey e popularizada por David
Lewis, que pode parecer rebater este diagnóstico. Nessa abordagem aos termos teóricos as
«banalidades» que governam o uso de um termo são registadas, acabando por constituir uma lista
de coisas tidas como verdadeiras acerca daquilo que o termo refere; o que o termo refere é
então seja o que for que melhor se lhe adapte, satisfazendo a maior parte das coisas que dele se
afirmam, se algo as satisfaz. Se as banalidades incluem casos vagos e casos indiferentes, será um
aspecto a favor de um candidato se as mesmas coisas são vagas ou nada importantes quando
pensamos acerca dele próprio. A grande vantagem de pensar deste modo é que não importa se as
doutrinas iniciais se revelam razoavelmente difusas ou sem nenhuma ordem hierárquica. Não tem
de haver uma imputação de ordem ou precisão. Logo, se, como tenho vindo a defender, o povo é
susceptível de nos ter deixado uma trapalhada, isso não é um problema: registe os elementos da
trapalhada e o processo de fazer a melhor identificação irá impor a ordem suficiente para os
propósitos filosóficos — por exemplo, para o propósito de explicar o uso original do termo, ou
para tornar claro o modo de pensar nos novos casos, ou os veredictos a defender relativamente
aos casos disputados.

Chamemos «classe doméstica» a uma classe de entidades, propriedades ou relações que


acreditamos conhecer bem. Chame-se «classe exótica» à classe contrastante, que está a levantar
problemas filosóficos. Então, o método de Ramsey-Lewis é ideal para fazer uma identificação
exótico-doméstico. Pode parecer que a teoria cujas banalidades estão perante nós identifica uma
coisa ou propriedade exótica (e.g., uma coisa não física, como um qualia ou uma propriedade moral
ou semântica). Mas se encontrarmos uma coincidência suficiente entre as coisas que se dizem
desta entidade ou propriedade e uma entidade ou propriedade doméstica, esta última entra em
cena e a exótica é banida. Os qualia serão tais e tais acontecimentos físicos no cérebro; a
referência será tais e tais relações naturais; as propriedades morais serão tais e tais
propriedades naturais. Apesar do grande prestígio desta metodologia, confesso ser céptico
quanto aos seus alegados sucessos, quando a propriedade em questão não é identificada
cientificamente, mas antes através da herança popular. (10) Em primeiro lugar, e o mais importante,
depende de uma atitude inicial relativamente aos elementos da trapalhada. Se tivermos em vista
a equação entre referência e relação causal-histórica, diminuiremos a importância de alguns
elementos da trapalhada popular; se gostamos da ideia de referir os que estão por vir (como se
diz que os profetas fazem, por exemplo) diminuiremos a importância de outros. A identificação
de Ramsey parece muito menos capaz de resolver estas disputas, se ela própria for o resultado
de uma ou outra atitude relativamente a elas.

14
Pondo as coisas de outro modo: por que havia o povo de nos ouvir se tomamos a sua mistura,
deitamos borda fora pedaços suficientes para fazer uma identificação doméstica e depois lhe
dizemos que esse pedaços estavam errados? O método pressupõe que a um certo nível o povo se
referia a uma propriedade doméstica. Por que razão o faria, sobretudo se nem ele nem os seus
filósofos domesticados têm dificuldades em dizer de que propriedade se trata? Uma resposta é a
do ontólogo: as coisas e as propriedades domésticas são as únicas que existem. Mas já
defendemos que a ontologia é coisa que não existe. E talvez o predicado «popular» não esteja lá
de maneira nenhuma para referir uma propriedade, se há tão poucas. (Mas o povo pensa que diz
coisas verdadeiras, e só se um predicado referir uma propriedade é que uma frase que o
contenha será susceptível de ser verdadeira. Por que razão acreditaremos nesta última coisa, se
as propriedades são mais do que sombras semânticas dos predicados, e têm o seu próprio
estatuto metafísico, dividindo-se em domésticas e exóticas, por exemplo? Não se trata de um
axioma de uma teoria popular sobre a referência dos predicados.)

Suponha que o teórico da identificação pode passar ao lado destas questões. Não obstante, terá
de confessar um problema residual. A compra da identidade tem custos fregeanos. Suponha que a
referência é uma relação causal histórica, que as propriedades morais são naturais, ou que os
qualia são estados do cérebro. Mesmo assim, há algo de especial acerca de ver uma relação causal
histórica como uma relação de referência, ver uma propriedade moral como uma relação natural
(ou como um agregado ou função de Boole de relações naturais), ou ter experiência de um estado
do cérebro como um qualia. Não está certamente garantido que sempre que vemos a propriedade
doméstica ou pensamos sobre ela a vemos ou pensamos sobre ela a uma luz semântica, moral ou
consciente. Qual é a vantagem especial daquela propriedade trazida por aqueles que a vêm a essa
luz? A única resposta não contaminada é esta: eles trazem a luz que os faz dizer estas coisas; e
depois segue-se uma repetição das coisas que o povo diz; e isso deu origem à procura de uma
identidade.

Ora, penso que há algo de errado na direcção tomada ao investigar-se tanto a questão da
identidade, se temos de acrescentar à história uma teoria da vantagem especial. É um pouco como
identificar odores com moléculas e sons com o seu movimento, mas admitir que a percepção de
uma molécula como um odor, ou do movimento de várias delas como um som exige uma vantagem
muito especial e até agora, na verdade, não analisada. Isto é, começámos com o povo que diz
coisas. Decidimos que se refere a uma entidade ou propriedade e privilegiamos uma classe delas,
as propriedades domésticas. Decidimos qual refere o povo; mas então, uma vez que o facto de se
estar a referir a ela é efectivamente vão, dado que não tem nenhuma noção de estar a fazê-lo,
encontrando-se antes inteiramente absorvido na vantagem especial que tem com a propriedade,
temos de prosseguir tentando compreender essa perspectiva e as peculiaridades que pertencem à
vantagem — que é onde podíamos ter ficado desde o princípio, sem o périplo pela identidade.

Considere, por exemplo, o projecto que consiste em defender o realismo moral através da
descoberta de uma propriedade ou agregado de propriedades naturais com a qual se identifique a
propriedade do bem. O problema residual é então o de dizer o que é ter uma vantagem moral
sobre sejam quais forem as propriedades que forem seleccionadas. Em que consiste isso de vê-las
sob a designação de O Bem? Tem qualquer coisa a ver com políticas, escolhas, atitudes, emoções.
Por que motivo devem então estas coisas fixar, por si, a semântica do predicado, tal como nós, os
expressivistas, o usamos? Que tipo de erro é cometido pelos que se recusam a encarar as
propriedades domésticas identificadas sequer como co-extensivas com o bem? É um erro
objectivo, um erro cognitivo ou um erro de atitude e estrutura volitiva — mas, nesse caso, como

15
podemos falar de erro? Não há resposta. A identidade oculta com uma propriedade natural não
desempenha qualquer papel no pensamento ou prática populares; não precisa de ser por si
reconhecida como o seu objecto favorito de referência; na verdade, a maior parte dos seus
proponentes não poderia provavelmente perceber a sua identificação natural que, nesta filosofia,
revela a sua essência. Não tem, portanto, privilégios semânticos.

Mas não nos dará a identidade qualquer coisa, importante para a metafísica, ainda que o não seja
para compreender o conceito (ou trapalhada) popular? Domestica propriedades à maneira
reducionista, deixando que a vantagem que colhemos delas seja suficientemente variável para que
não se siga o reducionismo do significado. Mas por causa destas reticências sensatas, o lugar do
conceito nas nossas vidas (e isso significa o lugar da predicação nas nossas vidas) não é tratado.
Uma vez que, na minha perspectiva, as propriedades são as sombras semânticas dos predicados,
alcança-se com isto muito pouco. Com suficiente latitude sobre a referência (e, se o que disse
anteriormente estava certo, tal latitude é-nos imposta) não será difícil descobrir uma
propriedade doméstica que sirva como a referência de um adágio popular, desde que seja o que
for que interessa realmente ao povo (tal como a verdade dos juízos proferidos em termos
semânticos ou morais, ou em termos de qualia) varie com a verdade de um complexo de juízos
domésticos.

Poderia acrescentar como um codicilo que não tenho mais fé no outro modo principal de
domesticar áreas difíceis — que consiste em investir numa equação «sensível à resposta». (11) Uma
discussão adequada de tais teorias conduzir-nos-ia para lá do âmbito deste ensaio, mas o erro
comum a ambos é tornar a reacção a que damos voz quando moralizamos ou proferimos veredictos
semânticos (ou juízos relativos a propriedades de segunda ordem) parte do tópico, como se
olhássemos constantemente de lado, como se não nos ocupássemos da justiça, do significado ou
do cheiro, mas da nossa própria disposição para descobrir a justiça, o significado ou um cheiro.

16
IV

Eis, pois, a morte da filosofia analítica. E, no entanto, o cadáver caminha. Talvez só sejamos bons
a expor os erros de colegas suficientemente insensatos para transgredir as fronteiras
determinadas na secção i. Sou chocantemente mais optimista que isso. Defendo que se deve
responder «e depois?» ou manter tanta indiferença à crítica quanta a que conseguirmos. Estou,
nada mais, nada menos, a recomendar a prática efectivamente existente dos filósofos analíticos,
que tem consistido em prosseguir como se os fundamentos da sua abordagem fossem tão seguros
como nos melhores dias pré-witttgensteinianos ou pré-quineanos. O meu objectivo é unicamente
dar-lhes uma espécie de boa consciência. Não seremos expulsos do Paraíso, mas será bom ter
qualquer coisa que certifique o nosso direito a habitá-lo.

A verdadeira situação é visível se voltarmos a olhar para as páginas que acabei de escrever, ou
para páginas mais eloquentes e detalhadas de autores como Putnam e Rorty. Devemos ficar
surpreendidos ao verificar que, no próprio curso da sua exortação a favor da morte da filosofia
analítica, eles estão, na verdade, a fazer filosofia analítica. Podem estar a fazê-lo de forma um
tanto impressionista, mas isso pode e deve ser alterado. Além disso, este tipo de inconsistência
pragmática parece inevitável. O que tem de ser defendido é que, por exemplo, não existe nenhum
a priori, ou nenhuma epistemologia normativa, ou nenhuma redução de um discurso a outro, ou
nenhuma identificação de propriedades de um nível com as de outro. Não há maneira de comprar a
verdade ou falsidade de tais teses excepto através das maneiras em que estamos treinados:
desdobrando os argumentos, distinções e técnicas que preencheram revistas como a Philosophical
Review, a Mind ou a Canadian Journal of Philosophy no último século, mais ou menos, e que já eram
visíveis em Aristóteles e em Descartes desde muito antes. Não há maneira de compreender
completamente que o problema da mente-corpo está deformado e mal colocado, se é que
realmente o está, excepto trabalhando em prol de uma concepção melhor de mente e corpo na
qual o problema não se levante — e esta é precisamente a ocupação, em grande medida, da
filosofia da mente analítica contemporânea.

Esta afirmação tem sido contrariada, sobretudo por Richard Rorty. Ao perceber que seremos
sugados para o remoinho analítico se tentarmos defender que os problemas tradicionais da
filosofia estão mal colocados, ou que serão bem abordados de outro modo qualquer, Rorty
aconselha-nos a mudar de assunto ou a troçar de tudo isso. Na verdade, no que me parece um
erro monumental de identificação de tom literário, Rorty descreve as lutas atormentadas das
Investigações Filosóficas como um exemplo da última atitude, como se Wittgenstein se tivesse
sentido à vontade divertindo-se em Paris.(12) Mas, na verdade, nenhuma das recomendações é
muito apelativa. Uma coisa é acreditar que o problema da mente-corpo ou que o problema da
linguagem-mundo tal como o herdámos do passado está deformado, mal colocado e precisa de ser
afastado. Uma coisa muito diferente é dizer que essas enfermidades são suficientes para
delimitar uma área proibida; que devemos literalmente ser proibidos de cultivar qualquer
pensamento sobre o ser humano ou sobre o significado, ainda que unicamente para compreender
como evitar as ciladas nas quais os nossos predecessores caíram, segundo nos dizem. Ao voltar as
costas não alcançamos uma perspectiva melhor; ficamos sem nenhuma perspectiva. Analogamente,
uma coisa é troçar desses predecessores, como na verdade todos gostamos de fazer; mas saber
que isso é mais do que uma rebeldia adolescente é outra coisa. Saber que temos o direito de
troçar implica ter uma perspectiva melhor da área.

17
Ter uma perspectiva melhor pode muito bem significar que achamos que a área não contém
alguns temas, tal como foram colocados, nem algumas balizas, previamente admitidas como pontos
fixos. À partida nada se exclui, excepto, como digo, a crença de que não ter nenhuma perspectiva
é ter uma perspectiva melhor. E ter uma perspectiva qualquer significa navegar ao encontro do
redemoinho analítico.

É claro que a questão não pode ser deixada nestes termos. Se as enfermidades da filosofia
analítica são tão visíveis, por que razão é ela uma prática inevitável caso queiramos ter uma
compreensão das noções mais gerais de acordo com as quais pensamos sobre as coisas? A minha
resposta é que todas as teses enumeradas anteriormente são funcionalmente falsas. No nosso
pensamento é como se existisse um a priori, uma filosofia primeira, guardiã das normas, uma
perspectiva distanciada ou lateral sobre muitas das nossas práticas, ontologia, filosofia da mente
e até ética prática e teoria política. Não só funcionamos como se estas coisas fossem
verdadeiras, como não se consegue ver qualquer alternativa a essa prática. Talvez o a priori
funcional possa ser diagnosticado como a pressuposição absoluta do pensamento de uma época,
despojando-o do seu charme kantiano ao mesmo tempo que nos dá o direito de prosseguir nos
seus termos, acontecendo o mesmo com as outras categorias da crítica.

Penso que a verdadeira situação é muito semelhante à da crítica literária. Depois da primeira
exposição completa a Kuhn e a Feyerabend, muitos teóricos pensaram que a prática da avaliação
tinha sido desmascarada. O juízo tinha sido exposto como um disfarce de interesses de classe ou
de qualquer outro preconceito que na altura estivesse a ser ridicularizado, e a sua prática foi
abolida a favor de um levantamento antropológico dos modos segundo os quais tinha sido sempre
levado a cabo.(13) Mas, depois de alguma reflexão, começou-se a perguntar se a coisa se ficava por
aqui. Dado ser inevitável que algumas pessoas preferem uns livros a outros, a atitude de afastar a
possibilidade de uma discussão mais ou menos inteligente dessas preferências parece despótica;
admitindo que os padrões que trazemos para tais discussões têm raízes e são contingentes,
históricos, etc., eles são, no entanto, nossos — e se queremos conduzir uma discussão inteligente,
temos de os usar.(14) Podemos, com certeza, acrescentar um P.S. no final, afirmando que os juízos
emitidos são nossos, aqui e agora. Mas o P.S. não funciona como um tipo de qualificação, dado que
se for acrescentado em qualquer lado, deve ser acrescentado em todo o lado. Uma vez que
deveria aparecer no final de todas as frases, teria de acabar por precisar de ser abreviado num
nada. O juízo crítico ergue-se então, qual Fénix, das suas próprias cinzas.

Analogamente — sugiro —, os projectos de ver o que se segue do quê (a demonstração ou o a


priori), o que conta como virtude ou vício epistemológico (a normatividade), que relações de
sobreveniência, causalidade e mereologia podemos estabelecer entre entidades de diferentes
tipos de discurso (a ontologia), tal como a filosofia da mente e o raciocínio prático, não são
silenciados. São no máximo transpostos para um tom ligeiramente diferente pelas considerações
que foram apresentadas contra eles. Voltar as costas não é a única alternativa à nossa disposição
ao pensamento cuidado sobre as nossas categorias, mais do que o é em axiologia. E não se trata
de não haver trabalho para fazer (considere-se só a quarta afirmação na crítica da secção i, a
afirmação imensamente popular de que deveríamos contentar-nos com uma pluralidade de
discursos, com as suas diferentes perspectivas do mundo, e reflicta-se de seguida sobre a
questão de saber por que razão uma única realidade reconcilia diferentes perspectivas no caso
espacial, e, sendo assim, como poderá ela fazê-lo em termos mais gerais). (15)

18
Os leitores poderão sentir que as minhas ideias revelam uma abordagem «quase-realista» às
normas da discussão filosófica, estando para uma primeira filosofia à maneira antiga como uma
abordagem quase-realista da ética está para um racionalismo kantiano à maneira antiga ou para
um realismo reducionista. Não é fácil sentirmo-nos confortáveis com a autoconfiança resultante,
mas melhora-se com a prática. O verdadeiro problema, segundo me parece, não resulta tanto de
as considerações da secção i eliminarem os assuntos, mas do facto de tornarem genuinamente
mais difícil ver que método bem sucedido poderá haver. As censuras que lancei contra os métodos
da ciência de Oxford, contra o equilíbrio reflexivo e contra abordagens modernas populares da
metafísica, por exemplo, não perdem a sua força só porque se praticam esses métodos. Talvez,
como Klimt pensava, estejamos condenados a encenar uma tragédia perpétua: a reflexão
filosófica tem de ser praticada; logo, pratica-se; logo, pode praticar-se. Mas, excepto em poucos
casos, a sua prática não é bem sucedida; pelo menos não o é se houver um objectivo exterior a si
própria.

Simon Blackburn
Dept. of Philosophy
University of North Carolina at Chapel Hill
Chapel Hill, NC 27599 USA
Simon_Blackburn@unc.edu

19
Notas
*
Conferência proferida na SPF no 33.o Encontro de Filosofia Analítica (19 de Maio de 1997), por ocasião do lançamento da
edição portuguesa do Dicionário de Filosofia (Gradiva, 1997). Publicado originalmente na revista Canadian Journal of
Philosophy Supplementary Volume 19 (1993).

1
Strawson & Grice, «In Defence of a Dogma», Philosophical Review (1956).

2
Isto não tem de ser assim no que respeita a outras actividades: os militares, por exemplo, têm a tendência de promover
as pessoas precisamente por causa destes e outros defeitos. Veja-se Norman Dixon, On the Psychology of Military
Incompetence (Londres: Jonathan Cape, 1976).

3
Devo o termo a Mark Johnston, «Objectivity Refigured», Realism and Reason, J. Haldane & C. Wright, orgs. (Oxford:
Oxford University Press, 1992).

4
Este argumento encontra uma expressão enérgica em Stephen Stich, «What is a Theory of Mental Representation?» in
Mind 101 (1992).

5
Para um excelente diagnóstico desta tendência, veja-se Edward Craig, «Advice to Philosophers: Three New Leaves to
Turn Over», Proceedings of the British Academy 76 (1991), pp. 265-281.

6
David Hume, Investigação Sobre os Princípios do Entendimento Humano, Secção i.

7
Tive o prazer de encontrar uma excelente formulação da posição no artigo de Elizabeth Fricker, «Analyticity, Linguistic
Practice, and Philosophical Method» in Meaning Scepticism, Klaus Puhl, org. (Nova Iorque: De Gruyter, 1991).

8
Não estou aqui a sugerir que o carácter óbvio é de algum modo suficiente para um veredicto «popular» de «analítico».
Mas pode ser necessário. Veja-se «Morals and Modals» no meu Essays in Quasi-realism (Nova Iorque: Oxford University
Press, 1993).

9
Jonathan Bennett defendeu a prática da metafísica strawsoneana como a repetição de passos óbvios em direcção a
conclusões nada óbvias, por exemplo no seu Kant’s Analytic (Cambridge: Cambridge University Press, 1966). Não pretendo
refutar aqui a possibilidade teórica, mas há qualquer coisa parecido com o Sorites em todos os casos que conheço. Tal
como num Sorites, fora dos contextos matemáticos e formais há uma tendência para que não seja nada óbvio que
possamos acumular todos os passos óbvios.

10
Passarei a falar apenas de propriedades, para evitar repetições, mas penso que as observações se aplicam às demandas
filosóficas pela identidade dos estados, acontecimentos, coisas e até mesmo tipos.

11
A expressão é de Mark Johnston; veja-se o seu «Dispositional Theories of Value», Proceedings of the Aristotelian
Society Supplementary Volume 63 (1989) pp. 139-174. Veja-se também Philip Pettit, «Realism and Response
Dependence», Mind 100 (1991) e, para um tratamento excelente, veja-se os estudos em Response Dependent Concepts,
Peter Menzies, org. (Canberra: Research School of Social Sciences, 1991).

12
Richard Rorty, «Keeping Philosophy Pure», in Consequences of Pragmatism (Minneapolis, MN: University of Minnesota
Press, 1982), pp. 34.

13
Esta é uma das mensagens de Barbara Herrnstein Smith, Contingencies of Value (Cambridge, MA: Harvard University
Press, 1988).

Este é um aspecto sublinhado por Stanley Fish em muitos ensaios; por exemplo, «Consequences» in Doing What Comes
14

Naturally (Durham: Duke University Press, 1989).

15
Esta enigmática instrução é cumprida no meu ensaio «Enchanting Views», publicado nas actas da conferência de St.
Andrews de 1990 em honra de Hilary Putnam.

20
A Filosofia como Análise Lógica da Linguagem

Eduardo O C Chaves

I. Filosofia Lingüística e Filosofia Analítica

O que se chama hoje de Filosofia Lingüística (que não deve ser confundido com Filosofia da
Linguagem ou Filosofia da Lingüística) é um dos dois principais ramos da Filosofia Analítica. O
outro ramo principal é o Positivismo Lógico.

Tanto o Positivismo Lógico como a Filosofia Lingüística têm antecendentes importantes. O


primeiro foi antecedido pelo Atomismo Lógico de Bertrand Russell e pela filosofia do jovem
Ludwig Wittgenstein, representada pelo Tractatus Logico-Philosophicus. A Filosofia Lingüística
tem, como seu antecedente mais importante, G. E. Moore, com sua ênfase na análise do senso
comum e da linguagem do dia a dia. Às vezes se faz referência a esse período dos antecedentes
do Positivismo Lógico e da Filosofia Lingüística denominando-o de fase da "Análise Clássica".

Isto posto, é importante observar que a Filosofia Analítica, incluindo os antecendentes


mencionados, e abrangendo tanto o Positivismo Lógico como a Filosofia Lingüística, não é o que se
poderia chamar de uma "escola filosófica". Ela é muito mais um "movimento", cujos participantes
exibem certas características que lhe dão, por assim dizer, o ar de pertencerem à mesma família,
mas que não defendem, necessariamente, um conjunto de teses filosóficas comuns a todos -- a
não ser uma idéia geral sobre o objeto da filosofia e uma forma de ver o seu método.

As duas principais "semelhanças familiares" que exibem os filósofos analíticos seriam, portanto,
as seguintes:

A. O objeto da filosofia é a linguagem

B. O método da filosofia é a análise lógica

II. O Objeto da Filosofia

Quase todos os filósofos analíticos concordariam com a afirmação de que o objeto da filosofia é
a linguagem, e não a realidade não-lingüística.

Entretanto, uns -- os Positivistas Lógicos -- afirmariam que o objeto da filosofia não é a


linguagem, tout court, mas a linguagem da ciência; outros -- os Filósofos Lingüísticos -- não
incluiriam essa limitação, e afirmariam que a filosofia deve se preocupar com a linguagem de
qualquer disciplina ou atividade intelectual, como, por exemplo, com a linguagem da religião, da
política, da arte, e mesmo do sentido comum quotidiano.

Todos eles, porém, possivelmente concordariam que filosofia, discorrendo não sobre a realidade
não-lingüística, mas sobre a linguagem, não pode se situar no mesmo nível lógico do discurso que
pretende analisar, mas deve dele se distanciar, situando-se em um discurso de nível lógico
superior. A filosofia, portanto, se caracteriza, para esses filósofos, como uma atividade
lingüística de segunda ordem. É isso que a distingue da ciência e (para os filósofos lingüísticos)
das outras disciplinas que ela estuda.

21
As ciências naturais estudam a natureza, que é uma realidade não-lingüística. O discurso que as
ciências naturais faz sobre a natureza é um discurso de primeira ordem, pois seu objeto é a
natureza, não um outro discurso. A teologia também estuda -- ou pelo menos assim parece -- uma
realidade não-lingüística (digamos Deus, a relação do mundo e do homem com Deus, a realidade
supra-sensível, etc., em suma, aqueles fenômenos tidos como constituintes da religião). O
discurso teológico também seria um discurso de primeira ordem.

A filosofia, não discorrendo sobre a natureza ou sobre Deus e o mundo supra-sensível, mas, sim,
sobre o discurso que a ciência e a teologia fazem acerca dessas realidades, coloca-se em um nível
de discurso logicamente superior.

O problema surge quando a filosofia pretende discorrer sobre atividades que investigam uma
realidade que já é, pelo menos em parte, lingüística. O objeto das ciências humanas, não importa
como seja definido em detalhe, inclui manifestações lingüísticas de vários tipos. Seria o discurso
das ciências humanas um discurso de segunda ordem, por ter como objeto realidades lingüísticas?
Ou então tomemos a própria ciência da lingüística. Seu objeto indubitavelmente é a linguagem.
Será o discurso da lingüística um discurso de segunda ordem? E se o for, a análise filosófica do
discurso da lingüística seria de terceira ordem?

III. O Método da Filosofia

É aqui que a discussão do objeto da filosofia se à discussão de seu método. Na forma em que os
filósofos analíticos vêem a questão, a lingüística estuda a linguagem como se esta fosse um fato
natural. O discurso que a lingüística faz sobre seu objeto não se caracteriza, dessa ótica, como
um discurso de ordem lógica superior. A filosofia, porém, estuda a linguagem não como se esta
fosse um fato natural, que é dado, mas do ponto de vista de sua estrutura lógica.

Tomemos como exemplo um problema muito discutido por Bertrand Russell. A afirmação "O atual
rei da França é careca" seria, do ponto de vista do lingüista -- pelo menos do lingüista não muito
chegado a questões filosóficas -- uma afirmação totalmente regular e trivial. A oração é correta,
do ponto de vista sintático, a grafia das palavras não contém problemas, e, portanto, esse
enunciado não apresenta maior interesse. Para o filósofo, porém, esse é um enunciado altamente
problemático. Comecemos por perguntar se o enunciado, dada a melhor evidência hoje disponível,
é verdadeiro ou falso. Verdadeiro não pode ser, porque a França atualmente não tem rei. Se
dissermos que o enunciado é falso, porém, poderia percer que estamos afirmando (ou pelo menos
pressupondo) que a França tem atualmente um rei, mas que ele não é careca (i.e., que ele tem
cabelo). Ora, isso também não é verdade. Logo, o enunciado não parece ser nem verdadeiro nem
falso. Mas segundo um princípio básico da lógica, um enunciado ou é verdadeiro ou é falso --
tertium non datur. Como sair do impasse? Só através de uma análise lógica (e não meramente
lingüística) do enunciado. Uma análise lógica do enunciado demonstraria que ele, apesar de
parecer ser um enunciado simples, é, na realidade, um enunciado composto, constituído por dois
enunciados distintos: o primeiro é um enunciado existencial, que afirma que a França atualmente
tem um rei; o segundo é um enunciado condicional, que afirma que se alguém é atualmente rei da
França, esse alguém é careca. Feita essa análise, verifica-se que o primeiro enunciado é falso e
que o segundo é verdadeiro (pelas regras do cálculo proposicional ou sentencial, segundo as quais
um enunciado condicional só é falso se seu antecedente for verdadeiro e o conseqüente falso, o
que não é o caso aqui).

22
Isso posto, temos uma primeira aproximação do que seja a filosofia, do ponto de vista da
Filosofia Analítica: a filosofia é a análise lógica da linguagem, ou, se se preferir, do discurso.

O Positivismo Lógico, por defender certas teses metafísicas (como, por exemplo, de que só
existe significação cognitiva -- isto é, verdade e conhecimento -- no discurso científico) concluiu
que a tarefa da filosofia se esgota na análise lógica da linguagem da ciência, do discurso
científico.

A Filosofia Lingüistica, pretendendo livrar-se das teses metafísicas do Positivismo Lógico, e,


assim, tornar-se menos rígida e mais tolerante, admitiu que é tarefa legítima da filosofia fazer a
análise lógica de várias outras linguagens, como por exemplo, da linguagem da religião, da política,
da arte, da moralidade, etc. -- ou seja, da linguagem de qualquer outra disciplina ou atividade
intelectual. Podemos até dizer que ela absorveu o Positivismo Lógico como um de seus casos
particulares, despindo-o de suas pretenções exclusivistas e metafísicas e deixando-lhe a tarefa
de analisar do discurso científico (pelo menos no caso das ciências naturais).

1. A Ferramenta Lógica e Seus Pressupostos

Embora o termo "lógica" possa ser usado em outros sentidos, quando o utilizamos, no contexto da
Filosofia Analítica, ele se refere exclusivamente à relação de enunciados uns com os outros. Não
faz nenhum sentido, nesse contexto, falar em "lógica dos fatos". A lógica se ocupa apenas de
enunciados e suas relações, não dos fatos.

De igual maneira, quando se fala, nesse mesmo contexto, de contradição, é a contradição entre
enunciados que se refere, não fazendo sentido falar em contradição na realidade ou nos fatos. O
pressuposto básico aqui é que dois enunciados podem se contradizer, mas não dois fatos. Se dois
fatos acontecem, ou aconteceram, eles não envolvem uma contradição, nem sequer a nível dos
enunciados que eventualmente os descrevam.

É aqui que entra a noção de verdade.

A verdade, em um sentido puramente lógico, é a outra face da contradição. Um enunciado da


forma "a e não-a", ou "a é não-a", é uma contradição, e, portanto, necessariamente falso. Se eu
afirmo, por exemplo, "A bola é de couro e a bola não é de couro", ou "Um homem solteiro é um
homem não-solteiro", eu afirmo algo que é necessariamente falso. Não é preciso fazer nenhuma
investigação empírica da realidade para determinar que esses enunciados são falsos: sua própria
forma determina isso. Por outro lado, um enunciado da forma "a e a", ou "a é a", é uma tautologia,
e, portanto, necessariamente verdadeiro. Se afirmo "A bola de couro é a bola de couro", ou "Um
homem solteiro é um homem solteiro", eu afirmo algo que é necessariamente verdadeiro. Não é
preciso fazer nenhuma investigação empírica da realidade para determinar que esses enunciados
são verdadeiros: sua própria forma determina isso.

Em um sentido semântico, ou extra-lógico, porém, falamos em verdade quando há alguma forma


de correspondência entre um enunciado e o(s) fato(s) que ele descreve. Aqui saímos do nível
puramente lógico da relação de um enunciado com outro(s) para investigar a "relação" entre um
enunciado e a realidade não-lingüística, entre um enunciado e os fatos. Nesse sentido extra-
lógico, o enunciado "a bola é de couro" é verdadeiro se, e somente se, a bola for realmente de
couro, isto é, se for um fato que a bola (a que se refere o enunciado) é de couro. Normalmente é
esse o sentido que temos em mente quando falamos em verdade.

23
Note-se que em nenhum dos dois sentidos do termo "verdade" é admissível falar em "verdade dos
fatos", a não ser em um sentido derivado e quase metafórico. Os fatos existem ou não existem,
mas não são verdadeiros ou falsos. Não faz sentido falar em fato verdadeiro -- a expressão, se
usarmos "verdadeiro" em um sentido derivado, como sinônimo de "real", seria um pleonasmo
injustificado -- nem muito menos em fato falso -- a expressão, se usarmos "falso" em um sentido
derivado, como sinônimo de "irreal", seria paradoxal, contraditória mesmo. Verdadeiro ou falso é
o enunciado que pretende descrever um estado de coisas. O enunciado é verdadeiro se o estado
de coisas descrito existe, isto é, se o estado de coisas é um fato, e falso se o estado de coisas
descrito não existe, isto é, se o estado de coisas não é um fato, mas é apenas, digamos,
imaginado.

O exemplo do penúltimo parágrafo levanta uma outra questão que é preciso esclarecer. Em
relação ao enunciado "a bola é de couro", dissemos que, se a bola a que ele se refere for, digamos,
de borracha, ou de pano, o enunciado é falso. Se, porém, a bola a que se refere o enunciado for
realmente de couro, o enunciado é verdadeiro. Isso indica que o enunciado "a bola é de couro"
pode ser falso em alguns contextos -- quando se referir a bolas de borracha ou de pano, por
exemplo -- e verdadeiro em outros -- quando se referir a bolas realmente de couro.

Desse fato alguns podem ser tentados a concluir que um enunciado pode ser verdadeiro e falso ao
mesmo tempo, ou que a verdade é relativa, ou alguma coisa do gênero. Essa conclusão não se
justifica.

Quando usamos um enunciado como "A bola é de couro" o fazemos de forma elíptica, omitindo
uma série de especificações que são indispensáveis para a determinação de sua verdade ou
falsidade mas que são perfeitamente dispensáveis no contexto, porque facilmente subentendidas
pelos ouvintes ou leitores do enunciado. Assim, quando eu estou segurando uma bola nas mãos, e
não há outra bola na proximidade, e afirmo "A bola é de couro", esse enunciado na verdade é uma
elipse do enunciado "A bola [que eu, Eduardo Chaves, estou, no momento, 10:44 h do dia
30/10/90, segurando em minhas mãos] é de couro". O enunciado, assim qualificado, é verdadeiro
ou falso, nunca as duas coisas, e é verdadeiro ou falso de forma absoluta e não relativa. Se a bola
for realmente de couro, o enunciado (adequadamente caracterizado) é verdadeiro, de forma
absoluta, e o será per secula seculorum. Se a bola não for de couro, será falso -- também de
forma absoluta e para sempre.

A mesma questão pode ser ilustrada com outro enunciado: "Hoje está chovendo". Algumas
pessoas, com inclinações sofísticas, poderiam ser tentadas a afirmar que esse enunciado é
verdadeiro e falso, ou que sua verdade é relativa. Diriam que se "hoje" se refere a 14/10/90, e o
local é Gramado, RS, o enunciado é verdadeiro, mas que se hoje se refere a 30/10/90, e o local é
Campinas, SP, o enunciado é falso. A mesma coisa que se disse no parágrafo anterior deve ser
dita aqui. "Hoje está chovendo" é uma forma elíptica, de conveniência. O enunciado completo seria
algo como "Hoje, 30/10/90, no campus da UNICAMP em Campinas, ao meio dia, está chovendo".
Nesta forma, o enunciado é ou verdadeiro ou falso, nunca os dois. E sua verdade ou falsidade não
é relativa a nenhum contexto: só depende de estar ou não chovendo no campus da UNICAMP em
Campinas, ao meio dia de 30/10/90. Na realidade, o enunciado é falso porque estou escrevendo
isso ao meio dia de 30/10/90 no campus da UNICAMP e olhando pela janela constato que não está
chovendo -- pelo contrário há um lindo sol lá fora.

