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Ficha Técnica

Título original: As Areias do Imperador - Livro Três. O Bebedor de Horizontes


Autor: Mia Couto
Capa: Rui Garrido

Agradecimentos: Afonso Dambile, Feliciano Chimbutane e Filipe Branquinho

ISBN: 9789722128964

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AS AREIAS DO IMPERADOR
uma trilogia moçambicana
LIVRO TRÊS

O Bebedor de Horizontes
RESUMO DOS ANTERIORES VOLUMES
Nos finais do século XIX, Portugal enfrenta a resistência do
Estado de Gaza que domina todo o Sul de Moçambique. A
coroa portuguesa, já a braços com o Ultimato da Inglaterra,
não pode adiar mais uma ofensiva militar contra
Ngungunyane, o imperador de Gaza. O desafio é claro: ou
Portugal prova que domina efetivamente os territórios
africanos ou perde-os a favor de outras potências coloniais.
Em dezembro de 1895 um pequeno grupo de soldados
portugueses, comandados pelo capitão Mouzinho de
Albquerque, toma de assalto a povoação real de Chaimite e
prende Ngungunyane. Com o rei de Gaza são igualmente
detidos o filho, Godido; o tio e conselheiro Mulungo e o
cozinheiro Ngó. Os portugueses autorizam o imperador a
fazer-se acompanhar por sete das suas mais de trezentas
esposas. Num outro local, na margem do rio Limpopo,
prendem igualmente o chefe dos mfumos, o Nwamatibjane
Zixaxa, que é enviado para o exílio juntamente com os
presos da corte de Gaza. Zixaxa é deportado na companhia
de três das suas esposas.
Com os presos segue Imani Nsambe, uma jovem negra que
estudou numa missão católica e serve como tradutora das
autoridades portuguesas. Imani está grávida de um sargento
português, chamado Germano de Melo. É esta tradutora que
narra os trágicos acontecimentos do final do reinado de
Gaza.
Neste último volume da trilogia, os prisioneiros embarcam
no cais de Zimakaze e a lancha parte em direção ao posto de
Languene. Ali farão uma breve paragem para depois
rumarem para o estuário do Limpopo e ali darem início à
viagem marítima que conduzirá os africanos para um distante
e eterno exílio.
Eu? — bebo o horizonte…
(Cecília Meireles, in Mar Absoluto)
Em tempos de terror escolhemos
monstros para nos proteger.
(Excerto de uma carta de Álvaro Andrea)
Capítulo 1

A mulher que chamava os rios


O cego foi o único que se salvou do incêndio.
Porque foi o único que não viu o medo.
(Zixaxa)
— Pergunta a esse branco se quer que chame o rio.
São as palavras da rainha Dabondi. Não ouso traduzi-las
para o capitão Mouzinho de Albuquerque. Nem ele escutaria
tão estranha interpelação, ocupado que está em comandar os
seus homens, que chapinham num baixio do rio Limpopo. O
barco em que seguíamos encalhou num banco de areia e há
horas que os soldados portugueses tentam libertar a lancha.
Alguns, mais afoitos, têm o corpo meio submerso e
empurram os costados da embarcação. Poucas vezes se viu
aquele cenário: brancos esfalfando-se à torreira do sol
enquanto negros aguardam sentados numa confortável
sombra. Mouzinho ordena aos soldados que regressem ao
convés: as águas estão infestadas de crocodilos.
Não é o atraso que incomoda Mouzinho. Desde que saímos
de Zimakaze a viagem decorreu célere e sem paragem. O que
o capitão teme são os perigos do mato em redor, onde, sem
que se veja vivalma, já se escutam vozes e se movem
sombras furtivas. Não tarda que suceda uma emboscada para
resgatar os prisioneiros que viajam no seu barco.
A rainha Dabondi é uma dessas prisioneiras. Mais do que o
capitão, ela está tensa com aquela paragem. É ela que ergue
subitamente os braços a mandar que todos se calem. Um
arrepio percorre toda a tripulação: como que nascida do
chão, uma multidão de homens, mulheres e crianças surge na
margem. Mouzinho ordena aos seus soldados que preparem
as armas. Um silêncio frio se instala e o próprio rio se cala.
— Posso chamar as águas? — volta a perguntar Dabondi.
Depois dirige-se a mim: — Disseste a esse branco que falo a
língua dos rios?
Uma palavra sua e o rio Limpopo, como um cachorro
dócil, viria comer-lhe à mão. Mouzinho murmura
entredentes: Calem-me essa mulher! A tensão é insuportável.
De súbito a rainha Dabondi salta do barco e caminha na
direção da silenciosa multidão, que foi crescendo na margem.
Todos os olhos se centram na rainha que atravessa as águas
rasas do rio. Os pés de Dabondi não tocam água nem terra.
Na verdade, a rainha não caminha. Ela executa uma dança. O
balançar das ancas faz soar as anilhas de cobre que lhe
rodeiam os tornozelos.
Chegada à margem, a rainha fala animadamente com as
criaturas que a rodeiam. Nada podemos escutar mas
percebemos que aponta com insistência para nós. De súbito
aquela turba precipita-se enlouquecida sobre o barco. Os
portugueses, aterrorizados, ainda levam as armas aos
ombros. Mas já não há tempo. Centenas de homens e
mulheres já venceram o vau do rio e atiram-se de ombros,
pernas e braços contra o casco da lancha. A embarcação
balança com violência, os tripulantes gritam, os cavalos
escouceiam.
Num ápice o barco volta a flutuar. E só quando se confirma
que estão unidos numa intenção pacífica é que todos, negros
e brancos, gritam de entusiasmo. Ajudam Dabondi a
regressar ao convés. A rainha está ofegante mas feliz.
Pergunto-lhe por que ajudou os seus carcereiros.
— Alguém me espera no fim desta viagem — responde.
*
Há dois dias sucedera o impensável: em Chaimite, o
capitão Mouzinho capturou o imperador Ngungunyane e
trouxe-o amarrado até ao cais de Zimakaze. Junto com o real
prisioneiro seguiam as sete esposas que ele elegera para o
acompanhar. Essa escolha foi o seu último ato de soberania.
Na comitiva seguia também eu, Imani Nsambe, que os
portugueses escolheram como tradutora. Finalmente, em
Zimakaze, o chefe dos mfumos, chamado Nwamatibjane
Zixaxa, juntou-se aos presos. Com este rebelde vieram três
das suas esposas.
De Chaimite a Zimakaze o mesmo espanto se repetiu: os
habitantes de Gaza contemplaram, incrédulos, o imperador
Ngungunyane1 sendo arrastado em prantos. Os militares
portugueses eram tão poucos que se tornava ainda maior o
desconcerto de quem assistia ao inusitado desfile.
Não era apenas um imperador vencido que os portugueses
exibiam. Era África inteira que ali desfilava, descalça,
rendida e humilhada. Portugal precisava daquela encenação
para desencorajar novas revoltas entre os africanos. Mas
necessitava ainda mais de impressionar as potências
europeias que competiam na repartição do continente.
*
Orgulhoso mas apreensivo, o capitão Mouzinho de
Albuquerque contemplava a turba que se acumulava pelos
caminhos. E acontecia sempre o mesmo: aquela massa de
gente desatava aos gritos, numa festa.
— Bayeté ! — bradavam em uníssono.
O capitão pediu-me que traduzisse aquele clamor. E sorriu,
vaidoso, quando lhe segredava: a multidão aclamava-o a ele,
o capitão dos brancos. E louvavam-no com um fervor que,
segundo o próprio Mouzinho, não seria igualado nem pelos
seus mais fiéis compatriotas. Nunca imaginou o capitão que
mais africanos que portugueses o saudassem como libertador.
Foi o que vaidosamente me confessou. E acrescentou:
— Quem sabe os pretos me façam aqui uma estátua, mais
depressa que os meus compatriotas lá em Lisboa.
*
Desde que retomámos a viagem que a rainha Dabondi se
conserva junto de mim. Foi ela que, no caminho para
Zimakaze, me limpou o sangue da garça degolada por um
soldado. Estás grávida — disse enquanto me lavava —,
nenhum sangue te pode tocar.
Agora a rainha contempla os céus e vê desarrumação nas
nuvens. Sacode-me o braço e avisa-me de que uma
tempestade se avizinha. Dirigimo-nos juntas ao comandante
do barco, um oficial de uniforme azul-escuro. Chama-se
Álvaro Soares Andrea. Esse homem alto e forte fixa em mim
uns olhos indefinidos. É um navegador. Mas o seu olhar é o
de um náufrago.
Não chegámos, porém, a abordar o capitão. Porque
Godido, o filho de Ngungunyane, se aproxima e ordena que a
rainha regresse ao lugar que lhe compete e que é junto do seu
rei. Dabondi finge não escutar. Godido persiste, mais firme:
— Volte para junto do seu marido, minha rainha!
— Rainha? — protesta Dabondi. — Que rainha sou eu que
cozinho com as panelas da minha sogra? — O dedo em riste
avança sobre o peito de Godido: — Não me voltes a tratar
assim. Sou uma viúva. É isso que sou.
O príncipe Godido retorna para junto dos prisioneiros. Não
sabe como explicar o insucesso da sua missão.
— O que se passa consigo? — pergunto a Dabondi. — Por
que desobedece ao Nkossi?
— Não sou rainha. Sou uma nyamossoro. Escuto os mortos
e falo com os rios.
O barco reduz a velocidade. Estamos a chegar ao posto de
Languene, o último reduto militar português no estuário do
Limpopo. Mouzinho de Albuquerque saúda os marinheiros
que nos esperam na margem. Assim que termina a atracagem
transmito a Mouzinho a preocupação de Dabondi: uma
tempestade se levanta para além do estuário do Limpopo.
Não são ventos feitos no céu, explico. É uma tempestade
encomendada.
— Meu Deus, como esta gente é atrasada — comenta o
militar, deitando as mãos à cabeça. — E as pretas são piores
do que eles.
Não percebe quanto me magoa. O português em que me
expresso, sem ruga nem rasura, faz com que Mouzinho deixe
de ver a minha raça. Guardo-me em silêncio. Calo-me na
mesma língua do homem que me humilha.
*
Enfim, desembarcamos no pequeno posto militar de
Languene. Será uma breve pausa para embarcar armas e
feridos. Os presos africanos são conduzidos para uma
sombra. Recebem uns biscoitos e um copo de vinho. E ali
ficam, entorpecidos pelo cansaço. Dabondi volta a destacar-
se do grupo e vem sentar-se a meu lado. Guardou no fundo
do copo um resto de bebida. Deixa tombar umas gotas sobre
a areia quente. Aplaca a sede dos defuntos desde que o
mundo nasceu.
— Sabe como aprendi a falar com os rios? — pergunta.
Foi na adolescência, disse ela. Aconteceu antes de ser
tomada como esposa do rei. Todas as manhãs observava uma
aranha a entrar e a sair de uma cova no pátio da sua casa. Nas
patas, o bicho carregava orvalho para o fundo da terra.
Trabalhava como um mineiro às avessas: tirava do céu para
acumular no subsolo. Aquela ocupação prolongara-se há
tanto tempo que, no fundo da toca, foi nascendo um extenso
lago subterrâneo.
A rainha quis ajudar o bicho nas suas húmidas escavações.
Numa madrugada sem orvalho trouxe uma taça de água, que
deixou à entrada da toca. Mas a aranha recusou a gentileza,
sorrindo: Isto que faço não é um trabalho, é apenas uma
conversa. E acrescentou: Reconheço o quanto sofres, é
preciso muita solidão para se reparar em criaturas tão
pequenas como eu. Em sinal de gratidão, o bicho ensinou-lhe
o idioma da água.
— Agora, converso com os rios, pequenos e grandes —
conclui Dabondi. — A cada um chamo pelo nome que só eu
conheço.
Somos interrompidos por Muzamussi, a mais velha das
esposas. Sem cerimónia, esta puxa Dabondi pelos pulsos e
arrasta-a para junto dos presos. Depois grita para anunciar
que Ngungunyane requer a minha presença. Apresento-me
sem demoras.
Diante do soberano ajoelho-me e bato as palmas, como
mandam os preceitos. O rei pretende saber que conversas
mantive com Dabondi. Não tenho tempo para me explicar.
Não te consigo escutar, disse o rei. Elevo o tom de voz. Ele
sacudiu a cabeça: O problema não é a minha voz. Não me
escuta por causa do meu calçado. Esses teus sapatos falam
muito alto, diz Ngungunyane. De agora em diante só te
aproximas de mim se estiveres descalça.
Eu que ficasse a saber: chão que o imperador pisou torna-
se sagrado. Os meus sapatos ofendem essa divina condição.
As rainhas escutam-no e riem alto. O riso delas faz com que
os meus sapatos deixem de existir.
*
Não era apenas entre nós, africanos, que emergiam
querelas. Não há dia em que os chefes militares portugueses
não troquem acusações. E todos, europeus e africanos,
procuram-me para se lamentar. Não sei por que confiam em
mim. Mais do que tradutora sou uma ponte. Talvez eu seja a
aranha que vivia no pátio de Dabondi. Nas minhas patas
carrego palavras e com elas faço uma teia que une diferentes
raças.
Durante a caminhada, Mouzinho de Albuquerque já me
havia abordado de forma casual. Desta vez senta-se a meu
lado e permanece imóvel, sem tirar os olhos de Álvaro
Andrea.
— Aquele tipo odeia-me — afirma Mouzinho. — Posso
dizer-te, nenhum preto me despreza assim tanto.
O modo lento como o capitão pousa o chapéu sobre os
joelhos denuncia o seu propósito de conversar.
— Sei quem és — começa por dizer. — E tu sabes o que
queremos de ti. Traduzir será apenas a parte visível do teu
trabalho.
Faz uma pausa cofiando o bigode. O reinado de Gaza
durou demasiado, disse. E sabes porquê?, pergunta. E ele
mesmo responde: Este Gungunhana sabia tudo sobre nós e
nós nada sabíamos dele.
Aqueles negros ali sentados, com os pulsos atados, não são
apenas simples prisioneiros. É o que diz Mouzinho. São
donos de valiosos segredos, e são essas confidências que
entregarei ao exército português. Esse é o verdadeiro motivo
da minha presença naquela jornada. Pigarreio, receosa:
— Entendi, meu capitão.
Mouzinho enrola um cigarro. Não o acende. Deixa-o
pendendo preso nos lábios. Olho-o de esguelha. É um
homem bonito. Razões tinha Bianca para sonhar.
— Agora, se me dá licença — peço num murmúrio —,volto
para junto da minha gente…
— Prefiro — diz Mouzinho — que te deixes ficar entre os
brancos. É entre eles que moram as mais graves traições.

1 Os nomes Ngungunyane ou Gungunhana, na forma aportuguesada, serão


usados ao longo texto em função da origem dos locutores, africanos ou
portugueses, mas referindo sempre a pessoa do rei de Gaza.
Capítulo 2

Um mal-amanhado bilhete
«… a atividade dos portugueses nas Terras da
Coroa, no Sul de Moçambique, resume-se a isto:
Em outubro e novembro de cada ano percorrem
as povoações palhota a palhota, cobram o
imposto, fornecem sovas de cavalo-marinho
num ou noutro negro menos reverente, levam o
produto da cobrança ao quartel de Anguane,
recebem a sua percentagem e vão de novo
dormir onze meses.»
(Extrato de Eduardo Noronha, in «A rebelião dos indígenas
de Lourenço Marques, 1894», citado por René Pélissier)
Chaimite, 28 de dezembro de 1895
Minha querida Imani
Não vejas nisto uma carta. É um simples bilhete rabiscado
à pressa. Não tarda que me conduzam para Inhambane.
Quero, mais que tudo, dar-te uma boa nova: estou livre!
Sobre mim já não pesam suspeitas da autoria da morte de
Santiago Mata. Para te ilibar declarei-me culpado. Era mais
credível que fosse eu o autor do disparo.
O meu sacrifício não teve custos maiores pois logo surgiu
uma outra versão dos acontecimentos que falava em suicídio.
Ainda pensei que fossem os meus companheiros
republicanos que me tentavam salvar. Mas não. Quem
defendeu a tese do suicídio foi o próprio Mouzinho de
Albuquerque. E quem iria duvidar da palavra do grande
herói? Fico a dever esse favor ao meu fiel inimigo.
Mouzinho, Mouzinho, Mouzinho! Quando deixará esse
Mouzinho de me ocupar tanto? Às vezes arrependo-me deste
meu despeito: é tão fácil odiar o sucesso dos outros! Mais
vezes, porém, desconfio desta recente euforia de Mouzinho.
Como é que alguém tão fascinado pela morte se pode ocupar
tanto com a imortalidade?
O que importa, querida Imani, é que daqui a umas horas
estarei no Hospital Militar de Inhambane. Vou usar as
enjeitadas mãos para ficar isento dos serviços militares.
Tenho esperança, melhor, a certeza, de que me fazem voltar a
Portugal. O meu anseio não é regressar. O que realmente
desejo é reencontrar-te. Se tudo correr bem ainda nos
veremos em Lourenço Marques.
Entrego este bilhete a Álvaro Andrea, o comandante da
lancha militar em que irás embarcar em Zimakaze. É um
velho amigo que comunga dos ideais republicanos. Pela
mesma via te farei chegar, mais tarde, uma verdadeira carta,
uma carta decente no tamanho e indecente nas entrelinhas.
Teu
Germano
Capítulo 3

A lama e a neve
[…]
Homens que erguestes padrões, que destes nomes a
cabos!
Homens que negociastes pela primeira vez com
pretos!
Que primeiro vendestes escravos de novas terras!
Que destes o primeiro espasmo europeu às negras
atónitas!
Que trouxestes ouro, missanga, madeiras cheirosas,
setas,
De encostas explodindo em verde vegetação!
Homens que saqueastes tranquilas povoações
africanas,
Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas
raças,
Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes
Os prémios de Novidade de quem, de cabeça baixa
Arremete contra o mistério de novos mares!
[…]
(Fernando Pessoa, excerto da Ode Marítima)
Não se amaldiçoa o lugar onde se acaba de chegar. Assim
me educaram. Mouzinho não segue este princípio. Desde que
chegámos não fez outra coisa senão maldizer o posto de
Languene.
— Vou mandar incendiar esta miséria! — resmunga. —
Isto não é um aquartelamento, é um esconderijo. Esta gente
tem tanto medo de morrer que faz tudo menos combater.
Vocifera contra o que chama de «cáfila de politiqueiros». E
alerta para uma conspiração de «intriguistas». Usa esses
termos com a mesma raiva com que Ngungunyane chama de
«mulheres» aos seus inimigos.
— Imani… É assim que te chamas, não é? A minha dúvida
pode parecer-te estranha mas preciso de perguntar: sentes
que pertences a um país, a uma nação?
Fala sozinho. E responde por mim. Está certo de que me
falta esse sentimento de pertença. Apesar da minha
aparência, continuo a ser uma indígena, leal à família, fiel à
raça. E lembra a maldição que recai sobre os irmãos gémeos.
Estando perante um desses irmãos, pensa-se reconhecer o
outro e, assim, acabamos por não conhecer nenhum deles.
Era assim que ele me via a mim e aos demais africanos:
todos gémeos. Da próxima vez que falássemos eu teria de
recordar-lhe o meu nome.
*
A raiva de Mouzinho Albuquerque contra o posto de
Languene tinha a sua explicação. O capitão tinha estado
naquele posto há duas semanas no caminho para o assalto à
corte de Ngungunyane. A intenção era obter reforços entre os
marinheiros que serviam a corveta Capello. Chegara ali no
dia de Natal e constatara, com uma mistura de pasmo e
comiseração, que o comandante da corveta, Álvaro Andrea,
tinha convertido o aquartelamento num lugar de celebração
cristã. Chapas de zinco tinham sido usadas para servir de
tampos de mesa e troncos foram convertidos em assentos.
Cartucheiras vazias e fitas de metralhadoras enfeitavam uma
árvore no centro do recinto.
Aquela fantasia natalícia surgia patética aos olhos do
capitão de cavalaria. E revelava não uma particular devoção
cristã mas uma perigosa fragilidade. Se os chefes militares
fossem pelo caminho da encenação, cedo os soldados
pediriam mentiras maiores. Para acertarem naquele
fingimento de Natal faltava-lhes o frio, a neve e os cheiros da
sua terra. Em contrapartida, sobravam os mosquitos, as
febres e os odores fétidos do pântano. E sobejavam-se a si
mesmos como magros vultos com mais farda do que corpo.
Num certo momento, um desses vultos ajoelhou-se aos pés
de Mouzinho. Era um jovem praça, com um ar apalermado,
que a custo balbuciou:
— Meu capitão, este posto está tão bonito que até parece o
adro da minha igreja. E ali abaixo passa o rio Tejo. Peço
que me autorize a banhar-me nessas águas, que são as da
minha meninice.
Mouzinho dedicou-lhe um olhar vazio. Quis saber a sua
idade. Dezoito anos, respondeu o moço, sacudindo a cabeça.
Mas não estava seguro. Pediria confirmação aos pais que,
segundo ele, moravam numa aldeia ribatejana bem próxima
do posto de Languene. Posso chamá-los, se o capitão assim
o desejar. Foi o que disse o jovem soldado. Mouzinho reagiu
como se o rapaz não tivesse chegado a dizer nada. Convocou
Álvaro Andrea e pediu-lhe a espada. Usando as duas mãos
espetou-a fundo na terra, bem rente ao corpo do aturdido
soldado. A lâmina afundou-se como se não houvesse chão.
— Parece-te neve esta pestilenta lama? — inquiriu
Mouzinho.
— É neve, sim, é neve preta. Era branca, mas voltou assim
de África.
O soldado mergulhou as mãos no chão e os dedos foram
engolidos pelo lodo. Naquele instante pareceu a Mouzinho
de Albuquerque que o jovem militar executava o seu próprio
enterro.
— Não se preocupe com a sua espada — disse Mouzinho
para Álvaro Andrea. — Mando-a limpar e o tenente Miranda
a entregará no seu barco.
Em redor do acampamento apinhavam-se auxiliares negros
com as suas fogueiras, os seus cantos e as suas danças. Ainda
ocorreu a Mouzinho ordenar que se calassem. Não chegou a
fazê-lo. A seus pés jaziam os feridos em macas feitas de
capulanas. Era estranho ver a vida esvair-se em tão garridos
panos. As canções ocultavam os gemidos e as preces dos
agonizantes soldados. As vozes dos negros cumpriam o que a
enfeitada árvore não havia conseguido: aliviavam-no desse
absurdo que era festejar o Natal no meio do inferno.
E Mouzinho pediu a Álvaro Andrea que se dirigisse aos
seus homens e lhes desse a bênção. Não havia senão duas
garrafas de vinho quinado. Mas foram suficientes para o
improvisado brinde. Álvaro Andrea ergueu o copo mas não
soube o que dizer, mortificado pela infantil avidez dos olhos
que nele se fixavam.
Mouzinho mandou que os soldados se afastassem, tomou
assento sobre uma caixa de munições e dirigiu-se ao
comandante Andrea:
— Estou sentado em cima deste cunhete de balas mas
falta-me quem as dispare. Escolha-me uns vinte homens, dos
mais saudáveis e afoitos.
O comandante Andrea olhou os céus à procura das
palavras que melhor o servissem:
— Permita-me a ousadia mas considero essa sua
operação….
Não chegou a terminar a frase. A reação de Mouzinho foi
pronta e seca:
— Pedi-lhe soldados, não pedi conselhos…
A disputa cresceu e os soldados se espantaram com o
descontrolado desfile de imprecações e insultos. Perentório
foi Álvaro Andrea:
— Se quiser morrer sozinho morra. Mas dos meus rapazes
não leva nenhum.
— Já entendi — ripostou Mouzinho —, você é dos que
advogam a paz por terem medo da guerra. Está aqui
enclausurado porque esta é a sua maneira de fugir. Eis a
verdade: você só precisa destes soldados para se proteger da
sua cobardia.
— Fique sabendo, capitão Mouzinho — argumentou o
outro —, a Nação pedir-lhe-á contas por esta aventureira
perseguição ao Gungunhana. O senhor vai às cegas e sem
apoio. É por isso que digo e repito: não conte com nenhum
dos meus homens.
Em silêncio, todos os marinheiros da corveta Capello
aplaudiram a ponderada atitude do seu comandante. Andrea
salvava-os de uma morte certa. E usaram os restos do vinho
para dar graças ao judicioso homem que os chefiava. Os
negros recolheram os copos espalhados sobre as mesas e
verteram na areia as gotas que restavam.
— Quer celebrar o espírito natalício? — perguntou
Mouzinho a Andrea. — Pois mande abater uns cabritos e
distribua a carne pelos auxiliares indígenas…
*
Tudo isso se passara dias antes, naquele mesmo lugar. No
fim do relato, Mouzinho volta a cobrir a cabeça e a sombra
do chapéu obscurece-lhe as palavras.
— Percebes agora por que desconfio desse Andrea? —
pergunta-me Mouzinho. E movimenta o assento como se, ao
fazer-se mais próximo, nos tornássemos mais coniventes.
Álvaro Andrea, começa por dizer Mouzinho, apostara que
ele seria morto em Chaimite. E ali estava ele, vivo e
vitorioso. Mouzinho era um espinho cravado no seu orgulho.
Como entregar nas mãos desse traidor o mais precioso troféu
de todas as guerras coloniais portuguesas?
Passam por nós soldados que se dirigem ao rio para lavar
os pratos. Mouzinho sacode a cabeça e lamenta-se:
— Há poucos dias estes homens saudavam a prudência do
seu comandante. Hoje todos eles o maldizem.
O que antes tinha sido ponderação é agora cobardia. Por
culpa de Andrea, aqueles jovens foram excluídos do panteão
dos heróis.
Aproxima-se de nós um soldado branco, com ar apatetado.
O capitão anuncia o visitante:
— Ora aqui está o único soldado português que está em
África sem nunca ter saído da sua aldeia ribatejana. Eis
alguém que viu neve no meio do inferno.
O jovem soldado ergue-se na ponta dos pés, o corpo todo
espigado numa caricata continência:
— Apresenta-se o 222, da terceira companhia do
regimento de infantaria.
De repente deixo de o ver. O jovem português estava à
minha frente mas, em seu lugar, surgia o meu irmão
Mwanatu. A mesma caricatura de soldado, a mesma
desajeitada farda. E a mesma distância da realidade:
Mwanatu Nsambe acreditando ser branco de nascença e este
português tomando por neve a tórrida areia dos trópicos.
Apetece-me abraçar o soldado. Contenho-me quando me
enfrenta, a um tempo distante e curioso:
— És tu a preta que fala português? É verdade que falas
melhor do que a maior parte dos brancos?
A minha resposta é um sorriso. Espero que ele
corresponda. O moço, porém, bate continência e retira-se
movido por uma estranha urgência. Mouzinho contempla o
soldado 222 que se afasta e comenta:
— Este é um anjo estúpido, tombou de cabeça na terra.
Mas não deixa de ser um desses anjos cuja única função é
lembrar que vivemos num inferno.
*
Os soldados são como os caçadores: as suas histórias têm
pouco a ver com a realidade. Ninguém com isso se importa.
Na verdade, só os mortos sabem exatamente o que é a
realidade.
João da Purificação, o mais novo dos soldados
portugueses, já se esquecera da primeira das realidades: o seu
próprio nome. Desde há um ano que ele não era senão um
número: o 222. Queixava-se? Muito pelo contrário. Não
havia para ele nome mais sublime. Distintamente dos outros
soldados, o ex-João da Purificação não tinha glórias para
contar, com exceção de umas viagens que só existiam na sua
cabeça. Poder-se-ia dizer que é assim que as viagens
sucedem sempre: dentro da nossa cabeça. A verdade, porém,
era outra: o 222 enlouquecera. Na mais bravia paisagem de
África, o soldado via um lugarejo de Portugal. Em cada um
dos negros reconhecia um compadre da sua pequena aldeia.
E não havia rio de Moçambique que não se chamasse Tejo e
que não atravessasse a sua infância.
Os soldados provocam João da Purificação na esperança de
que ele volte a descrever as suas delirantes viagens. O 222
acaba cedendo aos convites e, feliz por ser notado, proclama:
— Escutai-me bem, meus irmãos: o mundo inteiro é um
arrabalde da nossa terra natal.
— Viajaste assim tanto? — incitam os outros.
— Naveguei tanto que não há céu que estes meus olhos
não tenham tocado.
— E como é o firmamento lá mais à frente? — perguntam-
lhe.
— Lá mais adiante deixa de haver céu. É tudo terra, é tudo
Portugal.
Capítulo 4

Primeira carta do sargento


É estranho o que a guerra faz com os
soldados: pede-lhes que apurem a pontaria; mas
só deixa que disparem depois de estarem cegos.
(Sargento Germano de Melo)
Inhambane, 29 de dezembro de 1895
Minha querida
Já em Inhambane, posso finalmente escrever-te com tempo
e sossego. A boa notícia, meu amor, é que não tarda que me
levem para Lourenço Marques onde, se tudo der certo, nos
iremos reencontrar. Essa esperança faz mais leve a espera. A
verdade é que gosto desta cidadezinha que me é, ao mesmo
tempo, estranha e familiar. E não me pede mais do que estar
numa varanda e esperar por um outro destino. Morei em
vários lugares, tive apenas duas casas: a da infância e o
pequeno quartel de Nkokolani. Lembro essas casas como se
fossem parte do meu corpo. E penso: deixamos de ver as
coisas que se tornam demasiado nossas.
Quem te irá entregar esta carta será o comandante Álvaro
Andrea, que certamente já terás conhecido. Como referi no
anterior recado, este Andrea é um português honesto que
conheci nas minhas lides republicanas. Poucos são os
brancos que falam com os negros. Quando o fazem é para
dar ordens. Pois este amigo terá contigo uma deferência que
é rara mas que lhe é cara e genuína. Vais gostar dele. Só
espero que não seja demais.
Talvez não entendas a razão por que nós, portugueses, nos
demoramos tanto a falar de nós mesmos. Fazemos isso por
causa dos outros, os estrangeiros. Temos medo que nos
vejam pequenos. A nossa verdadeira pequenez não vem da
geografia mas do modo como nos pensamos. E não há como
um grande inimigo — como é o caso de Gungunhana — para
nos distrair da nossa insignificância. A guerra contra o rei
africano esconde outras guerras que dividem a nação
lusitana. Encontram-se em Moçambique, usando a mesma
farda, monárquicos e republicanos. Odeiam-se e matar-se-
iam com a mesma facilidade com que uns e outros abatem
um cafre rebelde.
Sei que temes por mim, que receias a minha intempestiva
entrega às causas políticas. Fica tranquila. Não repetirei
ousadias que antes me custaram o desterro em terras
africanas. Esse castigo acabou, afinal, por se converter na
maior das recompensas. O que devia ser um exílio
converteu-se num lugar de afeto. Foi aqui, em África, que
encontrei o amor. A minha única pátria és tu. A única causa
que me resta é regressar aos teus braços.
Escapaste sã e salva dos lugares mais violentos. Mas há
uma guerra a que não poderás escapar: o conflito entre
Mouzinho de Albuquerque e Álvaro Andrea. Estarás, nestes
dias, sob fogo cruzado. O meu amigo Andrea está a preparar,
em sigilo, um detalhado relatório dirigido ao Comissário
Régio denunciando o modo como Mouzinho de Albuquerque
violou o código de conduta militar. Andrea já me revelou o
título provisório desse explosivo documento: «Relatório dos
atropelos aos códigos militares cometidos na captura do
Gungunhana». Quanto daria certa imprensa em Portugal para
ter acesso a esse relatório?
Peço-te, meu amor, que ajudes Álvaro a concluir a sua
missão. É urgente que Mouzinho seja desmascarado. Esse
pavão fardado precisa de aprender que só há um critério para
medir a grandeza de um comandante: o modo como trata os
vencidos.
A imagem emblemática da nossa guerra em África é a de
um garboso cavaleiro montado no seu cavalo. Mas as
campanhas militares em África foram ganhas nos rios,
cavalgando vagas, galgando rápidos e estreitos. Dessas
batalhas ninguém fala. Não há hoje quem não conheça os
feitos de Mouzinho de Albuquerque. Contudo, a Álvaro
Andrea também assistem motivos de glória. A sua
embarcação, a corveta Capello, integrou a chamada
«esquadrilha do Limpopo». Durante três meses bombardeou
as margens do rio Limpopo. Se os ingleses deram um
ultimato aos portugueses, também nós impusemos um prazo
de rendição aos chefes leais a Gungunhana. Não tendo
acatado essa intimação, as povoações ribeirinhas foram
fustigadas por canhões e metralhadoras. Aos
bombardeamentos seguiram-se operações no terreno. Os
marinheiros desembarcaram e atacaram as aldeias inimigas.
Essa campanha no rio Limpopo produziu a resposta
desejada: aos poucos, os chefes locais foram-se rendendo.
Não havia dia em que não se apresentassem debilitados e
submissos. Alguns tombavam de joelhos e murmuravam em
desespero: «Eis-nos, somos mulheres do rei de Portugal.»
Haveria certamente um erro de tradução. Só tu poderias
desfazer esse equívoco. A verdade é que o próprio
Gungunhana enviou mensageiros propondo condições de
rendição. Afinal, o imperador de Gaza já estava vencido e
tinha assumido essa derrota quando foi preso em Chaimite.
Mouzinho arrombou portas que já estavam abertas.
O que se passa, minha querida, é que a vida é caprichosa e
não nos bastam os factos. As pessoas adoram uma boa
narrativa. Na guerra não se defrontam apenas exércitos.
Confrontam-se histórias. E Mouzinho tem uma história bem
melhor que a de Álvaro Andrea. Não interessa se a versão do
cavaleiro é falsa. A versão dele tem heróis. E esses heróis
somos nós.
O mesmo se passa com o amor: Álvaro Andrea não tem,
como é o meu caso, uma namorada que lhe ilumine a
existência. Ninguém espera por ele no final da viagem.
Talvez tu o possas ajudar. Mais do que idiomas, sabes
traduzir segredos do continente negro. Os brancos não
pretendem apenas perceber outras línguas. Querem deixar de
ter medo.
O teu, sempre teu
Germano de Melo
PS. Encontrarás a minha caligrafia mais desajeitada do que
o habitual. Não imaginas a tempestade que por aqui vai.
Ainda há pouco um relâmpago desfez um coqueiro a poucos
metros da casa. Os frutos incandesceram como pedaços de
carvão.
Em fugazes momentos de claridade vejo mulheres
correndo para o rio. Vão-se desfazendo da roupa e atirando
os panos pelos atalhos. Os seus risos confundem-se com o
rumor das águas enquanto o escuro me volta a roubar a
visão. E ressurgem as mulheres no momento em que
mergulham completamente nuas nas escuras águas. Vou
contemplando tudo isto e recordo que foi num rio que nos
beijámos pela primeira vez.
Não sei o que mais te dizer. O que vale nestas cartas não é
a sua extensão. O que mais conta é que, ao escrevê-las, te
tornas tão presente como as mãos com que escrevo. A tinta
escorre escura e vais emergindo do papel em fugazes
momentos de luz.
Capítulo 5

Andorinhas e crocodilos
A chuva sentiu o cheiro da moça virgem
e com o seu hálito quente foi entrando pela casa.
Penetrou pelas frestas da porta
fazendo-se passar por nevoeiro.
E assim, nesse formato sem forma,
a chuva seduziu a jovem e fez com que ela
sonhasse.
Nos sonhos, a moça viu uma nuvem pairando.
À porta da sua casa se ajoelhou a nuvem,
para que ela subisse para o seu dorso.
E sobre esse leito pernoitaram as duas, a moça e a
chuva.
Foi então que os céus desabaram junto com os
deuses.
E a terra toda se perfumou.
Cheira a chuva, dizem os homens.
E não sabem onde nasce esse perfume.
(Fala de Dabondi)
Passou uma hora desde que saímos do posto de Languene e
a corveta Capello muito pouco avançou rumo à barra do
Limpopo. Certo era o presságio de Dabondi: uma tempestade
desabou sobre nós, convertendo o rio num lençol de vagas e
espuma. De pé na proa do barco, a mão em pala sobre os
olhos, o comandante Álvaro Soares Andrea espreita o
horizonte. Remoinhos de poeira fina fustigam-lhe o rosto
tisnado pelo sol.
Os ombros largos do comandante ocultam o oceano inteiro.
Os olhos são rasgados e o olhar é inquisitivo mas seguro. E
contudo ele hesita, o navegador português: no calor dos
trópicos tudo é aparência. Quantas vezes, na agreste
paisagem africana, surpreendeu o céu a emergir do chão?
Quantas vezes sentiu o sopro do inferno acender vultos de
cinza e fogo?
E agora, de pé na proa do navio, a mão em pala sobre os
olhos, o comandante sente que o barco lhe pede para
interromper a viagem. Concebida na moderna Inglaterra, a
corveta não foi ensinada a enfrentar os monstros que a fazem
escoicear como um potro enlouquecido.
A prudência do comandante tem razões acrescidas: nunca
antes a Marinha de Guerra transportara tão valiosa carga.
Terão estes prisioneiros que chegar, sãos e salvos, ao porto
de Xai-Xai, onde serão transferidos para um navio maior, o
Neves Ferreira. Será este navio que os conduzirá até
Lourenço Marques. Naquela cidade haverá uma cerimónia
pública para apresentação dos troféus de guerra. Por fim, os
negros serão levados para Lisboa. Na capital portuguesa a
sua exibição atingirá o apogeu.
Estou a par do que irá suceder com os prisioneiros. Mas
nada sei do meu destino. Tão-pouco sei de Germano de
Melo. Uma única certeza me move enquanto acaricio a curva
do meu ventre: eu, Imani Nsambe, vou ser mãe. E Germano
é o pai dessa criança. Algures nos reencontraremos e
seremos felizes.
Para trás ficou o embarcadouro de Zimakaze e o posto de
Languene. Os presos abandonaram as suas vidas na outra
margem do rio. Só eu não tenho onde deixar o meu passado.
*
Álvaro Andrea mantém-se na proa como um irreverente
anjo: vigia as imperfeições de Deus. A linha da costa,
impossível de mapear, é a prova de que o universo é apenas
um rascunho.
— E o que tanto vê, meu comandante? — pergunta
Mouzinho.
Andrea demora a responder. Contempla as ondas, que se
erguem cegas para depois desabarem num escuro abismo.
— O que vejo? Não sei. Vejo andorinhas.
— Andorinhas? — espanta-se Mouzinho.
— Dizem que o Gungunhana odeia essas aves tanto
quanto teme o oceano. Já lhe perguntei a razão desse ódio.
— Dou-lhe um conselho, meu comandante: não pergunte
nada a essa gente — adverte Mouzinho. — É um duplo erro.
Primeiro, porque lhe mentirão ao responder. E depois
porque, ao dirigir-se-lhes, você dá-lhes uma importância que
nos pode ser perigosa.
— Uma das rainhas disse-me que as andorinhas não são
aves. São mensageiras. Há que escutar o recado que trazem.
— Tolices, caro Andrea. E mais tolo é quem lhes dá
ouvidos.
*
A jornada até Xai-Xai deveria durar dois dias. Mas a súbita
tempestade impede o progresso da lancha e isso deixa
transtornado Mouzinho de Albuquerque. Para o capitão não
há tempo a perder: a glória espera por ele em Lourenço
Marques. Não seria um estuário revolteado que faria protelar
a celebração dos seus feitos. Habituado a mandar, é-lhe
difícil assumir um tom solícito: Prossiga a viagem,
comandante Andrea, este barco foi feito para galgar
tempestades.
Álvaro Andrea enfrenta o olhar altivo de Mouzinho e
depois replica com azedume:
— No seu cavalo manda o senhor; aqui quem comanda
sou eu.
Mouzinho podia resolver a discussão numa penada,
fazendo uso dos galões. Para além de capitão, ele é agora o
governador do distrito militar de Gaza. Mas prefere regressar
a um tom mais apropriado. Estão ali os presos que se
entreolham, estranhando a desavença entre os chefes
brancos. Encolhido entre a bagagem, Ngungunyane acredita
ser ele o motivo daquela altercação. Os portugueses,
desconfio, discutem a sua sumária execução.
— Sabe por que prendi tão facilmente o chefe dos Vátuas?
— pergunta Mouzinho ao comandante do navio.
No momento da prisão, explica o capitão, os guerreiros de
Ngungunyane imaginaram que o destacamento que tinham
diante de si era uma reduzida amostra de um enorme exército
que os cercava para além do horizonte.
— É por isso que lhe digo, caro Andrea — conclui
Mouzinho —, nunca se fie na linha do horizonte.
*
Há outras razões para acelerar o passo: o barco parado no
meio do estuário pode encorajar uma reviravolta nas
populações ribeirinhas. Essa é a preocupação de Mouzinho.
Os negros, que antes saudaram a detenção de Ngungunyane,
podem agora querer de volta o seu monarca. Contesta o
comandante Andrea: que ele se mantinha fiel aos
compromissos que assumira.
— Que compromissos? — inquire Mouzinho.
Não se esquecesse o capitão Mouzinho de que, muito antes
da captura de Ngungunyane, os chefes locais já haviam
declarado fidelidade a Portugal. Juraram-lha a ele, Álvaro
Andrea. Em contrapartida, ele a todos prometera que, caso o
imperador se entregasse, não haveria retaliação. A família
real seria respeitada e o rei seria tratado com dignidade.
Eram esses os seus compromissos.
— Juraram-lhe os pretos? — indaga Mouzinho, com mal
disfarçada ironia. — Pois eu asseguro-lhe, meu caro Andrea:
já nenhum dos pretos se lembra dessa jura, assim como
nenhum branco chegará a saber dos seus compromissos
éticos.
Calado, Andrea acatou a ofensa. Olhou para mim como se
buscasse tradução para o seu silêncio. Mouzinho falava da
linha do horizonte. Não devia ter escolhido esse assunto. De
tanto oceano cruzarem, os navegantes aprendem a lidar com
brumas e miragens. O comandante Álvaro Andrea era um
perito em horizontes.
*
Com apoio de binóculos, Mouzinho de Albuquerque vai
explorando as margens. Está apreensivo: mesmo que
decidissem prosseguir viagem, a embarcação mover-se-ia
com dificuldade entre os baixios do rio e a roda propulsora
na popa não garantiria, em caso de fuga, o ímpeto veloz do
seu cavalo Mike. Para além de tudo isso, os canhões e as
metralhadoras instalados no tombadilho eram de difícil
manuseio. Mouzinho não quer imaginar uma chuva de
mortíferas setas tombando sobre a embarcação e, mais grave
ainda, trespassando o prisioneiro, que deve chegar vivo e
inteiro a Lisboa. Ironia do destino: o inimigo que apostou
matar é quem agora deve proteger, com risco da própria vida.
— Meu caro Andrea — declara Mouzinho —, você deve
imaginar que me precipito a recolher honrarias em Lourenço
Marques. Fique a saber: tenho pressa em sair destas águas
lamacentas porque nelas acabei de perder um dos meus
homens. Ou já não se recorda?
Era impossível esquecer: a viagem mal tinha começado
quando o soldado João da Purificação, aquele que eu
conhecera como o 222, foi mandado buscar água para
alimentar a caldeira. Ao mergulhar o balde no rio, o jovem
tombou nas águas escuras e, de imediato, foi arrastado por
um gigantesco crocodilo. Do navio inutilmente lançaram-se
boias, soltaram-se desesperados gritos e arremessaram
objetos contra o monstruoso vulto. Esperava-se que o 222 se
debatesse em desespero, braços enlouquecidos esgravatando
a água. Mas não. O soldado aceitou aquele terrível destino
com a quietude de quem regressa a casa. Repetidas vezes o
rosto pálido assomou à superfície, os olhos abertos
contemplando-nos com infantil placidez. Até que o 222, num
vagaroso rodopio, desapareceu nas águas barrentas do
Limpopo. Apesar das repetidas diligências nunca mais se
encontrou o corpo. E nunca mais ninguém dele se lembrou
pelo número. Apenas depois de morto o soldado teve direito
a ter nome. Para mim, esse nome podia ser João ou
Mwanatu. Os dois morreram abraçados pela água, sepultados
no ventre de um rio.
Gorada a esperança de recuperar o corpo, a grande roda do
barco voltou a girar como um carrossel de feira. Com as suas
largas folhas e vistosas flores, os nenúfares giraram pelo ar
como que revolteados por um invisível crocodilo. O barco
era um arado e arrancava as raízes do próprio rio. O ruído
das pás — «feque-feque-feque» — ilustrava de onde veio o
nome que a gente local dera àquele barco: «mafekefeke». Os
nenúfares lembravam a canção com que minha falecida mãe
enchia a casa: «… as flores que crescem na água são feitas
de chuva».
— Suicidou-se — concluiu Mouzinho.
Para nós, os negros, aquela não era uma morte comum. O
traiçoeiro crocodilo era pertença de alguém e cumpria um
encomendado serviço. O que nele assustava não era o que
tinha de fera mas de humano.
Dabondi avançou uns passos para tombar de joelhos à
frente de Mouzinho e, em xizulu, balbuciou uma lengalenga.
Por um instante, não se escutou senão aquela oração
pronunciada numa língua que os brancos não entendiam.
Mouzinho interrompeu a reza. E mandou que a rainha fosse
afastada para o recanto dos presos. Cumprida a ordem, o
português perguntou-me:
— O raio da mulher rezava pelo infeliz soldado ou
agradecia ao crocodilo?
— Esse homem que morreu…
— Aquele soldado não morreu — corrigiu Mouzinho. —
Matou-se.
— Esse soldado lembra-me o meu irmão que foi morto a
tiro por um militar português. — Acabo de falar e logo me
arrependo.
— Como se chamava? — pergunta Mouzinho.
— O meu irmão?
— Não. Como se chamava esse que matou o teu irmão?
— Santiago Mata — respondi. — E fui eu que matei
Santiago.
— Engano teu — declara Mouzinho. — Santiago escolheu
o seu destino.
Capítulo 6

Segunda carta do sargento


As minhas histórias são tão antigas que quem
as escuta desaparece. Ninguém com isso se
assusta, pois, no próximo silêncio, todos
reaparecem. É por isso que vou narrando no
mais suave dos sussurros. Tenho medo de
enrodilhar o Tempo e, assim, impedir o regresso
dos encantados.
(Fala de Dabondi)
Inhambane, 30 de dezembro de 1895
Minha querida
Redigi a carta anterior à luz de relâmpagos. Enquanto
escrevia ocorreu-me um pensamento absurdo: para te
conhecer passei por uma espécie de cegueira. Agora só vejo
pelos teus olhos, só tenho mãos quando sou o teu corpo.
Lembro a tempestuosa noite e já não considero absurdo esse
pensamento. Quem me dera os dias sucedessem com a
brevidade de uma faísca. Não haveria mais espera: no
próximo lampejo estarias de novo nos meus braços. Nestes
trópicos africanos, porém, o tempo é preguiçoso e os dias
arrastam-se como vagarosas serpentes. Sem te poder tocar,
disponho apenas de duas meias mãos e regresso à deficiência
que uma bala por ti disparada recentemente me causou.
Naquele momento, escolheste sacrificar-me a mim para
salvar o teu irmão. Não levo a mal. Pelo contrário, essa
escolha traduz a grandeza da tua alma.
A minha anterior carta já se encontra em poder de Álvaro
Andrea. O portador assegurou que a tinha entregue em mãos
no posto de Languene, dias antes do teu embarque. Não
quero imaginar que o comandante não tivesse imediatamente
procedido à sua entrega. Por que não me respondes, Imani?
Nas cartas de amor a grande felicidade é receber a resposta
antes mesmo de as escrever. Talvez seja por isso que iniciei
esta carta vezes sem conta e, de todas as vezes, a deixei cair
no chão. Nos meus pés descalços se imprimiram as palavras
que nunca te foram enviadas. Não apanho esses rascunhos.
Deixo-os órfãos, sobre a poeira do chão. São um tapete que
teci para o teu regresso. Vou calcando palavras como na
minha terra pisamos as uvas para que nasça o vinho.
Releio o que acabo de escrever e penso: tudo isto é
demasiado piegas, uma patetice disfarçada de poesia. A
verdade é que me viciei nestas fantasias como um bêbado se
agarra a uma garrafa já vazia. Se tudo correr bem, esta carta
não tombará no chão. Chegará, sim, às mãos do comandante
Álvaro Andrea assim que ele desembarcar em Xai-Xai. É
curioso: a primeira carta também lhe foi entregue num cais, o
cais de Zimakaze. Cada uma destas missivas pede cuidados
não de um carteiro mas de um marinheiro.
Já me ocorreu que o comandante se tenha simplesmente
esquecido de entregar a carta. Conhecendo-o como conheço,
encontra-se de tal modo atiçado contra Mouzinho que ficou
cego para outras obrigações. Apesar de tudo entendo que se
alimente desses mesquinhos rancores. O que resta a um
militar depois da guerra? O que sobeja de um tempo que
nunca mais se pode esquecer?
Na verdade, tudo separa estes dois oficiais. Mouzinho é um
homem fiel à monarquia e orgulhoso das longínquas e puras
raízes lusitanas. Álvaro Andrea é um republicano de origem
italiana. O avô era um marinheiro genovês e as suas raízes
estão repartidas entre mar e terra. Mouzinho e Andrea
disputarão a tua cumplicidade numa contenda que só a eles
diz respeito. Mas tu não terás escolha. Andrea é um amigo.
Mouzinho é um aliado. Andrea manda no barco. Mouzinho
manda na viagem.
O mais grave de tudo, minha querida, é que a guerra em
Moçambique não terminou. Por isso te levam como
tradutora. Esperam que faças bem mais que traduzir. Querem
que sejas uma espia ao serviço da coroa portuguesa. E é isso
que me apoquenta. Ao contrabandear valiosos segredos
enfrentarás sérios riscos. Tudo isso não me deixa dormir.
Mas depois, no dia seguinte, volto à razão e considero que
estás fora desses imaginados perigos. Afinal, apenas as mais
altas autoridades portuguesas estão informadas da tua
missão. É muito pouco provável que, entre os portugueses,
alguém descubra a tua verdadeira identidade. Nenhum dos
prisioneiros (com exceção de Godido, o filho do rei) sabe
falar uma palavra de português. E mesmo que Godido te
queira denunciar quem lhe dará qualquer crédito?
Minha querida, esta será a tua estreia no mar. Há um ano
fiz essa viagem no sentido inverso: de Portugal para
Moçambique. Foram dois longos meses dentro de um navio.
Nesse tempo entendi o seguinte: não é apenas o barco que se
movimenta no oceano. São as almas dos passageiros que
transitam e se mesclam para além das raças e das nações.
Sou um privilegiado neste mundo, sou dos poucos que
empreendeu essa outra viagem. E não foi no mar que viajei.
Foi em ti que cruzei fronteiras que me separavam de mim
mesmo. Os meus olhos são azuis para que me atravesses
como se eu fosse água.
Para consolo teu, deves pensar que a tua viagem não
começou agora. Desde criança que estás emigrando de ti
mesma. Pensa nas vantagens desta involuntária jornada:
nessa outra pátria — que é a minha por nascença —
começaremos juntos uma vida nova. Esse é o meu desejo
maior. Não quero, porém, que te aconteça o que vi suceder
com outras mulheres africanas em Portugal. Não admitirei
que sejas humilhada. Serás Imani de Melo. Serás mulher, a
minha mulher.
Germano de Melo
Capítulo 7

