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Crítica | Pobres Criaturas -


Plano Crítico
Ritter Fan

9–12 minutos

Publicado em 1992 e escrito pelo romancista escocês


Alasdair Gray, Pobres Criaturas é uma bem-vinda
história de libertação feminina mascarada de pastiche
de narrativa vitoriana com criaturas e humanos bizarros
e com artifícios literários que transformam o romance
em um enigma dentro de um enigma. Yorgos
Lanthimos, pela primeira vez trabalhando com material
adaptado, faz da já sobejamente estranha obra um filme
visualmente criativo e ousado, com Emma Stone
encantadora no papel de Bella Baxter, uma jovem
resgatada da morte por suicídio pelo Dr. Godwin Baxter
(Willem Dafoe), uma versão exagerada e cartunesca –
mas não menos trágica – do Dr. Victor Frankenstein e,
com isso, consegue dar uma roupagem muito própria e
autoral para o romance.
A adaptação ficou por conta de Tony McNamara, co-
roteirista de A Favorita, longa anterior de Lanthimos
que, não custa lembrar, concorreu a 10 estatuetas do
Oscar, apenas uma a menos do que Pobres Criaturas.
Talvez pela combinação do inusitado material fonte –
que ele decidiu, talvez acertadamente, simplificar – e da
liberdade orçamentária que indicações de prestígio
como essas permitem na ciranda da produção
cinematográfica, o roteirista tenha arriscado ainda mais
e criado um mundo visualmente riquíssimo que bebe da
estética steampunk, de filmes de pura fantasia e, claro,
de obras de época carregada de figurinos vistosos que,
sob o comando estético e técnico quase sem freios de
Lanthimos, cumpre maravilhosamente bem sua função
de materializar para o espectador o senso de
maravilhamento que Bella Baxter sente na sua
exploração do mundo, isso desde o momento em que,
com fotografia em preto e branco, ela permanece
confinada na mansão de Godwin, mas especialmente
quando ela se liberta desse grilhões e com cores
vibrantes tomando a tela, passa a explorar sozinha – ok,
não exatamente sozinha, mas sim com o inicialmente
salafrário, depois totalmente hipnotizado advogado
Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo) – diversos países
na costa mediterrânea.

Afinal, Pobres Criaturas é um filme sobre exploração e


em todos os sentidos, vale dizer. Temos a exploração do
Homem pelo Homem como comentário socioeconômico
de fundo que permanece pouco explorado e também a
exploração das mulheres pelos homens, em que a
imutabilidade do lugar do supostamente frágil sexo é
elemento central da narrativa, ganhando ótima
capilaridade, com Bella sendo não só um instrumento de
observação e de experimentação, como também a
metafórica corrente sendo finalmente arrebentada para
permitir a construção de um caminho próprio,
construído a partir de suas observações, de suas
experiências e, claro, de explorações tanto do que vê,
daquilo que é exterior a ela, quanto e principalmente do
que sente, daquilo que é interior. Sim, falo do sexo. Não
do amor, mas do sexo mesmo (ou “saltos furiosos” como
diz a protagonista com toda a felicidade do mundo),
elemento usado indireta e diretamente como uma
maneira de pavimentação da libertação feminina, com a
direção de Lanthimos trafegando por águas turbulentas
e por vezes quase explícitas para deixar bem claro seu
objetivo (e também do romance de Gray, importante
dizer).

A liberdade de Bella Baxter reflete a liberdade que a


produção teve para mostrar o que mostra e, sob certos
aspectos, diria que Yorgos Lanthimos exagerou no uso
de artifícios audiovisuais para transmitir sua mensagem.
Não falo da explicitude de algumas cenas, pois reputo
isso como necessário para a verossimilhança da
narrativa que vai do grotesco ao sublime na forma como
faz Bella reagir ao mundo à sua volta, seja ouvindo fado
em Lisboa, seja dando “saltos furiosos” em basicamente
todo lugar. Também não falo do magnífico design de
produção de Shona Heath e James Price e da cuidadosa
direção de arte da equipe comandada por Géza Kerti,
pois esses aspectos são em grande parte responsáveis
por todo o hipnotizante imagético do filme, além da
trilha sonora desafiadora e perfeitamente no tom – por
estar “fora do tom” – de Jerskin Fendrix, que parece
refestelar-se em incomodar o espectador de maneira
semelhante ao que Mica Levi fez em Jackie. Chegando
ao meu ponto, talvez Lanthimos, em um filme já
bastante carregado, tenha chamado atenção demais a
maneirismos técnicos especialmente com a fotografia de
Robbie Ryan (que também trabalhou em A Favorita),
seja com o emprego generoso de grandes angulares em
oposição ao uso de fechamento de íris, além da já
mencionada contraposição do preto e branco
fantasmagórico às cores fortes. É uma direção que, no
final das contas, clama atenção para si mesma por vezes
demais e sem realmente precisar, atravancando um
pouco a naturalidade das transições.

