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Wilton Barroso
1. Introdução
Seria difícil concebermos a disciplina filosófica, a estética, se não houvesse a matéria
prima, a atividade artística. Por conseguinte, não haveria epistemologia se não existisse uma atividade
científica. De fato essa moderna disciplina filosófica emerge e desenvolve-se através de uma interação
muito forte com as temáticas das ciências; ou seja, tanto do ponto de vista de suas práticas, quanto dos
seus discursos e problemas.
Provavelmente, por ser jovem a disciplina, o termo que a define, epistemologia, é ainda
envolto em certa nebulosidade conceitual. A formulação moderna do conceito foi originalmente
proposta por B. Russell, em 1894, em um ensaio sobre os Fundamentos da Geometria. O conceito
epistemology está ligado a problemas referentes à Teoria do Conhecimento. O conceito é expresso
pela primeira vez em francês em 1901, epistemologie, decorrente da tradução do ensaio de Russell.
Todavia, pela prática ou uso do termo nesta língua, epistemologie representa as temáticas referentes à
Filosofia e à História das Ciências. Desta maneira, não poderíamos relacionar espistemology com
epistemologie, e sim, epistemology com théorie de la connaissance e epistemologie com philosophy
and history of science. O sentido se estabiliza no francês a partir dos anos 50 e transborda nestes
termos para o alemão e o italiano. Portanto poderíamos falar em dois usos para um mesmo termo; um
anglo-saxônico e outro continental. Não cabe desenvolver a questão aqui, mas essa nebulosidade
representa muito mais do que uma simples questão de uso ou tradução, ela é decorrente da percepção
distinta da história da Filosofia dos séculos XVII e XVIII. Deixo aqui o registro porque essa nuança é
seguidamente negligenciada em nossa língua.
A pesquisa epistemológica contemporânea contempla problemáticas bastante diversas;
assim a configuração teórica varia segundo a valorização que se dê a uma ou outra problemática. Do
gesto de caracterização decorrem dificuldades, nem tanto pela variedade de sentidos que a noção
comporta, mas, sobretudo, pela diversidade e complexidade das problemáticas tratadas. No âmbito das
problemáticas fundamentais da disciplina figuram questões como a reformulação e a renovação da
Filosofia das Ciências provocadas pela crise de fundamentos ocorrida na Matemática e na Física; a
necessidade elucidativa das proposições científicas suscitadas pela nova atenção à linguagem e à
matematização da Lógica; e a diversificação de epistemologias ligadas particularmente à uma ciência e
refratárias à conceituação geral. Claro que não figura a problemática ligada ao romance.
No contexto refratário emergem várias aplicações da epistemologia a diferentes
ciências, isto implica no surgimento de epistemologias de sensibilidade histórica. Estas têm como
objetivo declarado e comum esclarecer o processo interno de elaboração das teorias científicas;
progressiva intervenção das ciências humanas no auxílio ao esclarecimento e à compreensão dos
saberes, tanto do ponto de vista das condições psicogenéticas da sua aquisição, quanto do ponto de
vista das condições históricas da sua constituição.
No contexto presente, já que aceitei, tenho que configurar uma epistemologia que
valorize a multiplicidade temática e que priorize o seu objeto e a sua história. Só depois de caracterizar
as vertentes histórico-filosóficas da epistemologia é que se abrem as condições para pensarmos uma
epistemologia do romance.
A teoria por si só não garante nenhuma correspondência com o real, a teoria é importante não
por isso, mas basicamente porque ela é capaz de fazer previsões. Continuo citando Duhem :
"a teoria física nunca nos dá a explicação das leis fundamentais, nunca nos revela as realidades
que se ocultam atrás das aparências sensíveis ; mas quanto maior é o seu aperfeiçoamento, maior é o
nosso pressentimento de que uma ordem lógica, na qual ela ordena as leis experimentais, é o reflexo
de uma ordem ontológica ; maior a nossa suspeita de que as relações que estabelece entre os dados de
observação correspondem a relações entre as coisas ; maior a nossa convicção de que tende a ser uma
classificação natural".(p.60)
Duhem concebe a teoria física através de quatro fases: definição e medida das grandezas
físicas; escolha das hipóteses; desenvolvimento matemático da teoria; e comparação da teoria com a
experiência. Essas quatros fases se articulam formando totalidades ou organismos que inviabilizam a
realização de experiências cruciais definindo-se assim a teoria descrita de modo holista, esse aspecto
seria retomado no século XX, por Quine, que estendeu o holismo epistemológico de Duhem a um
holismo semântico; mas isso é só um comentário, já que nos afastaríamos do nosso objetivo, o
romance.
