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Ernst Cassirer
Partíamos da tese de que enquanto não nos decidirmos por abandonar o campo da
simples lógica e da teoria da ciência, resultarão pouco satisfatórias e insuficientes, não
importa quantas tentativas forem feitas para se estabelecer a diferença específica entre a
“ciência da natureza” e a “ciência da cultura”.
Para poder marcar com toda nitidez a diferença investigada, temos de remontar da
estrutura do conceito à estrutura da percepção. A percepção contém já, em germe, como
temos tentado demonstrar, aquela mesma antítese que se manifesta de forma explícita
nos dois métodos opostos empregados pela ciência da natureza e a ciência da cultura.
Nenhuma direção, das poucas que disputam o campo na teoria do conhecimento
costuma, hoje, põe a dúvida de que todos os conceitos, enquanto aspirem transmitir-nos
qualquer classe de conhecimento da realidade, tem necessariamente que “realizar-se”,
afinal, na intuição.
E esta tese não se aplica somente para cada conceito em particular; se aplica
também para os diversos tipos de conceitos com os quais nos encontramos no mundo da
ciência. Se estes tipos pretendem ser algo mais do que simples ficções, se têm de
significar algo mais do que simples nomes convencionais cunhados por nós para fins de
classificação, necessariamente têm que possuir um fundamentum in re. Temos que poder
segui-los até suas últimas fontes de conhecimento; temos que poder demonstrar que a
diferença existente entre eles repousa sobre uma dupla direção originária da intuição e da
percepção.
Agora, depois de haver assentado um ponto fixo de apoio e referência, devemos
formular novamente o problema. Devemos retornar ao campo da lógica e indagar o
caráter lógico dos conceitos culturais. Qualquer consideração, por mais superficial que
seja, ensina-nos, com efeito, que eles possuem esse caráter lógico; que todos eles, por
muito diferentes que sejam, por mais que refiram-se a objetos distintos, são unidos entre
si por algum “nexo espiritual”. Contudo, que classe de nexo é esta, e a que família
pertencem estes conceitos, que finalidade existe entre eles e os conceitos de outra
classe?
Três respostas substancialmente distintas têm sido dadas, até agora, a esta
pergunta. Claramente, refletem nelas, a luta e o conflito entre as diversas tendências que
seguem lutando pela supremacia na teoria moderna da ciência. A ciência da natureza, a
história e a psicologia disputam exasperadamente o terreno. Cada uma destas ciências
aparecem na palestra com uma pretensão justificada que encontra sempre eco.
Isto precisamente indica que o problema não é do tipo de problemas que se
resolvem mediante uma simples decisão dogmática. Cada uma destas três tendências
pode retrair-se sobre uma posição cercada por seguras defesas e da qual nenhum
argumento do adversário é capaz de desalojá-la. E é que os três campos, do físico, do
psíquico e do histórico, pertencem necessariamente ao conceito de “objeto cultural”. São
propriamente os três fatores que integram esse conceito.
Um “objeto cultural” requer sempre, com efeito, um substrato físico-material. A
pintura está ligada à tela, a estátua está entalhada no mármore, o documento histórico se
encontra materializado pelos signos escritos estampados sobre o pergaminho e o papel.
Somente assim, incorporada nos documentos e monumentos desta classe, apresenta-se
diante de nós, uma cultura pretérita.
Contudo, tudo isto requer, ao mesmo tempo, para ser compreendido ou lido
corretamente, uma dupla interpretação. É necessário que o situemos historicamente no
período que corresponde, que descubramos a sua origem e a sua antiguidade, e é
necessário também que saibamos interpretá-lo como expressão de determinadas atitudes
fundamentais da alma as quais encontram algum eco em nossa própria sensibilidade.
Assim, pois, conceitos físicos, históricos e psicológicos concorrem sempre na descrição
de um objeto cultural.
Mas o problema que nesta descrição que venha a acontecer, não consiste
precisamente no conteúdo destes conceitos mesmos, senão na síntese por meio da qual
os combinamos idealmente, para agrupá-los em um novo todo, em um todo sui generis.
Qualquer tipo de consideração que não chegue a explicar satisfatoriamente esta síntese
resultará inadequada ao seu objeto. Avançando até uma determinada fase do conceito, o
que importa não são os elementos que nele contém, senão a maneira peculiar como
esses elementos aparecem agrupados e unificados. Por isso, sendo indiscutível que em
todo objeto cultural se revela um lado físico, um lado psicológico e um lado histórico, ele
não quer dizer que este objeto não se oculte a nós e, sua específica e peculiar
significação quando isolamos estes elementos em vez de abordá-los em sua recíproca
penetração espiritual. O aspecto físico, o psicológico e o histórico são necessários,
enquanto tais e cada um per si; mas nenhum deles pode oferecer-nos a imagem total a
qual sempre aspiramos nas ciências da cultura.
