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Franz Brentano e Henri Bergson: leituras cruzadas?

Luiz Fernando de O. Proença∗

RESUMO
O diálogo estabelecido entre a filosofia de H. Bergson e a fenomenologia de E. Husserl já é bem
conhecido na literatura filosófica. No entanto, uma possível relação entre Bergson e o professor
de Husserl, Franz Brentano, não é tão recorrente quanto ao que já foi escrito acerca de seu
aluno. Deste modo, nossa exposição tentará mostrar alguns aspectos da filosofia dos dois
autores a fim de aproximá-los, porém sem borrar ou omitir suas respectivas diferenças. Minha
apresentação, então, será dividida em três momentos: 1º a descrição do contexto filosófico-
científico da virada do sec. XIX ao XX, notadamente ao que diz respeito à Psicologia: o
positivismo científico e a crítica à noção de alma e a suposta impossibilidade da psicologia como
ciência que trata de fenômenos, as psico-físicas (Fechner) e psico-fisiologias (Wundt) nascentes
como decorrência do critério da filosofia positiva; 2º discussão do problema da constituição da
ciência psicológica: conceito, método e objeto, segundo nossos dois autores e segundo os
problemas específicos das obras a serem tomadas como suporte teórico: Psicologia de um
ponto de vista empírico, F.Brentano, e os dois primeiros ensaios de H. Bergson, Ensaio sobre os
dados imediatos da consciência e Matéria e Memória; e, 3º, destacaremos uma conseqüência
em particular relativa à noção que cada um dos dois autores concebe da natureza do
psicológico, a saber, o conceito de inconsciente, desta vez para revelar certa divergência entre
ambos.

PALAVRAS-CHAVE: Bergson, Brentano, Psicologia, Intencionalidade, Intuição.

A pergunta feita no título desta comunicação expressa já a dúvida que o autor tentará
compartilhar com vocês: é possível encontrar uma semelhança entres estes dois autores? Ou,
em que medida é possível ver uma influência de um no outro? Compará-los pode não ser
mesmo evidente; Bergson, pelo o que conheço de seus escritos, não cita Brentano e tão pouco
o inverso acontece. Se tão forte é, por exemplo, a relação entre Bergson e Willian James, com
conceitos quase equivalentes, como a durée ou o stream of consciousness, ou mesmo a partir
da teoria pragmática do conhecimento, o mesmo não ocorre exatamente, digamos, entre
Bergson e Brentano. Contudo, por mais que seja contraditório com o que acabo de dizer, minha


Mestrando em filosofia - UFSCar. E-mail: asvogais@hotmail.com.

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tarefa será de tentar identificar um certo procedimento metodológico e uma similaridade
conceitual que subsiste e que podem se aproximar a fim de explicitar minha tentativa.
Brentano e Bergson são dois filósofos contemporâneos do sec.XIX e que, se não
possuem os mesmos problemas, tecnicamente falando, ou seja, se suas obras não partilham
das mesmas questões, contudo, eles partilham de uma mesma problemática histórica, que é, a
saber, aquela da constituição da psicologia como uma ciência.
Em meados do sec.XIX a psicologia passa por um momento de crise, oriundo do “alto
grau” do idealismo especulativo hegeliano1 e da psicologia medieval, e que tem por tarefa
principal, agora, justificar seu ameaçado direito de existência frente às alegações da filosofia e
da psicologia como discurso meramente especulativo ou metafísico. Reagindo a isso, que a
filosofia toma como método e parâmetro de discurso aquele da ciência; que ficou conhecido
como Wissenchaftheorie (teoria da ciência, ou, mais modernamente, filosofia da ciência) na
Alemanha, notadamente sob o nome de Adolf Trendelenburg; mas que teve na França um
projeto similar com Auguste Comte. O ponto de vista do positivismo filosófico e cientifico que
é, o que nos interessa, já que o dialogo de Brentano e Bergson é com o positivismo de Comte,
tomava a psicologia como uma disciplina vaga de sentido. Quer dizer, o positivismo toma o
conceito de alma dos medievais como demasiado metafísico, como “algo” que fosse o
substrato de todas as representações, ademais de não nos não ser possível uma experiência
efetiva daquela.
Fora, então, umas das principais forças que alimentaram a evolução dessa ciência no
séc.XIX, a de afastar de especulações metafísicas, que até então dominavam o terreno da
psicologia – o objeto da psicologia não seria mais a “alma”, enquanto entidade metafísica,
como causa primeira, mas o espírito, no sentido de estados ou fenômenos psíquicos. Friedrich
Albert Lange, em seu livro Historia do Materialismo (1866) relata a aparente dependência da
psicologia à noção- cara para este período da historia - de alma: Antes de tudo, deve-se
mencionar que o conceito de psicologia só pode ser um conceito fixamente delimitado e
inteiramente claro para os escolásticos ou para os pedantes ignorantes. De fato, alguns abeis e

