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EDITORES

<<( . .) aquilo que os gregos chamam alêtheia,


a desocultação, o descobrimento.
Aquele olhar que às vezes está pintado
à proa dos barcos.))

Sophia de Mel/o Breyner Andresen


Título original: Co6a�be cepa4e

© 2014, Alêtheia Editores

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ALÊTHEIA EDITORES
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www.aletheia.pt

Tradução:
Sílvia Valentina

Capa:
Hugo Neves

Paginação:
Rita L.Henriqucs

Impressão e acabamento:
Várzea da Rainha Impressores, Óbidos
www. varzcadarainha. pt

ISBN: 978-989-622-606-0
Depósito Legal: 371121/14

Fevereiro de 2014
1

''Auuuuuuuuuu! Oh, olhem para mim, que


estou moribundo . . . A tempestade parece apre­
goar os meus ritos fúnebres, e eu uivo com ela.
Estou completamente perdido! O canalha do cha­
péu sujo - o cozinheiro da cantina que serve o
Conselho Central de Economia Nacional - atirou­
-me água a ferver e escaldou-me do lado esquerdo.
Patife! Ainda por cima é proletário! Oh meu Deus,
como dói! Estou queimado até aos ossos. Assim,
eu uivo e uivo, mas de que me serve uivar?
Que mal lhe fiz eu? O quê, será que ele pen­
sa que o Conselho Central de Economia Nacional
passa fome se eu comer uns restos da sua dispen­
sa? Imbecil avarento! Percam uns minutos a olhar
para a fronha dele: bochechas gordas e largas,
quase maiores que ele. Grandessíssimo ladrão!
Ah, povo, ajudem-me! O chapéu-branco deu-me a

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MIKHAIL BULGAKOY

provar água a ferver ao meio dia, agora está escuro,


cerca das quatro da tarde, a julgar pelo chei­
ro a cebola vindo do quartel dos bombeiros de
Pretchistenska. Os bombeiros têm direito a papa
de cereais para o jantar, como sabem. Mas isso
não me preocupa, pois é tão mau como cogume­
los. Cães que conheço de Pretchistenka disseram­
-me que há uma tasca no bairro de Neglinka onde
as pessoas enfardam o prato do dia, cogumelos
com molho picante, a três rublos e setenta e cin­
co a dose - para mim é tão mau como lamber
galochas ... Auuuuuuuu! Tenho tantas dores aqui de
lado, já estou mesmo a ver onde isto vai dar: amanhã
vou estar cheio de feridas, e gostava de saber como
é que as curo. Se fosse verão, ainda podia passar no
parque Sokolnik, onde há uma erva especialmente
boa. Além disso, pode-se comer umas pontas de
chouriço de graça, ou lamber os papéis gorduro­
sos que os cidadãos por ali deixam. Se não fosse
aquela palerma a cantar "Celeste Aida" ao luar, era
óptimo. Mas assim, para onde devo ir?
J á alguma vez me deram p ontap é s ? Sim.
Já alguma vez levei com tijolos nas costelas? Várias
vezes. Já sofri tudo isso e passei por outro tanto,
mas aceito o meu destino. Se agora choro é pela
dor física e pela fome, porque a minha alma ain­
da não foi vencida. A alma de um cão é resistente.
O meu corpo, porém, está estropiado, mago­
ado, maltratado. Mas o pior é que a água a fer­
ver entranhou-se no meu pêlo, e agora tenho

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CORAÇÃO DE CAo

o lado esquerdo a descoberto, sem protecção.


Po s s o facilmente ap anhar uma p neumonia
e, aí, caros cidadãos, estou feito, morro à fome.
Com uma pneumonia deve-se ficar no quentinho,
no vão da escada, junto à entrada principal da
casa. Aí me deito, como cão doente e solteiro
que s ou, mas quem vai procurar comida nos
caixotes de lixo p ara mim? Com o pulmão
afectado, andarei a arrastar-me, enfraquecido,
e qualquer um me poderá facilmente matar à
p aulada. E d e p o i s , o s varre dores de ruas
p egam-me p elas p atas e atiram-me p ara o
seu carro.
Estes varredores s ão os piores dos proletá­
rios. Umas autênticas bestas, a categoria mais
baixa do ser humano. Os cozinheiros, por outro
lado, podem ser de diferentes espécies. Por exem­
plo, o falecido Vlas, da rua Pretchistenka. Quantas
vidas não salvou! O mais importante quando se está
doente é comer qualquer coisa - e contam os velhos
cães que o Vlas atirava ossos com carne agarrada.
Que Deus o guarde! Era uma verdadeira celebri­
dade, um ser humano decente, o cozinheiro dos
condes Tolstoi, por oposição ao da cantina do
C o n s elho C entral de E c o nomia N acional.
O que eles fazem nessa cantina nem passa pela ca­
beça de um cão. Estes imbecis confeccionam sopa
com toucinho podre e malcheiroso, e os coitados
nem s abem o que comem. Chegam a correr,
devoram-na e ainda lambem os pratos.

