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21 de Julho de 2011 ⋅ História da filosofia

Husserl, Heidegger e Sartre


Anthony Kenny
Tradução de Cristina Carvalho
A fenomenologia de Husserl

A vida de Edmund Husserl assemelha-se à de Sigmund Freud em vários pontos cruciais. Era três anos
mais novo do que Freud e, como este, nasceu na Morávia, no seio de uma família judaica, e estudou em
Viena. Ambos dedicaram a maior parte das suas vidas a um projecto pessoal que visava apresentar-se
como o primeiro estudo verdadeiramente científico da mente humana. No final das suas vidas, ambos
esbarraram com o anti-semitismo nazi; Freud foi forçado a abandonar a Áustria, vindo a morrer no
exílio, e os livros de Husserl foram queimados pelas tropas alemãs que marcharam sobre Praga em 1939.
No entanto, a vida profissional de Husserl foi muito diferente da de Freud. Começou por estudar, não
medicina, mas matemática e astronomia. Enveredou depois por uma carreira académica ortodoxa em
filosofia, leccionando numa sucessão de departamentos universitários. Embora tivesse obtido o
doutoramento pela Universidade de Viena, Husserl optou por fazer as provas de agregação na
Universidade de Halle, e as cátedras de que veio mais tarde a ser titular foram sempre em
universidades alemãs e não austríacas. O interesse de Husserl pela filosofia foi despertado pelas aulas
de Franz Brentano em Viena, entre 1884 e 1886. Brentano (1838-1917) era um ex-sacerdote, um
académico erudito que procurou relacionar a filosofia da mente de Aristóteles com a investigação
experimental contemporânea no livro A Psicologia de um Ponto de Vista Empírico (1874), que veio mais
tarde a ter grande impacto. Nesta obra, explica-se que os dados da consciência são de dois tipos:
fenómenos físicos e fenómenos mentais. Os fenómenos físicos são entidades como as cores e os
cheiros; os fenómenos mentais, como sejam os pensamentos, caracterizam-se por terem um conteúdo,
ou objecto, imanente. Esta característica, para a qual Brentano reintroduz o termo escolástico
“intencionalidade”, constitui a chave para a compreensão dos actos mentais e da vida. Ainda que
influenciado pela abordagem da psicologia por parte de Brentano, Husserl continuou inicialmente a
focar a sua atenção na matemática. A tese submetida em Halle para efeitos de agregação dizia respeito
ao conceito de número, e o seu primeiro livro, publicado em 1891, intitulava-se Filosofia da Aritmética.
Nesta obra, Husserl procurou explicar os nossos conceitos numéricos, identificando os actos mentais
nos quais radicava a sua origem psicológica. O nosso conceito de pluralidade, por exemplo, era
apresentado como algo que derivava de um processo de “combinação colectiva” que agrupava itens em
agregados. Em virtude do seu desejo de encontrar uma base para a matemática na psicologia empírica,
Husserl viu-se forçado a assumir algumas conclusões muito pouco atraentes. Entre estas, e a título de
exemplo, a negação de que zero e um são números. Viu-se também obrigado a traçar uma distinção
rigorosa entre a aritmética dos números pequenos e a aritmética dos números grandes. Mentalmente,
só conseguimos ver grupos diminutos, pelo que apenas parte da aritmética poderá ter uma base
intuitiva; quando se trata de lidar com números grandes, afastamo-nos da intuição e entramos num
domínio meramente simbólico. Os pares de Husserl que recensearam o livro, com destaque para Frege,
queixaram-se de que o livro confundia imaginação e pensamento. Os eventos mentais que constituíam o
objecto de estudo da psicologia, sendo pertença privada do indivíduo que deles tem experiência, não
podiam constituir-se como fundamento de uma ciência pública como a aritmética. Esta teria de
alicerçar-se em pensamentos que fossem propriedade comum a toda a humanidade. Husserl anuiu às
críticas e abandonou o seu psicologismo anterior. Em Investigações Lógicas, de 1900-1901, argumentou
que a lógica não podia ser derivada da psicologia, e que qualquer tentativa nesse sentido envolveria
necessariamente um círculo vicioso, pois teria de apelar à lógica no decurso da sua dedução. De então
em diante, e à semelhança do que acontecera com Frege, Husserl manteve o plano lógico e o plano
psicológico estritamente separados. Todavia, enquanto Frege, seguido pela tradição analítica, centrou a
filosofia no quadrante analítico, Husserl, seguido pela tradição continental, viu no quadrante psicológico
a verdadeira morada da filosofia. Não obstante, naquela altura, Frege e Husserl estavam de acordo
quanto a basear a filosofia — fosse ela lógica ou psicológica — num realismo platónico explícito.
