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"A Arrogànc Biblioteca Cruz e Sousa um ataque es-
mag ad o ram Drever o futuro
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“Este livro C ' A arrogância do humanismo | trata da ques- ft
tão mais importante com que o Ocidente se defronta agora — a nos­
sa necessidade de uma profunda mudança de atitude e de uma nova
maneira de nos vermos. [...] uma nova autoconsciência — a qual seja
verdadeira para a nossa ciência atual e também para a nossa sabe­
doria tradicional.”
Stephen Verney
New Scientist
“Um brilhante, feroz e intransigente ensaio. [...] O pensamento de Eh­
renfeld é uma espécie poderosa e belade misantropia: ferirá muitas
cordas sensíveis.”
----------------------------- Human Behavior-----------------------------
“O que é verdadeiramente radical e revolucionário na espécie de ati­
tude que o Professor Ehrenfeld e seus pares representam é que eles
estão dizendo ter chegado o momento em que temos de começar a
aceitar [...] limitações para a razão humana e a capacidade humana,
como parte da inabalável constituição do universo.”
-------------------------- S U IC op h e r Bo oke r--------------------------
^%pectator
“Uma extraordinária fopjte de idéias para os interessados em refletir
sistematicamente sobre as questões em torno do crescente ritmo da
desintegração das organizações sociais e físicas, e dadestruição da
natureza no mundo de hoje.”
------------------------------------ Choice---------------------------------
“Ehrenfeld oferece-nos um fascinante e extraordinariamente atual
tour de force sobre a atual discrepância entré a fé humanistlca uni
versai na razão, ciência e tecnologia, e a realidade viva da condição
humana. [...] Leitura obrigatória para todo universitário e cientista Ins
truído.” ,
----------------------------- fhom as E m m e l--------------------------
American Scientist
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CAMPUS
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( I Mihtigii também da Editora Campus:
lllíilÔRIA DA ECOLOGIA
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DA IAVOURA ÀS BIOTECNOLOGIAS
'll/'/! iiiiw ii II indústria no Sistema Internacionai
iioodmin, Barnard Sorj e John Wilkinson
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1 him llinldiln da Astronomia
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David
EHRENFELD

A
ARROGÂNCIA
DO HUMANISMO
Tradução
Álvaro Cabral

SdUena CantpM
Do original
The Arrogance of Humanism
Copyright © 1978,1981, by Oxford University Press, Inc.
© 1992, Editora Campus Ltda.
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 5988 de ^ 4/ 12/ 73.
Nenhuma paite deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá
ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados:
eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.
Capa
Otávio Studart
Composição
R&R
Copy-desk
Paula Rosas
Revisão Tipográfica
Clélia Ramos
Marcelo Balbio
Isabel C. Rodrigues
índice Remissivo
Izaura Farias
Projeto Gráfico
Editora Campus Ltda.
Qualidade internacional a serviço do autor e do leitor nacional.
Rua Barão de Itapagipe 55 Rio Comprido
Telefone: (021)293-6443 FAX (021 )293-5683
20261 Rio de Janeiro RJ Brasil
Endereço Telegráfico: CAMPUSRIO
ISBN 85-7001-750-2
(Edição original: ISBN 0-19-502415-X, Oxford University Press. Inc. NY, USA)
Ficha Catalográfica
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
Ehrenfeld, David
E32a A arrogância do humanismo/ David Ehrenfeld; tradução Alvaro
Cabral. — Rio de Janeiro: Campus, 1992.
Tradução de: The arrogance of humanism
ISBN 85-7001-750-2
1. Humanismo. 2. Ciência e humanidade. 3. Ecologia I. Tiuio.
CDD — 304.2
92-0484 CDU — 502.7
92 93 94 95 96 5 4 3 2 1
AGRADECIMENTOS

Manifestamos aqui a nossa gratidão às seguintes entidades., pela


permissão concedida para usarmos material protegido por copyright:
Sigma Xi, The Scientific Research Society of North America, pela
autorização para adaptar para uso como Capítulo 5 o artigo “The Conser­
vation of Non-resources”, de David W. Enrenfeld, American Scientist
64, novembro-dezembro de 1976, pp. 648-56. Copyright W16, by^Sigma’
Xi.
Friends of the Earth, por excertos de “The Incident at Browns Fer­
ry”, de David Dinsmore Comey, que é o Capítulo 1 de The Silent Bomb:
A Guide to the Nuclear Energy Controversy, de Peter T. Faulkner (Nova
York: Random House, 1977). Copyright 1977, by Friends of the Earth.
Houghton Mifflin Co. e George Allen & Unwin Ltd. por transcri­
ções de The Silmarillion, de J. R. R. Tolkien. Copyright © 1977, by
George Allen & Unwin (Publishers) Ltd.
Harcourt Brace Jovanovich, Inc., por uma citação de “The Nine
BiUion Names of God”, de Arthur C. Clarke, em The Other Side of the
Sky, de Arthur C. Clarke, copyright © 1958, by Arthur C. Clarke. Reim­
presso com permissão do autor e dos agentes do autor, Scott Meredith
Literary Agency, Inc., 845 Third Avenue, Nova York, N. Y. 10022.
Harcourt Brace Jovanovich, Inc., Martin, Seeker & Warburg, Ltd.,
A. M. Heath & Co., Ltd., e a Sra. Sonia Brownell Orwell por citações de
The Collected Essays, Journalism and Letters o f George Orwell, vols. I
e IV, Sonia Orwell and Ian Angus (orgs.). Copyright © 1968, by Sonia
Brownell OrweU.
PREFACIO

Vi-me esporadicamente dominado, nestes últimos anos, por uma


espécie muito singular de sentimento mas, no começo, não consegui dar-
lhe um nome nem definir o que era que me inquietava, tampouco pude
encontrar um padrão comum entre os episódios que suscitavam tal senti­
mento. Ela podia surgir - um misto de mágoa, ira e sensação de inutili­
dade - quando os meus alunos me diziam que estavam estudando para
formar-se como “gerentes ambientais”. Esse mesmo sentimento surgia
sempre que escutava pais discutindo a necessidade de controlar com me­
dicamentos o comportamento de seus filhos “hipercinéticos”, ou quando
ha a respeito de um plano melhorado, “com apoio de computador”, gra­
ças ao qual o Departamento de Engenharia pretendia controlar as cheias
ao longo do rio que corre nos fundos da minha casa. E o sentimento re­
petiu-se quando, durante um jantar, um estudante finalista de Economia
explicou-me em detalhes como as forças do mercado, funcionando de
acordo com as leis da oferta e da demanda, garantem que nunca destrui­
remos mais de nossas férteis terras de lavoura do que nós podemos perder.
Quando as ocasiões para esse sentimento se tornaram cada vez
mais freqüentes e compreendi finalmente qual era a hgação óbvia entre
os eventos que o causavam; quando vi como a nossa incondicional fé hu-
manística em nossa própria onipotência fornece uma exphcação comum
para tantas coisas aparentemente diferentes que estão nos acontecendo;
quando percebi as terríveis implicações da grande, cada vez maior, dis­
crepância entre a fé na razão e no poder humano que impregna o mundo
e a realidade viva da condição humana; então escrevi este livro.
Os meus leitores descobrirão que não aconselho uma rejeição total
do humanismo, que tem suas partes mais nobres. Mas fomos demasiado
tolerantes e condescendentes em relação a ele no passado, o que lhe pro­
piciou tornar-se feio e perigoso. O próprio humanismo, m m o o resto de
nossa existência, deve ser agora protegido contra os seus próprios exces­
sos. Felizmente, existem alternativas humanas para a arrogância do hu­
manismo.
A forma deste livro surgiu de conversas com a minha mulher, Joan;
na verdade, é dela o conceito original do livro. Assim que comecei a
escrevê-lo, ela criticou e ajudou-me a rever quase todos os parágrafos; é
graças aos esforços dela que ao leitor foram poupados muitos argumentos
defeituosos, muitas confusões e inexatidões, muita fraseologia capenga.
Se não os descobriu todos, é pouco provável que isso tenha sido culpa
dela. Seu amor, intelecto e compreensão dos processos ecológicos foram
para mim de inestimável valor.
Trabalhei com os meus editores em Oxford num hvro anterior, de
modo que seus notáveis talentos não me causaram surpresa. James Rai-
mes participou de todas as frases do planejamento inicial e ajudou-me
imenso na elucidação dos temas centrais. Stephanie Golden, grã-mestra
de seu ofício editoral, é primordialmente responsável por ajudar-me a
converter um mero manuscrito num livro.
Vários amigos me auxiliaram de várias maneiras. Harry Haile, um
humanista na melhor acepção da palavra, leu o original e fez valiosas su­
gestões, sobretudo a respeito do Capítulo 6. EUen Flynn contribuiu com
algumas idéias tipicamente provocativas e úteis. E agradeço a Dominic
Durkin e Jim Applegate, meu diretor de departamento e meu colega do­
cente em ecologia, respectivamente, por criarem o tipo de atmosfera e a
liberdade temporária de outras tarefas que tomaram não só possível mas
também agradável escrever um hvro.
Deve ser dito, finalmente, que, apesar de toda a ajuda que recebi de
muitas fontes, a responsabihdade por quaisquer erros de fato ou de julga­
mento que ocorram neste hvro é inteiramente minha.

D.E.
Middlesex, N.J.
Abril de 1978
PREFÁCIO À EDIÇÃO GALAXY

A publicação de A arrogância do humanismo numa edição Galaxy


constitui para mim um grato evento, primordialmente porque me permite
alcançar muitos novos leitores, em especial estudantes universitários e
outros que não dispõem de recursos para adquirir livros em dispendiosas
encadernações. Também aproveitei esta reedição para corrigir alguns er­
ros de menor importância e esclarecer algumas passagens no texto, o
qual, entretanto, se conserva essencialmente inalterado.
Por se tratar de um livro provocante com um título provocante, ele
gerou uma certa dose de controvérsia, e este novo prefácio propicia-me
a oportunidade de responder às mais importantes das questões que foram
suscitadas. Mas, antes de examinar essas questões, desejo refletir sobre o
problema de ser “atual”. Nos três anos transcorridos desde que terminei
de escrever o que veio a ser a P edição deste üvro, muitas coisas aconte­
ceram. Foi revelada a tragédia de Love Canal, o ritmo de destruição da
floresta amazônica acelerou, o defeito num componente de computador
de 46 cêntimos por duas vezes assinalou a deflagração de uma guerra nu­
clear, a China adotou um maior número de métodos e metas da moderna
tecnologia industrial, os grandes mamíferos e aves das savanas de Ugan­
da foram quase todos destruídos, e o Departamento de Agricultura do
Governo dos Estados Unidos descobriu a lavoura orgânica.
Não obstante, não vejo razão nenhuma para meter à força todos es­
ses acontecimentos no texto, com o mero intuito de salvar as aparências.
Por certo, novos incidentes que exemplificam os princípios defendidos
neste üvro estão acontecendo o tempo todo, mas os próprios princípios
não mudam. Se os exemplos originais desses princípios são claros, então
suplementá-los ou substituí-los por novos quando ocorrem, simplesmen­
te porque ocorrem, não passa de uma vã tentativa de aperfeiçoar o que já
é perfeito. Somente se novos exemplos pararem de ocorrer vou querer
alterar o livro ou escrever um outro.
Por exemplo, a minha advertência acerca da probabilidade de múl­
tiplos acidentes nos sistemas componentes das usinas de energia nuclear
iii Ili/.ou o incidente de Browns Ferry como demonstração. Pouco depois
(le ser publicada a primeira edição ocorreu o desastre de Three Mile Is-
land. Isso levou alguns críticos a referirem-se à minha advertência como
“profólica”, embora eu não fizesse a menor idéia de onde esse acidente
nuclear ocorreria (assim como não tenho a mínima idéia sobre onde
acontecerá o primeiro acidente nuclear após a publicação desta edição).
A questão é que sistemas de grande poder e complexidade, projetados
jx;lo homem, sempre terão acidentes, como nos previne corretamente o
nosso critério emocional, e nenhuma aplicação de sistemas de controle
racional, por mais cuidadosa e engenhosamente planejados que sejam,
|XK)e impedir que eles aconteçam. Esse prindpio permanecerá válido até
0 dia cm que as usinas de energia nuclear sejam eliminadas... ou até que
elas nos eliminem. Não deixa de ser divertido, ainda que de uma forma
algo sombria, comparar as transcrições do inquérito sobre o acidente de
1 Irowns Ferry com os registros de Three Mile Island; somente os nomes dos
engenheiras e dos administradores mudaram, o resto é o mesmo.

Como eu esperava, muitas pessoas que leram o hvro ficaram


a)nsternadas com o meu uso da palavra “humanismo”. Disseram: “Con-
a>rdo com a sua mensagem, mas escolheu a palavra errada como ponto
focal de seu ataque. O humanismo proclama a dignidade humana e a
liberdade do espírito humano; é uma filosofia benévola.”
'1'alvez assim seja, mas a questão não é essa. Quando se escolhe
uma filosofia para nos guiar na vida - e o mundo moderno optou pelo
humanismo - , fica-se responsável por todas as conseqüências que decor­
ram dessa escolha. Optamos por converter a nœ sa fé original numa au­
toridade superior na fé nos poderes da razão e das capacidades humanas,
a qual se revelou uma fé deslocada. Esse é o outro lado do humanismo,
conforme saliento no primeiro capítulo, e por mais que se procure negá-
lo, nada o fará desaparecer. O economista E. F. Schumacher escreveu em
A CSlí ide for the Perplexed:

A fé na onipotência do homem moderno está minguando... É cada vez


maior o número de pessoas que começa a dar-se conta de que “o experi­
mento moderno” fracassou... O homem fechou as portas do Céu para si
mesmo e tentou, com imensa energia e engenho, limitar-se à Terra. Agora
está descobrindo que [...] uma recusa em alcançar o Céu significa uma
dc.scida involuntária ao Inferno.

Iiste livro é uma documentação e explicação do fracasso que Schu-


iiiJu lu T descreveu: o fracasso do humanismo. Assim está o mundo.
Uma crítica mais séria a este livro proveio da direção onosta. (i
que, para um livro onde se rejeita o humanismo, é surpreendentemenle
escasso o número de menções a uma alternativa divina. No último capí­
tulo, por exemplo, afirmo que a minha “melhor esperança” para se en­
contrar um meio de pôr termo a este terrível fluxo de destruição e caos
humanísticos é uma depressão econômica global que acabe ou coloque
sob controle a corrida armamentista, a indústria exploradora multinacio­
nal, a agroindústria internacional e outras manifestações letais de grandeza.
Vários críticos religiosos sentiram-se incomodados com esse me­
canismo terreno e imperfeito para liquidar a arrogância humanista. É
evidente que esses leitores não notaram que ressalvei a descrição da m i­
nha melhor esperança dizendo “com exceção de uma intervenção sobre­
natural ou divina”. Obviamente, o alvorecer de uma era messiânica seria
melhor do que uma depressão econômica, mas não imaginei que fosse
necessário mencionar isso. Ignorando quando e como Deus anunciará o
advento dessa era, ou como ela será, Umitei-me ao futuro imediato e aos
processos que já existem. Eu chamaria a isso uma “profecia intermédia
ou apropriada”, com pedido de desculpas ao falecido E. F. Schumacher.
Não tendo fé na pseudociência humanista da futurologia, por um lado, e
não querendo dar palpites sobre as próximas decisões do Criador, por
outro lado, tive o maior cuidado em resistir à tentação de predizer o fu­
turo neste livro.
No primeiro capítulo sou especialmente severo com a tradição ju ­
daico-cristã, e isso também requer uma explicação. Não acredito que as
fontes bíblicas das religiões judaica e cristã sancionem a arrogância hu­
mana para com a Natureza, e concordo com Wendell Berry em que as
instruções dadas a Adão e Eva para “sujeitar” a terra (Gênesis, 1:28) têm
sido terrivelmente mal interpretadas. Num ensaio intitulado “The Gift of
Good Laná”(Sierra Club Bulletin, Nov.-Dez., 1979), Berry assinala que
tanto o Antigo quanto o Novo Testamento deixam claro que:

O amor do Criador pela Criação é misterioso precisamente porque não


se harmoniza com os propósitos humanos. O burro selvagem e os lírios
silvestres são amados por Deus por aquilo que são; e, no entanto, fazem
parte de um padrão que devemos amar por causa da nossa dependência
dele. É um padrão que os seres humanos podem entender suficicntcmcntc
bem para para respeitá-lo e preservá-lo, embora não o po.ssam “controlar”
nem mesmo compreender completamente. [...] A injunção divina para que
se use o mundo de forma justa e benévola define, pois, a postura moral de
cada ptessoa como a de um intendente.
o dilema da intendência é delicado porque:

Para viver, devemos cotidianamente despedaçar o corpo e derramar o


sangue da Criação. Quando fazemos isso amorosamente, conscientemente,
habilmente, reverentemente, é um sacramento. Mas quando o fazemos com
avidez, com ganância, com inépcia, com ignorância, cora espírito destru­
tivo, é uma blasfêmia.

A cilada da intendência consiste em que o intendente poderá es­


quecer que não é um rei. Como salientou J. R. R. Tolkien em The Two
Towers, há uma enorme e indelével diferença entre eles. Boromir, o pri­
mogênito do Intendente de Gondor, pergunta ao pai: “Quantas centenas
de anos são necessárias para fazer de um intendente um rei, se o rei não
voltar?”
Seu pai responde: “Poucos anos, talvez, em outros lugares de me­
nos realeza. [...] Em Gondor, dez mü anos não seriam suficientes.”
O mesmo se passa conosco. Trato com aspereza a tradição judai­
co-cristã, mas não é a autoridade dessa tradição o que questiono, e sim os
seus seguidores, que, na prática, esquecem com excessiva freqüência a
diferença entre um intendente e um rei.

Fui encorajado por muitas pessoas que me escreveram para dizer


que este livro dá testemunho das condições em que vivem e é, portanto,
uma fonte de consolo. Isso é especialmente animador porque uma parte
rclativamente pequena do livro está dedicada à costumeira compilação
de róseas alternativas e finais felizes. Não tinha a intenção de me tomar
um humanista no final do meu livro dizendo a cada um dos leitores como
escapar do humanismo, mesmo que pensasse conhecer o modo de conse­
gui-lo. Felizmente, os meus leitores entenderam a necessidade desse
esforço de autodisciplina.
A minha primeira preocupação, e a finalidade primordial deste li­
vro, Ibi identificar as conseqüências do humanismo e explicar como elas
sao geradas. Embora tenha tentado apontar os elementos autodestrutivos
do liumanismo moderno que acabarão por destruí-lo de dentro para fora,
e embora também tenha chamado a atenção para as fontes de fortaleza
humana que permaneceram independentes da tradição humanista, não
lorneci um plano mestre para a sobrevivência individual. Uma vez mais,
Wendell Merry (cm The UnsettlingofAmerica) o diz muito bem: “O uso
ilo miiiulo é, em última instância, uma questão pessoal, e o mundo só
|MKle sei a)nservado cm estado de saúde pelo autocontrole, pela parci­
mónia e pelo zelo de uma multidão de pessoas.”
Estes são tempos excepcionais. Um vento diferente está sopnindo
de um novo quadrante; a mudança está de novo no ar, como estava nos
dias de Marlowe. Muitas coisas são possíveis. Para nos prepararmos para
a mudança, devemos entender primeiro o que nos aconteceu e o que fi­
zemos aos outros e ao nosso meio ambiente durante a era que está mor­
rendo: só então poderemos estar a postos para enfrentar os riscos e as
oportunidades que surgirão nos dias vindouros.
D.E.
Middlesex, New Jersey
Julho de 1980
SUMARIO

Capítulo 1
Falsos P re s s u p o s to s ................................................................................ 1

Capítulo 2
M i t o ...........................................................................................................17

Capítulo 3
R e a lid a d e .................................................................................................43

Capítulo 4
Emoção e R a z ã o .................................................................................. 101

Capítulo 5
O Dilema C o n serv acio n ista................................................................137

Capítulo 6
M isantropia e a Rejeição do H u m a n is m o ...................................... 167

Capítulo 7
P ara Além do H u m a n is m o ............................................................... 183
Capítulo 1

Falsos Pressupostos
Entrem na baleia — ou, melhor, admitam que
estão dentro da baieia (pois vocês estão, é
ciaro).
GEORGE ORWELL,
“Inside the Whaie”

mndo as religiões declinam, geralmente a forma sobrevive à subs­

Ô tância: rituais continuam sendo observados, por vezes até intensifica­


dos, mas à margem da vida das pessoas que os praticam. Nessas
circunstâncias, o ritual é celebrado mas deixou-se de acreditar nele; pode até
tomar-se embaraçoso. As religiões vivas são diferentes. Embora a extensão
da celebração ritual varie de uma para outra, todas as religiões vivas são par­
te da existência cotidiana e seus princípios centrais são aceitos como verda­
des qiK não necessitam de nenhuma outra comprovação.
XÒ humanismo é uma das religiões vivas, que talvez já tenha parado
de crescer mas ainda está em grande atividade.]É a religião dominante do
nosso tempo, uma parte da vida de quase toda a gente no mundo “desen­
volvido” e de todos aqueles que querem participar de um desenvolvi­
mento sem elhantefEá pouquíssimo ritual no humanismo, e a maioria
dos seus devotos seguidores parece não se aperceber de que são huma­
nistas. Perguntem-lhes qual é o nome da religião deles e negarão ter al­
guma ou, mais comumente, mencionarão uma das fés tradicionais. Por
outro lado, as pessoas que se consideram humanistas normalmente o são
- embora, com frequência, por razões muito diversas daquelas que co­
nhecem e admitem.
Pode uma pessoa pertencer involuntariamente a uma religião cn-
quanto vive sob a impressão de que é parte de uma outra? Se essa pessoa
acredita nos dogmasjda primeira e só celebra a segunda, por que não?
É o humanismo uma religião? Esta é uma questão mais difícil, e o
livro inteiro terá que servir como uma resposta completa. Mas não estou
scnilo precipitado quando assinalo que, se o humanismo não é uma reli­
gião, certamente atua como se fosse. Os seus adeptos comem, dormem,
trabalham e divertem-se de acordo com a sua doutrina central, recitam o
rosário do humanismo enquanto elaboram seus planos mais importantes,
e recebem os ritos finais do humanismo enquanto se esforçam por evitar
a morte. Todos os veículos de comunicação pública estão impregnados
de pregação humanística o tempo todo. O mundo dos negócios, a teoria
econômica, e ciência política e a tecnologia aceitam por inteiro os ensi­
namentos do humanismo. Seus pressupostos estão incorporados tanto no
comunismo quanto no capitalismo.
Em alguns detalhes, o humanismo não é como as outras religiões.
Não há edifícios com a tabuleta de “Igreja do Humanismo” no bairro em
que a gente mora, nem há missionários humanistas batendo à nossa por­
ta. Não existe um sacerdócio humanista organizado, embora os sacerdo­
tes não-oficiais do humanismo ocupem as mais diversas posições por
toda a parte. Mas, em seus aspectos mais significativos, o humanismo é
hoje uma religião, ainda que não seja uma religião da espécie comum.
Há mais do que uma razão acadêmica para escrever sobre a natu­
reza religiosa do humanismo, pois alguns dos pressupostos religiosos do
humanismo estão entre as mais destrutivas idéias em uso corrente, uma
fonte principal do perigo nesta que é a mais perigosa de todas as épocas
desde a expulsão do Paraíso. Tampouco o perigo é meramente potencial,
para ser caracterizado como invenção da neurose do Juízo Final e logo
rechaçada. Tal como o tão longamente esperado monstro num dos me­
lhores contos de Henry James, “a fera na selva” não está na selva coisa
nenhuma. Está circulando em campo aberto, entre nós, infligindo seus
danos diariamente, e basta olharmos para ela para a vermos. Mas não
olhamos. Essa nociva maneira de nos iludirmos a nós próprios constitui
o tema deste livro: os elementos de humanismo que produzem tal condu­
ta, suas consequências e o que poderíamos fazer a esse respeito.
As melhores partes do humanismo não estão em questão aqui;
quando os inadequados elementos religiosos forem removidos, o huma­
nismo tornar-se-á o que deve ser, uma filosofia generosa e decente, e um
guia confiável para o comportamento humano não-destrutivo. Mas, an­
tes (,|uc isso aconteça, temos que chegar a um acordo com a nossa fé irra­
cional cm nosso próprio poder ilimitado, e com a realidade que é o
Iracasso generalizado, em seu mais amplo contexto, das nossas inven-
çõc:s c pnxxssos, espccialmente aqueles que aspiram ao controle ambiental.
O humanismo contemporâneo é “a religião da humanidade”, de
mordo com a mais sucinta de suas definições no OxfordEnglishDictio-
nary. A definição correspondente fornecida pelo Webster’s Third New
International Dictionary é a seguinte:

Uraa doutrina, conjunto de atitudes ou modo de vida centralizado em


interesses ou valores humanos; como a: uma filosofia que rejeita o supcr-
naturalismo, considera o homem um objeto natural e afirma a dignidade e
o valor essenciais do homem, bem como a sua capacidade de auto-realiza-
ção através do uso da razão e do método científico [...] b frequentemente
com maiuscula: uma religião que subscreve essas crenças.

Pondo de lado a noção de dignidade e valor humanos, a qual faz


parte de muitas religiões, chegamos de imediato ao âmago da religião do
humanismo: uma fé supretna na razão, humana — sua capacidade para
enfrentar e resolver os muitos problemas com que o ser humano se de­
fronta, assim como para reordenar o mundo da Natureza e reformular os
assuntos de homens e mulheres de modo que a vida humana prospere.
Por conseguinte, assim como o humanismo está comprometido com uma
fé incondicional no poder da razão, também rejeita outras afirmaeges de
poder, inclusive o poder de Deus, o poder de forças sobrenaturais e até o
poder não dirigido da Natureza associado com o cego acaso. Os dois pri­
meiros não existem, de acordo com o humanismo; o último pode, com
algum esforço, ser dominado.-Como a inteligência humana é a chave para o
êxito humano, a principal tarefa dos humanistas é afirmar o seu poder e pro­
teger as suas prerrogativas toda vez que são questionadas ou desafiadas.*'
Entre os correlatos do humanismo está a crença em que a espécie
humana deve viver para si mesma, porque dispomos de poder para fazê-
lo, temos a capacidade para gozar tal vida e nada justifica que se queira
viver para cumprir qualquer outra finalidade além dessa. Um outro cor­
relato é a fé nos frutos da razão pura: a ciência e a tecnologia. Embora
abalada em anos recentes e fonte de muita confusão entre humanistas,
essa fé continua impregnando a nossa existência e influenciando o nosso
comportamento, à semelhança dos pressupostos universais de que o dia
sempre se seguirá à noite e a água sempre correrá montanha abaixo.
Também existe um forte elemento anti-Natureza (pelo menos, a Nature­
za em estado bruto) no humanismo, embora nem sempre expresso c até,
por vezes, negado.
Como a noção de humanismo tem uma tendência para tornar-sc
vaga, também se faz necessário dizer o que ele não é. Não é simplesmen­
te a prática de ser humano (ainda que a maioria dos humanistas sustente
que o humanismo é uma filosofia humana); como assinalou 1’aul Kurlz,
Albert Schweitzer, uma figura humanitária que acreditava em Deus, não
I l II uni luimanista. Também não está associado a qualquer filosofia polí-
llca, embora haja mais humanistas (confessos) na Esquerda política do
i|iie na Direita. Esse fenômeno é, em geral, atribuído à maior tolerância
tio llvre-pcnsamento na Esquerda, apesar do fato óbvio de que a liberda-
ilc ilc pensamento é profundamente violada na Esquerda e na Direita.
1’ara aumentar ainda mais a confusão, a maioria das pessoas e regimes
lolalitários, de qualquer rótulo, são fortemente humanistas em alguns de
seus mais importantes pressupostos filosóficos. Com efeito, o humanis­
mo é usado, quase sempre por caminhos extraordinariamente semelhan­
tes, tanto por Imerais quanto por autoritários: é uma doutrina sumamente
agradável e conveniente.
O humanismo também não é um certo número de coisas que era no
passado. Entre as muitas definições obsoletas de humanismo está “o es­
tudo dos clássicos gregos e latinos”. Na mesma ordem de idéias, huma­
nismo tampouco significa “o estudo de humanidades” — em contraste
com as ciências sociais ou naturais. Um poeta, um professor de literatura
comparada e um escultor não são automaticamente humanistas.
Muitas pessoas gostam de autodenominar-se humanistas porque o
nome adquiriu conotações agradáveis, como “Uberdade”. Em sua maio­
ria, elas são, provavelmente, humanistas, como eu disse, mas isso a des­
peito de uma interpetação errônea do significado da palavra. Não
podemos permitir que a definição de humanismo se torne totalmente
amorfa, muito embora possamos acabar chamando humanistas às mes­
mas pessoas. Em caso contrário, nunca estaremos aptos a ver o humanis­
mo com clareza suficiente para discernir o que há de terrivelmente
errado nele. Nem estaremos aptos a criticá-lo.
Nos seus primeiros anos como filosofia estabelecida, o humanis­
mo esteve em constante conflito com a religião organizada no Ocidente,
e isso tendeu deste então a obscurecer os elementos comuns e as seme­
lhanças entre elas. É um princípio muito conhecido em biologia, exposto
jvla primeira vez por Darwin, segundo o qual espécies intimamente re­
lacionadas em freqüente contato mútuo tendem a desenvolver diferenças
exageradas na aparência e no comportamento. Seja por razões semelhan­
tes às postuladas pelos biólogos ou por analogia casual, a mesma coisa
aconteceu à religião clássica e ao humanismo. Uma tem Deus e a outra
não — uma importante diferença, mas não o bastante para esconder a re­
l' lação existente.
I> A chave para esse relacionamento é a arcaica mas ainda imensa-
mcnlc popular doutrina das causas finais. Essa doutrina, cujas origens re­
montam para além dos gregos antigos, prosperou desde a ascensão da
ciência no Ocidente em fins do século XVI e ao longo do sécuU XVII.
Numa de suas formulações, afirma que as características do mundo natu­
ral — montanhas, desertos, rios, espécies vegetais e animais, clima —
foram, todas, planejadas por Deus para certos fins, primordialmente o
benefício da humanidade. Esses fins benéficos podem, com freqüência,
ser percebidos se olharmos com atenção; os rios fornecem peixe comes­
tível e transporte, os desertos fixam fronteiras e limites, etc. A nossa res­
ponsabilidade consiste em agradecer essa dádiva e em troca aceitar
exercer o controle do planeta, uma aceitação que foi recomendada com
instância por alguns judeus e cristãos já em tempos antigos. Assim, a
idéia de usar uma Natureza criada para nós, a idéia de controle e a idéia
de superioridade humana fícaram desde cedo associadas em nossa história.
Só restava diminuir o papel de Deus para chegarmos a um huma­
nismo plenamente desenvolvido. Isso foi realizado a partir da Renascen­
ça, coincidindo com o grande florescimento da doutrina das causas finais
na esfera religiosa. A transição para o humanismo foi fácil; ela podia
ocorrer em etapas. Tinha apenas que começar com a crença de que os se­
res humanos foram criados à imagem e semelhança de Deus. Posto isso.
Deus podia então ser aposentado com meia pensão, ainda exibido nas ce­
rimônias apropriadas ostentando as velhas medalhas, até ser, aos poucos,
desmistificado, castrado e abandonado. A música que acompanhou esse
processo, em seus anos subseqüentes, foi o soluçar da máquina a vapor
de Watt. “Aqui está”, pulsava ela, “o verdadeiro poder, poder, poder...”
Os defensores da religião tradicional não encontraram uma resposta sa­
tisfatória para isso (embora houvesse uma, se eles tivessem capacidade
para entender a degradação ambiental e social que já tinha começado).
Não tinham eles, afinal de contas, criado esse monstro sem deus, o hu­
manismo, com seu interminável palavreado acerca da nossa herança e
domínio sobre a Terra? O que é que esperavam agora?
Durante os anos da ascensão do humanismo ouviram-se vozes po­
derosas, na verdade vozes humanistas, que, se lhes tivesse sido dada
atenção e fossem acatadas, poderíam ter diminuído a tendência arrogan­
te, herdada das velhas religiões, para acreditar em nossa capacidade para
manipular a Terra de qualquer maneira que nos interesse e para evitar o
pagamento de quaisquer penalidades em conseqüência dessa manipula­
ção. Como Clarence Glacken assinalou, Francis Bacon, Kant, Hume e
Goethe advertiram, todos — de maneiras diferentes e em diferentes
graus — , sobre a fragilidade e os perigos inerentes à doutrina das aiusas
finais, e sobre os problemas que ela criaria. Mas não deram ouvidos a es­
sas vozes. De fato, a célebre frase de Bacon “A Natureza só deve ser co-
mandada por meio da obediência a ela”, mesmo no contexto da própria
marca de limitada arrogância humanista de Bacon, foi provavelmente ig­
norada de mais maneiras por mais pessoas do que qualquer outra idéia
inteligente dos nossos tempos. Hoje, ainda podemos encontrar um pu­
nhado de humanistas como Lewis Mumford tendando explicar paciente­
mente que a Natureza não é uma máquina. Com efeito, Mumford d ta o
argumento de Kant de que uma máquina contém um princípio de organi­
zação externo que a Natureza não possui. Mas esses poucos humanistas
são suplantados em número e clamor de vozes por uma multidão que
prefere apegar-se a analogias simplistas que confirmam sua fé na capaci­
dade do ser humano para resolver qualquer quebra-cabeças, superar
quaisquer obstáculos e realizar qualquer desejo. ^
Assim, ambas as religiões — o grupo judaico-cristão e a religião
da humanidade — são responsáveis pelas conseqüências, para nós mes­
mos e para o nosso meio ambiente, da moderna arrogância humana. Se
ignoro a tradição judaico-cristã neste hvro, não é porque a absolva. Te­
mos que tratar primeiro das coisas importantes, e o humanismo é hoje
dominante. Tampouco desconheço que os principais temas motivadores
da humanidade podem ser considerados uma criação, em primeiro lugar,
de pessoas, antes de se converterem em filosofias formais. lA arrogância
humanfctica pode ser apenas um termo coletivo para os egos de mem­
bros individuais da nossa sociedade^ Mesmo que isso seja verdade, po­
rém, a tendência arrogante no humanismo ainda é a racionalização
externa de um conjunto de impulsos e sentimentos que nos causam des­
conforto, como realmente deve ser. Exponha-se a realização, e podere­
mos começar a enfrentar os sentimentos. K
Não desejando lançar fora o trigo junto com o joio, devo admitir
que o humanismo abrange várias idéias muito diferentes, embora sutil­
mente aparentadas. A fé absoluta em nossa capacidade para controlar o
nosso próprio destino é uma perigosa falácia, como tentarei mostrar.
Mas a crença na nobreza e no valor da espécie humana, e um razoável
respeito por nossas realizações e provas de competência, também cons­
tituem parte integrante do humanismo, e só um misantropo rejeitaria
esse seu aspecto. A misantropia também será examinada mais adiante.
Para alguns, o humanismo serve para proteger-nos do lado mais
sombrio da Natureza, um lado que, com exceção dos mais incorrigivel-
mcnte ingênuos e resguardados pastoralistas urbanos, todos nós conhe­
cemos bem. Quem quer que se defronte regularmente com a Natureza
deparou com os ventos, geadas, secas, enchentes, ondas de calor, pragas,
solos inférlcLs, venenos, doenças, acidentes e incerteza geral que ela nos
oferece em sucessão ou simultaneamente. A maneira primitiva de en­
frentar esse lado mais sombrio é com esforço e labuta, e a faculdade hu­
mana de invenção nunca deixou de trabalhar no sentido de atenuar o
esforço e minorar a labuta. Não chega a surpreender que o humanismo,
o qual eleva a nossa capacidade inventiva a níveis divinos e a exalta
como infalível, tenha sido adotado por muitos daqueles que acreditam
terem sido libertados do esforço e da labuta.
Pondo de lado, por enquanto, a questão dos efeitos colaterais e da
durabilidade da libertação, quais são as implicações desse modo de pen­
sar acerca da humanidade e da Natureza? De imediato, está claro que se
criou uma dicotomia: homem versus Natureza. É óbvio que nada existe
de errado com uma dicotomiã, se uma dicotomia estiver comprovada. Si­
tuações em que duas alternativas bem definidas são colocadas em oposi­
ção m ú tu a oco rrem o tem po todo na e x is tê n c ia com um . Os
computadores digitais operam numa linguagem binária que glorifica o
conceito de dicotomia. Contudo, existe algo na extrema vulgaridade das
dicotomias que nos deve fazer desconfiar: são as alternativas claras, com
duas opções possíveis e mutuamente excludentes, tão freqüentes na
vida? Bom-mau; socialista-capitalista; republicano-democrata; belo-
feio; covarde-corajoso; até prazer-dor — quem já não foi lesado ou en­
ganado por dicotomias que, pelo menos uma parte do tempo, são falsas e
enganadoras? Evidentemente, estabelecemos dicotomias porque os nos­
sos pensamentos lógicos ficam mais à vontade nesse modo. Isso não sig­
nifica que as dicotomias existam necessariamente, ou que sejam até úteis.
As dicotomias são sumamente perniciosas quando separam, de
forma arbitrária, partes de um sistema altamente inter-relacionado e
co m p le x o .^ o trabalhar com o mecanismo avariado de um relógio,
por exemplo, é muito pouco provável que um relojoeiro separe a “me­
tade de cima” da “metade de baixo”, ou as “molas e rodas dentadas”
dos “coxins de rubis”. Isso impediria por completo o conserto. A Na­
tureza pode ser retratada em oposição a nós, mas ela também nos
abrange; consistimos num sistema. Talve a ilustração mais clara disso
tenha sido fornecida por Gregory Bateson, em suas análises do alcoo­
lismo e da esquizofrenia. Tradicionalmente, ambos têm sido tratados
m ediante a formação de uma dicotomia: o paciente de um lado e a
doença (o lado mais sombrio da Natureza) do outro. Alcoolismo e es­
quizofrenia são conceptualmente separados, e a “doença” é tratada
com drogas ou outra terapia. Não causa surpresa que em geral os re­
sultados sejam terríveis; ou não há nenhum progresso, ou os sintomas
são mascarados ou trocados por outros.
Hiilcson é um realista; evita a dicotomia. Em muitos casos, vê os
Ntntomas de alcoolismo e esquizofretda como reações compreensíveis a
ambientes sociais aberrantes e persistentes, construídos de tal maneira
que nflo deixam ao doente nenhuma opção para comportar-se de forma
“normal”. Os sintomas alcoólicos ou esquizofrênicos oferecem uma for­
ma de evasão, ainda que autodestrutiva; ou, em outras palavras, são com­
portamentos apropriados em relação a pais ou outros que construíram
um mundo pessoal no qual há punição ou para comportar-se ou para não
comportar-se de modos que foram proibidos. (Um exemplo são os pais
incapazes de aceitar amor mas que também recriminam um filho por não
ser amoroso.) O singular êxito dos Alcoólicos Anônimos é, segundo Ba-
teson, o resultado de seu reconhecimento do comportamento alcoólico
como uma parte permanente de uma pessoa que é, por sua vez, parte de
um sistema mais vasto.
A dicotomia entre humanidade e Natureza não é a única que foi im­
posta ou apoiada por um modo humanístico de pensamento. Há também a
dicotomia lógica versus emoção, a qual, embora baseada em fatos, foi exa­
gerada e distorcida pelo humanismo. Trataremos de ambas mais adiante.
A arrogância da fé humanista em nossas capacidades foi aümenta-
da pelos triunfos da ciência e da tecnologia trabalhando em conjunto no
final da Renascença. Esses triunfos eram vistos ou discutidos por toda a
parte; iam desde uma profusão de novas técnicas para modificar paisa­
gens até um caudal de informações a respeito do mundo natural. Talvez
isso tivesse bastado, por si só, para envaidecer as tranqüilas cabeças da
humanidade, mas um outro fator ajudou imenso. Até meados do sécu­
lo XVIII, quase ninguém suspeitava que pudesse haver limites absolutos
para os poderes de controle do meio ambiente por parte dos seres huma­
nos. A essa altura, era tarde demais para que a maioria das sociedades
promovessem uma mudança. As atitudes estavam fixadas e eram ainda
mais endurecidas pelo acelerado impulso da revolução científica, a qual
prossegue hoje sem sinais de esmorecimento. Ora, quando a suspeita de
limites se tomou uma certeza, a esmagadora maioria das pessoas cultas
ainda acredita não haver armadilha da qual não possamos encontrar uma
boa saída, tão segura e ruidosamente quanto ao tropeçarmos nela. Visões
de utopia ainda se entrechocam no ar contaminado, e cada novo desastre
é enfrentado com novos planos de poder e ainda mais poder.
A fé infantil dos nossos ancestrais nas funções de intendentes da
humanidade seria comovente se não estivéssemos tão enredados nas
complicadas conseqüências dessa ingenuidade. Considere-se, por exem­
plo. a sublime e apurada descrição pelo grande artista-naturaUsta Wil-
Uam Bartram de sua primeira visão da imponente savana de Alachua,
na Flórida setentrional, no ano de 1774. Sua descrição dessa área se-
micultivada, semi-selvagem, que constituía o coração do território
dos índios Seminole, inspirou algumas das mais belas criações poéti­
cas de W ordsworth e Coleridge, inclusive “Kubla Khan” com sua
versão romantizada da água fluindo para a grande bacia de Alachua.
Eis a descrição de Bartram:

A extensa savana de Alachua é uma planície uniforme e verdejante,


acima de 25 quilômetros de comprimento, oitenta quilômetros de circun­
ferência, e dificilmente se poderá ver nela uma árvore ou arbusto de
qualquer espécie. Está cercada de alcantiladas montanhas cobertas de
ondulantes florestas e fragrantes laranjais, que crescem num solo exube­
rantemente fértil. As altaneiras magnólias em plena floração e as extraor­
dinárias palmeiras destacam-se entre elas. Ao mesmo tempo, vêem-se
inúmeros rebanhos. [...] Manadas de lépidos cervos, esquadrões de belos
e velozes cavalos Siminole, bandos de perus, civilizadas comunidades de
sonoros e vigilantes grous misturam-se e convivem...
O orvalho do anoitecer chegou agora; as brisas estimulantes, que
refrescaram e temperaram as horas meridianas desta estação quente,
cessam suavemente agora; o glorioso soberano do dia, recolhendo suas
radiantes emanações, entregou-nos em sua ausência ao governo mais
brando e à proteção da prateada rainha da noite, acolitada por milhões
de refulgentes luminárias. O atroador aligátor tinha terminado seu
horrendo urro; o mergulhão de penacho prateado e a cegonha, o sisudo
e solitário pelicano, já se haviam retirado para suas silenciosas habita­
ções noturnas, nas florestas vizinhas; os sonoros grous da savana, em
bem disciplinados esquadrões, erguendo-se agora do solo, ascenderam
em largas espirais, pairando muito acima da densa atmosfera da úmida
planície; viam de novo o glorioso sol, e a luz do dia ainda brilhando em
suas polidas penas, entoaram seu hino crepuscular e depois, numa linha
reta, desceram majestosamente e foram pousar nas gigantescas palmei­
ras ou nos altivos pinheiros, suas moradas seguras e pacíficas. Tudo
quieto e silencioso em redor, encaminhamo-nos para o nosso lugar de
repouso.

Uma verdadeira utopia, essa, com gente digna e amável vivendo


nela. Bartram gozou do privilégio de testemunhar e registrar um dos mo­
mentos supremos na história do relacionamento humano com a Nature­
za: a colossal, ainda que transitória, realização de uma sociedade
não-técnica no início de seu encontro com a civilização ocidental. Do
oeste já tinham chegado cavalos, gado, armas e laranjeiras. Seu impacto
sobre o norte da Flórida, ainda que não fosse pequeno, pelo menos não
cni desagradável nos dias de Bartran — uma mistura evanescente do do­
mesticado e do selvático. E quais eram os sonhos de Bartram de um no­
bre futuro para essa nobre terra?

Esta vasta planície, juntamente com as florestas que lhe são contí­
guas, se lhes fosse permitido [...] ficar na posse e sob a cultura de
industriosos agricultores e mecânicos exibiriam em pouco tempo cenas
muito diferentes das que vem os hoje, ainda que encantadoras; pois
pelas artes da agricultura e do comércio, quase tudo o que é desejável
na vida poderia ser produzido com abundância aqui, estabelecendo-se
desse modo uma região rica, populosa e agradável [...], as águas [...]
possuem uma grande variedade de peixes excelentes; e as florestas e
prados nativos, uma grande variedade de caça...
Se povoada e cultivada à maneira dos países civilizados da Europa, sem
excesso de população, acomodaria, numa estimativa modesta, mais de cem
mil habitantes humanos vivendo da maneira mais feliz [...] e nâo tenho
dúvida de que este lugar será, num dia futuro, um dos locais mais populosos
e aprazíveis da terra.

Os cem mil agricultores e mecânicos de Bartram cercam agora


os remanescentes protegidos da savana de Alachua, mas era discutí­
vel se ele encontraria aí um dos lugares m ais aprazíveis da terra.
Como é impressionante encontrar uma visão mais antiga da vida que
é completamente desprovida de uma idéia que consideramos comum!
Como é extraordinário que Bartram nunca se tivesse apercebido de
que os soberbos pinheiros, os peixes e a caça abundantes não resisti­
riam às necessidades e aos prazeres de uma centena de milhares de
seres humanos comuns.
Não obstante, a idéia de que existem limites para os bons efei­
tos da intendência humana e até do poder bem-intencionado do ho­
mem sobre a Natureza precedeu a viagem de Bartram à Flórida em
mais de uma década. Em seu Various Prospects o f Mankind, Nature
and Providence, Robert Wallace, um classicista e filósofo inglês con­
temporâneo de David Hume, começa por oferecer uma visão detalha­
da de uma sociedade utópica construída com suprem o cuidado e
amor, baseada na igualdade de posição e riqueza, honestidade, fruga­
lidade e honra, e administrada pelo mais moderado e benévolo dos
governos. Recusando-se, porém, a ser iludido por sua própria argúcia
ou a obcecar-se com sua própria visão, W allace pergunta, num dos
I apK ulos mais perspicazes da literatura de nossa era, se tal sociedade
poderá vir a acontecer. Só com Orwell, talvez, a literatura social e po-
lliii a vollou a ver tão rigorosa honestidade e auto-inquirição, combi­
nadas œ m talento profético. O quarto capítulo de Wallace, “Perspecti­
va”, subintitula-se “O Modelo de Governo anterior, embora coerente
com as Paixões e Apetites Humanos, é inteiramente incoerente com
as Circunstâncias da Humanidade na Terra.”
O seu argumento era elegantemente simples. Não há Estado nem
Governo, disse Wallace, por mais sabiamente que tenha sido planejado,
que possa crescer indefinidamente ou manter suas instituições inaltera­
das durante tal crescimento.

Pois, por mais excelentes que possam ser em sua própria natureza, são
totalmente incompatíveis com a presente estrutura da natureza e com a li­
mitada extensão da Terra. [...] Não se pretende que seja antinatural estabe­
lecer fronteiras para o conhecimento e a facilidade humanos, ou para a
grandeza da sociedade, e confinar o que é finito a limites apropriados. É
conveniente, por certo, fixar fronteiras corretas para todas as coisas de
acordo com a sua natureza, e ajustar todas as coisas entre si na devida pro­
porção. Sem dúvida alguma, essa excelente ordem é realmente estabeleci­
da em todas as obras de Deus em seus vastos domínios. Mas há certas
determinações primárias na natureza, às quais todas as outras coisas de g ê­
nero subordinado devem ser ajustadas.

O “autor da natureza”, escreve Wallace sombriamente num capítu­


lo ulterior, “não é responsável pelas calamidades que não promanam da
própria estrutura da natureza mas da perversidade e loucura das criaturas
que abusaram da liberdade como que foram dotados”.
Não é minha intenção descrever o desenvolvimento subseqüen-
te dessas idéias por Malthus e outros, ou tentar apurar os momentos
precisos em que pessoas descobriram vários outros fatores limitado­
res, além do espaço e da fertilidade do solo (Wallace deu a entender
que haveria outros). Tampouco desejo examinar os valores relativos
dos diferentes sistemas governamentais e econômicos — com exce­
ção de um breve excurso, mais adiante, a respeito de liberalismo c
fascismo. Este livro não é político; na verdade, é antipolítico, porque
a sua mensagem é que as pessoas estão consumindo por demais um
tempo valioso e causando excessivos danos ao fingir que os nossos
esforços em política, economia e tecnologia têm em geral os efeitos
que pretendíamos que tivessem, sobretudo quando estão envolvidas
fortes interações ambientais. Fomos induzidos pela nossa propensão
humanista a pensar que estamos realmente aprendendo arm o dirigir o
planeta em sua órbita.
Os Pressupostos
Os humanistas gostam de atacar a religião por seus pressupos­
tos inverificáveis, mas o humanismo também possui seus próprios
pressupostos impossíveis de testar. São os dados, as coisas que são in­
conscientemente aceitas e raramente ou nunca debatidas. Se ocorrem
em outros, os humanistas chamam-lhes superstições ou, mais polida­
mente, artigos de fé. Como nunca são testados ou questionados, po­
dem ser enunciados como as hipóteses em provas matemáticas, em
breves sentenças declarativas.
O principal pressuposto humanista, o qual engloba todas as nossas
relações com o meio ambiente, assim como algumas outras questões, é
muito simples. Diz o seguinte:
Todos os problemas são solúveis.
Para debcar clara a sua ligação com o humanismo, basta acrescen­
tar as duas palavras que estão implícitas; passa então a ser:
Todos os problemas são solúveis por pessoas.
Existem outros pressupostos humanistas que são ou mais ou me­
nos abrangentes do que 0 pressuposto principal, mas que não possuem a
sua força. Essas suposições secundárias abrangem:
Muitos problemas são solúveis pela tecnologia.
Os problemas que não são solúveis pela tecnologia, ou apenas
pela tecnologia, têm soluções no mundo social (da política, economia,
etc.).
Numa crise, trabalharemos com afinco em conjunto para encon­
trar uma solução antes que seja tarde demais.
Alguns recursos são infinitos; todos os recursos finitos ou limita­
dos têm substitutos.
A civilização humana sobreviverá.
Até aqui, esses pressupostos são todos independentes de linhas po­
líticas; são humanistas no mais amplo sentido social. Também existe, en­
tretanto, um grupo de pressupostos secundários que são próprios do
liumanismo da Esquerda. Provavelmente todos aqueles que merecem ser
mencionados foram assinalados primeiro por George OsweU, um socia­
lista com poderes incomuns de auto-análise. Passo a citá-los em suas
próprias palavras, acrescentando apenas o grifo. Num ensaio intitulado
‘‘Writers and Leviathan”, disse Orwell: “A Esquerda herdou do liberalis­
mo algumas crenças nitidamente discutíveis, como a crença em que a
verdade prevalecerá e a perseguição derrota-se a si mesma, ou que o
homem é naturalmente bom e só é corrompido pelo seu meio. ” Mais tar-
<le. em sua críliai a um livro de Oscar Wilde, Orwell deu prosseguimento
tP
ao tema: “Se prestarmos mais atenção, veremos que Wilde formula dois
pressupostos comuns mas injustificados. Um é que o mundo é imensa­
mente rico e está sofrendo principalmente de má distribuição...' Em se­
gundo lugar, Wilde pressupõe que é coisa simples providenciar para que
todas as espécies desagradáveis de trabalho sejam feitas por maquina­
ria. " O próprio Orwell não rejeitou inteiramente estes dois últimos pres­
supostos, mas tampouco previu que eles viessem a ser comprovados
durante sua vida. Tal como as pressuposições secundárias apolíticas que
enumerei, os quatro pressupostos de Orwell são derivados do pressupos­
to básico; portanto, pode-se tratar em conjunto de ambos os grupos.
Todos os pressupostos humanistas modernos são otimistas — tal­
vez eufóricos fosse uma palavra melhor. Embora não sejam diferentes
no conteúdo das críticas que nos séculos XVIII e XIX visaram Waliace
e Malthus, possuem agora uma consistência mais sólida e, ao mesmo
tipo, são menos espalhafatosos e mais arraigados. Constituem uma nova
doutrina de causas finais, sem muitas alterações em relação à original.
Com efeito, ainda acreditamos que a força da gravidade existe para nos
tornar mais fácil sentar.
Não é possível provar ou refutar os pressupostos humanistas num
sentido absoluto. Mas, como ocorre com todas as suposições otimistas,
deveríamos juntar menos provas para desacreditá-las do que para dar-
lhes credibilidade (se as dicutirmos em vez de aceitá-las incondicional­
mente). Uma pessoa que constrói uma casa “à prova de terremotos” na
fenda de Santo André deve fazer com que ela sobreviva a muitos sismos
antes de considerar sua segurança convincente; contudo, uma grande ra­
chadura na parede externa abalará a fé de todo o mundo no pressuposto.
Nos dois capítulos seguintes, apresentarei as provas que reuni, primeiro
para mostrar que os pressupostos humanistas que apontei são, com efei­
to, os pressupostos da sociedade moderna; e, segundo, para mostrar que
existem muitas indicações de que eles devem ser rejeitados.
O valor de um pressuposto, se de fato o tem, é puramente pragmá­
tico. Ocasionalmente, serve apenas para poupar tempo; por vezes, per­
mite-nos contornar um obstáculo que, de outro modo, seria insuperável.
A suposição, por exemplo, nas negociações diplomáticas que se segui-

1 Em anos recentes, os ecologistas começaram a contestar esse pressuposto de que uma


simples reorganização dos padrões de fluxo de bens e de capital farã com que todos
os países sejam igualmente ricos. Resumindo uma série de fatores ambientais num
artigo acerca dos problemas da agricultura tropical, Daniel Janzen repete e corrobora
uma observação feita originalmente por W.C. Paddock: ‘As nações famintas foram
e são famintas porque possuem terras muito pobres."
ram à guerra árabe-israelense de 1973 era que ambos os lados queriam e
podiam ser persuadidos a encontrar um meio de evitar novos combates.
Os resultados justificaram o uso desse pressuposto. Por que foi ele usa­
do? Certamente que não foi por causa de um insensato otimismo, mas
porque tinha sido posto à prova primeiro, presumivelmente durante con­
versações secretas com ambas as partes. No caso do humanismo, talvez
porque os pressupostos tenham surgido lentamente, em vez de serem de-
liberadamente escolhidos, não se procedeu a testes prévios nem retros­
pectivos, e essa é a razão para o seu fi^acasso geral. Nesta Era de Ironias,
deve ser esta a maior de todas as ironias: o humanismo, que proclama e
exalta a inteligência crítica da humanidade, não recorreu a ela, em última
análise, quando mais a necessitava, para testar a própria fé do humanis­
mo mediante uma avaliação do êxito de nossas interações com o nosso
meio. Feedback e análise são as ferramentas do humanismo, e é no pró­
prio humanismo que elas devem agora ser usadas.
De uma ponta à outra deste livro falo de humanismo e humanistas,
mas raramente cito os escritos de filósofos humanistas confessos. Há al­
gumas razões para isso. Em primeiro lugar, não há dois humanistas que
definam o humanismo da mesma maneira, e se eu citar um a fim de
exemplificar determinado ponto, todos os outros poderão dizer, com al­
guma justificação: “Mas não é essa a minha idéia de humanismo.” Em
segundo lugar, porque os pressupostos estão tão estreitamente mistura­
dos na própria tessitura do humanismo e são uma parte tão presente da
vida humanista cotidiana, que não é muito frequente escrever-se a res­
peito deles e, quando se escreve, sua natureza manifestamente religiosa
causa uma certa dose de confusão e encobrimento. Um exemplo é o se­
guinte parágrafo de autoria do humanista John Herman Randall Jr.:

A disposição humanista sustenta que os homens devem pôr sua fé no


próprio homem — nas infinitas possibilidades do homem. Essa fé deve
conjugar-se, é claro, com um reconhecimento realista das infinitas limita­
ções do homem — das capacidades do homem para o “pecado”, para ficar
aquém das alturas que vislumbrou. Em suma, a fé na inteligência e no ho­
mem é Humanismo.

0 enunciado de Randall, parte de uma definição de humanismo, é muito


típico do modo como os humanistas discorrem sobre pressupostos...
quaiulo o fazem. Ele começa com o credo “as infinitas possibüidades do
hum cm depois, talvez percebendo a fragüidade de sua posição, faz uma
ii-ssalva, a qual se parece mais a uma retratação: “as infinitas limitações
tio homem”. Tendo .satisfeito seus escrúpulos a respeito dos pressupostos,
M
ele ignora as contradições óbvias e provavelmente reais na idéia da
coexistência de infinitas possibilidades e infinitas limitações, e passa a
reafirmar o credo — a “fé” na inteligência humana— como se a idéia de
limitações nunca tivesse sido ventilada.
A terceira e mais importante razão por que não usei extensamente
citações de escritos humanistas é que não quero dar a entender que este
livro se dirige primordialmente ao pequeno grupo de filósofos e outros
intelectuais que realmente se autodenominam humanistas. Você é um
humanista; Joseph Stalin era um humanista; eu, apesar de meu melhor
discernimento, sou por vezes um humanista. O humanismo está no âma­
go de nossa atual cultura mundial — compartilhamos de seus ocultos
pressupostos de controle, e esse vínculo escarnece das diferenças mais
superficiaisléntre comunista, liberal, conservador e fascista, entre admi­
nistradores e administrados, exploradores e conservacionistas.
“Humanismo”e “humanista” são, creio eu, as melhores palavras
para o meu intento, e embora o seu uso possa ofender certos sentimentos,
não penso que ofenda a história. Como já disse, o humanismo tem seu
lado bom e seu lado ruim, e é tempo de se reconhecer o lado ruim pelo
que é e pelo dano que causa. De qualquer modo, todas as definições de
humanismo são idiossincráticas e tive, pelo menos, o cuidado de dizer o
que pretendo. Espero que os que de mim divergirem não fiquem discu­
tindo em tomo de uma definição mas a respeito do próprio tema do livro.

O humanismo e a sociedade moderna optaram, embora inconsciente­


mente, pelos pressupostos do poder humano. A escolha era compreensível
— durante muito tempo, os pressupostos pareceram, superficialmente, fun­
cionar, e foram (e ainda são), por certo, satisfatórios para o ego. Agora que
os pressupostos se tomaram manifestamente desagradáveis, muitos hu­
manistas parecem desconcertados com os paradoxos que criaram para si
mesmos.^Alguns vêem a desumanização das pessoas pela tecnologia e
sua destmição do mundo natural como um afastamento do humanismo,
mal se apercebendo de que o próprio humanismo gerou essas tendências.',
Foi o humanismo que criou a apoteose e o culto da máquina e da cultura
do humano-como-limitador-da-máquina, que tantos humanistas despre­
zam. De modo igualmente paradoxal, muitos humanistas gostariam de
sentir uma intimidade e um parentesco com a Natureza, baseados na
apreciação estética e no nosso conhecimento dos lugares e relações
evolutivos dos seres vivos, inclusive nós próprios. Contudo, e.ssa intimi­
dade é repetidamente contrariada pela condescendência implícita nos
pressupostos humanistas. As pessoas estão apenas um pouco mais abaixo
dos anjos, dizem esses pressupostos, à semelhança dos dogmas religiosos
dos quais eles derivaram. E presume-se que os anjos não se misturam com
a Natureza mortal, por muito que desejem fazê-lo de tempos em tempos.
Qual é, afinal, o objetivo de opor-se aos deletérios pressupostos do
humanismo? A resposta é que isso nos habilita a adotar uma abordagem
T
mais flexível e prática numa situação perigosa. Se começamos sem pre­
venções e somos capazes de filtrar com realismo os indícios e de escutar
— talvez pela primeira vez — as vozes profundas, irracionais e antigas
dentro de nós próprios, é bem possível que adquiramos uma melhor ava­
liação do que está para acontecer. Isso é muito importante, mesmo que o
que vai acontecer pareça terrível, porque, na melhor das hipóteses, nos
dará o estímulo e o sentimento de urgência para ajudar a sociedade a pro­
mover respostas decentes; e, na segunda das melhores hipóteses, pode
habilitar alguns de nós a escapar a parte do desagradável destino que sur­
preenderá os nossos próximos mais arrogantes, e a viver por algum tem­
po em paz com nós próprios, com os fragmentos remanescentes do
mundo natural e com Deus.
Capítulo 2

Mito
“Compilamos uma lista que conterá todos os
possíveis nomes de Deus. [...] Temos razões
para acreditar”, prosseguiu o lama impertu-
bavelmente, “que todos esses nomes podem
ser escritos não mais do que com nove letras
num alfabeto que inventamos.”
ARTHUR C CLARKE,
“The Nine Billion Names of God”

~ g -^eu s criou o mundo e todas as suas criaturas no ano de 4004 a.C.


Ê m Foi isso o que nos garantiu o bispo James Ussher, que teve muitos
^ adeptos nos séculos XVII e XVIII. Houve quem contestasse a
precisão de seus cálculos mas, nessa época, dificilmente se encontraria
alguém que duvidasse de sua validade aproximada, com a diferença de
mais mil anos ou menos mil anos. Hoje, as pessoas instruídas sabem
mais e, por conseguinte, devem dispor de mais e melhores elementos
para a formação de uma estimativa correta. O nosso mundo tem alguns
bilhões de anos de idade, e nele a vida mais primitiva era, na verdade,
muito, muito antiga. Temos acesso a um número infinitamente maior de
informações do que no tempo do bispo, e de uma espécie diferente. Sub­
siste, é claro, a incômoda possibilidade de que um ser supremo capaz de
criar um mundo também fosse capaz de fazer esse mundo parecer muito
mais antigo do que realmente é — através da manipulação da desintegra­
ção de séries de isótopos e de “registros fósseis” sintéticos — talvez
como algum tipo obscuro de brincadeira. Mas, piadas à parte, quem, ao
avizinharmo-nos do início do século XXI, acredita que sua genealogia
começou em 4004 a.C.? Os velhos mitos definharam sob o ailor da evi­
dência científica; os pressupostos incontestados do passado foram joga­
dos fora como detritos em decomposição de uma lixeira. O tempo e o
saber fizeram o nosso bom bispo parecer meramente excônlria).
Em 1898, um viajante foi apresentado ao presidente Krüger do
Transvaal, líder da rebelião Boer contra o império britânico. O juiz
Iicycrs, que fazia a apresentação do viajante, observou que ele estava
dando a volta ao mundo. O presidente Krüger interrompeu-o, irritado,
lembrando ao juiz que o mundo era plano. “Você não quer dizer que o
seu amigo está viajando à roda do mundo”, insistiu Krüger, “isso é im-
po.ssível! Quis dizer que está viajando no mundo. Impossível! Impossível!”
E a entrevista acabou aí mesmo. Hoje, ao aperfeiçoar o enriquecimento do
urânio a laser e transplantar corações de uma pessoa para outra, os sul-afri­
canos riem, sem dúvida, da fé arcaica e da ingenuidade do seu amado
“Oom Paul”. A idade da Terra ainda pode prestar-se ligeiramente a dis­
cussão, mas não a sua essencial esferiddade. Afinal de contas, temos fo­
tos por satélite da nossa morada esferóide, achatada nos pólos, e não
parece plana, de forma nenhuma, seja qual for o ponto de vista que se es­
colha no espaço.
Vivemos numa era excepcional. Ao contrário do derrotismo som­
brio do Eclesiastes, existe algo de novo sob o sol. A verdade derrotou fi­
nalm ente o mito, a objetividade foi entronizada, os pressupostos
deixaram de ser vahdados somente pelo preconceito e pela fé — pelo
menos, para os líderes do mundo cultural. As histórias da carochinha são
agora reservadas para as crianças, que evidentemente precisam mais de­
las do que os adultos. Fazemos parte da primeira grande era do mundo
cujos habitantes cultos nunca parecerão excêntricos, supersticiosos ou
bobos aos olhos de seus descendentes.
Agora que o mito acabou, em que espécies de coisas as pessoas
acreditam?
Acreditamos que muitas crianças são “hiperativas” e que essa con­
dição interfere em sua aprendizagem e desenvolvimento social.
Acreditamos que o mundo necessita desesperadamente de uma fonte
limpa, econômica, segura e muito abundante de energia concentrada.
Acreditamos que a opinião pública pode ser descoberta por pes­
quisas, desde que as perguntas sejam formuladas objetivamente e o gru­
po de am ostra seja representativo da população e suficientem ente
numeroso para indicar sua variação.
Acreditamos que a perspectiva de controle do pensamento através
do uso de produtos químicos e outros métodos científicos é assustadora,
sobretudo se o conhecimento das técnicas cair nas mãos erradas.
Acreditamos que as decisões ambientais são mais bem tomadas
ix)r pessoas especialmente treinadas para a tarefa.
Acreditamos que uma ingestão mínima diária de vitaminas e cer­
tos stiis minerais é necessária para a manutenção da boa saúde.
E, é claro, acreditamos em muitas outras coisas que são demasiado
numerosas para fazer delas uma lista. Mas a simples cnumcraç.io é um
modo inadequado de caracterizar uma crença. É preferível l iair aim um
menor número de assuntos e examiná-los mais cuidado.samenle. Assim,
descrevo nas páginas seguintes um misto de ficção científica, profecia
contemporânea, descrições de metodologias genuínas em ciCncia e em
ciência social, e relatos de invenções e planos para ins enções. Cada item,
seja ele verdadeiro ou imaginário, ou revela as nossas crenças e expecta­
tivas, ou descreve realizações modernas que as geraram e confirmaram.

Mente
“Antes que termine comigo, jovem, aprenderá a aplicar a psico-história
a todos os problemas como uma coisa natural e rotineira... Observe.”
Seldon retirou sua calculadora do estojo preso ao cinto. [...] Símbolos
vermelhos brilharam intensamente, sobressaindo do fundo cinza.
“Isso representa a condição do Império no presente”, disse ele. “[...]
Some-se a isso a conhecida probabilidade de assassinato imperial, revolta
do vice-rei, a repetição contemporânea de períodos de depressão econômi­
ca, o índice declinante de explorações planetárias, o...”
Ele prosseguiu. A cada item mencionado, novos símbolos ganhavam
vida ao seu toque e fundiam-se na função básica que se ampliava e se
transformava.[...]
Finalmente Seldon parou. “Isto é Trantor daqui a cinco séculos. Como
interpreta isso, hein?”
Gael disse num tom de incredulidade: “Destruição total! Mas...mas isso
é impossível.[...]”
“E qual é a probabilidade numérica...?”
“Não saberia dizer.”
“V ocê pode certamente realizar uma diferenciação de campo, não
pode?”
Gael sentiu-se pressionado.[...] Calculou furiosamente e sentiu sua fron­
te ficar suada e lustrosa.
“Uns 8.5%, não?”, disse ele.
“Nada mau”, respondeu Seldon, esticando o lábio inferior, “mas ainda
não foi bom. O número exato é 92,5%.”

Esse excerto de Fundação, de Isaac Asimov, conclui a primeira lição re­


gistrada de psico-história, dada pelo fundador dessa ciência estatística, o
imortal Hari Seldon, que nasceu no ano de 11.988 da Era Galáctica e f;i-
leceu em 12.069. Considerando a psico-história “pouco mtiis do que um
conjunto de vagos axiomas”, ele aperfeiçoou-a ao ponto de suas prediçõ­
es políticas e econômicas se estenderem, com grande precisão, por mais
de trinta mil anos no futuro. Tal era o poder desse ramo da matemática
aplicada, que podia prever acontecimentos políticos na outra extremida­
de da Galáxia cinqüenta anos no futuro, com uma margem de erro de
apenas uma ou duas semanas. Ainda mais impressionante, a psico-histó-
ria (e as aptidões dela derivadas) podia ser usada para anular os desvios
da trajetória histórica prevista, que, caso contrário, teriam sido causados
pelo imprevisível advento do “Mulo”, um mutante humano com enormes
poderes de controle mental sobre os outros, e com um ego condizente.
Tudo fictício, é claro. Ficção científica do mais alto quüate. Mas
para que o leitor sério, que não gosta necessariamente de ficção científi­
ca, não rejeite essa seleção como frívola e deslocada numa análise das
crenças contemporâneas, assinalarei dois fatos importantes. Em primeiro
lugar, o livro do qual esse material foi extraído é imensamente popular
entre um gigantesco número de pessoas; ele tocou alguma corda sensí­
vel. E, em segundo lugar, partes dele já se tomaram verdade. Quando
Asimov escreveu The Foundation Trilogy no final da década de 1940, “a
pequena calculadora” pendente do cinto de Hari Seldon ainda não tinha
sido inventada, e teria sido impossível inventá-la; tampouco o diodo
emissor de luz, que fornece os hoje familiares e refulgentes “símbolos
vermelhos” era utilizado pela tecnologia dessa época. Quanto ao apare­
cimento de um Hari Seldon... veremos.

“Introduzimos a irritação lentamente, de acordo com a capacidade do


bebê para absorvê-la. Assemelha-se muito a uma inoculação.j...] O sr.
Castle mencionou o ciúme — uma forma secundária de cólera.j...] Natu­
ralmente, evitamo-lo. Já cumpriu o seu propósito na evolução do homem;
não temos mais uso para ele.”

“... quando uma determinada emoção deixa de ser uma parte útil de um
repertório de comportamentos, tratamos de eliminá-la.[...] É simplesmente
uma questão de engenharia comportamental”, disse Frazier.

“A história nada nos diz. Essa é a tragédia do reformador político. [...]Ele


não possui fatos reais... nenhuma lei real. Uma figura patética! [...jQueremos
um governo baseado na ciência do comportamento humano. [...jPela primeira
vez na história estamos prontos para isso, porque podemos agora tratar do
comportamento humano de acordo com simples princípios científicos.”

“Não é solução frear a ciência até que a sabedoria e a responsabilidade


do homem a alcancem. [...]por mais louca que possa parecer à alma
aintcmplati va — a ciência deve seguir em frente. [...jTemos que reforçar
os setores fraats— as ciências comportamentaiseculturais[...] aguardam
até que tenhamos desenvolvido uma ciência do comportamento ;ão pode­
rosa quanto a ciência do átomo, e vocês verão a diferença.”

“Dêem-me as especificações e eu lhes darei o homem! [...jControlcmos


as vidas de nossos filhos e vejamos o que se pode fazer deles.”
“Deve ser uma grande satisfação”, disse eu afinal. “Um mundo de sua
própria autoria.”
“Sim”, disse ele. “Contemplo a minha obra e, veja, é boa.”

