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Las ciencias de la cultura

Ernst Cassirer

Título original: Zur Logik de Kulturwissenchaften


primeira edição em alemão: 1942
primeira edição em espanhol: 1951
Fondo de cultura económica, México-Buenos Aires
Cap. III Conceitos “Naturais” e conceitos “Culturais”
Trad. Rômulo Ballestê

Partíamos da tese de que enquanto não nos decidirmos por abandonar o campo da
simples lógica e da teoria da ciência, resultarão pouco satisfatórias e insuficientes, não
importa quantas tentativas forem feitas para se estabelecer a diferença específica entre a
“ciência da natureza” e a “ciência da cultura”.
Para poder marcar com toda nitidez a diferença investigada, temos de remontar da
estrutura do conceito à estrutura da percepção. A percepção contém já, em germe, como
temos tentado demonstrar, aquela mesma antítese que se manifesta de forma explícita
nos dois métodos opostos empregados pela ciência da natureza e a ciência da cultura.
Nenhuma direção, das poucas que disputam o campo na teoria do conhecimento
costuma, hoje, põe a dúvida de que todos os conceitos, enquanto aspirem transmitir-nos
qualquer classe de conhecimento da realidade, tem necessariamente que “realizar-se”,
afinal, na intuição.
E esta tese não se aplica somente para cada conceito em particular; se aplica
também para os diversos tipos de conceitos com os quais nos encontramos no mundo da
ciência. Se estes tipos pretendem ser algo mais do que simples ficções, se têm de
significar algo mais do que simples nomes convencionais cunhados por nós para fins de
classificação, necessariamente têm que possuir um fundamentum in re. Temos que poder
segui-los até suas últimas fontes de conhecimento; temos que poder demonstrar que a
diferença existente entre eles repousa sobre uma dupla direção originária da intuição e da
percepção.
Agora, depois de haver assentado um ponto fixo de apoio e referência, devemos
formular novamente o problema. Devemos retornar ao campo da lógica e indagar o
caráter lógico dos conceitos culturais. Qualquer consideração, por mais superficial que
seja, ensina-nos, com efeito, que eles possuem esse caráter lógico; que todos eles, por
muito diferentes que sejam, por mais que refiram-se a objetos distintos, são unidos entre
si por algum “nexo espiritual”. Contudo, que classe de nexo é esta, e a que família
pertencem estes conceitos, que finalidade existe entre eles e os conceitos de outra
classe?
Três respostas substancialmente distintas têm sido dadas, até agora, a esta
pergunta. Claramente, refletem nelas, a luta e o conflito entre as diversas tendências que
seguem lutando pela supremacia na teoria moderna da ciência. A ciência da natureza, a
história e a psicologia disputam exasperadamente o terreno. Cada uma destas ciências
aparecem na palestra com uma pretensão justificada que encontra sempre eco.
Isto precisamente indica que o problema não é do tipo de problemas que se
resolvem mediante uma simples decisão dogmática. Cada uma destas três tendências
pode retrair-se sobre uma posição cercada por seguras defesas e da qual nenhum
argumento do adversário é capaz de desalojá-la. E é que os três campos, do físico, do
psíquico e do histórico, pertencem necessariamente ao conceito de “objeto cultural”. São
propriamente os três fatores que integram esse conceito.
Um “objeto cultural” requer sempre, com efeito, um substrato físico-material. A
pintura está ligada à tela, a estátua está entalhada no mármore, o documento histórico se
encontra materializado pelos signos escritos estampados sobre o pergaminho e o papel.
Somente assim, incorporada nos documentos e monumentos desta classe, apresenta-se
diante de nós, uma cultura pretérita.
Contudo, tudo isto requer, ao mesmo tempo, para ser compreendido ou lido
corretamente, uma dupla interpretação. É necessário que o situemos historicamente no
período que corresponde, que descubramos a sua origem e a sua antiguidade, e é
necessário também que saibamos interpretá-lo como expressão de determinadas atitudes
fundamentais da alma as quais encontram algum eco em nossa própria sensibilidade.
Assim, pois, conceitos físicos, históricos e psicológicos concorrem sempre na descrição
de um objeto cultural.
Mas o problema que nesta descrição que venha a acontecer, não consiste
precisamente no conteúdo destes conceitos mesmos, senão na síntese por meio da qual
os combinamos idealmente, para agrupá-los em um novo todo, em um todo sui generis.
Qualquer tipo de consideração que não chegue a explicar satisfatoriamente esta síntese
resultará inadequada ao seu objeto. Avançando até uma determinada fase do conceito, o
que importa não são os elementos que nele contém, senão a maneira peculiar como
esses elementos aparecem agrupados e unificados. Por isso, sendo indiscutível que em
todo objeto cultural se revela um lado físico, um lado psicológico e um lado histórico, ele
não quer dizer que este objeto não se oculte a nós e, sua específica e peculiar
significação quando isolamos estes elementos em vez de abordá-los em sua recíproca
penetração espiritual. O aspecto físico, o psicológico e o histórico são necessários,
enquanto tais e cada um per si; mas nenhum deles pode oferecer-nos a imagem total a
qual sempre aspiramos nas ciências da cultura.
Tropeçamos, sem dúvida, numa dificuldade que mantém íntima relação com o
estado atual da lógica e com o seu desenvolvimento histórico. Desde Platão, possuímos
uma lógica da matemática, e desde Aristóteles uma lógica da biologia. Eles encontraram
aqui lugar seguro e fixo para os conceitos matemáticos de relação e os conceitos
biológicos de gênero e espécie. Descartes, Leibniz e Kant construíram a ciência
matemática da natureza e, no século XIX, por último, surgiram as primeiras tentativas de
uma “lógica da história”. No entanto, se olharmos os conceitos fundamentais da ciência da
linguagem, da ciência da arte e da ciência da religião, veremos que carecem, todavia,
certo modo, de lar e de pátria: estes conceitos não encontram seu “assento natural” nos
sistemas de lógica.
Ao invés de demonstrar isto por meio de digressões abstratas, preferimos ilustrá-lo
a luz de exemplos concretos, tomados do material manuseado diretamente em seu
trabalho pelas ciências da cultura. O trabalho de investigação como tal tem seguido
sempre, nesse ponto, seus próprios caminhos; não se tem prestado a deitar na cama de
Procusto de determinadas distinções conceituais, no qual a lógica e a teoria do
conhecimento se empenham, não raro, em obrigá-lo. Por isso, podemos inferir desse
trabalho direto, melhor do que qualquer outra fonte, o verdadeiro estado da questão.
Cada ciência da cultura cria determinados conceitos de forma e de estilo e os
emprega para alcançar uma visão sistemática de conjunto, para estabelecer uma
classificação e uma distinção dos fenômenos do qual trata. Estes conceitos de forma, os
quais nos referimos, não são “monotéticos” nem são tampouco puramente “idiográficos”.
Não são monotéticos, pois não pretendem estabelecer tais ou quais leis gerais podem
derivar, dedutivamente, os fenômenos estudados. Mas tampouco podem ser reduzidos a
uma consideração histórica.
Ilustraremos isto, primeiramente, fixando-nos na estrutura da ciência da linguagem.
Não há dúvida de que, sempre que for possível, devemos estudar a linguagem em seu
desenvolvimento, e isto permite-nos chegar as suas mais ricas e fecundas conclusões.
Mas se queremos abarcar, em sua totalidade, investigar e explicar, a matéria da qual
trata-se aqui, quer dizer, a totalidade dos fenômenos de linguagem, temos que seguir um
caminho diferente. Temos que partir do que Wilhelm Humboldt chama a “forma interior da
linguagem”, e tentar entrar na estrutura desta forma interior. Este problema afeta
exclusivamente a estrutura da linguagem, distingue-se claramente dos problemas de
ordem histórica e pode, e deve, ser tratado independente destes. Podemos saber o que
um idioma é quanto a sua estrutura sem necessidade de conhecer nada ou conhecendo
muito pouco acerca de seu desenvolvimento histórico. Assim, por exemplo, Humboldt foi o
primeiro a estabelecer o conceito das “línguas polissintéticas”, oferecendo-nos com sua
descrição um brilhante exemplo de sua análise linguística e formal. E, entretanto, não
dispunha de nenhuma classe de dados acerca do nascimento e do desenvolvimento
histórico destas línguas. E algo parecido com isto aonde quer que se queira estudar as
línguas dos povos sem escrita. Em sua Gramática comparada das línguas batúes, Carl
Meinhof investigou as características particulares daqueles idiomas que não dividem os
nomes substantivos, fixando-se naqueles que geralmente chama-se “gênero natural” - em
masculinos, femininos e neutros -, senão junto a outros critérios de classificação. 1 É
evidente que tampouco neste tipo de análise intervém, e nem podem intervir, pontos de
vista históricos sem que a ausência deles prejudique no mínimo à segurança do nosso
conhecimento no tocante à estrutura da linguagem.
Passemos agora da ciência da linguagem a outro dos grandes campos da
ciência da cultura: a ciência da arte. Poderia, à primeira vista, parecer uma tentativa muito
arriscada de ter um ponto entre ambos os campos, tão distantes entre si, em aparência,
pelos objetos sobre os quais tratam e pelos métodos empregados. Ambas as ciências,
entretanto, por mais diferentes que sejam, manejam conceitos afins entre si quanto a sua
forma geral e que pertencem, certo modo, a mesma “família” lógica. Tampouco a história
da arte poderia avançar um passo que fosse se pretendesse circunscrever-se
exclusivamente às considerações de ordem histórica, à descrição do que tem sido e do
processo de sua gestação e desenvolvimento. Dela pode-se dizer também aquilo que
dizia Platão, de que um simples tornar-se (devenir) não é capaz de oferecer nenhum
conhecimento científico. Para poder penetrar no devenir, para poder abarcá-lo com o
olhar e dominá-lo, antes tem que assegurar determinados pontos de apoio e de apoio no
“ser”. O conhecimento histórico refere-se sempre a um determinado conhecimento da
“forma” e da “essência” e baseia-se nele. Esta correlação e interdependência dos dois
fatores manifesta-se com toda clareza, a cada passo, tão logo as investigações no campo
da ciência da arte se vê obrigada a refletir acerca de seu próprio método.
Claramente vemos isto expresso em uma obra como os Conceitos fundamentais
da história da arte, de Heinrich Wölfflin. Este autor se esforça em deixar de lado toda a
especulação; acusa aos problemas e se expressa como um puro empirista. Entretanto,
insiste expressamente que os fatos como tais permaneçam necessariamente mudos
acaso de antemão não afirmamos certos pontos de vista conceituais de acordo com os
quais devem ser interpretados e ordenados. É esta, precisamente, a lacuna que seu livro
se propõe a fechar. “A investigação dos conceitos – declara desde o prólogo da obra –
não tem caminhado no mesmo passo que a investigação dos fatos”. A obra de Wölfflin
não trata de oferecer-nos, propriamente, uma história da arte; vem a ser, diríamos, algo
como os “Prolegômenos a toda futura história da arte” que pretenda se apresentar como
ciência. “Não tratamos – diz o autor explicitamente em uma passagem de sua obra – de

