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Zumbis, glitch e pandemia: o derretimento do corpo

em Guli Silberstein1

Zombies, glitch and pandemic: the melting of the body

in Guli Silberstein
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Nicholas Andueza (Doutorando – UFRJ e Paris I)

Resumo:
Em "O diabo tinha outros planos (Ato I)" (2020), Guli Silberstein retoma imagens do clássico "A
noite dos mortos vivos" (1968), de George A. Romero, em uma reação visceral à pandemia de
Covid-19. O trabalho formal de desfiguração digital do filme antigo leva o curta a algo muito
além da mera associação entre o zumbi e o contágio massificado. A violência high-tech do
glitch contra o arquivo, derretendo as imagens umas nas outras, viabiliza refletir sobre a crise
do corpo em tempos pandêmicos.

Palavras-chave:
Pandemia, Corpo, Glitch, Cinema de arquivo, Cinema experimental.

Abstract:
In "The Devil Had Other Plans (Act I)" (2020), Guli Silberstein reuses images from the classic
"Night of the Living Dead" (1968), by George A. Romero, in a visceral reaction to the Covid-19
pandemic. The formal work of digital disfigurement of the old movie takes the short far beyond
the mere association between zombie and mass contagion. The high-tech violence of the glitch
against the archive, melting its images, enables an important reflection on the crisis of the body
in pandemic times.

Keywords:
Pandemic, Body, Glitch, Archive cinema, Experimental cinema.

Diante da pandemia de Covid-19, Guli Silberstein retoma imagens do clássico "A noite

dos mortos vivos" (1968), de George A. Romero, para realizar a trilogia de curtas metragens

experimentais intitulada "O diabo tinha outros planos" (2020). O presente trabalho se debruça

sobre o primeiro filme dessa trilogia (disponível em: https://vimeo.com/400333116), partindo da

evidente associação entre a figura do zumbi e o contágio pandêmico, para avançar a uma

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Trabalho apresentado no XXIV Encontro SOCINE na sessão: Crise do Corpo da Existência: Cinema de
Gênero em Contatos e Contágios. Este trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Tendo
também se tornado possível graças apoio recebido do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq).
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Doutorando em Comunicação na UFRJ com cotutela em História na Paris 1. Bolsista CAPES, tendo
também recebido bolsa CNPq. Mestre em Comunicação pela PUC-Rio, com bolsa CAPES.
análise mais atenta ao trabalho formal do curta e às suas contribuições para se pensar o corpo

humano na pandemia.

Pretendo demonstrar que Silberstein consegue traçar uma alegoria formal poderosa

sobre a insegurança corporal pandêmica. Ele vai além do tema do contágio zumbi,

retrabalhando formalmente o arquivo retomado por meio do glitch e conjurando, com isso, ecos

do contágio viral (Covid-19) e do contágio digital (fake news, games, apps, redes sociais) para

formar a imagem de um corpo altamente vulnerável, poroso, estilhaçado – desatomizado à

força.

Retomar e recolocar

Se o tratamento digital das imagens retomadas por Silberstein é ostensivo e de fato

mesmo violentá-las, como ainda veremos, em termos de roteiro, por outro lado, o curta não faz

grandes mudanças no enredo de Romero. A não ser por algumas abreviações de ações e pela

retirada de diálogos, a retomada das imagens é até bastante linear no sentido dos eventos

representados. O plano inicial, por exemplo, é basicamente o mesmo em ambos os filmes: um

quadro aberto de uma estrada no campo e um carro solitário percorrendo-a.

A maior diferença narrativa está no fato de que o curta de Silberstein cobre apenas o

início da história contada por Romero. Tirando isso, ambos os filmes se desenrolam nesta

sucessão: ao pararem o carro ao lado da estrada, os irmãos Johny e Barbra notam um mal

funcionamento no rádio; eles saltam do carro com flores, chegando até a lápide de seu pai para

deixá-las; no caminho de volta para o carro são atacados por um homem estranho; Johny

morre, mas Barbra consegue escapar, correndo para dentro de uma casa aparentemente

abandonada; ali ela encontra Ben, que a acolhe e que combate os mortos vivos que se

aproximam; mas a quantidade de cadáveres ambulantes só aumenta, então Ben faz uma

fogueira do lado de fora da casa para espantá-los momentaneamente. Assim acaba o primeiro

curta da trilogia experimental de Silberstein: “to be continued”.

