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ISBN: 9789722128964
Editorial Caminho, SA
uma editora do grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
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O Bebedor de Horizontes
RESUMO DOS ANTERIORES VOLUMES
Nos finais do século XIX, Portugal enfrenta a resistência do
Estado de Gaza que domina todo o Sul de Moçambique. A
coroa portuguesa, já a braços com o Ultimato da Inglaterra,
não pode adiar mais uma ofensiva militar contra
Ngungunyane, o imperador de Gaza. O desafio é claro: ou
Portugal prova que domina efetivamente os territórios
africanos ou perde-os a favor de outras potências coloniais.
Em dezembro de 1895 um pequeno grupo de soldados
portugueses, comandados pelo capitão Mouzinho de
Albquerque, toma de assalto a povoação real de Chaimite e
prende Ngungunyane. Com o rei de Gaza são igualmente
detidos o filho, Godido; o tio e conselheiro Mulungo e o
cozinheiro Ngó. Os portugueses autorizam o imperador a
fazer-se acompanhar por sete das suas mais de trezentas
esposas. Num outro local, na margem do rio Limpopo,
prendem igualmente o chefe dos mfumos, o Nwamatibjane
Zixaxa, que é enviado para o exílio juntamente com os
presos da corte de Gaza. Zixaxa é deportado na companhia
de três das suas esposas.
Com os presos segue Imani Nsambe, uma jovem negra que
estudou numa missão católica e serve como tradutora das
autoridades portuguesas. Imani está grávida de um sargento
português, chamado Germano de Melo. É esta tradutora que
narra os trágicos acontecimentos do final do reinado de
Gaza.
Neste último volume da trilogia, os prisioneiros embarcam
no cais de Zimakaze e a lancha parte em direção ao posto de
Languene. Ali farão uma breve paragem para depois
rumarem para o estuário do Limpopo e ali darem início à
viagem marítima que conduzirá os africanos para um distante
e eterno exílio.
Eu? — bebo o horizonte…
(Cecília Meireles, in Mar Absoluto)
Em tempos de terror escolhemos
monstros para nos proteger.
(Excerto de uma carta de Álvaro Andrea)
Capítulo 1
Um mal-amanhado bilhete
«… a atividade dos portugueses nas Terras da
Coroa, no Sul de Moçambique, resume-se a isto:
Em outubro e novembro de cada ano percorrem
as povoações palhota a palhota, cobram o
imposto, fornecem sovas de cavalo-marinho
num ou noutro negro menos reverente, levam o
produto da cobrança ao quartel de Anguane,
recebem a sua percentagem e vão de novo
dormir onze meses.»
(Extrato de Eduardo Noronha, in «A rebelião dos indígenas
de Lourenço Marques, 1894», citado por René Pélissier)
Chaimite, 28 de dezembro de 1895
Minha querida Imani
Não vejas nisto uma carta. É um simples bilhete rabiscado
à pressa. Não tarda que me conduzam para Inhambane.
Quero, mais que tudo, dar-te uma boa nova: estou livre!
Sobre mim já não pesam suspeitas da autoria da morte de
Santiago Mata. Para te ilibar declarei-me culpado. Era mais
credível que fosse eu o autor do disparo.
O meu sacrifício não teve custos maiores pois logo surgiu
uma outra versão dos acontecimentos que falava em suicídio.
Ainda pensei que fossem os meus companheiros
republicanos que me tentavam salvar. Mas não. Quem
defendeu a tese do suicídio foi o próprio Mouzinho de
Albuquerque. E quem iria duvidar da palavra do grande
herói? Fico a dever esse favor ao meu fiel inimigo.
Mouzinho, Mouzinho, Mouzinho! Quando deixará esse
Mouzinho de me ocupar tanto? Às vezes arrependo-me deste
meu despeito: é tão fácil odiar o sucesso dos outros! Mais
vezes, porém, desconfio desta recente euforia de Mouzinho.
Como é que alguém tão fascinado pela morte se pode ocupar
tanto com a imortalidade?
O que importa, querida Imani, é que daqui a umas horas
estarei no Hospital Militar de Inhambane. Vou usar as
enjeitadas mãos para ficar isento dos serviços militares.
Tenho esperança, melhor, a certeza, de que me fazem voltar a
Portugal. O meu anseio não é regressar. O que realmente
desejo é reencontrar-te. Se tudo correr bem ainda nos
veremos em Lourenço Marques.
Entrego este bilhete a Álvaro Andrea, o comandante da
lancha militar em que irás embarcar em Zimakaze. É um
velho amigo que comunga dos ideais republicanos. Pela
mesma via te farei chegar, mais tarde, uma verdadeira carta,
uma carta decente no tamanho e indecente nas entrelinhas.
Teu
Germano
Capítulo 3
A lama e a neve
[…]
Homens que erguestes padrões, que destes nomes a
cabos!
Homens que negociastes pela primeira vez com
pretos!
Que primeiro vendestes escravos de novas terras!
Que destes o primeiro espasmo europeu às negras
atónitas!
Que trouxestes ouro, missanga, madeiras cheirosas,
setas,
De encostas explodindo em verde vegetação!
Homens que saqueastes tranquilas povoações
africanas,
Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas
raças,
Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes
Os prémios de Novidade de quem, de cabeça baixa
Arremete contra o mistério de novos mares!
[…]
(Fernando Pessoa, excerto da Ode Marítima)
Não se amaldiçoa o lugar onde se acaba de chegar. Assim
me educaram. Mouzinho não segue este princípio. Desde que
chegámos não fez outra coisa senão maldizer o posto de
Languene.
— Vou mandar incendiar esta miséria! — resmunga. —
Isto não é um aquartelamento, é um esconderijo. Esta gente
tem tanto medo de morrer que faz tudo menos combater.
Vocifera contra o que chama de «cáfila de politiqueiros». E
alerta para uma conspiração de «intriguistas». Usa esses
termos com a mesma raiva com que Ngungunyane chama de
«mulheres» aos seus inimigos.
— Imani… É assim que te chamas, não é? A minha dúvida
pode parecer-te estranha mas preciso de perguntar: sentes
que pertences a um país, a uma nação?
Fala sozinho. E responde por mim. Está certo de que me
falta esse sentimento de pertença. Apesar da minha
aparência, continuo a ser uma indígena, leal à família, fiel à
raça. E lembra a maldição que recai sobre os irmãos gémeos.
Estando perante um desses irmãos, pensa-se reconhecer o
outro e, assim, acabamos por não conhecer nenhum deles.
Era assim que ele me via a mim e aos demais africanos:
todos gémeos. Da próxima vez que falássemos eu teria de
recordar-lhe o meu nome.
*
A raiva de Mouzinho Albuquerque contra o posto de
Languene tinha a sua explicação. O capitão tinha estado
naquele posto há duas semanas no caminho para o assalto à
corte de Ngungunyane. A intenção era obter reforços entre os
marinheiros que serviam a corveta Capello. Chegara ali no
dia de Natal e constatara, com uma mistura de pasmo e
comiseração, que o comandante da corveta, Álvaro Andrea,
tinha convertido o aquartelamento num lugar de celebração
cristã. Chapas de zinco tinham sido usadas para servir de
tampos de mesa e troncos foram convertidos em assentos.
Cartucheiras vazias e fitas de metralhadoras enfeitavam uma
árvore no centro do recinto.
Aquela fantasia natalícia surgia patética aos olhos do
capitão de cavalaria. E revelava não uma particular devoção
cristã mas uma perigosa fragilidade. Se os chefes militares
fossem pelo caminho da encenação, cedo os soldados
pediriam mentiras maiores. Para acertarem naquele
fingimento de Natal faltava-lhes o frio, a neve e os cheiros da
sua terra. Em contrapartida, sobravam os mosquitos, as
febres e os odores fétidos do pântano. E sobejavam-se a si
mesmos como magros vultos com mais farda do que corpo.
Num certo momento, um desses vultos ajoelhou-se aos pés
de Mouzinho. Era um jovem praça, com um ar apalermado,
que a custo balbuciou:
— Meu capitão, este posto está tão bonito que até parece o
adro da minha igreja. E ali abaixo passa o rio Tejo. Peço
que me autorize a banhar-me nessas águas, que são as da
minha meninice.
Mouzinho dedicou-lhe um olhar vazio. Quis saber a sua
idade. Dezoito anos, respondeu o moço, sacudindo a cabeça.
Mas não estava seguro. Pediria confirmação aos pais que,
segundo ele, moravam numa aldeia ribatejana bem próxima
do posto de Languene. Posso chamá-los, se o capitão assim
o desejar. Foi o que disse o jovem soldado. Mouzinho reagiu
como se o rapaz não tivesse chegado a dizer nada. Convocou
Álvaro Andrea e pediu-lhe a espada. Usando as duas mãos
espetou-a fundo na terra, bem rente ao corpo do aturdido
soldado. A lâmina afundou-se como se não houvesse chão.
— Parece-te neve esta pestilenta lama? — inquiriu
Mouzinho.
— É neve, sim, é neve preta. Era branca, mas voltou assim
de África.
O soldado mergulhou as mãos no chão e os dedos foram
engolidos pelo lodo. Naquele instante pareceu a Mouzinho
de Albuquerque que o jovem militar executava o seu próprio
enterro.
— Não se preocupe com a sua espada — disse Mouzinho
para Álvaro Andrea. — Mando-a limpar e o tenente Miranda
a entregará no seu barco.
Em redor do acampamento apinhavam-se auxiliares negros
com as suas fogueiras, os seus cantos e as suas danças. Ainda
ocorreu a Mouzinho ordenar que se calassem. Não chegou a
fazê-lo. A seus pés jaziam os feridos em macas feitas de
capulanas. Era estranho ver a vida esvair-se em tão garridos
panos. As canções ocultavam os gemidos e as preces dos
agonizantes soldados. As vozes dos negros cumpriam o que a
enfeitada árvore não havia conseguido: aliviavam-no desse
absurdo que era festejar o Natal no meio do inferno.
E Mouzinho pediu a Álvaro Andrea que se dirigisse aos
seus homens e lhes desse a bênção. Não havia senão duas
garrafas de vinho quinado. Mas foram suficientes para o
improvisado brinde. Álvaro Andrea ergueu o copo mas não
soube o que dizer, mortificado pela infantil avidez dos olhos
que nele se fixavam.
Mouzinho mandou que os soldados se afastassem, tomou
assento sobre uma caixa de munições e dirigiu-se ao
comandante Andrea:
— Estou sentado em cima deste cunhete de balas mas
falta-me quem as dispare. Escolha-me uns vinte homens, dos
mais saudáveis e afoitos.
O comandante Andrea olhou os céus à procura das
palavras que melhor o servissem:
— Permita-me a ousadia mas considero essa sua
operação….
Não chegou a terminar a frase. A reação de Mouzinho foi
pronta e seca:
— Pedi-lhe soldados, não pedi conselhos…
A disputa cresceu e os soldados se espantaram com o
descontrolado desfile de imprecações e insultos. Perentório
foi Álvaro Andrea:
— Se quiser morrer sozinho morra. Mas dos meus rapazes
não leva nenhum.
— Já entendi — ripostou Mouzinho —, você é dos que
advogam a paz por terem medo da guerra. Está aqui
enclausurado porque esta é a sua maneira de fugir. Eis a
verdade: você só precisa destes soldados para se proteger da
sua cobardia.
— Fique sabendo, capitão Mouzinho — argumentou o
outro —, a Nação pedir-lhe-á contas por esta aventureira
perseguição ao Gungunhana. O senhor vai às cegas e sem
apoio. É por isso que digo e repito: não conte com nenhum
dos meus homens.
Em silêncio, todos os marinheiros da corveta Capello
aplaudiram a ponderada atitude do seu comandante. Andrea
salvava-os de uma morte certa. E usaram os restos do vinho
para dar graças ao judicioso homem que os chefiava. Os
negros recolheram os copos espalhados sobre as mesas e
verteram na areia as gotas que restavam.
— Quer celebrar o espírito natalício? — perguntou
Mouzinho a Andrea. — Pois mande abater uns cabritos e
distribua a carne pelos auxiliares indígenas…
*
Tudo isso se passara dias antes, naquele mesmo lugar. No
fim do relato, Mouzinho volta a cobrir a cabeça e a sombra
do chapéu obscurece-lhe as palavras.
— Percebes agora por que desconfio desse Andrea? —
pergunta-me Mouzinho. E movimenta o assento como se, ao
fazer-se mais próximo, nos tornássemos mais coniventes.
Álvaro Andrea, começa por dizer Mouzinho, apostara que
ele seria morto em Chaimite. E ali estava ele, vivo e
vitorioso. Mouzinho era um espinho cravado no seu orgulho.
Como entregar nas mãos desse traidor o mais precioso troféu
de todas as guerras coloniais portuguesas?
Passam por nós soldados que se dirigem ao rio para lavar
os pratos. Mouzinho sacode a cabeça e lamenta-se:
— Há poucos dias estes homens saudavam a prudência do
seu comandante. Hoje todos eles o maldizem.
O que antes tinha sido ponderação é agora cobardia. Por
culpa de Andrea, aqueles jovens foram excluídos do panteão
dos heróis.
Aproxima-se de nós um soldado branco, com ar apatetado.
O capitão anuncia o visitante:
— Ora aqui está o único soldado português que está em
África sem nunca ter saído da sua aldeia ribatejana. Eis
alguém que viu neve no meio do inferno.
O jovem soldado ergue-se na ponta dos pés, o corpo todo
espigado numa caricata continência:
— Apresenta-se o 222, da terceira companhia do
regimento de infantaria.
De repente deixo de o ver. O jovem português estava à
minha frente mas, em seu lugar, surgia o meu irmão
Mwanatu. A mesma caricatura de soldado, a mesma
desajeitada farda. E a mesma distância da realidade:
Mwanatu Nsambe acreditando ser branco de nascença e este
português tomando por neve a tórrida areia dos trópicos.
Apetece-me abraçar o soldado. Contenho-me quando me
enfrenta, a um tempo distante e curioso:
— És tu a preta que fala português? É verdade que falas
melhor do que a maior parte dos brancos?
A minha resposta é um sorriso. Espero que ele
corresponda. O moço, porém, bate continência e retira-se
movido por uma estranha urgência. Mouzinho contempla o
soldado 222 que se afasta e comenta:
— Este é um anjo estúpido, tombou de cabeça na terra.
Mas não deixa de ser um desses anjos cuja única função é
lembrar que vivemos num inferno.
*
Os soldados são como os caçadores: as suas histórias têm
pouco a ver com a realidade. Ninguém com isso se importa.
Na verdade, só os mortos sabem exatamente o que é a
realidade.
João da Purificação, o mais novo dos soldados
portugueses, já se esquecera da primeira das realidades: o seu
próprio nome. Desde há um ano que ele não era senão um
número: o 222. Queixava-se? Muito pelo contrário. Não
havia para ele nome mais sublime. Distintamente dos outros
soldados, o ex-João da Purificação não tinha glórias para
contar, com exceção de umas viagens que só existiam na sua
cabeça. Poder-se-ia dizer que é assim que as viagens
sucedem sempre: dentro da nossa cabeça. A verdade, porém,
era outra: o 222 enlouquecera. Na mais bravia paisagem de
África, o soldado via um lugarejo de Portugal. Em cada um
dos negros reconhecia um compadre da sua pequena aldeia.
E não havia rio de Moçambique que não se chamasse Tejo e
que não atravessasse a sua infância.
Os soldados provocam João da Purificação na esperança de
que ele volte a descrever as suas delirantes viagens. O 222
acaba cedendo aos convites e, feliz por ser notado, proclama:
— Escutai-me bem, meus irmãos: o mundo inteiro é um
arrabalde da nossa terra natal.
— Viajaste assim tanto? — incitam os outros.
— Naveguei tanto que não há céu que estes meus olhos
não tenham tocado.
— E como é o firmamento lá mais à frente? — perguntam-
lhe.
— Lá mais adiante deixa de haver céu. É tudo terra, é tudo
Portugal.
Capítulo 4
Andorinhas e crocodilos
A chuva sentiu o cheiro da moça virgem
e com o seu hálito quente foi entrando pela casa.
Penetrou pelas frestas da porta
fazendo-se passar por nevoeiro.
E assim, nesse formato sem forma,
a chuva seduziu a jovem e fez com que ela
sonhasse.
Nos sonhos, a moça viu uma nuvem pairando.
À porta da sua casa se ajoelhou a nuvem,
para que ela subisse para o seu dorso.
E sobre esse leito pernoitaram as duas, a moça e a
chuva.
Foi então que os céus desabaram junto com os
deuses.
E a terra toda se perfumou.
Cheira a chuva, dizem os homens.
E não sabem onde nasce esse perfume.
(Fala de Dabondi)
Passou uma hora desde que saímos do posto de Languene e
a corveta Capello muito pouco avançou rumo à barra do
Limpopo. Certo era o presságio de Dabondi: uma tempestade
desabou sobre nós, convertendo o rio num lençol de vagas e
espuma. De pé na proa do barco, a mão em pala sobre os
olhos, o comandante Álvaro Soares Andrea espreita o
horizonte. Remoinhos de poeira fina fustigam-lhe o rosto
tisnado pelo sol.
Os ombros largos do comandante ocultam o oceano inteiro.
Os olhos são rasgados e o olhar é inquisitivo mas seguro. E
contudo ele hesita, o navegador português: no calor dos
trópicos tudo é aparência. Quantas vezes, na agreste
paisagem africana, surpreendeu o céu a emergir do chão?
Quantas vezes sentiu o sopro do inferno acender vultos de
cinza e fogo?
E agora, de pé na proa do navio, a mão em pala sobre os
olhos, o comandante sente que o barco lhe pede para
interromper a viagem. Concebida na moderna Inglaterra, a
corveta não foi ensinada a enfrentar os monstros que a fazem
escoicear como um potro enlouquecido.
A prudência do comandante tem razões acrescidas: nunca
antes a Marinha de Guerra transportara tão valiosa carga.
Terão estes prisioneiros que chegar, sãos e salvos, ao porto
de Xai-Xai, onde serão transferidos para um navio maior, o
Neves Ferreira. Será este navio que os conduzirá até
Lourenço Marques. Naquela cidade haverá uma cerimónia
pública para apresentação dos troféus de guerra. Por fim, os
negros serão levados para Lisboa. Na capital portuguesa a
sua exibição atingirá o apogeu.
Estou a par do que irá suceder com os prisioneiros. Mas
nada sei do meu destino. Tão-pouco sei de Germano de
Melo. Uma única certeza me move enquanto acaricio a curva
do meu ventre: eu, Imani Nsambe, vou ser mãe. E Germano
é o pai dessa criança. Algures nos reencontraremos e
seremos felizes.
Para trás ficou o embarcadouro de Zimakaze e o posto de
Languene. Os presos abandonaram as suas vidas na outra
margem do rio. Só eu não tenho onde deixar o meu passado.
*
Álvaro Andrea mantém-se na proa como um irreverente
anjo: vigia as imperfeições de Deus. A linha da costa,
impossível de mapear, é a prova de que o universo é apenas
um rascunho.
— E o que tanto vê, meu comandante? — pergunta
Mouzinho.
Andrea demora a responder. Contempla as ondas, que se
erguem cegas para depois desabarem num escuro abismo.
— O que vejo? Não sei. Vejo andorinhas.
— Andorinhas? — espanta-se Mouzinho.
— Dizem que o Gungunhana odeia essas aves tanto
quanto teme o oceano. Já lhe perguntei a razão desse ódio.
— Dou-lhe um conselho, meu comandante: não pergunte
nada a essa gente — adverte Mouzinho. — É um duplo erro.
Primeiro, porque lhe mentirão ao responder. E depois
porque, ao dirigir-se-lhes, você dá-lhes uma importância que
nos pode ser perigosa.
— Uma das rainhas disse-me que as andorinhas não são
aves. São mensageiras. Há que escutar o recado que trazem.
— Tolices, caro Andrea. E mais tolo é quem lhes dá
ouvidos.
*
A jornada até Xai-Xai deveria durar dois dias. Mas a súbita
tempestade impede o progresso da lancha e isso deixa
transtornado Mouzinho de Albuquerque. Para o capitão não
há tempo a perder: a glória espera por ele em Lourenço
Marques. Não seria um estuário revolteado que faria protelar
a celebração dos seus feitos. Habituado a mandar, é-lhe
difícil assumir um tom solícito: Prossiga a viagem,
comandante Andrea, este barco foi feito para galgar
tempestades.
Álvaro Andrea enfrenta o olhar altivo de Mouzinho e
depois replica com azedume:
— No seu cavalo manda o senhor; aqui quem comanda
sou eu.
Mouzinho podia resolver a discussão numa penada,
fazendo uso dos galões. Para além de capitão, ele é agora o
governador do distrito militar de Gaza. Mas prefere regressar
a um tom mais apropriado. Estão ali os presos que se
entreolham, estranhando a desavença entre os chefes
brancos. Encolhido entre a bagagem, Ngungunyane acredita
ser ele o motivo daquela altercação. Os portugueses,
desconfio, discutem a sua sumária execução.
— Sabe por que prendi tão facilmente o chefe dos Vátuas?
— pergunta Mouzinho ao comandante do navio.
No momento da prisão, explica o capitão, os guerreiros de
Ngungunyane imaginaram que o destacamento que tinham
diante de si era uma reduzida amostra de um enorme exército
que os cercava para além do horizonte.
— É por isso que lhe digo, caro Andrea — conclui
Mouzinho —, nunca se fie na linha do horizonte.
*
Há outras razões para acelerar o passo: o barco parado no
meio do estuário pode encorajar uma reviravolta nas
populações ribeirinhas. Essa é a preocupação de Mouzinho.
Os negros, que antes saudaram a detenção de Ngungunyane,
podem agora querer de volta o seu monarca. Contesta o
comandante Andrea: que ele se mantinha fiel aos
compromissos que assumira.
— Que compromissos? — inquire Mouzinho.
Não se esquecesse o capitão Mouzinho de que, muito antes
da captura de Ngungunyane, os chefes locais já haviam
declarado fidelidade a Portugal. Juraram-lha a ele, Álvaro
Andrea. Em contrapartida, ele a todos prometera que, caso o
imperador se entregasse, não haveria retaliação. A família
real seria respeitada e o rei seria tratado com dignidade.
Eram esses os seus compromissos.
— Juraram-lhe os pretos? — indaga Mouzinho, com mal
disfarçada ironia. — Pois eu asseguro-lhe, meu caro Andrea:
já nenhum dos pretos se lembra dessa jura, assim como
nenhum branco chegará a saber dos seus compromissos
éticos.