1 Mais detalhes em Philosophie des symbolischen Formen, t. I, pp. 264 ss.


fazer uma história do estilo pictórico; nosso esforço gira em torno de seu conceito geral” 2.
Contudo, este “conceito geral” descobre-se e define-se distinguindo o estilo
pictórico, clara e precisamente, do estilo linear e contrastando-o a ele em todas as suas
formas e manifestações. O “linear” e o “pictórico” contrapõem-se, segundo Wölfflin, como
duas maneiras distintas de ver. São dois modos diferentes de conceber as relações
espaciais que tendem para metas completamente distintas e cada uma das quais capta,
portanto, um aspecto especial do espacial. O linear trata de captar a forma plástica das
coisas; o pictórico a sua aparência. Lá se busca a forma fixa; aqui, o fenômeno
cambiante; lá, a forma permanente, mensurável, limitada; aqui, o movimento, a forma em
função, lá, as coisas em si; aqui, as coisas em sua conexão” 3.
Entende-se que Wölfflin não poderia ter chegado a formular esta contraposição do
“linear” e do “pictórico” nem expô-la com esta nitidez intuitiva, se não se apoiasse, a cada
passo, em um gigantesco material histórico, tomado das artes plásticas. Mas, por outro
lado, ele enfatiza fortemente que o que trata a sua análise não é destacar precisamente
nenhum acontecer histórico singular, que se dá de uma só vez, quer dizer, um fato
vinculado a uma determinada época e circunscrito a ela. Os conceitos fundamentais de
Wölfflin não têm nada de “idiográficos”, como não o tinham tampouco os de Humboldt.
Partem do estabelecimento de um estado de coisas perfeitamente geral; mas opõem aos
conceitos gerais de classe e de lei, próprios da consciência geral, um algo geral de outro
tipo à luz de outro nível. À luz de determinadas manifestações históricas – por exemplo,
do contraste entre a linguagem das formas, empregado pelo classicismo e o barroco, da
contraposição que se adverte entre os séculos XVI e XVII ou das diferenças essenciais
entre um Dürer e um Rembrandt -, tem que tomar consciência de uma diferença
fundamental das formas. As manifestações singulares pretendem ser outra coisa que
ilustrações paradigmáticas desta diferença e não, de modo algum, o fundamento dela.
Segundo Wölfflin, as formas do “classicismo” e do “barroco” não se circunscrevem
a história moderna da arte, senão que se dão também na arquitetura antiga e brotam
inclusive em um terreno tão estrangeiro a elas como o gótico 4. Do mesmo modo que não
poderia tampouco captar a diferença da qual se trata reduzindo-a a uma diferença
puramente nacional ou individual. As diferenças nacionais e individuais desempenham,
evidentemente, um papel no desenvolvimento dos estilos pictórico e linear, mas sem que
a índole essencial de ambos os estilos possa ser derivada dessas diferenças. Longe
deles, essa índole revela-se a nós, claramente, em épocas muito distintas, em culturas
nacionais muito diferentes e em artistas totalmente diferentes entre si.
E também o problema do desenvolvimento de um estilo a base de outro pode surgir
e se resolver, segundo Wölfflin, sem para nada se referir a essas premissas alegadas. A
história do estilo pode aprofundar até uma determinada camada fundamental de conceitos
que guardem relação com a “representação como tal”: “poderia escrever uma história do
desenvolvimento do modo ocidental de ver, em que as diferenças de caráter individual e
nacional não tivessem importância alguma considerável” 5. “Há um estilo que, orientado no
essencial em direção ao objetivo, capta as coisas e trata de apresentá-las de acordo com
as suas proporções fixas e tangíveis, e tem, pelo contrário, um estilo que, orientando-se
para além do subjetivo, toma como base da representação a imagem com a qual a
visibilidade se apresenta realmente aos nossos olhos” 6. Os artistas mais heterogêneos
podem participar de ambas as formas de estilo. “Para exemplificar – diz Wölfflin, em uma
passagem de sua obra – não tínhamos, naturalmente, outro procedimento do que o
remetermos a cada obra de arte concreta, mas quando dissemos acerca de Rafael e ou
2 Heirich Wölfflin, Kunstgeschichtliche Grundbegriffe, Munich, 1915, p. 35. (Tem tradução brasileira de
João Azenha Júnior)
3 Wölfflin, op. cit., p. 31.
4 Wölfflin, op. cit., p. 243.
5 Ibid., p. 13.
6 Ibid., p. 23.
Ticiano, de Rembrandt e Velázques, não se trata mais do que esclarece a trajetória geral,
nunca para colocar em destaque o valor específico da obra em cada caso citado” 7. Nesta
maneira de enfocar o problema reside, inclusive, segundo Wölfflin, o ideal de uma história
da arte, que seria, como ele mesmo disse, uma “história da arte sem nomes” 8. Não há
necessidade, pela simples razão de que colocaria os problemas referindo-se não aos
indivíduos senão aos princípios, quer dizer, a algo “anônimo”: às alterações quanto ao
modo de ver as coisas dentro do espaço e à modificação do sentimento óptico da forma e
do espaço por eles condicionada.
Para o lógico, é extraordinariamente interessante e valioso, deste ponto de vista,
observar como Wölfflin, pela única razão de destacar com tanta nitidez os puros conceitos
estruturais da ciência da arte, pois ele é levado, sem buscá-lo nem dar-se conta dele, à
problemas completamente universais da “ciência das formas”. Recorre, logicamente, a
giros que transcendem o campo da ciência da arte e que apontam para a ciência da
linguagem. Humboldt não se cansava de insistir que a diferença entre as diferentes
línguas era algo mais do que uma simples diferença de “sons e signos”. Toda forma
linguística expressa, segundo ele, uma “visão de mundo” própria, uma determinada
orientação fundamental do pensamento e da representação. Uma ideia perfeitamente
análoga a esta é a que inspira a Wölfflin, sem que para isso tenha tido que se apoiar-se
ou inspirar-se no mundo do pensamento de Humboldt. Wölfflin, sem o pretender, transfere
o princípio de Humboldt do campo do pensamento e das representações para o campo da
intuição e da visão.
Todo estilo artístico pode se determinar, assim o afirma Wölfflin, não somente de
acordo com determinados fatores formais, ao modo de desenhar, de traçar as linhas, etc.,
senão vendo expressa em cada um dos fatores uma determinada orientação de conjunto
e, certo modo, uma atitude espiritual do olho. E estas diferenças são muito mais do que
uma simples questão de gostos: “entranham, como algo condicionante e condicionado, o
fundamento mesmo sobre o que repousa toda a visão do mundo em um povo” 9. Do
mesmo modo que as diversas línguas diferem entre si em sua gramática, vale dizer, ao
passar do estilo linear ao estilo pictórico. O conteúdo do mundo cristaliza-se, para a
intuição, em uma forma permanente e sempre igual 10. E uma das principais tarefas da
ciência da arte consiste, precisamente, em estudar estas mudanças enquanto o modo de
capturar as coisas e em explicá-los a partir do ponto de vista de sua necessidade interior.
Isto leva-nos a outro problema. Temos afirmado que os conceitos de forma e estilo
próprios das ciências da cultura se distinguem claramente tanto dos conceitos das
ciências naturais como dos conceitos históricos contanto que representem uma classe de
conceitos sui generis. Mas, podem, talvez, reduzir-se a outro tipo de conceitos, ao tipo
dos conceitos de valor? Sabe-se quão importante é o papel que desempenham os
conceitos de valor na lógica da história, tal como a expõe Rickert. Rickert sublinha
expressamente o fato de que a ciência histórica não gira exclusivamente em torno da
descoberta de fatos individuais senão que tem que estabelecer um vínculo, uma conexão
entre eles, e afirma que esta síntese histórica jamais seria possível nem viável sem a
referência a algo “universal”. Mas, em vez dos conceitos do ser sobre aquilo o qual
repousa a ciência da natureza, Rickert sustenta que a história e, em geral, a ciência da
cultura, giram em torno de um sistema de conceitos de valor. Segundo este, a massa da
matéria histórica só pode se organizar e tornar acessível ao conhecimento histórico
sempre que e quando o particular é referido a valores super individuais de caráter
universal.
Entretanto, tampouco esta tese resiste a uma precisa confrontação das condições