No início do século XX, Gilbert Ryle descreve vividamente, ainda que não com total imparcialidade, a
“fotografia de conjunto”:
“No virar do século, Husserl encontrava-se sob muitas das pressões intelectuais a que estavam
igualmente sujeitos Meinong, Frege, Bradley, Peirce, G. E. Moore e Bertrand Russell. Todos se
insurgiam contra a psicologia das ideias de Hume e Mill; todos exigiam que a lógica se emancipasse da
psicologia; todos encontraram na noção de significado a saída que lhes permitia escapar às teorias
subjectivistas do pensamento; quase todos advogavam uma teoria platónica de significados, i.e., de
conceitos e proposições; todos demarcavam a filosofia da ciência natural, atribuindo as investigações
factuais às ciências naturais e as investigações conceptuais à filosofia; quase todos se expressavam
como se estas investigações conceptuais da filosofia resultassem em super-inspecções de super-
objectos, como se as investigações conceptuais fossem, ao fim e ao cabo, investigações super-
observacionais; porém, todos, no exercício concreto das suas investigações conceptuais,
necessariamente divergiram das super-observações que as suas epistemologias platónicas requeriam.
Husserl falava de intuir essências mais ou menos como Moore falava de inspeccionar conceitos, e como
Russell falava de contacto com os universais, mas, como é óbvio, foi por meio de combates intelectuais,
e não por mor de quaisquer intuições intelectuais, que dirimiram as suas efectivas dificuldades
conceptuais.” (Collected Papers, I, p. 180) Ryle faz bem em sublinhar o ponto de partida comum das
tradições analítica e continental; no caso de Husserl, porém, o combate intelectual foi, na verdade, mais
complicado do que esta passagem incisiva sugere. Husserl aproveitou de Brentano a noção de
intencionalidade ou, por outras palavras, a ideia de que o que caracteriza os fenómenos mentais,
distinguindo-os dos físicos, é o facto de serem dirigidos a objectos. Penso sobre Tróia, por exemplo, ou
preocupo-me acerca dos meus investimentos — a intencionalidade é o traço indicado pelas palavrinhas
“sobre” e “acerca”. Qual é a relação entre o que acontece na minha mente e uma cidade há muito
defunta, ou entre o que acontece na minha mente e os mercados bolsistas em todo o mundo? Husserl, e
muitos depois dele, passaram anos a tentar dar resposta a esta pergunta. 1 Para que haja um
pensamento, têm de existir dois elementos essenciais: um conteúdo e um possuidor. Imagine que penso
num dragão. Há duas coisas que fazem dele o pensamento que efectivamente é: uma, o facto de ser um
pensamento de um dragão, e não de uma águia ou de um cavalo; outra, o facto de ser o meu pensamento,
e não o pensamento do leitor, ou de Napoleão. Husserl assinalaria estas duas características dizendo
que se tratava de um acto praticado por mim sobre um assunto específico (o objecto intencional do meu
acto). Outras pessoas também poderão pensar em dragões; nesse caso, e de acordo com Husserl, temos
vários actos individuais pertencentes à mesma espécie. O conceito dragão é, com efeito, nada mais do
que a espécie à qual todos os actos como aqueles pertencem. Em Investigações Lógicas, os conceitos
são pois definidos com base em itens psicológicos. Mas de que modo se relaciona a lógica com conceitos
assim definidos? Segundo Husserl, da mesma maneira que os teoremas geométricos se relacionam com
os corpos empíricos tridimensionais. Por meio deste expediente, Husserl podia repudiar o psicologismo
que defendera anteriormente, e traçar uma distinção clara entre psicologia e lógica. Posto isto, Husserl
foi mais longe e traçou uma distinção entre psicologia e epistemologia. Fê-lo reinventando a psicologia
como uma nova disciplina da “fenomenologia”. A fenomenologia foi desenvolvida ao longo da primeira
década do século XX. Em 1900, Husserl foi nomeado professor associado da Universidade de Göttingen.