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MIKHAIL BuLGAKOV

Só de pensar naquela mulher, a dactilógra­


fa, que recebe o ordenado mínimo, 45 rublos...
É verdade que o amante lhe vai oferecendo umas
meias finas. Mas por quanta humilhação tem que
passar! E ele não a possui de uma forma qual­
quer, aquilo é amor à francesa! E, aqui para nós,
os franceses são uma escumalha, embora comam
do melhor e acompanhem tudo com vinho tinto.
Sim, a pequena dactilógrafa come na cantina, pois
não tem sequer dinheiro para ir à tasca do bair­
ro de Neglinka, e nunca lhe chega para o cinema,
a única satisfação que uma mulher tem na vida.
A pobrezinha estremece, torce o nariz, mas lá en­
gole. Pensem bem: 40 copeques por dois pratos,
quando estes não valem sequer um tostão! E ain­
da por cima o administrador embolsa 25 cope­
ques por cada prato. Será que uma refeição assim
lhe faz bem? Além disso, tem o pulmão direito
afectado, atormentam-na as doenças femininas
devido às francesices, reduziram-lhe o ordena­
do, e na cantina ainda lhe servem comida podre.
Mas ela lá vai, correndo com as meias que o aman­
te lhe ofereceu. Tem as pernas frias, o vento sopra­
-lhe na barriga porque os seus pêlos são como os
meus agora, e ela usa roupa interior fria, de ren­
das. Tudo por causa do amante. Se ela a usas­
se de flanela, de certeza que ele lhe berrava: 'que
deselegância! Pareces uma saloia! Estou farto de ti,
não posso ver roupa interior de flanela. Chegou a
minha hora. Agora, que sou presidente, tudo o que

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CORAÇÃO DE CÃO

roubar é para mulheres e vinho de Abrau-Diurso.1


Já sofri muito na vida, agora chega! Vivo o momen­
to, a vida depois da morte não existe!'
"Eu tenho pena dela, a sério. Mas tenho ain­
da mais pena de mim. Não digo isto por egoísmo,
nada disso, apenas porque as nossas vidas não se
podem comparar. Ela, pelo menos, pode-se aquecer
em casa.Já eu ... Para onde irei? Espancado, escalda­
do, cuspido em cima, para onde irei? Auuuuuuuuu!"
- Cãozinho, vem aqui, cãozinho! Charik.2, charik,
estás a ganir, coitadinho? Quem foi que te fez mal?
A tempestade abafou-lhe as palavras, levantando­
-lhe a saia e pondo a descoberto as meias e a risca
estreitinha da roupa interior mal lavada. O cão fi­
cou coberto de neve.
"Santo Deus, que tempo horrível. Dói-me tan­
to a barriga ... deve ser da carne podre! Quando é
que isto acaba?"
Baixando a cabeça , a mulher avanço u e
atravessou o portão. Na rua o vento envolveu-a,
fê-la revirar, cobrindo-a de neve até desaparecer.
O cão ficou na entrada. Com dores na parte
ferida, encostou-se à parede fria, respirou fundo
e decidiu firmemente não ir a lado nenhum, e mor­
rer ali mesmo. O desespero preencheu-o. Sentia­
-se tão só e abandonado que pequenas lágrimas lhe
escorreram dos olhos, e logo congelaram. O pêlo,

1 Vinho muito conhecido na Rússia, fabricado na Crimeia (N. do T.)


2 Bolinha. Nome dado aos cães vadios (N do T.)

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MIKHAIL BULGAKOY

feito pedra, ressaltava na anca ferida, mostrando as


manchas avermelhadas deixadas pela queimadura.
Que brutos, estúpidos e cruéis são os cozinhei­
ros! Ela chamara-lhe Charik. Diabo. Qual Charik?
Charik quer dizer rechonchudo, peludo, nutri­
do, pateta, filho de pais de pedigree reconhecido,
que come papas de aveia; enquanto ele era escan­
zelado, sem pêlo, um vira latas vagabundo e sem
abrigo. Fosse como fosse, soube-lhe bem o elogio.
Do outro lado da rua ouviu-se uma porta a ba­
ter. Apareceu um cidadão. "Sim, um cidadão, e
não um camarada. Ou melhor - um cavalheiro.
Quanto mais se aproximava, maior a certeza -
sim, era um cavalheiro. Acham que estou a julgá­
-lo pelo sobretudo? Que disparate! Os proletários
agora também usam sobretudo. É verdade que não
usam as mesmas golas, nem vale a pena comparar,
só que ao longe não se percebe, confundem-se.
Mas os olhos, esses, não enganam - nem de perto
nem de longe. Oh, os olhos são muito importan­
tes. São como barómetros. Pelos olhos vê-se quem
tem a alma grande e pura, quem é capaz de rios
dar um pontapé nas costelas sem razão nenhuma,
e quem tem medo. A estes últimos até dá prazer
dar uma dentada no tornozelo. Tens medo? Toma.
Se tens medo, mereces... Grrrrr.... Auff! "
O cavalheiro atravessou a rua, seguro, cortando
pelo nevão e dirigindo-se para a entrada. "Sim, este
topa-se à distância. Nunca na vida há-de comer car­
ne fedorenta. E, mesmo que um dia lha servissem,