7 Ibid., p. 237.
8 Ibid., p. V.
9 Ibid., p. 240.
10 Ibid., p. 237.
concretas sobre as quais repousam as ciências da cultura. Existe uma diferença muito
substancial entre os conceitos de estilo e os conceitos de valor. Os conceitos de estilo
mostram o “ser” puro, nunca o “dever ser”. Se bem que esse ser não trata das coisas
físicas mas das “formas”. Quando falamos da “forma” de uma língua ou de uma
determinada forma artística, isto nada tem a ver, de per si, com uma relação de valor.
Pode ocorrer que a fixação de tais formas tome o emparelhamento de determinados
juízos de valor mas estes nunca têm uma fixação constitutiva para a captação da forma
enquanto tal, para seu sentido e seu alcance.
Assim, por exemplo, Humboldt, em suas investigações sobre a estrutura da
linguagem humana, acredita poder estabelecer uma certa “hierarquia” entre as distintas
formas linguísticas. Coloca, no início, as línguas que conhecem o mecanismo da
declinação e a conjugação, e esforça-se por demonstrar que este método é, no fundo, a
“única forma regular” que não alcançou plenamente, em seu desenvolvimento, as línguas
isoladas, aglutinantes ou polissintéticas. Distingue, portanto, duas classes de línguas: as
que apontam esta “forma regular” e as que, em um ou outro sentido, diferem dela 11.
Mas é óbvio que Humboldt só pode chegar a estabelecer esta hierarquia das
línguas depois de ter fixado, com sujeição à determinados princípios, as diferenças de
estrutura existentes entre elas, para o qual não precisava se ater, no mínimo,
evidentemente, a nenhum ponto de vista valorativo.
Pois bem, exatamente o mesmo pode ser dito dos conceitos de estilo na ciência da
arte. Baseado em normas estéticas das quais acreditamos estar seguros, podemos
perfeitamente dar preferência a um estilo sobre outro. Mas, o “quê” de cada estilo, quer
dizer, sua própria peculiaridade, seu caráter específico, jamais o descobriremos à luz
destes conceitos normativos senão recorrendo a outros critérios. Quando Wölfflin fala do
“clássico” e do “barroco”, ambos os conceitos têm para ele um significado puramente
descritivo, e não envolvem um juízo estético, normativo ou de qualidade. O primeiro dos
dois conceitos não traz consigo, de modo algum, o sentido adjetivo do melhor ou do
exemplar. Do mesmo modo que o fato de que, segundo a história da arte nos ensina, o
estilo pictórico siga geralmente o linear e se desenvolva quase sempre a base dele, não
acarreta de modo algum a afirmação de que esta trajetória represente um “progresso”,
uma superação. Wölfflin vê em ambas as formas estilísticas, simplesmente, duas
soluções distintas de um determinado problema, ambas igualmente legítimas, do ponto de
vista estético. Dentro de cada um dos dois estilos, podemos discernir o perfeito do
imperfeito, o insignificante ou o medíocre do excelente. Mas seria falso aplicar estas
diferenças aos dois estilos, em bloco, considerando um como superior e o outro como
inferior. “A maneira pictórica é a posterior – diz Wölfflin – e não poderíamos concebê-la
rigorosamente se a primeira, mas isto não quer dizer que ela seja absolutamente superior.
O estilo linear sabe desenvolver valores que o estilo pictórico não possui nem pode
possuir. São duas concepções de mundo orientadas distintamente quanto a seu gosto e
interesse no mundo, mas cada uma das quais pode, entretanto, traçar uma imagem
perfeita do visível... De cada uma destas duas orientações distintas do interesse pelo
mundo surge uma beleza distinta”12.
Até agora temos tentado expor as razões que nos autorizam e nos obrigam a
atribuir aos conceitos culturais um lugar à parte, tanto no que diz respeito aos conceitos
históricos como aos axiológicos ou de valor, distinguindo-os de uns e outros quanto a sua
estrutura lógica. Mas permanece outro problema, até agora sem ser resolvido, a saber:
Esta autonomia que postulamos para os conceitos de forma e de estilo pode, também, se
manter frente a ciência psicológica? Ou, dito em outros termos: não reduz-se a totalidade
da cultura – o desenvolvimento da linguagem, da arte, da religião – a um conjunto de
processos anímico-espirituais, todos os quais caem, eo ipso, sob a jurisdição da

11 Cf. Humboldt, “Einleitung zum Kawi-Werk”, em Werke (Akad. Ausgabe), t. VII, 1, p. 252 ss.
12 Ibid., pp. 20, 31.
psicologia? Subsiste, neste ponto, alguma diferença; pode envolver, com respeito a isto,
alguma reserva, alguma ressalva?
Com efeito, sempre tem tido proeminentes pesquisadores que têm pensado assim,
chegando, consequentemente, à conclusão de que não tem que se preocupar em buscar
uma “ciência de princípios” como ponto de sustentação da ciência da cultura, ainda que
essa seja, precisamente, a missão da psicologia.
Hermann Paul tem defendido esta tese com grande clareza e força no campo da
linguística. Trata-se, bem entendido, de alguém que é, acima de tudo, um historiador da
linguagem, de quem, portanto, não pode suspeitar que se trate, de modo algum, os
direitos do ponto de vista histórico de investigação. Mas isto não é obstáculo para que se
insista, mais uma vez, que sem se colocar e resolver os problemas de princípio, sem
estabelecer previamente as condições do desenvolvimento histórico, em geral, seria
impossível chegar a algum resultado histórico concreto. Por isso, a história da linguagem,
como a história de qualquer outra forma de cultura, tem que sempre flanquear, diz Paul,
por uma ciência que “se ocupe das condições gerais de vida dos objetos que
desenvolvem historicamente, que investigue, em sua natureza e em sua ação, os fatores
sempre presente em todas as mudanças. E estes fatores constantes só podem ser
estudados por uma ciência: a psicologia. Ao dizer isto, Paul refere-se sempre à psicologia
individual, e não, como Steinthal e Lazarus, e mais tarde Wundt, à “psicologia dos Povos”.
É, portanto, a psicologia individual aquele que se atribui a missão de resolver os
problemas de princípio que coloca a teoria da linguagem: “tudo gira em torno do problema
de derivar o desenvolvimento da linguagem das ações e reações que os indivíduos
exercem uns sobre os outros”.
Quando Hermann Paul formulava esta tese, nas primeiras páginas de seus
Princípios da história da linguagem, tinha alcançado seu ponto culminante, na filosofia e
na teoria geral da ciência, a disputa encoberta entre o método “psicológico” e o método
“transcendental”. De um lado estavam as escolas neokantianas, com seu postulado de
que a primordial e mais importante missão de toda investigação crítica do conhecimento
era distinguir entre o quid juris e o quid facti13. A competência da psicologia, enquanto
ciência empírica, não ia além, diziam essas escolas, das questões de fato, das que jamais
e de modo algum podiam derivar normas para a solução dos problemas que afetavam a
validez.
Esta divisão entre o 'logicismo” e o “psicologicismo”, que durante muito tempo deu
sua marca a toda filosofia, tem passado, de certo modo, para segundo plano. Depois de
longo e difícil trabalho de uma e de outra parte, recaiu, por fim uma decisão a qual em
nada ataca seriamente o estado atual das investigações. A lógica – tal era a conclusão a
que chegavam os psicólogos extremos – é a teoria das formas e as leis do pensar. E não
pode deixar de ver nela uma disciplina psicológica, enquanto que o processo do pensar e
do conhecer só podem ter por cenário a psiqué 14.
Husserl tem se encarregado de desnudar, em seu Investigações lógicas, o

13 Nota de Tradução: Pode-se, a respeito da diferença entre os termos latinos quid juris e quid facti,
encontrar a diferenciação feita por Kant no segundo capítulo da Analítica transcendental da Crítica da
Razão Pura. “Quando falam de faculdades (Befugnisse) e usurpações num processo jurídico os juristas
distinguem a questão sobre o que é de direito (quid iuris) da que concerne aos fatos (quid facti), e na
medida em que exigem provas de ambos os pontos, chamam dedução a primeira prova, que deve
demonstrar a faculdade ou também o direito. Sem réplica de ninguém, servimo-nos de uma porção de
conceitos empíricos e, mesmo sem dedução, consideramo-nos autorizados a lhes adjudicar um sentido
e uma pretensa significação, pois temos sempre à mão a experiência para provar a sua realidade
objetiva. Há também, entretanto, conceitos usurpados, quiçá tais como felicidade, destino, que circulam,
com indulgência quase geral, mas às vezes provocam a questão: quid iuris. Com efeito, devido à sua
dedução cai-se então em não pequeno embaraço, não se podendo alegar nenhum claro fundamento de
direito, nem a partir da experiência nem a partir da razão, pela qual se tornasse evidente a faculdade do
seu uso” KANT, Immanuel Crítica da razão Pura São Paulo: Nova cultural, 1999, pp. 114.
14 Cf. Theodor Lipps, Grunzüge der Logik, Hamburgo e Leipzig, 1893, pp. 1 ss.
paralogismo escondido nesta conclusão, perseguindo-o, por assim dizer, até os últimos
rincões. Registrou a diferença radical e indelével que existe entre a forma, como “unidade
ideal de significação” e as vivências psíquicas, os “atos” de considerar como verdadeiro,
de crer, de julgar, que se referem a essas unidades de significação e as têm por objeto 15.
Com ele, estava fora, o perigo de que a teoria formal da lógica e a da matemática pura
fossem vistas reduzidas a simples determinações psicológicas.
É certo que nos domínios das ciências da cultura, pelo menos à primeira vista, o
traçado de tal linha divisória parece muito mais difícil. Cabe, com efeito, perguntar: existe,
na realidade, uma determinada “consistência” da linguagem, da arte, do mito, da religião,
ou reduz-se tudo o que conhecemos por esses nomes a uma série de atos soltos, nos
quais os homens falam, criam e gozam formas artísticas, exteriorizam sua fé mítica ou
suas crenças religiosas? Existe ou permanece, como objeto de investigação, algo que
não pode ser totalmente incluído dentro do círculo destes atos?
Basta que nos fixemos no estado atual do problema para darmo-nos conta de que,
com efeito, é assim. Também neste ponto tem-se lançado luz. A psicologia da linguagem,
a psicologia da arte e a psicologia da religião têm-se desenvolvido progressivamente
durante anos. Mas não abrigam a pretensão de deslocar ou condenar ao ostracismo a
teoria da linguagem, a teoria da arte ou a teoria da religião. Também nisto tem se definido
cada vez mais claramente o campo de uma pura “teoria das formas”, que maneja
conceitos distintos dos da psicologia empírica e deve ser construído por outros
procedimentos.
Temos um exemplo dele, principalmente, na “teoria da linguagem” de Karl Bühler.
Algo tão importante quanto a abordagem feita por este autor dos problemas da linguagem
como psicólogo e sem voltar jamais as costas para este ponto de vista no curso de sua
investigação. A qual não é obstáculo para que compreenda e manifeste que a “essência”
da linguagem não pode ser cifrada em investigações de tipo histórico nem em indagações
de caráter psicológico, exclusivamente. Já no prólogo a sua obra insiste em interrogar a
linguagem perguntando-lhe “que és?”, e não “de onde vens?”. É, como se vê, a antiga
pergunta filosófica do τί έστι. Conhece-se a “semantologia”, a partir do ponto de vista
metodológico, sua plena substantividade. É daqui que Bühler advoga em prol da tese da
idealidade do objeto “linguagem”, e o faz precisamente como psicólogo e partindo de suas
análises psicológicas: “As formações linguísticas – diz-nos – são, platonicamente falando,
objetos ideais, ou, falando logicamente, classes de classes, como os números ou os
objetos de uma formalização superior do pensamento científico” 16. Isto explica, ao mesmo
tempo, que “tem que considerar-se como inaceitável e submeter-se à revisão a
subordinação total da linguística à série das “ciências idiográficas””. Segundo Bühler, as
investigações em torno da linguagem precisam de pátria sem esforçarmo-nos em “reduzi-
las” a um dos dois campos: o do estudo dos fatos históricos ou o campo da física e a
psicologia17.
A partir deste ponto de vista no qual se situa Bühler, os litígios fronteiriços entre a
filosofia e a psicologia da linguagem não têm qualquer razão de ser. E é certo que, hoje,
as coisas têm avançado tanto que quase podemos considerar antiquada e superada esta
classe de discussões. Os diferentes problemas têm se definido e deslindado clara e
nitidamente. De uma parte, é evidente que jamais poderia criar-se uma teoria da
linguagem sem se apoiar continuamente nos resultados da história e na psicologia da
linguagem. Que dúvida cabe ser colocada de que semelhante teoria não pode erigir-se no
vazio, pela via da abstração e da especulação? Mas, de outra parte, tampouco, a
ninguém teria ocorrido, hoje, negar, nem sequer por em dúvida, que a investigação
empírica, no campo da linguística como no da psicologia da linguagem, pressupõe