Mesmo que, no curta, ações menores e diálogos sejam retirados, e mesmo que

experimentação visual seja bastante radical, o espectador é capaz de seguir bem claramente a
história em sua estrutura: o passeio inocente, o encontro com um perigo misterioso, o

assassinato, a busca por abrigo, o auto isolamento, o risco de contágio e de morte.

A ausência de um desvio narrativo indica que o filme de 2020 não só é autoconsciente

em relação ao uso de um material de arquivo amplamente conhecido, como está interessado

no reconhecimento deste pelo espectador, exibindo seu mecanismo de intertextualidade para

construir sua força, de base metalinguística. Ainda por isso, apesar de ser dominado por uma
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trilha eletrônica-sintética, o curta volta e meia traz inserções de trechos de áudio do filme

original – músicas intensas, gritos, ruídos de portas ou golpes. Tal estratégia auxilia na

comunicação dos fatos e potencializa, ao mesmo tempo, a atmosfera de horror e o efeito

metalinguístico da intertextualidade.

Notar a proximidade narrativa entre Romero e Silberstein nos sugere que este último

não visa exatamente a alterar o que propunha o filme original, mas, repetir, ou melhor,

recolocar sua história. Uma recolocação demandada pela urgência catastrófica da pandemia

de Covid-19, que nos impele inevitavelmente a um deslocamento geral em relação às

narrativas apocalípticas – de repente tão próximas da realidade cotidiana. Por isso, Silberstein

descreve sua trilogia como uma “reação visceral” ao início da pandemia (SILBERSTEIN, 2020).

Zumbis e pandemia
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Por serem comumente marcados pela temática do contagio em massa, os filmes de

zumbi se mostram particularmente afeitos a esse movimento quase inevitável na pandemia de

recolocação, isto é, de paralaxe, de uma repetição recontextualizada, demandada pela

estranha proximidade entre a representação de outrora e a realidade atual. O caráter disruptivo

de tal recolocação estaria menos na transformação do material retomado e mais em seu efeito

absurdo e anacrônico de déjàvu. Na pandemia, fomos lançados à convivência com a morte e o

contágio, lançados a uma pedagogia do isolamento que, em seus momentos mais dramáticos,

replica o caráter insular do espaço dos “sobreviventes” cercados (quarentenados?) em um

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Composta por 433 erOS.
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Desde pelo menos A noite dos mortos-vivos (1968), mas principalmente em narrativas mais recentes
como em Rec (2007), Guerra Mundial Z (2013), Extermínio (2002) ou Pequenos Monstros (2019).
filme de terror; e, quando contagiados, nós mesmos nos tornamos motivo de medo e fuga, de

perigo à vida.

E a cerca dessa noção cinematográfica do morto-vivo massificado e contagioso, A

noite dos mortos vivos, de Romero, é um marco histórico. O filme estabeleceu o cânone

moderno do zumbi: enquanto cadáver reanimado, contagioso, comedor dos vivos, enquanto

ser incansável que é insensível a ferimentos e que só pode ser derrotado com golpe ou tiro na

cabeça. Antes do filme de Romero, o tropo do zumbi se relacionava a uma espetacularização

hollywoodiana das manifestações religiosas negras relacionadas ao vodu, especialmente em

sua versão haitiana (DILLON, 2019).

Nessa esteira, vale lembrar que apenas dois anos antes de A noite dos mortos vivos,

foi lançado A praga dos zumbis (1966), de John Gilling, que ainda se ligava à tradição

audiovisual de estereótipo do vodu haitiano. A discrepância da abordagem dos mortos-vivos

entre os dois longas, separados por meros dois anos, sinaliza o salto dado por Romero.

Inclusive, é também por conta desse salto que o cineasta curiosamente não usa o termo

“zumbi” em nenhum momento do filme: pois, se na cultura cinematográfica da época esse

termo estava ligado aos estereótipos de rituais místicos africanos, Romero traz uma

abordagem mais secular e mais moderna, com influências da corrida espacial, do medo
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nuclear, da contracultura e do Movimento dos Direitos Civis. O resultado é um novo grau-zero

na representação dos zumbis, que passam a estar atrelados à contaminação em massa dos

corpos.

A escolha desse filme por Silberstein, portanto, não vem por acaso.