As mãos e as mães
A mais grave herança da guerra não são as
feridas nem os escombros. A pior herança são os
vencedores. Acreditam os vencedores que a
vitória os fez donos da terra e acham-se no
direito de ser os seus vitalícios governantes.
(Extrato da carta de Álvaro Andrea)
Entendo agora por que a gente do estuário chama ao
Limpopo de «Nambo wa Nhimba», o rio grávido. Neste
momento o rio encontra-se em trabalho de parto: alargando
as margens, contorcendo-se como uma serpente,
esgadanhando-se para expulsar as suas águas nas águas do
mar. A corveta cavalga sobre as vagas e não há lugar no
convés que não seja varrido pelas ondas. As sete esposas de
Ngungunyane estreitam-se em redor do marido. Se procuram
conforto não o encontrarão: não há criatura neste mundo
mais aterrada que o rei de Gaza. Deleito-me ao ver tão
atemorizado aquele que tanto terror espalhou entre a minha
gente.
A gravidez do rio faz-me lembrar o meu estado: nunca
antes tinha sentido náuseas. Agora, só me apetece fechar os
olhos e adormecer numa espécie de sono bêbado. De longe,
Dabondi esboça um sorriso tímido. É a única das rainhas que
demonstra simpatia por mim. Com passos furtivos, ela vem
sentar-se junto a mim. O rei e as esposas observam-nos com
suspeição. Não viajam num barco, navegam num caixão.
Caminham mortos sobre as águas. Só ela, a bela Dabondi, se
encontra viva. Inclino-me para escutar a sua ciciada voz:
— Quero que me faça um favor, minha irmã. Peça aos
brancos que autorizem o Nkosi a usar a sua coroa.
Esconde entre as mãos o chidlodlo, a coroa de cera escura
que, entre os vanguni, distingue os nobres das restantes
castas. A mulher está convicta: o imperador ficaria aliviado
se a pudesse usar. Vigia se alguém nos escuta. Só depois
volta a falar:
— Sou a única que tenho pressa em sair da minha terra.
Queres saber porquê? — E deixa que se instale um novo
silêncio. Húmidos estão os seus olhos quando anuncia: —
Vou ver o meu filho!
Com dezassete anos, o seu filho João Mangueze foi
mandado estudar em Portugal. «Estudar» talvez seja um
termo forçado. Há dois anos que trabalha para uma
serralharia na outra margem de Lisboa. Os portugueses
ofereceram ao rei de Gaza a possibilidade de os filhos serem
educados por instituições lusitanas: uns na Ilha de
Moçambique, outros em Portugal continental. O único que
foi escolhido para viajar para além dos mares foi Mangueze.
O imperador disse aos portugueses: Vejam como confio em
vocês, entrego-vos o que de mais precioso tenho. As
mulheres uniram-se para contrariar aquela decisão: afinal, os
filhos de uma eram filhos de todas. Partilhavam um mesmo
receio: o mar iria engolir o jovem que os portugueses tinham
batizado de «João». De todas as esposas apenas Dabondi
estava feliz. Escondeu essa alegria e fez de conta que
também se opunha. Há muito que secretamente rezava para
que João Mangueze fosse levado para longe. Melhor seria
perder-se no mar a ser envenenado em disputas pelo poder.
— Não tarda que todos vejam que estás grávida — diz ela
tocando-me no ventre.
— Nota-se?
— Sempre soube. Sou nyamussoro. Lanço os búzios. E
trouxe-os comigo, os tintxolo.
Estica o peito, exibindo um mpacatxu, um colar feito de
pequenos paus entrelaçados num cordão. Não é vaidade. O
adereço prova que foi sonhada pelos deuses. Levanta-se,
entrega-me uma capulana, que faço questão de não aceitar.
Mas ela insiste. Não tarda que anoiteça e comece a fazer frio.
O pano que trago amarrado na cintura não deve ser posto aos
ombros porque, dentro de mim, a criança ficaria sufocada.
Essa capulana deve pertencer a uma outra mulher.
— Vamos viajar juntas — afirma Dabondi. — Serei a
madrinha desse teu filho. Em troca, serás a minha mulher
pequena, a minha escrava lá em Portugal.
— Nunca fui escrava…
— É bom que comeces a ser — declara Dabondi. — Essa
tua criança, já me disseram, não traz a raça certa.
Precisarás de quem te proteja dos brancos e dos pretos.
Deixa que a mão se arredonde sobre a minha barriga e
arrisca adivinhar: há três meses que não salto a Lua. Segundo
a tradição, estou em estado de obscuridade, guardados que
estão os meus sangues lunares. É imperioso, assegura a
rainha, que eu sangre de outra maneira. Propõe-se fazer
pequenas incisões nas pernas para que o sangue não se
acumule dentro do corpo.
— Tenho-te observado, minha filha — admite a rainha. —
Há coisas que deves aprender: por exemplo, ao beberes
deves ajoelhar-te para que a água não tombe em cascata
sobre a cabeça da criança.
Na nossa terra as raparigas aprendem a não ser ninguém.
Dabondi também se anulou. Pensava que, desse modo,
perderia os filhos sem sofrer. Na noite em que o filho partiu
para Portugal a rainha acordou com os dedos grudados por
um óleo espesso. Duvidou se ainda sonhava. Mas deixou que
acontecesse: se fosse sonho que viesse inteiro. No escuro
sentiu o cheiro da ferrugem e percebeu que sangrava
abundantemente. A hemorragia nascia-lhe do ventre: era
João que se revolvia de regresso ao escuro. Aquele filho que
todos diziam que partia para longe, afinal nunca chegara a
nascer. Morrera-lhe ainda nas entranhas. Era um ximuku, um
desses que, como se diz, volta para o outro lado. É o mesmo
nome que se dá aos afogados. Morreram num infinito ventre,
sem anunciar os segredos que traziam.
De madrugada, sem que ninguém na aldeia se apercebesse,
Dabondi esgueirou-se por entre os bosques. Caminhou sem
saber se o chão que pisava era real ou sonhado. Munida de
uma pá, Dabondi abriu uma cova estreita mas funda. Ali
enterrou o seu filho, João Mangueze. Todos diriam depois
que a cova foi fechada vazia. Que não havia senão terra
enterrando terra. Todos jurariam que o jovem não morrera e
que seguira, pelos descaminhos do mar, com destino a
Lisboa.
De nada importavam as falas e juras dos outros. Dabondi
apenas queria certificar-se de que o leite havia mirrado no
seu peito. Assim procedem as mães que concebem crianças
sem vida. Vezes sem conta espremeu os mamilos e nenhuma
gota se formou. Quando se assegurou de que estava mais
seca que uma pedra, voltou a casa e adormeceu.
Na manhã seguinte o imperador passou por ela e não a
reconheceu. Dabondi tinha-se transformado numa árvore. E
assim a rainha resolveu o que não tem solução. Ser mãe é um
verbo que não tem passado. Foi o que disse a rainha.
— O sangue na lâmina que cortou o cordão umbilical
pertence à mãe ou ao filho? — perguntou. E acrescenta,
decidida: — Pois é esse meu sangue que vou reencontrar
nesta viagem.
*
Não se visita um filho, afirma. Regressa-se a ele como se
estivesse sempre por nascer. Fecha os olhos, balança os
ombros e trauteia os versos de uma velha canção: «As mães
metem as mãos no fogo e lançam aos céus as cinzas ainda
ardentes. É o que fazem desde o princípio dos tempos. Assim
se criaram as estrelas. Acontecerá com essas luzes o que
sucedeu com o sol: regressarão. Todas regressarão. E farão
brilhar as mãos das mulheres.»
Interrompo a ladainha com pouca convicção: O seu filho
voltará para os seus braços. Não é o que diz a canção?
Olha-me longamente. Os dedos tricotam um vazio como se,
naquele momento, lesse os ossinhos divinatórios. Há algo
nesta mulher que me faz lembrar a minha falecida mãe.
— Tenho inveja de ti — confessa num tom desfalecido. —
Tenho pena de não saber falar a língua dos brancos.
— Não tenha pena, minha rainha — afirmo. — Assim, não
escuta as ofensas que nos são dirigidas. Não percebe
quantas vezes somos chamados de macacos.
— Os brancos também desconhecem os nomes feios que
lhes chamamos.
E repete, o rosto iluminado: Vou ver o meu filho, é só isso
que importa. Pede-me então que lhe ensine português. Será
nesse idioma que comunicará com o filho.
— João não se esqueceu do seu xizulu — asseguro.
— Não estás a compreender, minha filha. Quero falar com
o meu filho numa língua que nenhum dos meus parentes
possa entender.
*
Para se resguardar dos mosquitos, o capitão Mouzinho de
Albuquerque refugia-se na cabine do piloto. Apoia a mão
direita sobre o leme e assim permanece, como se a
humanidade o estivesse admirando. O comandante Andrea
resmunga entredentes: Ele que não ouse dar-me ordens.
Quem manda em mim é o mar. Mais ninguém.
Dabondi pega-me pela mão e conduz-me até Mouzinho.
Pede-me que a ajude a fazer-se entender. O capitão entreabre
a porta e dispõe-se a escutar. A rainha pede:
— Quando chegar a Portugal quero falar com o vosso
mais velho.
— O mais velho? — indaga Mouzinho.
— O mais velho dos brancos. Quero agradecer terem
recebido o meu filho. Esse rei de Portugal é o novo pai do
meu João. E sou esposa do vosso rei.
O capitão sorri, condescendente. Pede-nos que o deixemos
só. E volta a fechar a porta.
*
Nas margens do Limpopo acendem-se centenas de tímidas
fogueiras. A maior parte delas não pertence às aldeias
ribeirinhas. São fogos ateados por gente que acampou junto
ao rio apenas para testemunhar a deportação do imperador.
De vez em quando escuta-se uma imprecação: Vai-te embora,
abutre, e nunca mais regresses!
Dabondi retirou-se para junto das outras rainhas deixando-
me a sós com Álvaro Andrea. Com o seu casacão escuro o
comandante é um vulto quase indistinto. O lume das
fogueiras reflete-se nos prateados botões da farda.
— A tua rainha diz que fala com os rios — afirma o
português. — Tu que és tradutora, sabes o que dizem esses
fogos na margem do rio?
Não espera resposta. Olho-o da cabeça aos pés. Aquele
fardamento está deslocado no calor dos trópicos. Os botões
metálicos deixam as rainhas fascinadas. Ngungunyane não
dispõe de tantos brilhos, nenhum pedaço de sol lhe pende do
peito. Apenas eu sinto compaixão por este branco coberto de
suor que, não fosse a solenidade do uniforme, pareceria uma
criança perdida no mundo. O casaco encharcado quase lhe
chega aos pés, que, em contraste com o rigor militar, se
encontram indefesos. O português está descalço. As botas
foram para lavar, cobertas que estavam de escura e fedorenta
lama. As rainhas contemplam, divertidas, o desamparado
branco, como se, ao vê-lo descalço, o surpreendessem
inteiramente despido. O tio Mulungo comenta em voz alta: A
zebra tirou os cascos. E todos se riem. Os mais velhos
juravam que os europeus eram unguladas criaturas. Vendo os
portugueses sempre calçados imaginavam que os sapatos
faziam parte do seu corpo.
Limpando o suor que lhe escorre da testa, o português
adverte-me:
— Temos de falar, minha filha. Tenho uma missão a
cumprir que é bem maior do que pilotar uma lancha militar.
Capítulo 8

Antes de haver mar


havia um barco
Atirei uma pedra contra o vento
porque pensei que era um pássaro kuerre-kuerre.
E o vento parou de soprar.
E aos poucos o vento foi-se tornando poeira.
Porque lhe atirei uma pedra
e o vento agitou-se, tornou-se poeira e voou para
longe.
Voltou depois a soprar forte
para se libertar da poeira.
E o ventou transbordou.
O vento que já foi um pássaro.
(Narrativa San recolhida em Cape Town em 1870 e
traduzida numa versão poética pela escritora sul-africana
Antjie Krog)
Álvaro Soares Andrea acredita ter aprendido a navegar
antes de o mar ter nascido. Durante décadas vagueou ao
longo da costa africana e desbravou rios que estão ainda por
nomear. E foram tantas as viagens que não há noites que
bastem para contar as suas aventuras. Daí o seu desdém pelos
caprichos de Mouzinho de Albuquerque.
— Quem sabe do mar sabe dos céus — proclama o
comandante enquanto percorre, para cá e para lá, toda a
extensão da sua corveta.
Está alvoroçado, não pregou olho toda a noite. Foi visitado
por sonhos, estranhos presságios. Sonhou que se tinha
convertido num prisioneiro negro e que viajava no porão do
seu próprio navio. No mesmo sonho, Mouzinho
desamarrava-lhe os pulsos e agitava um caderno em frente do
seu rosto: É isto que andas a escrever contra mim, meu filho
da puta? No cano das botas ia roçando uma nervosa
vergasta. Depois atirava-lhe o caderno para o colo. Queria
que o lesse em voz alta. Andrea segurava as folhas com mãos
trémulas. Dava conta de que aquela era a sua caligrafia. Mas
logo se apercebia de que escrevera tudo aquilo numa língua
que não entendia. Parecia-lhe zulu, não tinha a certeza. E
despertava, estremunhado.
— Quem sabe do mar sabe dos céus — repete Andrea,
como se o mote o ajudasse a permanecer desperto. Volta a
olhar as nuvens escuras por cima do oceano. Sujeita-se,
enfim, ao comando das insondáveis forças da natureza.
Confia mais nessa estrela interior — que alguns designam de
intuição — do que em mapas e bússolas que se mostram
imprestáveis nos mares tropicais.
*
— Avisa o capitão que esse vento tem um nome feio.
De novo Dabondi quer ajudar Andrea a superar a sua
ignorância. E são muitos os desconhecimentos do capitão
português. Desconhece, por exemplo, que o vento já foi um
pássaro. Disso sabemos nós, negros vatxopi. São verdades
que aprendemos desde crianças. O vento foi um pássaro e
fugiu para fora de si mesmo quando os homens o quiseram
capturar. Deixou de ter corpo, fez ninho nas nuvens e viaja
com elas para pousar quando se cansa. É por isso que o vento
canta. Porque já foi um pássaro. Em menina eu dizia que o
vento «assopiava». E o padre português Rudolfo Fernandes
sorria com indulgência. Os idiomas são mulheres: namoram,
engravidam e geram filhos.
— Conheço este vento — garante a rainha. — Chama-se
xidzedze.
É bem diverso da restante ventania, este xidezdze. Uiva
como um bicho e é fabricado por encomenda. Talvez tenha
sido o imperador que o tenha mandado chamar.
— O xidzedze prende quem prendeu o nosso rei —
comenta Dabondi.
Se o vento ordena, o comandante obedece: a corveta
encosta na margem direita e ali, tão perto do revolto oceano,
encontra refúgio seguro. Escuto a âncora descendo sobre o
fundo lodoso. Vamos passar a noite naquele improvisado
resguardo, na esperança de que, de madrugada, prossigamos
viagem rumo ao porto de Xai-Xai.
*
— Escutem, minhas irmãs! — instiga-nos Dabondi. —
Não ouvem vozes, vindas da praia?
A fúria do mar desordena-nos por dentro. Esse tumulto
interior rouba-nos o sono a todos, a presos e a carcereiros.
Este escuro não é filho da noite — é assim que Dabondi
explica a dificuldade em adormecermos. E acrescenta: —
Este escuro vem dos rochedos do Zongoene.
Para além do estuário erguem-se dunas tão elevadas que,
do topo delas, se pode ver o outro lado do oceano. No sopé
dessas dunas anicham-se os rochedos do Zongoene. Não há
em todo o universo rochas tão negras e tão imóveis. A raiz
dessas pedras mora mais fundo que a toca onde o demónio
nasceu.
Desde há séculos que os pescadores ali vêm rezar,
implorando que os navios naufraguem e as ondas tragam
para a costa as riquezas que viajam nos porões. Uma jovem é
amarrada, completamente nua, por entre os rochedos
enquanto o clamor dos mais velhos se impõe sobre o
estrondo das ondas: Vós, os psikwembo, tornai o mar furioso
para que os barcos se afundem e nos cheguem prendas
vindas de longe…
— Escuta bem, minha filha — pergunta-me a rainha —,
não ouves vozes vindas do mar?
Não me apercebo senão do rumor das ondas e do silvo do
vento. Para Dabondi, contudo, não existe nenhuma dúvida:
na praia há gente clamando aos deuses por um naufrágio. E
há mãos sedentas por esventrar um navio. E esse navio pode
ser a lancha em que viajamos.
*
Alvoroçam-me os pressentimentos da rainha. E sou tomada
por uma espécie de delírio: aquele é o fim de tudo, os meus
quinze anos vão-se afundar, inglórios, nas águas turvas do
Limpopo. Vou em busca do comandante Andrea, que
deambula pelo convés com uma lanterna nas mãos. Faz
lembrar um xipoco, um desses fantasmas insones que
assombram as crianças. O português demora a reagir ao meu
pedido:
— Comandante, empreste-me essa lanterna, por favor.
— Para quê?
— Não sei. Apetece-me ver Germano.
— Germano? Por amor de Deus, Imani!
— Posso estar louca, mas deixe-me espreitar…
— Não se demore, não posso ficar sem a lanterna. Há
aqui quem me queira fazer mal.
O gesto trémulo, as mãos quase imateriais, o comandante
entrega-me aquele frágil luzeiro. O vento sacode o facho, que
ilumina mais o meu corpo que o caminho. A cada pincelada
de luz torno-me mais e mais distinta, uma espécie de
vagalume deambulando no escuro. Talvez seja por isso que
os olhos dos marinheiros se concentram, vorazes e
carnívoros, sobre o meu vulto. Procuro Mouzinho para lhe
implorar proteção. Pedir-lhe-ei que me proteja de duas
ganâncias: a dos meus irmãos negros que me querem morta e
a dos brancos que desejam violar-me.
É então que Álvaro emerge das sombras e me arranca a
lanterna das mãos: Pronto, acabou, declara. Tenho eu mais
razões para temer o escuro.
*
É no degredo — e não no trono — que se reconhece o
verdadeiro imperador. Assim declarava o meu pai. E
recomendava: olhem-se as omoplatas do rei para avaliar da
vitalidade do seu reino. Olho para Ngungunyane e não vejo
corpo. Reconheço apenas a curva da subjugação. Em
contraste, a nobreza permanece intacta em Nwamatibjane
Zixaxa.
— Por que não se sentam todos juntos? — interroga-se
Andrea apontando para prisioneiros.
— É melhor assim, meu comandante — esclareço. — É
grande o rancor entre os dois chefes…
Com um subtil aceno, o rebelde Zixaxa aponta para as
dunas de Zongoene. Confirma o que já tinha sido anunciado
por Dabondi: algures, para além do estuário, os espíritos
estavam a ser acordados. Pediam-lhes que fabricassem
naufrágios.
— O que é que ele diz? — pergunta o comandante.
— Diz-lhe que falo das estrelas — responde Zixaxa. E
prossegue lentamente, dando tempo para que eu possa
traduzir: — As estrelas são esposas da Lua. É isso que elas
são para nós, os da nossa raça. São demasiadas as esposas,
é por isso que emagrecem. A Lua não lhes dá de comer.
Um ténue sorriso desenha-se no rosto de Álvaro Andrea.
Apoia-se na balaustrada, sacode a cabeça e murmura:
— Esqueci-me de que esta é a última noite do ano.
Não me dou ao trabalho de traduzir para Zixaxa. O seu
calendário é outro, os anos são nomeados em função das
secas, das guerras e da fome. O ano que agora começa não
terá nunca nome algum.
Andar descalço é hábito que o português já perdeu e, por
isso, se vai retirando com passos trôpegos. Quando o seu
vulto se torna indistinto, pergunto a Zixaxa:
— Não conheço essa lenda das estrelas…
— Inventei tudo isso, agora. Os brancos gostam de
histórias. Às vezes tenho pena deles. Trato-os com
deferência, chamando-os de «patrões», e eles acreditam que
sou sincero.
*
O barco finalmente dorme quando nos chega um sinal da
margem. Um homem acena uma tocha e depois aos berros se
anuncia em xishangana. É um induna, um representante da
corte dos vanguni. Traz uma mensagem da rainha
Impebekezane, a mãe de Ngungunyane. Deve entregar esse
recado pessoalmente ao destronado rei. Mouzinho hesita em
autorizar a visita. Pede conselho a Álvaro Andrea. Surpreso
por ser consultado, o comandante declara: O barco é meu, o
prisioneiro é seu.
— A rainha Impebekezane sempre nos ajudou — diz
Mouzinho. — O preto que suba a bordo. — E dirige-se a
mim: — E tu, Imani, já sabes: depois contas-me o que se
passou nessa conversa.
Mandam um bote buscar o induna enquanto se escutam,
vindas das margens, vozes em xishangana: vai-te embora,
tirano gordo, que nos roubaste o gado e as galinhas! E
agora para onde te levam? Acompanho o emissário até aos
prisioneiros vanguni. Junto ao imperador o mensageiro bate
palmas e ajoelha-se para fazer a saudação: Bayete! No início,
Ngungunyane não reconhece o visitante. Ergue-se com
esforço, a manta tombando sobre as costas, deixando a
descoberto os tornozelos. Espreita desconfiadamente o rosto
do intruso. O emissário identifica-se como sendo adjunto do
general Maguiguane e expressa-se em xizulu:
— Não faça caso das ofensas desta gente do rio. Não
tarda que voltem a saudá-lo como o Nkosi de todos os povos
de Gaza
— O que queres? — indaga Ngungunyane.
— Trago-lhe notícias, meu rei. O comandante das suas
ihimpi, o general Maguiguane, está a organizar um
movimento denominado «Ukubuya Nkosi» para exigir o seu
regresso a Gaza.
— E que mais? Vá, fala. Conheço bem as vossas
maneiras: começam pelas boas notícias para fazer demorar
o anúncio das desgraças…
— Venho avisá-lo, meu rei, de que há acusações graves
contra a sua mãe, a rainha Impebekezane. E é por causa
dela, dizem, que não chove há mais de dois anos e que o
gado morre de uma praga desconhecida. Diga-me o que
quer que façamos para salvar a sua mãe.
— Não se preocupe, Nkosi Kakhulo — responde o tio
Mulungo. O velho conselheiro tem um ideia clara sobre o
futuro. Os brancos, diz ele, são quem agora nos governa. É
só dar um tempo. Em breve as mesmas culpas que hoje
lançam sobre a rainha-mãe serão dirigidas contra os novos
governantes.
— E que mais dizem? — insiste o rei.
Olhos postos no chão, o mensageiro hesita. E quando
retoma a fala, vai passando da reverência ao temor:
— Os seus tios querem matar Impebekezane. Acusam-na
da mais grave traição: entregou o seu próprio filho aos
portugueses.
Ngungunyane escuta como se tudo aquilo fosse dito num
idioma desconhecido. O emissário aguarda uns longos
minutos na esperança de que o interlocutor abandone aquela
letargia. E como nada sucede interpela silenciosamente o tio
Mulungo. Mas todos sabem: há silêncios que têm dono. Por
isso, o velho conselheiro faz de conta que não existe. E todos
esperam que o imperador, o dono de todos os silêncios,
retome a palavra:
— Para eu estar aqui, cativo dos brancos, houve
certamente quem me traísse — declara Ngungunyane. —
Procurem os culpados e façam justiça. Comecem dentro da
família.
O emissário despede-se com excessivas vénias. Vai
recuando sem nunca virar costas e dirige-se pela última vez
ao rei:
— Quer que faça chegar uma mensagem à sua mãe ou a
Maguiguane?
— Diz-lhes que mandem vir o Dokotela — responde o
imperador.
Refere-se ao médico suíço, George Liengme, que lhe
prestava assistência em Mandlhakazi. Sempre de cabeça
baixa, o emissário esclarece:
— Os portugueses expulsaram os suíços. O Dokotela teve
que sair para o Transvaal.
O induna regressa à canoa que o trouxe, escutam-se os
remos chapinhando as águas. Desaparece no escuro o último
dos mensageiros do rei. Nunca mais Ngungunyane receberá
visitas do seu reino. O exílio começou antes mesmo de
abandonar a sua terra natal.
No convés, Mouzinho de Albuquerque espera pelo meu
relatório. Subo as escadas lembrando as palavras do meu pai:
em tempos de guerra todo o tradutor é um delator.
*
É madrugada quando o comandante Álvaro Andrea me
oferece um prato de sopa. Recuso com delicadeza e ele
serve-se sem cerimónia da refeição que me era destinada.
Limpa os lábios nas costas da mão e quase não percebo
quando me fala:
— Falaste em Germano.
— É o meu namorado.
— Sei quem é. Tenho comigo uma carta dele para ti.
— E por que só agora é que me diz isso?
— Esqueci-me. Sou um homem solitário.
— Não entendo, comandante.
— Os solitários não dão conta de que se esquecem. Pode
ser que me lembre. Pode ser que me ajudes a lembrar.
Luzem os botões prateados do uniforme mas brilham mais
os olhos que fixa em mim.
— Estou grávida, meu comandante — declaro.
Surpreendo-me com a minha própria fala. O que acabo de
proferir não é uma defesa. É uma acusação. Por um momento
o comandante baixa o rosto, vencido pelo pudor. Mas logo se
recompõe e regressa todo ele homem, todo ele branco e
militar:
— Estás grávida mas não estás amnésica. Há coisas que
me vais contar. Coisas que viste durante a captura do
Gungunhana.
O comandante tem na sua posse a carta de Germano. O
meu primeiro ímpeto é reagir com raiva. O melhor, porém,
será proceder como sempre fiz: adiar a disputa, fingindo
obediência. Aceito que falarei, mas já o vou prevenindo: as
nossas conversas criarão suspeitas entre os pretos e entre os
brancos. Melhor seria que eu escrevesse essas confissões.
Bastaria que me autorizasse a usar a arrecadação e me desse
caneta e papel. Não sei, pondera o comandante. As pessoas
mentem, diz ele, a maior parte das vezes sem sequer o saber.
Quando escrevem, elas mentem ainda mais. Depois, cede. O
assunto da verdade não tem solução que seja verdadeira. No
meu caso, a mentira é quase sempre apenas um erro de
tradução.
Capítulo 9

A caligrafia do rei analfabeto


Os cavalos são o que restou dos antigos
dragões.
(Nwamatibjane Zixaxa)
É fim de tarde, estou sentada na arrecadação do barco. Um
caderno, uma caneta e um tinteiro esperam sobre uma mesa.
O comandante fechou a porta do compartimento, acreditando
que, naquele recinto, criarei provas que incriminem
Mouzinho de Albuquerque. Não chego a iniciar o
depoimento porque sou surpreendida pela visita de
Ngungunyane.
— Odeio os teus sapatos — começa por dizer ao entrar no
pequeno cubículo. — Odeio as tuas maneiras e não suporto
o modo como me escapas. Mas podes ficar tranquila —
acrescenta —, não te venho fazer mal.
Depois, arranca-me o caderno das mãos. Ergue-o sobre a
lamparina, como se lhe tomasse o peso. Por que escreves
tanto?, pergunta. E comenta, estreitando os olhos: Nem os
brancos escrevem tanto. Nunca vi nenhum deles escrevendo
depois do pôr-do-sol.
Estou de olhos no chão e vejo os seus pés descalços. São
raízes de uma árvore morta. Sinto o seu hálito quente quando
ordena que lance ao mar o caderno e todos os outros papéis.
— Que papéis? — indago num fio de voz.
Rebusca a minha sacola e dela retira as cartas que nunca
cheguei a enviar a Germano. Nem eu imaginava que fossem
tantas. O imperador precisa das duas mãos para recolher toda
aquela carga. Dá uns passos e deixa as folhas cair. Faz de
propósito. Pretende que me debruce para recolher o que se
espalhou pelo chão. Tira proveito da minha fragilidade. As
mãos sapudas tocam-me as coxas, percorrem-me as nádegas
e, depois de um suspiro fundo, moldam-me a cintura.
Deixo que abuse de mim. Quero que se distraia e
permaneça longe do lugar onde escondo os meus outros
escritos. Ele que fique com as cartas mas não toque nos
cadernos em que vou relatando esta atribulada viagem.
Apressadamente escolho as cartas ainda mal esboçadas e
deposito-as nos seus braços. O imperador sacode a cabeça e
murmura: Vais ser minha, a minha oitava esposa, a minha
nova feiticeira!
Dirige-se à escotilha oscilando o corpo como se embalasse
uma criança. Num gesto largo, atira as cartas pela borda fora.
Os papéis voam por um momento, rodopiando como gaivotas
cegas. Quando tombam sobre as ondas, o mar inteiro muda
de cor. Fica negro como a noite. Ngungunyane não dá conta
dessa mudança. O oceano sempre foi para ele um manto
escuro.
— Vim aqui — diz ele — não foi por causa dos teus
papéis. Foi por causa da minha carta.
— Que carta, Nkosi?
— Essa que te vou ditar. Uma carta para o rei de
Portugal.
Inspeciona a folha branca que ele mesmo foi separando,
apalpa o bico da caneta, cheira o tinteiro. E diz-me que não
me poupe em adornos e floreados. Quero que uses uma
linguagem própria de reis, diz ele. Não somos nós,
soberanos das nações, quem manda nas palavras?
Pausadamente, começa a ditar. Mantém os olhos fechados
como fazem os que cantam com a alma à flor da pele.
*
Meu irmão, D. Carlos,
Rei de Portugal
Sou eu o Mudungazi Ngungunyane — filho de Muzila,
que, por sua vez, é filho de Manukusse, o Sochangane. Sou
eu que lhe escrevo para agradecer a sua grande bondade.
Espalhou-se por aí o boato de que vou preso. Dizem que sigo
neste barco como um bicho, vencido e humilhado. Ambos
sabemos que não é verdade. Viajo a convite de Vossa
Excelência. Tudo isto — a minha captura, a minha prisão, a
minha viagem — é uma encenação. Tudo isto não passa de
uma farsa para ser consumida pelos governos da Europa.
Não me algemaram os pulsos, não me amarraram os braços,
nem me ataram os pés. Estou imobilizado porque aceitei
colaborar nesta nossa impostura. Vou a caminho de Lisboa
para conversar pessoalmente consigo sobre os nossos
assuntos. O privilégio deste convite causaria desconfiança
aos reis europeus e inveja aos reis africanos.
Houve vezes em que, confesso, fraquejei. Duvidei de si,
temi pela minha vida. Foi culpa da bebida, reconheço. E há
um temor permanente que me persegue: o receio de não
regressar. É assim que pensam os zulus: quem atravessa o
mar não pode mais voltar. Não é um pressentimento. É essa
experiência de todos os africanos, sejam escravos, sejam
donos de escravos. Nenhum nunca voltou. Quem entra no
mar perde o seu nome. E só se lembra do que foi antes de ter
nascido. É assim que dizemos na nossa terra.
Continuarei governando o meu povo de longe como fazem
os reis já falecidos. Não tenho medo da distância. Temo, sim,
a deslealdade. Levo comigo as minhas sete mulheres, cada
uma delas com a sua sombra. De entre elas Dabondi é aquela
que sonha. Cada sonho dela é um conselheiro que me avisa
de tramas e traições. Vão sacrificar a minha mãe,
Impebekezane, acusando-a de ser fiel aos portugueses. O
mais grave é que essa acusação é verdadeira. A rainha
Impebekezane confiou na palavra de Portugal. Quero-lhe
pedir, meu irmão, que a proteja como foi prometido. Dizem
que Maguiguane anunciou um movimento de revolta para
forçar o meu regresso a Moçambique. Não se deixe levar,
meu caro Nkosi. Nem eu próprio acredito nos motivos dele.
Por que razão esse Maguiguane, com as suas artes militares,
não tentou uma emboscada para me libertar? Por que me
deixou atravessar lugares onde era tão fácil atacar de
surpresa? Em vez de lutar pelo meu regresso, Maguiguane
devia ter impedido a minha saída.
Nada disso me surpreende, meu rei. Esse meu general tem
uma história. Ele vem dos vatsonga, a tribo dos
conquistados. Obriguei Maguiguane a ajoelhar-se, sentei-me
sobre as suas costas enquanto me davam banho. Esse homem
vai querer sentar-se sobre as costas de alguém. E agora
comanda um exército que só existe nos seus sonhos.
Maguiguane faz de conta que é um general. Eu finjo que sou
um prisioneiro. E o meu rei simula que é o meu carcereiro. É
por isso que eu digo: as batalhas ganham-se com armas. Mas
as guerras ganham-se com mentiras.
De tudo isto lhe falo, meu rei, porque mandam as boas
maneiras que se comece um assunto com outro assunto. A
razão principal desta carta é um pedido urgente. O quarto que
me foi atribuído não me trouxe reclusão. Trouxe-me
proteção. Agora estou protegido dos portugueses que me
guardam rancor. O que lhe peço é que Zixaxa não continue
na minha cela. É dele que mais preciso de ser protegido. Este
Nwamatibjane Zixaxa não é um munguni, não faz parte da
nobreza de Gaza. É um pequeno induna do Sul de
Moçambique, esses a quem vocês chamam de «régulo». Se
há alguém que Sua Excelência deve odiar é esse rebelde que
nem a mim obedece. Vencendo-me, o senhor venceu todos os
que por mim foram vencidos.
Quero que saiba o seguinte: o assalto a Lourenço Marques
não teve, como lhe contaram, a minha cumplicidade. Zixaxa
agiu por sua conta e risco. E agora ele acusa-me de traição,
culpa-me por o ter entregue às forças lusitanas. Por isso lhe
imploro: não me obrigue a dormir com quem me quer matar.
Se é meu destino deixar de viver, prefiro ser morto pelos
portugueses. Fuzile-me, senhor Rei.
Um último desejo: por favor, transmita uma mensagem ao
capitão Mouzinho de Albuquerque. Diga-lhe que não o
recordo com raiva. O capitão prendeu-me não como um
inimigo mas como um companheiro de armas que se
insubordinou. Sou um sargento do mesmo exército. Viajei
com Mouzinho durante vários dias. E constatei que há uma
moléstia que nos irmana: os joelhos. Mouzinho caiu de um
cavalo no exercício das suas funções. O meu sofrimento não
tem a mesma glória. Sofro apenas do meu próprio peso.
Essas dores são antigas mas foram avivadas depois da minha
captura. Durante dias consecutivos fui agredido a socos e
pontapés. Sei que não foram instruções suas. Mas continuo
recebendo pancada, muita pancada. No início pensei que se
tratasse de pancadaria a fingir. Mas as pauladas eram
demasiado dolorosas para serem falsas. No esconderijo de
Chaimite bateram-me, primeiro para que me sentasse e
voltaram a bater-me para que me levantasse. No caminho
para o rio desancaram-me porque a minha marcha era lenta.
Já no barco, soldados quiseram arrancar-me à força o segredo
de um tesouro escondido. E foi Mouzinho que, furioso, fez
parar aquela pancadaria. Foi ele que gritou: Ninguém toca no
Ngungunyane! Este africano é um convidado do Rei de
Portugal! Esse Mouzinho, imagino eu, deve suspeitar do
nosso segredo. Tenha-o por perto, meu irmão. Não se pode
virar costas a quem nos conhece as feridas.
Falta pouco para conversarmos de viva voz. Não me
deixaram trazer presentes para lhe ofertar. Já tinha destinado
três cabeças de gado para me acompanhar nesta longa
jornada. Não foi possível. Fica para o nosso próximo
encontro em Moçambique, altura em que, para além dos
bois, Vossa Excelência ficará com os pastos e os rios que
fazem engordar as manadas.
Saúdo Vossa Excelência à nossa maneira: Bayete, Rei D.
Carlos!
Mudungazi Ngungunyane
*
Coloco ponto final na carta com um malicioso sorriso. De
que te ris?, pergunta Ngungunyane. Só pode ser ironia, meu
rei, arrisco dizer. Como assim?, pergunta ele. O senhor não
pode ter sido sincero, declaro. Escreveu tudo como lhe
disse?, pergunta o rei como se não me tivesse ouvido. Aceno
que sim. É a vez de ele sorrir, com malícia. Espeta o dedo,
em aviso: Mandarei Dabondi confirmar se foste fiel ao que
ditei. Contesto, a medo: Dabondi não sabe… Não me deixa
terminar: Dabondi sabe ler. Ainda tu estás a pensar no que
vais dizer e já ela está a ler as tuas palavras.
Ngungunyane toma a folha nas mãos e percorre com o
indicador o contorno das letras. É o seu modo de medir a
minha obediência. Queres saber por que escrevo ao rei de
Portugal?, pergunta. Em Chaimite, diz ele, os caçadores
penduram as caveiras dos leões na árvore sagrada. Todos
pensam que é uma vaidosa exibição. Mas é apenas a
humildade que comanda os caçadores: veneram os vencidos,
pedem perdão aos deuses dos bichos.
— Entendes por que escrevo esta carta? — pergunta
Ngungunyane.
Capítulo 10