24
2. Tipos de Enunciados

A. Enunciados Singulares e Gerais

Até aqui limitei-me a usar enunciados relativamente simples e a falar de coisas singulares (uma
bola, um dia de chuva), não de classes de coisas.

Se eu fizer a afirmação "existe uma bola de couro de tigre de Bengala", que é uma afirmação
singular, existencial, basta que se encontre uma bola de couro de tigre de Bengala em algum lugar
do mundo para que a verdade de minha afirmação seja comprovada, ou para que minha afirmação
seja verificada. Falsificar essa afirmação, porém, é muito difícil. Se procurarmos a tal bola pelo
mundo inteiro e não a encontrarmos, não é tão simples dizer que falsificamos a afirmação: eu
posso sempre alegar que não procuramos direito, e que em algum lugar, ainda não examinado,
existe uma bola de couro de tigre de Bengala.

Esse exemplo serve de advertência para o seguinte: quando fazemos afirmações singulares,
especialmente existenciais, é relativamente fácil comprovar a veracidade da afirmação e muito
difícil comprovar sua falsidade.

Se eu, porém, disser "todas as bolas são redondas", estou fazendo uma afirmação não sobre uma
coisa singular, mas sobre toda uma classe de coisas. Minha afirmação, neste caso, será falsificada
se encontrarmos uma bola que não seja redonda -- e basta uma para que seja comprovada a
falsidade da afirmação. (A afirmação "todas as bolas são redondas" pode ser considerada, por
alguns, como verdade lógica, ou tautologia, porque o Aurélio define "bola" como "qualquer corpo
esférico" e define "redondo" como algo "que tem a forma perfeita, ou quase perfeita, de uma
esfera". Estou usando o termo "bola", porém, em um sentido que abrange as bolas de futebol
americano ou de rugby, que não têm a forma perfeita de uma esfera).

Concedendo que basta uma bola que não seja redonda para falsificar a afirmação de que todas as
bolas são redondas, podemos agora perguntar quantas bolas teremos que examinar para poder
concluir, com total justificação, que todas as bolas são redondas? Todas, não é verdade? Nada
menos do que todas -- e todas é muito, porque "todas" inclui bolas de outros países, bolas que já
deixaram de existir, bolas que vão ainda ser fabricadas ou tipos de bola que vão ainda ser
inventadas, etc..

Esse exemplo serve de advertência para o seguinte: quando fazemos afirmações gerais, é
relativamente fácil comprovar a falsidade da afirmação e muito difícil comprovar sua veracidade.

As chamadas teorias e leis científicas são constituídas de enunciados gerais. Por isso, embora
seja, em princípio, relativamente fácil refutá-las, é muito complicado confirmar sua veracidade.

25
B. Enunciados Empíricos e Não Empíricos

Até aqui também tenho utilizado enunciados descritivos de estados de coisas facilmente
observáveis: ser um bola de couro ou não, estar ou não chovendo.

Mas suponhamos que eu comece a fazer afirmações sobre coisas e seres que supostamente não
são observáveis, como intenções, motivos ou razões de um comportamento, sensações de angústia,
a alma, Deus. No tocante a enunciados sobre essas coisas e seres, é difícil imaginar como é que
eles podem ser verificados ou falsificados. Como é que esses enunciados se situam em relação a
enunciados acerca de prótons e nêutrons -- que também são, admitidamente, de verificação e
falsificação complicada? A filosofia da psicologia e da religião (ou, melhor dizendo, da teologia)
deve esclarecer essas questões.

C. Enunciados Descritivos e Prescritivos

Mas até aqui tenho utilizado enunciados descritivos -- de estados de coisas observáveis ou não.

Suponhamos, porém, que eu diga: "Você não deve castigar seu filho" (enunciado singular,
negativo), ou "Ninguém deve julgar os outros" (enunciado geral, negativo), ou "Todos devem
ajudar os necessitados" (enunciado geral, positivo).

O que esses enunciados têm em comum é o fato de que não descrevem nenhum estado de coisas:
eles prescrevem um determinado comportamento. Se nada descrevem, parece difícil determinar
se esses enunciados "correspondem com a realidade", e, portanto, se são verdadeiros.

Mas se parece difícil determinar se enunciados prescritivos são verdadeiros ou falsos, então a
ética e a teoria política estão em posição complicada, visto que (salvo melhor juizo) esses
enunciados parecem desempenhar um papel importante nelas.

D. Enunciados que Envolvem Termos Valorativos

Há uma outra categoria de enunciados que se parecem, em um aspecto, com enunciados


descritivos, e, em outro, com enunciados prescritivos. É a categoria de enunciados que envolvem
termos valorativos: "bom", "mau", "certo", "errado", "belo", "feio", "lindo", "horrível", etc..

Os enunciados que contêm esses termos parecem descritivos. Quando afirmo: "Esse quadro de
Picasso é lindo", parece que estou descrevendo uma característica do quadro, sua grande beleza.
No entanto, é difícil especificar no que consiste a característica beleza que eu encontro no
quadro. Por isso, alguns têm sugerido que o enunciado não é descritivo de alguma característica
do quadro mas sim de um sentimento de aprovação em mim, em relação ao quadro. O que o
enunciado descreve, afirmam, não é uma característica objetiva do quadro, mas um sentimento
subjetivo em mim. Como, porém, " de gustibus et coloribus non est disputandum ", outros podem
não ter esse sentimento diante do mesmo quadro.

Outros filósofos têm sugerido que o enunciado não descreve nada, nem no quadro nem em mim,
mas somente exprime minha aprovação do quadro, sendo equivalente a uma interjeição. Ainda
outros têm afirmado que o enunciado, embora descritivo na forma, é prescritivo no conteúdo,
sendo equivalente a algo como "Todos devem [no sentido de "têm o dever de"] admirar esse
quadro". E assim por diante.

26
O que se disse em relação a enunciados estéticos muitos têm também dito em relação a
julgamentos morais. Tomemos como exemplo o enunciado: "Discriminar [para não dizer
"assassinar"] pessoas com base em sua raça é moralmente errado". Estou descrevendo alguma
coisa ao afirmar isso? Se estou, a descrição é de alguma característica objetiva da ação de
discriminar alguém com base em sua raça ou de algum sentimento em mim? Ou será que não estou
descrevendo nada, mas apenas exprimindo minha emoção negativa diante da ação de discriminar
pessoas com base em sua raça, ou diante daqueles que assim discriminam? Ou será que estou
prescrevendo alguma coisa (por exemplo, que ninguém deve discriminar pessoas com base em sua
raça)?

Essas questões são essenciais para uma análise correta do discurso moral e do discurso estético.
É função da filosofia esclarecê-las, segundo os filósofos analíticos.

IV. Tipos de Filosofia Lingüística

1. A Epistemologia é Una

Existe uma corrente, dentro da Filosofia Lingüística, que defende a tese de que há algo em
comum em todos os problemas a que se fez rápida alusão na seção anterior. Segundo essa
corrente, todos os problemas mencionados, no âmbito da filosofia da ciência, da filosofia da
psicologia, da teologia, da arte, da moralidade, são, no fundo, problemas que giram em torno da
seguinte questão: até que ponto é justificável falar em conhecimento e verdade na ciência, na
psicologia, na teologia, na estética, na moralidade? Se é justificável, esses termos mantêm um
mesmo sentido em todas essas disciplinas, ou será que conhecimento científico é diferente de
conhecimento moral, será que a verdade científica é diferente da verdade religiosa? Na Idade
Média havia os que defendiam a teoria da Verdade Dupla. Segundo essa teoria, algo pode ser
verdade na ciência e não ser verdade na teologia, e vice-versa. Faz isso sentido? É uma tese como
essa defensável?

Mais importante, aqui, do que tentar responder a essas perguntas é reconhecer que todas as
questões levantadas são questões relacionadas ao conhecimento e à verdade: são questões que
poderíamos chamar de epistêmicas. É por isso que a corrente que mencionamos defende a tese de
que os problemas de que a filosofia se ocupa são sempre epistêmicos, e que os problemas
epistemológicos são fundamentalmente os mesmos, não importando o contexto disciplinar em que
sejam levantados. Ser filósofo, segundo essa corrente, é ser fundamentalmente, epistemólogo,
especialista na lógica dos conceitos epistêmicos.

27
2. As Epistemologias são Várias

Uma outra corrente nega, porém, que uma epistemologia comum subjaza a todas as disciplinas.
Com base nas idéias expostas por Wittgenstein em sua obra mais recente, essa corrente defende
a tese de que cada disciplina ou atividade intelectual é, como se fosse, um "jogo de linguagem".
Cada jogo tem suas próprias regras -- mas não existe nenhuma regra comum a todos os jogos.
Tudo o que pode existir são certas relações de semelhança familiar entre um jogo e outro. Damas
e xadrez, por exemplo, usam o mesmo tabuleiro, mas não possuem as mesmas regras. É possível
afirmar, por isso, que são mais semelhantes entre si do que com o jogo de bridge, que usa cartas
e não tabuleiro.

Não existe, portanto, segundo essa corrente, uma epistemologia. Se quizermos chamar de
epistemologia o estudo das regras de um determinado jogo, podemos afirmar que há várias
epistemologias, que nada têm em comum umas com as outras. O filósofo não é, fundamentalmente,
epistemólogo: ele é, isto sim, especialista nas regras de um jogo específico.

Segundo essa corrente, não é legítimo nem, na verdade, possível, criticar um jogo a partir dos
pressupostos e das regras do outro. Da mesma forma que não posso criticar o jogo de damas
porque não segue as regras do xadrez, não posso criticar a religião por não seguir as regras da
ciência. Cada jogo e cada disciplina têm suas regras próprias e só podem ser criticados de
dentro, por assim dizer.
  

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Wittgesntein: A impossibilidade de uma 'Linguagem Privada'

Ernst Tugendhat

Universidade Livre de Berlin

Wittgenstein ocupou-se com a problemática dos estados "f’ desde que recomeçou a
filosofar no ano de 1929. Nessa época, ele defendeu primeiramente uma posição
solipsista, como também já o fizera no Tractatus. Não abordarei essas etapas prévias de
sua posição posterior e indico como orientação P. Hacker, Jnsight and Illusion, caps. 4 e
7. A ruptura para a posição posterior aconteceu no Blue BooL que data dos anos 1933-4.
A posição definitiva é alcançada em "Notes for Lectures" (NL), publicado apenas em 1968
e escrito nos anos 1934-6, e é mais desenvolvida nas Investigações Filosóficas (IF),
sobretudo nos parágrafos 243-315, que são dedicados à refutação de uma assim
chamada linguagem privada.

Nas NL, também se encontram dispersas notas em alemão no texto escrito em inglês,
notas escritas portanto por Wittgenstein para si mesmo e não para seus ouvintes. Pode-
se usar uma dessas notas em alemão quase como epígrafe dessa e da próxima
conferência: "A atmosfera que cerca esse problema é terrível. Névoas densas da
linguagem estão situadas em torno do ponto problemático. É quase impossível avançar
em sua direção" (306). Mas Wittgenstein também pensava: "Queremos entender algo
que já está diante de nossos olhos" (IF, 89). "Os aspectos das coisas mais importantes
para nós estão ocultos por sua simplicidade e sua familiaridade" (IF, 129). Assim,
Wittgenstein parte da convicção de que aquilo a respeito do que nós questionamos em
filosofia é realmente muito simples, mas não conseguimos vê-lo, porque nossa maneira
de ver está enfeitiçada por analogias e metáforas linguísticas enganadoras. "A filosofia é
uma luta contra o enfeitiçamento de nosso entendimento pelos meios de nossa
linguagem" (IF, 109). Daí a nota em NL de que é quase impossível avançar para o ponto
problemático através da névoa da linguagem. Ele sente a atmosfera que cerca o
problema como terrível; e como Wittgenstein não tentou poupar os outros do caminho
por ele mesmo percorrido, nem tentou apresentar-lhes resultados, como ele preferia
mostrar o caminho apenas como caminho, de modo que o leitor deveria progredir por si
mesmo através da névoa, então, todo aquele que tenta compreender Wittgenstein e
avançar com ele em direção à clareza também deve sentir a atmosfera como terrível.
Também de minha parte, portanto, não esperem resultados. O que se pode fazer nesse
tipo de conferência é sempre apenas desbastar um pouco mais o caminho, tornar os
problemas pelo menos visíveis. Eu ficarei por aqui e cabe a vocês tentar ir adiante
progredir por si mesmo através da névoa, então todo aquele que tenta compreender

29
Wittgenstein e avançar com ele em direção à clareza também deve sentir a atmosfera
como terrível. Também de minha parte, portanto, não esperem resultados. O que se
pode fazer nesse tipo de conferência é sempre apenas desbastar um pouco mais o
caminho, tornar os problemas pelo menos visíveis. Eu ficarei por aqui e cabe a vocês
tentar ir adiante.

 Qual é o problema de que Wittgenstein fala aqui? Em IF, 309, ele pergunta: "Qual é o
teu objetivo na filosofia?" E responde: "Mostrar à mosca a saída da redoma
[Fliegengla.si]. Só se tomou claro como se deve entender essa frase muito citada após a
publicação das N13, pois lá lemos — novamente é uma nota em alemão —: "O solipsista
revoluteia e revoluteia na campânula [Fliegenglockei] , bate contra as paredes, revoluteia
adiante. Como conseguir tranquilizá-lo?" (p. 300). O problema é, portanto, o da
superação do solipsismo. Embora se possa entender isso também geneticamente, pois o
próprio Wittgenstein defendeu antes uma posição solipsista, deve-se entendê-lo
sistematicamente. Em outro lugar, nas NIL, ele diz: "Aqui, porém, o solipsismo nos dá
uma lição. Ele apresenta aquele pensamento que está no caminho de destruir esse erro"
(297). Que erro?

O erro envolve uma concepção das proposições "eu-f’ e "ele-f’, que Wittgenstein chama
no Blue Book da concepção do filósofo do senso comum (p. 48), ele acentua, ao mesmo
tempo, que esse filósofo do senso comum não é o homem do senso comum. Chama
também essa concepção de realismo. Ela pode ser caracterizada mais ou menos da
seguinte maneira: cada um conhece os estados internos, que são designados com os
predicados "f’, somente a partir de si mesmo, com base na percepção interna. Então
como posso julgar que também outros homens têm tais estados? Pois, na verdade, não
posso observar externamente neles esses estados, mas posso deduzi-los na concepção
do realismo por meio de uma inferência analógica. Porque observo que determinados
estados meus, por exemplo sensações de dor, são regularmente acompanhados por um
determinado comportamento do meu corpo, deduzo por analogia que também os outros,
quando exibem um comportamento semelhante, têm estados que são como os que
percebo em mim ao ter esse comportamento.

Há, contra essa concepção, as conhecidas objeções céticas, que Wittgenstein sublinha no
Blue Book. Como é que eu, sei que o outro, quando percebe objetos que percebo como
vermelhos, tem a mesma sensação de cor que eu? Uma vez que aqui se começa a
duvidar, onde então se terminará? Sei realmente que o outro tem em geral um estado
interno ou apenas creio nisso? E se eu apenas creio nisso, não devo então deixar em
aberto que sou o único que tem estados internos? No Blue Book, Wittgenstein argumenta
ainda mais rigorosamente: se não se pode realmente saber algo, então também não faz
sentido dizer que apenas se crê, pois crer em algo significa dizer que algo é o caso, mas
ainda sem fundamento suficiente; o que significa então crer em algo, quando nem
mesmo uma confirmação parcial é alcançável (p. 54)? Em outro lugar, ele aponta para o
fato de que não se poderia falar aqui de uma hipótese segundo a qual outros homens
têm estados internos, pois não se pode conceber absolutamente nenhuma experiência
que pudesse sustentar ou abalar a hipótese.

A consequência dessas objeções céticas é o solipsismo, segundo o qual só eu tenho


estados internos. O característico dessa posição é que abandona um lado da concepção
realista -- o de que também se poderia conhecer estados internos dos outros por meio

30
da inferência analógica -- mas insiste no ponto de partida da concepção realista -- o de
que se conhecem os estados internos próprios por meio da percepção interna. Portanto
quando Wittgenstein declara que o solipsismo esta "no de que jaz na origem da
concepção realista, afirma apenas que o solipsismo apresenta as verdadeiras
consequências teóricas da concepção realista. O solipsismo é ‘apenas uma variante mais
consequente do realismo’: enquanto simplesmente nega o que o realismo afirma, o
primeiro se coloca sobre a mesma base que esse último.

A concepção do senso-comum permite ainda o emprego das proposições ‘P’ na terceira


pessoa; em verdade, ela se esforça por conceder a simetria verídica das proposições ‘f’
presentes no nosso emprego efetivo dos predicados ‘f’ (acima, p. 89)6, mas o seu
princípio teórico não permite isso de fato1 o princípio trico_ë~zemã~um. princípio cético
latente. A medida que esse ceticismo latente é extraído do solipsismo, este nos conduz
ao ponto no qual o conflito com a linguagem, latente na concepção do senso comum,
torna-se evidente. Nesse ponto, por isso, uma saída só se torna possível quando se
põem em dúvida as pressuposições não questionadas pelo realismo e aceitas pelo
solipsismo.

No entanto, o solipsismo clássico ainda não é o último passo na dissolução interna do


realismo, pois ainda mantém a terminologia do "eu". Nisso repousa, segundo
‘Wittgenstein, uma inconsequência. Pois aquilo que é designado com "eu" tem — de
acordo com a regra de emprego da palavra "eu" — "vizinho" (cf. NL, 283): aquele que
usa "eu" para si mesmo é uma pessoa entre muitas, e essa pessoa pode ser também
designada com o termo "ele". Por isso, também o próprio Wittgenstein tinha
abandonado, em sua fase solipsista, a terminologia do "eu".

Se, portanto, para Wittgenstein o objetivo é sair da campânula do solipsista, isso não
significa sair do que é designado com "eu", mas significa sair para o que pode ser
designado com "eu", se o que pode ser designado com "eu" é sempre um ser que outros,
que se designam com "eu", podem designar com "ele". Nas NL, Wittgenstein observa, de
novo em uma nota em alemão: "Eu tento reduzido todo o problema ao não-
entendimento da função da palavra ‘eu’" (307). O problema aqui apontado por
Wittgenstein, é certamente a problemática especial do solipsismo. Não a abordarei aqui.
Nas IF, fala-se pouco do emprego da palavra "eu", porque aí ainda se trata apenas de
uma discussão com a pressuposição fundamental comum ao solipsismo e ao realismo.
Essa consiste na aceitação de que os estados ‘f’ são processos internos dados em uma
percepção interna. Contra isso, Wittgenstein quer mostrar que os predicados ‘T’ têm um
significado que é uniforme, desde o princípio, a partir da perspectiva do "eu" e do "ele".
Seu projeto é, portanto, de um lado, destrutivo — crítica daquela pressuposição — e, de
outro, construtivo, pois ele deve conduzir para um novo entendimento das proposições
‘f’.

Na conferência de hoje tratarei apenas da parte destrutiva. Essa consiste na crítica à


representação de uma linguagem privada. Devemos, antes de mais nada, perguntar: em
primeiro lugar, o que Wittgenstein quer dizer com uma linguagem privada, e em
segundo, em que medida se pode dizer que a pressuposição essencial do realismo e do
solipsismo consiste na aceitação de uma linguagem privada?

Wittgenstein diz em IF, 243, como quer que se entenda o seu termo "linguagem

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privada". Por uma linguagem privada não se deve entender alguém que fala consigo
mesmo e nem toda uma linguagem que fosse falada por apenas um homem. "Poder-se-
ia imaginar também homens que falassem apenas monologicamente." Isso não é, então,
uma linguagem privada no sentido de Wittgenstein, pressupondo que se poderia
"traduzir para a nossa linguagem" a linguagem de um tal homem. Do mesmo modo, não
é ainda uma linguagem privada se alguém, nessa linguagem, "anotasse ou exprimisse
suas experiências internas — seus sentimentos, suas disposições etc. — para uso
próprio"; isso também se pode fazer "em nossa linguagem ordinária".

Ao contrário, naquela linguagem que Wittgenstein chama de linguagem privada, "as


palavras li devem se referir a algo de que apenas o falante pode saber; li. Um outro,
portanto, não pode entender essa linguagem". A ênfase aqui repousa na palavra "pode".
Assim, o característico de uma linguagem privada não é ser essa empregada de fato
apenas por um indivíduo, nem se referirem as palavras dessa linguagem às experiências
do indivíduo; mas trata-se de uma linguagem privada — no sentido a ser criticado —
apenas quando um outro não pode entender essas palavras ou, mais precisamente,
quando as palavras dessa linguagem se referem a algo "de que apenas o falante pode
saber".

Pode-se ver facilmente como a pressuposição comum do realismo e do solipsismo está


relacionada com a representação de uma linguagem privada assim compreendida. Na
medida em que essas duas teorias se perguntam como deveria ser uma linguagem, que
corresponda à sua concepção, é claro que, se não todas as expressões dessa linguagem,
em todo o caso pelo menos os predicados ‘f’ teriam um significado para cada indivíduo, o
qual seria acessível somente a esse indivíduo.

Poder-se-ia julgar problemático o fato de Wittgenstein imediatamente conceber a teoria


criticada como uma teoria sobre uma linguagem correspondente a seu pressuposto. As
teorias tradicionais não se compreendiam a si mesmas desse modo e poder-se-iam
objetar a Wittgenstein: "Talvez uma linguagem privada não seja concebível, mas o que é
propriamente privado dos estados ‘f’é que não são acessíveis de modo nenhum por meio
de palavras". Wittgenstein considera uma tal objeção no começo das NL, formulando-a
primeiramente em alemão: "Pode-se dizer algo sobre a experiência determinada de
alguém mas parece haver alguma coisa, além disso — na verdade o essencial —, que
não se pode descrever" (275). Depois de uma primeira crítica conduzida ainda em
alemão, escreve em inglês: "É como se, apesar de você não poder dizer-me exatamente
o que ocorre em você, você pudesse, não obstante, dizer-me algo de genérico sobre
isso. Por exemplo, quando você diz que tem uma impressão que não pode ser descrita. É
como se houvesse ainda algo mais, mas você não o pode dizer, você pode fazer apenas
a declaração geral. É essa idéia que caçoa de nós" (276).

Wittgenstein não é muito explícito nesse ponto e poder-se-ia responder a ele: "é, de fato
é assim mesmo; na verdade temos estados que podemos chamar genericamente de
sensações, mas que não podemos descrever, para os quais, portanto, não temos
expressões linguísticas". Pensem, como exemplo, em uma situação na qual se tem dor
de cabeça; não se tem simplesmente dores na cabeça, mas se tem uma sensação bem
determinada e dizemos então algo como: eu tenho na cabeça uma sensação de dor bem
determinada, a qual contudo não posso descrever. Ou pensem, por exemplo, em
sensações gustativas ou olfativas. Estamos aí inclinados a dizer: quando saboreio uma
pêra ou provo um determinado vinho, tenho uma sensação gustativa determinada, mas

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indescritível.

Wittgenstein responderia a isso mais ou menos da seguinte maneira:

"Vocês realmente querem dizer que se trata, no caso dessa sensação indescritível, de
uma sensação determinada? Se é uma sensação determinada, então, isso significa que
vocês podem diferenciá-la de outras sensações comparáveis, que vocês podem portanto
identificá-la e reconhecê-la como qualitativamente a mesma, por exemplo, um gosto de
vinho bem determinado em relação a um outro. Mas, se esse é o caso, vocês certamente
podem nomear a respectiva sensação determinada; de fato, vocês terão consciência de
que é uma sensação determinada e identificável apenas se a nomearem.

Não é necessário para se nomear empregar-se um nome determinado ou um predicado


determinado; já é suficiente se vocês disserem: ‘eis agora de novo a mesma dor de
cabeça, que tive anteontem e não a que tive ontem’. Se se for tão longe, produz-se
naturalmente — embora não seja algo essencial — a nomeação da dor de cabeça de
anteontem como, por exemplo, tipo A em distinção ao tipo B, que seria a dor de cabeça
de ontem. Se vocês, ao contrário", poderia continuar Wittgenstein, "quiserem dizer com
a impossibilidade de se descrever a sensação que essa não é determinada, nem
diferenciável de outras, então vocês a descreveram linguisticamente de modo muito
adequado, quando dizem que essa sensação é indescritível e indeterminada e, de novo,
não há nada aí que escape à linguagem".

Wittgenstein faz amiúde o seu opositor — por assim dizer, aquela voz nele mesmo que
ele próprio quer silenciar — responder a uma reflexão do seguinte tipo: é precisamente o
essencial, o vivo que escapa à linguagem. Ao que Wittgenstein responderia de novo:
Mas, o que é essencial? O que quer você dizer se você não quer designar essa sensação
nem como determinada, nem como indeterminada? "Assim, ao se filosofar, chega-se até
ao ponto no qual se desejaria somente proferir um som inarticulado" (IF, 261), e
Wittgenstein acrescenta: "Mas um tal som somente é uma expressão se ocorre em um
jogo de linguagem determinado, que deve então ser descrito".

Poder-se-ia querer censurá-lo por cometer uma petitio principia, ao retomar a indicação
do inefável apenas como algo linguístico. Mas, reflitamos: quando falamos do inefável,
realmente falamos, e por isso se queremos tornar claro o que com isso queremos dizer,
precisamos nos perguntar, por exemplo, como empregamos essa expressão linguística "o
inefável". Vocês poderiam responder: mas e se não falássemos do inefável, se
simplesmente apenas o sentíssemos? A dificuldade é precisamente que, ao colocar tal
pergunta, nós naturalmente não podemos deixar de colocá-la linguisticamente. Na
medida em que filosofamos sobre a sensação do inefável, já estamos sempre no terreno
da linguagem; e quanto ao mais, só podemos precisamente calar. Wittgenstein parece
querer dizer: quem quer calar-se, deve calar-se, mas então deve realmente se calar;
não se pode, de um lado, utilizar-se da fala e, de outro, resistir ao fato de ser tomado a
sério como falante. "Não é isso o que você me censura, como se você quisesse dizer:
‘em sua linguagem, só se fala’ (NL 297).

Wittgenstein, assim, parece estar justificado em interpretar o problema epistemológico,


se somente eu posso conhecer meus estados "f’, como um problema semântico. E
portanto o problema assume agora a forma da seguinte pergunta: uma linguagem
privada é possível ou toda linguagem é tal que 

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Pode-se dividir o procedimento de Wittgenstein em dois passos. Em um primeiro passo,
ele pergunta como a nossa linguagem real se refere a sensações e mostra que isso não
acontece da maneira que corresponderia à tese de uma linguagem privada. Isso,
contudo, não é surpreendente, pois nossa linguagem real é uma linguagem
intersubjetiva, que aprendemos também intersubjetivamente. O opositor de Wittgenstein
pode aceitar isso e ainda defender a concepção de que os predicados "f" têm uma dupla
semântica: de um lado, um significado intersubjetivo, mas de outro também significado
privado para cada pessoa. Por isso, Wittgenstein deve mostrar, em um segundo e
decisivo passo, que um tal componente privado do significado não pode existir de modo
nenhum, e o faz quando demonstra que uma linguagem privada contradiz princípios
gerais do emprego significativo de expressões.

Como se referem as palavras de nossa linguagem real a estados "f"? Wittgenstein


começa por essa questão, depois de ter esclarecido o que deve ser entendido por uma
linguagem privada em IF, 243, no parágrafo seguinte (244): "Como as palavras se
referem a sensações? — Nisso não parece haver nenhum problema; pois não falamos
diariamente de sensações e as nomeamos? Como é estabelecida, porém, a ligação do
nome com o nomeado?" (Prestem atenção agora ao passo seguinte!) "A questão é a
mesma que: como um homem aprende o significado dos nomes de sensações? Por
exemplo, da palavra ‘dor’." (A questão "como um nome se refere àquilo que nomeia?"
tem, assim, em nossa linguagem ordinária o seguinte sentido: como podemos explicar a
alguém o emprego da expressão ou, visto do outro lado, como esse alguém pode
aprender seu emprego? Isso é agora aplicado por Wittgenstein às sensações.) "Esta é
uma possibilidade: palavras são relacionadas à expressão original e natural da sensação
e postas em seu lugar. Uma criança se machucou e chora; e então os adultos lhe falam e
ensinam exclamações e, depois, proposições. Eles ensinam à criança um novo
comportamento de dor." Wittgenstein designa um choro como "expressão natural da
sensação". Ao contrário, "exclamações" como "ai!" já são expressões de dor
convencionais e linguísticas; não são naturais porque variam de língua para língua. E por
"proposições" quer-se dizer naturalmente as proposições "f’, como "eu tenho dores". Elas
são estreitamente assimiladas por Wittgenstein às exclamações. "Assim, pois, você diz
que a palavra ‘dor’ significa, na verdade, o chorar?". Ao contrário, a expressão verbal da
dor, substitui o chorar e não o descreve."

Esse parágrafo já contém os elementos da concepção positiva própria de Wittgenstein


sobre as proposições "f" e pode ser útil desde já conhecê-los. Se deve poder existir um
entendimento intersubjetivo sobre estados de consciência, então estes devem poder se
manifestar no comportamento. Deve existir, assim, uma relação entre um
comportamento externo observável e o estado de consciência. Isso também é aceito pela
teoria analógica, mas agora se toma decisivo determinar de que lado se apreende a
referência da palavra. A teoria analógica acreditava ter que associar a partir de dentro,
por assim dizer, o nome à sensação e isso tinha como consequência que a relação entre
a expressão da sensação e a sensação era apenas contingente e indutiva, com todas as
consequências desastrosas que se produziam para as proposições "f’ na terceira pessoa.
Se se realiza, ao contrário, a associação do nome da sensação a partir de fora, por assim
dizer — e é assim precisamente que essa se realiza de fato na maneira pela qual
aprendemos a nossa linguagem ordinária —, então produz-se, entre a expressão da
sensação e a sensação, uma conexão de essência [ Wesenszusammenhan]. Pois a
palavra que aprendemos é realmente uma palavra para sensação, ela está no lugar da
sensação e não do comportamento; por outro lado, aprendemos o emprego, isto é o
significado da palavra para sensação apenas em conexão com o comportamento. Por

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conseguinte, deve existir entre a sensação e o Comportamento correspondente — a
"expressão da sensação" natural ou convencional (e a sensação serve sempre apenas
como exemplo de um estado "f’ qualquer) —uma conexão fundada no significado da
palavra, o que quer dizer analítica, uma conexão essencial. Segundo Wittgenstein, o
su~mento da expressão de sensação é, a partir da perspectiva da teoria do indivíduo
analítico eira pesspa, um critério, Isto é, um de que a sensação existe. É um indício e
isso não quer dizer que seja uma garantia. A proposição "eu-f", ao contrário, não se
baseia em uma observação, mas substitui — como Wittgenstein diz no parágrafo citado
logo acima — uma expressão natural do estado "f’ e a externação da proposição na
primeira pessoa deve servir portanto, de sua parte, como expressão do e~~do. Teremos
que investigar na próxima conferência como tudo isso deve ser entendido mais
precisamente.

No parágrafo 244, Wittgenstein ainda não emprega o seu conceito de critério e não fala
de uma conexão de essência. Enquanto ele diz apenas genericamente que as palavras
para sensação da linguagem ordinária são aprendidas em conexão com as expressões de
sensação, o filósofo do senso comum ainda pode concordar com ele. Wittgenstein diz nas
NL como esse filósofo reagiria à referência a um emprego intersubjetivo das palavras
para sensação. Ele faz o opositor dizer: "‘Dor de dente’ é uma palavra que eu emprego
em um jogo que jogo com outras pessoas, mas que tem um significado privado para
mim" (289). O filósofo do senso comum conduz agora, portanto, por rua de mão dupla:
as palavras para sensação têm, de um lado um significado intersubjetivo, de outro, um
privado. Este diz respeito ao inefável, sobre o qual ele não pode saber se outros
realmente o têm ou se esses o têm de modo semelhante ou diferente de seu próprio
modo.

Vejamos essa posição ainda em um outro exemplo. Na consideração principal das IF,
"dor" é o exemplo primário no qual Wittgenstein se orienta. Ao lado disso, a partir do
parágrafo 272, as sensações de cores também são consideradas e nas NL esse exemplo
ocupa um amplo espaço ao lado do da dor de dente. Evidentemente, devemos aqui
distinguir entre, por exemplo, "vermelho" e "ver-vermelho". Somente "ver-vermelho" é
análogo a "ter dor" que é um predicado "f’. Pode-se dizer "eu vejo vermelho", mas não
"eu vermelho", a menos que alguém queira dizer que ele é vermelho e, então,
"vermelho" não é, obviamente, um predicado "f". Por isso, as considerações das NL, em
contraste com as das IF, atêm-se à expressão do ver-vermelho. A expressão do ver-
vermelho, contudo, é ambígua. Pode-se entender aqui "ver" no sentido de "perceber",
mas também se pode entender no sentido de representar, de modo que também a mera
representação fantasiosa de uma mancha vermelha pode ser designada como ver-
vermelho; e assim é entendida a expressão de ver-vermelho nas NL. Esse ver interno de
algo vermelho que não é dado na forma de uma percepção, oferece problemas em sua
relação com a percepção de algo vermelho, com os quais Wittgenstein se ocupa nas NL e
também em outras passagens das IF. Abordá-los agora seria muito complicado. Eu tomo
a problemática em sua forma facilitada, na qual aparece em nosso trecho das IF, onde se
trata simplesmente das palavras "vermelho", "verde" etc. O filósofo do senso comum fala
aqui de uma sensação de vermelho e em geral das sensações de cor; essas sensações
são compreendidas de modo semelhante às sensações de dor como algo internamente
perceptível, apesar de essa concepção não ser necessária para a posição tradicional. Mas
também é característico da posição tradicional pensar aqui como nos predicados "f’: o
que cada um quer dizer com as palavras "vermelho", "verde" etc., somente ele próprio
pode saber. Uma outra perspectiva se produz de imediato, se atentamos para o modo
pelo qual essas palavras são de fato aprendidas e empregadas.

Nas NL, Wittgenstein permite ao representante da posição tradicional expor

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primeiramente a sua concepção: "Se ensinamos a alguém a palavra ‘vermelho’, então
essa palavra se liga (ou deve se ligar) para ele a uma determinada sensação sua (uma
sensação privada, uma sensação nele). Ele pode, então, comunicar essa sensação — de
modo indireto, naturalmente —através do meio da linguagem" (279). Mas como
ensinamos de fato a palavra "vermelho"? Quando mostramos como essa é aplicada a
objetos. "Compreendemos o critério para isso no fato de que ele, com ‘vermelho’, se
refere ao mesmo que nós, no fato de que ele em geral dá os mesmos nomes que nós às
cores dos objetos." Aqui, por se tratar de predicados que aplicamos a objetos.

materiais, o comportamento não é mais o critério, mas sim como os objetos são
classificados.