Ao século XX coube prestar esclarecimentos sobre a natureza ou a função das teorias. Esta
atividade de pesquisa foi extremamente fecunda, suscitou sérias e severas críticas à concepção
positivista de história da ciência, procedendo a um questionamento profundo do ideal de progresso,
repensando o posicionamento externo a esse ideal, no interior da cultura.
Gaston Bachelard destacou a íntima relação entre a consciência da modernidade e a
consciência de historicidade, ponto igualmente relevante para Alexandre Koyré. A sua obra foi
construída segundo a convicção de que a partir de uma perspectiva unitária do pensamento se
articulam de modo muito profundo e constante o científico e o filosófico. A relevância desta
articulação é que ela permite que se insista na dimensão teórica da ciência e da cultura.
"é essencialmente teoria, procura da verdade, por isso ela tem, e sempre teve, uma vida própria,
uma história imanente, e é apenas em função de seus próprios problemas, sua própria história, que ela
pode ser compreendida pelos seus historiadores".
A questão decisiva, saber se a história da ciência é ou não história, foi colocada por G.
Canguilhem. Para ele é distinto o objeto da ciência do objeto da história da ciência, uma vez que:
"é a história de um objeto que é uma história, que tem uma história, ao passo que a ciência é
ciência de um objeto que não é história, que não tem história".
Acabamos de notar o óbvio, ou seja, do ponto de vista da configuração que resolvemos adotar
fica bastante clara a íntima e complexa relação da pesquisa epistemológica com o parâmetro histórico.
A relevância desta relação fará com que um filósofo do século XX, Hanson, sustente a tese segundo a
qual a história da ciência sem a filosofia da ciência é cega; e que a filosofia da ciência sem história da
ciência é vazia. Desta inseparabilidade fundamental a epistemologia obtém a extrema centralidade nas
suas diligências argumentativas.
"Não existe nada além do conceito fundamental primeiro de todos os caracteres necessários de
uma coisa (esse conceptus)".
"a essência lógica do conceito é o conceito fundamental subjetivo, mas a sua validade não se
aplica a tudo, ela é igualmente variável; a essência real é objetiva".
Então esse fundamento, problema literário, tem uma origem subjetiva, mas é de algum modo
uma síntese representativa de algum análogo do real.
A Estética para Kant pode ser substantivo ou adjetivo, há ainda os conceitos de Estética
Transcendental e Estética Transcendental da Razão Prática Pura. Interessa-me presentemente a
Estética enquanto adjetivo. Encontramos aí duas definições muito interessantes e que se articulam e
completam; estão na Crítica à Faculdade de Julgar
Def. 1 - Estética é aquilo que revela a sensibilidade;
Def. 2 - Estética é aquilo que se relaciona com o que é puramente subjetivo na representação
ou intuição de um objeto, é relativo e particular do sentimento que acompanha a intuição, pode
transformar-se em elemento de conhecimento do objeto.
O meu interesse pela adjetivação judicativa kantiana está ligado às correlações existentes entre
estas e o problema literário da narrativa. Um parâmetro essencial da construção do romance é como o
autor vai escolher narrá-lo. Essa escolha subjetiva é uma questão explosiva na História da Literatura,
basta evocar, por exemplo, o narrador ausente de Gustave Flaubert ou o narrador autoral-temporal de
Hermann Broch. A leitura de Kant me confirma que a qualificação estética fundamental no romance
está indissociável do problema do critério, ou ainda da ausência deste, de escolha. Essa liberdade de
escolha, que, por ser subjetiva, não pode ser universalisada como elemento de conhecimento da
estrutura de qualquer romance, pode muito bem ser utilizada como elemento de conhecimento
particular, no caso, o romance que exprime a escolha subjetiva do narrador, que fica assim validado. O
narrador literário é estético. Desta proposição fundamental obtém-se a essência lógica do objeto
literário, já que toda atribuição reflexiva do narrador será articulada com a escolha estética que a
antecedeu. Num certo sentido, antes de ser filosófico, o narrador é estético. A escolha fundamental é
subjetiva e a validade do conhecimento também. Confuso? Nem tanto, porque o narrador, uma vez
feita a escolha, torna-se objetivo, na medida em que está obrigado a ser coerente com a escolha que é
feita uma única vez, variá-la transformaria o texto em algo incompreensível, posto que irracional. O
fundamento tem que ser invariante, lembrem de Espinoza e seu método geométrico. O narrador tem
que ser constante para contribuir para a credibilidade do texto literário.