Aí, teve como colega o célebre matemático David Hilbert, mas os colaboradores mais entusiásticos
desta nova empresa foram um grupo de filósofos de Munique, que inventaram a expressão “movimento
fenomenológico”. Em 1913, a autoconfiança deste grupo enquanto movimento era já suficiente para que
tivesse publicado um anuário de investigação fenomenológica. O primeiro número deste anuário continha
um texto longo, da dimensão de um livro, escrito por Husserl, texto que fora planeado como o primeiro
volume de uma obra a intitular Ideias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia
Fenomenológica. O objectivo da fenomenologia era o estudo dos dados imediatos da consciência, sem
referência a algo que a consciência nos pudesse porventura dizer, ou pretender dizer, sobre o mundo
extramental. Quando penso numa Fénix, a intencionalidade do meu pensamento é exactamente a mesma
haja ou não Fénix na realidade. Já em 1901 Husserl havia escrito “Ao objecto que é apresentado e dado
à consciência, não traz qualquer diferença essencial o facto de existir, ser fictício, ou mesmo ser
completamente absurdo. Penso em Júpiter como penso em Bismarck, na Torre de Babel como na
Catedral de Colónia, num polígono regular de mil lados como num sólido regular de mil faces”
(Investigações Lógicas, II, p. 99). E o mesmo, acreditava Husserl, quando vejo uma mesa. A
intencionalidade da minha experiência é exactamente a mesma quer haja de facto ali uma mesa, quer eu
esteja a ter uma alucinação. O fenomenólogo deve fazer um estudo aprofundado dos fenómenos
psicológicos e pôr entre parêntesis o mundo dos objectos extramentais. Quanto à existência deste
mundo, a atitude do fenomenólogo deve ser a de suspensão do juízo, para a qual Husserl utilizou o
termo grego epoche. Chamou-se a isto “a redução fenomenológica”. Era, digamos assim, a filosofia a
retrair-se. Fenomenologia não é o mesmo que fenomenismo. Um fenomenista acredita que nada existe
excepto fenómenos e que afirmações acerca de coisas como objectos materiais têm de ser traduzidas
para afirmações acerca de aparências. Berkeley e Mill defendiam versões de fenomenismo. 2 Husserl,
por outro lado, não afirmou em Ideias que não há outras realidades que não os fenómenos; deixou
deliberadamente em aberto a possibilidade de existência de um mundo de objectos não fenoménicos.
Trata-se apenas de estes objectos não interessarem, ou pelo menos não interessarem à partida, ao
filósofo. De acordo com Husserl, a razão para que assim seja prende-se com o facto de termos um
conhecimento infalível e imediato dos objectos da nossa consciência, ao passo que temos apenas
informação inferencial e conjectural sobre o mundo exterior. Husserl estabeleceu uma distinção entre
percepção imanente, que é evidente em si mesma, e percepção transcendente, que é falível. A
percepção imanente é o meu contacto imediato com os meus próprios actos e estados mentais actuais. A
percepção transcendente é a minha percepção dos meus actos e estados do passado, de coisas e
acontecimentos físicos, e dos conteúdos das mentes de outras pessoas. A percepção imanente constitui
a matéria de estudo da fenomenologia. A percepção imanente é mais fundamental do que a percepção
transcendente, não só porque a percepção imanente é evidente em si, mas também porque as
inferências e conjecturas que constituem a percepção transcendente se baseiam, e têm de se basear,
nas deliberações da percepção imanente. Apenas a consciência tem “ser absoluto”; todas as outras
formas de ser dependem da consciência para existirem ( Ideias, I, p. 49). A fenomenologia é, assim, a
mais básica de todas as disciplinas, pois os itens que constituem o seu objecto de estudo fornecem os
dados para todos os outros ramos da filosofia e da ciência. Husserl projectou Ideias como obra em três
volumes, sendo que os últimos dois só seriam publicados após a sua morte. Em 1916, Husserl muda-se
para Friburgo, onde permanece como professor na universidade desta cidade até se aposentar, em
1928, tendo rejeitado em 1923 uma proposta da Universidade de Berlim. Na universidade de Friburgo,
as suas aulas atraíram um vasto público internacional, contando-se entre os seus alunos alguns que
viriam a tornar-se filósofos muitíssimo influentes, como Martin Heidegger e Edith Stein. Ao longo
desses anos, desenvolveu o sistema apresentado no volume I de Ideias em várias direcções. Por um
lado, ampliou o método fenomenológico de modo a minimizar alguns pressupostos que Descartes
assumira acriticamente, o que fez a sua epoche tornar-se mais radical do que a dúvida cartesiana. Por
outro lado, envidou esforços para combinar o seu solipsismo metodológico com uma solução para o
problema da intersubjectividade que estabelecia a existência de outras mentes. A posição final de
Husserl foi um idealismo transcendental que, sustentava, era a conclusão inseparável da fenomenologia
(Meditações Cartesianas, p. 42). Alguns dos resultados das suas reflexões tardias foram publicados em
duas obras dadas à estampa nos anos que se seguiram à sua aposentação: Meditações
Cartesianas e Lógica Formal e Transcendental.