Calado, Andrea acatou a ofensa. Olhou para mim como se
buscasse tradução para o seu silêncio. Mouzinho falava da
linha do horizonte. Não devia ter escolhido esse assunto. De
tanto oceano cruzarem, os navegantes aprendem a lidar com
brumas e miragens. O comandante Álvaro Andrea era um
perito em horizontes.
*
Com apoio de binóculos, Mouzinho de Albuquerque vai
explorando as margens. Está apreensivo: mesmo que
decidissem prosseguir viagem, a embarcação mover-se-ia
com dificuldade entre os baixios do rio e a roda propulsora
na popa não garantiria, em caso de fuga, o ímpeto veloz do
seu cavalo Mike. Para além de tudo isso, os canhões e as
metralhadoras instalados no tombadilho eram de difícil
manuseio. Mouzinho não quer imaginar uma chuva de
mortíferas setas tombando sobre a embarcação e, mais grave
ainda, trespassando o prisioneiro, que deve chegar vivo e
inteiro a Lisboa. Ironia do destino: o inimigo que apostou
matar é quem agora deve proteger, com risco da própria vida.
— Meu caro Andrea — declara Mouzinho —, você deve
imaginar que me precipito a recolher honrarias em Lourenço
Marques. Fique a saber: tenho pressa em sair destas águas
lamacentas porque nelas acabei de perder um dos meus
homens. Ou já não se recorda?
Era impossível esquecer: a viagem mal tinha começado
quando o soldado João da Purificação, aquele que eu
conhecera como o 222, foi mandado buscar água para
alimentar a caldeira. Ao mergulhar o balde no rio, o jovem
tombou nas águas escuras e, de imediato, foi arrastado por
um gigantesco crocodilo. Do navio inutilmente lançaram-se
boias, soltaram-se desesperados gritos e arremessaram
objetos contra o monstruoso vulto. Esperava-se que o 222 se
debatesse em desespero, braços enlouquecidos esgravatando
a água. Mas não. O soldado aceitou aquele terrível destino
com a quietude de quem regressa a casa. Repetidas vezes o
rosto pálido assomou à superfície, os olhos abertos
contemplando-nos com infantil placidez. Até que o 222, num
vagaroso rodopio, desapareceu nas águas barrentas do
Limpopo. Apesar das repetidas diligências nunca mais se
encontrou o corpo. E nunca mais ninguém dele se lembrou
pelo número. Apenas depois de morto o soldado teve direito
a ter nome. Para mim, esse nome podia ser João ou
Mwanatu. Os dois morreram abraçados pela água, sepultados
no ventre de um rio.
Gorada a esperança de recuperar o corpo, a grande roda do
barco voltou a girar como um carrossel de feira. Com as suas
largas folhas e vistosas flores, os nenúfares giraram pelo ar
como que revolteados por um invisível crocodilo. O barco
era um arado e arrancava as raízes do próprio rio. O ruído
das pás — «feque-feque-feque» — ilustrava de onde veio o
nome que a gente local dera àquele barco: «mafekefeke». Os
nenúfares lembravam a canção com que minha falecida mãe
enchia a casa: «… as flores que crescem na água são feitas
de chuva».
— Suicidou-se — concluiu Mouzinho.
Para nós, os negros, aquela não era uma morte comum. O
traiçoeiro crocodilo era pertença de alguém e cumpria um
encomendado serviço. O que nele assustava não era o que
tinha de fera mas de humano.
Dabondi avançou uns passos para tombar de joelhos à
frente de Mouzinho e, em xizulu, balbuciou uma lengalenga.
Por um instante, não se escutou senão aquela oração
pronunciada numa língua que os brancos não entendiam.
Mouzinho interrompeu a reza. E mandou que a rainha fosse
afastada para o recanto dos presos. Cumprida a ordem, o
português perguntou-me:
— O raio da mulher rezava pelo infeliz soldado ou
agradecia ao crocodilo?
— Esse homem que morreu…
— Aquele soldado não morreu — corrigiu Mouzinho. —
Matou-se.
— Esse soldado lembra-me o meu irmão que foi morto a
tiro por um militar português. — Acabo de falar e logo me
arrependo.
— Como se chamava? — pergunta Mouzinho.
— O meu irmão?
— Não. Como se chamava esse que matou o teu irmão?
— Santiago Mata — respondi. — E fui eu que matei
Santiago.
— Engano teu — declara Mouzinho. — Santiago escolheu
o seu destino.
Capítulo 6
As mãos e as mães
A mais grave herança da guerra não são as
feridas nem os escombros. A pior herança são os
vencedores. Acreditam os vencedores que a
vitória os fez donos da terra e acham-se no
direito de ser os seus vitalícios governantes.
(Extrato da carta de Álvaro Andrea)
Entendo agora por que a gente do estuário chama ao
Limpopo de «Nambo wa Nhimba», o rio grávido. Neste
momento o rio encontra-se em trabalho de parto: alargando
as margens, contorcendo-se como uma serpente,
esgadanhando-se para expulsar as suas águas nas águas do
mar. A corveta cavalga sobre as vagas e não há lugar no
convés que não seja varrido pelas ondas. As sete esposas de
Ngungunyane estreitam-se em redor do marido. Se procuram
conforto não o encontrarão: não há criatura neste mundo
mais aterrada que o rei de Gaza. Deleito-me ao ver tão
atemorizado aquele que tanto terror espalhou entre a minha
gente.
A gravidez do rio faz-me lembrar o meu estado: nunca
antes tinha sentido náuseas. Agora, só me apetece fechar os
olhos e adormecer numa espécie de sono bêbado. De longe,
Dabondi esboça um sorriso tímido. É a única das rainhas que
demonstra simpatia por mim. Com passos furtivos, ela vem
sentar-se junto a mim. O rei e as esposas observam-nos com
suspeição. Não viajam num barco, navegam num caixão.
Caminham mortos sobre as águas. Só ela, a bela Dabondi, se
encontra viva. Inclino-me para escutar a sua ciciada voz:
— Quero que me faça um favor, minha irmã. Peça aos
brancos que autorizem o Nkosi a usar a sua coroa.
Esconde entre as mãos o chidlodlo, a coroa de cera escura
que, entre os vanguni, distingue os nobres das restantes
castas. A mulher está convicta: o imperador ficaria aliviado
se a pudesse usar. Vigia se alguém nos escuta. Só depois
volta a falar:
— Sou a única que tenho pressa em sair da minha terra.
Queres saber porquê? — E deixa que se instale um novo
silêncio. Húmidos estão os seus olhos quando anuncia: —
Vou ver o meu filho!
Com dezassete anos, o seu filho João Mangueze foi
mandado estudar em Portugal. «Estudar» talvez seja um
termo forçado. Há dois anos que trabalha para uma
serralharia na outra margem de Lisboa. Os portugueses
ofereceram ao rei de Gaza a possibilidade de os filhos serem
educados por instituições lusitanas: uns na Ilha de
Moçambique, outros em Portugal continental. O único que
foi escolhido para viajar para além dos mares foi Mangueze.
O imperador disse aos portugueses: Vejam como confio em
vocês, entrego-vos o que de mais precioso tenho. As
mulheres uniram-se para contrariar aquela decisão: afinal, os
filhos de uma eram filhos de todas. Partilhavam um mesmo
receio: o mar iria engolir o jovem que os portugueses tinham
batizado de «João». De todas as esposas apenas Dabondi
estava feliz. Escondeu essa alegria e fez de conta que
também se opunha. Há muito que secretamente rezava para
que João Mangueze fosse levado para longe. Melhor seria
perder-se no mar a ser envenenado em disputas pelo poder.
— Não tarda que todos vejam que estás grávida — diz ela
tocando-me no ventre.
— Nota-se?
— Sempre soube. Sou nyamussoro. Lanço os búzios. E
trouxe-os comigo, os tintxolo.
Estica o peito, exibindo um mpacatxu, um colar feito de
pequenos paus entrelaçados num cordão. Não é vaidade. O
adereço prova que foi sonhada pelos deuses. Levanta-se,
entrega-me uma capulana, que faço questão de não aceitar.
Mas ela insiste. Não tarda que anoiteça e comece a fazer frio.
O pano que trago amarrado na cintura não deve ser posto aos
ombros porque, dentro de mim, a criança ficaria sufocada.
Essa capulana deve pertencer a uma outra mulher.
— Vamos viajar juntas — afirma Dabondi. — Serei a
madrinha desse teu filho. Em troca, serás a minha mulher
pequena, a minha escrava lá em Portugal.
— Nunca fui escrava…
— É bom que comeces a ser — declara Dabondi. — Essa
tua criança, já me disseram, não traz a raça certa.
Precisarás de quem te proteja dos brancos e dos pretos.
Deixa que a mão se arredonde sobre a minha barriga e
arrisca adivinhar: há três meses que não salto a Lua. Segundo
a tradição, estou em estado de obscuridade, guardados que
estão os meus sangues lunares. É imperioso, assegura a
rainha, que eu sangre de outra maneira. Propõe-se fazer
pequenas incisões nas pernas para que o sangue não se
acumule dentro do corpo.
— Tenho-te observado, minha filha — admite a rainha. —
Há coisas que deves aprender: por exemplo, ao beberes
deves ajoelhar-te para que a água não tombe em cascata
sobre a cabeça da criança.
Na nossa terra as raparigas aprendem a não ser ninguém.
Dabondi também se anulou. Pensava que, desse modo,
perderia os filhos sem sofrer. Na noite em que o filho partiu
para Portugal a rainha acordou com os dedos grudados por
um óleo espesso. Duvidou se ainda sonhava. Mas deixou que
acontecesse: se fosse sonho que viesse inteiro. No escuro
sentiu o cheiro da ferrugem e percebeu que sangrava
abundantemente. A hemorragia nascia-lhe do ventre: era
João que se revolvia de regresso ao escuro. Aquele filho que
todos diziam que partia para longe, afinal nunca chegara a
nascer. Morrera-lhe ainda nas entranhas. Era um ximuku, um
desses que, como se diz, volta para o outro lado. É o mesmo
nome que se dá aos afogados. Morreram num infinito ventre,
sem anunciar os segredos que traziam.
De madrugada, sem que ninguém na aldeia se apercebesse,
Dabondi esgueirou-se por entre os bosques. Caminhou sem
saber se o chão que pisava era real ou sonhado. Munida de
uma pá, Dabondi abriu uma cova estreita mas funda. Ali
enterrou o seu filho, João Mangueze. Todos diriam depois
que a cova foi fechada vazia. Que não havia senão terra
enterrando terra. Todos jurariam que o jovem não morrera e
que seguira, pelos descaminhos do mar, com destino a
Lisboa.
De nada importavam as falas e juras dos outros. Dabondi
apenas queria certificar-se de que o leite havia mirrado no
seu peito. Assim procedem as mães que concebem crianças
sem vida. Vezes sem conta espremeu os mamilos e nenhuma
gota se formou. Quando se assegurou de que estava mais
seca que uma pedra, voltou a casa e adormeceu.
Na manhã seguinte o imperador passou por ela e não a
reconheceu. Dabondi tinha-se transformado numa árvore. E
assim a rainha resolveu o que não tem solução. Ser mãe é um
verbo que não tem passado. Foi o que disse a rainha.
— O sangue na lâmina que cortou o cordão umbilical
pertence à mãe ou ao filho? — perguntou. E acrescenta,
decidida: — Pois é esse meu sangue que vou reencontrar
nesta viagem.
*
Não se visita um filho, afirma. Regressa-se a ele como se
estivesse sempre por nascer. Fecha os olhos, balança os
ombros e trauteia os versos de uma velha canção: «As mães
metem as mãos no fogo e lançam aos céus as cinzas ainda
ardentes. É o que fazem desde o princípio dos tempos. Assim
se criaram as estrelas. Acontecerá com essas luzes o que
sucedeu com o sol: regressarão. Todas regressarão. E farão
brilhar as mãos das mulheres.»
Interrompo a ladainha com pouca convicção: O seu filho
voltará para os seus braços. Não é o que diz a canção?
Olha-me longamente. Os dedos tricotam um vazio como se,
naquele momento, lesse os ossinhos divinatórios. Há algo
nesta mulher que me faz lembrar a minha falecida mãe.
— Tenho inveja de ti — confessa num tom desfalecido. —
Tenho pena de não saber falar a língua dos brancos.
— Não tenha pena, minha rainha — afirmo. — Assim, não
escuta as ofensas que nos são dirigidas. Não percebe
quantas vezes somos chamados de macacos.
— Os brancos também desconhecem os nomes feios que
lhes chamamos.
E repete, o rosto iluminado: Vou ver o meu filho, é só isso
que importa. Pede-me então que lhe ensine português. Será
nesse idioma que comunicará com o filho.
— João não se esqueceu do seu xizulu — asseguro.
— Não estás a compreender, minha filha. Quero falar com
o meu filho numa língua que nenhum dos meus parentes
possa entender.
*
Para se resguardar dos mosquitos, o capitão Mouzinho de
Albuquerque refugia-se na cabine do piloto. Apoia a mão
direita sobre o leme e assim permanece, como se a
humanidade o estivesse admirando. O comandante Andrea
resmunga entredentes: Ele que não ouse dar-me ordens.
Quem manda em mim é o mar. Mais ninguém.
Dabondi pega-me pela mão e conduz-me até Mouzinho.
Pede-me que a ajude a fazer-se entender. O capitão entreabre
a porta e dispõe-se a escutar. A rainha pede:
— Quando chegar a Portugal quero falar com o vosso
mais velho.
— O mais velho? — indaga Mouzinho.
— O mais velho dos brancos. Quero agradecer terem
recebido o meu filho. Esse rei de Portugal é o novo pai do
meu João. E sou esposa do vosso rei.
O capitão sorri, condescendente. Pede-nos que o deixemos
só. E volta a fechar a porta.
*
Nas margens do Limpopo acendem-se centenas de tímidas
fogueiras. A maior parte delas não pertence às aldeias
ribeirinhas. São fogos ateados por gente que acampou junto
ao rio apenas para testemunhar a deportação do imperador.
De vez em quando escuta-se uma imprecação: Vai-te embora,
abutre, e nunca mais regresses!
Dabondi retirou-se para junto das outras rainhas deixando-
me a sós com Álvaro Andrea. Com o seu casacão escuro o
comandante é um vulto quase indistinto. O lume das
fogueiras reflete-se nos prateados botões da farda.
— A tua rainha diz que fala com os rios — afirma o
português. — Tu que és tradutora, sabes o que dizem esses
fogos na margem do rio?
Não espera resposta. Olho-o da cabeça aos pés. Aquele
fardamento está deslocado no calor dos trópicos. Os botões
metálicos deixam as rainhas fascinadas. Ngungunyane não
dispõe de tantos brilhos, nenhum pedaço de sol lhe pende do
peito. Apenas eu sinto compaixão por este branco coberto de
suor que, não fosse a solenidade do uniforme, pareceria uma
criança perdida no mundo. O casaco encharcado quase lhe
chega aos pés, que, em contraste com o rigor militar, se
encontram indefesos. O português está descalço. As botas
foram para lavar, cobertas que estavam de escura e fedorenta
lama. As rainhas contemplam, divertidas, o desamparado
branco, como se, ao vê-lo descalço, o surpreendessem
inteiramente despido. O tio Mulungo comenta em voz alta: A
zebra tirou os cascos. E todos se riem. Os mais velhos
juravam que os europeus eram unguladas criaturas. Vendo os
portugueses sempre calçados imaginavam que os sapatos
faziam parte do seu corpo.
Limpando o suor que lhe escorre da testa, o português
adverte-me:
— Temos de falar, minha filha. Tenho uma missão a
cumprir que é bem maior do que pilotar uma lancha militar.
Capítulo 8
Um lenço branco
iluminando o passado
«O cruzar do oceano, na ida ou na volta, devia
ser para os olhos dos africanos como o transpor
de um rio.»
(Alberto da Costa e Silva, in
Um Rio Chamado Atlântico)
Os navios são como os búzios: neles se escuta a voz do
mar. O Neves Ferreira é um búzio gigante, uma concha
metálica tombada de costas. As chaminés são três bocas que
engolem as nuvens e depois as regurgitam, sujas e pesadas.
Este navio que nos espera no porto de Xai-Xai provoca tal
espanto entre os prisioneiros que o oceano se torna invisível.
Sentado sobre fardos de algodão, o rei de Gaza quer saber
quanto tempo demorará a viagem até Lisboa. Transmito-lhe o
que me disseram: até Lourenço Marques são dois dias.
Depois, são mais dois meses até chegar à capital portuguesa.
Ao traduzir para xizulu converto os meses em luas. Pensei
que Ngungunyane reagisse com tristeza. Sucede o oposto.
Um sorriso lhe ilumina o rosto: Duas luas?, pergunta,
espantado. Os portugueses percorreram tão longo caminho
apenas para lhe dar luta? E reergue os ombros, orgulhoso.
Por breves segundos volta a ser imperador.
*
Durante horas os cativos aguardam no cais pela ordem de
embarque. Viajarão no porão. Os portugueses começam por
movimentar as mercadorias. Seguir-se-á a outra carga, essa
que fala, chora e reza.
Grossas correntes amarram o navio Neves Ferreira ao
porto. Está atado pelo nariz como se faz aos bois. Partilha a
agrilhoada condição do imperador, cujos pulsos foram
temporariamente presos por uma corda de sisal.
O pasmo dos meus irmãos negros enche de vaidade o
comandante Andrea. De modo oposto se manifesta
Mouzinho. Quer achincalhar a Marinha de Guerra e os
marinheiros. Os barcos, diz ele, só são bonitos em terra. E
virados ao contrário.
Os marinheiros riem alto. Mouzinho vai mais longe no
apoucar da Marinha. É preciso revirar um barco, diz ele, para
entender a sua verdadeira natureza. O nome «quilha» é
partilhado por barcos e aves. Um navio é mais pássaro do
que peixe. É o que diz Mouzinho.
A rainha Muzamussi receia que o navio possa avançar terra
adentro. Implora aos gritos que não desamarrem o monstro.
Ngungunyane ordena que a mulher se cale. Dali em diante
nenhuma das esposas volta a falar sem que seja autorizada.
Dabondi sorri com desdém: o imperador reconhece, enfim, a
fragilidade do seu império e a precariedade do seu harém.
Com sangue tomou posse da terra. Com sémen se apropriou
das mulheres. Todo esse comando agora lhe escapa. É por
isso que grita com as esposas. A única autoridade que lhe
resta é ser um homem entre as mulheres.
*
No cais de Xai-Xai, o capitão Mouzinho de Albuquerque
vigia o embarque do seu precioso cavalo. Não é um simples
animal que ali vai, não é uma mera carga que é manuseada.
O cavalo compõe o retrato que o capitão faz de si mesmo. É
assim que se sonha, reedição do centauro, cavaleiro vitalício.
Felizmente, o garboso militar não percebe o comentário de
Zixaxa: Ainda um dia havemos de comer esse cavalo.
É a vez de Mouzinho sorrir sem entender porquê. Conserva
esse sorriso enquanto percorre a escada que conduz ao
interior do Neves Ferreira. No tombadilho recebe
cumprimentos do comandante, o tenente Jaime Leote do
Rego. O patrão deste navio é um homem bem distinto de
Álvaro Andrea e disso Mouzinho dá graças a Deus. Para ele
a troca de comandantes é um alívio. Para mim é um
pesadelo. Livre das suas funções, Álvaro Andrea fica mais
disponível para me procurar. Não é a sua companhia que me
desagrada. É a minha falta de coragem para lhe exigir o que
me deve: a carta de Germano.
*
O navio faz-se ao mar e, por um momento, parece-me que
quem se movimenta é o continente. Não será num barco que
viajaremos. Navegaremos como sempre se viaja: através de
lembranças e sonhos. Mas eu já não lembro nem sonho.
Tenho quinze anos. Vou para longe de mim, sem bagagem e
sem documentos. Mas levo comigo o meu filho, o princípio
da minha eternidade.
A meio da noite, Dabondi e eu somos chamadas ao
camarote do comandante Jaime Leote do Rego. À entrada,
Dabondi toma nas suas mãos os braços do militar. É raro
uma das nossas mulheres dar-se a esses avanços. A rainha,
porém, simpatizou com o branco de barba grisalha. A afeição
é recíproca: o tenente fita a rainha como se lhe estudasse o
rosto. Perfeito, é ela quem eu queria, confirma ele com
entusiasmo.
Ao fundo do camarote está uma tela suportada por um
cavalete. Sobre uma cadeira estão pousados dois pincéis e
uma paleta onde se combinam diferentes tons de azul. Quero
pintar o mar, confessa. Foi por isso que exigiu a presença de
Dabondi. No cais, diz ele, escutei esta mulher. Diz-lhe que
volte a cantar!
— Não sou eu que canto — argumenta Dabondi. Outros
usam a minha voz.
— Explica a essa mulher que não estou habituado a pedir.
A rainha sorri e responde: Pergunta a esse homem se
recebe ordens para sonhar.
Com a ponta dos dedos Dabondi afaga a tela com
delicadeza. Acredita que está perante um tear e que o
comandante é um tecelão. Com gestos redondos, como se
falasse com os braços, o português apresenta a obra por
começar: O mar não se vê: nele nos vemos nós. Depois
acrescenta: Eu vi o oceano quando escutei esta mulher a
cantar no cais.
Oferece um cálice de aguardente à rainha. Dabondi vaza o
cálice de um trago. Acena o copo vazio reclamando por uma
segunda dose. Se me escutou cantando, este branco não pode
ser um inimigo, diz ela. E acrescenta: A bebida é boa, vou
fazer-lhe a vontade. Depois a rainha solta a voz. O
comandante cerra as pálpebras e, lentamente, as águas do
mar inundam o seu camarote.
Com o braço direito soerguido, os passos afinados com a
canção da rainha, o comandante Jaime Leote do Rego avança
na minha direção e pergunta:
— Já alguma vez dançaste com um branco?
*
É manhã do dia quatro de janeiro de mil oitocentos e
noventa e seis e o Neves Ferreira lança âncora na baía do
Espírito Santo. À nossa frente exibe-se a mesma cidade que,
há exatamente um ano, Zixaxa teve a ousadia de assaltar. Os
brancos chamam-na de Lourenço Marques, nós a batizámos
de Xilunguíne. Lembro-me de como a italiana Bianca
Vanzini se queixava da pequenez daquele lugar. Mas para
nós, que nunca vimos uma cidade, este amontoado de ruas,
casas e luzes é um motivo de deslumbramento. É por isso
que lhe chamamos Xilunguíne, o lugar onde se vive e se fala
como os brancos.