Tropeçamos, sem dúvida, numa dificuldade que mantém íntima relação com o
estado atual da lógica e com o seu desenvolvimento histórico. Desde Platão, possuímos
uma lógica da matemática, e desde Aristóteles uma lógica da biologia. Eles encontraram
aqui lugar seguro e fixo para os conceitos matemáticos de relação e os conceitos
biológicos de gênero e espécie. Descartes, Leibniz e Kant construíram a ciência
matemática da natureza e, no século XIX, por último, surgiram as primeiras tentativas de
uma “lógica da história”. No entanto, se olharmos os conceitos fundamentais da ciência da
linguagem, da ciência da arte e da ciência da religião, veremos que carecem, todavia,
certo modo, de lar e de pátria: estes conceitos não encontram seu “assento natural” nos
sistemas de lógica.
Ao invés de demonstrar isto por meio de digressões abstratas, preferimos ilustrá-lo
a luz de exemplos concretos, tomados do material manuseado diretamente em seu
trabalho pelas ciências da cultura. O trabalho de investigação como tal tem seguido
sempre, nesse ponto, seus próprios caminhos; não se tem prestado a deitar na cama de
Procusto de determinadas distinções conceituais, no qual a lógica e a teoria do
conhecimento se empenham, não raro, em obrigá-lo. Por isso, podemos inferir desse
trabalho direto, melhor do que qualquer outra fonte, o verdadeiro estado da questão.
Cada ciência da cultura cria determinados conceitos de forma e de estilo e os
emprega para alcançar uma visão sistemática de conjunto, para estabelecer uma
classificação e uma distinção dos fenômenos do qual trata. Estes conceitos de forma, os
quais nos referimos, não são “monotéticos” nem são tampouco puramente “idiográficos”.
Não são monotéticos, pois não pretendem estabelecer tais ou quais leis gerais podem
derivar, dedutivamente, os fenômenos estudados. Mas tampouco podem ser reduzidos a
uma consideração histórica.
Ilustraremos isto, primeiramente, fixando-nos na estrutura da ciência da linguagem.
Não há dúvida de que, sempre que for possível, devemos estudar a linguagem em seu
desenvolvimento, e isto permite-nos chegar as suas mais ricas e fecundas conclusões.
Mas se queremos abarcar, em sua totalidade, investigar e explicar, a matéria da qual
trata-se aqui, quer dizer, a totalidade dos fenômenos de linguagem, temos que seguir um
caminho diferente. Temos que partir do que Wilhelm Humboldt chama a “forma interior da
linguagem”, e tentar entrar na estrutura desta forma interior. Este problema afeta
exclusivamente a estrutura da linguagem, distingue-se claramente dos problemas de
ordem histórica e pode, e deve, ser tratado independente destes. Podemos saber o que
um idioma é quanto a sua estrutura sem necessidade de conhecer nada ou conhecendo
muito pouco acerca de seu desenvolvimento histórico. Assim, por exemplo, Humboldt foi o
primeiro a estabelecer o conceito das “línguas polissintéticas”, oferecendo-nos com sua
descrição um brilhante exemplo de sua análise linguística e formal. E, entretanto, não
dispunha de nenhuma classe de dados acerca do nascimento e do desenvolvimento
histórico destas línguas. E algo parecido com isto aonde quer que se queira estudar as
línguas dos povos sem escrita. Em sua Gramática comparada das línguas batúes, Carl
Meinhof investigou as características particulares daqueles idiomas que não dividem os
nomes substantivos, fixando-se naqueles que geralmente chama-se “gênero natural” - em
masculinos, femininos e neutros -, senão junto a outros critérios de classificação. 1 É
evidente que tampouco neste tipo de análise intervém, e nem podem intervir, pontos de
vista históricos sem que a ausência deles prejudique no mínimo à segurança do nosso
conhecimento no tocante à estrutura da linguagem.