Muitos reconhecerão imediatamente esses excertos como parte de


Walden Two, o romance utópico de B. F. Skinner. Mais ficção científica
— e no entanto um pouco mais próxima da realidade do que The Foun­
dation Trilogy. A engenharia comportamental existe, de fato, na forma
do “condicionamento opérante” do próprio Skinner; e tem sido emprega­
da com muitas espécies — não apenas ratinhos brancos, mas tartarugas
marinhas, peixes e seres humanos foram ensinados pelo método de refor­
ço positivo (e, às vezes, negativo) a evitar certos comportamentos e fa­
vorecer outros. Nos seres humanos, o comportamento sexual desviante
foi suprimido, a aprendizagem de matérias como matemática e línguas
foi aperfeiçoada e enriquecida, e condutas sociais aceitáveis foram enco­
rajadas por esse método. Nos Estados Unidos, existe atualmente uma co­
munidade experimental chamada “Walden Two”, onde são aphcados
muitos dos princípios e metas encontrados no üvro. O livro é ficção mas
a idéia de engenharia comportamental, tal como a idéia de psico-história,
faz parte da crença comum da nossa época, parte da grande massa de
verdade científica, experimentalmente verificável e quantificável, que
desalojou o mito, à semelhança da água que desaloja o óleo porque é
mais densa e mais pesada.
Esses dois excertos tratam da crença comum em nossa capacidade
potencial e reahzada para controlar, até reestruturar, a mente humana: a
mente individual através da engenharia comportamental, e a mente em
conjunto através da psico-história (neste último caso, o controle é deri­
vado automaticamente da capacidade para predizer). A ficção científica
é aqui um guia idôneo para a crença popular, e existem muitos exemplos
da incorporação dessa antiga ficção na vida moderna. Três bastarão para
demonstrar como ela está difundida.
Antes que a noção de psico-história possa perder sua atual posição
puramente ficcional e assumir sua função básica de prever atitudes e
condutas futuras, ela tem que ser remodelada e desenvolvida à luz da ex­
periência prática. E que melhor assunto do que o passado para se exercer
essa prática? Esta vem ocorrendo agora num nível razoavelmente sofis­
ticado — embora Hari Seldon talvez sorrisse diante do uso desse adjeti­
vo. O nome da prática é “cliometria” ou “história econométrica”; alguns
referem-se a ela simplesmente como “história científica”. Os cliometris-
tas descartaram o método tradicional de história, a interpretação subjeti­
va de m ateria is esc rito s do passado, a fav o r de um a av aliação
quantitativa de vastas quantidades de dados numéricos. A interpretação
depende dos resultados da análise científica.
Talvez o mais importante estudo cliométrico seja a obra em dois
volumes intitulada Time on the Cross, de Robert Fogel e Stanley Enger-
man. Trata-se de um exame da economia da escravatura negra norte-
americana, sendo o segundo volume inteiramente constituído de dados,
equações e métodos estatísticos usados para corroborar as conclusões
gerais oferecidas no primeiro. Não conheço melhor maneira de transmi­
tir uma boa noção da natureza científica da cliometria do que dar uma
Usta parcial dos símbolos — e suas definições — usados num dos capí­
tulos do segundo volume:

L = entrada de mão-de-obra {input of labor)


K = entrada de capital {input of capital)
A = índice de eficiência da função de produção {efficiency index of
production function)
H = taxa anual líquida de custo do serviço de um escravo {annual net
hire rate of a slave)
Psa = preço de um escravo n anos após sua aquisição {price of a slave n
years after his acquisition)
« = o número esperado de anos que um escravo será mantido {the
expected number of years that a slave will be held)
02 = relação entre o custo de manutenção de escravos e o rendimento
líquido obtido no período básico {ratio of maintenance cost of slaves to the
net value in the base period); 02 = 1 - 9i
= a probabilidade de que um escravo viva até ao ano t {theprobability
that a slave will live through year t)
B = valor do “patrimônio” (o preço da idade-zero de um escravo {value
of the “birthrigh [the zero-age of a slave])
V = a adoção do preço de uma mulher que é devida à sua capacidade de
procriar {the share of the price of a female which is due to her childbearing
capacity).

Usando seus dados para alimentar equações construídas de símbo­


los a>mo os indicados, Fogel e Engerman realizaram um número de des­
cobertas surpreendentes a respeito da escravatura no Sul ante bellum.
I Icscobriram que as grandes plantações com mão-de-obra escrava eram
34% mais eficientes do que as “fazendas livres” no Sul, c 35% mais efi­
cientes do que as fazendas no Norte, pondo assim termo ii noção da au­
sência de entusiasmo negro no trabalho escravo. Descobriram que a
imensa maioria (mais de 70%) dos capatazes também eram negros. Des­
cobriram que os escravos raramente eram chicoteados, raramente vendi­
dos, e que, quando vendidos, as famílias dificilmente eram desintegradas
pela venda. Descobriram que apenas 12% do valor da renda produzida
por escravos eram expropriados por seus senhores. Descobriram que a
escravatura, em vez de retardar, estava promovendo o crescimento eco­
nômico sulista antes da guerra. Descobriram que a prostituição e o abuso
sexual por brancos eram raros para mulheres escravas. Com notáveis
descobertas como essas, que lhes granjearam o Prêmio Bancroft da Uni­
versidade de Columbia, Fogel e Engerman pareciam ter-nos feito avan­
çar um passo mais na direção da psico-história, onde complexas e
espantosas equações de economia, demografia e até psicologia e socio­
logia serão usadas, não para explicar o passado, mas para prever o futuro.
Nenhuma ciência, seja ela engenharia comportamental ou física,
pode funcionar por muito tempo sem alguns meios de testar o sistema so­
bre o qual exerce controle. No atual estado da ciência da mente, a maio­
ria dos testes humanos é reahzada com crianças em idade escolar, sendo
os resultados dos testes usados para regular o progresso da criança ao
longo do sistema escolar numa proporção e numa direção compatíveis
com as pontuações dos testes. A característica mais impressionante dos
testes é sua eficiência: avaliações pessoais que os professores levavam
meses ou anos para realizar são agora fornecidas por uma tarde de exa­
mes profissionais com testes elaborados cientificamente. Mais do que
isso, os testes oferecem enunciados inequívocos acerca de variáveis que
os professores consideravam além de suas capacidades de previsão, ou
acerca de questões que provavelmente não seriam respondidas da mes­
ma maneira por quaisquer dois professores.
Em virtude da sensibihdade dos testes, categorias inteiras de anor­
malidade ou patologia comportamental, antes insuspeitadas, foram re­
veladas, e pode-se ver que milhões de crianças sofrem de uma ou mais
dessas até então desconhecidas condições. Os exemplos abrangem a
“disfunção cerebral mínima” (DCM), a qual se sabe ter, pelo me­
nos, 99 sintomas distintos (somente uma fração dos quais é passível de
estar presente num determinado caso), a “hiperatividade” ou “hipercine-
sia”, que se estima afligir entre 3% e 40% de todas as crianças, sendo
15% talvez o número mais citado, e a “incapacidade de aprendizagem”,
uma variedade de distúrbios pertinentes a audição, ao pensamento, ã
fala, leitura, escrita, ortografia e aritmética, mas excluindo os casos ób­
vios de deficiência física e notória enfermidade ou retardamento mental.
O mais antigo de todos os testes administrados a crianças é a Esca­
la Apgar, usada no nascimento pelo médico assistente, e na qual são da­
dos pontos, até um máximo de dez, para características iniciais como
tono muscular e choro. Os escores Apgar são bons indicadores da saúde
nos primeiros anos da infância. Mas os primeiros testes psicológicos ver­
dadeiros, envolvendo a cooperação da criança, fizeram sua aparição um
pouco mais tarde e compreendem a Escala de Desenvolvimento e Inteli­
gência de Cattell, que vai dos dois aos trinta meses, a Escala Pré-escolar
de Minnesota, dos dezoito meses aos seis anos, e muitos outros. A escala
pré-escolar abrange tarefas como a designação de objetivos famüiares,
desenho de uma forma e a imitação do cubo Knox, a qual envolve tocar
uma série de cubos numa dada ordem. Os resultados desses testes são
usados, por exemplo, para determinar se as crianças estão aptas a passar
da escola maternal para o jardim de infância. Quando as crianças atin­
gem a idade escolar, os testes tomam-se mais complexos e os diagnósti­
cos e previsões derivados deles são mais amplos. Temos assim os Testes
de Inteligência Kuhlmann-Anderson, os quais pedem à criança (da ter­
ceira série) para contar pontos em quadrados e escrever seu número,
substituir dígitos em série por letras a fim de formar palavras, etc. Os re­
sultados de tais testes são bem correlacionados com o rendimento esco­
lar e supõe-se, portanto, que também predizem o desempenho futuro.
Chegamos, finalmente, aos “inventários de personalidade”, os
quais vão mais além da medição da inteligência para obter uma quantifi­
cação da própria personalidade. O mais conhecido desses inventários é o
Inventário Multifásico de Personalidade de Minnesota, de Hathaway e
McKinley (1943), que foi aiad o para pessoas com idade acima dos de­
zesseis anos. Os 550 itens nesse teste devem ser respondidos com “ver­
dadeiro”, “falso” ou “?” (não sei), e consistem numa série de frases
curtas e afirmativas: “Tenho muito poucas brigas com membros da mi­
nha família”; “É preciso argumentar muito para convencer algumas pes­
soas da verdade”; “Bebo diariamente uma quantidade incomum de
água”; “Gostaria de ser feliz como os outros parecem ser”; “Quando fico
entediado, gosto de provocar alguma agitação”; “Não me canso rapida­
mente”; “Estou preocupado com questões sexuais”. Esses enunciados
estão repartidos em 26 categorias, que vão desde “saúde geral” (9 itens),
“sistema geniturinário” (5 itens) e “nervos cranianos” (11 itens) até “ten­
dências sádicas, masoquistas” (7 itens), “atitudes religiosas” (19 itens) e
“moral” (.33 itens).
o teste foi originalmente planejado com nove escalas, na^ quais a
personalidade do indivíduo podia ser plotada; elas ambrangiam hipocon­
dria, masculinidade-feminihdade, paranóia, etc. Outras escalas foram
posteriormente adicionadas, incluindo Introversão Social, Preconceito,
Status Social e Caudalidade (esta última refere-se a uma discriminação
clínica entre lesões nas porções frontal e parietais do cérebro). Há tam­
bém quatro escalas de correção ou de validade, as quais ajudam o exami­
nador a efetuar descontos para o indivíduo que mente, é irracional,
descuidado ou obtuso demais para entender o item, que diz com excessiva
fteqüênda “não sei” ou que adota uma atitude enganadora ao submeter-se
ao teste (por exemplo, é excessivamente franco ou demasiadamente defen­
sivo). A utilização dessas chaves de validade e das equações que servem
para transmitir seus fatores corretivos às escalas de personalidade é dei­
xada, em parte, à discrição do examinador.
Como mencionei, uma notável característica dos testes psicológi­
cos é que se adquirem muitas informações com grande rapidez através
de um encontro breve e aparentemente superficial com o sujeito. No caso.-
do Inventário de Personalidade, até julgamentos como “o indivíduo está
distorcendo suas respostas de um modo que pareça colocá-lo numa luz
mais favorável” podem ser feitos somente com base nos escores do ^este,
sem referência a opiniões externas e subjetivas acerca do indivíduo em
estudo. De fato, um examinador experimentado pode fornecer um minu­
cioso índice de personalidade de um indivíduo, sem ter sequer visto essa
pessoa. Isso, é claro, é um requisito prévio para uma análise científica do
comportamento; imagine-se um químico físico que trabalha no campo
da termodinâmica tivesse que experimentar pessoalmente todas as mu­
danças de temperatura que entraram em seus cálculos teóricos, ou consi­
derasse necessário inspecionar com a vista, o tato ou o olfato, o conteúdo
de todos os recipientes de reação num laboratório. Num moderno labora­
tório médico ou bioquímico, as amostras para análise só precisam ser to­
cadas por um técnico na fase inicial de preparação. Depois disso, tudo é
automático, inclusive a impressão dos dados. Por que deveria a análise
de comportamento ser diferente?
Assinalei que a ciência da mente usou os fatos da história regis­
trada para demonstrar o alcance de suas teorias, testar e aprimorar a
adequação de seus métodos. Também afirmei que os dados comporla-
mentais essenciais à psico-história profética e à engenharia comporla-
m ental estão sendo agora coletados em grandes quantidades por
procedimentos de teste cada vez mais refinados. Isso vale para o pas-
síkIo c o prcvscnte. O que está sendo feito, então, para prever e controlar
o luluro?

Recorremos agora à teoria de classificação da teoria da catástrofe [...] e


deduzimos que G e T juntos formam uma superfície uniforme equivalente
à superfície do ápice-catástrofe, dada pela equação (P = t+ ad, em que 4
t e a medem distúrbio, tensão e alienação, respectivamente...

Durante as semanas 24-35, o comportamento está principalmente na


superfície agitada superior, e durante as semanas 36-47 na supierfície calma
inferior. Pelo gráfico, pode-se-ia ter esperado a ocorrência do tumulto duas
semanas antes.[...]

Os sistemas de informação administrativa para prisões ainda se encon­


tram num estágio rudimentar de desenvolvimento. [...]A vantagem da
teoria da catástrofe consiste em dar, não só a compreensão qualitativa dos
fenômenos que envolvem mudança catastrófica, mas também em fornecer
modelos quantitativos para testes experimentais. [...] Também pode ser
possível, por fim, criar um monitoramento quantitativo que propicie uma
base para a ação. Por enquanto, ainda não é possível determinar precisa­
mente onde estão as linhas dos ápices.[...]

Espera-se instituir em breve um sistema corrente de monitoramente em


Gartree [Prisão], usando melhores medidas das variáveis.

Esses trechos são transcritos de um artigo científico intitulado “A Model


For Institucional Disturbances”, publicado na edição de maio de 1976 do
British Journal ofMathematical and Statistical Psychology. Foi seu au­
tor o professor E. C. Zeeman, do Instituto de Matemática da Universida­
de de W arwick, em colaboração com um outro m atem ático e três
psicólogos prisionais.
O artigo representa uma das primeiras tentativas de aplicação da
teoria matemática avançada, neste caso, a “teoria da catástrofe”, à tarefa
de prever o comportamento de grupos de pessoas. A teoria da catástrofe
é um ramo relativamente novo da topologia, o estudo matemático de
configurações geométricas sujeitas a transformações. A teoria fornece
um modo de analisar transições descontínuas, à semelhança do brusco
rompimento que acaba ocorrendo com um tira de elástico, por mais sua­
ve que seja a sua distensão. A palavra “catástrofe”, nesse contexto, pretende
airacterizar uma súbita mudança — não necessariamaite algo pavoroso.
Sem dúvida, dentro de poucos anos será considerada rudimentar e
“clá.ssica”, mas Zeeman e seus colaboradores têm consciência da nature­
za pioneira de seu trabalho e dos aprimoramentos que ainda serãf' neces­
sários. A previsão e, portanto, a prevenção de motins em prisões 6 ;ipc-
nas uma parte minúscula do uso potencial da teoria da catástrofe nos
campos outrora ficcionais da psico-história e da engenharia comporla-
mental. Até mesmo o ato de apaixonar-se, um processo acentuadamente
descontínuo, que envolve uma abrupta mudança de estado, não está lon­
ge do alcance da teoria da catástrofe, uma vez que as variáveis quantita­
tivas apropriadas tenham sido identificadas e medidas. Os dias de Hari
Seldon e Walden Two chegaram.

Corpo
Além da mente, existe o corpo. Também neste caso acreditamos
na inevitabilidade do controle —■controle da nossa herança física e do
seu destino, um controle que nos liberta de muitas das doenças físicas do
corpo e finalmente nos libertará da maioria delas, se não de todas. Mais
do que isso, o controle que apagará os defeitos normais de forma e fun­
ção a que nos habituamos, e nos ajudará a aproximarmo-nos da perfeição
que outrora era atribuída somente às máquinas e aos próprios deuses.

A o seu redor estavam os jovens gigantes, enormes e belos, refulgentes


em suas malhas [...]Só de vê-los, seu coração recobrou o alento. Hram tão
desenvoltamente poderosos! Eram tão grandes e graciosos! Tão firmes em
seus movimentos! [...] Era real, era seguramente real — tão real quanto os
atos malévolos! Mais real, talvez, porque essas grandes coisas são coisas
por vir, ao passo que a pequenez, a bestialidade, a mesquinhez e a
enfermidade do homem são coisas que se vão.[...]

Soou uma voz vinda do alto.[...j “Lutamos, não por nós mesmos, mas
pelo crescimento, o crescimento constante. [...]Libertar-se destas fendas e
rachaduras, destas sombras e trevas, sair para a grandeza e a luz! [...jCres-
cer.[...]. Até que a Terra não seja mais do que um escabelo. [...]Até que o
espírito tenha expulso o medo para o nada e se expanda.[...]” Abriu os
braços, estendendo-os na direção do céu — “AU!”

Isso é ficção científica da virada do século, um excerto de O alimenio


dos deuses, de H. G. Wells, uma história acerca da descoberta de um
“alimento” químico dotado da propriedade de aumentar enormemcnlc o
tamanho de qualquer criatura em crescimento, planta ou animal, que lhe
seja exposta. Na história, é considerado ponto pacifia) que os gigantes
humanos assim produzidos são superiores aos outros seres humanos em
todos os aspectos — não só em tamanho e força.
São também mais pacíficos, mais sábios e mais belos. No seu rela­
to final da batalha que foi imposta às poucas dezenas de jovens gigantes
[iclo resto da odienta e nanica humanidade. Wells não nos deixa a menor
dúvida de que a vitória final tem que pertencer e pertencerá aos gigantes.
O fato de essa obra datar do início do século não tem importância,
porque nela se encontram todos os elementos da nossa crença contempo­
rânea — a crença em que produtos químicos (o alimento) podem über-
tar-nos da doença, em que esses mesmos produtos químicos podem ir
além de uma função medicinal essencialmente negativa para produzir
um estado dc saúde e vigor físicos impossíveis de obter de qualquer ou­
tro modo, e em que essa nova grandeza física pode muito bem ser acom­
panhada de progressos morais da mesma grandeza. Tal como na outra
ficção científica por mim citada, os pontos de vista do autor não são
(x;ultados, de maneira nenhuma, pela natureza absurda da ficção. E tam­
bém são as nossas crenças.
Hoje, a maior audiência de ficção científica pertence à televisão.
Embora a quaUdade da arte possa ter diminuído, a mesma mensagem
ressalta das histórias. Assim, temos “Jornada nas Estrelas” (Star Trek), a
mais romântica, popular e engenhosamente realizada das epopéias de
ficção científica da televisão. Nesse relato das viagens da espaçonave
Enterprise, os personagens humanos permanecem humanos mas com
uma diferença. Os membros humanos da tripulação são todos sobrenatu­
ralmente saudáveis, graças, segundo parece, aos esforços do médico de
bordo, cujos recursos químicos e eletrônicos podem efetuar qualquer
diagnóstico e tratar qualquer moléstia meramente humana. Somente
quando a tripulação é atacada por agentes patogênicos ou enfermidades
estranhos, talvez deliberadamente introduzidos por um inimigo extraga-
lático, é que surgem possíveis dificuldades.
O mais famoso oficial não-humano da Enterprise é o dr^Spock.
um natural do planeta Vulcano. Spock podería ser chamado de um para-
humano; nele, os criadores de “Jornada nas Estrelas” permitiram-se
aproximar-se o máximo que se aventuraram do mito do Super-homem,
se bem que, em alguns aspectos, mantiveram-no curiosamente vulnerá­
vel (sem dúvida, como recurso para o desenvolvimento do enredo). As
ainicterísticas de Spock abrangem um vigor físico, coordenação e fisio-
logia que parecem algo superiores aos de seus companheiros humanos,
assim como uma acentuada hipertrofia das fiaguldades lógicas do cérebro
à custa das emoções. Como os autores deixam claro, esta úítTma caracte-
rísl ica nem sempre é uma vantagem. Em “Jornada nas Estrelas”, não en­
contramos os jovens gigantes wellsianos entre os heróis; nem, porém, se
encontra quem seja precisamente humano do modo que qualquer um dc
nós é humano. Se humanos comuns tivessem tripulado a Enterprise, esta
provavelmente não teria sobrevivido à sua viagem inaugural.
Os escritores de “Jornada nas Estrelas” nunca se livraram total­
mente dos fragmentos residuais de falibilidade humana; não estavam
completamente comprometidos com uma crença em nosso controle su­
premo dos nossos eus físicos. Tais dúvidas não se manifestam numa
criação mais recente da televisão, o seriado de grande êxito intitulado “O
Homem de Seis Milhões de Dólares”. Um astronauta chamado Steve é
seriamente ferido num acidente. Por causa do valor para o governo de
seus conhecimentos e talentos, decide-se substituir suas partes destroça­
das — entre os quais um olho, um braço e uma perna — por peças biô­
nicas (“biônico” parece referir-se às réplicas em material sintético dos
vários órgãos e tecidos do corpo). Essa substituição de partes do corpo
custou seis milhões de dólares, daí o nome do seriado.
Embora Steve continue parecendo um ser humano típico do sexo
masculino, com detalhes realistas como um peito cabeludo, suas caracte­
rísticas biônicas conferem-lhe aptidões sobrenaturais. Por exemplo, seu
olho sintético está equipado com uma lente telescópica zoom e um visor
como o da alça de mira de um fuzil. Seu braço é suficientcmcntc forte
para fazer em pedaços portas metálicas trancadas, e sua perna habihta-o
a saltar para o telhado de edifícios altos (e voltar para o chão).
Eis um verdadeiro Super-homem, mas um super-homem humano,
construído em grande parte por humanos, não algum abominável foras­
teiro vindo de Krypton ou Vulcano. Esse ponto é importante, visto que,
é claro, nada existe de novo a respeito de figuras meramente heróicas.
Desde o feroz Aquiles até ao poderoso Paul Bunyan, folclore e literatura
estão repletos de relatos de seres extraordinários, alguns deles modela­
dos de acordo cora pessoas vivas de seus tempos. Mas, apenas com raras
exceções, esses seres não eram da nossa espécie, eram criados pela natu­
reza ou pelos deuses, e à semelhança dos outros mortais não tinham po­
deres para projetar a vida de acordo com suas próprias especificações.
Talvez a primeira exceção fosse Pronifileu, não por sua capacidade como
ladrão do fogo mas, antes, como um plasticator, um modelador que era
capaz de insuflar vida numa figura de barro. Não tardou muito, se as nos­
sas reconstituições atuais estão corretas, para essas duas façanhas dc Pro­
meteu serem combinadas na mesma história, de modo que a versão
romana faz Prometeu roubar o fogo da vida. Naturalmcnte, cie foi puni­
do por sua arrogância — acorrentado a um rochedo por Zeus e forçado a
sofrer o incômodo de ter uma águia comendo-lhe o fígado dc dia, o qual
volliivii ii crcsccr à noite. Não tendo sido ele próprio feito pelo homem,
descobrira o segredo de fabricar outros.
O que 6 significativo é que ninguém acreditou que o mito descre­
vesse uma possibilidade literal para a espécie humana. No Doutor Faus­
to de Marlowe, estamos no limiar da era moderna da ciência — mas é
improvável que mais de um punhado de contemporâneos de Marlowe
pudesse ter enxergado, como Marlowe talvez vislumbrasse, para além
do poder metafórico de Satã, o real — ainda que irrealizado — poder de
seres humanos. Contudo, algo estava para acontecer. No início do sécu­
lo XIX, a consciência do nosso potencial tinha-se cristalizado plenamen-
tc. A eletricidade estava sendo estudada por Sir Humphrey Davy e, aos
19 anos de idade, Mary Sheldon estava lendo as pesquisas de Davy en­
quanto escrevia seu notável livro sobre o dr. Victor Frankenstein e seu
infeliz monstro. Mas não tínhamos, nem mesmo então, um “homem biô­
nico”. Há uma grande diferença entre as reportagens jornalísticas do sé­
culo XIX a respeito das “fantásticas experiências com eletricidade” e as
notícias científicas de hoje acerca de coisas tais como um bezerro que vi­
veu dois meses com um coração implantado de polietileno. A diferença
é a atitude blasée do público moderno. Histórias das mais incríveis ma­
nipulações e transformações de vida tornaram-se banais; não há nada
que não pareça possível. Os nossos próprios Victor Frankensteins são
apenas cientistas comuns formados por boas universidades. E não perce­
bemos quaisquer monstros sedentos de sangue escapando dos nossos la­
boratórios. É por isso que na história do homem biônico, quase pela
primeira vez, os plasticators não têm que enfrentar qualquer punição.
Agora que está aberto o caminho para a onipotência, repelimos a culpa
supersticiosa que era uma parte importante dos primeiros dias de inves­
tigação.
Em que medida a nossa ficção científica reflete as nossas crenças
acerca dos nossos eus ffeicos, e como essas crenças são confirmadas por
nossas realizações?
Se seguirmos a metáfora biônica, não tardamos a descobrir que em
tomo dela se aglutinam os petrechos da realidade. Um exemplo digno de
menção é a “bengala biônica a lasef’, um dispositivo com peso de qui­
nhentos gramas e alimentado por bateria, que gera feixes de laser em
substituição aos olhos do seu dono. Esses feixes detectam objetos sólidos
no caminho do usuário, desde o meio-fio da calçada até saliências acima
da cabeça. O aviso é dado por sons de diferentes freqüências e por vibra-
çOes. A bengala, mesmo em seus protótipos, custa metade do preço de
:«)
FACULDADE FLORIANÓPOUS/CESUSC
BIBLIOTECA CRUZ E SOUSA
compra c treinamento de um cão de cego, c a pessoa cega pode s.cr ensi­
nada a usá-la em menos de duas semanas.
Invenções biônicas mais antigas e mais familiares abrangem pinos
metálicos para fraturas da bacia e chapas metálicas para o crânio, válvu­
las silásticas para o coração, artérias de Teflon, membros artificiais, má­
quinas de diálise renal, implantes de silicone para os seios, cateteres de
fibra óptica, marca-passos eletrônicos, bolsas de colostomia, próteses
dentárias e muitos outros inventos. Uma vasta indústria fornece e asse­
gura a manutenção de peças biônicas.
Além da biônica, existem muitas outras maneiras de exibirmos a
nossa capacidade para controlar a nossa herança e o nosso destino físico.
Entre os medicamentos modernos, encontramos um vasto arsenal de pro­
dutos que eliminam ou controlam doenças e modificam funções do cor-
po.iExcessivamente numerosos para que possamos enumerá-los todos,
mesmo por categorias, eles vão desde os antibióticos, anti-histamínicos
e antineoplásicos (agentes anticâncer), até aos broncodilatadores, prepa­
rados cardiovasculares, descongestionantes, hormônios, sedativos e
tranqüihzantes. Que maravilhoso testemunho, sempre crescente, do po­
der das pessoas sobre seus corpos! Não existem incontáveis milhares de
seres humanos hoje vivos que, em eras menos competentes, teriam mor­
rido na infância? Não somos mais saudáveis e até mais vigorosos do que
os nossos ancestrais? Não estamos realizando constantes avanços? Que
mais se pode dizer? A grande diferença que nos separa do passado é que
os nossos inventos funcionam e os deles não — as nossas crenças são ra­
cionais e as deles meramente emocionais, expectantes, promissorasí
Nenhuma dessas realizações pode, entretanto, avizinhar-se do
grau de total controle e do poder de reordenamento que são prometidos
para o futuro próprio por dois avanços independentes na pesquisa bioló­
gica. O primeiro, anunciado por uma equipe britânica de cientistas, foi a
criação de uma rã inteira e normal a partir de uma única célula de rã adul­
ta proveniente de um tecido adulto altamente diferenciado (especializa­
do). Esse trabalho, prenunciado por experimentos norte-americanos
anteriores com cenouras, habilita-nos, em teoria, a produzir um ser hu­
mano a partir de uma única célula adulta — uma vez que tenham sido so­
lucionados os problemas técnicos de manutenção embrionária e fetal. Sc
esse conhecimento estivesse disponível uma geração atrás, Einstein não
precisava ter “morrido”; de fato, uma minúscula amostra de tecido, cole­
tada sem dor, poderia ter-nos deixado com um número suficiente de
Einsteins, em cópias carbono exatas, para abastecer os departamentos de
Física de todas as universidades do mundo. Com o aperfeiçoamento des-
s;i ticsa)bcrta, toda família estará apta a ter um herdeiro masculino — exa-
lamente igual ao pai. E nenhuma mulher necessitará sobrecarregar-se com
um satélite masculino se desejar ter uma filha ou filhas que dêem continui­
dade à sua estirpe.
O segundo avanço, muito apregoado pela imprensa popular, é a
nossa capacidade para transferir genes de um organismo para outro, tan­
to no interior de uma espécie como transpwndo fronteiras entre espécies.
Isso não é um desenvolvimento potencial, mas um sistema operacional
concreto desenvolvido ao longo de uma ampla frente científica por in­
vestigadores em alguns pafees. É possível colocar genes de cogumelo em
pombos, genes de rato em bactérias ou genes de couve em pessoas. Fazê-
los funcionar em seu novo meio ambiente parece ser mais uma questão
de detalhe experimental do que um obstáculo fundamental. O gene para
fabricar insulina mamífera já foi inserido numa bactéria comum. Há al­
gum traço genético desejável proveniente da nossa própria espécie cuja
freqüência não possamos aprender a aumentar entre nós mesmos? Há al­
gum traço genético desejável de outras espécies cujo acréscimo à nossa
herança não possa ser levado em consideração? Em breve a engenharia
genética ocupará seu lugar ao lado da engenharia comportamental, e o
alimento dos deuses estará ao nosso alcance.

Meio Ambiente
E no centro de um aglomerado de dez mil estrelas, cuja luz desfez a tênue
escuridão circulante, movia-se em círculos e o gigantesco planeta imperial,
Trantor. [...]
O mundo inteiro era uma distorção funcional. Em sua superfície não
existiam outros objetivos dotados de vida a não ser o homem, seus animais
de estimação e seus parasitas. Nenhuma folhinha de grama ou fragmento
de solo a descoberto podia ser encontrado fora dos 250 quilômetros
quadrados do Palácio Imperial. Não existia água nenhuma fora das terras
do palácio, exceto nas vastas cisternas subterrâneas que detinham o supri­
mento de água de um mundo.
O metal refulgente, indestrutível e incorruptível que constituía a super­
fície uniforme do planeta era o alicerce das gigantescas estruturas metálicas
que cobriam o planeta como um intrincado dédalo.j...]
Podia-se percorrer todo o mundo de Trantor e nunca deixar essa edifi­
cação conglomerada, nem ver a cidade.
Uma frota de navios mais numerosa do que todas as esquadras de guerra
que o Império já tivera desembarcava seus carregamentos em Trantor
diariamente para alimentar os quarenta bilhões de seres humanos.[...]
Vinte mundos agrícolas eram o celeiro que abastecia Trantor. Um
universo era seu servo...

Para além do corpo e da mente existe o mundo lá fora, e é nesse


domínio que as nossas crenças, baseadas em princípios científicos, fo­
ram mais longe e reivindicaram o máximo. Novas tecnologias para mo­
dificar o meio ambiente estão se desenvolvendo com tamanha rapidez
que a ficção científica acabou sendo transformada num popular jogo aca­
dêmico conhecido como futurologia. Nesta, predições aparentemente
fantasiosas, não mais extravagantes do que a descrição de Trantor em
Foundation and Empire, de Isaac Asimov, são justificadas como extra­
polação de princípios e invenções existentes, como meros prologamen-
tos da comprovada capacidade humana para mudar e criar os mundos em
que vivemos. Assim, nesta última seção do presente capítulo, podemos
passar da ficção científica para a previsão. Um leitor que não aprecie a
séria base concreta para a última pode ser incapaz de reconhecer a dife­
rença entre ficção científica e as previsões seguintes. Embora aquela e
estas compartilhem da característica comum de ser a respeito de eventos
que ainda não ocorreram e acalentem, no fundo, uma crença nos extraor­
dinários poderes da humanidade, a futurologia não pretendeu ser e nunca
foi apresentada ao público como obra de ficção pelos seus criadores.
Encontramos um certo número de predições sobre controle am­
biental na lista das “Cem inovações técnicas muito prováveis no último
terço do século XX” fornecida por Herman Kahn e Anthony J. Wiener
no livro The Year 2000:

1.5. Novas técnicas para preservar ou melhorar o meio ambiente.


18. Novas e úteis espécies vegetais e animais.
26. Uso generalizado de reatores nucleares para a geração de energia.
31. Algum tipo de controle das condições meteorológicase/ou do clima.
47. Criação e uso extenso de ambientes receptivos e supercontrolados
para utilização particular e pública.[...]
51. Instalações lunares e em satélites com tripulações permanentes —
viagens interplanetárias.
52. Aplicação de sistemas de vida no espaço ou técnicas semelhantes a
instalações terrestres.
53. Instalações submarinas permanentes e habitadas, e talvez até colônias.
96. Grande controle genético para plantas e animais.

Ampliando a gama de predição (embora não, curiosamente, a na­


tureza e o espírito das próprias predições), chegamos a um livro intitula­
do The Next Ten ThousandYears, do futurólogo Adrian Berry.
Ao contrário da crença do Clube de Roma, não há “limites para o
crescimento”. [...] Mesmo que os recursos da Terra revelem-se, em última
instância, finitos, os do sistema solar e os da grande galáxia em que ele se
integra são, para todos os fins práticos, infinitos.[...]

É provável que uma colônia permanente ou semi-permanente de luníco-


las, totalizando algumas centenas de milhares, existia na Lua em meados
do século XXI.[...]

Viver em Vênus terá seus inconvenientes.[...]

Lamentavelmente, Vênus é o único planeta no sistema solar cujo tama­


nho e proxi midade do Sol o torna adequado para uma formação de colônias
terrestres relativamentebarata.[...] Quanto às grandes massas planetares no
sistema solar, levará muitos séculos e exigirá grandes despesas antes que
possam ser exploradas para a construção de novos mundos, em dimensões
idênticas às da Terra, nas proximidades do Sol.[...] Será necessário, nesse
mei o-tempo, migrar para os planetas em órbita ao redor de outras estrelas.

Essas vastas previsões não se baseiam somente na imaginação.


Tampouco são as crenças de um minúsculo e isolado fragmento da popu­
lação. Elas são, pelo contrário, a frente de uma onda irrefreável de opi­
n iã o c u ja s o rig e n s se rã o e n c o n tra d a s na ex p lo sã o a tu a l de
conhecimentos acerca de como controlar e remodelar o meio ambiente.
Parte dessa explosão envolve, realmente, a nossa capacidade para
elaborar as especificações, as propriedades básicas, de materiais naturais
e sintéticos de um modo que nunca pudemos fazer antes. Os materiais
costumavam ser tratados como se tivessem uma vida própria semi-inde-
pendente, um conjunto de características que lhes estavam associados e
não mudavam. A madeira e a pedra podiam ser cortadas e polidas; o me­
tal podia ser fundido, laminado ou vergado; o vidro, sendo frágü, podia
ser moldado e soprado, e assim por diante. Agora esses estereótipos são
violados com freqüência: cabos mais fortes do que o aço podem ser sin­
tetizados a partir do carvão ou do petróleo, e a madeira pode ser vergada
e laminada em formatos fantásticos com grande resistência, empregando
apenas a pressão e modernos adesivos.
Até os mais inabaláveis processos de envelhecimento físico estão
sendo colocados sob controle. Os vitrais da Catedral de Chartres, do sé-
ciilo XII, ameaçados pela prolongada exposição aos elementos e à mo­
derna poluição atmosférica, foram agora protegidos por um método
ile.sconhecido há um quarto de século. Depois de lavadas com um banho
i|iiímico, IrCsgrandes vitrais, a partir de 1974, foram revestidos com uma
mistura de resinas sintéticas conhecida como Viacryl e Desmodur, sob a
supervisão do Departamento de Monumentos Históriars da França. C)
revestimento tem a finalidade de proporcionar uma barreira transparente
contra o oxigênio e contra as mais novas e implacáveis substâncias quí­
micas que hoje são componentes ubíquos do ar comum. Com a nossa
barreira plástica, congelamos assim o tempo e derrotamos a idade— coi­
sas que os construtores dos vitrais nunca teriam imaginado possível.
A nossa crença no controle ambiental, avizinhando-se da onipotência,
é reforçada por repetidas demonstrações do poder imenso mas dirigido com
precisão que podemos mobilizar contra as forças da natureza. Entre as mais
avançadas das nossas tecnologias de controle está a utilização da energia so­
lar para substituir alguns usos da eletricidade gerada convencionalmente.
Fazer o deserto vicejar é um desses usos: agora é possível empregar o calor
do sol a fim de bombear água para a agricultura. Num projeto experimental
em curso no Arizona, o calor é usado para gasificar o freon, o qual aciona
então uma turbina que gera 50 hp para as bombas. Embora não sejam eco­
nomicamente viáveis no momento em que escrevemos estas Linhas, no­
vos aumentos no custo do petróleo e aperfeiçoamentos na tecnologia
solar tornarão inevitavelmente o processo menos dispendioso do que ou­
tras formas de energia para o bombeamento de água em projetos de irri­
gação. Haverá então água em abundância para o algodão e os pêssegos
do vale do rio Gila, sem continuar a explorar os recursos de combustível
fóssil.
Ainda mais distante no futuro mas não completamente fora de vis­
ta está o reator de fusão. Uma fonte relativamente “limpa” e segura de
energia, o combustível para esses reatores será obtido da água do mar ou
de certas rochas quase inesgotáveis, como o granito de Presidential Ran­
ge, uma cordilheira de New Hampshire. Nem o material inicial nem o
volume de subprodutos provenientes da geração de energia de fusão
apresentarão o tipo de problemas a longo prazo com que hoje nos defron­
tamos em relação aos reatores de urânio, aos reatores l egeneradores, ao
petróleo e ao carvão. Quando a fusão for aperfeiçoada, a energia deixará
de ser um fator limitador em nossas lutas com a natureza. Tampouco os
seus benefícios ficarão necessariamente restritos aos indivíduos e nações
que hoje dispõem de meios para comprar petróleo, ou aos que por um
acidente de Deus controlam as fontes de urânio e de combustíveis fós­
seis. Estarão ao alcance de todos, uma benção ilimitada — c totalmenle
criada pelo homem.
Menciono as tecnologias energéticas no começo desta seção por
causa do uso intensivo de energia de tantas das nossas tecnologia volta-
lias para o ambiente. A energia é primordial. Mas existem tecnologias
nAo diretamente relacionadas com a geração de energia que são ainda
mais avançadas. A agricultura oferece numerosos exemplos. Há máqui­
nas que terminam com o tédio e o desconforto associados a quase todas
as fases da agricultura; existe até uma máquina para colher aspargos,
uma das plantas comestíveis mais tenras e mais facilmente danificáveis.
As nossas invenções tomaram-nos independentes de “dados” antes imu­
táveis, como a fertilidade do solo e a chuva. A primeira pode ser substi­
tuída por fertilizantes, inclusive aqueles que, como o azoto, sintetizamos
do próprio ar. A segunda pode ser substituída pela irrigação mencionada,
e por novas e magníficas culturas polinizadas artificialmente para serem
independentes das estações chuvosas e de outras manifestações de mu­
danças climáticas locais.
Durante milhares de anos, criamos plantas e animais — algumas,
como a banana, estão modificadas a tal ponto que já não podem reprodu­
zir-se sem a nossa ajuda. Mas nunca, até a presente geração, tínhamos
tido um controle tão completo e ilimitado, que nos possibilita projetar e
criar culturas e animais domésticos de acordo com as nossas próprias e
exatas especificações. Temos agora tomates quadrados para facilitar sua
embalagem, frangos que são predominantemente de carne de peito, fru­
tos que se separaram com facilidade de seus pedúnculos na colheita feita
por máquinas, e o “arroz milagroso”, que dá três safras anuais. Nos ve­
lhos tempos, quando se queria produzir sementes de milho híbrido, era
necessário remover à mão os pendões ou inflorescências masculinas, se-
parando-as de possíveis receptores femininos, a fim de impedir a autopo-
linização. Hoje, dispomos de linhagens de “citoplasma T”, que não
possuem pendões e são, portanto, invariavelmente femininas. Podemos
cultivar batatas doces que dão o dobro ou o quádruplo da produção por
alqueire das variedades mais antigas; podemos plantar macieiras anãs
que começam a produir maciçamente maçãs em três anos; podemos
plantar soja uniformemente em campos sem despediçar espaço em filas,
porque as ervas daninhas são suprimidas com herbicidas químicos e não
há mais necessidade de cultivo antes da colheita.
Podemos fazer o equivalente de sóhdas e dispendiosas gorduras
animais, como a manteiga, a partir de derivados vegetais líquidos bara­
tos, œ m o o óleo de milho. Podemos dispensar as baleias como fonte de
alimento, colher para nossa alimentação os quase ilimitados estoques de
krill que elas normalmente comem, e converter essas pequenas criaturas
seinelhanies ao camarão numa pasta nutritiva e saborosa. Podemos pro-
ilii/ir proleína comestível a partir de organismos unicelulares cultivados
;ui
em substâncias não-comestíveis. Fabricamos os sabores de limão e de
Uma a partir dos pinheiros, que crescem mais facilmente no nosso clima
do que as plantas cítricas, e apresentam melhor rendimento. Sintetiza­
mos fibras que são mais macias do que a seda, mais baratas do que o al­
godão, e repelem as traças. Dificilmente temos que aceitar alguma coisa
tal qual nos chega da natureza; podemos fazê-lo melhor.
Além dos herbicidas já mencionados, dispomos de um extraordi­
nário arsenal de inseticidas e, para suplementar as deficiências destes úl­
timos, uma bateria emergente de técnicas conhecidas, conjuntamente,
como controle biológico. Na Flórida, por exemplo, foi quase eliminada
por completo a lagarta-parafuso, um terrível inimigo do gado e dos cava­
los, pelo engenhoso processo de soltar dezenas de milhões de vermes es­
téreis machos — uma espécie de programa de controle da natalidade
para lagartas.
Para realizar todos esses milagres de controle ambiental, mobüiza-
mos vastos recursos de energia e de materiais, mesmo sem o auxílio dos
reatores de fusão. A União Soviética está agora desviando o curso dos
rios que correm para o norte de forma que passem a fluir para o sul, a fim
de reabastecerem outros cursos de água exauridos pela irrigação. Essa
façanha de engenharia é equivalente à reversão da corrente do rio Missu-
ri, fazendo-o fluir montanha acima, transpor as montanhas Rochosas e ir
desaguar no oceano Pacífico. Projetos análogos estão sendo considera­
dos para o Sudoeste norte-americano, assim como alguns outros ainda
mais exóticos, como rebocar icebergs do hemisfério sul para a costa da
Cahfómia, para aí serem derretidos e convertidos em água potável. Tudo
isso é necessário porque a produção total de alguns rios críticos — o Amu
Darya, o Syr Darya e o Colorado— é agora usada pela população. Mas, gra­
ças ao engenho humano, pelo menos não nos faltam alternativas.
Todo esse material a respeito de icebergs rebocáveis e bombas so­
lares ainda está no campo das alternativas precipitadas, por mais realis­
tas que sejam. De modo que me permitam dar um exemplo do nosso
extraordinário controle sobre o meio ambiente, isento de quaisquer im­
plicações tecnológicas. É o breve e simples caso das moscas domésticas
na China. Tendo decidido, como era perfeitamente compreensível, que
as moscas são coisa ruim, os dirigentes da República Popular considera­
ram fácil decretar a sua quase extinção. Tudo o que se fazia necessário
era uma grande quantidade de pás mata-mosca mais uma quota de mos­
cas mortas de todos os habitantes da China (excluindo bebês e os grave­
mente incapacitados). Em face da perda diária de uma população de
mais de cinco bilhões, as moscas chinesas tomaram a única decisão sen-
salii: resolveram deixar de existir. Que melhor exemplo se poderia en­
contrar para œnfirmar uma crença no poder e destino humanos?
Quando não podemos controlar, prevemos, e essa é realmente uma
forma de controle. As previsões meteorológicas transcenderam final­
mente o sagaz misticismo dos almanaques de agricultores e passaram a
ser uma ciência. As previsões a curto prazo são hoje bastante exatas e as
previsões a médio prazo — com uma margem de cinco dias — são geral­
mente úteis. Para além disso, existe a promessa de um novo e importante
esforço de pesauisa, apoiado em recentes descobertas da climatologia e
da palcobotânica (o estudo de vegetação antiga a partir de seus remanes­
centes preservados, normalmente grãos de pólen), em fotografias de sa­
télites de sistemas meteorológicos globais, e mais perfeitos métodos de
œmputador para analisar quantidades gigantescas de dados.
É por isso que acreditamos no total controle ambiental, em nos­
so novo e ilimitado poder; vemos provas disso à nossa volta o tempo
todo, e somente os mais obtusos poderiam deixar de notá-las. É um
pressuposto natural, baseado em observações repetidas, uma pedra
angular do moderno modus vivendi. Veja-se, por exemplo, o clamor
popular contra o programa federal de seguro contra enchentes nos Es­
tados Unidos. Isso é muito mais do que um protesto contra as habi­
tuais imbecilidades associadas a órgãos burocráticos e centralizados.
É uma recusa em aceitar a idéia derrotista de que as enchentes são
uma conseqüência necessária de se residir em áreas baixas, adjacen­
tes a rios ou ao longo de cursos de água nas montanhas. Tanto o segu­
ro contra enchentes quanto o estabelecimento de zonas de exclusão
residencial são invariavelmente rejeitados — quando isso é possível
— , a favor de programas de controle de enchentes que envolvam re­
presas, bacias de captação, barragens de contenção, canalização de
rios e canais de desvio. Por que submeter-se aos males, por que nos
adaptarmos a eles, quando podemos eliminá-los?
O ponto culminante em controle ambiental está manifesto na sín­
tese deliberada de novos ambientes, usando componentes da terra natu­
ral — ou outros — de uma nova maneira. É claro^ todas as espécies
fazem isso em certa medida: quando a cambaxirra constrói um ninho,
quando a tartaruga terrestre cava uma toca, o póUpo segrega coral, o car­
valho estende raízes profundas que organizam o solo e povos primitivos
plantam uma horta, cada um deles está mudando o meio ambiente de
ac-orilo com suas conveniências. Mas tais mudanças são triviais (exceto
no conjiitiio) quando comparadas à capacidade de construção ambiental
da síKMcdatle moderna.
o aspecto mais extraordinário do novo planejamento ambiental é
o modo como contornamos e superamos o processo enfadonho, aleatório
e imprevisível de evolução, o qual prep>arava para nós os nossos ambien­
tes. A inspeção da maioria das cidades confirmará a nossa falta de con­
fiança no desordenado processo de evolução que as gerou: uma
miscelânea de crescimento caótico, equiUbrio precário e deterioração
terrível é o que invariavelmente se nos apresenta aos olhos. Não pode­
mos fazer melhor do que isso?
“ Cidades novas” e comunidades planejadas representam uma
ruptura com o passado que era dominado pela cruel casualidade da
evolução: são habitats totalmente planejados. Nenhum, porém, está
próximo sequer de ser auto-suficiente, e a maioria desses habitats não
dispõe de tanta autonomia quanto seus planejadores pretendiam. Mas
estamos fazendo progressos no sentido da última palavra em planeja­
mento ambiental: sistemas quase fechados que cuidam de si mesmos
sem entrada de suprimentos, dado um começo adequado e o contínuo
acesso à luz solar. Por enquanto só nos aproximamos desse ideal em
certos sistemas pequenos, de caráter experimental, e popularmente só
em ambientes não-humanos como o aquário e o terrário balanceados.
Um bom terrário pode ser hermeticamente fechado a todas as influên­
cias externas exceto a luz; com uma seleção adequadamente organizada
de plantas e pequenos animais invertebrados, um terrário manter-se-á
indefinidamente vivo e saudável, testemunho vivo do homem como
construtor de ambientes. Não poderemos ampliar esses sistemas contro­
lados de modo a incluirmo-nos neles?
Uma linha reta entre a Lua e a Terra pode ser usada como base
para um triângulo eqüilátero. Quando se gira o triângulo em sua base,
o vértice oposto descreve um círculo. Nesse círculo estão dois pontos
especiais localizados nas duas interseções com a órbita da Lua em re­
dor da Terra. Esses pontos, eqüidistantes da Terra e da Lua, deslo-
cam-se antes e depois da Lua em sua órbita ao redor da Terra, e são
os únicos pontos gravitacionais estáveis no sistema Terra-Lua. São
conhecidos como os pontos de libração lagrangiana, L-4 e L-5. A sig­
nificação desses pontos (na realidade, são vastas áreas) é que objetos
aí colocados por nós permanecerão provavelmente em órbita por tem­
po indefinido, e foi num deles, L-5, que o dr. Gérard O ’Neill, um físico
da Universidade de Princeton, propôs que instalássemos uma série de
colônias espaciais em órbita.
O plano específico dessas colônias não é importante aqui; o que
importa é o grau em que elas se aproximarão do ideal do meio ambiente
fabricado pelo homem e totalmente independente. A resposta é que,
de fato, se aproximarão muito. A lenta rotação da colônia fornecerá o
equivalente centrífugo da gravidade para os seus habitantes: espelhos
refletirão a luz solar no solo e nas plantas selecionadas para ser culti­
vadas nele; água, oxigênio e a maior parte das matérias-primas mine­
ra is podem p ro v ir das ro ch as lu n are s, ao passo que m ateria is
importados da Terra podem ser reciclados. Além de ser simplesmente
uma extensão da humanidade no espaço, a colônia espacial terá fábri­
cas altamente eficientes e livres da gravidade, e um feixe de energia
em m icroondas para enviar para a Terra energia gerada pelo Sol.
Mesmo o Modelo I está planejado para sustentar dez mil pessoas, e
0 ’Neill está pronto para construí-lo com a nossa tecnologia existente
num prazo de apenas quinze anos. Acreditam as pessoas que temos
essa espécie de controle fundamental sobre o nosso meio ambiente?
Se considerarmos a entusiástica reação popular ao plano de 0 ’Neill,
a enorme publicidade que lhe foi dada, o interesse do governo — in­
clusive membros eleitos do Legislativo — e o entusiasmo de muitos
cientistas profissionais, devemos concluir ser exatamente nisso que,
de fato, acreditamos.
Surge um padrão de espetaculares inovações tecnológicas sempre
acompanhado da crença geral e lógica em inovações ainda mais espeta­
culares por acontecer. O grau e o gênero de expectativas variam — nin­
guém pode resumi-los. A humanidade está em marcha, a própria Terra
está ficando para trás. Grandes mudanças ocorrerão. Embora ainda não
se possa prever todas elas, sabemos pelo menos que o sr. Acaso e a Mãe
Natureza, governantes gêmeos da infância da humanidade, já não diri­
gem as ações. O espectro da guerra nuclear ainda paira na escuridão nas
nossas costas, mas há luz adiante e quanto mais aprendemos menos ne­
cessidade existe de lutar. Como escreveu Murray Bookchin:

Após mi lhares de anos de tortuoso desenvolvimento, os países do mundo


ocidental (e potencialmente todos os países) deparam-se com a possibili­
dade de uma era materialmente abundante, quase sem trabalho, na qual a
maioria dos meios de vida pode ser fornecida por máquinas. [...] Pela
primeira vez na história, a tecnologia atingiu um nível que desconhece
restrições ou limites. O potencial para desenvolvimento tecnológico é [...]
praticamente ilimitado. [...] Apartir do momento em que a labuta é reduzida
ao mínimo possível ou desaparece inteiramente, os problemas de sobrevi­
vência passam a ser problemas de vida, e a própria tecnologia deixa de ser
a serva das necessidades imediatas do homem para converter-se em par­
ceira de sua criatividade.
... Só podemos pedir uma coisa aos homens e mulheres livres do futuro: que
nos perdoem por ter levado tanto tempo e ter sido um ascensão tão penosa.

Finalmente, o nosso destino está em nossas próprias mãos. Tal


como a folha de papel em branco para um autor, assim o nosso futuro é
para nós: podemos escrever o que desejarmos.
lA -
Capítulo Três

Realidade
Medio de fonte leporum surgit amari aliquid
quod in ipsos floribus angat.
(Do âmago da fonte dos prazeres brota um
gosto amargo que os sufoca mesmo entre
flores.)
LUCRÉCIO
De Herum Natura. Livro IV.

osso lembrar-me perfeitamente da maneira como a minha avó pa-


tema, uma senhora autocrática e profundamente religiosa, usava
JK . o tempo futuro ao falar ou escrever. Para ela o futuro era algo in­
certo e incontrolável— sempre um mistério mas, pelo menos, um misté­
rio que era inevitavelmente revelado na hora certa. Assim, ela nunca
dizia: “Eu o verei na sexta-feira.” Isso seria deveras presunçoso de sua
parte. “Eu o verei na sexta, se Deus quiser”, é o modo como ela teria dito.
Tal modo de se expressar desapareceu em grande parte entre as gerações
mais jovens. Com o controle que afirmamos exercer sobre nossas mentes,
corpos e meio ambiente, poderíamos pensar ser desnecessário continuar
sendo tão reticentes e tão submissos ao destino ou a um poder superior. Não
obstante, esse uso não diminuiu, realmente, apenas se metamorfoseou numa
fórmula mais aceitável, que cumpre o mesmo propósito da antiga.
O novo condicionador de declarações acerca do futuro é a expres­
são “assim espero”. Assistimos em meados da década de 1960 a uma ex­
plosão desse uso, que desde então continuou inalterado. Embora evitada
por alguns escritores e falantes, a expressão inglesa 7 /zope ou letus fiope
(“assim espero” ou “assim esperamos”), que começou nos Estados Uni­
dos, é hoje quase universalmente empregada pelos povos de língua in­
glesa e tem suas equivalentes em vários outros idiomas. Há viciadcxs em
“assim espero” que acham necessário inserir a expressão cm qualquer
frase que esteja relacionada, mesmo que remotamente, com uma ação fu­
tura. Encontramos “assim espero” em artigos científicos, en.saios sobre
música, manuais de instrução e panfletos polítia)s.
Por que nos incomodarmos com “assim espero” se temos realmen­
te o poder de reorganizar as coisas como julgarmos adequado e de refa­
zer qualquer coisa ou processo que não sirva aos nossos propósitos ou
que não nos agrade? Em certa medida, é porque os indivíduos não são,
nem de longe, tão fortes e autoconfiantes quanto a humanidade em seu
todo; usamos o condicionador futuro para indicar dúvida em relação a
nossa própria capacidade. Mas isso é apenas uma pequena parte da his­
tória. A principal razão para a preponderância do “assim espero” é que,
no íntimo, sabemos que a nossa onipotência é postiça, que o nosso co­
nhecimento e controle do futuro é fraco e limitado, que as nossas inven­
ções e descobertas funcionam, quando funcionam, de modos que não
esperamos, que o nosso planejamento é fútil e inexpressivo, que os nos­
sos sistemas se descontrolam quando menos se espera — em suma, que
carecem de validez os pressupostos humanfeticos em que as nossas so­
ciedades se alicerçam. Tentamos enganar-nos e, embora continuemos
tentando, não ignoramos isso. Acumulam-se à nossa volta as provas de
que a religião da humanidade é autodestrutiva e insensata; não obstante,
quanto mais ela fracassa, mais arrogantes e grotescas são as pretenções
de seus sacerdotes. Nessas circunstâncias, a corrupção da definição ori­
ginal de “assim espero” torna-se compreensível. Gesto deplorável e in­
consciente na direção da verdade, essa pequena alteração no significado
de uma expressão vetbal é, por si mesma, simbólica do maior fracasso,
pois a linguagem é a fonte da nossa única força real e, como OrweU sa­
bia, o mau uso que fazemos dela nos dias de hoje é a indicação funda­
mental de nossa insensatez.
Antes de começar a analisar o lamentável amontoado de mentiras
e falsas crenças que o capítulo prévio constitui, quero refletir sobre os
critérios que devem ser usados na formulação de julgamentos. Alguns
dos casos mais absurdos, como psico-história, colônias espaciais e enge­
nharia comportamental, não oferecem dificuldades sérias, mas o que di­
zer dcxs outros? Não coloquei de pé uma fileira de bonecos de palha para
serem derrubados; pelo contrário, tomei algumas das coisas mais apara­
tosas que o modo de vida humanfetico tem para oferecer. Irrigação acio­
nada por energia solar, fusão limpa, agricultura moderna, medicamentos
anticâncer — que mais se pode pedir? O leitor pode esperar e obterá fa­
tos que ajudam a explicar a minha rejeição dessas invenções. Não obs­
tante, em bora me sinta feliz por reunir fatos contra as pretensões
humanistas, os fatos por si só nunca são sufidentes para provar as alega-
çiVs. Tais pretensões, sobretudo as da tecnologia, são normalmente cor­
roboradas no âmbito de seu próprio e limitado quadro de referência.
Entregam-nos uma porção selecionada e organizada de fatos, uma torrente
de estatísticas, e dizem-nos para chegar a uma conclusão sem dar um passo
fora das linhas fixadas. Dá-se a isso o nome de “ser objetivo”; disso nos ocu­
paremos em maior detalhe no próximo capítulo. Mas, para uma verdadeira
objetividade, devemos aumentar a nossa perspectiva e ampliar a nossa vi­
são; e, para se fazer isso, muitas vezes é necessário ignorar reivindicações e
contra-reivindicações a respeito de métodos, de metas intermédias e de ob­
jetivos teóricos, e observar exclusivamente os resultados finais de uma tec­
nologia ou de um conjunto de crenças humanistas.
Por falta de um termo melhor, chamo a esse processo “agális»-do-
produto final”. A análise de um produto final é o estudo necessariamente
informal de efeitos que resumem numerosas causas. É análogo ao estudo
dos impulsos nervosos que percorrem o que o neurofisiologista C.S.
Sherrington denominou o “trajeto comum final” — os nervos que rece­
bem e unificam o resultado líquido de inúmeras ocorrências eletroquími-
cas e o traduzem em ordem aos músculos. Por exemplo, nos Estados
Unidos, o acentuado recrudescimento da violência escolar, o declínio da
alfabetização, o grande aumento na taxa de suicídios infantis, o câncer
epidêmico, a elevada taxa de divórcios e o desemprego em grande escala
são indicadores mais importantes da qualidade de vida do que o número
de automóveis ou de aparelhos de televisão por família, a renda per ca­
pita, a duração média da semana de trabalho, os quilowatts-hora consu­
m idos por unidade residencial, o núm ero de horas de férias ou a
freqüência de exames médicos regulares. Todos estes últimos indicado­
res são estatísticos - frações de causas e efeitos secundários que não têm
nenhum significado por si mesmos. Os primeiros indicadores citados são
efeitos primários e finais - dizem-nos o que está acontecendo às nossas
vidas. Ser capaz de distinguir entre uns e outros é essencial para quem
quiser tentar sondar a arrogância e a destrutividade do humanismo.
Mais alguns exemplos de análise do produto final ajudarão a expli­
cá-lo de um modo mais detalhado. Em seu livro Energy ondEquity, Ivan
Illich, um pioneiro nesse gênero de abordagem, examina a eficiência do
automóvel americano. Suas conclusões têm tanto de divertidas quanto de
horripilantes. O homem americano comum, concluiu ele, consome apro­
ximadamente quatro de suas dezeseis horas vigeis dirigindo seu carro,
estacionando-o, procurando lugar para estacionar e procurando o lugar
em que estacionou, ou ganhando dinheiro para pagá-lo, cuidar de sua
manutenção e da substituição de peças gastas, comprar gasolina e óleo,
custear uma carteira de motorista, registro do veículo e seguro. Essas
1.600 horas consumidas anualmente em prol do carro habilitam o dono a
dirigir uma média de doze mü quilômetros, o que corresponde a 7,5 qui­
lômetros por hora, independentemente das velocidades individuais de
condução. As ramificações dessa análise de produto final encheriam
uma dezena de livros, mas uma coisa está clara: o estilo rápido, luxuoso
e pessoal de transporte oferecido pelo automóvel não liberta realmente
ninguém dos verdadeiros custos de viajar. Apenas fornece um modo
complicado de ocultar alguns dos pesados pagamentos que fazemos para
manter a ilusão de um estilo de vida sem esforço.
O segundo exemplo é muito diferente. Antes da Segunda Guerra
Mundial, o eminente geógrafo Sir Dudley Stamp concluiu um extenso
Cadastro Geral de Utilização da Terra (Land Utilisation Survey) na Grã-
Bretanha, no qual ele e sua equipe mapearam a divisão da paisagem bri­
tânica entre várias categorias de uso urbano, suburbano e rural. O que
esse levantamento revelou foi uma lamentável crônica de mau uso e de­
suso: havia quantidades enormes de terras abandonadas nas cidades e no
interior, a que se somava um padrão de crescimento urbano-suburbano
que tendia a destruir a utilidade das terras rurais adjacentes, ao mesmo
tempo que criava terríveis problemas para as áreas mais densamente po­
voadas que estavam em expansão. Em conseqüência desses dados.
Stamp ajudou a preparar um mecanismo corretivo, um sistema de plane­
jamento nacional do uso do solo que foi consubstanciado na Lei de Pla­
nejam ento Urbano e R ural de 1947. Em resultado dessa lei, não é
permitida nenhuma mudança no uso do solo sem autorização dos órgãos
competentes; toda construção e demolição requer a concessão de Hcen-
ças, o que colocou os funcionários do planejamento numa posição ex­
traordinariamente poderosa ao longo destes últimos trinta anos. E que
mudanças no modo como o solo é usado ocorreram como resultado do pla­
nejamento?
O Segundo Cadastro Geral de Utilização do Solo, dirigido pela
dra. Alice Coleman, foi concluído em grande parte durante a década de
1960, depois de já terem transcorrido duas décadas de planejamento do
uso do solo. Novos levantamentos de áreas selecionadas ampliaram as
informações disponíveis até a década de 1970. Não é de surpreender que
as mudanças que tiveram lugar na utilização do solo britânica a partir de
1947 tenham sido sobretudo para pior. Um novo levantamento na área
tio estuário do Tâmisa apurou que a “terra devoluta” (terra urbana sem
uso c sem vegetação) tinha aumentado quase três vezes entre 1962 e
Iõ72. "Terrenos baldios” e “mato” (terra abandonada e coberta de ervas
daninhas, sem valor para o homem nem para a vida silvestre) abrangiam
uin vigésimo do total da região do estuário do Tâmisa em 1962; em
1972, esse montante tinha quase duplicado. Durante esse mesmo perío­
do, com terrenos devolutos e baldios disponíveis, um nono solo agrícola
da região foi tomado para fins de edificação residencial e oulros tipos de
construção urbana, mas foi permitido que dois terços desse solo tomado
à lavoura degenerassem e se transformassem em terreno baldio. No total,
durante esse breve espaço de tempo, os terrenos baldios ganharam 61 ve­
zes mais área do que o terreno residencial, ao passo que a maior parte das
outras categorias valiosas do uso do solo diminuíram.
No resto da Grã-Bretanha, o padrão parece ser semelhante. Está
envolvido mais do que um problema de tamanho de área; são extrema­
mente importantes os contornos da interface entre cidade e campo. Com
freqüência, o planejamento resultou deliberadamente na criação de “cu­
nhas verdes” agrícolas, que penetraram fundo em povoações suburba­
nas. Além de tomarem inconveniente a lavoura, essas cunhas verdes
colocam amiúde o agricultor num ambiente hostil. Coleman descreve
um incidente que ocorreu na cunha verde de New Addington: rapazes de
uma comunidade vizinha penetraram num campo e cortaram os rabos de
todas as vacas. Inversamente, a proximidade de terra agrícola expõe as
áreas residenciais a perigosos produtos químicos empregados na lavou­
ra. Isso também pode ser visto em muitos lugares dos Estados Unidos,
onde a utilização do solo é igualmente deficiente sem o benefício do pla­
nejamento. Por exemplo, nas interfaces rarais a leste e a sudoeste da ci­
dade de Nova York há conjuntos habitacionais que terminam a poucos
metros de plantações de batatas. As batatas, que são atacadas por mofos,
ervas parasitárias e pragas de insetos, estão entre as culturas mais inten­
samente pulverizadas cora defensivos agrícolas da América do Norte.
O que quero mostrar ao descrever isso é que uma avaliação apro­
priada dos efeitos do planejamento deve ser feita exatamente como Co­
leman fez. Não estamos interessados nas qualificações dos planejadores,
no número de decisões que eles tomam por ano, as horas que consomem
deliberando sobre cada caso, a percentagem de decisões que foram mo­
tivo de recursos, ou a reprodutividade dos resultados de um caso para ou­
tro. Estamos apenas interessados no resultado final — o que aconteceu à
terra. Depois de realizada a análise do produto final, pode muito bem ha­
ver debate sobre as suas implicações para o futuro. Alguns preferirão
tentar modificar e melhorar o planejamento à luz do que a análise ensi­
nou. Outros, entre os quais me incluo, estão cansados das intermináveis
promessas e desculpas provenientes do campo humanista. Parecem sem -
pre tão plausíveis e aceitáveis — na verdade, são aceitáveis: “D6em-nos
apenas um pouco mais de tempo; já apuramos o que estávamos fazendo
errado.” O que eles não apuraram, é claro, é o que farão de errado na pró­
xima vez. No que se refere ao planejamento, temo que nenhuma quanti­
dade ou qualidade dele poderá jamais compensar os inevitáveis danos
provocados por uma sociedade autodestrutiva e um modo doentio de
vida. Qualquer sociedade que pode atribuir maior valor à terra agrícola
de primeira classe se for convertida num conjunto residencial ou numa
represa e reservatório está apenas usando o planejamento como uma for­
ma de fingir que está no controle de seu futuro. Mas isso é uma digressão.
Uma análise de produto final pode requerer alguma perícia na pre­
paração — as conclusões de Coleman acerca do planejamento do uso do
solo basearam-se em dados adquiridos mediante sofisticadas técnicas de
mapeamento. Mas a própria análise é mais intuitiva do que formal e não
requer os serviços de um especialista. De fato, a perícia pode ser um es­
torvo se trouxer consigo uma preocupação com meios, técnicas e objeti­
vos a curto prazo. O requisito básico para tal análise é a capacidade para
distinguir efeitos e objetivos a curto prazo dos a longo prazo. O que é ne­
cessário é a firme convicção de que a prova do pudim está apenas em
comê-lo, mais um poderoso senso de perspectiva. Como o processo é
pardalmente intuitivo, diferentes análises do produto final de um mesmo
assunto diferirão, naturalmente, como acontece com quaisquer julga­
mentos importantes emitidos por seres humanos: haverá os bons e os
maus. Esse reconhedmento será inevitavelmente usado por alguns para
argumentar a favor de testes mais “objetivos” dos nossos procedimentos.
Mas as conclusões de testes objetivos também dependem da identidade
do executor. Os testes só são rigidamente determinados em seu resultado
(e, portanto, reproduzíveis) quando o âmbito de suas questões foi seve­
ramente limitado. Tais testes fornecem respostas inequívocas mas não
podem ser usados para avaliar muitas das questões que mais nos interes­
sam. Um teste objetivo é essencial se queremos conhecer o peso em to­
neladas da carga que uma ponte pode suportar em segurança. Não existe,
porém, nenhum teste verdadeiramente objetivo que possa responder a
esta pergunta; “Deve uma ponte ser construída neste local?” Não impor­
ta que duas análises de produto final possa fornecer respostas diferentes.
É mais importante que as pessoas acabem percebendo que as questões
que podem ser respondidas objetivamente, embora úteis, nunca são as
únicas que precisam ser formuladas. Quando as análises de produto final
passarem a ser comuns, então as pessoas terão menos dificuldades em
selecionar as melhores. Nas páginas seguintes usarei essa análise em vá­
rios lugares, sobretudo quando as conclusões importantes parecem estar
em perigo de .ser soterradas por uma miscelânea de fatos.
Mente
Nunca haverá um Hari Seldon capaz de prever a história humana
trinta mil (ou mesmo dez) anos no futuro, exceto na eventualidade im­
provável de que o processo histórico cesse inteiramente e cheguemos à
sociedade estática outrora prevista por Roderick Seidenberg. A história
verdadeira não é teoricamente previsível, salvo a curtíssimo prazo e nos
casos mais triviais. E mesmo então, nada é certo. Como escreveu o fale­
cido economista E.F. Schumacher:

O mundo real [...] não é um sistema determinista; podemos estar aptos


a falar com certeza sobre atos ou acontecimentos do passado [...] mas só
podemos fazer isso a respeito de acontecimentos futuros com base em
suposií^s e nada mais. [...] Deve estar claro que, sendo a mudança uma
função do tempo, o futuro a mais longo prazo é ainda menos previsível do
que a curto prazo. De fato, toda a previsão a longo prazo 6 um tanto
presunçosa e absurda, a menos que seja uma espécie tão geral que mera­
mente enuncie o óbvio.

Schumacher baseou sua argumentação, em grande parte, no cará­


ter imprevisível das decisões humanas individuais, o que é equivalente à
idéia de liberdade humana. O que ele disse pode muito bem estar certo
mas a liberdade humana — uma bandeira vermelha para alguns — não
precisa sequer entrar em discussão. O meteorologista Eric Kraus deu três
amplas razões pelas quais a previsão a longo prazo de processos inani­
mados é totalmente impossível:

Em primeiro lugar, nunca podemos conhecer por completo o presente; em


segundo lugar, não estamos aptos a formular deduções isentas de erro a
partir do que conhecemos; e, em terceiro lugar, nossas imaginações lim i­
tadas podem impedir-nos de fazer as perguntas certas. Dependendo da
complexidade do sistema em que estamos interessados, chegamos sempre
— mais cedo ou mais tarde — a um ponto de corte para além do qual a
confiança na análise científica vira superstição, porque ela não nos pode
dizer mais do que a intuição ou a confiança no acaso.

A história humana, incluindo — como inclui — a maioria dos pro­


cessos vivos e não-vivos que ocorrem ou incidem na (ou perto da) super­
fície da Terra, representa o mais complexo de todos os sistemas c,
portanto, é o que tem a mais baixa previsibilidade. Kraus estcndc-sc:

Não se pode prever a posição exata de uma bola após dois ou trôs
ressaltos das paredes de uma quadra de squash. O movimento inicial da
bola nunca é conhecido com precisão. Essa incerteza pode ser pequena mas
ampiia-se a cada rebatida. [...] [Um ciclone] poderia ter sido desencadeado
pelo bater de asa de uma gaivota solitária sobre o vasto oceano.[...]

Quando o DDT foi introduzido pela primeira vez como um pesticida nas
fazendas do Arizona e da Califórnia, a ninguém ocorreu perguntar se isso podia
ou não afetar as cascas dos ovos de pelicanos nas ilhas do Pacífico.[...]