O existencialismo de Heidegger

Dois anos antes, um dos alunos de Husserl tinha publicado um livro que viria ter um impacto muito maior
do que qualquer daquelas duas obras. O Ser e Tempo, de Martin Heidegger (1889-1976), defendia que,
até então, a fenomenologia tinha sido demasiado frouxa: propunha-se examinar os dados da consciência,
mas empregava noções como “sujeito”, “objecto”, “acção” e “conteúdo” — itens que não tinha descoberto
na consciência, antes herdado da filosofia anterior. O aspecto mais importante era o facto de Husserl
ter aceitado o quadro de referência de Descartes, no qual havia dois domínios correlativos de
consciência e realidade. Husserl adoptara apenas um destes — a consciência — na fenomenologia.
Todavia, a primeira tarefa da fenomenologia era, segundo Heidegger, estudar o conceito de Ser ( Sein),
conceito este que era anterior à separação entre consciência e realidade. A experiência que nos leva a
contrastar a consciência e a realidade como dois pólos opostos é, justamente, o primeiro fenómeno a
examinar. Temos portanto de recuar até antes de Descartes para clarificar a natureza da filosofia, e
tomar como ponto de partida, não a consciência, mas sim o Ser. No entanto, Heidegger adverte que não
basta simplesmente regressar às categorias de Platão e de Aristóteles, pois estas contêm já um
elemento de sofisticação artificial. Os pré-socráticos oferecem ao fenomenólogo radical os melhores
exemplos a seguir, na medida em que o período em que filosofaram é anterior ao da formação do
vocabulário filosófico profissional, e a todos os pressupostos que um tal vocabulário implica. Heidegger
chamou a si a tarefa de inventar um vocabulário impoluto que permitisse, por assim dizer, filosofar “ao
natural.” Dos vários termos inventados por Heidegger, o mais importante foi Dasein. O Dasein é o tipo
de ser que é capaz de fazer perguntas filosóficas e, da maneira como Heidegger o elucidou, o conceito
de Dasein começou por soar a algo demasiadamente confundível com o eu cartesiano. Contudo, enquanto
o eu de Descartes era, na sua essência, uma coisa pensante, uma res cogitans, pensar é apenas uma das
formas (e nem sequer a mais importante) que confere ser ao Dasein. O elemento primitivo doDasein é
“ser-no-mundo”, e pensar é apenas uma das formas de interagir com o mundo: actuar sobre ele, e reagir
a ele, são elementos pelo menos tão importantes como pensar. O Dasein é anterior à distinção entre
pensar e querer, ou entre teoria e prática. Dasein é estar em cuidado com (besorgen). O Dasein não é
uma res cogitans, mas uma res curans: não uma coisa pensante, mas uma coisa que se preocupa. Só se eu
tiver algum cuidado a respeito do mundo, ou interesse nele, farei perguntas sobre ele, e darei respostas
a essas perguntas sob a forma de afirmações de conhecimento. Conceitos e juízos podem ser
concebidos como instrumentos que nos possibilitam lidar com o mundo. Existem, contudo, para este
mesmo efeito, instrumentos mais primitivos, coisas que são, literalmente, ferramentas. Um carpinteiro
relaciona-se com o mundo por meio da utilização de um martelo. Não precisa de estar a pensar sobre o
martelo para o utilizar correctamente; ter consciência do martelo pode, com efeito, atrapalhar a sua
concentração no projecto que tem em mãos, projecto este que é a sua genuína interacção com o mundo.