15 Cf. especialmente, Husserl, Logische Untersuchungen, t. I, cap. 8.


16 Karl Bühler, Sprachtheorie. Die Darstellungsfunktion der Sprache, Jena, 1934, pp. 58 ss.
17 Ibid., p. 6.
necessariamente e da maneira que a cada passo conceitos são tomados da “teoria das
formas”. Quem dedica-se a investigar, por exemplo, por que ordem aparecem, na
evolução linguística da criança, as diferentes classes de palavras, em que fase a criança
das “locuções de um único vocábulo” para orações “paratáticas” e destas às
“hipotáticas”,18 é evidente que se baseia, para ele, na significação de certas categorias
fundamentais da teoria das formas, da gramática e da sintaxe.
E não é este, nem muito menos, o único caso no qual se revela a cada passo
como a investigação empírica se perde em problemas puramente fictícios e se enreda em
antinomias insolúveis quando não acompanha continuamente uma reflexão conceitual
cuidadosa sobre o que a linguagem “é”. Temos visto como Wölfflin, em seus Conceitos
fundamentais da teoria da arte, queixa-se de que a investigação em torno dos conceitos
deste campo de estudo não guarda proporção com a que versa sobre os fatos. Queixas
parecidas com esta são cada vez mais frequentes, também, no campo da psicologia da
linguagem.
Citaremos, em apoio a este, o importante ensaio que G. Révész acaba de publicar
com o título de “As formas humanas de comunicação e a chamada linguagem dos
animais”.19 O autor parte da tese de que as incontáveis “observações” que se tem feito
acreditar acerca da “linguagem dos animais”, e muitos, se não a maioria, dos
experimentos realizados neste campo, têm resultados duvidosos e infecundos, pela
simples razão de que, ao fazê-los, não se parte de um conceito claro e preciso da
linguagem, o que vale tanto como dizer que não se sabe o que se investiga e se indaga.
É necessário, diz-nos o autor, se se quer chegar a resultados positivos, mudar
radicalmente de método. “Devemos compreender claramente que o problema da
chamada linguagem dos animais não pode se resolver a base exclusivamente de fatos da
psicologia animal. Qualquer um que, imparcialmente, submeta a um exame crítico as
teses e as teorias estabelecidas pelos especialistas em psicologia animal e na evolução
das espécies chegará necessariamente à conclusão de que não é possível resolver com
certeza lógica o problema colocado remetendo-o às diferentes formas animais de
comunicação e aos resultados conseguidos na domesticação de animais, formas e
resultados que, por sua vez, admitem as mais contraditórias interpretações. Há de se
esforçar, portanto, para encontrar um ponto de partida logicamente válido desde que
possamos dar interpretação natural racional aos fatos da experiência. E, este ponto de
partida tem que oferecer-nos a definição do conceito de linguagem... Se dermo-nos... o
trabalho de considerar o que se chama a linguagem dos animais a partir do ponto de vista
da filosofia e a psicologia da linguagem – o que é, ao nosso modo de ver, a única atitude
defensável – não somente renunciaremos a este conceito de linguagem animal, senão
que, ao mesmo tempo, tornar-nos-emos conscientes até o fundo de tudo que tem de
absurdo ao colocarmos o problema na sua forma atual.”
Não é este lugar indicado para examinar a fundo os argumentos, ao nosso juízo
muito importantes, nos quais se apoia Révész para chegar a esta conclusão. Preferimos
citar as suas palavras simplesmente para que se veja até que ponto o problema da
estrutura da linguagem informa toda a investigação empírica e como esta não pode
encontrar o “caminho seguro da ciência” a menos que deixe espaço à reflexão lógica. A
frase de Kant acerca das relações entre a razão e a experiência vale tanto para as
ciências da cultura como para a ciência da natureza: “a razão tem que se antecipar
quanto aos princípios dos seus juízos e obrigar a natureza a contestar as suas perguntas,
mas não deixar-se levar dela como das rédeas, que de outro modo jamais as
observações fortuitas, coletadas sem algum plano prévio, chegariam a se juntar sob uma
lei necessária, que é precisamente o que a razão busca e necessita”.

18 Cf. acerca disto, por exemplo, Clara e William Stern, Die Kindersprache, 2a ed., Leipzig, 1920, caps. XII-
XV.
19 Nederl. Akademie van Wetenschappen, vol. XLIII, números 9 e 10, 1940, e XLIV, núm. 1, 1941.
Depois de ter deslindado os conceitos de forma e estilo das ciências da cultura,
distinguindo-os de outras classes de conceitos, podemos abordar um problema de
importância decisiva para a aplicação destes conceitos aos diferentes fenômenos que se
oferecem a nossa observação. Se queremos chegar a entender uma ciência em sua
estrutura lógica, a primeira coisa que temos que fazer é ver com clareza de que modo
esta ciência subsume o particular no universal.
Devemos, entretanto, advertir que este problema tem que ser resolvido evitando
bastante de cair em um formalismo unilateral. Não existe, com efeito, nenhum esquema
geral ao qual possamos nos remeter para essa operação. O problema existe para todas
as ciências e é o mesmo para todas, mas sua solução segue caminhos muito diferentes.
E esta diferença não é casual, senão que acusa em cada caso um tipo próprio e
específico de conhecimento.
Não há dúvida de que constitua uma solução pouco satisfatória do problema a de
enfrentar aos “conceitos universais” da ciência natural os “conceitos individuais” das
ciências históricas. Semelhante separação serve, certo modo, mais do que para romper o
fio vital do conceito. Todo conceito propõe a ser, se nos fixarmos em sua função lógica,
uma “unidade do múltiplo”, um vínculo de relação entre o individual e o universal. Se
isolarmos um destes dois momentos, destruiremos com ele a “síntese” que todo conceito,
pelo mero fato de sê-lo, se propõe conseguir. “O particular – diz Goethe – depende
eternamente do universal, e o universal deve eternamente submeter o seu império ao
particular”.
Contudo, o modo desta “subsunção”, desta acomodação do particular no universal,
não é ao mesmo em todas as ciências. Varia segundo trate-se do sistema dos conceitos
matemáticos ou dos conceitos naturais empíricos; e varia também se enfrentamos a este
último sistema o dos conceitos históricos. A relação exige sua maior sensibilidade quando
se pretende expressar o universal sob a forma de um conceito de lei, do qual cabe derivar
dedutivamente os diferentes “casos”. É assim, por exemplo, como da lei da gravitação de
Newton “continuam” as regras de Kepler sobre os movimentos planetários ou as regras
sobre os movimentos periódicos das marés.
Todos os conceitos da ciência empírica da natureza aspiram, de um modo ou de
outro, a realizar este ideal, mesmo quando nem todos eles podem, certamente, alcançar
imediatamente nem do mesmo modo. A tendência é sempre a mesma, a saber: converter
a coexistência empírica das determinações, o único naquele momento oferece a
observação, elaborando-as mentalmente, em uma relação distinta, em que uma coisa
está condicionada a outra. Esta forma de “subsunção” é conseguida a melhor e de uma
forma perfeita quanto mais se referem a conceitos teóricos e vão se convertendo pouco a
pouco nos conceitos descritivos da ciência natural. Alcançado isto, deixam de existir, em
rigor, as determinações particulares do conceito empírico. Possuímos, então, como nos
conceitos matemáticos puros, uma determinação fundamental, daquela que se fora e
pode derivar de um certo modo as demais.
Assim é como, por exemplo, a física teórica moderna tem alcançado reduzir a uma
fonte comum todas as “propriedades” dispersas de uma determinada coisa, todas as
determinações que se expressam em uma constante física ou química. Esta ciência nos
mostra que as propriedades de um elemento, descoberta cada uma delas o princípio
mediante observação empírica, são todas funções de uma determinada magnitude, a
magnitude “peso atômico”, e estão em conexão “legal” com o “número de ordem” do
elemento. De onde se deduz que uma determinada matéria empiricamente dada, em
determinado metal, somente pode subsumir-se dentro do conceito “ouro” quando revela a
propriedade fundamental e, portanto, todas as demais que dela derivam. E não cabe,
nisto, a menor dúvida: somente catalogaremos como “ouro” aquele metal que possua
determinado peso específico, fixado quantitativamente com todo o rigor, que acuse um
determinado rendimento como veículo condutor de eletricidade, um determinado
coeficiente de elasticidade, etc.
Sofrerá, entretanto, uma grande e imediata decepção que espera dos conceitos de
forma e de estilo próprios das ciências culturais algo parecido. Estes conceitos carregam
consigo, ao que parece, uma nebulosidade muito característica, a qual não são capazes
de se sobrepor. Nestas ciências é possível também ordenar de algum modo o particular
dentro do universal; o que não cabe tão perfeitamente é subordiná-lo. Contentar-nos-
emos em ilustrar isto por meio de um exemplo concreto.
Em sua obra A cultura do Renascimento, Jacob Burckhardt traça o retrato clássico
do “homem renascentista”. Seus traços fisionômicos são por todos conhecidos. O
“homem do Renascimento” denota determinadas qualidades características, que o
distinguem claramente do “homem da Idade Média”. Entre elas destacam-se sua alegre
sensualidade, seu interesse pela natureza, seu enraizamento no “terreno”, sua propensão
a compenetrar-se com o mundo das formas, seu individualismo, seu paganismo, seu
amoralismo. A investigação empírica lançou-se à busca e à captura do “homem do
Renascimento” pintado por Burckhardt, e a verdade é que não o encontrou em parte
alguma. Não tem sido possível encontrar um só indivíduo histórico em que apareçam
reunidos realmente todos os traços destacados por Burckhardt como os elementos
constitutivos de seu quadro.
“Se pretendemos estudar de um modo puramente indutivo – disse Ernst Walser,
em seus Estudos sobre a concepção renascentista do mundo – a vida e o pensamento
das personalidades mais elevadas do Quattrocento, de um Colucio Salutati, de um Poggio
Bracciolini, de um Leonardo Bruni, de um Lorenzo Valla, de um Lorenzo O Magnífico ou
de um Luigi Pulci, chegamos geralmente à conclusão de que as características apontadas
não se enquadram, em absoluto, com o personagem concretamente estudado. Quando
tratamos de compreender os “traços característicos” que até agora temos agrupado e um
por um, vendo em sua estreita conexão com a vida do personagem do qual se trata e,
sobretudo, com toda a grande corrente da época, mudam totalmente de aspecto.
Agrupando os resultados da investigação indutiva, está sendo desenhada pouco a pouco
uma nova imagem do Renascimento, donde mesclam-se a piedade e a impiedade, o bom
e o mal, a ânsia celestial e os prazeres terrenos, o mesmo que na outra, mas de um modo
infinitamente mais complicado. A vida e os afãs de todo o Renascimento não podem
derivar-se de um só princípio, do individualismo e o do sensualismo, como tampouco
pode reduzir-se a um princípio único a tão decantada unidade de cultura da Idade
Média”20.
Estas palavras de Walser são, indubitavelmente, muito sábias, e somamo-nos a
elas sem reservas. Quem se preocupou alguma vez de investigar sobre o terreno
concreto a história, a literatura, e a arte ou a filosofia do Renascimento confirmará estes
juízos por sua própria experiência e poderá documentá-los de muitas maneiras.
Contudo, por acaso isto vem a refutar o conceito burckhardtiano? Devemos
considerar este conceito, em um sentido lógico, como correspondente à classe zero, quer
dizer, como uma classe na qual não entra nenhum objeto? Assim seria, com efeito, se se
tratasse de um desses conceitos genéricos obtidos mediante o cotejo empírico dos casos
concretos, pela via do que normalmente chama-se “indução”. Não há dúvida de que o
conceito de Burckhardt, medido por esta norma, não resistiria à prova. Mas é
precisamente esta suposição que deve ser corrigida logicamente, por ser falsa. Não ha
dúvida de que esse grande historiador da cultura do renascimento não poderia traçar seu
retrato do homem renascentista senão apoiando-se em um formidável material de fatos. A
multidão de dados em que se baseia, e a força deles, causam-nos assombro, quando
estudamos a sua obra. O que acontece é que a “visão panorâmica” que Burckhardt
projeta sobre este acúmulo de fatos, a síntese histórica reduz-se a diferença