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CORAÇÃO DE CÃO

faria um escândalo e ia dizer aos jornais que 'a mim,


Filipe Filipovitch, deram-me comida estragada.'
O senhor está-se a aproximar. Este é dos que
come bem e não rouba, nem dá pontapés, nem
tem medo de ninguém. Não tem medo porque não
passa fome. Vê-se que é intelectual. Tem a barba
à francesa, bigode grisalho, fofinho e afoito, qual
cavalheiro francês. Porém, o cheiro que deixa no ar
não é nada agradável. Cheira a hospital e a charuto.
Mas que diabo, o que irá ele buscar ao arma­
zém do Tsentrokhoz? Já está perto. De que estará
à procura? Uhh ... O que poderia comprar num ar­
mazém tão reles? Será que não consegue abastecer­
-se nas lojas chiques de Okhotny Ryad? O quê,
chouriço? Senhor, se soubesse de que é feito
esse chouriço, nem se aproximava da loja. O me­
lhor é dar-mo a mim."
O cão reuniu as últimas forças e arrastou-se
freneticamente para o passeio. O vento forte
disparou como uma arma à sua cabeça e desta­
pou as letras enormes de um placar onde se lia:
"É possível rejuvenescer?"
"É claro que é. O cheiro rejuvenesceu-me,
arrebitou-me, e um calor aqueceu-me o estômago,
faminto, que não sentia comida há dois dias. O divi­
no cheiro do chouriço, com alho e pimenta, venceu
o odor a hospital. Consigo senti-lo, encontra-se no
bolso direito do seu casaco. Ele está quase ao pé de
mim. Oh, meu Deus! Olhe para mim! Ah, que te­
mos as almas escravizadas, um destino miserável!"

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MIKHAIL BULGAKOV

O cão rastejou como uma cobra, desfazendo­


-se em lágrimas. "Olhe o que o cozinheiro me fez ...
O chouriço. Sei que nunca na vida mo dará - oh,
eu conheço os ricos muito bem. Mas, falando a
sério, para que quer esse chouriço, esse naco
apodrecido de carne de cavalo? Em nenhum sítio, a
não ser nos estabelecimentos dos Produtos Agríco­
las de Moscovo, se pode comprar um veneno des­
ses. O senhor já tomou o pequeno-almoço, é uma
pessoa importante, vê-se pelo seu porte masculino.
Oh, como anda este mundo. Se calhar ainda é
cedo para morrer, e o desespero é pecado. Vou
lamber- -lhe as mãos, não tenho outra alternativa."
O cão notou-lhe o brilho dourado das lunetas.
O misterioso homem inclinou-se para ele, retiran­
do um embrulho branco e comprido do bolso.
Sem despir as luvas castanhas, desenrolou o papel,
que logo foi levado pelo vento, partindo um peda­
ço de chouriço "Especial de Cracóvia" e dando-o
ao cão. "Oh! Alma generosa! Oh! "
O senhor assobiou, chamando, em tom severo:
- Toma, Charik, Charik!
Outra vez Charik. Baptizaram-me. Bem, chamem­
-me o que quiserem, o que conta é a boa acção.
Num instante o cão rasgou a pele do chouriço,
soluçando, cravou-lhe os dentes e engoliu tudo de
uma só vez. Ainda se engasgou com o chouriço
e a neve, pois ia engolindo o cordel, tal era a avidez.
"Mais, quero mais! Lambo-lhe a mão, beijo-lhe
as calças, meu benfeitor! "

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CORAÇÃO DE CAo

- Por agora chega - a voz do cavalheiro era


determinada, como se estivesse a dar uma ordem.
Inclinou-se, olhou curioso nos olhos de Charik e,
sem mais, passou-lhe a mão pela barriga, com
ternura.
- Ah.- disse, com ar sabido - não tem colei­
ra. É mesmo de ti que eu andava à procura! Vá, vem
comigo. Anda cãozinho, segue-me... - disse, asso­
biando.
"Segui-lo? A si sigo-o até ao fim do mundo,
se for preciso! Pode dar-me pontapés com os seus
sapatos de feltro, pode fazer o que quiser, que
eu não direi uma palavra."
O bairro de Pretchistenka brilhava à luz dos can­
deeiros. A ferida doía-lhe horrivelmente, mas, por
vezes, Charik esquecia-se dela, de tão preocupado
em não perder o espectro milagroso no meio da
multidão, e em expressar-lhe o seu amor e devo­
ção. Pelo caminho, desde a rua Pretchistenka até
à trave ssa Obukhov, Charik mostrou a sua fide­
lidade umas sete vezes: lambendo-lhe a bocinha;
tentando abrir caminho, ladrando com tanta for­
ça que uma senhora se assustou e caiu sentada no
passeio; ganindo algumas vezes, para que o homem
continuasse a sentir piedade dele.
Numa esquina cruzaram-se com um gato vaga­
bundo, todo emproado, dando ares de siberiano,
que tinha farejado o chouriço apesar da tempesta­
de. Foi o que bastou para o cão perder o juízo: só
de imaginar que aquele estranho homem rico, que

