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Amor líquido ou a fragilidade dos laços humanos

O título do livro do sociólogo polonês Zigmunt Bauman é sugestivo e, sobretudo,


apropriado para um sentimento que não se submete docilmente a definições.

Professor emérito de sociologia nas Universidades de Varsóvia e de Leeds, na


Inglaterra, ele tem vários livros traduzidos para o português, e o tema recorrente em sua
obra são os vínculos sociais possíveis no mundo atual, neste tempo que se convencionou
denominar de pós-modernidade.

A noção de liquidez, quando se refere às relações humanas, tem um sentido inverso ao


empregado nas relações bancárias, a disponibilidade de recursos financeiros.

A liquidez de quem tem uma conta polpuda no banco, acessível a partir de um comando
eletrônico é capaz de tornar qualquer desejo uma realidade concreta. É um atributo
potencializador.

O amor líquido, ao contrário, é a sensação de bolsos vazios.

É preciso deixar claro que Bauman não se propõe a indicar ao leitor fórmulas de como
obter sucesso nas conquistas amorosas, nem como mantê-las atraentes ao longo do
tempo, muito menos como preservá-las dos possíveis, e às vezes inevitáveis, desgastes
no decorrer da vida a dois.

Não há como assegurar conforto num encontro de amor, nem garantias de


invulnerabilidade diante das apostas perdidas. Não há agora nem nunca houve. Quem
vende propostas de baixo risco são comerciantes de mercadorias falsificadas.

A área de estudo principal de Bauman, a sociologia, é o campo do pensamento que vai


ser o ponto de partida e o foco fundamental do retrato sobre a urgência de viver um
relacionamento plenamente satisfatório dos cidadãos pós-modernos.

Digamos que as dificuldades vividas por um casal refletem o estilo que uma
comunidade mais ampla estabelece como padrão aceitável de relacionamento entre seus
vizinhos, entre os que habitam um espaço comum.
Bauman é realista. Sabe que “nenhuma união de corpos pode, por mais que se tente,
escapar à moldura social e cortar todas as conexões com outras facetas da existência
social”. Portanto, partindo do seu campo específico de estudo, ele faz uma radiografia
das agruras sofridas pelos que tentam estabelecer parcerias afetivas no mundo
globalizado.

Mundo que ele identifica como líquido, em que as relações se estabelecem com
extraordinária fluidez, que se movem e escorrem sem muitos obstáculos, marcadas pela
ausência de peso e profundidade, em constante e frenético movimento.

Em seus livros anteriores, já traduzidos e disponíveis para o leitor brasileiro, Bauman


defende a idéia de que esse processo de liquefação dos laços sociais não é um desvio de
rota na história da civilização ocidental, mas uma proposta contida na própria
instauração da modernidade.

A globalização, palavra onde estão contidos os prós e os contras da vida contemporânea


e suas conseqüências políticas e sociais, pode ser um conceito meio difuso, mas
ninguém fica imune aos seus efeitos, nem mesmo os que se opõem a ela.

A rapidez da troca de informações e as respostas imediatas que esse intercâmbio


acarreta nas decisões diárias; qualidades e produtos que ficam obsoletos antes do prazo
de vencimento; a incerteza radicalizada em todos os campos da interação humana; a
falta de padrões reguladores precisos e duradores; são evidências compartilhadas por
todos os que estão neste barco do mundo pós-moderno.

Se esse é o pano de fundo do momento, ele vai imprimir sua marca em todos as
possibilidades da experiência, inclusive nos relacionamentos amorosos.

Zygmunt Bauman mostra como o amor também passa a ser vivenciado de uma maneira
mais insegura, com dúvidas acrescidas à já irresistível e temerária atração de se unir ao
outro.

Nunca houve tanta liberdade na escolha de parceiros, nem tanta variedade de modelos
de relacionamentos, e, no entanto, nunca os casais se sentiram tão ansiosos e prontos
para rever, ou reverter o rumo da relação.
O apelo por fazer escolhas que possam, num espaço muito curto de tempo, serem
trocadas por outras mais atualizadas e mais promissoras, não apenas orientam as
decisões de compra num mercado abundante de produtos novos, mas também parecem
comandar o ritmo da busca por parceiros cada vez mais satisfatórios e, até mesmo,
idealizados.

A ordem do dia nos motiva a entrar em novos relacionamentos sem fechar as portas
para outros que possam eventualmente se insinuar com contornos mais atraentes, o que
explica o sucesso do que o autor chama de casais semi-separados.

Ou então, mais ou menos unidos, o que pode ser praticamente a mesma coisa.

Não dividir o mesmo espaço, estabelecer os momentos de convívio que preservem a


sensação de liberdade, evitar o tédio e os conflitos da vida em comum podem se tornar
opções que se configuram como uma saída que promete uma relação com um nível de
comprometimento mais fácil de ser rompido.