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Estudos neokantianos, PORTA, Mario A. G.,

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sagazes homens começaram suas supostas investigações científicas com uma secção ‘A
essência da alma’; mas isto é, pois, apenas uma repercussão da vazia escolástica metafísica, se
eles imaginavam que conseguiram ganhar dessa forma uma base segura para a investigação2.
Desta forma, conhecimento científico é conhecimento apenas em se tratando de
fenômenos, em contraposição ao das pretensas causas geradoras dos fenômenos
(conhecimento da substancia do mundo ou conhecimento de uma alma). É a pretensa dos
metafísicos que é atacada pelo espírito da filosofia positiva. Segundo Comte, explicar é mostrar
que as coisas que nos aparecem (os fenômenos) estão sujeitas a leis naturais invariáveis. Cito
Comte: “vemos, pelo que precede, que o caráter fundamental da filosofia positiva é tomar todos
os fenômenos como sujeitos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta precisa e cuja redução
ao menor numero possível constituem o objetivo de todos os nossos esforços, considerando
como absolutamente inacessível e vazia de sentido para nós a investigação das chamadas
causas, sejam primeiras, sejam finais (...) [estas] são questões que consideramos insolúveis, não
pertencendo ao domínio da filosofia positiva, e que abandonamos com razão à imaginação dos
teólogos ou à sutileza dos metafísicos3.
Frente a estas críticas, decorrentes do contexto histórico, à psicologia no sec.XIX só lhe
restou ser fundada a partir de outras ciências. Quer dizer, se a ciência positiva negou
cientificidade àquilo que se denominava “alma” ou psique, neste mesmo momento outras
ciências nasciam com enorme vigor, por exemplo, a biologia, a fisiologia e a química.
Assim é que, na Alemanha, por exemplo, Johann Friedrich Herbart toma lugar
privilegiado na historia da filosofia e da psicologia alemã. Conforme escreve A. Lange, “ (...) a
escola de Herbart constitui, para a Alemanha, um membro importante da época de transição,
embora aqui a ciência esteja somente começando de maneira árdua a se libertar da
metafísica4”. Posteriores a Herbart aparecem W. Wundt que funda a psico-fisiologia com sua
obra Psychologie physiologique e G. Fechner e a psico-física, com seu “Elementos de psicofísica”
– o qual foi também um dos pioneiros da psicologia experimental - . De maneira geral, buscava-
2
Histoire du materialisme, pg. 468.
3
Curso de Filosofia Positiva, lição I, pg.7-8.
4
Lange, 1866, pg.473.