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MIKHAIL BULGAKOV

recolhia cães feridos pela rua, poderia ficar tam­


bém com aquele ladrão, com quem teria de repar­
tir o chouriço, Charik rosnou-lhe com tanta raiva
que o gato trepou, sibilando, por uma chaminé até
a um segundo andar. "Grrrrr. Não há chouriço para
todos os vagabundos! "
O homem apreciou a dedicação de Charik e
recompensou-o ali mesmo, ao lado do quartel
dos bombeiros, com mais um pedaço de chouriço,
embora mais pequeno do que o primeiro.
"Oh, está a aliciar-me? Não se preocupe!
Não vou fugir. Irei atrás de si para onde for! "
- Cãozinho, cãozinho, para aqui.
"Para a travessa Obukhov? Sim senhor. Conhe­
ço muito bem estes lados."
O senhor assobiou de novo, chamando o cão.
"Para aqui? Com muito prazer ... Espere.
Oh, não, desculpe. Não. Aqui há um porteiro,
e os p o r teiros são do pior. P iores do que
os varredores de ruas, piores do que os gatos,
uma raça insuportável de esfoladores sem
comparação! ''
- Não tenhas medo. Entra.
- Boa noite, Filipe Filipovitch.
- Boa noite, Fiodor.
"Mas que personalidade. Meu Deus! Para
onde me trouxe a minha sorte de cão! Quem
é este homem que, sem mais nem menos, pode
trazer cães vadios para um condomínio fecha­
do? O porteiro, aquele patife, nem um movi-

14
CORAÇÃO DE CAo

mento, nem uma palavra! É verdade que os seus


olhos não auguravam nada de bom, mas, enfim,
ficou indiferente, como se aquilo fosse normal.
Tem muito respeito pelo meu salvador, isso tem.
E eu vou com ele, sigo-o. E agora? Queres-me
tocar, não queres? Não podes. Com que prazer
te mordia essa perna de proletário, por todas as
humilhações e maldades que os da tua espécie
me infligiram. Quantas vezes me bateram com
a vassoura?"
- Vamos, anda.
''Não se preocupe. Para onde o senhor for, eu
irei também. É só indicar o caminho, que eu sigo-o.
Mesmo com esta dor desgraçada."
Já do cimo das escadas, o senhor gritou cá para baixo:
- Não há correspondência para mim, Fiodor?
Lá de baixo, ouviu-se, em tom respeitoso:
- Não, Filipe Filipovitch, senhor - baixando a
voz, Fiodor acrescentou, em tom comprometido:
- No terceiro andar, alojaram novos inquilinos.
O benfeitor de Charik virou-se bruscamente.
Inclinando-se para baixo, exclamou, horrorizado:
- Não pode ser!
Os seus olhos abriram-se, espantados, e os bi­
godes ergueram-se.
O porteiro levantou a cabeça e confirmou em
voz baixa:
-É um facto. Quatro pessoas.
- Credo! Imagino o que se esteja a passar no
apartamento. E então, que fazem eles?

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MrKHAIL BuLGAKov

- Nada.
- E o Fiodor Pavlovitch?
- Foi comprar biombos e tijolos. Quer fazer di-
visões.
- Mas que diabo se está a passar?
- Vão alojar camaradas em todos os andares, me-
nos no seu. Houve uma reunião. Foi eleita a nova
sociedade e correram com os da antiga.
- Que tempos! Vamos, Charik.
"Pois vou, eu bem me esforço. Só que a ferida
dói tanto! Permite-me lamber-lhe a botinha?"
Lá em baixo, o porteiro desapareceu. Subiram
até um patamar de mármore, dobraram mais uma
esquina e chegaram, enfim, a casa.

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II

Não vale a pena aprender a ler quando se con­


segue cheirar a carne à distância. Então quando
se vive em Moscovo, e se tem dois dedos de tes­
ta, aprende-se quase sem querer, mesmo não indo
à escola. Dos 40 mil cães moscovitas, só um ou
dois, completamente idiotas, não conseguem unir
as letras da palavra "chouriço". Charik começou a
aprender através das cores. Tinha ele apenas quatro
meses quando, por toda a cidade, apareceram pla­
cas azuis e verdes com a inscrição "VC - venda de
carne". O que, repita-se, era completamente des­
necessário. A carne sente-se pelo cheiro, ninguém
precisa de inscrições.
Certo dia, houve uma pequena confusão:
Charik estava sem olfacto por causa do fumo da
gasolina dos carros e, orientando-se pela cor azul
do cartaz, sem receio algum, entrou no arma-