O opositor pode admitir também aqui que nós temos que explicar desse modo o
significado intersubjetivo das palavras para cor e, então, de novo, insistir em que, nesse
caso, essas palavras têm um duplo significado: "O que devo dizer sobre a palavra
‘vermelho’? — que essa designa algo ‘que está diante de todos nós’, e que cada um
deveria ter, além dessa palavra, uma outra para designar sua própria sensação de
vermelho? Ou devo dizer assim: a palavra ‘vermelho’ designa algo conhecido por todos
nós; e designa para cada um, ademais, algo conhecido apenas por ele?" (IF, 273).
"Seria, portanto, possível a suposição — apesar de não verificável — de que uma parte
da humanidade tem uma sensação de vermelho e uma outra parte, uma outra."(IF,
272) 

Essa concepção das palavras para cor, assim como anteriormente as palavras para
sensação, parece-nos talvez muito atraente. Poderia estar certa? Mas, se nessa
pergunta, de acordo com o seu próprio sentido, nada pode ser alegado de modo a
podermos decidir a favor ou contra, então não é essa concepção simplesmente sem
sentido?

No contexto de nossa linguagem ordinária, portanto, a concepção de que as palavras


para sensação ainda têm um significado privado adicional parece vazia. A questão sobre
dois predicados "f’ terem ou não o mesmo significado estaria então sempre resolvida a
partir do seu emprego na linguagem ordinária e simplesmente acrescentaria: para cada
significado que é determinado pelo critério de emprego, refiro-me ainda a algo inefável,
sobre o qual não sei se é semelhante nos outros.

Mas a idéia de uma linguagem privada não poderia ter um sentido independente da
linguagem ordinária? E não haveria na verdade também um emprego significativo de
palavras para sensação que alguém poderia inventar apenas para si próprio e que não
poderia comunicar aos outros? Não seria dessa espécie o exemplo acima mencionado de
uma dor de cabeça, A em oposição a uma dor de cabeça B? Não haveria sensações que
podemos reconhecer como determinadas e distinguir de outras, mas sem podermos
indicar critérios externos para elas? São tais questões que tornam necessário a
Wittgenstein, em um segundo passo, contestar a possibilidade de uma linguagem
privada. Essa argumentação tem lugar nas IF, 256-70. Uma primeira versão também já

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se encontra in nuce nas NL (290s).

Se se quiser conceber claramente a possibilidade de uma linguagem privada pura, então


se recomenda que se abstraia totalmente do domínio do comportamento. Por isso,
Wittgenstein começa, no parágrafo 256, assim: "Mas o que ocorreria, se eu não tivesse
nenhuma expressão natural da sensação, mas tivesse somente a sensação?". No
parágrafo 257, Wittgenstein faz, de início, o representante da teoria da linguagem
privada dizer: "Como seria se os homens não expressassem suas dores (não gemessem,
não fizessem caretas etc.)? Nesse caso, não se poderia ensinar a uma criança o uso da
palavra ‘dor de dente"’. O opositor faz aqui a concessão de que realmente não há um
aprender intersubjetivo de palavras para sensação. Para fazê-lo ver o

que realmente está em jogo, Wittgenstein propõe: "Agora, suponhamos que a criança
seja um gênio e invente por si mesma um nome para a sensação!". Com isso
Wittgenstein quer dizer: o problema verdadeiro não é o do aprendizado da palavra, mas
o do emprego da palavra. Parece ainda que a dificuldade seria apenas a de que não se
poderia comunicar intersubjetivamente. Wittgenstein faz o outro dizer: "Mas agora ele
não poderia se fazer entender com essa palavra". O diálogo, presentemente, já está tão
avançado que Wittgenstein pode elevar o problema a seu nível decisivo: "Assim, ele
entende o nome, mas não pode explicar seu significado a ninguém?" Com essa pergunta,
Wittgenstein aponta para a sua tese: em um tal caso, trata-se não apenas de urna
iessoanão- poder explicar o significado a urna outra, mas também de não poder
entender o nome ela própria.

E por que não? Recebemos como primeira resposta: "Quando se diz ‘ele deu um nome à
sensação’, esquece-se que muita coisa já deve estar preparada na linguagem para que
um mero nomear tenha sentido. E se falamos de alguém que dá um nome à dor, então a
gramática da palavra ‘dor’ é no caso o que já foi preparado; a gramática indica o lugar
em que a nova palavra será colocada". Obviamente, essa primeira resposta não é ainda,
por si mesma, um argumento contra um significado privado. Mesmo que Wittgenstein
tenha razão em afirmar que para o emprego de um tal nome "muita coisa já deve estar
preparada na linguagem", ainda não se mostrou que isso não pode ocorrer também em
uma linguagem privada.

Só o parágrafo seguinte, 258, traz a verdadeira argumentação. Ele é o decisivo de toda a


série. Wittgenstein começa assim: "Imaginemos esse caso. Quero escrever um diário
sobre a recorrência de uma determinada sensação. Para isso, eu a associo com o signo
‘5’ e escrevo esse signo em um calendário cada dia em que tenho a sensação". Isso
corresponde aproximadamente ao meu exemplo da dor de cabeça. Pode-se pensar que
anoto minhas duas espécies de dor de cabeça, A e B, dessa maneira em um calendário.
Observem também que, da maneira como Wittgenstein concebe a problemática, não só é
questionada uma teoria radical da linguagem privada mas também uma outra
concepção, que admite que, para se dar um nome, "muita coisa já deve estar preparada
na linguagem". Essa última poderia ser a linguagem intersubjetiva, em cuja estrutura
ainda se pudesse proceder a diferenciações privadas de sensações. A questão então é se
já que nesse nomear linguístico privado, a possibilidade de se dar ao signo um
significado. Se não existe, está refutada a linguagem privada. Dar significado a um signo
é — se se entende essa palavra em um sentido amplo- definir um signo, portanto, vem a
ser se é possível definirem-se os nomes de uma linguagem privada. Se não for possível,

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então ela não existe de~Qd~j&1m.

O primeiro passo de Wittgenstein é: "Quero observar primeiramente que uma definição


do signo não pode ser formulada". Eu não creio que Wittgenstein queira aqui dizer que
uma definição não pode ser formulada em voz alta, pois, nesse caso, não se teria mais
uma linguagem privada. Antes, deve querer dizer que uma definição verbal — uma
definição dos grupos pro meio das palavras de um predicado elementar. A esse respeito,
não pode haver diferença entre Wittgenstein e seu opositor. Distingue-se comumente
entre definições verbais e definições ostensivas e demonstrativas. Se, portanto, não é
possível uma definição verbal do signo "5", parece então estar particularmente em
questão uma definição ostensiva. E por isso Wittgenstein faz o seu opositor dizer na
próxima frase: "Mas eu posso certamente dar a mim mesmo uma espécie de definição
ostensiva!".

Wittgenstein submeteu a concepção de definições ostensivas a uma crítica no começo


das IF (27-35) e A. Kenny sustenta, em sua interpretação do argumento da linguagem
privada, que Wittgenstein já tinha com aquela crítica retirado os próprios fundamentos
da teoria da linguagem privada. Veremos que isso é no fundo correto, porém devemos
ser aqui muito cuidadosos. Em primeiro lugar, porque tal crítica é facilmente mal-
entendida, e isso vale muito particularmente para a passagem paralela no começo do
Blue Book. "A definição ostensiva explica o uso — o significado —~ da palavra, quando já
está claro o papel que a palavra deve jogar em geral na linguagem. Se eu sei, portanto,
que alguém quer me explicar uma palavra para cor, então essa explicação ostensiva ‘isso
chama-se sépia’ me ajudará a entender a palavra." (30) Wittgenstein parece querer
dizer aqui: se eu ainda não sei que "sepia se refere a uma cor, então não posso saber
que aquele que mostra algo e diz "isso chama-se sépia" não se refere a um outro
aspecto qualquer do objeto, por exemplo à sua forma. É aparentemente sustentável que
isso poderia ser o que Wittgenstein afirma também no parágrafo 258, em conexão com a
indicação do parágrafo 257, a saber, a de que para se entender um nomear "muita coisa
já deve estar preparada na linguagem". Mas, em primeiro lugar, já se fez corretamente
uma objeção contra tal argumento’0: alguém percebe que "sépia" se refere precisamente
a uma cor, quando se mostram mais objetos, todos com essa mesma cor, mas que
variam em seus outros aspectos. Não é preciso ouvir, portanto, que se trata de uma
palavra para cor. Se fosse esse, pois, o sentido da crítica de Wittgenstein às definições
ostensivas, então ela seria completamente implausível. Mas, torna-se claro, a partir do
resto do parágrafo 258, que Wittgenstein não se apóia de maneira nenhuma em uma
recusa geral das definições ostensivas. Pois, à recém-dada explicação do opositor de que
poderia fixar o significado do signo "5" por meio de uma definição ostensiva,
Wittgenstein responde: "Como? Posso apontar para uma sensação? Não no sentido
habitual". Essa resposta pressupõe que, nos casos em que pudermos apontar para algo
no sentido habitual, uma definição ostensiva é possível.

Se podemos apontar para algo no sentido habitual, podemos designá-lo com "isso". E
parece, então, que podemos, por exemplo, definir palavras como "vermelho" ou
"escaravelho": "isso é vermelho, "isso e um escaravelho". Aqui, portanto, algo é
identificado com "isso", que então é caracterizado e classificado pelo predicado que se
segue; repetindo isso várias vezes com um predicado, passamos a conhecer como
objetos são caracterizados e classificados por meio desse predicado e, assim,
entendemos o significado do predicado. Já vimos, porém, que não há no emprego de
predicados "f’ na primeira pessoa nenhum emprego correspondente da palavra "isso" e
que aqui nada pode ser de forma alguma identificado. Quando eu emprego meus

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predicados de dor de cabeça "A" e "B" e digo "isso é A" e "isso é B" "isso" não identifica
algo a respeito do qual se possa verificar, durante sua observação, que é A ou B ou,
então, que não é A ou B; mas "isso" se refere diretamente a ser-A e ser-B, não a algo
que é A ou B.

Wittgenstein tem, assim, toda razão em afirmar que não se pode tratar de uma definição
ostensiva "no sentido habitual". Seu opositor aceita também isso e esclarece então sua
concepção: "Mas eu falo ou escrevo o signo e, ao mesmo tempo, concentro minha
atenção na sensação — aponto, portanto, como que interiormente para ela".
Wittgenstein responde: "Mas para que essa cerimônia? Pois ela parece ser somente
isso!". Se, como seu adversário agora esclarece, no discurso de um apontar — com ou
sem "isso" — apenas se expressa a concentração da atenção, então se trata de fato de
uma cerimônia vazia: pois o apontar — com ou sem "isso" — não tem no caso função
semântica alguma.

Wittgenstein prossegue: "Uma definição serve certamente para estabelecer o significado


de um signo". Para esclarecimento, pode-se fazer aqui dois paralelos com as NL: "Em
nosso jogo privado de linguagem, assim parecia, tínhamos dado um nome à sensação —
naturalmente para empregarmos o nome para essa sensação no futuro. Isto é, a
definição deveria estabelecer para futuras ocasiões para quais sensações o nome deveria
ser empregado e para quais, não" (291). "No emprego da palavra ‘significado’ é
essencial que o mesmo significado seja mantido durante todo o jogo" (289). Contudo,
ainda não está claro por que, se algo não pode ser apontado no sentido genuíno —isto é,
identificado—, a palavra não pode ter essa função de ser mantida com o mesmo
significado. Mas Wittgenstein considera não ser evidente o modo pelo qual a palavra
deve adquirir essa função por meio da concentração em algo presente, do estar de certa
maneira absorto nesse algo. "Mas como é o dar um nome à sensação? Supostamente
consiste no pronunciar um nome enquanto se tem a sensação e talvez no se concentrar
na sensação. Mas e daí? O nome contém por isso poderes mágicos?" (NL, 290).

Nas IF, 258, o representante da teoria da linguagem privada responde:

"[...] Por meio da concentração da atenção "gravo em mim a ligação do signo com a
sensação". A seguir, Wittgenstein diz: "‘Gravo-a em mim mesmo’ só pode significar o
seguinte: esse processo faz com que eu me lembre corretamente da ligação no futuro.
Mas em nosso caso não tenho nenhum critério para a correção. Gostar-se-ia aqui de
dizer: é correto tudo aquilo que me parecer correto. E isso significa apenas que aqui não
se pode falar de ‘correto"’.

Com isso estamos no final do parágrafo 258 e o entendimento correto da última citação
é naturalmente decisivo para se entender o ponto do argumento de Wittgenstein contra
a teoria da linguagem privada. O entendimento dessa passagem, em oposição às
interpretações anteriores, avançou sobretudo com Kenny", pois ele demonstrou que a
tese não é a de que não podemos averiguar a correção (verdade) dos enunciados de
memória, mas sim a de que não podemos averiguar a correção da associação entre
signo e significado, na medida em que essa deve repousar na memória.

Está com isso convincenternente refutada a linguagern privada? Certamente só no caso de, sem a
possibilidade de uma averiguação, não poder haver um significado ou emprego significativo de um signo. Como
parece, então, a justificação do emprego de um signo em nossa linguagem normal? Em outras palavras: o que
Wittgenstein tem em vista de positivo? Apenas quando esclarecermos isso poderemos entender o que falta
propriamente, segundo o seu pensamento, ao emprego linguístico privado de um signo. Ouvimos: "Mas em
nosso caso não tenho nenhum critério para a correção". O que, porém, Wittgenstein quer dizer com um critério

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para a correção?

Tal como Kenny apresenta o caso, parece que tudo estaria em ordem se tivéssemos, em
lugar de uma mera amostra da memória das sensações, uma amostra da sensação. Se a
dificuldade consistisse apenas no fato de não e poder mais averiguar se a amostra da
memória ainda é a correta12, a dificuldade estaria remediada se se dispusesse de uma
amostra perceptível; ~i. dificuldade estaria remediada, por exemplo, para as palavras
para cor. Pois aqui, para averiguar a correção de nosso emprego de uma palavra corno
"vermelho", poderíamos eventualmente remeter-nos para uma amostra real de cor —
algo como um catálogo de cor —‘ que se pode comparar diretamente com o vermelho
dado; pode-se perceber ambos os vermelhos ao mesmo tempo.

Mas contra essa interpretação é significativo o fato de que Wittgenstein, no trecho


paralelo nas NL (291), emprega precisamente a palavra "vermelho" como exemplo e de
que lá não se trata da questão da memória. Essa interpretação é imediatamente refutada
pelo fato de que Wittgenstein equipara em princípio, em lugar anterior nas IF, o recurso
a uma amostra perceptível de cor em uma tabela real, com o recurso a uma amostra da
memória. "Poder-sê-la dizer que essa tabela assume aqui o papel que a memória e a
associação jogam em outros casos" (IF, 53). "Mas o que ocorreria se essa amostra não
pertencesse à linguagem, se nós percebêssemos por exemplo, a cor que uma palavra
designa?" (IF, 56). Nesse caso, Wittgenstein aponta para a dificuldade que conhecemos
a partir do parágrafo 258: "Mas o que consideramos, pois, como critério para que nos
lembremos corretamente delas (das cores)?". Agora, porém, ele vira a mesa. E
prossegue: "Se trabalhamos com uma amostra em vez de com nossa memória, então
diremos, em certas circunstâncias, que a amostra mudou sua cor e julgamos isso a partir
da memória. Mas não podemos falar também, em certas circunstâncias, de um
escurecimento (por exemplo) da imagem de nossa memória? Não estamos igualmente
entregues à memória como a uma amostra?". A última pergunta implica naturalmente a
sua inversão: não estamos igualmente entregues tanto a uma amostra quanto à
memória?

Contudo, se não em uma amostra, no que consiste então, em geral, um cnteno para a
correção? Wittgenstein responde: na aplicação (IF, 146). E "aplicação" não significa aí
aplicação a um conteúdo recorrente e renovado de sensação, mas aplicação a objetos. O
critério para a correção no emprego, por exemplo, do predicado "vermelho" é que
podemos distinguir objetos que são vermelhos de objetos que não o são. Para isso, uma
amostra pode eventualmente nos ser útil (IF, 53). Mas — e esse é um passo decisivo na
argumentação —nenhuma amostra contém em si e para si uma instrução determinada
de como deve ser empregada; essa pode ser sempre aplicada dessa ou de outra maneira
(IF, 73, 85s, 139s). O critério para que alguém tenha entendido, por exemplo, as
palavras para cores é que esse alguém, ao precisar separar ramos de flores segundo as
cores, saiba dividir as flores vermelhas das azuis etc, e é irrelevante se ele emprega
nessa ocasião um catálogo de cores ou ainda uma amostra da memória (cf. IF, 53). O
decisivo é que no caso de uma expressão de classificação

— e os nomes de sensação e naturalmente também todos os predicados "f’ são


expressões de classificação — só podemos aplicar a palavra "correto" ao seu emprego na
classificação de objetos. Assim quando, no parágrafo 258, Wittgenstein diz que se o
emprego do nome se apoiasse em uma sensação lembrada nós não teríamos um critério

40
para a correção, ele não quer dizer que teríamos um tal critério se o emprego se
apoiasse em uma sensação percebida, mas quer dizer que o critério é o emprego correto
no ato de classificar.

A partir disso, certamente, pode-se compreender também até que ponto é possível falar
de "correto", em um certo sentido, no caso de uma amostra perceptível. Uma amostra
real de cor é certamente um objeto que tem tal e tal cor. Podemos mostrar esse objeto
— não o conteúdo de sensação percebido nele — e dizer "isso é sépia". Com isso,
apresentamos em um caso paradigmático a função classificatória e discriminatória que o
predicado "sépia" deve ter. Podemos dizer: "se você o emprega do mesmo modo como
foi empregado nesse caso, você o emprega corretamente", e então essa pessoa deve
mostrar apenas no emprego se entendeu corretamente o "do mesmo modo como

Somente agora podemos também entender o que Wittgenstein propriamente criticava na


definição ostensiva no começo das IF. Lá, Wittgenstein supunha um conceito
extremamente estreito de definição ostensiva, segundo o qual o significado de uma
palavra é definido ostensivamente ao se apontar para uma coisa dada. Se às vezes se
pode realmente explicar o significado de uma palavra na prática através do exemplo de
um caso único, isso se dá apenas porque se está supondo que já se sabe, por exemplo,
que se trata de uma palavra para cor. Mas o ponto almejado por Wittgenstein é o de que
o significado só é propriamente entendido, e também nesses casos particulares, quando
se sabe que uso fazer "da palavra explicada" (IF, 29). Se se entende, pois, por definição
ostensiva a demonstração do uso, Wittgenstein não tem nada a objetar a tal definição;
ao contrário, as palavras são explicadas dessa forma e não é necessário acrescentar, por
exemplo, que a palavra "sépia" é uma palavra para cor. Contudo, se se entende por
definição ostensiva a suposta associação da palavra com um conteúdo, então tal
definição é um absurdo, e é essa concepção primitiva da semântica que está, em última
instância, na origem da idéia da possibilidade de uma linguagem privada.

Agora podemos entender uma frase que anteriormente eu havia deixado de lado ao
interpretar o parágrafo 257: "Como conseguira ele nomear a dor?! E o que quer que
tenha feito, o que tinha por objetivo?". Poder-se-ia perguntar: o que tem a ver aqui a
pergunta sobre o objetivo13, uma vez que se trata somente do significado? Wittgenstein
se refere não a um objetivo extrasemântico qualquer, mas simplesmente a sua função
semântica. Já ouvimos: nós damos um nome à sensação, "para empregar no futuro o
nome para essa sensação" (acima, p. 26). Nesse ínterim, porém, tornou-se claro: o
significado de um predicado repousa em sua função discriminatória. E é esse objetivo
semântico que tem o emprego de um predicado; e é precisamente isso que não se pode
esclarecer a partir da teoria da linguagem privada.

Isso já foi uma longa consideração teórica e vocês poderiam objetar:

"Será que não se parte aqui de suposições muito determinadas sobre como o significado
de uma palavra se constitui, suposições que o teórico da linguagem privada talvez não
precise aceitar? E, ao contrário, não devemos nós partir do fato de que distinguimos e
podemos designar distintamente sensações — por exemplo sensações gustativas ou as
duas espécies A e B de dor de cabeça — sem a consideração de critérios externos e, a
partir disso, ver qual semântica está na origem de tais fatos?". Vocês têm razão.

41
Naturalmente devemos testar as teses de Wittgenstein em exemplos nos quais a
possibilidade de um emprego linguístico privado é particularmente sugestiva.

Tomemos como exemplo as nuances de gosto, um gosto de pêra ou um gosto de vinho!


Um conhecedor de vinhos é alguém que — sem levar em conta a apreciação pessoal —
tem a capacidade de distinguir com relativa segurança muitas nuances de gosto de
vinho. Ele sempre emprega uma e a mesma palavra, digamos "V1,V2" etc., para um e o
mesmo gosto (ou para um de seus aspectos). Evidentemente, um bom conhecedor de
vinhos é somente aquele que emprega essas palavras com alguma segurança quando
prova o vinho de olhos vendados, quando não tem portanto um critério independente
para discriminação do vinho. Coloquemo-nos agora na situação da linguagem privada! Eu
emprego em determinados casos a expressão "V", em outros "V2" etc. Como eu sei que
"V1’, está no lugar de uma determinada — e sempre a mesma — sensação? A isso o
defensor da linguagem privada responderá: "bem, eu me lembro etc.", e então
Wittgenstein pode perguntar de volta, como no parágrafo 258: "como você pode
averiguar isso etc.?". Não gostaríamos agora de teorizar, mas apenas desenvolver o
argumento da linguagem privada tanto quanto esse se sugere a partir de um contexto
real como o do conhecedor de vinhos. E naturalmente o conhecedor de vinhos, se
perguntado sobre como sabe que "V1" está no lugar de algo determinado, não se
reportará à sua confiável memória de gosto, pois então se moveria em círculos.

Mas ele se reportará ao fato de ter provado o vinho, de que pode distinguir por meio de
seu gosto (e isso quer dizer por meio de seu emprego dos predicados "V1", "V2" etc.)
diferentes espécies de vinho —que são estabelecidas por critérios independentes do
gosto como diferentes espécies de vinho—, e só assim sua memória de gosto se
mostrará confiável. Portanto, como critério para que uma palavra para gosto esteja no
lugar de um determinado gosto, constatamos sempre de facto a capacidade de poder
discriminar gostos por meio de seus objetos (no nosso caso, vinhos), cuja diversidade é
estabelecida independentemente. Uma vez provada essa capacidade, podemos empregar
a palavra sem considerar os critérios externos e nessa possibilidade repousa
naturalmente a relevância dessa capacidade. Mas o significado da palavra é estabelecido
apenas por meio da correlação com esses critérios externos, e não o pode ser por meio
de nenhum outro critério. Naturalmente não se segue, a partir da correlação de "V" com
um critério externo "C", algo como: "V" e sinônimo de "Cm"; nesse caso, "v " já não
seria mais um nome de sensação. Mas "V" é urna palavra que empregamos quando
discriminamos vinhos, ao prová-los; e se nos perguntamos qual é o gosto determinado
com o qual o emprego de "V" está associado, devemos dizer que é aquele por meio do
qual, ao se provar, são reconhecidos precisamente aqueles vinhos que foram produzidos
a partir de tal e tal uva e de tal e tal maneira (C).

Assim chegamos ao resultado de que também ali onde se poderia pretender que há um
emprego rigorosamente privado — não comunicável a outros — de palavras para
sensações, esse emprego, na medida em que tem a pretensão a uma determinação (e
de outro modo não se pode falar de um significado), liga-se na realidade a critérios
observáveis. Isso quer dizer que, se examinarmos mais de perto como alguém
estabelece o significado de tal palavra para si mesmo, constatamos que isso acontece
exatamente da maneira em que se poderia explicar o significado a uma outra pessoa: tal
e tal gosto é o gosto de tal e tal uva. E não é concebível nenhum outro modo de se
estabelecer o significado.

Todos os predicados "F" aqui em questão — por serem precisamente predicados, isto é,
expressões de classificação — podem ser explicados apenas com base em proposições da
forma "x é F", por meio de correlações com propriedades observáveis C de x. No caso
desses predicados, trata-se ou de predicados de sensação como os de gosto acima
discutidos (ou também os de cores), ou de um predicado "f", que não está no lugar de

42
propriedades perceptíveis de objetos materiais, mas de sensações ou de outros estados
(le consciência de pessoas. Nas IF, 270, Wittgenstein desenvolve uma reflexão a respeito
de sensações corporais, como o são minhas (luas espécies de dor de cabeça A e B,
reflexão totalmente análoga àquela que acabei de desenvolver para as sensações de
gosto. Também aqui mostra ter sentido o emprego de uma palavra para sensação sem a
consideração de um critério observável; porém, o sentido desse emprego não é uma
associação com o conteúdo da sensação, mas, dessa vez, é uma caracterização da
própria pessoa. Também aqui o critério de que se trata de uma sensação determinada
repousa na existência de uma correlação com critérios observáveis, desta vez
observáveis no estado físico ou no comportamento da pessoa’4.

Todos os nomes de sensações — e, além (lesses, todos os outros predicados "f’ — são
expressões de classificação, com os quais caracteriza-se discrimina-se, reconhece-se, O
erro do teórico da linguagem privada se manifestava de duas formas: ou ele concebia
essa expressão como um simples nome e, por isso, supunha ainda uma concepção
insustentável da nomeação; por meio do que se torna impossível compreender seu
emprego subsequente;

ou ele reconhecia sua função discriminatória, mas deveria então supor que o que é
classificado, caracterizado e reconhecido são as sensações em vez de ver que nós
caracterizamos os objetos— sejam eles os objetos que percebemos pelos sentidos;
sejam eles a própria pessoa percipicnte — sentindo-os, e então associando a eles
palavras para sensação. O erro fundamental da teoria da linguagem privada era,
portanto, o de que essa hipostasiava os estados T’ em objetos observáveis particulares e
internos. Esse erro não é apenas semântico, mas é a falsa e básica suposição ontológico-
epistemológica, a qual, certamente, tão logo se articulasse semanticamente, só admitiria
uma teoria da linguagem privada. À objecção "E, pois, você sempre acaba chegando ao
resultado de que a própria sensação é um nada", Wittgenstein responde: "De maneira
nenhuma. Ela não é um algo, mas também não é um nada!" (lF, 304).

Tradução e notas: Plínio Junqueira Smith

Extraído da Revista do CEBRAP n. 32 de 1992 (as notas se encontram na revista

43
Wittgenstein
Roger Scruton

l. A Origem da filosofia "Analítica"

Muito se tem escrito nos últimos anos sobre a vida e a filosofia de Ludwig Wittgenstein
(1889-1951?. Atualmente, ele é considerado por muitos o filósofo mais importante de nosso
século. Todavia, é difícil enquadrar seu pensamento na história da filosofia, em parte devido à
sua iconoclasta posterior e, em parte, porque, como Frege, ele parte de reflexões que, à luz
dessa história, podem parecer provincianas e até mesmo desprovidas de qualquer importância
filosófica. Portanto, à guisa de introdução, é necessário dizer algo sobre o estado da filosofia
inglesa quando Wittgenstein veio a se interessar por ela. Tal interesse prenunciou a
prolongada influência que as idéias vienenses vieram a exercer sobre o pensamento
angloamericano. Devemos retroceder um pouco no tempo, até as doutrinas de Russell e
Moore.

Bertrand Arthur, terceiro Conde Russell (I872-1970), tem sido até aqui associado à nova
lógica, por ele transformada em poderoso instrumento de análise filosófica. Não menos
importante, historicamente falando, foi seu amigo G. E. Moore (1873-1958), que escreveu
importante tratado sobre ética, o Principia Ethica (I903), e se opôs inexoravelmente a todas as
formas de especulação metafísica que parecessem subverter as verdades estabelecidas do
senso comum. Juntos, Moore e Russell dedicaram-se à demolição das doutrinas do idealismo
britânico, como foram apresentadas por Bradley (em Oxford) e J, M. McTaggart (1866-1925),
em sua própria Universidade de Cambridge. Russell, em sua obra inicial sobre os
fundamentos da geometria, reconhece a influência da Lógica de Bradley. Isso, porém, não o
impediu de discernir, na famosa prova do caráter provisório de objetos e qualidades proposta
por Bradley (ver p. 235), uma confusão entre o "é" da predicação e o "é" da identidade, ou de
acusar Bradley e McTaggart de prestidigitadores em quase todas as provas que ofereceram da

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inadequação de nossas concepções de espaço, tempo e matéria baseadas no senso comum.
Moore aderiu ao combate, acrescentando mais asserções peculiarmente dramáticas do que
argumentos. Fez a seguinte pergunta: Como é possível que minha crença de que tenho duas
mãos seja menos certa que a validade de todos os argumentos filosóficos que se têm aduzido
para refutá-la? A combinação da volátil lógica de Russell com a vigorosa recusa de Moore a
pensar além de seu nariz ou de suas mãos mostrou-se extremamente destrutiva, tornando-se
moda descrever a metafísica idealista não como falsa, mas como sem sentido. Outros filósofos
- notavelmente Hume - tinham f eito afirmações semelhantes. No entanto, agora, mais do que
nunca, parecia possível provar o que fora dito, desenvolvendo-se uma teoria da estrutura da
linguagem que mostrasse precisamente o que podia e o que não podia ser dito. E supôs-se
que, entre as coisas que não podiam ser ditas, a metafísica era a mais facilmente reconhecível.

A primeira teoria desse tipo foi o atomismo lógico, prenunciado por Russell e expresso de
modo mais ou menos completo por Wittgenstein, em seu Tractatus Logico-Philosophicus
(1921). Essa obra, que chegou ao ponto de ser mais sucinta que a Monadologia de Leibniz,
pretendia responder de forma definitiva as questões da filosofia. Ao escrevê-la, Wittgenstein
inspirou-se, em parte, na famosa teoria das descrições, proposta por Russell e publicada num
artigo que F. P. Ramsey (I903-1930) descreveu como "paradigma de filosofia". Assim sendo,
tal teoria servirá como introdução adequada à obra de Wittgenstein.

2. A Teoria das Descrições

É estranho, e no entanto verdadeiro, o fato de uma das mais importantes publicações


referentes à filosofia moderna ter tido como objetivo aparente explicar o significado do artigo
definido. Russell pergunta: qual a diferença entre as sentenças "uma montanha de ouro existe"
e ``a montanha de ouro existe"? A primeira expressão é assim explicada pela nova lógica: o
predicado "montanha de ouro" é instanciado ou, de modo mais formal, existe um x tal que x é
uma montanha de ouro. Essa proposição é obviamente falsa. Mas que dizer da segunda
proposição? Aqui, a palavra "o" parece transformar o predicado "montanha de ouro" naquilo
que Russell chamaria de expressão denotadora (e que Frege chamou de nome). Trata-se de um
estranho efeito da gramática, que tem uma conseqüência lógica ainda mais estranha, ou seja, a
de que a sentença parece referir-se a alguma coisa - a montanha de ouro. Mas como é isso
possível, se não existe montanha de ouro? Russell alegou que temos aqui um caso
paradigmático de uma forma gramatical que dissimula a forma lógica de uma sentença.
Tomando como exemplo sua própria definição e a implícita definição fregeana de números,
oferece uma definição implícita da palavra "o". Não podemos dizer explicitamente o que o
termo "o" denota, mas podemos mostrar como eliminá-lo de todas as sentenças em que
ocorre.

Consideremos a sentença "o Rei da França é calvo". Para que isso seja verdade, deve existir
um rei da França e ele deve ser calvo. Ademais, para apreender o sentido distintivo da palavra
"o", devemos acrescentar que só existe um rei da França. As condições que formam a
sentença verdadeira conferem-lhe o significado; conseqüentemente, podemos dizer que "o Rei
da França é calvo" eqüivale à conjunção de três proposições: "existe um rei da França; tudo
que é rei da França é calvo; e só existe um rei da França''. (Mais formalmente - existe um x tal
que x é um rei da França e x é calvo, e, para todo y, se y é um rei da França, y é idêntico a x.)
Essa análise leva-nos a concluir que, se não existe um rei da França, a sentença original é
falsa. A expressão "o Rei da França", que parecia uma expressão denotadora ou nome, de fato
não é tal coisa, mas um predicado associado a uma alegação existencial oculta. Como Russell

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assinala, o Rei da França é uma ficção lógica (Podemos encontrar um antecedente histórico
para esse tipo de teoria filosófica na teoria benthamita das ficções.)

Filosoficamente falando, Russell se opôs a certos fenomenologistas (notadamente, Alexius


Meinong (1853-1920)), que pretenderam concluir que, se podemos pensar em algo como a
montanha de ouro, essa coisa deve, em certo sentido, existir. (Se o leitor não gosta da palavra
"existir', então se oferece outra palavra - "subsistir' - para não ferir suas delicadas
suscetibilidades lógicas.) Russell não chegou a compreender totalmente que Meinong e seus
companheiros se dedicaram menos à investigação da lógica da denotação que ao exame do
"objeto" intencional" do pensamento. Entretanto, seja como for, o argumento de Russell
presta-se à generalização imediata, proporcionando, nessa forma generalizada, uma base para
a filosofia do Tractatus.

3. 0 atomismo lógico e o Tractatus

De acordo com o Tractatus, tudo que pode ser pensado também pode ser dito. 0s limites da
linguagem são, portanto, os limites do pensamento, de modo que uma completa filosofia do "
do que pode ser dito" será uma teoria completa do que Kant denominara "o entendimento".
Todos os problemas metafísicos decorrem da tentativa de dizer o que não pode ser dito. Uma
análise apropriada da estrutura dos termos utilizados nessa tentativa mostrará tal coisa e, desse
modo solucionará ou diluirá problemas.

Então, qual é a estrutura da linguagem? Wittgenstein dividiu todas as sentenças em complexas


e atômicas, afirmando que as primeiras eram construídas a partir das segundas mediante
regras de formação que podiam ser interpretadas detalhadamente em termos da lógica de
Russell. As sentenças atômicas são aquelas que empregam os primitivos da linguagem` isto é,
os nomes e predicados elementares que, sendo indefiníveis, servem para distinguir (ou
"descrever") o que Wittgenstein chamou de fatos atômicos. Só uma proposição completa pode
ser verdadeira ou falsa e, por conseqüência, só uma proposição completa pode dizer-nos algo
sobre o mundo. Conseqüentemente, o constituinte mais básico do mundo é o que corresponde
à sentença atômica. Esse constituinte básico é o fato atômico, sendo o mundo, portanto, a
totalidade de tais fatos.