As entidades com as quais lidamos de um modo transparente como este são aquilo a que Heidegger
chama “coisas-à-mão”. A distinção entre o que é e o que não é coisa-à-mão subjaz à nossa construção da
espacialidade do mundo. Heidegger sublinha a natureza temporal do Dasein: devemos pensá-lo, não como
uma substância, mas como o desenrolar de uma vida. A nossa vida não é uma entidade contida em si
mesma e que se desenvolve por si só: achamo-nos, desde o primeiro momento, lançados num contexto
físico, cultural e histórico. Heidegger chama a este “estar-lançado” ( geworfenheit) a “facticidade”
do Dasein. De igual modo, a minha vida também não se esgota naquilo que sou agora e que fui até ao
presente momento: tenho a possibilidade de ser o que ainda não fui, e as minhas potencialidades são tão
essenciais para o meu ser como os meus feitos. Em rigor, na definição do que sou, o futuro toma
precedência sobre o passado e presente. O Dasein, diz Heidegger, é “capacidade para ser”, sem que
aquilo a que aspiro na minha vida determine a importância da minha situação e das minhas capacidades
presentes. Mas, sejam quais forem os meus feitos e as minhas potencialidades, todos se extinguem na
morte — e, embora a morte os extinga, não os completa. Qualquer perspectiva da minha vida como um
todo tem de tomar em linha de conta a diferença entre o que serei e o que poderia ter sido: daqui
resulta a culpa e a ansiedade. Se Heidegger tiver razão, então há qualquer coisa de absurdo nas
tentativas dos filósofos, de Descartes a Russell, para demonstrar a existência de um mundo exterior.
Não somos observadores que tentam, por meio da experiência, obter conhecimento de uma realidade da
qual estamos separados. Somos, desde o primeiro momento, elementos do mundo, “sempre já seres-no-
mundo”. Somos seres no meio de outros seres, seres estes sobre os quais agimos e aos quais reagimos.
E as nossas acções e reacções não precisam, de modo algum, de ser guiadas pela consciência. Na
verdade, é apenas quando as nossas acções espontâneas de alguma maneira nos falham que tomamos
consciência do que estamos a fazer. E é nessa altura que as “coisas-à-mão” passam a “coisas-perante”.
Para Heidegger, a actividade do Dasein reveste-se de três aspectos fundamentais. Primeiro, temos
aquilo a que chama “sintonia”: as situações nas quais somos lançados revelam-se atraentes, ou
alarmantes, ou aborrecidas, etc., e respondemos-lhes com disposições de diversos géneros. Segundo,
o Dasein é discursivo; isto significa que opera no seio de um mundo de discursos, entre entidades que
nos são articuladas e interpretadas pela linguagem e cultura que partilhamos com outros.
Terceiro, Dasein é “compreender” num sentido especial — as actividades dele são direccionadas (não
necessariamente de modo consciente) para um determinado objectivo, uma espécie de “em-prol-de” que
dotará de sentido uma vida inteira no seio do seu contexto cultural. Estes três aspectos
do Dasein correspondem ao passado, presente e futuro do tempo: o tempo que empresta a Sein und
Zeit a segunda metade do título. Embora o Dasein opere no seio um contexto biológico, social e cultural,
não existe propriamente uma natureza humana que origine as actividades do ser humano individual.
Heidegger afirma que a essência do Dasein é a sua existência. Ao fazer esta afirmação, Heidegger
tornou-se o pai do “existencialismo”, a escola filosófica que sublinha que os indivíduos não são meros
membros de uma espécie e não são determinados por leis universais. Aquilo que sou essencialmente é
aquilo que, livremente, escolho ser. A falta de fundamento desta escolha é alarmante, e posso
perfeitamente refugiar-me numa conformidade não pensante. Contudo, enveredar por esta escolha é
uma decisão inautêntica — é trair o meu Dasein. Para ser autêntico, tenho de viver a minha vida
completamente ciente de que não há fundamento, nem na natureza humana nem na prescrição divina,
para as escolhas que faço, e que nenhuma escolha trará qualquer espécie de sentido transcendental à
minha vida. Ser e Tempo é um livro de leitura difícil, e um intérprete que deseje que as ideias contidas
neste livro sejam apresentadas de modo a parecerem acessíveis e inteligíveis terá de escrever num
estilo muito diferente do adoptado por Heidegger. Saber se o vocabulário idiossincrático e a sintaxe
convoluta de Heidegger eram de facto essenciais ao seu projecto, ou, em alternativa, um exercício
desnecessário de autogratificação, constitui matéria de grande controvérsia. Seja como for, não há
dúvidas quanto ao seu trabalho ter sido não só original como importante. Um dos opositores mais
cáusticos de Heidegger, Gilbert Ryle, admite, nas últimas linhas de uma recensão crítica, que não tinha
senão admiração pela “análise fenomenológica dos mecanismos básicos da alma humana” proposta pelo
autor. Enquanto obra de fenomenologia, Sein und Zeit recebeu uma aclamação muito mais notória do que
qualquer das obras do fundador da fenomenologia — Husserl. O relacionamento entre o discípulo e o seu
mestre teve um final infeliz. Em 1929, Heidegger sucedeu a Husserl como professor de filosofia na
Universidade de Friburgo e, em 1933, assume o cargo de reitor desta universidade. No discurso
inaugural escandaloso que proferiu em Maio desse ano, Heidegger saudou o nazismo como o veículo por
meio do qual o povo alemão viria, finalmente, a concretizar a sua missão espiritual histórica. Um dos
seus primeiros actos enquanto reitor foi banir da biblioteca da universidade todos os membros do corpo
docente que fossem judeus, incluindo o Professor Emérito Husserl, que ainda viveria mais cinco anos.