Toda ciência envolve simplificações. Há uma inevitável discrepância


entre os nossos modelos científicos e o mundo muito mais ricamente
estruturado da experiência cotidiana. [...] Isso significa que o modelo não
contém toda a informação que seria necessária para simular o processo tal
como realmente ocorre. A incerteza resultante aumenta com o tempo —
tal como qualquer outra incerteza. [...]

De um modo geral, a incerteza aumenta com o número de respostas


possíveis a uma pergunta. [...] Uma boa previsão só pode ser obtida em
resposta a uma pergunta relativamente tosca. Existe sempre uma permuta
entre o conteúdo da informação e a confiabilidade.

Em seu livro para crianças Sylvie and Bruno Concluded, Lewis


CarroU descreve um maravilhoso mapa desenhado numa escala de uma
milha para cada milha. Era de uma precisão extrema, escreve CarroU,
mas inutiUzável porque, quando era desdobrado, os agricultores queixa-
vam-se de que cobria os campos todos e afastava o sol das suas culturas.
Em TheHunting o f the Snark, CarroU descreve um outro mapa, o do Vi­
gia Noturno do Meio do Oceano. Sendo um mapa de características da
superfície terrestre, é completamente em branco, exceto por algumas de­
signações úteis indicadas em redor da margem, como “Norte”, “Leste”,
“Oeste”, “Nadir” e “Pólo Sul”. Um mapa é inútil porque é excessiva­
mente detalhado, o outro porque não contém informações proveitosas.
Mas ambos são muito precisos. Analogamente, se quisermos realmente
prever o futuro, teremos de enfrentar a tarefa impossível de colocar o
presente inteiro num modelo. É preferível deixar que o futuro se desen­
role por si mesmo — como sempre acontece. Inversamente, se estiver­
mos dispostos a aceitar uma previsão que tenha tão pouco conteúdo
informativo quanto o mapa do Vigia Noturno, então podemos tê-la pelo
que vale. The Foundation Trilogy é deliciosa porque satisfaz uma fanta­
sia infantil universal de onisciência. Mas a psico-história continua sendo
uma fantasia e sempre será: a calculadora pendente do cinto de Hari Sel-
don leria sido asada de modo mais digno de crédito para conferir o extra-
f)U
to mensal de sua conta bancária ou para refazer os cálculos da ncx.i do su­
permercado.
Até que ponto as conclusões da história podem ser melhoradas
pela aplicação de métodos científicos aos seus dados? Quando esses mé­
todos se aplicam à coleta e verificação de materiais em suas fontas, não
há dúvida de que existe margem para aperfeiçoamento. Mas, quando se
pretende que alguma espécie de processo científico sirva como substitu­
to para a opinião esclarecida dos historiadores, então temos o direito de
ficar desconfiados. A história nada mais é do que uma análise de pnxluto
final aplicada ao passado, pelo que existem diferentes qualidades de re­
sultado e até histórias de uma qualidade igualmente elevada podem con-
flitar entre si. Um dos meus professores de história dizia que ler uma boa
história é como escutar um sino de cristalina sonoridade; podemos dizer
que ela é correta pela ressonância muito especial que reflete. Por ter ou­
vido esse toque especial, concordo. Despois de ler C.V. Wedgwood, por
exemplo, não pode haver nenhuma dúvida de que se adquiriu uma exce­
lente noção de como era Guilherme, o Taciturno, provavelmente uma
melhor compreensão dele do que a de muitos de seus amigos, embora di­
ficilmente uma compreensão completa e sem lacunas. Dada a natureza
das questões formuladas por historiadores, não vejo como a ciência “ob­
jetiva” conseguiria fazer melhor, embora me seja fácil ver que poderia
fazer pior.
Não obstante, os “historiadores científicos” não se satisfazem com
o mero julgamento humano, ou com o toque de sinos imaginários. Eles
querem respostas inequívocas para os enigmas da história. A interminá­
vel discussão em tomo da escravatura como causa da Guerra Civil nor­
te-americana é um exemplo disso. Mesmo 110 anos depois, ainda não
temos certeza a respeito da causa primordial dessa guerra. Foi um confli­
to moral, como acreditavam John Brown e Harriet Beecher Stowe? Uma
disputa política em tomo dos direitos dos estados e do federalismo, de
acordo com a orientação indicada por John Caldwell Calhoun? O resul­
tado de uma divisão geográfico-cultural? Uma guerra econômica basea­
da, numa interpretação, na ascensão do industrialismo no norte e sua
incompatibihdade com um decünante e custoso sistema escravocrata no
sul, ou, numa outra interpretação, na injusta vantagem econômica a)nfc-
rida ao sul pela escravatura? Ou seria uma mistura de todas essas razões,
ou nenhuma delas? Não podemos estar certos. No passado, os historia­
dores aceitaram a incerteza como um fato. Para alguns, esse era o preço
a pagar pela natureza humana, subjetiva, da história, c isso, por sua vez,
leva à busca de algo menos subjetivo do que o julgamento dos historia-
di)rcs. N o entanto, ve jo isso d e maneira diferente. Para m im , e sse é o m o ­
d esto preço que pagam os por form ular e p ossu ir a capacidade para c o m ­
preender q u estõ es tão incrivelm en te su tis acerca do n o sso passado. N a
m edida em qu e a história cien tífica, cliom étrica, tiver êxito, tam bém terá
sid o bem -su ced id a na form ulação apenas d os tip os d e qu estões lim itad os
e freqüentem ente triviais que um a equação p od e resolver. O resto é arro­
gância e presunção, sen d o p ou co provável que o s verdadeiros h istoriad o­
res sejam ludibriados por m uito tem po.
Time on the Cross, de F o g e l e E ngerm an, p od e ser um ex e m p lo
ruim d essa tese, porque a cliom etria n ele apresentada parece ser c o n sid e ­
rada d e m od o d esfa v o rá v el por outros cliom etristas. M as é o e x e m p lo
m ais céleb re d o seu gên ero, daí a m inha in clu são d e le c o m o ex em p lo .
'Iliom as H ask ell m ostrou num artigo do The N e w York R eview o f Books
que as estatísticas e o s m étod os usad os em Time on the C ross eram v er­
dadeiram ente terríveis, e d ev em o s entender is s o antes de prosseguir com
a argum entação principal. A s principais c o n c lu sõ e s de F o g e l e E nger­
man sã o derivadas de uma espantosa m ixórdia d e dados cen sitários ruins
e m al interpretados, an alogias descuidadas, a p lica çõ es inadequadas de
eq u ações e, por toda a parte, uma enxurrada d e p ressupostos in ju stifica­
dos. HaskeU dá m uitos ex em p lo s, d os quais citarei um:

Consideremos primeiro a descoberta de Fogel e Engerman de que “as


casas dos escravos eram perfeitamente comparáveis às habitações de
trabalhadores livres na era antebellum”. [...] Após tentar reproduzir essa
descoberta, Sutch concluiu que ela estava baseada numa comparação de
casebres inteiros dos escravos com os quartos de dormir das habitações de
trabalhadores.... também [...] o espaço ocupado por um trabalhador livre
para sua residência foi medido em 1893, não apenas um ano randômico,
mas no ponto mais baixo de uma das piores depressões do país antes da
década de 1930.
Muito pior, os autores exageraram as dimensões da choupana comum
de um escravo, de acordo com as suas próprias fontes, em cerca de 50%.
Também subestimaram o tamanho da habitação (quarto de dormir) do
trabalhador comum apresentando números extraídos de um estudo que se
propôs expressamente investigar os bairros mais miseráveis de toda a
cidade de Nova York.

M uitos outros ex em p lo s, igualm ente perturbadores, sã o forn ecid os


|)t)r 1la sk e ll. M as ta lv ez nenhum d e le s seja apropriado — su p o n h a -se
i|u e o s dados e p rocedim entos tenham sid o aprim orados d e acordo com
as c rítica s q u e foram ap resentadas? O s d o is v o lu m e s d e Time on the
( 'ross não poderiam ser convertidos num bom livro? N e sse ponto surge
um padrão que é uma das formas mais comuns de racionalização ,1o nos­
so tempo. Sempre que uma determinada amostra de cientismo rcvcla-se
ridícula, ela reverte ao status de “projeto piloto”e é usada a>mo justificíi-
ção para a próxima invenção absurda desse tipo. As idéias inexcqüívcis
nunca são descartadas, apenas revestidas com uma nova indumentária, à
semelhança do Imperador numa nova roupa imaginára de muitas a>rcs.
A razão pela qual a ICF edição de Time on the Cross não era me­
lhor do que a primeira nada tem a ver com a qualidade potencial de suas
estatísticas, mas com a idéia de que podemos, de algum modo, acumular
números bastantes que nos habilitem a reconstruir a verdade histórica.
Que números escolhemos entre os milhões de números que nunca foram
registrados ou que foram irrecuperavelmente perdidos? De uma infinida­
de de possíveis questões, quais são aquelas que perguntamos aos nossos
números, e como sabemos que as nossas manipulações numéricas real­
mente formulam as questões para as quais estamos tentando obter res­
postas? Como podemos saber se as formas de nossas equações estão
automaticamente predispondo e limitando a gama de possíveis soluções?
E como saber se atribuímos o peso e a construção apropriados aos nossos
resultados numéricos finais? No último caso, o mais incrível e significa­
tivo dos exemplos de HaskeU diz respeito ao que Fogel e Engerman su­
gerem ser uma baixa probabilidade de um escravo ser vendido: 1,92%
num determinado ano. Esse número baixo é passível de uma outra inter­
pretação matemática, igualmente correta. Significa que o escravo co­
mum tinha uma probabilidade de 50% de ser vendido pelo menos uma
vez numa vida de 35 anos, e uma probabilidade muito maior de ser sepa­
rado por venda de uma esposa ou marido, de um filho ou dos pais duran­
te esse mesmo período de vida. Um único número pode ter muitos
significados.
Em outras palavras, a resposta a todas as questões acima é que ain­
da usamos os nossos critérios mais esclarecidos para avaliar os resulta­
dos. Mas isso é o que os cliometristas estiveram procurando evitar, como
se os números pudessem, de algum modo, com a adequada manipulação,
gerar suas próprias conclusões inevitáveis e inequívocas. Formular jul­
gamentos é também o que os bons historiadores vêm fazendo o tempo
todo, sem o acompanhamento da cortina de fumaça de uma análise
“científica”.
Em última instância, é a análise de produto final que nos permi­
tirá julgar a cliometria. Dado como fonte um material representativo,
o leitor pode facilmente realizar a análise. Consideremos os dois tre­
chos que se seguem, ambos avaliações históricas de pobreza regional.
() primeiro, do volume I de Time on the Cross, é sobre o Sul dos Esta­
dos Unidos em 1860. O segundo foi extraído de uma história mais
convencional, The King’s Peace, de C.V. Wedgwood; descreve par­
tes da Escócia em 1637.

O Quadro 4 [...] mostra que a vantagem do Norte sobre o Sul era


inteiramente devida à renda extraordinariamente elevada do Nordeste. A
renda per capita nos estados centrais do Norte era não só 50% inferior à
do Nordeste, como era também 14% inferior à renda per capita do sul.[...]
Longe de ser uma região acossada pela pobreza, o Sul era muito rico
pelos padrões da era antebellum. Se tratarmos o Norte e o Sul como nações
separadas e as classificarmos entre os países do mundo, o Sul ocuparia o
lugar da quarta nação mais rica do mundo em 1 8 6 0 .0 sul era mais rico do
que a França, a Alemanha, a Dinamarca, mais rico do que qualquer dos
países da Europa, exceto a Inglaterra (ver Quadro 5). A apresentação da
renda per capita sulista em dólares de 1860 em vez de em dólares de 1973
tende a encobrir a extensão das realizações econômicas sulistas. O Sul era
não só rico pelos padrões antebellum mas também por padrões relativa­
mente recentes. Com efeito, um país tão avançado como a Itália só atingiu
o nível sul ista de renda per capita às vésperas da Segunda Guerra Mundial.

À pobreza de Cumberland, que chocou viajantes meridionais, igualava-


se a pobreza que os viajantes ingleses encontravam quando cruzavam a
fronteira. Até na casa de um fidalgo, mantas de toucinho defumado
pendiam dos caibros do telhado na fumaça do salão e a senhora do lugar
nem sempre usava meias. A s mulheres dos casebres de um só quarto,
telhados de colmo e chão de barro usavam as saias acima dos joelhos, mas
seus pés e tornozelos eram limpos porque elas faziam suas lavagens de
roupa batendo-a com os pés, em vez de usarem as mãos.
Q melhor da Escócia não estava na Fronteira. Em Lothian, gado bovino
e ovino no pasto, e extensas faixas de semeadura de aveia e cevada,
cercavam Edimburgo com um ar de modesta prosperidade. A capital
granítica da Escócia, encravada entre rocha e lago, com seus prédios altos
e intimidativos coroados pela graciosa torre de lanternim de St. Giles, não
se assemelhava a nenhuma outra cidade nas ilhas. Não era, por quaisquer
padrões não-escoceses, uma cidade rica; os ventos que assobiavam através
de suas ruas estreitas e íngremes fustigavam as mulheres que compravam
e vendiam no mercado, envoltas em grossas mantas de tecido axadrezado
— o pano com que, como observou com esnobismo um viajante inglês,
seus compatriotas forravam as selas dos cavalos.

1lá ;i Igum a dúvida sobre qual desses breves relatos é boa história, ou sobre
t|ual fornece a análise mais útil, confiável e notável da pobreza e riqueza
reais de uma região?
Não mais de uma em dez mil pessoas terá ouvido alguma vt / a pa­
lavra “cHometria”, mas quase todas as famílias nos Estados Unidos e na
Grã-Bretanha contêm pelo menos um membro que foi submetido a algu­
ma forma de teste psicológico, em geral na escola. Cresceu uma indús­
tria para dar apoio a essa administração de testes, c os moinhos da
educação giram rapidamente a fim de produzir um número suficiente de
jovens psicólogos que mantenham o negócio em pleno funcionamento.
A finalidade de todos esses testes é dupla: detectar “incapacidades”
numa fase inicial, quando podem ser “tratadas”, e garantir que as crian­
ças não avancem no sistema educacional num ritmo mais rápido ou mais
lento do que o justificado pelos escores de seus testes.
A parte mais perniciosa dessa maléfica charada é o processo de
triagem para a identificação de incapacidades. Isso foi detalhadamente
exposto por Peter Schräg e Diane Divoky no livro The M yth o fth e Hype-
ractive Child. A enumeração que ambas fazem da extraordinária confu­
são de sinais e sintom as que se inform ava estarem presentes nas
condições não-existentes conhecidas como disfunção cerebral mínima e
síndrome de hiperatividade vale a pena ser lida. Quanto à DCM, tudo o
que for imaginável parece estar incluído; hipercinesia e hipocinesia,
sono muito leve e sono muito profundo, comportamento que é excepcio­
nalmente sensível a outros e comportamento anti-social, progresso redu­
zido em algumas áreas mas substancial em outras. E, é claro, a lista
abrange todos os traços de caráter que possam ter incomodado qualquer
administrador escolar. É tudo muito divertido se o leitor e seus filhos não
estiverem envolvidos nisso — o tipo de autoparódia inconsciente que só
poderia ser produzida por uma atividade tão carente de humor como é a
maior parte da psicologia moderna.
A razão para inventar todas essas incapacidades, para estreitar tan­
to o caminho aceito da normahdade, não é difícil de descobrir. Diante da
tarefa de “educar” os filhos de uma sociedade incompreensível e em pro­
cesso de desintegração, as pessoas responsáveis pela educação decidi­
ram ocupar-se unicamente dos fragmentos que estão explodindo em
certa direção, à certa velocidade. Como afirmam Schräg e Divoky, “A
função primordial de todos os métodos de triagem é a mistificação, uma
atribuição ritual de legitimidade às decisões institucionais”.
Uma vez diagnosticado certo “estado”, os especialistas podem ini­
ciar o laborioso e dispendioso processo de encaminhar a “vítima” de vol­
ta ao e s tre ito cam inho do co m portam ento norm al. O In stitu to
Sul-oriental de Bio-realimentação de Knoxville, Tennessee, é um dos lu­
gares onde se realiza esse tipo de trabalho. Mediante o uso de aimputa-
dores para transformar ondas cerebrais em sons audíveis ou sinais lumi­
nosos, uma criança pode ser ensinada a suprimir padrões de pensamento
que produzem ondas cerebrais indesejáveis e um comportamento indese­
jável (por exemplo, hiperativo). Se as reportagens jornalísticas sobre
esse trabalho são corretas, as crianças são devolvidas à escola sem seus
problemas de comportamento e suas notas logo melhoram. Acredito que
isso acontece, de fato, conforme foi descrito. Para o psicólogo, esse é o
fim da história.
Mas o psicólogo é um sujeito fácil de contentar. Vive inteiramente
no presente, extrapolando para o passado o futuro por meio de pressu­
postos circulares que servem a seus próprios objetivos sem proveito para
mais ninguém. No passado, temos o dano cerebral “mínimo” no nasci­
mento, ou as taxas hgeiramente anômalas de amadurecimento neuroló­
gico, ou as pequenas irregularidades bioquímicas que supostamente
foram resposáveis pelo “estado”. Com uma certa ressonância científica
e, no entanto, totalmente desprovidas de qualquer valor científico, por­
que a base da ciência é a prova e, na grande maioria dos casos, não existe
aqui prova nenhuma — apenas conjeturas, analogias e suposições. De
fato, como esses “estados” não existem como entidades reais, não podem
ter etiologias simples; há tantas etiologias de “hiperatividade” e de
“DCM” quanto as crianças que foram estigmatizadas.
Essa intervenção do passado cumpre uma importante função na
psicologia. Se os comportamentos tratados são vistos como o resultado
de uma doença, não se sente remorso por alterá-lo. A mesma interpreta­
ção de comportamento atípico faz parte dos testes de personalidade que
descrevi no capítulo anterior. Até “simples” testes de colocação foram
combinados por essa atitude — por exemplo, quando se decide que
crianças lentas devem ser atrasadas na escola e as rápidas adiantadas
com base num teste. Em todos esses casos, as medidas corretivas ba­
seiam-se na suposição de que conhecemos o problema — ou de que exis­
te um problema. Tal suposição é freqüentemente falsa, e pede uma outra
suposição muito perigosa sobre o futuro, qual seja, que a correção do es­
tado é boa para a criança e boa para a sociedade.
É aqui que uma análise de produto final é absolutamente essencial,
mas não pode ser realizada porque suas perguntas estão além da nossa
capacidade para responder. Mas podemos, pelo menos, formular as
iiueslões, as quais são reveladoras por si mesmas. Para um teste de roti­
na, a questão mais simples é: qual é o efeito a longo prazo sobre as crian­
ças e sobre a sociedade de ter classes cujos membros obtêm, todos, os
mesmos esa>res numa dada série de testes? Em tal análise, também ía-
mos querer saber: como são as crianças “hiperativas” c portadoras de
“dano cerebral mínimo”, quando lhes permitem crescer sem qualquer es-
tigmatização ou tratamento específico — não apenas até atingirem vinte
anos de idade mas até morrer? Possuem quaisquer traços distintivos de
personalidade em comum, conhecem os mesmos tipos de fracasso e de
realização, são diferentes das outras pessoas? Qual é o seu efeito líquido,
como adultos, sobre a sociedade em que vivem? Por exemplo, promo­
vem guerra ou paz? O que é que o tratamento faz a essas crianças além
de melhorar as notas delas imediatamente após o tratamento? Sua criati­
vidade é afetada de algum modo? Suas ambições? Sua capacidade de
amar? Sua autoconfiança? Sua felicidade? Sua competência para resistir
à tirania? Qual é o seu impacto ulterior sobre a sociedade? E, se não po­
demos responder a essas indagações — como, de fato, não podemos — ,
que arrogância, combinada com que cegueira, nos leva a infligir esse
edifício swiftiano de testes às nossas próprias crianças? Se a análise de
produto fínal não dá respostas, ela nos leva, pelo menos, suficientemente
longe para ver como os psicólogos andam na pegada uns dos outros num cír­
culo perpétuo, de modo que nenhum deles pode dizer para onde estão indo.
É possível que nesse caso a análise de produto final nos proporcio­
ne, afinal de contas, algumas respostas. Com toda essa paixão por testes,
triagens, colocações e correções, por que é que a realização escolar e in­
telectual não é melhor do que atualmente a conhecemos? Por que é que
os resultados da educação moderna são de uma tão monumental triviali­
dade e mediocridade, tão inadequados e tão melancólicos? Seria um erro
culpar os testes por tudo isso, mas não se pode deixar de ser ctíüco quan­
do a nossa arrogância é tão pouco justificada por nossas realizações.
A aplicação da teoria da catástrofe à previsão do comportamento é, se
possível, ainda mais swiftiana do que os testes psicológicos. Nas Viagens de
Gulliver, eis como conhecemos a excelsa Academia de Lagado:

O primeiro homem que encontrei era magro, tinha o rosto e as mãos


fuligionosas, barba e cabelos compridos, e andava roto e chamuscado em
várias partes. As roupas, a camisa e a pele eram todas da mesma cor. Havia
oito anos que estudava um projeto para extrair raios de sol dos pepinos,
metidos em vidros hermeticamente fechados, colocados do lado de fora
para aquecer o ar nos verões úmidos e inclementes. Disse-me não ter
dúvidas de que, no prazo de mais oito anos, lhe seria possível fornecer luz
solar aos jardins do governador por um preço razoável; mas queixou-se da
escassez de suas provisões e implorou-me que Ihe desse alguma coi sa atm o
incentivo à engenhosidade, sobretudo por ter sido esse ano muito ruim para
os pepinos, que subiram muito de preço.
As tentativas para desenvolver uma técnica matemática a fim de prever
comportamentos de grupo complexos como os motins são como o plano
para extrair raios de sol de pepinos, embora a comparação pudesse ser
feita para melhorar o efeito, se as aplicações atuais da teoria da catástrofe
fossem menos perversas em seu propósito.
Sabemos desde a primeira frase do artigo sobre a previsão de
motins em prisões que o que estamos prestes a encontrar é um verniz
de matemática extraordinariamente complicada aplicada sobre a base
por demais comum de ignorância e desdém pelo infortúnio de outros
seres humanos. “Os fatores subjacentes aos motins numa instituição
podem ser agrupados mais ou menos sob dois títulos: (1) tensão (frus­
tração, angústia) e (2) alienação (divisão, falta de comunicação, pola­
rização).” Nessa frase, Zeeman e seus co-autores dizem ao leitor o
que vão tentar fazer; medirão a “tensão”e a “alienação”, e usarão os
escores para prever a probabilidade de uma mudança catastrófica. Só
se pode supor que os autores acharam ser tão óbvia a falha nessa abor­
dagem analítica que não seria notada por ninguém. O que é que há de
tão especial a respeito de tensão e alienação? Vagamente definidas,
para começar, elas não são sequer variáveis independentes. Por que é
que os catastrofistas não escolheram ira e nervosismo, ou desesperan­
ça e irracionalidade? Existem medidas para todas essas coisas, sem
reservas. E por que, num sistema tão complexo, levaram em conta
apenas duas variáveis? Jonathan Rosenhead, escrevendo em The New
Scientist, fornece a resposta: “... uma elementar teoria da catástrofe
só pode usar duas variáveis de controle e uma variável de comporta­
mento. Portanto, um sistema social de extraordinária complexidade
tem que ser simplificado de tal forma que quase deixe de existir.” Isso
lembra a advertência de Kraus a respeito de sistemas de modelo sim­
plificado e do tríplice absurdo das previsões a longo prazo: não pode­
mos conhecer e coletar de antemão todas as informações que serão
im portantes, não podemos saber que perguntas formular e, mesmo
que soubéssemos, não poderíamos fazer deduções isentas de erros, a
partir do que sabemos.
Mas isso não impede os psicólogos catastrofistas de tentar. Empi­
lhando fatos inadequados sobre pressupostos injustificados, eles acumu­
lam os números para ahmentar o computador. Depois, parafraseando
Rosenhead, a ironia final desse notável processo é que a data precisa da
caláslrofe prevista, o motim na prisão, não é revelada de uma maneira
definitiva pela matemática, mas apenas depois de um exercício altamen-
Ic especulativo e subjetivo de conjeturas gráficas.
Mesmo que pudesse funcionar, o que não é o caso, qual o pro­
pósito desse “ m odelo”? Será tão difícil dizer quando as condições
numa prisão são suficientemente ruins para justificar um motim? E,
sabendo disso, não será mais importante mudar as condições existen­
tes do que desperdiçar recursos escassos tentando descobrir o m o­
mento exato em que o motim ocorrerá? Que notável espécie a nossa
— toda essa ridícula pantomima matemático-psicológica, paga pelos
contribuintes britânicos, para dizer a um diretor de prisão presumivel­
mente insensato que os seus detentos estão loucos de frustração. Uma
análise de produto final pode colocar isso em perspectiva. Diz ela,
nesse caso, que não queremos realmente saber com o que é que os
presos estão incomodados (não há lugar no modelo para essa infor­
mação), mas apenas quanto tempo transcorrerá antes que eles voltem
a ficar calmos. E se, depois que os presos são libertados, uma vez
cumpridas suas sentenças, a sociedade paga caro por sua implacável
estupidez. Bem, isso não é problema do diretor da prisão, nem dos
psicólogos. Parece que a nossa arrogância é duplamente tola: não só
tentamos fazer o impossível, mas os nossos motivos para tal tentativa
absurda são, com freqüência, ignóbeis.
Até aqui, os temas que se apresentaram nesta seção sobre o contro­
le da mente e do comportamento podem ser resumidos numa única pala­
vra: arrogância. As pretenções de prever o imprevisível e de conhecer o
incognoscível, a fé absoluta em procedimentos cujos resultados finais
nunca podem ser compreendidos — essas coisas aparecem repetidamen­
te. Estamos lidando com o mesmo fenômeno em testes psicológicos, em
cliometria e nas aplicações psicossociais da teoria da catástrofe. De onde
provém essa arrogância? Por que é tão generalizada e tão imperiosa? Por
que essa insistência num controle e onisciência que tão manifestamente
nunca teremos? Só posso pensar nisso como a persistência maciça na
vida adulta do estado mental conhecido como “pensamento mágico”. A
CTença na magia está principalmente, mas não exclusivamente, associada
à infância, e muitos dos princípios básicos da engenharia comportamen-
tal, dos testes, da psico-história e de manifestações semelhantes lem-
bram-me as fantasias de poder mágico que vejo em meus próprios filhos
pequenos — só que congeladas e prolongadas além de toda a utilidade c
decência. Substituamos “ciência” ou “tecnologia” por “magia”, sempre
que aquelas palavras ocorrerem nas fantasias adultas, e estaremos muito
mais próximos da verdade.
Por exemplo, aprecie-se o seguinte excerto desse marco histórico
no pensamento mágico que é o Walden Two, de Skinner:
“Sr. Castle”, disse Frazier, com expressão muito séria, “permita-me que
lhe faça uma pergunta. Advirto-o de que será a pergunta mais terrível de
toda a sua vida; O que o senhor faria se se encontrasse de posse de uma
ciência real do comportamentol Suponha ter subitamente descoberto que
é possível controlar o comportamento dos homens a seu bel-prazer.[...]”
“Isso é uma suposição?”
“Aceite-a como tal, se assim preferir. Para mim é um fato.”

E um fato é, aparentemente, para o inventor e alter ego de Frazier, B.F.


Skinner, se os seus outros escritos constituírem uma indicação de seus
verdadeiros sentimentos. Noam Chomsky apresentou a mais incisiva das
críticas e essa “ciência real do comportamento”:

Não existe, porém, nenhuma ciência do comportamento que incorpore


propostas não-triviais, sustentadas empiricamente, aplicáveis aos proble­
mas humanos, ou que apoiem uma tecnologia comportamental. [...] Skin­
ner confunde ciência e terminologia. Parece acreditar que, se reformular
expressões “mentalísticas” corriqueiras usando uma terminologia extraída
do estudo laboratorial do comportamento, mas despojada de seu conteúdo
preciso, então terá conseguido realizar uma análise científica do compor­
tamento. Seria difícil conceber um fracasso mais impressionante em com­
preender até mesmo os rudimentos do pensamento científico. O público
pode muito bem ser enganado, em virtude do prestígio da ciência e da
tecnologia. [...] Espera-se em vão que os psicólogos esclareçam o grande
público sobre os limites reais do que é conhecido.

Ainda que o behaviorismo se tomasse mais “científico”, nada te­


ríamos para justificar a arrogante crença em nossa capacidade para con­
trolar o nosso próprio destino comportamental. Por mais insólito que isso
possa parecer, a resposta definitiva a Skinner chegou em 1961 na forma
de um breve e divertido artigo no American Psychologist, escrito por
dois skinnerianos, KeUer e Marian Breland. Intitulado “The Misbehavior
of Organisms” [O mau comportamento de organismos] (uma paródia à
principal obra do próprio Skinner, The Behavior o f Organisms [O com­
portamento de organismos]), o artigo descrevia os problemas com que os
Brelands se defrontaram quando usavam o condicionamento operante (o
método de Skinner de engenharia comportamental) a fim de treinar vá-
riíLS espécies de animais para uso em publicidade comercial na televisão.
A intenção deles era “ver se a ciência comportamental funcionaria para
além do laboratório, determinar se a psicologia animal se sustentaria por
si só arm o disciphna de engenharia”. Cóm efeito, tiveram considerável
Cxilo... alé certo ponto.
(K)
Trinta e oito espécies, totalizando mais de seis mil animais foram
condicionadas, e atrevemo-nos a enfrentar cobaias tão improváveis, tão
pouco promissoras, quanto renas, cacatuas, guaxinins, toninhas e baleias.
[...] Aventuramo-nos cada vez mais a abandonar a segurança da caixa de
Skinner. No entanto, nessa arrogante extrapolação, chocamo-nos com um
padrão constante de desconsoladores fracassos. Embora desconcertante-
mente freqüentes e aparentemente diversos, esses fracassos enquadravam-
se num padrão muito interessante. Todos eles representam colapsos do
comportamento operante condicionado.

Um exemplo desse colapso envolveu um guaxinim “condiciona­


do”. O animal fora treinado para depositar moedas num coffinho a fim
de obter uma recompensa em aümento. Presumivelmente, essa demons­
tração de parcimônia era para ser usada por uma caderneta de poupança
a fim de atrair novos clientes. As coisas correram bastante bem até as fa­
ses finais do treinamento.

O guaxinim estava agora, realmente, com problemas (e nós também). Não


só ele não queria soltar as moedas, como passava segundos, até minutos,
esfregando-as umas nas outras (do modo mais sovina que se queira
imaginar) e mergulhando-as no recipiente. Manteve essa conduta por tanto
tempo que a aplicação prática que tínhamos em mente [...] ficou simples­
mente inviável.

Os guaxinins, como muitas ptessoas sabem, estão habituados a esfregar e


lavar seu alimento antes de comê-lo. Num outro caso, os Brelands
treinaram frangos para jogar beisebol, puxando uma alça para voltear um
bastão que, por sua vez, acertaria numa bola de brinquedo. Se a bola
atingia a “back fence”, os frangos recebiam uma recompensa alimentar.
Eles conduziram-se bem até ser removida a gaiola de treinamento.

Os frangos que tinham sido bem condicionados nesse comportamento


ficavam terrivelmente excitados quando a bola era movimentada. Pulavam
no campo de jogo, perseguiam a bola por todo o campo, fizeram-na cai r da
mesa para o chão, onde continuaram perseguindo-a e empurrando-a com
bicadas em todas as direções. [...] Esse comportamento foi tão persistente
e tão destrui dor, apesar do fato de nunca ter sido reforçado, [gri fo me u |,
que não tivemos outro remédio senão voltar a instalar a gaiola.

Num terceiro caso, semelhante ao primeiro, pretendia-.se que um


porco depositasse grandes moedas de madeira num cofre de poupança.
Depois de ter feito isso quatro ou cinco vezes, o animal recebeu uma rc-
compensa cm alimento. Como nos outros casos, o comportamento foi
prontamente condicionado, mas depois deteriorou-se.

... Em vez de transportar o dólar e depositá-lo simples e destramente, ele


deixava-o cair rep>etidas vezes, dava-lhe trombadas, soltava-o de novo [...],
apanhava-o, jogava-o no ar [...] e assim por diante. [...] Esse comportamen­
to problemático manifestou-se repetidamente em sucessivos porcos.

Passado algum tempo, os porcos, que viviam à base de recompensas


ganhas, já não estavam recebendo alimentação suficiente. Os Brelands
atribuem esses fracassos a “um profundo malogro da teoria do condicio­
namento”. Na ponderada análise que fizeram do fracasso, eles rejeitam
três dos principais pressupostos da teoria do condicionamento e da
engenharia com portam ental. Esses pressupostos são que um animal pode
ser considerado tábula rasa antes de se iniciar o condicionamento; que
todas as espécies são essencialmente idênticas no que diz respeito ao
condicionamento; e que “todas as reações são igualmente condicionáveis
a todos os estímulos”.
Podemos encontrar esses pressupostos subentendidos em cada pá­
gina escrita por Skinner. Constituem uma negação de toda a realidade
biológica, uma negação do fato de que podem existir limitações ineren­
tes em organismos vivos que resistirão aos esforços mais “científicos”
(ou anti-científicos) dos seres humanos para confundi-las. Como tais, es­
ses pressupostos constituem o alicerce do pensamento mágico de Skin­
ner. (Também parecem ser parcialmente responsáveis pelo pensamento
mágico dos nossos serviços secretos, juntamente com muitos dos outros
erros examinados. Nada mais pode explicar a tentativa imbecil da CIA
para desenvolver técnicas de “lavagem cerebral” e de “controle mental”
usando drogas e métodos comportamentais.)
Para Skinner não existem estrelas fixas na constelação comportamen-
tal da humanidade — nenhuma evolução biológica, nenhum limite para as
manipulações mágicas da pseudo-ciência. Mesmo a competição, que convi­
ve amosco para o bem e para o mal desde antes do princípio, pode suposta-
mente desaparecer sob a varinha mágica do psicólogo. “Mas, quando
passamos a aplicar os métodos da ciência ao estudo especial do comporta­
mento humano, o espírito competitivo comete suicídio.” Temos aqui uma
arrogância tão enfatuada que eliminou os últimos elementos que a vincula­
vam, ainda que tenuemente, à realidade. Como poderemos possivelmente
cs|x,Tar que uma “engenharia comportamental” incapaz de fazer um porco
sollar uma mcxxla de madeira ou um frango abster-se de dar bicadas numa
bola, seja claramente capaz de suprimir o espírito competitivo de uma
humanidade intata sob todos os demais aspectos?
O próprio H.G. Wells, o arcediago dos pensadores mágicos, sus­
peitou que as limitações inevitavelmente embutidas pela evolução em
todas as coisas vivas não podem ser negadas. Em “A Ilha do dr. Mo­
reau ”, uma história de terror a respeito de um cientista-vivissecionista
que converte animais em seres semi-humanos por meios cirûrgiœ s,
Wells expressou seus temores sobre a eficácia essendal do nosso poder
científico. Depois que Moreau, o cientista, morreu, as criaturas por ele
criadas começaram a voltar a suas formas e comportamentos originais.

Seri a impossível detalhar cada fase da reversão desses monstros; descrever


como, dia após dia, a aparência humana os foi deixando; como abandona­
ram ataduras, envoltórios, finalmente, cada peça de vestuário; como o pêlo
começou a se espalhar pelos membros expostos; como suas testas definha­
ram e suas faces se projetaram; como a intimidade quase humana que me
permitira com alguns deles no primeiro mês de minha solidão se converteu
num horror para recordar. [...] E os reduzidos fragmentos de humanidade
ainda me assustavam ocasionalmente, um recrudescimento momentâneo
da fala, talvez, uma inesperada destreza dos pés dianteiros, uma deplorável
tentativa de caminhar ereto.

Por fim, o “pertinaz corpo animal” ressurge e a ilha é abandonada às suas


criações de pesadelo. Aqui, Wells temperou seu pensamento mágico com
intuições terríveis de sombria realidade. Mas esse tipo de realidade é
doloroso, e na maioria de suas obras Wells resolveu suas dúvidas e
sentimentos ambivalentes acerca do poder do homem optando por evitar
a dor. Mais de oitenta anos depois, temos os mesmos pensamentos
mágicos mas, talvez porque as nossas auto-sugestões sejam agora tão
cuidadosas, existe menos ambivalência e parecemos estar mais distantes
até do que Wells de uma compreensão das conseqüências dos nossos
sonhos e ações arrogantes.

Corpo
A arrogância que constitui uma parte tão importante da nossa ati­
tude em relação ao controle da mente e do comportamento manifesta-se
também, como vimos no capítulo precedente, nos pontos de vista que te­
mos a respeito do poder sobre os nossos corpos. Isso era de se esperar:
neste mundo físico, reducionista, mente e corpo já não parecem terrivel­
mente diferentes, sendo ambos feitos das mesmas espécies de substân-
cias químicas que reagem de acordo com as leis comuns da termodinâ­
mica. Portanto, separá-los é, em parte, um recurso descritivo, um modo
de organizar uma história complexa, talvez até uma concessão a um
modo ocidental tradicional de encararmos a nós próprios. Contudo, pode
muito bem ser que a antiga tradição possua certo valor: não considera­
mos, de fato, nossas mentes e nossos corpos com o mesmo espírito — há
um atributo diferente na arrogância; uma profunda insatisfação com os
nossos corpos, uma sensação de que teria sido melhor se o nosso contro­
le assumisse a forma de uma reestruturação e reposição de peças de um
mecanismo intrinsecamente defeituoso.
Podemos voltar a H.G. WeUs para examinar a estranha mistura de
N arrogância e insatisfação que é a nossa atitude em relação a nossos eus
físicos. Em nenhuma parte isso se mostra com mais clareza do que em O
alimento dos deuses. A esta altura, estamos começando a ficar famüiari-
zados com uma espécie de pensamento defeituoso que pode preparar,
mesmo na ficção científica, um alimento químico que tem a propriedade
de nos tornar maiores e melhores em todos os aspectos, sem efeitos cola­
terais. A arrogância humanística desse tipo de devaneio é hoje algo co­
mum, por certo mais do que no tempo de Wells. Não obstante, existe
algo de estranho na história.
Wells, sem dúvida, com toda a sua inteligência e perspicácia eco­
lógica, deve ter percebido o absurdo fundamental de O alimento dos deu­
ses. Quando tudo ficou proporcionalmente maior — cardos, formigas,
ratos e pessoas, tanto as plantas daninhas quanto as comestíveis — , en­
tão o que foi que mudou na equação, exceto um multiplicador? O que
Wells está dizendo é que a estátua de Davi, de Michelangelo, teria sido
duplamente boa se tivesse o dobro de seu tamanho.
Só um sentimento forte podia ter interferido de modo tão potente
no seu senso comum, e ele revela esse sentimento numa fala proferida
por um dos jovens gigantes.

“Essa gente [os seres humanos de tamanho comum] está certa. Quer dizer,
de acordo com seu discernimento. Estavam certos em matar tudo o que
crescesse mais do que a sua espécie. [...] Sabem [...] que não podemos ter
pigmeus e gigantes juntos num só mundo. [...] Eles prosseguiriam — sãos
e salvos para sempre, vivendo suas vidas pigméias, fazendo-se reciproca­
mente gentilezas e cmeldades pigméias; talvez até atingissem uma espécie
de milênio pigmeu, pusessem fim à guerra, acabassem com a superpopu­
lação, SC instalassem numa cidade mundial para praticar artes pigméias,
adorando-se mutuamente até que o mundo comece a arrefecer...”
Aqui temos uma notável aberração de perspectiva. No decorrer da maior
parte da história, as criaturas afetadas pelo Alimento são representadas
como gigantescas. Mas, no final, os habitantes de tamanho normal da
Terra são subitamente retratados como anões ou pigmeus. Ora, a perspec­
tiva não funciona desse modo, pois se a maioria inalterada tem que ser
considerada minúscula, então os comedores do Alimento já não podem
ser considerados gigantes. Estamos falando ou de gigantes ou de pigmeus
— não de uns e outros. O que isso significa, creio eu, é que Wells tinha
sentimentos conflitantes e igualmente intensos a respeito da humanidade.
Por um lado, considera-nos capazes de criar gigantes, de nos manipular
e manipular o que nos rodeia quase a bel-prazer. Por outro, está dominado
por uma consciência opressiva de nossas imperfeições. Estas são de todos
os tipos, inclusive terríveis imperfeições do espírito humano, mas Wells
prefere resumir e simbolizar todas elas numa imagem corporal, a repre­
sentação de todos nós como “pigmeus”. Os seres humanos e o resto da
criação viva são inadequados, está ele dizendo, e a nossa estatura e poder
reais são as melhores características para simbolizar essa inadequação. É
verdade que Wells abandonou essa metáfora em outras obras — a
mudança milagrosa que ocorre em seu romance Nos dias do cometa afeta
unicamente a qualidade do amor fraterno, por exemplo. No entanto,
escreveu a fala do pigmeu.
E que fala notável! Podemos ficar sabendo como acabar com a
guerra, diz ele; podemos aprender a controlar o tamanho da nossa popu­
lação; podemos até criar uma “cidade mundial” dedicada à prática das
artes. Mas, seja como for, desespera-se ele, continuaremos sendo pig­
meus! Isso é uma auto-imagem trágica, mas não incomum. E não é a úl­
tima contradição que encontraremos na arrogância do humanismo.
Os temas misturados e distorcidos de falta de auto-estima e de au­
toconfiança foram transportados para a ficção moderna. Certamente
ocorrem juntos na repelente saga do homem biônico na televisão. Esse
herói, meio carne, meio plástico frágil, tem uma perna, um braço e um
olho artificiais (mas não um cérebro artificial), com os quais realiza suas
proezas super-humanas. O detalhe interessante a respeito de seu papel é
ser ele tão terrivelmente inexpressivo e tão pouco espontâneo. Não creio
que isso possa ser atribuído a um mau desempenho do ator e talvez só em
parte a um roteiro medíocre; há um outro fator envolvido.
A verdade nua e crua é que os nossos dispositivos e sobressalentes
biônicos nunca podem igualar-se aos órgãos que pretendem substituir. A
evolução, ainda que seja perdulária e fortuita, teve três bilhões de anos
para harmonizar os organismos com seus meios ambientes. Isso não sig-
nifica que sejamos perfeitos como resultado. Significa, porém, que seria
muito difícil, na prática, realizar mudanças fundamentais em nossos cor­
pos que nos equipassem melhor para o que consideramos ser a vida de
um humano. O biólogo evolucionista Emst Mayr escreveu certa vez a
respeito do assunto de macromutações: “Dar a um tordo as asas de um
falcão não fará dele um melhor voador. Na verdade, tendo todo o equi­
pamento restante de um tordo, o mais provável é que ele dificilmente
fosse capaz sequer de voar.” A própria idéia de um ser humano biônico
paira entre o absurdo e o profano — igualmente ofensivo para as sensi­
bilidades científicas e rehgiosas. Como é pungente, pois, ler nos jornais
a respeito do grande número de crianças norte-americanas que estão pe­
dindo a seus pais licença para mandar amputar as pernas e substituí-las
por membros biônicos.
A reparação de órgãos doentes é um objetivo menos estrondoso e
muito mais modesto e legítimo do que a produção de super-homens arti­
ficiais; mas a força subjacente, o sonho de eliminar completamente a
morte e a doença, faz parte da mesma arrogância que leva muitos norte-
americanos a acreditar que o homem biônico não está muito longe da
realidade. Contudo, mesmo que as metas imediatas possam ser mais mo­
destas, as nossas realizações dificilmente chegarão algum dia a corres­
ponder às nossas expectativas ou mesmo às declarações feitas em artigos
na imprensa. A “bengala biônica a laser" é um bom exemplo: num artigo
publicado num jornal a respeito de um jovem cego que usa uma dessas
bengalas, sua mãe declarou que “ele ainda tem a bengala biônica e gosta
de usá-la, embora ela tenda a enguiçar com bastante freqüência. Quando
isso acontece, é feito um rápido conserto, enquanto o meu filho se vale
da bengala convencional”. Não só uma begala a laser é um patético
substituto para um olho humano mas também, o que não causa surpresa,
não está à altura de um cão-guia de carne e osso. Os cães-guias de cego,
embora mais caros de adquirir e treinar, não enguiçam regular e dispen­
diosamente, e duram cerca de dez anos. E, o que é mais importante, os
cães-guias têm pelo menos mais quatro sentidos em funcionamento;
também têm discernimento e afeição por seus donos.
Se o exemplo da bengala biônica parece injusto, por causa do está­
gio inicial de desenvolvimento da invenção, então o que dizer de substi­
tutos biônicos que existem há muito mais tempo? Nenhum, nem mesmo
artefatos com séculos de existência, como os óculos, faz mais do que res­
taurar a função normal, e a maioria ou não consegue fazer isso ou não
dura a vida inteira do usuário (a menos que essa vida seja interrompida
pela avaria). Não desejaríamos passar sem a maioria desses artefatos.
()()
mas é perigoso romantizá-los, pois isso nos faz um duplo desserviço;
exagera os nossos poderes de criação e controle, e contribui para a nossa
insatisfação irracional com os nossos corpos reais.
Há um outro problema com os dispositivos biônicos, um problema
que afeta muitas outras invenções. Ocorre sempre aquilo que os econo­
mistas denominariam trade-offs, isto é, a cessão de uma vantagem para
se obter outra considerada mais desejável. Tal permuta está sempre en­
volvida no uso desses dispositivos. O usuário de lentes de contato sente
com freqüência desconforto e irritação causados por elas, e há o constan­
te risco de infecção. Mas esse tipo de trade-off talvez não seja o mais sé­
rio de todos. Mais importante é a perda de independência, um fenômeno
sutil que pode até não ser reconhecido e levado em conta pelas pessoas
que o vivenciam. O homem com a bengala biônica trocou períodos de
dez anos de relativa independência com um cão-guia pelo envolvimento
com uma vasta rede técnica e comercial que produz e conserta o seu dis­
positivo biônico, e sobre a qual ele não tem controle. Se vive em Nova
York, o conserto de sua bengala avariada pode ser retardada em semanas
por uma greve na fábrica de componentes eletrônicos em San Diego.
Para uma assistência rápida, o usuário deve viver numa área que conte
com representantes autorizados do fabricante de bengala para prestação
dos serviços de assistência. E terá sempre que pagar os consertos.
Talvez nesse caso, e nos outros, os benefícios do artefato biônico
valham, por vezes, o seu preço. Isso é, porém, difícil de avahar, porque
a nossa sociedade nunca registra nem leva em conta o verdadeiro preço.
Isso é mais visível na situação hoje corrente, em que pessoas essencial­
mente mortas são mantidas num irremediável estado vegetativo por uma
complexa e custosa maquinaria e serviços técnicos. Um outro exemplo é
o dos novos métodos de diagnóstico (como a tomografia axial computa­
dorizada, um progresso em relação aos aparelhos convencionais de
raios X), os quais são tão excessivamente dispendiosos que o seu uso
para uma minúscula percentagem da população, muitas vezes para diag­
nosticar doenças incuráveis, faz recair um pesado ônus financeiro sobre
todos os contribuintes do país. A conclusão a que devemos inevitavel­
mente chegar é que os nossos arrogantes pressupostos a respeito do nos­
so controle presente e futuro sobre os nossos corpos impediram-nos de
avaliar a qualidade e as consequências totais desse controle — não reali­
zamos análises de produto final— e, assim, o cálculo do preço real nunca é
feito.
O quadro que começa a surgir não é, em absoluto, desmentido pe­
las nossas experiências com modernos tratamentos e medicamentos “mi-
lagrosos”. Devo dizer desde já que muitos desses medicamentos agem,
na maioria dos casos, do modo que se presume que devem agir. Os anti­
bióticos, em especial, eliminaram categorias inteiras de doenças e redu­
ziram-nas ao status de curiosidades médicas. É uma ingratidão perguntar
o preço — para avaliar o efeito total? Não penso assim.
Mesmo os antibióticos não são uma benção pura; o seu próprio
êxito tem causado novos problemas, aparentemente insolúveis. Pacien­
tes pedem-nos para usos inadequados (como o tratamento da maioria das
doenças viróticas) e, com excessiva freqüência, os médicos aquiescem.
Um resultado são desnecessárias reações anafiláticas e alergia; um outro
ainda pior é a proliferação por toda a parte de bactérias resistentes a an­
tibióticos. Sabemos hoje que essa resistência pode ser transferida de uma
bactéria para a seguinte, e isso pode até ocorrer entre seres humanos e
animais domésticos, os quais recebem rotineiramente doses de antibióti­
cos para promover o crescimento. Os hospitais, onde os antibióticos são
mais usados, têm estirpes tão virulentas de bactérias resistentes que o
pessoal de enfermagem dos berçários vê-se compelido a lavar os bebês
recém-nascidos com uma substância altamente tóxica, a fim de impedir
uma infecção cutânea. Quase todas as principais doenças bacterianas
possuem hoje variedades moderada ou altamente resistentes aos antibió­
ticos, e estamos agora inteiramente empenhados numa corrida desespe­
rada para in v en tar novos an tib ió tico s m ais depressa do que as
bactérias podem adquirir resistência. Além disso, o vazio ecológico
deixado pelo desaparecimento de bactérias sensíveis aos antibióticos
foi preenchido por todas as espécies de organismos previamente inó­
cuos. E. coli, a bactéria intestinal normal e geralmente benéfica, está
agora envolvida num número de infecções muito maior do que antes
da era dos antibióticos.
i Os tranqüilizantes também têm seus usos, especialmente no trata­
mento de doenças mentais graves. São amplamente usados, porém, para
ajudar as pessoas a escapar das tensões da vida moderna. Numa análise
de produto final, faríamos a pergunta: “É benéfico para o indivíduo e a
sociedade que existam drogas capazes de emudecer os sintomas gritan­
tes de tensão?” Acho que a resposta é não; isso é como usar tampões para
os ouvidos, a fim de não ser perturbado pelo ruído da campainha de alar­
me contra incêndios.tA própria tensão é um sintoma, e um sintoma útü,
uma indicação de que as condições ambientais devem ser mudadas, ou
de que o ambiente onde se vive deve ser trocado por outro. Como todas
as drogas, os tranqüilizantes também têm efeitos paradoxais, que são
( íH
bastante comuns. Em alguns casos, aumentam a ansiedade, cm outros a
agressividade e a hostilidade são o resultado.
Até o nome que atribuímos a esses compostos químicos — tran­
quilizante — é um sinal da nossa arrogância e uma prova de que essa ar­
rogância é injustificada. Conforme assinalou o biólogo celular Paul
Weiss, tendemos a inventar nomes para mascarar a nossa ignorância e,
procedendo assim, fingimos entender certos acontecimentos “isolados”,
que na verdade são parte de um sistema muitíssimo mais vasto que não
compreendemos. Em outras palavras, damos às nossas descobertas c in­
venções nomes que têm uma generalidade abrangente e transmitem uma
aura de poder, a fim de ocultar o que Weiss chama de “as amputações
que permitimos serem perpetradas na totalidade orgânica. [...] da nature­
za e do nosso pensamento sobre a natureza”. Weiss chama a esses nomes
“gnomos antropomórficos. [...] semideuses, como os da antiguidade, fa­
zendo as tarefas que não entendemos”. Weiss não estava se referindo à
palavra “tranqüilizante” mas o caso é, no entanto, o mesmo: os nossos
ouvidos humanísticos não gostam do som de palavras que subentendam
fraqueza, ignorância ou incerteza. Assim, as próprias palavras que esco­
lhemos para descrever as nossas descobertas e invenções constituem as
melhores indicações do grau em que nos iludimos a nós mesmos.
Talvez a auto-ilusão não seja em nenhum caso mais acentuada do
que na “guerra” contra o câncer. O câncer causa mais medo do que qual­
quer outra doença nos tempos atuais, e isso é quase certamente porque se
trata de uma negação de um dos nossos mecanismos inatos de controle:
o controle do crescimento. Além disso, estamos tão profundamente com­
prometidos com um mundo de nossa própria criação, um mundo que só
faz sentido se conservarmos uma fé incondicional nos pressupostos do
humanismo, que a própria idéia de câncer é um terror e uma ameaça.
Mas é muito mais do que a natureza fundamental da doença o que nos as­
susta: é, acima de tudo, a nossa extraordinária falta de êxito em enfrentá-
la. Após dezenas de anos de pesquisa e bilhões de dólares gastos, o que
se conseguiu? Se dermos ouvidos aos porta-vozes das instituições filan­
trópicas que ajudam a financiar a “guerra”, grandes progressos estão
sendo realizados. Não é verdade. Meia dúzia de cânceres de menor im­
portância podem atualmente ser detidos ou revertidos, e muito poua)s
inteiramente eliminados. Mas os próprios medicamentos antincoplásia)s
e a radiação que são empregados podem causar câncer após um intervalo
de anos, assim como a morte mais imediata por outras causas. Não se re­
gistraram avanços fundamentais — apenas uma infinidade de impasses.
As taxas de cura para a maioria dos cânceres de mama, pulmões e apare­
lho gastrintestinal são as mesmas ou piores do que eram há 25 anos, e a
incidência dessas doenças aumentou horrivelmente. (É significativo que
a reunião dos dados que provam esses fatos sombrios enfrentou grande
resistência — o que bastou para que o dr. Donald Gould intitulasse um
artigo sobre o assunto “Câncer: A conspiração do silêncio”.) Na realida­
de, estamos no escuro: como disse Sir Peter Medawar, nem sequer sabe­
mos se existe um elem ento psicossomático na “história natural do
câncer”. Pior do que a nossa ignorância são os desastres paradoxais, os
“duplos vínculos” que parecem ser típicos da longa luta contra essa
doença. Por exemplo, a mamografia foi anunciada como um novo e em­
polgante método para o diagnóstico precoce do câncer de mama; com-
provou-se depois que os raios X usados nesse processo podem causar
mais cânceres do que detectá-los. Quase parece existir uma espécie de
“princípio de incerte2a ” funcionando nesse caso, assim como em muitas
das situações ambientais que examinarei mais adiante. Em outras pala­
vras, os nossos próprios atos de diagnóstico e tratamento causam rever­
berações suficientes (perniciosas) dentro do sistema para que seja
contrariado o objetivo original desses atos.
Qual é a probabilidade de que a nossa ciência e tecnologia avan­
cem ao ponto de ser capazes de curar todas as formas mais graves de
câncer? Uma vez mais se afirma o princípio de incerteza, pois há boas
razões para crer que o estilo de vida que toma a pesquisa e a terapia po­
tencial do câncer remotamente possíveis é também o causador do câncer.
Foi estimado, em virtude das taxas de câncer rapidamente crescentes em
áreas urbanas e em certas áreas industriais, que 80% a 90% de todos os
cânceres são causados ambientalmente. Mesmo que essa estimativa seja
algo exagerada, o número continua sendo significativo, porque a mesma
espécie de expansão urbana, de crescimento industrial (sobretudo na in­
dústria química), e o vertiginoso ritmo de vida que estão associados ao
câncer também estão produzindo os esforços de pesquisa para combatê-
lo. A sociedade suficiente engenhosa para realizar sofisticadas pesquisas
sobre o câncer é a sociedade suficientemente engenhosa para inventar
coiscis tais como os substitutos do açúcar, os ingredientes para a roupa de
dormir das crianças, os corantes alimentares e os test kits para piscinas
que podem causá-lo.
Mas suponha-se que aceitamos a improvável suposição de que en-
a>ntraremos curas efetivas para as formas mais graves de câncer, curas
c|ue não causem elas próprias uma grave doença, tratamentos para o cân­
cer tlc mama que não mascuhnizem, tratamentos para o câncer de bexiga
c|uc não tornem o corpo propenso a infecções fatais, que não façam cair
o cabelo e produzam uma constante sensação de náusea. O qut ocorre­
ria então? Numa carta ao New York Times, Ira Glasser, diretora execu­
tiva da Liga de Liberdades Civis de Nova York, descreveu as condições
em Willowbrook, um hospital psiquiátrico, no início deste último quar­
tel do século XX:

A ação judicial contra Willowbrook foi movida originalmentc cm nome


de aproximadamente cinco mil crianças mentalmente retardadas que aí
estavam sendo armazenadas, como lixo num depósito, em condiçtócs
indescritíveis. Ninguém que tenha entrado em Willowbrook no início do
processo contra o hospital esquecerá jamais a cena ou o cheiro. A lista de
horrores é demasiado extensa para reproduzir aqui, mas abrangia uma
criança cujo corpo continha vermes sob a pele infeccionada e não cuidada.

Seguramente, Dickens não descreveu um lugar pior. Se é esse o modo


como a nossa sociedade progressista sabe tratar suas crianças deficientes,
o que se pode esperar que aconteça com as pessoas idosas, aquelas que
são tradicionalmente alijadas e desprezadas pelas vertiginosas sociedades
urbano-industriais? Elas constituem a imensa maioria das pessoas que
serão curadas de câncer e despachadas em bandos para apodrecer em
retiros nada diferentes de Willowbrook. Tendo destruído a família, a qual,
com todos os seus defeitos, tinha a capacidade de prezar e abrigar os
idosos, o culto humanfetico do progresso deUberadamente nos inunda de
idosos — pessoas que nunca poderão ser assistidas por instituições
inventadas. A ironia suprema do humanismo é ter produzido um mundo
tão perversamente desumano.
Dois episódios pessoais me ocorrem.
Certa vez, quando eu estava em casa durante as férias escolares,
meu pai, que era médico, levou-me com ele ao hospital onde tinha um
caso difícil numa das enfermarias. Era uma mulher idosa em profundo
coma diabético que não estava reagindo à insulina — uma paciente ter­
minal. Meu pai, entretanto, relutava em aceitar esse desfecho e, após ter-
lh e ad m in istrad o alguns m ilh ares de unidades de in su lin a que
constituíam todo o suprimento do hospital, a paciente teve um tranqüila
recuperação. Da vez seguinte que estive em casa, perguntei a meu pai so­
bre essa paciente. “Ela morreu alguns meses depois”, disse ele, “cm
casa. Você sabe, as pessoas da família dela ficaram muito zangadas co­
migo por ter-lhe salvo a vida — acho que não lhe estavam dando a insu­
lina. A velhota era um incômodo para eles.” É claro, familiares vêm
assassinando-se entre si desde muito antes da era do humanismo, mas
encontro um significado especial nesse episódio para o nosso próprio
tempo. Descobrimos muitas maneiras de prolongar a vida que, de outro
modo, teria sido abreviada. Mas os prazeres da vida em família e as idéias
de continuidade que outrora animavam a velhice desapareceram em sua
grande maioria. Mais uma vez, o princípio de incerteza: a sociedade que
descobre as formas de curar parecer incapaz de criar um ambiente onde as
curas possam ser desfrutadas. A nossa civilização acabou por igualar o valor
da vida à mera evitação da morte. Um objetivo impossível e vazio, uma bus­
ca idiota por nada, substituiu o prazer em viver que está latente em todos
nós. Quando a morte for novamente aceita como uma das muitas partes im­
portantes da vida, então a vida poderá recuperar sua antiga emoção e os es­
forços dos bons médicos não serão desperdiçados. Mas não vejo como isso
possa vir a acontecer num mundo humanístico.
Alguns anos depois, quando eu já estava na escola médica, tive a
sorte de fazer parte de um pequeno grupo de estudantes que se reuniu in­
formalmente com um excelente cardiologista, um homem na casa dos oi­
tenta anos que era uma figura célebre na medicina de Boston. Num dado
momento da conversa, um dos estudantes comentou com certa apreensão
que as doenças cardíacas eram a causa ntámero um de morte nos Estados
Unidos. O nosso professor pensou sobre isso por alguns instantes e de­
pois replicou: “O que é que você preferia ter como causa ntámero um de
morte?” Levei dez anos para compreender plenamente o significado des­
sa pergunta, se é que entendi.
Creio não ser necessária uma análise de produto final da moder­
na terapia médica — os meus leitores provavelmente já a fizeram por
conta própria.
Sobre a questão da clonagem, uma outra tentativa para escapar à
morte, também há pouca coisa que precise ser dita. A clonagem nos dará
um poder limitado, o poder de criar filhos idênticos aos pais, o poder de
reproduzir o que já existe. Se desenvolvermos essas tecnologia para se­
res humanos, duvido que venha a ser acessível a qualquer um, a não ser
os indivíduos mais ricos e mais influentes. E mesmo nesse caso, não pos­
so imaginar um uso generalizado. Que espécie de mulher vai querer car­
regar no ventre e dar à luz um filho que é fruto da contribuição exclusiva
do macho, exceto, em alguns casos, por dinheiro? (A idéia de bebês de
proveta criados em laboratório, sem necessidade do ventre da mãe, é
uma eventualidade por demais remota para nos interessar agora.) Imagi­
nando-se a espécie de cuidados matemos que provavelmente serão dis­
pensados a tais crianças, duvido que o Jorginho ou o Joãozinho venham
ii scr motivo de algum orgulho — uma nova espécie de ameaça, não pre­
vista por Ercud, é a coisa mais provável. Se as células de Einstein tives­
sem sido clonadas, teríamos, na medida em que a inteligência é herdada,
aumentado consideravelmente o já abundante estoque terrestre de de-
linqüentes morais muito inteligentes; essas contrafações de Einstein
que se tomassem físicos, poderiamos estar certos de que iriam descar­
regar sua raiva inventando m aiores e m elhores bombas e raios da
morte. Afinal de contas, não se pode dizer que o meio ambiente de­
sempenha um papel insignificante no desenvolvimento humano. Sc
pudéssemos ter dado a uma criança os genes de Einstein, mesmo as­
sim não poderiamos ter-lhe dado os pais de Einstein nem a Europa do
século XIX em que ele cresceu.
. Tampouco seria mais provável, no caso inverso de clonagem femi­
nina, que os homens permitissem o amplo desenvolvimento de uma tec­
nologia que ameaçasse torná-los supérfluos. Mas o absurdo final da
clonagem é de ordem biológica. O grande vigor das espécies que se en­
tregam à reprodução sexual é a recombinação genética resultante, a qua­
se infinita variedade da progênie produzida. A variedade é a melhor
maneira de uma espécie enfrentar um meio ambiente em constante mu­
dança. A renúncia a essa variedade pelo prazer egoísta de produzirmos
cópias genéticas de nós mesmos é um total absurdo, especialmente nos
anos situados além do futuro previsível.
A transferência de genes, a base de engenharia genética, é um risco
mais reaUsta e sério. Superficialmente, é uma idéia atraente — transferir
genes para fins específicos e desejáveis de um organismo para outro.
Mas, abaixo da superfície, existem perigos incalculáveis. Há o perigo de
usar como organismo recipiente as bactérias E. coli, que normalmente
habitam os nossos intestinos e são necessárias para uma boa saúde. Esses
organismos alterados poderíam escapar do laboratório e infestar toda a
humanidade. Há por conseguinte perigo de que a transferência de genes
de organismos experimentais foragidos ocorra espontaneamente, talvez
no intestino, e de que, portanto, os genes introduzidos fujam por comple­
to, ao nosso controle. E há o perigo provável de que esses genes, em seus
novos hospedeiros, tenham efeitos que não foram previstos ou se com­
portem de novas maneiras. Por exemplo, um experimento que foi sus­
penso após algum êxito inicial foi a introdução nos E. coli de genes para
produzir a enzima celulase. A celulase, ausente em seres humanos, é a
enzima que decompõe a celulose das fibras de plantas. Os experimentos
acabaram quando o cientista que os dirigia se apercebeu de que, além de
nos dotar de uma nova e digerível fonte alimentar, as fibras vegetais, a
digestão não-habitual Uberaría dióxido de carbono no intestino e podería
fazer-nos inchar como balões toda vez que ingeríssemos verduras, frutas
ou cereais. Suponhamos que ele não tivesse pensado nisso?
Em resposta ao protesto em relação aos experimentos de transfe­
rência de genes, os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos
surgeriram “Diretrizes” que recomendam os tipos de instalações e os
procedimentos para lidar com diferentes níveis de risco provável. Eis o
que o dr. Robert Sinsheimer, eminente biólogo molecular, disse a respei­
to dessas “Diretrizes”.

O homem gosta de pensar que é a exceção, que fizemos o nosso próprio


nicho ecológico. Em parte, isso é realmente verdade mas, em grande parte,
é uma presunção, pelo menos por enquanto. [...]
As Diretrizes refletem uma concepção da natureza como um domínio
estático e passivo, total mente submetido ao nosso controle. Consideram o
nosso nicho ecológico inteiramente seguro, profundamente isolado de
ataques potenciais, sem brechas nem segmentos desprotegidos do períme­
tro. Não consigo ser tão confiante. [...]
Existe, é claro, toda uma tendência humana para se preocupar com as
calamidades de amanhã, amanhã — uma freqüente mas nem sempre sábia
tendência baseada na observação de que muitas profecias calamitosas
numca se concretizaram. Eu diria que tal atitude (e já ouvi afirmarem isso)
menospreza a magnitude potencial dessa calamidade e, em especial, es­
quece o caráter singularmente irreversível desse empreendimento.

Philhp Siekevitz, um conhecido biólogo celular, também comen­


tou a respeito da transferência de genes e das “Diretrizes”. Suas pergun­
tas e respostas formam, em essência, uma análise de produto final:

O meu argumento científico pode ser enunciado no contexto de


algumas poucas interrogações. Sabemos realmente muito mais a res­
peito do mundo ao ponto de podermos afirmar de forma segura, ou
mesmo com razoável dúvida, para onde nos conduzirá a pesquisa
científica? Estamos realmente muito mais adiantados no caminho do
conhecimento esclarecido e abrangente, ao ponto de podermos esque­
cer o irresistível orgulho com que o dr. Frankenstein fez o seu monstro
e o Rabino de Praga seu golem? Acusarei aqueles que responderem
“Sim ” de alimentarem o pecado que os gregos sustentaram ser o maior
de todos, o de hubris, do orgulho, até da arrogância.

E um terceiro grande cientista, o dr. Erwin Chargaff, um dos pais


do ácido nucléico e da pesquisa genética, disse o seguinte a respeito do
me.smo assunto:
Se o dr. Frankenstein deve continuar produzindo seus pequenos nv^nstros
biológicos — e eu nego a urgência e até mesmo a atmpulsão — , por que
escolher o £ . coU como a matriz? [...] Quem sabe o que está sendo realmente
implantado no ADN dos plasmídeos que o bacilo continuará multiplicando até
o fim dos tempos? E que acabará finalmente penetrando nos seres humanos c
animais, apesar de todos os cuidados de contenção. [...]

O nosso tempo está amaldiçoado com a necessidade de homens fracos,


disfarçados de especialistas, tomarem decisões de enorme alcance. Haverá
algo de maior alcance do que a criação de novas formas de vida? [...]
Podemos parar de produzir a fissão do átomo podemos parar de visitar a
lua; podemos parar de usar aerossóis; podemos até decidir não matar
populações inteiras mediante o uso de algumas bombas. Mas não podemos
cancelar uma nova forma de vida. [...] A hibridização de Prometeu com
Heróstrato está fadada a produzir resultados maléficos. [...]

Este mundo foi-nos dado em regime de empréstimo. Chegamos e partimos;


e, depois de certo tempo, deixamos a terra, o ar e a água para outros que vêm
depois de nós. A minha geração ou, talvez, a que precedeu a minha, foi a
primeira a travar, sob a liderança das ciências exatas, uma guerra colonial
destrutiva contra a natureza. O futuro nos amaldiçoará por isso.

Talvez seja o momento de promulgar duas “leis” de minha pró­


pria invenção. Pobres leis, numa acepção científica, visto que não posso
prová-las. Mas acredito que sejam verdadeiras, porque sei estarem
apoiadas na experiência humana dos últimos séculos, especialmente do
século XX.
1. A maioria das descobetas científicas e invenções tecnológicas
pode ser desenvolvida de modo tal que sejam capazes de causar grandes
danos aos seres humanos, suas culturas e seus meios ambientes.
2. Se uma descoberta ou uma tecnologia pode ser usada para fins
maléficos, assim será usada.
Além dessas duas leis, às quais voltarei na minha análise da arro­
gância em relação ao meio ambiente, o assunto da transferência de genes
introduziu um outro tópico que reaparecerá: a irreversibilidade de algu­
mas de nossas ações, um tópico cuja gravidade nunca poderá ser exage­
rada, embora seja ignorada com excessiva freqüência.
Finalmente, cumpre ressaltar que todos os cientistas que expres.sa-
ram preocupação a respeito dos experimentos de transferência de genes
foram muito além de uma estreita preocupação com a saúde humana.
Sua maior apreensão é com a própria biosfera, o mundo vivo deste pla­
neta. Escreve Sinsheimer:
o conceito de risco dosado não faz muito sentido, se houver um único
indivíduo, como numa só biosfera, cuja morte seria, de fato, terminal. [...]
Essencialmente, toda a pesquisa do ADN recombinante, na verdade toda a
moderna pesquisa biológica nos Estados Unidos, foi e é patrocinada pelos
Institutos Nadonais de Sáude. Sou da opinião de que, embora a administração
dos Institutos Nacionais de Saúde tenha sido, de fato, sumamente esdaredda,
essa dependênda predominante de uma organização cuja missão suprema é a
saúde, desvirtuou a dência da biologia neste país. Ainda que, estou certo, o
tenha feito inadvertidamente, distorceu os nossos valores e limitou as nossas
perspectivas. E estamos agora começando a ver o custo.

Embora eu pudesse divergir de partes desses enunciado, o seu teor geral


é mais importante, pois nele começo a vislumbrar tênues indícios do
afrouxamento da hegemonia humanista sobre nossos corações e mentes.
Nessa seção encontramos idéias contemporâneas de conquista da
morte e idéias afins de aperfeiçoamento da vida. Com efeito, muito foi
aprendido pela humanidade desde os tempos do bispo Ussher. Isso não
pode ser negado. No entanto, esse novo conhecimento, o qual nos reve­
lou vastos horizontes para além dos horizontes de insuspeitada ignorân­
cia, pouco mais fez do que convencer-nos de nossa sagacidade.
Ironicamente, também nos deu um novo Diabo, para substituir o antigo,
que, pelo menos na cristandade, pudesse ser responsabilizado por nossas
imperfeições. Pois a nossa arrogância a respeito do que pensamos que
sabemos e do que pensamos que podemos fazer acabou por tomar im­
possível aceitarmos ou continuarmos lidando com o incognoscível e o
inexeqüível. Outrora, tinha-se como certo que não éramos oniscientes
nem onipotentes — as antigas religiões, quaisquer que fossem os seus
defeitos, ajudavam-nos a aceitar esse estado imperfeito como uma con­
dição própria da vida terrena. Os pressupostos humanistas impedem ago­
ra essa aceitação, pois seria uma negação da nossa onisciência e
onipotência. Mas os pressupostos são desafiados diariamente por uma
realidade contraditória; todos vivenciamos isso. Assim, o incognoscível
e 0 inexeqüível tornam-se o Demônio, algo em nosso íntimo que temos
de exteriorizar e uma poderosa fonte de angústia e terror.