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M1KHAIL BuLGAKov

zém de material eléctrico dos irmãos Golubizner,


na rua Miasnitskaia, em vez de entrar no talho.
Aí, o infeliz cão levou com o cabo eléctrico, que
é pior do que levar com um chicote de cochei­
ro. Pode considerar-se este momento histórico
como o início da aprendizagem de Charik. De vol­
ta ao passeio, Charik apercebeu-se de que "azul"
nem sempre significava "carne". Com a cauda en­
tre as pernas, e uivando de dor, o cão lembrou-se
que, nos talhos, a primeira letra era dourada ou cor
de laranja, parecida com uma lua - "C".
A partir daí, tudo lhe correu melhor. O "E"
aprendeu na Central de Peixe, na esquina da rua
Mokhovaia (tendo aprendido não com o início
da palavra, mas com o fim, que era o lado por onde
se aproximava da loja, pois havia sempre um polí­
cia por baixo do placar, onde começava a palavra).
Por regra, havia nas esquinas das ruas moscovi­
tas uns quadradinhos coloridos de azulejos que sig­
nificavam forçosamente "queijo". A primeira letra,
muito parecida com a torneira de um samovar (que
fervia a água para o chá), fazia lembrar queijo ho­
landês, o antigo dono da loja de queijo Tchitchkin,
serradura no chão, produtos malcheirosos, e em­
pregados de balcão selvagens que odiavam cães.
Se nalgum sítio se ouvia harmónica (o que não
era muito melhor do que a "Celeste Aida") e chei­
rava a salsicha, então as primeiras letras do car­
taz branco juntavam-se facilmente: "Proibi ...", o
que significava "Proibido dizer palavrões. Não dar

18
CORAÇÃO DE CÃO

gorjeta." Nesse sítio eram frequentes as brigas, e


as pessoas chegavam mesmo a levar murros na cara.
O certo é que os cães apanhavam constantemente
pontapés, ou então eram agredidos com guardana­
pos de pano e botas.
Quando, nas montras, havia clementinas e pre­
suntos pendurados, o significado era "gastrono­
mia". No caso de garrafas escuras com um líquido
de mau aspecto, tratava-se de ''Vi-i-nhos", ou seja,
a loja dos antigos irmãos Yelisseyev.
Depois de conduzir o cão até à porta do seu
luxuoso apartamento, o cavalheiro tocou à cam­
painha. Charik levantou a cabeça para a placa
preta pendurada junto à porta envidraçada, onde
se viam letras douradas. As primeiras três não eram
difíceis de ler: "pe-er-o" - "pro". Depois, seguia-se
uma letra estranha. Era a primeira vez que Charik
a via, e não sabia o que queria dizer. "Será que é
proletário?", pensou, espantado. "Não pode ser."
Levantou mais uma vez a cabeça, farejando o so­
bretudo do seu salvador, e concluiu:
"Não, aqui não cheira a proletário. A palavra é
esquisita, científica. Só Deus sabe o que quer dizer."
De repente, surgiu uma luz através do vidro cor­
-de-rosa da porta, que se abriu silenciosamente.
Diante do cão e do senhor assomou uma mulher
nova e bonita, de avental branco e touca de renda
na cabeça. A sua roupa cheirava a lírios, e Charik
sentiu imediatamente um calor de alívio.
"Isto sim, isto é que é", pensou ele.

19
MIKHAIL BuLGAKOV

- Faça o favor de entrar, senhor Charik -


disse, ironicamente, o dono do apartamento.
Charik passou pela porta com devoção, abanan­
do a cauda.
À entrada estavam amontoados inúmeros
objectos caros. O cão notou logo num espelho
enorme, da altura de um homem, com uns chifres
de veado horrorosos por cima, e dezenas de casacos
e galochas. Ao passar defronte do espelho, Charik
deu por si velho e deturpado. A luz vinha de cima,
de um abajur em forma de túlipa.
- Filipe Filipovitch, onde foi buscar isto? - indagou,
sorridente, a mulher, enquanto ajudava o cavalhei­
ro a tirar o sobretudo - Credo! Que cão tinhoso!
- Que disparate! Onde é que é tinhoso? - excla­
mou o senhor, em tom severo.
Por baixo do sobretudo, vestia um fato preto
de tecido inglês, sobre o qual brilhava uma cor­
rente de ouro.
- Espera, espera, está quieto. Pára de andar
às voltas, seu pateta. Hmm. Não é nada tinhoso.
Pára quieto, já te disse! Hmm ... Pois, isto é uma
queimadura. Quem foi o miserável que te fez isto?
Quem foi?
"O cozinheiro. Foi o patife do cozinheiro", res­
pondeu o cão, com um olhar triste, uivando baixinho.
- Zina - ordenou o cavalheiro - leve o cão para
a sala de observações, e traga-me a bata!
A mulher assobiou, estalou os dedos, e o cão,
depois de hesitar ligeiramente, foi atrás dela.

20
CORAÇÃO DE CÃO

Atravessando um c o r redor estreito e m a l


iluminado, passaram junto a uma porta enverni­
zada e, ao fundo, viraram à esquerda e entraram
numa divisão escura. Pairava um cheiro sinistro que
fez com que Charik desgostasse logo do ambiente.
" O h não! " u i v o u , mentalmente, Charik,
"desculpem , mas não me deixo apanhar.
Agora percebo tudo muito bem! Raios vos
partam, e ao vosso chouriço! Atraíram-me a um
hospital de cães! Agora vão-me obrigar a engo­
lir óleo de rícino ou a ser operado à queimadura."
- Hei, para onde julgas que vais? - gritou a
mulher, Zina.
O cão esquivou-se, estirando-se, e, subi­
tamente, bateu na porta com o flanco direi­
to com tanta força que se ouviu o estrondo
por todo o apartamento. Depois, saltou para
trás, girando como um pião, entornou um balde
branco e o piso ficou cheio de bolinhas de algodão.
Enquanto girava, Charik viu as paredes rodarem
à sua volta com armários cheios de instrumen­
tos brilhantes, uma bata branca e uma cara de
mulher, desfigurada.
- Para onde vais, demónio peludo? - gritava
Zina, desesperada - seu maldito!
"Onde será a escada de serviço?", indagava o
cão. Por impulso, bateu num vidro, na esperança
de que fosse a segunda porta. Uma nuvem de es­
tilhaços caiu com um estrondo, fazendo saltar um
frasco redondo cujo conteúdo, cor-de-laranja e
MIKHAIL BuLGAKOY