Depois da guerra, Heidegger teve de se penitenciar pelo apoio dado a Hitler, e foi impedido de ensinar
na universidade de 1945 a 1950. Não obstante, o seu pensamento continuou a influenciar outros,
influência esta que não cessou com a sua morte, em 1976.

O existencialismo de Sartre

Em contraste com o existencialismo de direita de Heidegger, em França, Jean-Paul Sartre, em tempos


aluno de Heidegger por um curto período de tempo, desenvolveu um tipo de existencialismo que,
politicamente falando, era de acentuado pendor de esquerda. Nascido em Paris em 1905, Sartre foi
aluno na École Normale Supérieure entre 1924 e 1928 e, durante alguns anos, proveu ao seu sustento
financeiro dando aulas de filosofia no ensino secundário. Foi em Berlim e em Friburgo, entre 1933 e
1935, que começou a dar forma à sua própria filosofia, cuja primeira expressão surge em duas
monografias filosóficas publicadas em 1936: A Transcendência do Ego e A Imaginação: Uma Crítica
Psicológica. A estes trabalhos, seguiu-se, em 1938, um romance, A Náusea e, em 1939, a publicação
de Esboço de uma Teoria das Emoções . Os ensaios de antes da guerra são estudos meticulosos em
filosofia da mente, de matriz fenomenológica. Sartre, como Heidegger, queixava-se de que Husserl não
tinha levado a redução fenomenológica suficientemente longe. Husserl aceitara o eu cartesiano, a res
cogitans, como um dado da consciência, quando, na verdade, não era nada disso: quando estou absorvido
por algo que esteja a ver ou a ouvir, não tenho pensamento de mim mesmo. É quando reflectimos, e
apenas nessa altura, que convertemos o eu em objecto, pelo que, se quisermos ser fenomenólogos
plenos, temos de começar pela consciência pré-reflexiva. O eu, o sujeito que pensa, está fora da
consciência, pertencendo, por isso, não menos do que as outras mentes, ao mundo transcendente.
Em A Imaginação, Sartre ataca a noção (bastante disseminada entre os filósofos, e particularmente
explícita em Hume) de que ao imaginar estamos a sondar os conteúdos de um mundo mental interior.
Sartre mostrou que é um erro pensar que tanto a percepção como a imaginação consistem na presença
mental de imagens ou simulacros, sendo a única diferença entre elas o facto de, na percepção, as
imagens serem mais intensas, ou vívidas, do que na imaginação. Defendeu que, pelo contrário, imaginar
nos punha em relação com objectos extramentais, e não com imagens interiores; a imaginação fá-lo, tal
como a percepção, embora de modo diferente. É fácil constatar que assim é: basta pensar nos casos em
que se imagina uma pessoa real, mas ausente; nos casos em que aquilo que imaginamos não existe de
facto, o que estamos a fazer é criar um objecto no mundo. De acordo com Sartre, também se concebe
equivocamente as emoções quando as concebemos como sensações internas passivas. A emoção é um
modo específico de apreensão do mundo: sentir ódio em relação a alguém, por exemplo, é percepcionar
esse alguém como uma pessoa odiosa. Contudo, é óbvio que a emoção não constitui uma tomada de
consciência imparcial e isenta do ambiente que nos rodeia; pelo contrário, Sartre chega mesmo a
descrevê-la como “uma transformação mágica” das situações em que nos encontramos. Quando estamos
deprimidos, por exemplo, como que lançamos um feitiço sobre o mundo, de modo a que todos os
esforços para lidar com ele nos pareçam inúteis. Quando rebentou a guerra, em 1939, Sartre foi
recrutado para prestar serviço militar e, em 1940, combateu no exército até ser capturado pelos
alemães. Libertado na sequência do armistício, regressou a Paris como professor de filosofia, e tomou
parte na resistência contra a ocupação nazi. Em 1943, publicou a sua magnum opus — O Ser e o Nada.