Pessoas e Máquinas
Não muito antes de estas páginas serem escritas, um jornal norte-
americano estampou a seguinte manchete: “Computador para Ajudar a
Escolher Jurados.” Continuando a leitura, tomou-se óbvio que a man-
cluMe era demasiadamente sensacionalista: o computador estava apenas
sendo usado para uma seleção dos questionários apresentados a prová­
veis jurados, a fim de eliminar aqueles cujas respostas os desqualificas­
sem automaticamente para servir num determinado caso. Não obstante,
a manchete faz ressaltar um ponto importante: os seres humanos estão
atribuindo cada vez mais à proficiência de suas máquinas um valor supe­
rior ao de seus próprios talentos. Isso ficou mais evidenciado na seção
“Corpo”, em conseqüênda de uma profunda insatisfação com os nossos
eus físicos, mas é claro que, embora tenhamos maior consideração por
nossas aptidões mentais, existe um sentimento generalizado de que po­
tencialmente, quando não concretamente, os computadores são mais rá­
pidos, mais eficientes, mais objetivos e mais exatos do que nós na
execução de algumas mais importantes funções da mente.
Esse exagero dos atributos de máquinas à nossa própria custa não é
novidade; embora, como acontece tão freqüentemente com uma opinião co­
mum, tenha começado como sátira. O primeiro uso da palavra “robô” ocorre
em R.U.R., uma peça teatral escrita pelo autor tcheco Karel Capek, na se­
gunda década do século XX. Encontramos em R. U.R. o seguinte diálogo:

HELENA: E no entanto você continua fazendo Robôs! Por que é que não
estão nascendo mais crianças?

DR. GALL: Não sei.

HELENA: Ah, mas deve saber. Diga-me.

DR. GALL: Entenda, são tantos os Robôs que estão sendo fabricados que
as pessoas estão se tomando supérfluas; o homem é realmentc um sobre­
vivente. Mas deve deve começar a extinguir-se após uns reles trinta anos
de competição. Essa é a parte horrível da coisa. Você poderia quase pensar
que a natureza ficou ofendida com a fabricação dos Robôs.

É bem provável que Capek tivesse ficado horrorizado diante da simples


idéia de que as pessoas pudessem chegar algum dia a levar a sério esse
tipo de coisa. Tal como em seu livro ulterior, War with theNewts, a ficção
científica pretendia ser apenas um divertido e conveniente recurso para
expor as fraquezas da humanidade. Contudo, foi a ficção cicntífiai que
se apossou da imaginação popular; meio século depois, os “robôs” são
lembrados, ao passo que R.U.R. está quase esquecido.
Um outro aspecto do culto da máquina tem sido o esforço, que ain­
da prossegue, para retratar os seres humanos como semelhantes a máqui­
nas em suas melhores qualidades, e não o inverso. O grande historiador
desse esforço e de todo o nosso relacionamento com máquinas é Lewis
Mum ford, cujo livro The Pentagon o f Power (volume dois de The Myth
of the Machine) contém o seguinte trecho, no qual ele registra e comenta
uma descrição do homem atribuída a Buckminster FuUer:

O homem, observa Fuller, é “um bípede de base automaticamente


equilibrada, dotado de um mecanismo de conexão entre 28 pontos de
articulação, uma usina de redução eletroquímica, completa com as cargas
isoladas de extratos de energia especial em baterias de armazenagem, para
atuação subseqüente em milhares de bombas hidráulicas e pneumáticas,
com motores de conexão; cem quilômetros de vasos capilares, milhões de
sinais de advertência, sistemas de ferrovia e de transmissão; trituradoras e
guindastes [...] e um sistema telefônico universalmente distribuído que não
necessita de manutenção por setenta anos, se for bem administrado; o
conjunto, um mecanismo extraordinariamente complexo guiado com ex­
trema precisão a partir de uma torre de controle na qual estão localizados
visores telescópicos e microscópicos dotados de dispositivos automáticos
de registro e gravação, um espectroscópio, etc”.
Os paralelos de Fuller são claros; a matéria é superficialmente precisa,
se dermos o necessário desconto às quiméricas e pseudo-exatas estimativas
estatísticas. Somente uma coisa está faltando nessa detalhada lista de
abstrações mecânicas: um indício, ainda que leve, excetuando-se os seus
componentes físicos mensuráveis, do que seja a natureza do homem.

O estágio final na evolução do relacionamento humanístico pes­


soa-máquina poderia ser chamado “o estágio das desculpas”. A essa al­
tu ra, já ficou p erfeitam en te óbvio que as m áquinas, m esm o as
sofisticadas, são terrivelmente inadequadas para desempenhar muitas ta­
refas que os seres humanos costumavam executar muito bem, embora de
um modo diferente. Por isso foram encontradas desculpas para explicar
0 mau desempenho das máquinas-ídolos. A desculpa mais comum é o
“erro humano”; recorre-se com maior freqüência a ela, talvez, quando os
seres humanos participam de sistemas complexos que envolvem compu­
tadores. O seu objetivo é mostrar que as máquinas no sistema não são
fonte de problemas e limitações — apenas inocentes espectadoras e tes­
temunhas das imperfeições de seres humanos.
Como é possível a coexistência do culto da máquina e da fé huma­
nist ica cm nossa própria divindade? Se somos deuses, como afirmam os
mitos dc controle, e se criamos as máquinas, por que nos encontramos
1 ntao nessa posição de inferioridade em face de nossas próprias cria­
ções? fsso é algo mais do que o orgulho de um criador. Normalmente, os
inventores não são tão obsequiosos em relação às suas invenções.
n\
Acredito haver mais de uma explicação para esse paradoxo. Em
parte, resulta de uma extrapolação da nossa própria propaganda huma-
nística. Como podemos fazer máquinas que executam melhor do que nós
certas tarefas de caráter mecânico, os mais crédulos estão dispostos a
aceitar os pressupostos de poder e consideram ponto pacífico que somos
capazes de produzir máquinas que, se não são perfeitas, são melhores do
que nós em qualquer coisa que valha a pena ser feita. Daí a defesa am­
bígua do mau funcionamento de máquinas, que é agora parte dc nossas
vidas: por um lado, há as desculpas e suposições de erro humano; por ou­
tro, a campanha, examinada no próximo capítulo, para provar que qual­
quer coisa que uma máquina não possa fazer é supérflua, ineficiente, c
está além dos limites da realidade. Ajudar e instigar essa credulidade é,
provavelmente, um remanescente anseio humano pelo divino, uma ne­
cessidade de deuses que sejam exteriores a nós próprios. Não tenho
meios de provar isso, mas parece evidente se atentarmos para o compor­
tamento dos mais devotos mecanófilos.
O paradoxo do humanismo, a religião da humanidade, culminando
no culto da máquina, têm outra explicação, mais profunda. Devemos cul­
tuar a máquina se desejamos manter a ficção de que o mito do controle é
verdadeiro. Pois em todos nós existe a consciência oculta de que arro­
gância e bazófia são atitudes injustificadas; isso é continuamente confir­
mado pela experiência cotidiana. Os seres humanos não são deuses,
apesar da ocasional característica divina que aflora à superfície para nos
deixar atônitos por algum tempo. O testemunho de nossa tecnologia, por
si só, diz-nos isso. Contudo, a tecnologia é o nosso principal manancial
divino, o nosso caudal de milagres. Nenhuma religião pode sobreviver se
não afirmar seus próprios milagres, de modo que o nosso culto da máqui­
na tem um aspecto reconfortante — no meio do perigo, dizemos uns aos
outros que não há nada a temer.
Muitos humanistas confessos declaram ser fortemente antimáqui-
na e antitécnica. Não creio que se trate de pose. Tendo absorvido muitas
das mais excelsas qualidades do humanismo para suas próprias filoso­
fias, esses humanistas não conseguem enxergar o que o humanismo in
toto tem feito pelos outros. René Dubos é um exemplo: seus livros mag­
níficos e humanos são estragados por um constante e muito confuso es­
forço para distinguir entre “ciência”, que é pura, criativa e humanística,
e “tecnologia”, que é aviltada, destrutiva e maléfica. Na realidade, ambas
as tendências fluem do humanismo e são inseparáveis. Encontram-sc
freqüentemente combinadas na mesma pessoa: um dos meus prolessores
de química era célebre por ter ajudado a sintetizar uma droga cíipaz de
I T

salvar inúmeras vidas e por ter inventado um horrível e desumano tipo de


explosivo incendiário. A idéia de separar as consequências boas e más
do humanismo, com o resultado de que as últimas raramente são remeti­
das a suas origens, pode ter sido faciHtada pelo cristianismo, que nunca
se sentiu à vontade com a concepção judaica de que bem e mal são as
porções normais de humanidade e estão inextricavelmente misturadas
em todas as pessoas, embora não necessariamente na mesma proporção.
Em qualquer caso, a confusão, a ambivalência e a fragilidade dos huma­
nistas perspi.azes são compreensíveis e trágicas; eles não se apercebem
de que a fonte do imenso dano que tão claramente reconhecem é o dog­
ma central de sua própria filosofia.
Apesar da preponderância do culto da máquina, as máquinas não
são particularmente fáceis de idolatrar. Não existe moralidade, nem pro­
pósito final, nem mesmo caráter inerente em nossos mecanismos de con­
trole — eles podem, de maneira imprevisível, voltar-se contra qualquer
teleologia em cujo nome são invocados. Como um gato-de-mato que foi
transformado em animal de estimação, não são confiáveis. No hvro de
Jerzy Kosinski, Cockpit, o anti-herói, Tarden, movimenta-se como um
tubarão em águas profundas; os cardumes de humanidade abrem alas
para deixá-lo passar e fecham-nas depois que ele passou, desfalcados de
alguns de seus membros. Os seres humanos não o impressionam; ele é
uma máquina com regulagens aleatórias; com efeito, as suas primei­
ras vítimas foram escolhidas ao acaso pela lista telefônica. Aí está um
homem moderno no pior sentido, sim ultaneam ente desprovido de
amor e do conhecimento de sua própria fragilidade e ausência de ob­
jetivos. E a sua destruição final, por mais transitória e simbólica que
seja, vem previsivelmente pelas mão de uma máquina. Preso no inte­
rior de um elevador enguiçado e insuportavelmente quente, Tarden
descobre que não está equipado para enfrentar a vingança aleatória e
não-planejada da maquinaria.

O elevador persistiu em seu constante vaivém, indo até o último andar


para logo recomeçar sua viagem descendente. Usando a sola do meu sapato
como uma alavanca, tentei forçar a porta, mas esta permaneceu hermetica­
mente fechada. Procurei então abrir o painel de instrumentos com um
canivete, mas a lâmina era delgada demais e quebrou-se pela base. Em
.seguida, usei o gume de um prendedor metálico de notas mas tudo o que
atn.segui foi entortar o prendedor. Os dispositivos protetores que sempre
trago comigo podiam defender-me contra passageiros hostis, mas eram
iniciramcntc inúteis num elevador vazio.

MO
Hm seguida, ele imagina que foi deliberadamente imobilizado por
seus inimigos, que usaram o elevador como armadilha, mas não é esse o
caso. Atordoado, sentindo náuseas, Tarden começa finalmcnte a dar-se
conta da natureza absolutamente impessoal da máquina.

Embora eu sempre tivesse pensado em mim como alguém que se move


horizontalmente através do espaço, invadindo as esferas de outras pes.soas,
a minha vida sempre foi disposta verticalmente; os meus apartamentos
sempre foram a meia altura, pelo menos, de edifícios muito altos, o que
tomava os elevadores absolutamente essenciais. Ora, um desses mecanis­
mos necessários convertera-se de siábito numa cela sem janelas. A s forças
que o impulsionavam para cima e para baixo pareciam ser tão arbitrárias e
autônomas quanto as que fazem girar a Terra em seu eixo...

Mais tarde, depois de ser libertado, Traden descobriu que um letreiro de


“Parado para conserto” tinha sido roubado por molecagem.
Quem roubou o letreiro de “Parado para conserto” da civilização
moderna? E será provável que encerremos o nosso longo período de cul­
to do elevador apenas com um breve e desconfortável passeio para cima
e para baixo, e nada pior do que isso? Nestes últimos dias, estive lendo
vários artigos em louvor da bomba de nêutrons. Essa bomba é desejável,
dizem os seus defensores, porque só destrói pessoas e deixa intatos seus
edifícios, máquinas e dinheiro. Com esse sombrio e horrendo presságio,
o humanismo descreveu um círculo completo, e a humanidade está ex­
posta a uma punição que faz a ira de um Deus justiceiro parecer bem-
vinda em comparação.

Meio Ambiente
Os mais espetaculares fracassos do controle humano e negações de
onisciência humana manifestaram-se em nosso relacionamento com
muitos meios ambientes humanos. Em nenhum caso importante fomos
capazes de demonstrar um modo amplo e bem-sucedido de administra­
ção do nosso mundo, nem o compreendemos suficientemente bem para
sermos capazes de administrá-lo em teoria. Só nos poucos casos em que
sistemas pequenos e remotos puderam, com efeito, ser tratados como se
estivessem isolados, a administração e o controle funcionaram; mas não
se pode dirigir um mundo inteiro desse modo.
Sempre me assombra a confiança com que nos dispomos a mudar
coisas que estão além do nosso controle. O tratamento “protetor” dos vi­
trais da catedral de Chartres, descrito no capítulo anterior, é um exemplo
[x;qucno e invulgarmente simples disso. A dificuldade, como ocorre com
IreqüÊncia, não fora prevista. Foi descoberta primeiro por membros da
Associação para a Defesa dos Vitrais Franceses, um grupo constituído
por numerosos artistas, e descrita num artigo de Pierre Schneider publi­
cado no New York Times:

Os olhos treinados de artistas foram os primeiros a observar a mudança:


a luz que caía dos três vitrais restaurados tornara-se tão uniforme e insípida
quanto a distribuída por um vidro pintado comum...
Segundo o dr. Paul Acloque, que fez parte do complexo industrial
vidreiro de Saint-Gobain, o revestimento de Viacryl não só dá um aspecto
desagradavelmente lustroso mas altera por completo a estrutura superficial
do vitrai, destruindo assim a sua capacidade de transmissão de misturas
ópticas, o que o distingue do vidro comum.
Além disso, o líquido usado para a limpeza era abrasivo, evidentemente,
e a proteção fornecida pela camada de Viacryl está longe de ser satisfatória
e duradoura. Com efeito, aquilo a que o produto milagroso parece resistir
com mais eficácia é à sua própria remoção.

Como em todos os casos como esse, os amantes de vitrais terão que se


contentar com uma explicação científica do que saiu errado. Também têm
a oportunidade de especular sobre se é, de fato, uma coincidência que a
nossa capacidade para arruinar a qualidade óptica dos vitrais com tal
eficiência e desenvoltura tenha ocorrido numa época em que vitrais dessa
beleza e qualidade transcendentes já não podem ser criados.
Um outro exemplo de projeto bem-intencionado que produziu re­
sultados diferentes dos planejados é o uso de energia solar para bombear
água no Arizona, também descrito no capítulo anterior. Existe uma dife­
rença, é claro: os vitrais de Chartres já estão danificados e o bombea-
m ento acionado por energia solar m al saiu do estágio piloto de
desenvolvimento. Neste caso, porém, os problemas potenciais foram
previstos mas estão sendo ignorados. A longo prazo, o efeito será o mesmo.
É provável que o problema não venha a ser diretamente causado
por nenhuma tecnologia solar mas pela contínua perda de água dos reser­
vatórios subterrâneos do Sudoeste. Se essa tecnologia solar funcionar,
provocará novas dificuldades, porque os seus responsáveis não a situa­
ram em seu contexto global: a capacidade de bombear água do solo a
baixo custo resultará em queda do lençol freático, poços e mananciais se­
cos, a)ntaminação da água subterrânea com produtos químicos para fins
agrícolas e violento afundamento da terra acima das reservas de água es-
golatlas. Nes.se mesmo contexto, o aumento no custo das linhas de ener­
gia clélrica para bombeamento pode ser visto, não como um desastre,
mas como um mecanismo protetor: toma não-lucrativo extrair os escas­
sos suprimentos de água subterrânea para obtenção de ganhos a curto
prazo. A população do Sudoeste norte-americano já consumiu toda a
água que poderia ser considerada sua e já vem consumindo há algum
tempo as reservas do futuro. A não ser que traga água de outros lugares,
o que provavelmente terá seus próprios e terríveis efeitos a)laterais e ge­
rará um pesado ônus financeiro para o resto do país, não existe outra al­
ternativa senão consumir muito menos água agora. Isso significa que
algumas pessoas e indústrias do Sudoeste devem ir para qualquer outro
lugar, e boa parte de sua inadequada agricultura com culturas de solo
úmido cessará de imediato./Em tempos pré-humanísticos, isso é exata­
mente o que teria de acontecer. Hoje, a idéia de reverter qualquer cresci­
mento humano é impensável, e temos numerosas maneiras de subsidiar
e prolongar a agonia, se assim desejarmos. O que outrora era simples
causa e efeito, hoje é causa, falsa crença, efeitos da falsa crença, e alguns
ou todos os efeitos da causa original, com os últimos destes tão camufla­
dos que o seu reconhecimento fica deveras improvável.
Os exemplos dos vitrais de Chartres e do bombeamento por energia
solar exemplificam um novo princípio geral, o qual foi denominado por Eu-
genc Schwartz o “princípio de semi-soluções e problemas residuais”. As
semi-soluções são soluções para problemas definidos dentro de um contexto
artificialmente restrito, e problemas residuais são aqueles que resultam da
aplicação de semi-soluções. Em seu livro Over-sldll, Schwartz escreve:

O processo dialético pelo qual a solução para um problema gera uma


série de novos problemas que acabam por impedir soluções é resumido nas
cinco etapas do desenvolvimento tecnossocial.
1. Por causa das inter-relações e limitações existentes dentro de um
sistema fechado, uma solução tecnossocial nunca é completa e, por conse­
guinte, é uma semi-solução.
2. Cada semi-solução gera um resíduo de novos problemas tecnossociais
decorrentes de: (a) imperfeição, (b) aumento e (c) efeitos secundários.
3. Os novos problemas proliferam numa cadência mais rápida do que
podem ser encontradas soluções para eles.
4. Cada conjunto sucessivo de problemas residuais é mais difícil de
resolver do que os problemas precedentes em virtude de sete fatores: (a) a
dinâmica da tecnologia, (b) a maior complexidade, (c) o custo maior, (d)
os recursos menores, (e) crescimento e expansão, (f) requisitos para maior
controle, e (g) inércia das instituições sociais.
5. Os resíduos de problemas tecnossociais não-resolvidos convergem
numa sociedade tecnológica avançada até um ponto em que as soluções
tecnossociais deixam de ser possíveis.
René Dubos disse a mesma coisa de um modo diferente em seu li­
vro Reason Awake\

O desenvolvimento de contrateaiologiaspara corrigir os novos tipos de


danos que estão sendo constantemente criados por inovações tecnológicas
é uma política de desespero. Se seguirmos esse caminho, cada vez mais nos
conduziremos como criaturas acossadas, fugindo de um mecanismo pro­
tetor para outro, cada um deles mais custoso, mais complexo e menos
confiável do que o anterior; estaremos preocupados principalmente em
protegeimo-nos de perigos ambientais enquanto sacrificamos os valores
que tornam a vida digna de ser vivida.

Não posso apreciar aqui devidamente todo o alcance desses co­


mentários interessantes e muito realistas, mas posso explicar algumas
das razões pelas quais acredito que eles são corretos. Em primeiro lugar,
como Schwartz e Dubos sabem muito bem, restringir arbitrariamente o
contexto de um problema a fim de torná-lo mais fácil de resolver faz com
que a “solução” seja imprestável ou até destrutiva. No caso dos vitrais de
Chartres, os restauradores parecem ter pensado apenas na mera transpa­
rência e durabilidade do revestimento plástico, e nunca se deram ao in­
cômodo de averiguar que aspecto os vitrais teriam depois de revestidos.
Do mesmo modo, os projetistas das bombas acionadas por energia solar
tampouco parecem ter ido além da semi-solução para formular a mais
importante de todas as perguntas: “Devemos desenvolver um meio bara­
to de explorar uma fonte inexaurível de energia a fim de extrair mais
água dos reservatórios do subsolo do Arizona?” Se bombas solares bara­
tas puderem ser inventadas, serão usadas — esses assuntos não podem
ser deixados a critério de “regulamentação” após o fato consumado; a
essa altura, os problemas residuais já estarão a caminho para gerar uma
nova coleção de semi-soluções. O melhor momento para formular as
questões importantes, com o propósito de realizar uma análise de produ­
to final, é antes de ter sido iniciada qualquer uma das semi-soluções.
A notável concatenação de acontecimentos indesejáveis que se se­
guiu ã irrigação agrícola em grande escala fornece uma idéia da incrível
complexidade dos problemas residuais que resultam de cada semi-solu­
ção tecnológica. O “problema” inicial a ser resolvido consiste na neces­
sidade de vastos e garantidos suprimentos de água para satisfazer a
ilcmanda da agricultura moderna. Essa água é necessária por muitas ra­
zões mas, cm especial, para dissolver o fertilizante e introduzi-lo no solo,
para sustentar as modernas culturas que são altamente produtivas mas
não muito resistentes, e para permitir que culturas sensíveis à estiagem
prosperem em lugares onde normalmente não poderiam sobreviver.
Uma das muitas séries de problemas residuais iniciados pela irri­
gação maciça resulta da necessidade de construir represas a fim de, em
primeiro lugar, fornecer a água necessária para irrigação. A Represa de
Assuã, no Nilo egípcio, constitui um exemplo de algumas dessas dificul­
dades. Em primeiro lugar, há o problema residual da grande quantidade
de lodo normalmente carregada pelo Nilo. Esse lodo está agora deposi­
tando-se nas águas calmas do lago Nasser atrás da barragem. A vasa dos
reservatórios é um problema global, especialmente sério em países como
os Estados Unidos, onde muitos reservatórios têm agora entre quarenta e
cinqüenta anos de idade e estão ficando repletos de lama. Algumas das
principais represas perderam quase 50% de sua capacidade de reservató­
rio em menos de cinco anos, mas depósitos de vasa mesmo a um décimo
desse ritmo de sedimentação é um problema sério para o qual não existe
semi-solução.
Em segundo lugar, a fértil vasa que se acumula agora no lago Nas­
ser foi outrora derramada por todos os campos egípcios pelas enchentes
anuais. Isso tem de ser agora substituído por dispendiosos fertilizantes.
Em terceiro lugar, as quantidades decrescentes de vasa e água doce que
penetram agora na extremidade oriental do mar Mediterrâneo, proveni-
nentes do Nilo, causaram uma redução da fertilidade marinha e um re-
crudescim ento da salinidade, que, por sua vez, destruíram a pesca
egípcia de sardinha. Em quarto lugar, o grande aumento no número e
extensão de canais de irrigação egípcios provocou a proliferação dos
caracóis que disseminam essa temível doença parasítica que é a es­
quistossomose. As semi-soluções para esse quarto problema são imper­
feitas e, como de costume, dispendiosas. Seus próprios problemas
residuais ainda estão por manifestar-se. E, em quinto lugar, há o proble­
ma da salinização do solo, que resulta da excessiva evaporação de água
na superfície dos campos encharcados, deixando para trás substanciais
depósitos de sais provenientes dos fertilizantes e da própria água. As
semi-soluções somente para esse problema produzem mais problemas
residuais do que tudo o que foi enumerado até agora.
Diferentes espécies de problemas residuais relacionados a>m re­
presas são observados na União Soviética, onde o número excessivo de
barragens e de desvios de rios para irrigação está causando a retração rá-
pidade dois grandes mares interiores, o Cáspio e o Arai. A semi-solução
soviética de desviar para o sul os rios siberianos cujo curso normal cm na
direção norte tem muitos problemas residuais, tanto concretos quanto
potenciais, e um deles, não o menor de todos, poderá ser uma mudança
climática em escala mundial.
Como muitos dos meus leitores perceberão, o problema original
nessa seqüência — a necessidade de água para irrigação — é apenas um
dos muitos problemas residuais numa seqüência mais ampla, que englo­
ba toda a agricultura moderna e suas premissas arrogantes e humanísti-
cas. Não obstante, em bora o meu catálogo seja incom pleto, esse
crescente emaranhado de problemas, soluções e ainda mais problemas é
típico e suficiente para ilustrar o processo.
Muitos outros exemplos relativamente simples do problema geral
de âmbito e contexto podem ser úteis aqui. Como mencionei antes, é ver­
dade que se inventou um apanhador mecânico de aspargos capaz de co­
lher as delicadas hastes sem danificá-las. Mas não está em uso comercial
porque não pode distinguir entre as hastes imaturas e as que são suficien­
temente grandes para ser comidas, de modo que boa parte da “colheita”
é desperdiçada na forma de hastes potencialmente comestíveis que são
cortadas antes (ou depois) de terem atingido o tamanho apropriado.
Além disso, os aspargos ainda precisam ser selecionados à mão quando
passam pela esteira transportadora da máquina. Talvez um apanhador de
aspargos comercialmente aceitável ainda venha a ser inventado algum
dia, embora isso seja muito duvidoso. E o que se passou então? Nos Es­
tados Unidos, a tecnologia moderna e a economia agrícola já relegaram
o aspargo, uma cultura perene que cresce facilmente em estado silvestre
e era de exploração pouco dispendiosa, ao status de alimento de semi-
luxo. Se aperfeiçoarmos o computador portátil que seria necessário para
colher os aspargos automaticamente, teremos encontrado uma semi-so-
lução para o problema residual do alto custo da mão-de-obra agrícola e
para os problemas sociais de Hdar com trabalhadores. Substituiremos
isso pelo elevado custo dos computadores portáteis e dos serviços de ma­
nutenção e conserto de computadores, o enorme desperdício que certa-
mente estará associado às ceifeiras, e um novo aumento nas fileiras de
trabalhadores desempregados. Nem o preço dos aspargos baixará. O que
irá por certo acontecer é, pelo contrário, o aspargo trasferir-se da seção
de “produtos de consumo” para a de “especialidades para gourmets” dos
supermercados. Estes são apenas alguns dos novos problemas residuais
que se seguiriam à adoção dessa semi-solução.
Embora as máquinas sejam os instrumentos usuais da nossa taca-
nhicc restritiva, essa mentalidade tacanha é que é a fonte essencial do
problema, e não as máquinas. Relatei anteriormente que os chineses,
usaiKlo nada mais complexo do que mata-moscas, controlaram as popu­
lações de moscas. Não mencionei, porém, que eles usaram métot'os não-
técnicos idênticos para livrar-se da maioria de seus pássaros, argumen­
tando que pássaros comem frutas e grãos, sendo portanto nocivos.
Temos agora notícias de que parte do contexto mais amplo está revclan-
do-se, as pragas de insetos estão ficando difíceis de controlar, e os chine­
ses gostariam de ter seus pássaros de volta. Com que indiferença, a)m
que despreocupação, manipulamos hoje partes inteiras dos reinos vege­
tal e animal — redistribuindo ou eliminando seus habitantes ao sabor de
um capricho — , como aconteceu aos infelizes montanheses do Vietnã!
À semelhança de um João-Teimoso, não é muito fá d l voltar a reuni-los.
É muito melhor examinar primeiro o contexto, em vez de sofrer mais tar­
de as conseqüências de tê-lo menosprezado.
A segunda razão pela qual a formulação de Schwartz é significati­
va é um pouco menos óbvia. Em 1947, John von Neumann e Oskar Mor­
genstern demonstraram ser matematicamente impossível maximizar
mais do que uma variável num sistema interligado em dado momento.
Ajuste-se uma variável à sua condição máxima, e está perdida a liberda­
de de fazer o mesmo com as outras variáveis — em termos não-matemá­
ticos, não se pode fazer com que tudo seja “o melhor” simultaneamente.
Embora o biólogo Garrett Hardin tenha escrito em 1968 sobre as impli­
cações mais amplas desse teorema, só agora elas estão começando a ser
apreciadas.
O melhor exemplo prático do teorema de maximização em vigor
foi fornecido, sem que houvesse tal intenção, pela ciência de administra­
ção pesqueira. Durante mais de um quarto de século, o objetivo dos ad­
m inistradores de pesca oceânica foi atingir um nível de captura
conhecido como o “máximo rendimento constante” para cada espécie de
peixe comercialmente importante. A idéia de um máximo rendimento
constante baseia-se nas observações de biólogos de que, até certo ponto,
quanto mais peixes de determinada espécie for pescado, mais fica dispo­
nível para a pesca. (Isso deve-se, em parte, ao fato de a remoção dos pei­
xes maiores e mais velhos de uma população impedi-los de competir
pelo alimento e, possivelmente, pelo espaço com os indivíduos mais jo ­
vens e de crescimento mais rápido.) Em certo ponto, esse benefício de
uma taxa maior de captura estabiUza-se e, a partir daí, se a intensidade de
pesca continuar aumentando, a taxa de captura começa a declinar. O ob­
jetivo da administração da pesca é regularizar a captura no ponto mais
alto da curva, ou seja, o máximo rendimento constante.
À medida que a ciência pesqueira foi ficando mais sofisticada,
veio a percepção de que esse máximo rendimento œnstante é um sonho
impossível, eu diría uma ficção da imaginação humanista. Além disso, o
sonho é impossível por razões teóricas, científicas, não por causa de pro­
blemas sociopolíticos ou técnicos apenas. É uma vítima do teorema de
Von Neumann e Morgenstern. Em primeiro lugar, uma “espécie” de pei­
xe não é uma entidade uniforme mas uma combinação de diferentes po­
pulações que se com portam de m odo d iferente e têm diferentes
requisitos ambientais. Tratar essas populações como se fossem todas a
mesma para fins de administração já constitui um ajuste aquém do máxi­
mo, porque nenhuma será mantida em suas dimensões ideais. Mais im­
portante ainua, diferentes espécies de peixes nadando nas mesmas águas
são parte do mesmo sistema ecológico, estando relacionadas entre si de
muitas maneiras pela predação, competição e cooperação. Quando a pes­
ca de uma espécie é regulamentada, a medida afeta todas as outras espé­
cies: regulamentá-las independentemente, para que cada uma alcance
um “máximo”, é impossível. Uma excelente descrição desse dilema das
pescas foi fornecida por P.A. Larkin, que escreve:

Uma vasta e recente literatura sobre modelagem demonstra de forma


abundante que uma grande variedade de consequências inesperadas pode
decorrer do que parecem ser simples estratégias de administração. Com o
benefício de técnicas de simulação, podemos ver como é difícil até gerir
sistemas que são versões simplificadas da natureza.

E, é claro, a Natureza pode ser tudo menos simples. Assim, num nível
mais elevado, pode-se ver que se combinam o problema do contexto
restrito do humanista e o problema de maximização simultânea de variá­
veis. O resultado é devastador para o mito do poder e do controle.
Para além das semi-soluções e dos problemas residuais, para além
dos problemas de contextos limitados e de um excessivo número de va­
riáveis, existem certas realidades ecológicas que impõem restrições adi­
cionais — ainda que, por vezes, sobrepostas — ao nosso exercício do
poder. A mais direta delas é que poucos sistemas biológicos no mundo,
sejam eles organismos individuais ou grupos de organismos, desenvol­
veram quaisquer mecanismos para enfrentar grandes entradas exceden­
tes de energia concentrada em seus ambientes imediatos, energia do tipo
que o homem tem agora facilmente à sua disposição. Nós mesmos forne­
cemos um bom exemplo disso: embora contemos com inúmeros meios
bioquímicos e fisiológicos de desintoxicar e exaetar uma legião de dife­
rentes venenos, não dispomos de nenhum mecanismo para expelir ^
energia em excesso. Se ingerímos calorias demais, engordamos em nos­
so detrimento. Convivemos com os venenos, sobretudo em substâncias
vegetais, desde que existimos, mas a energia excedente constitui um
novo fenômeno.
Muitos sistemas ecológicos são frágeis e espccialmente vulnerá­
veis à nossa interferência energética. São frágeis porque evoluíram em
ambientes extremamente estáveis (florestas tropicais, recifes de a>ral e
lagos antigos e profundos) ou porque estão “preocupados” com alguma
força ambiental irresistível (tundra, desertos, encostas escarpadas de
montanhas). A título de exemplo, um único raü de motocicleta transde-
serto pode alterar e destruir substancialmente 1.300 km^ de comunidade ve­
getal do deserto. Achamos que esse dano perdurará por um século ou mais.
Uma segunda restrição ecológica é o tempo. As comunidades ve­
getais e animais mudam suas estruturas e composições de espécies com
o passar do tempo; o processo é conhecido como sucessão. Podemos
modificar o processo, tirá-lo dos trilhos, mas dificilmente poderíamos
acelerá-lo de um modo previsível. A maioria das atividades ambientais
energéticas levam a sucessão de volta a estágios anteriores, que estão do­
minados por organismos em conflito com pessoas: as ervas daninhas, as
pragas, os parasitas. Assim, podemos destruir a estrutrura labiríntica de
um solo de floresta em milésimos de segundo com uma bomba ou cm
horas com uma máquina de terraplanagem, a qual, entretanto, só será re­
cuperada quando várias décadas de lenta mudança em termos de suces­
são tiverem preparado o caminho para a sua reconstituição. Nesse
meio-tempo, teremos de viver com o bambu, a grama imperata, o espi­
nheiro bravo ou coisa parecida. Num outro exemplo, na América do
Norte, a ambrósia americana é um membro das mais antigas comunida­
des vegetais sucessivas; ela floresce em solos recentemente revolvidos
mas, se a deixarmos sozinha, desaparecerá após um ou dois verões, sen­
do substituída pela virga-áurea, a marianeira e a amora silvestre. Contu­
do, se for arrancada à força — de preferência por uma escavadeira
mecânica — , as condições serão ideais para a volta de mais ambrósias na
primeira oportunidade. A natureza fornece o melhor dos paradoxos.
A irreversibilidade é a terceira restrição ecológica. Parece difícil
para a mente humanística apreender o significado dos muitos processos
irreversíveis que deflagramos em sistemas vivos; a tendência é para ne­
gar que alguma coisa tão definitiva, tão completamente fora do no.sso
controle, possa ocorrer. Mas a verdade é que estamos causando mu­
danças irreversíveis o tempo todo. Espécies são extintas em ma.ssa, e
nenhuma proeza genética logrará jamais trazê-las de volta. Desertos
substituem terras onde vicejaram hortas e pradarias; há alguns milliares
de anos, o Saara era uma região fértil e, mais recenlemente, a terra cres-
tada e fendida de muitas áreas do moderno Iraque era o berço da nos­
sa civilização agrícola. Talvez os desertos não sejam permanentes
mas, comparados com a escala de tempo das civilizações humanas,
podem ser encarados como tais. “Fazedores de desertos” é, na verda­
de, um título tão apropriado para os seres humanos quanto o de “usuá­
rios de ferramentas”.
Um dos vários mecanismos de que dispomos para criar desertos
merece ser examinado brevemente. O processo inicia-se com a excessiva
pastagem por gado bovino, ovino e caprino. Quando a vegetação é redu­
zida, mais solo arenoso, árido e de cor clara fica exposto, e isso aumenta
o albedo ou a reflexividade da paisagem. Quando o albedo aumenta,
mais luz solar é refletida e a terra torna-se um pouco mais fria. O ar que
passa sobre essa paisagem é menos aquecido do que o normal e tende a
ascender menos. Isso, por sua vez, diminui a formação de nuvens, o que
provoca o declínio das precipitações pluviais. A menor quantidade de
chuvas impede que a vegetação volte a crescer, o albedo aumenta ainda
mais, etc. E assim se expande o deserto. O cientista britânico W. Orme-
rod, cuja obra é citada no Capítulo 5, assinalou que os nossos bem-inten­
cionados e m agníficos esforços científicos para elim inar a doença
tripanossomíase do gado na África podem, em algumas regiões, levar à
maciça expansão dos rebanhos, superpastagem e, possivelmente, a ace­
leração de acontecimentos que estão causando hoje a expansão do Saara
na direção sul, ao longo de uma extensa frente. Nesse caso, podemos ver
que o problema da irreversibüidade é aumentado pela complexidade das
interações ambientais. Poucas coisas são tão simples quando nós, em
nossa arrogância, imaginamos que fossem.

A idéia popular de “energia de fusão Umpa” é um mito que


engloba todas as falsas crenças e leviandades ambientais de que é
capaz a atitude humanística, e ignora muitos dos princípios descritos
na seção precedente. Temos em primeiro lugar o problema do contex­
to, em torno do qual todos os outros podem ser organizados. Pois,
mesmo que aceitemos a duvidosa e improvável hipótese de que os
reatores de fusão não representam nenhuma ameaça radioativa, explo­
siva ou térmica para as pessoas e o meio ambiente, o que acontecerá
a essa energia ilimitada e barata depois de deixar a usina e as Enhas
de transmissão? Se se quiser chamar de “limpa” a uma fonte de
energia, esse julgamento só pode ser formulado se todas as conseqüên-
cias e efeitos da energia tiverem sido minuciosamente descritos —
desde o momento de sua geração até ao último quilowatt se dissipar
como energia irrecuperável. “Isso é impossível de dc.screver”, murmura
entre dentes o físico ou o engenheiro. Mas na realidade não 6 — já
sabemos o que acontecerá a essa energia.
Será usada para fabricar mais snowmobiles, que destruirão mais
vegetação no Norte e diminuirão a já reduzida privacidade e tranqüilida-
de de que desfrutavam outrora os habitantes nórdicos durante os meses
de neve. Admitimos que os snowmobiles salvarão algumas vidas; mas
até isso é só um benefício pela metade, porque os acidentes com esses
veículos roubarão mais vidas do que salvarão.
Será usada para fazer mais bombas de laser, mísseis terra-terra,
arados e antidesfolhantes.
Será usada para fornecer mais cartazes luminosos, que ajudarão a
acelerar a destruição do significado da linguagem.
Acionará as bombas de poços tubulares nos pastos secos do mun­
do, permitindo assim que mais gado seja apascentado e mais desertos se­
jam formados.
Ajudará os soviéticos a desviarem seus rios árticos para o sul, re­
duzindo assim substancialmente a vazão de água doce para o Oceano Ár­
tico, aumentando a sua salinidade, baixando o seu ponto de congelação e
talvez, conseqüentemente, mudando o cUma do mundo, embora ignore­
mos em que direção tal mudança ocorrería.
Será usada para produzir mais fertilizantes de nitrogênio sintético,
os quais serão empregados para fertilizar as “culturas milagrosas” desen­
volvidas para a agricultura da “Revolução Verde”. Isso, por sua vez, sig­
nificará que a irrigação maciça será necessária para o crescimento
apropriado, o que, em áreas secas, levará à acumulação de sais tóxicos
no solo — um dos caminhos para a formação de desertos. Isso significa­
rá que a agricultura continua sendo um empreendimento com emprego
intensivo de capital, porque as culturas da Revolução Verde só podem
gerar safras maciças com a ajuda de dispendiosos (e destrutivos) pestici­
das, herbicidas, maquinaria de semear e colher, fornos de secagem, etc.;
e isso significa ainda que terão continuidade os processos gêmeos de
concentração da propriedade da terra nas mãos dos poucos que contro­
lam o estoque de dinheiro, e de criação de um campesinato sem terra.
Significa que o solo, o mais valioso de todos os recursos, ainda será mi­
nado, com efeito, em vez de alimentado e preservado. Significa que o
fascínio das “safras milagrosas”, fertilizadas e abundantes, amtinuará
levando os agricultores tradicionais a abandonar suas preciosas varieda­
des locais de grãos, verduras e frutos, alguns dos quais a>m milhares de
anos de existência e perfeitamente adaptados ao clima, ás pragas c doen­
ças do ambiente regional — e são essas variedades locais, dezenas de
milhares delas, que constituem toda a herança genética da agricultura, a
esperança do futuro. Significa que a lavoura ainda terá de concentrar-se
em maciças e “eficientes” monoculturas a fim de se obter um lucro em
face do grande investimento de capital, e isso significa que elas conti­
nuarão sendo excepcionalmente vulneráveis a pragas e doenças.
Será usada para a construção de mais diques de irrigação, canais
de desvio, barragens contra enchentes, etc., reduzindo assim a incidência
de enchentes menores mas encorajando ainda mais a ocupação humana
de terras aluviais e aumentando a probabilidade e destrutividade das
grandes inundações, como ocorreu ao longo do rio Mississipi no que
C.B. Belt Jr. chamou de a “enchente fabricada pelo homem” de 1973.
Tudo isso e muito mais será o destino da energia de fusão depois
que ela deixar as linhas de transmissão. O adjetivo “limpo” não pode ser
aphcado a tal série de consequências, e reservá-lo unicamente para a jx)r-
ção do sistema restrita à usina é um pouco como garantir que a água de
um rio poluído pela descarga de esgotos e de substâncias químicas é boa
para beber porque a chuva que cai em sua bacia é doce e pura.
Jamais as falsas crenças foram uma parte tão importante de nossas
vidas e planos. Como não podemos abarcar todo o valor e toda a varie­
dade de experiência humana, simplificamo-la, proclamando que certas
características isoladas, características “manipuladas”, são as melhores.
Nesse espírito, o milho de citoplasma-T passou a ser o melhor, porque
reduziu a necessidade de muito trabalho na produção da semente híbrida.
Contudo, fomos apanhados de surpresa quando, após plantar a quase to­
talidade da área dedicada à cultura do milho nos Estados Unidos com
essa única variedade, perdemos 15% dela, no valor de mais de um bilhão
de dólares, com o surto de um fungo a que essa variedade era particular­
mente suscetível. O milho de dtoplasma-T é, na verdade, uma invenção
imensamente útil, mas por que será que parecemos incapazes de apreciar
a nossa própria engenhosidade e de reconhecer ao mesmo tempo as nos­
sas limitações?
O caso do krill é outro exemplo. Criamos finalmente métodos para
a captura desse abundantes e minúsculos crustáceos em águas antárticas
(embora o custo energético dessa tecnologia seja exorbitante). Mas por
que nos vangloriarmos? Os métodos de captura e processamento do krill
eram gratuitos — chamavam-se “baleias”; estas comiam o krill e conver-
Iiam-no em carne de baleia. Agora as baleias estão quase extintas, e o
progresso levou-nos ao ponto em que temos de pegar o krill para nós pró-
prit)s a enormes custos. Será isso, de fato, um triunfo? Mais falsas crenças.
Os gnomos antropomórficos de Paul Weiss p^xlem ser vistos intro-
metendo-se em nossas falsas crenças com freqüônda. Veja-se o caso dos
“limpa-chaminés”, que são dispositivos para “controle da poluição”. De
fato, removem muitos poluentes dos gases de chaminés. Em a)ntraparti-
da, liberam ácido suLfúrico no ar em grandes quantidades. A própria chu­
va que cai em países industriais e populosos é hoje muito ádda, e 60%
do teor de ácido é constituído por ácido sulfúrico. Animais aquáticos,
como certos peixes, rãs e salamandras estão nascendo, se é que nascem,
com defeitos de nascença provocados pelo ácido; algumas das principais
doenças de plantas são agravadas pelo ácido; a chuva ácida caustica e
destrói edifícios de pedra; e até as taxas de crescimento das florestas no
leste da América do Norte e na Escandinávia podem ter sido reduzidas
pela contaminação ácida. Chama-se a isso “controle de poluição”.
Tampouco devemos alimentar a ilusão de que, se nos insinuarmos
manhosamente com um sorriso, murmurando as fórmulas e as palavras
mágicas certas — “controle biológico”, “inseticida natural”, “palha para
proteger a raiz das plantas”, etc.— pegaremos a Natureza desprevenida e de
bom humor. As generosas metodologias da contratura constituem um gran­
de avanço em nossas relações com a Natureza, um enorme passo adiante
nestes tempos de retrocesso. Mas há os que introduzem as velhas expectati­
vas arrogantes nessas metodologias novas ou ressurgidas, aqueles que ainda
ambicionam a eterna refeição grátis que, na realidade, nunca acontecerá.
Podemos usar a radiação para produzir mUhões de lagartas-parafuso do sexo
masculino estéreis e soltá-las no meio ambiente para que sejam anulados os
esforços reprodutivos das fêmeas. Ignoramos por quanto tempo isso funcio­
nará; já há indicações de que os machos estéreis podem não estar mais com­
petindo tão bem quanto antes pelos favores femininos. Esses machos
esterilizados em massa são provavelmente defeituosos sob vários aspectos e
as poucas fêmeas que logram reproduzir-se podem estar transmitindo às
suas fílhas os meios de escolher adequadamente entre machos normais e es­
téreis. Numa competição entre evolução e cérebros humanos, não é das ati­
tudes mais prudentes apostar nos cérebros.
Os inseticidas “naturais”, como a rotenona, também têm suas apli­
cações. Mas a rotenona envenena os peixes, é responsável por algumas
alergias humanas, mata indisoiminadamente insetos desejáveis e inde­
sejáveis, e só produz efeito por um ou dois dias. Do mesmo modo, pro­
teções de palha ou de folhas são meios fáceis e eficazes de controlar as
ervas daninhas e condicionar o solo cultivado. Essas proteções, entretan­
to, também servem de abrigo para ratos e ratazanas, promovem a proli­
feração de fungos e protegem do frio ou do calor as pragas de insetos que
infestam plantas. Isso nos lembra de novo A ilha do dr. Moreau e a “obs­
tinada carne animalesca” que sempre volta a crescer.

A grande ilusão da nossa “era espacial” é que podemos escapar às


conseqüências terrestres da nossa arrogância deixando ao planeta-mãe e
trocando-o ou por pequenos mundos substitutos de nossa própria fabri­
cação ou por distantes corpos celestes, alguns dos quais ainda por desco­
brir. Trata-se de uma idéia imatura e irresponsável, a de que tendo
emporcalhado este mundo com as nossas invenções, faremos melhor, de
algum modo, em outras órbitas. No entanto, se considerarmos o huma­
nismo pelo que é, uma religião sem Deus, então a idéia não parecerá tão
estranha: o espaço com suas estações espaciais e seus habitantes espaciais
é apenas uma substituição do céu com os seus anjos. A própria idéia de
imortahdade está presente, indistinta como tudo o mais nesse domínio
humanista imaginário — pois se atentarmos para os escritos de futurólo-
gos e aspirantes a pioneiros L-5, encontraremos vagas referências à
relatividade e a distorções do tempo, modos de realizar imensas jornadas
a distâncias de muitos anos-luz sem envelhecer, exceto, talvez, com
referência às pessoas que ficaram para trás na Terra. O espaço nada mais
é do que um céu diluído para os céticos modernos. Só agora localizamos
o céu mais precisamente no sistema solar do que no tempo em que Dante
escreveu acerca do paraíso.
Talvez a menos importante das críticas às colônias espaciais seja a
de que elas não funcionarão, não podem sobreviver por muito tempo,
pelo menos com habitantes vivos (embora os seus detritos possam per­
manecer por muito tempo na Lua ou nos pontos de libração lagrangiana).
Há inúmeras críticas específicas a características de projetos específicos
— estas não têm interesse para mim aqui. Basta olhar para o conceito ge­
ral de uma colônia espacial para se ver os problemas funcionais envolvidos.
Em 13 e 14 de julho de 1977, a cidade de Nova York sofreu um
blecaute provocado pelo colapso no fornecimento de energia elétrica.
Imagine-se se ocorresse um blecaute numa estação espacial, se a energia
se perdesse por 24 horas. Quando isso aconteceu em Nova York, foi de­
sagradável e até perigoso. Mas Nova York existe num ambiente essen­
cialm ente hospitaleiro para o homem: durante uma crise, não há
necessidade de se fabricar o dia e a noite, a atmosfera ou a gravidade; a
água continua fluindo montanha abaixo desde os seus mananciais e as
temperaturas não atingirão limites letais. Caso a situação se agrave, po­
demos pôr-nos a salvo indo a pé ou de carro para algum outro lugar, se
necessário. Numa estação espacial, não existe outra alternativa para o
completo controle senão a morte. No entanto, não conhecemos na Terra
situações complexas, dirigidas, nas quais os seres humanos tenham sido
sempre capazes de manter um perfeito controle, sem levar em conta a re­
dundância embutida. De fato, quanto mais complexo é o sistema, maior
o “tempo de espera”. E as estações espaciais são muito mais complexas
do que máquinas copiadoras ou elevadores computadorizados.
Estamos inteiramente familiarizados com esse aspecto incômcxlo
da complexidade fabricada pelo homem — a Lei de Murphy (se alguma
coisa puder sair errada, sairá) é um fato aceito da vida contemporânea —
e, no entanto, sempre nos mostramos incrédulos quando as coisas saem
dos eixos. O exemplo que se segue foi extraído de um artigo de Wallace
Turner publiado no New York Times; a citação é atribuída a um porta-
voz dos administradores da Trans-Alaska Pipeline, falando após uma ex­
plosão que tinha ocorrido no oleoduto:

“Mandamos projetar esse sistema de modo que nunca houvesse gases


voláteis no ar, e também para que nunca houvesse uma fonte aberta de
ignição”, declarou o Sr. Ratterman, postado numa coli na com os repórteres
e olhando para baixo, na direção do aço retorcido e da maquinaria fume-
gante do que tinha sido a casa das bombas. “Mas, como podem ver, tivemos
gases voláteis e ignição, e tivemos tudo isso ao mesmo tempo.”

“Erro humano” é geralmente culpado por funcionamentos defei­


tuosos em nosso mundo mecânico, como se isso absolvesse, de algum
modo, as nossas invenções. Mas onde houver seres humanos haverá
sempre erros humanos, e as máquinas não são mais confiáveis em nossa
ausência.
Talvez toda essa conversa-fiada a respeito da “espaçonave Terra”
tenha acabado por corromper o nosso pensamento. ATerra não se parece
nada com uma espaçonave, salvo pelos fatos de que ambas viajam no es­
paço e ambas têm limitações de certos recursos. Aí termina a semelhança
— os “sistemas de sustentação da vida” da Terra são vastos, complexos,
insuficientemente compreendidos, muito antigos, auto-reguladores e in­
teiramente bem-sucedidos. Na verdade, a expressão “sistemas de susten­
tação da vida” é imprópria quando aplicada à Terra, produto de uma
mentalidade mais mecânica do que ecológica. Na Terra, a vida e os “sis­
temas de sustentação da vida” não são separáveis, fazem parte do mesmo
todo. Numa estação espacial, o “sistema de sustentação da vida” estaria,
de fato, separado. Também necessitaria de constante regulagem e geren­
ciamento. Como qualquer “máquina” construída de acordo com rigoro­
sos padrões de engenharia, funcionaria a m aior parte do tempo e
í
enguiçaria ocasionalmente. Não falharia apenas por causa de nossa ina­
dequada compreensão da ecologia e dos “sistemas de sustentação de
vida”, mas porque se trata de uma máquina e, mais eedo ou mais tarde,
todas as máquinas enguiçam. Quando o defeito for de pouca monta e de
curta duração, a colônia espacial sobreviverá; e quando for grave e dura­
douro, os habitantes da colônia morrerão — a menos, é claro, que pos­
sam regressar à Terra. Pode-se afirmar que a maioria dos entusiastas do
espaço nunca foram sérios hortelãos. Se tivessem sido, não se mostra­
riam tão estultamente otimistas acerca do futuro da vida no espaço esté­
ril, onde a Terra e a Natureza não estarão disponíveis para corrigir os
erros deles. Um dia, poderemos ser suficientemente insensatos para apü-
car as nossas esperanças e os nossos recursos em estações espaciais e ex­
plorações galácticas. Os viajantes espaciais partirão com entusiasmo e
ao som de festivas fanfarras. E não voltarão.
Ouviremos muitas vezes, nos próximos anos, da boca dos defenso­
res das viagens espaciais, coisas como estas: “E se Colombo tivesse tido
medo de zarpar em seus galeões, ou os pohnésios em suas frágeis janga­
das? Onde está o intrépido espírito humano de exploração nestes tempos
covardes?” Mas o oceano, por mais aterrador que seja, não é o espaço —
nós somos oriundos desse oceano e contemos sua água e seu sal dentro
de nossas próprias células, e ele está rodeado por terra habitável e cober­
to por ar respirável. Por mais estranho que o oceano possa parecer a al­
guns de nós, ele faz parte da nossa herança; a escuridão do espaço
exterior não faz. Pagamos o preço evolutivo de bilhões de mortes para
nos adaptarmos a este mundo, o qual começou antes dos dias em que os
nossos ancestrais eram minúsculos animais invertebrados nadando no
mar. Cada nascimento e sobrevivência em nossa linhagem tem sido tes­
temunho das excelência do ajustamento entre os seres humanos e o meio
ambiente do nosso planeta natal. Não podemos reproduzir mais do que
pálidas cópias desse meio ambiente alhures, terrivelmente imperfeitas e
duvidosas; e a nossa sobreviência em tão ineptas contrafações será igual­
mente imperfeita e duvidosa, um negócio transitório. Como espécies de
grandes animais que colonizam ilhas muito pequenas, chegaremos, vive­
remos instavelmente por algum tempo e nos extinguiremos. Os ecologis­
tas criaram equações que descrevem esse processo — talvez tenhamos
um dia a oportunidade de aplicá-las a nós próprios no espaço.
A questão principal, como eu disse, não é que sejamos incapazes
tle pôr para funcionar as nossas colônias espaciais. É, antes, a tragédia de
no.ssos esforços insensatos para consegui-lo, a nossa ávida aceitação de
[irojetos que Mumford, com sua sabedoria característica, chamou de
f)G
“disfarces tecnológicos para fantasias infantis”. Escrevendo no Co-Evo-
lution Quaríerly, George Wald elucidou diretamente a tragédia:

O que me incomoda mais a respeito das Colônias Espaciais— até como


conceitos — é a sua negação do que acredito serem os mais profundos e
significativos valores humanos. Não creio que possamos viver uma vida
humana plena sem vivê-la entre animais e plantas. D esse ponto de vista,
as sociedades urbanas já perderam grandes partes de sua humanidade, e
sua perversão das áreas rurais faz a vida no campo pouco melhor, por vezes
pior...
De modo que a minha tese é esta: a própria idéia de Colônias Espaciais
leva a uma concl usão lógi ca— e horrenda , processos de desumanização
e despersonalização que já foram longe demais na Terra. De certo modo,
estamos prontos para Plataformas Espaciais mediante uma degradação
sistemática dos modos humanos de vida na Terra.

As pessoas no espaço são pessoas diminuídas, fora de seu contexto


antigo, herdado e extremamente belo. E, como tudo o que é arrancado ao
contexto, não fazem o menor sentido.
Há uma lição fundamentalista a ser aprendida através dos exem­
plos discutidos nesta seção sobre o meio ambiente. Estivemos lendo a
velha história bíblica da expulsão do jardim do Éden muito superficial­
mente, nestes últimos tempos; tal como os fundamentaUstas, devemos
prestar mais atenção ao detalhe. Pois não era o Jardim do Édem classifi­
cado como um lugar melhor do que o mundo cá fora, depois da Queda?
E não era a clara a idéia subentendida no Gênesis, de que todas as apti­
dões e conhecimentos recém-adquiridos que a fatídica maçã pôde forne­
cer eram imperfeitos? A serpente estava mentindo quando disse: “Sereis
como deuses”; com efeito, sabemos agora que nunca mais voltaremos a
viver em tal estado de graça.

Limites
Não examinamos em profundidade nestes capítulos as técnicas de
auto-sugestão que são de uso comum para corroborar os pressupostos
humanísticos. Essas técnicas abrangem: o uso de modelos matemáliais
que fazem suas suposições impróprias (de linearidade, de generalidade,
de continuidade, de valores de importância, de randomicidade, etc.); os
engenhosos métodos de extrapolação de um presente insuficicntemcntc
descrito para um futuro incognoscível; os complexos métodos eslatísti-
COS de ponderar, ou ignorar, ou acentuar indícios a fim de se preservar
uma aparência de objetividade enquanto se providencia a resposta dese­
jada; o crédito ou o descrédito de certas classes de percepção, e muitas
outras. Todas essas técnicas mereceriam um livro inteiro e não um que
eu possa escrever. Em vez disso, vali-me da idéia de anáUse de produto
final, o que significa que acredito ser correto julgar um processo pelos
seus resultados mesmo quando não se entende tudo da teoria dos meca­
nismos e dos defeitos intrínsecos envolvidos. De fato, quando estamos
lidando com o nosso próprio futuro, isso não só é justo mas necessário.
Com base nessas anáUses de produto final, concluí que os pressu­
postos humanísticos estão errados, que há limites para os conhecimentos
e o poder que os seres humanos podem reunir para qualquer fim. Como
as referências a esses limites foram disseminadas ao longo deste capítu­
lo, creio ser útil juntá-las num só ponto.
Em primeiro lugar, há limites impostos pela nossa incapacidade
para conhecer o futuro, para fazer previsões exatas a longo prazo. Trata-
se de um limite teórico e inalterável baseado na grande complexidade e
incerteza dos acontecimentos interatuantes que determinarão o futuro, e
na influência catalítica sobre o futuro de acontecimentos aparentemente
insignificantes no presente.
Em segundo lugar, existem limites impostos pelas conseqüêndas
de fracassos anteriores dos nossos pressupostos de controle; esses limites
assumem a forma de ondas crescentes de semi-soluções e problemas re­
siduais, tais como foram descritos por Eugene Schwartz, todos precipi­
tando ojnomento de uma paralisia final e colapso de novos esforços para
manter a situação sob um fac-símile de controle.
Em terceiro lugar, temos um limite especialmente frustrante, que é
descrito pela teoria de maximização de Von Neumann e Morgenstem, a
qual diz, com efeito, que num mundo complexo não podemos alcançar
simultaneamente o melhor em todas as coisas. Esse terceiro limite é o
que explica por que a evolução revelou-se mais confiável do que os nos­
sos substitutos para ela. A evolução é lenta e devastadora, mas resultou
numa infinidade de soluções funcionais e flexíveis, cujo êxito é coastan-
lemente testado pela própria vida. A evolução é, em grande medida, cu­
mulativa e vem funcionando três bilhões de anos a mais do que os nossos
esforços atuais. Os nossos mais brilhantes aperfeiçoamentos sobre a Na­
tureza são, com muita freqüência, uma solução ilusória para um proble­
ma que foi isolado do contexto, uma maximização local, transitória, que
está fadada a ser seguida por contra-ajustes sumamente indesejáveis em
lodo o sistema.
o quarto limite é inerente ao que chamei anteriormente princípio
de incerteza (por causa de sua semelhança puramente análoga mas su­
gestiva com o princípio de incerteza da física). É a noção de que a nossa
capacidade para buscar soluções técnicas para certas espécies de proble­
mas aumenta juntamente com a nossa capacidade para aumentar e mul­
tiplicar esses tipos de problemas; de que não resolvemos problemas
quando adquirimos novas tecnologias porque as novas tecnologias agra­
vam, simultaneamente, os nossos problemas.
Existem outros limites a que apenas aludi: impostos por recursos
em declínio e pela exaustão da capacidade dos sistemas ecológicos para
suportar uma excessiva interferência sem mudança radical nem desinte­
gração. Finalmente, há a perversão das nossas tecnologias de controle
para fins perniciosos, que caracterizei suscintamente nas minhas duas
“leis” da ciência e da tecnologia, e a qual se limita em virtude de sua es­
sencial destrutividade.
Diante de tudo isso, fica difícil entender o otimismo ilimitado de
pessoas como Murray Bookchin, porque ele se combina com um conhe­
cimento profundo do que hoje está acontecendo no mundo. Bookchin
leva em conta as realidades ecológicas da vida contemporânea. Por que
é, então, que adota o injustificado otimismo de um culto humanístico cu­
jos esforços para remodelar o mundo à nossa própria imagem nos brin­
daram com um extenso rosário de fracassos cada vez piores? A
tendênda preponderante do presente, dominado pelo humanismo, é para
mais solos arruinados, mais desertos, mais crianças com anomia, mais
sodedades fragmentadas e violentas, mais armamentos cujo horror supe­
ra a imaginação, mais técnicas de supressão autocrática e mais mecanis­
mos para isolar os seres humanos uns dos outros. Como é possível extrair
dessa realidade presente uma utopia livre de esforços penosos, em que a
tecnologia é a “parceira da criatividade do homem”? Tudo o que posso
dizer é que Bookchin e outros como ele fugiram da realidade para um
mundo bem mais suave de sonhos tecnopastorais.
Aqueles que ignoram o estado atual do mundo têm uma fé no hu­
manismo que é muito mais fá d l de compreender. Percebendo o nosso
poder, mas não as suas consequências, eles estão livres para projetar suíls
fantasias num futuro mágico. OrweU escreveu; “O culto do poder turva
o julgamento político porque leva, quase inevitavelmente, à convicção
de que as tendências atuais prosseguirão.” Isso também é verdadeiro
para outras formas de julgamento além das políticas. Aqui temos os
Kahns e os Berrys, os “futurólogos”, que ficaram fascinados com nossos
breves surtos de poder ao ponto de acreditar que tudo continuará... por­
que deixamos uma bola de golfe e o autógrafo de um Presidente na Lua,
seremos capazes de construir jardins suspensos no espaço e povoá-los
com uma multidão feUz. Mas não importa quão forte seja a maré, chega
o momento em que ela atinge o nível máximo retrocede. Mesmo enquan­
to os futurólogos escrevem, os nossos surtos de poder estão sendo pagos
de mil maneiras e em mil lugares, embora não haja ninguém capaz de so­
mar os custos.
Não houve espaço dedicado ao louvor da criatividade humana nes­
te capítulo, e isso incomodará muitos que estão acostumados com as cos­
tumeiras autofelidtações humanistas. Não desejo apresentar uma visão
inteiramente amarga da humanidade ou deixar a impressão de que acre­
dito serem fracassos absolutos todas as nossas obras recentes. Mas os
êxitos são isolados e contrários à tendência dominante, além de serem
devidamente exaltados em inúmeros outros livros de outros autores. É
agora mais importante lembrar ao mundo os nossos fracassos, e se for­
mos bem-sucedidos nessa tarefa, não faltará tempo mais tarde para o
apropriado orgulho.
Também sei que, fora do mundo da tecnologia, existe um outro
mundo de criação humana, o mundo das “humanidades”, das obras-pri­
mas antigas, como S. Francisco falando aos pássaros, de Giotto, que
louvam a glória de Deus, e das novas obras-primas, como Uma casa
para o sr. Biswas, de V.S. Naipaul, que exaltam o espírito de homens e
mulheres. Para muitos, esse mundo é a concretização do humanismo;
quem dera que assim fosse. No entanto, à semelhança de Janus, o deus
romano da porta, que tinha o rosto voltado ao mesmo tempo para dentro
e para fora de casa, ou do Satã com três rostos na ilustração do Círculo
inferior do Inferno feita por Doré, o humanismo tem mais de uma face.
Se aceitamos um mundo, temos de aceitar o outro; fizemos ambos. E es­
ses mundos estão ligados, pois ocorreu a todos, menos aos críticos mais
relativistas, que a despeito da imensa riqueza e da gigantesca população
desta moderna era tecnológica, não estamos produzindo obras-primas
em humanidades com a mesma freqüência que costumávamos produzir.
É uma convenção da literatura humanística que, depois de qualquer
crítica severa às invenções humanas, venha um “mas”, uma ressalva e, pelo
menos, um vislumbre de final feliz e as inevitáveis circunstâncias atenuan­
tes que nos livrarão do anzol que nós próprios fabricamos. Espero que os
meus leitores entendam por que não adoto essa convenção, embora a minha
imaginação esteja, como a da maioria, bem abastecida de finais felizes.
Capítulo 4

Emoção e Razão
“Por que não caminhou em redor do bura­
co?”, perguntou o Homem de Haia.
“Eu não sabia o bastante”, respondeu o Es­
pantalho, jovialmente. “Minha cabeça est.-í
recheada de palha, sabe, e é por isso que estou
indo a Oz, para pedir-lhe um cérebro.”
“Ah, entendo”, disse o Homem de Lata.
“Mas, afinal de contas, o cérebro não é a
melhor coisa do mundo.”
“Você tem um?”, indagou o Espantalho.
“Não, a minha cabeça está totalmente vazia”,
respondeu o Homem de I.ata, “mas tive ou-
trora cérebro e um coração também; por isso
é que, tendo experimentado ambos, gostaria
muito mais de ter um coração...”
“Mesmo assim”, disse o Espantalho, “pedirei
um cérebro em vez de um coração; pois um
tolo não saberia o que fazer com um coração,
se tivesse um.”
“Ficarei com o coração”, retorquiu o Homem
de Lata, “pois o cérebro não faz ninguém feliz,
e a felicidade é a melhor coisa do mundo.”
L. FRANK BAUM, O mágico de Oz
“A jovem número vinte é incapaz de definir
um cavalo!”, disse o sr. Gradgrind. [...] “Um
dos rapazes que dê a definição de um cavalo.
Bitzer, você.”
“Quadrúpede. Herbívoro. Quarenta dentes,
sendo vinte e quatro molares, quatro caninos
e doze incisivos. Muda de pelagem na prima­
vera; nas regiões alagadiças, também muda
os cascos. Qs cascos são duros mas precisam
ser calçados com ferraduras. Idade conhecida
por marcas na boca.” [...]
“Agora, menina número vinte, você sabe o
que é um cavalo”, disse o sr. Gradgrind.
CHARLES DICKFNS, Tempos difíceix

E extremamente difícil apanhar ratos com ratoeiras ou veneno na


Noruega. Por mais habilmente que sejam colocadas e por mais
atraente que seja a isca, as ratoeiras são evitadas. Os venenos,
mesmo quando escondidos em alimentos que seduzem os ratos, podem
permanecer intocados durante uma semana ou mais, antes de receberem
a primeira e cautelosa mordiscadela subletal. Essa característica do Rat-
íus norvegicus é apenas uma das muitas razões por que os ratos têm-se
dado tão bem como pragas do homem e co-habitantes de cidades huma­
nas, deixando as margens dos rios asiáticos, ou onde quer que se tenham
originado, para acompanharem o homem por todo o mundo.
O comportamento que serve às mil maravilhas aos ratos noruegue­
ses foi obser^^ado pela primeira vez por biólogos que os estudavam fora
do laboratório, em condições selvagens ou semi-selvagens. Um desses
biólogos, John Calhoun, chamou a esse comportamento “a reação ao ob­
jeto estranho ou à situação estranha”. Por que e quando os ratos começa­
ram a manifestar essa reação, provavelmente nunca o saberemos, mas
compreendemos em que consiste e aproximadamente como funciona. Os
ratos têm uma desconfiança inata de qualquer coisa que seja nova em seu
meio ambiente. Quando isso ocorre em seres humanos, chama-se-lhe su­
perstição ou emoção, e caracteriza-se pela falta de um relacionamento
imediato e racional com o objeto do comportamento. O mesmo ocorre
com os ratos. Eles têm medo de tudo o que não lhes seja familiar, inde­
pendentemente de sua natureza. Uma lata vazia colocada perto da trilha
de um rato pode causar o abandono dessa trilha, mesmo que ela conduza
à comida. Num estudo em que ratos estavam sendo alimentados, a subs­
tituição do recipiente da comida por um outro modelo de aparência idên­
tica resultou na demora por parte dos ratos em iniciarem sua refeição.
Sons insólitos são tão eficientes quanto objetos insólitos — o clique de
uma máquina fotográfica é aterrador, ao passo que os miados de gatos
distantes e os avisos de aves sobre a presença de um falcão não têm ne­
nhum efeito notável. Mesmo uma pequena mudança na posição de um
objeto familiar deslotando-o poucos centímetros — provocará a reação.
Nem todos os ratos são idênticos em seu comportamento; alguns
são consideravelmente mais ousados do que seus companheiros. Ca­
lhoun e outros notaram que esses ratos audaciosos tendem a ser de baixo
nível social; são os membros inferiores e imperfeitos da sociedade dos
ratos. Por exemplo, a seguinte observação de D. Chitty e H. N. Southern
6 citada por Calhoun:

“Outras populações œntiveram uma certa proporção de ratos que saíam em


busca de iscas ao cair da tarde, enquanto seus companheiros se recusavam a
abandonar o esconderijo. Esse ratos ’’mais audaciosos" eram freqüentemente
atacados após seu regresso do trigo, sendo os mais jovens, por vezes, jogados
dc awtas, e o trigo transferido para a boca dos atacantes.”
Como era de se esperar, os ratos socialmente inferiores são os qae têm
maiores probabilidades de ser apanhados em ratoeiras. Não se sabe por
que é que aos animais de nível inferior falta a habitual desconfiança dos
ratos. Pode ser mais fome, pode ser um embotamento das percepções ou
emoções desses animais, ou pode ser, como acredita Calhoun, uma
espécie de satisfação masoquista — mas a razão real não é importante
para nós. O que é importante é que esse defeito acarretará de fato, uma
probabilidade menor de sobrevivência. Um rato em boa forma é descon­
fiado e conservador. Um rato audacioso, que formula julgamentos basea­
dos numa consideração individual das aparências imediatas de cada
situação, é um rato morto.
É importante assinalar este último ponto, porque os ratos têm uma
certa capacidade para solucionar problemas, uma certa aptidão para racioci­
nar. Com efeito, há dezenas de anos, os ratos têm sido testados por psicólo­
gos, que os fazem percorrer labirintos, adivinhar quebra-cabeças e aprender
o que lhes convém fazer em experimentos de punição-recom pensa. Mas não
é essa capacidade, útil como deve ser para os ratos em outras circunstâncias,
que os impede de ser envenenados e os toma cautelosos em situações insó­
litas. Tampouco os ratos estariam necessariamente mais seguros se os seus
poderes de razão fossem mais desenvolvidos. Se os ratos tivessem as apti­
dões de pessoas, o que fariam na primeira vez que fosse colocado diante de­
les um prato de cereal contendo o veneno para ratos Warfarin? Em vez de
evitá-lo por completo, tratariam provavelmente de obter uma anáhse quími­
ca da isca. Os resultados dessa análise mostrariam as proteínas e açúcares do
trigo, encontradas normalmente nos cereais, somadas a uma substância cris­
talina com o cheiro de feno recém-cortado e uma composição química qua­
se idêntica à dos componentes químicos regulares do trevo. Um estudo
toxicológico, realizado com insetos de laboratório por uma questão de eco­
nomia, revelaria que a substância cristalina não causou um aumento de mor­
talidade ou de morbidade entre as populações tratadas experimentalmente.
Concluídas as análises, seria anunciado que o alimento era seguro, os ratos
comeriam-no vorazmente e alguns dias depois morreriam. O Warfarin mata
indiretamente: assemelha-se quimicamente à vitamina K, a qual é necessá­
ria para promover no fígado a síntese da protrombina, um fator de coagula­
ção sanguínea. As células do fígado confundem as moléculas de Warfarin
com as da vitamina K, a protrombina não é sintetizada e os ratos morrem de
hemorragia interna. Os insetos têm diferentes trajetos bioquímia» e não são
afetados desse modo pelo Warfarin.
E claro, o Warfarin mata um grande número de ratos a)muns. Mas
os mais precavidos e os mais desconfiados evitam a isca, ou então to­
mam quantidades tão pequenas que não sofrem quaisquer efeitos mais
sérios. Há sempre ratos que sobrevivem a uma campanha de desratiza­
ção. Assim, o objetivo desta discussão consiste em mostrar que os ratos,
além de possuírem capacidade de resolução de problemas, têm uma po­
derosa proteção inata contra muitos riscos, inclusive os que lhes são cria­
dos pelos seres humanos, os animais pensantes.
Essa proteção inata, o comportamento já descrito, é complexa de­
mais para merecer um simples nome, dependendo como depende de
muitas partes dos sistemas sensorial, nervoso central e endócrino. Mas as
coisas sobre as quais se escreve precisam ter nomes, de modo que agru­
pei essas reações protetoras sob o título de “emoções”. É um nome fraco,
porque a emoção anda malvista na sociedade moderna, e também porque
não indica os serviços prestados ao organismo pelo complexo de reações
que representa. Joseph Altman subdivide o que chamo de nível emocio­
nal da atividade mental em três classes:

1. A manutenção do nível de atividade geral do organismo. Esta é


parcialmente rítmica, como na alternação regular de sono e vigflia. Há
também a regulação dos períodos de relaxamento e de atenção que ocorre
o tempo todo durante o período vígil.
2. Os comportamentos que satisfazem as necessidades e os ape­
tites de um animal: por alimento, por sexo, e o exercício de cuidados
parentais.
3. As atividades geralmente sociais, que são as mais importantes
para os nossos fins, “responsáveis pela salvaguarda da integridade do in­
divíduo”. Abrangem a defesa (do próprio indivíduo, de seu território e de
sua família), a agressão e a formação de relações sociais. Seria difícil
exagerar a complexidade e a extensão dessa categoria, ou sua importân­
cia na vida cotidiana.