Os fatos complexos correspondem às proposições complexas e, para compreender tais fatos


complexos, é necessário que compreendamos a complexidade da linguagem usada para
expressá-los. E essa complexidade é inteiramente proporcionada pela lógica fregeana e
russelliana. Assim sendo, "o Rei da França é calvo" é (embora não pareça) uma sentença
complexa, visto que sua verdadeira estrutura (ou seja, sua estrutura como representada pela
nova lógica) mostra que ela consiste em três sentenças incompletas, combinadas e
completadas pela quantificação e pelo conectivo "e". Muitas sentenças assemelham-se a essa.
Parecem básicas, mas, de fato, são complexas. Geralmente, muitas coisas a que nos referimos
são construções lógicas (ou ficções). As sentenças que as descrevem são abreviações de
sentenças mais complexas referentes aos constituintes de fatos totalmente diferentes, porém
mais básicos, em que essas "construções lógicas" não ocorrem. Uma sentença como "um
homem médio tem 2,6 filhos" é realmente uma abreviação de uma sentença matemática
complexa que relaciona o número de filhos dos homens com o número de homens. "0 homem
médio" não caracteriza qualquer sentença atômica, ou seja, não nomeia qualquer constituinte
da realidade. Pode-se dizer o mesmo com relação à nação inglesa e a muitas entidades
``metafísicas" que aparentemente têm suscitado problemas filosóficos. Wittgenstein foi menos
específico que Russell, e certamente menos específicos que os positivistas lógicos, para que,

46
não obstante, o Tractatus proporcionou todo um sistema de argumentação filosófica, no que
se refere a que fatos são atômicos e que fatos não o são. Ele pretendia enunciar claramente a
estrutura lógica do mundo, não se preocupando com seu conteúdo real.

A característica mais importante das sentenças complexas é que os conectivos usados para
construí-las devem ser "veri-funcionais", isto é, devem ser tais que o valor-de-verdade da
sentença complexa seja inteiramente determinado pelos valores de verdade de suas partes.
Trata-se do "princípio da extensionalidade, com o qual já nos deparamos ao discutir Frege e
que, de acordo com Wittgenstein, é uma precondição do pensamento e da análise lógicos. A
lógica ocupa-se apenas da transformação sistemática de valores-de-verdade; por conseguinte,
uma linguagem lógica deve ser transparente aos valores-de-verdade. Deve ser possível
perceber toda operação em termos da transformação da verdade e da falsidade. (A palavra
"não" tem o sentido de transformar a verdade em falsidade e a falsidade em verdade: a palavra
"se", o de tornar falsa uma sentença complexa se o antecedente é verdadeiro e o conseqüente,
falso; caso contrário, ela a torna verdadeira; e assim por diante.)

A noção de linguagem veri-funcional confere exatidão e força à alegação de Wittgenstein de


que há uma distinção real entre sentenças atômicas e não-atômicas. Ele é capaz de dizer não
apenas o que é a distinção, mas, o que é mais importante como somos capazes de
compreendê-la. Não é difícil para uma linguagem veri-funcional explicar de que modo a
compreensão de sentenças atômicas leva à compreensão de todos os complexos infinitos que
podem ser construídos a partir delas. (Essa é outra aplicação de um princípio de Frege que
discutimos nas pp. 247-48.) As condições-de-verdade de uma sentença complexa formada de
maneira veri-funcional podem ser extraídas imediatamente das condições-de-verdade de suas
partes. E, em conseqüência, se compreendermos as condições-de-verdade das partes,
compreenderemos o todo.

Além disso, Wittgenstein é capaz de proporcionar uma nova e aparentemente clara distinção
entre o necessário e o contingente, o analítico e o sintético, o a priori e o a posteriori. Tais
distinções reduzem-se à distinção entre verdade lógica e contingência. Uma sentença é uma
verdade lógica caso resulte verdadeira através da substituição, pelos termos, dos componentes
"primitivos" nela presentes. (Uma parte primitiva é aquela que não admite qualquer definição
ulterior. ) 0 paradigma de verdade lógica é a "tautologia" veri-funcional. Consideremos a
sentença "p 0o q". A definição de "ou" é: p ou q é falso se tanto p quanto q forem falsos e, em
caso contrário, verdadeiro. A definição de "não" é a seguinte: não-p é verdadeiro se p é falso,
e falso se p é verdadeiro. Isso quer dizer que a sentença "p ou não-p" é sempre verdadeira,
qualquer que seja o valor-de-verdade de "p". Desse modo não importa como substituímos o
termo primitivo "p", pois isso resultará sempre numa sentença verdadeira. As sentenças que
assumirem tal forma são portanto, necessariamente verdadeiras, podendo ser consideradas
verdadeiras a priori por qualquer um que compreenda as operações lógicas da linguagem.

Para Wittgenstein, essa teoria da verdade necessária tem como conseqüência o fato de as
verdades necessárias serem vazias: nada dizem porque nada excluem. São compatíveis com
todo estado de coisas. 0 mundo é descrito pela totalidade das proposições atômicas
verdadeiras; estas são verdadeiras, mas, sendo atômicas, poderiam ser falsas, já que nada em
sua estrutura determina seu valor-de-verdade. Outra maneira de dizer isso é que os fatos
existem no "espaço lógica" que define as possibilidades; as sentenças atômicas verdadeiras
descrevem o que é real, enquanto as tautologias refletem propriedades do próprio espaço
lógico.

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Essa avaliação da linguagem suscita profundos problemas metafísicos. Em primeiro lugar, há
o problema da relação entre sentenças atômicas e fatos atômicos. Wittgenstein chama essa
relação de "figuração", e tal metáfora tem enganado muitos dos que tentam comentá-las. Ele
também diz que a relação não pode ser descrita, mas apenas mostrada; de fato, sua concepção
era de que se deve mostrar o que é mais básico; caso contrário, nunca poderíamos começar a
descrição. E não está claro exatamente o que ele quis dizer com "mostrar". Quiçá a melhor
maneira de compreender essa teoria - às vezes chamada de "teoria figurativa do significado" -
seja negar, para usar uma expressão ulterior de Wittgenstein, que podemos usar a linguagem
"para nos situarmos entre a linguagem e o mundo". Não podemos avaliar com palavras a
relação entre um fato atômico e uma proposição atômica, a não ser usando a proposição cuja
verdade estamos tentando explicar. Não podemos "pensar" no fato atômico sem pensarmos na
sentença que o "figura". Os limites do pensamento são os limites da linguagem. Wittgenstein
conclui seu livro com o lacônico enunciado: "o de que não se pode falar deve-se calar".

Um dos problemas com que a filosofia do Tractatus se depara reside nesse próprio
procedimento. Só as sentenças atômicas, os complexos veri-funcionais e as tautologias são
significativos. Mas que dizer da teoria que afirma isso? Ela não é sentença atômica, nem
complexo; não pretende dizer, como as coisa s são, mas como devem ser. Mas não é uma
tautologia. Então, é sem sentido? Wittgenstein realmente diz "sim", e com esse gesto ousado
aproxima-se da conclusão de sua doutrina, acrescentando que suas proposições devem servir
de escada a ser descartada pelos que por ela subiram.

4. Wittgenstein e a Análise Linguística

0 Tractatus possui um pouco da fascinação da primeira Crítica de Kant, ou seja, a fascinação


de um doutrina que, na medida do possível, luta para descrever os limites do inteligível,
somente para, ao fazê-lo, ser compelida a transcendê-los. Em momento algum Wittgenstein
reconhece a semelhança de seu pensamento com o de Kant, ou, de fato, com o de qualquer
outro, exceto o de Russell, mas a comparação entre os dois filósofos torna-se cada vez mais
impressionante, de tal modo que alguns têm considerado a argumentação de sua obra
póstuma, intitulada Investigações Filosóficas, o complemento final da Dedução
transcendental de Kant.

A filosofia posterior de Wittgenstein desenvolveu-se a partir de uma reação à anterior, ou a


determinada interpretação dela extremamente influente. No Tractatus, a metafísica do
atomismo lógico é apresentada quase que sem referência a qualquer teoria específica do
conhecimento. A própria versão de Russell sobre a teoria era decididamente empirista,
identificando os "fatos atômicos" como relativos ao conteúdo imediato da experiência (ou
dados sensoriais, como Russell os chamou). Utilizando o aparato da teoria de Wittgenstein,
Russell foi capaz de reformular uma versão empirista com o espírito cético de Hume,
propondo interpretar toda entidade no mundo que não seja dado sensorial como "construção
lógica". Caso de fato, queiramos, ou não referindo-nos a tabelas referir-nos a construções
lógicas a partir de dados sensoriais, isso é tudo que, de acordo com Russell, podemos
pretender. Como ele assinala, "onde for possível, as construções lógicas devem ser
substituídas por entidades inferidas". Desse modo, a filosofia dá um passo na direção do
positivismo lógico pelo qual todas as doutrinas metafísicas, éticas e teológicas são sem
sentido, não devido a algum defeito do pensamento lógico, mas por não poderem ser
verificadas. 0 slogan do positivismo - o significado de uma sentença é seu método de
verificação - é tirado do Tractatus, como grande parte do aparato mediante o qual se buscou
livrar o mundo de entidades metafísicas. Mas estava imbuído do mesmo espirito que Hume, e

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suas principais teorias eram reformulações das doutrinas humanas concernentes à causalidade,
ao mundo físico e à moralidade, em termos não de uma teoria "genética" do significado, mas
de uma teoria "analítica". A época em que tal programa estava em andamento, com a obra de
Rudolf Carnap (1891-1970) e outros pensadores do chamado "Círculo de Viena" (ver
especialmente a obra de Carnap intitulada Estrutura Lógica do Mundo, 1928), Wittgenstein
renunciou totalmente ao atomismo e seus resultados, parou de publicar e iniciou uma
existência hermética e nômade, a que assegurou, até sua morte, que sua influência se
exercesse apenas sobre os que tiveram o privilégio de conhecê-lo pessoalmente ou que
chegaram a ver os manuscritos que ele ocasionalmente nos mostrou. 0 mais famoso desses
manuscritos - Os cadernos azuis e marrons - chegou a Oxford na década de 1940,
precipitando a escola de "análise lingüística", para a qual J. L. Austin (1911-60) e Gilbert
Ryle ( 1900-1977 ) já tinham preparado o terreno. No entanto, não discutirei essa escola,
composta por tantas e tão inexpressivas figuras que se caracteriza menos por abraçar qualquer
doutrina que por ter-se recusado a apoiar alguma delas. Nem tecerei considerações sobre o
desenvolvimento ulterior do positivismo lógico na América, onde realizou um casamento
prolífico - através de Nelson Goodman e Willard von Orman Quine, alunos de Carnap - com o
"pragmatismo" local de C. S. Peirce (1839-1914), William James (1842-1910) e C. I. Lewis
(1883-1964). Ao contrário, concluirei este Livro com um esboço de certas doutrinas expressas
em Investigações filosóficas (1953), As observações sobre os fundamentos da matemática
(I956) e outras obras. Em virtude do fato de se relacionarem diretamente com a história da
filosofia tal como a tenho descrito até aqui, essas doutrinas propiciarão alguma indicação,
ainda que superficial, de até que ponto a filosofia posterior de Wittgenstein tem transformado
e até mesmo destruído a tradição de investigação intelectual iniciada com Descartes.

5. O Segundo Wittgenstein

A ênfase da filosofia posterior de Wittgenstein é decididamente antropocêntrica. Embora


ainda estivesse centrada em questões concernentes ao significado e aos limites do
proferimento significante, seu ponto de partida se tornaram, não as imutáveis abstrações de
um ideal lógico, mas os esforços falíveis da comunicação humana. Ao mesmo tempo, o
elemento humano não seguiu a via usual da epistemologia, mas um caminho totalmente
surpreendente. Wittgenstein o introduz por meio de reflexões a priori sobre a natureza da
mente humana e sobre o comportamento social que dota essa mente de sua estrutura
característica. O que é "dado" não são os "dados sensoriais" dos positivistas, mas as "formas
de vida" da antropologia filosófica kantiana. Isso quer dizer que o objeto de qualquer teoria do
significado e do entendimento é a prática pública do proferimento e tudo que torna tal prática
possível. Assim sendo, Wittgenstein inicia suas investigações ulteriores sobre a natureza da
linguagem no ponto em que Frege parou. Ele aceita a tese do "caráter público" do sentido que
já levara Frege a rejeitar as teorias empiristas tradicionais do significado. Isso resultou não
apenas em nova avaliação da natureza da linguagem, mas também numa revolucionária
filosofia da mente. Os problemas metafísicos que Kant, Hegel e Schopenhauer tentaram
resolver são re-expressos como dificuldades na interpretação da consciência. Assim
entendidos, repentinamente se afiguraram capazes de serem resolvidos.

A perspectiva social levou Wittgenstein a afastar-se da ênfase fregeana no conceito de


verdade ou a considerar que tal ênfase reflete uma exigência mais fundamental, isto é, a de
que o proferimento humano seja responsável por um padrão de correção. Tal padrão não é
dado por Deus, nem jaz oculto na ordem natural, sendo um artefato humano, que tanto produz
as práticas lingüísticas que o regem quanto é por elas produzido. Isso não quer dizer que um
indivíduo pode decidir por si mesmo o que é certo e o que é errado na arte da comunicação.

49
Ao contrário, o constrangimento da publicidade refreia não somente cada um de nós, mas
também todos nós; além disso, tal constrangimento está intimamente vinculado à concepção
que fazemos de nós mesmos como seres que observam um mundo independente e nele agem.
Todavia, é verdade que o único constrangimento envolvido no uso comum é o próprio uso. Se
nos opomos a verdades que nos parecem necessárias, tal se dá apenas porque fomos nós que
criamos as regras que as fazem ser assim; e também podemos abrir mão daquilo que criamos.
A compulsão que experimentamos na inferência lógica, por exemplo, não é compulsão,
independentemente de nossa disposição para experimentá-la.

Esse tipo de reflexão levou Wittgenstein a uma forma muito sofisticada de nominalismo: uma
negação que podemos localizar fora da prática lingüística para a coisa que a rege. Os fatos
últimos são linguagem e as formas de vida que se desenvolvem a partir da linguagem e a
tornam possível. O nominalismo não é recente, nem lhe têm faltado representantes em nossa
época. Nelson Goodman (nascido em 1906), por exemplo, tem defendidas, utilizando
argumentos que geralmente se assemelham aos de 'Wittgenstein, uma espécie de nominalismo
que incorpora toda uma filosofia da ciência a uma teoria do conhecimento. O que caracteriza
Wittgenstein é a transição que ele realiza no plano da articulação da filosofia da linguagem
com a filosofia da mente. Ao realizar tal transição, tenta subverter a principal premissa de
quase toda a filosofia ocidental desde Descartes - a premissa da "prioridade do caso da
primeira pessoa".

Wittgenstein usa vários argumentos destinados a mostrar o que essa premissa realmente
significa e, ao fazê-lo, tenta demonstrar sua insustentabilidade. Ao serem reunidos, esses
argumentos proporcionam o que pode ser descrito como uma "figuração" da consciência
humana. Tal figuração possui muitos aspectos; alguns são metafísicos, outros,
epistemológicos. Ela envolve a rejeição da busca cartesiana da certeza, o aniquilamento da
concepção de que os eventos mentais são episódios privados que só podem ser observados
pela própria pessoa e a recusa de todas as tentativas de compreender a mente humana
isoladamente das práticas sociais por meio das quais ela encontra expressão. Nesta obra, é
impossível apresentar todas as considerações com que Wittgenstein sustenta ``a prioridade do
caso da terceira pessoa". Portanto, mencionarei apenas um ou outro item central da referida
argumentação, extraindo algumas conclusões com relação à importância histórica e filosófica
da tese.

6. O Argumento da Linguagem Privada

O mais famoso argumento desenvolvido pela posição wittgensteiniana é o que veio a ser
conhecido como "o argumento da linguagem privada". Ele ocorre em diversas versões das
Investigações Filosóficas e tem sido objeto de muitos comentários. Parece-me que, em
resumo, o argumento é o seguinte: há um "privilégio" peculiar ou "imediatidade" envolvidos
no conhecimento das nossas próprias experiências atuais. Em certo sentido, é absurdo sugerir
que tenho de ou poderia descobrir estar equivocado a respeito delas no curso normal das
coisas. (Esse é o pensamento que também subjaz a tese kantiana da "Unidade Transcendental
da Apercepção", ver pp. 141-42. ) Isso tem resultado no que podemos chamar de "ilusão da
primeira pessoa". Posso ter mais certeza de meus estados mentais que dos seus. Isso só ocorre
porque observo diretamente meus estados mentais e, os seus, indiretamente. Quando vejo
você sentir dor, vejo o comportamento físico, suas causas, determinado estado complexo de
um organismo. Mas isso não é a dor que você sente, apenas algo que a acompanha de modo
contingente. A própria dor está oculta por sua expressão, só podendo ser diretamente
observada por aquele que a sofre.

50
Essa é, em suma, a teoria cartesiana do espírito, apresentada como explicação do caso da
primeira pessoa. Wittgenstein alega que tanto a teoria quanto aquilo que ela deve explicar são
ilusões. Suponhamos que a teoria fosse verdadeira. Wittgenstein afirma que, então, não nos
poderíamos referir a nossas sensações por meio de palavras inteligíveis numa linguagem
pública. Pois as palavras, numa linguagem pública, adquirem seu sentido publicamente, ao
serem associadas a condições publicamente acessíveis que asseguram sua aplicação. Tais
condições determinarão não somente seu sentido, mas também sua referência. Wittgenstein
alega que a suposição de que essa referência seja privada (no sentido de, em princípio, só
poder ser observada pela própria pessoa) é incompatível com a hipótese de que o sentido é
público. Por conseguinte, se os eventos mentais são como Descartes os descreve, nenhuma
palavra em nossa linguagem pública poderia realmente referir-se a eles.

Contudo, realmente os cartesianos e sua progênie empirista têm sempre, intencionalmente ou


não, aceito essa conclusão e escrito como se cada um de nós descrevesse nossas sensações ~
outros episódios mentais atuais numa linguagem que, em virtude de seu campo de referência
ser, em princípio, inacessível a outros, só é inteligível para quem a usa. Wittgenstein opõe-se
à possibilidade de tal linguagem privada. Tenta provar que não pode haver diferença, para
quem fala essa linguagem, entre como as coisas lhe parecem e como elas são, pois ele
perderia a distinção entre ser e parecer. Entretanto, isso significa perder a idéia de referência
objetiva. Na realidade, não se visa de maneira alguma a linguagem; ao contrário, ela torna-se
um jogo arbitrário. O que parece certo é o que é certo; conseqüentemente, não se pode mais
falar do certo.

Isso leva a seguinte conclusão: não podemos referir-nos aos eventos mentais cartesianos
(objetos particulares) numa linguagem pública, nem nos referir a eles numa linguagem
privada. Em conseqüência, não podemos referir-nos a eles. No entanto, seria possível dizer
que eles, não obstante, podem existir! Wittgenstein opõe-se a tal possibilidade de um modo
que faz lembrar o ataque kantiano ao noumena, dizendo que um nada desempenhará a mesma
função que um algo sobre o qual nada se possa dizer. Ademais, podemos referir-nos a
sensações; desse modo, o que quer que sejam, as sensações não são eventos mentais
cartesianos.

Wittgenstein faz acompanhar esse argumento de uma penetrante descrição, a partir do ponto
de vista da terceira pessoa, de muitos fenômenos mentais complexos – particularmente, os da
percepção, intenção, expectativa e desejo. E, como ele reconhece, seus argumentos, se bem-
sucedidos, refutam a possibilidade de uma "fenomenologia pura", visto que implicam que
nada se pode aprender sobre a essência do mental ou sobre a essência de qualquer coisa com o
estudo (em isolamento cartesiano) apenas cia primeira pessoa. A "imediatidade" do caso da
primeira pessoa é unicamente um indício de sua superficialidade. De fato, conheço meus
próprios estados mentais sem observar meu comportamento; mas isso não se deve ao fato de
eu estar observando algo mais. É simplesmente uma ilusão, suscitada pela autoconsciência, de
que a autoridade necessária que acompanha o uso público do "eu" é uma autoridade sobre
alguma coisa da qual só o "eu" possui conhecimento.

7. A prioridade da terceira pessoa

Apesar de ter rejeitado assim o "método" da fenomenologia, Wittgenstein manifestou,


contudo, simpatia para com uma postura teórica que se torna - mediante uma série de
acidentes históricos - aliada deste método. Pensadores como o kantiano Dilthey (ver p. 259)
buscaram os fundamentos de uma compreensão peculiarmente "humana", pela qual o mundo

51
seria considerado, não cientificamente, mas sob o aspecto do "significado". Como alguns
fenomenologistas, tais como Merleau-Ponty e Sartre, Wittgenstein argumentou que
percebemos e compreendemos o comportamento humano de maneira diferente daquela pela
qual percebemos e compreendemos o mundo natural. Explicamos o comportamento humano
apresentando razões e não causas. Dirigimo-nos ao nosso futuro tomando decisões e não
fazendo predições. Compreendemos o passado e o presente da humanidade por meio de
nossos objetivos, emoções e atividade, e não mediante teorias preditivas. Todas essas
distinções parecem suscitar a idéia;, se não de um mundo especificamente humano, pelo
menos de um modo especificamente humano de conceber as coisas. Grande parte da filosofia
posterior de Wittgenstein volta-se para a tarefa de descrever e analisar as características do
entendimento humano, bem como de aniquilar o que ele considerou a vulgar ilusão de que a
ciência poderia produzir uma descrição de todas essas coisas com as quais nossa humanidade
(ou, para falar de maneira mais filosófica, nossa existência como agentes racionais) está
mesclada. Ele defende não somente a posição de que nosso conhecimento de nossas próprias
mentes pressupõe o conhecimento das mentes de outros, mas também a de que – como
assinala o fenomenologista Max Scheler (1874-1928) – "a convicção que temos da existência
das mentes de outros é anterior e mais profunda que nassa crença na existência da natureza".
Em outras palavras, apesar de ter atacado o método e a metafísica da fenomenologia,
Wittgenstein compartilha com os fenomenologistas o sentido de que há um mistério nas
coisas humanas que não será revelado pela investigação científica. Tal mistério não é
dissipado pela explicação, mas apenas pela cuidadosa descrição filosófica do "dado". Para
Wittgenstein, a diferença reside no fato de que o que é "dado" não é o conteúdo da
experiência imediata, mas as formas de vida que tornam possível a experiência.

A destruição da ilusão da primeira pessoa tem duas conseqüências. Em primeiro lugar, não
podemos iniciar nossas investigações a partir do caso da primeira pessoa e pensar que ela nos
proporciona um paradigma de certeza. Pois, considerada isoladamente, ela nada nos
proporciona. Em segundo lugar, embora a distinção entre ser e parecer não exista para mim no
momento em que contemplo minhas próprias sensações, isso só ocorre porque falo uma
linguagem pública que determina essa propriedade peculiar do conhecimento da primeira
pessoa. O colapso do ser e parecer é um caso "degenerado". Assim sendo, posso saber que, se
esse colapso é possível, é porque há outras pessoas no mundo além de mim e porque tenho em
comum com elas uma natureza e uma forma de vida. De fato, habito um mundo objetivo em
que as coisas são ou podem ser diferentes do que parecem. Desse modo, de maneira
surpreendente, o argumento da Dedução Transcendental de Kant acaba fundamentado. A
precondição do autoconhecimento (da Unidade Transcendental da Apercepção) é, afinal de
contas, o conhecimento dos outros e do mundo objetivo que os contém.

Muita coisa mudou na filosofia desde que Wittgenstein produziu seus argumentos, e muita
coisa não mudou. Entretanto, de uma coisa se pode ter certeza. A suposição de que existe a
certeza da primeira pessoa, que proporciona um ponto de partida para a investigação
filosófica e que levou ao racionalismo de Descartes e ao empirismo de Hume, bem como a
grande parte da epistemologia e da metafísica modernas, foi finalmente deslocada do centro
da filosofia. A ambição de Kant e Hegel de obter uma filosofia que remova o "eu" [self ] do
limiar do conhecimento; de modo a finalmente transformá-la numa forma enriquecida
acabada, talvez tenha sido agora realizada.

(escaneado por Marco Antonio Frangiotti de

Scruton (1982): Introdução à Filosofia Moderna, Rio de Janeiro: Zahar, pgs. 268-281)

52
Pensar o sentido de uma proposição
JOSÉ OSCAR DE ALMEIDA MARQUES
Departamento de Filosofia
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Universidade Estadual de Campinas
E-Mail: mailto:%20jmarques@unicamp.br
Web: http://www.unicamp.br/~jmarques

RESUMO: Linguagem e realidade constituem, no Tractatus de Wittgenstein, domínios


estritamente isomorfos, no sentido de que compartilham uma mesma "forma lógica".
Para explicar como é possível compreender o sentido de uma proposição, um recurso
usual é admitir, entre os membros desse par, uma terceira instância - o pensamento -,
que atuaria como o medium através do qual se estabelecem as relações projetivas que
conectam os dois domínios. Como resultado dessa interposição, uma dimensão
mental, ou psicológica, passa a ser parte integrante da exposição do processo pelo
qual a linguagem pode representar a realidade. Neste trabalho pretendo mostrar que
esse recurso é incapaz de atingir o resultado pretendido e defendo a idéia de que uma
explicação filosófica de como as proposições têm sentido deve ser alcançada por meio
de considerações puramente formais, dispensando a introdução de qualquer instância
ou atividade mental.
 

ABSTRACT: In Wittgenstein's Tractatus, language and reality are strictly isomorphic


domains, in the sense that they share a common "logical form". In order to explain the
possibility of understanding the sense of a proposition, it has been customary to
postulate a third instance - the thought -, that would act as a medium through which
both domains get in touch, by means of projective relations. In consequence of this, a
mental or psychological dimension is called to play an essential role in the account of
how language can represent reality. In this paper I try to show that this does not help to
solve the original problem, and that a philosophical explanation of how propositions
get their sense must be formulated in purely formal terms, without resort to any mental
facts or activities.

53
 

I
"Toda minha tarefa", escreveu Wittgenstein no início de 1915, "consiste em explicar
a essência da proposição". Essa declaração, lançada entre as anotações que
serviram de base para a redação do Tractatus Logico-Philosophicus, não retorna
explicitamente no texto da obra acabada, mas é claro que não estaria ali fora de
lugar, já que constitui uma etapa indispensável para atingir o objetivo final do livro,
que é circunscrever o limite de tudo o que pode ser expresso na linguagem e
chegar, com isso, a um entendimento crítico do propósito final da atividade
filosófica.. Meu objetivo nesta exposição é examinar brevemente a maneira pela qual
Wittgenstein procede para chegar a esse desvendamento da natureza da proposição
e discutir algumas dificuldades que comumente são encontradas na interpretação
desse procedimento.

O débito geral do Tractatus para com os trabalhos de Frege e Russell está


explicitamente reconhecido no Prefácio, e, quanto ao tópico em questão, seu ponto
de partida é basicamente o mesmo que o daqueles autores. Deixando de lado as
diferentes terminologias empregadas para descrever esse processo, e, mais ainda,
as diferentes implicações semânticas e filosóficas de suas exposições, pode-se dizer
que os três autores citados concordam em que a proposição deve ser entendida
como um complexo formado por elementos mais simples, e o problema que se
coloca para todos eles é explicar como a sua significação se determina a partir da
significação de seus constituintes.

Partindo desse pressuposto comum, a novidade do tratamento wittgensteiniano da


proposição consiste em atribuir-lhe um estatuto inteiramente distinto do das
expressões ou nomes que a constituem. Nomes adquirem significação ao atuarem,
na linguagem, como representantes de alguma coisa. No Tractatus, são signos cujo
significado decorre de que nomeiam um certo objeto - mais exatamente, seu
significado é o objeto que nomeiam. A proposição, por sua vez, é uma combinação
de nomes, e seu sentido - isto é, aquilo que ela diz ser o caso - é que os objetos
nomeados estão combinados na realidade do mesmo modo como os nomes estão
combinados na proposição.

Quanto à proposição, porém, Wittgenstein insiste em que a maneira pela qual ela se
torna significativa, ou adquire seu sentido, não pode ser a mesma pela qual os
nomes obtém seu significado. A dificuldade de se pretender que a proposição
constitui um signo complexo cuja significação, em analogia com os nomes, seria
dada por um objeto complexo (um fato, suponhamos) torna-se visível quando se
observa que um nome que não representa um objeto é ipso facto um signo
desprovido de significação, ao passo que uma proposição não deixa de ser
significativa pelo fato de não haver um complexo que lhe corresponda: ela se torna
apenas falsa, mas não sem sentido (Tractatus, 3.24)1. E, de fato, a explicação de
como ela é capaz de preservar seu sentido independentemente de quaisquer
circunstâncias ligadas à existência ou inexistência de complexos constitui o cerne do
tratamento da proposição apresentado no Tractatus.

Em 3.1431 Wittgenstein oferece uma ilustração que ele supõe capaz de nos levar a
uma concepção iluminadora da essência da proposição. Ele nos pede que a

54
imaginemos composta não de sinais escritos mas de objetos espaciais como mesas,
cadeiras, livros. A disposição espacial dessas coisas, uma ao lado das outras,
expressará - ele nos diz - o sentido da proposição. Essa ilustração permite discutir
diversos aspectos importantes da noção de proposição.

Em primeiro lugar, um tal arranjo de coisas só consegue veicular um sentido, ou


dizer-nos alguma coisa, se seus elementos não forem tomados em si mesmos, mas
sim como representantes de outros objetos que compõem a situação cuja existência
se pretende comunicar. Sem isso, aquelas coisas seriam simbolicamente inertes, e
sua disposição espacial um mero fato bruto entre tantos outros de mesmo gênero no
mundo. Também as proposições da linguagem, escrita ou falada, são em si mesmas
apenas um arranjo de elementos (sons, traços no papel, etc.), e esses arranjos,
enquanto tais, constituem apenas outro fatos brutos no mundo. A combinação
desses elementos só se torna significativa pela conexão simbólica que eles mantêm
com coisas distintas deles mesmos. Essas conexões constituem, no Tractatus, as
relações projetivas entre a linguagem e a realidade, e são essas relações que
permitem que o signo proposicional nos apareça como uma projeção da situação
cuja existência é afirmada.

Em segundo lugar, o exemplo é revelador por acentuar o caráter arbitrário dos


elementos que compõem o signo proposicional. Quaisquer outras coisas poderiam
ser empregadas com o mesmo resultado, desde que estivessem sendo empregadas
para nomear os mesmos objetos. Diferentemente do signo proposicional como um
todo, cuja articulação interna nos exibe o sentido da proposição, os nomes são
signos não-articulados cujo significado é puramente convencional; eles não nos
mostram seu significado. Do mesmo modo, é arbitrário o papel atribuído às relações
espaciais entre os elementos do signo proposicional: outras relações poderiam ser
igualmente empregadas para o mesmo fim (sucessão temporal, diferenciações
cromáticas, etc.), mas não vou estender-me sobre este ponto.

A identificação dos traços arbitrários presentes em qualquer sistema lingüístico


concreto serve, no entanto, para isolar aquilo que não é arbitrário na linguagem e no
simbolismo em geral. Um sistema de signos capaz de representar deve ter, para
Wittgenstein, a mesma "multiplicidade lógica" da realidade que ele representa, isto é,
as possibilidades de articulação de seus elementos devem corresponder exatamente
às possibilidades de combinação dos objetos que esses elementos designam. A
linguagem, entendida como um sistema de signos capaz de veicular todos os
sentidos concebíveis, ou seja, capaz de expressar a existência de qualquer situação
possível, deve portanto conter tantos nomes quantos são os objetos que compõem o
arcabouço da realidade, e deve ser governada por regras sintáticas que espelham
em seu funcionamento as combinações admissíveis daqueles objetos.

Este breve apanhado dos aspectos essenciais do signo proposicional permite


entender como a proposição pode expressar um sentido independentemente da
existência factual de qualquer entidade que estivesse funcionando como seu
significado. O sentido da proposição, isto é, o que ela expressa, é um fato, a saber,
o fato de que certos objetos estão combinados na realidade. Ela pode expressar isso
porque ela mesma é um fato: o fato de que, nela, certos nomes estão combinados. A
única exigência necessária para que ela esteja dotada de significação é que esses
nomes tenham significado, que eles designem entidades existentes. Portanto, o

55
único contato entre a proposição e a realidade se dá através dos nomes que a
compõem, por meio das relações projetivas que conectam esses nomes aos objetos
que eles nomeiam. Disto se segue que o sentido da proposição depende
exclusivamente do significado de seus elementos constitutivos, e não pressupõe a
existência factual do complexo ou combinação de objetos que ela afirma existir. Uma
vez determinado o significado dos nomes, o sentido da proposição segue-se de
imediato, sem qualquer consideração adicional.
 
 

II
O problema que quero examinar é: como, para Wittgenstein, os nomes adquirem
seu significado? Trata-se de uma questão extremamente difícil de responder com
precisão, devido ao caráter obscuro e fragmentário das observações do Tractatus
sobre o assunto. A situação se torna ainda mais confusa quando se observa que
muitos intérpretes não distinguem, de um lado, entre aquilo que Wittgenstein
considera a questão filosófica de como é possível um sistema de signos que têm
objetos como seus significados e, de outro, a questão psicológica de como os
usuários da linguagem chegam a conhecer o significado desses signos.

A conflação dessas duas questões resulta em uma concepção - que poderíamos


denominar "ingênua" - de como se estabelece, no Tractatus, o significado de um
nome. O ponto de partida dessa explicação é normalmente o aforismo 3.11, onde se
lê:

Wir benützen das sinnlich wahrnehmbare Zeichen (Laut- oder Schriftzeichen etc.) des Satzes
als Projektion der möglichen Sachlage.
Die Projektionsmethode ist das Denken des Satz-Sinnes.
A primeira sentença não é problemática e refere-se ao fato já mencionado de que o
signo proposicional - ou seja, a proposição considerada em seus aspectos materiais
visíveis ou audíveis - fornece a projeção de uma situação possível. Qual situação
está sendo projetada depende, como já vimos, de quais são os objetos a que os
elementos da proposição se associam pelas relações projetivas.

O problema que quero discutir prende-se à interpretação da segunda sentença.


Literalmente, ela identifica o método de projeção ao ato de pensar o sentido da
proposição. À primeira vista, parece que se está explicando o estabelecimento das
relações projetivas pela intervenção de um ato mental - é como se o pensamento
realizasse essa ligação entre as coisas e os signos que lhes servem de nomes. Essa
leitura introduz uma dimensão psicológica, ou intencional no relato de como a
proposição adquire sentido. É uma instância mental que atua estabelecendo essa
ligação entre nome e objeto, e que transforma um traço por si mesmo inerte em um
elemento dotado de significado.

Há várias dificuldades nessa concepção. Deixando de lado a complexa a questão da


inexistência, para Wittgenstein, de um sujeito psicológico de representações, vou
levantar apenas algumas objeções que me parecem mais facilmente
compreensíveis.