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se através de observação e experimentos, tal como rezava o conceito de ciência do positivismo,
quantificar e relacionar o psíquico com o físico. Ou seja, observar no homem aquilo que se
observou na natureza com a ajuda das ciencias físico-matematica e fisico-quimicas; e,
consequentemente, lhe estender as leis obtidas.
Estas psicologias “empíricas”, que se apoiam no método da observação, imprimem uma
separação clara em relação àquela psicologia racional, que pretendia, pura e simplesmente
atraves da reflexao, isto é, sem recorrer à experiência, alcançar um conhecimento objetivo da
alma. E vários outros homens colaboraram com esse desenvolvimento de “diversas”,
poderiamos dizer, piscologias...
Mas, se na medida em que se constituiam diversas psicologias, nesta segunda metade
do sec.XIX, essa disciplina estava longe de conseguir unanimidade entre os pesquisadores,
tanto acerca da consituição fundamental de seu objeto como de seu método; pela razão, já
exemplificada anteriormente, do surgimento de diversos tipos de análise. E não será por
coincidência que a proposta de Brentano, na sua Psicologia do ponto de vista empírico, sera de
efetuar uma fundamentação da psicologia como ciência autônoma. Cito Bretano: prefácio da
primeira edição: “o que nos importa sobretudo é menos a quantidade e universalidade de teses
que a unidade da doutrina. Às psicologias nós procuraremos substituir uma psicologia5”.
Após uma discussão durante todo o primeiro capitulo da Psicologia, que gira em torno
da qualificação ou não da psicologia como ciência da alma, Brentano termina, para não cair em
desanvenças, por caracterizar a psicologia com ciência dos fenômenos psíquicos6. Esta recusa,
aliás, tem sua raiz na exigência cientifica moderna de se manter no positivo, isto é, naquilo que
nos é positivamente dado – nos fenômenos. Pois, se não temos experiencia de algo como uma
alma, não podemos dizer o mesmo em relação às nossas atividades psíquicas como o pensar, o
sentir e o querer. A psicologia é definida, então, como ciência dos fenomenos psiquicos (
Wissenschaft von den psychischen Phänomenen).

5
Psychologie, pg. 21-23.
6
Existe toda uma discussão sobre o uso do termo “alma”. Brentano mesmo não compartilha da tese que não há
substância. Quem procurou fundar uma psicologia “sem alma” foi Lange. Mas não será o caso de discuti-los agora.
O que importa para nós é a definição mesma como sendo ciência dos fenômenos psíquicos.

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Ora, que devemos entender por fenômeno? Esta expressão é frequentemente utilizada
em oposição àquilo que existe real e verdadeiramente. Em relação, por exemplo, aos objetos
dos sentidos ( cor, som, calor), afirma-se que são meros fenômenos, isto é, mesmo que
apontem para objetos que possuem existência real, não existem verdadeiramente fora da
sensação. Locke tentou provar isso através de um experimento: após esfriar uma mão e
esquentar a outra, ele mergulhou ambas em uma mesma bacia cheia de água, sentindo calor
em uma mão e frio n’outra. Exemplos como este justificam, em relação à nossa percepção
externa, o emprego do termo fenômeno do sentido acima. Cito Brentano: “não temos,
portanto, direito de acreditar que os objetos da chamada percepção externa verdadeiramente
existam do modo que nos aparecem. De fato, demonstra-se que não existem fora de nós. Eles
são, em contraposição ao que real e verdadeiramente é, mero fenômenos7”. Porém, não se
pode afirmar o mesmo em relação à experiência interna. Cito Brentano: “de sua existência nós
temos aquele mais claro conhecimento e a mais completa certeza, dados pela apreensão
imediata8”.
A terminologia usada por Brentano é semelhante à usada por Comte e não àquela usada
por Kant. Quer dizer, sinônimo de fenômeno são les faits, ou seja, os fatos. E não um fenomeno
(phainomenon) que se contrapõe à coisa-em-si (noumenon), a qual se resguardasse um
inacesivel, um oculto...
A totalidade do mundo fenomênico se divide, segundo Brentano, em fenomenos
psíquicos e fenomenos fisicos9. A expressão fenomeno psiquico é compreendida por Brentano
como processo, evento psiquico. E são objeto da psicologia os primeiros. “Todo fenomeno
psíquico, cito Brentano, é caracterizado por aquilo que os escolásticos da idade média
chamaram de inexistência intencional (ou ainda mental) de um objeto, e o que nós
chamaríamos, embora com expressões não totalmente inequívocas, a referência a um
conteúdo, a direção a um objeto (pelo qual não há que se entender uma realidade), ou a
objetividade imanente. Todo fenomeno psíquico contém em si algo como objeto, embora nem