Assim, as emoções mantêm os animais vertebrados, inclusive os


seres humanos, alertas ou facilmente alertados, precavidos contra o
perigo, sensíveis à hostilidade ou à amizade e receptivos para as necessi­
dades corporais internas. É o mecanismo que a Natureza nos deu para nos
adaptarmos ao nosso mundo. Se pudéssemos abandoná-los voluntaria­
mente, não sobreviveríamos; nem pretender abandoná-los nos serve
muito melhor, como exemplificarei adiante.
A utilidade da hsta de Altman é dupla: não só assinala as maneiras
mais importantes, como as emoções e suas atividades servem às necessi­
dades reais dos vertebrados, mas o seu agrupamento indica também as
relações que existem entre estrutura c função. Pois o nível emocional da
função mental é conduzido por um grupo evolutivamente mais antigo
das estruturas cerebrais denominadas conjuntamente “palcocncéfalo”,
ou cérebro antigo, o qual funciona aproximadamente como uma unida­
de, junto com as glândulas endócrinas que controla. Embora não precise­
mos preocupar-nos com a enfadonha terminologia que encontramos nos
compêndios, o leitor deve compreender a riqueza de significado que está
inplídta na palavra “emoções”, e convém-lhe recordar a lição do rato: as
emoções, nos animais que são capazes de tê-las, são uma parte necessá­
ria da existência normal e da sobrevivência.
Um segundo nível de atividade mental, muitíssimo expandido
em nós mas pouco desenvolvido no rato, é conduzido pelo nível cog­
nitivo do cérebro. No tocante ao aspecto físico, está localizado num
grupo evolutivamente recente de estruturas cerebrais conhecidas con­
juntam ente como “neoencéfalo”, ou cérebro novo. Referimo-nos a
esse tipo predom inantem ente humano de atividade m ental apenas
como “razão”.
Possuímos emoção e razão, e as duas não estão bem integradas.
Isso já foi assinalado antes, do modo mais impressionante, talvez, pelo
filosófo Roderick Seidenberg, que reuniu muitas das observações ante­
riores sobre o assunto. A descrição por Seidenberg da diferença entre
emoção e razão, e da tensão que existe entre ambas, é clara e lúcida.
Como qualquer teoria abrangente e coesa da história, contém generaliza­
ções discutíveis, algumas das quais não aceito. Mas, para mim, a tese de
Seidenberg é menos importante do que o seu agudo senso do conflito que
existe entre emoção e razão, e da importância desse conflito para o nosso
futuro. Mais adiante, ainda neste capítulo, examinarei a complementari­
dade de emoção e razão, e a necessidade de uma reconciliação. Aqui, a
ênfase recai sobre o desacordo que existe, porque uma noção do que seja
esse desacordo é necessária antes de poder haver uma compreensão das
atuais relações humanísticas entre emoção e razão. Apresentarei o prin­
cipal argumento de Seidenberg em suas linhas gerais, e depois farei uma
breve digressão para mostrar a minha discordância.
Em seu desalentador livro Posthistoric Man, Seidenberg œmeça
por descrever a ascensão da parte racional dos seres humanos, um pro­
cesso que ele acredita ter ocorrido à custa da parte emocional (ele chama
a esta última “instintos”).

Uma tendência perceptível conduz a espécie humana de uma união pri­


mordial com a natureza, uma condição de harmonia instintiva com os pa­
drões estabelecidos e herdados de vida, para um programa cada vez mais
premeditado de ação, um recurso cada vez mais deliberado a procedimen­
to intencionais, racionalmente afirmados. Essa inclinação engloba o prin­
cípio básico de desenvolvimento do homem.

Além disso, como a “evolução” social e cultural pftdc suplantar a muito


mais lenta evolução biológico-genética (uma vez que o neoencéfalo se
desenvolvera), o ritmo da transição da emoção para a razão ficou livre
para tomar-se rápido e acelerar. Como seria de se esperar, há um conflito
entre o sistema novo e o antigo de nosso comportamento, os quais tiveram
pouco tempo para se ajustar mutuamente. Seidenberg cita o biólogo Julian
Huxley, que acreditava que o riso, um ato que é próprio do homem, é o
método normal e indispensável de fornecer descarga e, pelo menos,
solução temporária desse conflito interno. Mas o conflito entre “instinto”
e razão, segundo Seidenberg, não é igual:

O acaso está manirestamente presente em ambos os procedimentos, mas


diminui à medida que a ação sistemática e deliberada suplanta os movi­
mentos aleatórios de um procedimento casual só cœrdenado em virtude
do seu objetivo... a inteligência, evidenteraente, não é apenas a faculdade
superior por aiusa de seu ataque consciente ao problema, é que ela tam­
bém apresenta uma técnica inteiramente nova e diferente com que alcan­
çar seu propósito.

Essa técnica é a “organização”, a que Seidenberg chama “o andaime que


a inteligência ergue para sustentar a estrutura sodal”. Para Seidenberg, a
organização é a forma e estrutura racionalmente derivadas que impomos
aos nossos múltiplos processos vitais. Ela é evidente em todas as esferas
da vida: negócios, esportes, arte, agricultura, educação, transporte e
administração pública. É uma série de “relações formalmente definidas
e deliberadamente criadas [...], ditadas pela lógica essencial da inteligên­
cia”, um modo de “reunir e organizar os meios para alcançar os fins em
vista”. A organização “abomina o caos” e converte-se em ordem; é uma
“treliça em permanente expansão, ao longo da qual a civilização se
propaga e se desenvolve”. O modelo para a organização é a máquina, mas
esse é um modelo estático — a expansão dinâmica da organização é mais
bem descrita por uma analogia diferente, a inexorável propagação dos
cristais de gelo quando a água é progressivamente esfriada abaixo do
ponto de congelamento.

A inegável orientação de forças históricas para um status mais cristalizado


do homem, dentro de formas cada vez mais amplas e mais coercivas de
procedimentos organizados, dá testemunho da desigualdade dos elemen­
tos conflitantes e pressagia o domínio da inteligência sobre o instinto —
da técnica posterior sobre a anterior de ajuste c nos problemas de realiza­
ção e sobrevivência humanas.

Para Seidenberg, a própria história é um intervalo entre dois esta­


dos fixos: o período pré-histórico, quando os instintos dominavam e
quando a vida era aproximadamente a mesma dia após dia, mudando
apenas com as estações e outras variações ambientais externas, e o perío­
do pós-histórico, quando a vida terá passado a ser completamente orga­
nizada e fixada num padrão final, prescrito pelo ser humano. Somente o
período de conflito entre instinto e razão, um período que agora está ter­
minando, é caracterizado pelos tipos de mudanças a que chamamos his­
tória. Um por um, observa Seidenberg, abandonamos o animismo, a
astronomia geocêntrica, a fé numa vida futura, a crença no valor supre­
mo da pessoa e a crença em Deus, à medida que avançamos penosamen­
te para a sombria conclusão orwelliana:

O abandono dessas inestimáveis ilusões pode significar meramente uma


sucessão de estágios na estatura déclinante [do homem], antes de ele pró­
prio desaparecer de cena — perdido na fixidez gélida de seu estado final
na idade pós-histórica.

A análise de Seidenberg é profunda, mas sua profecia não se con­


cretizará. Seus erros são simples: ele subestima a utilidade, a durabilida­
de, a necessidade de emoção ou “instinto”, ao mesmo tempo que ignora
as fraquezas da razão e as limitações da organização. Como acontece
sempre que esses equívocos são cometidos, Seidenberg deixou o meio
ambiente inteiramente fora de seus cálculos e distorceu o restante. Esses
erros são comuns e ocorrem geralmente em associação uns com os ou­
tros. Por estranho que pareça, encontramo-los tanto entre os campeões
da razão quanto entre aqueles que têm suas dúvidas. Seidenberg está en­
tre os últimos, mas acho que ele se assustou com excessiva facilidade.
Sejam quais forem as coisas maléficas que possam vir a acontecer-nos,
uma delas não será o frio glacial de uma idade do gelo pós-histórica; nem
a razão e sua filha, a organização, trabalharão sufidentemente bem para
nos levar a esse destino específico, nem a emoção — tanto em suas ma­
nifestações benéficas quanto nas perniciosas — desaparecerá tão sub­
missamente de cena.
O que cegou Seidenberg foi a agora familiar arrogância dos pres­
supostos humanistiœs. Se esses pressupostos fossem ajrretos, acredito
que Seidenberg também estaria certo, porque não posso descortinar ou­
tras lacunas importantes em sua análise. Mas ele publicou seu livro em
1950, o ano da morte de Orwell, quando a confiança do pós-guerra na in­
venção humana já estava florescendo, e antes que as conseqüências e
inadequações dessa invenção, apenas percebidas por um punhado de
pessoas de grande discernimento, passassem a ser óbvias a qualquer um.
Um quarto de século mais tarde, a organização ainda está se ex­
pandindo e cristalizando cm muitíis frentes, porém em outras já está de-
sintcgrando-sc c transformando-se cm ritual, enquanto estilos de vida ou
fragmentos de estilos de vida independentes proliferam nas fendas de
sua estrutura. Nada há de obscuro ou misterioso nessa desintegração: à
medida que a organização se expande, toma-se fortemente interligada e
terrivelmente complexa. Pouco tempo depois, o processo de controle
central, o qual (como vimos no capítulo anterior) enfrenta progressiva-
mente o agravamento dos problemas de condução de todas as fases da
vida no mundo real, não tarda a encontrar um novo problema com que se
preocupar: a tarefa impossível de haver-se com a própria estrutura orga­
nizacional. Inevitavelmente, as rédeas do comando começam a fugir,
criam-se bolsas isoladas no seio da estrutura, depois fragmentos disso­
ciados. Fazem-se esforços para remendar a estrutura; poderão agüentar
por algum tempo, mas a estrutura é agora maior e mais fraca, e aconteci­
mentos inesperados se dão com freqüência crescente. Cada novo remen­
do é acolhido com aplausos e autofeUcitações; não obstante, cresce o
sentimento de que, razão ou não razão, a situação está inteiramente fora
de controle. Nessa fase, a emoção é responsabilizada com freqüência pe­
las dificuldades mas, se a razão fosse realmente capaz de conduzir qual­
quer coisa tão difícil quanto a vida no planeta Terra, também poderia
administrar a emoção.
Até mesmo as ditaduras, o ponto extremo em organização social
em escala grandiosa, não parecem ser agora mais duradouras e estáveis
do que jamais foram no passado. A organização não as mantém mais
coesas do que de costume. Quem teria adivinhado, em 1950, como se­
riam os governos de Portugal e da Espanha, depois que Salazar e Franco
desaparecessem? Ao ingressarmos no último quartel do século, o nosso
equivalente organizacional dos ditadores é a empresa multinacional.
Contudo, essa forma de organização também está destinada a desabar
por seu próprio peso, quando os subsídios secretos que mantêm essas es­
truturas a despeito dos problemas residuais que se acumulam acabarem
por tornar-se insuportáveis para o público. Atingimos o ponto de interse­
ção, o ponto em que as deficiências em nosso controle racional de nós
próprios e do nosso meio ambiente já não podem ser ignoradas nem dis­
simuladas, o ponto em que o mundo real se impõe ao mundo da fantasia
e, uma por uma, elimina as nossas ilusões e falsas crenças.
Jamais compensa esquecer, mesmo que por um inslante, a nature­
za interativa da evolução. Apesar de toda a sua inllexibilidade, inellciên-
cia e natureza manifestamente rudimentar, o nosso sistema emocional
desenvolveu-se sob condições muito prolongadas de constante teste em
situações da vida real. Não se pode dizer o mesmo da razão, que desde o
começo da era humanística avançou depressa demais para ser testada e
mais tarde fez dessa circunstância infeliz um motivo de alarde e uma vir­
tude. Nunca fomos capazes de dar uma parada para verificar se as nossas
invenções e métodos racionais de controle sobreviveriam ao teste do uso
a longo prazo no mundo real. Seidenberg supôs erroneamente não só que
o neoencéfalo poderia, de algum modo, manipular por si mesmo o pro­
cesso de vida, mas que, a partir do instante em que o fizesse, o paleoen-
céfalo e todo o sistema emocional ou instintivo, os quais evoluíram em
todos os níveis da nossa existência ao longo de muitos milhões de anos
de experiências por tentativa-e-erro, simplesmente desapareceriam. É
característico do humanismo contemporâneo considerar a biologia, o
nosso próprio formato e substância, uma coisa inteiramente mutável e
eliminável, mera convenção. Apesar de qualquer prova em contrário, essa
concepção prevalece agora.
A dicotom ia entre emoção e razão (uma das raras dicotomias
verdadeiras na Natureza) tem sido uma fonte de debates desde muito
antes de se iniciar a Idade do Humanismo. Mumford assinala em A ci­
dade na história que Platão fez dois esforços para inventar cidades
ideais, construídas racionalmente, produtos exclusivos da razão e do
planejamento, ao passo que Aristófanes, com seriedade cômica, zom­
bou do astrônomo Mêton, cuja planta para uma cidade começava com
um quadrado inscrito num círculo. Mas isso foi muitos séculos antes
de a ciência e a tecnologia promoverem a ascensão da razão e nos da­
rem 0 pressuposto fundamental do humanismo moderno: “Todos os
problemas são solúveis”. Agora, a disputa pública entre razão e emo­
ção tornou-se unilateral a emoção é cada vez mais exposta ao des­
dém e ao ridículo. É uma parte tão integrante de nossas vidas essa
atitude universal da sociedade industrial que a aceitamos como algo
axiomático e não a vemos pelo que realmente é. Num debate ou reu­
nião, a acusação “Você está sendo emocional” pode ser um estratage­
ma útil, suscetível de colocar um adversário numa posição frágil,
defensiva. E a resposta a essa, acusação é, com freqüência, um des­
mentido, acompanhado de alguma espécie de prova de racionalidade.
Típico da posição contemporânea adotada pelos líderes do huma­
nismo racional é um artigo intitulado “As metas da Ciência”, de Salva­
dor Luria, o biólogo vencedor do prêmio Nobel. Após rechaçar como
“místicas” muitas das críticas aos estudos de recombinação genética,
embora admitindo que a ciência e os cientistas causaram muitos proble­
mas no mundo moderno, Luria oferece a sua solução. Começa com a
exortação clássica para aprender mais, sobretudo em apoio ao tipo de
pesquisa que Luria realiza.

Para enfrentar as tensões e pressões que a nossa própria espécie conhe­


cerá no próximo par de séculos, e para criar um mundo adequado para os
novos bilhões de seres humanos que nele viverão, teremos que compreen­
der o mais precisamente possível todas as interações no interior das células
do nosso próprio corpo.

Como muitos cientistas, Luria não é avesso ao uso de suposições não-pro-


vadas e possivelmente falsas, desde que não sejam diretamene mencio­
nadas. Há pelo menos três nessa frase transcrita. Em primeiro lugar, a
suposição de que podem os criar um m undo adequado para que nele vivam
as futuras gerações — uma estranha presunção, considerando-se que
recebemos um mundo que estava perfeitamente adequado à vida humana
muitas vezes belo, embora desagradável e cruel com freqüência e o
transformamos num mundo que, por critérios racionais ou emocionais, é
impróprio para nele se viver (opulento para alguns, desumano, tenso e
carente de paz para quase todos, e oferecendo múltiplas ameaças de vasta
e terrível destruição). Em segundo lugar, há a suposição de que podemos
atingir certo grau de precisão em nosso entendimento de “todas as
interações no interior das células do nosso próprio corpo”. E, terceiro, a
enigmática suposição de que esse improvável entendimento tomaria o
mundo adequado para se viver nele.
Nesse ponto, Luria, cujo interesse humano eu não nego, passa a
denegrir a cooperação de cientistas e estudiosos na guerra do Vietnã, e a
fornecer a sua própria resolução do problema:

Num nível mais fundamental, o que se faz necessário para restabelecer a


confiança pública nos empreendimentos da ciência e empreendimento intelec­
tual em geral é os intelectuais, inclusive os cientistas, exercerem uma liderança
ativa na restauração da racionalidade em nossa sociedade democrática...
Se nós, cientistas, nos recusássemos a aderir às iniciativas da injustiça,
se negássemos o nosso know-how para os empreendimentos desumani-
zantes da sociedade, se insistíssemos para que a racionalidade do nosso
trabalho se conjugue com a racionalidade no uso dado aos produtos do
nosso trabalho, então poderíamos afirmar de novo ser os construfores de
uma catedral, aberta a todos para culto c assombro.

Que patético! Os dois principais pressupostos formulados nesse trecho sãc5


tão patentemente falsos que é caso para se perguntar como uma pessoa
racional pode tê-los aceito. O mais importante dos dois é que a razão pura
bastará para distinguir o humano e o justo do desumano e do injusto. Mas
isso é exatamente o que a razão não pode fazer: cálculos racionais poderiam,
por exemplo, dizer-nos que, como iniciadores de uma guerra nuclear, “ven­
ceríamos” se 0 primeiro ataque fosse sufídentemente maciço, e que certa
percentagem da população do nosso país sobreviveria incólume, porém
como poderia a razão, por si só, ditar a conclusão de que iniciar uma guerra
nuclear é errado? Não existe cálculo para o justo e o injusto.
O outro pressuposto é que — supondo-se que a razão possa indicar
o caminho da justiça — os cientistas e o resto da humanidade poderiam
ser induzidos a enveredar por esse caminho. A finalidade deste capítulo
é mostrar o valor da emoção temperada pela razão; não tenho ilusões de
que a emoção, por si só, conduza necessariamente na direção correta. O
perigo é enorme quando aqueles que estão mais capacitados para usar o
poder conferido pela razão negam ou ignoram que suas motivações e
ações ainda são primordialmente influenciadas por emoções. Em 1939,
quando os cientistas se aperceberam dos riscos para a humanidade ine­
rentes às pesquisas atômicas, o grande físico nuclear Leo Szilard enviou
cartas aos seus colegas instando com eles para que se impusessem uma
censura e grande controle em suas experiências com reações em cadeia.
Esse pedido foi inicialmente ignorado e depois rejeitado pela equipe de
pesquisadores franceses chefiada por Frédéric JoHot-Curie, que viria a
ser o primeiro a produzir e descrever tal reação. Segundo o relato de Ro-
bert Jungk em Brighter Than a Thousand Suns [Mais brilhante do que
mil sóis], um dos membros da equipe francesa explicou uma das princi­
pais razões para a publicação dos resultados:

Sabíamos de antemão que a nossa descoberta seria saudada pela impren­


sa como uma vitória para a investigação científica francesa e, naqueles dias,
necessitávamos de publicidade a qualquer custo, se quiséssemos obter um
apoio mais generoso do governo para o nosso futuro trabalho.

Eis uma declaração racional, sensata, ocultando uma feia emoção—


ambição desenfreada. Devem as lições aprendidas por Szilard ser rea­
prendidas por cada geração? Nun.ca o dr. Luria se perguntou por que a
“racionalidade” o conduziu por um caminho tão refinado e decente,
enquanto muitos de seus colegas igualmente talentosos, alguns em sua
própria instituição, descobriram que a razão os impelia numa direção
inegavelmente mais perversa?
Assim, como examinarei mais adiante, ainda neste capítulo, o nos­
so real problema ocorre quando a emoção (tanto a construtiva quanto a
destrutiva) é negada e, portanto, nunca é sujeita à seleção que a análise
racional pode proporcionar e, inversamente, quando as melhores partes,
selecionadas, da emoção não estão disponíveis para ajudar-nos a esco­
lher qual das muitas alternativas racionais é a correta.
Ao concentrarmo-nos numa parte da natureza humana, a razão, à
custa da outra, estamos fazendo a nós próprios um desserviço. É como
dizermos que a verdadeira saúde poderá ser alcançada se nos tornarmos
aleijados voluntários. Nem chega a ser estranho, penso eu, que essa es­
pécie de advocacia, a qual é bastante comum nos dias atuais, tenha o ine­
vitável efeito de sancionar os negócios como de costume na lógica
humanístiea e no culto do poder. Pois, quando a poeira assenta, a “lógi­
ca” parece sempre sugerir uma continuação de qualquer linha produtiva
de investigação, independentemente das conseqüências. Não é por coin­
cidência que a palavra “racionalização” deriva de “racional”. Uma pes­
soa esperta pode usar a razüo para apoiar qualquer curso de ação que lhe
agrade; são necessários sentimentos decentes para escolher o curso certo.
A defesa da lógica à custa da emoção pode ser levada a extremos
absurdos e perversos. Começando pelos absurdos, temos como exemplo
óbvio os muitos milhares de esforços acadêmicos para quantificar e tor­
nar “científico” o que já é intuitivamente óbvio a quem disponha de um
paleoencéfalo funcional, de um tantinho de experiência humana comum
e capacidade racional o bastante para juntar as duas coisas. Esse tipo de
coisa constitui uma porção crescente do que se passa nas “ciências so­
ciais”, com a psicologia social e a sociologia mostrando o caminho. Por
exemplo, no momento em que escrevo estas linhas, o conceito de “espa­
ço pessoal” é um tema em moda para estudo: refere-se à distância física
mantida entre pessoas envolvidas em vários tipos de atividade. Num ar­
tigo de Erich Sundstrom e Irwin Altman publicado na revista Human
Ecology, esse tema do espaço pessoal é reexaminado e um “modelo” de
“comportamento interpessoal” é sugerido. O modelo, afirmam os auto­
res, baseia-se em três pressupostos:

1. A s pessoas procuram um alcance ótimo de distâncias intepessoais para


cada situação; 2. Quando a distância interpessoal está fora do alcance óti­
mo (perto demais ou longe demais), resulta o desconforto, o constrangi­
mento, juntamente com reações compensatórias destinadas a conseguir
um grau apropriado de proximidade; e 3. A zona de dislüncia confortável
e as reações à sua violação dependem da situação interpessoal, bem como
de outros fatores que afetam o espaço pessoal.

Embora isso se assemelhe a uma paródia das páginas de P.G. Wodehousc,


continuemos levando a coisa a sério. Os autores tiveram o cuidado de
assinalar, indiretamente, que nas fronteiras da ciência as medições nem
sempre são exatas:

Este modelo não específica distâncias interpessoais em pés ou centíme­


tros, por duas razões. Em primeiro lugar, a grande maioria das conclusões
de pesquisas subjacentes ao modelo derivam de métodos de laboratório ou
de simulação, os quais podem não se generalizar [síc] aos ambientes
naturais. Com base no estado atual das provas de pesquisas, consideramos
prematuro, portanto, especificar distâncias exatas.

E no que consiste o modelo? É um gráfico, cujo eixo vertical vai de


“Desconforto” a “Conforto”, e cujo eixo horizontal, rotulado de “Distân­
cia Interpessoal”, se estende de “perto” a “longe”, passando por “inter­
mediária”. As suas linhas (para amigos ou estranhos em interação) servem
de veículo para as seguintes conclusões principais: “as provas empíricas
atuais indicam que amigos ou pessoas que se gostam mutuamente
preferem distâncias próximas mas, sob algumas condições, a grande
proximidade é importuna e constrangedora, especialmente para estra­
nhos”. Em ambos os casos, as linhas no gráfico sobem, estabiHzam-se e
depois caem, indicando que mesmo amigos não gostam de ficar perto
demais uns dos outros, e mesmo estranhos que estão fazendo negócios
não gostam de ficar afastados demais entre si. (É claro, a dança e as
relações sexuais, para as quais a distância interpessoal é zero, não estão
usualmente associadas a mal-estar; presume-se que, nesses casos, a
pessoa passa para um modelo diferente.)
Cumpre assinalar que o modelo Sudstrom-Altman baseia-se em
mais de uma centena de relatos de pesquisa de vários autores. Títulos tí­
picos desses estudos são: “Reações compensatórias ao imediatismo es­
p ac ia l”, “ O relacionam ento de sexo e conjunto instrutivo para a
regulação da distância de interação interpessoal no análogo de aconse­
lhamento” e “Efeitos da aglomeração sobre o comportamento espacial
de residentes em dormitórios.”
Isso, portanto, é o que pode acontecer quando a ni/ão e seu seivo,
o método científico (ou, pelo menos, a terminologia científica), são for­
çados a operar em situações inadequadas. Como um homem gordt) de
smoking que cai numa piscina, o resultado é muitas vezes divertido.
Mas as principais conclusões são óbvias e não necessitam que entre­
mos em mais pormenores. Dois pensamentos subsidiários sugeridos
por esse exemplo e outros semelhantes também me interessam. Em
primeiro lugar, numa linha de investigação racional cujas conclusões
são insignificantes atribui-se com freqüência um grande valor a con­
clusões que são “contra-intuitivas”. Acredita-se que tais conclusões
justificam a abordagem não-emociaonal — a fim de mostrar-nos que
o que sentimos ser o certo está errado. É notável até que ponto algu­
mas pessoas restringirão o contexto e torturarão a lógica para chegar
a uma conclusão contra-intuitiva.
Em segundo lugar, temos o uso da palavra “modelo”. Não entendo
inteiramente a súbita e enorme popularidade dessa palavra em campos
tão díspares quanto o comportamento, a ciência política, a ecologia, a
bioquímica e a medicina. Quase desalojou os termos mais antigos “hipó­
tese” e “mecanismo possível”. Mas posso entender que a idéia de um
modelo seduza a mente humanista: ele sugere abstração e controle de um
vasto e complexo assunto por meio de um mecanismo menor, facilmente
manipulado e totalmente inventado. O termo também parece dissociar o
autor de cumplicidade no modelo, na provável eventualidade de que este
fracasse; “modelo” não comporta, de algum modo, o sentido de envolvi­
mento e responsabilidade humanos que está implícito no termo parcial­
mente sinônimo “hipótese”.
Pondo de lado a tentação de analisar outra obra desse gênero, como a
pesquisa sociológica canadense sobre o que consütui a parte mais aprazível
de uma pescaria, passamos para o terreno intermediário entre o absurdo e o
nocivo. Vamos encontrar aqui um esforço muito mais refinado, talvez o es­
forço final para introduzir a lógica e a razão em áreas onde elas não podem
penetrar. O seu nome é “Inteligência Artificial”, e envolve o uso de compu­
tadores a fim de tentar reproduzir ou suplantar por meio de programas lógi­
cos muitas funções da inteligência humana normal.
O filósofo Hubert Dreyfus escreveu uma excelente crítica da Inte­
ligência Artificial; seu livro intitula-se What Computers Can't Do [O
que os computadores não podem fazerj e pode servir-nos brevemente de
guia para esse campo muito técnico. No âmbito da Inteligência Artificial
existem várias categorias de atividade específica, incluindo tradução de
idiomas, solução de problemas, jogos e identificação de padrões. Em
cada uma dessas áreas, as quais foram pré-selecionadas para prestar-se à
análise lógica, houve um padrão semelhante de êxito inicial e fracasso
subseqüente, segundo Dreyfus:
Um espetacular sucesso inicial, baseado no desempenho fácil de .arefas
simples, ou trabalho de baixa qualidade em tarefas a)mplexas, e depois
rendimentos decrescentes, desencanto e, em alguns casos, pessimismo
[...] O fracasso em produzir é medido exclusivamente aintra as expeclali-
vas dos que trabalham nesse campo.

Comentando a respeito das expectativas otimistas características e pre­


tensões exageradas da Inteligência Artificial, Dreyfus diz que “[essas]
previsões enquadram-se como mais um exemplo do fenômeno que Bar-
Hillel denominou a ‘falácia do primeiro passo bem-sucedido’”. No cíuso
da tradução de idiomas, por exemplo, ele assinala que, após certos êxitos
incipientes, não se registrou mais nenhum progresso real, nem se espera
que ocorra algum.

Para se traduzir uma língua natural, necessita-se de algo mais do que um


dicionário mecânico — por mais completo que seja — e leis gramaticais
— por mais requintadas que possam ser. A ordem das palavras numa frase
não fornece informações suficientes para permitir a uma máquina deter­
minar qual das muitas análises possíveis é a apropriada, nem as palavras
circundantes •— o contexto escrito — indicam sempre qual de muitos sig­
nificados possíveis é aquele que o autor tinha em mente.

Depois de analisar minuciosamente esses fracassos, Dreyfus con­


clui que o estranho otimismo dos trabalhadores no campo da Inteligência
Artificial baseia-se em sua convicção de que “o processamento humano
e mecânico de informações envolve, basicamente, os mesmos processos
elementares”. Essa convicção depende, por sua vez, de quatro pressu­
postos — pressupostos que a esta altura já nos são bem familiares. Em
primeiro lugar, temos o pressuposto biológico de que o cérebro, com to­
das as suas células nervosas, funciona como um computador, por meio
de interruptores do tipo “ligado/desligado”. Em segundo lugar, há o
pressuposto psicológico de que “a mente pode ser vista como um dispo­
sitivo que opera com base em bits de informação de acordo com regras
formais”. Em terceiro lugar, temos o “pressuposto epistemológico de
que todo conhecimento pode ser formalizado, ou seja, que tudo o que
pode ser compreendido pode ser expresso em termos de relações lógi­
cas”. E, em quarto lugar, o pressuposto ontológico, que vem se desen-
volvndo desde o tempo de Platão, diz que todos os fatos importantes
acerca do mundo podem ser separados, armazenados e usados inde­
pendentemente de seu contexto original, que não estão “vinculados à si­
tuação” (situation free) e são “ logicam ente independentes”. Seria
desnecessário acrescentar que não existe nenhuma boa razão para for­
mular tais pressupostos; com base nos conhecimentos existentes, há
mais do que uma excelente probabilidade de que todos eles sejam falsos.
As conseqüências de se postular o pressuposto ontológico são um
exemplo. O forte dos computadores sempre foi sua capacidade para ar­
mazenar e manipular milhões de fatos isolados. Começamos agora a per­
ceber que, como no caso da definição do cavalo fornecida pelo estudante
Bitzer de Gradgrind, a soma dos fatos não contribui realmente para apre­
sentar um cavalo. Longe de fornecerem todas as respostas, os fatos ape­
nas constituem “uma enorm e quantidade de dados n eu tro s” ; os
trabalhadores em Inteligência Artificial estão soçobrando num mar de
desencarnados bits de informação. Os seus esforços fazem-me lembrar
pouco mais do que uma tentativa de deduzir a arquitetura de um edi­
fício demolido a partir dos tijolos numa pilha de entulho, ou de re­
constituir A tempestade a partir de uma lista alfabética das palavras
que a obra contém.
Num dos seus parágrafos finais, Dreyfus afirma:

Durante os últimos dois mil anos, a importância da objetividade; a


convicção de que as ações são regidas por valores fixos; a noção de que as
aptidões podem ser formalizadas; e, em geral, que se pode ter uma teoria
da atividade prática, exerceram pouco a pouco sua influência na psicologia
e na ciência social. A s pessoas começaram a pensar-se como objetos
capazes de encaixar-se nos cálculos inflexíveis de máquinas desencarna­
das: máquinas para as quais a forma-de-vida humana deve ser analisada
como uma lista de fatos desprovi da de significado, em vezde ser vista como
a flexível base pré-racional da racionalidade. O nosso risco não é o advento
de computadores superinteligentes, mas de seres humanos subinteligentes.

Em meu entender, e talvez Dreyfus concordasse, existe em nossa mente


mais do que lógica formal e razão. Não sei se a sua “flexível base
pré-racional da racionalidade” corresponde fielmente à minha visão da
emoção humana. Mas, independentemente de suas demais contribuições,
creio que o livro de Dreyfus prestou-nos um grande serviço, ao revelar
mais um dos limites da razão, e ao mostrar que a razão, por si só, não nos
admite nos níveis supremos da atividade humana.
Os exemplos de estiramento da razão fornecidos até agora, o espa­
ço pessoal e a Intehgênda Artificial, são em si mesmos razoavelmente
inócuos, embora os padrões de pensamento que eles representam tenham
causado considerável dano a todos nós. É possível, entretanto, tirar pro­
veito da natureza amoral da razão pura e desvirtuá-la para fins maléficos.
Isso é uma coisa muito diferente. O exemplo mais notório é o desvio do
diagnóstico psiquiátrico para fins políticos na Uniáo Soviética. DLs' iden-
tes de todas as espécies — religiosos, políticos e sociais — eram pa.ssí-
veis de ser declarados loucos por psiquiatras a serviço do Estado,
aproximadamente cinqüenta dos quais eram especialistas nesse u.so abu­
sivo da medicina. Para um Estado monolítico, isso oferecia vantíigens
em relação aos procedimentos penais regulares: não era necessário ins­
taurar um processo judicial, o acusado perdia automaticamente tcxlos os
seus direitos, o encarceramento era por prazo indefinido, os amigos e
companheiros do dissidente eram intimidados, e a sua causa era desacre­
ditada como uma aberração mental.
O elemento crítico nessa mais recente modalidade de uma extensa
lista de torturas é a razão, a qual constitui em si mesma o elemento críti­
co em toda a teoria comunista. Com efeito, o comunismo é, em seu âma­
go, intensamente humanístico, pois contém a idéia central de que o
planejamento racional pode alterar qualquer condição preexistente do
homem. Quando uma nação vive com esse tipo de absurdo por meio sé­
culo, é mais do que natural que seus Kderes adquiram uma abordagem
utilitária e dissociada da razão. Quem a usa desse modo tira proveito do
fato de que a razão dissociada de seu contexto humano total não possui
uma moralidade intrínseca; não difere, nesse aspecto, do diagrama es­
quemático de ligações num aparelho de rádio ou numa mesa telefônica.
A doença torna-se, portanto, uma simples questão de definição formal,
uma definição escrita por certos médicos designados para tal missão. E,
na medida em que a doença é apenas uma questão de definição, é retira­
da do contexto humano e torna-se uma abstração relacionada apenas
com as necessidades de seus definidores.
Num artigo intitulado “Your disease is dissent!” [A sua doença
chama-se dissidência!], Sidney Bloch e Peter Reddaway descreveram a
alteração soviética do diagnóstico psiquiátrico de esquizofrenia. Sob a li­
derança do professor Andrei Snezhnevsky, a chave para esse novo con­
junto de critérios diagnósticos é a eliminação de sintomas tradicionais
como um guia para a doença mental. A prova de dissidência constitui,
por definição, prova de doença e, assim, um novo tipo de esquizofrenia
adquiriu existência: a variante “lenta” da “forma contínua”.

Esse padrão é perfeilamente exemplificado no caso da ilustre dissidente


Natalya Gorbanevskaya, que tinha sofrido de uma depres.são branda quan­
do estudante. Em seu julgamento, onze anos depois, o profcs.sor I .unLs, uma
figura-chave por sua direção da seção especial para polftiœ s no Instituto
Serbsky, sustentou que o seu diagnóstico de esquizofrenia lenta estava
inteiramente justificado. Embora a condição “não apresentasse sintomas
claros”, e embora ela exibisse mudanças mentais que superficialmente se
assemelhavam a uma melhora, Gorbanevskaya não podia ser considerada
normal “do ponto de vista teórico”.

Logicamente, o Professor Lunts estava certo, sem dúvida. É significativo,


quando se pensa sobre a natureza e os usos da razão dissociada, que a lista
das variedades de esquizofrenia apresentada por Snezhnevsky tenha sido
classificada como “esquematização endoidada” (schematimtion-gonemad).
Ocorre-me uma outra observação a respeito dos hospitais psiquiá­
tricos soviéticos. Os dissidentes formavam um bravo e ardoso grupo de
pessoas, e não posso deixar de imaginar se elas não terão sido punidas
pelos donos da razão em virtude da característica poderosa e imperecível
de suas emoções, por manifestarem o que era outrora reconhecido como
o espírito humano — um nobre espírito sem a arrogância que hoje tão
freqüentemente o contamina.
Existirão paralelos desse abuso nos Estados Unidos? A resposta é
sim, embora estejam longe de ser tão implacáveis e deliberadamente per­
versos. Um deles já foi analisado antes: é impossível mencionar a “es­
quizofrenia lenta” sem recordar a disfunção cerebral mínima e seus 99
“sintonas”. Também aqui temos o caso de uma doença definida para se
ajustar às necessidades dos seus inventores.
Até este ponto, excetuando-se uma breve discussão de ratos, estive in­
teressado, sobretudo, pwla inadequação da razão per se, e com a persistência
da emoção apesar dos esforços para eliminá-la. E quanto ao lado positivo, a
utilidade da emoção? Há uma tendência para acreditar que, enquanto a emo­
ção foi útil em tempos mais simples e mais primitivos, é desprovida de valor
quando comparada com as complexidades da vida moderna, organizada e
tecnológica. Isso seria correto se esperássemos que a emoção agisse em ter­
mos organizacionais, mas não é isso o que devemos desejar. A emoção tem
de interagir com a razão em seus próprios termos: os termos de contextos ir­
restritos, amplas visões integradas e uma ênfase mais sobre a realidade glo­
bal do que sobre métodos, objetivos a curto prazo, detalhes técnicos e metas
engendradas para sistemas fechados que não existem. Quando empregada
desse modo, a emoção é uma parte essencial da moderna tomada de deci­
sões, inseparável da razão porque fornece o que a razão não possui. Dispen­
sar a emoção por não ser racional, é como rejeitarmos os pulmões porque
não formulam pensamentos.
O melhor exemplo do valor da emoção na vida contemporânea diz
respeito à discussão em tomo da segurança dos reatores nucleares. Em
1975, a Comissão Americana de Regulação de Energia Nuclear divulgou
um relatório intitulado “Estudo de segurança de reatores: Uma avaliação
dos riscos de acidente em usinas comerciais de energia nuclear nos lista­
dos Unidos”, popularmente conhecido como o Relatório Rasmussen, em
homenagem ao professor que dirigiu a numerosa equipe cicntífiai que o
compilou. A finalidade do estudo era identificar todos os tipos importan­
tes de acidentes que poderiam ocorrer nas usinas de energia nuclear c cm
suas vizinhanças, e avaliar as prováveis conseqüências desses acidentes.
A técnica usada “para definir as trajetórias potenciais de acidentes c sua
probabilidade de ocorrência” originou-se no Departamento de Defesa
dos Estados Unidos e na National Aeronautics and Space Administration
(NASA). Baseia-se em métodos lógicos conhecidos como “árvores de
ocorrências” e “árvores de erros” (“árvores” refere-se ao padrão de rami­
ficações de possibilidades alternativas, tal como se apresentam no estu­
do), as quais são descritas da seguinte maneira:

Uma árvore de ocorrências define um defeito inicial no interior da usina.


Examina depois o curso de ocorrências que se seguem, na medida em que
são determinados peia operação ou a pane de vários sistemas que são
fornecidos para impedir a fusão do núcleo e a descarga de radiotividade no
meio ambiente. Árvores de ocorrências foram usadas nesse estudo para
definir milhares de potenciais percursos de acidentes que foram examina­
dos para determinar a probabilidade de sua ocorrência e o montante de
radiotividade que poderia ter sido liberado.

A s árvores de erros foram usadas para determinar as probabilidades de


pane dos vários sistemas identificados nos percursos de acidente da árvore
de ocorrências. Uma árvore de erros começa com a definição de uma ocor­
rência indesejada, como a pane operacional de um sistema, e depois deter­
mina, usando a lógica mecânica e matemática, os modos como o sistema
pode falhar. Usando dados que cobrem 1) a pane de componentes como
bombas, tubulações e válvulas, 2) a probabilidade de erros do operador, e
3) a probabilidade de erros na manutenção, é possível avaliar a prob-
abiiidade de pane no sistema, mesmo onde não existam dados sobre pane
no sistema total.

Usando essas técnicas, a conclusão mais importante do Relatório Ras­


mussen é que “os riscos para o público decorrentes de acidentes potenciais
em usinas de energia nuclear são relativamente pequenos”.

Se considerarmos um grupo de cem usinas semelhantes, então a chance


de um acidente causar dez ou mais perdas de vidas é de uma em trinta mil
por ano. Para acidentes que envolvam mil ou mais mortes, o número é de
um em um milhão por ano. É interessante observar que esse valor atincide
com a probabilidade de que um meteoro atinja um centro populacional nos
Estados Unidos e cause mil perdas de vida.

Tudo isso seria muito tranquilizador, se pudesse merecer crédito. Mas


como confiar numa avaliação de risco de acidente que se baseia inteira­
mente em técnicas lógicas, na razão pura?
Em 22 de março de 1975, provavelmente enquanto a equipe de
Rasmussen estava dando os retoques finais em seu célebre relatório, os
dois reatores nucleares da usina de Browns Ferry, Alabama, viram-se
submetidos üe repente aos procedimentos de paralisação de emergênda
em virtude de um incêndio nas paredes da sala de distribuição dos cabos
elétricos (o recinto onde os cabos de controle do reator convergem todos,
em seu trajeto para e da sala de controle), justamente por baixo da sala de
comando central para os dois reatores. O fogo tinha começado quando
um eletricista acendeu uma vela para checar escapamentos de ar; a cha­
ma inflamou o isolamento térmico de espuma de poliestireno que re­
cheava as paredes. Esse acidente foi descrito minuciosamente por David
Dinsmore Comey num artigo intitulado “The Incident at Browns Ferry”.
Os seguintes excertos desse artigo fornecem um quadro muito claro do
que aconteceu. As citações são do relatório preliminar sobre o acidente
para a Comissão de Regulação de Energia Nuclear (NRC):

“D passou-me a sua lanterna elétrica, com a qual tentei apagar o fogo.


Isso não funcionou, tentei então abafar o fogo enfiando trapos rio orifício
de aeração. Também não deu resultado, retirei os trapos. Alguém me
passou um extintor de C 02 e despejei toda a carga diretamente através do
orifício mas sem conseguir extinguir o fogo, que tinha voltado a pegar na
parede do anteparo térmico. Usei então um extintor de pó químico seco,
depois outro, e nenhum deles dominou as chamas.”[...j
A confusão sobre o número correto do telefone para avisar o serviço de
alarme de incêndio fez com que ele tardasse a soar...
“As luzes de sinalização no painel de controle piscavam à toa, ora brilhantes,
ora mortiças, até apagar de vez; ocorreram numerosos alarmes; e a fumaça saía
de baixo do painel 9-3, que é o painel de controle para o sistema de emergência
de esfriamento do núcleo (ECCS). O operador desligou o equipamento que
decidiu não ser necessário, para em seguida recolocá-lo em operação.” [...]
A partir das 12:55h, o fornecimento elétrico estava perdido para contro­
lar e alimentar o sistema de emergência de esfriamento do núcleo, e o
equipamento paralisado do outro reator na Unidade 1. O sistema normal
de abastecimento de água estava perdido; o ECCS de alta pressão estava
perdido; o sistema de vaporização do núcleo do reator estava perdido; o
ECCS de baixa pressão estava perdido; o sistema de refrigeração do
isolamento do núcleo do reator estava perdido; e a maior parte da instru­
mentação que informa à sala de comando o que 6 que está aamtcccndo no
reator estava perdida...
Nenhuma das bombas de baixa pressão, tanto as normais cxinio as de
emergência, estava funcionando [...], de modo que foi feito um arranjo
substituto usando uma bomba reforçadora de vapor condensado...
O sistema de proteção do reator e a instrumentação nuclear dc ambos os
reatores tinham-se perdido pouco depois que ocorreu a sua paralisação. A
maioria dos indicadores do nível de água do reator não estava funcionando.
O sistema indicador da posição das barras de controle deixara de operar.
O computador do processo da Unidade 1 foi perdido à l;21h da tarde...
Para aumentar ainda mais a confusão, o sistema telefônico PAX falhou
à l:57h da tarde, impossibilitando por algumas horas as chamadas da sala
de comando.
...um engenheiro do tumo tinha tentado ligar o sistema integrado Cardox
a fim de inundar a sala [de distribuição] com gás carbônico (C 0 2 ) e apagar
o incêndio. Ele descobriu que os eletricistas haviam imobilizado delibera-
damente o circuito elétrico que punha em operação o Cardox. [...] Conse­
guiu finalmente energia para fazer funcionar o Cardox, mas o sistema
acabou jogando fumaça para dentro da sala de comando...
“A sala de comando estava enchendo-se de uma densa fumaça e gases.
O engenheiro de tumo e outros estavam sufocados e tossindo. [...] Era óbvio
que a sala de comando tinha que ser rapidamente evacuada, a menos que
algum meio de ventilação fosse providenciado.”
Depois que o sistema de gás carbônico foi desligado, a fumaça parou de
entrar na sala de comando. Mas o incêndio ainda não fora extinto na sala
de distribuição...
Os cabos elétricos continuaram ardendo por mais seis horas, porque o
combate ao fogo foi realizado por empregados da usina, apesar do fato de
bombeiros profissionais da brigada de fogo de Athens, Alabama, estar no
local desdea l:30hda tarde. Como declarou o comandante dos bombeiros
de Athens...
“Informei [o superintendente da usina] de que não se tratava de um
incêndio elétrico e de que podia e devia ser usada água porque o CÜ2 e o
pó químico seco não eram apropriados para esse tipo de fogo. [...] Por vol la
das seis da tarde voltei a sugerir o uso de água. [...] O superintendente da
usina finalmente concordou e os seus homens apagaram o incêndio em
cerca de vinte minutos.”
Mesmo depois que fora tomada a decisão de apagar o fogo aim água, no­
vas dificuldades surgiram. A mangueira de incêndio não tinha sido uimplelti-
mente removida do suporte, de modo que a água não chegava aim pres.são
total ao esguicho. Os bombeiros não sabiam disso, porém, e aincluiram que o
esguicho estava com defeito. Tomaram de empréstimo um esguicho da briga-
da de fogo de Athens, “mas a rosea era de um tipo diferente, que não ajus­
tava o esguicho à mangueira, soltando-se o tempo todo.”

Isso é apenas uma pequena amostra dos aœntecimentos chaplinescos


que tiveram lugar em Browns Ferry nesse dia, conforme o relato de Comey.
Algumas outras ocorrências significativas abrangem a perda das luzes da si­
nalização de advertência para aviões na chaminé de 180 metros de altura
para exaustão de gás radioativo, a falta de monitoração da radioatividade a
favor do vento durante a crise, a omissão de notificação ao xerife do conda­
do até que a crise estivesse dominada, e a notificação do Coordenador da
Defesa Civil do condado (responsável pela evacuação pública) somente
dois dias após o acidente. Um comentário apropriado sobre as dreunstân-
das do addente pode ser extraído das conversas telefônicas gravadas entre
vários fundonários administrativos.

...o seguinte excerto é de uma conversa às 7:47h da tarde entre J.R.


Calhoun, diretor da Divisão de Geração de Energia Nuclear da T.V.A.
[Tennessee Valley Authority], e H.J. Green, superintendente da usina de
Browns Ferry:
“Green:— Recebi um chamado avisando que Sullivan, Little e um outro
inspetor da NCR estão viajando para cá esta noite e aí todos os nossos
problemas terão terminado.
“Calhoun: — (Rindo) Eles ajustarão contas com você, tenho certeza.
“Green: — Provavelmente temos uma violação. A nossa ficha é bastante
sofrível.
“Calhoun: — (Rindo) Sem dúvida!”
Por volta das nove da noite, Calhoun telefonou a Frank Long, na 2-
Região da Comissão Americana de Regulação de Energia Nuclear em
Atlanta...
“Calhoun: — ...A única coisa que podemos dizer desde já é que as coisas
poderiam ter sido muito piores.
“Long: — Ah, sim.
“Calhoun: — Sabe, quando alguém fala de um incêndio na sala de
distribuição, é que realmente tem problemas.
“Long: — Isso afetaria praticamente tudo.
“Calhoun: — E, você sabe, tudo para aquelas duas unidades passa
através dessa sala. Ela é comum às duas unidades, assim como a sala de
comando também é comum a ambas as unidades.
“Long: — Isso como que o isenta de supérfluos.”

Conforme o relatório para a NCR assinala, há mais de dois anos vinham


sendo usadas velas para detectar eventuais escapamentos de ar na usina,
contra a opinião dos eletricistas, que sabiam como a espuma de plástico
era presa fácil de combustão. De fato, um incêndio semclhanie, devida­
mente notificado à administração da usina, começara c fora extinto dois
dias antes do sinistro principal.
É com certa curiosidade que voltamos ao Relatório Rasmussen
para ver o que ele diz das probabilidades de acidentes, ramo o ocorrido
em Browns Ferry. A resposta é deveras reduzida. Um exame das tabelas
de “seqüências de acidentes dominantes” para os dois tipos de reatores
em uso comum revela que 22 seqüências de acidentes estão enumeradas
para um e 28 para outro. Embora algumas das falhas que ocorreram cm
Browns Ferry (como as dos ECCs) sejam apontadas, em nenhum mo­
mento se faz a menor menção à possibilidade de incêndio na sala de dis­
trib u ição , de fum aça na sala de com ando, ou de qualquer coisa
remotamente parecida com a combinação de falhas que aconteceu. As
“falhas de modo comum”, isto é, falhas múltiplas que resultam de uma
só ocorrência — como aconteceu de forma tão dramática em Browns
Ferry — são supostamente levadas em conta no relatório mas, de algum
modo, parecem ter-se perdido nas estatísticas e na lógica. Diz o relatório:
“De um modo geral, as probaUdades de üm único acidente no sistema
dominaram a probabüidade de uma seqüência de acidentes, e a falha de
um só componente dominou, por sua vez, a probabilidade de o sistema
inteiro falhar.” Contudo, pode-se afirmar ram segurança que em Browns
Ferry quase todos os componentes do sistema que podiam falhar, de fato
falharam — pelo menos um dos reatores esteve perigosamente perto de
fundir-se, o que teria causado uma Liberação de gás radioativo sobre uma
população não-evacuada e que de nada suspeitava. Àqueles que dizem
“Sim, mas não se fundiu e ninguém morreu”, só podemos responder que
pura sorte, e não as providências ou a ação humanas, impediram que os
erros de uma comédia-pastelão se convertessem numa calamidade.
A ulterior liberação de cinqüenta mil documentos internos da Co­
missão de Energia Atômica, tomando-os acessíveis ao público (em cum­
primento do disposto pela Lei de Liberdade de Informação), mais do que
justifica as desconfianças quanto à confiabilidade do Relatório Rasmus­
sen. Segundo Deborah Shapley, escrevendo na revista5cie«ce, a Comis­
são de Energia Atômica escolheu Rasmussen “porque o considerava um
‘amigo’ da energia nuclear. Além disso, embora Rasmussen propuse.ssc
inicialmente que o estudo fosse feito no MIT [Massachusetts Institute of
Technology], a comissão optou por que ele fosse realizado na sede da
CEA, onde eles podiam vigiar de perto o desenvolvimento do trabalho.”
Shapley observa que um memorando interno para o diretor de pe.ssoal da
CEA dizia:
“A informação que procuramos deve[...]servir,para gerar a confiança do
leitor a respeito do papel da CEA em garantir um trabalho de alta qualida­
de e práticas Q-A [garantia de qualidade {quality assurancé)\, não deve ter
o efeito de suscitar perguntas irrespondíveis.”

Os humanistas não suportam perguntas irrespondíveis.


Acrescente-se que os comentários internos sobre o relatório que
criticavam a sua metodologia parecem ter sido suprimidos ou ignorados.
Um deles, da autoria de Daniel Kleitman, também do MIT, foi descrito
por Shapley:

Os comentários escritos de Kleitman continham alguns elogios muito


superficiais ao estudo mas consistiam principalmente numa crítica fulmi­
nante. O método de cálculo da probabilidade de certas probabilidades de
acidente “conduz à tolice, maior complicação[...]e erro”. O método de
apresentação dos resultados faz com que eles pareçam mais “maravilho­
sos” do que realmente são. Por exemplo, usando os dados, Kleitman
calculou uma percentagem de fusões do núcleo entre 150 reatores num
período de vinte anos de “um a cada cinco anos”.

Incluo todos esses detalhes porque os meus leitores e eu fomos le­


vados a aceitar unicamente “fatos”, e “provas”, e “análise racional” nes­
se tipo de situação complexa. É o que esperamos receber. Mas nada disso
é realmente necessário; não precisamos de Browns Ferry nem da Liber­
dade de Informação para nos ensinar que o Relatório Rasmussen é perni­
cioso e enganador. Dita o senso comum que não existe nenhum modo
possível de prever cada acidente concebível que pode ocorrer em qual­
quer sistema, porque não podemos nem remotamente avizinhar-nos de
uma definição completa de qualquer sistema ora existente ou que existiu
no passado. (Kraus já nos disse isso.) Muitas coisas serão deixadas de
fora de toda e qualquer análise racional — o modo como os eletricistas
seguram em velas, a tendência de bombeiros inexperientes para não de­
senrolar completamente as mangueiras de seus suportes, e assim por
diante. No caso do Relatório Rasmussen, além de ignorar o risco do iso­
lamento térmico e outros incêndios na sala de distribuição, o período de
abalos sísmicos também foi subestimado e uma sabotagem não foi se­
quer levada em consideração. Nada disso preocupou os autores do Rela­
tório Rasm ussen, firm es em sua crença na onipotência da lógica.
Escreveram eles:

Embora não exista maneira de provar que todas as possíveis seqüências


de acidentes que contribuem para um risco público foram levadas em
consideração no estudo, a abordagem sistemática usada na identificação
de possíveis seqüências de acidentes torna improvável que al gum acidente
tenha sido descuidado, o que mudaria significativamcnte o risco geral.

Mas não é teoricamente possível julgar a importância das a)isas que


foram deixadas de fora. Como pode alguém avaliar a probabilidade ou as
conseqüências de uma ocorrência desconhecida? E mesmo que iaso fosse
possível, quantas probabilidades diminutas são necessárias para consti­
tuírem uma grande probabilidade? Uma vez mais, vemos ser pedido à
lógica que realize um milagre, e uma vez mais descobrimos que a lógica
tem seus limites.
Os reatores nucleares são máquinas muito complexas, construídas
e operadas por seres humanos. Qualquer garantia inequívoca de sua se­
gurança deve ser automaticamente suspeita, e cada nova prova, das que
nos são propostas semanalmente, aumenta a nossa desconfiança e incer­
teza acerca de energia nuclear. A incerteza gera corretamente a emoção,
e é cada vez maior o número de pessoas, incluindo cientistas, que estão
concluindo que uma rejeição da energia nuclear baseada num ??iedo geral
da mesma é o mais apropriado curso de ação. Com efeito, o próprio Re­
latório Rasmussen é uma reação a esse medo e, como tal, a sua própria
existência, independentemente do seu conteúdo, é um sinal de perigo.
Não só a energia nuclear é uma incógnita, mas é uma poderosa incógni­
ta: poderosa em termos da magnitude absoluta de seus efeitos reais e po­
tenciais; poderosa em termos da difusão desses efeitos; poderosa em
termos da duração de seus efeitos e de sua atividade; e poderosa no sen­
tido da natureza secreta de sua ação (a radioatividade não é vista, cheira­
da nem tocada, e uma ou duas gerações têm de passar antes que os
cânceres e os defeitos genéticos que ela pode causar comecem a ser no­
tados). Esse poder só aumenta o nosso medo do desconhecido e temos,
uma vez mais, o direito de ter medo. No capítulo precedente caracterizei
como um novo demônio humanista o medo de admitir a existência do in-
cognoscível. Mas o incognoscível existe e, em vez de esbanjarmos as
nossas emoções em ansiosas negações do óbvio, é preferível tirar algum
proveito desse medo. É necessário admitir que algumas coisas não estão
ao alcance do nosso conhecimento, e quando o medo dessas coisas pare­
ce apropriado, devemos temê-las direta e abertamente.
Após anos de cruzamentos consaguíneos, os ratos de laboratório
perderam a maioria das capacidades emocionais de seus parentes não-
domesticados. São plácidos, dóceis e sem medo; anatom icamente, pode­
mos até observar que suas glândulas supra-renais, que ajudam um
animal a enfrentar o estresse, são menores do que as dos ratos selvagens.
Eles não podem sobreviver fora do laboratório mas isso não importa,
porque não são solicitados a fazê-lo. No laboratório, geralmente têm um
desempenhando melhor do que os ratos selvagens em experimentos a
que são submetidos porque são menos emocionais — menos agressivos
e menos medrosos. Para que nos tomemos como ratos de laboratório e
anulemos o equilíbrio maior ou menor que possamos ter entre razão e
emoção, devemos em primeiro lugar ter a certeza de que podemos man­
ter-nos num ambiente regulado e previsível, análogo ao de um laborató­
rio. E isso é algo que, em definitivo, não podemos fazer.
Assim, o debate sobre a conveniência da energia nuclear revela-
nos a utilidade da emoção. Nem todas as emoções são úteis, é claro, e
uma das principais funções da razão é ajudar-nos a seledoná-las. Pode­
mos racional e abertamente decidir deixar ou não que um sentimento go­
verne o nosso comportamento, como os psicanalistas já sabem há muito
tempo. Podemos equilibrar emoção e razão. Aqueles que são bons nessa
difícil tarefa atingiram o mais alto nível de funcionamento humano. Em
certa medida, isso é relacionamento recíproco, porque podemos confiar
menos na emoção quando dispomos de mais informações factuais para
alimentar os nossos processos racionais. Mas isso só se aplica às situa­
ções relativamente restritas em que a razão é capaz de apreender todos os
elementos essenciais. A emoção é necessária e mais sensível em situa­
ções com um contexto mais amplo. A emoção é um fenômeno de inte­
gração e sintetização: por exemplo, diz-nos coisas acerca do desemprego
que estão muito além do alcance dos institutos de estatística. O exemplo
do Relatório Rasmussen confirma que isso não é atitude de um ignoran­
te; existem domínios além do domínio da razão, e sua designação ade­
quada é “a-racional” em vez de “irracional”. Perto do final do Relatório
Rasmussen há uma seção intitulada “Realismo versus Conservantismo”.
Creio ser justo dizer que o que esse tipo de “realismo” significa é uma
restrição dos horizontes de investigação ao ponto em que se faz parecer
que somente a razão será suficiente para fomecer-nos todas as respostas.
Ora, isso não é realista nem seguro.
Há muitos outros exemplos em que os sentimentos revelaram-se o
melhor guia para a ação; citarei apenas alguns, entre os mais interessan­
tes estão os relacionados com práticas agrícolas. Na África, de acordo
com o ecologista D.F. Owen, registra-se freqüentemente entre os agri­
cultores camponeses na zona tropical considerável reletância em realizar
uma intensa monda de seus campos ou mesmo em fazer um esforço para
eliminar manifestas pragas de insetos em suas culturas. Essa atitude per­
siste mesmo diante de todos os argumentos radicais em contrário:
Verifiquei certa vez que um homem na Serra Leoa tinha plantado algunas se­
mentes de laranja cujos novos cotilédones estavam aimcçando a brotar. Em
quase todas as plantas havia uma larva da borboleta Papilo dcmcxlœus, a qual
rapidamente cresceria tanto que acabaria destruindo a minúscula planta.
Quando chamei a atenção do homem para isso, ele respondeu que tentaria en­
contrar alguém para remover essas larvas, mas que não havia pressa nisso e,
embora parecesse apreciar o meu interesse por sua plantação, não estava preo­
cupado com os prejuízos que as larvas estavam causando.

É uma tolice supor que os povos “primitivos” são sempre sábios em tudo
o que fazem — talvez o homem fosse apenas um agricultor incompetente.
Mas nem Owen nem eu pensamos assim. Como assinala Owen, o homem
vivia numa região onde o alimento pode ser facilmente cultivado com
abundância, apesar das devastações causadas pelos insetos, e os agricul­
tores nessa área plantam muitas culturas diferentes de modo que alguma
coisa esteja sempre pronta para ser colhida. Simplesmente, não é neces­
sário matar as pragas. Eu iria mais longe e assinalaria que Owen afirmou
haver uma larva em quase todas as plantas. Seriam algumas das plantas
que permaneceram livres de pragas levemente repugnantes ao paladar dos
insetos? Haveria uma lenta sabedoria evolutiva no sentimento de que não
vaUa a pena o incômodo de apanhar as larvas de borboleta? Talvez. E
talvez possa ser dito o mesmo a respeito da estranha relutância em mondar
Owen afirma que:

...parece agora que, em certas circunstâncias, a safra de verduras na Grã-


Bretanha pode ser aumentada se se permitir que algumas ervas daninhas
cresçam com a cultura. Isso é porque as ervas daninhas fornecem um ha­
bitat para uma diversidade de predadores (insetos e aranhas) que se ali­
mentam das pragas das verduras. [...] O camponês africano não realiza,
em geral, esforços especiais para erradicar ervas daninhas e é possível que
tenha descoberto, através de tentativa-e-erro, que por haver deixado mui­
tas ervas daninhas crescendo nas terras cultivadas, a produção de verduras
aumentara muito.

Um outro uso das ervas daninhas na agricultura é servirem como alimento


para pragas que de outro modo devorariam as culturas. Esse princípio está
apenas começando a ser redescoberto pela agricultura moderna — uma
aplicação, agora praticada em algumas fazendas da Califórnia, 6 a plan­
tação de “culturas armadilhas” para induzir as pragas a desviar-se das
culturas comerciais, como o algodão. Mas vale a pena a.ssinakir que sc
perguntarmos a um agricultor africano quais são as suas razões para não
praticar o controle de pragas e ervas daninhas, a resposta mais provável
será que tem a sensação de que isso é desnecessário — não uma lista de
observações e suas deduções lógicas associadas.
Quando o controle racional de ervas daninhas e pragas foi pratica­
do em grandes fazendas comerciais na África, os resultados foram, com
freqüência, muito interessantes. Nas plantações de café, por exemplo,
Owen relata que a prática de cobrir com palha as raízes dos cafeeiros e
de pulverÍ7.á-los com fungicidas à base de cobre melhorou a qualidade de
suas folhas ao ponto de se tornarem atraentes para uma praga anterior­
mente insignificante, uma traça cuja larva é conhecida como mineira da
folha do café. Os esforços para controlar a explosão populacional de m i­
neiras da folha com inseticidas não foram inteiramente bem-sucedidos;
também tiveram o efeito residual de aniquilar os parasitas naturais de
uma outra peste do café, outrora insignificante, a lagarta mede-palmos
verde, a qual não é afetada pelos inseticidas usados contra a mineira da
folha do café. O DDT matará as mede-palmos verdes, pelo menos por al­
gum tempo, mas sabe-se que o DDT promove surtos populacionais de
outros insetos destrutivos, tais como o piolho do cafeeiro e o pulgão.
Contudo, se as mede-palmos verdes não forem controladas, além de co­
merem boa parte dos cafeeiros, danificarão os tecidos da planta de um
modo que propicia a entrada da ferrugem. E assim por diante; os frutos
da razão podem deixar um travo amargo.
Nos Estados Unidos, encontramos atitudes que são análogas às do
camponês africano. A aversão a comer resíduos orgânicos sintéticos em
alimentos é um desses sentimentos; está ganhando rapidamente terreno,
embora não exista uma distinção definicional lógica entre substâncias
químicas orgânicas sintetizadas por uma planta verde (ou um animal) e
as sintetizadas numa fábrica. No entanto, persiste o sentintento de que
são diferentes, e o melhor argumento racional que foi inventado para ex­
plicar o sentimento persistente é que tivemos milhões de anos de coexis­
tência com plantas nos quais experimentar os efeitos totais de suas
substâncias químicas, mas nenhum tempo ainda para compreender aque­
las que nós próprios fazemos. Apesar de todas as razões citadas no caso
do Relatório Rasmussen, esse sentimento a respieito dos resíduos quími­
cos é útil e oportuno. Veja-se o exemplo do herbicida que é mais ampla­
mente pulverizado em campos de milho para matar ervas daninhas. Um
pouco dele penetra na parte comestível do milho e por isso foi testado
sistematicamente para detecção de atividade causadora de câncer; não
foi encontrada nenhuma, e o herbicida foi aprovado para uso geral. Em
1976, porém, alguém pensou em dar uma olhada mais a fundo e desco­
briu que, dentro do próprio milho, o herbicida é metaboUcamente con-
vertido num composto que causa o câncer em mamíferos. Ora, apó:' um
prolongado período de uso, se o herbicida vier alguma vez a ser retirado
do mercado, isso não ocorrerá sem uma batalha feroz. Histórias seme­
lhantes podem ser contadas a respeito de fungicidas agrícolas comuns e
do nitrito de sódio, o qual é usado para conservar carnes como o toucinho
defumado. Resulta que tanto os fungicidas quanto o nitrito são converti­
dos em agentes cancerígenos pelo calor do cozimento comum. Não exis­
te método racional, nenhuma “árvore de ocorrências” nem “árvores de
erros”, que possa prever essas coisas; acontece simplesmente que as des­
cobrimos. De um modo análogo, descobrimos que o inseticida agrícola
comum DBPC causa a esterilidade no homem exposto a doses relativa­
mente pequenas (até nos vendedores desse produto químico), porque
dois trabalhadores num laboratório que fabrica DBCP contaram um ao
outro, durante a hora do almoço, que estavam tendo dificuldades para ter
filhos. Pense-se em todas as coisas que ainda não descobrimos e aquelas
que nunca descobriremos a respeito de resíduos químicos em nossos ali­
mentos, e reflita-se depois sobre o valor das emoções.
Os mesmos argumentos que foram usados pelos adeptos do Rela­
tório Rasmussen para restringir os horizontes da análise e da investiga­
ção sobre o verdadeiro impacto da energia nuclear são utilizados por
todos os outros apologistas de toda a variada gama de presunçosas in­
venções que infligimos a nós próprios. Um caudal de informações e es­
tatísticas selecionadas é produzido para criar um ambiente restrito e
artificial em que somente a lógica pode funcionar, e os limites de “riscos
aceitáveis” são definidos dentro desse quadro infinitamente maleável.
Por exemplo, num artigo sobre riscos aceitáveis, o pesquisador e quími­
co Trevor A. Kletz apurou que a taxa de freqüência de acidentes fatais
(TFAF) para a indústria química britânica “é de aproximadamente 4, ex­
cluindo Fhxborough, ou de cerca de 5 se Flixborough participar no cál­
culo da média num período de 10 anos”. Mas por que haveria de ser
excluída a explosão de uma fábrica de náilon em Flixborough, na qual
morreram 28 pessoas? Por que estava envolvida a negligência humana —
um erro de cálculo nas canalizações? Por que o recinto onde a explosão
ocorreu não era à prova de deslocamentos de ar? Por que 250 mil galões de
produtos químicos inflamáveis estavam sendo armazenados sem a necessá­
ria licença? Por que foi um acontecimento isolado? O deputado britânico
Tam DalyeU escreveu:

Poucos poderão algum dia esquecer as dramáticas imagens da explosão


daquela maciça nuvem de vapor formada pelo cscapamcnto de ciclo-he-
xano seb condições de elevada temperatura. Não só para os gerentes da in­
dústria química, mas para milhões de pessoas que vivem nas vi 2dnhanças
de qualquer um dos grandes com plexos quím icos do mundo, seja ele
Grangemouth ou Canvey Island, Duisberg ou Cleveland, Ohio, a reação
imediata foi: “Se não for pela graça de Deus, estamos fritos!”

Posso apenas conjeturar que Flixbotough talvez fosse excluída de um


cálculo da TFAF por não ser considerado um acidente “comum” ou
“rotineiro” — em outras palavras, que os acidentes espetaculares estão
além da pálida estatística, que eles abalam a confiança da razão em seu
entendimento dos caprichos de acontecimentos fortuitos e, por conse­
guinte, devem ser ignorados.
Comentando a respeito da observação, feita por um repórter, de
que essa explosão era “o preço do náilon, Kletz acha que produzir náilon
é menos arriscado do que produzir os mais antigos têxteis de origem
agrícola, como o algodão, e animal, como a lã. Seria desnecesário dizer
que em sua breve análise ele simplesmente compara a taxa de acidentes
na indústria do náilon com a taxa de acidentes na atividade agrícola, e es-
quece-se de mencionar os custos para a humanidade da produção petro­
qu ím ica em pregada na m an u fatu ra do náilon, os cu sto s para a
humanidade das quantidades maciças de energia elétrica requeridas, os
custos da poluição gerada por essas indústrias, o custo da influência no­
civa que a presença dessas fábricas representa para as comunidades
circunvizinhas, ou qualquer um dos outros custos que uma visão “emo­
cional” abrange mas que estão fora do alcance de uma análise puramente
racional. Mais uma vez, só posso enfatizar que essa tentativa desespe­
rada e egoísta de fazer com que todas as decisões modernas sejam
“racionais” e “objetivas” nos deixa em séria desvantageni nas áreas
mais críticas da sobrevivência, e tem o efeito paradoxal de assegurar
que as únicas emoções que nos ajudarão a decidir o nosso futuro são
as escondidas, por serem consideradas demasiado mesquinhas para
ficar à vista do público.