Passemos agora da ciência da linguagem a outro dos grandes campos da
ciência da cultura: a ciência da arte. Poderia, à primeira vista, parecer uma tentativa muito
arriscada de ter um ponto entre ambos os campos, tão distantes entre si, em aparência,
pelos objetos sobre os quais tratam e pelos métodos empregados. Ambas as ciências,
entretanto, por mais diferentes que sejam, manejam conceitos afins entre si quanto a sua
forma geral e que pertencem, certo modo, a mesma “família” lógica. Tampouco a história
da arte poderia avançar um passo que fosse se pretendesse circunscrever-se
exclusivamente às considerações de ordem histórica, à descrição do que tem sido e do
processo de sua gestação e desenvolvimento. Dela pode-se dizer também aquilo que
dizia Platão, de que um simples tornar-se (devenir) não é capaz de oferecer nenhum
conhecimento científico. Para poder penetrar no devenir, para poder abarcá-lo com o
olhar e dominá-lo, antes tem que assegurar determinados pontos de apoio e de apoio no
“ser”. O conhecimento histórico refere-se sempre a um determinado conhecimento da
“forma” e da “essência” e baseia-se nele. Esta correlação e interdependência dos dois
fatores manifesta-se com toda clareza, a cada passo, tão logo as investigações no campo
da ciência da arte se vê obrigada a refletir acerca de seu próprio método.
Claramente vemos isto expresso em uma obra como os Conceitos fundamentais
da história da arte, de Heinrich Wölfflin. Este autor se esforça em deixar de lado toda a
especulação; acusa aos problemas e se expressa como um puro empirista. Entretanto,
insiste expressamente que os fatos como tais permaneçam necessariamente mudos
acaso de antemão não afirmamos certos pontos de vista conceituais de acordo com os
quais devem ser interpretados e ordenados. É esta, precisamente, a lacuna que seu livro
se propõe a fechar. “A investigação dos conceitos – declara desde o prólogo da obra –
não tem caminhado no mesmo passo que a investigação dos fatos”. A obra de Wölfflin
não trata de oferecer-nos, propriamente, uma história da arte; vem a ser, diríamos, algo
como os “Prolegômenos a toda futura história da arte” que pretenda se apresentar como
ciência. “Não tratamos – diz o autor explicitamente em uma passagem de sua obra – de
7 Ibid., p. 237.
8 Ibid., p. V.
9 Ibid., p. 240.
10 Ibid., p. 237.
concretas sobre as quais repousam as ciências da cultura. Existe uma diferença muito
substancial entre os conceitos de estilo e os conceitos de valor. Os conceitos de estilo
mostram o “ser” puro, nunca o “dever ser”. Se bem que esse ser não trata das coisas
físicas mas das “formas”. Quando falamos da “forma” de uma língua ou de uma
determinada forma artística, isto nada tem a ver, de per si, com uma relação de valor.
Pode ocorrer que a fixação de tais formas tome o emparelhamento de determinados
juízos de valor mas estes nunca têm uma fixação constitutiva para a captação da forma
enquanto tal, para seu sentido e seu alcance.
Assim, por exemplo, Humboldt, em suas investigações sobre a estrutura da
linguagem humana, acredita poder estabelecer uma certa “hierarquia” entre as distintas
formas linguísticas. Coloca, no início, as línguas que conhecem o mecanismo da
declinação e a conjugação, e esforça-se por demonstrar que este método é, no fundo, a
“única forma regular” que não alcançou plenamente, em seu desenvolvimento, as línguas
isoladas, aglutinantes ou polissintéticas. Distingue, portanto, duas classes de línguas: as
que apontam esta “forma regular” e as que, em um ou outro sentido, diferem dela 11.
Mas é óbvio que Humboldt só pode chegar a estabelecer esta hierarquia das
línguas depois de ter fixado, com sujeição à determinados princípios, as diferenças de
estrutura existentes entre elas, para o qual não precisava se ater, no mínimo,
evidentemente, a nenhum ponto de vista valorativo.
Pois bem, exatamente o mesmo pode ser dito dos conceitos de estilo na ciência da
arte. Baseado em normas estéticas das quais acreditamos estar seguros, podemos
perfeitamente dar preferência a um estilo sobre outro. Mas, o “quê” de cada estilo, quer
dizer, sua própria peculiaridade, seu caráter específico, jamais o descobriremos à luz
destes conceitos normativos senão recorrendo a outros critérios. Quando Wölfflin fala do
“clássico” e do “barroco”, ambos os conceitos têm para ele um significado puramente
descritivo, e não envolvem um juízo estético, normativo ou de qualidade. O primeiro dos
dois conceitos não traz consigo, de modo algum, o sentido adjetivo do melhor ou do
exemplar. Do mesmo modo que o fato de que, segundo a história da arte nos ensina, o
estilo pictórico siga geralmente o linear e se desenvolva quase sempre a base dele, não
acarreta de modo algum a afirmação de que esta trajetória represente um “progresso”,
uma superação. Wölfflin vê em ambas as formas estilísticas, simplesmente, duas
soluções distintas de um determinado problema, ambas igualmente legítimas, do ponto de
vista estético. Dentro de cada um dos dois estilos, podemos discernir o perfeito do
imperfeito, o insignificante ou o medíocre do excelente. Mas seria falso aplicar estas
diferenças aos dois estilos, em bloco, considerando um como superior e o outro como
inferior. “A maneira pictórica é a posterior – diz Wölfflin – e não poderíamos concebê-la
rigorosamente se a primeira, mas isto não quer dizer que ela seja absolutamente superior.