Ingenuamente, acreditei estar próximo o momento do
desembarque. Mas logo entendi: todos os tripulantes são
retirados em barcaças exceto nós, os negros. Ancorado a
meio da baía, o navio é uma prisão. Os portugueses
necessitam de tempo: fazem-se na cidade os preparativos da
grande festa. Virão jornalistas, diplomatas e dignitários
estrangeiros. Juntar-se-ão os governantes, os comerciantes e
os chefes religiosos. Reunir-se-á, enfim, a população das
regiões vizinhas para ver o Leão de Gaza a desfilar derrotado
e humilhado, os pés lambendo a lama das ruas de Lourenço
Marques.
Álvaro Andrea recusa desembarcar. Argumenta que,
permanecendo a bordo, garantirá a segurança dos
prisioneiros. Todos sabemos que o português tem outras
razões. Aquela é a sua última oportunidade para avançar no
relatório contra Mouzinho. Naquele sonolento navio
encontram-se, à sua inteira mercê, as testemunhas que anseia
interrogar.
*
Na manhã seguinte recebemos visitas a bordo. Vestido à
civil, Mouzinho de Albuquerque chega acompanhado por
uma dezena de diplomatas e jornalistas. Com ele vem
também um negro magro e alto, envergando sapatos e roupas
europeias. Mouzinho dirige-se a mim e pergunta:
— Reconheces-me sem farda, rapariga? Venho vestido à
alentejana, de jaqueta, cinta e chapéu de aba larga.
Ordena que convoquem os presos e depois apresenta-nos o
negro que o acompanha:
— Este é Zeca Primoroso, o tradutor, o «língua» como nós
chamamos. Vem para ajudar nas entrevistas ao
Gungunhana. — E acrescenta, dirigindo-se a mim: — Estás
dispensada, rapariga.
Tiram-se fotografias do rei ladeado por duas rainhas.
Dabondi sorri, satisfeita por ser uma das escolhidas. Saciada
a imprensa, Mouzinho vira-se de lado e desafia o tradutor:
Pergunta ao Gungunhana se reconhece quem o prendeu em
Chaimite. Ergue-se pesadamente o Ngungunyane e aponta
para Mouzinho: Foi este!
— Estão a ver? — pergunta, ufano, o capitão. — Mesmo
disfarçado fui imediatamente reconhecido. Escrevam isso
para que se calem os incrédulos.
Enquanto decorrem as entrevistas Mouzinho chama-me à
parte para explicar o motivo de ter recorrido a outro tradutor.
Não se tratava de uma questão pessoal. É o mesmo problema
com todos os espiões, explica o capitão. Alguém, depois, os
deve espiar a eles. Pagos para trair um, acabam por trair
todos.
No meu caso, essa suspeição era ainda mais grave. Eu era
negra, era mulher, abandonara a minha família e as minhas
crenças. Mais grave ainda: escolhera um branco como
amante. Como podia inspirar confiança? Traíste os teus, mais
facilmente nos trairás a nós. Podes ser quase branca, mas há
algo que não muda: a família de um preto são todos os
pretos do mundo.
A comitiva despede-se. A mesma barcaça que os trouxe
leva-os de volta à cidade. Regressam todos, exceto Zeca
Primoroso.
*
O novo tradutor é um daqueles que designamos de
muzwalana, isto é, um negro que sabe ler e escrever. Assim
que os brancos se retiram, Primoroso pergunta-me:
— Acabaram de prender o missionário Roberto Machava.
E vários outros foram presos. Também és da igreja?
— Sou de outra igreja — respondo rispidamente.
— E qual é essa igreja?
— Não conheces. Não tem nome em português.
Os prisioneiros assistem estupefactos ao nosso diálogo. É a
primeira vez que testemunham dois negros comunicando em
português. Zixaxa sacode a cabeça e sorri. Um sorriso é, por
vezes, a melhor acusação.
*
Álvaro Andrea chama Zeca Primoroso à torre de comando.
Vemo-lo recebendo instruções e acenando a cabeça com um
misto de presunção e deferência. Depois o tradutor regressa
ao convés e desfila empertigado perante os espantados
prisioneiros. Para além da roupa europeia, usa sapatos
engraxados a rigor, cabelo repuxado ao longo de uma larga
risca que atravessa o crânio de uma ponta à outra. Em xizulu
vai enumerando as qualidades que, segundo ele, o tornam
distinto dos da sua raça:
— Dizem que em Moçambique há reis negros e guerreiros
vitoriosos. Nada dessas balelas contam, pois obedeço a um
rei distante, o rei D. Carlos. Além disso, há muito que uso
sapatos e peúgas, durmo numa cama e as refeições são-me
servidas numa mesa. Entendem?
O rebelde Zixaxa agita os braços numa excessiva vénia e
proclama em falsete:
— Si ya vuma!
É uma aprovação cínica, um irónico «amen». Zeca
Primoroso reage contrariado: que nunca mais acolhessem as
suas palavras com exclamações indígenas. Podiam concordar
com ele, aliás, deviam concordar, mas não esquecessem de
que estavam perante uma autoridade lusitana. E foi avisando
que o capitão Álvaro Andrea logo viria interrogar os presos.
Temos duas orelhas e uma boca, declarou Zeca. Lembrem-se,
meus conterrâneos: as orelhas são nossas, mas a boca não
nos pertence, acrescentou.
O capitão foi descendo até ao convés onde, em silêncio, se
perfilam os presos. Álvaro Andrea manda que me junte aos
prisioneiros. Já não és mais tradutora, declara ao passar por
mim
Ngungunyane é o primeiro a ser interrogado. Pretende o
português que o rei de Gaza confesse os maus tratos a que
fora sujeito. De pouco vale que a pergunta seja refeita em
xizulu. O rei permanece calado. Repetem-se as indagações
em variados formatos. E o rei sem abrir a boca. O português
passa de inquiridor a delator. É por culpa desse que ele
protegia com o seu silêncio que os seus conselheiros
suspeitavam da sua própria mãe. E prossegue Andrea: sabia
Ngungunyane onde estava a taça de prata que lhe oferecera a
rainha dos ingleses? Não adivinhava? Sabia ele quem, depois
da sua prisão, deu ordem para que matassem todo o seu
gado?
Embatucado se mantém o rei de Gaza. Álvaro Andrea
parece desistir. Debruça-se sobre Ngungunyane para lhe
soprar ao ouvido:
— O Mouzinho deve estar-te grato. Graças a ti ele se
tornou um herói, graças a ti recebeu elogios do rei D.
Carlos. Graças a ti negros e brancos o aplaudirão, aos
milhares, nas ruas de Lourenço Marques. Se não fosses tu,
esse capitão não passava de um ilustre desconhecido.
Zeca Primoroso esmera-se na tradução mas é
inesperadamente interrompido por vozes que chegam do mar.
Dezenas de embarcações cercam, no escuro, o nosso barco.
O português pede a Primoroso que lhe explique o que se
passa. De olhos fechados o intérprete recita de cor o
cantochão:
«É este o jovem, é o nosso jovem que eles querem matar.
É ele o glorioso, é o nosso motivo de glória.
Lutou contra os brancos, fugiu para Cossine.
Agora foi preso. E levam-no para longe…»
Primoroso pigarreia, atrapalhado:
— É esta a lengalenga que eles entoam na língua deles.
— É de Ngungunyane que falam? — indaga o comandante.
— Não, Excelência. Os homens cantam em louvor de
Zixaxa.
O comandante corre ao longo da balaustrada, tentando
discernir de onde procede aquela exaltação. A noite está
escura, não se vê um palmo à frente do nariz. Alvoroçado,
Andrea ordena que os sentinelas desfechem uns tiros mesmo
sem direção definida.
— Disparem! Disparem sobre as malditas canoas! —
comanda Andrea.
— Mas quais canoas? — perguntam os soldados.
— Atirem para qualquer lado, mantenham-nos afastados!
A manobra resulta, as canoas afastam-se e o silêncio volta
a cercar o navio. Ngungunyane é enclausurado na cabine do
piloto. À porta são colocados dois sentinelas, um preto e um
branco.
Naquela improvisada cela adormece, enroscado como um
pangolim, o vencido chefe dos vanguni. Lembro as palavras
do meu pai: todo o calabouço é pequeno; toda a prisão é
perpétua.
*
As fantasmagóricas canoas deixaram atemorizado o
comandante Andrea. Suspeita que queiram matar o rei negro.
Mas conjetura, com mais convicção, que o alvo seja ele
mesmo. E apressa-se a assumir o comando da situação. Seja
qual for a natureza da ameaça, é imperioso reforçar a
vigilância a bordo.
De emergência, eu e Zeca Primoroso somos enviados a
Lourenço Marques. A nossa missão é pedir apoio a um
sargento chamado Duarte Amaral que, além de
experimentado militar, é um fiel amigo do capitão. Devemos
procurá-lo nas casas de pecado. Não partimos sem que
Álvaro Andrea nos advirta: Mouzinho não pode saber desta
providência. Esse pedido de socorro haveria, por certo, de ser
motivo de chacota. Por essa razão Andrea nos escolheu a
nós, desconhecidos e civis, para cumprirmos aquela delicada
incumbência.
— Ide com cuidado — adverte-nos. — E trazei-me
convosco o sargento Amaral.
O olhar é alucinado, o suor escorre-lhe pelo rosto. Quase
não reconheço o homem tranquilo que venceu a fúria do
vento xidezdze.
*
Em poucos minutos desembarcamos junto a um forte que
Primoroso identifica como sendo a Fortaleza de Nossa
Senhora da Conceição. À pressa atravessamos uma ampla
praça cercada de vielas estreitas. É esta a rua, é esta a Rua
dos Mercadores! — proclama Primoroso. — Vamos com
cuidado! À noite a cidade é muito perigosa, até Deus fica à
rasca, adverte. Não se cala enquanto caminha: Trago a
minha guia de marcha, mas tu, sendo uma preta indígena, já
não podes circular a esta hora. Vaidoso, agita o documento
que o autoriza a percorrer territórios que, depois do pôr-do-
sol, se tornam exclusivos dos europeus. Teremos que evitar
os agentes policiais que asseguram o cumprimento do
recolher obrigatório. Zeca Primoroso justifica essas rusgas:
— Os portugueses, coitados, não o fazem por mal. Mas
não fica bem os pretos andarem por aí quando já está
escuro. Um branco pode-se assustar pois só dá conta da
presença de um negro quando já esbarrou com ele.
*
Vamos seguindo ao longo da Rua dos Mercadores. Posso
falar português como poucos portugueses, posso ter lido
muitos livros, mas nunca estive numa cidade, nunca andei
sob a luz de candeeiros. Com orgulho, Zeca Primoroso vai
traduzindo a cidade que os meus olhos não sabem ler. À
porta dos bares exibem-se mulheres meio despidas. São às
centenas os boémios que por ali passam, quase todos
bêbados, trocando piadas e impropérios nos mais
indecifráveis idiomas. A descoberta do ouro nas terras
vizinhas inundou Lourenço Marques de aventureiros. Vieram
ingleses, bóeres, sírios, libaneses, italianos, gregos e gente de
nações tão distantes que nenhum mapa lhes faz justiça.
Enquanto disserta sobre a cidade, Primoroso vai
inspecionando a fachada dos estabelecimentos. Vai
espreitando do outro lado da rua, no passeio menos
iluminado. Depois eleva-me nos braços como se eu fosse
uma criança. Daquela posição vejo as salas cheias de fumo.
As mulheres estão, ao mesmo tempo, quase nuas e
demasiadamente vestidas. Por pouco, confesso em voz alta,
não era uma dessas mulheres.
— Que história é essa? — pergunta Zeca, voltando a
pousar-me no chão.
Falo-lhe da intenção de Bianca Vanzini de me contratar
para uma das suas casas noturnas. Para o Bohemian Girl?,
espanta-se Zeca. Encolho os ombros. Não sei, respondo. Sei
que seria chamada de Black Lilly.
— É um lindíssimo nome — declara Zeca. —Devias usá-lo
— recomenda.
*
É quase meia-noite quando Zeca Primoroso se detém
frente a um estabelecimento que ostenta o letreiro: «La
Folia». É aqui, murmura, excitado. Aborda um agente de
segurança à porta do bordel. E logo ali se cria um enorme
alvoroço. Impedem Zeca Primoroso de entrar, proíbem-no de
se explicar. Seu preto de merda, gritam em coro enquanto
agridem o indefeso tradutor. Em desespero, procuro por entre
a multidão: onde andará o tal sargento Amaral?
Vou em socorro de Zeca, que jaz tombado no passeio.
Arrasto-o para o lado oposto da estrada. Limpo-lhe o sangue
que escorre pelo rosto enquanto ele se ocupa em acertar o
penteado. Na briga soltou-se-lhe o tacão de um sapato. Pede-
me que o procure. Um sapato é mais importante do que
qualquer guia de marcha. É essa a sua prioridade: recuperar a
compostura. Enquanto de gatas vou farejando o pavimento, o
tradutor desculpa os seus agressores: eu que não interpretasse
mal aquela violência, nas suas palavras um «acidente» sem
qualquer significado. Confundiram-me, certamente. Em todo
o lado sou tratado com o máximo respeito.
— Não fale mais, Zeca — ordeno enquanto lhe limpo o
ensanguentado rosto. — Se não ficar quieto essa ferida
nunca mais fecha.
E volta ajeitar o penteado, o dedo sujo de sangue acertando
o risco que lhe divide a espessa cabeleira. Passo-lhe um pano
a enxugar a mão, aquela mesma mão que tantas cartas de
recomendação forjou para safar os seus irmãos. É disso que
me fala enquanto cuido dele. Mil vezes vestiu a pele de um
branco assinando salvo-condutos com um nome falso, um
nome bem português. A sua escrita era tão perfeita que
ninguém podia imaginar que aqueles documentos tivessem
sido redigidos por um negro.
— Está ver, Imani? — concluiu Zeca. — Dizem que traí os
meus irmãos negros. Ninguém os ajudou tanto quanto eu…
Do outro lado da rua alguém chama pelo meu nome. É
Bianca Vanzini. Abraçamo-nos com tal espalhafato que os
transeuntes se entreolham desconfiados. Não dou conta de
que Zeca se esgueira entre os mirones, em busca do sargento
Amaral.
— Sabia que estavas em Lourenço Marques — revela
Bianca. — Germano escreveu-me. Já te enviou duas cartas.
Não as recebeste? Andrea não tas entregou?
Sacudo a cabeça. Andrea?, pergunto, a voz apagada, a
cabeça vazia. Alguém me puxa pelo braço. É Zeca Primoroso
que me apressa a regressar ao nosso navio. Foi assim que se
expressou: o «nosso» navio.
— Vá você, Zeca. Aquele navio não é meu.
— Venha — insiste o homem. — O sargento Amaral já
aqui está, não o façamos esperar.
Crispo os dedos no vestido de Bianca, encosto-me ao seu
peito e suplico:
— Deixe-me ficar consigo, Bianca. Esconda-me entre as
suas mulheres. Eu espero aqui por Germano.
Não era uma boa ideia, argumentou Bianca. Primeiro
porque me viriam buscar. Segundo porque ninguém sabia
quando Germano passaria por Lourenço Marques. Por fim, e
mais importante que os anteriores motivos: se eu perdesse
este barco nunca mais viajaria para Lisboa. É em Portugal,
diz ela, que devo esperar pelo meu homem.
— Volta para o navio. Zeca tem razão: este é o teu navio, o
teu único navio.
Solto-me de Bianca, deixo que me arrastem em direção ao
Neves Ferreira. A italiana vai ficando distante, a luz do
candeeiro ilumina os seus cabelos quando subitamente a vejo
esbracejar. Percebo que grita mas a estridente música dos
bordéis não deixa perceber o que me quer dizer. E parece ser
um envelope o que agita em suas mãos. Ou talvez seja um
lenço branco com que se despede.
Capítulo 11
Pegadas no orvalho
«… Os teus antepassados foram grandes
senhores que comandaram os exércitos contra o
invasor zulu, há dezenas e dezenas de anos. Mas
foram obrigados a submeter-se e a pagar
imposto aos vencedores zulus que ocuparam o
território. […] O nosso opressor zulu, o
Gungunhana, que quis expulsar os brancos, foi
preso por eles e mandado para o Norte. Nunca
mais foi visto…»
(Palavras da mãe de Eduardo Mondlane, primeiro
presidente da Frente de Libertação de Moçambique, quando
se lhe dirigia em criança. In Khambane, Chitlango e André-
Daniel, CLERC, 1990, Chitlango: filho de chefe, Maputo,
Cadernos Tempo.
Uma canoa leva-nos, a mim e a Zeca Primoroso, de volta
ao Neves Ferreira. É o próprio sargento Amaral que assume
o controlo dos remos. O silêncio parece tornar o percurso
mais breve. A pequena piroga embate no bojo do Neves
Ferreira produzindo um som familiar, igual ao da velha lata
de água descendo ao poço da minha infância. Revejo-me, na
minha aldeia, recebendo o peso do céu sobre os ombros.
Quantas nuvens as mulheres já carregaram à cabeça?
Subo para o convés por uma escada de corda. Assalta-me a
mesma tontura que me atormentava quando caçava morcegos
no topo das árvores. Estou escalando o meu passado, penso.
Se me faltarem os pés tombarei não no mar mas no chão da
minha meninice. Meu pai continua a estender os braços para
me amparar. Os seus braços cresceram e dão a volta ao
mundo.
Despeço-me de Primoroso, vou avançando no escuro até
tropeçar num vulto. É Dabondi. Está sentada no meio do
convés contemplando os seus próprios pés. Veja!, exclama
entusiasmada. Veja aqui no chão uma pegada! Debruço-me,
incrédula. O pavimento é feito de ferro. Dabondi insiste
apontando o que só ela é capaz de vislumbrar. O meu filho
Mangueze viajou neste mesmo barco. A rainha lê o chão
como faz um caçador: Por ali passou o meu menino, além se
sentou e chorou. Estava triste e cheio de fome quando se
deitou.
Ajudo-a a erguer-se. Imagina no meu gesto não um apoio
mas uma reprimenda. Explica-se. Naquele momento deixou
de ser vidente. É apenas uma mãe com saudades do filho. E
reconstitui o cenário: um menino negro entrando sozinho
num navio, sulcando o oceano sagrado e viajando na
companhia exclusiva de gente branca. Naquele convés
restam intactas as pegadas do medo.
*
Para a rainha não existem dúvidas: aquele navio, todo de
ferro, foi fabricado a partir de sobras de canhões e
espingardas. Por fora cheira a maresia, por dentro cheira a
pólvora. Todas as outras mulheres da corte perderam a conta
aos filhos que pariram. Apenas ela teve um único menino.
Tão franzino tão diminuto, que aconchego encontraria num
lugar feito de restos de canhões?
Olho para Dabondi e penso: a jovem rainha está perdida.
Se a vida fosse justa bastaria ser mulher para se ser rainha.
Esta rainha, porém, é a mais triste e carente das criaturas.
Para se sentir viva ela necessita de que o marido a deseje. Por
esta razão as mulheres da corte, todas elas, precisam de ser
belas. Dabondi é formosa mas sabe que a beleza, no
desamparo em que vive, dura pouco. Por isso imita as
sombras: todos os dias desaparece. Uma miragem não
envelhece. E é assim que gostaria que o marido, o imperador,
a surpreendesse: uma miragem viajando sobre o mar.
*
O rei quer ver-te, diz Dabondi. A mim?, pergunto. Não há
dia em que ele não te veja nos sonhos, responde a rainha.
Dabondi conduz-me ao quarto do comandante. É lá que se
encontra Ngungunyane. Tinha acabado de ser interrogado. O
interrogatório correra bem. Só isso explica que Álvaro
Andrea tenha deixado que o rei de Gaza tome conta do seu
compartimento. Pede Ngungunyane que Dabondi se retire.
Está preocupado, o soberano dos vanguni: o seu irmão, o rei
D. Carlos não respondeu aos seus pedidos: Zixaxa continua a
partilhar o mesmo espaço, dormindo e conspirando contra ele
no escuro. Não entregaram a minha carta a D. Carlos. Está
convencido de que alguém o traiu, desviando a mensagem
para um outro destinatário. Não houve tempo para que a
carta chegasse a Lisboa, digo. Falo em vão. Ngungunyane
apenas a si mesmo se escuta.
— Quer que escreva uma nova carta? — pergunto.
Sorrindo, o rei de Gaza acena com um papel e declara: Já
vais tarde, minha filha. Andrea acabou de me ajudar. Contei-
lhe segredos e, em troca, ele redigiu esta carta. Quem serviu
de tradutor foi Godido. Sabe menos português, diz o rei, mas
conhece melhor o que é a lealdade.
Se escolheu outro escrevente por que está aqui comigo? —
indago com inesperada fúria.
Surpreende-me o meu despeito por terem escolhido um
outro escriba. A escrita, percebo então, inverte as
hierarquias: quem dita uma carta tem menos poderes do que
quem a escreve.
O rei encosta-se a mim. Esfrega-se voluptuoso. Mantenho-
me imóvel à espera que desista. Pede-me que lhe acaricie os
joelhos. Estranha que não lhe obedeça de imediato.
— Os joelhos — repete o rei. — Vou explicar-te por que
um homem precisa de bons joelhos.
Antes de partir para a guerra um pai de família ajoelha-se
frente à sua mulher e pede que ela pronuncie o nome dos
seus amantes. O guerreiro deve permanecer de joelhos até
obter uma confissão de deslealdade. Se, por acaso, um
soldado morrer em combate fica provado que a esposa
mentiu.
— Há algo de errado nessa história, meu rei. Nenhum
homem se ajoelha perante uma mulher.
Ngungunyane ri-se, divertido com a minha impertinência.
Não entendeste nada, diz. Não é às esposas que os chefes de
família dirigem o pedido. Seria tempo perdido, as mulheres
mentem sempre. Os homens, diz Ngungunyane, ajoelham-se
para que as mulheres pensem que se apresentam submissos.
Vou-me afastando lentamente enquanto o monarca
continua divagando. Quando dá conta estou no canto oposto
do quarto.
— Não vou perder mais tempo — diz Ngungunyane.
Quero apenas que me leias uma carta que ditei a Andrea. —
Quero ficar sem dúvidas sobre o que ele escreveu.