Por outro lado, Lanthimos extrai grandes trabalhos de


atuação. O maior destaque, claro, vai para Emma Stone
que constrói uma personagem que vai contra seu
próprio tipo e que atrai da mesma maneira que causa
repulsa, especialmente nas sequências iniciais, sem que
ela deixe de transmitir comicidade e, mais importante
do que tudo isso, naturalidade na forma como Bella vai
de uma criança em corpo adulto até uma mulher
decidida e profundamente consciente do mundo ao seu
redor, especialmente no que toca o sexo e os sexos. Mas
não podemos esquecer de Mark Ruffalo. Seu
personagem vai de romântico aproveitador a sofredor
por amor com uma facilidade mágica e cômica, com o
ator aparentemente muito à vontade na construção de
um canalha tão engraçado e doce que o espectador até
hesita em detestá-lo. Em categorias mais abaixo, há
também Dafoe debaixo de próteses pesadas que não
permitem muito espaço para uma atuação realmente
marcante e Ramy Youssef como Max McCandles, pupilo
de Godwin e apaixonado por Bella que, tenho para mim,
não parece tão investido quanto seus colegas em seu
personagem, muitas vezes mais parecendo um enfeite de
cenário que, aqui e ali, tem sua função narrativa trazida
à tona.

Somente quando Lanthimos precisa caminhar para o


encerramento do longa, em que novas revelações são
feitas – todas elas decorrendo da narrativa, sem dúvida
– é que Pobres Criaturas perde boa parte de seu
diferencial e daquele sentimento de estar assistindo algo
realmente especial. Os 20 ou 25 minutos finais são o
ponto fraco do roteiro de McNamara em termos
rítmicos, pois o longa perde sua força e parte para
encerrar linhas narrativas de maneira mais… ordinária o
que, em um todo extraordinário, ainda é mais do que
normalmente se pode esperar, mas mesmo assim cobra
um preço do espectador. Há uma quebra de fluidez, com
algo que parece mais uma inserção artificial e
ironicamente corrida para o filme poder ser encerrado,
mesmo que, em seu mérito, haja perfeita lógica interna
para o que ocorre.

Mesmo com problemas aqui e ali, é inegável que Yorgos


Lanthimos acertou novamente, emprestando sua visão
inconformista e desafiadora à indústria cinematográfica
mainstream que precisa mesmo cada vez mais de
sangue novo, capaz de remexer suas fundações e fazê-la
avançar, nem que seja muito lentamente. E, para isso,
nada como um filme de época baseado em romance que
satiriza sua própria base literária para transmitir uma
lição de mundo que teria o mesmo valor na Era
Vitoriana que tem hoje em dia e que é carregado por
duas atuações soberbas inseridas em um visual
poderoso e cativante. Pobre daqueles que tentarem se
colocar no caminho de tudo que Bella Baxter representa!
Pobres Criaturas (Poor Things – Irlanda/Reino
Unido/EUA, 2023)
Direção: Yorgos Lanthimos
Roteiro: Tony McNamara (baseado em romance de
Alasdair Gray)
Elenco: Emma Stone, Mark Ruffalo, Willem Dafoe,
Ramy Youssef, Christopher Abbott, Kathryn Hunter,
Jerrod Carmichael, Hanna Schygulla, Margaret Qualley,
Vicki Pepperdine, Suzy Bemba, Keeley Forsyth, John
Locke, Kate Handford, Owen Good, Damien Bonnard,
Tom Stourton, Wayne Brett, Carminho, Jerskin Fendrix
Duração: 142 min.

Ritter Fan

Aprendi a fazer cara feia com Marion Cobretti, a dar


cano nas pessoas com John Matrix e me apaixonei por
Stephanie Zinone, ainda que Emmeline Lestrange e Lisa
tenham sido fortes concorrentes. Comecei a lutar
inspirado em Daniel-San e a pilotar aviões de cabeça
para baixo com Maverick. Vim pelado do futuro para
matar Sarah Connor, alimento Gizmo religiosamente
antes da meia-noite e volta e meia tenho que ir ao Bairro
Proibido para livrá-lo de demônios. Sou ex-tira, ex-
blade-runner, ex-assassino, mas, às vezes, volto às
minhas antigas atividades, mando um "yippe ki-yay
m@th&rf%ck&r" e pego a Ferrari do pai do Cameron ou
o V8 Interceptor do louco do Max para dar uma volta
por Ridgemont High com Jessica Rabbit.

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