56
Em primeiro lugar, lembre-se que, no Tractatus, o pensamento tem ele próprio um
caráter lingüístico e, como qualquer proposição, constitui uma "figura dos fatos" (3).
Também ele é supostamente um arranjo de elementos cuja natureza precisa
Wittgenstein afirma desconhecer e cuja determinação, ademais, considera
irrelevante do ponto de vista filosófico. Mas não importa a natureza desses
elementos: se são entidades mentais ou sinapses neuronais. O que importa é que
também sua organização só pode adquirir o poder de significar, ou de veicular um
sentido, se seus elementos estiverem eles mesmos em relações projetivas com a
realidade. Portanto, o pensamento, enquanto atividade simbólica, tem como
pressuposto justamente essa relação projetiva com a realidade, e não pode
legitimamente ser apresentado como o fundamento dessas relações.

Em segundo lugar, a concepção ingênua envolve a necessidade de algum tipo de


apreensão, pelo pensamento, do objeto ao qual o nome se refere, para que se
possa estabelecer a associação entre ambos. Mas recorde-se que os objetos do
Tractatus (que constituem os referentes últimos dos nomes que ocorrem nas
proposições) são entidades muito peculiares, e - seja qual for a sua natureza - não
coincidem de modo algum com os objetos com que nos confrontamos em nossa
experiência cotidiana. Não estamos em nenhum momento diretamente conscientes
desses objetos, e não podemos identificá-los isoladamente. Dada essa
circunstância, isto é a impossibilidade de identificar e re-identificar os referentes dos
elementos do signo proposicional, torna-se ininteligível a hipótese de que esses
elementos possam adquirir significado por meio de algum tipo de associação mental
com entidades dadas à nossa experiência.

Algumas outras passagens do Tractatus contribuem para nos convencer de que o


que está em jogo na identificação de um objeto é algo muito diverso do mecanismo
presente nas chamadas "definições por ostensão". Wittgenstein nos diz, por
exemplo, que, para conhecer um objeto, é preciso conhecer todas as suas
"propriedades internas" (2.0123 ss.), entendendo com isso suas possibilidades de
combinação com outros objetos. Isto está ligado à sua suposição de que objetos não
possuem propriedades materiais intrínsecas, mas apenas propriedades formais que
se esgotam na determinação de quais são as combinações de objetos em que eles
podem ocorrer. Exclui-se portanto que a identificação de um objeto possa ser feita
com base em características factuais desse objeto - ao contrário, aponta-se aqui
para um processo muito mais abrangente, segundo o qual cada objeto contém uma
referência interna a cada um dos outros, e a característica distintiva que permite
identificá-lo consiste em sua particular posição no interior de um "espaço lógico" de
combinações que engloba, de uma só vez, a totalidade dos objetos.
 
 

III
Se pretendermos nos aproximar de uma compreensão do modo pelo qual, no
Tractatus, um nome adquire significação, é indispensável levar em conta a
reiteração, ali, do princípio fregeano do contexto, a saber, que um nome considerado
isoladamente não tem significado, que só no interior da proposição um nome pode
designar um objeto (3.3). O princípio holístico que governa a identificação dos
objetos é estendido aqui para o próprio domínio dos nomes, e a conseqüência disto
é que a questão da significação dos nomes não pode ser resolvida através da

57
consideração isolada desses nomes, mas exige o exame das proposições em que
ocorrem.

Este ponto é devidamente ressaltado numa das poucas passagens do Tractatus


(talvez mesmo a única) em que o problema recebe alguma atenção explícita. Em
3.263, Wittgenstein afirma que o significado dos signos simples (isto é, dos nomes)
pode ser esclarecido por meio de "elucidações" (Erläuterungen), que são
proposições que contêm esses signos. Mas, a seguir, em uma frase que tem
causado merecidamente muita perplexidade entre os comentadores, ele observa
que tais proposições só podem ser entendidas se o significado daqueles signos já
for conhecido. Ou seja, saber o significado dos nomes exige entender proposições
nas quais esses nomes ocorrem; para isso, porém, é preciso saber o que eles
nomeiam. A passagem como um todo adquire a aparência de um círculo vicioso,
que frustra a expectativa inicial de obter um esclarecimento de como os nomes
podem adquirir significado.

Muito já se tem escrito com a finalidade de tornar inteligível essa passagem do


Tractatus, e não posso aqui recapitular as várias tentativas de interpretação
encontradas na literatura. Vou procurar apenas mostrar que, quando se adota uma
outra leitura do aforismo 3.11 mencionado anteriormente, sobre a relação entre
"método de projeção" e "pensar o sentido da proposição", uma boa parte da
estranheza inicial pode ser dissipada.

Como entender corretamente o aforismo 3.11? O caminho, parece-me, é abandonar


a idéia de que a existência das relações projetivas entre nomes e objetos nomeados
possa ser, em qualquer sentido, explicada pelo pensamento. Fazê-lo equivale a
tomá-las como relações de caráter quasi-factual, que podem vigorar ou não vigorar
em função da atuação de uma instância externa que criaria a ligação entre os dois
termos. Ao contrário, 3.11 deve ser entendida como afirmando que é precisamente a
existência dessas relações que explica como é possível pensar o sentido da
proposição. O que se tem aqui é uma espécie de definição do pensamento: pensar
uma proposição, assim como enunciá-la, é empregá-la como projeção de uma
situação possível. Não se trata de explicar o suposto mecanismo de projeção por
meio da atividade mental de pensar o sentido da proposição, mas sim de empregar
a noção filosófica e matematicamente mais clara de projeção para explicar a
obscura noção de pensamento.

Uma vez que se reconheça que o problema filosófico da linguagem diz respeito às
condições de sua possibilidade e não às condições concretas de sua utilização pelo
zoon phonanta, teremos avançado bastante na resolução das dificuldades acima
expostas. O ser humano possui a faculdade de construir linguagens pelas quais
quaisquer sentidos podem ser expressos, quaisquer situações possíveis podem ser
precisamente descritas (4.002). Mais do que o mecanismo envolvido nessa
construção, Wittgenstein se interessa pelo que torna possível essa expressão de
sentidos perfeitamente determinados, e o associa ao requisito de que signos
simples, ou nomes, sejam possíveis (3.23, 4.0312), de que possa, em princípio,
existir uma organização de signos que, mediante as regras sintáticas que governam
sua associação, constitua um perfeito espelhamento das relações que podem
vigorar no domínio dos objetos.

58
É claro que, nesse quadro, é totalmente descabido perguntar quais signos
constituem os nomes de quais objeto, e, conseqüentemente, como nós chegamos a
atribuir-lhes significado. A linguagem em sua forma completamente analisada, na
qual signos simples ligam-se imediatamente aos objetos, aos constituintes últimos
da substância do mundo, não existe concretamente em parte alguma; é apenas sua
possibilidade que é afirmada no Tractatus, enquanto condição transcendental para a
existência do fenômeno da representação. À pergunta sobre qual seria o "real" nome
de um objeto só se poderia responder, segundo o Tractatus, dizendo-se que ele é
qualquer signo que ocupa na linguagem uma posição formalmente idêntica à que um
objeto ocupa no campo de suas possibilidades de combinação com outros objetos.
Rigorosamente falando, os nomes, enquanto signos determinados, são dispensáveis
para o funcionamento da linguagem: o sentido de uma proposição pode ser
precisamente veiculado mesmo quando ela se apresenta sob a forma
completamente generalizada, consistindo apenas de variáveis (5.526). Tudo o que
há de relevante para a função simbólica esgota-se totalmente nos aspectos formais
que regem a articulação dos nomes, nas regras de sintaxe que os tornam capazes
de mimetizar as propriedades combinatórias dos objetos.

A natureza das relações projetivas entre a linguagem e a realidade pode agora ser
melhor explicada. Elas não envolvem qualquer associação a posteriori entre signo e
significado, mas estão dadas de antemão, em virtude do isomorfismo, no sentido
matemático, entre os dois domínios. Esse isomorfismo consiste na existência de
"lugares sintáticos" no sistema abstrato da linguagem que correspondem
univocamente às posições ocupadas pelos objetos no espaço lógico de suas
possíveis combinações. Desse modo, se é verdade que o sentido de uma
proposição se determina a partir do significado de seus constituintes, esse
significado está determinado exclusivamente pela possibilidade sintática da
ocorrência desses constituintes em proposições dotadas de sentido. Voltando ao
aforismo 3.263, vemos agora que, longe de descrever uma situação paradoxal em
que dois processos distintos parecem exigir, cada qual, a ocorrência prévia do outro,
ele surge como a expressão do fato de que a projeção de uma situação pelo signo
proposicional resulta essencialmente das propriedades formais desse signo, e
envolve uma referência interna a todas as demais proposições em que seus
constituintes podem ocorrer; em última análise, à linguagem como um todo.
Enquanto estivermos dominados pela idéia de que uma proposição deve adquirir
seu sentido de forma isolada das demais proposições, podemos razoavelmente
imaginar que ela necessitaria de algum auxílio para essa tarefa, que seria preciso
estender externamente algumas linhas ligando os signos que nela ocorrem aos
objetos, para que ela pudesse ser "guiada" em seu trajeto rumo à realidade. Só
assim, pareceria, ela seria capaz de expressar uma situação definida, uma situação
que envolve tais e tais objetos, e não outros. Quando aceitamos, porém, todas as
implicações do princípio do contexto presentes no Tractatus, em especial, que é só
no interior da linguagem como um todo que qualquer proposição adquire sentido,
compreendemos que esse auxílio externo é desnecessário. Pois, em virtude da
identidade de forma lógica entre a linguagem e a realidade, em virtude do
isomorfismo entre a totalidade das possibilidades combinatórias dos nomes e a dos
objetos, só há uma maneira pela qual se pode estabelecer uma correspondência
entre os elementos dos dois domínios. Ao se determinar, portanto, o lugar preciso da
proposição no sistema formal da linguagem estará determinada ipso facto a
referência precisa dos nomes que a compõem, e, conseqüentemente, seu sentido, a

59
situação definida cuja existência ela veicula, sem a necessidade de recorrer a uma
instância externa para criar a ligação entre os nomes e suas referências.
 
 

IV
[Não fez parte do texto publicado]

Em minha interpretação de como, no Tractatus, as proposições adquirem seu


sentido procurei criticar a introdução do pensamento como algo que estabelece a
conexão entre os elementos do signo proposicional e os aspectos da realidade a
que eles se referem, insistindo em que o significado de um signo está determinado
exclusivamente pelas regras sintáticas que governam seu emprego na linguagem, e
que nenhuma associação factual com o objeto é necessária e nem mesmo possível.
Isto leva-me, para finalizar, a uma observação sobre tentativas recentes de avançar
nesta linha de raciocínio até o ponto de expurgar do Tractatus a própria noção de
uma realidade extra-lingüística. Nessa concepção, o significado dos nomes se
esgota totalmente no interior da própria linguagem, e não se supõe que eles estejam
"no lugar" de alguma coisa, que sejam representantes de entidades exteriores à
linguagem.

Por engenhosa que possa ser, na medida em que consegue dar conta de muitas
questões ainda problemáticas na interpretação do Tractatus, essa posição não me
parece sustentável e não deve ser tomada como uma conseqüência do que estou
propondo aqui. O principal problema é como dar conta, nesse caso, da questão da
verdade de uma proposição, que Wittgenstein insiste ser determinada pela
comparação com a realidade, isto é por referência a uma instância não-lingüística. É
verdade que o desvendamento da essência da proposição foi considerado por
Wittgenstein, na passagem datada de janeiro de 1915 que citei no início, como
constituindo "toda a sua tarefa", mas é relevante notar que ele complementa
imediatamente essa afirmação dizendo que essa tarefa se identifica à de especificar
a essência de todos os fatos dos quais a proposição é uma figura, a essência de
todo o ser. E ainda, que poucos meses depois ele tenha registrado em seus
cadernos de notas as seguintes palavras: "O grande problema em torno do qual gira
tudo o que escrevo é: Há uma ordem a priori no mundo e, se houver, qual é ela?"

As observações de cunho ontológico no Tractatus, longe de constituírem apenas um


material introdutório destinado a ser dialeticamente superado no decorrer do livro,
fazem parte integrante do seu sistema e surgem mesmo em passagens tão
avançadas da exposição como 5.471, onde se associa mais uma vez o problema de
fornecer a essência da proposição ao desvendamento da essência do mundo. Seja
como for que se interprete o posterior desenvolvimento filosófico de Wittgenstein, é
indubitável que, no Tractatus, está firmemente presente o viés realista que admite
uma realidade exterior e independente de nossa linguagem ou nosso pensamento, e
o desafio de explicar a relação entre esses dois domínios.
 

VI Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF


Águas de Lindóia, 5 a 10 de outubro de 1994
Publicado em: Manuscrito. v. 18, n. 2, p. 185-197, 1995

60
 

Referências Bibliográficas
 WITTGENSTEIN, L. Logisch-philosophische Abhandlung. Frankfurt am
Main: Suhrkamp Verlag, 1989.
 WITTGENSTEIN, L. Tagebücher 1914-1916. Frankfurt am Main:
Suhrkamp Verlag, 1984

Nota
1
Incidentalmente, pode-se notar que essa dificuldade fornece talvez a razão de Frege ter sido levado
a introduzir objetos especiais para atuarem como o significado das proposições, negando que elas
nomeassem fatos; e, ainda, para que Russell lhes tenha negado o estatuto de símbolos completos
capazes de significarem isoladamente.

O que é Filosofia da Linguagem?


William P. Alston

A Filosofia da Linguagem está ainda menos bem definida e possui um princípio de unidade ainda
menos claro do que a maioria dos outros ramos da Filosofia. Os problemas da linguagem que são
tipicamente tratados pelos filósofos constituem uma coleção pouco conexa, para a qual é difícil
encontrar qualquer critério nítido que a distinga dos problemas de linguagem de que se ocupam
gramáticos, psicólogos e antropólogos. Podemos chegar a uma noção inicial da amplitude dessa
coleção fazendo um levantamento dos vários pontos onde, no âmbito da Filosofia, surge o
interesse pelos problemas da linguagem.

Fontes do Interesse do Filósofo pela Linguagem: A Metafísica

Vejamos, em primeiro lugar, os modos como os problemas relativos à linguagem se manifestam nos
vários ramo, da Filosofia. A metafísica é a parte da Filosofia que se caracteriza, em suas linhas
gerais, como uma tentativa para formular os fatos mais genericamente universais, incluindo uma
enumeração das categorias mais básicas a que pertencem as entidades e alguma representação de
suas inter-relações. Sempre houve filósofos que tentaram chegar a alguns desses fatos
fundamentais considerando os aspectos básicos da linguagem que usamos para falar sobre o
mundo. Lemos no livro X de República de Platão : "Sempre que um determinado número de
indivíduos tem um nome comum supomos que tenham também uma idéia ou forma correspondente"
( 596 ) . Para esclarecer essa observação algo enigmática, Platão chamou a nossa atenção para um
aspecto genérico da linguagem, de que um determinado substantivo ou adjetivo, por exemplo,
'árvore' ou 'agudo', pode ser verdadeiramente aplicado no mesmo sentido a um grande número de
coisas distintas e diferentes; a sua opinião é de que isso só será possível se existir alguma
entidade designada pelo termo geral em questão 0 arboridade, agudeza - da qual compartilha
cada um dos indivíduos. Caso contrário, seria impossível aplicar o termo geral no mesmo sentido a
vários indivíduso diferentes.

61
Encontramos também Aristóteles, em sua Metafísica, argumentando da seguinte maneira;

"E assim, poder-se-ia até levantar a questão de saber se as palavras caminhar , ter
saúde , sentar , implicam que cada uma dessas coisas seja existente, e do mesmo modo em
outros casos deste gênero; pois nenhuma delas subsiste por si própria nem é capaz de
manter-se separada da substância mas, antes, se realmente é alguma coisa, é aquilo que
anda, ou se senta ou é saudável que é uma coisa existente. Ora, tais palavras são tidas na
conta de mais reais porque existe algo definido que lhes é subjacente (isto é, a
substância, ou indivíduo), que está implícito nesse predicado; pois nunca usamos a palavra
"bom" ou "sentado" sem subentender isso". ( Livro Zeta, capítulo 1. )

Neste caso, Aristóteles parte do fato de que nunca usamos verbos a não ser em conexão com
sujeitos, de que não dizemos "Senta", "Caminha" etc., mas, antes, "Ele está sentado" ou "Ela
caminha". Deste fato conclui que as substâncias, as "coisas", têm uma espécie independente de
existência que as ações não têm, que as substâncias são ontologicamente mais fundamentais do
que as ações.

Um exemplo mais exagerado vamos encontrar no filósofo alemão do fim do século XIX, Meinong,
que parte da suposição de que toda a expressão significativa numa frase ou proposição (pelo
menos, qualquer expressão significativa que tenha a função de referir-se a algo) deve ter- 11m
referente; caso contrário, nada haveria que pudesse significar. Logo, quando temos uma
expressão obviamente significativa que não se refere a coisa alguma no mundo real, por exemplo,
"a Fonte da Juventude", na frase "De Soto está à procura da Fonte da Juventude" , devemos
supor que se referia a uma entidade "subsistente", que não existe mas tem algum outro modo de
ser. Esta doutrina, assim como a posição platônica acima apresentada, baseia-se numa assimilação
confusa de significado e referência, que tentaremos destrinçar no primeiro capítulo.

0 pressuposto contido nesses padrões de argumentação metafísica tornou-se patente no


movimento filosófico do século XX conhecido como atomismo lógico,, cujos expoentes mais
destacados foram Bertrand Russell e Ludwig Wittgenstein (no seu período inicial). Em sua série
de artigos, "A Filosofia do Atomismo Lógico", Russell explica com clareza o princípio;

". . . num simbolismo logicamente correto haverá sempre uma certa identidade
fundamental de estrutura entre um fato e o seu símbolo respectivo; e... a complexidade
do símbolo corresponde intimamente à complexidade dos fatos por ele simbolizados." 1

Note-se que essa identidade de estrutura é postulada como válida não entre qualquer linguagem
existente e a estrutura metafísica básica do mundo, mas somente entre uma "linguagem
logicamente perfeita" e a estrutura metafísica.. A hipótese formulada é de que, quando criamos
tal linguagem ou adquirimos, pelo menos, uma idéia sumária do que essa linguagem poderia ser,
estaremos então aptos a tirar várias conclusões sobre os tipos de fatos de que a realidade é
feita e a estrutura de cada um desses fatos. Verificaremos quais diferentes tipos de proposições
possuímos nessa linguagem para afirmar fatos, por exemplo, simples frases de sujeito-predicado
como "Este livro é pesado" e frases existenciais como "Há um gato na varanda"; e veremos como
esses vários tipos de proposições estão logicamente correlacionados. Isso nos dirá quais são os
tipos básicos de fatos de que a realidade é feita e como os fatos desses vários tipos estão
correlacionados.

62
Lógica
Outro ramo da Filosofia em que o interesse pela linguagem tem lugar preponderante é a lógica. A
lógica é o estudo da inferência; mais precisamente, é a tentativa de criação de critérios para
distinguir as inferências válidas das inválidas. Como o raciocínio se efetua pela linguagem, a
análise das inferências depende da análise dos enunciados que figuram como premissas e
conclusões. 0 estudo da lógica revela o fato de que a validade ou invalidade de uma inferência
depende das formas dos enunciados, que compõem as premissas e a conclusão, entendendo-se por
"forma" as espécies de termos que os enunciados contêm e o modo como esses termos estão
combinados no enunciado. Assim, de duas inferências que superficialmente parecem muito
semelhantes, uma poderá ser válida e a outra inválida por causa de uma diferença na forma de um
ou mais dos enunciados envolvidos. Consideremos os seguintes pares de inferências.

1. Joe Carpenter vende apólices de seguro em nossa cidade.


Joe Carpenter pertence à Primeira Igreja Metodista.
Portanto, Joe Carpenter não só vende apólices de seguro em nossa cidade, como pertence à
Primeira Igreja Metodista.

2. Alguém vende apólices de seguro em nossa cidade.


Alguém pertence à Primeira Igreja Metodista.
Portanto, alguém vende apólices de seguro em nossa cidade e pertence à Primeira Igreja
Metodista.

Ora, 1 é, claramente, um argumento válido e 2 é, claramente, inválido. Dados os fatos de que


alguém vende seguros nesta cidade e alguém pertence á Primeira Igreja Metodista, não se segue,
em absoluto, que exista alguém de quem ambas essas coisas sejam verdadeiras. Como um desses
argumentos é válido e o outro inválido, decorre que, apesar das superficiais semelhanças
gramaticais, uma frase como a. "Joe Carpenter vende apólices de seguro em nossa cidade" é de
uma forma lógica muito diferente de uma frase como b. "Alguém vende apólices de seguro em
nossa cidade". Existem outros indícios disso. A frase b é equivalente a "Existe alguém que vende
apólices de seguro em nossa cidade" e " A classe de pessoas que vendem apólices de seguro em
nossa cidade não está vazia'', mas não podemos encontrar tais equivalentes para a frase a.
Quando as premissas e conclusão da inferência 2 são colocadas numa dessas formas, o argumento
perde sua semelhança superficial com a inferência 1 e não parece de modo algum válido.

3. Há alguém que vende apólices de seguro em nossa cidade.


Há alguém que pertence à Primeira Igreja Metodista.
Portanto, existe alguém que vende apólices de seguro em nossa cidade e pertence à Primeira
Igreja Metodista.

Fica evidenciado em tais exemplos que uma importante parte da lógica consiste da classificação
de enunciados em função cie sua forma "lógica" (isto é, aspectos da forma que são relevantes
para a avaliação da inferência). E essa classificação requer, por seu turno, uma classificação dos
tipos de termos que entram nos enunciados, pois uma diferença formal assenta, muito
freqüentemente, numa diferença entre os tipos de termos envolvidos. No exemplo precedente, a
diferença de forma lógica entre as frases a e b assenta numa diferença fundamental entre um
nome próprio como "Joe Carpenter", que tem a função de selecionar um determinado indivíduo, e
uma locução como "alguém", que tem uma função muito diferente.

63
A Epistemologia

0 ramo da Filosofia conhecido como Epistemologia ou Teoria do Conhecimento envolve a linguagem


em certos pontos, sendo o mais importante o problema do conhecimento a priori. Temos um
conhecimento apriorístico quando sabemos algo sem que esse "algo" esteja fundamentado na
experiência. Parece que temos um conhecimento desse gênero na matemática e talvez em outras
áreas também; e o fato de termos tal conhecimento parece ter deixado os filósofos
freqüentemente perplexos. Como é que podemos saber com toda a certeza, independentemente
de observações, medidas etc., que os ângulos de um triângulo euclidiano, todos somados, são
iguais a 180 graus? Ou que 8 mais 7 é sempre e invariavelmente igual a 15? Como podemos estar
certos de que nenhuma experiência jamais desmentirá essas convicções? Uma resposta que tem
sido freqüentemente dada é que, em tais casos, o que estamos afirmando é verdadeiro por
definição ou verdadeiro em conseqüência das significações dos termos envolvidos. Quer dizer,
faz parte do que significamos com o uso de "8", "7", "15", "mais" e "igual'' que 8 mais ~ iguala 15;
e negar esta afirmação seriamente implicaria a mudança de significação de um ou mais desses
termos. A propriedade desta explicação do conhecimento a priori é e tem sido objeto de
considerável controvérsia; mas, quer a posição se justifique ou não, é evidente que, mesmo
considerando-a seriamente, somos levados inevitavelmente a indagações por que um termo tem
um certo significado P como é que um enunciado pode ser verdadeiro em virtude de certos
termos possuírem o significado que possuem.

Reforma da Linguagem

Há também motivos filosóficos de interesse pela linguagem que nada têm a ver com os problemas
de um ou outro ramo da Filosofia mas, sim, com os tipos de atividade a que os filósofos são
levados em muitos ramos da matéria. Um destes é a reforma da linguagem. Os pensadores de
muitos campos são propensos a se queixarem de deficiências da linguagem, mas os filósofos têm
estado mais preocupados, e com razão, com esse gênero de problema do que a maioria. A filosofia
é muito mais uma atividade puramente verbal do que uma ciência que reúne e colige fatos sobre
reações químicas, estruturas sociais ou formações rochosas. A discussão verbal é o laboratório
do filósofa, onde ele submete suas idéias a teste. Não surpreende, portanto, que o filósofo seja
especialmente sensível às imperfeições em seu principal instrumento. As queixas filosóficas
sobre a linguagem têm tomado variadas formas. Temos os filósofos da intuição mística, como
Plotino e Bergson, que consideram a linguagem intrinsecamente inadequada à formulação da
verdade fundamental. Segundo esse ponto de vista, só podemos realmente apreender a verdade
mediante uma união, sem palavras, com a realidade; as formulações lingüísticas só nos
proporcionariam, na melhor das hipóteses, perspectivas mais ou menos desvirtuadas. Mas, com
maior freqüência, os filósofos não se mostram propensos a renunciar à conversação, nem mesmo
em teoria. As queixas, em geral, têm sido dirigidas contra algum estado ou condição corrente da
linguagem, e a implicação é de que deveriam ser tomadas providências para remediar essa
situação, Esses filósofos podem ser, metodicamente, divididos em dois grupos, Há os que mantêm
que a "linguagem vulgar'', a linguagem da conversação cotidiana, é perfeitamente adequada aos
fins filosóficos, e que o mal reside no fato de se desviar da linguagem vulgar sem que se
providencie, realmente, um meio qualquer de dar sentido ao desvio. Encontramos exemplos desse
tipo de queixas ao longo da história da Filosofia, como foi o caso dos protestos de Locke contra o
jargão escolástico; entretanto, foi em nossa própria época que tais reclamações se converteram
na base de um movimento filosófico - o da "filosofia da linguagem comum". Em sua mais vigorosa

64
forma, tal como observamos nas últimas obras de Ludwig Wittgenstein, ela sustenta que todos ou,
pelo menos, a maioria dos problemas da Filosofia promanam do fato de os filósofos terem usado
mal alguns termos decisivos, como "saber", "ver", "livre", "verdadeiro" e "razão". Foi porque os
filósofos se afastaram do uso ou usos comuns desses termos, sem os substituir por algo
inteligível, que acabaram por cair em enigmas insolúveis sobre se podemos saber o que outras
pessoas estão pensando ou sentindo; se realmente vemos, de modo direto, qualquer objeto físico;
se agimos sempre livremente; se temos sempre alguma razão para supor que as coisas
acontecerão de uma maneira ou de outra no futuro. Segundo Wittgenstein, o papel do filósofo
que chegou a essa conclusão é o papel de um terapeuta; sua tarefa consiste em remover as
"limitações conceptuais'' em que caímos.

Em segundo lugar, há os que, ao contrário, sustentam que o problema decorre do fato de ser a
própria linguagem vulgar inadequada para fins filosóficos, em vista de sua indefinição,
ambigüidade, caráter vago e inexplícito, dependência do contexto e de sua natureza propícia a
interpretações ilusórias ou equívocas. Esses filósofos, como Leibniz, Russell e Carnap, consideram
ser sua tarefa a construção de uma linguagem artificial ou, pelo menos, a delineação de uma
linguagem tal em que esses efeitos sejam remediados. Como acentuamos antes, esse
empreendimento é, por vezes, estimulado pela convicção de que é possível, pela estrutura dessa
linguagem, entender todos os fatos sobre a estrutura metafísica da realidade.

Para os nossos propósitos, o interesse principal por essas queixas e esquemas de reforma reside
no modo como as concepções gerais da linguagem e da significação estão neles envolvidas. Até a
posição mística pressupõe uma certa noção da natureza da linguagem; de outro modo, não
disporíamos de base alguma para sustentar que a linguagem é intrinsecamente incapaz de servir
como formulação adequada da verdade. As outras posições envolvem, necessariamente,
concepções mais positivas das condições em que a linguagem é significativa e desempenha
adequadamente suas funções. Assim, o critério de verificabilidade da significação, ao qual
dedicaremos a maior parte de um capítulo, promana de uma posição do gênero descrito em último
lugar.

A Filosofia como Análise

A questão final diz respeito à noção de que a tarefa primordial, senão integral, da Filosofia
consiste na análise conceptual. A análise de conceitos básicos foi sempre uma preocupação
dominante dos filósofos. Nos Diálogos de Platão, Sócrates é representado como se passasse a
maior parte do tempo fazendo perguntas como "0 que é justiça?" e "0 que é sabedoria?" As obras
de Aristóteles foram dedicadas, em grande parte, a tentativas para chegar à definição adequada
de termos como "causa", "bem", "movimento'' e "conhecimento". Tradicionalmente, tem-se
considerado que, por mais importante que seja essa atividade, é ainda preliminar às tarefas
básicas do filósofo - as de chegar a uma concepção adequada da estrutura fundamental do mundo

65
e a um adequado conjunto de normas para a conduta e organização social humanas. Mas, em nosso
tempo, vem-se fixando a convicção de que o método usado na Filosofia, que pode ser
sucintamente definido como reflexões de gabinete, sem a suplementação de observações ou
experimentações especiais, não é realmente suficiente para produzir quaisquer conclusões
substantivas sobre a natureza do mundo ou as condições em que a vida é bem ou mal vivida; e de
que o que está apto a produzir é a clareza no tocante aos conceitos básico em cujos termos
pensamos no mundo e na vida humana. Essa transferência maciça do centro de gravidade da
atividade filosófica é de particular relevância para a filosofia da linguagem, por causa de uma
concomitante mudança da própria idéia da análise conceptual. Há três maneiras muito diferentes
de formular um problema em filosofia analítica, quer estejamos tratando de causação, verdade,
conhecimento ou obrigação moral. Tomando o problema do conhecimento para nosso modelo,
podemos dizer que ; 1. estamos investigando a natureza do conhecimento; 2. estamos analisando 0
conceito de conhecimento; ou 3. estamos tentando tornar explícito o que uma pessoa está dizendo
quando afirma saber que uma coisa é dessa ou daquela natureza. É possível que 1 e 2 sejam
metodologicamente falazes. 1 sugere, falsamente, que a tarefa consiste em localizar e examinar
uma certa entidade chamada "conhecimento", uma entidade que existe e é o que é
independentemente do nosso pensamento e discurso. Infelizmente, ninguém descobriu até hoje
uma técnica aceitável para localizar e examinar tais entidades.

2 está sujeito a nos desorientar se não for simplesmente reconhecido como uma forma
alternativa de 3, pois sugere que a tarefa consiste em analisar introspectivamente algo chamado
"conceito" e descobrir as partes que o compõem e o modo como estão reunidas. Também, neste
caso, parece não ser possível desenvolver uma técnica objetiva para fazer tal coisa. Aumenta a
convicção de que mesmo quando um filósofo, ao tratar do conhecimento, formula os seus
problemas como 1 ou 2, o que ele realmente faz, à medida que os seus resultados têm qualquer
valor, é refletir sobre os vários aspectos do uso de "saber" e seus cognatos.

Assim, à medida que a Filosofia consiste em análise conceptual, está sempre interessada na
linguagem. E, se toda nu grande parte da tarefa do filósofo é fazer ressaltar as características
do uso ou da significação de várias palavras ou formas de enunciado, então ser-lhe-á essencial
proceder de acordo com alguma concepção, geral da natureza do liso e da significação
lingüísticos. Isso se torna ainda mais importante quando os filósofos analíticos se envolvem em
persistentes debates sobre o que uma certa palavra significa ou sobre se duas expressões ou
formas de expressão têm o mesmo ou diferente significado. Há sérias divergências na filosofia
analítica sobre se ``Eu sei que p" significa o mesmo que "Eu acredito que p, tenho bases
adequadas para acreditar e p é o caso"; sobre se "A é a causa de B'' significa. simplesmente, que
A e B estão, de fato, regularmente associados; sobre se "estar triste'' significa o mesmo que "Eu
estou triste" e "Ele está triste"; e se qualquer enunciado teórico na ciência pode ter o mesmo
significado de alguma combinação de relatos de observação. Quando tais discussões não são
resolvidas pelo nosso senso intuitivo do que significam as expressões lingüísticas, o filósofo é
forçado a desenvolver alguma teoria explícita do que significa para uma expressão lingüística ter
um determinado sentido, e das condições em que duas expressões terão a mesma significação.
Assim, à medida que a Filosofia é concebida, primordialmente, como análise conceptual, a filosofia
da linguagem ocupa uma posição central na teoria do método filosófico.

Problemas da Filosofia da Linguagem

Tendo visto alguns dos pontos, nos setores mais centrais da Filosofia, em que somos,

66
naturalmente levados para uma análise explícita dos problemas respeitantes à linguagem, podemos
agora passar a um breve exame preliminar desses problemas. Como acentuei antes, não seria
realista esperar uma unidade compacta nesse assunto. Mas se podemos concordar em considerar
a análise conceptual como o âmago da filosofia, então podemos também conceder um lugar de
destaque, entre esses problemas, à tarefa de uma análise adequada dos conceitos básicos que
usamos ao pensar em linguagem. Embora não haja razão para que um filósofo não ponha suas
ferramentas analíticas em ação para trabalhar qualquer dos conceitos básicos relacionados com a
linguagem, a tendência tem sido, entretanto, para se concentrar nos conceitos semânticos, por
exemplo, o conceito da significação linguística e seus cognatos, identidade de significações etc.
Isso se deve, em parte, ao fato de muitas das preocupações filosóficas enumeradas na primeira
parte desta introdução levarem, naturalmente, a que se levantem interrogações sobre a natureza
da significação e, também em parte, porque o fato de uma certa palavra ter uma determinada
significação talvez pareça misterioso, no sentido de que freqüentemente dá origem ã reflexão
filosófica. Grande parte deste livro será dedicada á análise de conceitos semânticos.

Seria ilusório sugerir que a filosofia da linguagem. mesmo como é praticada pelos filósofos
analíticos, esteja limitada à análise conceptual, ao esclarecimento dos conceitos básicos
referentes à linguagem. Há várias outras tarefas que os filósofos tipicamente se impõem. Ë a
classificação de atos lingüísticos, "usos" ou "funções" da linguagem, tipos de indefinição, tipos de
termos, várias espécies de metáforas. Existem estudos sobre o papel da metáfora na ampliação
da linguagem; sobre as inter-relações entre linguagem, pensamento e cultura; e sobre as
peculiaridades do discurso poético, religioso e moral. A criação de linguagens artificiais tem sido
sugerida para vários propósitos. Há meticulosas investigações sobre as peculiaridades de
determinados tipos de expressões, como os nomes próprios e as expressões referentes de plural;
e de determinadas formas gramaticais, como a forma sujeito-predicado. Alguns desses problemas
se situam na fronteira entre a Filosofia e disciplinas mais especiais e todos eles poderiam ser
tratados em uma ou outra dessas disciplinas.