O estilo linear sabe desenvolver valores que o estilo pictórico não possui nem pode
possuir. São duas concepções de mundo orientadas distintamente quanto a seu gosto e
interesse no mundo, mas cada uma das quais pode, entretanto, traçar uma imagem
perfeita do visível... De cada uma destas duas orientações distintas do interesse pelo
mundo surge uma beleza distinta”12.
Até agora temos tentado expor as razões que nos autorizam e nos obrigam a
atribuir aos conceitos culturais um lugar à parte, tanto no que diz respeito aos conceitos
históricos como aos axiológicos ou de valor, distinguindo-os de uns e outros quanto a sua
estrutura lógica. Mas permanece outro problema, até agora sem ser resolvido, a saber:
Esta autonomia que postulamos para os conceitos de forma e de estilo pode, também, se
manter frente a ciência psicológica? Ou, dito em outros termos: não reduz-se a totalidade
da cultura – o desenvolvimento da linguagem, da arte, da religião – a um conjunto de
processos anímico-espirituais, todos os quais caem, eo ipso, sob a jurisdição da
11 Cf. Humboldt, “Einleitung zum Kawi-Werk”, em Werke (Akad. Ausgabe), t. VII, 1, p. 252 ss.
12 Ibid., pp. 20, 31.
psicologia? Subsiste, neste ponto, alguma diferença; pode envolver, com respeito a isto,
alguma reserva, alguma ressalva?
Com efeito, sempre tem tido proeminentes pesquisadores que têm pensado assim,
chegando, consequentemente, à conclusão de que não tem que se preocupar em buscar
uma “ciência de princípios” como ponto de sustentação da ciência da cultura, ainda que
essa seja, precisamente, a missão da psicologia.
Hermann Paul tem defendido esta tese com grande clareza e força no campo da
linguística. Trata-se, bem entendido, de alguém que é, acima de tudo, um historiador da
linguagem, de quem, portanto, não pode suspeitar que se trate, de modo algum, os
direitos do ponto de vista histórico de investigação. Mas isto não é obstáculo para que se
insista, mais uma vez, que sem se colocar e resolver os problemas de princípio, sem
estabelecer previamente as condições do desenvolvimento histórico, em geral, seria
impossível chegar a algum resultado histórico concreto. Por isso, a história da linguagem,
como a história de qualquer outra forma de cultura, tem que sempre flanquear, diz Paul,
por uma ciência que “se ocupe das condições gerais de vida dos objetos que
desenvolvem historicamente, que investigue, em sua natureza e em sua ação, os fatores
sempre presente em todas as mudanças. E estes fatores constantes só podem ser
estudados por uma ciência: a psicologia. Ao dizer isto, Paul refere-se sempre à psicologia
individual, e não, como Steinthal e Lazarus, e mais tarde Wundt, à “psicologia dos Povos”.
É, portanto, a psicologia individual aquele que se atribui a missão de resolver os
problemas de princípio que coloca a teoria da linguagem: “tudo gira em torno do problema
de derivar o desenvolvimento da linguagem das ações e reações que os indivíduos
exercem uns sobre os outros”.
Quando Hermann Paul formulava esta tese, nas primeiras páginas de seus
Princípios da história da linguagem, tinha alcançado seu ponto culminante, na filosofia e
na teoria geral da ciência, a disputa encoberta entre o método “psicológico” e o método
“transcendental”. De um lado estavam as escolas neokantianas, com seu postulado de
que a primordial e mais importante missão de toda investigação crítica do conhecimento
era distinguir entre o quid juris e o quid facti13. A competência da psicologia, enquanto
ciência empírica, não ia além, diziam essas escolas, das questões de fato, das que jamais
e de modo algum podiam derivar normas para a solução dos problemas que afetavam a
validez.
Esta divisão entre o 'logicismo” e o “psicologicismo”, que durante muito tempo deu
sua marca a toda filosofia, tem passado, de certo modo, para segundo plano. Depois de
longo e difícil trabalho de uma e de outra parte, recaiu, por fim uma decisão a qual em
nada ataca seriamente o estado atual das investigações. A lógica – tal era a conclusão a
que chegavam os psicólogos extremos – é a teoria das formas e as leis do pensar. E não
pode deixar de ver nela uma disciplina psicológica, enquanto que o processo do pensar e
do conhecer só podem ter por cenário a psiqué 14.