repugnante, logo se espalhou pelo chão, empestan­


do o ar. Abriu-se então a porta verdadeira.
- Quieto, seu bruto! - gritou o cavalheiro,
correndo só com uma manga da bata enfiada, até
conseguir apanhar as pernas traseiras de Charik -
Zina, agarra este brejeiro pelo pescoço.
- Credo! Mas que cão!
A porta abriu-se novamente, desta vez com mais
força, e irrompeu outro homem de bata branca.
Pisando os bocados de vidro, lançou-se numa cor­
rida, não para o cão, mas para o armário. Abriu-o e,
pela divisão, espalhou-se um cheiro doce e enjoati­
vo. Deixando-se cair sobre o cão, imobilizou-o com
o seu peso, ao mesmo tempo que Charik, aprovei­
tando a luta, lhe mordia uma canela. O sujeito ge­
meu, mas não largou o cão. Inesperadamente, um
cheiro nauseabundo cortou a respiração a Charik,
pondo-lhe a cabeça a andar à roda. O cão deixou
de sentir as patas e caiu, desfalecido, para o lado.
"Muito obrigado", pensou ele, aturdido, deitando­
-se em cima dos estilhaços de vidro. ''Adeus, Mos­
covo! Nunca mais verei a charcutaria Tchitchkin,
nem os proletários, nem o chouriço de Cracóvia!
Estou a caminho do céu pela vida de cão que su­
portei com paciência. Oh, irmãos, assassinos, por
que me fizeram isto?"
Com este pensamento, Charik tombou de vez
para o lado, dando o seu último suspiro.
Quando ressuscitou, tinha algumas tonturas e
sentia-se ligeiramente enjoado. No entanto, o seu

22
CORAÇÃO DE CAo

flanco era como se nunca tivesse estado ferido,


já nem o sentia. Charik entreabriu um olho en­
sonado e, pelo canto, viu que tinha ligaduras na
barriga e nos flancos.
"Estou feito! Os filhos da mãe operaram-me! "
pensou, vagamente, "Mas fizeram-no como deve
ser, isso não posso negar"
"De Sevilha a Granada... numa noite calma e es cura... ",
ouviu Charik cantar, numa voz nebulosa e fora de
tom por cima de si.
O cão ficou admirado, abriu os olhos e verificou
que, a dois passos de distância, estava uma perna
masculina estendida sobre um banquinho branco.
As calças e ceroulas estavam arregaçadas e, na perna
amarelada, era visível sangue seco e tintura de iodo.
"Céus! Deve ter sido onde eu o mordi. É obra
minha. Pronto, agora é que me vão esfolar..."
"Serenadas...", continuava alguém a cantar.
- Seu vagabundo, por que mordeste o doutor?
Hã? Por que é que partiste o vidro?
'1\.uuu", ganiu o cão.
- Ah, deixa-te estar. Agora que recuperaste os
sentidos, fica aí deitado, estúpido.
- Como é que conseguiu trazer para cá um cão
tão nervoso, Filipe Filipovitch? - ouviu-se numa
voz agradável, masculina. As ceroulas já tinham
sido descidas. Sentiu-se um cheiro a tabaco e, no
armário, tilintaram garrafas.
- Com carinho. É a única maneira de se tra­
tar um ser vivo. Com terror não se consegue

23
MIKHAIL BuLGAKOV

nada com um animal, seja qual for o estado


de d e s e n v o l v i m e n t o em que se e n c o n t r e .
É o q u e venho constatando desde sempre.
Os proletários pensam, e mal, que o terror os
vai ajudar. Mas não, não vai remediar nada:
nem branco, nem ver melho, nem castanho!
O terror paralisa completamente o sistema
ner voso. Zina! Eu comprei para este patife
u m c h o u r i ç o de C r a c ó v i a , por um r u b l o
e quarenta copeques. Faça o favor d e lho dar
quando ele recuperar do enjoo.
Estalaram os vidros varridos, e uma voz femi­
nina observou, coquete:
- De Cracóvia?! Meu Deus, para este basta­
va comprar restos no talho, por vinte copeques.
Um chouriço de Cracóvia até eu comia!
- Então experimente, Zina! Esqueça! Isto é um
veneno para o estômago humano.] á é uma rapari­
ga adulta, mas continua a comportar-se como uma
criança, a meter na boca tudo o que lhe aparece
à frente. Não se atreva a fazer isso. Está avisada:
nem eu, nem o doutor Bormental vamos cuidar de
si quando tiver cólicas.
Entretanto, o apartamento encheu-se de peque­
nos ruídos, e ouviam-se vozes vindas da entrada.
O telefone tocou e Zina desapareceu.
Filipe Filipovitch atirou a ponta do cigarro para
o balde, abotoou o avental em frente ao pequeno
espelho de parede, endireitou os seus bigodes fel­
pudos e chamou o cão:

24
CORAÇÃO DE CAo

- Charik! Pronto, pronto, está tudo bem!