Assim, a Psicologia poderia assumir a tarefa de distinguir entre diferentes tipos de


comportamento lingüístico e poder-se-ia esperar que a lingüística descritiva fornecesse
classificações de tipos de expressões. Mas, se esses problemas pertencem, em princípio, às
disciplinas mais especiais, eles pertencem aos seus fundamentos; e a Filosofia tem tido,
tradicionalmente, muitas relações com os problemas de elevado nível nas ciências, especialmente
quando essas ciências estão nas fases iniciais de construção. Terei alguma coisa a dizer sobre
alguns desses problemas. Este livro foi escrito partindo de uma certa orientação filosófica -
aquela que é designada, em suas linhas mais gerais, pela expressão "filosofia analítica". Há muita
especulação em torno da linguagem, partindo-se de pontos de vista muito diferentes e, nesse
caso, os problemas assumem configurações bem diversas. Não é possível nem conveniente que num
volume desta dimensão se examinem todos os tópicos filosóficos da linguagem. A título de
compensação, incluí na bibliografia algumas sugestões de leituras sobre esses outros tópicos.

67
Notas

1 Logic and Knowledge, ediçâo organizada por R. C. Marsh (Londres; George Allen & Unwin, Ltd.,
195b).

In Alston, W. P. (1972): Filosofia da Linguagem, Rio de Janeiro: Zahar, pgs. 13-24

Percepção e Linguagem em Merleau-Ponty e Wittgenstein


Tania Eden

Em sua última obra intitulada O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty toca numa ferida da
assim chamada virada linguística: "só conseguimos reduzir a filosofia a uma análise da
linguagem se assumirmos que a linguagem contém sua evidência em si mesma" (Merleau-
Ponty 1986, pg. 131). A linguagem é um instrumento de concepção do mundo, mas sua
função de deduzir esse mundo não se esgota naquilo que pode ser obtido a partir de uma
análise dos nossos significados de palavras lexicais. Como diz Austin, uma análise da
linguagem não é de modo algum considerada como um fim em si mesmo. Uma
"fenomenologia da linguagem" deve levar em conta o fato de que as distinções linguísticas
são provenientes de um procedimento de escolha histórico, i.e., "um longo teste de
sobrevivência do mais apto" que nos ensina, na discussão incessante com o mundo à nossa
volta, a colocar em ação o instrumento ‘linguagem’ do modo mais eficiente possível (Cf.
Austin 1977). O conhecimento, na relação recíproca homem/mundo, que não é
adequadamente concebido nem como resultado do uso de dados empíricos nem através da
suposição de uma natureza determinada racionalmente, torna necessário, para Merleau-Ponty
(cf. Merleau-Ponty 1966, pg. 489), um novo conceito de sentido e de ação que se apõe tanto
ao idealismo linguístico quanto ao esquema behaviorista estímulo-resposta. Sentido e
significado não estão ligados a realizações linguísticas; antes, eles são imanentes a todos os
modos de ação e vivência. Na medida em que a teoria da Gestalt, através da diferenciação
entre figura e fundo, aponta para os trabalhos de formação e estrururação pré-linguísticos, ela
se configura como paradigmática para a tentativa de esboçar uma genealogia do significado
linguístico. Diante desse pano de fundo, a discussão de Wittgenstein - na segunda parte das
Investigações Filosóficas e nas Considerações sobre a Filosofia da Psicologia -, sobre a

68
apresentação da psicologia da Gestalt de Köhler (Köhler 1975), adquire um significado
especial.

(1) Já na Estrutura do Comportamento, Merleau-Ponty reduz a concepção de comportamento


à consciência perceptiva (MP 1976). Uma teoria do comportamento sem uma teoria da
percepção é impensável. Entre uma estrutura de comportamento e uma de percepção existe
uma relação de reciprocidade: o espaço do comportamento humano está, de um lado, limitado
pela percepção, que media a nossa relação com o mundo e se constitui no pano de fundo
ineliminável de todas as nossas atividades. Por outro lado, o campo da percepção, que se
aperfeiçoa apenas através do nosso agir vivente, oferece orientações. Para Merleau-Ponty, o
corpo individual é aquela zona de mediação na qual o limite entre o interno e o externo, entre
o puro ato de consciência e o mero mecanismo corporal se confundem. O conceito de
estrutura da teoria da Gestalt confirma a ambigüidade. Estruturas não são nem idéia nem
coisa. Elas se organizam espontaneamente em totalidades irredutíveis, que são constitutivas
de significado, mas não significados intelectuais. Numa perspectiva merleau-pontiana, as
seguintes questões críticas podem ser dirigidas a Wittgenstein: o discurso do ‘comportamento’
resiste à ‘retificação’ social, enquanto expressão quasi-naturalista das vivências psíquicas,
sem levar em conta o fato de que também "o nosso agir, que se funda no jogo de linguagem"
(Über Gewissheit, parag. 204), encontra um limite naqueles horizontes e perspectivas que são
representadas pela percepção? Uma teoria da percepção não poderia, ao contrário, contribuir
para especificar mais detalhadamente a relação entre jogo de linguagem e forma de vida?

(2) Inversamente, a teoria do "sentido encarnado" (Waldenfels 1983, cap. 3.) de Merleau-
Ponty poderia se enriquecer se a ela subjazer uma crítica analítica da linguagem. Merleau-
Ponty também fala daquilo que gira em torno de conexões funcionais entre os organismos e o
seu meio ambiente, a saber, a intencionalidade. A ela corresponde o princípio básico de
Husserl de uma intencionalidade "atuante", que não é uma intencionados de atos conscientes,
mas sim que fundamenta uma "unidade natural, ante-predicativa do homem e do mundo" (MP
1966, pg. 15). Tendo em vista que Merleau-Ponty estende o âmbito do intencional ao agir
motor, afetivo e sexual, o processo de constituição de sentido pode também ter lugar na
espontaneidade corporal e substituir o ‘eu penso’ cartesiano pelo ‘eu posso’ originário (ibid.,
pg. 166). A concepção de uma intencionalidade fundada no corpo e perceptiva torna possível
a Merleau-Ponty estabelecer um contínuo genealógico entre a organização física da percepção
e sua interpretação simbólica e cultural (Metraux 1986, pg. 232). Esse uso inflacionário do
conceito de intencionalidade faz com que conceitos como ‘sentido’ e ‘significado’ se tornem
imprecisos, de modo que a desejada transição de um sentido concreto e corporal para o
significado linguístico não possa mais ser realizada teoricamente. Uma teoria que associa uma
função constitutiva de sentido a reflexos físicos e meras figuras corre o risco de confundir o
sentido não-proposicional com o sentido proposicional de ‘perceber’. Wittgenstein deixa
claro, com o exemplo do ‘ver-asepcto’, que uma tal confusão leva a dificuldades insolúveis.
Se a afirmada auto-organização da percepção de si, por parte do teórico da Gestalt, fosse
gerada a partir de algo como o significado, então teria de ser possível que alguém que conhece
um coelho mas não um pato, diante da figura pato-coelho, considere ainda um outro aspecto à
parte do ‘aspecto-coelho’, mesmo que ele não tenha nenhuma palavra para o segundo, i.e., o
‘aspecto-pato’ (Bemerkungen über die Philsophie der Psychologie, parte I, pg. 70). O
discurso a partir de meras figuras corre o risco de contrariar o nosso uso ordinário da
linguagem. A suposição de que eu percebo primeiramente um algo determinado não se
harmoniza com o modo como nós usualmente conferimos expressão a nossas experiências
visuais. Eu afirmo ver um coelho, não uma figura ou um objeto visual a partir do qual eu
posso depois afirmar que fora um coelho o que, naquele momento, eu via na figura.

69
(3) Faz parte de uma teoria fenomenológica da intencionalidade que a experiência é uma
transcrição do vivido atual e comum (Husserl 1963, parag. 20). A idéia de uma
intencionalidade constitutiva de sentido, que se move em horizontes abertos de interpretações
potenciais do percebido, corresponde à idéia de que o homem possui a capacidade de
negação. Ele pode romper sistemas de regra existentes e criar novos. Isso vale também para a
linguagem. O fato de que sinais linguísticos possam ser empregados de maneira imprevista é,
por sua vez, constitutivo de significado. Novos jogos de linguagem podem modificar nossa
forma de vida. Cada emprego de um conceito contribui para sua formação. A multiplicidade
de possibilidades de uso de nossas relações com o meio linguístico dá margem à concepção de
uma "linguagem atuante", que tanto cria algo de novo quanto se deixa ela própria ser
provocada pelos dados e estimulada para essa atividade produtiva. Para Merleau-Ponty,
aprende-se a conhecer uma tal linguagem efetiva ou atuante apenas de dentro e através da
práxis (MP, 1986, pg. 168). E, de fato, Wittgenstein afirma na Gramática Filosófica que
compreender uma linguagem significa ter presente o simbolismo com o qual a linguagem
pode falar por si mesma.

in Casati, G. (et allia)(ed.) (1993): Philosophie und die cognitiven Wissenschaften, Kirchberg: Österreichischen
Ludwig Wittgenstein Gesellschaft, pgs. 123-6.

Sentido e Verificação*

M. Schlick

As questões filosóficas, se comparadas aos problemas científicos comuns, são sempre estranhamente paradoxais.

Entretanto, parece ser um paradoxo especialmente estranho o fato de que o problema concernente ao sentido de
uma proposição constitua uma dificuldade filosófica séria. Com efeito, porventura não consiste a própria
natureza de toda e qualquer proposição em expressar ela mesma o seu sentido?

De fato, quando deparamos com uma proposição - em uma língua que nos seja familiar -, habitualmente
conhecemos de imediato o seu significado. Se não o conhecermos, alguém pode no-lo explicar, porém a
explicação constará de uma nova proposição; e se esta nova proposição for capaz de exprimir o sentido, por que
razão a original não o terá conseguido fazer? De tal maneira que uma pessoa comum, ao se lhe perguntar o que
quis dizer com um certo enunciado, poderia com plena razão responder o seguinte: "Quis dizer exatamente o que
disse".

É logicamente legítimo - constituindo o caminho normal na vida ordinária e mesmo na ciência - responder a uma
questão atinente ao sentido de uma proposição, simplesmente repetindo-a de maneira mais distinta ou em
palavras ligeiramente diferentes.

Em que circunstâncias, portanto, pode ter sentido inquirir pela significação de um enunciado que temos bem
presente aos olhos ou aos ouvidos? Evidentemente, a única possibilidade é que não o tenhamos compreendido.
Neste caso, o que na realidade temos diante dos olhos ou aos nossos ouvidos

não passa de uma seqüência de palavras que somos incapazes de manejar; não sabemos como utilizá-las, como
"aplicá-las à realidade".

70
Tal série de palavras é para nós simplesmente um conjunto de sinais "destituído de significação", uma mera
seqüência de sons ou uma pura seqüência de sinais gráficos no papel, não tendo nós direito algum de denominá-
la "uma proposição"; talvez possamos falar, no caso, de uma "frase" ou "sentença".

Se adotarmos esta terminologia, podemos agora facilmente livrar-nos do paradoxo, dizendo que não podemos
perguntar pelo sentido de uma proposição, contudo podemos inquirir pelo sentido de uma "frase" ou "sentença",
e que isto eqüivale a perguntar "em lugar de que proposição está a frase ou sentença?"

Esta última questão, respondemo-la ou por uma proposição em uma língua com a qual estamos perfeitamente
familiarizados, ou indicando as regras lógicas que permitem transformar uma sentença em uma proposição, isto
é, indicando em que circunstâncias a sentença deve ser empregada.

Na realidade, esses dois métodos não diferem em princípio; ambos dão sentido à sentença ou frase (em outros
termos, ambos transformam-na em proposição). localizando-a, por assim dizer, dentro do sistema de uma
determinada língua ou linguagem. O primeiro método fa-lo-á empregando uma linguagem que já possuímos; o
segundo, construindo-a para nós.

O primeiro método representa a espécie mais simples da "tradução" comum; o segundo proporciona uma
compreensão mais profunda da natureza da significação, e deverá ser utilizado no intuito de superar dificuldades
filosóficas relacionadas à compreensão das sentenças.

A fonte dessas dificuldades encontra-se no fato de muitas vezes não sabermos como empregar as nossas próprias
palavras; falamos ou escrevemos sem antes termos concordado em uma gramática lógica definida, que deve
estabelecer o significado dos nossos termos.

Cometemos o erro de pensar que conhecemos o sentido de uma frase ou sentença, ou seja, que a compreendemos
como uma proposição, quando estamos familiarizados com todos os termos que nela ocorrem. Todavia, isto não
é suficiente. Não conduzirá isto à confusão ou erro enquanto permanecermos no âmbito da vida de cada dia que
formou as nossas palavras e para o qual estas são adequadas; entretanto, tornar-se-á fatal no momento em que
tentarmos refletir sobre problemas abstratos com os mesmos termos, sem fixar diligentemente o seu significado
para a nova finalidade.

Com efeito, cada palavra tem um determinado sentido ou significação somente dentro de outro contexto definido
no qual foi inserida e ao qual foi adaptada; em qualquer outro contexto carecerá inteiramente de significação, a
não ser que formulemos novas regras para o emprego da palavra no mesmo caso; ora, isto pode ser feito, ao
menos em princípio, de maneira muito arbitrária.

Consideremos um exemplo. Se um amigo me dissesse: "Leva-me a um país , onde o céu é três vezes mais azul
do que na Inglaterra", não saberia eu como satisfazer a tal desejo. A sua frase se me antolharia carente de
sentido, pois o termo "azul" é empregado de uma forma não prevista pelas normas da nossa linguagem. A
combinação de um número com a designação de uma cor não ocorre nesta (linguagem; por este motivo, a frase
de meu amigo não tem sentido, ainda que a sua forma lingüística externa seja a de uma ordem ou a de um desejo.

Todavia, meu amigo pode naturalmente dar um sentido à sua frase. Se lhe perguntar: "O que entendes por 'três
vezes mais azul' poderá ele indicar arbitrariamente certas circunstâncias físicas definidas com respeito à
serenidade do céu, circunstâncias essas que deseja ver expressas na descrição contida na sua frase. Então serei
talvez capaz de atender à sua ordem; o seu desejo adquirirá sentido para mim.

Desta forma, toda vez que fazemos, com respeito a uma frase, a pergunta, "Que significa ela", o que esperamos é
uma indicação das circunstâncias nas quais a frase deve ser- empregada; desejamos uma descrição das condições
em que a frase ou sentença formará uma proposição verdadeira, e das condições em que a proposição é falsa.

Assim sendo, o significado de uma palavra ou de uma combinação de palavras será determinado por uma série
de normas que regulam o seu uso e que, segundo Wittgenstein, podemos denominar normas da sua gramática,
tomando este termo no seu sentido mais amplo.1

71
Enunciar o sentido de uma frase eqüivale a estabelecer as normas segundo as quais a frase deve ser empregada, o
que significa enunciar a maneira pela qual se pode constatar a sua verdade (ou a sua falsidade). O significado de
uma proposição constitui o método da sua verificação.

As regras "gramaticais" consistirão em parte em definições comuns, ou seja, em explanações de palavras através
de outros termos, e em parte no que se denomina definições "indicativas", isto é, explicações através de um
método que utiliza as palavras segundo o uso efetivo.

A forma mais simples de uma definição indicativa consiste em um gesto indicativo combinado com a pronúncia
de uma palavra, assim como quando ensinamos a uma criança o sentido do termo "azul'' mostrando-lhe um
objeto azul.

Contudo, na maioria dos casos a definição indicativa reveste uma modalidade mais complexa; não podemos
apontar um objeto que corresponda a palavras como "porque", "imediato", "acaso", "de novo", etc. Nestes casos
exigimos a existência de certas situações complexas, sendo o significado das palavras definido pela maneira em
que as empregamos nessas diversas situações.

É manifesto que, para compreendermos uma definição verbal, devemos antecipadamente conhecer o sentido das
palavras explicativas, assim como é óbvio que a única explicação que pode funcionar sem qualquer
conhecimento prévio é a definição indicativa.

Daqui concluímos que não existe nenhuma possibilidade de entender um sentido sem referir-nos em última
análise a definições indicativas, o que implica, em um sentido óbvio, referência à "experiência" ou à
"possibilidade de verificação".

Esta é a situação, parecendo-me nada haver mais simples ou menos sujeito a dúvida. Esta - e nada mais - é a
situação que descrevemos ao afirmar que o sentido de uma proposição somente pode ser encontrado indicando-
se as normas da sua verificação na experiência.2

Esta tese tem sido designada com a expressão "teoria experimental do sentido" (teoria hermenêutica
experimental). Ora, é certo que não se trata absolutamente de uma teoria, porquanto o termo "teoria" é
empregado para designar uma série de hipóteses acerca de uma determinada matéria, e a nossa tese não envolve
hipótese alguma, uma vez que não pretende ser outra coisa senão uma simples afirmação do modo como na
realidade se apura o sentido das proposições, tanto na vida cotidiana como na ciência.

Jamais existiu alguma outra maneira para isto, e seria erro grave supor que descobrimos um novo conceito de
sentido, o qual seria contrário à concepção comum, conceito este que pretenderíamos introduzir na filosofia.

Pelo contrário, o nosso conceito não somente concorda inteiramente com o senso comum e com o método
científico, senão que deles deriva. Embora o critério por nós adotado sempre tenha sido empregado na prática,
muito raramente foi formulado no passado, constituindo esta circunstância possivelmente a única razão das
tentativas feitas por tantos filósofos para negar a sua plausibilidade.

O caso mais conhecido de uma formulação explícita do critério por nós defendido é a resposta de Einstein à
seguinte questão: "Que queremos dizer ao falar de dois eventos que acontecem simultaneamente em lugares
distantes?"

A resposta de Einstein consistiu na descrição de um método experimental, através do qual se constatou com
certeza a simultaneidade de tais eventos. Os filósofos opositores de Einstein mantinham - sendo que alguns deles
continuam a manter - que sabiam o sentido da referida questão independentemente de qualquer método de
verificação.

Quanto a mim, não faço outra coisa senão aderir decididamente à posição de Einstein e não admitir nenhuma
exceção dela divergente.3 Não estou escrevendo para aqueles que acreditam estarem com a razão os filósofos
adversários de Einstein.

II

72
O Professor C. I. Lewis, num notável estudo sobre "A experiência e o sentido" 4 afirmou recentemente que a tese
acima exposta - refere-se a ela com a expressão "exigência empírica do sentido'' (empirical meaning
requirement) constitui o fundamento de toda a filosofia do que se tem denominado "o positivismo lógico do
Círculo de Viena".

Critica ele este fundamento como inadequado, sobretudo pelo motivo que a aceitação do mesmo acarretaria
necessariamente certas restrições à "importante discussão filosófica", restrições essas que, em alguns pontos,
tornariam tal discussão totalmente impossível, ao passo que, em outros pontos, haveriam de restringir a
discussão em medida intolerável.

Uma vez que me considero responsável por certas posições da filosofia vienense - que preferiria chamar de
empirismo consistente - e visto que, em meu entender, o supramencionado critério não acarreta na realidade
quaisquer restrições ao pensar filosófico, procurarei analisar os principais argumentos do Prof. Lewis, expondo
igualmente as razões em virtude das quais não acredito que tais argumentos possam derrubar a nossa posição -
ao menos na medida em que por ela assumo responsabilidade.

Todos os meus argumentos derivarão das asserções feitas no ponto I acima.

Segundo a descrição do Professor Lewis, o método empirical meaning requirement exige que "todo e qualquer
conceito avançado ou qualquer proposição afirmada tenha uma denotação ou indicação definida; que sejam
inteligíveis não só verbal e logicamente, mas também no sentido de que se possa especificar aqueles itens
empíricos que determinariam a aplicabilidade do conceito ou constituir a verificação da proposição". 5

Aqui parece-me não haver justificativa alguma para as palavras "mas também no sentido de que . . . ",
acrescentadas no intuito de distinguir dois (ou três?) sentidos inteligíveis.

As observações tecidas na primeira parte demonstram que, em nosso entender, a compreensão "verbal e lógica"
consiste em saber como poderia ser verificada a proposição em pauta.

Com efeito, a menos que por "compreensão verbal" entendamos o fato de se saber como as palavras são na
realidade empregadas, dificilmente o termo poderia significar outra coisa a não ser um nebuloso sentimento de
estar familiarizado com as palavras.

Ora, em uma discussão filosófica não parece aconselhável denominar tal sentimento ou impressão de
"compreensão".

Similarmente, tampouco aconselharia qualificar de "logicamente inteligível" uma sentença, simplesmente pelo
fato de estarmos convencidos que a sua estrutura externa é a de uma proposição autêntica. 6

Efetivamente, acredito que com tal frase queremos expressar muito mais, isto é, que estamos perfeitamente
conscientes da gramática completa da sentença, ou seja, que conhecemos exatamente as circunstâncias para as
quais é adequada.

Assim sendo, conhecer a maneira de verificar uma proposição não constitui algo adicional ou suplementar ao seu
sentido ou compreensão verbal e lógica, senão que com ela se identifica. Em conseqüência, parece-me que, ao
exigirmos que uma proposição seja verificável, não estamos acrescentando uma nova exigência, mas formulando
simplesmente as condições que na realidade sempre foram consideradas necessárias para averiguar o sentido e a
inteligibilidade.

O mero enunciado de que nenhuma sentença tem sentido a não ser que sejamos capazes de indicar um meio de
comprovar a sua verdade ou falsidade, não apresenta muita utilidade se não explicarmos com muito cuidado a
significação das expressões "método de comprovar" e "verificabilidade".

Tem o Prof. Lewis muita razão ao solicitar tal explicação.

Ele mesmo sugere algumas maneiras de dar tal explicação, e sinto prazer em declarar que as suas sugestões me
parecem concordar inteiramente com os meus próprios pontos de vista e os dos filósofos meus amigos.

73
Será fácil demonstrar que não existe nenhuma discordância séria entre o ponto de vista do pragmatista qual o
entende o Prof. Lewis, e o dos empiristas vienenses. Se em alguns itens especiais chegam a alguns pontos
diferentes, é de se esperar que uma análise levada a efeito com mais diligência elimine esta aparente divergência.

De que maneira definimos a verificabilidade?

Antes de tudo, gostaria de assinalar que, ao afirmar que "uma proposição só tem sentido se for verificável", não
estamos dizendo " . . . se for verificada".

Esta simples observação preliminar invalida uma das principais objeções; o here and now predicament
(predicado hic et nunc) já não existe mais.

Só caímos nas malhas desse predicado se considerarmos a própria verificação como critério do sentido, ao invés
de "possibilidade de verificação" (verificabilidade); isto conduziria a uma reductio ad absurdum do sentido.

Obviamente o referido predicado se origina de alguma falácia pela qual essas duas noções são confundidas. Não
sei se a afirmação de Russell de que "o conhecimento empírico se restringe àquilo que realmente observamos 7
deve ser interpretada como contendo esta falácia, porém certamente valeria a pena descobrir a sua gênese.

Consideremos o seguinte argumento, que o Prof. Lewis discute, 8 mas que não deseja atribuir a ninguém:

"Suponhamos que nada tem sentido, a não ser que possa ser submetido a prova de uma verificação decisiva. Ora,
nenhuma verificação pode ser feita, a não ser na experiência do sujeito, experiência esta direta e imediatamente
presente. Conseqüentemente, nada pode ser significado, exceto o que está atual e realmente presente na
experiência dentro da qual esse sentido ou significado é predicado".

O mencionado argumento apresenta a forma de uma conclusão tirada de duas premissas.

Suponhamos no momento que a segunda premissa tenha sentido e seja verdadeira. Mesmo neste caso, observar-
se-á que a conclusão não segue. Pois a primeira premissa nos afirma que uma coisa tem sentido se puder ser
verificada; a verificação não necessita ter lugar, sendo por conseguinte de pouca importância se pode ser feita no
futuro ou somente no presente.

Mesmo abstraindo disto, a segunda premissa é obviamente sem sentido. Com efeito, que fato poderia ser
possivelmente descrito pela sentença "a verificação só pode ter lugar na experiência presente"? Não constitui,
porventura, o verificar um ato ou processo semelhante ao ouvir ou ao sentir-se aborrecido? Não poderíamos
porventura com a mesma razão dizer que só posso ouvir ou sentir-me aborrecido no momento presente? E que
poderia eu querer dizer com isto?

A falta de sentido envolvida em tais frases tornar-se-á mais clara quando mais adiante falarmos do "predicado
egocêntrico". No momento, contentamo-nos com saber que o nosso postulado do sentido empírico nada tem a
ver em absoluto com o predicado-agora (now predicament). O termo "verificável" nem sequer significa
"verificável aqui e agora"; muito menos significa "ser verificado agora".

Possivelmente se acredite que a única maneira de ter certeza da verificabilidade de uma proposição consistiria na
sua verificação real. Brevemente veremos que tal não é o caso.

Parece haver uma forte tendência a estabelecer entre o sentido e "o dado imediato" uma conexão que não
corresponde à verdadeira realidade. Devo dizer que alguns dos positivistas de Viena podem ter cedido a esta
tentação, aproximando-se assim perigosamente da falácia que acabamos de descrever. Por exemplo, algumas
partes da obra Der Logische Aufbau der Welt (A Construção Lógica do Mundo) poderiam ser interpretadas no
sentido de que uma proposição acerca de eventos futuros na realidade não se referiria ao futuro, mas afirmaria
apenas a existência presente de certas expectativas ou esperanças. 9

É certo, porém, que o autor desse livro atualmente não defende tal ponto de vista, e que este não pode ser
considerado uma tese do novo positivismo. Pelo contrário, já desde o início salientamos que a nossa definição de
sentido ou significação não implica tais conseqüências absurdas. E se alguém perguntasse: "De que maneira se

74
pode verificar uma proposição acerca de um evento futuro?", responderíamos, como já respondemos: "Por
exemplo, esperando que o evento aconteça!" Com efeito, o "aguardar" constitui um método de verificação
perfeitamente legítimo.

Desta forma, acredito que todos, inclusive o adepto do empirismo consistente, concordam em que seria um
absurdo afirmar que "nada podemos significar a não ser o que é imediatamente dado".

Se na sentença acima substituirmos o termo "significar" pela palavra "saber" ou "conhecer", chegamos a uma
asserção semelhante à afirmação de Bertrand Russell que acabamos de mencionar.

Acredito que a tentação de formular frases deste tipo se origina de uma certa ambigüidade do verbo to know
(saber, conhecer), termo este que constitui a fonte de muitas dificuldades metafísicas, para as quais muitas vezes
já tive ocasião de chamar a atenção.10

Em primeiro lugar, a palavra pode significar simplesmente "estar consciente de um dado", ou seja, a mera
presença de um sentimento, de uma cor, de um som, etc.

Se o termo knowledge (conhecimento) for tomado nesta acepção, o asserto "o conhecimento empírico restringe-
se ao que realmente observamos" não diz nada em absoluto, mas constitui mera tautologia.11

Em segundo lugar, a palavra knowledge pode ser empregada numa das importantes significações que possui na
ciência e na vida ordinária; nesta acepção, obviamente a asserção de Russell seria falsa, conforme observou o
Prof. Lewis. Como se sabe muito bem, o próprio Russell distingue entre knowledge by acquaintance e
knowledge by description (conhecimento por familiaridade e conhecimento por descrição). Contudo, dever-se-ia
talvez observar que esta distinção não coincide inteiramente com aquela sobre a qual acabamos de insistir.

III

A verificabilidade significa a possibilidade de verificação.

Com acerto observa o Prof. Lewis que "omitir a análise completa da vasta gama de significação que poderia ter a
expressão 'verificação possível', eqüivaleria a deixar todo o conceito na obscuridade". 12

Para o nosso objeto é suficiente distinguir entre duas das muitas maneiras de empregar o termo "possibilidade".
Denominá-las-emos "possibilidade empírica" e "possibilidade lógica".

O Prof. Lewis descreve duas acepções da palavra "verificabilidade" que correspondem exatamente à nossa
distinção. Estando ele perfeitamente consciente deste fato, não me resta outra coisa senão desenvolver
cuidadosamente a distinção e mostrar a sua importância para o nosso tema.

Proponha que se qualifique como "empiricamente possível', tudo aquilo que não contradiz as leis da natureza.
Acredito seja este o sentido mais amplo em que possamos falar de possibilidade empírica.

Não restringimos o termo a acontecimentos que, além de estarem em conformidade com as leis da natureza,
concordam também com o estado real e atual do universo - sendo que "real" ou "atual" se poderia referir ao
momento presente das nossas próprias vidas, ou à condição dos seres humanos que vivem neste planeta, e assim
por diante.

Se escolhermos a última definição,13 não teremos aquela precisão de delimitação de conceitos que necessitamos
para o nosso objetivo. Assim sendo, "possibilidade empírica" significará "compatibilidade com as leis naturais".

75
Ora, uma vez que não dispomos de um conhecimento completo e certo acerca das leis da natureza, é evidente
que jamais podemos afirmar com certeza a possibilidade empírica de qualquer fato, sendo-nos aqui facultado
falar de graus de possibilidade. É possível, para mim, levantar este livro? Certamente!

É possível, para mim, levantar esta mesa? Acredito que sim!

É possível, para mim, levantar esta mesa de bilhar? Acredito que não! É possível, para mim, levantar este
automóvel? Certamente não!

É óbvio que nesses casos a resposta é dada pela experiência, como resultado de experiências levadas a efeito no
passado. Todo e qualquer juízo acerca da possibilidade empírica baseia-se na experiência e muitas vezes se
caracterizará por uma certa incerteza; conseqüentemente, não haverá uma delimitação precisa entre a
possibilidade empírica e a impossibilidade empírica.

Seria deste tipo empírico a possibilidade de verificação na qual vimos insistindo?

Nesta eventualidade, haveria diferentes graus de verificabilidade; a questão do sentido seria um problema de
mais ou menos, não um problema de sim ou não. Em muitas das discussões a respeito do nosso tema, a discussão
versa sobre a possibilidade empírica da verificação. Por exemplo, os vários exemplos de verificabilidade
indicados pelo Prof. Lewis constituem exemplos de diferentes circunstâncias empíricas, nas quais a verificação é
feita ou é impedida de ser feita.

Muitos daqueles que se recusam a aceitar o nosso critério no tocante ao sentido parecem imaginar que o método
de aplicá-lo em um caso especial é mais ou menos o seguinte: uma proposição nos é apresentada pronta; no
intuito de descobrir o seu sentido, temos que tentar vários métodos de verificar a sua verdade ou a sua falsidade;
se um desses métodos funcionar, encontramos o sentido da proposição; caso contrário, afirmamos que a
proposição carece de sentido.

Se realmente devêssemos proceder dessa forma, é manifesto que a determinação do sentido constituiria
inteiramente uma questão de experiência, e, conseqüentemente, em muitos casos não se poderia obter uma
decisão precisa e definitiva. Como poderíamos ter certeza que esgotamos todas as tentativas, no caso de nenhum
dos métodos usados haver logrado êxito? Não poderiam eventualmente os nossos esforços futuros revelar a
existência de um sentido que anteriormente fomos incapazes de descobrir?

É óbvio que toda esta concepção é inteiramente errônea. Fala do sentido como se este fosse uma espécie de
entidade ou ser inerente a uma sentença e nela escondido como um caroço dentro da casca que o envolve, sendo
que ao filósofo caberia quebrar a casca ou a sentença para descobrir o caroço, o sentido.

Partindo das considerações que tecemos na primeira parte do presente estudo, que não existe proposição que nos
seja dada "pronta" (ready made); sabemos também que o sentido não inere a uma sentença - sentença esta na
qual o sentido poderia ser descoberto -, mas, antes, constitui algo que deve ser dado ou conferido à sentença. Isto
é feito, aplicando-se à sentença as regras da gramática lógica da nossa linguagem, segundo explicamos na
primeira parte.

Ora, tais regras ou normas não constituem fatos da natureza que poderiam ser "descobertos", senão que
constituem prescrições estipuladas por atos de definição. Essas definições devem ser conhecidas daqueles que
pronunciam a sentença em pauta, bem como daqueles que a ouvem ou a lêem. Se assim não for, os referidos
ouvintes ou leitores não são confrontados com uma proposição, não havendo no caso nada que possam tentar
verificar, uma vez que não se pode verificar a verdade ou a falsidade de uma mera série de palavras. Nem sequer
se pode começar a verificar antes de conhecer o sentido, isto é, antes de se ter estabelecido a possibilidade da
verificação.

Em outros termos, a possibilidade de verificação que importa para o sentido não pode ser do tipo empírico; não
pode ela ser estabelecida post festum. Temos que estar certos da mesma antes de podermos considerar as
circunstâncias empíricas e investigar se estas permitirão ou não verificação, e em que condições o permitirão.

76
As circunstâncias empíricas revestem muita importância se quisermos saber se uma proposição é verdadeira - o
que compete ao cientista - porém não têm nenhuma relevância para o sentido da proposição (o que compete ao
filósofo).

O Prof. Lewis discerniu e expressou isto com muita clareza,14 sendo que o nosso positivismo de Viena - na
medida em que eu mesmo possa responder por ele - concorda inteiramente com ele neste ponto.

Cumpre enfatizar que, quando falamos de verificabilidade, entendemos a possibilidade lógica de verificação, e
somente isto.

Denomino "logicamente possível" um fato ou processo se este puder ser descrito, ou seja, se a sentença que o
descreve obedece às normas da gramática que estipulamos para a nossa língua. 15

Vejamos alguns exemplos. As sentenças "Meu amigo faleceu depois de amanhã", "A dama usava um vestido
vermelho-escuro que era verde-claro", "A torre tem uma altura de 100 pés e de 150 pés", "A criança estava nua,
porém usava um roupão noturno longo e branco", obviamente violam as leis que, no uso normal, governam o
emprego dos termos que ocorrem em tais frases. Tais frases não descrevem fatos reais, ou seja, são destituídas de
sentido, uma vez que representam impossibilidades lógicas.

É de importância máxima - não somente para o tema que nos ocupa no momento, senão para os problemas
filosóficos em geral - ver que, toda vez que falamos de impossibilidade lógica, referimo-nos a uma discrepância
entre as definições dos nossos termos e o modo em que os empregamos.

Cumpre evitar o grave equívoco no qual incorrem alguns dos antigos empiristas - como Mill e Spencer - que
consideravam os princípios lógicos - por exemplo a lei da contradição - como leis da natureza que regem o
processo psicológico do pensamento.

As asserções carentes de sentido a que acima fizemos alusão, não correspondem a pensamentos ou idéias que,
por uma espécie de experimento psicológico, nos consideramos capazes de pensar; o que acontece é que não
correspondem a pensamento algum.