7
Psychologie, pg. 15.
8
Idem, pg. 14.
9
Idem, livroII, cap.1,pg. 92.

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todos do mesmo modo. Na representação, algo é representado; no juízo, algo é afirmado ou
negado; no amor, amado; no ódio, odiado; no desejo, desejado, e assim por diante. Essa
inexistência intencional é característica exclusivamente dos fenômenos psíquicos. Nenhum
fenômeno físico mostra algo semelhante. E, consequentemente, nós podemos definir os
fenômenos psíquicos, dizendo que são aqueles fenômenos que contém intencionalmente em si
um objeto”. A intencionalidade seria, assim, uma caracteristica exclusiva dos fenômenos
psíquicos, distinguindo-os dos fenômenos físicos. Esta inexistência intencional, esclarece
Brentano, já aparecia em Aristóteles, no De Anima, assim como nos escolásticos, Sto. Anselmo,
Agostinho e também Tomás de Aquino. O prefixo ‘in’ designa um locativo, isto é, um lugar de
existência – indicando a existência do objeto no espírito. Por exemplo, quando eu vejo a cor
azul. O ato de ver o azul é o fenômeno psíquico, equanto que o azul ser visto, que é o conteúdo
do ato de ver é o fenomeno fisico, pertencente à percepção externa. No ato de ver o azul não
há a cor azul, há apenas o ato intencional, a “direção a um objeto”. Os fenômenos fisicos não
apresentam de nenhuma forma a possibilidade de uma relação de direcionalidade intrínseca.
Um fenomeno fisico pode relacionar-se com outro fenômeno fisico. As leis da natureza, alias,
nada mais fazem que descrever esse tipo de relação [nota: aqui não se pode pensar
simplesmente em fenômeno fisico tal como o descreve o senso comum: como tudo aquilo que
se passa em nossa apreensão sensível. Segundo Brentano, se eu me ponho a imaginar um azul,
então o ato de imaginar este azul é o fenomeno psiquico, enquanto que o correlato deste ato
que é a imagem do azul é um fenomeno fisico. Fenômeno psiquico é tudo aquilo, por tanto,
que se dá num ato psíquico mas que, por sua vez, não é o ato mesmo10].
Resumindo o que até agora vimos, a Psicologia do ponto de vista empírico, de Franz C.
Brentano, tem como problema fundamental provar a possibilidade de tal disciplina como
ciência empírica e, ainda assim, autonoma. Eu passei por alto, mas entorno à questão do
método, que é a percepção interna, houve ainda muita discussão. Para Comte a observação
interna, como método psicológico, é, cito, “radicalmente nulo em princípio11”. Por isso a

10
Estas relações entre ato e conteúdo do ato serão desdobradas energicamente pelos discipulos de Bretano, mas
que para o nosso inuito nesta comunicação não possui consequências relevantes.
11
Curso de Filo. Positiva, pg. 14, Ed.Pensadores.

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preferência por percepção interna, que denota não simplesmente a obsevação interior de mim
por mim mesmo, mas aquilo que é evidente em todo ato psíquico, a saber, o fato de ser
intencional. Temos, então, o método, a percepção interna, e os fenômenos psíquicos como seu
objeto.
Bem, era até este ponto o qual eu gostaria de chegar, pressupondo ter sido claro o
suficiente, sobre os primeiros passos da argumentação brentaniana e que será suficiente, me
parece, para o dialogo com Bergson.
Eu poderia por começar a admitir duas coisas: primeiro, que minha exposição é mais um
leitura brentaniana de Bergson que ao contrário; e, segundo, que uma relação mais
contundente talvez entre os dois seria através dos Cours dados por Bergson no liceu Clermont-
Ferrand, notadamente no Cours I. Já que, de acordo com Philipe Soulez, é possível encontrar
uma série de princípios em comum12. Mas, o fato funcionará, neste caso, como simples
menção. Ademais disso, há o fato, curioso, de os dois começarem a carreira acadêmica com
comentários sobre Aristóteles. Ponto decisivo, aliás, para ambos os autores. Não só meramente
curioso, este fato indica já um ponto-de-vista filosófico. Na Alemanha e também na França,
como combate ao idealismo mencionado anteriormente, também houve um volta à leitura de
Aristóteles. Propagadas pelas figuras de Adolf Trendelenburg, na alemanha, professor de
Brentano; e pela figura de Félix Ravaisson, na frança, também um aristotélico, com quem
Bergson também teve aulas. Seja de modo de critica negativa ou positiva, os dois autores
partiram de uma leitura de Aristóteles. [Brentano faz de sua filosofia uma reflexão sobre
Aristóteles13, e Bergson, todo nós sabemos, tem já na sua tese latina Quid Aristoteles de loco
senserit um início de sua reflexão sobre o conceito de espaço, mais especificamente sobre a
particula on que, em grego, significa lugar].
O que é possível de se ver também se caracteriza pela constituição de um método da
psicologia independente do método das ciências naturais (o modelo fisico-matemático de
investigação), o que leva por inagurar um novo âmbito de pesquisa filosofica. Isso é o que nós
encontramos, de maneira muito marcante, no primeiro Ensaio de Bergson. Se, apesar de que