20 Ernst Walser, “Studien zur Weltanschauung des Renaissance”, compilados agora em Gesammelte
Studien zer Geistesgeschichte de Renaisccance, 1920, Basiléia, 1932, p. 102.
substancialmente da síntese obtida mediante os conceitos empíricos da ciência natural.
Podemos, sem querer, chamar isto de “abstração”, mas sem perder de vista de que se
trata daquele processo ao qual Husserl dava o nome de “abstração ideadora” 21. Não
pode-se esperar nem exigir que os resultados desta classe de “abstração” coincidam
nunca exatamente com um caso concreto. Tampouco a “classificação” pode, nestes
casos, efetuar-se do mesmo modo em que classificamos, por exemplo, sob o conceito
“ouro” um determinado ouro concreto, uma peça de metal no qual se dão todas e cada
uma das condições que conhecemos como características do ouro. Quando dissemos
que Leonardo da Vinci e Aretino, Marsiglio Ficino e Maquiavel, Miguelangelo e César
Borgia são “homens do Renascimento”, não queremos afirmar, nem muito menos, que em
todos eles dá-se uma característica determinada, de conteúdo preciso. Nada disso.
Sabemos que entre esses personagens existem diferenças e até contradições. O único
coisa, com respeito, a eles que afirmamos é que, pese a estas contradições e diferenças,
e até talvez em razão delas mesmas, todos os personagens enumerados apresentem
entre si uma certa união ideal. Que cada um deles contribui a seu modo para formar o
quadro do que chamamos o “espírito” ou a cultura do Renascimento.
É uma unidade de direção, não uma unidade do ser, o que com isso queremos
expressar. Todos estes indivíduos pertencem a mesma categoria de homens, não porque
sejam iguais ou semelhantes entre si, senão porque cooperam com uma tarefa comum,
que podemos considerar como nova, com respeito a Idade Média, e que sentimos e
expressamos como o “sentido” característico da época do Renascimento. Todos os
conceitos fáceis de estilo das ciências da cultura podem reduzir-se, quando analisados a
fundo, a este conceito de sentido. O estilo artístico de uma época jamais poderia definir-
se não se agrupassem mentalmente em uma unidade todas as diversas manifestações,
às vezes aparentemente díspares, da arte dessa época, se não se concebia, para
empregar a expressão de Riegl, como manifestações de uma determinada “vontade
artística”22. Esta classe de conceitos caracterizam, certamente, mas não determinam: não
podem derivar deles o particular que eles enquadram. Seria igualmente falso, entretanto,
concluir daqui que o que estes conceitos nos oferecem é uma simples descrição intuitiva
e nem uma caracterização conceitual, se bem que se trata de uma caracterização muito
peculiar, de um trabalho lógico-espiritual sui generis.
Detenhamo-nos neste ponto, e antes de seguir adiante, retornaremos dele a
mirada sobre nossas considerações anteriores. O resultado da análise lógica dos
conceitos de estilo somente adquirem sua plena e verdadeira significação se o
comparamos com o resultado da análise fenomenológica. E, ao fazê-lo, encontramo-nos
não mais com um paralelismo, senão com uma autêntica interdependência. A diferença
que existe entre os conceitos de forma e estilo e os conceitos de coisa ou objetivos
expressa, traduzido para uma linguagem puramente lógica, precisamente aquela
diferença que anteriormente pudemos apreciar quanto a estrutura de nossas percepções.
É, por assim dizer, a tradução lógica de uma oposição entre duas tendências, oposição
que, como tal, não se apresenta no mundo dos conceitos mas tem suas raízes no solo
das percepções. O conceito expressa “discursivamente” o que a percepção entranha em
forma de conhecimento puramente “intuitivo”. A “realidade” que captamos na percepção e
na intuição imediata aparece diante de nós como um todo no qual não se dão nunca
separações bruscas. E, entretanto, isto tudo está acima do par “um e dois”, na medida em
que captamos, de um lado, como uma realidade objetiva e, de outro, como uma realidade
“pessoal”.
Um dos primeiros problemas de toda crítica do conhecimento consiste em
esclarecer a constituição lógica de cada uma destas duas formas fundamentais da
experiência. Este problema foi resolvido em termos breves e impressionantes por Kant, no

21 Nota do tradutor: Nos termos originais de Husserl “ideirende Abstraktion”.


22 Cf. Alois Riegl, Stilfragen (1893) e Spätrömische Kunstindustrie (1901).
tocante ao mundo das coisas, ao que chamamos a realidade “física”. É real tudo quando
fala-se em conexão com as condições materiais da experiência, com a sensação
submetida à leis universais. A realidade, em sentido físico, não se reduz; nem muito
menos, às sensações; não se circunscreve ao “aqui” e ao “agora” concretos. Coloca este
aqui e agora dentro de uma “conexão” sistemática universal, os acomoda no sistema do
espaço e do tempo. Toda a construção conceitual que a ciência leva a cabo sobre a
“matéria” das sensações tende sempre, em última condição, a esta única meta. Este
trabalho tem sido feito de forma cada vez mais rica e multiforme e a medida que ele
desenvolve a ciência e a análise lógica encarregada de investigar em detalhes sua
trajetória vai revelando-nos sua crescente sutileza.
Entretanto, na medida em que cabe nisto uma simplificação esquemática podemos
reduzir este trabalho, essencialmente, a dois aspectos fundamentais. Os dois traços
substanciais do mundo físico são, com efeito, a constância das propriedades e a
constância das leis. Se podemos falar de um “cosmo” é porque fazemos com que se
detenha, de um modo ou de outro, o fluxo heraclitiano do devir, porque somos capazes
de extrair dele certas determinações estáveis e permanentes. E esta transição não
acontece somente ali aonde aparece a teoria filosófica e científica com suas exigências
substantivas. Não, a tendência a esta “consolidação” já é acoplada à percepção mesma, a
qual, desprovida dela, jamais chegaria a ser uma percepção das “coisas”. A ação dos
nossos sentidos, a ação de ver, de ouvir, de tocar se encarrega de dar o primeiro passo
prévio para a formação de todo o conceito e é nele que este tem que se apoiar. Começa
assim aquele progresso de seleção, graças o qual distinguimos a cor “real” de um objeto
de sua cor aparente, seu verdadeiro tamanho do que não é mais do que a aparência dele,
etc.
A psicologia e a fisiologia modernas da percepção esclareceram nitidamente este
problema e investigaram-no a partir de todos os pontos de vista. O problema da
constância perceptiva constitui um dos problemas mais importantes dessas disciplinas e
um dos mais fecundos do ponto de vista da teoria do conhecimento. Com efeito, partindo
daqui, pode-se fazer a ponte do conhecimento perceptivo com os conceitos superiores da
ciência exata principalmente com o conceito matemático de grupos.
Neste ponto, a ciência só se distingue da percepção – ainda que a distinção
contenha certamente uma importância extraordinária – em que aquela exige uma
determinação rigorosa, enquanto que esta se contenta com uma simples apreciação23. A
ciência necessita, portanto, para alcançar sua meta, desenvolver métodos próprios e
novos. Determina a “essência” das coisas por meio de conceitos numéricos, de
constantes físicas e químicas características de cada classe de objetos. E ela estabelece
a junção relacionando estas constantes por meio de relações funcionais fixas, por meio de
equações que revela-nos como umas magnitudes dependem de outras. Só assim
obtemos uma forte estrutura da realidade “objetiva”; é constituído, deste modo, o mundo
objetivo comum. Está claro que este resultado é obtido ao custo de um sacrifício. Este
mundo das coisas é um mundo radicalmente carente de alma; nele não está deslocado
mas eliminado e, ainda mais, extinto, enquanto lembra a vivência “pessoal” do eu.
Nesta imagem da natureza não pode, portanto, encontrar lugar nem cabe à cultura
humana. Entretanto, a cultura também é um “mundo intersubjetivo”, quer dizer, um mundo
que não existe “em mim”, senão que tem que ser acessível a todos os sujeitos, dar a
todos eles a possibilidade de participar nele. O que acontece é que a forma desta
participação difere totalmente da que nos revela o mundo físico. Em vez de referir-se ao
mesmo cosmos das coisas no tempo e no espaço, na cultura humana os sujeitos se
encontram e se agrupam de outro modo: em uma atividade comum. Ao desenvolver esta
atividade conjunta, reconhecem-se uns aos outros, adquirem a consciência mútua do que