Demoro a recolher a folha que me quer entregar. Dou-me
importâncias, como diria a minha mãe. E percebo, logo nas
primeiras linhas, que Álvaro Andrea foi longe no
embelezamento do texto. Ambos aportuguesamos demasiado
as palavras do rei dos vanguni. Vou traduzindo lentamente
para que Ngungunyane me acompanhe:
«Meu irmão,
Rei de Portugal
Venho falar-lhe de traição. Não é este o assunto que mais
ocupa os reis, em todo o mundo? Foi sempre assim: o sangue
da família real é o mesmo que corre nas veias dos seus
assassinos.
Desde o início desta viagem que trago um traidor amarrado
aos pés. Quem deu esse nó não foi uma mão branca. Por esta
razão lhe agradeço ter autorizado o meu leal ajudante de
campo, o jovem Ngó, a viajar comigo. Ambos sabemos que,
sob a capa de cozinheiro, se esconde uma outra função: a de
provador do rei. E ambos temos que reconhecer: abusamos
do uso desta silenciosa arma. Envenenámos tantos poços que
acabámos matando a nossa própria gente. Guardemos esse
segredo. Essa é outra vantagem do veneno: a morte acontece
longe, num tempo que não pertence a ninguém.
Uma vez mais lhe peço, agora que vai começar a grande
viagem: separe Zixaxa de mim. Esse maldito mfumo que
fique longe, onde não veja o meu sono nem escute os meus
sonhos. Os meus companheiros de cela já me viram dormir,
comer, urinar, defecar. Que autoridade posso ter diante deles?
Por favor, meu irmão D. Carlos, afaste de mim esse traidor.
Elimine este homem, ninguém notará, ninguém reclamará.
Fica, como o veneno que usamos em excesso, um segredo
entre nós.
O rei de Gaza
Lourenço Marques, 4 de janeiro de 1896»
*
Terminada a leitura, Ngungunyane espreita o meu rosto,
quer ler em mim o que não é capaz de decifrar no papel.
Acha que lhe menti, Nkosi?, pergunto. Juro-lhe, não inventei
uma linha, reafirmo com convicção.
— Eu sei — diz o rei. — Sei por que ficaste tão igual às
brancas.
Tudo o que se conta sobre mim, Imani Nsambe, é mentira.
As pessoas, garante o rei, sabem do meu passado. E não é
verdade, diz Ngungunyane, que eu tenha passado a minha
infância numa missão católica, longe dos meus pais e da
minha aldeia. Tornei-me assim, tão igual aos brancos, por
obra de um feitiço.
Dabondi percebeu quem tu realmente és — prossegue
Ngungunyane. — Não há como uma feiticeira para
reconhecer uma outra feiticeira.
E volta a aproximar-se, untuoso. Sinto os olhos predadores
devorando-me o corpo. És uma feiticeira, Imani Nsambe, é
isso que tu és, afirma Ngungunyane.
— E tu sabes o que fazemos a uma feiticeira: ou a
matamos ou…
Encosta-se a mim, roça a mão no meu pescoço, não
entendo se me acaricia ou se me ameaça. Os dedos gordos
vão descendo dos ombros até à cintura. Depois resvalam até
aos joelhos. E ali se demoram. Deixa tombar a tua capulana,
ordena ele.
Escuto dentro de mim a voz de uma outra mulher. Essa
mulher diz que devo fingir que obedeço. Este rei que sempre
odiei é agora um aliado. Será na sua companhia que viajarei
para Lisboa onde reencontrarei o homem que amo. Faço que
desamarro a capulana e falo-lhe ao ouvido:
— A sua mãe, a rainha Impebekezane, disse-me que não é
dos homens rivais que um marido deve temer. Um homem
rival pode roubar-nos a esposa. Mas o álcool rouba o
homem que está dentro do homem… percebe o que eu digo,
meu rei?
Escuta as minhas palavras e desfalecem-lhe subitamente as
mãos. Com fúria contida bate com os pés no chão. Empurra-
me, ao levantar-se.
— Quem és tu — grita — para falar da minha mãe? Não
passas de uma mutxopi. A tua gente é dominada pelos
brancos.
E passa à ameaça: iria escrever ao rei de Portugal a pedir
que me mandasse de volta para Moçambique. E que
arranjassem um novo tradutor. Aliás, os portugueses já
mostraram preferir Zeca Primoroso. Porque deve ser um
homem a prestar estes serviços.
— O teu amigo comandante Andrea foi-se embora. Nesta
altura já deve estar em terra. Deixou-te esta carta — diz
Ngungunyane, entregando-me um sobrescrito.
Capítulo 13
Desfiles e delírios
Ao atravessar uma floresta um homem foi
atacado por ladrões. Bateram-lhe, despiram-no,
arrancaram-lhe os olhos e amarraram-no a uma
árvore. A meio da noite, os olhos do infeliz
começaram a subir-lhe pelas pernas. Queriam
regressar ao rosto. O homem sentiu que os olhos
lhe trepavam pelo corpo e pediu-lhes que o
deixassem tranquilo. Por favor não voltem,
implorou. Não me quero ver mais, não quero ver
o mundo nunca mais.
No final desta súplica escutou o rosnar de
animais aproximando-se. Em segundos foi
devorado. E nem ossos lhe sobraram. Umas
cordas abraçando o tronco da árvore, foi tudo o
que restou. Não tendo corpo onde morar, os
olhos ficaram errando pelos bosques. É com
esses olhos que os viajantes da floresta veem os
seus próprios sonhos.
(Relatos de Dabondi)
Há muito que me esqueci da minha raça, há muito que me
distanciei dos costumes do meu povo. Continuo, porém, a
sentar-me como uma mulher negra: apoio-me sobre as pernas
encolhidas lado a lado, um joelho em cima do outro. O
imperador tem os olhos fixos em mim, avalia como sou fiel a
antigos temores, vigia-me as mãos que se conservam
respeitosamente cruzadas.
É manhã. Há poucas horas ainda estávamos no barco.
Quando os detidos entraram na cidade respiraram de alívio.
E as rainhas até sorriram. Mas foi breve a alegria. Apenas
transitavam de presídio. E agora, nas traseiras da prisão de
Lourenço Marques, os prisioneiros são divididos em dois
grupos. Um militar angolano empurra-os aos berros:
— Landins para um lado, vátuas para o outro!
— Não existem aqui essas pessoas — murmura Zixaxa
entredentes.
Na sombra de uma mangueira encontram-se Ngungunyane
e os seus familiares. Sob uma outra árvore sentam-se
Nwamatibjane Zixaxa e as suas três esposas.
Zixaxa ironiza: em vez de se preocupar em recuperar a
coroa real, Ngungunyane devia pedir às mulheres que o
vestissem com o fardamento dos brancos. É isso que diz
Zixaxa. Ou será, pergunta ele, que o soberano de Gaza já
deixou de ser sargento do exército português?
Quer humilhar o rei, quer despromover as rainhas. O que
Zixaxa desconhece é que ele mesmo, o emblemático e
orgulhoso rebelde, tinha sido naquele mesmo dia incorporado
no exército português. Todos aqueles prisioneiros são, desde
hoje, membros de um exército contra o qual sempre
combateram. Em rigor, todos eles deveriam desfilar de botas
e uniforme na parada militar que se avizinha. Em vez disso,
marcharão descalços e quase despidos. A raça será a sua
farda, a única que os colonos reconhecem.
Aproximo-me de Ngungunyane. Leva tempo para que um
rei note a presença de quem chega. Mais tempo leva se o
visitante for uma mulher. Estou avisada desses caprichos e,
por isso, não me dói a espera. Finalmente, com um singelo
meneio de cabeça Ngungunyane autoriza-me a tomar a
palavra.
— Mandaram-me que lhe explicasse o modo como vai
decorrer a cerimónia.
— Vão levar-me amarrado? — indaga o rei.
Devia ser eu a fazer perguntas e a arrancar-lhe segredos.
Por isso me mandaram: para garantir que nenhuma
conspiração mancharia a festa. Decididamente, não tenho
competência para vigiar os outros. Rosto franzido, o
imperador vasculha o horizonte. Procura currais, manadas de
bois. E não se depara com nenhum bicho de chifre. Que raio
de lugar era aquele em que só se viam pessoas?
Ocupadas em entrançar a coroa na cabeleira do monarca,
as sete esposas não partilham das inquietações do esposo.
Poderá Ngungunyane desfilar amarrado, mas jamais
desprovido do seu chidlodlo. Nenhum cabeleireiro deste
mundo compete com os dotes destas mulheres. Os fios que
abraçam a coroa são feitos de raríssimos materiais: finos
tendões retirados do lombo dos bois. Várias são as cabeças
que é preciso sacrificar para obter uma dezena destas
nervuras que são entrelaçadas, uma por uma, com os cabelos
do imperador. Não há nobre nguni que não use uma coroa de
cera. Mas nenhuma delas é entrançada com estes delicados
cordões.
Dabondi sai da roda e oferece-me uma cabaça com ukanyu.
Recuso, primeiro. Conheço a minha reação àquela que dizem
ser a mais afrodisíaca das bebidas. Mas acabo cedendo.
— Mandaram vir os ingleses? — indaga o rei.
A pergunta era previsível: o principal destinatário daquela
cerimónia são os ingleses, esses que cobiçam a colónia de
Moçambique e que, conforme se diz em Lisboa, sempre
estiveram por detrás do rei de Gaza.
Sabes que dia é hoje? — interroga-se Ngungunyane. Sem
aguardar resposta vai perorando. — Celebra-se hoje o
umnkosi nkwayo, a festa dos primeiros frutos.
Esta festa não pertence aos portugueses. É dele, fazem-na
em sua homenagem. Os brancos apenas a autorizaram. Não a
podiam proibir. Os portugueses pagaram as despesas, mas a
festa é contra eles. Assim pensa o deposto rei de Gaza. E
ordena, de braço elevado:
—Vai dizer o seguinte aos teus patrões: os portugueses
venceram os meus soldados mas não desarmaram os nossos
deuses.
Penso: o rei está embriagado. As mãos tremem-lhe quando
se serve de uma nova rodada. Aproveita, minha filha, incita-
me ele. Esta será a última vez que nos deliciaremos com as
nossas bebidas.
Está empolgado, Ngungunyane. O penteado deixado a
meio confere-lhe um ar ridículo, com um eriçado tufo de
cabelos hasteado no alto do crânio.
Deambula o desgrenhado imperador e vai imaginando em
voz alta como seria a cerimónia festiva se estivéssemos na
sua corte, em Mandlhakazi. Seria ele a escolher os bois a
serem sacrificados. Escolheria fêmeas como manda a
tradição. Teriam que as cegar antes de lhes cortar o pescoço.
Não podem ver a morte porque se lhes endurece a carne. É
assim que me pede, em segredo, que procedam com ele,
quando estiverem para o matar: que lhe arranquem os olhos.
A cegueira, diz Ngungunyane, é uma prenda em tempo de
horrores.
Não me surpreende o enlevo com que as esposas o
escutam. Espanta-me, sim, quanto o destronado rei está a par
dos preparativos do desfile. Sabe, por exemplo, que o seu
adversário de eleição, o guerreiro Xiperenyane, se encontra,
naquele preciso momento, a varrer as ruas da cidade.
— Esse grande herói da tua gente, esse tal Xiperenyane,
aceitou aliar-se com os portugueses — comenta o rei. Agora
é um escravo dos brancos. Puseram-no a trabalhar para a
minha festa. É um escravo meu. Esse é o destino dos que
ousam enfrentar-me.
Podem manter o imperador amarrado, longe do seu
exército, afastado da sua corte. A verdade é que ele ainda
detém uma arma mais poderosa que a pólvora: as redes de
notícias e os boatos. Quem lhe falou do chefe dos vatxopi
não faltou à verdade. Eu mesmo acabara de me cruzar com
Xiperenyane. Frente à casa do Governador lá estava ele de
vassoura e balde nas mãos. Aquele que fora o guia do meu
povo, aquele que mais ajudara os portugueses a derrotar o
Ngungunyane, era agora um serviçal anónimo. Quando o
saudei, surpresa e magoada, não me pareceu vexado:
— Ajudo a festejar a prisão do meu maior inimigo. Não é
uma alegria para qualquer combatente?
Realizava-se, afinal, a profecia de Bibliana: Xiperenyane
ficara cego com o falso respeito que antes lhe dedicavam os
portugueses. Ali estava, como ela bem antecipara, o retrato
de todos nós, negros pobres, varrendo o mundo para a festa
dos outros.
*
Nunca pensei que houvesse tantos brancos no mundo. Nem
pretos, para dizer a verdade. Mas agora vejo-os, uns e outros,
a aplaudir freneticamente as tropas portuguesas que desfilam
na única avenida da cidade. Soldados de todas as raças fazem
continência perante uma tribuna repleta de individualidades
coloniais. No centro do palanque encontra-se o governador
interino, Correia Lança, rodeado por diplomatas de várias
nações. Os lugares de honra foram reservados para os
comandantes dos cruzadores alemão e inglês estacionados no
porto. Em redor do estrado aglomeram-se jornalistas
portugueses e ingleses. Naquela tribuna estão, enfim, todos
menos quem mais direito tem de ali estar: o capitão
Mouzinho de Albuquerque. Aquela ausência enerva o
governador que, entredentes, vai repetindo a ordem:
— Chamem Mouzinho! Chamem-no, rápido. Todos o
querem aclamar.
Um diligente emissário sai à procura do herói. Sei onde o
irão encontrar: sentado junto ao leito de morte do major
Caldas Xavier. Mouzinho confessou-me no dia anterior:
aquele era o pior momento para se festejar. Vítima de doença
tropical, agonizava o grande obreiro da ofensiva militar
portuguesa em Moçambique. E passou pela cabeça de
Mouzinho que a vida era feita de desencontros. Durante
meses Caldas Xavier tinha sido administrador da Companhia
de Ópio da Zambézia. Um campo de papoilas a perder de
vista embalou, durante meses, o sono do major português.
Esse mar de flores vermelhas desvanece agora sob as suas
pálpebras.
Para os brancos, Caldas Xavier era vencido por uma
doença. Para nós, os negros, o homem era vítima de um
serviço encomendado. Na nossa terra não se morre de um
«quê». Morre-se de um «quem». A morte não tem causa.
Apenas culpado.
*
Mouzinho de Albuquerque finalmente comparece em
público e, sem saudar os dignitários, atravessa a tribuna para
se dirigir à multidão. Numa fração de segundo, os seus olhos
cruzam-se com os meus. Saúdo-o, baixando o rosto.
Agradeço assim o lugar que me reservou bem junto à tribuna.
Corpo hirto no limiar do estrado, a voz trémula e enredada
no peito, o capitão Mouzinho faz-se ouvir:
— Não mereço esta manifestação — começa por dizer. A
voz lhe vai crescendo. — Não se homenageia um soldado
quando um outro está agonizando. — E anuncia, comovido.
— Meus senhores, Caldas Xavier, o mais valente dos
portugueses, está morrendo.
Faz uma pausa, limpa discretamente o suor no rosto.
Suspira fundo e balbucia:
— Invejo-lhe a sorte, porque morre pela pátria.
Escuta-se então a multidão em clamor: Ainda somos
portugueses! Observo o rosto congestionado dos que gritam,
possessos, de tal modo afogueados que parecem ter mudado
de raça. Está demasiado calor para tão exaltado patriotismo.
E então percebo: o que ali se celebra não é apenas uma
vitória militar. O que o capitão trouxe foi um miraculoso
remédio para a acabrunhada existência daquela gente.
De repente, não sei se por causa do calor ou da bebida,
uma tontura quase me atira ao chão. Não tenho em quem me
amparar. Estou rodeada de pessoas intocáveis. Cerro os
olhos. As vertigens não param. Devia ter recusado beber
tanto ukanyu. É tarde para voltar atrás.
*
Terminados os discursos, permitem que os africanos se
manifestem desde que se mantenham no passeio oposto.
Estou amparada numa das traves do palanque, as tonturas
agravaram-se e o mundo ficou nublado e longínquo.
Escutam-se tambores, dançam as mulheres enlouquecidas,
entoam-se canções nos mais variados idiomas. A algazarra
dos negros torna-se tão ensurdecedora que os prisioneiros,
mais do que os brancos, se encolhem atemorizados.
Permanecem prostrados mesmo depois de Ngungunyane se
levantar em bicos de pés e desatar aos berros. O rei está
possuído por um exaltado espírito. Ninguém entre os brancos
percebe uma palavra do que ele diz. Anuncia o alucinado rei:
naquela avenida não está a decorrer um desfile militar mas a
festa dos primeiros frutos. Este é o Nkosi Nkwayo, proclama,
eufórico.
Apontando na minha direção, o rei de Gaza pede que
explique aos brancos as razões da sua exaltação. Os negros
prestam-lhe homenagem como manda a tradição: insultam-
no no dia em que nada é sagrado. Esses nomes feios,
intraduzíveis, apenas confirmam a sua divina autoridade.
O som dos tambores faz-me dançar e o chão balança com a
embriaguez do mar. Num ápice, estou aos pulos no meio da
avenida. O coração é agora um tambor e o meu corpo já não
me pertence. Olho em redor e tudo é nevoeiro. Não consigo
destrinçar os prisioneiros dos milhares de negros que
assistem ao desfile. Estão todos misturados, os que choram e
os que festejam. E dançam juntos os tiranos e os escravos. Os
que antes se guerreavam estão abraçados na cidade dos
brancos. Na mão direita trazem a azagaia dos zulus. Na
esquerda exibem o machado de meia lua dos vandau. Dos
ombros pendem os arcos com que nós, os vatxopi, resistimos
à ocupação dos vanguni. E todos acenam com as mesmas
armas com que foram mortos como se fossem vitoriosas
bandeiras. Unidos pelo fracasso, os vencidos tomam posse da
cidade. África conquistou a fortaleza dos europeus.
Xilunguíne engoliu Lourenço Marques.
Aterrorizadas, as autoridades coloniais retiram-se em
debandada, protegendo os chapéus como se tivesse desabado
uma tempestade. As mulheres brancas tiram os sapatos para
acompanhar a correria dos maridos e todos buscam refúgio
no palácio do governador.
Estou colada ao rebordo do palanque quando Xiperenyane
passa por mim dançando. Atrás do guerreiro seguem
Bibliana — que caminha rezando — e Chikazi, a minha
falecida mãe, que arrasta a corda com que se enforcou. As
duas mulheres atravessam a avenida e aproximam-se de
mim. Abraçam-me. A profetisa Bibliana sussurra-me ao
ouvido: Estes que dançam são os guerreiros que tombaram
em Marracuene, em Magul e Coolela. Estão todos juntos
agora. Este é o exército dos mortos, aqueles que não serão
nunca desarmados.
Retenho a mão da minha mãe sobre a minha barriga
enquanto suplico em prantos:
— Mãe, ajude-me. Leve-me para nossa casa.
— Não tens regresso, minha filha. Quando terminar a
festa serás perseguida pelos negros como traidora. E serás
repudiada pelos brancos por causa da incurável deficiência
que trazes na pele. Esse é o destino que escolheste, Imani.
Dançando, as duas mulheres desaparecem entre a massa de
gente. Desvairada, subo ao palco, aos brados:
— Salvem-me, por amor de Deus. Salvem-me!
Aquele lancinante apelo é mais que um grito. É uma alma
que expulso com a violência de um parto. De súbito, todos se
calam e aquele imenso alarido se recolhe como um caracol
na concha. Sacudo a cabeça como se me limpasse por dentro.
Regresso, enfim, a mim mesma.
À minha frente estão sentados os dignitários brancos que
me fitam atónitos e de olhos esbugalhados. Em redor, a
multidão aguarda, suspensa, o que se vai seguir. Tal se diz na
minha terra, deu-se um nó no silêncio. Devo estar de tal
modo irreconhecível que o próprio Mouzinho se mantém
impávido e distante.
— Quem é esta preta? — pergunta o governador. E ordena
aos polícias que me prendam. É então que Bianca Vanzini
irrompe pela tribuna. A italiana inclina-se numa apressada
vénia e declara: Excelências, esta moça está doente, vou
levá-la comigo.
Sem dizer palavra, Mouzinho ergue os braços para os
deixar tombar num gesto de complacência. Sou conduzida
pela italiana por entre a massa dos curiosos que abrem alas
fugindo de uma doença contagiosa. Encaminha-me Bianca
pelas ruas desertas da cidade, apressada em se distanciar dos
festejos. A meio do caminho a italiana suspende a marcha e
pousa as mãos sobre os meus ombros. Parece exausta. A voz
roça o choro quando me pergunta:
— O que se passa contigo, minha filha?
*
Não há vivalma no bordel de Bianca. Passeio pelos
corredores, percorro os quartos forrados a papel cor de rosa.
A italiana permite-me que experimente um vestido de seda
vermelha. Enfeita-me as mãos com longas luvas negras.
Elogia-me a figura, lamentando que não tenha aceite o
convite para ser uma das suas damas noturnas. Aceno com a
mão enluvada:
— Estou grávida, não tarda que o meu corpo seja apenas
uma barriga.
Retira de uma gaveta umas folhas amarfanhadas. São as
cartas de Germano. A italiana faz tenção em clarificar: Estas
são as cópias que Germano fez com o seu próprio pulso.
Não tenho mãos para segurar as folhas que ela me entrega,
de tal modo o coração me sacode o corpo. Quis entregar-tas
ontem à noite, diz a italiana, mas arrastaram-te pela rua e
levaram-te para um barco. Algo goteja sobre os meus
sapatos. Os papéis estão encharcados. Pendem-me das mãos
com o peso de uma coisa morta.
— Por que é que as guarda todas molhadas? — pergunto.
— Como quer que as leia, se escorrem água?
O olhar angustiado de Bianca é de quem não me
reconhece. Não há, garante, uma gota de água nesses papéis.
Quer tocar-me o rosto, hesita. Quer acariciar-me os cabelos,
a mão recua. Por fim, pede-me com doçura:
— Devolve-me as cartas, Imani. Deixa que as leia para ti.
Passo-lhe os papéis, que gotejam. A italiana demora a
examinar-me, incrédula. Meneia a cabeça e começa a ler. Vai
movendo os lábios mas não escuto senão o rumor de um rio,
esse mesmo rio em que eu e Germano fizemos amor.
Terminada a leitura, estou vazia. O que sobra em mim não
é mais do que uma raiva surda contra Álvaro Andrea. Como
ousou guardar o que não lhe pertencia? Rodopio pelo quarto
amaldiçoando o comandante dos olhos rasgados: Eu mato
aquele branco!
— Acalma-te, rapariga — ordena Bianca. E manda que me
sente e escreva a Germano. Eu entrego-lhe a carta — diz ela
—, quando ele por aqui passar.