Um lenço branco
iluminando o passado
«O cruzar do oceano, na ida ou na volta, devia
ser para os olhos dos africanos como o transpor
de um rio.»
(Alberto da Costa e Silva, in
Um Rio Chamado Atlântico)
Os navios são como os búzios: neles se escuta a voz do
mar. O Neves Ferreira é um búzio gigante, uma concha
metálica tombada de costas. As chaminés são três bocas que
engolem as nuvens e depois as regurgitam, sujas e pesadas.
Este navio que nos espera no porto de Xai-Xai provoca tal
espanto entre os prisioneiros que o oceano se torna invisível.
Sentado sobre fardos de algodão, o rei de Gaza quer saber
quanto tempo demorará a viagem até Lisboa. Transmito-lhe o
que me disseram: até Lourenço Marques são dois dias.
Depois, são mais dois meses até chegar à capital portuguesa.
Ao traduzir para xizulu converto os meses em luas. Pensei
que Ngungunyane reagisse com tristeza. Sucede o oposto.
Um sorriso lhe ilumina o rosto: Duas luas?, pergunta,
espantado. Os portugueses percorreram tão longo caminho
apenas para lhe dar luta? E reergue os ombros, orgulhoso.
Por breves segundos volta a ser imperador.
*
Durante horas os cativos aguardam no cais pela ordem de
embarque. Viajarão no porão. Os portugueses começam por
movimentar as mercadorias. Seguir-se-á a outra carga, essa
que fala, chora e reza.
Grossas correntes amarram o navio Neves Ferreira ao
porto. Está atado pelo nariz como se faz aos bois. Partilha a
agrilhoada condição do imperador, cujos pulsos foram
temporariamente presos por uma corda de sisal.
O pasmo dos meus irmãos negros enche de vaidade o
comandante Andrea. De modo oposto se manifesta
Mouzinho. Quer achincalhar a Marinha de Guerra e os
marinheiros. Os barcos, diz ele, só são bonitos em terra. E
virados ao contrário.
Os marinheiros riem alto. Mouzinho vai mais longe no
apoucar da Marinha. É preciso revirar um barco, diz ele, para
entender a sua verdadeira natureza. O nome «quilha» é
partilhado por barcos e aves. Um navio é mais pássaro do
que peixe. É o que diz Mouzinho.
A rainha Muzamussi receia que o navio possa avançar terra
adentro. Implora aos gritos que não desamarrem o monstro.
Ngungunyane ordena que a mulher se cale. Dali em diante
nenhuma das esposas volta a falar sem que seja autorizada.
Dabondi sorri com desdém: o imperador reconhece, enfim, a
fragilidade do seu império e a precariedade do seu harém.
Com sangue tomou posse da terra. Com sémen se apropriou
das mulheres. Todo esse comando agora lhe escapa. É por
isso que grita com as esposas. A única autoridade que lhe
resta é ser um homem entre as mulheres.
*
No cais de Xai-Xai, o capitão Mouzinho de Albuquerque
vigia o embarque do seu precioso cavalo. Não é um simples
animal que ali vai, não é uma mera carga que é manuseada.
O cavalo compõe o retrato que o capitão faz de si mesmo. É
assim que se sonha, reedição do centauro, cavaleiro vitalício.
Felizmente, o garboso militar não percebe o comentário de
Zixaxa: Ainda um dia havemos de comer esse cavalo.
É a vez de Mouzinho sorrir sem entender porquê. Conserva
esse sorriso enquanto percorre a escada que conduz ao
interior do Neves Ferreira. No tombadilho recebe
cumprimentos do comandante, o tenente Jaime Leote do
Rego. O patrão deste navio é um homem bem distinto de
Álvaro Andrea e disso Mouzinho dá graças a Deus. Para ele
a troca de comandantes é um alívio. Para mim é um
pesadelo. Livre das suas funções, Álvaro Andrea fica mais
disponível para me procurar. Não é a sua companhia que me
desagrada. É a minha falta de coragem para lhe exigir o que
me deve: a carta de Germano.
*
O navio faz-se ao mar e, por um momento, parece-me que
quem se movimenta é o continente. Não será num barco que
viajaremos. Navegaremos como sempre se viaja: através de
lembranças e sonhos. Mas eu já não lembro nem sonho.
Tenho quinze anos. Vou para longe de mim, sem bagagem e
sem documentos. Mas levo comigo o meu filho, o princípio
da minha eternidade.
A meio da noite, Dabondi e eu somos chamadas ao
camarote do comandante Jaime Leote do Rego. À entrada,
Dabondi toma nas suas mãos os braços do militar. É raro
uma das nossas mulheres dar-se a esses avanços. A rainha,
porém, simpatizou com o branco de barba grisalha. A afeição
é recíproca: o tenente fita a rainha como se lhe estudasse o
rosto. Perfeito, é ela quem eu queria, confirma ele com
entusiasmo.
Ao fundo do camarote está uma tela suportada por um
cavalete. Sobre uma cadeira estão pousados dois pincéis e
uma paleta onde se combinam diferentes tons de azul. Quero
pintar o mar, confessa. Foi por isso que exigiu a presença de
Dabondi. No cais, diz ele, escutei esta mulher. Diz-lhe que
volte a cantar!
— Não sou eu que canto — argumenta Dabondi. Outros
usam a minha voz.
— Explica a essa mulher que não estou habituado a pedir.
A rainha sorri e responde: Pergunta a esse homem se
recebe ordens para sonhar.
Com a ponta dos dedos Dabondi afaga a tela com
delicadeza. Acredita que está perante um tear e que o
comandante é um tecelão. Com gestos redondos, como se
falasse com os braços, o português apresenta a obra por
começar: O mar não se vê: nele nos vemos nós. Depois
acrescenta: Eu vi o oceano quando escutei esta mulher a
cantar no cais.
Oferece um cálice de aguardente à rainha. Dabondi vaza o
cálice de um trago. Acena o copo vazio reclamando por uma
segunda dose. Se me escutou cantando, este branco não pode
ser um inimigo, diz ela. E acrescenta: A bebida é boa, vou
fazer-lhe a vontade. Depois a rainha solta a voz. O
comandante cerra as pálpebras e, lentamente, as águas do
mar inundam o seu camarote.
Com o braço direito soerguido, os passos afinados com a
canção da rainha, o comandante Jaime Leote do Rego avança
na minha direção e pergunta:
— Já alguma vez dançaste com um branco?
*
É manhã do dia quatro de janeiro de mil oitocentos e
noventa e seis e o Neves Ferreira lança âncora na baía do
Espírito Santo. À nossa frente exibe-se a mesma cidade que,
há exatamente um ano, Zixaxa teve a ousadia de assaltar. Os
brancos chamam-na de Lourenço Marques, nós a batizámos
de Xilunguíne. Lembro-me de como a italiana Bianca
Vanzini se queixava da pequenez daquele lugar. Mas para
nós, que nunca vimos uma cidade, este amontoado de ruas,
casas e luzes é um motivo de deslumbramento. É por isso
que lhe chamamos Xilunguíne, o lugar onde se vive e se fala
como os brancos.
Ingenuamente, acreditei estar próximo o momento do
desembarque. Mas logo entendi: todos os tripulantes são
retirados em barcaças exceto nós, os negros. Ancorado a
meio da baía, o navio é uma prisão. Os portugueses
necessitam de tempo: fazem-se na cidade os preparativos da
grande festa. Virão jornalistas, diplomatas e dignitários
estrangeiros. Juntar-se-ão os governantes, os comerciantes e
os chefes religiosos. Reunir-se-á, enfim, a população das
regiões vizinhas para ver o Leão de Gaza a desfilar derrotado
e humilhado, os pés lambendo a lama das ruas de Lourenço
Marques.
Álvaro Andrea recusa desembarcar. Argumenta que,
permanecendo a bordo, garantirá a segurança dos
prisioneiros. Todos sabemos que o português tem outras
razões. Aquela é a sua última oportunidade para avançar no
relatório contra Mouzinho. Naquele sonolento navio
encontram-se, à sua inteira mercê, as testemunhas que anseia
interrogar.
*
Na manhã seguinte recebemos visitas a bordo. Vestido à
civil, Mouzinho de Albuquerque chega acompanhado por
uma dezena de diplomatas e jornalistas. Com ele vem
também um negro magro e alto, envergando sapatos e roupas
europeias. Mouzinho dirige-se a mim e pergunta:
— Reconheces-me sem farda, rapariga? Venho vestido à
alentejana, de jaqueta, cinta e chapéu de aba larga.
Ordena que convoquem os presos e depois apresenta-nos o
negro que o acompanha:
— Este é Zeca Primoroso, o tradutor, o «língua» como nós
chamamos. Vem para ajudar nas entrevistas ao
Gungunhana. — E acrescenta, dirigindo-se a mim: — Estás
dispensada, rapariga.
Tiram-se fotografias do rei ladeado por duas rainhas.
Dabondi sorri, satisfeita por ser uma das escolhidas. Saciada
a imprensa, Mouzinho vira-se de lado e desafia o tradutor:
Pergunta ao Gungunhana se reconhece quem o prendeu em
Chaimite. Ergue-se pesadamente o Ngungunyane e aponta
para Mouzinho: Foi este!
— Estão a ver? — pergunta, ufano, o capitão. — Mesmo
disfarçado fui imediatamente reconhecido. Escrevam isso
para que se calem os incrédulos.
Enquanto decorrem as entrevistas Mouzinho chama-me à
parte para explicar o motivo de ter recorrido a outro tradutor.
Não se tratava de uma questão pessoal. É o mesmo problema
com todos os espiões, explica o capitão. Alguém, depois, os
deve espiar a eles. Pagos para trair um, acabam por trair
todos.
No meu caso, essa suspeição era ainda mais grave. Eu era
negra, era mulher, abandonara a minha família e as minhas
crenças. Mais grave ainda: escolhera um branco como
amante. Como podia inspirar confiança? Traíste os teus, mais
facilmente nos trairás a nós. Podes ser quase branca, mas há
algo que não muda: a família de um preto são todos os
pretos do mundo.
A comitiva despede-se. A mesma barcaça que os trouxe
leva-os de volta à cidade. Regressam todos, exceto Zeca
Primoroso.
*
O novo tradutor é um daqueles que designamos de
muzwalana, isto é, um negro que sabe ler e escrever. Assim
que os brancos se retiram, Primoroso pergunta-me:
— Acabaram de prender o missionário Roberto Machava.
E vários outros foram presos. Também és da igreja?
— Sou de outra igreja — respondo rispidamente.
— E qual é essa igreja?
— Não conheces. Não tem nome em português.
Os prisioneiros assistem estupefactos ao nosso diálogo. É a
primeira vez que testemunham dois negros comunicando em
português. Zixaxa sacode a cabeça e sorri. Um sorriso é, por
vezes, a melhor acusação.
*
Álvaro Andrea chama Zeca Primoroso à torre de comando.
Vemo-lo recebendo instruções e acenando a cabeça com um
misto de presunção e deferência. Depois o tradutor regressa
ao convés e desfila empertigado perante os espantados
prisioneiros. Para além da roupa europeia, usa sapatos
engraxados a rigor, cabelo repuxado ao longo de uma larga
risca que atravessa o crânio de uma ponta à outra. Em xizulu
vai enumerando as qualidades que, segundo ele, o tornam
distinto dos da sua raça:
— Dizem que em Moçambique há reis negros e guerreiros
vitoriosos. Nada dessas balelas contam, pois obedeço a um
rei distante, o rei D. Carlos. Além disso, há muito que uso
sapatos e peúgas, durmo numa cama e as refeições são-me
servidas numa mesa. Entendem?
O rebelde Zixaxa agita os braços numa excessiva vénia e
proclama em falsete:
— Si ya vuma!
É uma aprovação cínica, um irónico «amen». Zeca
Primoroso reage contrariado: que nunca mais acolhessem as
suas palavras com exclamações indígenas. Podiam concordar
com ele, aliás, deviam concordar, mas não esquecessem de
que estavam perante uma autoridade lusitana. E foi avisando
que o capitão Álvaro Andrea logo viria interrogar os presos.
Temos duas orelhas e uma boca, declarou Zeca. Lembrem-se,
meus conterrâneos: as orelhas são nossas, mas a boca não
nos pertence, acrescentou.
O capitão foi descendo até ao convés onde, em silêncio, se
perfilam os presos. Álvaro Andrea manda que me junte aos
prisioneiros. Já não és mais tradutora, declara ao passar por
mim
Ngungunyane é o primeiro a ser interrogado. Pretende o
português que o rei de Gaza confesse os maus tratos a que
fora sujeito. De pouco vale que a pergunta seja refeita em
xizulu. O rei permanece calado. Repetem-se as indagações
em variados formatos. E o rei sem abrir a boca. O português
passa de inquiridor a delator. É por culpa desse que ele
protegia com o seu silêncio que os seus conselheiros
suspeitavam da sua própria mãe. E prossegue Andrea: sabia
Ngungunyane onde estava a taça de prata que lhe oferecera a
rainha dos ingleses? Não adivinhava? Sabia ele quem, depois
da sua prisão, deu ordem para que matassem todo o seu
gado?
Embatucado se mantém o rei de Gaza. Álvaro Andrea
parece desistir. Debruça-se sobre Ngungunyane para lhe
soprar ao ouvido:
— O Mouzinho deve estar-te grato. Graças a ti ele se
tornou um herói, graças a ti recebeu elogios do rei D.
Carlos. Graças a ti negros e brancos o aplaudirão, aos
milhares, nas ruas de Lourenço Marques. Se não fosses tu,
esse capitão não passava de um ilustre desconhecido.
Zeca Primoroso esmera-se na tradução mas é
inesperadamente interrompido por vozes que chegam do mar.
Dezenas de embarcações cercam, no escuro, o nosso barco.
O português pede a Primoroso que lhe explique o que se
passa. De olhos fechados o intérprete recita de cor o
cantochão:
«É este o jovem, é o nosso jovem que eles querem matar.
É ele o glorioso, é o nosso motivo de glória.
Lutou contra os brancos, fugiu para Cossine.
Agora foi preso. E levam-no para longe…»
Primoroso pigarreia, atrapalhado:
— É esta a lengalenga que eles entoam na língua deles.
— É de Ngungunyane que falam? — indaga o comandante.
— Não, Excelência. Os homens cantam em louvor de
Zixaxa.
O comandante corre ao longo da balaustrada, tentando
discernir de onde procede aquela exaltação. A noite está
escura, não se vê um palmo à frente do nariz. Alvoroçado,
Andrea ordena que os sentinelas desfechem uns tiros mesmo
sem direção definida.
— Disparem! Disparem sobre as malditas canoas! —
comanda Andrea.
— Mas quais canoas? — perguntam os soldados.
— Atirem para qualquer lado, mantenham-nos afastados!
A manobra resulta, as canoas afastam-se e o silêncio volta
a cercar o navio. Ngungunyane é enclausurado na cabine do
piloto. À porta são colocados dois sentinelas, um preto e um
branco.
Naquela improvisada cela adormece, enroscado como um
pangolim, o vencido chefe dos vanguni. Lembro as palavras
do meu pai: todo o calabouço é pequeno; toda a prisão é
perpétua.
*
As fantasmagóricas canoas deixaram atemorizado o
comandante Andrea. Suspeita que queiram matar o rei negro.
Mas conjetura, com mais convicção, que o alvo seja ele
mesmo. E apressa-se a assumir o comando da situação. Seja
qual for a natureza da ameaça, é imperioso reforçar a
vigilância a bordo.
De emergência, eu e Zeca Primoroso somos enviados a
Lourenço Marques. A nossa missão é pedir apoio a um
sargento chamado Duarte Amaral que, além de
experimentado militar, é um fiel amigo do capitão. Devemos
procurá-lo nas casas de pecado. Não partimos sem que
Álvaro Andrea nos advirta: Mouzinho não pode saber desta
providência. Esse pedido de socorro haveria, por certo, de ser
motivo de chacota. Por essa razão Andrea nos escolheu a
nós, desconhecidos e civis, para cumprirmos aquela delicada
incumbência.
— Ide com cuidado — adverte-nos. — E trazei-me
convosco o sargento Amaral.
O olhar é alucinado, o suor escorre-lhe pelo rosto. Quase
não reconheço o homem tranquilo que venceu a fúria do
vento xidezdze.
*
Em poucos minutos desembarcamos junto a um forte que
Primoroso identifica como sendo a Fortaleza de Nossa
Senhora da Conceição. À pressa atravessamos uma ampla
praça cercada de vielas estreitas. É esta a rua, é esta a Rua
dos Mercadores! — proclama Primoroso. — Vamos com
cuidado! À noite a cidade é muito perigosa, até Deus fica à
rasca, adverte. Não se cala enquanto caminha: Trago a
minha guia de marcha, mas tu, sendo uma preta indígena, já
não podes circular a esta hora. Vaidoso, agita o documento
que o autoriza a percorrer territórios que, depois do pôr-do-
sol, se tornam exclusivos dos europeus. Teremos que evitar
os agentes policiais que asseguram o cumprimento do
recolher obrigatório. Zeca Primoroso justifica essas rusgas:
— Os portugueses, coitados, não o fazem por mal. Mas
não fica bem os pretos andarem por aí quando já está
escuro. Um branco pode-se assustar pois só dá conta da
presença de um negro quando já esbarrou com ele.
*
Vamos seguindo ao longo da Rua dos Mercadores. Posso
falar português como poucos portugueses, posso ter lido
muitos livros, mas nunca estive numa cidade, nunca andei
sob a luz de candeeiros. Com orgulho, Zeca Primoroso vai
traduzindo a cidade que os meus olhos não sabem ler. À
porta dos bares exibem-se mulheres meio despidas. São às
centenas os boémios que por ali passam, quase todos
bêbados, trocando piadas e impropérios nos mais
indecifráveis idiomas. A descoberta do ouro nas terras
vizinhas inundou Lourenço Marques de aventureiros. Vieram
ingleses, bóeres, sírios, libaneses, italianos, gregos e gente de
nações tão distantes que nenhum mapa lhes faz justiça.
Enquanto disserta sobre a cidade, Primoroso vai
inspecionando a fachada dos estabelecimentos. Vai
espreitando do outro lado da rua, no passeio menos
iluminado. Depois eleva-me nos braços como se eu fosse
uma criança. Daquela posição vejo as salas cheias de fumo.
As mulheres estão, ao mesmo tempo, quase nuas e
demasiadamente vestidas. Por pouco, confesso em voz alta,
não era uma dessas mulheres.
— Que história é essa? — pergunta Zeca, voltando a
pousar-me no chão.
Falo-lhe da intenção de Bianca Vanzini de me contratar
para uma das suas casas noturnas. Para o Bohemian Girl?,
espanta-se Zeca. Encolho os ombros. Não sei, respondo. Sei
que seria chamada de Black Lilly.
— É um lindíssimo nome — declara Zeca. —Devias usá-lo
— recomenda.
*
É quase meia-noite quando Zeca Primoroso se detém
frente a um estabelecimento que ostenta o letreiro: «La
Folia». É aqui, murmura, excitado. Aborda um agente de
segurança à porta do bordel. E logo ali se cria um enorme
alvoroço. Impedem Zeca Primoroso de entrar, proíbem-no de
se explicar. Seu preto de merda, gritam em coro enquanto
agridem o indefeso tradutor. Em desespero, procuro por entre
a multidão: onde andará o tal sargento Amaral?
Vou em socorro de Zeca, que jaz tombado no passeio.
Arrasto-o para o lado oposto da estrada. Limpo-lhe o sangue
que escorre pelo rosto enquanto ele se ocupa em acertar o
penteado. Na briga soltou-se-lhe o tacão de um sapato. Pede-
me que o procure. Um sapato é mais importante do que
qualquer guia de marcha. É essa a sua prioridade: recuperar a
compostura. Enquanto de gatas vou farejando o pavimento, o
tradutor desculpa os seus agressores: eu que não interpretasse
mal aquela violência, nas suas palavras um «acidente» sem
qualquer significado. Confundiram-me, certamente. Em todo
o lado sou tratado com o máximo respeito.
— Não fale mais, Zeca — ordeno enquanto lhe limpo o
ensanguentado rosto. — Se não ficar quieto essa ferida
nunca mais fecha.
E volta ajeitar o penteado, o dedo sujo de sangue acertando
o risco que lhe divide a espessa cabeleira. Passo-lhe um pano
a enxugar a mão, aquela mesma mão que tantas cartas de
recomendação forjou para safar os seus irmãos. É disso que
me fala enquanto cuido dele. Mil vezes vestiu a pele de um
branco assinando salvo-condutos com um nome falso, um
nome bem português. A sua escrita era tão perfeita que
ninguém podia imaginar que aqueles documentos tivessem
sido redigidos por um negro.
— Está ver, Imani? — concluiu Zeca. — Dizem que traí os
meus irmãos negros. Ninguém os ajudou tanto quanto eu…
Do outro lado da rua alguém chama pelo meu nome. É
Bianca Vanzini. Abraçamo-nos com tal espalhafato que os
transeuntes se entreolham desconfiados. Não dou conta de
que Zeca se esgueira entre os mirones, em busca do sargento
Amaral.
— Sabia que estavas em Lourenço Marques — revela
Bianca. — Germano escreveu-me. Já te enviou duas cartas.
Não as recebeste? Andrea não tas entregou?
Sacudo a cabeça. Andrea?, pergunto, a voz apagada, a
cabeça vazia. Alguém me puxa pelo braço. É Zeca Primoroso
que me apressa a regressar ao nosso navio. Foi assim que se
expressou: o «nosso» navio.
— Vá você, Zeca. Aquele navio não é meu.
— Venha — insiste o homem. — O sargento Amaral já
aqui está, não o façamos esperar.
Crispo os dedos no vestido de Bianca, encosto-me ao seu
peito e suplico:
— Deixe-me ficar consigo, Bianca. Esconda-me entre as
suas mulheres. Eu espero aqui por Germano.
Não era uma boa ideia, argumentou Bianca. Primeiro
porque me viriam buscar. Segundo porque ninguém sabia
quando Germano passaria por Lourenço Marques. Por fim, e
mais importante que os anteriores motivos: se eu perdesse
este barco nunca mais viajaria para Lisboa. É em Portugal,
diz ela, que devo esperar pelo meu homem.
— Volta para o navio. Zeca tem razão: este é o teu navio, o
teu único navio.
Solto-me de Bianca, deixo que me arrastem em direção ao
Neves Ferreira. A italiana vai ficando distante, a luz do
candeeiro ilumina os seus cabelos quando subitamente a vejo
esbracejar. Percebo que grita mas a estridente música dos
bordéis não deixa perceber o que me quer dizer. E parece ser
um envelope o que agita em suas mãos. Ou talvez seja um
lenço branco com que se despede.
Capítulo 11

Carta de Germano de Melo


para Bianca Vanzini
«Numa certa guerra, os soldados que haviam
saído em missão deram meia volta e retornaram
ao quartel. O general, espantado, viu o batalhão
regressar. Não tinham encontrado a fronteira que
era suposto protegerem. Foi assim que se
justificaram.
— Não sabem da fronteira?
— E onde fica, meu general?
— Bom, a fronteira… quer dizer a fronteira…
não me digam que não a encontraram?
— É por isso que regressamos, meu general.
— Pois a fronteira fica onde acaba a terra.
Os soldados voltaram a partir. E nunca mais
regressaram.»
(História anónima recolhida
por Germano de Melo)
Inhambane, 2 de janeiro de 1896
Querida Bianca
Escrevo-lhe em desespero. Enviei duas cartas a Imani e
não me chegou nenhuma resposta. Desconheço se ela as
recebeu. Encaminhei essas missivas através de Álvaro
Andrea, um comandante da Marinha em quem confio como
um irmão. Não sei dele, nem de Imani.
As guerras provocam uma deformação na alma de quem
espera: mantemos um irresistível desejo de receber notícias,
mesmo tendo a certeza de que serão as piores possíveis. O
inferno é preferível à ausência de tudo.
O desconhecimento do paradeiro de Imani despertou
angústias que pareciam esquecidas. E fico de novo sem
mãos, sem corpo, sem vontade. Às vezes penso que Imani
encontrou outro homem. Ou mais grave: que ela, sem
nenhuma razão particular, tenha deixado de gostar de mim.
São fantasmas que me roubam o sossego mas não a
esperança. Não tardarei a encontrar Imani na minha própria
terra. Irei com ela à aldeia para a apresentar à minha mãe. E
então proclamarei, apontando o ventre de Imani: eis o seu
neto! Eis-me a mim numa outra vida.
Tenho pensado muito em si, minha querida italiana, e nas
circunstâncias em que nos conhecemos. Lembro-me desse
dia em que Zixaxa atacou Lourenço Marques e como
buscámos refúgio entre as ruínas. No meio dos escombros
esquecemos, por um momento, que havia um mundo
desabando lá fora.
Um destes dias voltarei a visitá-la. Não chegarei a tempo
de assistir ao desfile do Gungunhana. Seria esse o momento
certo para reencontrar Imani. Outras ausências, contudo,
serão bem mais pesadas que a minha. E uma delas, a maior,
será a de António Enes. O comissário régio saberá das boas
novas a caminho de Lisboa. A maior parte das autoridades
militares já se encontra na Metrópole. À exceção de
Mouzinho, os heróis estão todos de férias, fatigados das três
únicas batalhas que tiveram que enfrentar. Desembarcarão
em Lisboa com direito a uma receção triunfal, ovacionados
por uma façanha que tentaram evitar a todo o custo.
O seu herói, esse cavaleiro andante, não se poderá queixar
de falta de reconhecimento. Da Inglaterra, da França e da
Alemanha enviaram mensagens, medalhas e condecorações.
Apenas Portugal se esqueceu de o levar até Lisboa para
recolher as honras que lhe são destinadas. As ordens foram
claras: Mouzinho permanecerá em Moçambique. A guerra
está terminada. Mas não tanto como querem fazer crer. Quem
sabe esse cavaleiro andante não a visitará em Lourenço
Marques? Quem sabe não se alojará no seu estabelecimento?
Peço desculpa, cara Bianca, mas não posso ficar
indiferente perante o seu afeto por Mouzinho. Tanto como
eu, você é livre de escolher as suas paixões. Mas, por amor
de Deus, todos menos esse imbecil! Considere apenas o
pueril arrebatamento que esse capitão nutre pela Inglaterra. A
Bianca sabe a consideração que os ingleses têm por nós,
portugueses e italianos: pensam de nós aquilo que nós
pensamos dos africanos.
E é assim, querida amiga: quanto mais acanhada uma
nação, mais difícil é escolher heróis. Não porque não os haja,
pois se há uma criatura que grassa nessas nações são os
heróis. Há em Portugal mais heróis que habitantes. A
dificuldade de escolher está apenas no receio de desagradar.
Nesta ruidosa celebração da vitória a monarquia oculta um
futuro que sabe incerto e sombrio. Prenderam o Gungunhana,
levam-no para um exílio sem fim. Seria preciso um navio do
tamanho de um continente para salvar África da cobiça dos
europeus e dos próprios africanos.
O régulo de Gaza sempre foi um empecilho para Portugal,
não tanto pelo que fazia mas por aquilo que não deixava
fazer. Dias depois da sua captura, já os nossos soldados
corriam as aldeias a cobrar o chamado «imposto de palhota».
Cada família terá agora que pagar uma meia libra de ouro.
Parece pouca coisa, mas é uma fortuna para quem, sendo
camponês, vive longe de qualquer moeda. Choram as
mulheres, lamentam-se os mais velhos: para auferir um
salário, os homens terão que migrar para as minas do
Transvaal. Na ausência de funcionários públicos, enviam de
Lourenço Marques soldados e sipaios. Conhecemos bem os
seus modos: ameaçam, exigem bebidas, mandam matar patos
e galinhas. E levam as vacas que sobreviveram à peste
bovina.
Eu mesmo vi uma dessas brigadas chegar a uma povoação
e o soldado português sentar-se em cima de um almofariz,
que curiosamente aqui chamam de «pilão». Não faça isso,
pediu um velho homem. Usar o almofariz como assento
constitui um grave sacrilégio, uma ofensa contra os bons
costumes locais. Foi isso que humildemente o camponês
explicou ao cobrador de impostos. Sem se mover, o soldado
olhou demoradamente para o queixoso e disse: Vou corrigir o
mal que inadvertidamente pratiquei. E lançou fogo à casa e a
todos os haveres da pobre família. O fogo espalhou-se,
descontrolado, por toda a aldeia. Fosse este incidente um
caso isolado. Mas esta arrogância tornou-se tão generalizada
que aqueles que viviam sufocados pelo tirano de Gaza já dele
sentem saudade.
Assim chego ao fim desta já longa carta. Alonguei-me,
talvez, porque sinto próximo o final da minha estada em
África. Tenho pena, confesso, de sair desta terra. A verdade é
que Moçambique é que está saindo de mim. Regresso à
pátria sem a glória dos grandes feitos, volto sem ter grandes
histórias para narrar. A única compensação que uma guerra
pode trazer a um militar são os laços que nela se criam com
os camaradas de armas. Nem isso eu ganhei. Fui um soldado
sem exército, fui o único ocupante de um quartel morto e
vazio. Ganhei um amor e um filho, dirá Bianca. E conheci-a
a si, acrescento eu.
Conto-lhe apenas a si — pois talvez nunca tenha coragem
de partilhar esta lembrança com Imani — um episódio da
viagem que me trouxe de Portugal para Moçambique. Na
passagem pela Cidade do Cabo uma mulher malaia, de pele
tisnada e lábios carnudos, chamou-me para um vão de escada
e, puxando-me com violência de encontro ao seu corpo,
ofereceu-se num longo beijo na boca. «É um war kiss»,
murmurou ela e sumiu na escuridão. Esse «beijo de guerra»
deveria trazer-me boa fortuna nas batalhas futuras. Não
chegou a haver nenhuma batalha. Aquele beijo, porém, ainda
hoje me salva de mim mesmo nas longas noites de solidão.
Ganhei em África um inadiável desejo de dormir e um
incurável medo de adormecer. Cerro as pálpebras e os mortos
abrem os seus grandes olhos dentro de mim. E apenas a
doçura desse infindável beijo me devolve o sossego.
Despede-se o seu mais fiel amigo
Germano de Melo
PS. Pode suceder que, por um feliz acaso, a minha amiga
encontre Imani durante os festejos de Lourenço Marques. Se
isso acontecer imploro que fale de mim e das cartas que lhe
enviei. Se não as recebeu, ela que insista com o comandante
para reaver o que lhe pertence. De qualquer modo — e para
prevenir qualquer dissabor — fiz cópias desses textos. Em
anexo a esta missiva seguem essas reproduções. Entregue-as
a Imani, por amor de Deus.
Capítulo 12

Pegadas no orvalho
«… Os teus antepassados foram grandes
senhores que comandaram os exércitos contra o
invasor zulu, há dezenas e dezenas de anos. Mas
foram obrigados a submeter-se e a pagar
imposto aos vencedores zulus que ocuparam o
território. […] O nosso opressor zulu, o
Gungunhana, que quis expulsar os brancos, foi
preso por eles e mandado para o Norte. Nunca
mais foi visto…»
(Palavras da mãe de Eduardo Mondlane, primeiro
presidente da Frente de Libertação de Moçambique, quando
se lhe dirigia em criança. In Khambane, Chitlango e André-
Daniel, CLERC, 1990, Chitlango: filho de chefe, Maputo,
Cadernos Tempo.
Uma canoa leva-nos, a mim e a Zeca Primoroso, de volta
ao Neves Ferreira. É o próprio sargento Amaral que assume
o controlo dos remos. O silêncio parece tornar o percurso
mais breve. A pequena piroga embate no bojo do Neves
Ferreira produzindo um som familiar, igual ao da velha lata
de água descendo ao poço da minha infância. Revejo-me, na
minha aldeia, recebendo o peso do céu sobre os ombros.
Quantas nuvens as mulheres já carregaram à cabeça?
Subo para o convés por uma escada de corda. Assalta-me a
mesma tontura que me atormentava quando caçava morcegos
no topo das árvores. Estou escalando o meu passado, penso.
Se me faltarem os pés tombarei não no mar mas no chão da
minha meninice. Meu pai continua a estender os braços para
me amparar. Os seus braços cresceram e dão a volta ao
mundo.
Despeço-me de Primoroso, vou avançando no escuro até
tropeçar num vulto. É Dabondi. Está sentada no meio do
convés contemplando os seus próprios pés. Veja!, exclama
entusiasmada. Veja aqui no chão uma pegada! Debruço-me,
incrédula. O pavimento é feito de ferro. Dabondi insiste
apontando o que só ela é capaz de vislumbrar. O meu filho
Mangueze viajou neste mesmo barco. A rainha lê o chão
como faz um caçador: Por ali passou o meu menino, além se
sentou e chorou. Estava triste e cheio de fome quando se
deitou.
Ajudo-a a erguer-se. Imagina no meu gesto não um apoio
mas uma reprimenda. Explica-se. Naquele momento deixou
de ser vidente. É apenas uma mãe com saudades do filho. E
reconstitui o cenário: um menino negro entrando sozinho
num navio, sulcando o oceano sagrado e viajando na
companhia exclusiva de gente branca. Naquele convés
restam intactas as pegadas do medo.
*
Para a rainha não existem dúvidas: aquele navio, todo de
ferro, foi fabricado a partir de sobras de canhões e
espingardas. Por fora cheira a maresia, por dentro cheira a
pólvora. Todas as outras mulheres da corte perderam a conta
aos filhos que pariram. Apenas ela teve um único menino.
Tão franzino tão diminuto, que aconchego encontraria num
lugar feito de restos de canhões?
Olho para Dabondi e penso: a jovem rainha está perdida.
Se a vida fosse justa bastaria ser mulher para se ser rainha.
Esta rainha, porém, é a mais triste e carente das criaturas.
Para se sentir viva ela necessita de que o marido a deseje. Por
esta razão as mulheres da corte, todas elas, precisam de ser
belas. Dabondi é formosa mas sabe que a beleza, no
desamparo em que vive, dura pouco. Por isso imita as
sombras: todos os dias desaparece. Uma miragem não
envelhece. E é assim que gostaria que o marido, o imperador,
a surpreendesse: uma miragem viajando sobre o mar.
*
O rei quer ver-te, diz Dabondi. A mim?, pergunto. Não há
dia em que ele não te veja nos sonhos, responde a rainha.
Dabondi conduz-me ao quarto do comandante. É lá que se
encontra Ngungunyane. Tinha acabado de ser interrogado. O
interrogatório correra bem. Só isso explica que Álvaro
Andrea tenha deixado que o rei de Gaza tome conta do seu
compartimento. Pede Ngungunyane que Dabondi se retire.
Está preocupado, o soberano dos vanguni: o seu irmão, o rei
D. Carlos não respondeu aos seus pedidos: Zixaxa continua a
partilhar o mesmo espaço, dormindo e conspirando contra ele
no escuro. Não entregaram a minha carta a D. Carlos. Está
convencido de que alguém o traiu, desviando a mensagem
para um outro destinatário. Não houve tempo para que a
carta chegasse a Lisboa, digo. Falo em vão. Ngungunyane
apenas a si mesmo se escuta.
— Quer que escreva uma nova carta? — pergunto.
Sorrindo, o rei de Gaza acena com um papel e declara: Já
vais tarde, minha filha. Andrea acabou de me ajudar. Contei-
lhe segredos e, em troca, ele redigiu esta carta. Quem serviu
de tradutor foi Godido. Sabe menos português, diz o rei, mas
conhece melhor o que é a lealdade.
Se escolheu outro escrevente por que está aqui comigo? —
indago com inesperada fúria.
Surpreende-me o meu despeito por terem escolhido um
outro escriba. A escrita, percebo então, inverte as
hierarquias: quem dita uma carta tem menos poderes do que
quem a escreve.
O rei encosta-se a mim. Esfrega-se voluptuoso. Mantenho-
me imóvel à espera que desista. Pede-me que lhe acaricie os
joelhos. Estranha que não lhe obedeça de imediato.
— Os joelhos — repete o rei. — Vou explicar-te por que
um homem precisa de bons joelhos.
Antes de partir para a guerra um pai de família ajoelha-se
frente à sua mulher e pede que ela pronuncie o nome dos
seus amantes. O guerreiro deve permanecer de joelhos até
obter uma confissão de deslealdade. Se, por acaso, um
soldado morrer em combate fica provado que a esposa
mentiu.
— Há algo de errado nessa história, meu rei. Nenhum
homem se ajoelha perante uma mulher.
Ngungunyane ri-se, divertido com a minha impertinência.
Não entendeste nada, diz. Não é às esposas que os chefes de
família dirigem o pedido. Seria tempo perdido, as mulheres
mentem sempre. Os homens, diz Ngungunyane, ajoelham-se
para que as mulheres pensem que se apresentam submissos.
Vou-me afastando lentamente enquanto o monarca
continua divagando. Quando dá conta estou no canto oposto
do quarto.
— Não vou perder mais tempo — diz Ngungunyane.
Quero apenas que me leias uma carta que ditei a Andrea. —
Quero ficar sem dúvidas sobre o que ele escreveu.
Demoro a recolher a folha que me quer entregar. Dou-me
importâncias, como diria a minha mãe. E percebo, logo nas
primeiras linhas, que Álvaro Andrea foi longe no
embelezamento do texto. Ambos aportuguesamos demasiado
as palavras do rei dos vanguni. Vou traduzindo lentamente
para que Ngungunyane me acompanhe:
«Meu irmão,
Rei de Portugal
Venho falar-lhe de traição. Não é este o assunto que mais
ocupa os reis, em todo o mundo? Foi sempre assim: o sangue
da família real é o mesmo que corre nas veias dos seus
assassinos.
Desde o início desta viagem que trago um traidor amarrado
aos pés. Quem deu esse nó não foi uma mão branca. Por esta
razão lhe agradeço ter autorizado o meu leal ajudante de
campo, o jovem Ngó, a viajar comigo. Ambos sabemos que,
sob a capa de cozinheiro, se esconde uma outra função: a de
provador do rei. E ambos temos que reconhecer: abusamos
do uso desta silenciosa arma. Envenenámos tantos poços que
acabámos matando a nossa própria gente. Guardemos esse
segredo. Essa é outra vantagem do veneno: a morte acontece
longe, num tempo que não pertence a ninguém.
Uma vez mais lhe peço, agora que vai começar a grande
viagem: separe Zixaxa de mim. Esse maldito mfumo que
fique longe, onde não veja o meu sono nem escute os meus
sonhos. Os meus companheiros de cela já me viram dormir,
comer, urinar, defecar. Que autoridade posso ter diante deles?
Por favor, meu irmão D. Carlos, afaste de mim esse traidor.
Elimine este homem, ninguém notará, ninguém reclamará.
Fica, como o veneno que usamos em excesso, um segredo
entre nós.
O rei de Gaza
Lourenço Marques, 4 de janeiro de 1896»
*
Terminada a leitura, Ngungunyane espreita o meu rosto,
quer ler em mim o que não é capaz de decifrar no papel.
Acha que lhe menti, Nkosi?, pergunto. Juro-lhe, não inventei
uma linha, reafirmo com convicção.
— Eu sei — diz o rei. — Sei por que ficaste tão igual às
brancas.
Tudo o que se conta sobre mim, Imani Nsambe, é mentira.
As pessoas, garante o rei, sabem do meu passado. E não é
verdade, diz Ngungunyane, que eu tenha passado a minha
infância numa missão católica, longe dos meus pais e da
minha aldeia. Tornei-me assim, tão igual aos brancos, por
obra de um feitiço.
Dabondi percebeu quem tu realmente és — prossegue
Ngungunyane. — Não há como uma feiticeira para
reconhecer uma outra feiticeira.
E volta a aproximar-se, untuoso. Sinto os olhos predadores
devorando-me o corpo. És uma feiticeira, Imani Nsambe, é
isso que tu és, afirma Ngungunyane.
— E tu sabes o que fazemos a uma feiticeira: ou a
matamos ou…
Encosta-se a mim, roça a mão no meu pescoço, não
entendo se me acaricia ou se me ameaça. Os dedos gordos
vão descendo dos ombros até à cintura. Depois resvalam até
aos joelhos. E ali se demoram. Deixa tombar a tua capulana,
ordena ele.
Escuto dentro de mim a voz de uma outra mulher. Essa
mulher diz que devo fingir que obedeço. Este rei que sempre
odiei é agora um aliado. Será na sua companhia que viajarei
para Lisboa onde reencontrarei o homem que amo. Faço que
desamarro a capulana e falo-lhe ao ouvido:
— A sua mãe, a rainha Impebekezane, disse-me que não é
dos homens rivais que um marido deve temer. Um homem
rival pode roubar-nos a esposa. Mas o álcool rouba o
homem que está dentro do homem… percebe o que eu digo,
meu rei?
Escuta as minhas palavras e desfalecem-lhe subitamente as
mãos. Com fúria contida bate com os pés no chão. Empurra-
me, ao levantar-se.
— Quem és tu — grita — para falar da minha mãe? Não
passas de uma mutxopi. A tua gente é dominada pelos
brancos.
E passa à ameaça: iria escrever ao rei de Portugal a pedir
que me mandasse de volta para Moçambique. E que
arranjassem um novo tradutor. Aliás, os portugueses já
mostraram preferir Zeca Primoroso. Porque deve ser um
homem a prestar estes serviços.
— O teu amigo comandante Andrea foi-se embora. Nesta
altura já deve estar em terra. Deixou-te esta carta — diz
Ngungunyane, entregando-me um sobrescrito.
Capítulo 13

Carta de Álvaro Andrea para Imani


«Gungunhana aceitou entregar-se ao comando
do meu navio, pedindo apenas para não lhe
cortar a cabeça e garantia de vida para os seus
filhos e tios. Esse compromisso sagrado em
campanha foi para mim tomado solenemente e
cobardemente atraiçoado depois em Chaimite,
sendo deslealmente fuzilados os tios Queto e
Manhune que acompanhavam o régulo
entregando-se».
(Excerto de «A Marinha de Guerra na campanha de
Lourenço Marques e contra o Gungunhana, 1894-1895»,
relatório da autoria de Álvaro Soares Andrea publicado nos
Anais do Clube Militar Naval, 1897-1898)

«Morreram heroica e corajosamente os negros


Manhune e Queto e, ao caírem fuzilados, a cada
um por sua vez foi-se a eles o tenente de
artilharia Aníbal Miranda e espetou-lhes uma
espada no coração, praticando assim em frente
aos soldados sevícias sobre moribundos
indefesos, facto que constitui grave infração das
leis da guerra, punível com a pena de morte
pelas leis militares. […] Esses fuzilados
mereciam ter uma estátua erguida pelos
partidários da causa por que lutaram sem virar a
casaca, vátuas de têmpera que souberam morrer
no seu posto de combate…»
(Comandante Álvaro Soares de Andrea, artigo publicado no
jornal O Liberal de 27 de dezembro de 1908)
Lourenço Marques, 5 de janeiro de 1896
Cara Imani
Quem te escreve é Álvaro Andrea. Esta carta é, ao mesmo
tempo, uma declaração de rendição e um pedido de desculpa.
Rendo-me a ti com a mesma verdade com que me
envergonho por te ter usado. Fui levado por um rancor cego
contra Mouzinho. Talvez tenha exagerado nesse
ressentimento. Fiz com este adversário o que Portugal fez
com Gungunhana: engrandeci-o para dar sentido à minha
vida, puxei lustro à sua vitória para esquecer as minhas
derrotas.
Há mil perguntas que não te cheguei a fazer. Por exemplo:
é verdade que Mouzinho se encontrava bêbado em Chaimite?
É verdade que consultou uma feiticeira para conhecer o
desfecho da sua ousadia? Confirma-se que, durante a
caminhada até ao Limpopo, os prisioneiros foram
continuamente espancados?
Esqueçamos estas perguntas. Afinal, esta carta tem outra
intenção, talvez mais egoísta: quero-te mostrar as feridas que
a guerra abriu na minha alma. Talvez te conte tudo isto
porque és mulher, porque és negra e o simples facto de me
leres me alivie dos meus tormentos.
Durante os últimos dois meses fui um dos comandantes da
chamada «esquadrilha do Limpopo». A nossa missão era
bombardear as populações de ambas as margens do rio. E foi
assim que procedemos: não houve dia em que as descargas
não fizessem estremecer a corveta. No mesmo instante, com
a irrealidade de uma aguarela, o céu se cobria de gigantescos
clarões. Das margens emergiam fumos espessos que
antecipavam o poente.
Terminadas as mortíferas bátegas, os meus soldados
saltavam do barco e espalhavam-se pela savana como
crustáceos emergindo na maré baixa. A gente negra
contemplava aqueles vultos avançando na neblina. E o que
viam era gigantescos caranguejos trazendo nas garras tochas
a arder. Com esses archotes incendiavam casas e plantações.
Dezenas de aldeias foram arrasadas e as canoas dos
pescadores foram afundadas.
Da corveta observava as nuvens de fumo, os dedos
entreabertos protegendo o rosto. Receava ser atingido por
uma fagulha e voltar cego a Portugal. Contudo, sem o saber,
eu já estava cego. Os marinheiros traziam-me notícias da
devastação. Não falavam de bases militares destruídas ou de
soldados abatidos. Os que morriam eram civis indefesos.
Terminados os relatos não havia senão escuro em meu redor.
Sou um comandante da Marinha de Guerra. O meu dever
seria percorrer as aldeias para avaliar os estragos. Devia ter
tido coragem para enterrar os mortos e socorrer os
sobreviventes. Nada disso fiz. Ficava ali, indolente e
trémulo, até que um soldado me conduzia por um braço até à
tenda. Tombava sobre a tarimba, como quem se afunda no
último abismo.
A culpa pesou-me de tal modo que, mesmo quando
Gungunhana aceitou a rendição, não me apercebi do alcance
dessa reviravolta. Podia haver reservas quanto à seriedade do
chefes nguni. Mas a mensagem era clara: o imperador
apresentar-se-ia no meu navio desde que nenhum mal fosse
infligido a ele ou a qualquer dos seus parentes. Dei a minha
palavra de honra de que assim procederia. Era essa a minha
promessa. Por culpa de Mouzinho, nada correu como estava
previsto.
É este o peso que trago dentro de mim, minha querida
Imani. Há poucos dias um marinheiro tentou confortar-me,
convencido de que o meu abatimento se devia a um desgosto
de amor. Antes fosse. A minha vida sentimental sempre foi
um deserto. Lembro-me de uma lindíssima e misteriosa
mulher que, em Lisboa, invariavelmente se fazia presente no
cais. Ainda pensei que se vinha despedir de um dos
tripulantes. Soube depois que procedia assim com todos os
navios que partiam. Vestida de negro, como manda a tristeza,
a mulher permanecia no cais até todos terem regressado a
casa. Não arredava do porto até que o navio se dissolvesse
nos seus olhos. Um dos meus adjuntos assegurou que se
tratava da esposa de um marinheiro há muito falecido em
terras africanas. Aos poucos a mulher ganhou o olhar dos
cegos: o horizonte era a única terra que conhecia. O mesmo
marinheiro confirmou depois que a «esperadeira» — foi
assim que a nomeou — vinha despedir-se de mim. A mulher
confidenciara-lhe as circunstâncias em que nos havíamos
encontrado, eu e ela. Pedi ao marinheiro que guardasse
segredo porque eu mesmo a iria procurar. A enigmática
personagem, porém, nunca mais compareceu no cais. Dizem
que a internaram, enlouquecida. Nunca a visitei, nem sequer
procurei saber onde lhe deram asilo. Tive medo de a
reconhecer, tive medo que ela me reconhecesse. A bravura,
minha querida, não nasce de ser pensada. A coragem não
mora no cérebro. Emerge das entranhas.
Confesso agora: essa mulher nunca existiu. Criei essa
personagem, durante anos sustentei essa encenação. Inventei
essa história e contei-a tantas vezes que acabei acreditando
que tudo aquilo acontecera. Sendo mentira, o consolo de ter
alguém à minha espera foi sempre verdadeiro.
As únicas histórias que merecem ser contadas são as de
amores desencontrados. Como esta paixão que sinto por ti e
que me faz, vezes sem conta, imaginar que és tu que me
esperas num cais qualquer de uma improvável viagem.
Ainda hoje relato aos meus companheiros o caso dessa
mulher que viveu um amor feito de esperas. Da última vez
que o fiz, navegava no Limpopo e um marinheiro preto
declarou: Também tenho uma história para contar. Começou
por relatar uma lenda da sua aldeia, que ficava por ali, na
margem do rio. Antigamente, começou ele por narrar, o
firmamento era todo negro, sem nenhuma estrela. Certa vez
uma moça, louca de saudade, decidiu caminhar pela
escuridão em busca do seu amado. No meio da jornada
preparou uma fogueira de uma altura jamais vista. Quando
não havia mais lenha no mundo ela atirou para o topo da
pilha os panos com que se cobria. Assim despida, ateou o
fogo e ficou a ver as faúlhas subirem pela noite. Desse modo
nasceram as estrelas.
Por que me contas essa história, rapaz?, perguntei.
Apontando a margem mais próxima, o marinheiro respondeu:
Uma noite, deste mesmo barco dispararam balas de canhão
que, como estrelas, iluminaram a minha aldeia. Essas
estrelas, continuou ele, atiçaram a curiosidade das crianças
que, extasiadas, acorreram para o pátio. Nenhuma
sobreviveu. Fez uma pausa e concluiu: Por causa dessas
estrelas nunca mais poderei sair deste navio.
A intenção do marinheiro era clara: queria cravar em mim
a lâmina do remorso. Sucedeu, contudo, o inverso. As suas
palavras sugeriam-me uma saída: não podendo reparar os
meus crimes, cabia-me o dever de castigar os culpados.
Decidi não apenas confessar as minhas culpas mas denunciar
as sevícias cometidas pela nossa Marinha de Guerra. Enviei
uma primeira versão desse documento ao Comissário Régio,
sem esperança de resposta. Grande foi a surpresa quando um
mensageiro me trouxe uma réplica de António Enes.
Transcrevo aqui uma parte dessa resposta:
«Em qualquer país civilizado atos de guerra como estes
praticados pela nossa esquadrilha do Limpopo, além de
serem condenados pelos princípios humanitários e
parecerem repugnantes a briosos cavaleiros, provocariam
reações violentas, reações de ódio e vingança dos povos
castigados pelas culpas do soberano; em África, porém, não
se manifestam tais reações, porque só podem produzi-las
noções elevadas de moral e sentimentos de justiça e de
dignidade que falecem aos negros.»
Devia poupar-te a estas ofensas à tua raça. Mas quero que
saibas como pensam aqueles que me comandam. Depois da
resposta de António Enes abandonei a minha lamentação
epistolar. Concentrei-me na redação de um relatório sobre as
imoralidades cometidas por Mouzinho de Albuquerque. Sou
ingénuo mas não sou estúpido: ninguém quer saber dessas
denúncias. A aventura em Chaimite, a «Chaimitada» — é
assim que lhe chamo — é uma boia de salvação da
monarquia. Será preciso que os festejos esfriem para que se
aceite uma outra versão dessa inventada epopeia.
Talvez Mouzinho te tenha relatado como me encontrou no
posto de Languene. Era Natal e o heroico capitão fez questão
de ridicularizar a festa que eu, com tanto zelo, preparara para
os nossos soldados. Pediu-me emprestada uma espada e, num
acometimento absurdo, espetou-a no meio do pântano. Quem
a apanhou foi o tenente Miranda e, por lapso, levou-a
consigo para Chaimite. E o impensável sucedeu, minha cara
Imani: foi exatamente essa minha espada que usaram para
trespassar o coração dos dois fuzilados. Fecho os olhos e
vejo sangue. Essa espada golpeia-me o sono, todas as noites.
Não me verás amanhã no desfile. Estarei longe, de volta ao
rio Limpopo. Não seria capaz de suportar essas exibições
circenses. Na verdade, não diferem muito das encenações
dos outros pavões europeus. Grande ilusão! Reivindicamo-
nos donos de um continente que desconhecemos. É mentira
que a Europa tenha conquistado África. Tomam o desejo por
realidade. Apenas comandamos pequenas e dispersas
feitorias junto à costa. Essas feitorias conheço-as eu e elas
contam-se pelos dedos. Todo o resto do continente continua a
ser governado por reis e imperadores africanos. Duas Áfricas
se revezam como misteriosas mulheres: uma noturna, outra
diurna. Não conhecemos nenhuma das duas. Para manter a
aparência do nosso poderio, precisamos de exibir o rei de
Gaza pelas ruas de Lisboa. Não se trata de uma deportação. É
uma feira.
Saudades.
Álvaro Andrea
Capítulo 14