12
Bergson, Philippe Soulez e Frédéric Worms, nota 84, pg. 335.
13
Estudos neokantianos, pg.20,PORTA, Mario A. G.

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Bergson e Brentano tenham problemas distintos, os dois trilham o mesmo caminho –
guardadas as devidas proporções, evidentemente - , por assim dizer, para uma tentativa de
resolução. Se o problema é o da liberdade contra o determinismo é pelo caminho da descrição
psicológica que ele será primeiramente posto em evidência – eu me refiro ao percurso dos 3
capítulos do EDIC, “da intensidade dos estados de consiência”, “da multiplicidade...” e da
“organização...”; e se, por outro lado, o problema é da constituição de uma psicologia
autônoma, é também sob o método da descrição do ato psicologico que se efetuará um
esclarecimento e limite do método e do objeto da psicologia.
Ainda que Bergson tenha como estofo em toda os seus escritos, basicamente, uma
tentativa de inversão das categorias clássicas da filosofia, privilegiando, por exemplo, a idéia de
mudança e multiplicidade, e assim tendo como base no EDIC uma crítica à formalização da
consciência por meio das categorias de espaço, e, deste modo, fazendo uma “análise” que
distingue aquilo que é artificial do que ontológico na consciência, poderíamos dizer, ou seja,
“sua representação simbólica”, cito Bergson, e “o eu real, o eu concreto14”, Brentano,
entretanto, não parte da constatação da temporalidade do psíquico. Percepção interna,
fenômeno físico e fenômeno psíquico são momentos de uma única estrutura do ato
psicológico; que é estabelecida por uma suspensão do tempo, ou mesmo por sua exclusão.
Poderíamos dizer que se trata de descrever a consciência em um “instante”. Por mais que a
durée bergsoniana seja essencialmente temporal, num sentido até um tanto peculiar, já que é
uma temporalidade diferente da temporalidade matemática, o resgate, melhor dizendo, do
conceito de intencionalidade por Brentano supõe como horizonte da consciência não aquele
dos mixtos impuros bergsonianos mas a distinção cerrada entre fenômenos.
A última questão que eu poderia colar se dirige agora ao segundo livro de Bergson, mais
precisamente no bloco central da obra; onde é esboçado, pelo menos de uma maneira geral,
uma teoria geral de psicologia – com o célebre esquema do cone e a tese, também celébre, que
diz haver “tons diferentes da vida mental15”.Por mais que saibamos que tais capítulos são parte
de uma argumentação que faz o objeto do livro, isto é, o problema da relação do espírito ao