Demoro a libertar-me das luvas, com a arrastada tristeza da
serpente largando a pele. Quero escrever. Não sei como
começar. O ódio a Andrea pesa mais que a saudade de
Germano. Escreverei mais tarde, prometo à italiana. A mão
dela enrosca-se nos meus cabelos crespos e, como aconteceu
no nosso primeiro encontro, dissolvo-me nessa carícia.
— Ainda este ano vou visitar-te a Lisboa — declara
Bianca. — Porque também me vou embora. Volto para Itália.
Bianca abre as janelas e o suspiro dela confunde-se com a
poeira que se solta dos cortinados: Mouzinho quer sair da
vida; eu apenas anseio sair de África.
Faz de conta que espreita pela janela. A mão acaricia o
pano da cortina como se buscasse um amparo.
— Não é a morte — diz ela — que esse capitão deseja.
Mouzinho espera por um amor que não pode nunca
acontecer. Todos falam da sua impossível paixão por Dona
Amélia, a distante rainha de Portugal: Ao menos, ele ainda
espera, suspira a italiana.
E Bianca culpa a vida, culpa a cidade que antes a tinha
salvado. Espreita o movimento da rua que fervilha de gente.
Àquela hora, negros e brancos ainda partilham o mesmo
espaço.
— Sabes o que mais me cansa na tua terra, Imani? É o
choro das crianças.
Noutros lugares, declara Bianca, as crianças choram como
quem aprende a rezar: esperam que as coisas melhorem. As
crianças africanas não. Choram sem voz, choram para si
mesmas, como se vivessem o seu último dia. As lágrimas
imitam-lhes as barrigas: inchadas mas sem nada dentro.
— Volto para Itália, a gente volta sempre a casa. — E
sorri, com tristeza. — Da primeira vez que regressei ninguém
me reconheceu na minha aldeia.
— Tinha ficado fora muito tempo — sugiro como
explicação.
— Não foi por causa do tempo. Não me reconheceram
porque voltei feliz.
A italiana dobra as cartas de Germano e mete-as no bolso.
Uma mancha de tinta desponta no seu vestido.
Capítulo 15
Bartolomeu
e o caminho marítimo para o céu
«… Tem razão Dabondi quando diz que o
navio é uma prisão. O oceano é tão infinito que
cria um sentimento de clausura. O ruído da
quilha rasgando as ondas, o subterrâneo vibrar
das hélices, o lúgubre lamento das chaminés, o
metálico correr da âncora: tudo isso me traz uma
fadiga milenar.
O Gungunhana está certo quando se lamenta
que não existe neste navio uma pedra onde se
possa sentar. Já quase não há madeira nos barcos
de hoje. Agora as embarcações pedem pouco ao
vento. Tal como essas mulheres, que pararam de
sonhar e se deixam engordar, estes navios
deram-se ao luxo de ser pesados.
Não posso dizer quanto me cansam estas
ambulantes prisões. Apesar de tudo, sempre que
me demoro em terra volto a ser tentado pelo
chamamento de um mar longínquo. E, de novo,
me faço ao cais, de novo sigo viagem.
Essa é a indecifrável sedução do mar:
nenhuma voz é tão humana, nenhum silêncio é
tão cheio de histórias.»
(Excerto do diário do comandante
António Sérgio de Sousa)
À saída de Lourenço Marques a rainha Dabondi vaticinou
que ia chover. Uma água lê-se noutra água, disse ela
fixando-me demoradamente os olhos. Tinha razão a rainha:
desde ontem que chove tão intensamente que se deixou de
ver o mar.
Atravesso lentamente o convés como se marchasse por
dentro de uma nuvem. Fui chamada pelo capitão António
Sérgio de Sousa.
Sacudo as vestes e a medo entro no camarote do capitão. O
aposento é espaçoso e iluminado. A primeira coisa que vejo é
um pássaro pousado no ombro do português. O bicho
espreita-me, curioso, numa postura híbrida entre príncipe e
palhaço. Depois assusta-se e bate as asas para se refugiar
numa gaiola pendurada no teto. O comandante chama-o:
«Bartolomeu!» E o pássaro, um papagaio do Congo,
responde: «Pronto, meu capitão!» Salta para a mesa e
caminha com o andar oscilante dos anões.
— De vez em quando suja-me os mapas — lastima-se o
comandante.
O papagaio ensaia um desajeitado voo que faz sobressair a
cauda vermelha por entre a plumagem cinzenta. Pergunto se
devo fechar a porta. Deixe-a aberta, recomenda Sousa.
Bartolomeu criou as suas rotinas: esvoaça pelo convés, em
pleno mar alto; em terra não sai do camarote, com medo das
gaivotas.
— Quanto ao pássaro estou tranquilo. Não estou certo é
se não devemos separar esse Zixaxa do rei de Gaza.
— Zixaxa não vai molestar Ngungunyane.
— Como podes estar tão certa?
— Zixaxa acredita que se Ngungunyane morrer vocês, os
portugueses, o atiram ao mar. Sem o rei, nenhum dos
prisioneiros tem mais valor.
A intenção de António de Sousa é oferecer o papagaio ao
filho, que vai completar oito anos. O menino nasceu na Índia
mas cresceu em África. Agora está em Lisboa e sofre de
asma. Acredita o capitão que o filho sente falta dos céus
africanos. Não é no chão, é nos céus que ele mais encontra
África.
*
— Não foi por causa de um papagaio que te chamei — diz
o capitão sacudindo as mãos, como se lhe ardessem os dedos.
Está a enxotar-me. A minha visita não se pode prolongar. Sou
o comandante, diz ele, não me podem ver fechado contigo
nos meus aposentos.
Chamou-me porque está preocupado. Um dos presos do
porão, desses do grupo de Machava, suicidara-se na noite
anterior. O capitão receia que mais presos lhe sigam o
exemplo. Mandou que lhes melhorassem a dieta. Não
resultou. Aquela gente carecia de um conforto espiritual. O
que falta em bem-estar pode ser compensado pela crença.
— Esta gente — diz ele — é muito crente.
Seria de toda a conveniência que os presos acreditassem
que os deuses protegiam o barco e abençoavam a viagem.
No dia anterior tinha convocado Roberto Machava. Sabia
da influência do pastor junto dos restantes negros. O
encontro aconteceu naquele mesmo camarote. Sousa
explicou a sua intenção. Iria juntar os presos numa grande
assembleia para que o pastor conduzisse uma bênção
africana e, assim, garantisse que o barco chegaria a bom
porto. Uma benção africana?, perguntou o pastor Machava.
Peço perdão, mas há aqui um engano, acrescentou ele. Sou
um missionário cristão. Não tenho crenças africanas. Eu e o
senhor partilhamos o mesmo Deus, o único que pode
abençoar este barco.
Sem uma palavra, António Sérgio de Sousa deixou que o
pastor se retirasse. Mas não desistiu. Foi por isso que me
chamou esta manhã e me transmitiu com estranha pressa:
— Não resultou com o pastor. Mas vai resultar com a
rainha feiticeira. Vais trazê-la ao meu camarote. E quero que
os presos saibam que a vou receber. E saibam que, aqui, no
meu camarote, ela vai abençoar a nossa viagem.
*
Acompanho a rainha ao camarote do capitão. Dabondi
resiste, no início. Não quer que os demais prisioneiros
saibam que atira os búzios no quarto do capitão. Vão dizer
dela o que já dizem de mim: que se vendeu aos brancos. À
entrada a rainha reage, de modo ríspido:
— Só entro nesse quarto se esse branco me der notícias do
meu filho.
O capitão reage, solícito. Anota o nome que a rainha lhe
dita ao mesmo tempo que vai soletrando: «Man-gue-ze». Por
que razão, pergunto-me, os nossos nomes se enovelam tanto
na boca dos portugueses?
— Envio já uma mensagem para Lisboa! — promete
António de Sousa. — Amanhã saberemos do paradeiro desse
rapaz.
Ainda assim, a rainha hesita em entrar. Esse pássaro, diz
ela apontando para Bartolomeu. E o comandante apressa-se a
engaiolar o papagaio.
Por fim a adivinhadeira senta-se na alcatifa e retira de uma
sacola os ossinhos mágicos. As instruções do comandante
são claras: Diz-lhe que se demore o tempo que for preciso. É
bom que todos saibam que ela esteve aqui. A rainha vai
invocando os nomes dos defuntos que o português lhe vai
ditando. A seu modo pronuncia aqueles nomes e a maior
parte deles torna-se irreconhecível para António de Sousa.
Os tinhlolo espalham-se pelo chão: mais que búzios são
ossículos, sementes, conchas. Cuidado com as sementes,
adverte o português. O Bartolomeu chama-lhes um figo!
Dabondi vai balançando, fungando, espirrando, tossindo e,
por fim, entra num convulsivo transe. Com os olhos
revirados e a voz desfigurada ela anuncia: Há um homem
descalço atravessando um rio que desce dos céus. Nessa
terra chove tanto que ninguém precisa de abrir um poço…
— É o Congo! Só pode ser o rio Congo! — exclama o
capitão Sousa.
— O comandante acha que nos transporta como
prisioneiros — declara a rainha. — Mas o único prisioneiro é
o senhor. Este barco é a sua prisão.
Olhos cerrados a rainha sublinha cada palavra com um
embalo do corpo. Vou-lhe seguindo as palavras e os gestos
com tal entrega que o comandante me pergunta:
— Por que gesticulas tanto quando traduzes?
— Porque quando traduzo eu sou ela.
*
Sonho que viajo num navio comandado por um capitão
negro. O navio chama-se Europa e tem o casco pintado de
cores garridas como os panos africanos. Os mastros são
árvores e dão sombra ao convés. O vento espalha folhas
sobre o mar.
Um roçar de dedos na porta interrompe-me o sonho. Deve
ser Dabondi, penso estremunhada. Dou um jeito ao cabelo e,
com inesperada dificuldade, amarro uma capulana à cintura.
Estou de cinco meses, não tarda que seja devorada pela
minha própria barriga.
Voltam a bater. Entreabro a porta. É o missionário Roberto
Machava. Mãos apressadas antecipam-se ao rosto do
visitante:
— Vê este desenho — pede-me.
Estremeço. É um desenho a cores que, em criança, fiz para
o meu pai. Nele se via uma aldeia queimada e corpos jazendo
no chão. Sob as figuras está escrita uma legenda, uma jura de
vingança contra as tropas de Ngungunyane.
— Como conseguiu este papel? — pergunto, alarmada.
Deixa-me entrar. Não posso falar aqui no corredor.
Venha noutra altura.
Este é o melhor momento. Estão todos distraídos com a
chegada à próxima cidade.
O pastor entra e fica encostado à porta como se a quisesse
duplicar. Deixa de falar português e explica-se na sua língua
materna. Machava tinha passado pelo Save e visitara o meu
pai, Katini Nsambe, e a sua atual esposa, a profetisa
Bibliana. O meu pai estava certo de que o missionário me
encontraria em Lourenço Marques. Quando lhe entregou o
desenho, o meu velhote foi categórico: «Entregue a Imani
para que ela não se esqueça do que prometeu.»
— Fiz a mesma promessa — afirma Machava. — Também
busco a mesma vingança e preciso da tua ajuda.
— Peça ajuda a Zixaxa.
— A todos menos esse. Estou preso, junto com os meus
companheiros, graças a esse traidor.
Reabre a porta e espreita o corredor, a confirmar que
ninguém nos escutava. Depois volta a trancar a porta. O seu
rosto está perto do meu quando confessa: Estou a preparar
uma revolta. Sacudo a cabeça e ele repete: É o que estou a
preparar, uma sangrenta rebelião. O plano é simples, mas de
uma lógica arrepiante: vai matar o rei de Gaza. Sem
Ngungunyane, os portugueses chegariam a Lisboa de mãos
vazias, sem prova da arrebatadora vitória que tanto
proclamavam. Se o matássemos agora, argumenta Machava,
seria impossível preservar o cadáver até chegarmos a
Lisboa. As nações europeias pensariam que Portugal tinha
forjado uma desajeitada encenação. O plano do missionário
fechava com chave de ouro: no interior de Moçambique os
religiosos protestantes clamariam que Ngungunyane
continuava vivo, errando pelas montanhas do Transvaal. E
quem, neste mundo, poderia provar o contrário?
— Vou dizer-te o que deves fazer — declara o missionário.
— Não! Não me diga nada. Não estou preparada.
Uma terrível dúvida me assalta: se Ngungunyane morrer
na viagem, por que motivo continuariam a levar-nos até
Lisboa? Seríamos certamente abandonados em Luanda ou
em Cabo Verde. Nunca mais veria Germano, nunca mais o
meu filho conheceria o pai. Fiz uma promessa de vingança, é
verdade. Mas não tenho que a cumprir agora.
— Escuta, minha filha.
— Vá-se embora, pastor Machava. Vá-se embora ou eu
grito!
— Pensa no que te pedi — murmura o pastor à saída.
Passa pelo sentinela, que dorme. Vejo-o desaparecer no
porão. Tranco a porta e suspiro. Várias angústias me roubam
o peito: a minha recusa em ser cúmplice de um assassinato
não basta. É imperioso fazer abortar aquele plano. Há que
denunciar, sem demora, as intenções do missionário. Não é
difícil, porém, adivinhar as consequências dessa denúncia:
lançarão ao mar o Machava e os seus correligionários. Resta-
me a impossível escolha entre dois crimes.
*
O África aproxima-se agora de uma terra que não é igual a
nenhuma outra. No horizonte se adivinha a Cidade do Cabo.
Um maciço de montanhas cinzentas emoldura a cidade.
Contemplo aquelas montanhas como, na prisão, o condenado
espreita uma nesga de céu.
Vigiados por militares, os presos são autorizados a
disfrutar da paisagem. Dabondi junta-se a mim e ao capitão.
Aperta-me as mãos, fascinada pela visão de um continente
que parece acabado de nascer. E profetiza:
— Virá o dia em que um negro conduzirá um navio como
este. Depois dirige-se a mim para ordenar: Traduza, Imani.
Esse português deve saber desse futuro.
— Só se o mar se tornar um rio — contesta António de
Sousa, assim que lhe traduzo o presságio.
— O mar sempre foi um rio — afirma Dabondi.
Rimo-nos eu e o comandante. No rosto da rainha se esboça
um vago sorriso. O português olha em redor com receio de
que alguém nos surpreenda naquela animação. Inclinado
sobre a rainha pergunta: É bom ver terra, não é?
Não espera resposta. Quer apenas ser escutado. A noite
passada não tinha pregado olho pensando nas palavras de
Dabondi. A rainha tinha razão: aquele barco era uma prisão.
Durante a insónia pensou nos colegas que abandonaram a
Marinha e se puseram a deambular por terras africanas. Não
escolheram tornar-se pioneiros. Estavam apenas cansados da
clausura do mar. As feras, a selva e as tribos primitivas, tudo
isso era preferível à eterna solidão do oceano.
É bom ver terra, repete para si mesmo. Antes de se retirar,
o comandante transmite ordens ao sargento Araújo:
— Vá lá abaixo com estas duas mulheres e prepare o
régulo para receber as visitas. Dê-lhe vinho e uma roupa
apresentável. Quero o homem num brinco.
*
Vestido com trajes europeus, o rei de Gaza é deixado
sozinho no seu aposento. Todos os restantes prisioneiros são
transferidos para o porão. Com exceção de Dabondi, que
permanece a meu lado.
— Vocês as duas vão para o quarto e esperem lá por mim
— ordena Araújo.
O navio está imobilizado, desligaram as caldeiras.
Procederão assim sempre que o África chegar a um porto. Há
que poupar no carvão. Sem o aquecimento a funcionar, o frio
toma conta do navio. Na penumbra do meu cubículo encosto-
me a Dabondi como se fôssemos um só corpo. Com as mãos
a rainha faz uma concha com que me aquece o ventre.
A porta abre-se bruscamente para dar passagem ao
sargento Araújo. Um estranho brilho se acende nos olhos ao
surpreender o gesto de ternura de Dabondi. O compartimento
é exíguo, mas o militar considera que há espaço para três. E
incentiva-nos: Continuem, continuem, quero ver essas
carícias! Não é a mim que ele deseja. Sou demasiado
próxima, demasiado europeia. Os seus devaneios são com as
esposas do rei, cujos nomes não saberá nunca pronunciar. O
temor de contrair doenças é, no entanto, maior do que o
desejo que sente por elas. Limita-se a violá-las em sonhos,
sem ter que as olhar nos olhos e sem o incómodo de lhes
cheirar o suor ou o risco de apanhar doenças.
Deve imaginar que eu e Dabondi nos acariciamos com
despudor. E que o fazemos para o excitar.
— Encostem-se mais. Quero ver-vos como marido e
mulher — ordena o sargento.
A mão de Araújo esgueira-se por dentro das calças, os
olhos babados antecipando-se à própria visão. Como nos
mantivéssemos estáticas, o militar ergue o tom de voz e
exige:
— Mostrem as mamas!
Não é dos que gritam que deves ter medo: era o conselho
da minha mãe. Os verdadeiros malvados, dizia ela, nunca
elevam a voz. Se o aviso é verdadeiro, os berros deste
homem não me deveriam atemorizar. E, contudo, há nele
algo que me provoca um calafrio.
— Estamos grávidas — advirto.
— Não estão — diz o sargento — mas vão engravidar não
tarda nada.
A rainha levanta-se e deixa tombar a capulana. O sargento
dá um passo atrás, surpreso ao ver a mulher despida, o pano
rendido junto aos pés. Mais estupefacta fico quando a rainha
pede que me dispa também. Sacudo a cabeça, receosa de que
lhe tenha escapado o que ali se passa. De um puxão Dabondi
arranca-me o vestido. Estamos ambas nuas, indefesas perante
o desaustinado português.
As mãos de Dabondi avançam, provocantes, na direção do
sargento, que já vai fechando os olhos. Mas o gesto tem outra
intenção. De um puxão, a rainha abre a porta e
apressadamente me empurra para o corredor. Ele que nos
siga, como fazem os bois no cio, declara a rainha enquanto,
despidas e de mãos dadas, avançamos pelos subterrâneos do
navio. Subimos a escada que desemboca no convés. Até onde
irá este branco?, indaga Dabondi. Só então entendo o
estratagema de Dabondi: a nudez que tanto nos fragiliza era,
naquele caso, a nossa melhor defesa. Num lugar aberto como
o convés estaríamos defendidas dos avanços de Araújo.
Atrás, muito atrás, escuta-se o sargento pontapeando as
paredes do navio.
Capítulo 18
Um involuntário suicídio
Através do teu coração passou um barco
Que não para de seguir sem ti o seu caminho
(Sophia de Mello Breyner, in Navegações)
Os amnésicos defuntos
Certa vez viram um pescador abrindo uma
cova enorme na praia. Perguntaram-lhe o que
fazia. Apontou para uma canoa velha, na duna,
já meio despedaçada. Tinha sido a embarcação
com que, durante anos, se fizera ao mar, bem
para além da rebentação. De tanto cavalgarem
juntos sobre as ondas, homem e barco se
afeiçoaram a ponto de o pescador apenas
adormecer aconchegado no fundo da
embarcação.
— Quando os barcos morrem é preciso dar-
lhes enterro.
No final, espetou um remo junto à campa.
Quando fez o sinal da cruz ecoou-lhe no peito o
som de madeira ao ser percutida.
(Diário do capitão António Sérgio de Sousa)
Véspera da terra
Quem tem medo da água acaba por se afogar
em terra.
(Provérbio de Nkokolani)
Manhã cedo, um marinheiro esquálido bate-me à porta.
Vem da parte de António Sérgio de Sousa e é portador de
dois envelopes. Pretende o capitão que lhe leia aquelas cartas
e depois as devolva pelo mesmo mensageiro. Deves começar
por esta, diz o marinheiro agitando o envelope da mão
direita. Estende o braço e hesita, como se avaliasse o peso
das duas encomendas. Enganei-me, admite, corrigindo o
gesto. Estende-me o outro sobrescrito e retira-se. Esperará no
corredor até que eu tenha terminado a leitura.
A primeira carta é da autoria do comandante Sousa e está
endereçada ao sargento Júlio Araújo. Dabondi pede-me que
lhe traduza enquanto vou lendo. Fecha os olhos como se
assim escutasse melhor.
*
Caro sargento Araújo
Amanhã chegaremos a Lisboa e terei cumprido a minha
última viagem. Sei o que se passou com os meus colegas que
se reformaram. Em poucos anos definharei, como eles,
saudoso do que sempre me queixei. Em contrapartida, o meu
sargento prosseguirá a sua carreira na Marinha de Guerra. O
mais provável será que não mais nos voltemos a encontrar.
Tantos meses vivemos confinados no mesmo exíguo espaço
e, apesar disso — ou será exatamente por isso? — nunca
chegámos a manter aquilo que se possa chamar uma
«conversa».
Sei o que pensa de mim. Não pretendo alterar essa
perceção. Você acha que sou um homem fraco, que sou
demasiado condescendente com os africanos. Contra essa
impressão não tenho, nem quero ter, nenhuma defesa. Essas
suas palavras, esgrimidas como uma denúncia, são para mim
o maior dos elogios. Bem haja por esses pequenos ódios.
Venho falar-lhe de mim. A escrita permite confissões que,
noutras circunstâncias, não teríamos coragem de fazer. Nasci
em África, em terras onde as árvores superam os céus. A
minha mãe, que Deus a tenha, ensinou-me a amar essas
criaturas como se adivinhasse que me iriam faltar mais que a
própria terra. As árvores são como as pessoas, dizia. Não nos
damos conta de que o que nelas vemos é apenas o que está à
superfície. O que nos falta ver, nas árvores e nas pessoas, é o
próprio tempo, esse infinito tecelão. As raízes, garantia a
minha mãe, são como as histórias das nossas vidas. Quem as
vê? Pois nós, meu sargento, passamos um pelo outro como
quem passa por uma árvore e não vê senão sombras. Não nos
conhecemos, meu caro Araújo. E talvez seja melhor assim.
Não temos de fingir que nos despedimos.
O meu pai morreu em terras da Índia. Cumpria, assim, o
que para si mesmo destinara. Tantas vezes nos disse:
ninguém sabe morrer no lugar onde nasceu. Não podia ter
morrido mais longe. Depois do enterro fui recolher a
papelada que, durante anos, ele deixara acumular no seu
gabinete de trabalho. Não foram papéis, foi a sua vida que
me passou lentamente pelos dedos.
Numa pasta rotulada «documentos do Congo» descobri
uma fotografia de três escravos ladeados por dois brancos.