23 Mais detalhes em nosso ensaio “O conceito de grupo e a teoria da percepção”, em Journal de


Psychologie, 1938, pp. 368-414.
são, por meio dos diversos mundos de formas do qual se compõe a cultura.
Também neste terreno a percepção é a encarregada de dar o passo primeiro e
decisivo, o que conduz do “eu” ao “tu”. Mas a experiência puramente passiva da
expressão não basta para ele, como não basta a simples sensação, a mera “impressão”
para chegar ao conhecimento objetivo. A verdadeira “síntese” só se alcança por meio
daquele intercâmbio ativo que se apresenta a nós, uma forma típica, em qualquer
“entendimento” alcançado pelo veículo da linguagem. A constância que nesse caso
necessitamos e podemos conseguir não é a constância de propriedades ou de leis, mas a
constância de significações.
Quanto mais se desenvolve a cultura e mais ela se desdobra em diversos campos,
maior a riqueza e multiplicidade de formas que este mundo de significação exige. O
homem vive nas palavras da linguagem, nas imagens da poesia e das artes plásticas, nas
formas da música, nos quadros forjados pela imaginação e pela fé religiosas. Assim, e
somente assim, “sabemos” uns dos outros. Este saber intuitivo não assinala todavia o
caráter próprio da “ciência”. Para entendermos uns aos outros falando não precisamos
saber filologia nem gramática; para sentir uma emoção artística “natural” não
necessitamos conhecer a história da arte nem a estilística. Mas esta compreensão
“natural” logo chega ao seu limite. Do mesmo modo que a mera percepção sensível não
pode penetrar nas profundidades do espaço cósmico, tampouco os elementos da intuição
podem adentrar-se nas profundezas da cultura. Em um e em outro caso podemos
alcançar tão somente o próximo; o distante se perde na obscuridade e na bruma.
Para romper as trevas da distância tem que recorrer à ciência. A ciência natural
penetra com seus raios na espessura do distante ao se elevar ao conhecimento das leis
universais, para o qual não há nem perto nem longe. Começa com observações do que
acontece a nossa volta, parte das regras que encontra na queda dos corpos no espaço,
para logo ampliar este tesouro até convertê-lo na lei da gravitação universal, aplicável à
totalidade do espaço cósmico.
Esta forma de universalidade não é acessível à ciência da cultura. Esta não pode
se desembaraçar do antropomorfismo e do antropocentrismo. Seu objeto não é o mundo
como tal, senão somente uma determinada órbita dele a qual contemplada do ponto de
vista puramente espacial, revela-se como algo muito insignificante. Mas se essa ciência
se detém no mundo dos homens ficando, portanto, prisioneira dentro dos estreitos limites
da existência terrena, aspira, pelo contrário, a abarcar por completo este estreito domínio.
Não tem por meta a universalidade das leis, mas tão pouco se contenta com a
individualidade dos fatos e dos fenômenos. Ergue-se frente a um e outro ideal próprio de
conhecimento. Pretende conhecer a totalidade das formas nas quais se desloca a vida
humana. Estas formas são infinitamente diferenciadas e, entretanto, não precisam de
unidade estrutural. No final das contas, é sempre “o mesmo” homem quem se manifesta
constantemente diante de nós sob mil revelações e mil máscaras diferentes. Está claro
que não cobramos consciência desta identidade por meio da observação, pensando e
medindo, nem podemos tampouco descobri-la pelas vias da indução psicológica. É uma
ação e somente ela a que revela e demonstra. Uma cultura não é acessível quando
penetramos ativamente nela; e esta penetração não está vinculada ao presente imediato.
As diferenças de tempo, as diferenças do antes e depois se relativizam neste caso,
mesmo que na captação própria da física e da astronomia relativizem as diferenças de
espaço, as diferenças entre o aqui e o ali.
Para alcançar ambas as coisas necessitamos da mediação extraordinariamente
sutil e complicada dos conceitos. O resultado perseguido se alcança, em um caso, por
meio dos conceitos de formas e estilos. O conhecimento histórico forma parte
imprescindível deste processo mas não é um fim em si mesmo, senão simplesmente um
meio. A missão da história não consiste exclusivamente em conhecer o ser e a vida
passadas, mas também naquilo no qual procuramos interpretá-los. O simples
conhecimento do passado seria, para nós, uma “imagem morta sobre o papel” se nele
não interviessem outras forças que aquelas da memória reprodutiva. Os fatos e
acontecimentos guardados pela memória convertem-se em ricas recordações quando
acomodamo-nos em nosso interior, sem nos assimilarmos a ele. Dizia Ranke que a
verdadeira missão do historiador consiste em descrever “como tem sido realmente”. Mas,
ainda que aceitemos essa frase como boa, é muito importante não perder de vista que o
“sido” exige uma nova significação quando se lhe contempla do ângulo visual da história.
A história não é simplesmente cronologia e o tempo histórico não é precisamente o tempo
físico-objetivo. Para o historiador, o passado não é, da maneira como o é para o
naturalista, mas “passado”, senão que possui e conserva um “presente” próprio e peculiar.
O geólogo fala-nos da forma passada da terra; o paleontólogo informa-nos acerca das
formas orgânicas mortas, desaparecidas. Todo ele “foi” em seu dia, e não pode restaurar-
se nem em sua existência nem em seu modo de ser. A história, pelo contrário, nunca
projeta diante de nós um ser puramente passado, mas ela trata de fazer com que
compreendamos a vida pretérita. É certo que não está em suas mãos ressuscitar a vida
passada mas, sim, aspirar a conservar sua forma pura. A ele se encaminham, em última
instância, muitos conceitos de forma e estilo que as ciências da cultura estabelecem; de
outro modo jamais seria possível a “verificação”, a “palingênese” da cultura. O único que
materialmente se conserva do passado são os “monumentos” históricos, as palavras
escritas, as imagens, o bronze e as pedras. Para que estes “monumentos” convertam-se
em história, para que exijam vida histórica, é necessário que saibamos ver neles
símbolos, que não apenas permitam-nos conhecer determinadas formas de vida, mas
reanimem-nas para nós.