14
EDIC, pg.104, ed. puf, 2011.
15
EDIC, pg.7,Ed.puf, 2011

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corpo, o que tentarei esboçar é, mais bem, uma convergência entre dois pares de conceitos. A
saber, os conceitos de memoria-habito/memória-pura e fenômeno psíquico/ fenômeno físico.
A distinção entre os dois tipos de memória é o objeto próprio do segundo capítulo; e que
começa pelo clássico exemplo do estudo de uma lição.
Estes dois capítulos centrais são, literalmente falando, fundamentais na media em que
supõe uma crítica da localização da memória no cérebro, limita o papel do corpo, protagonista
do primeiro capítulo, e anuncia a abertura do âmbito psicológico quando faz a distinção entre
essas duas memórias. A primeira, ligada estritamente às necessidades da ação, se reenvindica
como função propriamente psicológica; e a segunda, como “souvenirs purs”, lembrança pura,
que faz parte do “inconsciente psicológico”, e que tem por caracteristicas principal sua ausência
às exigencias de “atenção à vida” e, consequentemente, de toda conservação corporal. E não só
Bergson as distingue radicalmente, como faz todo o esforço de as unificar ou conciliar com sua
teoria geral da “vida do espírito”, segundo o ilustre modelo de “planos de consciência”.
Mas, o que poderíamos tirar, deste estudo de Bergson, de semelhante com a “psicologia
do ato”, Aktpsychologie, de Brentano ? Nada mais que a distinção entre dois tipos de atos de
consciência, que são muito bem distiguidas com o consagrado exemplo do aprendizado de uma
lição. As duas formas da memória são, na realidade, partes de um mesmo fenômeno. Levando
até seu limite a analise de aprendizagem de uma lição, cito Bergson, “se poderia representar
duas memórias teóricamente independente16”. É por um ato de descrição do estudo de uma
lição que se põe valido esta distinção conceitual, que contém uma diferença “ontológica”,
poderíamos dizer: cito Bergson “a consciência nos revela entre estes dois genêros de recordo
uma diferença profunda, uma diferença de natureza. O recordo desta leitura determinada é
uma representação (g.m.), e apenas isso (...). Pelo contrário, [no caso] do recordo da lição
aprendida já não se trata pois de uma representação, se trata de uma ação17”. Ora, o mesmo
critério de representação que define a “memória por excelência18” é, segundo Brentano, o

16
Idem, pg. 86.
17
Idem, pg.85.
18
Idem, pg. 89.

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mesmo para os fenômenos psíquicos: cito Brentano “a representação não constitui somente o
fundamento de um juízo, mas também de todo ato psicológico19”.
Se, por um lado, o critério conceitual é difrente para a distinção de dois tipo de atos
psicológicos, já que, para Bergson, toda sua teoria do conhecimento tem por base um
pragmatismo organicista, por outro lado, os dois, Bergson e Brentano, efetuam uma descrição
em comum: a memória-hábito, que pode ser limitada baixo mecanismos motores, e se reduz a
funções cerebrais, segundo Bergson, tem o mesmo estatuto que o fenomeno físico na
psicologia de Brentano. Ou seja, não se funda em representação e é parte de um todo mais
amplo e complexo. Da mesma maneira que um ato psicologico pode ter como conteúdo um
segundo ato que não um da percepção externa, o sujeito psicológico do miolo de Matéria e
Memória pode refletir sobre suas proprias memórias, mas para isso “é preciso abstrair-se de
toda ação presente, é preciso saber apreciar o inútil, é preciso querer sonhar20”. Ou seja, é
preciso se abster do critério da ação. [ A título de conclusão] Por demais poético que possa
parecer esta passagem, ela ilustra a distinção de direito e de fato que se pode fazer no âmbito
do psicológico, seja pelo critério da ação ou da intencionalidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Psychologie du point de vue empirique, Franz C. Brentano, trad. Maurice de Gandillac, 1944.
Matière et Mémoire, Henri Bergson, ed. PUF, 2010.
Essai sur les donées immédiates de la conscience, Henri Bergson, ed. PUF, 2010.
Curso de Filosofia Positiva, Auguste Comte, trad. José A. Giannotti, ed. Abril, 1983.
Histoire du Materialisme, Alfred F. Lange, 1940
Bergson, Philippe Soulez e Frédéric Worms, PUF,2002
Introduction à Matière et Mémoire de Bergson, Fréderic Worms, PUF, 1997
Estudos Neokantianos, Mario A. G. Porta, ed. Loyola, 2011

19
Psicologie, Brentano, pg. 94.
20
Matière et Mémoire, pg. 87.

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