A crescente adulação do modo racional de pensamento em quase


todos os caminhos da vida não ocorreu sem criar uma tremenda reação.
Parte desta foi violenta e difusa, culminando na crítica mal-humorada
de tudo o que é racional, especialmente a ciência, ou na aceitação de
contrafações irracionais da ciência, como a astrologia. Esta última é
particularmente interessante. A astrologia parece devolver o equilíbrio
de poder — o imenso poder da previsão ao lado emocional da natu­
reza humana. É como se constituísse uma tentativa para tomar as
FACULDADE FLORIANÓPOUS/CESUSC
BIBLIOTECA CRUZ E SOUSA
emoções mais científicas, mais racionais, sem recorrer aos rigores enfa­
donhos do método científico.
Existem, porém, críticas mais devastadoras e mais sérias do que a
astrologia ao exclusivamente racional. Um dos primeiros esforços nes­
se sentido foi um romance de ficção científica publicado em 1946 e
intitulado That Hideous Strength, de autoria de C.S. Lewis. Embora
contivesse muito da filosofia cristã muito pessoal de Lewis, o livro era
principalmente uma advertência a respeito de uma tendência que então
estava apenas começando a alcançar seu pleno impulso. Era o uso da ra­
zão para excluir ou detrair as considerações morais das questões mais
importantes da vida, especialmente da conduta da ciência institucional,
que Lewis percebeu estar passando cada vez mais a ser a principal fonte
de poder humano no mundo. Quase todos os vilões na história de Lewis
eram m em bros de um laboratório sem i-oficial conhecido com o o
“N.I.C.E.”, sigla do “National Institute of Co-ordinated Experiments”
(Instituto Nacional de Experiências Coordenadas), uma organização
criada pelo Demônio em pessoa. Ela foi destruída no final pelo que po­
deríamos chamar o poder puro da emoção m orale espiritual. Isso foi efe­
tuado, de um modo deveras apropriado, através da desintegração da
linguagem na N.I.C.E., juntamente com um oportuno terremoto nas vizi­
nhanças.
That Hideous Strength foi escrito alguns anos antes de institutos
norte-americanos e britânicos realmente começarem a assemelhar-se a
N.I.C.E. ou a Edgestow, a universidade fictícia que estava procurando fi­
liar-se a esse instituto. Nesse sentido, Lewis foi extraordinariamente pro­
fético, e quem quer que tenha notado e se sinta incomodado com essa
tendência contínua e cada vez pior lerá o Hvro com um sentimento de
justificação e prazer por tabela. Mas acredito que Lewis foi melhor em
retratar o mal do que em prever sua cara. Como o título indica, ele estava
apavorado com o enorme poder da razão pura, e esse pavor (ou talvez a
data precoce em que escreveu o hvro) impediu-o de ver que inerentes à
razão estavam as espécies de fraquezas e hmitações internas que tentei
descrever. Pode ser que as ambições da razão sejam um dia derrubadas
por uma força emocional de natureza moral, mas parece mais provável
que a organização racional comece a ruir por conta própria. O tipo de fi­
nal escolhido por Lewis seria mais empolgante e agradável para muitas
vítimas da razão pura, e de um modo geral menos destrutivo, mas não
necessariamente mais eficaz.
Por causa da força de suas objeções morais à racionalidade moder­
na, Lewis não percebeu nenhuma posição conciliatória. Mas essa posi­
ção é possível; na verdade, é até vagamente indicada por uma analogia
biológica: a existência de fibras nervosas que ügam o neoencéfalo e o
paleoencéfalo. Tais analogias são muitas vezes enganadoras, e não pre­
tendo alongar-me a respeito dessa, mas a verdade é que a Natureza to­
mou algumas medidas para ligar o cérebro da razão com o cérebro da
emoção. Conhecemos isso através da nossa experiência cotidiana de
pensamento e comportamento, mas não faz mal a ninguém assinalá-lo.
Ao longo de todo este capítulo, concentrei-me na dictomia entre os dois
elementos da mente, por causa do exagero da divisão criada pelo huma­
nismo, com seu temor da emoção e seu culto fanático da razão. É uma
verdadeira dicotomia, e o conflito será sempre parte da nossa natureza,
mas uma síntese pacífica também é possível, às vezes, e deve ser alimen­
tada, encorajada e praticada — que mais não seja, ao menos como um
ato de autopreservação.
Um dos maiores porta-vozes da síntese é Robert Pirsig, cujo Uvro
le n e a arte da Mantenção de Motocicletas é um apelo profundamente
comovente para restabelecer a emoção em seu legítimo lugar na duar-
quia. Embora os termos que Pirsig emprega —as tradições “romântica”
e “clássica” — sejam diferentes dos meus próprios “emoção” e “razão”,
acredito que ambos nos referimos às mesmas entidades básicas. Pirsig si­
tua a rejeição da parte romântica da atividade humana nos primeiros
tempos do pensamento ocidental documentado — em Platão, que foi o
primeiro a sugerir a separação e elevação da tradição clássica, e em
Aristóteles, que consolidou, fortaleceu e formalizou o classicismo, ao
mesmo tempo que completou a rejeição e o descrédito do espírito ro­
mântico. As conseqüências esmagadoras desse ato de arrogante loucura
são descritas por Fedro, o herói do üvro de Pirsig:

Fedro recordou uma frase de Thoreau: “Você jamais ganha alguma coisa
a menos que tenha perdido alguma coisa”. E então começou a ver, pela
primeira vez, a incn vel magni tude do que o homem, quando adquiriu poder
para compreender e governar o mundo em termos de verdades dialéticas,
tinha perdido. Tinha construído impérios de capacidade científica para
manipular os fenômenos da natureza e transformá-los em enormes mani­
festações de seus próprios sonhos de poder e riqueza — mas, para isso,
preterira um império de compreensão de igual magnitude: uma compreen­
são do que significa ser uma parte integrante do mundo, e não um inimigo
dele.

Na opinião de Pirsig, é aos sofistas, adversários filosóficos da tradição


socrático-platônico-aristotélica, que devemos voltar, e cujo conceito de
aretê, ou totalidade do ser, temos de reaprender a valorizar. A pri.ncipal
característica da síntese de Pirsig é a idéia de “Qualidade” — a qual é
realizada quando as tradições romântica e clássica são adequadamente
combinadas. O seu principal exemplo é o processo de consertar uma
moticicleta. Pode-se consertar uma motocicleta avariada apenas com
peças sobressalentes, ferramentas, um gráfico e uma folha de instruções.
Até aqui, a lógica prepondera. Mas consertá-la adequadamente, para que
a máquina volte a funcionar de modo pleno e duradouro, requer algo mais:
é necessário “sentir” a motocicleta como uma entidade, como algo que
transcende a lista de peças e o gráfico esquemático. Os melhores mecâ­
nicos, diz Pirsig, possuem esse sentimento; mas a maioria não. Não existe
aqui auto-ilusão: os românticos puros, sabe Pirsig, não podem consertar
motocicletas, eles existem como párias num mundo dominado pela razão.
Não obstante, a razão precisa dos românticos, tanto quanto estes neces­
sitam da razão, não existe Qualidade sem eles; por isso, deve haver
compreensão mútua e tolerância de ambos os lados. Por exemplo:

“A paz de espírito não é, em absoluto, superficial”, comentei eu. “É


realmente a coisa toda. [...] Aquilo a que chamamos a funcionalidade da
máquina é apenas uma objetivação dessa paz de espírito. O teste final é
sempre a sua própria serenidade. Se não a possuir quando começa e não a
mantiver enquanto está trabalhando, você estará muito provavelmente
incorporando seus problemas pessoais na própria máquina.

“O objeto material de observação, a bicicleta ou a rôtisserie, não pode


estar certo nem errado. Moléculas são moléculas. Não têm nenhum código
ético a que obedecer, salvo aqueles que as pessoas lhes dão. O teste da
máquina é a satisfação que ela lhe proporciona. Não existe nenhum outro
teste. Se a máquina produz tranqüilidade, está certa. Se ela o perturba, está
errada, até que a máquina ou a sua mente mude.”

Essas palvaras aplicam-se igualmente bem aos reatores nucleares.


Pirsig não é o único a fazer remontar no tempo o terrível cisma en­
tre emoção e razão. Também Mumford, como mencionei antes, está
ciente há muito tempo das conseqüências mais sombrias, mais nefastas,
do pensamento de Platão. Mais do que isso, Mumford seguiu essa idéia
ao longo do tempo, assinalado em ThePentagon o f Power, o ponto exato
na Idade da Ciência em que se tomou completa a rejeição da emoção.

Mas, na realidade, Galileu cometeu um crime muitíssimo mais grave do


que qualquer um dos que era acusado pelos dignitários da Igreja; pois o
seu verdadeiro crime foi o de trocar a totalidade da experiência humana,
não apenas os dogmas e doutrinas acumuladas da Igreja, por aquela porção
diminuta que pode ser observada dentro de um limitado espaço de tempo
e interpretada em termos de massa e movimento, negando ao mesmo tempo
importância às realidades não-mediatas da experiência humana, das quais
a própria ciência é apenas um derivativo ideológico refinado. Quando
Galileu dividiu a realidade vivenciada em duas esferas, uma esfera subje­
tiva, que decidiu excluir da ciência, e uma esfera objetiva teoricamente
livre da presença visível do homem mas conhecida através de rigorosa
análise matemática, ele estava repelindo como insubstanciais e Irreais os
acréscimos culturais de significado que tinham tornado possível a mate­
mática — ela própria uma destilação puramente subjetiva.

É lícito indagar, de acordo com o que Pirsig e Mumford disseram, se os


campos da ciência que mais rapidamente avançaram no nosso tempo não
serão também os que mais perderam da compreensão anterior, mais
abrangente.
Essa espécie de sondagem histórica da rejeição da emoção é, ao
contrário do que B.F. Skinner diz sobre o valor da história, absolutamen­
te essencial para uma compreensão de acontecimentos modernos. Mas,
para além disso, está o esforço desenvolvido no sentido da reconciliação
entre emoção e razão, e é aí que reside a principal contribuição de Pirsig.
Se a reconciliação ocorrer, ele terá desempenhado um importante papel
em sua definição.
Pirsig não é o único a acreditar que a Qualidade é gerada na inter­
face entre emoção e razão. As religiões ocidentais contêm elementos
dessa idéia há muito tempo. No judaísmo, por exemplo, a Torá, o pilar
central da religião, é composta de dois elementos igualmente essenciais
e inteiramente interligados: o Pentateuco, que representa o elemento
emocional ou espiritual, e a halakhah, que é uma tradição originalmente
oral de regras, leis, rituais e costumes formais — uma espécie de sistema
lógico, racional, para interpretar e codificar o espírito dos cinco hvros.
Existe um relacionamento mais ou menos análogo no Cristianismo. O fi­
lósofo e teólogo católico Jacques Maritain escreveu:

Mas entre fé e razão, como entre graça e natureza, não existe separação.
Tende-se por vezes a esquecer também isso (com muito maior freqüência
nos velhos tempos; alguns dos nossos ancestrais eram tão obtusos quanto
nós e, uma vez que dois conceitos estivessem sentados nas cadeiras de uma
distinção confiável, eles achavam cansativo demais levantar esses concei­
tos de suas respectivas cadeiras e fazê-los abraçarem-se um ao outro).
Fosse qual fosse a obstusidade de nossos ancestrais e a de muitos de nós,
as coisas são assim, e assim é a vida: existe distinção sfem separação.
A razão tem o seu próprio domínio, e a fé o dela. Mas a razão pcxJ' pe­
netrar no domínio da fé levando-lhe a sua necessidade de fazer perguntas,
o seu desejo de descobrir a ordem interna do verdadeiro e a sua aspiração
à sabedoria— o que é o que acontece com a teologia. E a fé pode penetrar
no domínio da razão, levando-lhe a ajuda de uma luz e de uma verdade
que são superiores e elevam a razão em sua própria ordem que é o que
acontece com a filosofia cristã.

É comum na literatura humanista contemporânea verificar-se que


muitas mas insinceras homenagens são prestadas a valores tais como
“emoção”, “compaixão”, “necessidades humanas”, “visão”, etc., mas,
seja como for, a razão sempre emerge como a força dominante em qual­
quer cosmovisão humanista. Não é esse o caminho para a síntese. Pois
uma síntese operacional só pode ser realizada se desenvolvermos um es­
forço contínuo e deliberado para depurar os nossos pensamentos e com­
portamento de todos os vestígios de condescendência para com a parte
não-racional da nossa natureza. A emoção é uma parte essencial da vida
— ira, amor, medo, felicidade —, parte da essência da existência coti­
diana, parte do nosso inalienável património hereditário, pelo qual paga­
mos com incontáveis mortes e tragédias através dos tempos. Em plena
parceria com a emoção, a razão tem pelo menos uma chance de ajudar-
nos a sobreviver. Sem ela, nenhuma chance existe. Como de costume.
Orwell, em sua linguagem franca e simples, disse-o muito bem, neste
caso, num ensaio intitulado “Gradualismo Catastrófico”. “Os homens
práticos levaram-nos para a beira do abismo, e os intelectuais, em quem
a aceitação da política de poder matara primeiro o senso moral e depois
o senso de realidade, estão nos recomendando com insitência que avan­
cemos rapidamente sem mudar de direção.” Existe um valor de sobrevi­
vência na moralidade? Assim creio. O esforço moderno para refutar a
existência do altruísmo, a glorificação do egofemo e a apoteose da análi­
se custo-benefício são outras tantas manifestações de uma razão que per­
deu o rumo. São formas de sabedoria a curto prazo e nenhum bem pode
resultar delas. É tempo de questionar a razão uma vez mais, e uma boa per­
gunta, para começar, pode ser encontrada em Mateus, 6:27: “Qual de vós,
por mais ansioso que esteja, pode acrescentar um côvado à sua estatura?”
Capítulo 5

O Dilema da Conservação
Olhai os lírios do campo, como clcs crcsccm;
não labutam nem fiam. Eu, porém, vos afir­
mo que nem Salomão, em Ioda a sua glória,
se vestiu como qualquer um deles.
MATEUS, 6: 28-29

O homem está acostumado a valorizar as coi­


sas na medida em que lhe são úteis, e uma vez
que está disposto por temperamento e situação
a considerar-se a criação suprema da Namreza,
por que não acreditaria ele que também repre­
senta o seu propósito final? Por que não con­
sentiria ã sua vaidade essa pequena falácia?
[...] Por que não chamaria a uma planta erva
daninha quando, do sen ponto de vista, eia
não deve existir? Com muito maior desenvol­
tura atribuirá a existência dos cardos que lhe
dificultam o trabalho no campo à maldição de
um enfurecido espírito benevolente, ou ã per­
versidade de um espírito sinistro, do que os
verá simplesmente como filhos da Natureza
universal, tratados por ela com tanto carinho
quanto o trigo que ele cultiva com tanto zelo e
a que dá tão alto valor. Na verdade, os indiví­
duos mais moderados, aqueles que, em sua
própria avaliação, estão filosoficamente resig­
nados, não podem avançar além da idéia de
que tudo tem, em última instância, de redundar
em benefício da humanidade ou de que algum
poder adicional deste ou daquele organismo
natural ainda pode ser descoberto para tomá-lo
útil ao homem, na forma de medicamento ou
de algum outro modo.
JOHANN WOUFGANG VON GOE rHI ■:
“ Uma tentativa de desenvolvimento de uma
teoria comparativa geral”
culto da razão e a moderna versão da doutrina de caasius finais in-
Ê ■teragem , no ambiente humanista, para se sustentar e favorecer
mutuamente; um resultado é que as partes do mumio nalunil cuja
utilidade nos é desconhecida são consideradas imprestáveis e sem valor,
a menos que seja descoberto algum valor previamente insuspeitado. A
Natureza, nas palavras de Clarence Glacken, é vista como “um gigantes­
co galpão de ferramentas”, e isso é uma metáfora perfeita porque suben­
ten d e que tudo o q u e não seja fe rram e n ta ou m a té ria -p rim a é
provavelmente refugo. Essa atitude, quase universal no nosso tempo,
gera um terrível dilema para os conscrvacionistas e para quantos acredi­
tem, como Goethe, que “cada uma das criações da Natureza tem seu pró­
prio ser, cada uma representa um conceito especial; no entanto, reunidas,
são um só”. A dificuldade é que o mundo humanista só aceita a conser­
vação da Natureza pouco a pouco e por um preço: tem que existir uma
razão lógica, prática, para salvar cada uma e todas as partes do mundo
natural que desejamos preservar. E o dilema surge nas cada vez mais fre-
qüentes ocasiões em que deparamos com uma parte ameaçada da Natu­
reza m as não co n seguim os e n c o n trar um a razão ra c io n a l para
conservá-la.
A conservação é, em geral, identificada com a preservação de re­
cursos naturais. Foi certamente esse o significado de conservação pre­
tendido por Gifford Pinchot, fundador do sistema de florestas nacionais
nos Estados Unidos, e que foi o primeiro a pôr a palavra em uso corrente.
Os recursos podem ser definidos, stricto sensu, como reservas de merca­
dorias que têm um apreciável valor monetário para as pessoas, direta ou
indiretamente. Desde o tempo em que Pinchot a usou pela primeira vez,
a palavra vem sendo seriamente desgastada. Uma percentagem cada vez
maior de “conservacionistas” tem-se preocupado com a preservação de
características naturais — espécies animais e vegetais, comunidades de
espécies e ecossistemas inteiros — que não são recursos naturais, embo­
ra eles possam não admitir isso.
Um exemplo de tal não-recurso é uma espécie anfíbia em perigo
de extinção, o sapo de Houston, Bufo houstonensis. Esse animalzinho
fosco não tem valor demonstrado nem mesmo conjeturado de recursos
para o homem; outras raças de sapo o substituirão em parte quando ele
desaparecer, e não se espera que sua extinção cause impressão no meio
ambiente de Houston ou de seus subúrbios. Contudo, alguém se preocu­
pou o bastante com o sapo de Houston para lhe dedicar uma página nas
listas de animais e plantas em perigo publicadas pela União Internacio­
nal para a Conservação da Natureza, e sua segurança foi apresentada
como uma boa razão para impedir as perfurações petrolíferas num par­
que público de Houston.
O sapo de Houston não contou com as atenções unânimes dos con­
servacionistas; caso contrário, a essa altura eles poderiam ter descoberto
nele algum valor intrínseco insuspeitado; e o problema é precisamente
esse. As espécies e comunidades que carecem de valor econômico ou de
comprovado valor potencial como recursos naturais não são facilmente
protegidas em sociedades que têm um relacionamento fortemente explo­
ratório com a Natureza. Muitas comunidades naturais, provavelmente a
maioria das espécies vegetais e animais, e algumas variedades domesti­
cadas de plantas cultivadas, entram nessa categoria, no (ou perto do) ex­
tremo /láo-recurso de um espectro de utilidades. Aqueles dentre nós que
são a favor de sua preservação são motivados, com freqüência, por um
sentimento profundamente conservador de desconfiança de uma mudan­
ça irreversível e por uma atitude sodalmente atípica de respeito pelos
componentes e estrutura do mundo natural. Essas atitudes não-racionais
são inaceitáveis como base para a conservação em sociedade do tipo oci­
dental, salvo nos poucos casos em que os custos de preservação são mí­
nimos e não existem usos concorrentes para o espaço ora ocupado pelo
não-recurso. Por conseguinte, os defensores de não-recursos tentaram,
em geral, garantir a proteção para as suas espécies e ambientes “inúteis”
mediante uma mudança de designação: é descoberto um “valor” e o não-
recurso metamorfoseia-se num recurso.
Talvez o primeiro a reconhecer esse processo tenha sido Aldo
Leopold, que escreveu em “The Land Ethic”:

Uma fraqueza básica num sistema de conservação inteiramente baseado


em motivos econômicos é que a maioria dos membros da comunidade da
terra não tem valor econômico. [...] Quando uma dessas categorias não-
econômicas é ameaçada, e se acontece que a amamos, inventamos subter­
fúgios para conferir-lhe importância econômica.

Valores Econômicos para Não-recursos


Os valores atribuídos a não-recursos são diversos e, por vezes,
algo forçados; daí a dificuldade em tentar condensá-los numa lista.
Em meus esforços, apoiei-me, em parte, nas ponderadas análises for­
necidas por G. A. Lieberman, J. W. Humke e outros membros da Pre­
se rv a ç ã o da N a tu re z a A m eric an a. A to d o s os v a lo re s a b a ix o
enumerados pode ser atribuído um valor monetário e, assim, tomam-
se comensuráveis com bens e serviços comuns — se bem que, em íil-
guns casos, seria necessária uma boa dose de engenhosidade para fazer
isso. Todos são valores antropocêntricos.
1. Valores recreativos e estéticos. Este é um dos mais populares
tipos de valor a atribuir a não-recursos, porque embora seja, com fre­
qüência, muito legítimo, também é facilmente manipulado. Por con­
seguinte, desempenha um papel importante em análises de custo-benefí­
cio e em informes de impacto ambiental, preenchendo o vazio de um
lado ou de outro do livro razão, de acordo com o resultado que for mais
desejável. A categoria abrange itens que envolvem pouca interação entre
pessoas e meios ambientes: panoramas podem receber um valor monetá­
rio. Interações menos remotas são o camping, a caça esportiva, as ca­
minhadas a pé, etc. Organizações tais como o Sierra Club enfatizam
m uitas dessas interações, em parte porque os seus associados lhes
atribuem grande valor. Não é coincidência, por exemplo, que entre os
mamíferos australianos, as grandes e belas espécies diurnas, como os
cangurus que podem ser vistos durante os safaris, são zelosamente
protegidas pelos conservacionistas, e a maioria delas está bastante
bem. Em contrapartida, porém, os pequenos e indistinguíveis marsu­
piais noturnos, como o vombate e o diabo-da-Tasmânia, compreen­
dem um la m e n ta v e lm e n te n u m ero so c o n tin g e n te de esp é c ie s
seriamente ameaçadas ou recentemente extermindas.
A própria raridade confere uma espécie de valor estético-económi­
co, como qualquer filatelista ou numismata confirmará. Uma das gran­
des dificuldades em conservar as pequenas e isoladas populações da bela
tartaruga dos pântanos de Muhlenberg, no leste dos Estados Unidos, é
que, como estão ficando cada vez mais escassas, o preço no mercado ne­
gro para os apreciadores de tartarugas pulou para as centenas de dólares.
Algumas têm sido roubadas de jardins zoológicos. Os ameaçados falcões
enfrentam um perigo semelhante mas muito mais sério por parte dos fal-
coeiros, que empregam ladrões internacionais de falcões para roubá-los
de ninhos protegidos por lei.
Algumas das tentativas mais determinadas para colocar essa cate­
goria recreativa e estética num sólida base de recurso têm sido levadas a
efeito por aqueles que pretendem que a oportunidade de desfrufiir da Na­
tureza, pelo menos ocasionalmente, é um pré-requisito para a perfeita
saúde mental e física. Alguns grupos de pacientes mentais a longo prazo
teriam colhido benefícios mais substanciais de excursões ao campo do
que de outras formas de terapia, e efeitos fisiologicamente desejáveis fo­
ram reivindicados para a cor verde e os meios ambientes onde não existe
a monotonia do espaço organizado pelo homem.
2. Valores não-descobertos ou não-desenvolvidos. Foi noticiado
em 1975 que o óleo de jojoba, Simmondsia ehinensia, assemalha-se mui­
to em suas propriedades físicas especiais ao óleo do ameaçado cachalote.
Da noite para o dia, esse arbusto típico do deserto do sudoeste norte-
americano passou do status de um recurso secundário para o de um im-
portante recurso. Pode-se supor com segurança que muitas outra»; espé­
cies de plantas e animais outrora obscuras têm grande valor potencial
como recursos legítimos uma vez que esse potencial tenha sido desco­
berto ou desenvolvido. As plantas são provavelmente os mais numerosos
membros dessa categoria: além de suas possibihdades como futuras fon­
tes alimentares, também podem fornecer materiais estruturais, fibras e
substâncias químicas para a indústria e a medicina. Um livro intitulado
Drugs and Foods front Little-Known Plants enumera mais de cinco mil
espécies que são localmente, mas não universalmente, usadas para ali­
mento, medicamentos, veneno de peixe, sabão, perfumaria, propriedades
resistentes a cupim, curtimento, corantes, etc. A maioria dessas plantas
nunca foi investigada de forma sistemática. É um pressuposto básico da
economia botânica que as novas culturas domesticáveis e, de um modo
mais importante, as variedades e precursoras não descobertas de culturas
existentes ainda ocorrem na Natureza ou em isoladas comunidades agrí­
colas, e são comumente enviadas expedições para descobri-las.
Os animais têm usos de recursos potencial que são paralelos aos
das plantas, mas esse potencial está sendo desenvolvido num ritmo ainda
mais lento. As possibihdades de domesticação e criação em grande esca­
la da vicunha sul-americana, fonte de uma da fibras animais de mais alta
quahdade em todo o mundo, só foram reconhecidas depois que se tornou
iminente a sua extinção comercial em estado selvagem. São abundantes
as descrições de uso bizarros de animais: chimpanzés e babuínos têm
sido empregados como trabalhadores não-quaüficados numa multipUci-
dade de ocupações, e parece que até mesmo a anta vem sendo treinada
como besta de carga. (Archie Carr conta a maravilhosa história — mes­
mo que seja apócrifa — em High Jungles ondLow de um centro-norte-
am ericano que decidiu usar sua anta de estim ação para levar sua
produção de açúcar ao mercado, para acabar descobrindo, horrorizado,
que as antas, pelo caminho, preferem cruzar os rios não nadando mas ca­
minhando pelo fundo). O potencial total de recursos provenientes de in­
setos, por exemplo, como fonte de úteis subprodutos químicos ou de novas
substâncias, quase nãq foi ainda explorado; a goma-laca obtida do inseto
Laccifer lacea é um dos poucos exemplos clássicos desse tipo de explora­
ção.
Algumas espécies são indiretamente recursos potenciais, cm virtu­
de de suas associações ecológicas. O botânico Arthur GaLston descreveu
um desses casos, envolvendo o feto aquático conhecido atm o Azolla
pinnata, o qual vem sendo cultivado nos arrozais jwlos camponeses de
algumas aldeias do Vietnã setentrional. Essa planta não-comestível c
aparentemente inútil abriga colônias de microscópicas algas cianolitas
em bolsas especiais nas suas folhas. Essas algas são “fixadoras de nitro­
gênio”, ou seja, convertem o nitrogênio atmosférico, o principal compo­
nente do ar, em fertilizante nitrogenado, que as usinas podem utilizar, e
esse fertilizante dissolve-se na água circundante, alimentando os fetos e
o arroz. Não é de surpreender que as aldeias que conheciam os segredos
ciosamente guardados do cultivo do feto fossem as mais propensas a
produzir excepcionais quantidades de arroz.
As espécies cujas po.ssibilidades de recurso são desconhecidas não
podem, é claro, ser destacadas das demais para proteção, mas é bem pro­
vável que a maioria das comunidades, se não todas, contenham espécies
com tais possibilidades. Assim, o argumento do recurso não-desenvolvi-
do foi usado para apoiar o crescente movimento para salvar ecossistemas
“representativos” e auto-sustentados em todas as partes do mundo (um
“ecosistema” é uma comunidade vegetal e animal natural em seu meio
ambiente físico total de topografia, substrato de rocha, chma, latitude
geográfica, etc.). Tais ecossistemas vão desde as pedregosas e relativa­
mente áridas colinas da Galiléia, as quais ainda abrigam os ancestrais
selvagens do trigo, da aveia e da cevada, até as florestas tropicais do
mundo, cujos recursos em madeira, alimento e produtos florestais per­
manecem em grande parte desconhecidos, mesmo quando são destruídos.
3. Valores de estabilização do ecossistema. Este item está no cen­
tro de uma difícil controvérsia que nasceu em torno da teoria ecológica
da conservação, uma controvérsia baseada numa idéia científica semipo-
pular que foi muito bem expressa por Barry Commoner:

O montante de estresse que um ecossistema pode absorver antes de ser le­


vado ao colapso é também o resultado de suas várias interconexões e suas
relativas velocidades de respostas. Quando mais complexo for o ecossis­
tema, com muito maior êxito pode resistir a um estresse. [..] à semelhança
de urna rede, na qual cada nó está ligado a outros por alguns fios, essa tes­
situra pode resistir à desintegração muito melhor do que um simples arcu-
lo de fios desconexos — que, se for cortado em qualquer ponto, desfaz-se
como um todo. A poluição ambiental é, com freqüência, um sinal de que
vínculos ecológicos foram cortados e de que o ecossistema foi artificial­
mente simplificado.

Explicarei um pouco mais adiante por que a idéia de que os ecossistemas


naturais que conservaram sua diversidade original são mais estáveis do
que os ecossistemas simplificados e perturbados é uma idéia controver­
tida; mas enumero-a aqui porque se tomou uma das principais racionali­
zações para a preservação de não-recursos, para a manutenção da plena
diversidade da Natureza. Uma formulação mais gertil e muito menos
controvertida desse conceito de “diversidade-estabilidade” 6 discutida
separadamente no Item 9 desta lista.
Uma derivação específica e menos incômoda da hipótese diversi­
dade-estabilidade diz respeito às monoculturas — culturas permanentes
de um só produto agrícola— em agricultura e silvicultura. Sabe-se desde
longa data que a monocultura intensiva que caracteriza as modernas fa­
zendas e florestas plantadas leva à maior comodidade e a reduzidos cus­
tos de cultivo e colheita, assim como a um grande aumento de produção;
mas tudo isso é à custa de um maior risco de doença epidêmica e vulne­
rabilidade aos ataques de insetos e outras pragas. A razão para isso pode
ser entendida em parte em termos de uma redução da diversidade das es­
pécies. Isso resulta em intervalos muito mais exíguos entre plantas da
mesma cultura, o que, por sua vez, facilita a propagação de pragas e de
organismos transmissores de doenças. Também elimina espécies de
plantas que fornecem abrigo para inimigos naturais de pragas específicas
de plantas. As monoculturas também criam problemas na pecuária e pis­
cicultura, freqüentemente por causa da dispendiosa ineficiência que
ocorre quando a única espécie envolvida faz um uso incompleto dos re­
cursos alimentares disponíveis. Voltarei em breve a esse ponto, quando
examinar a pecuária de animais selvagens africana.
4. O valor como exemplos de sobrevivência. Comunidades vege­
tais e animais, e em menor medida as espécies isoladas, podem ter valor
como exemplos ou modelos de sobrevivência a longo prazo. J.W. Hum-
ke observou: “A grande maioria dos sistemas naturais vem funcionando
essendalmente em sua forma atual há muitos milhares de anos. Por outro
lado, sistemas consideravelmente modificados e dominados pelo homem
não funcionaram de um modo muito confiável no passado e, em certos
aspectos significativos, tampouco o fazem hoje.” Neste caso, o valor
econômico é indireto, consistindo em problemas evitados (dinheiro pou­
pado) em virtude do bom planejamento inicial de sistemas dominados
pelo homem ou da reparação de sistemas defeituosos, baseados em ca­
racterísticas extraídas de sistemas naturais. Esse ponto de vista está fi­
cando cada vez mais popular, à medida que aumenta a decepção a>m os
resultados do planejamento tradicional. Ocorreu a alguns observar a>-
munidades naturais bem-sucedidas em busca de pistas capazes de orientar a
organização de traços que resultem em persistência ou sobrevivência. 11.E.
Wright Jr. enunciou esse valor de não-recurso em sua mais forte forma na
frase com que conclui um interessante artigo sobre desenvolvimento ptiisa-
gístico: “A sobrevivência do homem pode depender do que se aprenda
através do estudo de extensos ecossistemas naturais.”
5. Linha básica ambiental e monitoração de valores. A variação
das dimensões populacionais de animais ou plantas, o status de seus ór­
gãos ou subprodutos, ou a mera presença ou ausência de uma dada espé­
cie ou grupo de espécies em certo meio ambiente, podem ser usados para
definir condições ambientais normais ou “básicas”, e para determinar o
grau em que comunidades foram afetadas por extraordinárias influências
externas, como a poluição ou a alteração do habitat por ação do homem.
Funções biológicas como a diversidade de espécies numa determinada
localização, quando estudadas por um período de anos, são os melhores
indicadores dos efeitos significativos da poluição, assim como o com­
portamento de um animal é o melhor indicador da saúde de seus sistemas
nervoso e músculo-esqueletal. A diversidade de espécies é uma resultan­
te de todas as forças que entram em contato com os ecossistemas. Exe­
cuta uma análise autom ática de produto final. Cumpre asssinalar
também que o valor econômico tradicional de uma espécie é desprovido
de importância na determinação de sua utilidade como indicador am­
biental — um ponto importante se estamos interessados na metamorfose
de não-recursos em recursos.
Com exceção da monitoração biológica da poluição da água, há al­
guns exemplos do uso de espécies outrora “sem valor” como indicadores
de mudança ambiental. No caso da poluição da água, o trabalho pioneiro
sobre espécies indicadoras foi realizado pela bióloga especializada em
organismos de água doce Ruth Patrick, que estuda as comunidades aquá­
ticas de algas e animais invertebrados. Ela e seus numerosos colegas
compilaram listas das espécies e quantidades de organismos que se espe­
ra encontrar em várias águas, sob condições naturais diversas.
Existem alguns outros exemplos desse uso de plantas e animais.
Os Uquens, complexas e inofensivas plantas que se incrustam em árvores
e pedras, são indicadores sensíveis da poluição do ar, especialmente a
causada pela poeira e o dióxido de enxofre. Poucos Uquens crescem num
raio de oitenta quilômetros de qualquer área urbana moderna — as flo­
restas do início da América colonial eram quaüficadas de brancos por
causa dos Uquens que cobriam os troncos das árvores, mas isso já não
existe. O lilás comum desenvolve uma doença chamada necrose da folha
enrolada, em reação a elevados níveis de ozônio e dióxido de enxofre. O
mel de abelhas revela a extensão da poluição de metais pesados da área
onde as abelhas coletaram o néctar. E a presença de caudas enroscadas
ou dobradas em girinos podem ser um indicador de pesticidas, chuva áci-
do ou mesmo de mudanças locais de clima. Tudo isso são rcminisctincias
da antiga prática de examinar o vôo e o comportamento alimentar de
pássaros para os augúrios sobre o futuro, embora não tenhamos a>mo
comparar a eficácia dos resultados.
6. Valores de pesquisa científica. Muitas criaturas que, sob outros
aspectos, são economicamente insignificantes, possuem alguma caracte­
rística singular ou especial que as toma extremamente valiosas para os
investigadores científicos. Por causa de sua relação com os seres huma­
nos, os orangotangos, chipanés, macacos e até os primatas inferiores ca­
bem nessa categoria. As lulas e o obscuro molusco conhecido como a
lebre-do-mar têm propriedades do sistema nervoso que os tomam imen­
samente valiosos para os neurocientistas. O nascimento de quadrigê­
meos idênticos de tatu e as reações hormonais do sapo Xenopus fazem
deles objetos de estudo especial para os embriologistas e os endocrinolo-
gistas, respectivamente. O estranho ciclo vital dos micetozoários tomou
esses fungos os favoritos dos biólogos que estudam a química das intera­
ções célula-célula.
7. Valores didáticos. O valor didático de um ecossistema intato
pode ser calculado indiretamente anotando-se o valor econômico de al­
ternativas para o uso da terra que é permitido deslocar. Por exemplo,
uma administração universitária pode preservar uma flortesta didática no
campus se o uso concorrente for um parque extra para o equipamento de
manutenção, mas poderá não se mostrar tão favorável à conservação se a
terra florestada for requerida para a instalação de um novo centro adminis­
trativo. Isso estabelece o “valor” didático da floresta para a administração.
Num caso em 1971, um juiz federal dos Estados Unidos ordenou
que a Guarda Nacional do Estado de Nova York retirasse um aterro da
margem do rio Hudson e repusesse o mangue salobro que antes ocupara
o local. Umas das razões dadas pelo juiz, embora talvez não fosse a mais
importante em sua opinião, foi que o mangue era antes usado pelas clas­
ses de biologia do colégio local.
8. Valores de reconstrução do habitat. Os sistemas naturais são de­
masiado complexos para que os seus elementos e relações funcionais
possam ser integralmente descritos ou registrados. Tampouco podemos
reconstituir geneticamente espécies uma vez que tenham sido extintas.
Por conseguinte, se desejamos restaurar ou reconstruir um ca)ssistema
no que foi outrora o seu habitat, necessitamos de ecossistema vivo e in­
cólume desse tipo a fim de servir tanto de modelo de trabalho quanto de
fonte de componente vivos. Isso é tacitamente pressuposto pelos ca)lo-
gistas de florestas tropicais, por exemplo, que se dão contti de que o des-
matamento de áreas muito extensas de florestas tropicais pode tomar
muito difícil para a floresta recuperar algo parecido com a sua estmtura
original e riqueza de espécies. Em algumas florestas temperadas seten­
trionais, o desmatamento por faixas, com faixas intercaladas de floresta
deixadas intatas para replantio e habitat animal, está agora ganhando a
predileção dos madeireiros para suas operações comerciais. Os casos
concretos de ecossistemas totalmente reconstruídos ainda são raros e as­
sim continuarão sendo por muito tempo: o melhor exemplo é fom eddo
pelos vários esforços para restaurar os mangues salinos em estuários de-
pedrados; isso foi possível porque o mangue salgado é uma comunmida-
de relativamente simples, com apenas algumas plantas dominantes, e
porque existe ainda ambundância de mangues salgados para servir como
fontes de plantas e animais e como modelos para reconstrução. No futu­
ro, se certos ecossistemas ameaçados forem reconhecidos como úteis
para nós, então quaisquer fragmentos remanescentes desses ecossiste­
mas assumirão um especial valor de recurso.
9. Valor conservador: evitação de mudança irreversível. Isso
constitui uma reafirmação geral do temor básico que está subjacente a
cada um dos outros itens desta lista; mais cedo ou mais tarde, ele vem à
tona em todas as discussões sobre a economia de não-recursos. Reflete a
crença conservadora de que uma mudança irreversível, produzida pelo
homem, na ordem natural — a perda de uma espécie ou de uma comuni­
dade natural — pode acarretar um risco oculto e incognoscível de graves
danos para os seres humanos e suas civilizações. Preserve-se toda a
gama de diversidade natural porque ignoramos os aspectos dessa diver­
sidade dos quais depende a nossa sobrevivência a longo prazo. Foi essa
uma das idéias básicas de Aldo Leopold.

Um sistema de œnservaçâo baseado unicamente no interesse econômico


pessoal é irremediavelmente desequilibrado. Tende a ignorar e, em última
instância, a eliminar muitos elementos na comunidade terrestre que care­
cem de valor comercial, mas que são (até onde sabemos) essenciais ao seu
funcionamento saudável.

O que Ixopold fez foi rejeitar uma abordagem flagrantemente humanista


a favor de uma outra sutilmente humanista, e esse malogro em escapar à
tendência humanista acarretou uma fraqueza de seu, sob todos os demais
aspectos, poderoso argumento. Leopold deixa-nos sem nenhuma justifi­
cação real para preservar os animais, plantas e habitats que, como
Leopold sabia, são quase certamente não essenciais ao “funcionamento
saudável” de qualquer grande ecossistema. Não se trata de uma categoria
trivial; ela abrange, em parte, as numerosas espécies e até aímunidades
que sempre foram extremamente raras ou que sempre estiveram gaigra-
ficamente restritas a uma pequena área. Poder-se-ia argumentar, por
exemplo, que os liquens, que outrora foram ubíquos, talvez desempenhas­
sem algum papel oculto mas fundamental na ecologia a longo prazo das
florestas— isso seria quase impossível de provar ou refutar. Mas a mesma
asserção não poderia ser formulada seriamente para a pediculária, um
pequeno membro da família da boca-de-leão que provavelmente nunca
foi mais do que um raro componente das florestas do Maine.

Exageros e Distorções
A Usta precedente contém a maior parte, se não a totalidade das ra­
zões que uma sociedade humanística engendrou para justificar a conser­
vação, pouco a pouco, de coisas na Natureza que, à primeira vista, nada
parecem valer para nós. Como tal, todas elas são racionalizações — com
freqüência, racionalizações verdadeiras, sem dúvida, mas racionaliza­
ções, apesar de tudo. E, sendo elas o que são, o normal é que sejam pron­
tamente detectadas por quase todo o mundo e tendam a não ser muito
convincentes, independentemente de sua maior ou menor sinceridade.
Nesse caso, racionalizações estão muito longe de ser tão convincentes,
para a maioria das pessoas, quanto os argumentos econômicos a curto
prazo usados para justificar a preservação de recursos “reais”, como o
petróleo e a madeira.
Numa sociedade capitalista, qualquer pessoa ou empresa que tra­
tasse os não-recursos como se fossem recursos faliria provavelmente aí
pela época de receber a primeira medalha por relevantes serviços públi­
cos. Numa sociedade socialista, o resultado seria o não-cumprimento de
quotas de crescimento, o que pode ser tão desagradável quanto a falènda
a partir de um ponto de vista pessoal. As pessoas não estão preparadas
para chamar a alguma coisa um recurso por causa de considerações a
longo prazo ou probabilidades estatísticas que possam vir a ser. Por ra­
zões análogas, a maioria das populações ocidentais está disposta a conti­
nuar vivendo nas vizinhanças de usinas nucleares e respirando fibras de
amianto. Os humanistas não gostam de preocupar-se com perigos que es­
tão longe da vista, sobretudo quando o “conforto” material está em jogo.
Se examinarmos o último item na lista, o “valor coaservador” de não
recursos, a dificuldade toma-se imediatamente óbvia. O valor camômico,
neste caso, é remoto e nebuloso; é proteção contra umsíls desagradáveis que
possam ocorrer durante a noite, os perigos desamhecidos de uma mudança
irreversível. N ã o só o risco é neb u loso, m as se um perigo se caracteriza
co m o resultado da perda d e um não-recurso, p od e ser im p o ssív e l provar
ou m esm o detectar a con exão. M esm o n os c a so s em que parece provável
que a perda d e um n ão-recu rso d ese n c a d e ie m u d an ças in d e se já v e is a
lo n g o prazo, a argum entação pode ser com p lexa e técnica dem ais para
ser m uito persuasiva; poderá até contrariar a crença popular.
U m e x e m p lo e x c e le n te , em bora n ão-p rem ed itad o, d este ú ltim o
ponto fo i fornecido p elo eco lo g ista D avid O w en e, independentem ente,
p e lo san itarista W .E . O rm erod. A firm aram e le s qu e a m o sc a tsé -tsé ,
transm issora da doença de gado tripanossom íase, pode ser esse n c ia l ao
bem -estar de vastas áreas da Á frica a o su l d o Saara, porque m antém o
gado fora das regiões propensas ao e x c e sso d e pastagem e conseq ü en te
form ação do deserto. M as o s programas d e erradicação da tsé-tsé p ro sse­
guem a todo o vapor.
Por causa da grande com p lexid ad e das relações am bientais e da in ­
fin id ad e de in terlig a çõ es entre ob jeto s e a c o n tecim en to s na N atureza,
também é p o ssív e l que e co lo g ista s e am bientalistas partam para o ex tre­
m o op o sto e postulem co n seq ü ên cias futuras a partir d e acon tecim en tos
presentes quando, na verdade, é im provável qu e exista qualquer lig a çã o
ou relação causal. Há m esm o aq u eles que, avançando m uito além da p o ­
siç ã o e c o lo g ic a m e n te a c e itá v e l, ainda q u e h u m a n ística , d e L eo p o ld ,
pressupõem que tiido na Natureza é esse n c ia l à sob revivên cia d o m undo
natural porque a ev o lu çã o assegura que tudo está aqui para um propósito
ou um a razão im portante. R. AUen, por e x em p lo , resum iu num a revista
de divu lgação cien tifica suas razões para apoiar-se estritam ente em argu­
m entos de recursos com v istas à preservação da riqueza da Natureza: o
clim a e co n ô m ico é agora d e tal ordem , observa e le , que

somente prevalecerão os argumentos mais fortemente práticos. Os ecolo­


gistas pusilânimes que temem que suas espécies favoritas sejam totalmen^
te inúteis terão que correr o risco. Existe, sem dúvida, alguma redundância
no sistema, mas há sólidas bases teóricas para se acreditar que a maioria
das espécies neste planeta aqui estão por uma razão melhor do que serem
sofríveis leitores de mapas galácticos.

AUcn está dizendo que tudo na N atureza — inclu in d o quase todas


as esp é c ie s — está intim am ente interligado e quase tudo tem seu próprio
papel a desem penhar na m anutenção da ordem natural: por con segu in te,
quase todas as esp é c ie s sã o im portantes, p ossuem valor d e recurso. E li-
m in e-se uma esp écie, m esm o um a que, d e um ponto d e vista de recurso,
seja aparentem ente trivial, e é m ais do que provável qu e ven h am os a sen -
tir as conseqüências de algum modo, cm algum lugar, algum dia Isso
não é uma idéia nova — sua popularidade científica remonta, pelo me­
nos, aos escritos de Charles Babbage e George P. Marsh no século XIX.
No capítulo 9 do Ninth Bridgewater Treatise, Babbage afirma que “a
terra, o ar e o oceano são eternas testemunhas dos atos que pratiaimos.
[...] Nenhum movimento deflagrado por causas naturais ou ação humana
jamais é apagado”. Vinte e sete anos depois, Marsh resumiu .550 páginas
de exemplos das conseqüências ecológicas de nossa interferência com a
Natureza, parafraseando e ampliando as idéias de Babbage:

Existe não só na consciência humana ou na onisciência do Criador mas na


natureza material externa, um registro indelével e imperecível, possivel­
mente legível até para a inteligência criada, de todos os atos realizados, to­
das as palavras proferidas, mais ainda, de todos os desejos, propósitos e
pensamentos concebidos pelo homem mortal, desde o nascimento do nos­
so primeiro ancestral até a extinção final da nossa raça; de modo que os
traços físicos dos nossos mais secretos pecados durarão até que o tempo se
funda naquela eternidade da qual não a ciência, mas somente a religião,
supõe tomar conhecimento.

Em certo sentido, é claro, isso é correto. Pode haver traços perma­


nentes de cada ato que praticamos (embora, por certo, sem suficiente
conteúdo informativo que os torne legíveis para nós, na maioria dos ca­
sos). E há uma infinidade de ligações obscuras em ecologia, a maior par­
te delas fora do alcance do nosso conhecimento: foi recentem ente
descoberto, por exemplo, que na ilha Maurício, no oceano Índico, os
poucos espécimes sobreviventes idosos de uma espécie de árvore cha­
mada Calvaria major já não estão produzindo mais árvores novas por­
que as sementes, que as velhas árvores ainda soltam em abundância, têm
de passar pela moela de um dodo antes de germinar. E o dodo, uma das
nossas mais antigas vítimas, está extinto desde 1681.
Marsh, porém, está querendo dizer mais do que esse tipo de coisa.
Ele dá a entender, tal como Allen, que uma considerável percentagem
dos traços remanescentes de nossas ações terá conseqüências humanísti-
cas — afetará os recursos. Não posso aceitar isso. Concordo com Marsh
que o desmatamento do Vale do Ganges deve ter alterado definitivamen­
te a ecologia da baía de Bengala em impjortantes aspectos. Mas houve
permanentes e importantes efeitos de “recurso” em conseqüência da ex­
tinção na selva de grande descoberta de John Bartram, a bela Franklinia
alatamaha, que já tinha quase desaparecido da face da 'Perra quando
Bartram nele pôs os olhos pela primeira vez? Ou de mil espécies de mi­
núsculos besouros de cuja existência jamais tivemos conhecimento antes
ou depois de seu provável extermínio? Poderemos até estar certos de que
as florestas do leste dos Estados Unidos sofrem a perda de seus pombos
selvagens e castanheiros de alguma forma tangível que afete a vitalidade
ou permanência delas, seu valor para nós?
O máximo que podemos dizer é que qualquer uma dessas perdas
podería ter conseqüências horríveis e, embora esse argumento seja pode­
roso para mim e para muitos outros ecologistas e conservadonistas, já
mostrei quais são as suas deficiências. Não estou assim tão certo de que
as “sólidas bases teóricas” de Allen possam proteger o sapo de Houston,
as matas tropicais e a numerosa legião de outras coisas vivas que mere­
cem uma chance de levar até o fim sua evolução sem serem estorvadas
pela concretização de nossas fantasias humanísticas.

Assim o dilema da conservação está exposto: normalmente, os


humanistas não estarão interessados em salvar nenhum não-recurso,
nenhum fragmento da Natureza que não seja manifestamente útil à
espécie humana, e é improvável que as várias razões apresentadas para
demonstrar que esses não-recursos são realmente úteis ou potencialmente
valiosos sejam convincentes, mesmo quando são verdadeiros e corretos.
Quando se dá a tudo o nome de um recurso, a palavra perde todo o
significado — pelo menos, num sistema humanista de valores.
Uma conseqüência do düema é que os conservadonistas são estimu­
lados a exagerar e distorcer os “valores” humanísticos de não-recursos. O
exemplo mais irritante e embaraçoso para os conservadonistas diz respeito
à questão diversidade — estabilidade que examinamos antes. Devo esclare­
cer desde o início, porém, que a controvérsia entre ecologistas não é em tor­
no da necessidade geral de preservar a riqueza biológica da Natureza — há
pouca discussão sobre isso — mas a respeito da razão teórica apresentada
por Commoner e outros de que ecossistemas variados são mais estáveis do
que os depauperados (num sentido a curto prazo), de que estão mais capaci­
tados para resistir à poluição e a outras mudanças indesejáveis, provocadas
pelo homem. Como disse o ecologista Daniel Goodman:

D e um ponto de vista prático, a hipótese diversidade-estabilidade não é


realmente necessária; mesmo que a hipótese seja completamente falsa,
continua sendo logicamente possível — e, à luz das melhores provas exis­
tentes, muito provável — que a desintegração dos padrões de interação
desenvolvidos em comunidades naturais venham a ter conseqüências de­
sagradáveis e ocasionalmente catastróficas.
Para entender as origens da controvérsia, temos de remonta» a um
estudo clássico feito pelo grande ecologista espanhol Ramón Margalef.
Notou Margalef, como outros tinham feito anteriormente, que á medida
que comunidades naturais de plantas e animais envelheciam após uma
perturbação inicial (um incêndio, a lavra de um campo, um desmorana-
mento, uma erupção vulcânica, etc.), a tendência das espécies dessa co­
munidade era para aumentar até ser atingida uma quantidade máxima e
surgir uma comunidade “clráiax” característica. Acreditava-se que essa
comunidade clímax durava até a perturbação seguinte, em qualquer tem­
po que viesse a acontecer. A todo esse processo de mudança foi dado o
nome de “sucessão”. Uma típica sucessão vegetal num campo abandona­
do em Nova Jersey ou na Pensilvânia começaria com as ervas daninhas
anuais, como o capim cauda de raposa (Alopecuruspratensis) e a tasnei-
ra (Tanacetum nilgaris); isso mudaria após um ou dois anos para ervas
perenes, como as varas-de-ouro e astropóUos; logo surgiriam moitas de
amoras e outras plantas silvestres e, depois, as primeiras árvores “suces­
sórias” — o cedro-vermelho e a cerejeira negra brotariam de sementes
lançadas à terra por pássaros. Após dez ou quinze anos, outras árvores
como o bordo ou o carvalho poderão ter sido semeadas a partir dos bos­
ques circundantes, e meio século depois disso a floresta de carvalho c
nogueira cederia gradualmente o lugar à comunidade clímax de árvores
amantes da sombra; faia, bordo sacarino e vidoeiro amarelo.
Para Margalef, esse avanço sucessional para uma comunidade clí­
max (ecossistema “maduro”, em sua terminologia) era um dos muitos e
sóüdos indícios de que os estágios ulteriores da sucessão têm maior “es­
tabilidade” do que os anteriores. Como ele também acreditava que esses
ecossistemas posteriores eram mais variados em espécies e nos vínculos
ou interações entre espécies, afirmou que essa diversidade era responsá­
vel pela maior estabilidade dos ecossistemas maduros — que a estabili­
dade era uma conseqüência da estrutura tipo teia das comunidades mais
complexas. Desse gênero de raciocínio foram extraídas analogias tais
como a de Commoner, citada, na qual a resistência de uma comunidade
sucessional mais recente era comparada à de uma rede. Essa hipótese re­
velou-se o elemento catalisador para os conservacionistas que deseja­
vam ju s tific a r com razões cien tíficas seu desejo originalm ente
emocional de proteger a Natureza na plenitude de sua riqueza, incluindo
a maioria aparentemente inútil das espécies. Nas palavras de (uxxlman,
existe um “atrativo básico [em] sua metáfora subjacente. íi o tipo de coi­
sa em que as pessoas gostam de acreditar, e querem fazê-lo.”
Quando Margalef ainda estava aprimorando a sua hipótese, cinco
linhas de indícios já se combinavam para abalar a parte dela cuja descri­
ção aqui fiz. Em primeiro lugar, os resultados de muitos estudos separa­
dos de ecossistemas terrestres e aquáticos mostraram que a diversidade
nem sempre aumenta com a sucessão, sobretudo nas fases finais. Em se­
gundo lugar, descobriu-se que o processo de sucessão nem sempre é tão
esquemático e regular quanto se acreditava antes, e que a idéia de uma
comunidade “clímax”, como a maioria de tais abstrações, só pardalmen-
te está de acordo com o que vemos na Natureza. Em terceiro lugar, inves­
tigações sobre associações de plantas pelo ecologista da Universidade
ComeU, R.H. Whittaker, e seus colaboradores tendiam a mostrar que a in­
terdependência e as interações das espécies encontradas juntas em co­
munidades maduras tinham sido um tanto exageradas.
Em quarto lugar, uma análise matemática por Robert May não
pôde confirmar a noção intuitivamente atraente enunciada por Commo-
ner de que quanto maior fosse o número de interações, ou vinculações,
maior seria a estabilidade do sistema. Os modelos matemáticos de May
funcionaram de forma inversa: quanto mais elementos (espécies e intera­
ções de espécies) houvesse, maior a variação do tamanho das “popula­
ções” no sistema quando aplicada uma alteração externa simulada. Em
teoria, ele apurou que os sistemas mais diversos deviam ser os mais de-
ücados; eram os que corriam o maior risco de colapso após uma mudan­
ça provocada pelo homem.
Em quinto lugar, as próprias provas diretas dos conservacionistas
apoiaram May e refutaram a hipótese original: as comunidades diversas,
“maduras”, eram quase sempre as primeiras e desintegrar-se sob uma
forte pressão imposta pelo homem e eram sempre as mais difíceis de pro­
teger. Por outro lado, a brilhante descrição pelo próprio Margalef das
primeiras espécies colonizadoras indicaram que esses residentes de co­
munidades “imaturas” são normalmente resilientes, oportunistas, geneti­
camente variáveis e adaptáveis do ponto de vista comportamental, e têm
elevadas taxas reprodutivas. Os insetos nocivos, as ervas daninhas e as
espécies de caça comum são, entre outros, os organismos mais difícieis
de erradicar.
Como May e outros perceberam, a hipótese diversidade-estabili­
dade, no sentido restrito aqui descrito, era um caso de causa e efeito in­
vertido. As comunidades mais diversas eram normalmente aquelas que
tinham ocupado os ambientes mais estáveis pelos mais longos períodos
de tempo. Eram dependentes de um meio ambiente estável — e, não o
inverso. Não produziram necessariamente o gênero de estabilidade inter­
na, a curto prazo, cuja existência fora suposta por Margalef. A moral
dessa história salienta a pungência do dilema da amservação. Em nossa
ânsia por demonstrar um “valor” humanístico para os grandiosos, diver­
sos e “maduros” ecossistemas do mundo — a chuva tropiail e as llorcs-
tas úmidas, os recifes de coral, os desertos das zonas temperadas, etc. — ,
enfatizamos o papel que eles estavam desmpenhando na estabilização
imediata de seus próprios meios ambientes (incluindo suas próprias po­
pulações componentes) contra a poluição e outros subprodutos desinte-
gradores da civilização moderna. Isso foi uma distorção parcial que não
só levou a que se prestasse menos atenção aos valores reais, transcenden­
tes e a longo prazo desses ecossistemas, mas também ajudou a obscure­
cer por algum tempo sua extrema fiagilidade em face do “progresso” humano.
Muitas espécies diferentes de “estabilidade” dependem, com efei­
to, da manutenção da diversidade biológica — a riqueza da Natureza.
Isso é especialmente evidente, hoje em dia, nos lugares, em sua maioria
tropicais, onde os solos são propensos à erosão, à perda de nutrientes e à
formação de crostas de “laterista”, semelhantes ao tijolo, e onde pode
ocorrer a formação de desertos; mas nenhum desses efeitos, por mais im­
placável e duradouro que seja, poderá jamais ser tão fácil de explicar a
leigos quantos a hipótese da “estabüidade líquida”.
Um exemplo muito menos complexo de um exagero ou distorção
que resultou do impulso para descobrir valores para não-recursos diz res­
peito à criação de animais selvagens africanos. Nas décadas de 1950 e
1960 foi assinalado pela primeira vez que a captura e criação em fazen­
das de animais selvagens nativos do mato e da savana poderia produzir,
no mínimo, tanta carne por hectare quanto a criação de gado, sem a des­
truição de vegetação que está sempre associada ao gado em ambientes
áridos. Essa afirmação não pode ser criticada em termos de teoria ecoló­
gica, a qual reconhece que as dezenas de espécies de grandes herbívoros
nativos — como gazelas, gnus, zebras, girafas - comem diferentes partes
da vegetação ou a mesma vegetação em épocas diferentes e que, portan­
to, o meio ambiente pode tolerar muito melhor a pastagem de animais
nativos do que um número equivalente ou até menor de gado vacum, que
em sua totalidade come as mesmas coisas. Tampouco existe um pro­
blema no tocante à tolerância alimentar: os africanos estão acostuma­
dos a comer e a gostar de uma grande variedade de animais, desde
roedores, morcegos e tamanduás, até macacos, tartarugas, caracóis,
gafanhotos e moscas.
Só recentemente se manifestaram as iasaspeitadas dificuldades para a
implantação desse singelo plano. À parte os sérios pa)blemas culturais refe­
rentes ao elevado valor social do gado cm algumas tribos afriainas, o que
faz esses africanos relutarem em reduzir o tamanho de seus rebanhos, o
maior obstáculos é ecológico. À antiga teoria de criação de animais sel­
vagens e os subseqüentes programas de “cultivo” propostos por lan Par­
ker pressupõem tacitam ente que as populações a serem abatidas
substituirão os animais que se perderam, ou em outras palavras, que as
populações de herbívoros selvagens œ m estiveis estarão em condições
de adaptar-se a uma grande perda anual causada pelos caçadores das es­
pécies com valor de mercado. Isso é verdade, sem dúvida, a respeito de
algumas das espécies mais fecundas, mas nem todas são passíveis de se
reproduzir com rapidez suficiente para enfrentar a exigência dessa contí­
nua mortalidade. A dinâmica populacional e a ecologia de controle de
quase todas as espécies ainda são em grande parte desconhecidas, e a ex­
ploração, legal e ilegal, processa-se com pouco mais do que especula­
ções a respeito das conseqüências a longo prazo. Num recente estudo
ecológico foi demontrado que a pastagem maciça por gnus durante suas mi­
grações anuais é necessária a fim de se produzir um luxuriante tapete de capins
que possa ser comido meses depois pelas gazelas de Thompson. Quantas mais
relações como essas existirão e sobre as quais nada sabemos?
A questão aqui está no perigo de supor, com um ar de infalibilida­
de, que se sabe quais serão os efeitos ecológicos da criação de animais
selvagens. Uma vez mais, isso é uma manifestação da arrogância do hu­
manismo; se os animais têm que ser considerados recursos e merecem
ser poupados, então devem estar acessíveis para exploração. Mas a nossa
ignorância dos efeitos do abate foi repetidamente enfatizada por Hugh
Lamprey e outros com um profundo conhecimento da ecologia do leste
africano. Em seu livro magistral The Last Place on Earth, Harold Hayes
descreve esses argumentos ecológicos e exemplifica magnificam ente
muitos deles com urn episódio que lhe foi contado por Jonh Owen, o fa­
moso ex-diretor do Parque de Serengeti. Owen estava descrevendo a
controvérsia em tomo do regresso de elefantes, uma manada de dois mil
animais, a Serengeti e os alegados prejuízos que eles estavam causando
aos ecossistemas do parque. Deveriam os elefantes sofrer um abate, eis a
questão a ser decidida: cada lado tinha os seus defensores.

Quando eu descia de Arusha, os guardas de parques levavam-me a dar


uma volta e mostravam-me as acácias espezinhadas. No dia seguinte, os
cientistas [ecologistas do Instituto de Pesquisas de Serengeti] levavam-me
a dar uma volta e mostravam-me os novos brotos de acácia florescendo
numa outra parte do parque. A s sementes de acácia são transportadas e
fertilizadas pelo esterco dos elefantes.
A esta altura, boa parte dos problemas 6 com os caçadores clandes­
tinos e reconhece-se haver uma remota possibilidade de que a caça fisca­
lizada e os esquemas de abate em grande escala tenham o efeito de tornar
anti-econômica a caça clandestina (para venda à vista). Mas também há
a possibüidade de que a criação e abate animais selvagens afete a diver­
sidade das espécies e a estabilidade do ecossistema tanto quanto a caça
clandestina ou mesmo, em alguns casos, a pecuária. Em nosso açoda­
mento para preservar zebras, gnus e gazelas, dotando-os de um valor hu-
manístico concreto, podemos ter exagerado um tipo de recurso potencial
(têm muitos outros) e, com isso, tê-los ameaçado ainda mais.
Uma das lições dos exemplos acima citados é que os conservacio-
nistas não podem confiar mais do que as outras pessoas nos pressupostos
de poder e na doutrina de causas finais: eles não devem supor que a teo­
ria ecológica pode ser sempre invocada em apoio a seus casos, especial­
mente quando esses casos se referem a objetivos humanísticos imediatos
e quando o âmbito do debate foi artificialmente restringido por um tipo
de abordagem custo-benefício a curto prazo. É um sério equívoco supor
que, por sermos atualmente a criação mais notável da Natureza, cada um
das outras inúmeras criaturas e atividades possa, de algum modo, ser
usada em nosso benefício, se descobrimos a chave. Tal como os conser-
vacionistas a usam, essa é uma das mais brandas e bem — intencionadas
das ilusões humanistas, mas as falsidades que resultam de boas intenções
nem por isso deixam de ser falsidades.
Um outro exemplo de uma situação em que as teorias ecológicas,
se consideradas num contexto restrito, não apóiam as práticas de conser­
vação foi descrito pelo ecologista tropical Daniel Janzen:

Um possível remédio [para a persistência de pragas e doenças nos


trópicos durante o ano inteiro] é desagradável para o conservacionista. O
pontecial agrícola de muitas áreas tropicais sazonalmente secas poderia
muito bem ser aumentado pela destruição sistemática da vegetação ribei­
rinha e de outros tipos de vegetação que são deixados, com frequência, para
dar sombra ao gado, controle da erosão e conservação. Seria uma excelente
medida substituir a figueira de Bengal a, que se derrama e propaga de forma
tentacular, por um alpendre. [...] Alguns estudos até sugerem que os pastos
excessivamente usados pelo gado podem ter um rendimento global supe­
rior ao de campos administrados mais cuidadosamnte, [...] sobretudo se os
custos reais de administração forem cobrados do sistema.

Ou seja, Janzen demonstrou aqui ser muito possível ã teoria ea)ló-


gica dotar não-recursos de um valor negativo, provar que eles são risats
econômicos. Nesse caso específico, as considerações ca)lógicas a longo
prazo (tais como os custos finais de erosão, a f>erda de nutrientes do solo
e fatores relacionados com todos os itens da lista apresentados antes) mi­
litariam provavelmente contra as considerações ecológicas a curto prazo
descritas por Janzen. Mas o resultado líquido e prático de qualquer ten­
tativa conservacionista para demonstrar um valor de recurso da vegeta­
ção ribeirinha e de outros tipos de vegetação nos trópicos sazonalmente
secos, tendo por base a teoria ecológica, seria expor a posição conserva­
cionista a um ataque desnecessário.
Quero enfatizar aqui que a finalidade do presente capítulo é de na­
tureza restrita: demonstrar como os ubíquos pressupostos humanistas
contaminam e danificam os esforços até daqueles que estão empenhados
em combater as conseqüências ambientais do humanismo moderno, e
em identificar as razões honestas, duradouras e não-humanistas para sal­
var a Natureza. Isso não significa que eu rejeite argumentos de recurso
quando são válidos. A floresta amazônica, a tartaruga verde e muitas ou­
tras formas de vida são, de fato, recursos; contribuem maciçamente para
a manutenção do bem-estar humano. A perspectiva de sua perda é assus­
tadora para qualquer pessoa com conhecimentos ecológicos, e não é
minha intenção fazer com que o pareça menos. Mas essa é apenas
uma das razões para a conservação, e não deve ser aplicada de modo
negligente, que mais não seja pela probabilidade de abalar a sua pró­
pria eficácia.

Riscos Adicionais
Mesmo quando é inteiramente legítimo encontrar valores humanísti-
cos para antigos não-recursos, pode ser arriscado, de um ponto de vista de
conservação, fazer isso. O que acontece é que descobrir um papel de recurso
para essas partes outrora sem vaha de Natureza revela-se uma semi-solução,
e não tarda a aparecer uma série de problemas residuais. Os ecologistas J.
Gosseünk, Eugene Odum e seus colegas realizaram uma investigação para
descobrir o “valor” dos mangues justamarítimos ao longo da costa sudeste
dos Estados Unidos, investigação essa que — apesar de sua elegância cien­
tífica — pode servir como ilustração desses riscos.
A finalidade do projeto era estabelecer um valor monetário defini -
do para os mangues, baseado em propriedades de recurso concreto. Por­
tanto, os valores estéticos não foram considerados. As propriedades
estudadas compreendiam a ação dos mangues na remoção de poluentes
das águas costeiras (uma espécie de tratamento terciário dos esgotos),
produção de peixe para pesca espx>rtiva e como fonte de alimento (os
mangues servem de “berçário” para o peixe novo), o potencial para a
aquacultura e uma série de outras funções difídeis de quantificar. O va­
lor final do mangue inato foi calculado em 82.940 dólares por meio hec­
tare. Embora o cálculo fosse complexo e especulativo, o qual poderia ser
concebivelmente contestado por alguns ecologistas, estou perfeitamente
disposto a aceitá-lo. Os mangues salinos são valiosos.
Chamar a atenção para o seu valor será a melhor maneira de con­
servar os mangues salinos? Se um dado mangue valesse menos quando
colocado em uso concorrente do que em sua condição intata, a resposta
poderia ser “sim”, desde que o mangue fosse de propriedade pública.
Mas a descoberta do valor pode ser perigosa; com efeito, renuncia-se a
todo direito para rejeitar os pressupostos humanistas.
Em primeiro lugar, qualquer uso concorrente com um valor supe­
rior, por menos que seja o diferencial, teria direito à prioridade no uso da
região do mangue. Como a grande maioria dos usos concorrentes são ir­
reversíveis, um subseqüente aumento relativo no valor da terra algadiça
chegaria tarde demais. De um modo geral, não demolimos apartamentos
luxuosos a fim de recuperar mangues justamarítimos.
Em segundo lugar, os valores mudam. Se, por exemplo, é desco­
berto um novo processo e o tratamento terciário do esgoto fica subita­
m ente menos dispendioso (ou se o esgoto adquire valor como m a­
téria-prima), então descobriremos, de um instante para outro, que os
mangues de maré passaram a “valer” muito menos do que antes.
Em terceiro lugar, a implicação do estatuto é que tanto as qualida­
des valiosas quanto as sem valor do mangue são todas conhecidas e iden­
tificadas. Inversamente, isso significa que as qualidades do mangue
salino a que não foi atribuído um valor convencional não são muito im­
portantes. Esse é um pressuposto deveras perigoso.
Em quarto lugar, C.W. Clark calculou que lucros rápidos decor­
rentes da exploração imediata, mesmo ao ponto de extinção de um recur­
so, são com freq ü ên cia econom icam ente su p erio res aos lucros
continuados, a longo prazo, que poderiam ser gerados pelo recurso inta-
to. Esse princípio econômico foi demonstrado pela indústria baleeira, es­
pecialmente no Japão, onde se percebeu que o dinheiro obtido da rápida
extinção comercial das baleias pode ser reinvestido em várias indústritus
de “crescimento”, e os lucros totais serão, em última análise, maiores do
que se as baleias tivessem sido caçadas num ritmo que lhes permitisse
sobreviver indefinidamente. Em outras palavras, descobrir um valor para
alguma parte da Natureza não é garantia de que seja racional para nós
preservá-la; o inverso pode prevalecer.
r rt

Dadas estas quatro objeções, os riscos de transferências, mesmo


legítima, de não-recursos para recursos tomam-se muito claros, assim
como os riscos de superenfatizar a abordagem humanista de custo-bene-
fído na conservação até mesmo dos recursos mais tradicionais e aceitos.
Não existe verdadeira proteção para a Natureza dentro do sistema huma­
nista — a própria idéia é uma contradição em termos.

Há um outro risco em atribuir valor de recurso a não-recursos:


sempre que são calculados valores “reais”, toma-se possível — até
necessário — ordenar e classificar as várias partes da Natureza para a
horrível tarefa de determinar uma prioridade de conservação. Como os
valores em dólares do tipo usado nos cálculos sobre mangues nem sempre
são acessíveis, foram criados outros métodos de classificação. Eles des-
tinam-se a ser aplicados de um modo mecânico, objetivo.
Um desses sistemas de classificação foi desenvolvido por F.R.
Gehlbach a fim de avaliar as terras para a criação de um parque estatual
no Texas. As propriedades que no sistema de Gehlbach recebem pontos
e são totalizadas, abrangem “condição clímax”, “conveniência educacio­
nal”, “importância das espécies” (presença de espécie raras, ameaçadas
e localmente raras), “representação na comunidade” (número e tipo de
comunidade de plantas e animais incluídas) e “impacto humano” (cor­
rente e pontecial), por ordem de importância crescente. Evidentemente,
Gehlbach acredita que os escores numéricos gerados por esse sistema
podem ser usados, sem adicional input humano, para determinar priori­
dade de conservação. Diz ele:

Sugere-se que, se oferecida para doação [ao Estado do Texas], uma área
só seja aceita quando o seu escore de área natural exceder os escores mé­
dios do mesmo tipo, ou de tipo semelhante, de comunidade no sistema em
vigor de reserva de áreas naturais.