II

Os ataque mais frequentes a que se vê exposta toda teoria que reivindique a


autonomia lógica dos conceitos de estilo são os que o naturalismo do século XIX formulou
contra essa pretensão de autonomia. A tentativa mais aguda e mais consequente que até
agora se tem feito para combater a própria peculiaridade desta classe de conceitos é o
que vai associado ao nome de Hippolyte Taine. Tentativa tão atrativa e tentadora que
Taine não se contentou simplesmente em expor a teoria mas ele se esforçou, aliás, para
pô-la em prática. Em sua Filosofia da arte e em sua História da literatura inglesa,
encontramos brilhantemente aplicada a tese deste autor.
Sobre um material que abarca quase todas as grandes épocas da história da
literatura e a arte Hippolyte Taine trata de demonstrar que a ciência literária e a estética só
podem ser tratadas de um modo verdadeiramente científico com a condição de que
renunciem a toda posição a parte. Em vez de dedicar-se a distinguir-se, a sua maneira, da
ciência da natureza, devem, pelo contrário, sumir-se por inteiro nela. Todo conhecimento
científico é, à rigor, um conhecimento causal, e do mesmo modo que não existem duas
séries de causas, as “espirituais” e as “naturais”, não podem tampouco existir uma
ciência do espírito” ao lado da “ciência da natureza”.
“O método moderno o qual tento ajustar-me – diz Taine – e que começa a impor-se
em todas as ciências da cultura [os franceses a chamam de ciências morais] consiste em
considerar as obras humanas, especialmente as obras de arte, como fatos e produtos
cujas características cabem assinalar e cujas causas cabe investigar: não mais do que
isso. A ciência não repudia nem perdoa; facilmente, comprova e explica... Procede
exatamente o mesmo que a botânica a qual estuda com o mesmo interesse tanto a
laranja quanto o laurel, o álamo e o pinho. É, na realidade, uma espécie botânica, com a
diferença que não versa sobre as plantas, senão sobre as obras do homem. Segue, neste
respeito, a tendência geral que, hoje, aproxima as ciências do espírito das ciências
naturais e que, ao ajustá-las aos princípios e às diretrizes críticas destas, as infunde a
mesma segurança e as assegura o mesmo progresso”24.
É conhecido o modo como Taine tem tentado resolver o problema colocado nas
linhas anteriores. É evidente que, para poder reduzir a ciência da cultura aos princípios
próprios da ciência da natureza, o primeiro que tem que fazer é sobrepor-se à confusa
multiformidade do acontecer cultural. O mesmo na linguagem que na arte, na religião, na
vida do estado e da sociedade, nosso olhar não acerta o discernimento, a primeira vista,
mas numa variedade misturada e uma sucessão constante de formas soltas e díspares.
Nenhuma delas é igual a outra; nenhuma se repete jamais exatamente da mesma
maneira. Mas esta mistura e esta confusão não devem nos cegar. Também nestas
matérias o conhecimento deve marchar pelos mesmos caminhos que nas ciências
naturais, reduzindo os fatos às leis e as leis à princípios. Desaparece, assim, a aparência
do multiforme, cedendo o passo a uma uniformidade e uma simplicidade que nada tem
que invejar a ciência exata da natureza. Acabamos descobrindo, deste modo, assim, no
acontecer físico como no acontecer espiritual, determinados fatores constantes,
determinadas forças fundamentais, que atuam sempre do mesmo modo. “Há uma série
de grandes causas gerais que dão como resultado a estrutura das coisas e a marcha
geral dos acontecimentos. As religiões, a filosofia, a poesia, a indústria e a técnica, as
formas da sociedade e da família não são, em última instância, senão o seio no qual esta
causa geral imprime enquanto acontece”25.
Não é essa coisa aqui de julgar, minuciosamente, até que ponto Taine tem
conseguido provar intrinsecamente a verdade desta sua tese fundamental, da tese do
mais rigoroso determinismo26. O que interessa-nos é o lado lógico do problema, são os
conceitos no qual Taine se baseia e o método do qual se vale em sua interpretação dos
fenômenos da cultura. Para manter-se fiel ao seu princípio teria que desenvolver os
“conceitos de cultura” partindo dos “conceitos de natureza”. Teria que demonstrar que os
primeiros se acoplam diretamente aos segundos e brotam deles. Sem dúvida, esta era a
meta que ele acreditava ter alcançado ao proclamar sua famosa trilogia dos critérios da
ciência da cultura. Estes três critérios, a saber: os conceitos de raça, meios e tempo, não
pareciam, com efeito, exceder a partir de nenhum ponto de vista o círculo que é possível
traçar valendo-se dos meios exclusivos das ciências naturais. E, entretanto, neles já se
encerra em germe, por outro lado, o quanto necessitamos para derivar até os fenômenos
mais complicados das ciências da cultura. Estes fatores respondem a dupla condição de
representar um estado de coisas perfeitamente simples e indiscutível, mas capaz, ao
mesmo tempo, de uma variação extraordinária a qual se reitera de modo uniforme nas
situações mais diferentes.
É verdadeiramente admirável a arte com que Taine, em seus quadros concretos da
história da cultura, anima e completa de conteúdo intuitivo esse rígido esquema que serve
de base a suas construções. Contudo, se perguntarmo-nos até que ponto consegue o que
se propõe, chegaremos a um resultado bastante curioso e metodologicamente
complicado. Ver-nos-emos levados insensivelmente, continuamente, a um ponto em que o
tipo de explicação de Taine é trocado dialeticamente, até certo ponto, em seu reverso.
Tentaremos ilustrar isto à luz de um exemplo concreto, que é o estudo que Taine
fez da pintura holandesa do século XVII. Fiel a sua máxima, começa expondo as causas
“gerais” do fenômeno estudado. Holanda é o país das inundações; o país formou-se por
aluvium, com a sedimentação que os grandes rios arrastaram em suas águas e foram
depositando na foz. Este solo característico imprime seu caráter fundamental ao país e
aos seus habitantes. Vemos diante de nós o clima e a atmosfera no qual o holandês se
cria e se faz homem, tem necessariamente que produzir determinadas qualidades físicas,
24 Taine, Philosophie de l`art, primeira parte, cap. I, § 1. (Hay trad. espanhola)
25 Taine, História da literatura inglesa. Introdução. (Hay tradução espanhola)
26 Acerca deste problema, cfr. nosso estudo “Naturalistiche und humanistische Begründung det
Kulturphilosophie” em Götemborgs Kungl. Veteskaps – och Vitterherts Samhälles Handlingar, 5e följen,
Ser. A., vol. 7, núm. 3, Götemborg, 1939.
morais e espirituais. A arte holandesa não é outra coisa que a expressão e o reflexo
natural e necessário destas mesmas qualidades. Cabe, assim, opor a estética
especulativo-idealista a uma estética materialista e naturalista, a “estética vista de cima” a
uma “estética vista de baixo”. A continuidade na série das causas não pode ser
interrompida. Não é possível dar o salto súbito do “físico” ao “espiritual”. Tem que passar
do mundo inorgânico ao mundo orgânico, da física à biologia e desta à antropologia
especial. Ao chegar a esta teremos alcançado a meta, pois conhecendo o homem como o
aquilo que ele é, poderemos compreender também seus atos, suas obras.
Sem dúvida, este programa, assim enunciado, resulta muito promissor. Contudo,
pode-se dizer que Taine o aplica, real e verdadeiramente? Vemos o nosso autor ascender
gradualmente da física à botânica e à zoologia, para passar daqui à anatomia e à
fisiologia, seguir logo à psicologia e à caracteriologia e desembocar, por último, nos
fenômenos específicos da cultura? Se fixamo-nos um pouco de perto, vemos que não
existe isto. Taine começa expressando-se na linguagem do naturalista; mas em seguida
se dá conta que não está familiarizado com ele. Quanto mais avança e vai se
aproximando dos verdadeiros problemas concretos mais é obrigado a pensar e falar na
linguagem de outros conceitos. Seu ponto de partida são os conceitos e os termos
técnicos próprios das ciências da natureza, mas ao longo do seu estudo, eles sofrem uma
peculiar mudança de sentido.
Quando fala-nos da paisagem grega, italiana, holandesa, deveria, realmente
manter-se fiel a seu método, analisá-lo e descrevê-lo de acordo com as suas
características “físicas”, quer dizer, como o faria um geólogo ou um geógrafo. E não falta
na obra de Taine, certamente, como já vimos, esforços deste tipo. Mas logo o autor
abandona este caminho para entregar-se a uma caracterização totalmente distinta, que
poderíamos chamar de “fisionômica”, por oposição à física. Pinta-nos a paisagem como
sisudo ou rindo, duro ou amável, terno ou sublime. Todas elas são características que
jamais poderíamos descobrir pela via da observação científico-natural, pois trata-se, pura
e exclusivamente, de caracteres relacionados à expressão. Somente assim, Taine
consegue alcançar a ponte que o conduz ao mundo da arte grega, italiana ou holandesa.
Isto que dissemos destaca-se com especial clareza logo que Taine se aproxima do
problema antropológico por antonomasia. Sua tese exige que descreva a cada uma das
grandes épocas da cultura um tipo determinado de homem e, além disso, derive aquela
deste tipo humano. Deveria, portanto, demonstrar que o homem grego, pela razão de sua
raça e das qualidades físicas concretas que ela produz, estava convocado a ser o criador
da epopeia homérica e do friso do Pártenon, como o inglês, por sua parte, teria que
chegar a ser, em virtude das correspondentes causas, o criador do drama da época
isabelina, ou o italiano o criador da Divina Comédia ou dos afrescos da Capela Sistina.
Mas Taine foge destas construções artificiosas e problemáticas. Também neste ponto o
vemos, através de uma breve tentativa de falar na linguagem dos conceitos da ciência
natural, lançar-se sem vacilações na linguagem expressionista. Ao invés de apoiar-se na
anatomia ou na fisiologia, confia-se a um tipo completamente diferente de conhecimento.
Pode ser que ele pareça, do ponto de vista da lógica, retrocesso e uma contradição; mas
do ponto de vista do que o autor propriamente se propõe, não há dúvida de que
representa uma decisiva vantagem. Somente assim pode, com efeito, cobrar vida e cor
àquele seco esquema lógico da raça, do meio e do tempo. O indivíduo, agora, não
apenas recobra os seus direitos senão que vê-se, incluso, convertido em centro e eixo de
toda a história da cultura. Rien n`existe que par l`individu; c`est l`individu lui-même qu`il
faut connaitre. [“Não existe nada fora do indivíduo; o que tem-se de conhecer é o
indivíduo mesmo”.] É ele e somente ele que revela-nos o seio peculiar da vida artística,
social e religiosa de uma época. “Um dogma, por si mesmo, não é nada; para
compreendermos, devemos olhar para os homens que o têm forjado, tal ou qual retrato do
século XVI, às características duras e enérgicas de um arcebispo ou de um mártir inglês.
A história real somente se eleva diante de nós quando o historiador logra, salvo a
distância dos séculos, apresentar diante dos nossos olhos, os homens viventes..., com
sua voz e sua fisionomia próprias, com seus gestos e suas roupas”. 27
Contudo, de onde obtemos esse nosso conhecimento concreto dos homens, que é,
segundo Taine, o alfa e o ômega de toda história da cultura? Concedamos, sem mais, o
postulado afirmado pelo crítico francês, segundo o qual, toda a cultura é obra do homem,
razão pela qual é a compreensão da natureza humana o que explica tudo. Kant, um dos
defensores mais radicais da ideia da liberdade que a história da filosofia conhece, disse,
não obstante, que se conhecêssemos perfeitamente o caráter empírico de um homem,
poderíamos predizer todos os seus atos futuros com a mesma segurança com que o
astrônomo anuncia de antemão um eclipse do sol ou da lua. Pois bem, tomando isto do
individual ao geral, poderíamos dizer que, conhecido o caráter do holandês do século
XVII, conheceríamos explicitamente todo o outro. Partindo deste conhecimento, podemos
deduzir todas as formações culturais: podemos, por exemplo, compreender por que, nesta
época, produz-se nos Países Baixos, uma transformação da vida política e religiosa, um
grande auge econômico, o despertar da liberdade do pensamento e um florescimento da
vida científica e artística.
Mas, ainda supondo que pudéssemos penetrar por completo nesta conexão real de
causa a efeito, não por ele ficar resolvido o problema lógico fundamental. A lógica não
pergunta pelos fundamentos reais do que acontece, senão pelos fundamentos sobre os
quais descansa o conhecimento. Para ela, o verdadeiro problema fundamental consiste
em saber que tipo de conhecimento é o que nossa ciência do homem nos transmite, como
o portador e criador da cultura.
Ao chegar neste ponto encontramo-nos, nele próprio Taine e em sua própria
exposição, com um giro extraordinariamente curioso. Este autor não extrai seu
conhecimento dos gregos da época clássica, dos ingleses do período do Renascimento
ou holandeses do século XVII exclusivamente dos arquivos históricos. Nem menos apoia-
se em observações e conclusões baseadas nas ciências da natureza ou no que puderam
ensinar-lhes os laboratórios de psicologia. Diz-nos que por este caminho somente
conseguiríamos descobrir características soltas, nunca de uma verdadeira imagem de
conjunto do homem. Sobre o que repousa, então, esta imagem de conjunto, que Taine
exibe diante de nós com tanta plasticidade e a que constantemente se remonta como o
verdadeiro critério de interpretação e explicação?
Para não provocar a sensação de que tratamos de meter algo de contrabando na
teoria de Taine, preferimos contestar a esta pergunta com suas próprias palavras. De
onde – pergunta-se ele – temos um conhecimento tão exato dos flamengos do século
XVII, uma familiaridade tão grande, que leva-nos inclusive a acreditar que temos vivido
entre eles? O que é o que faz-nos sentir tanto a intimidade daqueles homens? Quanto a
isto, contesta-nos Taine que ninguém senão Rubens viu, por sua vez, estes flamengos tal
e qual nós os vemos hoje, gravando indissoluvelmente em nós sua imagem. Mas a coisa
não para aqui. O historiador francês da pintura não se limita a dizer-nos que Rubens
descobriu este tipo de flamengo, fixando-o para sempre em sua arte, mas nos disse mais:
disse-nos que foi ele que o criou. Não pude tomá-lo da observação direta da natureza,
nem tomá-lo da simples comparação empírica. Nenhum flamengo “real” apresenta
exatamente as características que Rubens se propôs a pintar e deixou imortalizados em
sua arte. “Ide a Flandres – diz-nos Taine – e fixa-os naqueles tipos, nos momentos de
alegria e voluptuosidade, nas festas de Gante ou Amberes. Vereis a umas boas pessoas
que comem bem e bebem mais, que fumam seu cachimbo com grande alegria e rosto
suave, pessoas fleumáticas, razoáveis, de continente seco e características grosseiras e
irregulares, muito parecidas com as figuras pintadas por Teniers. Aqueles tipos roliços e