Vamos atender os pacientes.
O cão ergue-se nas patas inseguras, tremeu,
cambaleou, mas logo se recompôs e seguiu a
bata de Filipe Filipovitch. Atravessou de novo
o corredor estreito, mas, desta vez, reparou que
estava bem iluminado. Quando se abriu a por­
ta envernizada, entrou juntamente com Filipe
Filipovitch para um gabinete que o deslum­
brou pela sua d e c o r a ç ã o . Havia l u z e s e m
toda a parte, que iluminavam o tecto e m rele­
vo, a mesa, a parede, os vidros dos armários.
Havia também inúmeros objectos inundados
de luz , dos quais o mais engraçado era um
enorme mocho, em cima de um poleiro que
saía da parede.
- Deita-te - ordenou Filipe Filipovitch.
A porta almofadada no lado oposto da divisão
abriu-se, e apareceu o indivíduo a quem Charik
tinha mordido a canela. Ele era, afinal, um homem
bonito, jovem, com uma barbicha pontiaguda.
Entregou uma folha a Filipe Filipovitch, dizendo:
- É o mesmo paciente - e desapareceu pronta­
mente. Esticando as abas da bata, Filipe Filipovitch
sentou-se em frente a uma enorme secretária e
adoptou um ar de extrema dignidade e importância.
"Não, isto não é um hospital para cães. Fui parar
a outro lugar qualquer", pensou Charik, confuso,
deitando-se em cima do tapete, ao lado do sofá de
couro. ''Depois trato da questão do mocho".

25
MIKHAIL BuLGAKO\'

A porta abriu-se silenciosamente, e entrou um ho­


mem que surpreendeu Charik de tal modo que este
não pôde evitar ladrar, embora muito timidamente.
- Quieto! Meu caro, está irreconhecível!
O homem inclinou-se para Filipe Filipovitch
com respeito, e algum embaraço.
- O senhor é um mágico, um feiticeiro, profes­
sor - balbuciou, acanhadamente, o indivíduo.
- Baixe as calças, por favor - comandou Filipe
Filipovitch, levantando-se.
''Meu Deus! Que homem esquisito!", pensou o cão.
Na cabeça do paciente cresciam cabelos
completamente verdes, que na nuca assumiam
uma cor enferrujada. O rosto, apesar de muito
enrugado, era rosado como o de uma criança.
A perna esquerda não dobrava, tinha de a arras­
tar pelo tapete, mas, em compensação, a direita
m o v i a - s e e saltava sem parar. Na gola do
sumptuoso casaco brilhava, como um olho, uma
pedra preciosa.
O cão ficou tão interessado que até lhe passou
o en100.
- Ão, ão - ladrou, suavemente.
- Calado! - ordenou Filipe Filipovitch, pergun-
tando depois ao paciente:
- Tem dormido bem, meu caro?
- Estamos a sós, professor? Isto é indescri-
tível - começou timidamente - Parole d'honneur,
há vinte e cinco anos que não me acontecia
nada de semelhante - enquanto falava, o indiví-

26
CORAÇÃO DE CÃO

duo agarrou o botão das calças - Imagine, to­


das as noites aparecem bandos de raparigas nuas.
Estou absolutamente encantado. O professor é um
autêntico mágico!
- Hum - murmurou Filipe F i l i p o v i t c h ,
distraidamente, enquanto examinava a s pupilas do
paciente.
O homem lá conseguiu dominar os . botões e
baixar as calças às riscas. Por baixo, trazia umas
ceroulas nunca vistas: beges, com gatos pretos de
seda bordados, exalando perfume.
Charik não pôde com a visão dos gatos, e ladrou
de tal forma que o indivíduo deu um salto.
- Ai!
- Vais apanhar! Não se preocupe, ele não mor-
de - disse o professor.
"Eu não mordo?! " pensou o cão, perplexo.
Do bolso das calças do senhor caiu um
pequeno envelope, contendo a imagem de uma
mulher de cabelos soltos. O homem levantou­
-se, corando violentamente, e inclinou-se para
apanhar o envelope.
- Veja lá o que anda a fazer - notou, com ar
carregado, Filipe Filipovitch, ameaçando-o com o
dedo - tenha cuidado, não abuse!
- Eu não abu... - balbuciou o homem, confuso,
continuando a despir-se - isto foi só para experimentar.
- E então? Que me conta? Qual foi o resultado?
- perguntou Filipe Filipovitch.
O indivíduo agitou o braço em êxtase.