Era uma imagem captada no Congo Belga. Os negros
exibiam as mãos decepadas de outros escravos. Quase não se
distinguiam os dedos dos vivos e dos mortos. Como se as
mãos decepadas ainda se agarrassem a um corpo vivo. Como
se não soubessem morrer.
Não foi apenas aquela macabra visão que para sempre me
roubou o sono. Foi o olhar dos escravos, foi a sua expressão
mortificada. Aqueles olhos tinham sido amputados das suas
almas. O rosto desses homens era uma máscara vazia, como
se aquilo que fosse mais humano — isso a que chamo a «voz
do rosto» — tivesse que ser resguardado da indiscrição do
fotógrafo. Protegiam assim a sua última réstia de dignidade.
Não fomos nós, portugueses, que cometemos aquela
barbaridade. É isso que você dirá. Não fomos, é verdade.
Mas tecemos todos nós, europeus, um manto de silêncio em
redor desse enorme crime que foi a escravatura. Os jovens
que você fuzilou — num barco que eu comandava — serão o
seu inferno. Até ao final da sua vida, meu caro sargento, você
será alvejado por essa lembrança.
Mil vezes o escutei proclamando que o fim do mundo já
aconteceu. Nenhum de nós — nem sequer Deus — deu conta
dessa fatalidade. A verdade é outra, meu caro. Quem tem
razões para acreditar no apocalipse não somos nós, meu
sargento. São os negros que veem assaltadas as suas terras,
decepadas as mãos e sangrados os sonhos. Enquanto
filosofamos sobre o apocalipse essa gente vive o mais real
dos fins do mundo. E é bem conveniente essa sua teoria de
uma hecatombe: se não há futuro tornamo-nos iguais aos
bichos. E não há melhor para as guerras que um bicho
fardado de soldado.
Junto lhe envio a fotografia que tanta alma me roubou. Não
se limite a olhar para ela. Deixe-se ser olhado pela imagem.
Ao ser atravessado pelos olhos desses negros talvez você
entenda que a fraqueza de que me acusa é bem menos grave
que a coragem que lhe serve de bandeira.
Espero, caro sargento, que não nos voltemos a encontrar.
Não lhe desejo mal. Quero somente esquecer-me. É isso que
eu quero. Esquecer-me de mim, esquecer-me de si e de todos
os outros. Desejo talvez um pouco mais do que isso: rezo
para que o sargento não tenha nunca existido na minha vida.
E esta carta não tenha sido escrita para ninguém.
12 de março de 1896
António Sérgio de Sousa
*
Talvez a minha tradução tenha sido deficiente porque, no
final da leitura, Dabondi parece completamente indiferente.
Ocorreu-me, primeiro, que tinha adormecido. Surpreendo-me
a vê-la sacudir os braços fazendo soar as pulseiras. Afugenta
os espíritos que emergiram das cartas.
— Disseste ao branco — adverte a rainha — que eu
rezava aos meus deuses. Fizeste mal. Não há deuses dos
outros, minha filha. São sempre nossos.
O soldado bate à porta. Quer saber se pode recolher as
cartas. Peço-lhe um tempo. Dabondi volta a fechar os olhos,
aguardando pela leitura da segunda carta.
*
Excelentíssimo capitão
António Sérgio de Sousa
Despedimo-nos desta curiosa maneira, trocando cartas
como se tivéssemos perdido o dom da fala. E é bom que
assim seja. Esta é, meu capitão, a sua derradeira viagem. O
meu percurso, porém, não termina aqui. Morrerei no mar e
serei sepultado em incógnitas águas. Sem chão, dizem os
seus africanos, o morto não encontra nunca a morte. Pareço
um preto a falar, Deus me perdoe.
Para começo de conversa, tenho que reconhecer que o meu
capitão é um homem bom. Interrogo-me, porém, sobre o
valor da bondade neste mundo. De uma coisa estou certo:
não tenho o menor desejo de ser bom. A minha única
intenção é ser justo. E a justiça pede homens que não tenham
medo de ser cruéis.
Tem razão, o meu capitão: vivo obcecado com o fim do
mundo. Não é apenas o século dezanove que termina, não é
apenas a monarquia que agoniza. É o inteiro universo que se
esvai como areia entre os dedos. Está escrito nos livros, meu
capitão. Houve vezes que perguntei aos negros que ideia
possuíam sobre a criação do mundo. Todos me deram a
mesma resposta, espantados com o absurdo da minha
pergunta: ora, o mundo não começa nem acaba. A matéria
do mundo é o próprio tempo, diziam, não há palavras para
distinguir uma coisa da outra. Foi isso que responderam os
pretos, nas suas humildes palavras. O senhor dirá, com o seu
incurável paternalismo, que essa resposta traduz uma
profunda sabedoria. Eu direi que é uma total falta de
discernimento.
Por que lhe falo disto agora? A verdade é esta: não pode
haver justiça se não houver a ideia de um juízo final. Não
tendo ideia de um julgamento divino, os africanos estão-se
marimbando para os outros. Um povo assim desprovido de
civismo deve ser guiado por gente civilizada. Não
assumirmos essa missão é que é falta de coragem e de
bondade.
Se o mundo está em pleno apocalipse então prefiro ir ao
fundo às costas de demónios. Essa é a única vantagem de
viajar pelos mares do Sul: estão povoados de diabos. Essas
criaturas malignas são hoje os meus únicos conselheiros e
protegem-me mais do que todos os anjos. Dizem que
trazemos os barcos cheios de «casacos de zinco», que é o
nome polido que damos aos caixões. Comigo sucede o
oposto: há uma parte de mim que já não volta a Portugal.
Parte de mim fica entre pretos e, sobretudo, entre as pretas.
Deus Nosso Senhor foi precavido: europeus e africanos
não foram feitos no mesmo molde. E é bom que assim seja.
Porque não tenho tempo nem paciência para destrinçar os
bons dos maus. Queria que tivesse tratado os presos como
pessoas? Se fosse o inverso, se os presos fôssemos nós, diga-
me, meu capitão, dar-nos-iam os negros igual oportunidade?
Conhece algum branco que tenha ficado cativo na selva
africana? E sabe por que não conhece? Porque os mataram a
todos.
Certa vez, em plena batalha, escutei a voz do comandante
gritando: «Não matem mulheres nem crianças!» Pensei para
mim: este tipo é um ingénuo estreante. Em terra africana não
há mulheres, não há crianças. Aqui todos são inimigos, todos
nos querem matar. É por isso que digo: quanto mais felizes
eles se apresentam, mais eu os odeio. Não suporto quando
riem, não aguento quando falam alto, cantam ou dançam.
Diga-me com verdade, meu capitão: que há de tão
importante nesta vida para ser tão festejado?
Não vale a pena perdemos mais tempo. Sou um homem de
ação e o assunto para mim é bem simples: o senhor foi
envenenado por essa Imani. É assim que elas fazem:
inoculam-nos um veneno doce, de que só damos conta
quando já estamos mortos. Imagino as falsidades que essa
rapariga contou a meu respeito. Nunca lhe toquei. Vontade
não me faltou. Essa cabra — desculpe, mas o termo é este —
não passa de uma sonsa. E deixe-me dizer o seguinte: há
rumores que se escutam entre a tripulação. São boatos, dirá o
senhor. E em sua defesa argumentará que, neste caso, não há
fumo nem fogo. Várias vezes, contudo, viram entrar Imani
para o seu camarote. Que lhe tivesse feito proveito. Porque,
confesso, essa rapariga não faz o meu género. Não quero cá
pretas a falar português tão bem como eu e a olharem-me
com altivez nos olhos. Quem me atrai são as outras, as pretas
verdadeiras, mais autênticas, mais selvagens. Essas, sim.
Ainda as espreitei quando faziam a higiene. E se a faziam:
banhavam-se duas vezes por dia! Mas nunca as vi nas
poucas-vergonhices com os maridos. Explicou-me o
cozinheiro que o sexo lhes é interdito quando em viagem ou
em guerra. Quem se esqueceu dessa proibição foi a Dabondi
e o Godido. Ainda os apanhei, no depósito de carvão. Era ali
que se deitavam e fornicavam no meio das cinzas.
Regresso à fotografia que me enviou para lhe dizer o
seguinte: essa imagem não prova coisa alguma. As fotos são
como nós, os sargentos: dizem o que lhes mandam dizer. São
as legendas que lhes dão sentido. E não vejo aqui nenhuma
inscrição. Não nego. Houve ali, sem dúvida, uma
barbaridade. Mas quem a praticou foram os belgas, que são
mais estrangeiros do que quaisquer outros europeus. Ou
quem sabe não terão sido os próprios pretos? Nunca ouviu
falar das cenas de canibalismo, das práticas feiticeiras, das
vinganças tribais?
De todo o modo, nós, portugueses, não somos capazes de
tão gratuita crueldade. Não somos como os europeus do
Norte que, de manhã, caçam borboletas e, à noite, matam
pretos. Nós, lusitanos, somos diferentes. Mesmo quando
punimos fazemo-lo como pais zelosos. Os castigados — por
mais severa que seja a punição — não deixam nunca de ser
nossos filhos. Odiamos com amor, e o senhor sabe bem
disso. Ninguém mais do que nós se misturou e criou tanto
filho mulato. Veja o caso da Imani. O filho que ela traz no
ventre não é de um dos nossos? Vai ser, estou certo, um belo
rapazola. Pode ter a certeza, os outros europeus raramente
fazem filhos mestiços, e quando os fazem não os concebem
com tanto aprumo.
Com o devido respeito, meu capitão, tenha cuidado com
essa fotografia que é uma lâmina de dois gumes. Porque
testemunhei, com estes olhos que a terra irá comer, gente
branca a ser chacinada pela fúria dos pretos. Não havia ali
fotógrafo para registar aquele horror. O que lhe posso dizer é
que a verdade não é coisa que se fotografe. A verdade está
nos olhos de quem vê. Por tudo isso lhe peço: deite fora essa
fotografia. Porque essa imagem, Deus me perdoe, apenas
fabrica desejos de vingança contra os brancos.
É fácil ser-se bom quando já se foi feliz. A vida foi para
mim uma esposa adúltera. Mais valia ser viúvo, meu caro
capitão. Um viúvo fecha as pálpebras e sonha. Um homem
que foi traído pela vida perde para sempre o dom de sonhar.
Devolvo-lhe a sua carta e a maldita fotografia. Não me dou
ao trabalho de as rasgar. Talvez o senhor as queira guardar.
Serão um bom alimento para a sua má consciência.
O sargento
Júlio Araújo
Capítulo 22
A luz de Lisboa
Dei-me ao mar
num perpétuo sonho de navio
e tive das ilhas
a redonda ilusão de um infinito.
E não encontrei praia
em que não escutasse a voz materna:
onde houver mar, dizia,
terás um cais e serás saudade, distância e espera.
Depois,
quebraram-se os remos
e rasgou-se o fundo de todos os navios.
Dizem que foi obra do diabo.
Mas foi o Tempo
que quebrou os remos
e extinguiu o desejo da viagem.
O meu naufrágio
aconteceu sem nenhuma grandeza,
foi um simples vazar de maré.
E na areia da praia
para sempre se apagou a lembrança
de alguma vez ter havido mar.
(Versos do diário de bordo de
António Sérgio de Sousa)
Eis Lisboa, o último porto, o fim da viagem. No navio, os
soldados, em lágrimas, acenam com os bivaques aos que
esperam no cais. Algo de inesperado nos une na guerra,
africanos e europeus: do outro lado do mar, na terra distante
em que nascemos, todos nos julgam mortos.
Passos vigorosos e rosto tenso, a rainha Dabondi atravessa
o convés abrindo alas entre os tripulantes. Da casa das
máquinas trouxe uma pá que arrasta ruidosamente atrás de si.
Sente a areia a crescer dentro da boca, cospe para poder
respirar. Procura o capitão do barco, quer saber onde está
enterrado o filho, João Mangueze. A primeira coisa que fará
depois do desembarque é visitar essa sepultura. Se assim não
proceder, a terra que sobrou da cova crescerá dentro dela.
Todas as mães que perderam os filhos são sepultadas por
dentro, diz Dabondi. E volta a cuspir areia.
O capitão explica que será difícil alguém saber daquela
sepultura. A cidade é muito grande, argumenta. Dabondi
estranha: que grandeza tem uma terra que não sabe onde
foram semeados os seus mortos?
— Pior que ver um filho morrer — diz ela — é aprender a
esquecê-lo ainda vivo.
O capitão Sousa sacode a cabeça confuso. E pergunta-me,
em surdina: Mas o filho dela não morreu? E eu respondo:
Depois de mortos, os filhos tornam-se ainda mais vivos. A
rainha tosse e o chão fica coberto de areia. O português dá
um passo atrás, receoso. Quando recupera a respiração,
Dabondi afirma: A mulher e a terra têm a mesma boca. E
entrega a pá ao português. Desenterre-me, capitão, pede a
rainha. Desenterre-me, antes que eu sufoque.
Um soldado segreda ao ouvido de António de Sousa:
Prenda-lhe as mãos, há em África mulheres que se suicidam
comendo terra. O capitão está sentado com a pá sobre os pés.
Não sabe o que fazer. Ocorre-lhe apenas escutar uma mãe
lamentando-se.
— Todos os dias parimos o mesmo filho — diz Dabondi.
Todos os dias o cordão umbilical renasce para voltar a ser
decepado. Durante a vida inteira a mãe recomeça o parto,
escuta o primeiro choro, sente o primeiro riso. Todo o parto
infinitamente se reparte.
Dabondi faz o que desde o princípio do tempo todas as
mães fizeram: recolhem as pegadas dos filhos que partiram.
Assim o chão se torna mais vivo. E a terra ganha a curvatura
de um ventre.
*
Um soldado traz um pedido de audiência da parte de
Ngungunyane. O rei quer uma pequena atenção, em véspera
do desembarque. Pois concedo-lhe uns minutos, admite
António de Sousa. E lá desço eu também, eterna tradutora, ao
quarto dos prisioneiros vanguni. Esperei até ao fim da
viagem que o senhor me viesse visitar, começa por declarar
Ngungunyane. E prossegue, pausadamente: Posso ser um
preso, mas ainda sou um rei. Durante mais de uma década
tinha tratado com respeito todos os embaixadores de
Portugal. Mantinha a esperança de que o levassem, enfim, à
presença do seu homólogo, o rei de Portugal. António de
Sousa escutou aquilo tudo em silêncio.
— Hoje é sexta-feira — dia treze — declara o capitão. —
Não tens receio?
O rei estranha. Este branco tem medo de um feitiço?,
pergunta. Porque a ele, soberano de Gaza, aquele dia até lhe
traz um certo alívio. É interrompido por um violento ataque
de tosse. O hálito de Ngungunyane cheira a ferrugem. O rei
treme. Não é de frio. É de febre.
— Faz-me falta o Doutor Liengme — queixa-se, quase
sem voz.
— Temos cá melhores médicos — tranquiliza Sousa. —
Não morras agora, Gungunhana!
E riem-se os dois. Novo ataque de tosse e o português
despede-se à pressa com receio de ser contaminado.
Ngungunyane estende-lhe o braço. Pela primeira vez em toda
a sua vida, o capitão cumprimenta um negro com um aperto
de mão. A saudação prolonga-se mais do que esperava.
Delicadamente, vai-se soltando da mão do outro.
Ngungunyane volta a segurar-lhe o braço. E murmura: Estou
cheio de medo, meu amigo. De novo o português se senta
junto ao prisioneiro, hesitando na escolha das palavras. Por
fim, retira do bolso do casaco uma garrafa e recomenda:
Bebe este vinho. É melhor não estares sóbrio neste dia.
Retira-se, por fim, para a torre de comando. Ngungunyane
estende a bebida na minha direção. Agradeço, sacudindo a
cabeça. O imperador leva a garrafa à boca e escuto o lento
gorgolejar. O apito do vapor soa como o mugido de um boi
gigante. Ngungunyane ergue o rosto e percorre os céus com
olhos de criança.
— É isso mesmo que o senhor pensa, meu rei — declaro. —
Estão a sacrificar uma cabeça para festejar a sua chegada.
O sorriso do rei é débil. Mas ilumina-lhe a alma inteira.
Por um instante os deuses regressam e Ngungunyane deixa
de ver o medo.
— Este boi que agora escutamos é o mesmo que mugiu no
funeral do meu pai.
Sugere a esposa Muzamussi que não recorde tão tristes
assuntos. Agora tenho que falar, diz Ngungunyane. E
relembra o enterro do seu pai, o rei Muzila. O corpo do
falecido foi metido numa pele de vaca e pendurado do teto da
casa grande. Ali permaneceu para receber as devidas
honrarias. Quem abriu o desfile não foram os conselheiros
reais. Não foram os chefes militares. Foi o inkomo ya mdlozi,
o touro das grandes sombras. É este grande bovino que agora
se faz ouvir nos céus de Lisboa.
*
Deve haver um sol dentro deste rio. Só assim se explica a
luz de Lisboa. É o que digo ao capitão enquanto
contemplamos as colinas da cidade. António de Sousa
admite, sorrindo: a cidade deveria chamar-se «Luzboa».
É manhã do dia treze de março de mil oitocentos e noventa
e seis. O navio progride, lento e vaidoso, pelo estuário do
Tejo. À nossa volta há mais barcos que gaivotas. E são de
todos os tamanhos e feitios: lanchas, canoas, fragatas, botes a
motor, à vela e a remos, todos carregados de gente que acena
num infinito alarido. Para os portugueses é uma festa. Para
os prisioneiros é um prenúncio de fim do mundo.
Mais perto do cais percebemos como a multidão se estende
e ondula ao jeito de um outro mar. Escutam-se os gritos:
— Já chegou! Já chegou o Gungunhana!
Os motores são desligados, ao longe a terra balança,
informe e ébria. Desço ao quarto para escapar das náuseas.
Espreito os degraus para além do ventre. Estou no sexto mês
de gravidez.
Ainda não atracámos e começa a invasão dos jornalistas,
que chegam transportados em barcaças. Sobem a bordo com
tal entusiasmo que ninguém os impede de visitar o cubículo
que, durante dois meses, serviu de prisão aos meus
conterrâneos. O sargento apressa-me a que siga os
jornalistas. Naquele momento, adverte-me Araújo, convém
que eu apareça como sendo uma das esposas. Na tradução
terei que adotar um sotaque mais africano. A gente da
imprensa, diz o sargento, é perita em forjar histórias e
fabricar escândalos. E logo, dirigindo-se aos visitantes,
deixa-se tomar pela vaidade. Com modos circenses, anuncia
à porta do quarto: Eis os pretos, caros senhores!
Usando lenços sobre o rosto, os jornalistas espreitam o
exíguo espaço. Escuta-se a voz de Zixaxa comentando na sua
língua: Ainda bem que cheiramos mal. Assim não se
aproximam de nós.
— É aquele o Gungunhana? — interrogam-se os
jornalistas apontando Zixaxa. Não entendem uma palavra do
que foi dito, mas o simples facto de aquele homem ter
ousado falar sugere que seja distinto dos demais.
O sargento Araújo levanta o pano com que Ngungunyane
se tinha coberto. Não precisava de se esconder. O imperador
deixara de ter rosto. Restam-lhe uns olhos redondos de
recém-nascido. Não entende a voracidade dos repórteres. Só
podem querer a sua alma. E a alma do rei ficou do outro lado
do oceano.
Ngungunyane chora e os repórteres estranham. Estavam à
espera de uma postura mais digna. E adiam os fotógrafos o
tão ansiado retrato. O espaço torna-se exíguo, há uma mulher
negra que tosse nuvens de poeira e há um rei debulhado em
lágrimas. Urge sair dali. Araújo lidera eufórico o pelotão dos
escribas: Venham comigo, vamos levar esta gandulagem
para a tolda.
Ngungunyane segue cambaleando à frente dos presos.
Tinha obedecido ao conselho do capitão: bebera tão
rapidamente que o álcool lhe fez do cérebro uma deslaçada
nuvem. Os bêbados não se contentam com tristezas. Querem
tragédias. E ele está certo do seu desfecho: vai ser fuzilado
como aconteceu com os seus conselheiros em Chaimite.
Chora, implora, esconde o rosto com as mãos, oferece tudo o
que já não tem para obter a sua redenção: libras, gado, ouro,
marfim, escravos, terras. E suplica para ser recebido por D.
Carlos. Quer provar que lhe estão a mentir, quer jurar
fidelidade ao seu homólogo lusitano.
Espera que eu lhe traduza as súplicas. Peço a Godido que
me substitua nessa incumbência. O filho do imperador não se
faz rogado: o seu porte emproado e o domínio da língua
portuguesa tornam-no o centro das atenções. Os filhos dos
chefes são quase sempre insuportáveis: o que lhes falta em
maturidade sobra-lhes em arrogância. Mais tarde, quando
constar que este Godido sabe assinar o nome, distintas damas
irão assediá-lo para obter um autógrafo.
Xailes às riscas vermelhas e brancas são distribuídos pelas
rainhas. São as cores que elas usam para convocar as chuvas.
Não fui prevista, não recebo agasalho. Até àquele dia o
inverno era, para mim, uma palavra dos livros. Agora é uma
flecha branca que me atravessa o corpo. Tenho medo que
trespasse o meu filho. O capitão Sousa coloca-me sobre os
ombros um manto preto. E diz: Fica-te bem, é teu, leva-o
contigo.
*
Inesperadamente, junta-se aos jornalistas uma distinta
personagem: António Enes, o comissário régio. Veio numa
lancha especial e, no convés, todos lhe abrem alas e lhe
prestam vénias. Pede para ver os presos. Sacode a cabeça ao
encarar o choroso imperador.
— Não é boa ideia exibi-lo em público — lamenta António
Enes. — Vai inspirar simpatia e compaixão. Certa imprensa
vai adorar assumir a defesa de um pobre negro.
— Não podemos apresentar Zixaxa em vez dele? —
pergunta António Sérgio de Sousa.
Um sorriso triste é a resignada resposta de Enes. É
tentador, admite Enes, mas é um risco a evitar. O pior que
poderia acontecer a Portugal seria que esta operação de
propaganda fracassasse.
— O Gungunhana está murcho — diz o comissário régio.
— Há que animá-lo. Digam-lhe que vai ser recebido pelo rei
de Portugal.
— E é verdade, comissário? — indaga o sargento Araújo.
— Deixemo-lo pensar que sim. Mentimos. Foi o que ele fez
connosco durante anos.
O sargento Araújo dá uma volta em redor da cadeira do
comissário. Está tenso, usa os pés para agredir o chão.