Ao ouvirmos as palavras "Uma torre que tem a altura de 100 pés e a altura de 150 pés", é possível que em nossa
mente surja a imagem de duas torres, de alturas diferentes, e podemos considerar psicologicamente
(empiricamente) impossível combinar as duas imagens em uma única, porém não é este o fato designado pelos
termos "impossibilidade lógica". A altura de uma torre não pode ser ao mesmo tempo de 100 pés e de 150 pés;
uma criança não pode ao mesmo tempo estar nua e estar vestida - não porque sejamos incapazes de imaginar
isto, mas pelo fato de que as nossas definições de "altura',. dos números, dos termos "nu" e "vestido" não são
compatíveis com as combinações específicas desses termos nos nossos exemplos.

A expressão "não são compatíveis com tais combinações" significa que as regras da nossa língua não previram
um emprego para tais combinações; não descrevem nenhum fato.

Naturalmente, poderíamos modificar tais normas e desta forma encontrar um sentido para os termos "tanto
vermelho como verde'', "tanto nu como vestido". Todavia, se decidirmos aderir às definições comuns - as quais
se revelam na maneira como na realidade usamos as nossas palavras - decidimos também considerar a referida
combinação de termos como carentes de sentido, ou seja, decidimos não usar tais combinações para descrever
nenhum fato.

Qualquer que seja o fato que imaginemos ou não imaginemos, se o termo "nu" (ou "vermelho") ocorrer na sua
descrição, decidimos que a palavra "vestido" (ou "verde") não pode ser colocada no lugar dele, na mesma
descrição.

Se não seguirmos esta norma, isto significa que queremos introduzir uma nova definição das palavras, ou que
não nos importa empregar palavras destituídas de sentido, e apreciamos dizer coisas sem sentido.16

77
O resultado das nossas considerações é o seguinte: a verificabilidade - que constitui a condição suficiente e
necessária do sentido ou significação - é uma possibilidade de ordem lógica; a verificabilidade deriva do fato de
construirmos a frase em conformidade com as regras pelas quais são definidos os seus termos.

O único caso em que a verificação é (logicamente) impossível ocorre quando

nós mesmos a tivermos tornado impossível, não estabelecendo norma alguma para a sua verificação. As regras
gramaticais não se encontram na natureza, senão que constituem obra do homem, sendo por princípio arbitrárias.
Assim sendo, não podemos dar sentido a uma frase, descobrindo um método para verificar a sua verdade, mas
somente estipulando como isto deve ser feito. Conseqüentemente, a possibilidade ou a impossibilidade lógica de
verificação é sempre uma auto-imposição. Se pronunciarmos uma frase destituída de sentido, será sempre por
nossa própria culpa.

A importância extraordinária desta última observação será percebida se considerarmos que aquilo que dissemos
acerca do sentido das asserções, vale também quanto ao sentido das questões.

Evidentemente, existem muitas questões que jamais podem ser respondidas pelo ser humano. Cumpre notar,
todavia, que a impossibilidade de encontrar resposta pode ser de duas espécies diferentes.

Se a impossibilidade for simplesmente empírica, no sentido definido, se for devida às circunstâncias do acaso
resultantes dos condicionamentos da nossa existência humana, pode haver motivo para lamentar a nossa sorte e a
debilidade das nossas capacidades físicas e mentais; entretanto, jamais poderíamos afirmar que o problema é
absolutamente insolúvel, podendo haver sempre alguma esperança, ao menos para gerações futuras. Com efeito,
as circunstâncias empíricas podem vir a sofrer modificação, é possível que os recursos humanos sejam
desenvolvidos, e até mesmo as leis da natureza podem sofrer alterações - talvez até repentinamente, e de tal
maneira que o universo permita investigações muito mais vastas.

Um problema deste tipo poderia ser qualificado de praticamente ou tecnicamente insolúvel, podendo constituir-
se em sério incômodo ou handicap para o cientista, porém, para o filósofo, que somente se interessa diretamente
pelos princípios de ordem geral, isto não representaria nenhum motivo de grave preocupação.

Todavia, que dizer daquelas questões para as quais é logicamente impossível encontrar uma resposta?

Tais problemas permaneceriam insolúveis em quaisquer circunstâncias imagináveis; tais questões se nos
apresentariam sempre com uma única resposta, definitiva e sem possibilidade de revisão: ignorabimus.

Para o filósofo é extremamente importante saber se existem tais questões. Ora, a partir do que dissemos é fácil
depreender que tal calamidade somente poderia acontecer no caso de a própria questão ser destituída de sentido.
Neste caso estaríamos não diante de uma verdadeira questão, mas apenas face a uma simples sucessão de
palavras com um ponto de interrogação no fim.

Devemos dizer que uma questão tem sentido, se formos capazes de entendê-la, ou seja, se formos capazes de,
para qualquer proposição dada, decidir se, em caso de ser verdadeira, constituiria uma resposta para a questão
em pauta.

Assim sendo, a decisão somente poderia ser impedida pelas circunstâncias de ordem empírica, o que significa
que não seria logicamente impossível. Conseqüentemente, nenhum problema que tenha realmente sentido pode
ser insolúvel por princípio. Se, por conseguinte, acharmos ser logicamente impossível uma resposta, sabemos
que na realidade não estamos face a uma questão verdadeira, mas diante de uma pseudo-questão, uma
combinação de palavras destituída de sentido.

Uma autêntica questão é aquela para a qual existe possibilidade lógica de resposta. Este é um dos resultados mais
marcantes do nosso empirismo. Significa que por princípio não existe limite algum para o nosso conhecimento.
As fronteiras que devemos reconhecer são de natureza empírica e, por conseguinte, jamais serão definitivas. Tais
fronteiras podem ser progressivamente eliminadas. Não existe nenhum mistério insondável no universo.

78
A linha divisória entre a possibilidade e a impossibilidade lógica de verificação é absolutamente clara e nítida.
Não existe nenhuma transição gradual entre "ter sentido', e "carecer de sentido". Tanto para um como para o
outro vale o princípio: ou ditamos ou não ditamos as normas gramaticais de verificação; tertium non datur, não
existe outra alternativa.

A possibilidade empírica é determinada pelas leis da natureza, porém o sentido e a verificabilidade independem
totalmente delas. Tudo aquilo que posso descrever ou definir, é logicamente possível - e as definições de maneira
alguma estão vinculadas às leis naturais.

A proposição "os rios correm para cima" tem sentido, mas é falsa porque o fato que descreve é fisicamente
impossível. Uma proposição não perderá o sentido pelo fato de as condições que estipulo para a sua verificação
serem incompatíveis com as leis da natureza; posso, por exemplo, prescrever condições que só poderiam
cumprir-se caso a velocidade da luz fosse superior à que na realidade é, ou se não fosse válida a lei da
conservação da energia, e assim por diante.

Um opositor do nosso ponto de vista poderia discernir um perigoso paradoxo ou mesmo um contradição nas
explicações que vimos dando, uma vez que, por uma parte, insistimos tanto no que denominamos a "exigência
empírica do sentido", e por outro lado afirmamos com tanta ênfase que o sentido e a verificabilidade não
dependem de quaisquer condições empíricas, senão que são determinados por possibilidades puramente lógicas.
O oponente objetará: se o sentido é uma questão de experiência, como pode ser uma questão de definição e de
lógica?

Na realidade, não existe contradição nem qualquer dificuldade. O termo "experiência" é ambíguo.

Em primeiro lugar, pode ele designar quaisquer assim chamados "dados imediatos" - o que representa uma
acepção relativamente moderna da palavra. Em segundo lugar, podemos empregar o termo "experiência" no
sentido em que, por exemplo, falamos de um "viajante experiente", querendo referir-nos a uma pessoa que não
somente viu muita coisa, mas também sabe como tirar proveito delas para as suas ações. É nesta segunda
acepção17 que se deve afirmar que a verificabilidade é independente da experiência.

A possibilidade de verificação não repousa em qualquer "verdade da experiência", em alguma lei da natureza ou
em qualquer outra proposição verdadeira de ordem geral, senão que é determinada exclusivamente pelas nossas
definições, pelas normas que foram fixadas para a nossa língua, ou que podemos estabelecer arbitrariamente a
qualquer momento.

Todas essas normas em última análise apontam para definições indicativas segundo já explicamos, e através
delas a verificabilidade está vinculada à experiência no primeiro sentido da palavra.

Nenhuma regra de expressão pressupõe qualquer lei ou regularidade no mundo,18 porém, pressupõe, sim, dados e
situações aos quais se podem dar nomes.

As regras da linguagem constituem regras da aplicação da língua; assim sendo, deve haver alguma coisa na qual
esta pode ser aplicada. A expressabilidade e a verificabilidade constituem uma e mesma coisa. Não existe
antagonismo algum entre a lógica e a experiência. Não somente o lógico pode ser ao mesmo tempo um
empirista, mas deve sê-lo, se quiser compreender o que ele mesmo está fazendo.

IV

Vejamos agora alguns exemplos, no intuito de ilustrar as conseqüências da nossa atitude no que respeita a certos
pontos da filosofia tradicional.

Tomemos o célebre caso da realidade do outro lado da lua - aliás, um dos exemplos mencionados pelo Prof.
Lewis.

Ninguém de nós - assim creio - estará disposto a aceitar uma opinião segundo a qual não teria sentido falar da
face oposta do nosso satélite. Pode porventura pairar a mínima dúvida quanto ao fato de que, segundo as nossas
explanações, neste caso se cumprem perfeitamente as condições para que haja sentido?

79
Acredito que não possa haver dúvida alguma.

Com efeito, a pergunta "a que se assemelha o outro lado da lua?" poderia ser respondida, por exemplo, por uma
descrição daquilo que seria visto ou tocado por uma pessoa localizada em algum ponto atrás da lua.

A questão de se é fisicamente possível para um ser humano - ou para qualquer ser vivente - viajar em torno da
lua nem sequer precisa ser levantada aqui, sendo completamente irrelevante.

Mesmo na hipótese de se poder demonstrar que uma viagem em volta de um corpo celeste fosse absolutamente
incompatível com as leis da natureza conhecidas, teria sentido uma proposição acerca do outro lado da lua. Uma
vez que a nossa frase fala de certos pontes no espaço como sendo cheios de matéria, 19 tem sentido indicar sob
que circunstâncias deve ser qualificada como verdadeira ou como falsa uma proposição do tipo "este lugar está
cheio de matéria".

O conceito "substância física em um determinado lugar" é definido pela nossa linguagem na física e na
geometria. A própria geometria é a gramática das nossas proposições acerca das relações "espaciais", e não é
muito difícil ver como as asserções sobre as propriedades físicas e as relações espaciais estão vinculadas com os
"dados sensíveis" por definições indicativas.

Aliás, esta vinculação ou conexão, não é tal que nos autorize a afirmar que a substância física constitui "uma
simples construção baseada nos dados sensíveis", ou que um corpo físico constitui "um conjunto de dados
sensíveis" - a menos que interpretemos tais frases mais como abreviações inadequadas da afirmação de que todas
as proposições que encerram o termo "corpo físico" requerem, para a sua verificação, a existência de dados
sensíveis. Ora, isto constitui certamente uma afirmação excessivamente trivial.

No caso da lua poderíamos talvez afirmar que a exigência para que haja sentido se cumpre se formos capazes de
"imaginar'' - representar mentalmente situações que verificariam a nossa proposição.

Todavia, se disséssemos em geral que a verificabilidade de um asserto implica a possibilidade de "imaginar" o


fato afirmado, isto seria verdadeiro apenas em um sentido restrito. Não seria verdadeiro na medida em que a
possibilidade for de tipo empírico, isto é, que envolve capacidades humanas específicas.

Não acredito, por exemplo, que possamos ser acusados de dizer coisas sem sentido se falarmos de um universo
em dez dimensões, ou de seres que possuem órgãos sensoriais e percepções inteiramente diferentes das nossas;
ora, não parece correto afirmar que somos capazes de "imaginar" tais seres e tais percepções, ou um universo de
dez dimensões. Todavia, devemos ser capazes de dizer em que circunstâncias observáveis afirmaríamos a
existência dos referidos seres.

É manifesto que posso falar com sentido sobre o som da voz de um amigo sem ser atualmente capaz de recordá-
lo na minha imaginação. Não cabe aqui discutir a gramática lógica do termo "imaginar". Essas poucas
observações são suficientes para precaver-nos contra uma aceitação precipitada de uma explicação psicológica
da verificabilidade.

Não devemos identificar o sentido ou significação com qualquer um dos dados psicológicos que constituem a
matéria de uma sentença mental (ou "pensamento") no mesmo sentido em que os sons articulados constituem a
matéria de uma sentença falada, ou os sinais pretos no papel constituem a matéria de uma sentença escrita.

Ao fazermos um cálculo de aritmética, é de todo irrelevante se temos diante da mente as imagens de números
pretos ou de números vermelhos, ou nenhuma imagem visual. E mesmo que fosse empiricamente impossível
para alguém efetuar qualquer cálculo sem, ao mesmo tempo, imaginar números pretos, de maneira alguma as
imagens mentais desses sinais pretos poderiam evidentemente ser consideradas como elementos constitutivos do
sentido ou de parte do sentido do cálculo.

Tem razão Carnap ao enfatizar com muita força o fato - sempre salientado pelos críticos do "psicologismo" - de
que a questão do sentido nada tem a ver com a questão psicológica dos processos mentais que podem constituir
um ato de pensamento.

80
Todavia, não estou plenamente certo de que Carnap tenha enxergado com igual clareza que a referência a
definições indicativas - que nós postulamos para que haja sentido - não envolve o erro de uma confusão das duas
questões. A fim de compreender uma sentença que contém, por exemplo, as palavras "bandeira vermelha", é
indispensável que eu seja capaz de indicar uma situação em que poderia apontar um objeto que denominaria
"bandeira", e cuja cor poderia reconhecer como "vermelha", distinta de outras cores.

Entretanto, para fazer isto não é necessário que eu apele para a imagem de uma bandeira vermelha. É
extremamente importante ver que essas duas coisas nada têm em comum. Neste momento estou tentando em vão
imaginar a forma de um G maiúsculo em tipografia alemã; não obstante isto, posso falar dele com sentido, e sei
que haveria de reconhecê-lo se visse a letra. Imaginar um remendo vermelho é inteiramente diferente de referir-
se a uma definição indicativa de "vermelho". A verificabilidade nada tem a ver com quaisquer imagens que
possam ser associadas com as palavras da sentença em questão.

Não mais difícil do que o caso do outro lado da lua será discutir - para tomarmos outro exemplo significativo - a
questão da "imortalidade'', questão esta que o Prof. Lewis denomina, como se costuma fazer em geral, um
problema metafísico.

Considero ponto pacífico a suposição de que "imortalidade" não significa vida sem fim - uma vez que isto
poderia possivelmente carecer de sentido pelo fato de estar envolvendo o conceito de infinitude -, mas que a
questão a discutir é a da sobrevivência após a "morte".

Acredito podermos concordar com o Prof. Lewis, quando este afirma o seguinte no tocante a esta hipótese: "A
nossa compreensão sobre o que haveria de comprovar tal hipótese não é destituída de clareza".

Efetivamente, posso imaginar com facilidade, por exemplo, que assisto ao enterro do meu próprio corpo e
continuo a existir sem corpo, pois nada me é mais fácil do que descrever um mundo que difere do nosso mundo
ordinário exclusivamente pela ausência completa de todos os dados que consideraria partes do meu próprio
corpo.

Devemos concluir que a imortalidade, no sentido definido, não deve ser considerada como "problema
metafísico", senão que constitui uma hipótese empírica, pelo fato de ser logicamente verificável. Poderia ser
verificada seguindo-se a prescrição : "Aguarda até que morras".

O Prof. Lewis parece sustentar que tal método não é satisfatório do ponto de vista da ciência. Afirma ele o
seguinte:20

"A hipótese da imortalidade é inverificável num sentido óbvio . . . se mantivermos que somente o que é
cientificamente verificável tem sentido, pois esta concepção é um desses casos. Dificilmente poderia ser
verificada pela ciência; e não há nenhuma observação ou experimento que a ciência pudesse efetuar, cujo
resultado negativo pudesse refutá-la".

Presumo que nessas sentenças o método privado de verificação é rejeitado como não científico pelo fato de que
se aplicaria apenas ao caso individual da própria pessoa que tem experiência, ao passo que uma afirmação
científica deve ser suscetível de uma demonstração geral, aberta a qualquer observador cuidadoso.

Todavia, não vejo razão por que mesmo isto deva ser considerado impossível. Pelo contrário, é fácil descrever
experiências tais que a hipótese de uma existência invisível de seres humanos depois da sua morte corporal seria
a explicação mais aceitável dos fenômenos observados.

Esses fenômenos, é verdade, deveriam ser de natureza muito mais convincente do que os ridículos eventos que
se diz terem ocorrido em reuniões dos ocultistas - porém acredito que não possa haver a mínima dúvida quanto à
possibilidade (no sentido lógico) de fenômenos que representariam uma justificação científica da hipótese da
sobrevivência após a morte, e permitiriam uma investigação dessa forma de vida por métodos científicos.

81
Indiscutivelmente, a hipótese jamais poderia ser estabelecida com absoluta certeza, porém esta característica é
comum a todas as hipóteses.

Se alguém retrucasse que as almas dos falecidos poderiam morar em algum espaço supraceleste onde não seriam
acessíveis à nossa percepção, e que, por conseguinte, jamais se poderia constatar a verdade ou a falsidade da
asserção, a resposta seria que, se as palavras "espaço supraceleste" possuem algum sentido este espaço deve ser
definido de tal maneira que a impossibilidade de alcançá-lo ou de perceber alguma coisa nele seria meramente
empírica, de sorte que no mínimo se poderia descrever algum meio de superar as dificuldades, ainda que tal meio
ultrapassasse as forças humanas.

Face a essas considerações, fica de pé a nossa conclusão.

A hipótese da imortalidade constitui uma afirmação empírica que deve o seu sentido à sua verificabilidade, não
tendo nenhum sentido além da possibilidade de verificação.

Se for preciso admitir que a ciência não poderia efetuar nenhum experimento cujo resultado negativo refutaria
esta hipótese, isto é verdade apenas no mesmo sentido em que o é para muitas outras hipóteses de estrutura
similar - especialmente para aquelas que derivaram a sua origem de motivos outros que o conhecimento de uma
grande quantidade de fatos da experiência que devem ser considerados como emprestando uma alta
probabilidade à hipótese.

O problema concernente à "existência do mundo externo" será abordado na próxima parte.

Voltemos agora a atenção para um ponto de fundamental importância e de extremo interesse para a filosofia.

O Prof. Lewis refere-se a ele com a expressão "predicado egocêntrico", apresentando a tentativa de tomá-lo a
sério como uma das características mais salientes do positivismo lógico.

O Prof. Lewis parece formular o "predicado egocêntrico" na seguinte sentença: 21 "A experiência real e atual se
dá na primeira pessoa". A sua importância para a doutrina do positivismo lógico parece evidenciar-se pelo fato
de Carnap, em sua obra Der Logische Aufbau der Welt (A Construção Lógica do Mundo), declarar que o método
deste livro pode ser chamado de "solipsismo metodológico".

O Prof. Lewis acredita com acerto que o princípio egocêntrico ou solipsístico não é implicado pelo nosso
princípio geral da verificabilidade, considerando-o como um segundo princípio que, juntamente com o de
verificabilidade, em seu entender, conduz aos principais resultados da Filosofia de Viena.

Se me for permitido tecer aqui algumas reflexões de ordem geral, gostaria de dizer que uma das maiores
vantagens e atrativos do verdadeiro positivismo parece-me ser a atitude anti-solipsística que o caracteriza desde
o início.

Existe, sim, um pequeno risco de solipsismo no positivismo, como em qualquer "realismo", parecendo a mim
que o ponto essencial que diferencia o idealismo do positivismo reside no fato de que este último se conserva
totalmente imune do predicado egocêntrico.

Em minha opinião, o maior equívoco reinante em torno do positivismo equívoco - este cometido muitas vezes
pelos próprios pensadores que se denominam positivistas - reside no fato de ver nele uma tendência para o
solipsismo ou uma semelhança com o idealismo subjetivo. Podemos considerar a obra de Vaihinger A Filosofia
do Como Se como um exemplo característico deste equívoco,22 ao passo que a filosofia de Mach e Avenarius
constituiria uma das tentativas mais sérias para evitá-lo.

É um fato infeliz que Carnap advogou o que denomina "solipsismo metodológico", e que, na sua construção de
todos os conceitos a partir dos dados elementares, vêm em primeiro lugar os eigenpsychische Gegenstaende
(for-me entities, elementos egocêntricos) e constituem a base para a construção dos objetos físicos, os quais ao
final conduzem ao conceito de outros eus.

82
Todavia, se existe aqui algum equívoco, reside este, antes de tudo, na terminologia, não no próprio pensamento.
O "solipsismo metodológico" não é uma espécie de solipsismo, mas um método para construir conceitos. Deve-
se outrossim levar em conta que a ordem de construção recomendada por Carnap começando pelas for-me
entities - não é considerada como a única possível. Teria sido melhor escolher uma ordem diferente, porém, em
princípio, Carnap estava perfeitamente consciente de que a experiência original é "sem um sujeito''. 23

Importa enfatizar ao máximo o fato de que a experiência primitiva é absolutamente neutral ou, como disse
ocasionalmente Wittgenstein, que os dados imediatos "não têm proprietário''. Uma vez que o verdadeiro
positivista nega - com Mach, etc. - que a experiência original "tenha aquela qualidade ou estrutura que
caracteriza todas as experiências dadas, indicada pelo qualificativo 'primeira pessoa"',24 não pode tomar a sério o
"predicado egocêntrico"; para ele tal predicado não existe. Convencer-se de que a experiência primitiva não é
experiência de primeira pessoa parece-me constituir um dos passos mais importantes que a filosofia deve fazer
se quisermos solucionar os seus problemas mais profundos.

A posição única do self (ego) não representa uma propriedade básica de toda experiência, mas constitui ela
mesma um fato - entre outros - da experiência. O idealismo - na concepção do esse = percipi (ser = ser
percebido) de Berkeley ou da formulação Die Welt ist meine Vorstellung (o mundo é a minha representação) de
Schopenhauer ,- e outras doutrinas com tendências egocêntricas incidem no grande erro de confundir a posição
única do ego - que constitui um fato empírico - com uma verdade lógica, a priori, ou, melhor, no equívoco de
colocar um em lugar do outro.

Conseqüentemente, vale a pena investigar esta matéria e analisar a sentença que parece expressar o predicado
egocêntrico. Isto não será uma digressão, pois sem esclarecer este item será impossível compreender a posição
fundamental do empirismo que defendemos.

De que maneira o idealista e o solipsista chegam à afirmação de que o mundo, na medida em que o conheço, é "a
minha própria idéia", que em última análise nada conheço a não ser o "conteúdo da minha própria consciência"?

A experiência ensina que todos os dados imediatos dependem, de uma forma ou de outra, daqueles dados que
constituem o que denomino "meu corpo". Todos os dados visuais desaparecem quando os olhos deste corpo
estão fechados; todos os sons cessam quando os ouvidos estão fechados; e assim por diante.

Este corpo se distingue dos "corpos dos outros seres" pelo fato de que sempre aparece em uma perspectiva
peculiar - por exemplo, o seu dorso ou os seus olhos nunca aparecem, a não ser em um espelho; todavia, isto não
é tão significativo ou importante como o outro fato, ou seja, que a qualidade de todos os dados é condicionada
pelo estado dos órgãos deste corpo específico. É patente que esses dois fatos - talvez, originalmente, o primeiro -
constituem a única razão pela qual este corpo é denominado "meu" corpo. O pronome possessivo o individualiza
e o distingue de outros corpos; é um qualificativo que assinala a unicidade descrita.

O fato de que todos os dados dependem do "meu" corpo - em especial as partes dele que se chamam "órgãos dos
sentidos" - nos leva a formar o conceito de "percepção". Não nos deparamos com este conceito na linguagem dos
povos primitivos e não sofisticados. Estes não dizem "percebo uma árvore", mas, simplesmente, "existe uma
árvore".

A "percepção" implica uma distinção entre o sujeito que percebe e um objeto que é percebido. Originalmente, o
sujeito que percebe é o órgão dos sentidos, ou o corpo ao qual este pertence, porém, uma vez que o próprio corpo
- incluindo o sistema nervoso -- também é uma das coisas percebidas, a perspectiva original é logo "corrigida"
colocando em lugar do percipiente um novo sujeito, denominado "ego" ou "mente" ou "consciência".

Habitualmente concebe-se o "ego" ou a "consciência" como residindo no corpo, pois os órgãos dos sentidos se
encontram na superfície do corpo. O equívoco de localizar a consciência ou a mente dentro do corpo - "na
cabeça" -, equívoco este que é denominado por R. Avenarius "introjeção", representa a fonte primordial das
dificuldades do assim chamado "problema mente-corpo".

Ao evitarmos o erro da introjeção, evitamos, ao mesmo tempo, a falácia idealística que conduz ao solipsismo.

É fácil demonstrar que a introjeção constitui um erro. Ao vermos um prado verde, dizemos que o "verde" é um
conteúdo da minha consciência, porém, na verdade, não está ele dentro da minha cabeça. Dentro do meu crânio

83
só existe o meu cérebro; e se acontecesse haver um ponto verde em meu cérebro, obviamente não seria o verde
do prado, mas o verde do cérebro.

Entretanto, para o propósito que perseguimos não é necessário continuar a analisar a seqüência do pensamento,
sendo suficiente recolocar os fatos com clareza.

É um fato da experiência que todos os dados dependem de alguma forma do estado de um certo corpo que
apresenta a peculiaridade de que os seus olhos e o seu dorso nunca são vistos a não ser mediante um espelho.
Este se denomina habitualmente "meu" corpo.

Aqui, porém, no intuito de evitar equívocos, tomarei a liberdade de chamá-lo de corpo " M''. Um caso peculiar
da dependência de que acabo de falar é expresso pela frase: "Não percebo nada, a não ser que os órgãos dos
sentidos do corpo M sejam afetados".

Em outros termos, considerando um caso ainda mais peculiar, posso fazer a seguinte afirmação:

"Eu sinto dor somente quando o corpo M for ferido". (P)

Denominarei esta afirmação "proposição P".

Consideremos agora uma outra proposição (Q):

"Eu só posso sentir a minha dor". (Q)

A frase Q pode ser interpretada de várias maneiras.

Primeiramente, pode ser considerada como equivalente a P, de sorte que P e Q seriam apenas duas formas
diferentes de exprimir um e mesmo fato empírico. A palavra "posso", ocorrente em Q, designaria o que
denominamos "possibilidade empírica", e os termos "eu" e "minha" ("meu") se refeririam ao corpo M. É da
máxima importância observar que nesta primeira interpretação Q é a descrição de um fato da experiência, isto é,
um fato que muito bem poderíamos imaginar como sendo diferente.

Facilmente poderíamos imaginar25 que sinto uma dor toda vez que o corpo de meu amigo for ferido; que estou
contente quando o seu rosto apresenta uma expressão alegre; que me sinto cansado depois de ele ter feito um
longo passeio, ou até que nada enxergo quando os seus olhos estão fechados, e assim por diante.

A proposição Q - se for interpretada como equivalente a P - nega que tais coisas jamais acontecem; todavia, se
na realidade acontecessem, demonstrar-se-ia a falsidade da proposição Q.

Assim sendo, indicamos o sentido de Q (ou de P) descrevendo fatos que tornam Q verdadeira, e descrevendo
outros fatos que tornariam Q falsa. Se ocorressem fatos desta última espécie, o nosso mundo seria bastante
diferente daquele em que na realidade vivemos; as propriedades dos "dados'' dependeriam de outros corpos
humanos (ou talvez apenas de um deles) bem como do corpo M.

Este mundo fictício pode ser empiricamente impossível, por ser incompatível com as atuais leis da natureza -
embora não possamos em absoluto ter certeza disto -, porém seria logicamente possível, uma vez que fomos
capazes de descrevê-lo.

Suponhamos agora por um momento que este mundo fictício seja real. Como haveria a nossa linguagem de
adaptar-se a ele? Isto poderia ocorrer de duas maneiras diferentes, que são de interesse para o nosso problema.

A proposição P seria falsa.

No que concerne a Q, haveria duas possibilidades. A primeira consiste em manter que o seu sentido deve ainda
ser o mesmo que o de P. Neste caso, Q seria falsa e poderia ser substituída pela proposição verdadeira:

84
"Eu posso sentir a dor de uma outra pessoa tão bem como a minha própria". (R)

R haveria de afirmar o fato empírico - que no momento supomos verdadeiro - que o dado "dor" ocorre não
somente quando M é ferido, mas também quando é ferido algum outro corpo, digamos por exemplo o corpo "O''.

Se exprimirmos o suposto estado de coisas pela proposição R, evidentemente não haverá nenhuma tentação e
nenhum pretexto para fazer qualquer afirmação "solipsística". Meu corpo - que neste caso não poderia significar
outra coisa senão o "corpo M" - continuaria a ser único pelo fato de que sempre apareceria em uma perspectiva
peculiar (com o dorso invisível, etc.), porém não seria mais único no sentido de ser o único corpo de cujo estado
dependeriam as propriedades de todos os outros dados.

Ora, foi exclusivamente esta última característica que deu origem ao ponto de vista egocêntrico. A dúvida
filosófica em relação à "realidade do mundo externo" originou-se da consideração de que não tenho nenhum
conhecimento desse mundo a não ser através da percepção, ou seja, através dos órgãos sensoriais do meu corpo.

Se isto não mais for verdade, se os dados dependerem também de outros corpos O - os quais diferem de M
quanto a certos aspectos empíricos, mas não em princípio - neste caso não haverá mais justificativa para
qualificar os dados de "meus próprios"; outros indivíduos O terão o mesmo direito de serem considerados como
sujeitos ou proprietários dos dados.

O cético tinha receio de que outros corpos O pudessem não ser outra coisa senão imagens possuídas pela
"mente" pertencente ao corpo M, pois tudo parecia depender do estado deste último; todavia, nas circunstâncias
descritas, existe perfeita simetria entre O e M; o predicado egocêntrico desapareceu.

Chamar-me-ão talvez a atenção para o fato de que as circunstâncias que descrevemos são fictícias, que não
ocorrem em nosso mundo real, de maneira que neste mundo infelizmente o predicado egocêntrico mantém o seu
domínio.

A isto respondo que desejo basear o meu argumento exclusivamente no fato de a diferença entre as duas palavras
ser meramente empírica, ou seja, acontece que a proposição P é verdadeira no mundo atual no que tange à nossa
experiência.

A sua negação nem sequer parece ser incompatível com as leis da natureza conhecidas; a probabilidade que tais
leis dão à falsidade de P não é zero.

Ora, se ainda concordarmos em que a proposição Q deve ser considerada idêntica a P - o que significa que "meu"
deve ser definido como referindo-se a M - a palavra "posso" em Q ainda indicará possibilidade empírica.
Conseqüentemente, se um filósofo tentasse empregar Q como fundamento para uma espécie de solipsismo,
deveria preparar-se para ver toda a sua construção demonstrada como falsa por alguma experiência futura. Ora, é
exatamente isto que o verdadeiro solipsista se recusa a fazer. Sustenta ele que nenhuma experiência poderia
possivelmente contradizê-lo, uma vez que teria sempre necessariamente o caráter peculiar de para mim, que pode
ser descrito pelo "predicado egocêntrico".

Em outras palavras, está ele perfeitamente consciente de que o solipsismo não pode basear-se em Q enquanto Q,
por definição, não for outra coisa senão uma outra maneira de exprimir P.

Com efeito, o solipsista que faz a afirmação Q dá um sentido diferente às mesmas palavras; não quer ele
simplesmente afirmar P, senão que entende dizer algo inteiramente diverso. A diferença reside no termo "meu".
Não quer ele definir o pronome pessoal através da referência ao corpo M, porém o uso de uma forma muito mais
geral.

Isto nos leva a perguntar: que sentido dá ele à sentença Q?

Examinemos agora esta segunda interpretação que pode ser dada a Q.

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O idealista ou solipsista que afirma "Eu posso sentir somente a minha própria dor", ou, de maneira mais geral,
"Eu posso estar consciente somente dos dados de minha própria consciência", acredita estar enunciando uma
verdade necessária e evidente que nenhuma experiência possível é capaz de fazê-lo abandonar.

Terá ele que admitir a possibilidade de circunstâncias como as que acima descrevemos para o nosso mundo
fictício. Contudo, dirá ele, mesmo que eu sinta dor toda vez que um outro corpo O for ferido, nunca direi "Eu
sinto a dor de O", mas sempre "A minha dor está no corpo de O".

Não podemos afirmar que esta asserção do idealista seja falsa; é apenas um modo diferente de adaptar a nossa
linguagem às novas circunstâncias imaginadas, e as normas da linguagem são, em princípio, arbitrárias.

Entretanto, é natural que alguns empregos de nossas palavras podem recomendar-se como práticos e bem
adaptados ao passo que outros podem ser condenados como maus condutores. Examinemos a atitude do idealista
deste ponto de vista.

Rejeita o idealista a nossa proposição R e a substitui por esta outra:

"Eu posso sentir dor tanto em outros corpos como no meu próprio". (S)

Quer ele insistir que qualquer dor que eu sinta deve ser qualificada como minha dor, não importando onde a dor
é sentida. No intuito de afirmar isto, diz ele:

"Eu só posso sentir a minha dor''. (T)

A frase T é, no que diz respeito às palavras, a mesma que Q. Empreguei sinais ligeiramente diferentes grifando
os termos "posso" e "minha", no intuito de assinalar que, ao serem usados pelo solipsista, essas duas palavras se
revestem de uma significação diferente da que tinha em Q quando interpretamos Q como significando a mesma
coisa que P.

Em T, "minha dor" não mais significa "dor no corpo M", uma vez que, de acordo com a explicação do solipsista,
"minha dor" pode também estar em um outro corpo O. Assim sendo, devemos perguntar: que significa aqui o
pronome "minha"?

É fácil ver que o pronome não significa nada; é uma palavra supérflua, que pode perfeitamente ser omitida.

"Eu sinto dor" e "Eu sinto a minha dor" devem ter a mesma significação, segundo a definição do solipsista. Por
conseguinte, o termo "minha" não tem função alguma na frase. Se o solipsista disser "A dor que sinto é minha
dor", está ele enunciando uma mera tautologia, uma vez que declarou que, quaisquer que sejam as circunstâncias
empíricas, nunca permitirá que se empreguem os pronomes "tua" ou "sua" em conexão com "Eu sinto dor", mas
sempre o pronome "minha".

Esta determinação, por ser independente de fatos empíricos, constitui uma regra lógica, e, se for seguida, T se
torna uma tautologia. O termo "posso" em T - juntamente com "exclusivamente" - não denota impossibilidade
empírica, mas impossibilidade lógica.