Desfiles e delírios
Ao atravessar uma floresta um homem foi
atacado por ladrões. Bateram-lhe, despiram-no,
arrancaram-lhe os olhos e amarraram-no a uma
árvore. A meio da noite, os olhos do infeliz
começaram a subir-lhe pelas pernas. Queriam
regressar ao rosto. O homem sentiu que os olhos
lhe trepavam pelo corpo e pediu-lhes que o
deixassem tranquilo. Por favor não voltem,
implorou. Não me quero ver mais, não quero ver
o mundo nunca mais.
No final desta súplica escutou o rosnar de
animais aproximando-se. Em segundos foi
devorado. E nem ossos lhe sobraram. Umas
cordas abraçando o tronco da árvore, foi tudo o
que restou. Não tendo corpo onde morar, os
olhos ficaram errando pelos bosques. É com
esses olhos que os viajantes da floresta veem os
seus próprios sonhos.
(Relatos de Dabondi)
Há muito que me esqueci da minha raça, há muito que me
distanciei dos costumes do meu povo. Continuo, porém, a
sentar-me como uma mulher negra: apoio-me sobre as pernas
encolhidas lado a lado, um joelho em cima do outro. O
imperador tem os olhos fixos em mim, avalia como sou fiel a
antigos temores, vigia-me as mãos que se conservam
respeitosamente cruzadas.
É manhã. Há poucas horas ainda estávamos no barco.
Quando os detidos entraram na cidade respiraram de alívio.
E as rainhas até sorriram. Mas foi breve a alegria. Apenas
transitavam de presídio. E agora, nas traseiras da prisão de
Lourenço Marques, os prisioneiros são divididos em dois
grupos. Um militar angolano empurra-os aos berros:
— Landins para um lado, vátuas para o outro!
— Não existem aqui essas pessoas — murmura Zixaxa
entredentes.
Na sombra de uma mangueira encontram-se Ngungunyane
e os seus familiares. Sob uma outra árvore sentam-se
Nwamatibjane Zixaxa e as suas três esposas.
Zixaxa ironiza: em vez de se preocupar em recuperar a
coroa real, Ngungunyane devia pedir às mulheres que o
vestissem com o fardamento dos brancos. É isso que diz
Zixaxa. Ou será, pergunta ele, que o soberano de Gaza já
deixou de ser sargento do exército português?
Quer humilhar o rei, quer despromover as rainhas. O que
Zixaxa desconhece é que ele mesmo, o emblemático e
orgulhoso rebelde, tinha sido naquele mesmo dia incorporado
no exército português. Todos aqueles prisioneiros são, desde
hoje, membros de um exército contra o qual sempre
combateram. Em rigor, todos eles deveriam desfilar de botas
e uniforme na parada militar que se avizinha. Em vez disso,
marcharão descalços e quase despidos. A raça será a sua
farda, a única que os colonos reconhecem.
Aproximo-me de Ngungunyane. Leva tempo para que um
rei note a presença de quem chega. Mais tempo leva se o
visitante for uma mulher. Estou avisada desses caprichos e,
por isso, não me dói a espera. Finalmente, com um singelo
meneio de cabeça Ngungunyane autoriza-me a tomar a
palavra.
— Mandaram-me que lhe explicasse o modo como vai
decorrer a cerimónia.
— Vão levar-me amarrado? — indaga o rei.
Devia ser eu a fazer perguntas e a arrancar-lhe segredos.
Por isso me mandaram: para garantir que nenhuma
conspiração mancharia a festa. Decididamente, não tenho
competência para vigiar os outros. Rosto franzido, o
imperador vasculha o horizonte. Procura currais, manadas de
bois. E não se depara com nenhum bicho de chifre. Que raio
de lugar era aquele em que só se viam pessoas?
Ocupadas em entrançar a coroa na cabeleira do monarca,
as sete esposas não partilham das inquietações do esposo.
Poderá Ngungunyane desfilar amarrado, mas jamais
desprovido do seu chidlodlo. Nenhum cabeleireiro deste
mundo compete com os dotes destas mulheres. Os fios que
abraçam a coroa são feitos de raríssimos materiais: finos
tendões retirados do lombo dos bois. Várias são as cabeças
que é preciso sacrificar para obter uma dezena destas
nervuras que são entrelaçadas, uma por uma, com os cabelos
do imperador. Não há nobre nguni que não use uma coroa de
cera. Mas nenhuma delas é entrançada com estes delicados
cordões.
Dabondi sai da roda e oferece-me uma cabaça com ukanyu.
Recuso, primeiro. Conheço a minha reação àquela que dizem
ser a mais afrodisíaca das bebidas. Mas acabo cedendo.
— Mandaram vir os ingleses? — indaga o rei.
A pergunta era previsível: o principal destinatário daquela
cerimónia são os ingleses, esses que cobiçam a colónia de
Moçambique e que, conforme se diz em Lisboa, sempre
estiveram por detrás do rei de Gaza.
Sabes que dia é hoje? — interroga-se Ngungunyane. Sem
aguardar resposta vai perorando. — Celebra-se hoje o
umnkosi nkwayo, a festa dos primeiros frutos.
Esta festa não pertence aos portugueses. É dele, fazem-na
em sua homenagem. Os brancos apenas a autorizaram. Não a
podiam proibir. Os portugueses pagaram as despesas, mas a
festa é contra eles. Assim pensa o deposto rei de Gaza. E
ordena, de braço elevado:
—Vai dizer o seguinte aos teus patrões: os portugueses
venceram os meus soldados mas não desarmaram os nossos
deuses.
Penso: o rei está embriagado. As mãos tremem-lhe quando
se serve de uma nova rodada. Aproveita, minha filha, incita-
me ele. Esta será a última vez que nos deliciaremos com as
nossas bebidas.
Está empolgado, Ngungunyane. O penteado deixado a
meio confere-lhe um ar ridículo, com um eriçado tufo de
cabelos hasteado no alto do crânio.
Deambula o desgrenhado imperador e vai imaginando em
voz alta como seria a cerimónia festiva se estivéssemos na
sua corte, em Mandlhakazi. Seria ele a escolher os bois a
serem sacrificados. Escolheria fêmeas como manda a
tradição. Teriam que as cegar antes de lhes cortar o pescoço.
Não podem ver a morte porque se lhes endurece a carne. É
assim que me pede, em segredo, que procedam com ele,
quando estiverem para o matar: que lhe arranquem os olhos.
A cegueira, diz Ngungunyane, é uma prenda em tempo de
horrores.
Não me surpreende o enlevo com que as esposas o
escutam. Espanta-me, sim, quanto o destronado rei está a par
dos preparativos do desfile. Sabe, por exemplo, que o seu
adversário de eleição, o guerreiro Xiperenyane, se encontra,
naquele preciso momento, a varrer as ruas da cidade.
— Esse grande herói da tua gente, esse tal Xiperenyane,
aceitou aliar-se com os portugueses — comenta o rei. Agora
é um escravo dos brancos. Puseram-no a trabalhar para a
minha festa. É um escravo meu. Esse é o destino dos que
ousam enfrentar-me.
Podem manter o imperador amarrado, longe do seu
exército, afastado da sua corte. A verdade é que ele ainda
detém uma arma mais poderosa que a pólvora: as redes de
notícias e os boatos. Quem lhe falou do chefe dos vatxopi
não faltou à verdade. Eu mesmo acabara de me cruzar com
Xiperenyane. Frente à casa do Governador lá estava ele de
vassoura e balde nas mãos. Aquele que fora o guia do meu
povo, aquele que mais ajudara os portugueses a derrotar o
Ngungunyane, era agora um serviçal anónimo. Quando o
saudei, surpresa e magoada, não me pareceu vexado:
— Ajudo a festejar a prisão do meu maior inimigo. Não é
uma alegria para qualquer combatente?
Realizava-se, afinal, a profecia de Bibliana: Xiperenyane
ficara cego com o falso respeito que antes lhe dedicavam os
portugueses. Ali estava, como ela bem antecipara, o retrato
de todos nós, negros pobres, varrendo o mundo para a festa
dos outros.
*
Nunca pensei que houvesse tantos brancos no mundo. Nem
pretos, para dizer a verdade. Mas agora vejo-os, uns e outros,
a aplaudir freneticamente as tropas portuguesas que desfilam
na única avenida da cidade. Soldados de todas as raças fazem
continência perante uma tribuna repleta de individualidades
coloniais. No centro do palanque encontra-se o governador
interino, Correia Lança, rodeado por diplomatas de várias
nações. Os lugares de honra foram reservados para os
comandantes dos cruzadores alemão e inglês estacionados no
porto. Em redor do estrado aglomeram-se jornalistas
portugueses e ingleses. Naquela tribuna estão, enfim, todos
menos quem mais direito tem de ali estar: o capitão
Mouzinho de Albuquerque. Aquela ausência enerva o
governador que, entredentes, vai repetindo a ordem:
— Chamem Mouzinho! Chamem-no, rápido. Todos o
querem aclamar.
Um diligente emissário sai à procura do herói. Sei onde o
irão encontrar: sentado junto ao leito de morte do major
Caldas Xavier. Mouzinho confessou-me no dia anterior:
aquele era o pior momento para se festejar. Vítima de doença
tropical, agonizava o grande obreiro da ofensiva militar
portuguesa em Moçambique. E passou pela cabeça de
Mouzinho que a vida era feita de desencontros. Durante
meses Caldas Xavier tinha sido administrador da Companhia
de Ópio da Zambézia. Um campo de papoilas a perder de
vista embalou, durante meses, o sono do major português.
Esse mar de flores vermelhas desvanece agora sob as suas
pálpebras.
Para os brancos, Caldas Xavier era vencido por uma
doença. Para nós, os negros, o homem era vítima de um
serviço encomendado. Na nossa terra não se morre de um
«quê». Morre-se de um «quem». A morte não tem causa.
Apenas culpado.
*
Mouzinho de Albuquerque finalmente comparece em
público e, sem saudar os dignitários, atravessa a tribuna para
se dirigir à multidão. Numa fração de segundo, os seus olhos
cruzam-se com os meus. Saúdo-o, baixando o rosto.
Agradeço assim o lugar que me reservou bem junto à tribuna.
Corpo hirto no limiar do estrado, a voz trémula e enredada
no peito, o capitão Mouzinho faz-se ouvir:
— Não mereço esta manifestação — começa por dizer. A
voz lhe vai crescendo. — Não se homenageia um soldado
quando um outro está agonizando. — E anuncia, comovido.
— Meus senhores, Caldas Xavier, o mais valente dos
portugueses, está morrendo.
Faz uma pausa, limpa discretamente o suor no rosto.
Suspira fundo e balbucia:
— Invejo-lhe a sorte, porque morre pela pátria.
Escuta-se então a multidão em clamor: Ainda somos
portugueses! Observo o rosto congestionado dos que gritam,
possessos, de tal modo afogueados que parecem ter mudado
de raça. Está demasiado calor para tão exaltado patriotismo.
E então percebo: o que ali se celebra não é apenas uma
vitória militar. O que o capitão trouxe foi um miraculoso
remédio para a acabrunhada existência daquela gente.
De repente, não sei se por causa do calor ou da bebida,
uma tontura quase me atira ao chão. Não tenho em quem me
amparar. Estou rodeada de pessoas intocáveis. Cerro os
olhos. As vertigens não param. Devia ter recusado beber
tanto ukanyu. É tarde para voltar atrás.
*
Terminados os discursos, permitem que os africanos se
manifestem desde que se mantenham no passeio oposto.
Estou amparada numa das traves do palanque, as tonturas
agravaram-se e o mundo ficou nublado e longínquo.
Escutam-se tambores, dançam as mulheres enlouquecidas,
entoam-se canções nos mais variados idiomas. A algazarra
dos negros torna-se tão ensurdecedora que os prisioneiros,
mais do que os brancos, se encolhem atemorizados.
Permanecem prostrados mesmo depois de Ngungunyane se
levantar em bicos de pés e desatar aos berros. O rei está
possuído por um exaltado espírito. Ninguém entre os brancos
percebe uma palavra do que ele diz. Anuncia o alucinado rei:
naquela avenida não está a decorrer um desfile militar mas a
festa dos primeiros frutos. Este é o Nkosi Nkwayo, proclama,
eufórico.
Apontando na minha direção, o rei de Gaza pede que
explique aos brancos as razões da sua exaltação. Os negros
prestam-lhe homenagem como manda a tradição: insultam-
no no dia em que nada é sagrado. Esses nomes feios,
intraduzíveis, apenas confirmam a sua divina autoridade.
O som dos tambores faz-me dançar e o chão balança com a
embriaguez do mar. Num ápice, estou aos pulos no meio da
avenida. O coração é agora um tambor e o meu corpo já não
me pertence. Olho em redor e tudo é nevoeiro. Não consigo
destrinçar os prisioneiros dos milhares de negros que
assistem ao desfile. Estão todos misturados, os que choram e
os que festejam. E dançam juntos os tiranos e os escravos. Os
que antes se guerreavam estão abraçados na cidade dos
brancos. Na mão direita trazem a azagaia dos zulus. Na
esquerda exibem o machado de meia lua dos vandau. Dos
ombros pendem os arcos com que nós, os vatxopi, resistimos
à ocupação dos vanguni. E todos acenam com as mesmas
armas com que foram mortos como se fossem vitoriosas
bandeiras. Unidos pelo fracasso, os vencidos tomam posse da
cidade. África conquistou a fortaleza dos europeus.
Xilunguíne engoliu Lourenço Marques.
Aterrorizadas, as autoridades coloniais retiram-se em
debandada, protegendo os chapéus como se tivesse desabado
uma tempestade. As mulheres brancas tiram os sapatos para
acompanhar a correria dos maridos e todos buscam refúgio
no palácio do governador.
Estou colada ao rebordo do palanque quando Xiperenyane
passa por mim dançando. Atrás do guerreiro seguem
Bibliana — que caminha rezando — e Chikazi, a minha
falecida mãe, que arrasta a corda com que se enforcou. As
duas mulheres atravessam a avenida e aproximam-se de
mim. Abraçam-me. A profetisa Bibliana sussurra-me ao
ouvido: Estes que dançam são os guerreiros que tombaram
em Marracuene, em Magul e Coolela. Estão todos juntos
agora. Este é o exército dos mortos, aqueles que não serão
nunca desarmados.
Retenho a mão da minha mãe sobre a minha barriga
enquanto suplico em prantos:
— Mãe, ajude-me. Leve-me para nossa casa.
— Não tens regresso, minha filha. Quando terminar a
festa serás perseguida pelos negros como traidora. E serás
repudiada pelos brancos por causa da incurável deficiência
que trazes na pele. Esse é o destino que escolheste, Imani.
Dançando, as duas mulheres desaparecem entre a massa de
gente. Desvairada, subo ao palco, aos brados:
— Salvem-me, por amor de Deus. Salvem-me!
Aquele lancinante apelo é mais que um grito. É uma alma
que expulso com a violência de um parto. De súbito, todos se
calam e aquele imenso alarido se recolhe como um caracol
na concha. Sacudo a cabeça como se me limpasse por dentro.
Regresso, enfim, a mim mesma.
À minha frente estão sentados os dignitários brancos que
me fitam atónitos e de olhos esbugalhados. Em redor, a
multidão aguarda, suspensa, o que se vai seguir. Tal se diz na
minha terra, deu-se um nó no silêncio. Devo estar de tal
modo irreconhecível que o próprio Mouzinho se mantém
impávido e distante.
— Quem é esta preta? — pergunta o governador. E ordena
aos polícias que me prendam. É então que Bianca Vanzini
irrompe pela tribuna. A italiana inclina-se numa apressada
vénia e declara: Excelências, esta moça está doente, vou
levá-la comigo.
Sem dizer palavra, Mouzinho ergue os braços para os
deixar tombar num gesto de complacência. Sou conduzida
pela italiana por entre a massa dos curiosos que abrem alas
fugindo de uma doença contagiosa. Encaminha-me Bianca
pelas ruas desertas da cidade, apressada em se distanciar dos
festejos. A meio do caminho a italiana suspende a marcha e
pousa as mãos sobre os meus ombros. Parece exausta. A voz
roça o choro quando me pergunta:
— O que se passa contigo, minha filha?
*
Não há vivalma no bordel de Bianca. Passeio pelos
corredores, percorro os quartos forrados a papel cor de rosa.
A italiana permite-me que experimente um vestido de seda
vermelha. Enfeita-me as mãos com longas luvas negras.
Elogia-me a figura, lamentando que não tenha aceite o
convite para ser uma das suas damas noturnas. Aceno com a
mão enluvada:
— Estou grávida, não tarda que o meu corpo seja apenas
uma barriga.
Retira de uma gaveta umas folhas amarfanhadas. São as
cartas de Germano. A italiana faz tenção em clarificar: Estas
são as cópias que Germano fez com o seu próprio pulso.
Não tenho mãos para segurar as folhas que ela me entrega,
de tal modo o coração me sacode o corpo. Quis entregar-tas
ontem à noite, diz a italiana, mas arrastaram-te pela rua e
levaram-te para um barco. Algo goteja sobre os meus
sapatos. Os papéis estão encharcados. Pendem-me das mãos
com o peso de uma coisa morta.
— Por que é que as guarda todas molhadas? — pergunto.
— Como quer que as leia, se escorrem água?
O olhar angustiado de Bianca é de quem não me
reconhece. Não há, garante, uma gota de água nesses papéis.
Quer tocar-me o rosto, hesita. Quer acariciar-me os cabelos,
a mão recua. Por fim, pede-me com doçura:
— Devolve-me as cartas, Imani. Deixa que as leia para ti.
Passo-lhe os papéis, que gotejam. A italiana demora a
examinar-me, incrédula. Meneia a cabeça e começa a ler. Vai
movendo os lábios mas não escuto senão o rumor de um rio,
esse mesmo rio em que eu e Germano fizemos amor.
Terminada a leitura, estou vazia. O que sobra em mim não
é mais do que uma raiva surda contra Álvaro Andrea. Como
ousou guardar o que não lhe pertencia? Rodopio pelo quarto
amaldiçoando o comandante dos olhos rasgados: Eu mato
aquele branco!
— Acalma-te, rapariga — ordena Bianca. E manda que me
sente e escreva a Germano. Eu entrego-lhe a carta — diz ela
—, quando ele por aqui passar.
Demoro a libertar-me das luvas, com a arrastada tristeza da
serpente largando a pele. Quero escrever. Não sei como
começar. O ódio a Andrea pesa mais que a saudade de
Germano. Escreverei mais tarde, prometo à italiana. A mão
dela enrosca-se nos meus cabelos crespos e, como aconteceu
no nosso primeiro encontro, dissolvo-me nessa carícia.
— Ainda este ano vou visitar-te a Lisboa — declara
Bianca. — Porque também me vou embora. Volto para Itália.
Bianca abre as janelas e o suspiro dela confunde-se com a
poeira que se solta dos cortinados: Mouzinho quer sair da
vida; eu apenas anseio sair de África.
Faz de conta que espreita pela janela. A mão acaricia o
pano da cortina como se buscasse um amparo.
— Não é a morte — diz ela — que esse capitão deseja.
Mouzinho espera por um amor que não pode nunca
acontecer. Todos falam da sua impossível paixão por Dona
Amélia, a distante rainha de Portugal: Ao menos, ele ainda
espera, suspira a italiana.
E Bianca culpa a vida, culpa a cidade que antes a tinha
salvado. Espreita o movimento da rua que fervilha de gente.
Àquela hora, negros e brancos ainda partilham o mesmo
espaço.
— Sabes o que mais me cansa na tua terra, Imani? É o
choro das crianças.
Noutros lugares, declara Bianca, as crianças choram como
quem aprende a rezar: esperam que as coisas melhorem. As
crianças africanas não. Choram sem voz, choram para si
mesmas, como se vivessem o seu último dia. As lágrimas
imitam-lhes as barrigas: inchadas mas sem nada dentro.
— Volto para Itália, a gente volta sempre a casa. — E
sorri, com tristeza. — Da primeira vez que regressei ninguém
me reconheceu na minha aldeia.
— Tinha ficado fora muito tempo — sugiro como
explicação.
— Não foi por causa do tempo. Não me reconheceram
porque voltei feliz.
A italiana dobra as cartas de Germano e mete-as no bolso.
Uma mancha de tinta desponta no seu vestido.
Capítulo 15

Uma submissa desobediência


Dizem os padres que depois de morrermos
vamos para o céu. O meu céu está no chão,
Imani. Todos os dias vou pisando a minha futura
morada. Há muito que vivo no céu. Quando
morrer gostaria de ir viver para outro lugar.
(Zixaxa)

«Você é um idiota, meu caro Álvaro. Podia


simplesmente ignorá-lo. A vida, porém,
ensinou-me que são os idiotas quem mais
devemos temer.»
(Extrato de mensagem de Mouzinho de Albuquerque para
Álvaro Andrea)
Passei a noite numa cama de bordel, em lençóis que nunca
acolheram o sono de ninguém. Há muito que me esqueci do
que era um leito. Talvez por isso tenha dormido tanto e tão
profundamente.
Manhã cedo, desperto com a suave voz de Álvaro Andrea.
O português esperou pelo fim do desfile para desembarcar.
— O que faz no meu quarto?
— Trouxe-lhe um agrado.
— Trouxe-me as cartas?
— As cartas?
— As cartas de Germano.
— Devo confessar uma coisa — diz Andrea. — Essas
cartas já não estão comigo. Mouzinho levou-as.
O capitão Andrea parece abatido. Não me tinha entregue as
cartas, admite, porque as usou como moeda de troca para que
eu lhe prestasse declarações. Aos poucos, foi percebendo que
a razão dessa demora era outra. Mantinha, confessa, a
esperança de que eu esquecesse Germano.
— Peço perdão, Imani. Traí um companheiro, desiludi uma
amiga.
E prossegue sem levantar o rosto. O desespero de não ser
amado envenenou-lhe a alma. O amor move montanhas. Mas
o desamor cria abismos. Assim se lamenta Germano.
— Vá-se embora, comandante — murmuro.
Ergue o braço. O gesto é autoritário. Já não me pede. Exige
que o escute. E relembra o que lhe sucedeu: há dias
Mouzinho surpreendeu-o escondendo papéis na algibeira.
Acreditando tratar-se do relatório que o denunciava, ordenou
que lhe revistassem os bolsos da farda e as gavetas do quarto.
Deste modo, Mouzinho se apoderou das cartas de Germano.
E não mais as devolveu.
— E por que não as pediu de volta?
— Morrerei sem ficar a dever um favor a esse impostor,
diz Andrea! Eu sei que Germano não me perdoará. E tu
passarás a odiar-me. Mas eu não poderia ter agido de outra
maneira.
— Vá-se embora, comandante — peço, impaciente. — Por
favor, deixe-me sozinha.
O português permanece impassível. Depois de um tempo,
estende-me o braço com a amabilidade de um noivo:
— Venha, vou-lhe mostrar a cidade.
Recuso, delicada mas firme: Não o quero ver, digo, não
quero falar consigo.
*
Da janela vejo Álvaro Andrea afastando-se. E admito: é
um homem muito belo. Há nele um desamparo e uma
delicadeza que não se coadunam com o seu estatuto militar.
Estes atributos deixam-me confusa.
Dou um tempo e depois saio de casa sem reparar como é
inapropriado o meu modo de vestir. O mesmo lugar que
ontem me pareceu resplandecente surge agora cinzento e
acabrunhado. As ruas estão ainda molhadas do chuvisco
noturno. Arrasto pelos lamacentos passeios o vestido que
Bianca me emprestou.
Tabuletas em português assinalam os nomes das ruas.
Todos os outros letreiros estão escritos em inglês. A própria
cidade é designada por «Delagoa Bay». Sigo pela Rua dos
Mercadores que, à luz do dia, parece murcha e vazia. Mais
além tomo a Rua da Gávea e cruzo com vendedores indianos
que, no passeio, me chamam com o seu curioso sotaque:
— Entre na loja, minhe filhe! Podi ver, não cussste nada!
Detenho-me no último arruamento, a chamada Rua da
Linha. Ali se alinham velhos candeeiros de ferro onde se
queimava óleo de baleia. Tudo isso é agora apenas uma
lembrança. Os postes evocam-me uma terrível lembrança: o
corpo da minha mãe balançando na árvore onde se enforcou.
Viro costas ao tempo, afasto-me do pântano que ali começa.
Os candeeiros são sentinelas da fronteira que separa dois
mundos em guerra.
De repente, da ombreira de uma porta irrompem três
marinheiros. Rodeiam-me, ameaçadores. Um deles comenta:
É a primeira vez que vejo uma puta preta assim tão fina!
Empurram-me para um vão de escada. Dividem tarefas, em
silêncio, como se violar uma mulher fosse uma habilidade
congénita. Um deles segura-me as pernas, o outro prende-me
os braços. Um terceiro, deitado sobre mim, rasga-me a roupa
e baba-se no meu peito. Grito por ajuda. Parece que os meus
berros os excitam ainda mais. Sei que desisti quando, mais
do que qualquer outra dor, sinto uma lágrima escorrendo pelo
rosto. Sucede então o que não poderei nunca descrever.
Porque, de repente, estou envolta em sombras que
esbracejam, desabam e depois se reerguem e fogem. Sinto o
alívio dos desenterrados. Reabro por completo os olhos para
deparar com o rosto de Álvaro Andrea. Ajuda-me a levantar.
Espera em silêncio que me recomponha.
Em silêncio, regressamos ao bar de Bianca. O português
estende a mão para me ajudar a vencer os charcos de água.
Demoro a corresponder à simpatia. Finalmente os nossos
dedos tocam-se. Mas logo me solto com vigor. Pronto, já
chegámos, defendo-me apressadamente. Bianca — que já
ouvira falar do incidente — espera-nos à porta. Acolhe-me
nos braços e reconforta-me: Pronto, já estás em casa. Nunca
uma casa alheia me pareceu tão minha.
Por alguma razão, Bianca recorda o falecido marido
chegando a casa a meio da noite. Embriagado, o homem
anichava-se num recanto protegendo-se das embaraçosas
perguntas. Não sei, mulher, a que horas cheguei a casa, dizia
ele. Quando entro em casa deixa de haver tempo.
— Os homens — ri-se Bianca, servindo-se de um licor feito
de limão. — São como este licor, os homens: doces quando
os queremos amargos, rudes quando os esperamos amáveis.
— Dona Bianca, peço-lhe: devolva-me as cartas de
Germano. Sei que são cópias. Mas valem mais do que as
originais.
A italiana vacila como se vasculhasse nos confins da
memória. Faço-a lembrar que no dia anterior me tinha lido as
duas cartas.
— Arrumei-as no meio da roupa. Terei que as procurar.
— Lembra-se do que diziam? — pergunto.
— Minha querida, as cartas de amor nunca dizem nada.
*
Almoço com a italiana. A mulher partilha mais a palavra
que a comida. Conta-me histórias. Sabe tudo de todos os
clientes, desde os militares aos missionários. Um dia
escreverá um livro divulgando segredos que comprometam
os mais notáveis.
— Chamam-me a dama das mãos de ouro. Mas nada se
vende tão caro como o silêncio.
Passam por nós prostitutas que acabam de acordar. Têm o
olhar arrelampado das aves noturnas.
— Lembro-me perfeitamente do nosso primeiro encontro.
A senhora foi a primeira mulher branca que vi na vida.
Lembro esse momento, acontecido há meses na minha
aldeia. Recordo o perfume adocicado da italiana e o seu
sotaque ainda mais doce. E volto a sentir as suas mãos
penteando-me os cabelos. Parecia um simples gesto mas
poucos instantes perduraram tanto em mim. Estava ali uma
mulher branca dizendo que os meus cabelos eram lindos,
assegurando que não precisava escondê-los sob um lenço.
Impossível esquecer a sua triste confissão: que tinha vindo
para África para deixar de viver. E que Lourenço Marques
lhe tinha parecido, então, um bom sítio para se morrer.
— E o seu príncipe encantado? — pergunto.
— Que príncipe? — retorquiu a italiana.
— A sua louca paixão por Mouzinho?
— Isso são águas passadas — afirmou, sorrindo.
O amor, acrescenta Bianca, é a mais passageira de todas as
doenças mortais.
*
Ao fim da tarde vou visitar Ngungunyane à prisão. Recebi
essa instrução do diretor do presídio. Está preocupado com o
estado de abatimento do prisioneiro. Passou a noite sob
vigilância reforçada. Logo a seguir ao desfile encafuaram-no
numa cela isolada. Temem a companhia dos outros
prisioneiros. Mas receiam, ao mesmo tempo, que o
isolamento agrave o seu já debilitado estado de espírito. É
por isso que reclamam os meus préstimos.
Os guardas fazem girar ruidosamente a chave despertando
o sonolento prisioneiro. Ngungunyane olha-me com
surpresa: sabe da interdição das visitas. Sentado com uma
garrafa no colo o rei é a imagem do desânimo. Peço licença
para lhe fazer companhia.
— Tu que és branca quase de nascença: sabes quando é
que eles me vão matar?
Calada, deixo-o sofrer. Cada segundo do meu silêncio é
uma lâmina que lhe rasga a alma. Sei que me contempla,
perplexo. Admira, como já confessou, a minha beleza. Mas
não concebe a minha desobediência. Por isso, volta à fala.
— Tenho uma proposta para ti: vamos fazer uma aliança.
Começa por admitir que tenho poderes. E que os meus
poderes são maiores do que os que ele alguma vez deteve.
Sou, diz ele, a única preta que os portugueses escutam.
Propõe que invente uma diferente versão para os
acontecimentos. Uma versão que lance as culpas sobre
Nwamatibjane Zixaxa.
— Protegi Zixaxa com riscos que ninguém pode avaliar.
Os portugueses fizeram-me guerra por causa de Zixaxa. E
agora esse tipo culpa-me por o ter entregue aos
portugueses?
Resistiu para além do que todos esperavam. Só entregou o
refugiado dos mfumos quando já não tinha escolha. A vida é
ingrata, lamenta Ngungunyane.
— Zixaxa anda por aí a propalar que sou igual aos
brancos e que atormento os meus irmãos negros. Diz que
molesto os mais desgraçados, que maltrato os meus
escravos. Mas eu pergunto: o que é que ele faz com a sua
gente?
O imperador de Gaza tem razão, apetece-me dizer. Sucede
sempre assim: os humilhados acabam por ficar iguais aos
opressores.
— Estou muito triste, preciso de um consolo — queixa-se o
rei. — Levanta os teus panos, quero ver as tuas pernas.
Fecho os olhos, inspiro fundo. O simples pedido já me
agride. O rei percebe o meu mal-estar. E murmura: Está
certo, então traz-me mais uma garrafa de vinho doce.
Retiro-me. Ngungunyane ainda resmunga antes que
fechem as portadas. Quando ele se encontrar com o rei de
Portugal não terá nada para lhe dar.
— Vou oferecer-te a ti — ainda o escuto gritar. — Mas
primeiro tenho que provar a qualidade da prenda.
*
No dia seguinte Álvaro Andrea volta a passar pelo
estabelecimento de Bianca. Uma vez mais convida-me a
passear pela cidade. Ante a minha recusa, o português
argumenta:
— Este será o nosso último encontro. O teu barco sai
amanhã.
Acabo por ceder. O português leva-me para uma encosta
coberta de hortas. Aqui e ali, mulheres indianas laboram
nesses campos com os seus coloridos saris. Ali nos sentamos
a olhar a azáfama que começa a agitar a cidade. Carroças
puxadas a burros trazem bóeres do Transvaal e ingleses do
Natal. Viajam estes desgraçados — comenta o português —
atraídos como mariposas pela boémia noturna que, nas suas
terras, foi proibida pelo puritanismo.
Os primeiros edifícios de pedra e cal foram construídos por
negros. Um pedreiro, um carpinteiro e um ferreiro vieram de
Inhambane para fazer as obras. A eles se juntou um calafate
local. De tanto trabalhar com estopa alcatroada, o calafate
tinha os dedos completamente negros. Levantava-os com
orgulho e proclamava: Eu é que sou o verdadeiro negro.
Rimo-nos. E de novo os nossos dedos se entrelaçam até
que, suave mas resolutamente, me afasto de Andrea. E
interrogo-me sobre o que faço ali, de mão dada com um
homem tão inesperado e diferente? Em algum lugar
Germano espera por mim. E eu espero por ele com igual
devoção. Esse lugar, contudo, vai-se esbatendo como as
pegadas que juntos, eu e Andrea, vamos deixando na estrada
de areia molhada.
*
A um certo ponto, cruzamo-nos com um velho curandeiro.
Andrea saúda-o com «senhor doutor». E não há ironia. Até
há pouco tempo não havia médico em toda aquela povoação.
Os brancos eram tratados por este nyamussoro da etnia dos
mfumos. O velho curandeiro ri-se quando Andrea evoca
esses tempos. Por cada soldado que curava, recorda num
improvisado português, ele recebia uma capulana. E como os
brancos não parassem de adoecer, o homem acumulou panos
até não ter casa para os guardar. Perdeu a conta aos
casamentos que contraiu para dar destino a tanto tecido.
— Cuidado com as mulheres — avisa o velho curandeiro
apontando para mim. — Não há melhor doença.
É então que surge, afobado, o tradutor Zeca Primoroso.
Está irreconhecível, olhos arregalados, cabelos
desgrenhados. Pede ao curandeiro que se afaste. O que nos
quer dizer é confidencial.
— Fui mobilizado, capitão. Vão enviar-me para a frente de
guerra.
Primoroso vem de uma reunião de emergência no
Comando Militar do Sul, onde atuou como tradutor.
Chegaram à cidade informações preocupantes sobre a
situação que se vive em Gaza desde a prisão do rei. Há sinais
de que o exército dos vanguni se reorganiza.
— Ouviste o Ngungunyane comentar sobre este assunto?
— pergunta-me o português.
Encolho os ombros. Faço por esquecer o que, nos últimos
dias, o rei deposto não parava de repetir: Esta guerra não
está a voltar. Ela nunca chegou a sair.
*
Até há momentos eu era o centro do mundo. Num instante,
torno-me invisível. As novidades de Gaza ocupam
totalmente Andrea e Primoroso. Quem tomou conta das
terras do imperador foi uma elite composta por soldados
brancos ou africanos de origem angolana, para além dos
sipaios locais. Colocaram-nos em funções mas não lhes
deram meios de subsistência. Vivem de violar as mulheres e
saquear os bens da população.
— E Maguiguane? — pergunta Andrea.
— Maguiguane anda de aldeia em aldeia a mobilizar a
gente para a revolta — responde Zeca. Por onde passa o
guerreiro nguni vai proclamando aos berros: «Vambuyisa
inkosi», Devolvam-nos o rei, é o seu clamor.
— Lá volto eu para o inferno do Limpopo — queixa-se
Andrea.
Se a guerra vai recomeçar, então novos contingentes serão
enviados para Gaza. O mais provável é que o transfiram para
voltar a comandar a corveta Capello.
Despedem-se Zeca e Álvaro. A magra figura do tradutor
desaparece entre os edifícios. O regresso a casa de Bianca é
feito em silêncio. À porta do bordel pergunto ao capitão:
— E Germano? Acha que também o irão mobilizar?
Álvaro Andrea encolhe os ombros e começa por dizer:
Quero lá saber… E logo muda de tom, envergonhado:
Germano vai-se safar, basta que invoque os ferimentos de
guerra. Eu é que não tenho ferida que me salve…
Penso nas mãos de Germano. Mas são as mãos de outro
homem que apertam as minhas em atabalhoada despedida.
Capítulo 16

Nem juba nem coroa


No início do tempo,
havia apenas uma aldeia e um poço.
A isso se resumia o mundo:
uma aldeia e um poço.
Certa vez, ao encher o cântaro,
o homem deixou cair os olhos dentro do poço.
Mergulhou os braços cegos no escuro
e percebeu que o poço não tinha paredes.
E o homem sentiu
que era chamado pelas águas sem fundo.
Quando encontrou os olhos
tinha nascido o mar.
(Lenda contada por Dabondi)
Não me deixam sair da prisão onde acabei de conversar
com Ngungunyane. Por um momento sou apenas mais um
dos prisioneiros. Os militares dizem que dali partiremos
todos diretamente para o cais. É noite cerrada quando nos
fazem seguir silenciosos e em fila indiana para o porto de
Lourenço Marques. Conduzem-nos assim pelo escuro com
medo de uma emboscada. Até que vislumbramos as
longínquas luzes de um navio que nos espera na baía. Com
receio de cair, apoio-me no ombro de Dabondi que segue a
meu lado. Ela repele o meu gesto. Deixe-me tropeçar, o que
mais quero é cair, declara. E acrescenta em surdina: É a
última vez que pisamos a nossa terra. É pena que caminhes
calçada, Imani. Todas nós, diz ela, vamos partir
acompanhadas: a poeira dos mortos agarra-se para sempre
aos pés.
Se já era grande o barco em que viajáramos, este outro
parece maior que a cidade de Lourenço Marques. O África é
tão imenso que não pode atracar no cais. Se o fizesse, ao
encostar em terra todo o continente se quebraria. É por isso
que somos transportados em barcaças para bordo. Durante a
breve viagem as mulheres mantêm-se cabisbaixas. Apenas eu
contemplo o céu estrelado. Dabondi manda-me que baixe os
olhos. Vou ser mãe, não devo encarar as estrelas.
O comandante está à nossa espera como se nos recebesse à
porta de casa. É um homem calvo, rosto largo e um sorriso
bondoso. Está fardado a rigor, o casacão azul-escuro
contrastando com quatro barras douradas sobre os ombros e
as mangas. As medalhas que traz ao peito são tantas que
parece envergar uma armadura.
— Sou capitão de fragata e o meu nome é António Sérgio
de Sousa — anuncia o comandante. Aponta para uma
atarracada criatura perfilada a seu lado: — Este é o meu
adjunto, o sargento Júlio Araújo.
O sargento é a imagem invertida do comandante: estatura
baixa, face escavada, cabelos negros juntando-se a uma
barba cerrada, olhos fundos quase ocultos pelas sobrancelhas
espessas.
Ngungunyane é o primeiro prisioneiro a entrar. Fica
especado perante o comandante, impedindo a passagem dos
que o seguem. De repente verga-se numa pronunciada vénia.
Apoiando-se no meu braço, declara:
— Diz-lhe que sou filho dele.
O comandante sorri, incapaz de entender. Pede ao rei de
Gaza que se levante mas este insiste em se manter ajoelhado.
Repuxando-me a capulana, Ngungunyane pergunta em
xizulu:
— Este não é o rei D. Carlos?
Custa-me, admito, ver humilhado aquele que tanto obrigou
os outros a se ajoelharem. Traduz, Imani!, volta a pedir
Ngungunyane. Diz-lhe que sou seu filho, sou filho do rei de
Portugal! Tomando as mãos do comandante, o prisioneiro
passa da bajulação à súplica: Não me leve, por favor, eu já
estou morto, estou muitíssimo morto. A mando do sargento
Araújo arrastam Ngungunyane enquanto ele continua
proclamando o seu próprio óbito.
Findo o desfile dos primeiros prisioneiros, passam por nós
mais trinta detidos, encabeçados pelo missionário protestante
Roberto Machava. Estes outros negros, capturados em
Lourenço Marques, têm um destino diverso: serão exilados
em Cabo Verde, acusados de conspiração contra a pátria
lusitana. Nenhum deles sabe dessa acusação, nenhum deles
sabe que pátria é essa que tanto ofenderam.
Aos berros, o sargento Júlio Araújo toma conta das
operações: Separem já os presos em dois grupos, senão
nunca mais conseguimos! Esses gajos são todos iguais. E
ordena que sejam inspecionados. Não vá suceder algum deles
suicidar-se pelo caminho. Ele próprio procede à revista de
cada um dos prisioneiros. Demora-se acintosamente na
inspeção das mulheres.
— Deus nos proteja, comandante, que levamos demónios
no porão — declara Júlio Araújo.
E todos os brancos se benzem, ao escutar as palavras do
sargento.
*
Sob escolta, fazem-nos descer por uma escada de ferro.
Conduzem-nos depois por um corredor iluminado por
trémulos candeeiros de teto. Escuto Ngungunyane balbuciar:
Este barco é o meu caixão de ferro. As rainhas desabam em
pranto quando encaram o escuro cubículo onde serão
alojadas.
— Explica-lhes como serão distribuídos — ordena-me o
sargento.
É um milagre que dezasseis pessoas caibam em tão
minúsculo compartimento. Dois tabuleiros suspensos um
sobre o outro servirão de cama para todos os presos, homens
e mulheres. Vou traduzindo as instruções: no tabuleiro
superior repousarão o rei e todas as suas mulheres. Em baixo
e à entrada, deitar-se-ão Godido, o cozinheiro Ngó e
Mulungo. No mesmo tabuleiro, mas mais ao fundo, dormirão
Zixaxa e as suas três mulheres.
Os dezasseis prisioneiros de Gaza são encafuados no
cubículo e a porta é trancada à chave. Destinam-me uma cela
separada, uma espécie de despensa localizada mesmo em
frente ao compartimento da gente de Ngungunyane.
Roberto Machava e os trinta presos de Lourenço Marques
são encaminhados para um porão de carga. Quando se abre o
alçapão, o pastor e os seus comparsas recuam aterrorizados.
Reina entre eles a ideia de que o porão dos navios é um
buraco escuro que se abre para o fundo do mar. É ali, nessas
profundezas, que queimam os escravos e, depois, com as
cinzas dos ossos fabricam a pólvora.
— Não acredito nisso — digo.
— Não acredita? — pergunta um dos presos. — O que
aconteceu aos nossos irmãos que foram levados? Algum
voltou? — e remata, com absoluta certeza: — Comem-nos.
Um outro prisioneiro alerta: Nesta viagem ninguém aceite
comer carne! Estaremos a comer a nossa gente.
— Façam como quiserem — concedo.
— Querem que engordemos. É o que eles querem.
*
Antes de o navio levantar âncora peço ao sentinela que me
deixe subir ao convés. Preciso de um pouco de ar,
argumento. Só então reparo: o soldado é mulato. Observo,
absorta, a cor de bronze da sua pele, os cabelos de largos
caracóis. E penso: o meu filho será assim.
— De onde vens? — pergunto.
— Venho da casa das máquinas — responde. —Estou sujo,
coberto de poeira.
Não entendeu a minha pergunta, não entende o meu
sorriso. Subimos as escadas em silêncio. À entrada do convés
faz um gesto como se me abrisse um invisível cortinado. E
regressa ao posto de vigília.
O convés está repleto de passageiros que assistem à
largada do navio. Não deixa de haver ironia nesta triste
fatalidade: um navio chamado África afasta-me do continente
africano, com um filho mulato na barriga e deixando o meu
homem branco em terra de negros.
— Não podes estar aqui — avisa-me.
Mas logo escuto António de Sousa corrigindo a anterior
interdição:
— Deixa-a comigo, marinheiro.
— Estou grávida, capitão — desabafo, envergonhada da
minha triste figura.
Aponta para os meus pés e sacode a cabeça em desagrado.
— Peço desculpa, senhor capitão — murmuro. — Os pés
já não me cabem nos sapatos.
Somos cercados por outros passageiros, civis e militares,
que querem assistir à largado o barco.
— O soldado tinha razão, tens que ir lá para dentro.
— Deixe-me ficar, por favor. Eu volto a calçar-me…
A questão não era os meus pés. O comandante demora-se
nos números, não me quer magoar. Tinha a bordo duzentos e
sessenta civis e mais de duzentos militares. Cerca de
quinhentos passageiros queriam assistir à partida e nenhum
deles gostaria de se cruzar com uma mulher da minha raça.
Os sapatos pendendo na mão, inicio o caminho de regresso
quando António de Sousa revê as suas intenções.
— Podes ficar além, naquele canto escuro, ninguém dará
pela tua presença.
Com esforço volto a calçar-me. E lembro o meu irmão
Mwanatu, com aquele juízo toldado, que tanta felicidade lhe
trazia, rezando a Deus para parar de crescer e, assim, os pés
lhe coubessem para sempre no seu único par de sapatos.
*
Autorizaram que Dabondi se juntasse a mim na amurada.
A rainha senta-se de costas voltadas para terra. Encorajo-a a
contemplar as luzes da cidade.
— Quem quer fugir olha apenas para a frente — afirma
ela.
Passa por nós um casal que se espanta com a nossa
presença. O marido comenta, não imaginando que percebo
português: Aposto que fazem parte de um grupo folclórico de
dança para entreter os da primeira classe. E a mulher
remata: É o que eles sabem fazer, é dançar.
E afastam-se rindo. A rainha contempla o casal e, quando
as vozes e os risos se dissipam, confessa que não esperou por
mim para começar com as lições de português. Quem a está a
ensinar é Godido. Quando me vê sorrir, reage: apenas precisa
de noções básicas.
Prometo que lhe darei aulas. Sugiro que partilhemos o
mesmo quarto. Dabondi recusa: até ao fim dos seus dias
dormirá junto do marido.
— Mas o rei dorme entre Muzamussi e Tuka.
— Não me interessa com quem se deita — argumenta
Dabondi. — É só comigo que ele sonha.
A rainha revê os nomes das restantes esposas. Conta-as
pelos dedos, como se conferisse as pedras de um rosário. E
volta a enunciar os nomes: Muzamussi, Namatuco, Patihina,
Machacha, Xesipe e Fusi. São sete esposas, diz ela. Mas
apenas eu protejo os sonhos do rei.
*
Naquela noite Dabondi não protegeu o esposo dos
pesadelos. De madrugada, Ngungunyane acorda aos berros:
Não fui eu, não fui eu! O alvoroço instala-se no quarto, os
pontapés na porta de ferro ecoam pelo corredor e alarmam o
sentinela de serviço. Abrem a porta de ferro, amarram os
pulsos a Ngungunyane e mandam que os presos se juntem no
corredor. No cubículo apenas resto eu, o rei e o furibundo
sargento Araújo.
O rei demora a retomar a respiração. Está completamente
nu, a coroa de cera amolgada, uma baba escorre-lhe pelo
queixo. A medo vai revelando os demónios que lhe roubaram
o sono. O pesadelo ainda não lhe saiu da cabeça: uma canoa
aproxima-se da praia, trazendo um corpo. A uma certa
distância apercebe-se de que é o seu irmão Mafemane que
vem dentro da embarcação. O rei mantém-se afastado da
água: o mar é um território interdito. Quando a canoa toca a
areia ele constata que, na realidade, se trata de um caixão.
Nesse esquife aberto o irmão vai falando como fazem os
mortos: sem mover os lábios.
— Meu irmão Mundungazi — pede-lhe o falecido —, tens
que fechar este caixão.
Ngungunyane fica preso ao chão: para colocar a última
tábua sobre a canoa precisa de entrar pelo mar adentro,
impensável heresia. Mas se não fechar o caixão será visitado
pelo morto a vida inteira. Com horror vai avançando de
encontro às ondas enquanto tenta, em vão, puxar a canoa
para terra. A embarcação fúnebre está temporariamente
encalhada num banco de areia. Mafemane volta a falar:
Entra no caixão e rememos os dois para terra. As ondas são
agora mais altas, os pés do rei deixam de tocar o fundo. Não
lhe resta alternativa senão saltar para dentro da improvisada
embarcação. Assim que o faz, a tampa do caixão cai sobre
ele. O escuro que se instala é o mesmo que reina no cubículo
onde os portugueses o encarceraram. O navio é o caixão
onde viajam ele e Mafemane, o seu efémero irmão, esse
eterno moribundo.
O sargento manda-me que ajude o imperador a recompor-
se. Para isso levam-no a passear pelo convés. Enroscado
numa manta, Ngungunyane caminha com pequenos e
arrastados passos.
— É o rei dos pretos — declara um dos passageiros.
Traduzo para que Ngungunyane perceba que há quem o
reconheça. Parece sorrir mas é um esgar triste o que se lhe
desenha no rosto. O imperador sabe dos poderes que acabou
de perder.
— Diga-me uma coisa, Imani: não há, em todo este navio,
um pedaço de terra que possa ser escavada?
Mais do que ignorância, reina a ilusão em Ngungunyane.
Todos, afinal, sabemos: não é em terra que sepultamos os
mortos. Os que partiram apenas no nosso peito encontram
sossego. O irmão que mandara matar, o Mafemane, saiu da
vida mais vivo do que entrou.
Ngungunyane procura com os pés descalços uma
impossível fenda no chão de metal. Sente saudade da areia
onde se adentram a chuva, o orvalho e o sangue. Fecha os
olhos e vê um rio vermelho escorrendo entre as áridas
paisagens do seu reino.
*
O pesadelo de Ngungunyane perturbou a falsa harmonia
entre os presos. Quando o rei regressa à cela, os detidos estão
concentrados no corredor. Zixaxa encontra-se algemado a
uma trave e, assim que vê chegar o rei de Gaza, desata a
vociferar:
«Não te iludas, Ngungunyane. Os portugueses não te
levam porque sejas grande. Levam-te por causa dos ingleses.
Não penses que te estão a matar. Pelo contrário, salvam-te
de seres morto pela tua gente, no teu próprio reino. Os
vatsonga não te respeitam, os vatxopi odeiam-te, os vandau
não te reconhecem autoridade. Os mabuiendjela, esses que
antes te veneravam, cuspiram nas tuas pernas quando foste
preso. Já não és nada, não tens amigos, não tens irmãos,
estás só com as tuas mulheres. És apenas mais uma delas, és
uma rainha viúva. Para os portugueses deixaste de servir
como inimigo. No final desta viagem já nem como troféu de
guerra terás utilidade.»
Godido e o cozinheiro Ngó esperam por um sinal para
fazer calar Zixaxa. As rainhas olham ansiosas para o marido.
Ngungunyane limita-se a praguejar em surdina:
— Não chegaste a pronunciar uma palavra. Tudo o que
fizeste não foi mais do que latir. Não passas de um cão.
Os soldados repõem a ordem, os presos voltam a ser
encafuados na cela escura. De regresso ao meu cubículo vou
forçando passagem por entre os militares que se juntaram no
corredor. Os olhos dos homens dizem que sou uma mulher.
Escuto-lhes os desejos. Mas não me tocam. A curva no meu
ventre anuncia que, em breve, serei mãe. Abro a porta com
uma certeza: não passo de uma menina. Talvez menos que
isso. Porque adormeço enroscada, os joelhos tocando o rosto.
Na mesma posição em que, dentro de mim, vai dormindo o
meu filho.
Capítulo 17