Husserl tem se encarregado de desnudar, em seu Investigações lógicas, o
13 Nota de Tradução: Pode-se, a respeito da diferença entre os termos latinos quid juris e quid facti,
encontrar a diferenciação feita por Kant no segundo capítulo da Analítica transcendental da Crítica da
Razão Pura. “Quando falam de faculdades (Befugnisse) e usurpações num processo jurídico os juristas
distinguem a questão sobre o que é de direito (quid iuris) da que concerne aos fatos (quid facti), e na
medida em que exigem provas de ambos os pontos, chamam dedução a primeira prova, que deve
demonstrar a faculdade ou também o direito. Sem réplica de ninguém, servimo-nos de uma porção de
conceitos empíricos e, mesmo sem dedução, consideramo-nos autorizados a lhes adjudicar um sentido
e uma pretensa significação, pois temos sempre à mão a experiência para provar a sua realidade
objetiva. Há também, entretanto, conceitos usurpados, quiçá tais como felicidade, destino, que circulam,
com indulgência quase geral, mas às vezes provocam a questão: quid iuris. Com efeito, devido à sua
dedução cai-se então em não pequeno embaraço, não se podendo alegar nenhum claro fundamento de
direito, nem a partir da experiência nem a partir da razão, pela qual se tornasse evidente a faculdade do
seu uso” KANT, Immanuel Crítica da razão Pura São Paulo: Nova cultural, 1999, pp. 114.
14 Cf. Theodor Lipps, Grunzüge der Logik, Hamburgo e Leipzig, 1893, pp. 1 ss.
paralogismo escondido nesta conclusão, perseguindo-o, por assim dizer, até os últimos
rincões. Registrou a diferença radical e indelével que existe entre a forma, como “unidade
ideal de significação” e as vivências psíquicas, os “atos” de considerar como verdadeiro,
de crer, de julgar, que se referem a essas unidades de significação e as têm por objeto 15.
Com ele, estava fora, o perigo de que a teoria formal da lógica e a da matemática pura
fossem vistas reduzidas a simples determinações psicológicas.
É certo que nos domínios das ciências da cultura, pelo menos à primeira vista, o
traçado de tal linha divisória parece muito mais difícil. Cabe, com efeito, perguntar: existe,
na realidade, uma determinada “consistência” da linguagem, da arte, do mito, da religião,
ou reduz-se tudo o que conhecemos por esses nomes a uma série de atos soltos, nos
quais os homens falam, criam e gozam formas artísticas, exteriorizam sua fé mítica ou
suas crenças religiosas? Existe ou permanece, como objeto de investigação, algo que
não pode ser totalmente incluído dentro do círculo destes atos?
Basta que nos fixemos no estado atual do problema para darmo-nos conta de que,
com efeito, é assim. Também neste ponto tem-se lançado luz. A psicologia da linguagem,
a psicologia da arte e a psicologia da religião têm-se desenvolvido progressivamente
durante anos. Mas não abrigam a pretensão de deslocar ou condenar ao ostracismo a
teoria da linguagem, a teoria da arte ou a teoria da religião. Também nisto tem se definido
cada vez mais claramente o campo de uma pura “teoria das formas”, que maneja
conceitos distintos dos da psicologia empírica e deve ser construído por outros
procedimentos.
Temos um exemplo dele, principalmente, na “teoria da linguagem” de Karl Bühler.
Algo tão importante quanto a abordagem feita por este autor dos problemas da linguagem
como psicólogo e sem voltar jamais as costas para este ponto de vista no curso de sua
investigação. A qual não é obstáculo para que compreenda e manifeste que a “essência”
da linguagem não pode ser cifrada em investigações de tipo histórico nem em indagações
de caráter psicológico, exclusivamente. Já no prólogo a sua obra insiste em interrogar a
linguagem perguntando-lhe “que és?”, e não “de onde vens?”. É, como se vê, a antiga
pergunta filosófica do τί έστι. Conhece-se a “semantologia”, a partir do ponto de vista
metodológico, sua plena substantividade. É daqui que Bühler advoga em prol da tese da
idealidade do objeto “linguagem”, e o faz precisamente como psicólogo e partindo de suas
análises psicológicas: “As formações linguísticas – diz-nos – são, platonicamente falando,
objetos ideais, ou, falando logicamente, classes de classes, como os números ou os
objetos de uma formalização superior do pensamento científico” 16. Isto explica, ao mesmo
tempo, que “tem que considerar-se como inaceitável e submeter-se à revisão a
subordinação total da linguística à série das “ciências idiográficas””. Segundo Bühler, as
investigações em torno da linguagem precisam de pátria sem esforçarmo-nos em “reduzi-
las” a um dos dois campos: o do estudo dos fatos históricos ou o campo da física e a
psicologia17.