Enquanto os ensaios do período anterior à guerra eram de inspiração husserliana, esta obra deve muito
a Heidegger, o que é desde logo reconhecido na forma dada ao título. O Ser e o Nada tem passagens
tão difíceis quanto o que se lê em Ser e Tempo. Todavia, e como convém a um romancista, Sartre tinha
um dom para ilustrar teses filosóficas com narrativas detalhadas e convincentes, coisa que faltava a
Heidegger. Depois da guerra, Sartre voltou a apresentar os temas principais do seu trabalho num
formato mais abreviado, e em estilo menos erudito, em O Existencialismo é um Humanismo (1946).
Para Sartre, o ser (l'être) é o que precede e subjaz a todas os géneros e aspectos diferentes das
coisas que encontramos na consciência. Agrupamos e arrumamos as coisas segundo géneros e classes, de
acordo com os nossos interesses e enquanto instrumentos que sirvam os nossos propósitos. Se
descartarmos todas as distinções efectuadas pela consciência, ficaremos perante o ser puro, ser em
si, l'en soi, que é opaco, massivo, simples e, acima de tudo, contingente. É “sem razão, sem causa, sem
necessidade” (O Ser e o Nada, p. 619). Dizer que é sem causa não é afirmar que é causa de si
próprio, causa sui; simplesmente está aí — “gratuito” chama-lhe Sartre, e, às vezes, “ de trop”.3
O en-soi é um dos dois conceitos cruciais de O Ser e o Nada. O outro é le pour-soi, o para-si, ou seja, a
consciência humana. Como se relaciona esta com o nada que aparece no título? Sartre responde que o
homem é o ser por meio do qual o nada vem ao mundo. A negação é o elemento que faz a diferença
entre le pour-soi e l'en-soi. Sartre desenvolve aqui um tema de Heidegger. Enquanto os filósofos
ingleses encararam o dictum heideggeriano “o nada nadifica” ( Das Nichts nichtet) como a quintessência
do ridículo, Sartre aceitou a objectificação do nada, e envidou esforços no sentido de lhe atribuir um
sentido importante. Quando a consciência articula o mundo, fá-lo por meio da negação. Se tenho um
conceito de “vermelho”, então divido o mundo entre “vermelho” e “não vermelho”. Se distingo entre
cadeiras e mesas, então tenho de considerar as cadeiras como não mesas e as mesas como não cadeiras.
Se pretendo fazer uma distinção entre consciência e ser, terei de dizer que a consciência é não ser: “o
ser por meio do qual o nada vem ao mundo tem de ser o seu próprio nada” ( O Ser e o Nada, p. 23).
Do ponto de vista do historiador, fica a impressão de que Sartre reintroduz na filosofia um dilema
criado por Parménides e há muito solucionado por Platão. 4 Em 1945, A. J. Ayer comparou o tratamento
que Sartre dá ao néant com a resposta que o Rei dá a Alice numa dada situação de Alice no País das
Maravilhas: o Rei pergunta a Alice quem vem lá ao longe na estrada, Alice responde “Ninguém”, e o Rei
exclama “Quem me dera ter olhos assim… Ser capaz de ver Ninguém! E ainda para mais a esta
distância!” Felizmente, e pese embora o título, O Ser e o Nada contém muitas noções importantes, e
perfeitamente independentes da descrição que Sartre avança para “nadificação”. A ideia mais
interessante é, uma vez mais, retirada de Heidegger. Enquanto para a maioria dos objectos a essência
precede a existência, “existe pelo menos um ser cuja existência vem antes da sua essência, um ser que
existe antes de poder ser definido por qualquer concepção dele. Este ser é o homem.” ( O
Existencialismo é um Humanismo, p. 66) A liberdade humana precede a essência do homem e torna-a
possível. Enquanto um carvalho tem de seguir um padrão de vida cuja determinação decorre de ser o
tipo de coisa que é, os seres humanos não pertencem a um tipo desta mesma maneira: cabe a cada
pessoa decidir que tipo de coisa ser. A liberdade humana cria uma fissura no mundo dos objectos.