27 Taine, Histoire de la littérature anglaise. Introducción.


transbordantes de saúde que contemplam-nos na kermesse de Rubens não os
encontrareis em nenhuma parte. O grande pintor tomou-os de outra fonte. Não os extraiu
da realidade, senão de si mesmo. Sentia dentro de si, movendo seus pincéis, a poesia
daquela vida opulenta e transbordante, daquela sensualidade, desbocada, impudica,
daquela alegria brutal que se exibe em gigantescas proporções. Para expressar este
sentimento … pinta-nos em sua kermesse o triunfo mais estupefaciente da bestialidade
humana que jamais foi traçado pelo pincel de um pintor. Quando o artista altera, ao
reproduzi-las, as proporções do corpo humano, as altera sempre no mesmo sentido e
com uma determinada intenção. Trata, com ele, de dar relevo ao caráter essencial
(caractère essentiel) do objeto e a ideia principal (idée principale) que dele se forma.
Fixemo-nos bem nesta expressão. Este caráter é o que os filósofos chamam de essência
das coisas (l`essence des choses). Prescindamos, entretanto, para estes efeitos, da
palavra “essência”, naquilo que ela tem de termo técnico. Contentemo-nos em dizer que a
missão da arte consiste em por manifesto o caráter fundamental, alguma causalidade
destacada e notável, um ponto de vista importante, uma maneira de ser uma parte vital do
objeto” (L`art a pour but de manifester le caractère capital, quelque qualité saillant et
notable, un point de vue important, une manière d`être principale de objet.) 28
Pois bem, estas locuções empregadas por Taine para definir o objeto da arte
constituem, no fundo, outros tantos enigmas, quando pensamos no ponto de partida de
nosso autor. Com efeito, por que meios podemos determinar qual é a “essência” de um
determinado objeto plástico, sua “qualidade destacada e notável”, sua maneira de ser
vital”? A observação empírica direta não diz-nos, evidentemente. Contemplada a coisa a
partir deste ponto de vista, todas as características de um objeto aparecem no mesmo
plano: nenhuma apresenta um traço essencial ou valorativo que a distinga das outras. E
tampouco os métodos estatísticos conduzem-nos a fixá-los. O mesmo Taine diz-nos que a
pintura do flamengo que Rubens que nos deixou em suas telas não pode ser considerada,
de modo algum, como uma imagem composta ou selecionada com base em centenas ou
milhares de observações concretas. Nasce, pelo contrário, da alma do artista, que
somente ela é capaz de diferenciar, deste modo, o “essencial” do “acidental”, o
determinante e o dominante do acessório. “Na natureza, o caráter é simplesmente
dominante; trata-se, na arte, de convertê-lo em dominador. (Dans la nature le caractère
n`est que dominant; il s`agit, dans l`art, de le rendre dominateur) Este caráter forma os
objetos reais, mas não os forma em sua totalidade. Vê-se entorpecido em sua ação pela
cooperação de outras causas. Não conseguiu imprimir-se aos objetos a marca
perfeitamente clara e visível. O homem percebe-se desta lagoa, e para preenchê-la,
inventa a arte”.29
Quando Taine escreveu essas linhas, não queria, de modo algum, exceder com
elas o círculo da teoria rigorosamente naturalista. A primeira vista compreende-se,
entretanto, que poderia figurar sem inconveniente algum em qualquer estética “idealista” e
que, nelas, o autor concede a este tipo de estética tudo aquilo que o princípio parecia
negar-lhe.30 Aqui encontramo-nos com aquilo que a arte tem: uma função criadora
peculiar, que permite ela discernir entre o essencial e o acidental, o necessário e o
fortuito. Não se entrega pura e simplesmente à observação empírica e à massa dos casos
concretos, senão que “distingue, escolhe e julga”. Portanto, o conhecimento do
“essencial” que a arte nos transmite não o devemos, como ao princípio parecia, à
metodologia indutiva da ciência natural. Foi necessário, pelo contrário, que existisse um
28 Taine, Philosophie de l`art, primeira parte, cap. I, § V.
29 Taine, Philosophie de l`art, primeira parte, cap. I, seção V.
30 O qual é tão mais surpreendente quanto do que Taine, em princípio, manteve-se por inteiro no terreno
da “teoria da imitação”. Considera como “artes imitativas” não somente a poesia e a pintura ou a
escultura, senão também a arquitetura e a música ainda que para ele tenha que recorrer, certamente, a
uma construção bastante artificiosa e forçada.
Homero ou um Píndaro, um Michelangelo ou um Rafael, um Dante ou um Shakespeare,
para que nos legassem esse conhecimento. É a intuição dos grandes artistas que a
projetam diante de nós a imagem do grego da época clássica ou a do italiano ou o inglês
do Renascimento, plasmando-a em suas características fundamentais.
Agora, damo-nos conta claramente que o pensamento de Taine, para chegar a um
resultado determinado e concreto, vê-se obrigado a descrever um curioso círculo.
Inicialmente, trata de derivar e explicar o mundo das formas artísticas partindo do mundo
das forças físicas. Mas não tem mais escolha a não ser recorrer novamente, embora sob
diferente nome, às formas que ele pretendeu eliminar, e somente assim pode introduzir na
“série constantemente igual” dos fenômenos da natureza e das causas naturais certas e
determinadas diferenças que são necessárias para a sua exposição.
Este primeiro passo, uma vez dado, foi de uma importância decisiva para tudo o
que vinha atrás. Com isso, a armadura de ferro da rigorosa metologia naturalista é
quebrada. Taine, livre de seus pressupostos dogmáticos, podia entregar-se novamente à
concepção “simplista”, e o fez, com efeito, sem remorso. Pouco a pouco, a geologia e a
geografia, a zoologia e a botânica, a anatomia e a fisiologia, são esquecidas. Enquanto
Taine pinta a natureza holandesa, entrega-se sem a menor reserva àquilo aos que os
paisagistas holandeses ensinaram-no acerca dela. E quando fala-nos da raça grega não
tenta caracterizá-la por meio de observações e medições antropológicas, mas atem-se
aquilo que a estatuária grega diz respeito a ela, as obras de Fídias e Praxiteles. Não é,
pois, estranho que seja possível inverter este ponto de vista, quer dizer, “derivar” a arte da
natureza, depois de ter-se formado uma imagem da natureza que, em algumas de suas
características, procede da arte mesma e recebe dela sua carta de legitimidade.
A dificuldade com a qual aqui tropeçamos guarda relação com um problema
absolutamente geral que, mais cedo ou mais tarde, manifesta-se no emprego de todos os
conceitos das ciências da cultura. O objeto da natureza aparece diretamente diante de
nossos olhos. Certamente, uma análise teórica, um pouco cuidadosa, do conhecimento
revela-nos quantos e como conceitos complicados são necessários para chegar a
determinar também, em sua própria peculiaridade, este objeto, o “objeto” próprio da física,
da química e da biologia. Entretanto, esta determinação sempre segue uma certa direção,
que é sempre a mesma: dirigimo-nos, certo modo, até o objeto mesmo para conhecê-lo
cada vez com maior exatidão.
Em vez disso, não é assim que temos que considerar o objeto cultural, do qual se
fala, por assim dizer, por detrás de nós. Certamente, a primeira vista, parece-nos ser mais
familiar e acessível do que qualquer outro objeto. Pois, o que pode compreender o
homem – perguntava-se Vico – melhor e mais integralmente que o que ele mesmo criou?
O conhecimento, entretanto, esbarra aqui em uma barreira difícil de saltar. O processo
reflexivo do compreender é por sua tendência, de direção oposta a do processo produtivo:
não podem desenvolver-se ambos conjuntamente e de uma só vez. A cultura cria uma
corrente constante e ininterrupta de novos símbolos linguísticos, artísticos e religiosos.
Mas a ciência e a filosofia precisam analisar em seus elementos esta linguagem dos
símbolos para torná-los compreensíveis. Precisam tratar analiticamente o que a cultura
cria sinteticamente. Reina aqui, portanto, um movimento constante de fluxo e refluxo. A
ciência da natureza ensina-nos, para empregar o símile de Kant, “ao soletrar fenômenos
para em seguida poder lê-los como experiências”; as ciências da cultura, por sua parte,
ensinam-nos a interpretar símbolos, para chegar a decifrar o conteúdo fechado neles,
quer dizer, para novamente obter do manifesto da vida de onde aqueles símbolos
brotaram originalmente.

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