A partir deste ponto de vista no qual se situa Bühler, os litígios fronteiriços entre a
filosofia e a psicologia da linguagem não têm qualquer razão de ser. E é certo que, hoje,
as coisas têm avançado tanto que quase podemos considerar antiquada e superada esta
classe de discussões. Os diferentes problemas têm se definido e deslindado clara e
nitidamente. De uma parte, é evidente que jamais poderia criar-se uma teoria da
linguagem sem se apoiar continuamente nos resultados da história e na psicologia da
linguagem. Que dúvida cabe ser colocada de que semelhante teoria não pode erigir-se no
vazio, pela via da abstração e da especulação? Mas, de outra parte, tampouco, a
ninguém teria ocorrido, hoje, negar, nem sequer por em dúvida, que a investigação
empírica, no campo da linguística como no da psicologia da linguagem, pressupõe
18 Cf. acerca disto, por exemplo, Clara e William Stern, Die Kindersprache, 2a ed., Leipzig, 1920, caps. XII-
XV.
19 Nederl. Akademie van Wetenschappen, vol. XLIII, números 9 e 10, 1940, e XLIV, núm. 1, 1941.
Depois de ter deslindado os conceitos de forma e estilo das ciências da cultura,
distinguindo-os de outras classes de conceitos, podemos abordar um problema de
importância decisiva para a aplicação destes conceitos aos diferentes fenômenos que se
oferecem a nossa observação. Se queremos chegar a entender uma ciência em sua
estrutura lógica, a primeira coisa que temos que fazer é ver com clareza de que modo
esta ciência subsume o particular no universal.
Devemos, entretanto, advertir que este problema tem que ser resolvido evitando
bastante de cair em um formalismo unilateral. Não existe, com efeito, nenhum esquema
geral ao qual possamos nos remeter para essa operação. O problema existe para todas
as ciências e é o mesmo para todas, mas sua solução segue caminhos muito diferentes.
E esta diferença não é casual, senão que acusa em cada caso um tipo próprio e
específico de conhecimento.
Não há dúvida de que constitua uma solução pouco satisfatória do problema a de
enfrentar aos “conceitos universais” da ciência natural os “conceitos individuais” das
ciências históricas. Semelhante separação serve, certo modo, mais do que para romper o
fio vital do conceito. Todo conceito propõe a ser, se nos fixarmos em sua função lógica,
uma “unidade do múltiplo”, um vínculo de relação entre o individual e o universal. Se
isolarmos um destes dois momentos, destruiremos com ele a “síntese” que todo conceito,
pelo mero fato de sê-lo, se propõe conseguir. “O particular – diz Goethe – depende
eternamente do universal, e o universal deve eternamente submeter o seu império ao
particular”.
Contudo, o modo desta “subsunção”, desta acomodação do particular no universal,
não é ao mesmo em todas as ciências. Varia segundo trate-se do sistema dos conceitos
matemáticos ou dos conceitos naturais empíricos; e varia também se enfrentamos a este
último sistema o dos conceitos históricos. A relação exige sua maior sensibilidade quando
se pretende expressar o universal sob a forma de um conceito de lei, do qual cabe derivar
dedutivamente os diferentes “casos”. É assim, por exemplo, como da lei da gravitação de
Newton “continuam” as regras de Kepler sobre os movimentos planetários ou as regras
sobre os movimentos periódicos das marés.
Todos os conceitos da ciência empírica da natureza aspiram, de um modo ou de
outro, a realizar este ideal, mesmo quando nem todos eles podem, certamente, alcançar
imediatamente nem do mesmo modo. A tendência é sempre a mesma, a saber: converter
a coexistência empírica das determinações, o único naquele momento oferece a
observação, elaborando-as mentalmente, em uma relação distinta, em que uma coisa
está condicionada a outra. Esta forma de “subsunção” é conseguida a melhor e de uma
forma perfeita quanto mais se referem a conceitos teóricos e vão se convertendo pouco a
pouco nos conceitos descritivos da ciência natural. Alcançado isto, deixam de existir, em
rigor, as determinações particulares do conceito empírico. Possuímos, então, como nos
conceitos matemáticos puros, uma determinação fundamental, daquela que se fora e
pode derivar de um certo modo as demais.