Quando ganha coragem, a voz sai-lhe aflautada:
— Com todo o respeito, Excelência, mas não falta aqui
alguém?
— Não percebo.
— Não falta aqui o nosso capitão Mouzinho de
Albuquerque?
António Enes ajeita os óculos. Não escutou. É sexta-feira,
dia treze. Num dia assim há coisas que não se deve escutar. E
retira-se. Pede licença dizendo que em Lisboa esperam por
ele graves urgências.
Resta no convés um incómodo silêncio. O sargento Araújo
insiste, dirigindo-se a António de Sousa: Responda o meu
comandante: Mouzinho não devia estar aqui?
Sousa não tira os olhos do mar enquanto responde. O
sargento, diz ele, já devia saber a diferença entre um político
e um militar. O político sabe — ou julga saber — quando
deve falar. O militar aprendeu a ficar calado. E, assim calado,
tem sempre razão.
*
Enfim, somos conduzidos para o cais. Desembarcam
primeiro as mulheres, carregando as trouxas à cabeça.
Depois são os homens que desfilam rodeados por um cordão
de soldados que mantém afastada a multidão. Albergam-nos
primeiro num enorme armazém a que chamam de Arsenal.
Nesse amplo recinto esperam-nos governantes, jornalistas,
cavalheiros e damas. Lá fora o alarido é ensurdecedor. Onde
estamos, capitão?, pergunto a António de Sousa. Estamos
num fábrica de material de guerra, responde. É uma boa
maneira de entrar neste país, diz ele. As nossas fábricas,
acrescenta, não são fábricas nem são nossas. O que fazem já
vem feito do estrangeiro.
Ngungunyane senta-se num banco de madeira. O assento é
alto, os pés do rei balançam no ar. Chama por mim, pede que
me mantenha por perto. Precisa de saber o que dizem os
brancos. Dabondi senta-se do outro lado do assento. As
tábuas rangem. A mão magra da rainha afaga a madeira. Já
estamos em Portugal, Nkosi, afirmo. Eu não estou em
nenhuma terra, declara Ngungunyane. Faço companhia ao
meu filho João, estou por baixo do chão.
Vejam as árvores, exorta Dabondi. Estão mortas, tão
mortas que os corvos nelas receiam pousar. As árvores foram
chupadas por um bicho que tem um dono. Nas ruas e nos
passeios, as folhas secas encolhem-se como friorentas
viúvas. Assim fala a rainha feiticeira. E indaga: Respondam-
me, sem medo: alguma vez viram tal desolação? Eu vi,
responde Ngungunyane. Quando se sentiu morrer, o seu pai,
o rei Muzila, disparou uma flecha contra o céu. Num
segundo as nuvens se desplumaram e, aos pedaços,
desabaram sobre o chão.
Cinco carruagens puxadas a cavalos estacionam à nossa
frente. Vai começar o desfile. Os soldados empurram-nos
para junto das carroças. Estão a ver?, pergunta
Ngungunyane. Não sou um preso, sou um visitante. Levam-
me de carruagem, como me disseram que fazem aos reis.
Dabondi separa-se dos restantes presos. O frio é tanto que
as sombras não se soltam dos corpos. Ajoelha-se em frente
dos cavalos e usa os dedos para escavar entre as pedras da
calçada. O que faz essa mulher?, pergunta Araújo. Estamos
pisando um cemitério, declara a rainha. Os brancos colocam
pedras sobre os mortos para que estes não regressem. Onde
se dizia haver uma rua, ela via um cemitério.
Os cavalos percutem as pedras da calçada como fazem os
tingoma, os tocadores de tambores da minha terra. Os
cavalos, diz Dabondi, têm medo da sua própria sombra. É
por isso que não dão descanso aos cascos. Uma banda militar
instala-se no pátio. Os tambores batem agora com o mesmo
ritmo dos cavalos. Os bichos sacodem as patas como os
ikanyamba, essas criaturas que habitam as águas e os sonhos
dos zulus. E há um fogo que brota das suas narinas. Os olhos
deles estão cheios de rios e de escuras planícies. Os olhos
dos cavalos são bons para chorar, diz Dabondi. As folhas
mortas levantam voo e o imperador segue-as com o olhar
acreditando serem andorinhas. Mandou que fossem
exterminadas. Mas elas ressuscitam e emergem do chão onde
o filho foi enterrado. O solo português também é seu. Aquela
terra pertence-lhe desde que recebeu o seu sangue.
*
Começam a distribuir os prisioneiros pelas carruagens. Nas
três primeiras fazem sentar as dez esposas. A quarta carroça
é ocupada pelo cozinheiro Ngó, que se instala sobre as
trouxas e as esteiras, as nossas únicas bagagens. Na última
carruagem seguem Ngungunyane, Godido, Zixaxa e
Mulungo.
Por um momento, hesitam onde me colocar. A imprensa já
tinha feito saber que eram dez as mulheres. A minha
presença seria questionada. Decidem que viajarei, oculta, na
carroça do cozinheiro Ngó.
E começa o desfile. Escoltadas por trinta soldados, as
carroças forçam caminho por entre a cerrada multidão.
Milhares de pessoas comprimem-se nos passeios e nas ruas,
empoleiram-se nas árvores e nos postes, debruçam-se das
janelas e varandas. São todos uma só criatura que ondula
como um mar que ruge. Chovem insultos e ameaças. Cospem
para o chão, atiram objetos, pedem para que sejam degolados
os que ousaram rebelar-se.
Aos solavancos, vou espreitando por entre as tralhas. Com
exceção de Dabondi todas as rainhas parecem curiosas e
despreocupadas. Acreditam na versão de Ngungunyane: toda
aquela algazarra é uma manifestação de boas-vindas. E os
apupos das mulheres brancas são entendidos como o
«mukulungana», o ulular com que elas mesmas, na sua terra,
saúdam os visitantes. De vez em quando avistam negros no
meio da multidão. E acenam como se fosse um reencontro.
Aos poucos, porém, a realidade impõe-se e as mulheres
fazem como o pangolim: encostam-se umas nas outras, como
se tivessem um só corpo, redondo e blindado.
Desde início os homens seguem acabrunhados, tolhidos de
frio e medo. Aos poucos, porém, Ngungunyane vai
assumindo uma postura tranquila e confiante. Não é
dignidade que nele transpira. É indiferença. Se a intenção era
alhear-se da humilhação, o monarca excedeu-se na dose de
vinho. E adormece no embalo da carruagem. Essa sonolência
é mal vista pelos portugueses, que esperavam surpreender no
rosto de Ngungunyane a imagem da submissão de toda uma
raça. O africano está ausente, absorto em si mesmo como é
próprio de um imperador. Insultam-no e ele não reage.
Lançam-lhe objetos e ele não se desvia. Dabondi sorri, ergue
o punho direito fazendo soar as pulseiras. As folhas secas
erguem-se do chão e rodopiam de regresso às árvores.
Capítulo 23
Um corpo rasgado
Nem todos os selvagens são meus inimigos.
Mas basta que sejam inimigos para se tornarem
selvagens.
(Sargento Araújo, citado por Zixaxa)
Certa noite Patihina e Xesipe irrompem pelo meu quarto
quebrando-me o sono. As rainhas apressam-me, o rei está a
ter um ataque. A cela para onde me levam encontra-se às
escuras. Uma suspeita nasce dentro de mim: por que razão
apagaram todas as lamparinas? Há um vulto deitado sobre a
cama. De súbito sou rodeada por braços que me empurram.
São as rainhas que me atacam e me arrastam para o leito. A
surpresa é tanta que me esqueço de gritar. As mulheres
prendem-me as pernas e os braços. A rainha Muzamussi
coloca um joelho sobre o meu peito e pergunta: Vê quem está
aqui connosco! A um gesto seu as três esposas de Zixaxa dão
um passo em frente.
O mesmo riso misterioso deforma o rosto de todas as
mulheres. A rainha mais velha acusa-me com veemência:
Pensas que és uma branca? Andas calçada e vestida sem
respeito e, mesmo ainda não sendo mãe, falas com os
homens sem baixar os olhos. Nós sabemos porquê: és uma
feiticeira, queres enlouquecer os nossos homens. E já o
fizeste. Nós vemos as pestanas dos nossos maridos a arder
durante a noite. Sonham contigo, foi Dabondi quem nos
disse.
Muzamussi prossegue, enfática: ali estão as mães mais
veneradas de todo o reino de Gaza. Mas não deixam de ser
mulheres: em todo o lado serão tratadas como intrusas.
A matriarca dirige-se ao esposo, pronunciando um
veredito: Está aqui a culpada, está aqui a mulher que não te
respeita como homem, a mulher que ofende a tua dignidade
como pessoa. Castiga-a, mostra o teu poder!
— Dabondi! — chamo, em desespero.
A rainha não está no forte. É o que me dizem as outras
esposas. Levaram-na para a cidade. Estás sozinha, sem os
teus patrões, sem a tua madrinha. Ngungunyane arrasta-se
como uma enorme lesma, pegajosa e escura. Metade de mim
submerge sob o seu peso. Há uma mão que me tapa a boca.
Espreito na penumbra. Vejo o rosto do rei pendendo sobre
mim.
— Não magoe o meu filho, Nkosi — imploro, brigando
contra a mão que me amordaça.
O rei respeita o meu pedido: senta-se no leito, apoiando os
pés na pedra fria. Manda que as esposas se retirem. Quer
ficar sozinho comigo. Muzamussi ordena: Queremos ouvir a
cabra gemer. E as mulheres abandonam o quarto.
Estamos agora os dois sozinhos na cela. Sentado na berma
do leito, Ngungunyane fica um tempo contemplando os
joelhos. Depois fala, sem erguer a cabeça: Não passas de
uma mutxope contratada para me espiar.
Não valia a pena negar. Godido tinha ouvido os guardas a
conversar. Não perceberam que o preso sabia português.
Falavam de mim, Imani Nsambe, e dos segredos que eu
entregava ao comandante do forte. Já ninguém tinha dúvida
sobre a natureza dos meus serviços.
— Foi a minha espionagem que o salvou, Nkosi.
— Quando?
— Na viagem de barco. Fui eu que fiz abortar os planos de
Machava.
Com um inesperado vigor Ngungunyane agarra-me pelos
braços como se me arrastasse para um abismo. No escuro
sinto abater-se sobre mim todo o peso do universo. O
imperador de Gaza, todo nu, está irremediavelmente
desabado sobre as minhas coxas. Agonia-me o seu hálito
empestado, enoja-me o suor cheirando a bicho.
— Geme, luta, grita! — sussurra ao meu ouvido.
Não percebo. Faz de conta que te estou a violar, insiste o
rei. E vai sacudindo o corpo em espasmos que fazem ranger
a cama. De repente tudo se torna claro. Aceito participar
naquela simulação. Grito por minha mãe, grito com tal
convicção que todo o corpo me dói e as lágrimas escorrem
pelo meu rosto. E nunca nenhum sofrimento real me havia
magoado tanto.
O rei ergue-se e, no recanto dos banhos, finge que se lava.
A água escorre de um balde para outro enquanto vai falando.
Elas sabem, diz ele, que estou impotente. Agita as mãos
dentro do balde, precisa do consolo daquele rumor de água.
Tinhas razão: há meses que não sou homem. O Doutor
Liengme atribuía a culpa ao álcool. Mas o rei não acredita.
Os suíços não sabem dos nossos feitiços, diz ele. Não foi o
vinho, foram as minhas esposas que me murcharam.
O que elas tinham acabado de fazer, colocando-me nas
mãos do marido, não passava de uma pérfida cilada. É o que
garante Ngungunyane. As rainhas estavam certas do seu
fracasso assim como estavam seguras da minha humilhação.
Mas o rei tinha engendrado uma resposta à altura.
— Agora é a minha vez de castigar essas mulheres —
declara o rei. — Continua a fingir, Imani.
— Não preciso fingir, Nkosi. Eu fui violada.
Ngungunyane sacode a cabeça com um sorriso vago.
Porque só agora ele entende: os portugueses não o trouxeram
para o matar. Quando embarcou ele já estava morto. No
momento em que, à frente dos seus súbditos, Mouzinho lhe
poupou a vida, nesse exato momento ele foi executado. Um
imperador morre quando se exibe mortal, quando se declara
humano e frágil, quando se ajoelha submisso aos pés de
outro imperador. Não podes ter sido violada, minha filha,
declara com veemência. Porque não te deitaste com uma
pessoa viva.
Retiro-me do escuro recinto. De alma rasgada, olhos
molhados, passo pelas rainhas que, fazendo alas, esperam
atónitas no corredor. Sinto os seus olhos como facas
cravando-me as costas. Fecho a porta do meu quarto, cruzo
os braços sobre o ventre e penso: é realmente triste o que as
rainhas acabaram de fazer comigo. Mais triste, porém, é o
que a vida fez com estas mulheres. A inveja que sentem de
mim tem todo o sentido. Chamam-nas de rainhas. Mas
nenhuma delas sonhou tomar posse da sua própria vida.
*
Manhã cedo vêm-me buscar. Há alguém na sala de espera,
dizem-me, alguém que veio de longe para me ver. Só pode
ser engano, penso enquanto vou atravessando amplas salas e
austeros corredores. Talvez seja Germano, penso com o
coração saltando-me do peito. Chegou a tempo de assistir ao
nascimento do nosso filho.
O soldado que me conduz aponta para os tetos altos e
declara com orgulho: «É tudo feito com betão reforçado, não
há bomba neste mundo que atire isto abaixo.» Desemboco
num aposento estranho, com grandes tapetes vermelhos.
Numa poltrona igualmente vermelha está sentada uma
mulher magra, cabelos brancos emergindo de um lenço
negro. Está tricotando uma malha da cor do assento e dos
tapetes. Por um momento parece que vai tecendo todo aquele
obscuro lugar. Balança os cotovelos para evitar que as linhas
se emaranhem nas agulhas.
— É para o meu neto — diz ela. — Vai nascer no dia em
que eu terminar este casaco.
Agora tenho a certeza: estou perante Laura de Melo, a mãe
de Germano. A senhora ergue-se com desenvoltura, fazendo
rolar o rolo de lã pelo tapete. O novelo segue-a como um
obediente gato. Encosta a malha ao meu rosto e sacode a
cabeça em desaprovação: És mais preta do que eu pensava.
Devia ter escolhido uma cor mais clara.»
Rastejo atrás do novelo, quero ser prestável, mais do que
prestável, quero mostrar-me submissa. Sempre de joelhos,
ergo o novelo de lã com as duas mãos juntas. Laura de Melo
parece não me ver. Não te aproximes, ordena-me. De súbito
suspende os braços e, num violento sacão, espeta as agulhas
por entre os fios da lã. O novelo encolhe-se num estertor de
corpo vivo.
Como se retornasse a si mesma, Dona Laura benze-se e
volta a enfrentar-me: Não quero cá proximidades. Ainda
começamos a gostar uma da outra e não haverá pior coisa
do que isso.
Contempla-me de alto a baixo. Tem nos olhos o mesmo
azul de Germano.
— Estou aqui apenas por um motivo — diz ela. — Venho
entregar-te uma carta que chegou do meu filho.
Do bolso do vestido retira um envelope: Toma, é para ti.
Estende o braço na minha direção. Perante a minha
passividade vai agitando nervosamente a encomenda. E
lamenta-se: Germano sempre foi dado à escrita. Espero que
perca esta mania. Escrever cartas é coisa de mulher.
Recolho finalmente o envelope. Não o abro. Levo-o ao
rosto e inspiro profundamente. Também já fiz o mesmo, diz
Laura, sorrindo. Nas cartas anteriores não encontrei o cheiro
do meu filho. Agora, sim: Germano voltou a ser meu filho.
A sua velha mãe, diz Laura, cheirava-lhe o cabelo para
saber da sua saúde. Já moribunda e incapaz de deglutir, a
velha senhora alimentava-se de aromas. De manhã
deixavam-lhe cascas de laranja sobre a cabeceira. À noite
esfarelavam folhas de hortelã no travesseiro. E a velha mãe
dormia sorrindo. E concluiu a velha mãe:
— Não vale a pena — diz Laura — cheirares essa carta,
minha filha: não encontrarás o teu namorado.
Com o envelope nas mãos, encaminho-me para o corredor
enquanto escuto as terríveis palavras:
Ele não vem, minha filha. Vai ficar por África, o meu
Germano.
Percorro de volta os corredores frios, seguindo o mesmo
soldado que me escoltou na ida. Contemplo os tetos de betão,
desejando que o edifício desabe sobre mim.
*
Acabo de me acomodar no quarto que nunca me pareceu
tão estreito. A porta escancara-se e eu não abro os olhos.
Escuto os lamentos de Dabondi. Não imagino quanto eu
mesma estou destroçada.
Mataram-no, clama a rainha. Vem da cidade, onde visitou
a campa do filho. Foi Godido que a acompanhou ao
cemitério.
Ele morreu e depois mataram-no, murmura a rainha. Foi o
que constatou naquela manhã. Enterraram-no conforme os
preceitos dos brancos. Não tiveram, contudo, o cuidado de
fazer chegar a notícia a Moçambique. E nunca aconteceram,
nesse outro lado, as devidas rezas. O seu único filho, João
Mangueze, veio para Portugal como um príncipe e foi
sepultado como um deserdado, sem nome nem família.
Agora deambula feito um xipoko, uma dessas almas sem
parentes.
— Sabes por que fui ao cemitério?
A pergunta é tão óbvia que me guardo calada. Dabondi
está agora mais tranquila, há mesmo um leve sorriso que lhe
aflora o rosto.
— Fui ver o falecido, mas também fui apresentar-lhe o seu
novo irmão.
Corro a abraçá-la. Desde o início da viagem que suspeitei
que Dabondi estava grávida. E aquele é um momento tão
feliz que decido não falar sobre a violação que acabou de me
suceder. Há contudo qualquer coisa que não sou capaz de
esconder. A rainha dá um passo atrás para melhor me
contemplar. Por que estás tão triste, Imani?, pergunta.
Germano não vem, respondo. Ela diz que já sabia. É o que
diz sempre a rainha, que já sabe. E eu acredito.
Dabondi olha o infinito enquanto esgravata na parede.
Depois, com um dedo tingido de cal, desenha um círculo
branco no meu peito.
— Quando deres à luz — diz ela — vais ficar vazia.
— Vazia? — pergunto com estranheza. — Não será o
inverso?
— Não falemos disso agora — pede.
E como insisto, a rainha vai abrindo o jogo: os deuses dar-
me-ão a felicidade de ser mãe. Contudo, esses mesmos
psikwembo pretendem manifestar o seu desagrado: estão
desapontados porque ignoro a sua existência.
— Vão-te apagar por dentro.
— Apagar-me? O que quer dizer isso, Dabondi? —
pergunto, ansiosa.
Terei o mesmo destino da figueira brava, a umbombe: serei
devorada pelas minhas próprias raízes. A rainha pronuncia
estas palavras e sai do quarto. A profecia rouba-me o sono. A
noite é agora um poço sem fundo. E mais fundo se torna
quando decido ler a carta de Germano. Rasgo o envelope e
algo se rompe dentro de mim.
*
Querida Imani
Esta não é uma carta fácil. Começo, assim, sem rodeios:
não vou para Lisboa. Não haverá barco, não haverá viagem.
Fico em Lourenço Marques. Haveremos de nos reencontrar
mais tarde, aqui em Moçambique ou quem sabe por aí, em
Portugal.
Não te quero magoar, não te quero perder. Todo o amor
que senti — e ainda sinto por ti — é absolutamente
verdadeiro. Não é da minha lealdade que podes duvidar. As
razões desta separação são outras. Posso ser teu marido. Mas
não poderei ser pai dessa criança. Estive preso numa cela, em
Portugal. Estive preso em Moçambique sem parede, sem
porta, sem grades. Não quero ficar preso a uma rotina
doméstica. Foi isso que aprendi com os meus colegas
casados. A vida em casal é a mais perpétua das prisões.
Talvez eu esteja doente, talvez me tivesse faltado uma
família. O meu velho professava uma espécie particular de
ateísmo: era descrente da felicidade. E dizia das pessoas da
aldeia: «Quanto mais estúpidos, mais felizes se tornam.
Quanto mais burros, mais facilmente adormecem.»
Há um outro motivo para esta decisão: não posso voltar
para Portugal enquanto não for derrubada a monarquia. Seria
imediatamente encafuado num calabouço. Ficarias na mesma
sem marido. E ficaria o nosso filho sem conhecer o pai.
Não sintas pena de mim. Estou bem por aqui, Imani.
Melhor do que alguma vez estive na terra onde nasci. Chorou
a minha mãe quando parti para a guerra. Chorou como se eu
saísse de um lugar de paz. Era um engano. Encontrei mais
sossego nas batalhas de África que alguma vez encontrei na
minha terra.
Desculpa a brevidade destas linhas. Mas esta é a mais crua
das verdades: a guerra despe os homens. A proximidade da
morte expõe a alma humana sem vestes, sem retoque, sem
disfarce. E acredita, Imani, a alma dos homens não é coisa
que se queira ver. É por isso que o melhor, por agora, é que
me mantenha distante. O amor que tivemos, e tivemo-lo
inteiro, sobreviverá. Não há palavra para dizer o que o amor
foi. E não há silêncio para esquecer o que o amor nos deixou.
Não sabes quanto me custam estas derradeiras palavras.
Teu, sempre teu
Lourenço Marques, 21 de março de 1986
Germano de Melo
PS. Talvez não voltemos a falar. Tenho que ter coragem
para dizer-te tudo. Estamos perante governos e exércitos
poderosos que matam, prendem e dividem as pessoas.
Todavia, há algo mais poderoso que qualquer governo ou
exército e é a viciada mentalidade que nos cerca. Contra a
violência deste insidioso cerco pouco podemos fazer. Não há
ilha nem exílio que nos salve desse reino da estupidez.
Fui sincero em tudo o que antes escrevi. É verdade que não
me agrada a ideia de sermos um casal com a sua vidinha
rotineira. É verdade que pouco me entusiasma ter filhos. A
nossa relação não foi, contudo, destruída por nenhuma das
razões que antes invoquei. Foi destruída muito antes de nos
conhecermos, muito antes de termos nascido. O mesmo
enredo que propiciou o nosso encontro, tornou impossível o
nosso amor. Estaremos mais próximos assim separados, do
que estaríamos vivendo juntos. Tu serias culpada por seres
negra. E eu seria odiado por ser o marido da negra.