De acordo com Sartre, a vida de um ser humano individual não é previamente determinada, nem por um
criador, nem por causas necessitantes, nem por leis morais absolutas. A única necessidade a que não
posso escapar é a necessidade de escolher. A liberdade humana é absoluta, mas também alarmante, e
nós tentamos esquivar-nos de nós mesmos, adoptando um papel predeterminado que nos é oferecido
pela moral, pela sociedade ou pela religião. No entanto, os nossos esforços no sentido de nos furtarmos
a nós próprios estão condenados a fracassar, do que resulta acabarmos indeterminados: tacitamente
cientes da nossa liberdade e, ao mesmo tempo, debatendo-nos para nos reduzirmos à condição de meros
objectos. Sartre designa por “má-fé” esta condição. A atitude alternativa consiste em cada um de nós
aceitar e afirmar a sua liberdade, e aceitar a responsabilidade pela sua própria vida e pelos seus
próprios actos, sem se apoiar numa ordem moral preexistente e sem se deixar condicionar por
quaisquer circunstâncias contingentes. É certo que haverá limites físicos às minhas acções possíveis,
mas, ao fazer os devidos ajustamentos aos meus desejos e projectos, sou eu quem confere importância
à situação em que me encontro. Tenho de fazer de mim uma escolha radical. “Emirjo sozinho e
aterrorizado diante do primeiro e singular projecto que constitui o meu ser: todas as barreiras, todas
as protecções, se desintegram, aniquiladas pela consciência da minha liberdade; não tenho, nem posso
ter, recurso a qualquer valor contra o facto de que sou eu quem mantém os valores em existência” ( O
Existencialismo é um Humanismo, p. 66). Nos anos que se seguiram ao fim da guerra, Sartre,
juntamente com Simone de Beauvoir, tornou-se o centro da vida cultural e intelectual da rive gauche de
Paris. Sartre fundou e editou um periódico mensal avant-garde, Les Temps Modernes, e escreveu vários
romances e peças de teatro de sucesso, a mais conhecida das quais será, porventura, Huis Clos (Sem
Saída), na qual se inclui a tão citada deixa “O inferno são os outros”. Em O Ser e o Nada, além do en-
soi e do pour-soi, Sartre introduziu ainda a noção de ser-para-os-outros. Trata-se, essencialmente, do
modo como eu sou presente a outros e por estes observado, tornando-me nada mais do que um objecto
para eles — talvez o objecto da inveja ou do desprezo deles. Sartre havia escrito que o sentido original
de ser-para-os-outros é o de conflito. Na obra subsequente, Sartre desenvolveu este tema, dando-lhe
grande relevância. Nos domínios social e político, Sartre adoptou posições próximas das do partido
comunista, embora o determinismo marxista não fosse propriamente fácil de conciliar com o libertismo
absoluto que constituía a tónica do existencialismo. Numa tentativa de resolver esta tensão, Sartre
escreveu, em 1960, a Crítica da Razão Dialéctica. Em 1964, recusou aceitar o Prémio Nobel da
Literatura e, em 1968, apoiou as revoltas estudantis que ameaçavam o governo de Charles de Gaulle.
Morreu em 1980.
Anthony Kenny

Notas

1. A intencionalidade nada tem que ver com “intenção” na acepção moderna do termo. Brentano foi buscar a
palavra aos contextos medievais, nos quais intencionalidadederivava do verbo “intendere”, isto é, retesar a
corda do arco antes de fazer pontaria a um alvo. Um objecto intencional é, assim, como que o alvo de um
pensamento.
2. Ver o vol. II, p. 203, e a p. 8 supra.
3. Expressão que significa “a mais”. (N. do R.)
4. Ver o vol. I, pp. 200 e 214.
Retirado de Nova História da Filosofia Ocidental, vol. IV: Filosofia no Mundo Moderno , de Anthony Kenny
(Lisboa: Gradiva, 2011)
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