Assim é como, por exemplo, a física teórica moderna tem alcançado reduzir a uma
fonte comum todas as “propriedades” dispersas de uma determinada coisa, todas as
determinações que se expressam em uma constante física ou química. Esta ciência nos
mostra que as propriedades de um elemento, descoberta cada uma delas o princípio
mediante observação empírica, são todas funções de uma determinada magnitude, a
magnitude “peso atômico”, e estão em conexão “legal” com o “número de ordem” do
elemento. De onde se deduz que uma determinada matéria empiricamente dada, em
determinado metal, somente pode subsumir-se dentro do conceito “ouro” quando revela a
propriedade fundamental e, portanto, todas as demais que dela derivam. E não cabe,
nisto, a menor dúvida: somente catalogaremos como “ouro” aquele metal que possua
determinado peso específico, fixado quantitativamente com todo o rigor, que acuse um
determinado rendimento como veículo condutor de eletricidade, um determinado
coeficiente de elasticidade, etc.
Sofrerá, entretanto, uma grande e imediata decepção que espera dos conceitos de
forma e de estilo próprios das ciências culturais algo parecido. Estes conceitos carregam
consigo, ao que parece, uma nebulosidade muito característica, a qual não são capazes
de se sobrepor. Nestas ciências é possível também ordenar de algum modo o particular
dentro do universal; o que não cabe tão perfeitamente é subordiná-lo. Contentar-nos-
emos em ilustrar isto por meio de um exemplo concreto.
Em sua obra A cultura do Renascimento, Jacob Burckhardt traça o retrato clássico
do “homem renascentista”. Seus traços fisionômicos são por todos conhecidos. O
“homem do Renascimento” denota determinadas qualidades características, que o
distinguem claramente do “homem da Idade Média”. Entre elas destacam-se sua alegre
sensualidade, seu interesse pela natureza, seu enraizamento no “terreno”, sua propensão
a compenetrar-se com o mundo das formas, seu individualismo, seu paganismo, seu
amoralismo. A investigação empírica lançou-se à busca e à captura do “homem do
Renascimento” pintado por Burckhardt, e a verdade é que não o encontrou em parte
alguma. Não tem sido possível encontrar um só indivíduo histórico em que apareçam
reunidos realmente todos os traços destacados por Burckhardt como os elementos
constitutivos de seu quadro.
“Se pretendemos estudar de um modo puramente indutivo – disse Ernst Walser,
em seus Estudos sobre a concepção renascentista do mundo – a vida e o pensamento
das personalidades mais elevadas do Quattrocento, de um Colucio Salutati, de um Poggio
Bracciolini, de um Leonardo Bruni, de um Lorenzo Valla, de um Lorenzo O Magnífico ou
de um Luigi Pulci, chegamos geralmente à conclusão de que as características apontadas
não se enquadram, em absoluto, com o personagem concretamente estudado. Quando
tratamos de compreender os “traços característicos” que até agora temos agrupado e um
por um, vendo em sua estreita conexão com a vida do personagem do qual se trata e,
sobretudo, com toda a grande corrente da época, mudam totalmente de aspecto.
Agrupando os resultados da investigação indutiva, está sendo desenhada pouco a pouco
uma nova imagem do Renascimento, donde mesclam-se a piedade e a impiedade, o bom
e o mal, a ânsia celestial e os prazeres terrenos, o mesmo que na outra, mas de um modo
infinitamente mais complicado. A vida e os afãs de todo o Renascimento não podem
derivar-se de um só princípio, do individualismo e o do sensualismo, como tampouco
pode reduzir-se a um princípio único a tão decantada unidade de cultura da Idade
Média”20.
Estas palavras de Walser são, indubitavelmente, muito sábias, e somamo-nos a
elas sem reservas. Quem se preocupou alguma vez de investigar sobre o terreno
concreto a história, a literatura, e a arte ou a filosofia do Renascimento confirmará estes
juízos por sua própria experiência e poderá documentá-los de muitas maneiras.