Resistiríamos, no início. No final, porém, acabaríamos por
ceder ante o invisível exército do preconceito. O único modo
de vencermos é recusar a batalha. O nosso amor viverá como
estas cartas: só os teus olhos despertarão as palavras que
deitámos a dormir.
Capítulo 25
O bebedor de horizontes
Não vejo com os olhos. Vejo com os sonhos.
(Dabondi)
Querida Imani
Esta carta é uma surpresa. Sou eu, o Nwamatibjane Zixaxa,
que te escreve dos Açores. Como vês, foi muito bom ter
aprendido português. Na viagem aprendi a falar. Agora, na
ilha, ensinam-me a escrever. Nesta primeira carta ainda sou
ajudado por um soldado que se tornou meu companheiro.
Chamo-lhe Munganu. E ele risse, desconhecendo que o
chamo exatamente de «amigo», na minha língua. Passo mais
tempo na companhia dele do que com qualquer um dos que
vieram de Moçambique. Os brancos estranham essa minha
escolha. Devia ficar entre a «minha gente». Para eles somos
todos pretos, sem distinção. Não sabem que sou um mfumo.
E os outros três presos são vanguni, são da realeza dos zulus.
Não entendem por que confio mais neste soldado branco do
que em qualquer dos meus companheiros de cela. A próxima
carta, combinámos eu e Munganu, serei eu sozinho a
escrevê-la.
Viajámos para os Açores num navio chamado Zambeze. Já
o grande barco que nos trouxe de Moçambique se chamava
África. Ngungunyane acha que estes nomes foram atribuídos
em sua homenagem. Está doente o Leão de Gaza. Não lhe
chegava a velha embriaguez. Busca agora na loucura o
derradeiro refúgio. Durante toda a viagem dormiu abraçado a
uma garrafa de vinho. De manhã cedo lançava as garrafas
vazias contra as grandes aves que voavam sobre navio.
Na ilha Terceira fomos recebidos de maneira especial: não
houve insultos nem ameaças como aconteceu em Lisboa.
Disseram-nos que éramos hóspedes, não prisioneiros.
Deram-nos uma casa dentro do forte. Somos autorizados a
circular no grande recinto da fortaleza. Num dos edifícios
caiados a branco gravaram a ferro uma frase que, para nós,
os exilados, só nos pode fazer rir. Está escrito assim: «Antes
morrer livres que em paz sujeitos.» Aquelas palavras
recordam-me o pastor Machava ao desembarcar em Cabo
Verde. António Sérgio de Sousa despediu-se dele, com
visível culpa. E justificou-se: Há coisas, disse ele, que não
faríamos se não fosse a guerra. E o missionário respondeu:
Ninguém mais quer a paz do que os meus religiosos, que
aqui ficam presos. O que se passa, disse o pastor, é que, para
nós, viver é já uma guerra. E o comandante Sousa defendeu-
se, argumentando que tudo o que fazia era com o propósito
de acabar com a guerra. As últimas palavras de Roberto
Machava foram pronunciadas na sua própria língua: Quer a
paz, meu patrão? Pois nós queremos isso e muito mais.
Queremos uma outra vida.
Ouvi dizer que o Machava foi reenviado para
Moçambique. Os ingleses pressionaram tanto as autoridades
portuguesas que estas cederam e deixaram-no regressar. Mas
os outros crentes, seus seguidores, ficaram em Cabo Verde.
Ainda esperaram que Machava viesse buscá-los. Ou que
Deus fizesse justiça. Mandaram-nos trabalhar nas salinas. A
maior parte deles morreu, segundo me disseram. Assim que
era ensacado, o sal convertia-se numa pedra dura. Era um
problema da qualidade do sal. Mas os patrões culparam os
escravos de Moçambique. E castigaram-nos, obrigando-os a
dormir amarrados aos sacos. Os homens foram mirrando,
perdendo carne e substância. No dia em que choraram eles se
dissolveram. Pode ser mentira. Mas é isto que contam. Os
ausentes servem para isso mesmo: para serem convertidos
em histórias. Essas histórias regressam a Moçambique. E
assim os ausentes reencontram o seu caminho de volta.
Imagino que queiras saber como passo o tempo cercado
por tanto mar. Pois eu te digo: se esta ilha é uma prisão então
eu partilho com milhares de açorianos esse castigo. Sou aqui
tudo menos um prisioneiro. Por detrás da fortaleza há uma
mata extensa onde caçamos coelhos. As árvores aqui são
diferentes. Não sabemos que almas ali moram. Ngungunyane
não se descalça para entrar na floresta. Caminha sem pedir
licença por entre as árvores que desconhece. Os loucos estão
dispensados de temer os deuses. Para matar coelhos, o
Ngungunyane usa um pau que trouxe de Moçambique. Lança
essa estaca e nunca falha. Ngungunyane diz que essa madeira
foi tratada por Dabondi. Um dia, diz ele, lançará esse pau de
encontro ao oceano. Em vez de coelhos matará baleias.
Beneficiará, então, do respeito devido aos caçadores do mar.
De noite o rei circula pelo pátio e nós escutamo-lo a gritar
pelo nome da única mulher que amou: Vuiaze! Godido sai a
resgatar o pai. Abraça-o e entrega-lhe uma garrafa de vinho
doce. O rei guarda as rolhas de cortiça. Tem centenas dessas
rolhas, que foi juntando para construir um barco. Nesse
barco, diz ele, regressará um dia a Moçambique.
Confesso, Imani, que sinto pena de Ngungunyane. O
desgraçado já foi punido. Foi castigado da única maneira
possível: ele é o seu próprio carrasco. Agora nem precisa
beber: o horizonte enche-lhe os olhos, a solidão inunda-lhe a
alma.
Já a mim não me dói estar cercado pelo mar. Na verdade,
não é a primeira vez que estou numa ilha. Quando tinha vinte
anos os portugueses enviaram-me de castigo para a Ilha de
Moçambique. Perdoaram-me, depois. E deixaram-me voltar
para Lourenço Marques. Foi um erro. Se alguém devem
odiar é a mim. Fui eu — e eu sozinho — que ataquei
Lourenço Marques. Por pouco não venci, por pouco não
lancei os portugueses às águas da baía.
São curiosos os encontros e os desencontros deste mundo.
O militar que redige esta carta trouxe ontem um grupo de
outros soldados brancos. Sentaram-se à minha volta, muito
atentos, e perguntaram como era a minha terra. Querem fugir
da ilha, não aguentam a pobreza em que vivem. Muitos da
idade deles foram para o Brasil. Mas estes pensam que
África possa ser melhor destino, agora que deixou de haver
guerra. Queriam saber como era a vida lá na nossa terra.
Respondi-lhes o seguinte: Se me derem autorização conduzo-
vos para Moçambique e, se não mudarem de raça no
caminho, acabarão todos ricos. E riram-se, rimo-nos todos.
Rir junto é um abraço.
E é assim, minha filha. O Ngungunyane vai tecendo cestos.
Eu vou tecendo pequenas alegrias. Ser feliz é o melhor modo
de me vingar de Ngungunyane. O rei de Gaza entregou-me
aos portugueses? Pois agora é o que eu sou: um português,
um português de pele escura. Um português feliz que olha
para quem o traiu e o vê infeliz e bêbado. Aos fins de semana
levam-me às casas das mulheres. Durmo com elas, esqueço-
me das minhas esposas que ficaram longe. Eu e Godido
divertimo-nos nestes programas noturnos. Mulungo está
velho, nunca vai. Ngungunyane vai às vezes, quando está
sóbrio. Mas fica apenas o tempo para um primeiro copo.
Depois é vencido pelo medo que sente das mulheres. E volta
para casa sabendo que, mais que destronado, ele foi
despromovido da sua virilidade. O nosso Ngungunyane odeia
o mar, as mulheres e as andorinhas por essa mesma razão.
Ele receia o que não pode governar.
Não quero terminar esta carta sem te falar daquilo que sei
que te atormenta. Os três prisioneiros que foram fuzilados na
viagem. Pois agora te quero dizer: não te tortures, Imani. Não
és culpada. Fui eu quem, no barco, denunciou os planos de
Machava. Fui eu que impedi que o meu grande rival fosse
assassinado. Fiz isso com medo da reação que a morte do
Leão de Gaza iria provocar. Os portugueses iriam vingar-se
em mim. Seria também eu executado e deitado ao mar.
Despeço-me de ti, pedindo a este amigo que me empreste a
caneta que usou para redigir esta carta. Porque quero
escrever, agora por meu próprio punho: ita vunana musuko,
nkata Imane! Vemo-nos amanhã, querida Imani.
Ilha Terceira, 1 de julho de 1896
Nwamatibjane Zixaxa
Capítulo 28
O derradeiro idioma
Os portugueses arrancaram-me do meu chão.
Agora não tenho onde ser enterrado. Os que
rezarem por mim terão que olhar para o mar.
(Ngungunyane)
Visto-me quando devia morrer. Calço-me e já não há mais
chão. Empurram-me pelos corredores do forte, a trouxa da
roupa varrendo o caminho. Gritam os soldados, mandam que
nos apressemos. Chamam-nos nomes feios, que ofendem
mais as rainhas porque não os entendem. Desde que Dabondi
me amaldiçoou nunca mais voltei a falar em português. Foi
pena que o mau-olhado não me impedisse também de
compreender essa outra língua que, sendo dos outros, faz
parte da minha carne.
Vão-nos levar para uma ilha muito distante. É um exílio
dentro do exílio. As rainhas estão resignadas, nada as prende
a nenhum lugar. Não é o meu caso. Tenho o meu filho nesta
cidade. Peço ao comandante para me despedir do meu
menino. Ninguém me escuta. Já fui a tradutora de um rei. Já
fui espia ao serviço da coroa lusitana. Agora sou apenas a
décima primeira das pretas. Ainda há pouco dei à luz e nunca
mais verei o meu pequeno Sanga. Nunca mais encontrarei o
pai dessa criança, o meu Germano, o amor da minha vida.
Subo para a carroça, em total desleixo. Dabondi ajeita-me os
cabelos, aperta-me os botões do vestido. Faltam-me os
dedos, todo o corpo que eu tinha era para acarinhar o filho
que me roubaram.
Seguimos em silêncio em direção ao cais. Há quatro meses
entrámos numa cidade fria, atafulhada de gente. Saímos
agora de uma Lisboa quente e deserta. A meio do caminho
enlouqueço. E desato aos gritos: Dona Laura! Devolva-me o
meu filho, Dona Laura! As rainhas choram, abraçam-me,
escondem-me a cabeça nos seus vastos colos. Os cavalos
golpeiam o silêncio, os cascos são pedras percutindo pedras.
O barco onde viajaremos está agora à vista. Chama-se São
Tomé, o nome da terra para onde seremos desterradas. As
rainhas pisam descalças a laje do cais. Seguem de olhos
fechados, duas delas levam os rostos tapados com os xailes.
Faz quatro meses que nos deitaram num poço escuro, faz
duas semanas que nos roubaram as companhias dos homens.
Temem que a nossa tristeza se converta em raiva. A raiva
cria raízes. É por isso que nos levam pelo mar afora.
Ainda me resta uma última força. E protesto, mesmo sem
crença: se nos carregam de barco por que não nos deixam
nos Açores, onde já se encontram os nossos homens?
Esqueço-me, porém, de que agora apenas falo na minha
língua natal. Os soldados riem-se dos meus convictos mas
impercetíveis protestos. Mas eu sei por que não podemos ter
o mesmo destino dos homens. António Sérgio de Sousa já
antes me havia explicado: os Açores são uma terra de muita
religião. Recebem com piedade cristã os africanos
sofredores. Mas não aceitariam albergar o pecado da
poligamia. As cartas de Zixaxa não confirmam essa pureza
de costumes. Falam mesmo das casas de prostitutas que os
presos são levados a frequentar nos finais de semana. A
moral tem as suas interdições e os seus consentimentos no
que respeita às mulheres. Putas, sim. Amantes, talvez.
Polígamas, nunca.
Não vamos, pois, para os Açores. Mas também não nos
enviam de volta para Moçambique. E o motivo é simples de
entender: a chegada das rainhas pode atiçar animosidades
contra Portugal. E já se fala numa mulher — a rainha
Zambili — que lidera uma revolta às portas de Lourenço
Marques.
São doze dias de náuseas até aportarmos a São Tomé.
Grávida, Dabondi é quem mais sofre. A barriga já se nota, os
seios estão cobertos por um pano que será sempre o mesmo
até ao parto. No final, a rainha terá mais sorte do que eu. Na
ilha de São Tomé não haverá uma avó que lhe roube a
criança. Seremos dez tias ajudando a criar um filho que,
sendo dela, nos pertence a todas.
*
Não sabia que havia tantas Áfricas. Foi preciso uma ilha
pequena para aprender o tamanho das terras africanas. Em
São Tomé cruzam-se gentes, línguas e crenças de todo o
continente. E é de tal modo que nos guardamos quietos e
tímidos sempre que cruzamos com outro negro. Somos da
mesma cor de pele mas não somos da mesma raça. É por isso
que hesitamos antes de nos lançar em calorosas saudações. E,
no entanto, há sempre um gesto esboçado, um riso contido,
um silêncio escondido que partilhamos em cada encontro. Na
suspensa intenção de um abraço nos vamos adiando irmãos.
Na primeira semana somos albergadas nas dependências de
uma plantação que aqui chamam de «roça». Dormimos num
armazém de café. Ali nos ocupamos com o que já antes
fazíamos: absolutamente nada. Desta vez, porém, não há
grades nem soldados. Um único guarda — à civil e
desarmado — vigia à porta do armazém. Quando chove — e
chove constantemente — convidamos esse vigilante para se
abrigar no nosso teto.
Não sei o que seria de mim sem a companhia das rainhas.
A presença destas mulheres é mais uma prova da profecia de
Dabondi: as raízes da minha alma devolvem-me agora todo o
meu ser. Não se trata apenas de regressar ao idioma da minha
aldeia. Estas mulheres trazem de volta a minha terra e a
minha gente. E trazem-me de volta a mim.
Este convívio tão familiar tinha, porém, os dias contados.
Na segunda semana somos separadas. Muzamussi, a
matriarca, é conduzida para um estaleiro no sul da Ilha. É a
mais corpulenta, obrigam-na a carregar pedras para as obras.
Oito das restantes rainhas são levadas a trabalhar no hospital.
Ali prestarão serviços de limpeza. Ficarão alojadas nos
anexos da unidade hospitalar. Dabondi e eu somos as únicas
que permanecemos no armazém de café. A razão não é
exatamente a melhor: acham-nos as mais atraentes, somos
postas a servir num bordel para o exército. Não se apercebem
de que Dabondi está grávida. E ela prefere nada dizer. Tem
medo que, ao ser tida como imprestável, seja deitada aos
bichos. Cumpre-se, enfim, o augúrio de Bianca Vanzini: sou
finalmente uma mulher da vida, vendendo-me de noite como
uma coisa de carne.
Todas as noites eu e a rainha percorremos um caminho de
areia ladeado por coqueiros. Esse atalho leva-nos ao bar onde
os soldados nos esperam. De madrugada regressamos
exaustas e embriagadas ao armazém da roça. Adormecemos
ao som das carroças e dos carregadores empilhando os sacos.
São negros, jovens, cirandam de tronco nu. Transportam a
carga como fazemos nós as mulheres: à cabeça. Os corpos
libertam um aroma doce, o mesmo que emana dos grãos de
café. Esse aroma entorpece os sentidos. Estranho sofrer
aquele que vicia como uma bebida: a própria carga impede
que sintam o cansaço.
Certa manhã, a rainha acorda-me. Escorre-lhe sangue pelo
rosto, foi espancada por um cliente a quem recusou servir.
Vem comigo, diz ela. Vamos à casa do administrador.
Dabondi sabe coisas que eu não sei: o administrador
português chama-se Almada Negreiros, a mulher dele é
mulata, natural da terra, e está gravemente doente. Levanto-
me com custosa obediência: E o que vamos lá fazer? Não
espera resposta, apressando-me porta fora. No caminho,
passo estugado, respiração ofegante, Dabondi explica-se: vai
pedir emprego na casa dos Negreiros. Fico a tomar conta dos
filhos do casal, diz ela.
Vamos subindo encostas, cruzamos riachos e cascatas e
atravessamos extensas plantações. Os cafezeiros estão em
flor, rendas brancas tocam os nossos braços. Não gosto desta
paisagem, resmunga ela. Nunca vi o mato tão penteado.
Todo o caminho a rainha vai tateando o ventre. Um fio de
sangue escorre-lhe pelas pernas. E pragueja: Se esse homem
magoou o meu filho, eu mato-o!
A casa do administrador Negreiros fica assente em pilares
e em redor há grutas por onde escorrem fios de água que
nascem dos céus. Vais conhecer Dona Elvira, a mulher desse
branco, estou certa de que nunca viste olhos tão grandes,
adverte Dabondi.
— Ela está muito grávida — acrescenta a rainha —, deve
estar quase a parir, se demorar mais uns dias saltam os
olhos das órbitas. Pede-me que lhe sirva de tradutora. A
princípio resisto: A senhora roubou-me o português, agora,
mesmo que queira, já esqueci. Lacónica, Dabondi afirma:
Vais falar!
Após longa espera, surpreendemos o administrador e a
esposa saindo para o hospital. Dabondi apresenta-se. Fala da
sua origem, da corte de Gaza. O funcionário observa-nos,
desconfiado. Rainhas?, pergunta com sarcasmo. E apressa a
esposa que traz um menino pela mão: Vamos, Elvira? Não
temos tempo para isto.
Com firmeza, Dabondi interpõe-se entre o casal. Enfrenta,
em desafio, o português: Eu conheço-o, senhor
administrador. Quer que diga como nos encontramos? Sem
que eu traduza, António Almada Negreiros parece perceber.
Em silêncio, encosta-se a uma parede. A rainha aproxima-se
de Dona Elvira, leva as mãos à barriga e proclama:
— Por favor, minha senhora. Olhe para mim, também
estou grávida. Como me podem obrigar a deitar com os
soldados?
Dona Elvira fixa os olhos na negra que ousa barrar-lhe o
caminho. Não parece contrariada. Pelo contrário, tem um ar
fascinado. Toca nas pulseiras que cobrem o braço da rainha.
— És de Angola? — pergunta. — Reconheço os teus
traços, vens de Benguela…
A rainha não entende mas responde afirmativamente. O
administrador reage, nervoso. Tem pressa e mais apressado
se sente por estar a ser incomodado por aquelas duas
estranhas.
— Por favor, minha senhora, fale com o seu marido! —
insiste Dabondi.
De repente, a rainha deixa de pedir. Está descalça, mas fala
do trono da sua dignidade. A senhora tem sangue negro, vai
ter que me ajudar, declara. A família do administrador está
parada, suspensa das palavras que empolgadamente vou
traduzindo. A esta minha amiga — e Dabondi aponta para
mim — tiraram-lhe o filho. E a mim… — detém-se, engole
em seco e só depois retoma o discurso — … a mim
acabaram de maltratar o meu filho.
— E onde está esse menino? — pergunta a esposa do
administrador.
— Está aqui, dentro de mim.
O administrador puxa pelo braço da relutante esposa.
Deixe-me!, reage ela com firmeza. O marido, mais
delicadamente, insiste: Vamos, Elvira. Elas que venham
depois.
Não houve depois. No dia seguinte Dabondi perdeu o filho
no hospital. Num outro quarto, da mesma casa de saúde,
morreu no parto a esposa do administrador Negreiros. Assim
que soube da notícia, Dabondi saiu do seu quarto e, com
passo decidido, atravessou as linhas que, naquele hospital,
separavam as raças. Uma enfermeira perseguiu-a todo o
caminho, advertindo-a das consequências daquela
insubordinação. No quarto da falecida Elvira, a rainha
irrompeu por entre os consternados visitantes, foi ao berço e
pegou ao colo o recém-nascido. Embalou-o e conduziu-o até
ao pequeno irmão. O menino fixou nela os desorbitados
olhos que herdara da Elvira. Dabondi falou em xizulu: O teu
irmão nasceu enquanto o meu filho morria. Duas sombras se
tocaram, nos meus braços encontrarás a tua mãe…
Não tinha sentido traduzir. Nem teria tempo para o fazer:
as outras rainhas, entretanto, já se haviam reunido no
hospital. E conduzem Dabondi de regresso a casa.
— Vais escrever a informar Ngungunyane — ordena
Muzamussi no caminho. Quando uma criança morre no
ventre diz-se que «decidiu voltar». E há culpas que pesam
sobre a mãe. Devemos dizer a Ngungunyane que não foi este
o caso. Este menino foi morto. É imperioso informar o pai,
mesmo sabendo que a notícia levará tempo a chegar aos
Açores.
— É Godido quem tem que ser avisado, reage Dabondi. E
acrescenta: É só ele quem tem que saber.
*
Estou de joelhos junto à esteira onde repousa Dabondi. Os
carregadores de saco, por respeito, depositam a carga no
exterior do armazém. Os olhos dela estão cravados no teto, e
eu rezo em zulu, a única língua que os nossos deuses
entendem. Desfio uma improvisada de oração e Dabondi
escuta sem me interromper:
Minha rainha, a senhora apagou-me o idioma que aprendi
na escola, arrancou uma das minhas mais antigas raízes.
Não me apagou, contudo, a arte de ler e escrever em
português. Pois agora sou eu que lhe peço: leve-me também
esses dons. Não quero mais papel, não quero mais tinta, não
quero mais caneta. A escrita dói-me, e eu desejo destatuar a
alma. Talvez a senhora não saiba, mas as palavras, quando
grafadas, amarram o tempo. Se não posso rever o meu filho,
não quero mais o tempo, não quero nenhuma lembrança. Por
isso lhe imploro: rasgue todas as folhas antes de estarem
escritas e converta em água toda a gota de tinta. Quero-me
vazia. E quando não houver em mim nenhum idioma, peço-
lhe que me apague a língua dos sonhos. Porque me basta a
noite dos bichos: um tempo para simplesmente nascer e
morrer.
E regresso ao silêncio. De olhos fechados, a rainha
Dabondi ergue o braço à procura do meu rosto. Os dedos
tateiam-me os olhos, descem-me lentamente pelas faces e
depois cruzam-me a boca como duas lâminas. Está exausta,
não me quer mais escutar. Mas ainda volto à fala:
— Nós nunca mais vamos voltar, Dabondi.
— É melhor assim, minha filha, é melhor morrermos por
aqui — afirma a rainha. — Perdemos os nossos filhos, não
deixamos semente neste mundo. Não somos ninguém. Não
temos para onde voltar, Imani.
Capítulo 29