É como procurar um abrigo sem vontade de ocupá-lo por inteiro. A concentração no


movimento da busca perde o foco do objeto desejado.

Insatisfeitos, mas persistentes, continuam perseguindo a chance de encontrar a parceria


ideal, abrindo novos campos de interação.

Daí a popularidade dos sites de encontros virtuais, onde muitos são mais visitados que
os locais de convivência, locais físicos e concretos, onde o tête à tête, o olho no olho é o
início de um possível encontro.

Crescem as redes de interatividade mundiais onde a intimidade pode sempre escapar do


risco de um comprometimento, porque nada impede o desligar-se. E o sumir de vez.

Para desconectar-se basta pressionar uma tecla; sem constrangimentos, sem lamúrias, e
sem prejuízos.

Num mundo instantâneo, é preciso estar sempre pronto para outra. Não há tempo para o
adiamento, para postergar a satisfação do desejo, nem para o seu amadurecimento.
É mais prudente uma sucessão de encontros excitantes com momentos doces e leves que
não sejam contaminados pelo ardor da paixão, sempre disposta a enveredar por
caminhos que aprisionam e ameaçam a prontidão de estar sempre disponível para novas
aventuras.

Bauman mostra que estamos todos mais propensos às relações descartáveis, a encenar
episódios românticos variados, assim como os seriados de televisão e seus personagens
com quem se identificam homens e mulheres do mundo inteiro.

Seus equívocos amorosos divertem os telespectadores, suas dificuldades e misérias


afetivas são acompanhadas com o sorriso de quem sabe que não está sozinho no
complicado jogo de esconde-esconde amoroso.

A tecnologia da comunicação proporciona uma quantidade inesgotável de troca de


mensagens entre os cidadãos ávidos por relacionar-se.

Mas nem sempre os intercâmbios eletrônicos funcionam como um prólogo para


conversas mais substanciais, quando os interlocutores estiverem frente a frente.

Os habitantes circulando pelas conexões líquidas da pós-modernidade são tagarelas a


distância, mas, assim que entram em casa, fecham-se em seus quartos e ligam a
televisão.

Zygmunt Bauman explica que hoje “a proximidade não exige mais a contigüidade
física; e a contigüidade física não determina mais a proximidade nem a intimidade”.
Mas ele reconhece que “seria tolo e irresponsável culpar as engenhocas eletrônicas pelo
lento, mas constante recuo da proximidade contínua, pessoal, direta, face a face,
multifacetada e multiuso”.

As relações humanas dispõem hoje de mecanismos tecnológicos e de um consenso


capaz de torná-las mais frouxas, menos restritivas.

É preciso se ligar, mas é imprescindível cortar a dependência, deve-se amar, porém sem
muitas expectativas, pois elas podem rapidamente transformar um bom namoro num
sufoco, numa prisão.
Um relacionamento intenso pode deixar a vida um inferno, contudo, nunca houve tanta
procura em relacionar-se.

Bauman vê homens e mulheres presos numa trincheira sem saber como sair dela, e, o
que é ainda mais dramático, sem reconhecer com clareza se querem sair ou permanecer
nela.

Por isso movimentam-se em várias direções, entram e saem de casos amorosos com a
esperança mantida às custas de um esforço considerável, tentando acreditar que o
próximo passo será o melhor.
A conclusão não pode ser outra: “a solidão por trás da porta fechada de um quarto com
um telefone celular à mão pode parecer uma condição menos arriscada e mais segura do
que compartilhar um terreno doméstico comum”.

Zigmunt Bauman, mostra-nos que hoje estamos mais bem aparelhados para disfarçar
um medo antigo.

A sociedade neoliberal, pós-moderna, líquida, para usar o adjetivo escolhido pelo autor,
e perfeitamente ajustado para definir a atualidade, teme o que em qualquer período da
trajetória humana sempre foi vivido como uma ameaça: o desejo e o amor por outra
pessoa.

O mais recente título do sociólogo polonês, que recebeu os prêmios Amalfi (em 1989,
pelo livro Modernidade e Holocausto), e Adorno (em 1998, pelo conjunto de sua obra),
é uma leitura precisa e eloqüente, um convite a uma reflexão aberta não apenas aos
estudantes e interessados em trabalhos acadêmicos.

O seu texto claro, apesar de fortemente estruturado numa erudição consistente, não
deixa de abrir espaço para o leitor comum, interessado em compreender como as
estruturas sociais e econômicas dos tempos atuais, tentam dar conta da complexidade do
amor que, com a permissão de citá-lo mais uma vez, é “uma hipoteca baseada num
futuro incerto e inescrutável”.

(Fonte: Gioconda Bordon para o caderno "Fim de Semana", da Gazeta Mercantil)

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