Em outras palavras, não seria falso, mas não teria sentido - ou seja, seria gramaticalmente proibido - dizer "Eu
posso sentir a dor de alguma outra pessoa". Uma tautologia, sendo a negação do sem-sentido, é ela mesma
destituída de sentido, pelo fato de não afirmar nada, mas apenas indicar uma regra no tocante ao emprego de
palavras.

Concluímos que T, a qual constitui a segunda interpretação de Q, adotada pelo solipsista e formando a base do
seu argumento, é rigorosamente sem sentido. Não diz absolutamente nada, não exprime nenhuma interpretação
do mundo nem perspectiva alguma a respeito do mundo; apenas introduz um modo estranho de falar, uma
linguagem desajeitada, a qual atribui o termo "minha" (ou então "conteúdo da minha consciência") a tudo, sem
exceção.

86
O solipsismo carece de sentido, uma vez que o seu ponto de partida, o predicado egocêntrico, é destituído de
sentido.

As palavras "Eu" e "minha", se as usarmos de acordo com a prescrição do solipsista são absolutamente vazias,
meros adornos de linguagem.

Não haveria diferença alguma de sentido entre as três expressões: "Eu sinto a minha dor", "Eu sinto dor", e
"Existe dor".

Lichtenberg, o admirável físico e filósofo do século XVIII, afirmou que Descartes não tinha direito algum de
iniciar a sua filosofia com a proposição "Eu penso" (Cogito), ao invés de dizer "Pensa-se".

Da mesma forma como não teria sentido algum falar de um cavalo branco, a menos que fosse logicamente
possível a existência de um cavalo que não fosse branco, assim, não teria sentido nenhuma frase que contenha as
palavras "Eu" ou "meu',, a não ser que possamos substituí-las por "Ele" ou "seu" sem dizermos algo carente de
sentido.

Entretanto, tal substituição é impossível em uma frase que pareceria exprimir o predicado egocêntrico ou a
filosofia solipsística.

As proposições não são explicações ou interpretações diferentes de um certo estado de coisas que descrevemos,
mas simplesmente formulações verbalmente diferentes desta descrição.

É de fundamental importância ver que R e S não constituem duas proposições, mas uma e mesma proposição em
duas linguagens diversas. O solipsista, rejeitando a linguagem de R e insistindo na linguagem de S, adotou uma
terminologia que torna a proposição Q tautológica, transforma-a em T. Desta forma, fez com que seja impossível
verificar a verdade ou a falsidade das suas próprias afirmações; ele mesmo as privou de sentido.

Recusando valer-se das oportunidades - que lhe mostramos - de dar um sentido à afirmação "Eu posso sentir a
dor de alguma outra pessoa", ao mesmo tempo malbaratou a oportunidade de dar sentido à frase "Eu posso sentir
somente a minha dor".

O pronome "minha" designa possessão. Não podemos falar do "proprietário" de uma dor - ou de qualquer outro
dado - a não ser em casos em que a palavra "minha" possa ser empregada com sentido, ou seja, onde,
substituindo tais termos por "sua" ou "tua", teríamos a descrição de um estado de coisas possível.

Esta condição é cumprida se "minha" for definido como referindo-se ao corpo M, sendo também cumprida se eu
concordar em chamar de "meu corpo" qualquer corpo no qual eu possa sentir dor.

Em nosso mundo atual, essas duas definições aplicam-se a um e mesmo corpo, porém estamos aqui face a um
fato empírico que poderia ser diferente.

Se as duas definições não coincidissem, e se adotássemos a segunda, necessitaríamos de uma nova palavra para
distinguir o corpo M de outros corpos nos quais eu poderia ter sensações; o termo "minha" teria sentido em uma
frase do tipo "A é um dos meus corpos, mas B não o é", porém careceria de sentido na afirmação "Eu posso
sentir dor somente nos meus corpos", pois isto representaria uma pura tautologia.

A categoria gramatical da palavra "proprietário" é semelhante à do termo "meu"; em outras palavras: somente
tem sentido onde for logicamente possível a uma coisa mudar de proprietário, isto é, onde a relação entre o
proprietário e o objeto possuído for empírica, não lógica ("externa", não "interna").

Assim sendo, poderíamos dizer "O corpo M é o proprietário desta dor", ou então "Esta dor é possuída pelos
corpos M e O".

A segunda proposição talvez nunca possa ser afirmada com verdade em nosso mundo atual - embora não consiga
ver que a mesma possa ser incompatível com as leis da natureza - porém tanto uma como a outra teriam sentido.

87
O seu sentido consistiria em expressar certas relações de dependência entre a dor e o estado de certos corpos,
sendo que a existência de tal relação poderia facilmente ser testada.

O solipsista recusa empregar a palavra "proprietário" desta maneira sensata. Sabe ele que muitas propriedades
dos dados não dependem absolutamente de quaisquer estados dos corpos humanos, isto é, todas as regularidades
do seu comportamento que podem ser expressas por "leis físicas"; sabe ele, por conseguinte, que seria errôneo
dizer "meu corpo é o detentor de tudo"; fala ele de um "ego", ou "consciência", afirmando que este ego ou
consciência é o detentor de tudo.

Isto não tem sentido, uma vez que a palavra "proprietário" ou "detentor" , quando empregada desta maneira,
perde o seu sentido.

A afirmação solipsística não pode ser verificada como verdadeira ou como falsa, senão que será verdadeira por
definição, quaisquer que sejam os fatos; consiste ela simplesmente na prescrição verbal de acrescentar os termos
"possuídos por mim" aos nomes de todos os objetos, etc.

Aliás, o idealista comete o mesmo erro ao afirmar que nada conhecemos a não ser "aparências". Vemos, desta
forma, que a não ser que optemos por designar o nosso corpo como proprietário, detentor ou portador dos dados
- o que pareceria constituir uma expressão bastante equívoca -, temos que afirmar que os dados não têm
proprietário nem portador.

Esta neutralidade da experiência - contra a subjetividade que o idealista para ela reclama - constitui um dos
aspectos mais fundamentais do verdadeiro positivismo.

A frase "Toda experiência é uma experiência da primeira pessoa" ou significará o simples fato empírico de que
todos os dados dependem, sob certos aspectos, do estado do sistema nervoso do meu corpo M, ou será carente de
sentido.

Antes que este fato fisiológico seja descoberto, a experiência de forma alguma é "minha" experiência, mas é
auto-suficiente e não "pertence" a ninguém.

A proposição "O ego constitui o centro do mundo" pode ser considerada como uma expressão do mesmo fato,
tendo sentido somente se se referir ao corpo. O conceito de "ego" é uma construção que repousa sobre o mesmo
fato, e poderíamos facilmente imaginar um mundo no qual este conceito não teria sido elaborado, mundo no qual
não haveria nenhuma idéia de uma barreira intransponível entre o que está dentro do ego e o que está fora dele.

Teríamos neste caso um mundo no qual ocorrências como as correspondentes à proposição R e similares
constituiriam a regra, e no qual os fatos da "memória" não seriam tão pronunciados como em nosso mundo atual.

Em tais circunstâncias não seríamos tentados a cair no "predicado egocêntrico", senão que a frase que tenta
expressar tal predicado seria carente de sentido em qualquer hipótese.

Após nossas últimas observações será fácil abordar o assim chamado problema relativo à existência do mundo
externo.

Se, com o Prof. Lewis, formularmos a hipótese "realista" afirmando: "Se todas as mentes desaparecessem do
universo, as estrelas continuariam nas suas trajetórias", devemos admitir a impossibilidade de verificá-la, porém
a impossibilidade no caso é meramente empírica. Aliás, as circunstâncias empíricas são tais que temos todas as
razões para crer que a hipótese é verdadeira. Estamos tão certos disto quanto estamos certos do fundamento das
leis físicas que a ciência descobriu.

Com efeito, já assinalamos que existem certas regularidades no mundo, as quais a experiência demonstra serem
totalmente independentes daquilo que acontece aos seres humanos existentes na terra.

88
Assim, as leis do movimento dos corpos celestes são formuladas inteiramente sem referência a quaisquer corpos
humanos, sendo esta a razão que nos autoriza a sustentar que tais corpos continuarão na sua trajetória depois que
o gênero humano desaparecer da terra.

A experiência não demonstra nenhuma conexão entre as duas espécies de eventos. Observamos que o curso das
estrelas não é mais alterado pela morte de seres humanos do que, por exemplo, pela erupção de um vulcão, ou
por uma mudança de governo na China. Por que motivo haveríamos de supor que haveria alguma diferença se
fossem extintos todos os seres viventes do nosso planeta, ou mesmo em todo o universo? Não pode pairar dúvida
alguma acerca do fato de que, em virtude de evidência empírica, a existência de seres viventes não constitui
condição necessária para a existência do resto do mundo.

A questão "Continuará o mundo a existir após a minha morte?" não tem sentido algum, a não ser que seja
interpretada como significando "A existência das estrelas, etc. depende da vida ou da morte de um ser humano?",
questão esta para a qual a experiência fornece resposta negativa.

O erro do solipsista ou do idealista consiste em rejeitar esta interpretação empírica e procurar alguma solução
metafísica para ela. Todavia, todos os esforços do solipsista ou do idealista para arquitetar um novo sentido para
a questão acabam por privá-lo do seu sentido antigo.

Notar-se-á que tomei a liberdade de substituir a frase "se todas as mentes desaparecessem do mundo" por "se
todos os seres viventes desaparecessem do universo".

Espero que não se pense haver eu alterado o sentido do problema com esta substituição. Evitei o termo "mente"
porque o emprego para significar a mesma coisa que as palavras "ego'' ou "consciência", que constatamos serem
tão obscuras e perigosas. Por seres viventes entendo seres capazes de percepção, e o conceito de percepção foi
definido somente por referência a corpos viventes, a órgãos vivos.

Desta forma, tive eu justificativa para substituir "desaparecimento das mentes" por "morte dos seres viventes".

Todavia, os argumentos são válidos para qualquer definição empírica que se queira escolher ou dar para "mente''.
Preciso apenas assinalar que, de acordo com a experiência, o movimento das estrelas, etc. é totalmente
independente de todos os fenômenos "mentais" como sentir alegria ou tristeza, meditar, sonhar, etc.; e podemos
concluir que o curso das estrelas não seria afetado se tais fenômenos cessassem de existir.

Entretanto, será verdade que tal conclusão pode ser verificada? Empiricamente isto parece impossível, porém
sabemos que se exige apenas a possibilidade lógica de verificação. Ora, verificação sem uma "mente" é
logicamente possível, em razão do caráter "neutro" e impessoal da experiência, conforme acima insistimos.

A experiência primitiva, a mera existência de dados ordenados, não pressupõe um "sujeito", um "ego", um "eu",
uma "mente'', podendo efetuar-se sem qualquer um dos fatos que levaram à formação de tais conceitos; não são o
fruto da experiência de ninguém.

Não é difícil imaginar um universo sem plantas, animais e corpos humanos - inclusive sem o corpo M - bem
como sem os fenômenos que acabamos de mencionar; seria certamente um "mundo sem mentes" - pois, que
outra coisa poderia merecer este nome? - porém as leis da natureza bem poderiam ser as mesmas que as
existentes em nosso mundo atual. Poderíamos descrever este universo em termos de nossa experiência atual --
com a única diferença de que teríamos que omitir todos os termos referentes aos corpos humanos e às emoções.
Ora, isto é suficiente para podermos falar de tal mundo como sendo um universo de experiência possível.

As últimas considerações podem servir como exemplo de uma das principais teses do verdadeiro positivismo, ou
seja: que a representação singela do mundo, qual a vê o homem da rua, é perfeitamente correta; que a solução
dos grandes problemas filosóficos consiste em retornar a esta mundivisão original, após termos demonstrado que
os problemas penosos se originaram exclusivamente de uma descrição inadequada do mundo mediante uma
linguagem defeituosa.

Notas

89
* Do original inglês: 'Meaning and Verification', publicado pela primeira vez em The Philosophical Review, vol.
XLV, 1936.

1
Se as considerações acima são tão corretas como acredito que sejam, devo isto, em grande parte, aos contatos
que mantive com Wittgenstein, que exerceram notável influência sobre os meus pontos de vista nesta matéria.
Dificilmente posso exagerar a minha dívida para com este filósofo. Não tenciono atribuir-lhe qualquer
responsabilidade pelo conteúdo do presente artigo, porém tenho razões para crer que ele concordará com os seus
pontos essenciais.

2 Na realidade, o acréscimo "na experiência" é supérfluo, porquanto não se definiu nenhuma outra espécie de
verificação.

3 A obra do prof. Bridgman A Lógica da Física Moderna (The Logic of Modern Physics) representa uma
tentativa admirável de realizar este programa para todos os conceitos da física.

4 'Experience and Meaning', em The Philosophical Review, Março 1934.

5 Loc. Cit., p. 125.

6 Se, por exemplo, a sentença apresenta esta estrutura: sujeito - predicado - objeto, parecendo portanto predicar
uma propriedade de uma coisa.

7 Citado pelo prof. Lewis, loc. Cit., p. 130.

8 Loc. Cit., p. 131.

9 Como poderiam ser interpretadas no sentido de que falar acerca do passado, na realidade, equivaleria a falar de
memórias presentes.

10 Ver, por exemplo, Allgemeine Erkenntnislehre (Teoria Geral do Conhecimento), Segunda edição, 1925, # 12.

11 Acredito que este caso corresponderia ao que o prof. Lewis denomina 'teorias da identidade' da 'relação-
conhecimento' (identity-theories of the knowledge-relation). Tais teorias, por se basearem em uma tautologia
deste tipo, representariam simples palavreado distituído de significação.

12 Loc. Cit., 137.

13 Ao que parece, é nela que Lewis pensou ao falar de "experiência possível enquanto condicionada pela
experiência real" loc. Cit., p. 141.

14 Loc. Cit., 142, nas seis primeiras linhas.

15 Talvez não me tenha expressado corretamente. Um fato que não pudesse ser descrito, naturalmente não
constituiria fato algum; qualquer fato é logicamente possível. Todavia, acredito que o leitor tenha entendido o
que quis dizer.

16 Longe de mim condenar esta atitude em qualquer circunstância. Em certas ocasiões - como em Alice no País
das Maravilhas - pode ser a atitude mais sensata e muito mais deliciosa do que qualquer tratado de lógica.
Todavia, num tal tratado temos o direito de esperar uma atitude diferente.

17 Aliás, é este o sentido que o termo tem na filosofia de Hume e de Kant.

18 Estas representam a condição da 'experiência', na acepção em que Hume e Kant empregam esta palavra.

19 Pois é isto que significam as palavras 'lado da lua'.

90
20 Loc. Cit., pg. 143.

21 Loc. Cit., pg. 128.

22 O autor intitula o seu livro um Sistema de Positivismo Idealístico.

23 Ver Lewis Loc. Cit., pg. 145.

24 Loc. Cit., pg. 145.

In Os Pensadores Schlick e Carnap, pgs. 83-110, São Paulo: Ed. Abril, 1980.

91
BEHAVIORISMO METODOLÓGICO E BEHAVIORISMO RADICAL
Maria Amélia Matos

(Dept. Psicologia - USP)

BEHAVIORISMO como vocês já devem saber é uma palavra de origem inglesa, que se refere ao estudo do
comportamento:"Behavior", em inglês. O Behaviorismo surgiu no começo deste século como uma proposta para
a Psicologia, para tomar como seu objeto de estudo o comportamento, ele próprio, e não como indicador de
alguma outra coisa, como indício da existência de alguma outra coisa que se expressasse pelo ou através do
comportamento.

Na Idade Média, a igreja explicava a ação, o comportar-se pelo homem pela posse de uma alma. No início deste
século, os cientistas o faziam pela existência de uma mente. As faculdades ou capacidades da alma causavam e
explicavam o comportamento deste homem. Os objetos e eventos criavam idéias em suas mentes e estas
impressões mentais ou idéias geravam seu comportamento. Vejam que ambas são posições essencialmente
dualistas: o homem é concebido como tendo duas naturezas, uma divina e uma material, ou uma mental e uma
física, como quiserem.

É uma posição difícil, conflitante, porque devo demonstrar como essas naturezas contatuam, já que estão em
planos diferentes. Notem além disso, a circularidade do argumento: ao mesmo tempo em que essa alma ou mente
causavam e explicavam o comportamento, esse comportamento era a única evidência desta alma ou desta mente.

No mentalismo, o acesso às idéias ou imagens se faria somente através da introspecção, que seria então revelada
através de uma ação, gesto ou palavra. Temos aqui um modelo causal de ciência: (a) o indivíduo passivo recebe
impressões do mundo; (b) estas impressões são impressas na sua mente constituindo sua consciência; (c) que é
então a entidade agente responsável por, ou local onde ocorrem processos responsáveis por nossas ações.

É preciso destacar que os processos cognitivos, tão falados hoje em dia, são uma forma de animismo ou
mentalismo, em suas origens. A cognição é algo a que não tenho acesso direto mas que fica evidente no
comportamento lingüístico das pessoas, no seu resolver problemas, no seu lembrar, etc., esquecendo que
linguagem é produto de comportamento verbal; que solução de problemas é produto de contingências
alternativas, e que lembrar é produto de manipulação de estímulos discriminativos.

O cognitivista recupera o conceito de consciência quando afirma estados disposicionais e/ou motivacionais que
poderiam ser modificados de fora (instruções) ou de dentro (auto-controle) através de reestruturações cognitivas
alcançadas por trocas verbais (ou seja, o comportamento verbal do outro é decodificado por mim e meu relato
verbal, versão moderna da introspecção, dá acesso ao outro às minhas cognições). Estes estados disposicionais
assim modificados, agiriam então afetando e modificando comportamentos expressos. Não estou negando que
existam crenças, sugestões, representações etc., mas estas são formas de se comportar, são classes de respostas,
não eventos mediacionais, não causas diretas do comportamento. Aceito consciência como uma metáfora, um
resumo de minhas experiências passadas (assim também aceito personalidade, como um conceito equivalente a
repertório comportamental). Mas rejeito consciência como self, como agente decisor, causador, ou mediador do
comportamento.

De qualquer modo, o Behaviorismo surgiu em oposição ao mentalismo e ao introspeccionismo. Em fins do


século passado a ciência de modo geral começou a colocar uma forte ênfase na obtenção de dados ditos
objetivos, em medidas, em definições claras, em demonstração e experimentação. Esta influência se fez sentir na
Psicologia, no começo deste século, com a proposta behaviorista feita por Watson em 1924:

"Por que não fazemos daquilo que podemos observar, o corpo de estudo da Psicologia?" Ou, em outras palavras:

- estudar o comportamento por si mesmo;

- opor-se ao mentalismo;

92
- aderir ao evolucionismo biológico;

- adotar o determinismo materialístico;

- usar procedimentos objetivos na coleta de dados, rejeitando a introspecção;

- realizar experimentação;

- realizar testes de hipótese de preferência com grupo controle;

- observar consensualmente.
 
 

* Com exceção das duas últimas características, as demais também se aplicam ao que mais tarde veio a se
chamar behaviorismo Radical.
 
 

Notem que estamos aqui diante de duas vertentes: uma filosófica (expressa nas quatro primeiras frases) e uma
metodológica (expressa nas quatro últimas). Elas refletem a influência de várias tendências sobre o pensamento
científico desde o final do século passado até o começo deste:
 
 

- O Positivismo Social de Auguste Comte, considerando que a ciência é uma atividade do homem, e o homem
um ser social, postula a natureza social do conhecimento científico, rejeita a introspecção e estabelece como
critério de verdade o observável consensual, isto é, o observável partilhado e sancionado pelo outro.
 
 

-O Positivismo Lógico do Círculo de Viena, considerando que eu só tenho acesso à informação que meus
sentidos me trazem, não posso ter informações sobre minha consciência, cuja natureza difere da de meu corpo. É
verdade que não posso negá-la, mas também não posso estudá-la. (É interessante que esta influência também
levou ao idealismo e ao subjetivismo: já que não tenho acesso a nada senão minhas sensações, o mundo não
existe, somente minhas impressões dele, só minhas idéias são reais).
 
 

-O Operacionismo, derivado da influência do Positivismo Lógico sobre a Física: se somente tenho acesso às
informações que meus sentidos trazem, então a linguagem pela qual expresso e estruturo essas informações é o
mais importante em ciência. A definição dos conceitos é fundamental, e definir é descrever as operações
envolvidas no processo de medir o conceito. Essa descrição deve ser objetiva e referir-se a termos observáveis.

"Observação", pois, tornou-se um termo e uma operação fundamental para o Behaviorismo: ela define a
categoria "comportamento", seu objeto de estudo. Comportamento é o observável e, por definição, observável
pelo outro, isto é, externamente observável. Comportamento, para ser objeto de estudo do behaviorista, deve
ocorrer afetando os sentidos do outro, deve poder ser contado e medido pelo outro. Dai dizer-se que em
observação o que importa é a concordância de observadores, e portanto, a necessidade de um treino rigoroso nos
procedimentos de registro e análise. Esta ênfase no procedimento de medida, na operação de acessamento levou
mais tarde a que se comunicasse a aderência a estas características de BEHAVIORISMO METODOLÓGICO.

Mas o que é comportamento? E é aqui que as coisas começam a rachar. Comportamento não era visto como mais
uma função biológica, isto é, própria do organismo vivo, e que se realiza em seu contato com o ambiente em que
vive, como o respirar, o digerir. Dentro de uma Física newtoniana mecanicista da época, todo fenômeno devia ter
uma causa (uma concepção funcionalista falaria em condições), e dentro da rejeição mentalista a causa do

93
comportamento não poderia ser a mente, seria então algo externo ao organismo e observável, o ambiente, o
estímulo. Vejam que afinal a concepção behaviorista é tão dualista quanto a posição mentalista: o corpo precisa
ser animado pela alma tanto quanto o comportamento é expressão da mente ou produto da instigação do
estímulo. A palavra "estímulo" veio de Pavlov (outra influência sofrida por Watson e os behavioristas da época e
da qual também Skinner não conseguiu se livrar), e referia-se à troca de energia entre o ambiente e o organismo,
quanto à operação realizada pelo experimentador em seu laboratório, uma parte ou mudança em parte do mundo
físico que causava uma mudança no organismo ou parte do organismo, a resposta. Essa mudança observável no
organismo biológico seria o comportamento. A manipulação experimental por excelência seria a reprodução
desse modelo, a operação S-R. E é por isso que esta forma de behaviorismo ficou sendo conhecida por muitos
como "a Psicologia da contração muscular e da secreção glandular".

Diante deste quadro vamos parar um pouco e analisar cinco frases:


 
 

1. Eu estou falando.

2. Eu escrevi esta palestra.

3. Eu vejo vocês.

4. Eu estou com sede.

5. Eu estou com dor dente.


 
 

Enquanto falo, vocês estão vendo mudanças em meu organismo e ouvindo o produto destas mudanças, os sons
da minha fala.

Vocês não viram meu comportamento de escrever, mas se concordarmos sobre a operação que define o escrever
(deslocamento de minha mão segurando um objeto por sobre uma superfície deixando nela inscrições), vocês
também concordarão que o produto do escrever, este papel, é sua evidência.

Qual a evidência consensual da frase 3? Ninguém vê ou ouve o meu "ver", e o meu ver só tem produtos para
mim, não para vocês. No entanto o behaviorista metodológico aceitaria esta frase como um bom exemplo de
descrição do comportamento de ver, assim como aceitaria meu registro da salivação de cão como evidência
dessa salivação. Meu registro equivale a dizer que eu vi o cão salivar! Este registro seria aceito porque outras
pessoas também poderiam relatar ter visto o cão salivar, a salivação do cão é observável consensualmente. Mas o
que está em pauta aqui não é o salivar, e sim o meu ver. Esta contradição não foi resolvida pelo Behaviorismo
Metodológico. E se várias pessoas relatarem que viram o cão salivar, isto será considerado um relato válido.
Assim, um comportamento que em si não é observável e não poderia ser objeto de estudo do behaviorista
metodológico, torna-se não obstante, fonte de dados para a construção da ciência deste behaviorista!

Já a frase 4 não apresenta evidência observável exatamente, nem produto, nem referencial externo acessível por
todos. Neste momento o Behaviorismo Metodológico se deixou contaminar pela fisiologia, versão na qual
subsiste até hoje. "Eu posso invadir o organismo e medir o equilíbrio hídrico dos tecidos, esta medida é um
indicador da minha sede." Esta medida é um indicador do equilíbrio hídrico dos tecidos do meu corpo, não da
minha sensação! Não do meu comportamento de sentir! (a linguagem é insuficiente, eu deveria dizer
simplesmente "do meu sentir", mas sentir está vinculado a sentir emoção, sentir estados afetivos).

Vocês notam como o behaviorista metodológico começa a escorregar nas frases 3 e 4 e a apresentar rachaduras
em seu modelo. Ele muda seu objeto de estudo para não mudar sua insistência num critério social de verdade.
Mas a verdade é que eu sinto dor-de-dente! Assim como vocês não podem observar o "meu ver", não podem
observar "meu sentir sede", e não podem observar "meu sentir dor-de dente". Isto contudo não torna estas
sensações menos reais para mim. E é aqui que começa a ficar evidente uma primeira e fundamental diferença

94
entre o behaviorismo proposto por Skinner e aquele praticado pelos behavioristas metodológicos: o homem é a
medida de todas as coisas, não o social.

Influenciado pelo Positivismo Lógico, Skinner aceita que o que existe para o indivíduo, existe! (daí aceitar e
defender uma metodologia do N=1). Mas, para não cair no subjetivismo e idealismo, é importante analisar as
evidências desta existência. E aqui estamos diante de um ponto importante (e difícil) que aproxima Skinner e os
fenomenólogos: a evidência da existência do mundo, de um evento, etc. É a experiência do observador. A tarefa
pois da ciência é analisar esta experiência, e ele inclui aqui, como essencial, a análise da experiência do cientista
como parte do processo de construção do conhecimento científico (daí a importância do estudo do
comportamento verbal para Skinner. A análise do comportamento verbal me permitiria estudar as circunstâncias
em que essa experiência se deu, e assim entendê-la).

Ora, ocorre que a experiência que alguém tem de uma situação é um evento privado. E Skinner assim a aceita.
Para Skinner, os estudos de eventos internos inclui-se legitimamente dentro do campo de estudos da Psicologia,
de uma ciência do comportamento. Assim ele é radical em dois sentidos: por negar radicalmente (i.e., negar
absolutamente) a existência de algo que escapa ao mundo físico, que não tenha uma existência identificável no
espaço e no tempo (mente, consciência, cognição); e por radicalmente aceitar (i.e., aceitar integralmente) todos
os fenômenos comportamentais.

O behaviorista metodológico não nega a existência da mente, mas nega-lhe status científico ao afirmar que não
podemos estudá-la pela sua inacessibilidade. O behaviorista radical nega a existência da mente e assemelhados,
mas aceita estudar eventos internos. Esta posição de Skinner se insere dentro da tradição do Positivismo Lógico,
mas ao mesmo tempo se constitui num desvio desta forma de positivismo, talvez por ter sido mais influenciado
por Mach que por Bridgman, e mais por Wittgenstein que por Carnap. Já que só temos informação do mundo
pelos sentidos, porque excluir sensações do mundo interno e privilegiar as do mundo externo? Porque o critério
de objeto da ciência deveria ser dado pela natureza do sistema sensorial envolvido? (proprioceptivo,
interoceptivo e exteroceptivo). Nesse sentido, Skinner (embora reconhecendo a dificuldade de se ter acesso ao
primeiro) não separa mundo interno de mundo externo. E é por isso que para ele não existem estímulos e
respostas, existe uma unidade interativa Comportamento-Ambiente (não esquecendo que Ambiente é tudo aquilo
que é externo ao Comportamento, não importando se é um piscar de luz, um desequilíbrio hídrico, um derrame
de adrenalina, ou um objeto ausente associado a um evento presente; não importando se sua relação com o
comportamento é de contiguidade espaço/temporal (o que é exigido pelo mecanismo metodológico para a troca
de energias) ou não. É por isso que a psicologia proposta por Skinner não é uma psicologia S-R. Para ele não
existe Comportamento (no sentido de não "podemos entender") sem as circunstâncias em que ocorre; e não tem
sentido falarmos em circunstâncias sem a especificação do comportamento que circunstanciam.

Mas, porque afinal, o behaviorista metodológico rejeita estudar eventos internos se reconhece sua existência?
Porque dá importância filosófica à diferença na localização -interna/externa- de eventos; porque praticamente
equaciona eventos internos com eventos mentais; por que rejeita a introspecção?

Para o behaviorista metodológico, a evidência de que vejo vocês é que os outros vêem vocês. A evidência que
vocês existem é que outros vêem vocês. A existência do mundo e do comportamento, a natureza do
conhecimento que tenho deles é a experiência partilhada. Para o behaviorista radical, a evidência de que vejo
vocês é meu comportamento, a evidência de que vocês existem também é meu comportamento. Para o
behaviorista metodológico, o louco e o mentiroso são associados por não partilharem das experiências do outro.
Para o behaviorista radical, o louco se comporta na ausência da coisa vista (como eu o faço em sonhos, nas
minhas rememorações etc.) com mais freqüência do eu que faço, mas de acordo com as mesmas leis. Está sob
controle de outras contingências, não as do aqui e agora, o mentiroso também.

Mas atenção! Ao observar eventos internos não estou observando nem minha mente nem minha personalidade, e
sim meu próprio corpo.

Dizer que tenho dor-de-dente não é evidência da existência de uma dor-de-dente; não é relato da dor-de-dente
(ou seja, o equivalente verbal da dor); é uma verbalização que precisa ser explicada, entendida, interpretada, é
um comportamento que eu digo que ocorre na presença de determinadas sensações internas; que um dentista diz
que ocorre na presença de determinada condição da minha gengiva/dente, etc., mas que pode também ocorrer na
presença de uma tarefa aborrecida que não desejo executar. Dizer que tenho dor-de-dente pode ser considerado
um meio, assim como as descrições minhas e do meu dentista, das condições existentes, para começar a entender

95
minhas sensações. Mas como sua natureza é verbal, esse entendimento não se dará enquanto não entendermos
melhor o que é comportamento verbal e como é adquirido.

Evento privado é um objeto de estudo válido para a ciência, sua existência não precisa ser colocada sob critérios
sociais, basta um observador, mas seus dados precisam ser replicáveis, preciso entender melhor suas variáveis.

Acredito que evento interno é o protótipo da concepção skinneriana de comportamento como unidade interativa:
nele mais que em qualquer outro exemplo, definitivamente não posso separar comportamento e ambiente.
Evento interno pode ser uma mudança no ambiente interno, pode ser uma reação a essa mudança, ou pode ser o
efeito interno de mudanças externas. Algumas vezes posso identificar seu antecedente remoto externo, mas o
imediato interno se mescla irremediavelmente com o evento comportamental.

Vou agora voltar atrás e falar do Behaviorismo Radical de uma forma um pouco mais sistemática. O
Behaviorismo Radical é uma forma de behaviorismo praticada por B.F.Skinner e adotada por vários outros
psicólogos: Ferster, Sidman, Schoenfeld, Catania, Hineline, Jack Michael, etc. Constitue-se numa interpretação
filosófica (isto é, baseada numa ideologia) de dados obtidos através da investigação sistemática do
comportamento (o corpo desta investigação propriamente dita é a Análise Experimental/Funcional do
Comportamento).

Esta interpretação descreve basicamente relações funcionais entre Comportamento e Ambiente (isto é, relações
entre discriminações de mudanças na realidade observada e descrições das condições em que essas mudanças se
dão) (como produto temos, não explicações realistas, não relações de causa-efeito, não leis baseadas no modelo
da Física Mecânica de troca de energia, e sim a construção de seqüências regulares de eventos que
eventualmente poderão ser descritas por funções matemáticas).

O behaviorista radical rejeita o mentalismo por ser materialista, e acaba com o dualismo por acreditar que o
comportamento é uma função biológica do organismo vivo. Não preciso da mente para respirar, não explico a
digestão por processos cognitivos, porque explicaria o comportamento por um ou outro?

O behaviorista radical propõe que existam dois tipos de transações entre o Comportamento e o Ambiente:
 
 

a) conseqüências seletivas (que ocorrem após o comportamento e modificam a probabilidade futura de


ocorrerem comportamentos equivalentes, i.e., da mesma classe);

b) contextos que estabelecem a ocasião para o comportamento ser afetado por suas conseqüências (e que
portanto ocorreriam antes do comportamento e que igualmente afetariam a probabilidade desse comportamento).

 
 

Estas duas classes possíveis de interações são denominadas "contingências" e constituem as duas classes
conceituais fundamentais para a análise do comportamento. Relações funcionais são estabelecidas na medida em
que registramos mudanças na probabilidade de ocorrência dos comportamentos que procuramos entender em
relação a mudanças quer nas conseqüências, quer nos contextos, quer em ambos.

Por lidarmos com explicações funcionais e não causais, o importante é coletar informações ao longo do tempo,
repetidas do mesmo evento, com os mesmos personagens (o behaviorista metodológico prefere observações
pontuais em diferentes sujeitos, ou seja, o estudo em grupo, o que leva à estatística para descrever e/ou anular a
variabilidade. Para o radical isto é uma heresia, de vez que estou tentando estudar a experiência daquele sujeito.
Ao coletarmos registros ao longo do tempo devemos comparar o sujeito consigo mesmo, sua história passada é
sua linha de base.

Mas, por outro lado, indivíduos de uma mesma espécie partilham de um mesmo conjunto de contingências
filogenéticas, e indivíduos com histórias passadas semelhantes podem partilhar de contingências ontogenéticas

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semelhantes e, portanto, para certas variáveis é possível descrever funções semelhantes para diferentes
indivíduos.

Para sua rejeição do mentalismo/cognitivismo como explicação do comportamento, e por sua posição não
reducionista diante de eventos neurais (Skinner não aceita que eventos fisiológicos/neurológicos expliquem o
comportamento, estas são outras tantas funções biológicas a serem explicadas. O comportamento é um campo de
estudo em si mesmo. Evidentemente que há interação entre essas funções do organismo, mas essa relação não é
de causalidade.) O behaviorismo radical é considerado um ambientalista e acusado de esvaziar o organismo, de
estudar uma caixa preta... Não! Estas críticas se originam de uma postura pré-galileica, do que poderíamos
chamar organocentrismo em Psicologia. O homem é o fenômeno de interesse, é a origem de todas as coisas, não
sua interação com o universo. Para Skinner, o organismo não é nem gerente nem iniciador de ações, é o palco
onde as interações Comportamento-Ambiente de dão.

1 Palestra apresentada no II Encontro Brasileiro de Psicoterapia e Medicina Comportamental, Campinas, out/93.


Versão revisada encontra-se publicada em: Bernard Rangé (org) Psicoterapia comportamental e cognitiva:
pesquisa, prática, aplicações e problemas. Campinas, Editorial Psy, 1995.

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