Bartolomeu
e o caminho marítimo para o céu
«… Tem razão Dabondi quando diz que o
navio é uma prisão. O oceano é tão infinito que
cria um sentimento de clausura. O ruído da
quilha rasgando as ondas, o subterrâneo vibrar
das hélices, o lúgubre lamento das chaminés, o
metálico correr da âncora: tudo isso me traz uma
fadiga milenar.
O Gungunhana está certo quando se lamenta
que não existe neste navio uma pedra onde se
possa sentar. Já quase não há madeira nos barcos
de hoje. Agora as embarcações pedem pouco ao
vento. Tal como essas mulheres, que pararam de
sonhar e se deixam engordar, estes navios
deram-se ao luxo de ser pesados.
Não posso dizer quanto me cansam estas
ambulantes prisões. Apesar de tudo, sempre que
me demoro em terra volto a ser tentado pelo
chamamento de um mar longínquo. E, de novo,
me faço ao cais, de novo sigo viagem.
Essa é a indecifrável sedução do mar:
nenhuma voz é tão humana, nenhum silêncio é
tão cheio de histórias.»
(Excerto do diário do comandante
António Sérgio de Sousa)
À saída de Lourenço Marques a rainha Dabondi vaticinou
que ia chover. Uma água lê-se noutra água, disse ela
fixando-me demoradamente os olhos. Tinha razão a rainha:
desde ontem que chove tão intensamente que se deixou de
ver o mar.
Atravesso lentamente o convés como se marchasse por
dentro de uma nuvem. Fui chamada pelo capitão António
Sérgio de Sousa.
Sacudo as vestes e a medo entro no camarote do capitão. O
aposento é espaçoso e iluminado. A primeira coisa que vejo é
um pássaro pousado no ombro do português. O bicho
espreita-me, curioso, numa postura híbrida entre príncipe e
palhaço. Depois assusta-se e bate as asas para se refugiar
numa gaiola pendurada no teto. O comandante chama-o:
«Bartolomeu!» E o pássaro, um papagaio do Congo,
responde: «Pronto, meu capitão!» Salta para a mesa e
caminha com o andar oscilante dos anões.
— De vez em quando suja-me os mapas — lastima-se o
comandante.
O papagaio ensaia um desajeitado voo que faz sobressair a
cauda vermelha por entre a plumagem cinzenta. Pergunto se
devo fechar a porta. Deixe-a aberta, recomenda Sousa.
Bartolomeu criou as suas rotinas: esvoaça pelo convés, em
pleno mar alto; em terra não sai do camarote, com medo das
gaivotas.
— Quanto ao pássaro estou tranquilo. Não estou certo é
se não devemos separar esse Zixaxa do rei de Gaza.
— Zixaxa não vai molestar Ngungunyane.
— Como podes estar tão certa?
— Zixaxa acredita que se Ngungunyane morrer vocês, os
portugueses, o atiram ao mar. Sem o rei, nenhum dos
prisioneiros tem mais valor.
A intenção de António de Sousa é oferecer o papagaio ao
filho, que vai completar oito anos. O menino nasceu na Índia
mas cresceu em África. Agora está em Lisboa e sofre de
asma. Acredita o capitão que o filho sente falta dos céus
africanos. Não é no chão, é nos céus que ele mais encontra
África.
*
— Não foi por causa de um papagaio que te chamei — diz
o capitão sacudindo as mãos, como se lhe ardessem os dedos.
Está a enxotar-me. A minha visita não se pode prolongar. Sou
o comandante, diz ele, não me podem ver fechado contigo
nos meus aposentos.
Chamou-me porque está preocupado. Um dos presos do
porão, desses do grupo de Machava, suicidara-se na noite
anterior. O capitão receia que mais presos lhe sigam o
exemplo. Mandou que lhes melhorassem a dieta. Não
resultou. Aquela gente carecia de um conforto espiritual. O
que falta em bem-estar pode ser compensado pela crença.
— Esta gente — diz ele — é muito crente.
Seria de toda a conveniência que os presos acreditassem
que os deuses protegiam o barco e abençoavam a viagem.
No dia anterior tinha convocado Roberto Machava. Sabia
da influência do pastor junto dos restantes negros. O
encontro aconteceu naquele mesmo camarote. Sousa
explicou a sua intenção. Iria juntar os presos numa grande
assembleia para que o pastor conduzisse uma bênção
africana e, assim, garantisse que o barco chegaria a bom
porto. Uma benção africana?, perguntou o pastor Machava.
Peço perdão, mas há aqui um engano, acrescentou ele. Sou
um missionário cristão. Não tenho crenças africanas. Eu e o
senhor partilhamos o mesmo Deus, o único que pode
abençoar este barco.
Sem uma palavra, António Sérgio de Sousa deixou que o
pastor se retirasse. Mas não desistiu. Foi por isso que me
chamou esta manhã e me transmitiu com estranha pressa:
— Não resultou com o pastor. Mas vai resultar com a
rainha feiticeira. Vais trazê-la ao meu camarote. E quero que
os presos saibam que a vou receber. E saibam que, aqui, no
meu camarote, ela vai abençoar a nossa viagem.
*
Acompanho a rainha ao camarote do capitão. Dabondi
resiste, no início. Não quer que os demais prisioneiros
saibam que atira os búzios no quarto do capitão. Vão dizer
dela o que já dizem de mim: que se vendeu aos brancos. À
entrada a rainha reage, de modo ríspido:
— Só entro nesse quarto se esse branco me der notícias do
meu filho.
O capitão reage, solícito. Anota o nome que a rainha lhe
dita ao mesmo tempo que vai soletrando: «Man-gue-ze». Por
que razão, pergunto-me, os nossos nomes se enovelam tanto
na boca dos portugueses?
— Envio já uma mensagem para Lisboa! — promete
António de Sousa. — Amanhã saberemos do paradeiro desse
rapaz.
Ainda assim, a rainha hesita em entrar. Esse pássaro, diz
ela apontando para Bartolomeu. E o comandante apressa-se a
engaiolar o papagaio.
Por fim a adivinhadeira senta-se na alcatifa e retira de uma
sacola os ossinhos mágicos. As instruções do comandante
são claras: Diz-lhe que se demore o tempo que for preciso. É
bom que todos saibam que ela esteve aqui. A rainha vai
invocando os nomes dos defuntos que o português lhe vai
ditando. A seu modo pronuncia aqueles nomes e a maior
parte deles torna-se irreconhecível para António de Sousa.
Os tinhlolo espalham-se pelo chão: mais que búzios são
ossículos, sementes, conchas. Cuidado com as sementes,
adverte o português. O Bartolomeu chama-lhes um figo!
Dabondi vai balançando, fungando, espirrando, tossindo e,
por fim, entra num convulsivo transe. Com os olhos
revirados e a voz desfigurada ela anuncia: Há um homem
descalço atravessando um rio que desce dos céus. Nessa
terra chove tanto que ninguém precisa de abrir um poço…
— É o Congo! Só pode ser o rio Congo! — exclama o
capitão Sousa.
— O comandante acha que nos transporta como
prisioneiros — declara a rainha. — Mas o único prisioneiro é
o senhor. Este barco é a sua prisão.
Olhos cerrados a rainha sublinha cada palavra com um
embalo do corpo. Vou-lhe seguindo as palavras e os gestos
com tal entrega que o comandante me pergunta:
— Por que gesticulas tanto quando traduzes?
— Porque quando traduzo eu sou ela.
*
Sonho que viajo num navio comandado por um capitão
negro. O navio chama-se Europa e tem o casco pintado de
cores garridas como os panos africanos. Os mastros são
árvores e dão sombra ao convés. O vento espalha folhas
sobre o mar.
Um roçar de dedos na porta interrompe-me o sonho. Deve
ser Dabondi, penso estremunhada. Dou um jeito ao cabelo e,
com inesperada dificuldade, amarro uma capulana à cintura.
Estou de cinco meses, não tarda que seja devorada pela
minha própria barriga.
Voltam a bater. Entreabro a porta. É o missionário Roberto
Machava. Mãos apressadas antecipam-se ao rosto do
visitante:
— Vê este desenho — pede-me.
Estremeço. É um desenho a cores que, em criança, fiz para
o meu pai. Nele se via uma aldeia queimada e corpos jazendo
no chão. Sob as figuras está escrita uma legenda, uma jura de
vingança contra as tropas de Ngungunyane.
— Como conseguiu este papel? — pergunto, alarmada.
Deixa-me entrar. Não posso falar aqui no corredor.
Venha noutra altura.
Este é o melhor momento. Estão todos distraídos com a
chegada à próxima cidade.
O pastor entra e fica encostado à porta como se a quisesse
duplicar. Deixa de falar português e explica-se na sua língua
materna. Machava tinha passado pelo Save e visitara o meu
pai, Katini Nsambe, e a sua atual esposa, a profetisa
Bibliana. O meu pai estava certo de que o missionário me
encontraria em Lourenço Marques. Quando lhe entregou o
desenho, o meu velhote foi categórico: «Entregue a Imani
para que ela não se esqueça do que prometeu.»
— Fiz a mesma promessa — afirma Machava. — Também
busco a mesma vingança e preciso da tua ajuda.
— Peça ajuda a Zixaxa.
— A todos menos esse. Estou preso, junto com os meus
companheiros, graças a esse traidor.
Reabre a porta e espreita o corredor, a confirmar que
ninguém nos escutava. Depois volta a trancar a porta. O seu
rosto está perto do meu quando confessa: Estou a preparar
uma revolta. Sacudo a cabeça e ele repete: É o que estou a
preparar, uma sangrenta rebelião. O plano é simples, mas de
uma lógica arrepiante: vai matar o rei de Gaza. Sem
Ngungunyane, os portugueses chegariam a Lisboa de mãos
vazias, sem prova da arrebatadora vitória que tanto
proclamavam. Se o matássemos agora, argumenta Machava,
seria impossível preservar o cadáver até chegarmos a
Lisboa. As nações europeias pensariam que Portugal tinha
forjado uma desajeitada encenação. O plano do missionário
fechava com chave de ouro: no interior de Moçambique os
religiosos protestantes clamariam que Ngungunyane
continuava vivo, errando pelas montanhas do Transvaal. E
quem, neste mundo, poderia provar o contrário?
— Vou dizer-te o que deves fazer — declara o missionário.
— Não! Não me diga nada. Não estou preparada.
Uma terrível dúvida me assalta: se Ngungunyane morrer
na viagem, por que motivo continuariam a levar-nos até
Lisboa? Seríamos certamente abandonados em Luanda ou
em Cabo Verde. Nunca mais veria Germano, nunca mais o
meu filho conheceria o pai. Fiz uma promessa de vingança, é
verdade. Mas não tenho que a cumprir agora.
— Escuta, minha filha.
— Vá-se embora, pastor Machava. Vá-se embora ou eu
grito!
— Pensa no que te pedi — murmura o pastor à saída.
Passa pelo sentinela, que dorme. Vejo-o desaparecer no
porão. Tranco a porta e suspiro. Várias angústias me roubam
o peito: a minha recusa em ser cúmplice de um assassinato
não basta. É imperioso fazer abortar aquele plano. Há que
denunciar, sem demora, as intenções do missionário. Não é
difícil, porém, adivinhar as consequências dessa denúncia:
lançarão ao mar o Machava e os seus correligionários. Resta-
me a impossível escolha entre dois crimes.
*
O África aproxima-se agora de uma terra que não é igual a
nenhuma outra. No horizonte se adivinha a Cidade do Cabo.
Um maciço de montanhas cinzentas emoldura a cidade.
Contemplo aquelas montanhas como, na prisão, o condenado
espreita uma nesga de céu.
Vigiados por militares, os presos são autorizados a
disfrutar da paisagem. Dabondi junta-se a mim e ao capitão.
Aperta-me as mãos, fascinada pela visão de um continente
que parece acabado de nascer. E profetiza:
— Virá o dia em que um negro conduzirá um navio como
este. Depois dirige-se a mim para ordenar: Traduza, Imani.
Esse português deve saber desse futuro.
— Só se o mar se tornar um rio — contesta António de
Sousa, assim que lhe traduzo o presságio.
— O mar sempre foi um rio — afirma Dabondi.
Rimo-nos eu e o comandante. No rosto da rainha se esboça
um vago sorriso. O português olha em redor com receio de
que alguém nos surpreenda naquela animação. Inclinado
sobre a rainha pergunta: É bom ver terra, não é?
Não espera resposta. Quer apenas ser escutado. A noite
passada não tinha pregado olho pensando nas palavras de
Dabondi. A rainha tinha razão: aquele barco era uma prisão.
Durante a insónia pensou nos colegas que abandonaram a
Marinha e se puseram a deambular por terras africanas. Não
escolheram tornar-se pioneiros. Estavam apenas cansados da
clausura do mar. As feras, a selva e as tribos primitivas, tudo
isso era preferível à eterna solidão do oceano.
É bom ver terra, repete para si mesmo. Antes de se retirar,
o comandante transmite ordens ao sargento Araújo:
— Vá lá abaixo com estas duas mulheres e prepare o
régulo para receber as visitas. Dê-lhe vinho e uma roupa
apresentável. Quero o homem num brinco.
*
Vestido com trajes europeus, o rei de Gaza é deixado
sozinho no seu aposento. Todos os restantes prisioneiros são
transferidos para o porão. Com exceção de Dabondi, que
permanece a meu lado.
— Vocês as duas vão para o quarto e esperem lá por mim
— ordena Araújo.
O navio está imobilizado, desligaram as caldeiras.
Procederão assim sempre que o África chegar a um porto. Há
que poupar no carvão. Sem o aquecimento a funcionar, o frio
toma conta do navio. Na penumbra do meu cubículo encosto-
me a Dabondi como se fôssemos um só corpo. Com as mãos
a rainha faz uma concha com que me aquece o ventre.
A porta abre-se bruscamente para dar passagem ao
sargento Araújo. Um estranho brilho se acende nos olhos ao
surpreender o gesto de ternura de Dabondi. O compartimento
é exíguo, mas o militar considera que há espaço para três. E
incentiva-nos: Continuem, continuem, quero ver essas
carícias! Não é a mim que ele deseja. Sou demasiado
próxima, demasiado europeia. Os seus devaneios são com as
esposas do rei, cujos nomes não saberá nunca pronunciar. O
temor de contrair doenças é, no entanto, maior do que o
desejo que sente por elas. Limita-se a violá-las em sonhos,
sem ter que as olhar nos olhos e sem o incómodo de lhes
cheirar o suor ou o risco de apanhar doenças.
Deve imaginar que eu e Dabondi nos acariciamos com
despudor. E que o fazemos para o excitar.
— Encostem-se mais. Quero ver-vos como marido e
mulher — ordena o sargento.
A mão de Araújo esgueira-se por dentro das calças, os
olhos babados antecipando-se à própria visão. Como nos
mantivéssemos estáticas, o militar ergue o tom de voz e
exige:
— Mostrem as mamas!
Não é dos que gritam que deves ter medo: era o conselho
da minha mãe. Os verdadeiros malvados, dizia ela, nunca
elevam a voz. Se o aviso é verdadeiro, os berros deste
homem não me deveriam atemorizar. E, contudo, há nele
algo que me provoca um calafrio.
— Estamos grávidas — advirto.
— Não estão — diz o sargento — mas vão engravidar não
tarda nada.
A rainha levanta-se e deixa tombar a capulana. O sargento
dá um passo atrás, surpreso ao ver a mulher despida, o pano
rendido junto aos pés. Mais estupefacta fico quando a rainha
pede que me dispa também. Sacudo a cabeça, receosa de que
lhe tenha escapado o que ali se passa. De um puxão Dabondi
arranca-me o vestido. Estamos ambas nuas, indefesas perante
o desaustinado português.
As mãos de Dabondi avançam, provocantes, na direção do
sargento, que já vai fechando os olhos. Mas o gesto tem outra
intenção. De um puxão, a rainha abre a porta e
apressadamente me empurra para o corredor. Ele que nos
siga, como fazem os bois no cio, declara a rainha enquanto,
despidas e de mãos dadas, avançamos pelos subterrâneos do
navio. Subimos a escada que desemboca no convés. Até onde
irá este branco?, indaga Dabondi. Só então entendo o
estratagema de Dabondi: a nudez que tanto nos fragiliza era,
naquele caso, a nossa melhor defesa. Num lugar aberto como
o convés estaríamos defendidas dos avanços de Araújo.
Atrás, muito atrás, escuta-se o sargento pontapeando as
paredes do navio.
Capítulo 18

Um involuntário suicídio
Através do teu coração passou um barco
Que não para de seguir sem ti o seu caminho
(Sophia de Mello Breyner, in Navegações)

«Oh Daude! Daude!, vai dizer ao


administrador Madekhise que chegaram uns
brancos e prenderam o carrasco. Oxalá o
encontre!»
Extrato de uma canção dedicada à prisão de Ngungunyane.
A canção foi composta pelo maestro Katine Nyamombe e
apresentada pela sua orquestra de timbilas durante a visita
do presidente Óscar Carmona a Magul, no Sul de
Moçambique, em 1939. Daude era um funcionário da
administração de Zavala.
Fomos avisados nós, os negros: estamos interditos de sair
do navio. Esta é a regra na Cidade do Cabo. Permite o
comandante que ocupemos o convés e nos deleitemos a
observar a permanente azáfama de cargas e descargas que
reina no cais. Os prisioneiros apontam para as maquinarias
do porto à procura de nomes que não existem nas suas
línguas. Depois, riem-se, divertidos, por verem tantos
mulatos carregando pesados fardos. Não são como os
mestiços da nossa terra, que se mantêm afastados do trabalho
penoso. E riem-se os meus irmãos destes mestiços, que
transpiram como mineiros escavando no chão do inferno. Só
eu não me rio. E penso no meu futuro filho. Será um eterno
estivador carregando o peso da sua própria pele.
Durante horas consecutivas, jornalistas, diplomatas e
missionários sobem a bordo para entrevistar Ngungunyane.
A Cidade do Cabo era a primeira montra fora de
Moçambique onde se expunha o rei africano. Num recanto
do convés, os portugueses prepararam um cenário à altura:
sentaram o rei numa poltrona de cabedal, com vestes
emprestadas e umas botas militares que lhe pesam como
chumbo nos pés. Não imaginam os estrangeiros as
desumanas condições em que viaja o entrevistado. O rei sorri
e acena para cada um dos visitantes. Nenhum deles lhe
devolve a simpatia.
Ao meio dia, já sem visitas, o cozinheiro Ngó traz-nos de
comer. Ngungunyane está feliz e serve-se com os dedos
curtos e gordos. O imperador está longe de imaginar que,
naquele navio, gente da sua raça congemina planos para o
eliminar.
*
Sentada no meu leito, Dabondi arregala os olhos escutando
os ruídos que chegam do cais da Cidade do Cabo. Quantos
dias faltam para chegarmos a Lisboa?, pergunta ela.
— Não chegámos sequer a metade da viagem — respondo.
A rainha retira um guarda-sol do meio da tralha que se
acumula no pequeno quarto. Quer passear pelo convés mas
não se quer bronzear. As mulheres escurecem e deixam de ser
desejadas, declara. Os homens negros, diz ela, aprenderam a
achar feia uma mulher de pele escura.
Dabondi recusa a oferta da minha companhia. Ela não está
só. Godido espera por ela ao fundo do corredor, com um par
de sandálias pendendo na mão direita. O príncipe tinha
desfeito a sua própria coroa real para com ela fabricar uma
espécie de sandálias. Converteu o diadema numa pasta
escura, separou-a em dois pedaços que cobriu com tiras de
lona. Dos tirantes que sobraram fez um par de atacadores. A
rainha sabe que as improvisadas sandálias serão de pouca
utilidade. A chapa metálica do convés é uma panela
fervendo. Uns breves passos e nada restará da intenção do
generoso enteado. E, contudo, aquelas sandálias são a melhor
prenda que recebeu em toda a sua vida.
Vejo-a afastar-se pelo corredor, empunhando o guarda-sol
como se fosse a mais luminosa das bandeiras. Apoiada no
braço de Godido, ela sobe lentamente a escada cuidando
mais em preservar o calçado do que em acertar nos degraus.
No topo da escadaria é abraçada pela luz. A rainha e o seu
enteado entram na infinita roda do Sol.
*
Momentos depois, Dabondi irrompe pelo quarto. Vem
alterada do passeio com Godido. Encosta-se a mim para
exibir um golpe fundo no pulso.
— Lutámos — suspira a rainha.
Na tradição do seu povo, amarram duas longas varas ao
corpo das esposas infiéis. Depois, em cerimónia pública,
furam-lhes os olhos com um ferro pontiagudo. Não é,
contudo, a ideia da punição que a perturba. Não é sequer a
briga que teve com o enteado Godido. É o ferimento que
abriu no pulso. Cortou-se e não sangra, é isso que a assusta.
— O meu sangue parou. Secaram-se-me as veias.
Estende os braços exibindo a mais fatal das doenças. Toda
ela estremece, subitamente frágil. Pela primeira vez sou eu
que a devo consolar. Não sei o que fazer. De modo tímido,
quase absurdo, sento-me a seu lado e abro o guarda-sol.
Dentro do quarto encostamos os ombros como se fôssemos
feitas de uma só sombra. E ficamos em silêncio até sermos
surpreendidas por berros vindos da cela de Ngungunyane.
Vieram tirar-lhe as medidas e, mais uma vez, pensa que o
preparam como antecipado cadáver. Sou chamada a intervir e
a passar-lhe a tranquilizadora mensagem: na próxima
paragem, em Luanda, os portugueses vão comprar roupas
para ele e para todos os cativos. Não nos querem proteger do
frio. Pretendem apenas que desembarquemos com o mínimo
de decoro em Lisboa.
A explicação não tranquiliza Ngungunyane. Por que
motivo lhe vestiam e tiravam roupas? Já tinha sido despido e
vestido por mim. Aceitara, primeiro, porque eram mãos de
mulher. Desta vez são homens que lhe medem os braços, as
pernas, o pescoço, a barriga. E logo a barriga! Só pode haver
uma razão para tamanha humilhação: os carcereiros tinham-
se tornado carrascos. Por isso, o imperador tenta
furiosamente escapar das malfadadas medições. Não o
medem a ele. Avaliam, sim, o tamanho do futuro caixão.
Ngungunyane chama por mim e pede que interceda. Faço de
conta que não escuto. Deixo-o sofrer. Às vezes, o único ato
de coragem consiste em não fazer nada.
*
As caldeiras voltam a ser aquecidas. Como uma serpente
invisível, a eletricidade circula de novo em todo o navio.
Estamos de saída do posto do Cabo quando o sargento
Araújo entra no meu compartimento sem pedir licença.
Revolve o quarto com os modos de um marido desconfiado.
Os dedos lentos percorrem os panos que pendurei num varão.
Arrasta o gesto como se acariciasse um corpo. Depois,
pergunta: Não tens nada para mim? Nego com a cabeça. Ele
insiste: Tens a certeza? Ante o meu obstinado silêncio atira
os meus panos para o chão.
— Então vamos embora — declara. — O comandante
chama por ti.
Apressa-me para que saia daquele cubículo mas não se
afasta da estreita passagem, obrigando-me a espremer-me
entre ele e a parede húmida. Respiro o seu hálito azedo
enquanto, com a mão felpuda, apalpa o meu seio:
— Não te armes em esperta — avisa. — Estou de olho em
ti, minha pretinha.
Ordena que siga à sua frente. Sei o que pretende: acariciar-
me as nádegas e as coxas enquanto caminho. O corredor é
curto, os dedos dele trabalham freneticamente até que, uma
vez no convés, o pudor se sobrepõe ao desejo.
No camarote da ponte, sentado na sua secretária, o
comandante Sousa sacode um telegrama:
— Triste notícia! Morreu João Mangueze, o filho de
Gungunhana que vivia em Lisboa.
Escuto-o como se falasse de um desconhecido: o filho de
Gungunhana? E demora a fazer-se luz. Para mim, João
Mangueze era apenas filho de Dabondi.
— Já falei com Gungunhana — prossegue o capitão. —
Pediu-me que fosse eu a anunciar a triste nova à mãe.
Ngungunyane tinha recebido a notícia com mais medo que
tristeza. Estava receoso, como confessou, da reação de
Dabondi. Teme ser acusado de cumplicidade num eventual
assassinato. Ou mais grave ainda: será suspeito de feitiçaria.
*
Em criança — e muito antes de atravessar o mar — João
Mangueze tinha sido enviado para a Escola de Artes e
Ofícios na Ilha de Moçambique. Regressou meses depois
com novas sabedorias mas com graves esquecimentos.
Esquecera-se, por exemplo, de que o destino de um jovem
nguni é a guerra. Da escola veio só metade da pessoa que
Ngungunyane tinha enviado. Diluíram-lhe o sangue guerreiro
dos Mangueze e o rapaz recusava-se a partir para o campo de
batalha. A simples ideia de matar alguém o fazia chorar. O
imperador deu ordem aos guardas para que, durante a noite,
acompanhassem o filho ao curral, o obrigassem a degolar um
boi e depois o deixassem amarrado aos chifres do defunto.
Essa experiência iria endurecer o filho. Na manhã seguinte a
mãe encontrou João coberto de sangue e reconduziu-o a casa
envolto num manto para que ninguém o visse regressar
naquele deplorável estado.
O comandante Sousa necessita agora da minha ajuda para
dar a notícia à mãe. Não apela para as minhas competências
linguísticas. Sou chamada na condição de mulher.
Foram buscar Dabondi, encontraram-na sobre o meu leito,
sentada com o guarda-sol aberto. À porta do comandante a
rainha hesita. E pergunta-me, de cabeça baixa, voz quase
sumida:
— Foi João?
Dou um passo para o exterior, quero segurar-lhe as mãos,
mas a rainha evita o contato. Impotente, fico a ver os seus
pés descalços a afastarem-se. Tem razão Dabondi: há
pegadas que se imprimem sobre o ferro.
*
Foi há instantes que Dabondi recebeu a mais grave das
notícias mas parece ter passado um século desde que ela
desapareceu. Sozinha no meu cubículo temo que,
desesperada, se tenha lançado ao mar. E eis que, de
rompante, se abre a porta da minha cela e surge Dabondi
escoltada por dois militares. Vem desgrenhada e coberta de
cinza. Empurram-na para cima do leito enquanto lhe
ordenam, aos gritos:
— Vais ficar aqui quietinha!
E mandam que traduza: a partir daquele momento, a rainha
ficará enclausurada no quarto com um guarda à porta.
— O que aconteceu? — pergunto.
— A tua amiga tentou suicidar-se. Desceu à casa das
máquinas e tentou atirar-se para o forno. Se não fôssemos
nós seria agora um pedaço de carvão.
— Pedaço de carvão é o que ela sempre foi — ironiza o
outro militar. Suspendem as gargalhadas para me advertirem
de que, a partir de agora, me compete cuidar de Dabondi. A
rainha não tem qualquer importância para os portugueses.
Convém, todavia, que o número das prisioneiras negras se
mantenha intacto. Quanto mais mulheres forem exibidas em
Lisboa mais o rei se apresenta como autenticamente africano.
É o que dizem os soldados. Toma conta dela, repetem ao se
retirarem. Do lado de fora escuto a chave a rodar. E percebo
então que, doravante, faço parte dos prisioneiros.
Fico um tempo a contemplar a rainha. Falta-lhe corpo,
falta-lhe vida. Mais do que nunca estou desvalida. Perante o
tamanho daquela dor qualquer tentativa de conforto se torna
ridícula. De repente, Dabondi ergue-se como se a alma
tivesse deixado de lhe pesar:
— Abram a porta. Quero falar com Ngungunyane.
Negoceio com os guardas. São irredutíveis, a rainha não
pode sair. Em contrapartida, autorizam que o rei se desloque
até ao nosso quarto. Minutos depois, apresenta-se
Ngungunyane. Dabondi não espera que ele cruze o vão da
porta para declarar:
— Todos pensam que Mangueze era o teu filho preferido.
Todos acham que foi por amor que o enviaste para Lisboa.
Foi o contrário: querias afastá-lo. Esperavas que ele fosse
devorado pelo mar.
— Dabondi, minha esposa — apela o rei. — Queres
acusar-me porque estás a sofrer.
— Não sou tua esposa — responde Dabondi. — Nunca fui
mulher de ninguém. Saberás o que é o peso da culpa. E não
haverá bebida que te alivie.
Seguem-se as ameaças. O imperador sofria de maus
sonhos? A partir de agora teria pesadelos mesmo quando não
sonhasse. E de pouco lhe valeria o suicídio. Mesmo depois
de morrer esses fantasmas não deixariam de o consumir. E
Dabondi termina, rainha em exercício, dando ordem aos
portugueses: Levem-no, não o quero ver mais.
Ngungunyane retira-se, em silêncio. A porta fecha-se. Só
então Dabondi desaba em pranto.
*
A notícia de uma morte espalha-se sempre mais célere que
o vento. No ambiente enclausurado do navio, a novidade do
falecimento de Mangueze difunde-se num piscar de olhos.
Alertado pelo luto que atingiu a família real, Roberto
Machava solicita permissão para falar com o comandante. Na
presença de António de Sousa o missionário faz uma vénia e,
em português, expressa-se com uma eloquência que a todos
surpreende:
— O presos querem rezar uma missa por alma de João
Mangueze. Peço-lhe autorização para usarmos a capela.
— Não sei se posso — responde o comandante. — Quem
manda na capela é o padre Martinho, que adoeceu e teve
que ficar na Cidade do Cabo.
O sargento Araújo intromete-se na conversa. Sabe das
fragilidades de António de Sousa, receia que ele reincida nas
condescendências com os negros.
— Desconfie deste preto que aqui se apresenta falsamente
humilde — declara Araújo —, este preto que se diz
missionário não passa de um subversivo que obedece aos
interesses dos protestantes. Pergunte-lhe, senhor
comandante, se ele sabe que a capela é um lugar de culto
católico.
— Ensinaram-me que temos um único Deus — alega o
pastor.
— O Deus é único, mas tem diferentes rebanhos — riposta
o sargento.
O missionário afasta-se. Quando passa por mim pergunta
se pensei no «seu assunto».
Capítulo 19

Os amnésicos defuntos
Certa vez viram um pescador abrindo uma
cova enorme na praia. Perguntaram-lhe o que
fazia. Apontou para uma canoa velha, na duna,
já meio despedaçada. Tinha sido a embarcação
com que, durante anos, se fizera ao mar, bem
para além da rebentação. De tanto cavalgarem
juntos sobre as ondas, homem e barco se
afeiçoaram a ponto de o pescador apenas
adormecer aconchegado no fundo da
embarcação.
— Quando os barcos morrem é preciso dar-
lhes enterro.
No final, espetou um remo junto à campa.
Quando fez o sinal da cruz ecoou-lhe no peito o
som de madeira ao ser percutida.
(Diário do capitão António Sérgio de Sousa)

Na arte de matar não evoluímos muito desde


os tempos primitivos. A bala o que é senão uma
pequena pedra que aprendeu a voar?
(Roberto Machava)
Durante toda a noite o imperador Ngungunyane clamou
aos berros que era «filho do rei de Portugal». A lancinante
reclamação reverberou com nitidez no nosso quarto.
À força de tanto gritar pelo pai português, o imperador
esqueceu-se de que acabara de chegar a notícia de que um
filho falecera. Varreu-se-lhe da ideia o nome desse rapaz.
Quer invocar os antepassados e nenhum lhe comparece. Em
pânico, manda que os parentes se aproximem e murmura: Os
brancos querem matar-me. Mas eu adiantei-me. Já
embarquei morto.
Apreensivas, as esposas entreolham-se. Todas sabem que
não existe neste mundo mais grave transtorno que essa súbita
amnésia. Mais grave que o rei esquecer-se dos seus mortos é
que estes deixem de se lembrar dele. Inúteis se revelam os
esforços para reabilitar o esposo.
— Dabondi, faça alguma coisa — implora uma das
rainhas.
Muzamussi, a esposa predileta, ergue o braço em
silenciosa proclamação. Apenas a ela compete apaziguar
aquele caos. Faz soar as vinte e quatro anilhas de latão que
lhe envolvem o braço. Procura caminho entre as demais
mulheres, erguendo o roupão que lhe cai até aos pés. O
desmesurado robe faz parte das roupas que foram compradas
em Luanda.
— Afastem-se, eu sou a Nkosikasi.
A «mulher grande», como lhe chamam, faz justiça ao
nome. É subida e volumosa, exibe um penteado cónico que a
faz parecer ainda mais alta. Ajoelha-se à frente do
assarapantado esposo. A luz que entra pela vigia brilha sobre
os ombros.
— Buia, Nkosi wa mina! — a rainha chama pelo esposo.
Em voz baixa, como se rezasse, convida-o a descansar no seu
colo.
As outras mulheres comprimem-se de encontro às paredes
e o rei enrosca-se no regaço de Muzamussi. Ngungunyane
desaba sem substância, adoecido pela carência do álcool.
Engana-se e trata Muzamussi pelo nome de Vuiaze, a sua
antiga e única paixão. Obrigado, querida Vuiaze, balbucia o
rei. Muzamussi faz de conta que não dá pelo descuido. O
marido está derramado no seu colo e, naquele momento, ela
volta a ser rainha. E faz um sinal para que todos os outros se
retirem. Os prisioneiros obedecem e acumulam-se no
corredor. As mulheres contemplam as luzes do teto e esticam
os dedos para sentir o fogo que se esconde nos candeeiros.
*
Restabelecido, o rei de Gaza avança pelo corredor
escoltado por dois vigilantes. Passa pelo pátio que antecede o
porão. Os presos de Machava estão de pé nesse recinto, à
espera que desinfetem o improvisado cárcere. O rei de Gaza
apresenta-se e todos se ajoelham. Conspiram matar aquele
tirano. E, no entanto, não hesitam em lhe prestar
homenagem.
— Levantem-se, meus irmãos! — ordena Machava, furioso.
Não há, todavia, nada a fazer. Os prisioneiros exibem
perante o soberano de Gaza o mesmo respeito com que se
prostram perante a cruz de Cristo. Ngungunyane abre os
braços diante do submisso ajuntamento e proclama quase
sem voz: Sou filho do rei de Portugal! Machava sacode a
cabeça, pesaroso: o imperador perdeu o bom senso. Não
porque tenha consumido álcool. É o oposto. Está embriagado
pela abstinência. É por isso que lhe tremem
descontroladamente as mãos. Um pensamento assalta o
missionário: quem sabe o rei morra sem que se tenha que
consumar um crime? Será essa a súplica que, nos próximos
dias, endereçará a Deus.
Machava não volta a apelar para o bom-senso do seu
rebanho. Vigorosamente afasta o rei de Gaza. Ngungunyane
não tem força para resistir. E desaba aparatosamente. De
súbito, para minha surpresa, Zixaxa sai em socorro de
Ngungunyane. Deixem-no!, grita, enquanto ajuda o rei a
recompor-se. E depois, apontando para mim, clama:
— Pede aos soldados que levem daqui esse padre preto!
Não o queremos ver. E diz-lhes que tragam vinho para o rei
de Gaza.
À porta da cela os guardas estão sentados sobre caixas de
garrafas de vinho do Porto. Aquela reserva de álcool faz
parte do tratamento reservado ao prisioneiro real. Querem-no
risonho, mas sem alma. É esse o exílio que lhe destinam,
emigrado de si mesmo, sem memória nem destino. Um dos
soldados entrega uma garrafa ao imperador, que se serve com
sofreguidão. Escorre-lhe vinho pelo queixo quando, fitando-
me demoradamente Imani, ele repete: Vou-te oferecer ao rei
de Portugal.
— Vá-se embora, pastor Machava — pede Zixaxa. —
Ngungunyane entregou-se à bebida dos brancos, você
entregou-se ao Deus deles.
O vinho e os padres, diz Zixaxa, irão completar o que os
portugueses começaram com as armas. Daqui a um tempo
não teremos lugar a que chamemos casa, não teremos
ninguém a quem chamar irmão.
— A minha presença incomoda-o? — reage Machava. —
Faço-o sentir culpado?
— Não o denunciei — defende-se Zixaxa. — Esta é a pura
verdade. Ou será que acredita mais nos portugueses do que
em mim?
O missionário faz-me sinal para nos afastarmos daquele
ajuntamento.
— Vamos rezar — incita.
— Aqui no corredor? — pergunto.
— Vem comigo, o comandante já autorizou o uso da
capela — afirma Machava.
Sigo o missionário em silêncio. Ao chegar ao convés é
meticulosamente revistado e um par de soldados acompanha-
nos até à entrada da capela, que se encontra vazia. Não
tirando os olhos da cruz, Machava finge rezar. De joelhos,
olhos cerrados e mãos juntas entoa um cantochão na sua
língua natal. Mas não há reza. O que ele anuncia são os
planos para a consumação de um crime: os brancos
organizam uma festa dentro de dois dias. É uma tradição ao
passarem a linha do Equador. Disseram a Machava que
parece uma celebração africana, com bebidas, danças e
máscaras. Permitirão que os presos assistam à festa. A tua
tarefa, anuncia Machava, será distrair o sargento enquanto
nós tratamos do Ngungunyane.
— Tenho medo, pastor.
— Confia em mim — afirma o missionário. — Eu tenho
visões. Vou-te contar como encontrei Deus.
*
A vocação religiosa de Roberto Machava revelou-se
quando, ainda jovem, atravessou a pé a distância que separa
Lourenço Marques das terras do Rand. Viajava à procura de
melhor vida. Sabia o que queria mas desconhecia o caminho.
No terceiro dia, louco de calor e sede, tombou desamparado
no meio da savana. Quando acordou estava em casa de um
camponês. Quem o salvou foi um desses vatsonga
catequisados nas plantações dos ingleses. Ajoelharam-se os
dois e Machava — sem nunca o ter feito antes — rezou
como se a oração fosse na sua língua natal. O anfitrião
suspirou e disse: Ninguém chega nunca por acaso.
Depois sentou-se no quintal a contemplar as terras
queimadas pela falta de chuva. E assim se deixou adormecer
com a mão pousada sobre um ramo de uma acácia. Durante a
noite os dedos tornaram-se galhos da árvore e apontavam o
céu com o desespero de um desenterrado. Com o mais longo
dos dedos o homem espetou a barriga da nuvem. E choveu.
Nessa manhã Roberto Machava cruzou a fronteira de
Moçambique com a cabeça enevoada, surpreso com as suas
recentes faculdades. Em Lydenburg juntou-se à Igreja
Metodista e tornou-se pastor. Regressado a Moçambique,
anos depois, abriu uma escola na baía de Lourenço Marques.
A Igreja Católica Romana impôs que se juntasse àquela que
chamaram de «única igreja verdadeira». Machava recusou.
Interditaram-lhe a escola. E foi o início de outras interdições.
No final, entendeu que era ele o interditado.
*
O pastor pede que o ajude a erguer-se. Tinham-no
maltratado na prisão. Agora é capaz de se ajoelhar, mas não
se levanta sem apoio. No cárcere disseram-lhe que Zixaxa o
denunciara. Colocaram o guerreiro dos mfumos perante uma
lista de nomes que lhe foram lendo num indecifrável sotaque.
Quando mencionaram o nome do religioso, Zixaxa acenou
com a cabeça. «Foi esse o homem que te mandou lutar
contra o governo?», perguntaram. E Zixaxa voltou a
confirmar. Horas depois o pastor era detido. Durante o
interrogatório foi de tal modo espancado que aceitou tudo o
que lhe era imputado. No dia seguinte foi embarcado no
África, pronto para ser deportado para as ilhas de Cabo
Verde.
— Há coisas que deves saber — declara o pastor. — O
porão onde me prenderam é um paiol.
— Um paiol?
— Todos os meus crentes estão armados.
— Com que armas? — pergunto.
O pastor responde entreabrindo as mãos: Estas! Não vejo
nada, de início. Depois reparo que há um pedaço de vidro
faiscando entre os seus dedos. É um estilhaço de garrafa.
Dessas que todos os dias se quebram à porta do
Ngungunyane.
— Com estas armas mataremos Ngungunyane — proclama
Machava apertando o vidro, sem dar conta do sangue que lhe
escorre entre os dedos.
*
Uma surpresa me espera no escorregadio convés:
Ngungunyane está sentado à chuva num solitário banco de
madeira. Escorre água pelo tronco nu, goteja o pano que traz
amarrado à cintura. Os soldados que o vigiam à distância
explicam: Pediu-nos para ficar assim, disse que queria sentir
a chuva. Replico em tom maternal: É melhor que ele se
resguarde, vai ficar doente. E os soldados condescendem:
Vai lá falar com ele. E leva-lhe esta capa.
Ajeito o capote sobre os ombros do rei. O corpo estremece-
lhe mais do que a voz quando, em murmúrio, confessa que
tinha saudade de ser chovido. Ergue-se e caminha a meu lado
como se fosse um sonâmbulo, os pés descalços chapinhando
no chão de metal. Ao descer a escadaria que conduz aos
nossos quartos apoia um braço em mim e outro em Dabondi,
que acabou de chegar. Mas é sobre o meu rosto que lança o
seu azedo hálito:
— Como se diz ouro na tua língua, em txixopi?
Não espera resposta e vai desfiando uma desarrumada
conversa. Os brancos, diz ele, medem a sua fortuna em ouro,
palavra que não temos nas nossas línguas. Quando pensa em
riqueza, o rei de Gaza vê manadas de bois a perder de vista,
cascos e chifres riscando o sol e a terra. E vê chuva, gotas de
chuva, como estas que lhe escorrem pelo corpo.
O rei aperta-me as mãos e suplica que interfira a seu favor.
Precisa com urgência que Dabondi volte a dormir com ele.
Que a deixem regressar ao quarto dos presos. Fala como se
Dabondi não estivesse presente. Tive tantas mulheres que me
tornei no mais solitário dos homens, lamenta-se. Agora que o
afastaram de Dabondi deixou de ser homem. Demora um
tempo, absorto, até que se dirige à esposa, implorando-lhe:
Quero que me adormeça, Dabondi.
— Para quê tanta pressa, meu rei — pergunta Dabondi. —
Não receia voltar a ser visitado por pesadelos?
— Às vezes — responde o rei — os pesadelos são o único
modo de guardar o passado.
Capítulo 20

Quanto pesa uma lágrima?


Olho o mar e vejo a vida.
(Diário do comandante
António Sérgio de Sousa)
Manhã cedo estou à porta do comandante. Saúdo-o à
entrada do camarote e ele permanece alheio, debruçado sobre
uma mesa coberta de mapas. A gaiola vazia está tombada no
meio do quarto. Não há vestígio do papagaio.
— Libertei-o à saída de Luanda — comenta o capitão sem
erguer a cabeça. — Não podia oferecer ao meu filho um
pássaro enjaulado. — E alterando subitamente o tom de voz:
— Estou ocupado, que queres?
O meu propósito é firme: venho denunciar os ardilosos
planos de Machava. Não refiro nomes nem me espraio sobre
detalhes mas sou categórica quando revelo a existência de
conspirações para assassinar Ngungunyane. Devo ter sido tão
vaga que o português, completamente absorto, continua a
deslocar uma pequena régua sobre os mapas náuticos. Repito
o alerta, agora de modo mais claro.
— É urgente — declaro enfática —, reforçar a vigilância
junto do porão. Querem matar Ngungunyane e os matadores
vêm de lá.
— Sonhaste com tudo isso, Imani? — pergunta, irónico,
António de Sousa.
O comandante Sousa fixa em mim uns olhos cansados e
incrédulos. Não entendeu a urgência e a gravidade da
situação. Com a régua desenha no ar um arco, a sugerir que o
deixe em paz.
Antes de me retirar ainda pergunto por Germano. Quem
sabe, por via telegráfica, tivessem chegado notícias de
Moçambique? António de Sousa sacode a cabeça, em
negação. Pergunto depois por novidades de Álvaro Andrea.
O comandante pousa a régua e suspira: Peço-te, Imani, não
me perguntes por ninguém. Cansam-me tanto as pessoas…
Sempre fora um homem arredado, admite. Muitos dos seus
colegas queixavam-se do isolamento no Ultramar. Para ele, a
solidão constituía a melhor das dádivas. Conhecer pessoas
era, conforme confessou, a mais fatigante das atividades. Em
África estava dispensado desse encargo. Os brancos estavam
ali de passagem. E os pretos, sem ofensa, eram todos uma
única pessoa. Deste modo, não havia nunca ninguém. Assim
se explica António de Sousa.
Quando faço tenção de regressar ao meu quarto ele sugere,
com um rodopio da régua, que me deixe ficar.
— Sei dele — anuncia o capitão.
— De Germano?
— De Álvaro Andrea — responde. — Dizem que esse tal
Andrea voltou para a frente de combate, no estuário do
Limpopo.
António de Sousa tem pena do capitão Andrea para quem o
Limpopo é o pior dos lugares neste atribulado mundo. Ele
sabe dos remorsos que martirizam o seu compatriota pelo
massacre de civis inocentes. Essa culpa — garante Sousa —
foi inventada pelos adversários que ele criou dentro do
exército. Está equivocado esse Andrea: a maior parte dos
alvos que bombardeou não eram povoações. Era mato
desabitado.
— Andrea está convicto de que matou muita gente…
alguma vez viu os corpos? — pergunta Sousa.
Não viu, apetece-me responder. Nenhum militar português
nos vê, a nós, negros, nem quando estamos vivos.
— Álvaro é um homem bom — diz a rematar. — Querem
que ele desista das suas causas.
Volta a debruçar-se sobre os mapas e, displicente,
murmura: Foi bom teres-me alertado. Vou transmitir a tua
denúncia ao sargento Araújo. Vamos reforçar a segurança
do rei.
— Por favor, não meta o sargento neste assunto —
imploro, angustiada.
— Não me disseste nada de novo, minha filha —
tranquiliza-me. — Há muito que sei dos planos de Roberto
Machava. Tenho as minhas fontes.
Ergue-se arrastando a cadeira e espreita-me o rosto como
se tivesse deixado de me reconhecer. Recuo, receosa.
— Por que tens tanto medo de Araújo? — pergunta,
desconfiado.
Inspeciona-me os olhos à procura de uma queixa. O que te
fez o meu sargento?, insiste o comandante. Perante o meu
silêncio esfrega as mãos e concluiu, em sussurro: Já percebi.
*
Escureceu e o convés do navio tornou-se irreconhecível.
Centenas de passageiros cantam e dançam fantasiados. Não
tarda passaremos a linha do Equador, o «espinhaço» do
mundo, que é como lhe chamam os marinheiros.
No centro da multidão, sobre um improvisado estrado, está
sentado um homem mascarado. Coberto com manto dourado,
exibe barbas e coroa postiças. Ngungunyane exclama,
entusiasmado: Vejam, é o rei D. Carlos! E chama, em altos
berros, pelo monarca português. Os soldados riem-se,
jocosos.
Os tripulantes são aspergidos com óleos e, depois,
banhados e purificados. Chamam a isso um novo batismo.
Incrível como somos semelhantes nas nossas cerimónias,
brancos e pretos. E como se assemelham os rituais que
usamos para limpar a alma! Afinal, os anjos dos brancos não
são os austeros vigilantes que nos fizeram crer. São, como os
nossos, bêbados e foliões.
O caótico fulgor daquela celebração faz-me lembrar as
celebrações da minha infância, junto ao rio Inharrime. De
repente, revejo Bibliana a emergir da multidão. Com a sua
túnica vermelha e os panos brancos atados à cintura, a
profetisa proclama: «Os mares são como o sangue: parecem
muitos mas são todos um só.»
*
E faço como sempre fiz: perante um festejo guardo-me na
margem, longe das luzes e do ruído. António Sérgio de Sousa
junta-se a mim, as mãos afundadas nos bolsos do casaco.
Passam por nós dois soldados arrastando o velho Mulungo,
tio de Ngungunyane. E levam-no até ao sargento Araújo.
Este cabrão fugiu do porão, dizem, batendo continência.
Mulungo é magro, digno e distante. Não quer aprender uma
palavra de português e envergonha-se dos ataques de pavor
do rei de Gaza. O comandante Sousa reconhece-o. E ordena
que o soltem: Esse velho é o tio do Gungunhana. Está
autorizado a assistir aos festejos. Os outros é que não.
Os «outros» são os correligionários de Roberto Machava.
Ficaram no porão, com reforçada vigilância. O meu alerta
funcionou, penso, não sem alguma dose de culpa.
— Toda esta viagem é uma farsa — suspira Sousa. —
Andamos a inventar um rei que nunca existiu.
*
O ritual da passagem do Equador tem uma história, diz
António de Sousa. Os que festejam desconhecem-na. Mas o
comandante está decidido a contar-ma. No tempo das
caravelas, começa ele, não eram as tempestades mas as
calmarias o que os marinheiros mais temiam. A região do
Equador era rica em sol, mas pobre em ventos. Sempre que
um navio se imobilizava, não eram apenas os alimentos que
se deterioravam: a disciplina e o sentido de hierarquia
também se degradavam. Havia que criar uma válvula de
escape, uma espécie de carnaval em que todos podiam ser
todos. Foi assim que nasceu o ritual da travessia do
«espinhaço do mundo». O oceano era uma mulher e a unha
dos marinheiros, como uma afiada lâmina, desenhava uma
linha nas costas dessa mulher. O Atlântico sorria e esse riso
era a licença que de precisavam. A fronteira entre Norte e
Sul, como um vestido rasgado, tombava aos pés dos
marinheiros.
As igrejas católica e protestante proibiram o ritual. Viam
nele uma sobrevivência pagã. Não foram, porém, as
interdições das igrejas que enfraqueceram aquela velha
prática. Foram os avanços da técnica. Ao se libertar do
capricho dos ventos, o navio a vapor veio em socorro dos
esforços cristãos. Apesar de enfraquecido, o ritual resistiu.
Enquanto sobreviver o medo, os deuses não serão destruídos
pelas máquinas.
*
Despeço-me do comandante e, de regresso ao meu quarto,
sou abordada pelo sargento Araújo. Vem acompanhado de
meia dúzia de militares.
— Preciso de ti — avisa o sargento. — Vou falar com o
patife do Machava.
— Permita-me uma opinião, meu sargento — digo, a
medo. — É que, neste caso, sou dispensável. O pastor fala
perfeitamente português.
— Estou-me nas tintas para o que Machava tenha para
dizer — declara o militar. — O que me importa é que os
outros mafarricos me entendam bem.
Nunca antes havia entrado no porão. Agora sinto a
vertigem de um inferno apagado, bafiento e frio. O escuro é
tanto que deixo de saber respirar. E ainda bem: salvo-me
assim dos pestilentos cheiros. Um dos militares decide
levantar a tampa da entrada e somos bafejados por uma fresta
de luz e por uma tímida aragem. Adivinham-se os vultos dos
presos acumulados num mesmo recanto. A eles o sargento se
dirige aos berros. Anuncia que está a par das graves
conspirações que se urdem naquele recinto. Exige que os
detidos falem. Os presos obedecem de modo estranho: em
vez de falar, rezam em coro.
— O que estais a fazer? Rezais para afastar os demónios?
Vou-vos mostrar o que é o inferno.
Os berros reverberam no recinto e o sargento mantém-se
inclinado sobre mim como se fosse conferir a minha
tradução.
— Há aqui uma dificuldade, senhor sargento — declaro
timidamente. — É que não temos palavra para dizer
«inferno».
Araújo não me escuta. Está decidido a exibir a sua raiva,
com largas passadas que ecoam pelo recinto. Detém-se, por
fim, em frente de Roberto Machava e ordena-lhe:
— Escolhe um deles para morrer.
O pastor permanece impávido. Procede como fazíamos na
nossa aldeia quando éramos visitados por brancos ou pelos
vanguni: deixa de ter rosto. Resta-lhe uma máscara, feita de
pedra escura.
— Se não escolheres um, nós matamos três — ameaça
Araújo.
Nem um músculo se move no corpo de Machava. E assim
se mantém mesmo quando deitam mão a três dos seus
companheiros.
— Levo comigo estes que devem ser os mais novos —
declara Araújo. — A ter que vos matar, mais vale começar
pelos que ainda têm muito que viver.
O missionário dá um passo em frente com os braços
abertos e anuncia:
— Já escolhi um!
— E quem é? — indaga Araújo.
— Sou eu — declara Machava. — Escolhi-me a mim.
— Pois então — diz o português dirigindo-se aos seus
soldados — matem esses três.
— Mas eu escolhi… — gagueja o missionário.
— Escolheste-te a ti. E tu não és ninguém.
Arrastam os aterrorizados jovens para o corredor. Eu e o
sargento fechamos o improvisado cortejo. Um soldado
fechou atrás de nós a tampa do porão. A seguir, timidamente,
pergunta:
— Desculpe, meu comandante, mas é para matá-los de
verdade?
— Existe um outro modo de matar?
— É que nos disseram para proteger os presos…
— Esses são os outros — afirma, impaciente Araújo. —
Estes, do porão, ninguém sabe deles. Quantos menos
chegarem ao destino melhor. Matem-nos junto à casa das
máquinas que, assim, ninguém ouve os tiros.
Lá fora a festa prossegue. Não chego a escutar os disparos.
Melhor seria se os tivesse ouvido. Uma memória truncada é
uma ferida que não sara. Nas noites seguintes sou visitada
pelo rosto estarrecido dos fuzilados. E choro tudo o que não
chorei pelos meus mortos. Depois adormeço. E as lágrimas,
sem peso, ficam-me presas aos olhos.
*
— Por que os matou, sargento? — pergunta Sousa.
Araújo está perfilado em sentido, à porta do camarote de
António de Sousa. O olhar do sargento é tenso mas há uma
serena confiança nas suas palavras.
— O meu comandante quer que responda agora, nesta
circunstância? — pergunta Araújo, apontando para mim.
Sou eu a «circunstância» a que se refere. Fui eu que trouxe
a notícia do fuzilamento. O silêncio de António de Sousa é
uma acusação que obriga o subordinado a defender-se.
— O meu comandante deu-me ordem para resolver um
problema — declara Araújo. — Pois eu resolvi-lhe dois: o
que tinha em mãos e um outro que ia causar em Cabo Verde,
transferindo pretos insubordinados para uma terra que,
sendo nossa, controlamos muito pouco.
— De que crime foram acusados para tão sumária
execução? — pergunta António de Sousa.
— Que crime? Por amor de Deus, comandante, estes
patifes queriam matar Gungunhana, um português, um
sargento do nosso exército.
— E os corpos? — indaga o comandante. Não é uma
pergunta. É uma declaração de resignação. Os fuzilados,
informa o sargento, foram deitados ao mar.
Na verdade, não há dia em que não atirem um corpo fora
de bordo. Muitos dos soldados portugueses embarcam
moribundos, enfraquecidos pelas chagas e pelas febres. A
maior parte deles sabe desse eventual destino: morrerem sem
túmulo, apodrecerem ao sabor das correntes e dos monstros
marinhos. Preferem isso a ficarem sepultados em terras
africanas.
António de Sousa fixa o olhar no horizonte, o que é um
modo de deixar de ver. O sargento percebe que aquele
silêncio é uma ordem para se retirar.
Capítulo 21