O glitch e a estrutura

Mas se Guli Silberstein não precisou fazer mais do que recolocar a história já contada

por Romero para que ela ressoasse agudamente familiar a todos nós, quarentenados do

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No enredo do filme de Romero, a origem dos zumbis estaria ligada não a um ritual exótico, mas a uma
radiotividade misteriosa proveniente de um meteorito recém caído na Terra. E para respaldar a
abordagem secular, ao longo do filme são exibidas algumas transmissões de comentários jornalísticos e
de entrevistas com cientistas (até hoje um tropo comum dos filmes de catástrofe). A contracultura e a
consciência racial do filme poderia ser lida na opção pelo protagonista negro, na crítica ao pai de família
branco (o personagem mais covarde do grupo), no uso da câmera na mão, na inserção de fotografias ao
fim do filme indicando violência racial pela polícia.
presente, essa recontextualização vai lhe servir de trampolim para uma manipulação radical

das imagens e dos sons por meio do glitch.

No meio digital, o glitch, sendo essencialmente uma falha de decodificação, manifesta-

se como o produto corrompido de uma operação inadequada ou imprevista. E se o digital é

marcado por esforços de transparência, onde tudo deve funcionar bem, rápido e em silêncio, o

glitch abre a possibilidade de interromper os fluxos e acusar as estruturas: ele deixa opaco o

esforço de decodificação. A glitch art seria, portanto, uma “arte da falha”, uma forma artística

que trabalha nesse desvio para o opaco, explorando o glitch em si mesmo, esteticamente

(FERREIRA; DELATORRE, 2021, p.248-249).

Ou seja, aplicada à imagem em movimento digital, a glitch art possibilita uma

abordagem que, como pretendia Philippe Dubois em sua defesa de uma “estética do vídeo”

(2004, p.73), levaria em conta o digital não apenas enquanto imagem, mas também enquanto

processo. Pois é isso o que Silberstein propõe: expor tanto as imagens do filme de Romero,

quanto os processos por trás da decodificação do arquivo digital que as comporta. O realizador

joga esteticamente com esses dois lados para propor uma nova fruição estética da mesma

história – extraindo daí novas vivências e novos sentidos possíveis, com vistas ao contexto da

pandemia.

Assim, as imagens passam a congelar e a se mesclar continuamente, se deixando

invadir por massas pixelares de outras imagens por vir – confundindo, excitando e ansiando a

percepção do espectador. Por meio desses derretimentos visuais, abolem-se as noções

fundantes de figura e fundo, plano e corte: a qualquer instante o close up de uma figura

humana pode congelar de repente e se tornar o pano de fundo da ação seguinte; e essa

intromissão entre imagens rompe com a ideia de “plano” enquanto tal, como unidade íntegra

mínima da montagem audiovisual, implodindo também a própria noção de corte como ponto de

separação-conexão entre planos. Ou seja, ao jogar com os processos por trás das imagens, o

glitch põe em questão inclusive estruturas elementares da própria representação audiovisual.

Assim, se a narrativa do curta de Silberstein conserva mais ou menos intacto o enredo

do filme de referência, a tecno-manipulação do arquivo, por outro lado, violenta sua imagem

até a franca dissolução. Não se trata de mera inserção de ruído, mas de um baile formal
“visceral” (como disse o próprio realizador, em entrevista), tecido pelos estilhaços visuais de

um trabalho digital de arruinamento-construção. Nessa dança frenética de glitches coloridos,

assistimos a amontoados de pixels que não se decidem entre a figuração e a abstração. Sem

discernimento claro entre fundo e figura, plano e corte, as imagens se sucedem misturando-se

umas nas outras – como se estivessem se contaminando ou se devorando entre si.

Silberstein, portanto, não corta de um take a outro, não "remonta" um filme antigo: ele

catalisa o contágio entre as imagens, ativa seu metabolismo por meio do glitch. Essas imagens

se infeccionam sempre com outras visões, que não param de eclodir. E tudo isso apoiado em

uma trilha de som sintetizado, frisando a artificialidade eletrônica de tais infecções. Eis que o

caráter “visceral” de que falava Silberstein tornar-se passível de ser lido como uma espécie de

fisiologia no interior do próprio curta, um tecno-metabolismo exposto, que aproxima o filme do

funcionamento daquilo que W. J. T. Mitchell chama de uma bio-imagem (bio-picture): uma

imagem viva, capaz de mover-se, espalhar-se e reproduzir-se, mantendo-se intrinsecamente

ligada ao contexto digital e online de uma “praga de imagens” (2011, p.20). Retomado da

tumba do passado, decomposto em pedaços, mas ainda assim pulsante, não estaria o longa

de Romero se manifestando dentro do curta de Silberstein sob a forma de um morto-vivo?