Por fim falemos da terceira propriedade do serio ludere, a História da Literatura. O texto
literário, para gerar um entendimento ampliado como o que aspira o serio ludere, está sempre de modo
direto ou indireto articulado com algum outro texto antepassado ou contemporâneo. Essa propriedade
do serio ludere serve para criar as condições para o entendimento do contexto do romance, seja do
ponto de vista da tradição, seja do ponto de vista da problemática. A percepção sociológica do tempo
literário e a sua conseqüente ou não transformação antropológica.
Antes que me critiquem, acuso eu mesmo o meu trabalho de incompletude. Por isso dei-lhe
como título o prudente elementos para… Há ainda dificuldade de fundamentação e sobretudo de
generalização. Por isso nos últimos anos tenho procedido a estudos de caso como recurso de busca na
solução das tais incompletudes. Nelas, creio eu, meus propósitos ficam mais claros.
Este livro foi escrito entre 1852 e 1854. Foi publicado pela primeira vez, com cortes, pela
Revista de Paris, entre dezembro de 1856 e fevereiro de 1857. Causou a prisão do seu autor e a revista
foi retirada de circulação. Flaubert foi processado por calúnia e difamação da honradez da mulher
francesa, e também por incitação à prevaricação e à esbórnia. Vocês já ouviram falar deste grande
escândalo. Flaubert foi absolvido em abril de 1857 e o livro virou o maior best-seller do século
passado, teve três tiragens sucessivas de 15 mil exemplares e atingiu a fantástica marca de 45 mil
livros vendidos, o que, convenhamos, se é muito para um livro publicado nos dias de hoje, imagina há
cento e poucos anos atrás.
O romance fala de Emma, uma mulher normanda, região oeste da França, desnudando
sem nenhum juízo de valor toda a intimidade dela. Portanto o autor não adjetiva a estória, apenas a
narra.
Esse tipo de narrativa faz com que o autor desapareça atrás do texto, deixando, por
assim dizer, inteiramente a sós a estória e o leitor. Não há intermediação entre a estória narrada e o
leitor. Isso é importantíssimo para a história do romance.
Essa concepção liberta o autor. Antes ele era obrigado a assumir posições. Vide as
implicações do peido de Bogagem (Manoel Barbosa du Bocage), um grande mestre da poesia
portuguesa pré-romântica, que esteve no Brasil em 1790 e morreu regenerado pelo Santo Ofício por
um último poema onde pede que rasguem os seus poemas Pornográficos.
Flaubert criou um estilo de fazer romance que pode ser classificado como
resolutamente moderno, e isso por bem mais de uma razão. A primeira delas foi a invenção do texto
sem autor. O autor, livre do peso da responsabilidade da emissão até então inevitável do juízo moral,
passa a poder descrever pecados sem ser envolvido pelo contexto do pecado. E isso é, em 1854,
absolutamente novo e a libertação que provoca é fascinante; análoga ao “Pai afasta de mim esse
cálice”, do Chico, ao final dos anos de ditatura.
O trabalho, e não mais a inspiração, é mecanismo de criação artística, a sua maneira. O
trabalho de criação impõe um certo rigor teórico. Pensar, antes de começar, que tipo de romance o
autor deseja. Impõe, ainda, um trabalho coerente de pesquisa para a construção do personagem. Outro
aspecto inovador de Flaubert : ele buscava impressionar o leitor pelo realismo. Logo, ele estava
atrelado a isso: teorizar antes de começar.
Quando se visita os arquivos Flaubert na biblioteca municipal de Rouen, bela cidade da
Normandia, exatamente nos arquivos encontramo-nos com a obra em etapas. Trago aqui algumas das
minhas notas, que têm interesse com o que falamos aqui.
O personagem central de Mme. Bovary de Gustave Flaubert é Emma, Emma Bovary.
Quem é Emma ?
Oprimida - vítima - bela
História Oficial: perdedor e ganhador.
A correspondência com Loise Colet nos informa sobre o que pensa Flaubert enquanto escreve.
Sabemos os seus anseios sobre o texto. Trancado na Normandia. Frustrado ao final, um livro que tinha
dado trabalho. As pesquisas de Flaubert deixaram marcas claras do percurço rumo ao real. Vejamos os
casos que ajudaram na construção de Emma.
a) Delphine Couturier - Delamare, que casou-se com um certo Dr. Eugene Delamare, ex-
aluno do Dr. Flaubert. Ele casou-se em segundas núpicias com Delphine. Ela o era infiel e teve uma
morte misteriosa aos 27 anos, o marido faleceu meses depois deixando uma filha orfã.
b) Mme. Schelsinger (Mme. Arnoud) e Loise Colet. Ambas com nomes fictícios são
personagens importantes de um outro romance de Flaubert, que só foi publicado após a sua morte:
Educação sentimental.
c) Mme Lafarge - Memórias Românticas. Ela envenenou o marido que a mantinha sob
cativeiro.
d) Mme Ludovica - Descoberta em 1947, em Rouen. Trata-se de um manuscrito escrito
pela doméstica de Mme. Louise Pradrier, jovem esposa de um escultor conhecido. Levou o marido ao
endividamento e depois separaram-se; ela continuou como antes. A vida como ela é. Só que escrita em
1854.