Existem mais sistemas de classificação na Grã-Bretanha e nos Estados


Unidos, sendo provável que ainda outros se desenvolvam.
Existem dois perigos na classificação de partes da Natureza, os
quais pensam contra o uso indiscriminado ou mecânico desse tipo de sis­
tema. Em primeiro lugar, existe o problema do conhecimento incomple­
to. É impossível conhecer todas as propriedades de qualquer coisa na
Natureza, e quanto mais complexa é a entidade (por exemplo, uma co­
munidade natural), menos sabemos. É tentador, por exemplo, perfurar
um cartão de computador que caracterize uma comunidade como “flo­
resta deciduifólia de baixada sujeita a enchentes”, e ficar por aí. Mas es-
sas descrições de comunidades, especialmente concisas e “objetivas”,
são em sua grande maioria abstrações artificiais; destiníim-sc a facilitar
que se fale sobre vegetação, não que se decida o que fa/.cr a>m ela. (í
presunção supor que qualquer sistema formal de classificar possa servir
de substituto para o conhecimento pessoal da terra ou para sentimento
humanos — guiados por informação — acerca do seu significado ou va­
lor no mundo de hoje ou daqui a cem anos.
O segundo risco é que a classificação formal é passível de colocar
a Natureza contra a Natureza de um modo inaceitável e totalmentc des­
necessário. Seremos um dia solicitados a escolher entre o Big Thicket do
Texas e o Paio Verde Canyon com base nos relativos totais de pontos? A
necessidade de conservar uma determinada comunidade ou espécie deve
ser julgada independente da necessidade de conservar outra coisa. Re­
cursos limitados podem forçar-nos a fazer escolhas contra as nossas von­
tades, mas os sistemas de classificação encorajam e ralacionalizam a
formulação de escolhas. Há uma diferença, assim como existe uma dife­
rença entre o cientista que considera necessário matar ratos a fim de rea­
lizar uma pesquisa, e o cientista que planeja experimentos para matar
ratos. Os sistemas de classificação podem ser úteis como auxiliares na
tomada de decisões mas, quanto mais formais e mais generalizados se
tornam, mais danos tendem a causar.
Existe somente uma descrição na cultura ocidental de um esforço
de conservação superior àquele que atualmente vem ocorrendo; envolvia
espécies ameaçadas. Nem uma só espécie foi excluída com base na baixa
prioridade e, ao que consta, nem uma só espécie se perdeu.

Dos animais puros e dos que não são puros, das aves e dos répteis terres­
tres, entraram de dois em dois com Noé na arca, o macho e fêmea, confor­
me ordenara Deus a Noé. (Gênesis, VII; 8-9)

E um excelente precedente.

Valores Não-Econômicos
A tentativa de preservar não-recursos encontrando para eles um
valor econômico produz uma satisfação de duplo vínculo. Boa parle do
valor descoberto para não-recursos é indireto, no sentido de que consiste
em evitar problemas que poderiam, em outras circustâncias, surgir .sc os
não-recursos se perdessem. Essa é a base do duplo vínculo. Por um lado,
se o não-recurso é destruído e nenhum desastre sc scguc,o argumento da
conservação perde toda a capacidade para inspirar crédito. Por outro
lado, se o desastre se segue à extinção de um suposto não-recurso, pode
fícar impossível provar a conexão entre os dois acontecimentos.
Um modo de evitar esse duplo vínculo consiste em identificar os
valores «áo-econômicos inerentes a todas as comunidades e espécies na­
turais, e atribuir-lhes uma importância pelo menos igual à dos valores
econômicos indiretos. A primeira dessas qualidades universais poderia
ser classificada como o valor da “arte natural”. Foi expressa de maneira
magistral pelo grande naturalista Archie Carr, em seu livro Ulendo:

Seria causa de fúria mundial se os egípcios resolvessem extrair pedras das pi­
râmides, ou os franceses permitissem que moleques apedrejassem o Louvre.
Seria o mesmo se os norte-americanos constraíssem represas no Vale do Co­
lorado. A reverência por paisagens originais é uma das humanidades. Foi a
primeira humanidade. Calculada em termos de nervos e humores humanos,
não há diferença do valor de uma obra de arte e de uma obra da natureza. Exis­
te, porém, uma diferença. [...] Qualquer arte poderá, de algum modo, algum
dia, ser substituída — a sinfonia total da paisagem da savana, nunca.

Esse ponto de vista não é comum e leva tempo para nos acostu­
marmos a ele mas, segundo parece, está ganhando popularidade. Num
artigo sobre os ameaçados micos-leões do Brasil, minúsculo e colorido
primata das matas atlânticas, A.F. Coimbra Filho expôs a noção arte na­
tural numa declaração franca e ponderada que é notavelmente semelhan­
te a cituação anterior:

Em termos puramente econômicos, não importa realmente se três símios


brasileiros se extingem. Embora possam ser (e anteriormente eram) usa­
dos como animais de laboratório na pesquisa biomédica, outras espécies
muito mais abundantes de outras regiões da América do Sul servem igual­
mente bem ou melhor em laboratórios. Os micos-leões podem ser efetiva­
mente exib id o em z o o ló g ic c o s, mas é duvidoso que a maioria dos
visitantes desse por falta deles. Não, parece que a principal razão para ten­
tar salvar esses animais e outros como eles é que o desaparecimento de
qualquer espécie representa uma grande perda estética pata o mundo intei­
ro. Talvez se possa comparar à destrução de uma grande obra de arte de
um pintor ou escultor famoso, exceto que, ao nível da obra de arte produ­
zida pelo homem, a evolução de uma única espécie é um processo que
leva muitos milhões de anos e nunca mais pode ser duplicada.

Essa arte natural, ao contrário da arte feita pelo homem, não possui
valor econômico, seja direta ou indiretamente. Ninguém a pode comprar
ou vender por sua qualidade artística, nem sempre estimula o turismo e
tampouco ignorá-la causa, por essa razão, alguma perda de bens, ou ser­
viços, ou œmunidades. É distinto do valor de recurso estético e recreati­
vo descrito anteriormente e pode aplicar-se a comunidades ou espécies
que nenhum turista se desviaria um único quilômetro para ir ver, ou a
qualidades que nunca são reveladas numa observação casual.
Livre como está de alguns dos problemas associados aos debates
em tomo de recursos, o fundamento lógico da conservação da arte natu­
ral é, não obstante, à sua própria maneira, um pouco inventado e um pou­
quinho confuso. Em primeiro lugar, apresenta o tipo de problema de
classifição que examinei acima. Se é válida a analogia com a arte, não
seria de se esperar que todas as partes da Natureza tenham igual valor ar­
tístico. Muitos críticos diriam que El Greco foi um pintor mais importan­
te do que Norma Rockwell mas será a savana de Seregenti artisticamente
mais valiosa do que a tundra de pinheiros de Nova Jérsei ou as dunas
costeiras de Ainsdale-Southport, em Lancashire? Se assim fosse, o que
aconteceria nesse caso?
Mesmo que admitamos que o argumento artístico para a conservação
não tem que favorecer esse tipo de comparação, ainda existe algo de errado,
pois o conceito de arte natural ainda tem suas raízes na mesma cosmovisão
humanfetica, homocêntrica, que é responsável por ter trazido o mundo natu­
ral, inclusive nós próprios, para a sua atual condição. Se o mundo natural vai
ser conservado meramente porque é artisticamente estimulante para nós, en­
tão ainda o estaremos conservando por razões egoístas. Há ainda uma con­
descendência e uma superioridade ímplídtas na atitude dos seres humanos,
os pais indulgentes, para com a natureza, a bela criança problemática. Essa
atitude não está em harmonia com as descobertas inspiradoras de humildade
da ecologia nem com a cosmovisão ecológica, enfatizando o encadeamento
e a imensa complexidade do relacionamento humano com a natureza, que
caracteriza agora um importante setor do pensamento conservacionista.
Tampouco está de acordo com o crescente bloco de sentimento essendal-
mente religioso que aborda a mesma posição — igualdade nesse relaciona­
mento — a partir de uma direção não-dentífica.

O Princípio de N oé
Os expoentes da arte natural prestaram-nos um grande serviço, ao
estarem entre os primeiros a assinalar a natureza insatisfatória de íilgu-
mas das razões econômicas representadas para apoiar a conservação.
Mas algo mais se faz necessário, algo que não depende de valores huma-
nísticos. Charles S. Elton, um dos fundadores da ecologia, indicou um
outro valor de não-recurso, a razão fudamental para a conservação e a
única que não admite concessões nem transigências:

A primeira [razão para a conservação], a qual normalmente não é coloca­


da em primeiro lugar é, na realidade, religiosa. Há alguns milhões de pes­
soas no mundo que acham que os animais têm todo o direito a existir e a
que os deixem tranqüilos ou que, de qualquer modo, não devem ser perse­
guidos nem extintos como espécies. Algumas pessoas acreditam nisso
mesmo quando é muito perigoso para elas.

Esse valor não-humanístico de comunidades e espécies é o mais


simples de todos para enunciar: elas devem ser conservadas porque
existem e porque essa existência nada mais é, em si mesmo, do que a
atual expressão de um contínuo processo histórico de imensa antigui­
dade e majestade. Supõe-se que a existência de longa data na Nature­
za acarreta consigo o indiscutível direito de continuar existindo. A
existência é o único critério do valor de partes da Natureza, e a dimi­
nuição do número de coisas existentes é a melhor medida de decrés­
cimo daquilo que deveríamos valorizar. Este é, como mencionamos,
um antigo modo de avaliar a “conservabilidade” e deveria ser deno­
minado, por direito, o “Princípio de Noé”, em homenagem à pessoa
que foi a primeira a pô-lo em prática. Para os que rejeitam a base hu-
manística da vida moderna, não há simplemente como dizer se uma
parte arbitrariamente escolhida da Natureza tem mais “valor” do que
uma outra parte, de modo que, à semelhança de Noé, não nos preocu­
pamos em fazer ese esforço.
Atualmente, está ficando cada vez mais popular (e deparando-se
com crescente resistência) a idéia de direitos conferidos por outras for­
mas de existência que não a humana. Darei apen^ dois exemplos. Num
livro intitulado Should Trees Have Standing?, C.D. Stone defendeu a
existência de direitos legais das florestas, rios, etc., independentes dos
interesses egoístas das pessoas associadas de um modo ou de outro a es­
sas entidades naturais. Descrevendo a Terra como “um organismo, do
qual a espécie humana é uma parte funcional”, Stone amplia a ética da
terra de Leopold de um modo formal, justificando processos judiciais tão
insólitos quanto ByramRiver, et ai versus Village ofPort Chester, New
York, et al. Se uma sociedade anônima pode ter direitos legais, responsa­
bilidades e, através de seus representantes, aceso aos tribunais como pes­
soa jurídica, argumenta Stone, por que não os rios? O ensaio de Stone já
foi citado numa decisão minoritária da Suprema Corte dos Estados Uni­
dos — não é fnvolo. Duvido que a sua sugestão progrida muito enquanto
o humanismo não perder terreno, mas os pontos fracos da noção de per­
sonalidade legal para a Natureza não são importantes aqui; o mero surgi­
mento dessa idéia nesta época é um acontecimento significativo.
O exemplo definitivo do Princípio de Noé em funcionamento foi
fornecido, porém, pelo dr. Bernard Dixon, num pequeno mas profundo
artigo em defesa da conservação guardada da Varíola, uma espécie de
vírus em perigo:

C om o o homem é o único produto da evolu ção capaz de dar passos


conscientes, quer baseados na lógica ou na emoção, influenciar o seu
curso, temos a responsabilidade de cuidar para que nenhuma outra es­
pécie se extinga. [...] Alguns de nós que poderíamos dizer alegremente
adeus a um vírus ou bactéria letal, sentiríamos escrúpulos em relação a
erradicar para sempre um animal “superior” — seja ele um rato, um
pássaro ou um inseto que transmita esses m icróbios ao homem. [...]
Em que ponto, subindo na escala de tamanho e malignidade (vírus da
varíola, bacilos da febre tifóide, parasitas da malária, verm es da e s­
quistossomose, gafanhotos, ratos ...), a conservação passa a ser impor­
tante? Na verdade, não existe uma linha lógica que possa ser traçada.
Todos os argumentos apresentados pelos conservacionistas aplicam-se
tanto ao mundo dos parasitas e micróbios patogênicos, quanto às ba­
leias, gencianas e flam ingos. A té o mais minúsculo e mais virulento
dos vírus se qualifica e se habilita.

Em outras partes do artigo, Dixon defende com veemência a preservação da


Varíola como recurso (mas não para a guerra biológica); não obstante, o
argumento de “valor de existência” não-humanístico é o que mais importa.
Charles Elton propôs três razões diferentes para a conservação da
diversidade natural:

porque é uma relação correta entre o homem e as coisas vivas, porque ofe­
rece oportunidades para uma experiência mais rica e porque tende a pro­
mover a estabilidade ecológica — resistência ecológica a invasores c a
explosão nas populações nativas.

Ele afirmou que essas razões podiam ser harmonizadas e que, reuni­
das, poderiam gerar um “sábio princípio de coexistência entre o
homem e a natureza.” Desde que essas palavras foram escritas, igno­
ramos essa harmonia dos fundamentos lógicos da conservação, repe­
lindo a primeira razão, ou razão religiosa, como embaraçosa ou
ineficaz, e confiando em provas racionais, humaníslicas e “solidtimen-
te científicas” de valor.
Não estou tentando desacreditar todos os usos econômicos e egoís­
tas da Natureza nem recomendar o abandono das bases racionais do
recurso para a conservação. O egoísmo, dentro de limites, é necessário à
sobrevivência de qualquer espécie, inclusive a nossa. Além disso, se
confiássemos exclusivamente em motivações de não-recurso para a con­
servação, acabaríamos descobrindo, dado o atual estado da opinião mun­
dial e das aspirações materiais, que em breve nada restaria para conservar.
Mas fomos excessivamente descuidados em nosso uso de argumentos de
recursos — distorcendo-os e exagerando-os para fins a curto prazo e
consentindo que eles confundissem e dominassem o nosso pensamento a
longo prazo. As razões de recurso para conservação podem ser usadas, se
honestas, mas devem ser sempre apresentadas em conjunto com as razões
não-humanistas, e cumpre deixar claro que as últimas são mais importan­
tes em todos os casos. E quando uma comunidade ou espécie não tem
valor econômico conhecido ou outro valor para a humanidade, é tão
desonesto e imprudente inventar fracos valores de recurso para essa
comunidade ou espécie quanto é desnecessário abandonar o esforço para
conservá-la. O seu valor não-humanístico é suficiente para justificar a sua
proteção — mas não necessariamente para garantir sua segurança nesta
cultura mundial obcecada pelo humano.
Tentei mostrar neste capítulo a complexidade diabólica e a astúcia
da armadilha dos humanistas. “Você ama a Natureza?”, perguntam eles.
“Quer salvá-la? Então diga-nos para que ela serve.” A única saída para
essa espécie de armadilha, se é que há uma saída, é esmagá-la, rejeitá-la
com veemência. Esse é o realismo final; chegaremos a ele mais cedo ou
mais tarde — se mais cedo, então com menos sofrimento.
Os argumentos não-humanísticos só terão plena e merecida impor­
tância depois que tiverem mudado as atitudes culturais hoje predominan­
tes. M ovim entos m issionários m oralm ente sustentados, com o as
sociedades filantrópicas, estão atuando muito bem hoje em dia, mas não
alimento ilusões sobre a probabilidade de uma mudança ética em nossa
cultura faustiana sem o estímulo de alguma catástrofe geral.
Nem todos os problemas têm soluções aceitáveis; não tenho cons­
trangimento em prever uma aqui. Por um lado, os conservacionistas, em
termos gerais, não terão êxito usando unicamente a abordagem do recur­
so, e prejudicarão com freqüência a sua própria causa. Por outro lado,
uma combinação eltoniana de argumentos humanistas e não-humanistas
também pode fracassar, e se for bem-sucedida, como Mumford deu a en­
tender em “Prospect”, será provavelmente por causa de forças que os
conservacionistas não esperavam nem controlavam:
Como freqüência, os fatores mais importantes na determinação do •'uturo
são os irracionais. Com “irracional” não quero dizer subjetivo nem neuró­
tico, porque, do ponto de vista da ciência, qualquer pequena quantidade
ou ocasião única pode ser considerada irracional, uma vez que não se
presta ao tratamento estatístico nem à observação repetida. Sob esse título,
temos de levar em conta, quando considerarmos o futuro, a pos.sibilidade
de milagres. [...] Por milagres não entendemos algo foia da ordem da na­
tureza, mas algo que ocorre tão infreqüentemente e que provoca uma mu­
dança tão radical que não se pode in clu í-lo em nenhuma previsão
estatística.

Mas na eventualidade de ocorrer tal mudança inesperada nas atitudes cultu­


rais, aqueles dentre nós que já rejeitamos a concepção humanística da
Natureza estaremos prontos, pelo menos, para tirar proveito de circunstâncias
favoráveis. E seja qual for o resultado final, teremos tido a pequena satisfação
íntima de termos sido honestos e sinceros por algum tempo.
Capítulo 6

Misantropia e a Rejeição do
Humanismo
Os sermões eram exortações morais, livres de
noções abstratas e repletos de aplicação práti­
ca, que o caráter virtuoso e ascético do prega­
dor tornava ainda mais impressionantes. [...] O
mais poderoso argumento usado não era a
ameaça de Inferno e Purgatório mas, antes, os
resultados palpáveis da “maledizione”, a ruína
temporal infligida ao indivíduo pela maldição
que adere à malfeitoria. [...] E só assim podiam
os homens, mergulhados em paixões e culpa,
ser levados ao arrependimento e à regeneração
que era o principal objetivo desses sermões.
JAKOB BURCKHARDT
The Civilization o f the Renaissance in Italy
Se fosse possível segui-lo até as suas raízes psi­
cológicas, descobrir-se-ia, acredito, que o princi­
pal motivo para o “desprendimento” é um desejo
de escapar à dor de viver e, sobretudo, ao amor,
o qual, sexual ou não-sexual, significa trabalho
árduo. Mas não é necessário argumentar aqui se
o ideal ascético ou o ideal humanístico é “supe­
rior”. A questão é que eles são incompatíveis.
GEORGE ORWELL,
“Reflections on Gandhi”
Sinto-me, no começo, apavorado e confuso
com essa triste solidão, na qual estou colocado
em minha filosofia, e imagino-me algum estra­
nho monstro que, não sendo capaz de conviver
em sociedade, foi banido de todo relaciona­
mento humano e largado no mais profundo e
sombrio abandono. De bom grado correria
para a multidão em busca de abrigo c calor;
mas não consigo persuadir-mc a estabelecer
relações eom tal deformidade. [...] IX'clarei a
minha desaprovação de seus sistemas; e posso
ficar surpreendido se eles expressarem sua
aversão ã minha pessoa?
DAVID IIUME,
A Treatise o f lliunan Nature
T

5 críticas ao humanismo não são de agora, embora tenham se tor­

A nado incomuns em nosso tempo. Períodos de efervescência e


criatividade humanas sempre forneceram oportunidades para o
mal, que possui o seu próprio gênio inventivo. E logo ocorre a reação:
“virtuosos e ascéticos” pregadores surgem e prosperam por algum tem­
po, ganhando popularidade ao criticarem não só os vícios mas também
as criações de outros, e ao profetizarem o Juízo Final. Essas críticas são
geralmente passageiras; o público não consegue tolerá-las por muito
tempo, pois essa espécie de reforma abnegada não demorou a tomar-se
cansativa, depois enfadonha, depois irritante e, por fim, ameaçadora.
Nesse ponto, os pregadores anti-humanísticos são rejeitados, às vezes
com violência. Mas a situação não retoma então ao que era antes de sur­
girem os pregadores, pois a sociedade foi mudada e entrou numa nova
era, na qual os velhos conflitos podem deixar de ser pertinentes.
Um desses períodos ocorreu na Itália renascentista, antes da Refor­
ma. Sua figura proeminente foi o monge florentine Girolamo Savonarola
(1452-1498), que liderou a cruzada anti-humanismo mencionada por
Burckhardt. Nas palavras desse historiador:

Ele próprio sustentava que sua influência pessoal era o resultado de uma
iluminação divina e pôde, portanto, sem presunção, atribuir um lugar muito
elevado ao ofício de pregador, o qual, na grande hierarquia dos espíritos,
ocupa, segundo ele, o lugar imediatamente abaixo dos anjos.

As críticas dos anti-humanistas englobaram e impregnaram toda a


estrutura da sociedade renascentista italiana. Eles atacaram a degeneração
da Igreja, inclusive as próprias ordens a que pertenciam. Atacaram a
degeneração do Estado — o próprio Savonarola previu com freqüência
a queda dos Medieis e a ruína da Itália. Pregou contra a ciência (que
naquele tempo quase não se poderia considerar uma grande força) e contra
a quantidade excessiva de livros e o saber exagerado. Mandou erguer na
Piazza delia Signoria grandes tablados em forma de pirâmide, sobre os
quais eram queimados não só artigos previsíveis, como “máscaras e
disfarces carnavalescos [...], ornamentos e artigos de toucador das mu­
lheres, perfumes, espelhos, véus e perucas [...], alaúdes, harpas, tabuleiros
de xadrez, baralhos de cartas”, mas também pergaminhos e manuscritos
iluminados de Petrarca e Boccaccio, e desenhos de Botticelli. A única
ação inteiramente construtiva dos anti-humanistas foi a pregação da paz,
a qual foi acompanhada de reconciliações públicas de inimigos e da
solene renúncia espírito de vingança entre família. Mesmo isso, porém,
envolvia uma supressão de instintos humanos. No final, após uma carrei­
ra, tempestuosa, Savonarola foi publicamente queimado, como tantas das
criações humanistas que ele tinha desprezado.
Depois de Freud, tornou-se comum, no caso de fenômenos perió­
dicos como o anti-humanismo, a recusa em aceitar os motivos declarados
para a adoção desses comportamentos, e a busca de uma explicação
subjacente nas vidas dos indivíduos que agem de modo atípia). A
investigação é especialmente implacável quando o comportamento en­
volve críticas ao teor predominante da sociedade, e quando parece evi­
dente um certo desprendimento do crítico em relação ao resto da
sociedade. Nas ondas de anti-humanismo que têm varrido a civilização
desde os tempos do profeta Jeremias e até antes, sem dúvida, observa-se
um padrão psicológico que surge e se repete entre os líderes desses
movimentos: descortinamos um profundo descontentamento, impregna­
do de elementos de repugnância e ira — alguns poderiam chegar a
chamar-lhe misantropia. E descobrimos invariavelmente profecias de
ruína apocalíptica.
É claro, qualquer comportamento humano pode ser questionado
desse modo, porque todos os comportamentos têm vários e numerosos
níveis de motivação; e, com freqüência, esse tipo de sondagem não
acarreta quaisquer resultados úteis, apenas confusão sobre o que tinha
começado por ser uma simples diferença de opinião. Mas o anti-huma­
nismo nada tem de simples: estigmatiza a sociedade, critica invenções
que muitos favorecem e apreciam, reduz o poder da humanidade aos
nossos próprios olhos, prevê grandes conclusões sociais e devastação, e
insinua que certos sacrifícios e mudanças sociais poderiam ajudar-nos a
evitar a consumação de algumas das piores desgraças que têm sido
profetizadas. Tudo isso é especialmente verdadeiro no tocante ao anti-hu­
manismo dos dias de hoje, porque uma percentagem muito maior da
sociedade do que, por exemplo, no tempo de Savonarola está diretamente
envolvida no comportamento humanístico e, portanto, sofrerá as supostas
conseqüências. Não há espectadores nessa batalha.
Por que rejeitei o humanismo e, assim procedendo, separei-me da
grande maioria da humanidade? Existe uma questão real, uma questão
que pudesse ser evidente para um observador não-humano de uma outra
galáxia, ou para os historiadores críticos que possam viver daqui a mil
anos? Ou a deterioração que percebo no mundo só é real aos meus olhos,
uma manifestação do meu estado interno, possivelmente um sintoma
neurótico, o resultado distorcido de uma “síndrome de Juízo Final” (parti
usar 0 maravilhoso título de John Maddox para o seu livro não tão
maravilhoso sob outros aspectos)? Será tudo uma reação ao que Orwell
chamou “a dor de viver”?
Orwell, cujos escritos inspiraram e guiaram este capítulo, estava
profundamente preocupado com esses tipos de indagações a respeito de sua
própria obra, não porque fosse um não-humanista, mas porque se compro­
meteu regularmente com numerosas caracterizações e profecias sociais, e
trabalhou constantemente para melhorar a precisão destas. Em sua “Carta de
Londres” para a Partisan Review, escrita em dezembro de 1944, disse:

Ninguém pode livrar-se de seus próprios sentimentos subjetivos, mas pode,


pelo menos, saber o que eles são e dar-lhes o devido desconto. Fiz algumas
tentativas nesse sentido, sobretudo nestes últimos tempos, e por essa razão
creio que as mais recentes entre as minhas cartas para vocês, grosso modo
de meados de 1942 em diante, oferecem um quadro mais verídico dos
acontecimentos na Grã-Bretanha do que as anteriores a essa data.

E importante saber quando se está contaminando, para usar a palavra de


Orwell, uma visão do mundo verdadeira e equilibrada com uma projeção
interna que satisfaz alguma necessidade pessoal mas não apresenta ne­
nhuma outra relação consistente com a realidade externa. Adquirir essa
percepção consciente não é uma tarefa fácil, uma vez que se requer um
elevado nível de cooperação entre emoção e razão. O caminho apropriado
é extremamente estreito e cheio de perigos e ciladas de ambos os lados.
De um lado está o perigo de englobar fatos sem contexto mas, do outro,
e igualmente arriscado, está uma visão do mundo constituída de emoções
puras, o que resulta nos tipos de pensamento e observação que OrweU
definiu como “uma espécie de fantasia de masturbação em que o mundo
dos fatos pouco ou nada importa”. É este último extremo o que me
interessa aqui. Enquanto se reflete sobre esse problema, entretanto,
cumpre lembrar que não se trata de uma questão de descartar toda e
qualquer emoção mas, antes, de identificar as emoções que não nos são
úteis ou que nos causam dano. Em outras palavras, o segredo está em
hvrarmo-nos da contaminação sem nos livrarmos da alma. Não é fácil.
(' fî Há tantas causas para contaminação quantos motivos existem para
o nosso comportamento; seria inútil e enfadonho tentar catalogar ou
mesmo fixar categorias para todas elas. Mas alguns exemplos ajudarão a
exphcar em que consiste o problema.
b I. O motivo contaminante mais simples é o que OrweU chamou de
“racionalização de desejos”. Em “Notes on Nationahsm”, ele observou
que um hábito nacionalista de pensamento, a tendência para identificar-se
com determinado grupo e para afundar nesse grupo, presta-se facilmente
170

U'i.
■■i.. . t
à supressão da distinção entre sonhos nacionalistas e realidade. Imagina-
se que o que se quer e se deseja que aconteça está realmente acontecendo.
É claro, não é necessário ser profundamente nacionalista para ceder à
racionalização de desejos, mas o incentivo de um grupo amistoso facilita
a auto-sugestão.
Embora não haja muitos não-humanistas por aí, existem alguns —
mais do que isso, são muitas as pessoas que têm algumas crenças, sonhos,
antipatias e inimigos em comum com os adversários do humanismo;
naturalistas e amantes da natureza, antitecnólogos, conservacionistas de
todos os tipos, populistas, certas pessoas religiosas, inimigos da burocra­
cia e da despersonaüzação, etc. Seus desejos tenderiam a conceder crédito
à crença de que a sociedade moderna não funciona muito bem e de que a
organização está, se não em processo de desintegração, pelo menos
ingressando numa fase de declínio. Nesse contexto, toda deficiência, todo
fracasso, da sociedade moderna, por mais insignificantes ou temporários
que possam ser, poderão ser vistos como um presságio, e saudados com
júbilo ou, pelo menos, com tranqüila satisfação. É fácil perder a perpec-
tiva sob tal influência, ser arrebatado por um sentimento de justifiaição
pessoal. Afinal de contas, no momento em que escrevo estas linhas, não
houve nenhum colapso global (pelo menos, nenhum que seja óbvio) de
organização ou invenção humanista e, inegavelmente, os habitantes dos
países mais confessadamente humanísticos e “progressivos” ainda estão
vivendo mais tempo e com mais luxo do que o resto dos habitantes do planeta.
Um outro motivo para contaminação resulta de um sentimento cada
vez mais comum de raiva frustada e impotente — a raiva especial
daqueles que sabem que são impotentes para afetar as forças que os
ameaçam. Essa raiva é o sentimento produzido num adversário da energia
nuclear que paga a conta da luz elétrica sabendo que o seu dinheiro
ajudará a prover os salários dos tecnólogos nucleares, seu exército de
pessoal de relações públicas e suas gigantescas contas de despesas. É o
sentimento produzido quando um grupo unido e irado de seus vizinhos,
numa reunião pública, instruído por engenheiros federais financiados
pelos impostos, presume que a sua oposição ao “controle de enchentes”
por meio de represas e comportas deve querer dizer que você vive em
terras altas e pouco está ligando, realmente, para o que possa acontecer
aos outros. É o sentimento produzido quando lhe dizem que sua filha na
escola maternal deve ser examinada por um psicólogo para ver se ela pode
sobreviver à passagem para o jardim de infância (embora ela e suas
professoras digam que a menina está perfeitamente apta) e, depois que a
promoção recebeu o beneplácito da ciência, você recebe a a>nta pela
consulta do “especialista”. É o sentimento produzido quando você se dá
conta de que toda vez que o supermercado de sua cidade se expande, o
número de variedades de produtos alimentícios basicamente diferentes
que ele oferece declina; e quando você se percebe também de que, para
manter o tipo de “eficiência” que expulsou do mercado todos os pequenos
comerciantes — quitandeiros, açougueiros, etc. — locais, esse super­
mercado tem que sustentar uma rede gigantesca de fabricantes de enlata­
dos e intermediários na comercialização de todo e qualquer artigo, cuja
participação substancial nos lucros significa menos dinheiro para os
agricultores, o que, por sua vez, significa que só podem sobreviver as
gigantescas agroindústrias com seus modernos métodos de alta produti­
vidade, o que, por sua vez, significa finalmente que você não pode mais
comprar carne sem DES ou possivelmente até PBB, cenouras sem DBCP,
frangos sem tctradclina ou milho sem metabolitos de atrazina, nem
poderá comer maçãs e batatas sem ser um acessório para o extermínio de
abelhas, borboletas e minhocas — a menos que você tenha muitíssimo
dinheiro ou viva nas cercanias de uma cooperativa de alimentos orgânicos.
Para alguns que estão preocupados, como muitos de nós estamos,
com a injustiça e têm consciência da enorme dificuldade pessoal para
levar a efeito alguma ação significativa contra ela, ou até mesmo em saber
por onde começar, pode haver um secreto consolo numa profecia de
destruição global ou, numa forma não tão extrema, de colapso econômico
generalizado que acarrete o desmoronamento da sociedade moderna.
Embora compreensível, essa espécie de motivação parece sórdida e
ignóbil; tem uma aura de maldade. Nada existe de heróico ou inspirador
no tipo de fraqueza que leva alguém a dizer coisas terríveis a respeito dos
seus adversários. OrweU captou muito bem esse sentimento quando
escreveu, em “The Lion and the Unicom”, sobre “as críticas irresponsá­
veis de pessoas que nunca estiveram nem esperam estar nunca numa
posição de poder”. Ele não se referia ao anti-humanismo ou às previsões
catastróficas, mas suas palavras nem por isso são menos apropriadas.
Uma última fonte de contaminação é sugerida pelos comentários de
OrweU num ensaio intitulado “Politics versus Literature: An Ej?amination of
Gulliver’s Travels”. Ao aprofundar a análise da loucura final de Swif e da
quase loucura de Toktói, ele descobre elementos comuns que, para mim, são
uma reminiscência de parte do espírito anti-humanista. Envolvendo uma
rejeição de toda a sociedade humana, essa parte está mais perto da verdadeira
misantropia do que qualquer outra já por mim citada.

Swift tem muito em comum — mais, creio eu, do que tem sido assinalado
com Tolstói, um outro descrente da possibilidade da felicidade. Em
ambos os homens temos a mesma perspectiva anarquista recobrindo uma
disposição de espírito autoritária; em ambos uma análoga hostilidade à
ciência [grifo meu], a mesma impaciência com adversários, a mesma
incapacidade para discernir a importância de qualquer questão que não
fosse de interesse para eles; e, em ambos os casos, uma espécie de horror
ao processo de vida, embora no caso de Tolstói lhe tivesse ocorrido mais
tarde e de um modo diferente. A infelicidade sexual dos dois homens não
era da mesma espécie mas havia isto em comum: em ambos uma sincera
aversão estava misturada com um fascínio mórbido.

OrweU acreditava que, pelo menos no caso de Swift, o “motivo


essencial” para seus ataques a toda a humanidade era “a inveja do
fantasma em relação aos que vivem, do homem que sabe que não pode
ser feliz pelos outros, que, — receia ele — talvez sejam um pouco mais
felizes do que ele próprio”. Semelhante pessoa “quererá impedir que a
sociedade se desenvolva em alguma direção na qual o seu pessismo possa
ser frustado”. Mas, por outro lado, Swift também era uma pessoa culta e
urbana, que apreciava muitas das realizações da humanidade, tanto as
clássicas quanto as do seu próprio tempo. O resultado foi uma “queda de
braço” entre inclinações opostas, e quando Swift passa a descrever sua
própria sociedade ideal, o país dos Houyhnhnms, é um lugar extrema­
mente monótono e sem vida, “uma civilização estática e desinteressante
— o mundo do seu próprio tempo, um pouco mais ümpo, um pouco mais
são, sem mudanças radicais e sem bisbilhotar o incognoscível”.
Isso mostra como são algumas das motivações pessoais que podem
contaminar a rejeição do humanismo e como é que podem surgir. Existem
certamente outras, resultado das incontáveis variedades de neurose indi­
vidual que ocorrem, mas nada pode ser ganho se destacarmos qualquer
uma delas para elaboração. Dispomos do suficiente para poder continuar.

O fato de que a rejeição do humanismo pode ser contaminada por


motivações pessoais, inconscientes, está fora de discussão. O que deve­
remos, então, fazer a respeito? Muito pouco, na verdade. Embora um ou
mais motivos inconscientes devam existir em muitos de nós, creio não
haver problema ou contradição fundamental, nenhuma razão, seja que de
ordem for, para abandonar a oposição ao humanismo.
Para começar, é necessário reconhecer e evitar uma falácia comum
no século XX, que é o resultado acidental da notável descoberta de ItciuI
de que a mente inconsciente que aparece em sonhos está presente e at iva
durante o estado vígil e é responsável por boa parte do nosso comporta­
mento. A falácia consiste em que compreender uma parte (nunca a
totalidade) do motivo inconsciente por trás de alguma ação ou crença
invalida, de algum modo, essa crença. Mas, na verdade, a validez da
mensagem é com freqüência, embora não sempre, independente do
motivo para apresentá-la. Não se pode usar um entendimento da motiva­
ção a fim de desacreditar automaticamente a crença ou de dar crédito a
esta que é por ela impulsionada — exceto, talvez, quando a motivação e
a crença são total e manifestamente insanas.
Um entendimento do motivo por que somos tão facilmente vítimas
dessa falácia decorre de uma apreciação da moderna ascendência da razão
sobre a emoção, do poder que atribuímos ao processo racional. A expli­
cação da motivação suplanta a crençít aos nossos olhos porque a explica­
ção é um processo racional, a crença não é. A crença é sempre algo
misteriosa para a razão, de modo que quando a crença é parcialmente
“explicada”, perde prestígio. Isso serve apenas para voltar a enfatizar um
ponto que mencionei anteriormente: por si só, a razão é um guia muito
medíocre para questões de valor e julgamento.
Assim, embora possa haver mecanismos psicológicos subjacentes
gerando uma perspectiva anti-humanismo, isso não obsta a que tal pers­
pectiva possa ser verdadeira. Como examinarei adiante, os motivos
psicológicos podem até predispor alguém a adotar uma posição sensata
que a maioria das pessoas evitaria. Seria uma lástima se mesmo um leve
indício de misantropia fosse associado assim ao anti-humanismo, mas
seria ainda mais lastimável se isso fosse usado como desculpa para
protelar a rejeição geral do humanismo, que há muito se faz esperar.
Orwell teria provavelmente concordado que é um despropósito
rechaçar o anti-humanismo (ou o humanismo) porque pouco nos importa
quais possam ser suas possíveis motivações; mas ele também acreditava
que o conhecimento dos motivos contaminadores é um sinal que devemos
examinar cuidadosamente em busca de provas que nos digam se a nossa
postura é justificada, apesar deles. É aí que surge a dificuldade.
Como é que se procede a esse exame? Deveremos somar os “fatos”,
os mais e os menos, até que a razão possa dizer, por si só, “Ch^ga, é essa
a resposta”?
Claro que não. Isso não funciona.
Deveremos então projetar as nossas provas através das lentes da
emoção, a mesma emoção que abrange todas as feias motivações que
acabaram de ser discutidas?
Sim. Não temos escolha. A emoção é a sede do julgamento.
Que bem pode resultar daí?
Nenhum bem, talvez. Mas isso é o melhor que temos. E existem
duas nítidas vantagens que não devemos esquecer; o núcleo de toda
emoção é a sobrevivência, a qual está do nosso lado, se permitirmos que
esteja; e há ainda a razão, a qual, se acompanhada de emoção responsável,
pode ser de considerável ajuda.

Em última instância, um julgamento tem de ser feito, e não há como


simplificar a tarefa. Fortes motivações subconscientes ter-me-ão instigti-
do — e instigado outros •— a selecionar somente os poucos exemplos
extremos de fracasso humano que confirmam nossa premissa? Preocu­
pei-me com isso e também com a possibilidade de que a minha predispo­
sição me impedisse de responder imparcialmente a essa interrogação. E,
é claro, ninguém pode “provar” ou “examinar” a resposta: um “juiz
imparcial”, se acaso pudéssemos encontrar um, não estaria apto a fazê-lo;
talvez até mesmo a história nunca venha a estar capacitada para fornecer
uma solução. Contudo, depois de rever os exemplos de fracasso humano
dados nos capítulos precedentes — uma espécie de ampla análise de
produto final — deixei de me preocupar com os efeitos de quaisquer
motivos contaminantes que, sem dúvida, tenho. A nossa incapacidade
para impedir a desintegração, até mesmo o colapso, em importantes
ecossistemas subcontinentais é real. A nossa incapacidade para preservar
o solo, o qual é necessário à vida, enquanto se pratica a moderna
agricultura, é real. A nossa incapacidade para gerar quantidades maciças
de energia de um modo seguro e confiável, e para uso coro inteira
confiança, é real. A nossa incapacidade para controlar nossas mentes e
corpos, salvo por métodos rudimentares, é real. A nossa incapacidade
para prever ou planejar um futuro humanístico é real. A nossa incapaci­
dade para impedir que as nossas invenções nos atraiçoem é real. A nossa
incapacidade para fornecer soluções econômicas, sociais e científicas
simultâneas para qualquer problema importante é real. E há muitas outras
realidades sombrias. Não nego que o humanismo pode apontar para
muitos triunfos específicos — mas todos eles são restritos, todos eles
deixam em sua esteira uma série de problemas residuais. Aqueles que
percebem o impulso e a direção geral do nosso rumo saberão como esses
triunfos significam pouco.
Temos apenas que olhar em volta e ver o que está acontecendo: i.sso
é mais do que o produto de uma imaginação distorcida. Os “velhos bons
tempos” não eram, reconhecidamente, tão bons assim — crianças mor­
riam, as diferenças de classe eram quase inevitáveis, a Uivoura era
indescritivelmente desoladora para muitos agricultores e a maioria this
pessoas trabalhava terrivelmente mas, pelo menos, havia a certeza de que
o dia de amanhã não deixaria de chegar, pelo menos era possível a um
Mozart compor. O que estão fazendo os Mozarts do nosso tempo? Devem
existir alguns, e provavelmente estão vivendo mais tempo do que ele
viveu. Inventamos mais hoje em dia, mas a Qualidade é menor. Talvez
seja o terrível e crescente risco para a humanidade que abafa a Qualidade,
ou talvez não seja simplesmente possível realizar Qualidade numa socie­
dade fundada sobre uma mentira.
É para a mentira que a nossa atenção deve ser dirigida. Swift
percebeu isso, apesar de toda a sua loucura — sua contaminação interna
— e talvez a sua percepção agravasse a sua loucura. Mais de duzentos
anos depois, as nossas universidades ainda ostentam uma acentuada
semelhança com a Academia de Lagado, provavelmente até mais do que
no tempo de Swift. E, apesar de todo o seu autoconhecimento, Orwell só
viu parte disso, embora pudesse muito bem ter visto mais se não tivesse
morrido tão prematuramente. Muitas das profecias em 1984, o último
livro de OrweU, constituem uma parte viva de nossa esperiência cotidia­
na, mas ainda não existem sinais de que a sociedade glacial, estática,
pós-histórica, que foi a principal profecia do livro, esteja para acontecer.
Nós, simplesmente, não temos o controle — o controle é a mentira.
Assim, a vida, para as nações ricas, assume o aspecto exterior de
1984: os bancos de dados dos computadores com suas informações a
respeito de pessoas designadas por números, o brilho azul, frio e impas­
sível da televisão, os satéütes-espiões no espaço; mas a informação nos
computadores é ao mesmo tempo trivial e inadministravel, a televisão
constitui-se numa força mais de desintegração do que de petrificação ou
organização, e os satéhtes, mesmos aqueles equipados com sensores
infravermelhos que podem ver através das paredes, vêem apenas super­
fícies; as mentes por debaixo estão para sempre escondidas deles.
Uma lição extraída do exemplo de Orwell é que, tal como a
ignorância de nossa contaminação interna não torna as nossas crenças
necessariamente erradas, também uma tentativa resoluta e bem-sucedida
para conhecermos nossos próprios motivos não significa necessariamente
que as nossas crenças sejam certas. Orwell era dono de uma mente tão
equilibrada e possuía um conhecimento de si mesmo tão grande quanto
é possível a qualquer ser humano ter; no entanto, acreditava que os seres
humanos podiam construir uma sociedade que era capaz de controlar e,
portanto, suprim ir a história de acordo com algum plano deliberado. Basta
ler atentamente 1984 para nos darmos conta das contradições e impossi­
bilidades. Orwell pensava realmente que qualquer sociedade podia co-
mandar polícia e tecnologia suficientes para buscar e descobrir todas ou
mesmo a maioria das pessoas com idéias desviantes, e depois mudar essa
idéia? E o que fazer no caso de idéias desviantes entre os membros da
polícia? E mesmo que o estado pudesse tomar conhecimento dos pesade­
los de cada um de seus habitantes, como seria possível am struir um
número suficiente de infernos individuais para manter todo mundo infa­
livelmente na linha? Finalmente, o que acontece quando o Grande Irmão,
ou os que estão por detrás dele, morrem? Temos de tentar, como sugeriu
OrweU, levar em conta os nossos motivos contaminantes pessoais, que
mais não seja para impedir que eles se tomem incontroláveis; mas, em
algum ponto, também temos que dizer “chega de distração” e prosseguir
com as nossas tarefas, tal como as percebemos.

Não obstante, antes de deixar o tema da contaminação subconscien­


te, existem alguns problemas adicionais a examinar. Por causa da natu­
reza das motivações ocultas do anti-humanismo, poderíamos esperar que
se tratasse de uma filosofia essencialmente pessimista, frágil e derrotista.
Com efeito, há os que sustentam ser esse o caso. Li muitas acusações nas
vistosas brochuras de empresas multinacionais e na literatura distribuída
por associações profissionais de cientistas, tecnólogos e administradores.
Essas acusações também fazem parte da argumentação de quaisquer
pessoas ou organizações que pretendem dedicar-se a atividades que elas
sabem ser prejudiciais ao meio ambiente. O tema que usam é sempre o
mesmo. Dizem que qualquer questionamento dos pressupostos humanis­
tas é um plano de derrota, um reconhecimento de que temos de renunciar
à esperança de qualquer coisa que não seja uma sobrevivência miserável
e teremos sorte se ao menos isso for conseguido. Um mundo não-huma-
nista, afirmam eles, será um mundo inteiramente à mercê do acaso e das
forças impessoais da Natureza, um mundo no qual estaremos impossibi­
litados de usar quaisquer dos nossos poderes incomparáveis para nos
ajudarmos — na verdade, estaremos mergulhados demais em exaustiva
labuta e infortúnio para nos lembrarmos ou mostrar sequer interesse na
existência de tais poderes. Também dizem que o risco de destruição é
o preço que vale a pena ser pago pela liberdade para usar plenamente
as nossas capacidades criativas, e a alternativa não-humanista de
prudência e aceitação de limites pode propiciar-nos uma certa medida
de estabihdade, mas condenará o espírito humano a uma perpétua
morte em vida.
Como disse antes, sabemos no íntimo, que as pressuposições de
poder estão erradas; estamos rodeados de provas disso e uma parte muito
profunda de nós mesmos vê essas provas antes de rejeitá-las. Mas quem
dentre nós é incapaz de enfrentar essa verdade converte-a num Demônio.
Gritar “pessimismo” e “derrotismo” contra outros converteu-se num
mecanismo de defesa para nos protegermos de algo que relutamos em
encarar de frente.
Não há, entretanto, por que nos sentirmos derrotados pelo conhe­
cimento de que existem limites para o poder e o controle humanos, e os
não-humanistas não se sentem derrotados. A derrota só ocorre durante o
conflito, e se não houver conflito não há derrota. Isso é mais do que um
jogo de palavras. O não-humanista parte do reconhecimento honesto da
falibilidade e das limitações humanas, e dessa base reahsta parte para um
desafio — não o desafio humanista para controlar o mundo, pois esse é
um caminho sem esperança, mas o desafio para construir uma vida boa
para si próprio, sua família e sua comunidade, e para evitar com êxito
aqueles golpes do acaso e da Natureza que, com habilidade e esforço, é
possível evitar. Esse desafio pode ocasionalmente ser vencido; e,
mesmo perdendo-o, é possível travar uma boa, até agradável, luta. Os
humanistas vangloriam-se com freqüência de sua liberdade, liberdade
para moldar o destino humano. Isso é uma ironia, pois eles perderam
toda a liberdade dessa natureza que tivessem, dado que se encontram
bloqueados por sua mentira numa luta trágica, que nunca poderá ser
resolvida a favor deles.
Em outras palavras, reconhecer e aceitar a possibilidade de ser
derrotado pela vida — até mesmo de que toda a sociedade em que
vivemos possa ser derrotada pela vida — não constitui, em absoluto, um
ato derrotista, nem uma negação da liberdade. É essa, na verdade, a atitude
com que Colombo deve ter feito suas viagens. Quando a nossa sociedade
tiver renunciado à absurda convicção de que qualquer coisa concebível
pode ser realizada, descobriremos o que é viver uma vida que é aventurosa
e desafiadora de um modo significativo, uma vida que não se sacrifica a
nenhum sonho sisifiano nem a nenhuma busca impossível, uma vida na
qual os sabores distintos da derrota e da vitória podem ser provadosj
muitas vezes por qualquer um antes da morte.
No começo do seu último ano de vida, OrweU escreveu em suas
“Reflections on Gandhi”: “A essência do ser humano reside em não se buscar
a perfeição[...], em estar-se preparado, em última instância, para ser derrotado
e aniquilado pela vida”. Ele estava falando da vida em termos de relações
pessoais. Mas se tivesse vivido por mais tempo, quem sabe, talvez tivesse
visto esse princípio ultrapassar a esfera das interações humanas e englobar
todas as nossas relações com os mundos animado e inanimado. E se a sua
própria vida pessoal nos oferece uma indicação, Orwell lambém teria
visto (na verdade, ele deve ter sabido) que estar “preparado, cm última
instância, para ser derrotado” significa que não se tem de ser necessaria­
mente derrotado, que possível ser vencido sem ser liquidado.
Ao contrário do humanismo, esse entendimento não requer qual­
quer compromisso místico com a onipotência humana, nenhuma deso­
nestidade. Começamos simplesmente com o realismo e depois libertamos
o espírito humano para a grande aventura, a luta e um destino desconhe­
cido. Acreditamos que os resultados dependerão de alguma reação entre
o comportamento humano e uma infinidade de acontecimentos fortuitos
e não-fortuitos sob a égide de uma insondável complexidade de leis
naturais interatuantes. E não existe a menor possibilidade de prever os
resultados. Essa atitude pode ser tudo o que se quiser, menos fraca ou
derrotista, tampouco contém a lacuna fatal do humanismo. Essa lacuna é
a seguinte: enquanto as religiões mais antigas entregam sua fé a Deus e
explicam que a miséria humana e os sofrimentos dos justos são manifes­
tações da justiça divina que estão além da nossa compreensão, o huma­
nismo deposita sua fé na espécie humana, de modo que, para contínua e
cada vez pior miséria humana e para o padecimento dos justos neste
mundo humanista não há nenhuma explicação satisfatória, apenas as
desculpas, evasivas, mentiras e promessas utópicas que hoje formam o
catecismo moderno.
Assim, vemos que, independentemente da natureza das motivações
subseqüentes dos anti-humanistas, não fomos impedidos de aceitar uma
corajosa, admirável e sempre esperançosa filosofia de vida, que nada tem
de passiva nem de desesperançada. Talvez as motivações não sejam tão
importantes quanto pensamos ou, o que é mais provável, talvez não
tenhamos uma compreensão muito boa de todas as importantes relações
entre os nossos pensamentos inconscientes, as nossas crenças concientes
e as nossas ações. Não importa qual é a resposta correta.

Um dos fatos curiosos a respeito dos grandes profetas da catástrofe,


freqüentemente ignorado, é qué muitas vezes eles estavam certos. O maior
de todos esses profetas foi Jeremias. O hiatoriador Haym Tadmor escreveu
sobre os acontecimentos no Reino de Judá na época de Jeremias, um pcruxlo
para o qual existem inúmeros dados históricos de grande exatidão:

Prenúncios de catástrofe já eram evidentes mas muito poucos os percebe­


ram. Aqueles que os perceberam tornaram-se adeptos de Jeremias, o
profeta da catástrofe. Embora a carreira profética de Jeremias tenha com e­
çado em 627 a.C., décimo terceiro ano do reinado de Josias ( Jeremias,
1;2) foi somente a partir de 609 a.C. que suas advertências suscitaram
alguma reação.

Em 598 a.C., 29 anos depois dos primeiros avisos de catástrofes feitos


por Jeremias, ocorreu a primeira das confirmações precisas de sua profe­
cia. Tadmor transcreve da Crônica Babilónica de Nabucodonosor:

“No sétimo ano, no mês de Kislev, o rei de Acádia (Babilônia) reuniu suas
tropas, marchou para a terra de Hatti e sitiou a ’’cidade de Judá" [Jerusalém],
e no segundo dia do mês de Adar ocupou a cidade e capturou o rei.“

Jeremias continuou divulgando suas profecias pessimistas de um prolon­


gado período de cólera divina, que é o de subjugação ao domínio babiló­
nico, mas uma facção hebraica mais’ aguerrida tramou uma revolta
antibabilónica que, como Jeremias percebeu, não tinha a menor probali­
dade de êxito. O desfecho se deu no ano de 586 a.C. e está registrado
sucintamente em II, R eis, 25:8-9.

No sétimo dia do quinto mês, isto é, no décimo nono ano de Nabucodo-


nossor, rei da Babilônia, chegou a Jerusalém Nabuzardan, capitão da
guarda real, servidor do rei da Babilônia. Incendiou o templo de Javé, o
palácio real e todas as casas de Jerusalém, e até mesmo todas as casas dos
nobres ele incendiou.

No caso de Savonarola, cujas jeremiadas não eram menos som ­


brias do que as do próprio profeta hebreu, Burckhardt escreveu o
seguinte:

Quanto mais trágicas se tornavam as desventuras da Itália, mais brilhante


se fazia o halo que, na recordação dos sobreviventes, cercava a figura do
grande monge e profeta. Embora as suas previsões possam não ter sido
confirmadas em todos os detalhes, a grande calamidade geral que ele
predisse foi cumprida com estarrecedora verdade.

É tolice falar sobre todas as análises e previsões desfavoráveis


acerca de acontecimentos ou tendências contemporâneas como “misan-
trópicas”. Tais análises podem ter a finalidade positiva ou de modificar
o comportamento bastante para afastar infortúnios, ou, mais comum ente,
ajudar as pessoas a compreendê-lo enquanto está ocorrendo. A sombria
hsta de êxitos dos antigos profetas da catástrofe deveria ensinar-nos que,
ocasionalmente, é de boa sabedoria deixar a psicologia de lado por um
momento e ouvir.
No entanto, se, apesar desse conselho, sentimos dever ainda Hair
preocupados com as conotações psicológicas da rejeição do humanismo,
há um pensamento final a considerar. Num certo sentido, uma disposição
misantrópica situa-nos à parte da humanidade, fora da sociedade. E ser
um “marginal” em relação à cultura mundial predominante pode ser tudo
o que se faz necessário para ajudar-nos a criticá-la de forma apropriada.
Numa escala mais local, podemos ver o mesmo fenômeno aparecer na
história norte-americana, pois algumas das mais profundas e proKticas
críticas da sociedade norte-americana provieram de visitantes, pessoas
fora da cultura local: Per Kalm no século XVIII, Alexis de Tocqueville
no XIX e Gunnar Myrdal no XX. Como veremos em breve, o humanismo
— por causa de sua satisfação do ego, sua aparente confirmação das
fantasias humanas universais de- poder e controle — é extremamente
difícil de abandonar de um modo voluntário. Mas uma pessoa de fora, um
marginal psicológico, tem outras maneiras, embora desagradáveis, de
satisfazer essas necessidades humanas: por exemplo, ameaçando os ou­
tros com a “maledizione”. Nessa medida, a alienação e mesmo a misan­
tropia, quando governadas pela honestidade e dentro dos limites da
sanidade, têm seus usos, habilitando uns poucos a meditar sobre coisas
importantes que a maioria não vê e a dizer coisas importantes que a
maioria não diz.
Capítulo 7

Para Além do Humanismo


Disse Utnapishtim: “Quando a ti, Gilga-
mesh, quem reunirá os deuses em tua inten­
ção, para que possas encontrar aquela vida
que andas buscando?
A Epopéia de Gilgamesh, Capítulo 6.

ntes de ler este capítulo final, peço ao leitor que ponha de lado a

A questão de otimismo e pessimismo. Já notei que as conhecidas


acusações de pessimismo e derrotismo (que não são a mesma
coisa) servem para proteger os humanistas de uma realidade que eles não
desejam encarar. O motivo da constante insistência em ser otimista e
“positivo” é simplesmente o inverso disso; o otimismo é necessário
àqueles que estão tentando o impossível; não poderíam continuar funcio­
nando sem ele. Mas os que não estão tolhidos pelo compromisso com os
pressupostos humanísticos não necessitarão de tais muletas. Não nos
sentimos derrotados mesmo quando somos pessimistas, porque não sa­
bemos realmente o que o futuro nos trará, nem nos sentimos coagidos a
antepor uma falsa e alegre fachada a qualquer dogma decadente. Nessas
circunstâncias, otimismo e pessimismo são meramente qualidades de
compostura e comportamento superficial, tão importantes para este gê­
nero de investigação quanto saber se se prefere o cabelo curto ou com-
prindo, ou se habitualmente se quebra o ovo cozido pela extremidade
mais larga ou pela mais estreita. O otimismo e pessimismo comuns são
excessivamente vagos e genéricos para que se possa considerá-los senti­
mentos úteis (no sentido de nos ajudarem a decidir o que fazer — embo­
ra ambos possam fazer-nos sentir-nos melhor), e não precisamos licar
demasiadamente preocupados com eles enquanto a nossa investigação
prossegue. São irrelevantes. Começamos, pois, sem pre.ssuposlos. Os
problemas do mundo podem não encontrar uma solução que reputemos
confortável e não existem mais razões para acreditíir que seremos capa-
T

zes de resolver tudo a contento do que para acreditar que tudo o que é
bom está chegando a um fim permanente.
Um outro argumento falso que devemos eliminar desde o começo
é a acusação de “caverna e margem do rio”. Dizem os defensores do pro­
gresso perpétuo: “Vocês não vão, certamente, querer que voltemos a fa­
zer sabão de banha de porco e hxívia, e a bater as nossas roupas sujas nas
pedras da margem de um rio! Deveremos abandonar os nossos medica­
mentos modernos, as nossas comunicações, os nossos transportes rápi­
dos e seguros, e voltar a pé, extenuados, às cavernas? Com cérebros
como os nossos, por que viver como animais?”
Eis uma questão que não faz o menor sentido fora de um contexto
humanista, porque se baseia no pressuposto de que podemos agir como
mais nos agrade. Obviamente, poucos de nós querem viver em cavernas.
Mas 0 que queremos é, com freqüência, uma coisa separada do que real-
mente acontece, e nem por um minuto acredito que as duas coisas coin­
cidam no futuro. Isso é, em parte, porque queremos muitas coisas
diferentes, muitas das quais são mutuamente incompatíveis. Enquanto
houver máquinas de lavar “modernas”, a maioria dos que podem adqui­
ri-las continuará, sem dúvida, usando-as; e se chegarmos ao ponto em
que só houver pedras nas margens dos rios, então, se quisermos ter nos­
sas roupas lavadas e houver margens de rio por perto, usaremos as pe­
dras. Ou poderá haver outras alternativas que os hum anistas não
consideraram. A questão, porém, é que não é correto imputar uma nos­
talgia do desconforto e do trabalho cansativo aos adversários dos pressu­
postos humanistas, apenas porque não acreditamos no sonho humanista.

Sobre a “Construção” do Futuro


Como os meus leitores sabem, penso haver pouca ou nenhuma
probabilidade de que os humanistas sejam capazes de planejar e “cons­
truir” um futuro. O presente e o passado são os nossos únicos guias para
o que possa vir a ser o futuro, e eles fornecem pouco conforto à posição
humanista. Os recursos estão se aproximando de seus limites — alguns,
como o solo arável, são essenciais à vida e absolutamente insubstituí­
veis. No entanto, de posse desse conhecimento, continuamos sendo pri­
sioneiros dos nossos próprios sistemas. Um alqueire de milho do lowa
custa-nos dois alqueires de solo arável e a tendência é para pior. As ar­
mas modernas podem evaporar boa parte do meio ambiente humano, e
parece provável que evaporem todo o nosso dinheiro, mesmo que não se­
jam usadas. A população avizinha-se rapidamente dos 5 bilhões, e mi-
Ihões morrem de fome enquanto os economistas debatem se Malthus ti­
nha ou não razão. O comunismo — dos tipos soviélia), chinês e cambo-
jano — é uma fraude humanista, o pior e o mais cruel embuste do .século
XX. Não é melhor do que o capitalismo, diferindo deste apenas no fato
de seus aprendizes de feiticeiros serem oriundos de uma outra classe so­
cial. O câncer destila do ar que respiramos e da água que bebemos. A
fealdade e a doença perseguem-nos como sombras que não se dissipam.
Enquanto os nossos computadores e as nossas comunicações vão ficando
cada vez melhores e mais eficientes, menos decentes, menos sensíveis e
até menos coerentes se tomam as instituições que os usam. E tudo isso é
negado, ignorado ou desculpado — qualquer coisa que nos impeça de
questionar a nossa própria capacidade para constmir um futuro criterioso.
Mas isso é apenas uma descrição do presente, não do futuro. Reco­
nhece-se não existir nenhuma garantia de que o futuro seja tão ruim; os
“construtores” podem sustentar que ainda estão apenas praticando e que
em breve terão calculado como fazer para que tudo funcione adequada­
mente. Como é possível responder a esse argumento? Não podemos sa­
ber o que acontecerá no futuro, mas talvez possamos imaginar algumas
coisas que não acontecerão. Assim, se explorarmos por baixo das apa­
rências da sociedade humanística, encontraremos certos mecanismos bá
sicos que nos dizem mais seguramente do que as aparências superficiais
por que razão os humanistas não podem construir o futuro.
E um princípio da crença contemporânea que a tecnologia, a organiza­
ção e o planejamento podem ser integrados e controlados de um modo que nos
permitirá modelar um futuro desejável. Por exemplo, é comum depararmo-nos
com declarações no sentido de que leis, normas governamentais ou até o com­
portamento cooperativo comum entre cidadãos particulares pxxíem produzir a
integração e o controle necessários, podem impedir as excessivas e impróprias
aplicações da tecnologia, podem coibir abusos por organizações e podem ad­
ministrar um planejamento sensato. É verdade que parece nunca termos a)-
nheddo esse estádo, mas é-nos apresentado como uma visão do futuro. Quais
são os mecanismos básicos que manterão essa visão para sempre sem substân­
cia? Identifiquei alguns deles no final do terceiro capítulo: os limites teória»
ao poder de prever o futuro; a proliferação de semi-soluções c problemas resi­
duais; a impossibilidade de maximizar múltiplas variáveis ao mesmo lcm[X); c
o “princípio de incerteza”, de acordo com o qual a capacidade s(x;ial e técniai
para buscar solução para um problema subentende a aiprrcidadc .scx:ial e lécni
ca para agravá-lo. Existem, porém, outros mecanismos.
Talvez o mais importante deles possa ser descrito por uma só pala­
vra: ego. Uso essa palavra de um modo simples, não-técnico, para des­
crever a força interna que instiga a maioria das pessoas a agir de maneira
auto-engrandecedora a maior parte do tempo, independentemente de
essa conduta ser à custa de outras pessoas ou da própria sociedade. É o
ego que está subentendido na minha “segunda lei da ciência e tecnolo­
gia”. Um exemplo citado anteriormente é a decisão de Joliot-Curie de
continuar trabalhando na fissão nuclear após Sziland lhe ter solicitado
que parasse, para o bem da humanidade. Como assinalou Garrett Hardin,
e antes dele John Maynard Keynes,^ão podemos esperar que indivíduos
ou grupos de interesses especiais (comoHs corporações ou governos) to­
mem decisões em prol do bem-estargeral se essas decisões violarem in­
teresses egoístas protegidos pela lei. Em certa medida, podemos evitar o
problema se fizermos o interess^^j^ticular e o público coincidirem, mas
normalmente isso é impossível por causa da quantidade enorme de dife­
rentes egos, com seus diferentes e contraditórios interesses, que estão en­
volvidos. Os hum anistas fazem aqui um jogo duplo: por um lado,
prometem um futuro que será bom para todo o mundo e, por outro, criti­
cam (como recentemente ouvi fazerem) a insistência anti-humanista
numa abordagem digna e humilde do meio ambiente como uma crença
religiosa pessoal que não deve ser imposta ao resto da sociedade.
ÍTenho a impressão de que o ego pessoal está recrudescendo no
raundÕTe atribuo isso a uma influência humanista, a qual não nos deixou
outra alternativa senão amarmo-nos a nós mesmos acima de tudõ^Isso é
exatamente o oposto do que foi previsto, não faz muito tempo, pelo pa­
dre Teilhard de Chardin, que acreditava que as descobertas da ciência
ajudariam a humanidade a alcançar uma só consciência mundial, uma
“noosfera”. na qual a mente e o espírito fluiriam em torno do planeta
como um campo magnético.^ondo de lado considerações sobre se um
estado de espírito planetário seria desejável, podemos notar que isso não
aconteceu e, quanto maior é o número de invenções humanísticas, mais
o sonho de Chardin se afasta e se dissipa em sombras. Uma das indica­
ções disso é a onda de egoísmo pessoal que varreu a mais humanística
( I das nossas sociedades|Revela-se no amor ao conforto sem trabalho, uma
( '
concepção que faz do luxo convencional um direito, e não um privilégio
ou ura pagamento. Expressa-se na idéia do “almoço gratuito”, o qual
nunca foi encontrado, apesar de ser multidão o número de pessoas que o
procuram. Sobretudo, mostra-se na falta de sentimento pelas nossas
crianças — uma falta que é denunciada pela culpa que gera. Essa culpa
faz parte de nossa trama de vida: são os brinquedos primorosos que com -
pramos em vez de construí-los, as educações dispendiosas de que não
participamos, e as “experiências positivas” que planejamos mas de que
186
não compartilhamos. Os nossos egos fizeram de todos nós pais su(i.,tiiu-
tos e de cada uma de nossas crianças outras tantas 6rfãs| Que outra .s(x;ic-
dade escolheria, em todas as oportunidades, “tarefas” c-põTuição cm vez
de um meio ambiente saudável de corpo e de espírito para a sua própria
prosperidade? Tagarelamos muito a respeito do futuro, mas a maior |iar-
te dessa tagarelice não passa de uma camuflagem egoísta para as com­
placências do presente. As pessoas que se preocupam com o futuro não
falam tanto sobre ele. j
Ao mecanisrnó^seguinte poderíamos chamar a falácia de direção.
Raymond Dasmann disse-o muito melhor quando intitulou o capítulo de
um livro de “Nobody Is at the Wheel” [Ninguém está ao leme]. É claro,
ninguém está ao leme porque não existe leme nenhum, nem pode existir.
No entanto, insistimos em acreditar que ele existe — e que certas pes­
soas estão ocupadas em fixar alguma espécie de rumo enquanto uma
porção de fantasmagóricos timoneiros nos mantêm longe dos escolhos.
Lembro-me de ter sido convidado uma vez a subir a bordo de um barco
do governo quando este realizava uma das quatro viagens anuais para
verificar o nível de poluição da água no porto de Nova York. Navegamos
ao redor da ilha de Manhattan recolhendo amostras da água imunda onde
outrora proliferaram as melhores ostras do mundo, mas nunca termina­
mos essa viagem nem a coleta de amostras porque um dos tripulantes
machucou seriamente um dedo e teve que ser levado para terra a fim de
receber assistência médica. A decisão foi correta; não obstante, comecei
a entender nessa época como era absurdo pensar que poderíamos algum
dia monitorar até mesmo os efeitos primários de nossas próprias ações.
/ m o há navegadores nesse navio humanista, e os poucos timonei­
ros que temos estão presos no mesmo sistema de mentiras e fingimento
que envolve todos nós. Assim, a nossa água potável é checada, mas ape­
nas para três ou quatro poluentes que eram comuns no ano de 1890. Ouc
mais pode ser feito? Existem agora muitas dezenas de milhares de pro­
dutos químicos lançados em nossa água potável diariamente, provenien­
tes de mühões de fontes. E a nossa carne é inspecionada do mesmo mcxlo
e para o mesmo efeito, como a população envenenada do estado do Mi-
chigan teve a oportunidade de saber parcialmente. Os radioisólopos no
meio ambiente são “monitorados” de forma análoga, 'fudo isso tem por
objetivo manter uma ilusão de direção e controle.
\ A inércia também está entre os mecanismos que fazem do pro-
gressõ um simiãlacroi Os humanistas falam com freqüência cm superar a
inércia, não se apercebendo de que a inércia aumenta na proporção da
complexidade das instituições que inventamos. Quanto mais cspecializa-
da, œmpartimentada e intrincada fazemos a nossa sociedade, mais difícil 6
realizar quaisquer mudanças de um tipo humanista que sejam fundamentais
ou completas. Até mudanças acerca das quais há pouca discordância entre
pessoas ponderadas— como a necessidade de parar de subsidiar o transpor­
te rodoviário e aéreo à custa das estradas de ferro — tomaram-se impossí­
veis de implementar. Grande parte do “sistema” teria que ser erradicado, um
excessivo número de erros de planejamento e falhas de controle teria que ser
exposto. Assim, mesmo que todas as decisões gerenciais humanistas fossem
tão simples quanto a escolha de transporte parecer ser, os humanistas ainda
continuariam prisioneiros de sua própria estrutura. E a maioria das decisões
são infínitamente mais problemáticas.
A observância forçada dessa inércia nada tem de místico: ela pro­
vém das pessoas que vivem no mundo humanista. É da natureza da in­
venção moderna e da inventividade que os papéis reservados para
pessoas no esquema das coisas sejam definidos com superlativa preci­
são, e as pessoas têm que satisfazer essas especificações se desejarem
encontrar um lugar na sociedade. Não há como fugir disso: se as pessoas
não satisfazem as especificações, as invenções e os sistemas não funcio­
nam (podem não funcionar, de qualquer modo). Portanto, vejo anúncios
de “Ofertas de Empregos” numa importante revista científica para um
“espectroscopista de nêutrons”, um “químico de cereais”, um “técnico
em petrologia” e um “imunologista de tumores”, enquanto no meu jornal
se pede um “capataz de polimento de jóias” (com experiência), um “es­
pecialista em varredura eletrônica para trabalhar com um computador
médico Holter-Monitor EKG” (com experiência), um “offset stripper”
(com experiência) e um “projetista de sistemas sprinkler” (com expe­
riência). Os ofícios altamente especializados não são novidade; eles an­
tecedem o surgimento do humanismo. Mas jam ais existiu tamanho
cerceamento das aptidões humanas dentro de limites tão rígidos, circuns­
critos e inumanos, nem um potencial tão grande para a inutilidade huma­
na a cada nova invenção, a cada decisão gerencial. Não admira que haja
tantos grupos de interesses especiais prontos para protestar contra qual­
quer mudança em qualquer direção; quanto mais insistimos em controlar
tudo, mais criamos essas forças de inércia que impedem o controle. É
uma característica de alguns dos mecanismos anti-humanistas, e deste
em particular, serem não só uma parte inseparável do humanismo mas
exibirem feedback negativo — ou seja, quanto mais o humanismo procu­
ra crescer, mais esses mecanismos agem para contê-lo.
fUm outro mecanismo é a primazia-das metas orj^npirnrlnnníx É
particularmente visível no caso de grandesofgS nízà^s como as empre-
188
sas multinacionais e os governos, e constitui uma das caracterf sticas
mais incômodas da nossa sociedade humanístiai. Num certo sentido, tra­
ta-se apenas de um caso especial do problema há poua) mencionado —
que, em conseqüência dos muitos interesses especiais no mundo moder­
no, as “soluções” (no sentido humanístico) para qualquer dificuldade ou
os planos para qualquer futuro “projetado” são numerosos e a)nnilantcs.
Nesse caso, o conflito é entre as necessidades de uma organização e as
necessidades das pessoas, dentro e fora da organização. Um exemplo é o
hábito das modernas empresas que Udam com materiais perigosos atlo-
car os lucros muito acima da segurança, até mesmo das vidas, de seus
próprios trabalhadores. Nestes últimos anos, isso foi demonstrado por fa­
bricantes de DBCP, Mirex, produtos de amianto e corantes anilínicos,
pelas empresas de mineração de urânio e muitas outras. Um outro exem­
plo foi o bem-sucedido esforço da ITT Corporation para abalar e derru­
bar o governo legítimo do Chile. Fossem quais fossem as considerações
que motivaram essa trama, podemos estar certos de que nada tinham a
ver com os melhores interesses da maioria do povo chileno.,
Já mencionei o mecanismo que pode ser chamado ã evitação da
realidade desagradável e não há necessidade de entrar em maiores deta­
lhes. É evidente que qualquer sociedade que aspire ao controle racional
mas não queira tomar conhecimento dos resultados desse controle tem
poucas probabilidades de ir longe na direção do seu objetivo.
A ignorância das causasjj£.pu>bdemas é um mecanismo estreita­
mente ligado ao anterior, pois, além de não querer ouvir más notícias, há
certas espécies de más notícias cujas causas nunca podem ser iaentifica-
das no rol humanístico de invenções e intervenções. Por exemplo, creio
que entre crianças o vício da televisão, mesmo da chamada televisão
“educativa”, à custa das atividades lúdicas e do contato com a Natureza,
entorpece e degrada a mente e o espírito, mas não posso prová-lo. Do
mesmo modo, há uma boa probabilidade de que o desvio para o sul dos
rios siberianos para fins de irrigação afete negativamente o clima, embo­
ra ninguém possa ter a certeza de como será essa mudança, se alguma
houver. Deve ter ocorrido um grande número de mudanças no mundo cujas
origens permanecem obscuras, apesar de lhes percebermos os efeitos.
SNO humanismo postula um mundo que é totalmente reortlenado e
controlado por seres humanos; contudo, sempre haverá algumas pessoas
que são destrutivas ou insanas embora ocupem posições de poder.
Quanto mais interligado e organizado o mundo se torna, mais vulnerável
será a tais pessoas perturbadas e mais poder elas terão. No entanto, pouca
coisa pode ser feita a esse respeito em qualquer sentido fundamental —
organização e interligação constitutem fatores absolutamente essenciais
à propagação do humanismo e aos nossos sonhos de domínio, um fato
que é explorado todos os dias por revolucionários, que ocupam uma di­
ferente posição de poder.
A inevitável presença de pessoas destrutivas é complementada pe­
los rapidamente crescentes números epoderes dejorças destrutivas que
lhes são acessíveis. Aí está um outro paradoxo do humanismo: depende
da invenção e da organização para a sua ilusão de controle, e no entanto
também está desenvolvendo constantemente novos métodos de destrui­
ção de invenções e organizações (sem mencionar a de seres humanos).
Desde os seqüestros de aviões e os atentados com bombas plásticas dos
guerrilheiros até as dezenas de milhares de mísseis nucleares acaçapados
em seus silos e plantados em suas plataformas de lançamento, há sufi­
ciente poder de destruição a postos para que nenhum plano ou organiza­
ção humanista esteja seguro. A organização é especialmente vulnerável
à desintegração (um outro mecanismo que não abordarei em mais deta­
lhes) mas, ainda que não o fosse, o nosso gênio destrutivo é mais do que
suficiente para esmagar qualquer criação humana e muitas de Deus. Não
dediquei nenhum espaço neste hvro às bombas de hidrogênio, aos desfo-
Ihantes químicos, às doenças do arroz produzidas pelo homem e às terrí­
veis bactérias, especialmente cultivadas, que causam cegueira e diarréia,
porque pouca coisa precisa ser dita sobre tudo isso. No entanto, são tam­
bém frutos do humanismo — e não o esqueci.^
Um dos principais mecanismos que funcionam contra o nosso con­
trole de nós próprios e do meio ambiente é, paradoxalmente, uma das
mais admiráveis descobertas do humanismo; a idéia de eficiência. Origi­
nalmente um conceito hgado à produção industrial, propagou-se agora a
todos os domínios da vida moderna, e está causando sério dano. Estando
tão intirnamente. relacionado com o ideal de perfeição mecânica, a efi­
ciência está muito próxima da noção humanista d ê “o b e n ^ E um triste
bem é esse. -----------
O problema da eficiência como ideal é não ser ela um conceito su­
ficientemente forte ou genérico parãlõrnir-seõnücleo de toda uma filo­
sofia. É adequada para projetar algumas máquinas e processos técnicos
porque os sistemas a que é aplicada estão em grande parte definidos e
circunscritos. Se pudermos tratar eficientemente os esgotos em seis eta­
pas, em vez de sete, há todas as razões para fazê-lo e provavelmente nada
se perde. Mas tais exemplos são raros, inclusive na manufatura e em ou­
tros processos tecnológicos(Ã mente humanista ama a eficiência porque
esta parece estar completamente definida, ser inteiramente lógica e ana-
lítica. Essa aparência, contudo, foi obtida em detrimento do contexto, até
não restar, em muitos casos, contexto algum^Quando somente a eficiên­
cia é considerada importante, a análise de preSduto final torna-se impos-
sívelj^ sso é uma terrível fraqueza, e manifesta-se na indústria, por
e x e m ^ , ÿaando a eficiência tecnológica causa desemprego, ou quando
significa que podemos aumentar a produção ou reduzir o custo de artigos
destrutivos tais como bombas e snowmobiles, A mesma coisa ocorre no
comércio: na indústria pesqueira qüasèÍ5dosl)s “avanços” em eficiência
estão hoje associados ao declínio ou extinção das populações que estão
sendo pescadas ^Escrevendo em New Scientist, Robin Clarke forneceu
um outro exemplo:

Uma visita ao interior na época do feno também oferece uma clara ex ­


plicação dos motivos por que esta região — e o oeste em geral — está em
crise econômica...
O tradicional [método de recolher feno] é passá-lo com forquilha do chão
para uma carroça e depois, também com forquilhas, retirá-lo da carroça para
um paiol de feno. Procedi desse modo, e não custa nada — exceto que preci­
samos, pelo menos, de quatro homens robustos. Mas o feno solto tem um ma­
nuseio desordenado, com muito desperdício nessa operação de carga e
descarga, de modo que todos o enfardamos hoje em pequenos cubos...
Mas como nos dias de hoje ninguém reside por muito tempo no cam­
po, a colheita e armazenagem do feno é, para a maioria dos pequenos
agricultores, um trabalho de marido e mulher. [...] o custo extra em ca­
pital [enfardadora, carregadora mecânica, empilhadeira, etc., além do
trator básico, ceifadeira, reboque e outros implementos] supera mil li­
bras. Acrescente-se todo o combustível extra usado para efetuar tantas
viagens entre o campo e o palheiro. E não é rápido o bastante para ju s­
tificar a mudança.
Assim, o agricultor de maiores recursos, que dispõe de mão-de-obra
mas não de tempo, opta por uma terceira solução [...], compra toda a espé­
cie de equipamento mecânico para emplilhar os fardos, carrega-os em re­
boques, descarrega-os de novo no palheiro e volta a empilhá-los. [...] O
custo é agora de alguns milhares de libras.
Pelos padrões de hoje, até isso é lento e desordenado. Assim, há alguns
anos, eis que chegou a grande enfardadora. [...] Custo da conversão: na
faixa de cinco mil a vinte mil libras...
Tudo isso me convence de que não é só o Mercado Comum o que está
prejudicando a lavoura britânica. O que está errado é uma combinação de
burrice financeira e paralisador despovoamento dos campos. Pelo casto de
conversão para a grande enfardadora, poder-se-ia dar emprego a dois
homens, provavelmente, durante cinco anos — só que não é essa a maneira
moderna de fazer as coisas.
Chama-se a isso eficiência: infalível no contexto restrito do modelo do
tecnólogo e do relatório do economista— e um completo desastre quando
posto em prática no mundo real. Uma outra maneira de ver o problema é
considerar que a eficiência, como idéia e como método, é tão maciçamen­
te dependente da lógica ou razão pura e tão pouco temperada pela emoção
que é incapaz de alcançar a espécie de Qualidade que uma filosofia
orientadora deve possuir.
No entanto, apesar de todas as suas flagrantes limitações, a eficiên­
cia está agora em toda a parte. Infiltrou-se na educacão. do jardim de in-
fância à uni\;fiisidade, e quase a deitou a perder. Penetrou até na biologia,
o estudo da vida, disfarçada de teoria. Por exemplo, as pessoas que estu­
dam o comportamento animal estão agora buscando desesperadamente
as eficiências que supostamente explicam cada ação de cada criatura. Se
uma abelha concentra suas atenções em apenas uma ou duas de tantas es­
pécies possíveis de flores, deve acontecer porque é o modo mais eficien­
te de coletar pólen e néctar. E quando as lontras brincam deslizando de
barriga pelos baixios lamacentos, suponho que deve ser esse o modo
mais eficiente de desenvolver suas “aptidões motoras”. Não estou ten­
tando refutar a evolução darwiniana: assegurar a sobrevivência de sua
posteridade é ainda a tarefa primordial que qualquer criatura viva enfren­
ta. Mas na sobrevivência, como em todas as outras esferas da vida em
que penetrou, a eficiência é apenas uma das muitas considerações possí­
veis que pesam sobre cada decisão ou em toda a seleção evolucionista^ e,
com freqüência, vemos que ela tem relativamente pouca importância. Ig­
norar isso com o propósito de contar com um processo lógico e ordena­
do, que tudo explique, é ignorar a natureza da própria vida.
Existe, finalmente, um contexto político que é ignorado pela efi­
ciência. Orwell descreveu-o numa crítica literária publicada em Poetry
Quarterly no inverno de 1945.