Contudo, por acaso isto vem a refutar o conceito burckhardtiano? Devemos
considerar este conceito, em um sentido lógico, como correspondente à classe zero, quer
dizer, como uma classe na qual não entra nenhum objeto? Assim seria, com efeito, se se
tratasse de um desses conceitos genéricos obtidos mediante o cotejo empírico dos casos
concretos, pela via do que normalmente chama-se “indução”. Não há dúvida de que o
conceito de Burckhardt, medido por esta norma, não resistiria à prova. Mas é
precisamente esta suposição que deve ser corrigida logicamente, por ser falsa. Não ha
dúvida de que esse grande historiador da cultura do renascimento não poderia traçar seu
retrato do homem renascentista senão apoiando-se em um formidável material de fatos. A
multidão de dados em que se baseia, e a força deles, causam-nos assombro, quando
estudamos a sua obra. O que acontece é que a “visão panorâmica” que Burckhardt
projeta sobre este acúmulo de fatos, a síntese histórica reduz-se a diferença
20 Ernst Walser, “Studien zur Weltanschauung des Renaissance”, compilados agora em Gesammelte
Studien zer Geistesgeschichte de Renaisccance, 1920, Basiléia, 1932, p. 102.
substancialmente da síntese obtida mediante os conceitos empíricos da ciência natural.
Podemos, sem querer, chamar isto de “abstração”, mas sem perder de vista de que se
trata daquele processo ao qual Husserl dava o nome de “abstração ideadora” 21. Não
pode-se esperar nem exigir que os resultados desta classe de “abstração” coincidam
nunca exatamente com um caso concreto. Tampouco a “classificação” pode, nestes
casos, efetuar-se do mesmo modo em que classificamos, por exemplo, sob o conceito
“ouro” um determinado ouro concreto, uma peça de metal no qual se dão todas e cada
uma das condições que conhecemos como características do ouro. Quando dissemos
que Leonardo da Vinci e Aretino, Marsiglio Ficino e Maquiavel, Miguelangelo e César
Borgia são “homens do Renascimento”, não queremos afirmar, nem muito menos, que em
todos eles dá-se uma característica determinada, de conteúdo preciso. Nada disso.
Sabemos que entre esses personagens existem diferenças e até contradições. O único
coisa, com respeito, a eles que afirmamos é que, pese a estas contradições e diferenças,
e até talvez em razão delas mesmas, todos os personagens enumerados apresentem
entre si uma certa união ideal. Que cada um deles contribui a seu modo para formar o
quadro do que chamamos o “espírito” ou a cultura do Renascimento.
É uma unidade de direção, não uma unidade do ser, o que com isso queremos
expressar. Todos estes indivíduos pertencem a mesma categoria de homens, não porque
sejam iguais ou semelhantes entre si, senão porque cooperam com uma tarefa comum,
que podemos considerar como nova, com respeito a Idade Média, e que sentimos e
expressamos como o “sentido” característico da época do Renascimento. Todos os
conceitos fáceis de estilo das ciências da cultura podem reduzir-se, quando analisados a
fundo, a este conceito de sentido. O estilo artístico de uma época jamais poderia definir-
se não se agrupassem mentalmente em uma unidade todas as diversas manifestações,
às vezes aparentemente díspares, da arte dessa época, se não se concebia, para
empregar a expressão de Riegl, como manifestações de uma determinada “vontade
artística”22. Esta classe de conceitos caracterizam, certamente, mas não determinam: não
podem derivar deles o particular que eles enquadram. Seria igualmente falso, entretanto,
concluir daqui que o que estes conceitos nos oferecem é uma simples descrição intuitiva
e nem uma caracterização conceitual, se bem que se trata de uma caracterização muito
peculiar, de um trabalho lógico-espiritual sui generis.
Detenhamo-nos neste ponto, e antes de seguir adiante, retornaremos dele a
mirada sobre nossas considerações anteriores. O resultado da análise lógica dos
conceitos de estilo somente adquirem sua plena e verdadeira significação se o
comparamos com o resultado da análise fenomenológica. E, ao fazê-lo, encontramo-nos
não mais com um paralelismo, senão com uma autêntica interdependência. A diferença
que existe entre os conceitos de forma e estilo e os conceitos de coisa ou objetivos
expressa, traduzido para uma linguagem puramente lógica, precisamente aquela
diferença que anteriormente pudemos apreciar quanto a estrutura de nossas percepções.
É, por assim dizer, a tradução lógica de uma oposição entre duas tendências, oposição
que, como tal, não se apresenta no mundo dos conceitos mas tem suas raízes no solo
das percepções. O conceito expressa “discursivamente” o que a percepção entranha em
forma de conhecimento puramente “intuitivo”. A “realidade” que captamos na percepção e
na intuição imediata aparece diante de nós como um todo no qual não se dão nunca
separações bruscas. E, entretanto, isto tudo está acima do par “um e dois”, na medida em
que captamos, de um lado, como uma realidade objetiva e, de outro, como uma realidade
“pessoal”.
Um dos primeiros problemas de toda crítica do conhecimento consiste em
esclarecer a constituição lógica de cada uma destas duas formas fundamentais da
experiência. Este problema foi resolvido em termos breves e impressionantes por Kant, no
II