Véspera da terra
Quem tem medo da água acaba por se afogar
em terra.
(Provérbio de Nkokolani)
Manhã cedo, um marinheiro esquálido bate-me à porta.
Vem da parte de António Sérgio de Sousa e é portador de
dois envelopes. Pretende o capitão que lhe leia aquelas cartas
e depois as devolva pelo mesmo mensageiro. Deves começar
por esta, diz o marinheiro agitando o envelope da mão
direita. Estende o braço e hesita, como se avaliasse o peso
das duas encomendas. Enganei-me, admite, corrigindo o
gesto. Estende-me o outro sobrescrito e retira-se. Esperará no
corredor até que eu tenha terminado a leitura.
A primeira carta é da autoria do comandante Sousa e está
endereçada ao sargento Júlio Araújo. Dabondi pede-me que
lhe traduza enquanto vou lendo. Fecha os olhos como se
assim escutasse melhor.
*
Caro sargento Araújo
Amanhã chegaremos a Lisboa e terei cumprido a minha
última viagem. Sei o que se passou com os meus colegas que
se reformaram. Em poucos anos definharei, como eles,
saudoso do que sempre me queixei. Em contrapartida, o meu
sargento prosseguirá a sua carreira na Marinha de Guerra. O
mais provável será que não mais nos voltemos a encontrar.
Tantos meses vivemos confinados no mesmo exíguo espaço
e, apesar disso — ou será exatamente por isso? — nunca
chegámos a manter aquilo que se possa chamar uma
«conversa».
Sei o que pensa de mim. Não pretendo alterar essa
perceção. Você acha que sou um homem fraco, que sou
demasiado condescendente com os africanos. Contra essa
impressão não tenho, nem quero ter, nenhuma defesa. Essas
suas palavras, esgrimidas como uma denúncia, são para mim
o maior dos elogios. Bem haja por esses pequenos ódios.
Venho falar-lhe de mim. A escrita permite confissões que,
noutras circunstâncias, não teríamos coragem de fazer. Nasci
em África, em terras onde as árvores superam os céus. A
minha mãe, que Deus a tenha, ensinou-me a amar essas
criaturas como se adivinhasse que me iriam faltar mais que a
própria terra. As árvores são como as pessoas, dizia. Não nos
damos conta de que o que nelas vemos é apenas o que está à
superfície. O que nos falta ver, nas árvores e nas pessoas, é o
próprio tempo, esse infinito tecelão. As raízes, garantia a
minha mãe, são como as histórias das nossas vidas. Quem as
vê? Pois nós, meu sargento, passamos um pelo outro como
quem passa por uma árvore e não vê senão sombras. Não nos
conhecemos, meu caro Araújo. E talvez seja melhor assim.
Não temos de fingir que nos despedimos.
O meu pai morreu em terras da Índia. Cumpria, assim, o
que para si mesmo destinara. Tantas vezes nos disse:
ninguém sabe morrer no lugar onde nasceu. Não podia ter
morrido mais longe. Depois do enterro fui recolher a
papelada que, durante anos, ele deixara acumular no seu
gabinete de trabalho. Não foram papéis, foi a sua vida que
me passou lentamente pelos dedos.
Numa pasta rotulada «documentos do Congo» descobri
uma fotografia de três escravos ladeados por dois brancos.
Era uma imagem captada no Congo Belga. Os negros
exibiam as mãos decepadas de outros escravos. Quase não se
distinguiam os dedos dos vivos e dos mortos. Como se as
mãos decepadas ainda se agarrassem a um corpo vivo. Como
se não soubessem morrer.
Não foi apenas aquela macabra visão que para sempre me
roubou o sono. Foi o olhar dos escravos, foi a sua expressão
mortificada. Aqueles olhos tinham sido amputados das suas
almas. O rosto desses homens era uma máscara vazia, como
se aquilo que fosse mais humano — isso a que chamo a «voz
do rosto» — tivesse que ser resguardado da indiscrição do
fotógrafo. Protegiam assim a sua última réstia de dignidade.
Não fomos nós, portugueses, que cometemos aquela
barbaridade. É isso que você dirá. Não fomos, é verdade.
Mas tecemos todos nós, europeus, um manto de silêncio em
redor desse enorme crime que foi a escravatura. Os jovens
que você fuzilou — num barco que eu comandava — serão o
seu inferno. Até ao final da sua vida, meu caro sargento, você
será alvejado por essa lembrança.
Mil vezes o escutei proclamando que o fim do mundo já
aconteceu. Nenhum de nós — nem sequer Deus — deu conta
dessa fatalidade. A verdade é outra, meu caro. Quem tem
razões para acreditar no apocalipse não somos nós, meu
sargento. São os negros que veem assaltadas as suas terras,
decepadas as mãos e sangrados os sonhos. Enquanto
filosofamos sobre o apocalipse essa gente vive o mais real
dos fins do mundo. E é bem conveniente essa sua teoria de
uma hecatombe: se não há futuro tornamo-nos iguais aos
bichos. E não há melhor para as guerras que um bicho
fardado de soldado.
Junto lhe envio a fotografia que tanta alma me roubou. Não
se limite a olhar para ela. Deixe-se ser olhado pela imagem.
Ao ser atravessado pelos olhos desses negros talvez você
entenda que a fraqueza de que me acusa é bem menos grave
que a coragem que lhe serve de bandeira.
Espero, caro sargento, que não nos voltemos a encontrar.
Não lhe desejo mal. Quero somente esquecer-me. É isso que
eu quero. Esquecer-me de mim, esquecer-me de si e de todos
os outros. Desejo talvez um pouco mais do que isso: rezo
para que o sargento não tenha nunca existido na minha vida.
E esta carta não tenha sido escrita para ninguém.
12 de março de 1896
António Sérgio de Sousa
*
Talvez a minha tradução tenha sido deficiente porque, no
final da leitura, Dabondi parece completamente indiferente.
Ocorreu-me, primeiro, que tinha adormecido. Surpreendo-me
a vê-la sacudir os braços fazendo soar as pulseiras. Afugenta
os espíritos que emergiram das cartas.
— Disseste ao branco — adverte a rainha — que eu
rezava aos meus deuses. Fizeste mal. Não há deuses dos
outros, minha filha. São sempre nossos.
O soldado bate à porta. Quer saber se pode recolher as
cartas. Peço-lhe um tempo. Dabondi volta a fechar os olhos,
aguardando pela leitura da segunda carta.
*
Excelentíssimo capitão
António Sérgio de Sousa
Despedimo-nos desta curiosa maneira, trocando cartas
como se tivéssemos perdido o dom da fala. E é bom que
assim seja. Esta é, meu capitão, a sua derradeira viagem. O
meu percurso, porém, não termina aqui. Morrerei no mar e
serei sepultado em incógnitas águas. Sem chão, dizem os
seus africanos, o morto não encontra nunca a morte. Pareço
um preto a falar, Deus me perdoe.
Para começo de conversa, tenho que reconhecer que o meu
capitão é um homem bom. Interrogo-me, porém, sobre o
valor da bondade neste mundo. De uma coisa estou certo:
não tenho o menor desejo de ser bom. A minha única
intenção é ser justo. E a justiça pede homens que não tenham
medo de ser cruéis.
Tem razão, o meu capitão: vivo obcecado com o fim do
mundo. Não é apenas o século dezanove que termina, não é
apenas a monarquia que agoniza. É o inteiro universo que se
esvai como areia entre os dedos. Está escrito nos livros, meu
capitão. Houve vezes que perguntei aos negros que ideia
possuíam sobre a criação do mundo. Todos me deram a
mesma resposta, espantados com o absurdo da minha
pergunta: ora, o mundo não começa nem acaba. A matéria
do mundo é o próprio tempo, diziam, não há palavras para
distinguir uma coisa da outra. Foi isso que responderam os
pretos, nas suas humildes palavras. O senhor dirá, com o seu
incurável paternalismo, que essa resposta traduz uma
profunda sabedoria. Eu direi que é uma total falta de
discernimento.
Por que lhe falo disto agora? A verdade é esta: não pode
haver justiça se não houver a ideia de um juízo final. Não
tendo ideia de um julgamento divino, os africanos estão-se
marimbando para os outros. Um povo assim desprovido de
civismo deve ser guiado por gente civilizada. Não
assumirmos essa missão é que é falta de coragem e de
bondade.
Se o mundo está em pleno apocalipse então prefiro ir ao
fundo às costas de demónios. Essa é a única vantagem de
viajar pelos mares do Sul: estão povoados de diabos. Essas
criaturas malignas são hoje os meus únicos conselheiros e
protegem-me mais do que todos os anjos. Dizem que
trazemos os barcos cheios de «casacos de zinco», que é o
nome polido que damos aos caixões. Comigo sucede o
oposto: há uma parte de mim que já não volta a Portugal.
Parte de mim fica entre pretos e, sobretudo, entre as pretas.
Deus Nosso Senhor foi precavido: europeus e africanos
não foram feitos no mesmo molde. E é bom que assim seja.
Porque não tenho tempo nem paciência para destrinçar os
bons dos maus. Queria que tivesse tratado os presos como
pessoas? Se fosse o inverso, se os presos fôssemos nós, diga-
me, meu capitão, dar-nos-iam os negros igual oportunidade?
Conhece algum branco que tenha ficado cativo na selva
africana? E sabe por que não conhece? Porque os mataram a
todos.
Certa vez, em plena batalha, escutei a voz do comandante
gritando: «Não matem mulheres nem crianças!» Pensei para
mim: este tipo é um ingénuo estreante. Em terra africana não
há mulheres, não há crianças. Aqui todos são inimigos, todos
nos querem matar. É por isso que digo: quanto mais felizes
eles se apresentam, mais eu os odeio. Não suporto quando
riem, não aguento quando falam alto, cantam ou dançam.
Diga-me com verdade, meu capitão: que há de tão
importante nesta vida para ser tão festejado?
Não vale a pena perdemos mais tempo. Sou um homem de
ação e o assunto para mim é bem simples: o senhor foi
envenenado por essa Imani. É assim que elas fazem:
inoculam-nos um veneno doce, de que só damos conta
quando já estamos mortos. Imagino as falsidades que essa
rapariga contou a meu respeito. Nunca lhe toquei. Vontade
não me faltou. Essa cabra — desculpe, mas o termo é este —
não passa de uma sonsa. E deixe-me dizer o seguinte: há
rumores que se escutam entre a tripulação. São boatos, dirá o
senhor. E em sua defesa argumentará que, neste caso, não há
fumo nem fogo. Várias vezes, contudo, viram entrar Imani
para o seu camarote. Que lhe tivesse feito proveito. Porque,
confesso, essa rapariga não faz o meu género. Não quero cá
pretas a falar português tão bem como eu e a olharem-me
com altivez nos olhos. Quem me atrai são as outras, as pretas
verdadeiras, mais autênticas, mais selvagens. Essas, sim.
Ainda as espreitei quando faziam a higiene. E se a faziam:
banhavam-se duas vezes por dia! Mas nunca as vi nas
poucas-vergonhices com os maridos. Explicou-me o
cozinheiro que o sexo lhes é interdito quando em viagem ou
em guerra. Quem se esqueceu dessa proibição foi a Dabondi
e o Godido. Ainda os apanhei, no depósito de carvão. Era ali
que se deitavam e fornicavam no meio das cinzas.
Regresso à fotografia que me enviou para lhe dizer o
seguinte: essa imagem não prova coisa alguma. As fotos são
como nós, os sargentos: dizem o que lhes mandam dizer. São
as legendas que lhes dão sentido. E não vejo aqui nenhuma
inscrição. Não nego. Houve ali, sem dúvida, uma
barbaridade. Mas quem a praticou foram os belgas, que são
mais estrangeiros do que quaisquer outros europeus. Ou
quem sabe não terão sido os próprios pretos? Nunca ouviu
falar das cenas de canibalismo, das práticas feiticeiras, das
vinganças tribais?
De todo o modo, nós, portugueses, não somos capazes de
tão gratuita crueldade. Não somos como os europeus do
Norte que, de manhã, caçam borboletas e, à noite, matam
pretos. Nós, lusitanos, somos diferentes. Mesmo quando
punimos fazemo-lo como pais zelosos. Os castigados — por
mais severa que seja a punição — não deixam nunca de ser
nossos filhos. Odiamos com amor, e o senhor sabe bem
disso. Ninguém mais do que nós se misturou e criou tanto
filho mulato. Veja o caso da Imani. O filho que ela traz no
ventre não é de um dos nossos? Vai ser, estou certo, um belo
rapazola. Pode ter a certeza, os outros europeus raramente
fazem filhos mestiços, e quando os fazem não os concebem
com tanto aprumo.
Com o devido respeito, meu capitão, tenha cuidado com
essa fotografia que é uma lâmina de dois gumes. Porque
testemunhei, com estes olhos que a terra irá comer, gente
branca a ser chacinada pela fúria dos pretos. Não havia ali
fotógrafo para registar aquele horror. O que lhe posso dizer é
que a verdade não é coisa que se fotografe. A verdade está
nos olhos de quem vê. Por tudo isso lhe peço: deite fora essa
fotografia. Porque essa imagem, Deus me perdoe, apenas
fabrica desejos de vingança contra os brancos.
É fácil ser-se bom quando já se foi feliz. A vida foi para
mim uma esposa adúltera. Mais valia ser viúvo, meu caro
capitão. Um viúvo fecha as pálpebras e sonha. Um homem
que foi traído pela vida perde para sempre o dom de sonhar.
Devolvo-lhe a sua carta e a maldita fotografia. Não me dou
ao trabalho de as rasgar. Talvez o senhor as queira guardar.
Serão um bom alimento para a sua má consciência.
O sargento
Júlio Araújo
Capítulo 22

A luz de Lisboa
Dei-me ao mar
num perpétuo sonho de navio
e tive das ilhas
a redonda ilusão de um infinito.
E não encontrei praia
em que não escutasse a voz materna:
onde houver mar, dizia,
terás um cais e serás saudade, distância e espera.
Depois,
quebraram-se os remos
e rasgou-se o fundo de todos os navios.
Dizem que foi obra do diabo.
Mas foi o Tempo
que quebrou os remos
e extinguiu o desejo da viagem.
O meu naufrágio
aconteceu sem nenhuma grandeza,
foi um simples vazar de maré.
E na areia da praia
para sempre se apagou a lembrança
de alguma vez ter havido mar.
(Versos do diário de bordo de
António Sérgio de Sousa)
Eis Lisboa, o último porto, o fim da viagem. No navio, os
soldados, em lágrimas, acenam com os bivaques aos que
esperam no cais. Algo de inesperado nos une na guerra,
africanos e europeus: do outro lado do mar, na terra distante
em que nascemos, todos nos julgam mortos.
Passos vigorosos e rosto tenso, a rainha Dabondi atravessa
o convés abrindo alas entre os tripulantes. Da casa das
máquinas trouxe uma pá que arrasta ruidosamente atrás de si.
Sente a areia a crescer dentro da boca, cospe para poder
respirar. Procura o capitão do barco, quer saber onde está
enterrado o filho, João Mangueze. A primeira coisa que fará
depois do desembarque é visitar essa sepultura. Se assim não
proceder, a terra que sobrou da cova crescerá dentro dela.
Todas as mães que perderam os filhos são sepultadas por
dentro, diz Dabondi. E volta a cuspir areia.
O capitão explica que será difícil alguém saber daquela
sepultura. A cidade é muito grande, argumenta. Dabondi
estranha: que grandeza tem uma terra que não sabe onde
foram semeados os seus mortos?
— Pior que ver um filho morrer — diz ela — é aprender a
esquecê-lo ainda vivo.
O capitão Sousa sacode a cabeça confuso. E pergunta-me,
em surdina: Mas o filho dela não morreu? E eu respondo:
Depois de mortos, os filhos tornam-se ainda mais vivos. A
rainha tosse e o chão fica coberto de areia. O português dá
um passo atrás, receoso. Quando recupera a respiração,
Dabondi afirma: A mulher e a terra têm a mesma boca. E
entrega a pá ao português. Desenterre-me, capitão, pede a
rainha. Desenterre-me, antes que eu sufoque.
Um soldado segreda ao ouvido de António de Sousa:
Prenda-lhe as mãos, há em África mulheres que se suicidam
comendo terra. O capitão está sentado com a pá sobre os pés.
Não sabe o que fazer. Ocorre-lhe apenas escutar uma mãe
lamentando-se.
— Todos os dias parimos o mesmo filho — diz Dabondi.
Todos os dias o cordão umbilical renasce para voltar a ser
decepado. Durante a vida inteira a mãe recomeça o parto,
escuta o primeiro choro, sente o primeiro riso. Todo o parto
infinitamente se reparte.
Dabondi faz o que desde o princípio do tempo todas as
mães fizeram: recolhem as pegadas dos filhos que partiram.
Assim o chão se torna mais vivo. E a terra ganha a curvatura
de um ventre.
*
Um soldado traz um pedido de audiência da parte de
Ngungunyane. O rei quer uma pequena atenção, em véspera
do desembarque. Pois concedo-lhe uns minutos, admite
António de Sousa. E lá desço eu também, eterna tradutora, ao
quarto dos prisioneiros vanguni. Esperei até ao fim da
viagem que o senhor me viesse visitar, começa por declarar
Ngungunyane. E prossegue, pausadamente: Posso ser um
preso, mas ainda sou um rei. Durante mais de uma década
tinha tratado com respeito todos os embaixadores de
Portugal. Mantinha a esperança de que o levassem, enfim, à
presença do seu homólogo, o rei de Portugal. António de
Sousa escutou aquilo tudo em silêncio.
— Hoje é sexta-feira — dia treze — declara o capitão. —
Não tens receio?
O rei estranha. Este branco tem medo de um feitiço?,
pergunta. Porque a ele, soberano de Gaza, aquele dia até lhe
traz um certo alívio. É interrompido por um violento ataque
de tosse. O hálito de Ngungunyane cheira a ferrugem. O rei
treme. Não é de frio. É de febre.
— Faz-me falta o Doutor Liengme — queixa-se, quase
sem voz.
— Temos cá melhores médicos — tranquiliza Sousa. —
Não morras agora, Gungunhana!
E riem-se os dois. Novo ataque de tosse e o português
despede-se à pressa com receio de ser contaminado.
Ngungunyane estende-lhe o braço. Pela primeira vez em toda
a sua vida, o capitão cumprimenta um negro com um aperto
de mão. A saudação prolonga-se mais do que esperava.
Delicadamente, vai-se soltando da mão do outro.
Ngungunyane volta a segurar-lhe o braço. E murmura: Estou
cheio de medo, meu amigo. De novo o português se senta
junto ao prisioneiro, hesitando na escolha das palavras. Por
fim, retira do bolso do casaco uma garrafa e recomenda:
Bebe este vinho. É melhor não estares sóbrio neste dia.
Retira-se, por fim, para a torre de comando. Ngungunyane
estende a bebida na minha direção. Agradeço, sacudindo a
cabeça. O imperador leva a garrafa à boca e escuto o lento
gorgolejar. O apito do vapor soa como o mugido de um boi
gigante. Ngungunyane ergue o rosto e percorre os céus com
olhos de criança.
— É isso mesmo que o senhor pensa, meu rei — declaro. —
Estão a sacrificar uma cabeça para festejar a sua chegada.
O sorriso do rei é débil. Mas ilumina-lhe a alma inteira.
Por um instante os deuses regressam e Ngungunyane deixa
de ver o medo.
— Este boi que agora escutamos é o mesmo que mugiu no
funeral do meu pai.
Sugere a esposa Muzamussi que não recorde tão tristes
assuntos. Agora tenho que falar, diz Ngungunyane. E
relembra o enterro do seu pai, o rei Muzila. O corpo do
falecido foi metido numa pele de vaca e pendurado do teto da
casa grande. Ali permaneceu para receber as devidas
honrarias. Quem abriu o desfile não foram os conselheiros
reais. Não foram os chefes militares. Foi o inkomo ya mdlozi,
o touro das grandes sombras. É este grande bovino que agora
se faz ouvir nos céus de Lisboa.
*
Deve haver um sol dentro deste rio. Só assim se explica a
luz de Lisboa. É o que digo ao capitão enquanto
contemplamos as colinas da cidade. António de Sousa
admite, sorrindo: a cidade deveria chamar-se «Luzboa».
É manhã do dia treze de março de mil oitocentos e noventa
e seis. O navio progride, lento e vaidoso, pelo estuário do
Tejo. À nossa volta há mais barcos que gaivotas. E são de
todos os tamanhos e feitios: lanchas, canoas, fragatas, botes a
motor, à vela e a remos, todos carregados de gente que acena
num infinito alarido. Para os portugueses é uma festa. Para
os prisioneiros é um prenúncio de fim do mundo.
Mais perto do cais percebemos como a multidão se estende
e ondula ao jeito de um outro mar. Escutam-se os gritos:
— Já chegou! Já chegou o Gungunhana!
Os motores são desligados, ao longe a terra balança,
informe e ébria. Desço ao quarto para escapar das náuseas.
Espreito os degraus para além do ventre. Estou no sexto mês
de gravidez.
Ainda não atracámos e começa a invasão dos jornalistas,
que chegam transportados em barcaças. Sobem a bordo com
tal entusiasmo que ninguém os impede de visitar o cubículo
que, durante dois meses, serviu de prisão aos meus
conterrâneos. O sargento apressa-me a que siga os
jornalistas. Naquele momento, adverte-me Araújo, convém
que eu apareça como sendo uma das esposas. Na tradução
terei que adotar um sotaque mais africano. A gente da
imprensa, diz o sargento, é perita em forjar histórias e
fabricar escândalos. E logo, dirigindo-se aos visitantes,
deixa-se tomar pela vaidade. Com modos circenses, anuncia
à porta do quarto: Eis os pretos, caros senhores!
Usando lenços sobre o rosto, os jornalistas espreitam o
exíguo espaço. Escuta-se a voz de Zixaxa comentando na sua
língua: Ainda bem que cheiramos mal. Assim não se
aproximam de nós.
— É aquele o Gungunhana? — interrogam-se os
jornalistas apontando Zixaxa. Não entendem uma palavra do
que foi dito, mas o simples facto de aquele homem ter
ousado falar sugere que seja distinto dos demais.
O sargento Araújo levanta o pano com que Ngungunyane
se tinha coberto. Não precisava de se esconder. O imperador
deixara de ter rosto. Restam-lhe uns olhos redondos de
recém-nascido. Não entende a voracidade dos repórteres. Só
podem querer a sua alma. E a alma do rei ficou do outro lado
do oceano.
Ngungunyane chora e os repórteres estranham. Estavam à
espera de uma postura mais digna. E adiam os fotógrafos o
tão ansiado retrato. O espaço torna-se exíguo, há uma mulher
negra que tosse nuvens de poeira e há um rei debulhado em
lágrimas. Urge sair dali. Araújo lidera eufórico o pelotão dos
escribas: Venham comigo, vamos levar esta gandulagem
para a tolda.
Ngungunyane segue cambaleando à frente dos presos.
Tinha obedecido ao conselho do capitão: bebera tão
rapidamente que o álcool lhe fez do cérebro uma deslaçada
nuvem. Os bêbados não se contentam com tristezas. Querem
tragédias. E ele está certo do seu desfecho: vai ser fuzilado
como aconteceu com os seus conselheiros em Chaimite.
Chora, implora, esconde o rosto com as mãos, oferece tudo o
que já não tem para obter a sua redenção: libras, gado, ouro,
marfim, escravos, terras. E suplica para ser recebido por D.
Carlos. Quer provar que lhe estão a mentir, quer jurar
fidelidade ao seu homólogo lusitano.
Espera que eu lhe traduza as súplicas. Peço a Godido que
me substitua nessa incumbência. O filho do imperador não se
faz rogado: o seu porte emproado e o domínio da língua
portuguesa tornam-no o centro das atenções. Os filhos dos
chefes são quase sempre insuportáveis: o que lhes falta em
maturidade sobra-lhes em arrogância. Mais tarde, quando
constar que este Godido sabe assinar o nome, distintas damas
irão assediá-lo para obter um autógrafo.
Xailes às riscas vermelhas e brancas são distribuídos pelas
rainhas. São as cores que elas usam para convocar as chuvas.
Não fui prevista, não recebo agasalho. Até àquele dia o
inverno era, para mim, uma palavra dos livros. Agora é uma
flecha branca que me atravessa o corpo. Tenho medo que
trespasse o meu filho. O capitão Sousa coloca-me sobre os
ombros um manto preto. E diz: Fica-te bem, é teu, leva-o
contigo.
*
Inesperadamente, junta-se aos jornalistas uma distinta
personagem: António Enes, o comissário régio. Veio numa
lancha especial e, no convés, todos lhe abrem alas e lhe
prestam vénias. Pede para ver os presos. Sacode a cabeça ao
encarar o choroso imperador.
— Não é boa ideia exibi-lo em público — lamenta António
Enes. — Vai inspirar simpatia e compaixão. Certa imprensa
vai adorar assumir a defesa de um pobre negro.
— Não podemos apresentar Zixaxa em vez dele? —
pergunta António Sérgio de Sousa.
Um sorriso triste é a resignada resposta de Enes. É
tentador, admite Enes, mas é um risco a evitar. O pior que
poderia acontecer a Portugal seria que esta operação de
propaganda fracassasse.
— O Gungunhana está murcho — diz o comissário régio.
— Há que animá-lo. Digam-lhe que vai ser recebido pelo rei
de Portugal.
— E é verdade, comissário? — indaga o sargento Araújo.
— Deixemo-lo pensar que sim. Mentimos. Foi o que ele fez
connosco durante anos.
O sargento Araújo dá uma volta em redor da cadeira do
comissário. Está tenso, usa os pés para agredir o chão.
Quando ganha coragem, a voz sai-lhe aflautada:
— Com todo o respeito, Excelência, mas não falta aqui
alguém?
— Não percebo.
— Não falta aqui o nosso capitão Mouzinho de
Albuquerque?
António Enes ajeita os óculos. Não escutou. É sexta-feira,
dia treze. Num dia assim há coisas que não se deve escutar. E
retira-se. Pede licença dizendo que em Lisboa esperam por
ele graves urgências.
Resta no convés um incómodo silêncio. O sargento Araújo
insiste, dirigindo-se a António de Sousa: Responda o meu
comandante: Mouzinho não devia estar aqui?
Sousa não tira os olhos do mar enquanto responde. O
sargento, diz ele, já devia saber a diferença entre um político
e um militar. O político sabe — ou julga saber — quando
deve falar. O militar aprendeu a ficar calado. E, assim calado,
tem sempre razão.
*
Enfim, somos conduzidos para o cais. Desembarcam
primeiro as mulheres, carregando as trouxas à cabeça.
Depois são os homens que desfilam rodeados por um cordão
de soldados que mantém afastada a multidão. Albergam-nos
primeiro num enorme armazém a que chamam de Arsenal.
Nesse amplo recinto esperam-nos governantes, jornalistas,
cavalheiros e damas. Lá fora o alarido é ensurdecedor. Onde
estamos, capitão?, pergunto a António de Sousa. Estamos
num fábrica de material de guerra, responde. É uma boa
maneira de entrar neste país, diz ele. As nossas fábricas,
acrescenta, não são fábricas nem são nossas. O que fazem já
vem feito do estrangeiro.
Ngungunyane senta-se num banco de madeira. O assento é
alto, os pés do rei balançam no ar. Chama por mim, pede que
me mantenha por perto. Precisa de saber o que dizem os
brancos. Dabondi senta-se do outro lado do assento. As
tábuas rangem. A mão magra da rainha afaga a madeira. Já
estamos em Portugal, Nkosi, afirmo. Eu não estou em
nenhuma terra, declara Ngungunyane. Faço companhia ao
meu filho João, estou por baixo do chão.
Vejam as árvores, exorta Dabondi. Estão mortas, tão
mortas que os corvos nelas receiam pousar. As árvores foram
chupadas por um bicho que tem um dono. Nas ruas e nos
passeios, as folhas secas encolhem-se como friorentas
viúvas. Assim fala a rainha feiticeira. E indaga: Respondam-
me, sem medo: alguma vez viram tal desolação? Eu vi,
responde Ngungunyane. Quando se sentiu morrer, o seu pai,
o rei Muzila, disparou uma flecha contra o céu. Num
segundo as nuvens se desplumaram e, aos pedaços,
desabaram sobre o chão.
Cinco carruagens puxadas a cavalos estacionam à nossa
frente. Vai começar o desfile. Os soldados empurram-nos
para junto das carroças. Estão a ver?, pergunta
Ngungunyane. Não sou um preso, sou um visitante. Levam-
me de carruagem, como me disseram que fazem aos reis.
Dabondi separa-se dos restantes presos. O frio é tanto que
as sombras não se soltam dos corpos. Ajoelha-se em frente
dos cavalos e usa os dedos para escavar entre as pedras da
calçada. O que faz essa mulher?, pergunta Araújo. Estamos
pisando um cemitério, declara a rainha. Os brancos colocam
pedras sobre os mortos para que estes não regressem. Onde
se dizia haver uma rua, ela via um cemitério.
Os cavalos percutem as pedras da calçada como fazem os
tingoma, os tocadores de tambores da minha terra. Os
cavalos, diz Dabondi, têm medo da sua própria sombra. É
por isso que não dão descanso aos cascos. Uma banda militar
instala-se no pátio. Os tambores batem agora com o mesmo
ritmo dos cavalos. Os bichos sacodem as patas como os
ikanyamba, essas criaturas que habitam as águas e os sonhos
dos zulus. E há um fogo que brota das suas narinas. Os olhos
deles estão cheios de rios e de escuras planícies. Os olhos
dos cavalos são bons para chorar, diz Dabondi. As folhas
mortas levantam voo e o imperador segue-as com o olhar
acreditando serem andorinhas. Mandou que fossem
exterminadas. Mas elas ressuscitam e emergem do chão onde
o filho foi enterrado. O solo português também é seu. Aquela
terra pertence-lhe desde que recebeu o seu sangue.
*
Começam a distribuir os prisioneiros pelas carruagens. Nas
três primeiras fazem sentar as dez esposas. A quarta carroça
é ocupada pelo cozinheiro Ngó, que se instala sobre as
trouxas e as esteiras, as nossas únicas bagagens. Na última
carruagem seguem Ngungunyane, Godido, Zixaxa e
Mulungo.
Por um momento, hesitam onde me colocar. A imprensa já
tinha feito saber que eram dez as mulheres. A minha
presença seria questionada. Decidem que viajarei, oculta, na
carroça do cozinheiro Ngó.
E começa o desfile. Escoltadas por trinta soldados, as
carroças forçam caminho por entre a cerrada multidão.
Milhares de pessoas comprimem-se nos passeios e nas ruas,
empoleiram-se nas árvores e nos postes, debruçam-se das
janelas e varandas. São todos uma só criatura que ondula
como um mar que ruge. Chovem insultos e ameaças. Cospem
para o chão, atiram objetos, pedem para que sejam degolados
os que ousaram rebelar-se.
Aos solavancos, vou espreitando por entre as tralhas. Com
exceção de Dabondi todas as rainhas parecem curiosas e
despreocupadas. Acreditam na versão de Ngungunyane: toda
aquela algazarra é uma manifestação de boas-vindas. E os
apupos das mulheres brancas são entendidos como o
«mukulungana», o ulular com que elas mesmas, na sua terra,
saúdam os visitantes. De vez em quando avistam negros no
meio da multidão. E acenam como se fosse um reencontro.
Aos poucos, porém, a realidade impõe-se e as mulheres
fazem como o pangolim: encostam-se umas nas outras, como
se tivessem um só corpo, redondo e blindado.
Desde início os homens seguem acabrunhados, tolhidos de
frio e medo. Aos poucos, porém, Ngungunyane vai
assumindo uma postura tranquila e confiante. Não é
dignidade que nele transpira. É indiferença. Se a intenção era
alhear-se da humilhação, o monarca excedeu-se na dose de
vinho. E adormece no embalo da carruagem. Essa sonolência
é mal vista pelos portugueses, que esperavam surpreender no
rosto de Ngungunyane a imagem da submissão de toda uma
raça. O africano está ausente, absorto em si mesmo como é
próprio de um imperador. Insultam-no e ele não reage.
Lançam-lhe objetos e ele não se desvia. Dabondi sorri, ergue
o punho direito fazendo soar as pulseiras. As folhas secas
erguem-se do chão e rodopiam de regresso às árvores.
Capítulo 23

Um quarto debaixo da terra


Eis o que eles fazem: com a espada matam os
viventes sem deus; com a cruz matam os deuses
dos sobreviventes.
(Nwamatibjane Zixaxa)
No Forte de Monsanto encaminham-nos por uma escadaria
subterrânea, como se visitássemos a nossa derradeira
morada. Nem os mortos moram tão fundo, suspira
Ngungunyane. A masmorra é escura, húmida e fria. Escorre
água pelas paredes, sente-se o cheiro das coisas velhas.
Enterram-nos vivos, geme Godido.
Sentado no chão de pedra, o rei pede que o ajudem a tirar
as botas. Não preciso delas, diz. Já não tenho pés. O frio
comeu-os, o frio tem grandes fomes. O rei delira: caso o
inverno se prolongue talvez se habitue a andar sem pés. E se
não o matarem quem sabe na próxima vez os pés lhe voltem
a crescer?
Acostumo os olhos à penumbra e vejo que a cela é mais
ampla do que as que nos havíamos habitado. No fundo da
terra, porém, tudo parece estreito. Dormimos aconchegados
uns nos outros. Dabondi enrosca-se em mim. A rainha será,
nas próximas noites, a minha manta, o meu travesseiro, o
meu braseiro.
Não sabemos se o nosso despertar é precoce ou tardio.
Porque há apenas uma pequena janela rasgada no topo da
parede. Por essa fresta chega-nos uma fatia do céu de Lisboa.
Godido empoleira-se para espreitar a multidão que se
aglomera no terreno baldio em volta. E será assim nos
próximos dias: nesse descampado frente ao forte centenas de
curiosos instalaram uma feira com barracas de comes-e-
bebes. Ali se vendem postais do Gungunhana, folhetos com
relatos épicos da captura do rei africano. As bancas exibem
uns biscoitos chamados «Gungunhanas» com o recorte de
um homem anafado e cabeçudo. O próprio imperador se
mostrará fã daquelas bolachas. Não há dia, que não se devore
a si mesmo.
Os portugueses festejam como fazem todos os infelizes,
murmura Dabondi. Porque eles não se dão conta de que a
cidade está amaldiçoada. E a rainha cospe para o chão. Nas
mesmas ruas por onde hoje desfilámos se derramará o sangue
do rei D. Carlos. E cairá o corpo de Mouzinho de
Albuquerque. Tombará como uma folha morta sobre as
pedras da cidade.
*
Vivemos como toupeiras, num buraco escavado em terra
alheia. A rainha Dabondi reconhece a nossa triste condição
mas não parece lamentar-se, Um dia destes, diz ela, a água
brotará das pedras e subirá pelas paredes. O nosso desafio é
claro, vaticina: sobreviverão aqueles que se converterem em
peixes. Foi o que sucedeu aos portugueses.
Faz hoje uma semana que nos encarceraram dentro das
trevas. Escuto passos. Um sentinela chega carregado de
jornais. Atira-os pelas grades da porta. É para leres alto para
os outros, diz-me. Mostro as fotografias ao imperador de
Gaza. Ele sorri, satisfeito. Foi o rei de Portugal que mandou
que me publicassem, proclama. Abstenho-me de traduzir os
títulos. Tratam Ngungunyane como a «fera cruel», o «régulo
sanguinário», «o brutal tirano, aliado dos ingleses».
Os jornais são depois distribuídos entre os presos.
Retalham-nos como se fossem panos à medida do corpo.
Usarão essas folhas para se aquecerem. Os que nunca
souberam ler dormem agora cobertos de letras.
No oitavo dia vieram limpar os quartos e caiar as paredes.
Diz-se em surdina que D. Carlos visitará Monsanto. Para
Ngungunyane a notícia não causa espanto: «Sempre acolhi
bem os emissários da realeza lusitana. Vão receber-me, é o
que fazem os reis.»
No dia seguinte suspendem as limpezas e as pinturas. O rei
D. Carlos anulou a visita. A decisão é política, explicam.
Trouxeram Ngungunyane para que fosse o centro das
atenções. Mas a presença do Leão de Gaza acabou tornando-
se incómoda. Esse constrangimento tem um nome: as
mulheres. Ngungunyane pode ser africano, pode ser inimigo
de Portugal. Mas não pode exibir tão impunemente o pecado
da poligamia. A igreja protesta, os jornais reclamam, a
sociedade faz eco desse desconforto. Os conselheiros avisam
D. Carlos: visitar Ngungunyane seria legitimar aquela
imoralidade.
Desiludido, Ngungunyane manda o filho tapar a única
janela que ilumina o calabouço. Se não me recebem também
não quero a luz que eles, por caridade, me enviam, declara.
Questiona em voz alta como se, para além das paredes,
alguém mais o escutasse: Convidaram-me junto com as
minhas sete mulheres. Alguma vez andei a contar as esposas
que os acompanhavam nas visitas a Moçambique?
*
Não é tanto o sol que me falta. Do que tenho mais saudade
é da lua. Já não a vejo brilhar. Talvez seja por isso que penso
tanto em Germano. A sua lembrança chega-me como o luar
que deixei de contemplar. Dabondi pede-me que me afaste
das recordações. Diz-me que cante. E que o faça na minha
língua. Que língua?, pergunto-lhe. Em silêncio, ela se afasta.
Nos dias seguintes somos visitadas por damas da corte.
Falam por gestos e logo se percebe que têm um propósito:
civilizar, dizem elas, as suas congéneres africanas.
E a primeira lição centra-se no adequado uso dos talheres.
Podem as negras dirigir-lhes insultos numa língua
impercetível. Mas não se aceita que elas comam com as
mãos. Usar os dedos para comer é, como a poligamia, uma
inaceitável obscenidade.
Depois das visitas as portuguesas passam pela igreja para
se confessarem. Estiveram num antro pecaminoso. Deus não
aceita que um homem tenha várias mulheres, explica-nos
uma delas. Os homens aqui só têm uma esposa?, pergunta
Dabondi. A portuguesa sorri, e não responde.
Acabaram proibindo a visita das damas da corte. A partir
de então é no jogo de cartas que as rainhas passam a maior
parte do tempo. Enquanto jogam vão-se penteando umas às
outras. Não estranham aquele infinito ócio: nunca na vida
estiveram grandemente ocupadas. Havia na corte de Gaza
quem fizesse o trabalho por elas. Ngó, Godido e Mulungo
fazem cestas e colares de missangas. Zixaxa estuda
português num caderninho que lhe deram no barco.
Ngungunyane bebe, tosse e dorme. O velho Mulungo vai
passeando de um lado para o outro. Faz como todos os
prisioneiros: conta os passos para que a cela deixe de ter
dimensão. Está feliz por não entender uma palavra de
português. Tal como os guerreiros zulus — que se untam
com a seiva do impundu — também ele se tornou invisível.
Essa sua desistência torna as paredes inexistentes. O velho
conselheiro é o único que não chegou nunca a estar preso.
No meu canto na cela vou mantendo uma única ocupação:
a gravidez. A barriga é o meu relógio de areia: vai enchendo
com o vazar do tempo. Estou agora de sete meses. E faço
como Dabondi me aconselhou: vou cantando. Mas canto sem
palavras. Não escolhemos o idioma em que nascemos. O que
se canta a um filho é um ventre que perdura para além do
parto.
Todas as noites durmo abraçada a Dabondi. O frio pede um
corpo acrescido. Nesse duplicado ventre se anicha agora o
meu filho. Antes de nascer já ele tinha várias mães. De noite,
quando todos já dormem, retiro o pano que tapa a janela.
Incapaz de dormir, vou espreitando a noite como um afogado
que emerge à superfície da água. Não existe insónia, diz
Dabondi. Existe apenas um outro modo de dormir. Nesse
distinto sono, escuto o rei gemendo e tossindo
convulsivamente. Não é uma doença, garante Dabondi.
Alguém quer sair do corpo dele. O imperador está mais
grávido do que eu. Um maléfico espírito abrigou-se nele e
consome-lhe o peito e tritura-lhe os joelhos.
Desde ontem que não se escuta o ruído infernal das
cercanias. Proibiram o arraial. Os comerciantes levantaram
as barracas e foram vender caricaturas do Leão de Gaza num
outro lugar. Estão com medo de mim, ironiza Ngungunyane.
Já estava a fazer concorrência ao rei deles.
Cada um dos presos pode ter o seu passatempo. Há, porém,
uma ocupação que nos é comum: o sono. A velhice e a prisão
ensinam a mesma lição: dormir anula o tempo. Ao meu lado
ressona ininterruptamente aquele que os portugueses
chamam de «Leão de Gaza». O título concede-lhe a nobreza
de um rei. Aos leões os europeus reservam um de três
destinos: serem caçados, enjaulados num zoo ou
domesticados num circo. O rei de Gaza reúne estes destinos
numa só pessoa.
*
Os dias passam sem história até que, numa tarde cinzenta,
recebemos a visita do médico do forte. Alertaram-no para as
dores no tórax e para o estado febril de Ngungunyane.
Enquanto o paciente é auscultado, a rainha Dabondi anuncia
o seu diagnóstico: há um pássaro dentro do peito do
imperador. Escuta-se a ave piar durante a noite. É uma
xikhova, uma coruja, diz Dabondi. É preciso espantá-la,
defende a rainha. O médico do forte abana a cabeça. É uma
doença, uma pleurisia, declara com superioridade.
No dia seguinte levam Ngungunyane estendido numa
maca. Godido vai com o pai, para as traduções. O choro
lancinante das mulheres confunde-se com as sirenes da
viatura que transporta o rei para o hospital. As rainhas
entram de luto. Não sabem despedir-se do esposo em terra
alheia. Pedem uma lâmina e rapam o cabelo. Deixarão
crescer o cabelo apenas quando o marido regressar. Dabondi
já não me abraça durante a noite. Não me pode tocar
enquanto o rei estiver ausente. Estou impura, justifica ela.
Trago um mulato dentro de mim.
*
Ngungunyane regressa do hospital com saúde no corpo e
com um plano na cabeça. Durante a sua estada na enfermaria
o filho Godido escutou conversas. E percebeu que havia um
assunto que não deixava dormir a corte lusitana: o relatório
de Álvaro Andrea. Essa outra versão da epopeia de Chaimite
é uma bomba prestes a explodir. Os republicanos anseiam
por divulgar o documento. O feito heroico da monarquia
corre o risco de se desfazer como poeira.
Ngungunyane solicita a presença do comandante do forte.
Quer negociar com as autoridades prisionais: corroborará a
versão de Mouzinho desde que, em troca, lhe concedam
melhores condições no cárcere. A exigência resulta: no dia
seguinte são-nos atribuídas duas celas amplas, arejadas e
com roupas à disposição. Para além disso, autorizaram-nos a
passar as manhãs no pátio exterior. Nesse mesmo dia
estendo-me na relva, faço subir a blusa e deixo o sol aquecer-
me o ventre. O meu filho tem que saber que vem de outras
terras, cheias de calor e luz.
O sol não é apenas uma dádiva. É um remédio para mim,
que tinha deixado de rezar. Todas as manhãs estiro-me no
pátio com os pés virados para sul. A ponta dos dedos toca a
minha aldeia natal. E assim me deixo até a pele incendiar.
Aos poucos, começo a gostar da cidade de Lisboa com as
suas manhã limpas e azuis. Pode alguém amar uma terra
apenas pelo seu céu?
Nessas ensolaradas horas vou pensando nas mulheres da
minha terra. E concluo: se há neste forte uma rainha sou eu.
Todas estas mulheres que me acompanham não diferem
muito da gente humilde que habita o meu país. Não fosse eu
ter saído da minha aldeia e seria apenas mais uma dessas
criaturas que há séculos entram nas florestas e regressam
carregadas de ramos secos. Esse é um encargo que lhes cabe
desde que aprendem a caminhar. Os braços crescem-lhes
mais rápido que o resto do corpo, que é para melhor servirem
os homens. Na aparência, trabalham para as suas casas. Mas
elas fazem mais do que isso: estão juntando lenha para
incendiar o mundo. Haverá um dia em que as meninas da
minha terra entrarão numa escola e carregarão livros nos seus
braços. Era assim que eu sonhava nas manhãs soalheiras de
Lisboa.
*
Dias depois atribuem-me um quarto só para mim. Pensei
que fosse um privilégio. Era uma condenação. Nesse
aposento recebo a visita do comandante do forte. As suas
instruções são claras: devo extrair informações dos
prisioneiros e denunciar falas e falantes. Ngungunyane e
Zixaxa são donos de segredos. É esta a certeza dos
portugueses: de longe, os presos ainda comandam as
operações de resistência em Moçambique. Será talvez uma
ideia demasiado conspirativa. A verdade é que a guerra não
terminou com a detenção do rei de Gaza. Novos focos de
rebeldia se acenderam em redor de Maputo e em Magude.
Estas notícias são uma rasteira para a propaganda lusitana.
Se as novidades são más para os portugueses, para mim
constituem uma verdadeira calamidade: todas as noites
transito de tradutora para delatora. Não tenho escolha: ou
denuncio os meus irmãos de raça ou, depois do parto,
enviam-me de volta para Moçambique. Viajarei sem o meu
filho, sem Germano, sem os meus sonhos.
Decido inventar para agradar aos meus algozes. A única
diferença entre ilusão e realidade é apenas uma questão de
convicção. E é assim que, todas as noites, há um secretário
que transcreve imaginárias conspirações. O mais grave é que
vou criando prazer nessas falsas denúncias.
*
Até que nos chega a notícia vinda de Gaza: mataram
Maguiguane, o guerreiro que se convertia em pássaro.
Assassinaram o homem que mantinha viva a última centelha
do império de Ngungunyane. Decapitaram-no. Era preciso
uma prova daquela morte: espetaram a sua cabeça num ferro
e exibiram-na de aldeia em aldeia. Ao fim de uns dias estava
tão putrefacta e coberta de moscas, que podia ser a cabeça de
uma criatura qualquer. As pessoas olhavam, baixavam o
rosto e fugiam. Não precisavam daquela prova. Sabiam da
verdade por vias que os portugueses desconheciam.
O homem que nos fez chegar a notícia era um munguni
que veio de Moçambique. Trouxe com ele um ramo da
árvore sagrada, a umphafa. Cortaram aquele galho no lugar
onde Maguiguane morreu e pediram ao morto que migrasse
para dentro daquela pequena estaca.
Entregaram o ramo a este mensageiro e fizeram-no viajar
para Portugal. Durante todo o caminho o homem conversou
com o galho da árvore. Quando fosse para se sentar o
mensageiro pedia duas cadeiras, reservando uma para pousar
o ramo. Na sua mesa havia sempre um prato a mais. Na
amurada o mensageiro descrevia em voz alta os portos por
onde paravam. Os marinheiros riam-se dos desvarios do
viajante. Não acreditavam que traziam no navio o falecido
Maguiguane Khossa, o temido chefe das tropas inimigas.
Esse mesmo ramo é agora entregue ao imperador, que
comprime as folhas entre os dedos e os espinhos. Gotas de
sangue tombam na pedra do quarto. Quem o matou?,
pergunta Ngungunyane. Foi Mouzinho, responde o
mensageiro em xizulu. O rei de Gaza manda que o estafeta se
retire. Deita o ramo da umphafa no seu leito, cobre-o com
um pano. E dirige-se-lhe num murmúrio: Vieste ter comigo,
meu guerreiro. Não há na nossa terra uma réstia de chão
para te enterrar. É interrompido por um acesso de tosse.
Depois, prossegue: Disse aos portugueses que eras um
traidor. Menti para te proteger. E tu cumpriste as minhas
ordens até ao fim.
Num rompante de fúria, Zixaxa arranca o ramo das mãos
de Ngungunyane, quebra-o em pedaços e lança esses
fragmentos pela janela. Ngungunyane está estupefacto, as
rainhas choram. Nunca pensaram testemunhar tamanha
heresia, a casa de um morto ser tratada com tanta desfaçatez.
Tudo isto é mentira, clama Zixaxa. Ainda agora, pergunta
ele, acabáramos de chegar e já havia alguém trazendo
notícias de Moçambique? Em que barco viajou tal
mensageiro? Só um bêbado, assegura Zixaxa, podia acreditar
naquela fantasia. Ou quem sabe o Ngungunyane queira,
daquela maneira, comprovar a morte do Maguiguane
Khossa?
*
Anunciam uma nova benesse: os prisioneiros estão
autorizados a preparar as suas refeições. Dabondi está feliz
mas não quer que seja o jovem Ngó a cozinhar. Bate à porta
do meu quarto carregada de potes e panelas.
— Esconda-as no seu quarto e só as entregue às rainhas
— diz ela. — Não podemos permitir que um homem prepare
a comida do Nkosi.
— E por que não? — pergunto.
— Sempre foi assim: os homens acendem a fogueira, as
mulheres dão uso ao fogo.
Rigorosas são as tradições na cozinha: as cinzas são
lançadas aos quatro pontos cardeais. Só assim se purifica a
aldeia. A prisão é agora a nossa aldeia.
— Deixe Ngó cozinhar — peço-lhe. — Se o homem ficar
sem serviço, os brancos deitam-no ao mar.
Com um pedaço de carvão a rainha inscreve uma cruz no
fundo de cada uma das panelas. Pronto, estão abençoadas,
suspira. Os brancos têm fortes feitiços, diz ela. Cozinhar,
minha filha, não é fazer comida. É sentar os deuses à nossa
mesa.
Esquecemo-nos, diz Dabondi, como se arrumavam as
nossas casas para receber esses invisíveis visitantes. Nos
nossos pátios, os homens sentam-se virados para sul. As
esposas ocupam o lado oposto. Ao vento norte dá-se o nome
de «nwalungo», o «homem». O vento sul é chamado de
«dzonga», a mesma palavra que designa as mulheres. Estes
preceitos não são mais respeitados. Nesta nova casa — que
Dabondi diz ser um barco enterrado — ninguém mais sabe
dos pontos cardeais. Se um dia os espíritos nos vierem
resgatar não saberão como nos encontrar. Saberão atravessar
o extenso oceano mas ficarão à porta das nossas celas.
As minhas únicas visitas são os sonhos. Naquela noite
sonhei com quem não se pode sonhar: o meu filho que está
por nascer. No sonho, o meu menino vai ser batizado na
igreja de Nkokholani. Estão presentes todos os parentes, os
vivos e os mortos: o meu pai com a sua orquestra de
marimbas, a minha mãe trazendo nos braços a corda com que
se enforcou; o meu irmão Dubula com suas vestes guerreiras
e Mwanatu com a remendada farda do exército lusitano. O
último a chegar é o avô Sangatela, que se apresenta todo
coberto de poeira. Ao tossir contorce o corpo como se
expelisse toda a poeira das minas por onde passou. E anuncia
com voz grave:
— Atravessei a terra para comparecer a este batizado.
Esse meu neto sou eu mesmo.
Em voz alta são invocados os que foram levados pelos
navios negreiros e os que foram mortos nas guerras. Sobre o
nome de cada um se derrama água do mar. A profetisa
Bibliana chama pelos desaparecidos e as paredes da igreja
começam a ranger. Eleva o tom de voz e fendas se abrem nos
muros. Até que o telhado se solta e flutua brevemente para
depois ganhar altura. Por fim, perde-se nos céus como
embriagada ave.
Bibliana traz a bilha com água do mar. Pede ao padre
Rudolfo que verta água sobre o corpo do meu filho. O
menino chora e tosse engasgado. A profetisa ergue a criança
e declara: «Os mares são como o sangue: parecem vastos e
variados, mas todos cabem num único corpo.»
Bibliana coloca-se atrás de mim e abraça-me com
convicção. Aperto os seus braços reforçando esse aconchego.
É manhã. E surpreendo-me tocando as pulseiras de
Dabondi.
Capítulo 24

