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Crítica | A Lenda da Flauta


Mágica (1972) - Plano Crítico
César Barzine

6–8 minutos

Assim como a Disney possui, em sua história, a tradição


de suavizar os quase macabros contos dos Irmãos
Grimm, transformando histórias obscuras em produções
infantis, Jacques Demy também cria um processo em
busca do lúdico partindo de um material dos irmãos
alemães não tão colorido assim. Tanto o estúdio
americano quanto o cineasta francês — desta vez em um
longa britânico — já retrataram nas telas o conto O
Flautista de Hamelin, dessa icônica dupla de escritores.
A Disney realizou um curta-metragem cujo desfecho se
dá com a chegada de muitas crianças a uma espécie de
paraíso feito de doces — à la João e Maria. É um final
dos mais açucarados possíveis, embora um tanto
ambíguo. Quanto ao longa em questão, quem dera se
tivesse alguma ambiguidade; não há nem o tom sombrio
nem o completamente doce, assim como não há algo de
minimamente dúbio. Trata-se de um final insosso, ao
qual o espectador sente apenas indiferença — assim
como no restante de A Lenda da Flauta Mágica.

No entanto, o conto citado não é a primeira versão dessa


história, e sim o boato dela mesma existente desde a
época em que se passa, no século XIII. O que está
presente na lenda, no conto, no curta e no longa é que,
durante a baixa Idade Média (1349 no filme), a cidade
alemã de Hamelin vivia atormentada pela multidão de
ratos lá presentes. Isso até a chegada de um “flautista
mágico” que, sob a promessa de recompensa financeira
do prefeito, conseguiu conduzir todos os ratos para fora
da cidade apenas tocando sua flauta. Em seguida, ao
receber um calote, fez o mesmo com as crianças em
forma de vingança, sumindo com todas elas da
comunidade.

Não é a primeira vez que Demy trabalha com os moldes


dos contos de fadas, ele já o tinha feito em suas mágicas
obras dos anos 60. Porém, essas se passavam na
contemporaneidade e tinham um delicioso tom
moderno; enquanto este filme se passa no medievo e é
carente de um tom harmônico. Demy tenta, se esforça;
afinal, é um filme maneirista com o visual chamativo,
mas nunca cria uma atmosfera de verdade, um universo
autêntico ao qual tinha potencial. É um conto de fadas
que começa suave e logo torna-se cinzento sem a
intenção de assim sê-lo. Boa parte desse clima deslocado
se deve à mise-en-scène também fora dos trilhos. Na
direção de arte, o figurino é uma das coisas mais
pavorosas possíveis. Chamam bastante atenção os
vestidos e, principalmente, os chapéus vultosos, de
tamanho e aparência quase bizarros. Tudo é
extremamente feio, o que, em companhia aos cenários,
dão um aspecto farsesco, meio teatral. Esse efeito,
aparentemente, combina com a proposta de algo mais
lúdico; contudo, na prática, é uma abordagem que
desboca somente no afastamento do público.

Ao lado desse fator lúdico, existe um lado obscuro, no


entanto, não no estilo dos Grimm, num apelo ao
infortúnio e à atmosfera sombria. O obscuro está no
retrato da religião, que é burramente problematizada,
menos pelo seu conteúdo em si do que pela sua
superficialidade. O roteiro adota uma crítica
absolutamente genérica, tão vazia que beira o
constrangedor. Como ele se passa na Idade Média,
temos aquela clássica paisagem da igreja como
instituição corrupta e retrógrada preguiçosamente
reproduzida. Não existe nada além do que o espectador
já pode prever. As autoridades religiosas são
apresentadas de forma caricata numa tentativa de fazer
um potente confronto religioso, que soa nada menos que
forçado e simplista.

A verdadeira espiritualidade do filme não está na


religião, e sim na música. A flauta do protagonista (sem
nome) vai do encanto a feitos sobrenaturais. O ambiente
medieval, apesar da representação pejorativa e de uma
presença ameaçadora (dos ratos) em toda a cidade, não
chega a ser dominado por um clima soturno. Existe
certo ânimo, um toque vívido presente e que é carregado
principalmente pela figura do flautista. O personagem é
atuado por um músico real, Donovan, dono de um estilo
sonoro que vagamente remete ao do filme. Pena que este
segundo estilo nem de longe faz jus à qualidade de seu
trabalho fora das câmeras.

História, religião e, de certa forma, política formam uma


mesma coisa aqui; como antítese a isso, existe a arte em
seu modo idílico e contato com a paz interior. Tudo isso
pode parecer lindo e inspirador, mas acaba sendo bem
desestimulante neste filme. Nem o bem e nem o mal são
atraentes ao espectador. Os enredos paralelos, como o
do alquimista e o do jovem apaixonado por uma
donzela, não são muito diferentes. Nessa onda, o diretor
posa de falso humanista e desanda quanto à forma:
tenta trazer lirismo e magia de maneira artificial,
bagunçada e vazia.

The Pied Piper (EUA, Reino Unido – 1972)


Direção: Jacques Demy
Roteiro: Jacques Demy, Andrew Birkin, Mark Peploe,
Jacob Grimm, Wilhelm Grimm
Elenco: Donovan, Diana Dors, David Leland, Donald
Pleasence, Jack Wild, John Hurt, Michael Hordern,
Peter Vaughan, Roy Kinnear
Duração: 90 minutos.

César Barzine

Redescobri o cinema aos 13 anos, e passei a (tentar)


escrever sobre ele aos 14. Percebi que a escrita era um
complemento da experiência fílmica, um modo de
concretizar e externalizar minhas ideias e sentimentos.
Venho encarando o cinema como um instrumento de
espiritualização, sendo ele uma forma de viver as vidas
que não vivi. Sou entusiasta da década de 1950, mas
também abro o meu coração para a Hollywood Clássica
por completa - sem dispensar as demais nacionalidades.
Tenho Luis Buñuel em primeiro lugar, e mais uns seis
diretores em segundo.

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