Porosidades: o dentro e o fora, o corpo e o mundo

E é nesse processo metabólico de autodevoramento digital que se insere o corpo

humano no filme de Silberstein. Assistimos a momentos repetidos de derretimento do corpo,

constantemente destruído e recriado, invadido por imagens outras, inumanas. Se tornar-se

zumbi é contagiar-se, é ter o corpo invadido e perder-se de si, então o esfarelamento do corpo

por meio do glitch exprime visualmente esse contágio, dando a ver invasões e eclosões

constantes de imagens inumanas no interior do corpo, demolindo sua epiderme.


1. Still retirado de The devil had other plans – Act I (2020), Guli Silberstein.

Eis que tudo se mostra irremediavelmente poroso. No still acima, uma síntese da

questão: Barbra acaba de chegar enfim em uma casa que lhe abrigará contra a ameaça que a

persegue; ela está do lado de dentro e a ameaça, lá fora; mas eis que a imagem de Barbra

congela e, de repente, vemos os pixels do interior do corpo da jovem tomarem outra forma – a

do zumbi que a persegue desde lá de fora, que eclode não só de dentro da casa, mas do

interior da própria vítima.

Assim, mesmo a casa onde Barbra consegue chegar se desfaz incessantemente entre

o dentro e o fora, entre a protagonista e os zumbis. Se, ao tratar do corpo na dança, José Gil

(2001) sugere a criação de um "espaço do corpo", no qual o corpo se vê liberto, expandindo-se

por sobre o espaço, como que revestindo-o com a própria pele para torná-lo dançável, fértil ao

movimento, então aqui vemos o contrário. Aqui é o espaço que se expande sobre o corpo e o

colapsa. Barbra, assim como os quarentenados da Covid-19, não tem solução a não ser ficar

em casa, mas em um lar que, no entanto, é a um só passo dentro e fora – sendo

constantemente bombardeado pela “praga de imagens” do mundo, das fakenews aos “likes”

nas redes sociais.

O que testemunhamos, finalmente, no curta de Guli Silberstein é uma potente

expressão da insegurança corporal pandêmica. Capaz de dar a ver, por meio do glitch, a

vertiginosa espiral dupla, viral e digital, que tomou conta dos corpos separados pelo contágio.
Se a Covid-19 ameaça meu corpo com sintomas e morte, o digital online me promete

segurança de vida, mas, em troca, pede um pouco de ansiedade, talvez depressão, pede,

enfim, minha materialidade – aquilo que faz de mim corpo. E esse frágil corpo-online, exibe

como nunca a sua condição "ciborguiana" (Haraway, 1991), segundo a qual o corpo deixa de

ser um todo fechado e passa a funcionar pelo ambíguo e pelo contraditório. Ciborgue, esse

corpo é e não é imagem (sou fisicamente distinto das fake news que recebo, mas viro imagem

para a reunião online), é e não é zumbi (não contagiado ou contagiado assintomático?), está

sempre dentro e fora (em casa sonho com o mundo, no mundo, corro para casa). Ciborgue

transpassado de glitches.

To be continued...

Referências

DILLON, Elizabeth Maddock. “Zombie biopolitics”. The American Studies Association, 2019, pp.
625-652.

DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

FERREIRA, Emmanoel; DELATORRE, Gisele. “Glitch de superfície: da emersão de modos de


ser da Glitch Art”. Eco-Pós, Rio de Janeiro, v. 24, n. 3, 2021, pp.247-266.

GIL, José. Movimento Total: o corpo e a dança. Lisboa: Relógio D'água Editores, 2001.

HARAWAY, Donna. Simians, Cyborgs, and Women: the reinvention of nature. Nova York:
Routledge, 1991.

MITCHELL, W. J. T. Clonning terror: the war of images, 9/11 to the present. Chicago: The
University of Chicago, 2011.

SILBERSTEIN, Gully. Interview with Guli Silberstein. Sedition. 25 nov. 2020. Disponível em:
<https://www.seditionart.com/magazine/interview-with-guli-silberstein>.

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