Os processos envolvidos na construção, digamos, de um aeroplano são tão


complexos que só são possíveis numa sociedade planejada, centralizada,
com todo o apareihamento repressivo que isso subentende.^jnenos que
ocorra alguma mudança imprevisível na natureza humana, liberdade e
eficiência avançarão em direções opostas.j,

Eis uma outra limitação básica no poder do humanismo para planejar um


futuro em que as pessoas queiram ou possam viver.
O último dos mecanismos que vi funcionando para impedir que o
futuro humanista possa acontecer decorre da estrutura da própria organi­
zação. Como já disse, a organização é a principal ferramenta dos huma-
nistas para controlar o mundo..Quanto major tbr p número de coisas que
queremos ver administradas, projetadas, produ/.idas ou corrigidas, mais
organização será necessária para dirigir essas operações. Isso leva, inevi­
tavelmente, a uma proliferação de adminbtra(^res. cuja tarefa
consiste em comandar e gerir o rg an izaçõ es^ esses administradores,
seja o que for que estejam fazendo, nãrTestão produzindo o que Schuma-
cher chamou de os bens e serviços necessários a uma existência digna.
/E l è s ^ o um fardo que pesa sobre os ombros dos reais produtores na so­
ciedade e, no entanto, quanto mais “organizado” o mundo se toma, mais
aumenta o número de administradores que precisam ser alimentados,
vestidos e alojados, que têm de ser acrescidos à soma do ego do mundo,
que agravam a complexidade e a frustração da vida moderna, que pro­
movem a primazia das metas organizacionais, que descobrem novos ca­
minhos para evitar a realidade e ignorar o perigo, que dispõem do poder
de agir destrutivamente em grande escala e que promovem a eficiência
— em suma, é cada vez maior o número de administradores para operar
todos os outros mecanismos que estão provocando o descontrole da so­
ciedade h u m a n M ^
Neste ponto, na conclusão desta lista de mecanismos anti-huma­
nistas que o próprio humanismo criou ou incentivou, volto mais uma vez
ao ponto mais importante: o ego. Tentei mostrar por que o enfoque hu­
manista da vida deve falir, e expus os mecanismos que concorrem para
isso mas, enquanto os considerava, algo mais se tomou claro. Não só os
mecanismos explicam por que as promessas humanistas modernas de­
vem fracassar, mas um deles explica por que os humanistas, mesmo sa­
bendo essas coisas, serão incapazes de renunciar aos pressupostos, aos
sonhos de poder. Não renunciaremos a eles porque não podemos — os
nossos egos impedem-nos disso^Q)nversei certa vez com um colega
cientista que estava estudando uma espécie de grande baleia ameaçada
de extinção. Ele estava profundamente preocupado com a sua sobreviên-
cia, porém, em seus artigos científicos, estava publicando mapas e des­
crições exatas dos locais de “suas” próprias e florescentes mas ainda
pouco conhecidas populações de baleias. Temendo que os baleeiros pu­
dessem usar essas informação, perguntei-lhe por que não a omitira ou,
pelo menos, não a apresentara com menos precisão. Respondeu-me que
não podia reter a verdade científica, mesmo que isso significasse que as
baleias seriam atingidas?^
Acredito que, nesse caso e em muitos outros em que é invocada,
“verdade cieotífica’.^é um respeitável eufemismo para o e^o. A ciência,
para esse meu interlocutor, é a fonte ou a esperança de poder, c como
qualquer fonte de poder real, é muitíssimo difícil de rejeitar voluntaria­
mente. Não estou em situação de condená-lo. A grande maioria das pes­
soas é assim. É uma das muitas tragédias humanas, e não a menor delas.
A primeira vez que me deparei com uma descrição dessa tragédia
e me foi dado compreendê-la foi ao ler a obra de J.R.R. Tolkien, The
Lordof the Rings [O senhor dos anéis]. Pois quando, finalmente, chegou
o momento de Frodo rejeitar e destruir o Primeiro Anel, o anel do poder,
foi-lhe impossível fazê-lo, apesar do perigo em que sua recusa colocava
os seus amigos, e apesar do fracasso que essa recusa acarretaria para a
terrível e obstinada busca que empreendera sem vacilação até beirar a
própria catástrofe. E, no fim, GoUum, um escravo das forças das trevas,
obedecendo mecanicamente, irracionalmente, ao chamado do poder que
o mantinha subjugado, é que foi o instrumento involuntário mas não
inesperado da destruição do Anel. Acredito que tal instrumento é o me­
lhor que podemos esperar, à parte uma intervenção divina direta, na luta
para superar a arrogância do humanismo, embora seja impossível saber
se chegará a tempo de salvar muitas das coisas que amamos na Terra.
Depois de um intervalo para abordar algumas questões políticas,
voltarei às questões de Gollum, das intervenções involuntárias e do que
pode ser salvo.

A Política do Anti-humanismo
Não tenho nenhuma predileção especial por um partido político ou
por uma filosofia política, e esforcei-me ao máximo para evitar que este
hvro se tornasse político. A política e as convicções políticas são, em ge­
ral, humanísticas em sua essência — só diferem da tecnologia em que
pretendem oferecer um caminho para a salvação através da aplicação da
teoria e do planejamento sócio-econômicos, em vez de fazê-lo através da
aplicação da ciência. Como mera variedade de expressão humanista — e
não uma com que eu esteja particularmente familiarizado —, o tema é

I "I! um dos que gostaria de evitar inteiramente se pudesse. Contudo, algumas


filosofias políticas são tão excessivamente humanísticas em suas pers­
pectivas que merecem um comentário.
As filosofias mais aberta e confessadamente humanistas são as que
formam o grupo liberal, o qual abrange todas as formas de comunismo,
o socialismo e o liberalismo moderado. O comunismo clássico, com o
sonho de Marx de uma sociedade sem classes e um governo mínimo al­
cançado através da engenharia social, é o mais comprometido de todos
eles com os pressupostos humanísticos, e foi o que fracassou mais es-
T trondosamente. Primeiro na Rússia e depois na China, o sonho humanis­
ta de uma vida aperfeiçoável desmoronou-se: nobres e mandarins deram
lugar às classes privilegiadas de burocratas, tecnocratas c políticos; na
Rússia, os bens materiais e a moradia melhoraram um poua), mas à custa
da terra, dos recursos e, portanto, do futuro, e na China, após a morle de
Mao, o mesmo processo está agora começando, quando o ego por muito
tempo reprimido e as outras forças que corroem o humanismo de dentro
para fora começaram a ser sentidas. E nesses dois países humanísticos, a
alardeada liberdade que os humanistas admiram desapareceu sem deixar
vestígios. Toda vez que um sonho se desmorona, uma nova geração de
adeptos é desiludida, depois arranja desculpas, e o mesmo sonho reco­
meça num outro país. A visão de Marx era moralmente justa e humana,
e a concepção de vida de Engels tinha grande refinamento e sabedoria
ecológicos. Não obstante, suas boas intenções foram irresistivelmente
derrotadas pela falsidade de seus pressupostos básicos, e já é tempo de as
pessoas moralmente justas, humanas e ecologicamente refinadas do sé­
culo XX admitirem isso antes que mais danos sejam causados.
Na medida em que o liberalismo e o socialismo puderam libertar-
se das fantasias utópicas marxistas e chegar a um acordo com a vida, fo­
ram mais bem-sucedidos ou, pelo menos, mais decentes. Contudo, nem
sempre se mostraram dispostos a fazer isso. Penso espedalmente no li­
beralismo, sem dúvida porque pude observá-lo mais de perto. Nos Esta­
dos Unidos, por exemplo, o liberalismo tem sido, de um modo geral,
uma filosofia eticamente boa, tolerante e aberta; contudo, quando suas
políticas são colocadas em prática, os resultados obtidos são, com fre-
qüência, o oposto dessas qualidades. O caso mais evidente é o sistema de
bem-estar social, o qual desempenhou involuntariamente seu papel no des-
povamento da zona rural, na destruição das ddades, no racismo e na violên­
cia crescentes, e no declínio geral do bem-estar de quase todo o mundo
Agora um novo plano de bem-estar social será anunciado, com seus méto­
dos concebidos humanisticamente de solução desses terríveis problemas
num grandioso esquema de acordo com um futuro imaginado, e só temos
que esperar para ver que resultados inesperados e provavelmente horríveis
se seguirão.
Um outro exemplo é o da Tennessee Valley Authority, a qual co­
meçou com aspirações e planos liberais verdadeiramente nobres: eletri­
ficação rural, energia para os pobres, luz e esperança para os mais
desfavorecidos. Agora, algumas décadas mais tarde, tendo cumpritlo sua
missão formal original, o que foi que a TVA se tornou? Uma força para
exterminar espécies ameaçadas, para devastar florestas, destruir santuá­
rios e lugares históricxjs, inundar dezenas de milhares de hectares de terra
agrícola de primeira qualidade para a formação de reservatórios desne­
cessários — e uma administração que pode impor seus poderes burocrá­
ticos em qualquer parte de seus vastos domínios, como os antigos
mandarins. E o que se passou com os liberais que formaram e orientaram
a TVA em seus primeiros anos? Sem dúvida, alguns estão mortos, outros
estarão arrependidos e alguns ainda estão satisfeitos com seu trabalho.
Mas eles não contam. Pois uma nova geração de liberais está chegando
para compartilhar dos antigos pressupostos e repetir os velhos erros.
Numa escíila menor, pode-se descortinar a influência humanística
do liberalismo em quase todos os artigos e ensaios eruditos que descre­
vem uma injustiça. Há alguns anos, li um excelente relato do declínio da
agricultura tropical, o qual era atribuído, penso que corretamente, à in­
compatibilidade da ecologia tropical e das modernas técnicas agncolas,
e aos efeitos deletérios em países pobres de sua absorção no mercado
mundial. Em suma, os agricultores tropicais estão comportando-se hu-
manisticamente, como todo o mundo. E qual era a solução proposta pelo
eminente ecologista que escreveu o texto? É preciso fazer mais pesquisa
(incluindo, presumivelmente, algumas feitas por ele), a fim de descobrir
como projetar sistemas agrícolas tropicais que sejam completamente in­
dependentes; e propiciar mais educação, a fim de ensinar essa gente ig­
norante a renunciar ao humanismo, ensiná-la a deixar de querer os rádios
transistores a que seus sistemas ecológicos não podem ter acesso, ensiná-
la a aceitar o máximo a que pode aspirar, que é a subsistência e um pouco
mais. Humanismo para curar humanismo! É como lavar uma infecção
com um extrato de esgoto.
Quem dará a educação que os liberais consideram necessária e o que
é que ensinarão? Que rato se arriscará a pôr os guizos no gato? As boas in­
tenções não são suficientes. De fato, se a intenção é planejar e subseqüente-
mente controlar um admirável e glorioso futuro, nada é bastante.
r
' Qualquer crítica do elemento humanista nas filosofias poUticas überais
cria um dilema. Num mundo que está dividido de acordo com critérios
poUticos, é impossível, quando se critica, um lado da divisão não ser
identificado com o outro lado. Isso acontecerá independentdemente do fato
de a própria divisão ser artificial e irreal, um ponto que discutirei adiante.
A crítica moderna da teoria política humanista deve estar prepara­
da para ser alinhada por outros com as forças do conservadorismo extre­
mo, da intolerância religiosa, da anti-ciência fanática e do fascismo. Isso
não é uma designação atraente nem justa. Não é justa porque é uma
aliança pelo processo de eliminação, não por escolha ou afinidade. U ad­
versário do humanismo também se opõe à moderna ciCncia econômica
conservadora, a qual é o n e plus ultra da arrogância humanista, agindo
como age num contexto definido de modo artificial, que rejeita como tri­
vial ou desprezível qualquer consideração que não possa ser traduzida
para a grosseira e simplista linguagem da economia. O auversário do hu­
manismo não é atraído pelo sonho de poder, nem está sujeito a ele. O ad­
versário do humanismo acredita em limitar as pretensões da razão
usando-a, em primeiro lugar, sem preconceitos, a fim de avahar as con-
seqüências das nossas próprias ações. O adversário do humanismo sabe
que quando o mal resulta de uma descoberta humana é, em geral, por
causa de circunstâncias imprevistas, muito mais do que de um propósito
perverso. O adversário do humanismo não vê com bons olhos e teme as
grandes organizações cujo propósito é o controle. O adversário do huma­
nismo deplora qualquer forma de falta de consideração pelo meio am­
biente. Assim, se não somos aliados políticos do grupo hberal, tampouco
somos parceiros convenientes da direita poUtica nem do centro ortodo­
xo. Não encontramos uma filosofia política popular que tenha a respostg.
Comunismo e capitalismo são os inimigos político-econômicos
formais do nosso século. São os pólos políticos opostos; existem outras
dicotomias mas fizeram-nas parecer menos importantes. Penso não ser o
único, porém, a perceber mais semelhanças do que diferenças entre os
dois. O comunismo é, originalmente, humanismo bem-intencionado, que
quebrou invariavelmente suas promessas em todas as suas aplicações
que tenham um bom número de anos de existência; o capitalismo é ori­
ginalmente humanismo egoísta e brutal, que refinou alguns de seus ma­
neirismos e técnicas mas mudou muito pouco em todos os demais
aspectos. Eu tinha um tio-avô, que já faleceu há muito tempo, que era um
abastado industrial capitalista e um ardente marxista. A combinação
sempre nos pareceu estranha e engraçada, mas talvez ele tivesse com­
preendido as semelhanças entre as duas filosofias. Ambas são produtos
da premissa humanista e ambas dependem maciçamente da organização.
^Srganização é organização: não é socialista nem reacionária, religiosa
nem secular— apenas humanismo destiládSÉ organização, não “com u-
nismo” ou “capitalismo”, que está tetífãndo dirigir o mundo — e que
péssimo serviço está fazendo. E por isso que os estereótipos políticx)s es­
tão desintegrando-se; que os entusiasmos pohticos direitistas e esquer­
distas estilo década de 1930 e os grupos de ação revolucionária parecem,
todos, tristemente arcaicos; e que, ao atentarmos para a maioria dos teó­
ricos políticos, eles parecem tão semelhantes uns aos outros que nos vem
à idéia o velho dito dos estádios de beisebol: “É impossível distinguir os
jogadores sem ter à mão um programa com os nomes, as posições e a re-
trospeçíjva dos jogadores das equipes que se defrontam.”
: Todas as filosofias políticas mais importantes são humanistas, e com
o abrupto e aterrador colapso do humanismo que estamos vivenciando, to­
das elas estão agora ultrapassadas. Novas divisões e novas alianças estão
surgindo. Os conflitos de nossos pais serão questionados e esquecidos. As
novas linhas de batalha política arregimentarão clérigos contra clérigos,
marxistas contra marxistas e capitalistas contra capitalistas. .Yelhas idéias,
reanimadas por circunstâncias novas, voltarão a abalar a Terra. '
Embora o resultado não possa ser previsto, podemos fazer um tra­
balho muito melhor do que o que fizemos até agora para entender o que
está acontecendo hoje. E talvez não tenhamos que ser profetas para saber
as coisas certas a fazer.

Expectativas e Opções
A verdadeira perspectiva, até onde me é permitido calcular as p ro ­
babilidades. é muito sombria, c qualquer pensamento sério deve partir
desse fato.
GEORGE ORWELL, "TowarãEuropcan
Unity”

... e em cada época surgirão coisas que são novas e não foram prenun­
ciadas porque não promanam do passado.
J.R.R. TOLKIEN, The Silmarillion

É tempo de olhar na direção em que a nossa civilização parece


deslocar-se e examinar as possibilidades de dar respostas apropriadas às
nossas circunstâncias presentes. Não cheguei até este ponto, entretanto,
na minha crítica do humanismo, para apresentar “roteiros” e dizer aos
meus leitores como administrar o futuro. Não sou um futurólogo. Mas
não é preciso ser um deles para conhecer o futuro imediato, e pode-se
abandonar uma estratégia de longo alcance sem renunciar à tática.
A “perspectiva” a que Orwell se referia em 1947 chegou e conti­
nua sendo muito sombria, embora não por todas as razões que ele imagi­
nou. A principal dificuldade que estamos enfrentando agora não é o
surgimento de um punhado de superestados monolíticos; é o espetáculo
de desperdício e destruição globais que estão ocorrendo na última grande
e egoísta negação de limitações humanas. Todos somos participantes de
uma disputa horrível entre a destruição e a preservação. A destruição tem
ü poder de morte, que é definitivo e irrevogável. A prc.servação lem o po­
der de vida, que é evanescente e frágil, mas que pode crescer e expandir-
se sob circunstâncias favoráveis. As circunstâncias não parecem ser
favoráveis no momento, de modo que a balança pendeu a lávor da des­
truição. O que é que está sendo perdido?
-•— Em primeiro lugar, as regiões agrestes, que não constituem nenhuma
espécie ou tipo de habitat, mas uma classe superior de forma de vida com
sua própria nobreza, derivada de sua completa independência de seres hu­
manos. Foi o agreste que William Faulkner entendeu em GoDown Moses:

o agreste, as grandes florestas, mais altas e mais velhas do que qualquer


documento registrado: — de homem branco suficientemente fátuo para
acreditar que tinha comprado qualquer fragmento dele, de índio suficien­
temente implacável para pretender que qualquer fragmento dele tinha sido
seu por direito de transmissão... esse agreste condenado cujas fronteiras
estavam sendo constante e mesquinhamente destruídas por homens com
arados e machados, que o temiam porque era selvático

— o mesmo agreste cuja destruição, sabia Faulkner, era o fluir de areia


numa ampulheta universal — terminou exatamente quando o tempo se
esgotou para os destruidores, que, findo aquele, estariam eles próprios
liquidados e destruídos.

“Deus criou o homem e criou o mundo para o homem viver nele, e acho
que Ele criou a espécie de mundo em que teria querido viver se Ele fosse
um homem — o chão para caminhar, os grandes bosques, as árvores e a
água, e os animais selvagens para ali viverem. E talvez Ele não tenha pos­
to no homem o desejo de caçar e matar animais, mas acho que Ele sabia
que, estando a caça acessível ao homem, este acabaria aprendendo por si
mesmo a fazê-lo, uma vez que ainda não era ele próprio um Deus...
“Colocou-os aqui, ao homem, e aos animais que este perseguiria e ma­
taria, prevendo tudo. Acredito que Ele disse: ‘Assim seja’. Acho que Ele
até previu o fim. Mas Ele disse: ‘Dar-lhe-ei sua oportunidade. Também
lhe darei advertência e presciência, juntamente com o desejo de perseguir
e o poder de matar. Os bosques e campos que ele assola e a caça que de­
vasta serão a conseqüência e a assinatura do seu crime e da sua culpa, c
sua punição.”
Não admira que os bosques arruidados que eu costumava outrora per­
correr não clamem por retaliação!, pensou ele: as pessoas que os destruíram
se encarrgarão de levar a cabo também a sua vingança.

, Em segundo lugar temos as espécies e comunidades, das qutiis


as primeiras estão agora se perdendo num ritmo que é provavelmente
mil vezes maior do que o grau de extinção que oœrreu durante a última
idade glaciária.
*“ As paisagens cultivadas vêm em terceiro; bosquetes e pequenos
sítios britânicos, granjas e vinhedos europeus, pequenas fincas centro-
americanas, parques e fazendas urbanos e suburbanos da América do
Norte, hortas e jardins por toda a parte estão sendo destruídos ou então
alterados e degradados em nome da eficiência, com esta última propor­
cionando crescente uniformidade e decrescente Qualidade.
—■ A quarta perda está intimamente associada à anterior: a perda
de habilidades humanas, uma das quais é cuidar das paisagens culti­
vadas que estão desaparecendo. Ainda existem excelentes pedreiros,
carpinteiros, jardineiros inspirados, grandes mecânicos e alguns fa­
mosos fabricantes de violinos entre nós, mas seu número está decli­
nando rapidamente em proporção à população total. Como pode um
país como os Estados Unidos, que importa do México suas flores cor­
tadas por razões de “eficiência de custos” e criou arranjos florais “pa­
dro nizados” que podem ser encom endados por telefone, esperar
produzir mais alguma geração de floristas que não sejam apenas ven­
dedores mas também entendam de flores? Isso é impossível. Habili­
dades humanas desse gênero, ou são continuamente desenvolvidas e
transmitidas de geração para geração, ou estão perdidas. E a cada ha­
bilidade que se extingue com a morte do seu detentor, ficamos um
pouco mais desamparados, um pouco mais nus. Esta é outra ironia no
desfile de ironias: que o humanismo e sua promessa de controle total
da vida deixem a humanidade tão vulnerável e exposta à vida quando,
como inevitavelmente deve ocorrer, ou pouco a pouco ou de súbito, a
máquina parar. E.M. Forster, em “The Machine Stops”, descreveu o
caso extremo, um caso que nunca atingiremos, mas que é, de qualquer
modo, instrutivo. A Máquina que controla e alimenta toda a vida nas
cidades subterrâneas da Terra enguiça, e Forster descreve primeiro as
tentativas ineficazes e patéticas para racionalizar o defeito, e depois o
terrível colapso e o fim:

“É claro”, disse um famoso conferencista [...] que embelezava cada nova


deterioração de forma esplendorosa [...], “não iremos pressionar agora com
as nossas reclamações. O Aparelho Reparador tratou-se tão bem no passado
que todos nós simpatizamos com ele e aguardaremos pacientemente a sua
recuperação. Nesse meio-tempo, dispenserhos as nossas camas, os nossos
jornais, as nossas outras pequenas nece.ssidades. Estou certo de que seria
esse o desejo da Máquina.”...
...Ela bateu, por acaso, no interruptor, que abriu a porta, e a liilada oc ar
fétido que bateu em sua pele, os murmúrios soluçantes cm seus ouvidos,
disseram-lhe que estava enfrentando de novo o túnel, c aquela tremenda
plataforma sobre a qual vira homens lutando. Não liavia agora nenhuma
luta. Só restavam os murmúrios, e os pequenos gemidos lamurientos. 1des
estavam morrendo às centenas na escuridão. [...| O homem, a flor de toda
carne, a mais nobre de todas as criaturas visíveis, o homem, que outrortt
fizera um deus à sua imagem, e refletira sua força nas constelações, o belo
homem íiu estava morrendo, estrangulado nas roupas que havia tecido.
Labutara século após século, e ali estava a sua recompensa. É verdade que
as roupas tinham parecido celestiais no começo, pintadas com as cores da
cultura, costuradas com os fios da abnegação. E celestiais tinham sido
enquanto foram uma indumentária e nada mais do que isso, enquanto o
homem pôde despojar-se delas e viver da essência que é a sua alma, e da
essência igualmente divina que é o seu corpo.

É estranho que sejam o s adversários da arrogância do hum anism o quem


d eve agora im plorar uma oportunidade para restabelecer a grandeza e a
dignidade da esp écie humana.
A quinta perda sã o o s recursos — uma p e r d a que todo o mundo
sa b e avaliar, e que p o d erá avaliar cada vez m elhor à m edida que a d es­
truição prosseguir.
A sexta e última perda que m encionarei é a saúde humana e am ­
biental e a sanidade humana. E xam inei isso exten sam en te n os C apítulos
3 e 4 e, portanto, não v e jo n ecessid ad e de dizer alg o m ais sobre o a ssu n ­
to. O leitor pensará em outras perdas — a verdadeira liberdade, talvez, e
m uitas outras — m as enum erei-as em núm ero su ficien te para mostrar a
gravidade da nossa situação.
Uma v ez cientes do que está se perdendo, a questão crítica é esta;
_ n o m om ento em que a m aquinaria,do h u m an ism aJiver.en gu içad o su fi-
c ie n fem en te para não m ais ser cap az d e causar uma d e struiç ã o geral,
quanto restará daquilo a que dam os valor? Para responder a essa pergun­
ta, tem os d e con h ecer prim eirofc o m õ ~ T g iI ã « ^ ocorrerá c^ colapso. .lá
d isse acreditar que não p od em os renunciar voluntariam ente ao son h o de
poder, que será necesário um GoUum. T olkien era grande autoridade cm
folclore, e o n om e G ollum era extraordinariam ente parecido com “g o -
Jein ”, um term o do fo lclo re judaico que sig n ifica ^ m autôm alo, uma cria
J u ra m ecânica e in co n scien te. N o que se refere ao “comeV’ do co la |iso ,
p odem os esperar que o agente seja uma peça in consciente, com funcio
nam ento d e feitu o so , do próprio m eca n ism o , em ve.' de algum a força
con scien te exterior ao hum anism o. M as que peça? N ão há co m o .sabC-lo.
E isso é apenas o “c o m o ”; o “quando” também está inteiram enle além do
1
nosso poder de previsão. Assim, a questão crítica não pode ser res­
pondida; não.ppdemos sequer saber se o compromisso com os pressu­
postos humanistas e o dano irão parar gradualmente, dando-nos pelo
menos uma chance de nos adaptarmos de forma realista ao mundo
que resta, ou se pararão abrupta e desastrosamente, talvez depois que
o agreste, os animais e as plantas, as paisagens cultivadas, as habili­
dades humanas, a saúde ambiental e humana, e os recursos remanes­
centes, tiverem acabado ou sido arruinados, não nos deixando outra
alternativa senão o caos.
O humanismo é uma filosofia obstinada e um Gollum pode chegar
tarde demais para nos salvar dos destroços. Não desprezo essa possibili­
dade, mas não vejo sentido algum em discuti-la. Existe, seça dúvida, uma
anatomia do caos; deixo para outros essa dissecação.
Mesmo que o colapso da arrogância ocorra cedo e de um modo
não demasiado abrupto, muito já se perdeu. Além disso, duvido que exis­
ta algum processo, a não ser de ordem sobrenatural ou divina, que permi­
ta à sociedade m undial passar por uma transição tão m aciça sem
experimentar muito sofrimento. De modo que, em qualquer caso, não
haverá comemorações. O que é de melhor podemos esperar? Qual é o
Gollum mais generoso — aquele que, em seu ato final de autodestruição,
levará consigo meramente um dedo de civilização, não o corpo todo? Só
posso pensar em um : a depressão econômica global, acontecendo em
breve, sem guerra se possível, e resultando no colapso do atual sistema
econômico mundial, e juntamente com ela o colapso da indústria explo­
radora, do comércio global de armamentos fantásticos, dos planos maci­
ços de reordenamento da terra, da destrutiva agricultura de exportação, e
o restabelecimento de economias nacionais e regionais em pequena es­
cala e independentes de qualquer “macrossistema”. Isso é uma esperan­
ça, n ão um a p re v isã o . N ão esp e ro v er as c o isa s aco n tecerem
necessariamente desse modo, e existem, sem dúvida, outros GoUums
que eu aguardaria esperançosamente se me tivesse ocorrido pensar neles.
Os humanistas dirão que é pura misantropia querer uma depressão, mas
acredito que os meus leitores entenderão que não se trata disso — que Qg
verdadeiros jaisantropos são aqueles que lutam por manter-se no cami­
nho insensato que estamos agora percorrendo, e o fazem com inquebran­
tável enntusiasmo e sem levar cm conta o custo final.
Se qualquer mecanismo, econômico ou outro, nos detiver antes de
chegarmos à beira do abismo, que partes do humanismo poderiam ser
salvas?Êm primeiro lugar, teria de ficar bem claro que é pouco provável
'"qãéõ^ueremos salvar e o que será salvo sejam a mesma c d ü ^ s s o pode
ser uma sorte, já que todos quereremos apegar-nos a coisas que o
mundo não pode permitir-se conservar. No caso da tecnologia, por
exemplo, não é fácil definir que partes dela são as “más” c, ainda que
pudéssemos, talvez fosse comprovadamente impossível separá-las do
resto. A nossa moderna tecnologia possui uma superestrutura; é difí­
cil imaginar formas de desmembrá-la sem destroçá-la inteiramente. E
se pudéssemos conservar fragmentos de tecnologia, não tardtiríamos
em querer reavê-la toda.
Talvez a tecnologia intermédia de Schumacher sobrevivesse — o
uso de invenções sofisticadas mas simples para a agricultura e a manufa­
tura, feitas de materiais localmente disponíveis, fáceis de construir c re­
parar, e requerendo pouca energia para funcionar. Na medida em que é
realmente indepente da superestrutura, talvez chegasse a prosperar, ali-
mentando-se, até adquirir plena pujança, dos intermináveis montes de
sucata da tecnologia antiga. Em contraste, Orwell acreditava que, se a
sociedade moderna terminasse de forma catastrófica (ele estava pensan­
do numa guerra nuclear estilo década de 1940), tudo o que poderia so­
brar de tecnologia, depois de um par de gerações, seria a agricultura de
subsistência e a capacidade para fundir metais. Uma “catástrofe” econô­
mica poderia muito bem ter o mesmo resultado. A questão é que não sa­
bemos e é totalmente inútil colocar agora quaisquer etiquetas em coisas que
esperamos resgatar mais tarde dos destroços. A humanidade sobreviveu du­
rante incontáveis séculos sem a tecnologia do século XX e pode ser capaz
de fazê-lo de novo. Tudo depende, como disse, do que se perde antes de
ocorrer a mudança. Talvez possamos ter uma tecnologia humanizada, talvez
“retomemos às cavernas”, ou talvez nem isso seja possível. O mais provável
de tudo é que o futuro da tecnologia seja algo que ainda não imaginamos.
O mesmo raciocínio cauteloso pode ser aplicado às partes não-tec­
nológicas do humanismo. Também aí haveria grandes coisas, livres do
estigma de arrogância, que salvaríamos se pudéssemos. A justiça huma­
nitária, especialmente, e a idéia de igualdade. A liberdade de pensamen­
to e a tolerância, também. Podem essas coisas, sobretudo a liberdade de
pensamento, ser separadas das outras manifestações do humanismo mo­
derno — por exemplo, da busca do conhecimennto, sem levar em conta
as conseqüências — e ser resgatadas? Se a resposta é sim, sobreviverão
elas por muito tempo num mundo pós-humanista? Uma vez mais, devo
responder que não podemos saber.

^[compreender que não estamos dirigindo e.ste planeta cm sua órbita


não significa paralisia — significa nova liberdade c um grande alívio’. Os
que possuem essa compreensão não precisam mais esforçar-se por reali­
zar o impossível, consumindo suas energias na vã e destrutiva tentativa
de conduzir o mundo, “controlando” enchentes para afinal torná-las cada
vez piores e “eliminando” doenças cuja etnologia não entendemos para
afinal fazer condições mais terríveis pairar sobre as nossas cabeças. Já
não têm por que sentir-se culpadas por não realizarem o desejado contro­
le. E não mais precisam mitigar a culpa simulando desonestamente que
a tarefa está feita ou prestes a ser feita. Esses são os motivos de alívio.
A liberdade é a oportunidade e o desafio de se dedicar à realiza­
ção de um destino individual, na verdade, ter simplesmente um destino
próprio, separado da grande teia organizacional que está destruindo a
vida na Terra. Com efeito, uma crença no incognoscível já está, uma
vez mais, habilitando algumas pessoas, membros do quarto mundo de
algumas pequenas nações independentes, de comunidades e de famílias
sólidas, a dar os primeiros passos por caminhos próprios. E, dia após
dia, as circunstâncias estão forçosamente aumentando esses números,
quando pessoas perspicazes fogem das tensões causadas pelos pressu­
postos humanistas, optando, como os menonitas, por tentar organizar
vidas decentes para si mesmos fora, em grande parte, do sistema. E di­
fícil levar semelhante vida num mundo humanista: o humanismo é es­
pecialm ente adepto da cooptação. Mas é possível com eçar. Se o
huiiiaiiisiHü^ùcûmbir suficientemente cedo e de forma suficientemente
suave, essas pessoas terão mostrado o caminho para uma sociedade
mais refinada e mais duradoura, e elas serão os núcleos dessas socieda­
de. Haverá muitas unidades de sobrevivência, cada uma com sua pró­
pria fé e suas crenças e seu modo de vida, algumas mais bem-sucedidas
que outras. Ainda seremos capazes de nos ajudar uns aos outros, espe­
cialmente os vizinhos, mas teremos deixado de estar todos ligados
pela mesma corda na vertente da montanha. Haverá muitas culturas
de novo, mas nenhuma cultura mundial amorfa. Causa e efeito volta­
rão uma vez mais a ser reconhecíveis em nossos assuntos cotidianos.
Haverá vida, morte, luta, sofrimento, alegria e triunfo, como sempre
houve, e serão aceitos como matéria inseparável da existência, não
sendo nenhuma parte isolável: unidade, para além da compreensão
mas não para além da experiência, a_únicagrande dádiva do ser.
Escreveu Tolkien em The Return ofthe King [Õ regresso do rei]:

No entanto, não está em nosso papel dominar todas as marés do mundo,


mas fazer o que nos cabe para a ajuda daqueles anos em que estamos
situados, erradicando o mal dos campos que conhecemos, para que
aqueles que virercm depois possam ter uma terra limpa para lavr..--. Que
tempo terão, não nos cabe governar.

Isso é o melhor que podemos esperar, e é o bastante.

O Espírito Humano
D e qualquer modo, a primavera chegou, até em Londres N.l, e eles tuio
podem impedir que você a desfrute. Essa é uma reflexão satisfatória.
Quantas vezes fiquei observando os sapos acasalarem-se, ou um par de
lebres travando uma luta de boxe no jovem milharal, e pense em Kxlas as
pessoas importantes que, se pudessem, me impediríam de desfrutar isso.
Mas, felizmente, não podem. [...] a primavera ainda é primavera. A.v bom­
bas atômicas estão empilhando-se nas fábricas, a polícia está fazendo
suas rondas nas cidades, as mentiras jorram dos alto-falantes, mas a Ter­
ra ainda está girando em torno do Sol, e nem os ditadores nem os buro­
cratas, p o r mais profundamente que desaprovem o processo, podem
impedi-lo.
GEORGE ORWELL,
“Some Thoughts on the Common Toad"

Estão as pessoas preparadas para avançar além do humanismo, ettso


os tempos favoreçam tal mudança? Não parecemos capazes de renunciar
por nós mesmos aos sonhos marxistas, à dependência da tecnologia ou à
eterna busca de progresso — estaremos dispostos a aceitar o sacrifício
com elegância e até mesmo entusiasmo, se as circunstâncias o tomarem
mais suportável para nós? Não basta dizer que teremos de aceitá-lo porque
não há outra alternativa. Há inúmeras alternativas, todas elas desagradá­
veis. Mas se a sorte nos favorecer, creio que existem muitas pessoas que
farão as coisas certas, não a maioria mas talvez em número suficiente para
iniciar e conduzir uma transição para uma nova vida.
Há elementos do espírito humano que poderiam ajudar-nos a ga­
nhar uma nova Terra. Não novos em si mesmos, esses elementos lêm
sido esquecidos em nossa busca de conhecimento e poder. Concluirei
este livro relembrando alguns deles.
A capacidade de sentir prazer nas coisas simples, tanto naturais
quanto feitas pelo homem, não foi destruída definitivamenlc pela nossa
cultura: reaparece a cada novo nascimento humano, por mais cuidadosos
que sejam os nossos planos para analisá-lo, defini-lo, a)nlrolá-lo e tirar
proveito dele, e independentemente do maior ou menor êxito que lenha
mos em eliminá-lo durante a infância. Quantas milhares de vezes pais
amorosos chegam a casa com um brinquedo airo, acionado por baleria c
controle remoto, só para encontrá-lo quebrado ou largado num canto, ho­
ras depois, enquanto criança brinca muito feliz da vida com a caixa de
papelão em que o brinquedo estava embalado? O humor também é as­
sim: chega cedo na vida e não necessita de mecanismos humanos espe­
ciais para sustentá-lo. Esta manhã, minha mulher e eu fomos despertados
pelo som de nossa filha de ano e meio rindo muito em seu berço. Não sei
o que a divertia tanto, mas estou certo de que não era o resultado de qual­
quer plano organizacional ou invento complicado, t o z e r e humor serão
sempre acessíveis aos nossos descendentes se estes tiverem a oportuni­
dade de cultivá-los.
O espírito humano é capaz de renunciar ao poder sem sentir-se
nem ser escravizado, e ao fazê-lo adquire uma espécie de paz e de reali­
zação que é profundamente estranha ao humanismo. Há muitos exem­
plos dessa renúncia voluntária do mito de controle; como uma fusão de
conceito e prática, entretanto, atinge o que pode ser o seu desenvolvi­
mento mais alto e mais formal na celebração judaica ortodoxa do Sabá.
Nesse dia, uma vez por semana, os judeus ortodoxos não fazem nenhum
trabalho, manual ou intelectual, não cozinham, não acendem fogo, não
matam nada nem criam nada. Ao descreveras razões para essa observân­
cia sabática, Sam son i taphael Hirsch (citado por H.H. Donin) escreveu:

[Ao homem] foi consentido governar o mundo durante seis dias por
I vontadedeDeus. N o sétimo dia, porém, está proibido por mandado divino
de dar forma a qualquer coisa que seja útil a seus propósitos. Desse modo,
reconhece que não tem direitos de propriedade nem autoridade sobre o
mundo...
... Portanto, até o menor trabalho realizado no Sabá é uma negação do
fato de que Deus é o Criador e o Senhor do mundo. É uma arrogante
pretensão do homem como seu próprio senhor. ...se alguém engendrou,
sem o menor esforço, uma mudança, por ínfima que seja, num objeto para
fins humanos, então profanou o Sabá...

Existem outras extensões ecologicamente apropriadas dessa idéia dentro


do judaísmo: por exemplo, havia a antiga prática religiosa, hoje em grande
parte abandonada, de suspender o cultivo de terras de sete em sete anos.
Seria realmente incompreensível que esse tipo de atitude de comedimento
em nossas relações com o meio ambiente pudesse ser judiciosa e mode­
radamente ampliada, não apenas no seio dajudaísmo, aos outros seis anos
do ciclo ou aos outros seis dias da semana? Na verdade, sabemos que
pode, pois há culturas que fazem isso geração após geração. No segundo
volume da obra do início do século XX, A Naturalist in Western China,
Jlniçst H. Wilsonn escreveu depreciativamente sobre um aspecto da
agricultura chinesa:

Embora os chineses cultivem uma grande variedade dc verduras, a


quantidade de todas elas, avaliada com base no nosso padrão, 6 deplora-
velmente inferior. Com exceção do milho e da batata-doce, podc-sc afi rmar
sem risco de erro que nem um só dos legumes chineses atrairia a atenção
neste país [Inglaterra],

Depois, um parágrafo adiante, sem parecer notar a sugestiva ligação oa)m


a passagem anterior, Wilson afirmou:

Na China, os campos são todos tão pequenos que a agroindústria seria


mais bem definida como granjas hortícolas do que como exploração
agrícola. Uma longa experiência ensinou o povo como obter o máximo
rendimento sem cansar indevidamente o solo; na verdade, o que há de mais
extraordinário na agricultura chinesa é o fato de que, embora o cultivo
venha sendo feito desde tempos remotos, o solo não mostra praticamente
nenhum sinal de e x a u s t ã o .__ ^

Mais de quarenta séculos de lavoura sem causar nenhum dano ao solo!


Chamem-lhe exploração agrícola ou atividade hortigranjeira, eis uma
prova evidente de exploração e comedimento simultâneos — de trabalho
humano realizado com um respeito à maneira sabática e uma compreen­
são das outras partes da criação. Essa é a espécie de renúncia positiva c
criativa do poder excessivo que já se demonstrou levar à sobrevivência;
não é uma conjetura. Tal como a capacidade para o prazer simples e o
humor, é também uma parte inegável do espírito humano.
Possuímos também a capacidade de reconhecer e enfrentar a
morte e o lado mais sombrio da vida, inclusive para extrair daí um neces­
sário significado. Isso é, por vezes, difícil de lembrar no mundo huma­
nista, onde tanto esforço e dinheiro são consumidos nos inúteis gestos
gêmeos de tentar afugentar essas coisas assustadoras e de negar que elas
existem, mesmo agora. Combinamos um mórbido desejo de rejeitar a
nossa biologia essencial com a noção deplorável de que tal ação pode ser
feita à vontade. Tudo o que isso conseguiu fazer foi privar-nos do nosso
vigor e vontade de enfrentar a morte com coragem quando tivermos de
fazê-lo, e de combatê-la em nossos próprios e melhores lermos, quando
pudermos.
No final de TheSurvivor, o aterrador exame da vida nos aimpos de
concentração da Alemanha nazista e da Rússia, Perrence Des Pres con­
clui que os poucos que lograram sobreviver não o fizeram através de trai-
r
ção mas, em parte, por sorte e, em parte, por causa de uma antiga vonta­
de biológica de sobreviver, uma força de sobrevivência que existe nas
pessoas e que ainda pode ser invocada por alguns afortunados em tem­
pos de grande necessidade, “Algo inato — pensemos nisso como uma
espécie de giroscópio biolôgiœ — mantém homens e mulheres firmes
em sua humanidade, apesar da pressão inumana.” E o terrível paradoxo
da luta humanista é posto a nu: para tentar atingir a meta irrealizável de
eliminação da morte, temos de negar o poder de nossa biologia essencial,
e negar esse poder é arrebatar-nos o nosso único e verdadeiro caminho
para viver e morrer como seres humanos. Escreve Des Près:

A função da tecnologia é satisfazer as necessidades físicas e econômicas


suficientemente bem para que possamos ignorá-las. A função da cultura é
negar os fatos primordiais do Nada e da Morte. Ambos os aspectos da
civilização reduzem a consciência de nossa condição como criaturas bio­
lógicas. E, em última instância, ambos geram desprezo pela vida. [...] A
civilização ocidental é a negação da realidade biológica; e, inevitavelmen-
te^como viSTè morte são inextricáveis, a negação da morte acaba sendo,
finalmentêj^mã negação da vida. [...] Há nisso uma terrível ironia, pois,
enquanto a consciência da morte gera um firme cuidado com a vida, a
negação da morte termina numa fúria destrutiva. [...] No meio de tartufices
e atos piedosos obscenamente cínicos, cidades e povos inteiros foram
varridos do mapa. O valor da vida foi reduzido a zero, a excremento.

É nesse pé que as coisas se encontram agora mas, se os tempos mudarem,


verificaremos que o humanismo foi incapaz de expungir de nossas
crianças as raízes da sobrevivência ou o poder para enfrentar a morte.
Uma outra parte do espírito humano que poderia voltar a nos pôr
em boa situação é a capacidgd&pam ainar^Nâo sendo única nos seres
humanos é, não obstante, de tremenda importância para nós, pois é a fon­
te da coesão da família e da pequena comunidade, os únicos herdeiros
viáveis de um mundo pós-humanista. O amor, tal como as outras quali­
dades, está sob pesado ataque, e a família e a pequena comunidade foram
• Il perceptivelmente enfraquecidas. Incapazes de sobreviver às inconsistên­
I íI cias e demandas conflitantes de uma vida humanística, elas sofrem du­
plam ente — sobretudo a família — , pois também servem de bodes
expiatórios para o fracasso humanista em suplantá-las com algo ^elhor,
ou mesmo com algo que realmente funcione.
Por último, diferente da capacidade para amar mas não alheia a ela,
está a capacidade de homens e mulheres para estarem sozinhos, triun­
fantes, em simplicidade, independentes das articulações e estratagemas
da sociedade, e dos planos de outras pessoas. Essa é a parte do espírito
humano sem a qual todas as outras são improfícuas. B 6 a parle que
enfrentará o supremo teste dos dias além do fim do humanismo. Consi­
deremos, œ m o exemplo final e apropriado do espírito humano, o capitão
Joshua Slocum, que aos 54 anos, no ano de 1898, conduziu o seu navio,
o Spray, de volta ao porto de Fairhaven, Massachusetts, a salvo, depois
de ter feito, sozinho, sua chalupa de nove metros navegar através de
tempestades violentas e mares calmos, contornando rochedos e recifes,
até completar sua circunavegação. Escreveu ele:

sobre suas relações com outros seres vivos —

Na solidão da sombria região do Cabo Hom, não me vi no estado de


I espírito mais apropriado para deixar o mundo com uma vida a menos,
exceto em caso de autodefesa; e, enquanto navegava, esse traço de caráter
do eremita foi aumentando até que a simples menção de matar animais para
alimento me revoltava.

sobre o seu relacionamento com a doutrina de causas finais —

Lembrei-me de que, quando era garoto, ouvi um capitão dizer com


freqüência durante o serviço religioso que, em resposta a uma oração de
sua própria lavra, o vento mudava de sudeste para noroeste, totalmenie a
seu contento. Ele era um bom homem, mas isso glorificava o Arquiteto —
o Soberano dos ventos e das ondas? Além disso, não era um alísio, se bem
me recordo, que mudava para ele mas uma das variáveis que mudam
quando você pede, se o seu pedido for persistente o bastante. Por outro
lado, talvez o irmão desse homem não seguisse no rumo oposto, muito
satisfeito com um vento favorável, que fazia toda a diferença do mundo.

sobre seu relacionamento com o mar —

No entanto, para ter êxito em qualquer coisa, seja o que for, uma [x;.s.soa
deve entregar-se compreensivamente ao seu trabal ho e estar prcpartida para
qualquer emergência. Quando relembro as minhas prtiprias c pequenas
realizações, vejo um jogo não muito sofisticado de ferramentas de carpin­
teiro, um relógio de lata e algumas tachas para tapetes, não muitas, para
facilitar o empreendimento, como já foi mencionado na história. Mas,
acima de tudo, tinham que ser levados em conta alguns anos de escolari­
dade, quando estudei com diligência as leis de Netuno, e a essas leis tentei
obedecer quando viajei no Ultramar; valeu a pena.

Aqueles que entendem as limitações da humanidade podem parti­


cipar mais do que outros da criação de Deus, e há nisso satisfação e umti
diíerente espécie de poder. Ansiamos por ver o espírito humano liberto
uma vez mais dos grilhões da auto-ãdúBçaõ;'<íemodo que possa alçar
vôo para as alturas, se ocorrerem ventos favoráveis.
As coisas que estão sendo perdidas — o agreste, as plantas e
anim ais, as habilidades individuais e todas as outras— deixarão um hiato
demasiado extenso na continuidade da vida para que nem mesmo o
espírito humano consiga transpô-lo? Essa pergunta é irrespondível.

Nesse meio-tempo, temos de viver no nosso século e aguardar, su­


portando de algum modo a inevitável tristeza. A noite passada, escutei
uma das minhas peças favoritas da música barroca em seu período ini­
cial. Lembrou-me, como sempre, o mar batendo incansavelmente numa
praia escura onde passei muitas noites esperando para ver as tartarugas
marinhas gigantes, as últimas de sua nobre raça, assomando das profun­
dezas para depositar seus reluzentes ovos na areia negra. A música en-
tristeceu-me de maneira tal que eu não poderia expressar o que senti,
porque sei que não poderia ter sido escrita no meu tempo; houve progre-
so demais; não há paz suficiente. Entristeceu-me porque me lembrou o
mar, o mar que deu origem aos seres humanos, que trazemos em nós, em
nossas próprias células. Entristeceu-me porque me lembrou que no meu
século nada está totalmente livre da mancha de nossa arrogância. Cons­
purcamos tudo, muitas coisas para sempre, até as mais remotas selvas da
Amazônia e o ar acima das nossas montanhas, até o mar eterno que nos
deu origem.
1

Tua sabedoria e ciênda seduziram-te.


Disseste no teu coração:
“Eu e somente eu.”
ISAÍAS, 47:10 /

a.rr»A«<<-CO^
7
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'I
índice Remissivo

Bartram, William, 8-9


Acidentes: nucleares, 118-126; quí­ Bateson, Gregory, 7-8
micos, 129-130 Baum, L. Frank, 101
Acontecimentos, árvores de, 119,129 Belt, C.B. Jr., 92
Administradores, 193 Bengala biônica a laser, 3 0 ,6 6
África, 90,126-128, 143,148 Berry, Adrian, 33, 99
Agreste, 199, 202 Biônico, Homem, 29 -3 0 ,6 6
Ainsdale - Southport. Dunas costei­ Blecaute de Nova York, 94
ras de, 161 Bloch, Sidney, 117
Alachua, Savana de, 9-10 Bomba de nêutron, 81
Alcoólicos Anônimos, 7-8 Bookchin, Murray, 40, 99
Alienação, 181 Breland, Keller e Marian, 60-62
Allen, R., 148-149 Browns Ferry, Incidente de, 120 123
Altman, Irwin, 112-114 Burckhardt, Jacob, 167,180
Altman, Joseph, 104
Antiobióticos, 68
Aprendizagem, incapacidade de, 23 Cadastro geral de utilização da terra
Arai, Mar de, 85 (Grã-Bretanha), 46
Aristófanes, 109 Calhoun, John, 102
Aristóteles, 132 Calvaria major, 149
Annas Modernas, 80,90-91, 202 Caminho comum final, 45
Arte Natural, 160-161 Câncer, 45,69-71, 125, 128, 185
Asimov, Isaac, 19-20, 33 Capek, Karel, 77
Aspargos, colhedores de, 3 6 ,8 6 Capitalismo, 197
“Assim espero”, uso de, 43-44 Carr, Archie, 141, IW)
Assuã, represa de, 85 Carroll, Lewis, 50
Astrologia, 130 Cáspio, Mar, 85
Automóvel, eficiência do, 45 Castanheiros, 150
Catástrofe, teoria da, 2(), 57
B Causas finais, doutrina das, 4-5, 137,
Babbage, Charles, 149 155, 209
Bacon, Francis, 5 Chargoff, Frwin, 74
Baleias, 3 6 ,9 2 ,1 5 7 ,1 9 3 Chile, 189
Bartrara, John, 149 China, 37, 185, 195, 206
Chitty, D., 102 Dissidentes soviéticos, 117
Chomsky, Noam, 60 Ditaduras, 108
Chuva ácida, 93,144-1445 Diversidade - estabilidade, hipótese,
Ciência, hostilidade em relação à, 143,146, 150-153,155
173 Dixon, Bernard, 163
Clark, C.W., 157 Dodo, 149
Clarke, Arthur C., 17 Donin, H.H., 206
Clarke, Robin, 191 Dreyfus, Hubert, 114-116
Cliometria, 22,51-55 Dubos, René, 7 9 ,8 4
Clonagem, 72
Coimbra Filho, A.F., 160
E
Colapso econômico, 172,202
Eclesiastes, 18
Coleman, Alice, 46-48
Ecossistemas: frágeis, 89,153; re­
Coleridge, 9
construídos, 145
Colônias espaciais, 4 0 ,4 4
Eficiência, 1 7 2 ,1 9 0 ,2 0 0
Comey, David D., 120,122
Ego, 181,186, 193 195
Commoner, Barry, 142,150
Einstein, 72
Comportamento, engenharia do, 21,
Elefantes, 154
23, 25, 44, 60-62
El Greco, 161
Comunidade clímax, 151
Comunismo, 1 5 ,1 8 5 ,1 9 4 ,1 9 7 Elton, Charles S., 161, 163-164
Conservação prioritária, 158-159,161 Enchentes, controle de, 38, 92,171
Conservadorismo, 15,197 Energia de fusão, 3 5 ,4 4 ,9 1 -9 2
Controle biológico, 37, 93 Energia Nuclear, 118-126,133,171;
Controle, falha de, 176,185,189-193 ver também
Criação de animais selvagens, 143, Energia de fusão
153 Energia solar, irrigação alimentada
Cristianismo, 5, 7 6 ,8 0 por, 35, 44, 82-84; ver também
Custo-benefício, análises, 140,158, Irrigação
200 Engels, Friedrich, 195
Engerman, Stanley, 22,52-54
D Escala Apgar, 24
Dalyell, Tam, 129 Escravatura, 22-23,51-53
Darwin, Charles, 4 Esgotos, tratamento de, 156
Dasmann, Raymond, 187 Espaçonave terra, 95
Demônio, 7 6 ,1 2 5 ,1 3 1 ,1 7 8 Espaço pessoal, 112-114
Derrotismo. Ver Pessimismo Espécies, diversidade das, 144,146,
Desertos, formação de, 90-92,153 150,163
Des Pres, Terrence, 207-208 Espécies em perigo, 158, 161-164,
Dickens, Charles, 71,101 195-196
Dicotomia, 7 -8 ,1 0 9 ,1 3 2 Esquizofrenia, diagnóstico soviético
Direitos, de objetos naturais, 162 de, 117
Disfunção cerebral mínima, 23, 55- Evolução, 65-66, 93-94, 96, 98,106,
57 109,127,192
F Hiperatividade, 18, 23,55-57
Falcões, ameaçados, 140 Hirsch, Samson R., 206
Família, 71-72,204 História científica. Ver Cliometria
Fascismo, 15 Hudson, rio, 145
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Fertilizantes, 36,85 Hume, 5 ,1 0 ,1 6 7
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Forster, E.M., 200 Icebergs, 37
Frankenstein, monstro de, 3 0 ,7 4 Illich, Ivan, 45
Franklinia alatamaha, 149 Impacto ambiental, declarações de, 140
Freud, 169,173 Incerteza, Princípio de, 70,99, 185
Fuller, Buckminster, 78 Inércia social, 187-188
Futurologia, 3 3 ,9 3 -9 4 ,9 9 Inseticidas, 3 7 ,5 0 , 91, 9 3 ,1 2 8
Inteligência artificial, 114-116
Irrigação, 36,84-86, 91; ver também
Galiléia, colinas da, 142 Energia solar, irrigação alimenta­
Galileu, 133 da por
Galston, Arthur, 141
Gehlbach, F.R., 158
Genes, transferência de, 32, 72-75 James, Henry, 2
Genética, engenharia, 3 6 ,9 2 Janzen, Daniel, 13,155
Genética, herança, 92 Jeremias, 169,179
Giotto, 100 Jojoba, 140
Glacken, Clarence, 5 ,1 3 8 Joliot-Curie, Frédéric, 111, 186
Classer, Ira, 70 Judaico-cristã, tradição, 6
Gnu, 154 Judaísmo, 80,134, 201, 206
Goethe, Johann, 5 ,1 3 7 Jungk, Robert, 111
Golem, 201
Gollum, 194, 201 K
Goodman, Daniel, 150 Kahn, Herman, 3 3 ,9 9
Gorbanevskaya, Natalya, 117 Kalm, Per, 181
Gosselink, J., 156 Kant, 5
Gould, Donald, 70 Keynes, John Maynard, IW)
KJeitman, Daniel, 124
H Kletz, Trevor A., 129
Habilidades, 200, 202, 210 Kosinski, Jerzy, 80
Halakhah, 134 Kraus, Eric, 4 9 ,1 2 4
Hardin, Garret, 87,1 8 6 Krill, 36, 92
Haskell, Thomas, 52-53 Krüger, Paul. 18
Hayes, Harold, 154 “Kubla Khan”, 9
Herbicidas, 36, 91,1 2 8 Kurts, Paul, 3
Motivações subconscientes, 169-177,
Laca, inseto da, 141 179
Lagarta parafuso, 3 7 ,9 3 Mozart, 176
Lago Nasser, 85 Muhlenberg, tartaruga de, 140
Lamprey, Hugh, 154 Multinacionais, empresas, 177,188-
Larkin, P.A., 88 189
“Leis” da ciênda e da tecnologia, 75, Mumford, Lewis, 6 ,7 7 -7 8 ,1 0 9
186 Murphy, Lei de, 95
Leopold, Aldo, 1 3 9 ,1 4 6 ,1 4 8 ,1 6 2 Myrdal, Gunnar, 181
Lewis, C.S., 131
Liberalismo, 194-197 N
Liberação lagrangiana, pontos de, 39 Nacionalismo, 171
Lieberman, G.A., 139 Naipaul, V.S., 100
Liquens, 144,147 No-recursos, definição de, 138
Lucrécio, 43 Neoencéfalo, 1 0 5 ,1 0 9 ,1 3 2
Nilo, rio, 85
Lunts, Professor, 117
Noé, 159,161
Luria, Salvador, 110-111
Novas cidades, 39

M
O
Maddox, John, 169
Odum, Eugene, 156
“Maledizione”, 167,181
“O Homem de Seis Milhões de Dóla­
Mal thus, 11,185
res”. Ver Biônico, Homem Oleo­
Mangues salinos, 146,156
duto Trans-Alasca, 95
Mao, 195
O’Neill, Gerard, 39
Margalef, Ramón, 151
Organização, 106-108,118,131,
Maritain, Jacques, 134
171,185-193,197
Marlowe, 30
Ormerod, W.E., 9 0 ,1 4 8
Ma/sh, George P., 149 Orwell, George, 1, 1 0 ,1 2 -1 3 , 44,
Marxismo. Ver Comunismo 99, 1 0 8 ,1 3 5 , 167, 170, 172,
Mateus, Evangelho de, 135,137 176, 178, 192, 198, 203, 205
Maurício, 149 Otimismo, 183-184
Máxima produção ininterrupta, 87-88 Owen, D.F., 126,148
Mayr, Ernest. 66 Owen, John, 154
May, Robert, 152
Medawar, Sir Peter, 70
Menonitas, 204 Paisagens cultivadas, 200, 202
Meton, 109 Paisagens, Ver Paisagens cultivadas
M icos-leôes, 160 Paleoncéfalo, 1 0 5 ,1 0 9 ,1 1 2 ,1 3 2
Milho de citoplasma T, 36, 92 Parker, lan, 154
“Modelo”, uso de, 114 Patrick, Ruth, 144
Monoculturas, 92,143 Pediculária, 147
Montanheses, 87 Pensamento mágico, 59-63
Morgenstern, Oskar, 87, 98 Pessimismo, 177,183
Pesticidas. Ver Herbicidas e Inseticidas Rosenhead, Jonathan, 58
Pinchot. Gifford, 138
Pirsig, Robert, 132-134
Planejamento, 46-47,143 Sabá, 206-207
Platão, 109,115,132-133 Salinidade dos solos, 85, 91
Poluição, controle da, 93 Sapo de Houston, 138, 150
Poluição, indicadores de, 144-145 Savonarola, Girolamo, 168, 180
Pombos bravos (extintos) norte-ame­ Schneider, Pierre, 82
ricanos, 150 Schumacher, E.F., 49, 193, 203
Pós-histórico, período, 107,176
Schwartz, Eugene, 83, 8 7 ,9 8
Preservação da Natureza (Estados
Schweitzer, Albert, 3
Unidos), 139
Seidenberg, Roderick, 49, 105-109
Pressupostos do humanismo, explica­
Seldon, Hari, 19-20, 22, 27, 49, 50
ção dos, 12-14
Semi-soluções, 83-87, 98, 156, 185
Previsão, limites de, 38, 49-51, 97-
Serengeti, 154,161
98,185
Shapley, Deborah, 123
Previsões metereológicas, 3 8 ,5 0
Shelley, Mary, 30
Problemas residuais, 83-86, 8 8,108,
Sherrington, C.S., 45
175
Siberianos, rios, 85
Produto final, análise de, 45-48, 56-
57, 59, 67, 72, 84, 98,191 Siekevitz, Phillip, 74
Profecias de catástrofes, 169,172, Sierra Club, 140
179-180 Sinsheimer, Robert, 74, 75
Projeto ambiental, 38-40, 94 Sistema de Bem-Estar Social (Esta­
Psico-história, 19,21, 23, 25,44 dos Unidos), 195
Psicológicos, testes, 23-Z5, 55-57, Skinner, B.F., 21, 59-62,134
59,103 Slocum, capitão Joshua, 209
Snezhnevsky, Andre, 117
Socialismo, 194
Q
“Qualidade”, 1 3 3 ,1 3 4 ,1 7 6 ,1 9 2 ,2 0 0 Solos. VerSalinizüção dos solos
Quarto Mundo, 204 Southern, H.N., 102
Stálin, Joseph, 15
R Stamp, Sir Dudley, 46
Randall, John Herman Jr., 14 “Star Trek” (Jornada nas Vstrelas), 28
Rasmussen, Relatório, 119,123-126 Stone, C.D., 162
Ratos (Noruega), 101-103,125 Sucessão ecológica, 89, 151
Recombinaço. Ver Genes, Transfe­ Sul-africanos, 18
rência de Sundstrom, Eric, 112-113
Recursos, definição de, 138,149 Swift, Jonathan, 17.3, 176
Reddaway, Peter, 117 Szilard, Leo, 111, 186
Renascença, 8 ,1 6 8
Represas, 85,171
Revolução Verde, safras de, 91 Tadmor, Hayim, 179
Rockwell, Norman, 161 Tecnologia intermediária, 20.3
Tecnologia. Ver Tecnologia interme­ Varíola, vírus da, 163
diária Vicunha, 141
Teilhard de Chardin, Padre, 186 Vietnã, 8 7 ,1 1 0 ,1 4 1
Televisão, 176,189 Vitrais da Catedral de Chartres, 34,
Tennessee ValleyAuthority (TVA), 195 81-84
Texas, 158 Von Neumann, John, 87,98'
Thoreau, 132
Tocqueville, Alexis de, 181
Tolkien, J.R.R., 194, 198, 201, 204
w.z
Wald, George, 97
Tolstoi, 172
Wallace, Robert, 10-11
Torá, 134
Wedgwood. C.V., 5 1 ,5 4
Tranquilizantes, 68
Weiss, Paul, 69, 93
Tripanossomíase, 9 0 ,1 4 8
Wells, H.G., 27, 63, 64
Tsé-Tsé, mosca, 148
Whittaker, R.H., 152
Turner, Wallace, 95
Wiener, Anthony J., 33
Wilson, Ernest H., 207
u.v Wodehouse, P.G., 113
União Soviética, 3 7 ,8 5 ,1 1 7 ,1 9 5 , 207 Wordsworth, 14
Ussher, bispo James, 17, 76 Wright, H.E.Jr., 143
Zeeman, E.C., 26, 58

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