Vem à tona no romance o velho problema da traição feminina. Não mais como crítica
ao comportamento imoral da mulher/personagem. Esse tipo de situação já havia sido bastante
explorado pelo chamado Teatro de Boulevard. Lá buscava-se o riso, o riso provocado por um Buffon
(palhaço). Este era invariavelmente o marido/personagem que era traído. Tratavam-se de enredos
tendo basicamente 3 personagens : o marido, a mulher e o amante; onde a mulher e o amante acabam
por, de alguma forma, segredar-se a platéia. Ou seja, aquela velha situação, todo mundo sabe..., o
traído é sempre o último a saber...
Flaubert não estava nenhum pouco interessado no riso, situava-se sempre com clareza
do lado do serio ludere. Ele queria resgatar a alma de Emma, entender de uma vez por todas como era
que este tipo de coisa ou situação se repetia sem pausa no mundo real.
O marido :
Charles Bovary, médico e corno.
Os Amantes :
a) Leon : É o primeiro em ordem de aparição, some depois volta no final.
b) Rodolphe : É o segundo a chegar, mas o primeiro a conseguir...
c) Os personagens complementares : Homais e o Abade Bournisien.
A novidade da construção conceitual de Emma, pedaço por pedaço, levou a literatura ao
REALISMO. Ao invés de tocar o leitor pela emoção ou estimulá-lo ao devaneio, o estilo inaugurado
por Flaubert pretende tocar o leitor pela razão ou estimulá-lo ao conhecimento teórico real, sem as
complicações de quem teve que viver para saber.
Isso não é exatamente uma questão com solução simples, do tipo escolho uma e mando
a outra para o espaço. Haverá leitores para ambas as situações. Essa dicotomia é inovadora em 1854.
Ela não veio para resolver, veio para ampliar a escolha de estilo ou possibilidade, uma novidade que
ao que parece não existia antes de Flaubert publicar Mme. Bovary.
O texto, como o autor o concebe, não é um panfleto do tipo que incita a mulher a imitar
Emma. Apenas a despe na intimidade do texto com o leitor.
Memória é um agregado racional de sensações e experiências cruciais. O recém sabido,
no caso o texto literário, se junta à memória, dá experiência à teoria. E isso também é novo em 1854.
6. Conclusão
Bem, é tempo de concluir todo esse emaranhado de coisas. Claro, todo mundo já
entendeu que não tenho uma teoria acabada. Já disse isso eu mesmo e vocês todos obviamente
perceberam. Mas há elementos relevantes deste meu programa de pesquisa que justificam a sua
apresentação.
Penso ter mostrado de que ponto de vista epistemológico se fundamenta a minha
démarche: a epistemologia entendida como uma articulação entre a História e a Filosofia.
Em seguida mostrei as possibilidades de existência de uma disciplina filosófica como a
epistemologia do romance. Mostrei as relações dessa temática com a História da Filosofia Moderna,
hoje mais Kant, mas há outros filósofos igualmente interessantes, cujas idéias podem muito bem
dialogar com as questões relevantes para uma tal disciplina.
Justifiquei, em um contexto preciso, o do Iluminismo, a paridade entre arte e ciência.
Pelo menos de modo a satisfazer a problemática. Certo denotei fundamentos, mas ainda não possuo
critérios que me permitam uma ampla generalização da minha teoria. Mas isso para quem faz pesquisa
está longe de ser um desalento, é antes um estímulo.
Penso que mostrei possuir três estudos, mais ou menos estruturados, que apontam para
uma boa aplicabilidade ao estudo da construção do texto literário. É esse o objeto declarado, segundo
meu entendimento, da Epistemologia do romance.
Referências
M. M. Carrilho, Epistemologia : posições e críticas, Gulbenkian, Lisboa, 1991.
Rudolf Eisler : Kant lexicon, Gallimard, Paris, 1994.
Hermann Broch : Création Littéraire et Connaissance, Gallimard, Paris, 1966.
Maria Nemcova Banerjee : Terminal Paradox: The Novels of Milan Kundera. New York:
Grove Weidenfeld, 1990.
Kvetoslav Chvatik : Le Monde Romanesque de Milan Kundera. Gallimard, Paris, 1995
Milan Kundera : Testamentos traídos, Nova Fronteira, Rio, 1984.
A arte do Romance, Nova Fronteira, Rio, 1988.