Um corpo rasgado
Nem todos os selvagens são meus inimigos.
Mas basta que sejam inimigos para se tornarem
selvagens.
(Sargento Araújo, citado por Zixaxa)
Certa noite Patihina e Xesipe irrompem pelo meu quarto
quebrando-me o sono. As rainhas apressam-me, o rei está a
ter um ataque. A cela para onde me levam encontra-se às
escuras. Uma suspeita nasce dentro de mim: por que razão
apagaram todas as lamparinas? Há um vulto deitado sobre a
cama. De súbito sou rodeada por braços que me empurram.
São as rainhas que me atacam e me arrastam para o leito. A
surpresa é tanta que me esqueço de gritar. As mulheres
prendem-me as pernas e os braços. A rainha Muzamussi
coloca um joelho sobre o meu peito e pergunta: Vê quem está
aqui connosco! A um gesto seu as três esposas de Zixaxa dão
um passo em frente.
O mesmo riso misterioso deforma o rosto de todas as
mulheres. A rainha mais velha acusa-me com veemência:
Pensas que és uma branca? Andas calçada e vestida sem
respeito e, mesmo ainda não sendo mãe, falas com os
homens sem baixar os olhos. Nós sabemos porquê: és uma
feiticeira, queres enlouquecer os nossos homens. E já o
fizeste. Nós vemos as pestanas dos nossos maridos a arder
durante a noite. Sonham contigo, foi Dabondi quem nos
disse.
Muzamussi prossegue, enfática: ali estão as mães mais
veneradas de todo o reino de Gaza. Mas não deixam de ser
mulheres: em todo o lado serão tratadas como intrusas.
A matriarca dirige-se ao esposo, pronunciando um
veredito: Está aqui a culpada, está aqui a mulher que não te
respeita como homem, a mulher que ofende a tua dignidade
como pessoa. Castiga-a, mostra o teu poder!
— Dabondi! — chamo, em desespero.
A rainha não está no forte. É o que me dizem as outras
esposas. Levaram-na para a cidade. Estás sozinha, sem os
teus patrões, sem a tua madrinha. Ngungunyane arrasta-se
como uma enorme lesma, pegajosa e escura. Metade de mim
submerge sob o seu peso. Há uma mão que me tapa a boca.
Espreito na penumbra. Vejo o rosto do rei pendendo sobre
mim.
— Não magoe o meu filho, Nkosi — imploro, brigando
contra a mão que me amordaça.
O rei respeita o meu pedido: senta-se no leito, apoiando os
pés na pedra fria. Manda que as esposas se retirem. Quer
ficar sozinho comigo. Muzamussi ordena: Queremos ouvir a
cabra gemer. E as mulheres abandonam o quarto.
Estamos agora os dois sozinhos na cela. Sentado na berma
do leito, Ngungunyane fica um tempo contemplando os
joelhos. Depois fala, sem erguer a cabeça: Não passas de
uma mutxope contratada para me espiar.
Não valia a pena negar. Godido tinha ouvido os guardas a
conversar. Não perceberam que o preso sabia português.
Falavam de mim, Imani Nsambe, e dos segredos que eu
entregava ao comandante do forte. Já ninguém tinha dúvida
sobre a natureza dos meus serviços.
— Foi a minha espionagem que o salvou, Nkosi.
— Quando?
— Na viagem de barco. Fui eu que fiz abortar os planos de
Machava.
Com um inesperado vigor Ngungunyane agarra-me pelos
braços como se me arrastasse para um abismo. No escuro
sinto abater-se sobre mim todo o peso do universo. O
imperador de Gaza, todo nu, está irremediavelmente
desabado sobre as minhas coxas. Agonia-me o seu hálito
empestado, enoja-me o suor cheirando a bicho.
— Geme, luta, grita! — sussurra ao meu ouvido.
Não percebo. Faz de conta que te estou a violar, insiste o
rei. E vai sacudindo o corpo em espasmos que fazem ranger
a cama. De repente tudo se torna claro. Aceito participar
naquela simulação. Grito por minha mãe, grito com tal
convicção que todo o corpo me dói e as lágrimas escorrem
pelo meu rosto. E nunca nenhum sofrimento real me havia
magoado tanto.
O rei ergue-se e, no recanto dos banhos, finge que se lava.
A água escorre de um balde para outro enquanto vai falando.
Elas sabem, diz ele, que estou impotente. Agita as mãos
dentro do balde, precisa do consolo daquele rumor de água.
Tinhas razão: há meses que não sou homem. O Doutor
Liengme atribuía a culpa ao álcool. Mas o rei não acredita.
Os suíços não sabem dos nossos feitiços, diz ele. Não foi o
vinho, foram as minhas esposas que me murcharam.
O que elas tinham acabado de fazer, colocando-me nas
mãos do marido, não passava de uma pérfida cilada. É o que
garante Ngungunyane. As rainhas estavam certas do seu
fracasso assim como estavam seguras da minha humilhação.
Mas o rei tinha engendrado uma resposta à altura.
— Agora é a minha vez de castigar essas mulheres —
declara o rei. — Continua a fingir, Imani.
— Não preciso fingir, Nkosi. Eu fui violada.
Ngungunyane sacode a cabeça com um sorriso vago.
Porque só agora ele entende: os portugueses não o trouxeram
para o matar. Quando embarcou ele já estava morto. No
momento em que, à frente dos seus súbditos, Mouzinho lhe
poupou a vida, nesse exato momento ele foi executado. Um
imperador morre quando se exibe mortal, quando se declara
humano e frágil, quando se ajoelha submisso aos pés de
outro imperador. Não podes ter sido violada, minha filha,
declara com veemência. Porque não te deitaste com uma
pessoa viva.
Retiro-me do escuro recinto. De alma rasgada, olhos
molhados, passo pelas rainhas que, fazendo alas, esperam
atónitas no corredor. Sinto os seus olhos como facas
cravando-me as costas. Fecho a porta do meu quarto, cruzo
os braços sobre o ventre e penso: é realmente triste o que as
rainhas acabaram de fazer comigo. Mais triste, porém, é o
que a vida fez com estas mulheres. A inveja que sentem de
mim tem todo o sentido. Chamam-nas de rainhas. Mas
nenhuma delas sonhou tomar posse da sua própria vida.
*
Manhã cedo vêm-me buscar. Há alguém na sala de espera,
dizem-me, alguém que veio de longe para me ver. Só pode
ser engano, penso enquanto vou atravessando amplas salas e
austeros corredores. Talvez seja Germano, penso com o
coração saltando-me do peito. Chegou a tempo de assistir ao
nascimento do nosso filho.
O soldado que me conduz aponta para os tetos altos e
declara com orgulho: «É tudo feito com betão reforçado, não
há bomba neste mundo que atire isto abaixo.» Desemboco
num aposento estranho, com grandes tapetes vermelhos.
Numa poltrona igualmente vermelha está sentada uma
mulher magra, cabelos brancos emergindo de um lenço
negro. Está tricotando uma malha da cor do assento e dos
tapetes. Por um momento parece que vai tecendo todo aquele
obscuro lugar. Balança os cotovelos para evitar que as linhas
se emaranhem nas agulhas.
— É para o meu neto — diz ela. — Vai nascer no dia em
que eu terminar este casaco.
Agora tenho a certeza: estou perante Laura de Melo, a mãe
de Germano. A senhora ergue-se com desenvoltura, fazendo
rolar o rolo de lã pelo tapete. O novelo segue-a como um
obediente gato. Encosta a malha ao meu rosto e sacode a
cabeça em desaprovação: És mais preta do que eu pensava.
Devia ter escolhido uma cor mais clara.»
Rastejo atrás do novelo, quero ser prestável, mais do que
prestável, quero mostrar-me submissa. Sempre de joelhos,
ergo o novelo de lã com as duas mãos juntas. Laura de Melo
parece não me ver. Não te aproximes, ordena-me. De súbito
suspende os braços e, num violento sacão, espeta as agulhas
por entre os fios da lã. O novelo encolhe-se num estertor de
corpo vivo.
Como se retornasse a si mesma, Dona Laura benze-se e
volta a enfrentar-me: Não quero cá proximidades. Ainda
começamos a gostar uma da outra e não haverá pior coisa
do que isso.
Contempla-me de alto a baixo. Tem nos olhos o mesmo
azul de Germano.
— Estou aqui apenas por um motivo — diz ela. — Venho
entregar-te uma carta que chegou do meu filho.
Do bolso do vestido retira um envelope: Toma, é para ti.
Estende o braço na minha direção. Perante a minha
passividade vai agitando nervosamente a encomenda. E
lamenta-se: Germano sempre foi dado à escrita. Espero que
perca esta mania. Escrever cartas é coisa de mulher.
Recolho finalmente o envelope. Não o abro. Levo-o ao
rosto e inspiro profundamente. Também já fiz o mesmo, diz
Laura, sorrindo. Nas cartas anteriores não encontrei o cheiro
do meu filho. Agora, sim: Germano voltou a ser meu filho.
A sua velha mãe, diz Laura, cheirava-lhe o cabelo para
saber da sua saúde. Já moribunda e incapaz de deglutir, a
velha senhora alimentava-se de aromas. De manhã
deixavam-lhe cascas de laranja sobre a cabeceira. À noite
esfarelavam folhas de hortelã no travesseiro. E a velha mãe
dormia sorrindo. E concluiu a velha mãe:
— Não vale a pena — diz Laura — cheirares essa carta,
minha filha: não encontrarás o teu namorado.
Com o envelope nas mãos, encaminho-me para o corredor
enquanto escuto as terríveis palavras:
Ele não vem, minha filha. Vai ficar por África, o meu
Germano.
Percorro de volta os corredores frios, seguindo o mesmo
soldado que me escoltou na ida. Contemplo os tetos de betão,
desejando que o edifício desabe sobre mim.
*
Acabo de me acomodar no quarto que nunca me pareceu
tão estreito. A porta escancara-se e eu não abro os olhos.
Escuto os lamentos de Dabondi. Não imagino quanto eu
mesma estou destroçada.
Mataram-no, clama a rainha. Vem da cidade, onde visitou
a campa do filho. Foi Godido que a acompanhou ao
cemitério.
Ele morreu e depois mataram-no, murmura a rainha. Foi o
que constatou naquela manhã. Enterraram-no conforme os
preceitos dos brancos. Não tiveram, contudo, o cuidado de
fazer chegar a notícia a Moçambique. E nunca aconteceram,
nesse outro lado, as devidas rezas. O seu único filho, João
Mangueze, veio para Portugal como um príncipe e foi
sepultado como um deserdado, sem nome nem família.
Agora deambula feito um xipoko, uma dessas almas sem
parentes.
— Sabes por que fui ao cemitério?
A pergunta é tão óbvia que me guardo calada. Dabondi
está agora mais tranquila, há mesmo um leve sorriso que lhe
aflora o rosto.
— Fui ver o falecido, mas também fui apresentar-lhe o seu
novo irmão.
Corro a abraçá-la. Desde o início da viagem que suspeitei
que Dabondi estava grávida. E aquele é um momento tão
feliz que decido não falar sobre a violação que acabou de me
suceder. Há contudo qualquer coisa que não sou capaz de
esconder. A rainha dá um passo atrás para melhor me
contemplar. Por que estás tão triste, Imani?, pergunta.
Germano não vem, respondo. Ela diz que já sabia. É o que
diz sempre a rainha, que já sabe. E eu acredito.
Dabondi olha o infinito enquanto esgravata na parede.
Depois, com um dedo tingido de cal, desenha um círculo
branco no meu peito.
— Quando deres à luz — diz ela — vais ficar vazia.
— Vazia? — pergunto com estranheza. — Não será o
inverso?
— Não falemos disso agora — pede.
E como insisto, a rainha vai abrindo o jogo: os deuses dar-
me-ão a felicidade de ser mãe. Contudo, esses mesmos
psikwembo pretendem manifestar o seu desagrado: estão
desapontados porque ignoro a sua existência.
— Vão-te apagar por dentro.
— Apagar-me? O que quer dizer isso, Dabondi? —
pergunto, ansiosa.
Terei o mesmo destino da figueira brava, a umbombe: serei
devorada pelas minhas próprias raízes. A rainha pronuncia
estas palavras e sai do quarto. A profecia rouba-me o sono. A
noite é agora um poço sem fundo. E mais fundo se torna
quando decido ler a carta de Germano. Rasgo o envelope e
algo se rompe dentro de mim.
*
Querida Imani
Esta não é uma carta fácil. Começo, assim, sem rodeios:
não vou para Lisboa. Não haverá barco, não haverá viagem.
Fico em Lourenço Marques. Haveremos de nos reencontrar
mais tarde, aqui em Moçambique ou quem sabe por aí, em
Portugal.
Não te quero magoar, não te quero perder. Todo o amor
que senti — e ainda sinto por ti — é absolutamente
verdadeiro. Não é da minha lealdade que podes duvidar. As
razões desta separação são outras. Posso ser teu marido. Mas
não poderei ser pai dessa criança. Estive preso numa cela, em
Portugal. Estive preso em Moçambique sem parede, sem
porta, sem grades. Não quero ficar preso a uma rotina
doméstica. Foi isso que aprendi com os meus colegas
casados. A vida em casal é a mais perpétua das prisões.
Talvez eu esteja doente, talvez me tivesse faltado uma
família. O meu velho professava uma espécie particular de
ateísmo: era descrente da felicidade. E dizia das pessoas da
aldeia: «Quanto mais estúpidos, mais felizes se tornam.
Quanto mais burros, mais facilmente adormecem.»
Há um outro motivo para esta decisão: não posso voltar
para Portugal enquanto não for derrubada a monarquia. Seria
imediatamente encafuado num calabouço. Ficarias na mesma
sem marido. E ficaria o nosso filho sem conhecer o pai.
Não sintas pena de mim. Estou bem por aqui, Imani.
Melhor do que alguma vez estive na terra onde nasci. Chorou
a minha mãe quando parti para a guerra. Chorou como se eu
saísse de um lugar de paz. Era um engano. Encontrei mais
sossego nas batalhas de África que alguma vez encontrei na
minha terra.
Desculpa a brevidade destas linhas. Mas esta é a mais crua
das verdades: a guerra despe os homens. A proximidade da
morte expõe a alma humana sem vestes, sem retoque, sem
disfarce. E acredita, Imani, a alma dos homens não é coisa
que se queira ver. É por isso que o melhor, por agora, é que
me mantenha distante. O amor que tivemos, e tivemo-lo
inteiro, sobreviverá. Não há palavra para dizer o que o amor
foi. E não há silêncio para esquecer o que o amor nos deixou.
Não sabes quanto me custam estas derradeiras palavras.
Teu, sempre teu
Lourenço Marques, 21 de março de 1986
Germano de Melo
PS. Talvez não voltemos a falar. Tenho que ter coragem
para dizer-te tudo. Estamos perante governos e exércitos
poderosos que matam, prendem e dividem as pessoas.
Todavia, há algo mais poderoso que qualquer governo ou
exército e é a viciada mentalidade que nos cerca. Contra a
violência deste insidioso cerco pouco podemos fazer. Não há
ilha nem exílio que nos salve desse reino da estupidez.
Fui sincero em tudo o que antes escrevi. É verdade que não
me agrada a ideia de sermos um casal com a sua vidinha
rotineira. É verdade que pouco me entusiasma ter filhos. A
nossa relação não foi, contudo, destruída por nenhuma das
razões que antes invoquei. Foi destruída muito antes de nos
conhecermos, muito antes de termos nascido. O mesmo
enredo que propiciou o nosso encontro, tornou impossível o
nosso amor. Estaremos mais próximos assim separados, do
que estaríamos vivendo juntos. Tu serias culpada por seres
negra. E eu seria odiado por ser o marido da negra.
Resistiríamos, no início. No final, porém, acabaríamos por
ceder ante o invisível exército do preconceito. O único modo
de vencermos é recusar a batalha. O nosso amor viverá como
estas cartas: só os teus olhos despertarão as palavras que
deitámos a dormir.
Capítulo 25

O que foi dado à luz


Quem vive por metade ganha um duplo medo
da vida.
(Provérbio de Nkokolani)
Na minha terra, quando uma mulher engravida, toda a
família fica grávida. Durante a gestação o corpo da mulher
deixa uma vez mais de lhe pertencer: foi simplesmente
emprestado. Foi cedido ao marido, aos sogros, à família do
pai da criança. E nem as dores do parto lhe pertencem.
Porque é assim que reza a tradição: não é a mulher que dá à
luz. São os antepassados que insuflam uma vida nova
naqueles que nascem. A mulher existe como um luar: mero
espelho de outros sóis.
Na noite de vinte e cinco de maio acordo com dores, as
pernas molhadas, os lençóis encharcados. Grito por Dabondi.
Dabondi grita por Muzamussi. E Muzamussi não grita por
ninguém porque ela é a mulher grande, a nkosikazi. E é ainda
a parteira mais experiente. Todas as restantes mulheres
abandonam o quarto em silêncio. Ajoelho-me perante a mais
velha das rainhas, os braços postos em redor do seu pescoço.
Muzamussi também está de joelhos segurando-me pela
cintura. As suas mãos escorregam: acabei de ser untada com
óleos que ajudarão o meu filho a sair de mim.
As dores do parto são punhais cravando-se nas costas. Vão
e vêm como marés. De súbito esqueço que tenho quinze
anos, que ainda não deixei de ser filha. O meu corpo tem
outra idade e obedece ao mando de uma outra vontade. E até
a minha voz me é estranha quando pergunto:
— Vou bem, Muzamussi?
— Quem tem que ir bem não és tu. É esse que aí vem —
declara a rainha.
Também ela me anula. Eu mesma me vou apagando à
medida que o parto se prolonga. O cansaço alia-se às dores e
já não tenho costas nem braços para me conservar de joelhos.
Quem me sustenta é Muzamussi que está mais suada do que
eu própria. O meu filho, digo para buscar coragem, lembra o
avô Sangatela: teimoso mesmo antes de nascer. Muzamussi
não acha graça. Para ela esta demora é prova de que não fui
fiel. Devo pronunciar o nome desse homem com quem traí.
Diz quem foi, insiste a rainha. Germano, murmuro de modo
quase inaudível. Não esse, diz o nome do outro!, teima a
parteira. E são tantas as dores, é tanta a exaustão que me
ocorre inventar uma traição. Nesse mesmo momento, porém,
o meu filho decide sair de mim. E é como se eu voltasse a
nascer. Os meus olhos estão tão rasos de lágrimas que vejo
Germano segurando-me as mãos.
Não sinto que me cortam o cordão. Não sinto que nos
separam, não há golpe que nos impeça de continuarmos a ser
uma única criatura. E transportam o menino por cima do meu
rosto, ele voa sobre mim com sua pele amarelada, as suas
mãos pequenas esgravatam o ar. Os caracóis claros e largos
são os dos anjos que vi pintados na igreja. Escuto o seu
vigoroso protesto. Choro junto dele. Muzamussi pede-me
que não o faça. Estou a chamar os maus espíritos.
Fecho os olhos e convoco Germano. Não sei viver sozinha
aquele momento. A volumosa parteira circula em meu redor.
A placenta e o sangue são cuidadosamente eliminados. Para
que ninguém te faça mal, explica Muzamussi.
— Por que me ajuda, por que me protege? — pergunto.
A rainha não responde. Pede que me dispa. Vai levar com
ela a minha roupa, vai rasgá-la em irreconhecíveis pedaços.
Ao fechar a porta as suas instruções são claras: nos dias que
se seguem nenhum homem poderá entrar no meu quarto.
Sorrio: que homem teria esse desejo? Se até Germano me
espera longe, num outro país, num outro tempo.
*
Horas depois Dabondi visita-me. Estou grávida, diz ela,
posso pegar no teu filho, não receies. Uma mulher com os
sangues — essas que dizemos que saltam a lua — está
interdita de tocar no recém-nascido. Não é o seu caso.
A rainha dança com o bebé ao colo. Que nome lhe vais
dar?, pergunta. Chama-se Sanga, respondo. Quem escolheu
o nome foi o avô Sangatela. A rainha encolhe os ombros. A
decisão devia pertencer ao pai. Germano que se queixe mais
tarde.
Peço contas a Dabondi: ela tinha ameaçado que, depois do
parto, eu ficaria vazia. Foi esse o termo que usou: vazia.
Disse que os deuses me iam apagar por dentro.
— Que vazio é esse que nunca me senti tão cheia? —
pergunto.
— Falamos disso noutra altura.
— Diga-me agora, Dabondi. Que maldição era essa?
— Agora que o teu filho nasceu — responde ela —
deixarás de saber falar a língua dos brancos.
Sorrio, descrente. Não é possível. Aquele língua fazia parte
do meu corpo.
— Duvidas? — indaga a rainha. — Pois experimenta falar
em português.
Sorrio, sacudindo a cabeça. E ensaio pronunciar umas
palavras. E o que escuto é diverso do que digo. Repito a fala
e mantem-se a dissonância: penso em português mas as
palavras são proferidas em txitxope. Afinal, a maldição é
verdadeira: a partir de hoje deixei de saber português. A
rainha estava certa. As minhas raízes estão-me devorando.
Peço, imploro. Ela que me devolva a voz da minha alma.
Esse sempre fora o teu engano, alega a rainha.
— A tua alma tem outras vozes — declara a rainha. — A
partir de agora, não mais servirás os portugueses.
Não me castigava, dizia ela, pousando a criança no meu
colo. Pelo contrário, estava apenas a devolver uma parte do
meu ser.
*
No dia seguinte a mãe de Germano vem visitar-me.
Espreita o improvisado berço e comenta, aliviada: É
clarinho! Ergo-me a custo, as mãos viciadas no amparo do
ventre. Emocionada, pergunto: Não é bonito, Dona Laura?
— Nada de intimidades, minha filha! Posso ser avó. Mas
não sou tua sogra.
Um dia destes virá buscar o menino, anuncia. Não há
maldade, é apenas promessa que fez a Germano. Não
procederia assim, diz ela, se eu tivesse condição para tratar
da criança.
Seguro o meu Sanga entre os braços e juro para mim
mesma: para o arrancarem de mim terão que esgaçar o meu
corpo. Indefesa, choro. Peço que a visitante se vá mas, como
previa, as palavras desobedecem-me. Famba khaya, Dona
Laura! São estas palavras que Laura escuta. A mensagem,
porém, produz o efeito oposto. A portuguesa senta-se na
minha cama.
— Estou completamente sozinha — suspira. — Quem me
dera alguém tomasse conta de mim.
Contempla o bebé, sem lhe chegar a tocar. O marido nunca
soubera ser pai. E Germano, segundo ela, segue as mesmas
pisadas.
Na véspera de morrer, o seu homem confessou pela
primeira vez que a amava. E ela, então, desabou em
lágrimas. Por que choras?, perguntou ele. Não quero ser
amada, respondeu, soluçando. Longe de ser uma prenda,
aquela confissão de amor fazia-a pensar em tudo o que a vida
não lhe tinha dado.
Anos depois, quando o marido morreu, Laura passou a
dormir deitada sobre a campa. Não era saudade. Era medo de
que o falecido pudesse regressar. O corpo dela era uma
pedra, uma laje a enclausurar o velho companheiro. O padre
vinha buscá-la de madrugada. Arrastava-a à força pela aldeia
enquanto ela gritava pelo marido. Mas enganava-se no nome:
era Germano que ela chamava em prantos. Não foi internada
num manicómio porque, segundo ela, a aldeia já era um
hospício. Passava pelo cemitério e via as flores, secas sobre a
campa. Aquela decadência não a incomodava. Aquele
desapego, dentro dela, era a prova de que estava dispensada
do luto. Já era viúva antes de o marido morrer.
*
Uma semana depois Dona Laura regressa ao forte. Vem
buscar o menino. Não deixo que se aproxime. Com a criança
nos braços, vou escapando pelo terreiro. Os guardas
perseguem-me. Lembro de todas as mães que, durante
séculos, correram para salvar os filhos. A força e o desespero
dessas mulheres habitam agora o meu corpo. E vou voando
sobre o pátio até ficar encurralada entre os tanques de lavar a
roupa. Dona Laura grita para que tenha cuidado, o chão está
molhado, não vá eu tombar e magoar o neto.
De repente, das traseiras da lavandaria surgem as dez
rainhas. Todas elas empunham facas. Fazem um cordão à
minha volta. E ameaçam os soldados. Esse menino é filho de
todas nós, anuncia Mazimussi. As mesmas facas que lhes
foram entregues para se civilizarem, brilham agora no seu
gesto rebelde. Eram talheres, agora são armas. De cada vez
que lavaram a louça, uma peça desaparecia. Tivessem-nas
deixado comer com as mãos e não teriam agora que as
enfrentar.
Pela janela do quarto o embriagado rei de Gaza espreita e
sorri. Em tempos foi assaltado pela ideia de um exército
africano composto só por mulheres. Não era um sonho. Era
um pesadelo. Agora ali estavam as mulheres enfrentando os
militares brancos. Não são as pequenas facas que os soldados
mais temem. O que os atemoriza é o simples facto de serem
confrontados. Aprenderam a enfrentar um exército. Mas não
sabem como vencer uma dezena de mulheres.
A batalha, contudo, estava decidida mesmo antes de
começar. As mulheres são dominadas e a minha criança é-me
arrancada dos braços. Dona Laura embrulha-a numa manta e
afasta-se a passo acelerado. Desvanece na distância o choro
do meu bebé. Até que escuto apenas a água tombando sobre
o tanque. Daqui para a frente será sempre assim: um rumor
de água será a única voz do meu pequeno filho.
Capítulo 26

Entre exílios e desterros


O grande rei não é o que conduz o seu povo
na guerra mas o que afasta a guerra para longe
do seu povo.
(Zixaxa)
Ao fim da tarde de vinte e dois de junho os militares
entram de rompante pela cela dos presos. Gritam por
Ngungunyane, Zixaxa, Mulungo e Godido. Mandam que
façam as malas. As malas?, pergunta Godido, que é o único
que percebe o que dizem. Apressadamente embrulham numa
trouxa os magros pertences. E nem para isso lhes dão tempo.
Ngungunyane senta-se no chão, em prantos. Agora sim,
pela pressa e rispidez com que o empurram, ele está certo de
que, desta vez, o irão fuzilar. As esposas lamentam-se aos
berros, os soldados usam da força para afastar os quatro
prisioneiros. Olho para tudo aquilo com indiferença.
Levaram o meu filho, tudo o resto deixou de importar.
Mandam-me que acompanhe os presos, não confiam na
tradução de Godido. Vamos em duas carruagens, a cidade
está vazia. A operação é feita em segredo. No cais aguarda o
navio Zambeze. Só então me revelam: irão conduzir os
exilados para os Açores. No cais há um compasso de espera.
Ngungunyane está mais tranquilo, percebe que não o vão
molestar. O seu aspeto, contudo, é completamente decadente:
descalço, a fralda da camisa de fora, as calças rasgadas, os
cabelos desgrenhados.
— São todos falsos, os brancos — declara o rei de Gaza. —
Alguma vez faríamos com eles o que eles fizeram connosco:
prenderem-nos, trazerem-nos para outra terra e exibirem-
nos como bichos?
— Alguma vez fizemos prisioneiros? — contesta Zixaxa.
— Por que e que você toma o partido dos brancos?
— Não somos melhores do que eles. É só isso que estou a
dizer.
— Você, Zixaxa, fala muito porque não é a si que querem
morto.
— O problema, meu Nkosi, não é esse. O problema é que
eles não sabem o que fazer consigo.
Ngungunyane vira costas, diz que não entende a língua dos
tsongas. Essa língua é a que sempre falámos os dois, afirma
Zixaxa. E prossegue, seguindo em desafio os passos do rei:
Você, meu rei, não me entende não por causa do que eu digo.
Não me entende por causa do que eu sou. Agradeça aos
portugueses por o terem poupado, grita Zixaxa antes de o
empurrarem para dentro do navio. Agradeça-lhes,
Ngungunyane, não foi isso que sempre fez?
Vejo o barco com os presos afastando-se nas brumas. De
volta ao forte, penso: não basta o exílio para afastar aqueles
rebeldes de Moçambique. É preciso que não haja terra lá
onde forem desterrados.
*
No dia seguinte recebo a visita do comandante António
Sérgio de Sousa. Fica surpreso com a ausência do rei. A
decisão de levar os presos para os Açores foi tão secreta que
o visitante a desconhecia. Oferece-me um ramo de flores.
Sabe que dei à luz, quer ver a criança.
— Onde está esse rapagão? — pergunta.
Quero explicar que levaram o meu filho mas o choro
rouba-me a voz. Consternado, o comandante pensa que o
menino morreu. Não entende o que eu digo. Escapa-lhe por
que razão não lhe falo em português. Faço de conta que estou
doente da garganta. Peço-lhe caneta e papel. Escrevo curtas
mensagens que lhe dou a ler. Levaram o meu filho. Ajude-
me!
— Vou ver o que posso fazer — responde ele.
Deixo tombar a caneta, a tinta espalha-se-me pelas pernas.
Falo, choro, gesticulo. Ele é tão pequenino, balbucio. Quase
cabe numa mão. E deixo a mão erguida como se ainda o
segurasse.
— Os homens não sabem, senhor capitão, mas é quando
pegamos pela primeira vez num filho que as nossas mãos
começam a nascer.
Encosto a cabeça no ombro do visitante e assim me deixo
ficar enquanto, em prantos, faço desfilar um rosário de tristes
e intraduziveis lamentos, todos pronunciados em txitxopi. O
português faz de conta que me entende, aflito perante a
minha indecifrável emoção. Nunca vi ninguém tão gentil. O
meu nome já foi Cinza, relembro. Esse nome foi-me dado
para me proteger. Quando somos cinza nada nos faz doer.
Como eu queria ter a doença da minha mãe, que nunca na
vida sentiu dor! Como eu desejo essa maldição!
Manifestamente o comandante não sabe tratar da minha
tristeza. E tenta um desajeitado consolo. Sabes ler e
escrever?, pergunta. Tens sorte, minha filha. Os meus
vizinhos, que se dizem cultos e abastados, proibiram as
filhas de irem à escola, não fossem as meninas escrever
cartas de namoro aos rapazes.
*
António Sérgio de Sousa conduz-me para o terraço onde se
pode ver o mar de um lado e a cidade do outro. As mãos
sobre os meus ombros trazem-me antigos sossegos.
— Existe uma razão que me trouxe aqui — começa por
dizer António de Sousa.
Ergo o sobrolho, curiosa. O comandante esfrega os
cotovelos como se sofresse de um acesso de frio. Acordou
esta manhã sem se conseguir levantar. Por um momento,
suspeitou que, durante a noite, lhe tivessem bloqueado as
juntas e os ossos se tivessem convertido em ferro. Acordou
dizendo para si mesmo: é hoje que me vendem na sucata
juntamente com o meu velho navio. Sentou-se na cama e
pensou que havia assuntos que não queria levar para a cova.
— Trouxe-te flores, Imani — diz ele. — Mas nenhuma flor
vale nada se não tiver uma história.
Fico à espera dessa história. Mas o capitão permanece
calado, em luta com os seus fantasmas. Deixo passsar um
tempo e pergunto pelo Álvaro Andrea. Acha que ele me pode
ajudar?, pergunto, usando dos rabiscos. Tomara o capitão
que o ajudassem a ele, responde Sousa. Um jornal publicou
parte do seu relatório de denúncia de Mouzinho. E agora o
homem não sai do quartel. A pretexto de consecutivas
audições conservam-no incontactável. A maior parte dos que
se revoltaram contra o relatório de Andrea não foi porque ele
denunciasse o herói nacional. O que mais os irritava era o
modo como Andrea tratava os negros como seres humanos,
merecedores de todo o respeito. O comandante volta a pousar
os longos braços sobre os meus ombros e fala:
— Agora, sim, agora vou ao assunto que aqui me trouxe. É
esta a dúvida que me rouba o sono: durante a viagem, o
sargento Araújo chegou a fazer-te mal?
Não respondo. Mesmo que quisesse não seria capaz. O
comandante exala um longo suspiro e diz: Sempre suspeitei.
E acrescenta: A culpa é minha, que nunca fui capaz de me
impor. Se ele fosse pássaro, declara envergonhado, seria um
papagaio. Nunca uma águia. Falta-lhe o gosto das alturas,
falta-lhe o prazer de mandar. Por essa razão sempre
necessitou de uma alma complementar. Essa alma foi o
sargento Araújo.
Aquele é o seu modo de me pedir desculpas. Um papagaio,
é isso que sou, repete enquanto se retira. Está agora em paz
consigo mesmo, o velho comandante do África. Não foi ele
que me visitou. Fui eu que sosseguei os seus fantasmas. A
sua generosidade consistiu em que eu lhe fizesse bem.
Capítulo 27

O bebedor de horizontes
Não vejo com os olhos. Vejo com os sonhos.
(Dabondi)
Querida Imani
Esta carta é uma surpresa. Sou eu, o Nwamatibjane Zixaxa,
que te escreve dos Açores. Como vês, foi muito bom ter
aprendido português. Na viagem aprendi a falar. Agora, na
ilha, ensinam-me a escrever. Nesta primeira carta ainda sou
ajudado por um soldado que se tornou meu companheiro.
Chamo-lhe Munganu. E ele risse, desconhecendo que o
chamo exatamente de «amigo», na minha língua. Passo mais
tempo na companhia dele do que com qualquer um dos que
vieram de Moçambique. Os brancos estranham essa minha
escolha. Devia ficar entre a «minha gente». Para eles somos
todos pretos, sem distinção. Não sabem que sou um mfumo.
E os outros três presos são vanguni, são da realeza dos zulus.
Não entendem por que confio mais neste soldado branco do
que em qualquer dos meus companheiros de cela. A próxima
carta, combinámos eu e Munganu, serei eu sozinho a
escrevê-la.
Viajámos para os Açores num navio chamado Zambeze. Já
o grande barco que nos trouxe de Moçambique se chamava
África. Ngungunyane acha que estes nomes foram atribuídos
em sua homenagem. Está doente o Leão de Gaza. Não lhe
chegava a velha embriaguez. Busca agora na loucura o
derradeiro refúgio. Durante toda a viagem dormiu abraçado a
uma garrafa de vinho. De manhã cedo lançava as garrafas
vazias contra as grandes aves que voavam sobre navio.
Na ilha Terceira fomos recebidos de maneira especial: não
houve insultos nem ameaças como aconteceu em Lisboa.
Disseram-nos que éramos hóspedes, não prisioneiros.
Deram-nos uma casa dentro do forte. Somos autorizados a
circular no grande recinto da fortaleza. Num dos edifícios
caiados a branco gravaram a ferro uma frase que, para nós,
os exilados, só nos pode fazer rir. Está escrito assim: «Antes
morrer livres que em paz sujeitos.» Aquelas palavras
recordam-me o pastor Machava ao desembarcar em Cabo
Verde. António Sérgio de Sousa despediu-se dele, com
visível culpa. E justificou-se: Há coisas, disse ele, que não
faríamos se não fosse a guerra. E o missionário respondeu:
Ninguém mais quer a paz do que os meus religiosos, que
aqui ficam presos. O que se passa, disse o pastor, é que, para
nós, viver é já uma guerra. E o comandante Sousa defendeu-
se, argumentando que tudo o que fazia era com o propósito
de acabar com a guerra. As últimas palavras de Roberto
Machava foram pronunciadas na sua própria língua: Quer a
paz, meu patrão? Pois nós queremos isso e muito mais.
Queremos uma outra vida.
Ouvi dizer que o Machava foi reenviado para
Moçambique. Os ingleses pressionaram tanto as autoridades
portuguesas que estas cederam e deixaram-no regressar. Mas
os outros crentes, seus seguidores, ficaram em Cabo Verde.
Ainda esperaram que Machava viesse buscá-los. Ou que
Deus fizesse justiça. Mandaram-nos trabalhar nas salinas. A
maior parte deles morreu, segundo me disseram. Assim que
era ensacado, o sal convertia-se numa pedra dura. Era um
problema da qualidade do sal. Mas os patrões culparam os
escravos de Moçambique. E castigaram-nos, obrigando-os a
dormir amarrados aos sacos. Os homens foram mirrando,
perdendo carne e substância. No dia em que choraram eles se
dissolveram. Pode ser mentira. Mas é isto que contam. Os
ausentes servem para isso mesmo: para serem convertidos
em histórias. Essas histórias regressam a Moçambique. E
assim os ausentes reencontram o seu caminho de volta.
Imagino que queiras saber como passo o tempo cercado
por tanto mar. Pois eu te digo: se esta ilha é uma prisão então
eu partilho com milhares de açorianos esse castigo. Sou aqui
tudo menos um prisioneiro. Por detrás da fortaleza há uma
mata extensa onde caçamos coelhos. As árvores aqui são
diferentes. Não sabemos que almas ali moram. Ngungunyane
não se descalça para entrar na floresta. Caminha sem pedir
licença por entre as árvores que desconhece. Os loucos estão
dispensados de temer os deuses. Para matar coelhos, o
Ngungunyane usa um pau que trouxe de Moçambique. Lança
essa estaca e nunca falha. Ngungunyane diz que essa madeira
foi tratada por Dabondi. Um dia, diz ele, lançará esse pau de
encontro ao oceano. Em vez de coelhos matará baleias.
Beneficiará, então, do respeito devido aos caçadores do mar.
De noite o rei circula pelo pátio e nós escutamo-lo a gritar
pelo nome da única mulher que amou: Vuiaze! Godido sai a
resgatar o pai. Abraça-o e entrega-lhe uma garrafa de vinho
doce. O rei guarda as rolhas de cortiça. Tem centenas dessas
rolhas, que foi juntando para construir um barco. Nesse
barco, diz ele, regressará um dia a Moçambique.
Confesso, Imani, que sinto pena de Ngungunyane. O
desgraçado já foi punido. Foi castigado da única maneira
possível: ele é o seu próprio carrasco. Agora nem precisa
beber: o horizonte enche-lhe os olhos, a solidão inunda-lhe a
alma.
Já a mim não me dói estar cercado pelo mar. Na verdade,
não é a primeira vez que estou numa ilha. Quando tinha vinte
anos os portugueses enviaram-me de castigo para a Ilha de
Moçambique. Perdoaram-me, depois. E deixaram-me voltar
para Lourenço Marques. Foi um erro. Se alguém devem
odiar é a mim. Fui eu — e eu sozinho — que ataquei
Lourenço Marques. Por pouco não venci, por pouco não
lancei os portugueses às águas da baía.
São curiosos os encontros e os desencontros deste mundo.
O militar que redige esta carta trouxe ontem um grupo de
outros soldados brancos. Sentaram-se à minha volta, muito
atentos, e perguntaram como era a minha terra. Querem fugir
da ilha, não aguentam a pobreza em que vivem. Muitos da
idade deles foram para o Brasil. Mas estes pensam que
África possa ser melhor destino, agora que deixou de haver
guerra. Queriam saber como era a vida lá na nossa terra.
Respondi-lhes o seguinte: Se me derem autorização conduzo-
vos para Moçambique e, se não mudarem de raça no
caminho, acabarão todos ricos. E riram-se, rimo-nos todos.
Rir junto é um abraço.
E é assim, minha filha. O Ngungunyane vai tecendo cestos.
Eu vou tecendo pequenas alegrias. Ser feliz é o melhor modo
de me vingar de Ngungunyane. O rei de Gaza entregou-me
aos portugueses? Pois agora é o que eu sou: um português,
um português de pele escura. Um português feliz que olha
para quem o traiu e o vê infeliz e bêbado. Aos fins de semana
levam-me às casas das mulheres. Durmo com elas, esqueço-
me das minhas esposas que ficaram longe. Eu e Godido
divertimo-nos nestes programas noturnos. Mulungo está
velho, nunca vai. Ngungunyane vai às vezes, quando está
sóbrio. Mas fica apenas o tempo para um primeiro copo.
Depois é vencido pelo medo que sente das mulheres. E volta
para casa sabendo que, mais que destronado, ele foi
despromovido da sua virilidade. O nosso Ngungunyane odeia
o mar, as mulheres e as andorinhas por essa mesma razão.
Ele receia o que não pode governar.
Não quero terminar esta carta sem te falar daquilo que sei
que te atormenta. Os três prisioneiros que foram fuzilados na
viagem. Pois agora te quero dizer: não te tortures, Imani. Não
és culpada. Fui eu quem, no barco, denunciou os planos de
Machava. Fui eu que impedi que o meu grande rival fosse
assassinado. Fiz isso com medo da reação que a morte do
Leão de Gaza iria provocar. Os portugueses iriam vingar-se
em mim. Seria também eu executado e deitado ao mar.
Despeço-me de ti, pedindo a este amigo que me empreste a
caneta que usou para redigir esta carta. Porque quero
escrever, agora por meu próprio punho: ita vunana musuko,
nkata Imane! Vemo-nos amanhã, querida Imani.
Ilha Terceira, 1 de julho de 1896
Nwamatibjane Zixaxa
Capítulo 28

O derradeiro idioma
Os portugueses arrancaram-me do meu chão.
Agora não tenho onde ser enterrado. Os que
rezarem por mim terão que olhar para o mar.
(Ngungunyane)
Visto-me quando devia morrer. Calço-me e já não há mais
chão. Empurram-me pelos corredores do forte, a trouxa da
roupa varrendo o caminho. Gritam os soldados, mandam que
nos apressemos. Chamam-nos nomes feios, que ofendem
mais as rainhas porque não os entendem. Desde que Dabondi
me amaldiçoou nunca mais voltei a falar em português. Foi
pena que o mau-olhado não me impedisse também de
compreender essa outra língua que, sendo dos outros, faz
parte da minha carne.
Vão-nos levar para uma ilha muito distante. É um exílio
dentro do exílio. As rainhas estão resignadas, nada as prende
a nenhum lugar. Não é o meu caso. Tenho o meu filho nesta
cidade. Peço ao comandante para me despedir do meu
menino. Ninguém me escuta. Já fui a tradutora de um rei. Já
fui espia ao serviço da coroa lusitana. Agora sou apenas a
décima primeira das pretas. Ainda há pouco dei à luz e nunca
mais verei o meu pequeno Sanga. Nunca mais encontrarei o
pai dessa criança, o meu Germano, o amor da minha vida.
Subo para a carroça, em total desleixo. Dabondi ajeita-me os
cabelos, aperta-me os botões do vestido. Faltam-me os
dedos, todo o corpo que eu tinha era para acarinhar o filho
que me roubaram.
Seguimos em silêncio em direção ao cais. Há quatro meses
entrámos numa cidade fria, atafulhada de gente. Saímos
agora de uma Lisboa quente e deserta. A meio do caminho
enlouqueço. E desato aos gritos: Dona Laura! Devolva-me o
meu filho, Dona Laura! As rainhas choram, abraçam-me,
escondem-me a cabeça nos seus vastos colos. Os cavalos
golpeiam o silêncio, os cascos são pedras percutindo pedras.
O barco onde viajaremos está agora à vista. Chama-se São
Tomé, o nome da terra para onde seremos desterradas. As
rainhas pisam descalças a laje do cais. Seguem de olhos
fechados, duas delas levam os rostos tapados com os xailes.
Faz quatro meses que nos deitaram num poço escuro, faz
duas semanas que nos roubaram as companhias dos homens.
Temem que a nossa tristeza se converta em raiva. A raiva
cria raízes. É por isso que nos levam pelo mar afora.
Ainda me resta uma última força. E protesto, mesmo sem
crença: se nos carregam de barco por que não nos deixam
nos Açores, onde já se encontram os nossos homens?
Esqueço-me, porém, de que agora apenas falo na minha
língua natal. Os soldados riem-se dos meus convictos mas
impercetíveis protestos. Mas eu sei por que não podemos ter
o mesmo destino dos homens. António Sérgio de Sousa já
antes me havia explicado: os Açores são uma terra de muita
religião. Recebem com piedade cristã os africanos
sofredores. Mas não aceitariam albergar o pecado da
poligamia. As cartas de Zixaxa não confirmam essa pureza
de costumes. Falam mesmo das casas de prostitutas que os
presos são levados a frequentar nos finais de semana. A
moral tem as suas interdições e os seus consentimentos no
que respeita às mulheres. Putas, sim. Amantes, talvez.
Polígamas, nunca.
Não vamos, pois, para os Açores. Mas também não nos
enviam de volta para Moçambique. E o motivo é simples de
entender: a chegada das rainhas pode atiçar animosidades
contra Portugal. E já se fala numa mulher — a rainha
Zambili — que lidera uma revolta às portas de Lourenço
Marques.
São doze dias de náuseas até aportarmos a São Tomé.
Grávida, Dabondi é quem mais sofre. A barriga já se nota, os
seios estão cobertos por um pano que será sempre o mesmo
até ao parto. No final, a rainha terá mais sorte do que eu. Na
ilha de São Tomé não haverá uma avó que lhe roube a
criança. Seremos dez tias ajudando a criar um filho que,
sendo dela, nos pertence a todas.
*
Não sabia que havia tantas Áfricas. Foi preciso uma ilha
pequena para aprender o tamanho das terras africanas. Em
São Tomé cruzam-se gentes, línguas e crenças de todo o
continente. E é de tal modo que nos guardamos quietos e
tímidos sempre que cruzamos com outro negro. Somos da
mesma cor de pele mas não somos da mesma raça. É por isso
que hesitamos antes de nos lançar em calorosas saudações. E,
no entanto, há sempre um gesto esboçado, um riso contido,
um silêncio escondido que partilhamos em cada encontro. Na
suspensa intenção de um abraço nos vamos adiando irmãos.
Na primeira semana somos albergadas nas dependências de
uma plantação que aqui chamam de «roça». Dormimos num
armazém de café. Ali nos ocupamos com o que já antes
fazíamos: absolutamente nada. Desta vez, porém, não há
grades nem soldados. Um único guarda — à civil e
desarmado — vigia à porta do armazém. Quando chove — e
chove constantemente — convidamos esse vigilante para se
abrigar no nosso teto.
Não sei o que seria de mim sem a companhia das rainhas.
A presença destas mulheres é mais uma prova da profecia de
Dabondi: as raízes da minha alma devolvem-me agora todo o
meu ser. Não se trata apenas de regressar ao idioma da minha
aldeia. Estas mulheres trazem de volta a minha terra e a
minha gente. E trazem-me de volta a mim.
Este convívio tão familiar tinha, porém, os dias contados.
Na segunda semana somos separadas. Muzamussi, a
matriarca, é conduzida para um estaleiro no sul da Ilha. É a
mais corpulenta, obrigam-na a carregar pedras para as obras.
Oito das restantes rainhas são levadas a trabalhar no hospital.
Ali prestarão serviços de limpeza. Ficarão alojadas nos
anexos da unidade hospitalar. Dabondi e eu somos as únicas
que permanecemos no armazém de café. A razão não é
exatamente a melhor: acham-nos as mais atraentes, somos
postas a servir num bordel para o exército. Não se apercebem
de que Dabondi está grávida. E ela prefere nada dizer. Tem
medo que, ao ser tida como imprestável, seja deitada aos
bichos. Cumpre-se, enfim, o augúrio de Bianca Vanzini: sou
finalmente uma mulher da vida, vendendo-me de noite como
uma coisa de carne.
Todas as noites eu e a rainha percorremos um caminho de
areia ladeado por coqueiros. Esse atalho leva-nos ao bar onde
os soldados nos esperam. De madrugada regressamos
exaustas e embriagadas ao armazém da roça. Adormecemos
ao som das carroças e dos carregadores empilhando os sacos.
São negros, jovens, cirandam de tronco nu. Transportam a
carga como fazemos nós as mulheres: à cabeça. Os corpos
libertam um aroma doce, o mesmo que emana dos grãos de
café. Esse aroma entorpece os sentidos. Estranho sofrer
aquele que vicia como uma bebida: a própria carga impede
que sintam o cansaço.
Certa manhã, a rainha acorda-me. Escorre-lhe sangue pelo
rosto, foi espancada por um cliente a quem recusou servir.
Vem comigo, diz ela. Vamos à casa do administrador.
Dabondi sabe coisas que eu não sei: o administrador
português chama-se Almada Negreiros, a mulher dele é
mulata, natural da terra, e está gravemente doente. Levanto-
me com custosa obediência: E o que vamos lá fazer? Não
espera resposta, apressando-me porta fora. No caminho,
passo estugado, respiração ofegante, Dabondi explica-se: vai
pedir emprego na casa dos Negreiros. Fico a tomar conta dos
filhos do casal, diz ela.
Vamos subindo encostas, cruzamos riachos e cascatas e
atravessamos extensas plantações. Os cafezeiros estão em
flor, rendas brancas tocam os nossos braços. Não gosto desta
paisagem, resmunga ela. Nunca vi o mato tão penteado.
Todo o caminho a rainha vai tateando o ventre. Um fio de
sangue escorre-lhe pelas pernas. E pragueja: Se esse homem
magoou o meu filho, eu mato-o!
A casa do administrador Negreiros fica assente em pilares
e em redor há grutas por onde escorrem fios de água que
nascem dos céus. Vais conhecer Dona Elvira, a mulher desse
branco, estou certa de que nunca viste olhos tão grandes,
adverte Dabondi.
— Ela está muito grávida — acrescenta a rainha —, deve
estar quase a parir, se demorar mais uns dias saltam os
olhos das órbitas. Pede-me que lhe sirva de tradutora. A
princípio resisto: A senhora roubou-me o português, agora,
mesmo que queira, já esqueci. Lacónica, Dabondi afirma:
Vais falar!
Após longa espera, surpreendemos o administrador e a
esposa saindo para o hospital. Dabondi apresenta-se. Fala da
sua origem, da corte de Gaza. O funcionário observa-nos,
desconfiado. Rainhas?, pergunta com sarcasmo. E apressa a
esposa que traz um menino pela mão: Vamos, Elvira? Não
temos tempo para isto.
Com firmeza, Dabondi interpõe-se entre o casal. Enfrenta,
em desafio, o português: Eu conheço-o, senhor
administrador. Quer que diga como nos encontramos? Sem
que eu traduza, António Almada Negreiros parece perceber.
Em silêncio, encosta-se a uma parede. A rainha aproxima-se
de Dona Elvira, leva as mãos à barriga e proclama:
— Por favor, minha senhora. Olhe para mim, também
estou grávida. Como me podem obrigar a deitar com os
soldados?
Dona Elvira fixa os olhos na negra que ousa barrar-lhe o
caminho. Não parece contrariada. Pelo contrário, tem um ar
fascinado. Toca nas pulseiras que cobrem o braço da rainha.
— És de Angola? — pergunta. — Reconheço os teus
traços, vens de Benguela…
A rainha não entende mas responde afirmativamente. O
administrador reage, nervoso. Tem pressa e mais apressado
se sente por estar a ser incomodado por aquelas duas
estranhas.
— Por favor, minha senhora, fale com o seu marido! —
insiste Dabondi.
De repente, a rainha deixa de pedir. Está descalça, mas fala
do trono da sua dignidade. A senhora tem sangue negro, vai
ter que me ajudar, declara. A família do administrador está
parada, suspensa das palavras que empolgadamente vou
traduzindo. A esta minha amiga — e Dabondi aponta para
mim — tiraram-lhe o filho. E a mim… — detém-se, engole
em seco e só depois retoma o discurso — … a mim
acabaram de maltratar o meu filho.
— E onde está esse menino? — pergunta a esposa do
administrador.
— Está aqui, dentro de mim.
O administrador puxa pelo braço da relutante esposa.
Deixe-me!, reage ela com firmeza. O marido, mais
delicadamente, insiste: Vamos, Elvira. Elas que venham
depois.
Não houve depois. No dia seguinte Dabondi perdeu o filho
no hospital. Num outro quarto, da mesma casa de saúde,
morreu no parto a esposa do administrador Negreiros. Assim
que soube da notícia, Dabondi saiu do seu quarto e, com
passo decidido, atravessou as linhas que, naquele hospital,
separavam as raças. Uma enfermeira perseguiu-a todo o
caminho, advertindo-a das consequências daquela
insubordinação. No quarto da falecida Elvira, a rainha
irrompeu por entre os consternados visitantes, foi ao berço e
pegou ao colo o recém-nascido. Embalou-o e conduziu-o até
ao pequeno irmão. O menino fixou nela os desorbitados
olhos que herdara da Elvira. Dabondi falou em xizulu: O teu
irmão nasceu enquanto o meu filho morria. Duas sombras se
tocaram, nos meus braços encontrarás a tua mãe…
Não tinha sentido traduzir. Nem teria tempo para o fazer:
as outras rainhas, entretanto, já se haviam reunido no
hospital. E conduzem Dabondi de regresso a casa.
— Vais escrever a informar Ngungunyane — ordena
Muzamussi no caminho. Quando uma criança morre no
ventre diz-se que «decidiu voltar». E há culpas que pesam
sobre a mãe. Devemos dizer a Ngungunyane que não foi este
o caso. Este menino foi morto. É imperioso informar o pai,
mesmo sabendo que a notícia levará tempo a chegar aos
Açores.
— É Godido quem tem que ser avisado, reage Dabondi. E
acrescenta: É só ele quem tem que saber.
*
Estou de joelhos junto à esteira onde repousa Dabondi. Os
carregadores de saco, por respeito, depositam a carga no
exterior do armazém. Os olhos dela estão cravados no teto, e
eu rezo em zulu, a única língua que os nossos deuses
entendem. Desfio uma improvisada de oração e Dabondi
escuta sem me interromper:
Minha rainha, a senhora apagou-me o idioma que aprendi
na escola, arrancou uma das minhas mais antigas raízes.
Não me apagou, contudo, a arte de ler e escrever em
português. Pois agora sou eu que lhe peço: leve-me também
esses dons. Não quero mais papel, não quero mais tinta, não
quero mais caneta. A escrita dói-me, e eu desejo destatuar a
alma. Talvez a senhora não saiba, mas as palavras, quando
grafadas, amarram o tempo. Se não posso rever o meu filho,
não quero mais o tempo, não quero nenhuma lembrança. Por
isso lhe imploro: rasgue todas as folhas antes de estarem
escritas e converta em água toda a gota de tinta. Quero-me
vazia. E quando não houver em mim nenhum idioma, peço-
lhe que me apague a língua dos sonhos. Porque me basta a
noite dos bichos: um tempo para simplesmente nascer e
morrer.
E regresso ao silêncio. De olhos fechados, a rainha
Dabondi ergue o braço à procura do meu rosto. Os dedos
tateiam-me os olhos, descem-me lentamente pelas faces e
depois cruzam-me a boca como duas lâminas. Está exausta,
não me quer mais escutar. Mas ainda volto à fala:
— Nós nunca mais vamos voltar, Dabondi.
— É melhor assim, minha filha, é melhor morrermos por
aqui — afirma a rainha. — Perdemos os nossos filhos, não
deixamos semente neste mundo. Não somos ninguém. Não
temos para onde voltar, Imani.
Capítulo 29

Um novo nome para Zixaxa


Quem sofre mais? Aquele que espera para
sempre ou quem nunca esperou por ninguém?
(Dabondi)
Querida Imani
Começo esta carta pelo fim. E já vou assinando com o meu
mais recente nome: Roberto Frederico Zixaxa. Como vês, fui
batizado. Com a minha idade e a minha raça, isso quer dizer
o seguinte: lavaram-me a alma. E fui, posso dizer, lavado
com águas nobres. Conforme me explicaram, Frederico é
nome de gente distinta. Quiseram assim os brancos mostrar
que nos respeitam como reis das terras de onde viemos. O
batismo decorreu na maior igreja da cidade. Trouxeram
pessoas importantes, os indunas da ilha Terceira e das outras
ilhas. Saíram satisfeitos acreditando terem mudado a nossa
natureza. Mas eu imagino que, no fundo, eles sabem: os
nomes são tatuagens na alma. Não há morte que os apague.
A ti posso confessar: uso este novo nome como se fosse
um par de sapatos. Servem-me nos pés, mas não são parte do
meu corpo. À nascença, os nossos ancestrais escolhem o
nome que teremos. Os patrões do mundo decidem o nome
que deixamos de ter. Tudo isto pode ser verdade no caso de
Ngungunyane. No meu caso, preservo o meu passado no
nome que me restou. Os filhos e netos que terei nesta ilha
não negarão este nome africano: Zixaxa. Sou feliz com esta
minha pequena eternidade.
Não foi apenas a mim que mudaram o nome. Todos nós os
quatro fomos batizados na mesma cerimónia. Ngungunyane
chama-se agora Reinaldo Frederico Gungunhana. Na folha
do registo, inventaram-lhe uma idade. Ficou escrito que tem
sessenta anos. O desgraçado não chegou aos cinquenta. Um
dia destes, ante os veementes protestos do próprio,
decretarão que está morto.
Na semana passada, o Nkosi de Portugal, o rei D. Carlos,
visitou os Açores. Para evitar que o ilustre visitante tivesse
que encontrar o Ngungunyane mandaram que fôssemos
passear pelo campo. Dizem que D. Carlos ainda fez questão
de nos vir cumprimentar. Dissuadiram-no. Ngungunyane não
valia sequer como lembrança do que antes fora.
Por isso nos levaram para longe, a passear pela chamada
Lagoa do Preto. O lugar foi criado pelas lágrimas de um
escravo. Esse africano apaixonou-se por uma grande senhora.
O marido descobriu o caso e mandou que o matassem. O
infeliz escapou de casa mas foi perseguido por cães e
soldados. Refugiou-se num pântano. E ali chorou. Chorou
tanto que, quando deu conta, em seu redor tinha nascido um
lago. Foram essas águas que fizeram parar os cães. Cercado
pelos soldados, o escravo afogou-se na lagoa.
Sentado na margem desse mesmo charco, o rei de Gaza
comoveu-se ao ouvir esta lenda. Mas logo adiantou que não
podia ser da sua etnia esse homem que tanto chorou por uma
mulher. Na nossa raça, declarou em voz alta, as mulheres é
que choram de amor. E Vuaize, perguntei?
Fui malvado, reconheço. Não devia ter reavivado tão triste
lembrança. Porque o rei, depois de escutar o nome da sua
amada, deambulou trôpego e descalço como um fantasma. O
pântano está cercado de grandes pedras a que deram o nome
de «mistérios negros». Os soldados, vigilantes, seguiram o
preso até que ele tropeçou numas ossadas. Não eram restos
de bicho. Era um esqueleto humano, parcialmente enterrado.
Ngungunyane esgravatou e apanhou um osso comprido. E
viu que nele estava escrito um nome. E logo maldisse o dia
em que aprendera a ler. Porque viu que ali estava gravado o
seu próprio nome: Reinaldo Francisco Gungunhana. Raspou
com as unhas, queria apagar aquelas letras. Raspou com
raiva até sentir sangue escorrendo nos pulsos. Cortei-me,
pensou. Os dedos, porém, estavam intactos. E, no entanto,
ele via o sangue tombar generosamente. Percebeu, então, que
era o osso que sangrava. Assustado, soltou a ossada na areia
e ali a deixou sangrando. Cada vez mais enfraquecido, ficou
a olhar o chão avermelhando-se. E tombou sobre os ossos o
esqueleto que trazia escrito o seu próprio nome.
Esse episódio deixou Ngungunyane transtornado.
Regressou calado para a fortaleza. Num certo momento
segurou-me pelo braço e disse: Virão buscar-me, Zixaxa. Os
meus netos virão buscar-me.
Pode ser verdade, admito, pode ser que o venham buscar.
Mas a mim já me vieram buscar. E não vieram de longe.
Quem chegou veio daqui mesmo. Tenho uma namorada. É
verdade, uma noiva branca, completamente branca. Chama-
se Maria Augusta, é filha de João de Sousa, um açoriano
natural da Ribeirinha. A mãe dela, a minha futura sogra,
chama-se Francisca Vila d’Amigo e nasceu em Espanha. O
mundo é pequeno e grande, Imani. Eis-me aqui, um africano
numa ilha portuguesa, pronto para casar com uma açoriana
de origem espanhola.
Não poderei lobolar a minha noiva. Nesta ilha é como na
terra dos zulus: um boi vale mais do que uma pessoa estranha
como eu. Que dote tenho para lhe oferecer? Para meu
consolo, consegui convites para um espetáculo de circo em
homenagem aos presos de África. Noutras palavras, em
nossa homenagem. A família da noiva — a sograria, como
lhe chamamos — ficou impressionada com a minha
importância. Mais impressionada ficou quando soube que fui
promovido a guarda florestal. Tenho emprego, faço o meu
dinheiro, ganho o meu respeito. Sabes o que me puseram a
guardar? Guardo um monte inteiro, guardo um monte
chamado Brasil. De vigiado passei a vigilante. Tudo isto
acontece e a tudo isto Ngungunyane assiste com a idade a
que acabou de ser promovido. Confesso, minha filha: já
começo a ter saudades do ódio que já senti ao Ngungunyane.
Numa destas madrugadas o rei de Gaza acordou aos
berros: Não o levem, não o levem! Como sempre foi o seu
filho Godido que o socorreu. Só ele está autorizado a acudir
aos delírios do imperador. Cada vez mais, Ngungunyane
desconhece se está no meio de um sonho ou em plena
embriaguez. Desta vez confessou que tinha acabado de ver o
grande touro sagrado dos zulus, o isibaya. O bicho
atravessou dois oceanos para vir ter com ele. Emergiu das
águas, atravessou a praia, subiu a duna pedregosa, galgou as
«bocas do lobo» que protegem as muralhas da fortaleza.
Quando se apresentou à frente da nossa cela o touro dobrou
os grandes joelhos e pôs-se a jeito de ser amarrado. Mas não
chegou a deitar-se porque, inesperadamente, surgiu um grupo
de brancos gritando e agitando panos e cordas. Queriam
levar o touro sagrado para a festa da largada dos bois. Um
dia lhe explico o que são estas festas. Nunca vi um povo tão
triste e tão festivo.
Mais uma vez foi preciso ajudar o Ngungunyane a sair do
sonho, mais uma vez Godido conduziu o pai pelas ruelas que
circundam o forte. As autoridades deixaram que o rei se
distraísse nessa passeata. Eu e Mulungo seguimos atrás,
deambulando entre os trilhos marginados por montes de
pedras. Para felicidade de Ngungunyane a ilha está cheia de
bois. Por onde passa o rei toca nos bichos, aprecia-lhes o
porte e a grossura dos chifres. Todos aqueles bois, garante
ele, são propriedade sua. Naquela madrugada o rei decidiu
que devia ensinar os brancos a falar zulu. Apenas a sua
língua tem riqueza para traduzir o mundo dos bovinos. O
gado é o ouro dos vanguni. Não têm castelos como os que
vimos em Lisboa. Mas têm uma nação de bois, currais e
pastores. E os deuses são chamados pelo sangue dos animais.
No regresso ao forte, era já manhã, sentimos a terra tremer.
Os açorianos são feitos metade de lava, metade de mar. Por
isso não temem os sismos. Talvez desconheçam a verdadeira
causa dos terramotos. A terra treme quando o wamulambo, o
dragão que vive nas montanhas, sai da sua gruta para desovar
no mar. Daquela vez o dragão caminhava zangado: o
terramoto foi forte e duradouro. As pedras rolaram pela
estrada, pareciam bichos enlouquecidos. Os bois saltaram
dos quintais e tresmalharam-se pelos campos. Os militares
vieram-nos buscar — cada um de nós tinha fugido para o seu
lado — e levaram-nos de volta para o forte.
À porta cruzámo-nos com o general Almeida Pinheiro, o
comandante da fortaleza. Chamamos-lhe de xipôngo xa
mahetche, por causa das barbas que lhe descem até ao peito
como um bode velho. O português acredita que estamos em
pânico e convida-nos para o seu gabinete. Serve-nos um chá
e abre um jornal para mostrar uma fotografia da visita de D.
Carlos e Dona Amélia. Ngungunyane observa a imagem com
excessiva atenção. Depois comenta: É bonita a rainha mas
embeleza-se como um homem. As penas que ela usa na
cabeça são coisas de macho. A rainha portuguesa, diz ele,
está a imitar-nos a nós, os guerreiros vanguni. E comenta, a
fechar: O senhor é que devia usar essas penas, meu general!
O general reage primeiro com distância. Afinal, é da rainha
de Portugal que se fala. Mas logo solta uma risada, divertido.
Afaga as longas barbas e desafia os colegas a imaginarem-no
coberto de plumas de avestruz.
Uma vez mais o rei de Gaza se debruça sobre a fotografia.
O dedo sapudo vai engordurando a imagem enquanto
esclarece: Deixe-me dizer, senhor general, que a vossa
rainha está magrita. As minhas esposas estão anafadas. Não
são, diz ele, como as demais mulheres que só comem carne
nos dias de festa. Diga ao rei que não fica bem exibir uma
esposa tão magrita e tão emplumada.
E de novo todos se riem. De súbito, Ngungunyane torna-se
sério, quase solene, quando implora: Por favor, meu general:
não me mande de volta!
Almeida Pinheiro contempla, surpreso, o rei e não sabe o
que dizer. De volta para onde, para Moçambique?, indaga,
confuso. Não me mataram vocês, matar-me-iam os meus
irmãos, afirma Ngungunyane. E retira-se. São tristes os olhos
do general ao ver o rei negro a dissolver-se no escuro.
E estou a chegar ao fim. Confesso, minha filha: quem
escreve esta carta é o meu sogro, João de Sousa. Apenas as
duas primeiras linhas são da minha autoria. Tudo o resto é
letra e arranjo dele. Este meu sogro quer saber quem és, ou
melhor, quer saber como és. Descrevi-te como a mais bela
das mulheres. Depois de Maria Augusta, é claro. A minha
namorada açoriana não tem quem se lhe compare. Expliquei
ao meu sogro que, como nós, vives numa ilha. E ele, com o
ar misterioso que é tão seu, declarou: Todas as pessoas vivem
numa ilha.
Quando lhe pedi para lhe ditar esta carta, o meu sogro
disse que o faria de bom gosto mas teria que ser num lugar
que ele escolhesse. A moça é africana, não é?, perguntou. E
lá me levou para a Praia da Vitória e ali andou farejando
entre os penedos até que escolheu uma enorme pedra e disse:
É aqui. Sentámo-nos os dois, lado a lado. E escrevemos esta
longa carta apoiados nessa pedra branca que contrasta com o
paredão de rocha escura que margina a praia.
Esta pedra tem uma história, disse ele. Quem a trouxe para
a Terceira tinha sido o seu avô, um velho marinheiro de
longo curso. Numa viagem junto à costa de África decidiu o
capitão acostar numa praia. A intenção era visitar um padrão
que os descobridores portugueses ali haviam implantado há
séculos. Perguntaram aos indígenas pelo Cabo da Cruz.
Ninguém nunca ouvira tal nome. Perguntaram pela coluna de
pedra com a cruz e as cinco quinas gravadas. Ninguém vira
tal pedra. Os marinheiros deram as devidas explicações aos
nativos. E os negros mostraram-lhes um enorme buraco. O
padrão tinha-se afundado, como se a praia tivesse fome de
pedra. Desenterraram-no os marinheiros e voltaram a colocá-
lo de pé sobre a areia. No dia seguinte o padrão de novo
submergira no chão africano. Os negros disseram aos
portugueses: Levem essa pedra. É vossa, levem-na convosco.
Este nosso chão não aguenta o peso dessa pedra.
E é isto, minha filha. A pedra escutou a nossa história,
escutamos nós a história dela. Juntaram-se o avô do meu
sogro, tu, eu, o tempo. Por favor, Imani, não leias esta carta
às minhas esposas. Não quero que saibam que casei. Na
correspondência que troco com elas contam-me novidades. A
maior parte delas é mentira. Não me importo. Não é para isso
que servem as cartas?
Capítulo 30

A sombra das palavras


Num dia de calor um jovem caçador viu uma
nuvem pairar sobre a sua casa.
O jovem tomava conta do velho avô.
Aquela inesperada sombra era tão maravilhosa
que o avô rejuvenesceu.
Com receio de que o vento levasse aquela
felicidade, o jovem resolveu lançar uma corda e
prender a nuvem pelo pescoço.
Assim pensou, melhor o fez. Como um bicho
doméstico, ficou a nuvem presa a uma estaca.
Na manhã seguinte, ao sair de casa, o jovem
tropeçou no céu e desabou no firmamento.
A mesma corda com que antes laçara a nuvem
prendia-o agora ao infinito.
E o avô descansava agora numa sombra sem
fim.
(Relatos de Nkokolani)
Batem à porta. Abro uma fresta e vejo uma mão branca.
— Germano?, pergunto, em sobressalto.
Escancaro a portada com inesperado entusiasmo. Tenho
noventa e cinco anos, não me restam forças nem para
lembrar quem sou. Há muito que o meu corpo é um arado
abrindo sulcos com os pés. De súbito, porém, nasce em mim
um estranho vigor. Protejo os olhos para decifrar a silhueta
que se desenha a contraluz. E já não me parece o meu
homem que espera sob o umbral da porta.
— Sanga? Meu filho!?
Abraço-o. É o meu filho. Estou quase cega, abraço o
escuro e deixo que as mãos, tateando o rosto do visitante, me
devolvam os olhos. O vulto encolhe-se, surpreso, nos meus
braços.
— Meu filho!
Esvai-se-me o peito num suspiro. Esqueci-me de como se
chora. O meu filho também deve ter tido os seus
esquecimentos. Porque não me devolve o abraço.
— Dona Imani?, interpela-me.
É o que pareço escutar. Estou em Nkokolani, na minha
aldeia natal. Regressei de São Tomé há sessenta e três anos.
Aos poucos foi acontecendo com as vozes aquilo que sucede
com as horas: parecem-se todas umas com as outras.
Já ninguém me bate à porta. Os poucos que o fazem não é
a mim que querem. Procuram as minhas sobrinhas-netas que
fingem tomar conta de mim. Este visitante é diferente: cheira
a mar, tem uma voz e um sotaque distintos. E pergunta por
mim. Não pode ser o meu filho. Seria mais velho, mais
arqueado pelo tempo.
— Já sei, és o meu neto! Trata-me por avó. Percebes
txitxope?
— Não, Dona…
— É que eu há muito que deixei de falar português. Agora,
só falo em txitxope.
— Mas… a senhora está a falar português.
— Ouço-te mal. Tens que falar mais alto.
— Digo que a senhora está a falar em português. E em
muito bom português.
Estendo a mão para lhe tocar os cabelos. O meu neto
desvia-se. A pele, os olhos, os lábios, tudo pode falsear a
raça das pessoas. Só os cabelos não mentem. E eu tenho
pressa em sentir a verdade daquele corpo.
— Entendes tudo o que eu digo?
O moço acena e diz: Perfeitamente! Peço-lhe que entre.
Ele hesita, sacode os pés cheio de cortesia. Que saudades
tinha desse educado balancear do corpo! O moço traz uma
mochila às costas e caminha vergado, não por causa do peso
mas por gentileza: quer falar mais junto do meu rosto.
À distância escutam-se explosões. São tiros?, pergunto.
São foguetes, responde o rapaz. Preparam as festas para a
proclamação da Independência. Empolgado, remata: Vamos
ter uma bandeira, Dona Imani! Um bandeira nossa!
— És parecido com Germano. Tens o mesmo riso. Como te
chamas?
Usa as mãos em concha para ampliar a fala. Desiste desse
estratagema e retira da pasta uma caneta e um caderno. Foi
assim, recordo-me. Foi assim que, da última vez, comuniquei
com o comandante António Sérgio de Sousa. Rabisca frases
curtas, os seus dedos fazem estremecer o tempo: a caligrafia
é igual à minha! Mas o inevitável volta a acontecer: as letras
são visíveis até ao momento em que alguém as escreve.
Depois ficam enevoadas. Faço de conta que decifro o nome,
não quero que o moço desista. Sorrio e convido-o a entrar.
Avanço devagar pelo corredor. Não me lembro se estou
doente. Todo o meu corpo, com a idade, se tornou uma
doença.
— Sou um escritor — declara o visitante.
Talvez o rapaz esteja aos berros, mas escuto-o como se ele
se expressasse no mais suave tom. Os brancos da cidade
falam assim, não são como nós que comunicamos sempre
aos gritos. Para os portugueses mais educados, o falar alto é
uma grosseria. Para nós, o falar baixo de alguns portugueses
é uma prova de que escondem qualquer coisa.
*
Acedemos a um pátio interior onde se amontoam pilões,
panelas, pratos e galinhas. O meu neto deve estar surpreso.
Veio da cidade, se calhar veio mesmo de Portugal. Não
previa que existisse uma casa de cimento em tão remota
aldeia. Esta é a casa dos Nsambe, digo-lhe, o que resta da
tua família.
De fora não se imagina que a nossa residência albergue um
pátio tão espaçoso: à sombra de uma grande mangueira
sentam-se várias mulheres. São as minhas sobrinhas. Chamo-
lhes as «sombrinhas». Porque são sombras. Estão ali,
derramadas e imóveis, como se antecipassem naquele chão
vivo o seu último destino.
Escuto as sombras gritar: «Ubuyile, mulungo!» Avisam-me
que chegou um branco. Como se eu fosse completamente
cega. Minhas filhas, digo-lhes, ainda não morri. Vejo mal
mas ainda escuto.
Elas riem-se, divertidas. Esperem, declaro de braço
erguido: Vou explicar: é que, mesmo calados, os brancos
escutam-se à distância. E falo do que sei: passei décadas
com eles, na terra deles. Falo, penso e vivo como eles. Sou
negra, é verdade. Mas entro e saio da minha raça quando
quero.
— Este que chega não é um branco — afirmo. — É o meu
neto. Entendem?
O meu neto — como anseio chamá-lo pelo nome! —
cumprimenta as sombras. As mulheres, sempre sentadas,
correspondem à saudação. E apresentam-se, uma por uma.
São minhas filhas afastadas, trazem o sangue do meu pai e de
Bibliana. Vieram do Save, onde nasceram e para onde nunca
mais voltarão. Agora, o seu único serviço é esperar. Esperam
que eu morra para vender a casa de família. Essa espera é a
dos chacais: não sentem os passos dos assassinos. Mais do
que uma espera é uma emboscada. Enquanto aguardavam as
mulheres foram tendo filhos. Os rapazes fugiram para a
cidade. As filhas ficaram e converteram-se em novas
sombras. A mais bela e sedutora de todas elas levanta-se para
saudar o visitante.
— Chamo-me Mozi. — Meneia as palavras como se
ondulasse uma saia rodada. E depois dirige-se a mim
pedindo licença: — Vou ajudar a conversa, avó Imani.
— Não preciso de ninguém — asseguro, decidida. — Vou
para dentro que aqui já há mais bocas que ouvidos.
*
Mozi caminha à nossa frente, levando-nos por um corredor
escuro com cheiro a maresia. Sei o que passa pela cabeça do
escritor. Deve estranhar: com o mar tão longe, de onde vem
aquele aroma? Só pode vir dos cabelos de Mozi. Rumores de
búzios cascateiam nos seus ombros. E toda ela é uma onda
que se soltou do mar. As ancas de Mozi mordem os olhos do
forasteiro. E ele baixa o rosto para se salvar.
Chegamos, por fim, ao meu quarto, o único lugar em que a
idade se esquece de mim. Custa-me a aceitar, mas a presença
desta minha sobrinha acaba sendo providencial. Por uma
misteriosa razão, Mozi é a única pessoa que escuto sem
esforço. As palavras, ditas por ela, ganham estranha
sonoridade. Aliás, toda ela se parece comigo. Todos dizem:
Mozi sou eu, com outra idade. Essa comparação envaidece-
me mas, ao mesmo tempo, me enche de fúria. Vamos ficando
velhos e o que menos queremos são espelhos.
— Lindo nome, Mozi — afirma o meu neto. — Adivinho
que seja um diminutivo da palavra «Moçambique».
Mozi sorri. Exibe o riso como palmeira em oásis: quer ser
vista e, ao mesmo tempo, quer cegar quem nela pousar os
olhos. Deambula pelo meu quarto fazendo rodopiar a saia.
Toda aquela exibição me cansa. Com azedume dirijo-me ao
meu neto:
— Vieste para ficar aqui?
— Ficar aqui? — pergunta ele.
— Se não vieste para viver connosco, podes ir embora.
A minha sobrinha-neta troca segredos com o escritor.
Depois dirige-se a mim, resumindo a conversa que tiveram.
Este homem quer que a avó conte a sua história. Junto ao
meu ouvido, ela segreda: o escritor pensa que fui mulher do
imperador Ngungunyane. Sou a única sobrevivente das mais
de três centenas de esposas.
— Queres que conte a minha história? — pergunto.
— Posso gravar, Dona Imani?
Excitado, o meu neto vai mexendo em fios e botões. E
começa a gravar muito antes de eu ter vontade de falar. A fita
do gravador vai girando sonolenta. Já me pesam as pálpebras
quando Mozi me sacode e me encoraja: Conte, avó, conte
que eu também quero ouvir!
*
Eis o que me sucedeu, meu neto: aos quinze anos tive um
filho. Dias depois roubaram-me esse menino e levaram-me
para a ilha de São Tomé, no meio do oceano Atlântico.
Fiquei nessa ilha durante quinze anos. A seguir à
proclamação da República Portuguesa, em 1911, mandaram-
me buscar a mim e às rainhas que me acompanhavam.
Disseram que nos iam recambiar para Moçambique. Dez
mulheres tinham chegado àquela ilha, voltavam agora sete. A
rainha Dabondi, a minha querida Dabondi, foi uma das que
ficou sepultada na ilha. Quem perde a vida numa ilha não
sabe regressar da morte. O seu espírito vagueia na neblina,
sem saber se pertence à terra ou ao mar.
O barco que nos foi buscar fez escala em Lisboa. Durante
quinze anos sonhei com aquele destino. Ou melhor: aquele
foi o único destino dos meus sonhos. Fiz as contas: cinco mil
e quatrocentas noites, cinco mil e quatrocentos sonhos. Todos
iguais: eu resgatando o meu filho, ele anichando-se nos meus
braços como se regressasse, inteiro, ao meu corpo.
Nas poucas horas de escala, autorizaram que visitasse a
casa da minha sogra, Laura de Melo. Fui escoltada por um
sargento da Marinha. A minha intenção era resgatar o meu
filho, o meu Sanga, e levá-lo comigo para Moçambique. O
coração pulsava-me quando um rapaz me abriu a porta da
família Melo. Contive-me, as mãos tão tensas que me
magoava com os meus próprios dedos. A mãe de Germano,
Dona Laura, estava de cama e foi o meu filho que me
conduziu até ao seu quarto. Segui calada, olhando em
contraluz aquele que habitou a minha carne. Estendida num
leito e de olhos cerrados, a mãe de Germano declarou em
desafio.
— Mostra a essa mulher quem é a tua única e verdadeira
mãe.
O meu filho, calado, aproximou-se do leito da avó. Baixei
o rosto, os olhos marejados. Morri, pensei. Não me resta
senão retirar-me. Como podia caminhar, porém, se me
faltava estar viva? Pigarreando, Dona Laura fez-me sinal
para que me aproximasse. Sempre deitada, estendeu a mão e
afagou-me o ombro. E depois murmurou: Ficaste fora quinze
anos. Pensa neste menino, minha querida. Pensa e responde:
para além de mim, existe uma outra mãe neste quarto?
Abriu os olhos e contemplou-me demoradamente. Sabia
que nunca mais nos veríamos. Não há culpa nesta história,
disse ela. Foi a vida que escolheu, acrescentou. Sacudi a
cabeça a sugerir que não a queria escutar. Permiti, contudo,
que ela mantivesse a mão sobre o meu ombro.
— E que nome lhe deu, Dona Laura?
— O nome que já lhe tinhas dado — respondeu Laura. —
É o nosso Sanga.
— E Germano? — quis perguntar. Mas não tinha voz para
tanto. E foi como se Laura adivinhasse as minhas secretas
interrogações. Porque murmurou: O meu Germano vai
chegar para a semana, vem muito doente. Nem força tem
para escrever, diz Laura. Nem por isso deixou de mandar
religiosamente a mesada para o filho dele… E corrige: …
para o vosso filho.
No regresso ao barco não era apenas eu quem chorava.
Recatadadamente o sargento ia trocando um lenço comigo.
Seguimos pela Estrada das Laranjeiras e, a certo ponto, o
marinheiro suspendeu a marcha para dizer: Foi aqui, foi aqui
que ele se matou! E antes que o questionasse, clarificou:
Mouzinho de Albuquerque, foi aqui que ele morreu.
Passou os dedos pelas pedras da calçada como se sentisse o
sangue. Fizeram-lhe a cama, comentou o sargento. Puseram
a correr que Mouzinho foi muito desumano nas campanhas
em África. Quem o tramou foi o meu chefe, o capitão
Andrea, que andou por lá também…
No cais o sargento despediu-se com um inesperado aperto
de mão. Aquele marinheiro experimentava, quem sabe, algo
novo: o respeito pela tristeza de uma mulher negra. Não
sendo capaz de um consolo tentou uma distração.
— E do Gungunhanha, sabes o que lhe aconteceu? —
perguntou. — O Gungunhanha, o rei dos pretos…
Após todos aqueles anos já havia desistido de corrigir o
nome de Ngungunyane. Desta vez, por respeito a quem
perguntava, endireitei a pronúncia do militar. Morreram
todos, disse eu com secura. Morreu o rei de Gaza, morreu o
filho, morreu o tio. Sobreviveu o único que foi feliz: o Zixaxa.
A última notícia que recebi é que esse Zixaxa ia ter um filho.
Um filho mulato, como o meu Sanga.
*
Dá-me sono, a fita do gravador. Faço menção de me erguer
para resistir àquela doce indolência. Mas o corpo não me
obedece. E volto a afundar-me no assento. Olhos fechados,
acaricio o braço do sofá como se fosse a retribuição de um
carinho.
— Há quanto tempo a senhora mora nesta casa?
— Eu não moro. Eu sou esta casa.
Eu sou a casa, repito, e estas mobílias são as minhas irmãs.
Tenho parentes de madeira que não deixaram nunca de me
fazer companhia. Deves aprender, meu neto, prossigo. Mais
do que às pessoas, afeiçoa-te à mobília. A cama e as
cadeiras, garanto, são quem mais nos permanece fiel até ao
fim dos nossos dias. Reza pela alma das coisas, meu neto.
— Continuamos a gravação, Dona Imani? — pergunta o
meu neto.
Abano a cabeça, em veemente negação. Estou cansada.
Vejo-o tirar da mochila uma máquina fotográfica. Cubro o
rosto com os braços. E reclamo, oponho-me com convicção.
O protesto é moroso, mas o meu neto escuta-me sem
interrupção. No final, fascinado, exclama: Que coisa mais
linda a senhora acabou de dizer! Quer ouvir?, pergunta. É
que gravei tudo, justifica. Sinto vergonha quando escuto, o
volume no máximo, a minha própria voz:
«Podes gravar, mas não me fotografes. Olha bem para
mim, meu neto. Esta criatura que vês à tua frente não é feita
de um corpo único. São muito corpos colados, cada um feito
num tempo, cada um vindo de uma terra diferente. O
coração é desta aldeia, os braços são de Mutimati, as pernas
já se esqueceram de onde são. Não me fotografes, meu neto.
Este meu corpo é feito de despedaços. Quem mais vive
dentro de mim é quem já morreu: as mães que ainda me
fazem nascer. A primeira, Chikazi Nsambe e as outras,
Bibliana, Bianca, Dabondi. Não me fotografes, meu neto.
Porque eu não termino em mim. O meu corpo agora é o
mundo inteiro.»
A reprodução termina, as fitas rodopiam no vazio. E
Gungunhana?, pergunta o meu neto. Não sei, respondo. Só
sei da minha história.
O ruído das bobinas cresce no quarto. Pergunto a Sanga se
chegou a conhecer Germano. Quem?, pergunta. O teu avô
Germano, esclareço. Sacode a cabeça, sorrindo. E de Bianca,
ouviste falar?, volto a inquirir. Mas não espero por resposta.
De súbito sou assaltada por uma insólita raiva: ataco com os
pés a mesa à minha frente. O gravador e a máquina
fotográfica tombam no chão. O meu neto dá um passo atrás,
entre medo e espanto.
— Não voltes a aparecer com essas máquinas! Nunca
mais! — declaro aos berros.
Quero erguer-me, mas nem a fúria me ajuda. Permaneço
afundada no velho sofá de napa. Estou presa nas grades do
meu corpo.
*
Mozi contempla-me no sofá, sacode a cabeça, impaciente,
e pede ao visitante que nos deixe a sós. Diz-lhe que espere no
pátio. O escritor recolhe as suas máquinas e retira-se, mais
vergado do que entrara. Assim que a porta bate, Mozi investe
sobre mim. Está colérica. Que eu não estava a entender,
argumenta, que havia ali uma oportunidade única. E eu
simplesmente deitava tudo a perder.
— Faça de conta, avó. Custa assim tanto? Admita ter sido
esposa de Ngungunyane…
Tenta convencer-me, obstinada. Fizesse aquele pequeno
teatro e nós, os Nsambe, teríamos incalculáveis vantagens.
Seríamos da família dos heróis, ganharíamos uma fortuna,
viajaríamos até à capital, quem sabe nos levariam até aos
Açores?
— Escuta bem, avó — insiste Mozi, agora num tom
melífluo. — Vou-te dizer o que vais contar ao escritor…
— Não é escritor, é o meu neto.
— Neto, bisneto, trineto…. A toda essa gente vais dizer
que foste esposa do rei. E vais contar-lhes uma história…
— Não vou começar a mentir com noventa e cinco anos.
— Se não quer mentir — reclama Mozi —, então deixe de
chamar neto a este rapaz.
Dirige-se para a saída para lançar uma derradeira ameaça:
Não se esqueça, avó: somos nós que tratamos da senhora! E
bate a porta, furiosa. Por um momento fico só. Nunca estive
tão só. E nunca a solidão me soube tão bem.
Abro a porta das traseiras e esgueiro-me para a rua. Pela
primeira vez em muitos anos saio de casa. E sigo pelo
mesmo caminho de areia que a nossa mãe tomava para ir
buscar lenha. Ando sem direção, como fazem as crianças que
dão os primeiros passos. Quero apenas distanciar-me de casa,
afastar-me de quem sou. Na esquina quase tropeço num
grupo de crianças que brincam sentadas na terra. São
meninos pobres, sujos e maltrajados. Lembro os meus
tempos de menina e penso: mesmo na guerra mais cruel,
mesmo entre ruínas e cinzas, as crianças nunca pararam de
brincar.
De súbito uma sombra veloz me derruba. Estou tão magra
que nunca mais acabo de cair. E vejo passar, como um
monstro de metal, um camião militar carregado de
guerrilheiros. Revejo os atribulados tempos da minha
infância. A diferença é que há agora mais chão, um chão que
chama pelo meu nome.
Regresso amparada pelo jovem escritor que acabou de me
salvar de ser atropelada. Venha, avó!, incita-me. Chama-me
«avó», o rapaz. Chama-me «avó» e as ruas voltam a ser
minhas. No terreiro da casa passamos junto à velha
termiteira. Cimentaram o terreiro mas deixaram vivo aquele
lugar sagrado. Tiveram medo, não foi respeito. Ali resiste o
morro de muchém, sustentando a frondosa mafurreira. Já
nela não amarram panos brancos. Ninguém mais fala com os
antepassados. A única que fala sou eu, que estou quase
defunta.
Peço ao escritor que me espere. Regresso pouco depois
carregando nos braços uma mala. É pesada?, pergunta ele,
apressando-se a ajudar. Na minha idade tudo é pesado, a
começar pelos meus próprios braços. Despejo o conteúdo da
mala. O chão fica coberto de papéis. São teus, estes
cadernos, digo-lhe. Estão aqui os meus escritos, estão aqui
as cartas que guardei, está aqui toda a minha vida. Leva
estes cadernos e publica-os se achares que merecem ser
conhecidos. Assina-os como sendo tu o autor, não me
importo. Desde que digas que és o meu neto, o neto de Imani
Nsambe.
O escritor dá dois passos, senta-se e começa a ler o
primeiro caderno. À medida que vai lendo vou-me
aconchegando a ele, como se buscasse no seu corpo a minha
última sombra:
«Todas as manhãs se erguiam sete sóis sobre a planície de
Inharrime. Nua como havia dormido, a nossa mãe saía de
casa com uma peneira na mão. Ia escolher o melhor dos
sóis. Com a peneira recolhia as restantes seis estrelas e
trazia-as para a aldeia. Enterrava-as junto à termiteira, por
trás da nossa casa. Aquele era o nosso cemitério de
criaturas celestiais. Um dia, caso precisássemos, iríamos lá
desenterrar estrelas.»
ANEXO
Este livro é uma obra de ficção. Grande parte
das personagens e das histórias foram, no
entanto, construídas com base em pessoas reais
e factos históricos. Este anexo contém imagens
que ilustram pessoas e paisagens relevantes para
a construção desta narrativa.
Ngungunyane aquando da partida de Moçambique.
Nwamatibjane Zixaxa, durante a estada nos Açores
Comandante Álvaro Andrea
A corveta Capello no estuário do Limpopo
Ngungunyane sentado com as sete rainhas
O comandante Jaime Leote
O navio Neves Ferreira
Mouzinho de Albuquerque, ao centro, é o mais alto dos oficiais. Do lado
esquerdo, de óculos, pode ver-se Aires de Ornellas
A Rua dos Mercadores, na baixa de Lourenço Marques, nos finais do
século XIX
Nas duas cadeiras que rodeiam a mesa estão Mouzinho de Albuquerque e
a sua esposa, Maria José. Encostado à cadeira de Mouzinho está Aires de
Ornelas
Caldas Xavier
O navio África à saída de Lisboa
Zona portuária da Cidade do Cabo, no final do século XIX
O imperador com duas das suas mulheres. Dabondi é a do lado esquerdo
Escravos exibindo as mãos decepadas de outros escravos no Congo Belga
Desembarque dos prisioneiros da corte de Gaza em Lisboa
Forte de Monsanto em Lisboa, primeiro local de deportação
Casa da Fortaleza de São João Baptista na Ilha Terceira, em frente à
cidade de Angra do Heroismo, onde ficaram alojados os quatro
prisioneiros
Os prisioneiros durante o exílio nos Açores
Índice
CAPA
Ficha Técnica
RESUMO DOS ANTERIORES VOLUMES
Capítulo 1 A mulher que chamava os rios
Capítulo 2 Um mal-amanhado bilhete
Capítulo 3 A lama e a neve
Capítulo 4 Primeira carta do sargento
Capítulo 5 Andorinhas e crocodilos
Capítulo 6 Segunda carta do sargento
Capítulo 7 As mãos e as mães
Capítulo 8 Antes de haver mar havia um barco
Capítulo 9 A caligrafia do rei analfabeto
Capítulo 10 Um lenço branco iluminando o passado
Capítulo 11 Carta de Germano de Melo para Bianca Vanzini
Capítulo 12 Pegadas no orvalho
Capítulo 13 Carta de Álvaro Andrea para Imani
Capítulo 14 Desfiles e delírios
Capítulo 15 Uma submissa desobediência
Capítulo 16 Nem juba nem coroa
Capítulo 17 Bartolomeu e o caminho marítimo para o céu
Capítulo 18 Um involuntário suicídio
Capítulo 19 Os amnésicos defuntos
Capítulo 20 Quanto pesa uma lágrima?
Capítulo 21 Véspera da terra
Capítulo 22 A luz de Lisboa
Capítulo 23 Um quarto debaixo da terra
Capítulo 24 Um corpo rasgado
Capítulo 25 O que foi dado à luz
Capítulo 26 Entre exílios e desterros
Capítulo 27 O bebedor de horizontes
Capítulo 28 O derradeiro idioma
Capítulo 29 Um novo nome para Zixaxa
Capítulo 30 A sombra das palavras
ANEXO

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