27
M1KHAIL BuLGAKov

- Em vinte e cinco anos, juro por Deus, profes­


sor, nunca tive nada parecido. A última vez foi no
ano de 1 899, em Paris, na Rue de la Prux.
- E por que é que o cabelo está verde?
O semblante do senhor ensombrou-se.
- Foi aquele maldito produto, o Jirkosti.
Nem pode imaginar, professor, o que aqueles va­
dios me meteram em vez de tinta. Está a ver? -
dizia ele, procurando um espelho - Que horror!
Só por isto mereciam que os esmurrasse! - acrescen­
tou, enfurecido - e agora, que posso fazer, profes­
sor? - perguntou finalmente, com uma voz chorosa.
- Hmm ... rape o cabelo.
- Professor! - exclamou queixosamente o
paciente - mas assim ele cresce grisalho outra
vez! Além disso, não posso aparecer no serviço.
Há três dias que não vou lá: o carro vem buscar­
-me e eu mando-o de volta. Ah, professor, se
descobrisse algum método de rejuvenescer o
cabelo também!
- Não pode ser tudo de uma vez, meu caro ami­
go - replicou Filipe Filipovitch.
O doutor inclinou-se e examinou com os seus
olhos brilhantes a barriga do paciente.
- Óptimo, está tudo em ordem. Para lhe dizer
a verdade, nem eu estava à espera destes resulta­
dos. "Muito sangue, muitas sonatas" - murmurou
o doutor - Pronto, pode vestir-se.
- "Eu sou de todas a mais bela! " ... - com­
pletou o paciente, com voz de cana rachada,

28
CORAÇÃO DE CÃO

e n q u a n t o se v e s t i a . A r r a n j o u - s e , deu u n s
saltos e espalhou o cheiro a perfume. D e seguida,
contou um maço de notas brancas e entregou-as
a Filipe Filipovitch, apertando-lhe, com ternura,
ambas as mãos.
- Apareça daqui a duas semanas - disse o dou­
tor - mas, por favor, cuide-se!
- Pode ficar descansado, professor, pode ficar
descansado - e desapareceu, sorridente.
Ouviu-se de novo a campainha, a porta
lacada abriu-se e entrou o homem que fora mor­
dido por Charik. Ao entregar uma folha a Filipe
Filipovitch, disse:
- A idade indicada está incorrecta. Deve ter uns
54 ou 55 anos. A pulsação está fraca.
O homem saiu e entrou uma senho r a ,
que trazia u m vestido pelo chão, u m chapéu
atrevidamente à banda e, no pescoço, um colar
brilhante. Estava com umas olheiras horríveis e as
bochechas rosadinhas eram parecidas com as de
uma criança. A mulher estava muito nervosa.
- Quantos anos tem, minha senhora? - pergun­
tou o doutor, secamente. A senhora assustou-se,
empalidecendo por baixo da camada de rouge
que trazia.
- Tenho... professor, j uro-lhe, se soubesse o
meu drama...
- Que idade tem, minha senhora? - repetiu
Filipe Filipovitch, em tom mais severo.
- Para falar a verdade... Cerca de quarenta e cinco.

29
MIKHAIL BULGAKOV

- l\1inha senhora - implorou Filipe Filipovitch


- tenho pessoas à minha espera. A senhora não é
a única!
O peito da mulher arfou violentamente.
- Digo-lhe só a si, porque é um cientista de re­
nome, mas juro, isto é terrível...
- Quantos anos tem? - demandou Filipe
Filipovitch, furioso, com uma voz esganiçada.
Os seus óculos brilharam.
- Cinquenta e um! - respondeu a senhora, tre­
mendo de medo.
- Tire as calcinhas, minha senhora - pediu
o doutor, aliviado, apontando para um estrado
branco e alto, ao canto da divisão.
-Juro, professor - resmungou a mulher, enquan­
to tentava desabotoar com os dedos trémulos os
colchetes do seu cinto - aquele Morits... confesso­
-me como a um padre ...
- "De Sevilha a Granada ..." - começou a cantar
distraidamente Filipe Filipovitch, abrindo a torneira
do lavatório de mármore. Ouviu-se a água a correr.
-Juro por Deus! - exclamou a senhora, fazendo
reaparecer as manchas avermelhadas sob o carmim
do seu rosto artificial - Esta é a minha última pai­
xão. Ele é um miserável da pior espécie. Oh, pro­
fessor... Toda a gente sabe que ele é um batoteiro a
jogar às cartas, e que não deixa escapar nem a mais
infame mulher! E é tão diabolicamente novo! - sem
parar de falar, a senhora tirou de debaixo das saias
ruidosas um farrapo de renda amarrotado.

30
CORAÇÃO DE CÃO

O cão entontecia; tudo estava de pernas para o


ar na sua cabeça.
''Vão todos para o inferno! Nem vou tentar
perceber o que se passa aqui, não vale a pena.
De qualquer modo, nem vou entender nada",
pensou o cão, colocando, envergonhado, a cabe­
ça sobre as patas até adormecer.
Charik foi acordado por um barulho e viu que
Filipe Filipovitch atirara uns tubos brilhantes para
um alguidar.
Apertando os braços contra o peito, a senho­
ra, com o rosto ruborizado, olhava cheia de es­
perança para Filipe Filipovitch que, com ares de
importante, franziu o semblante, sentou-se à mesa
e começou a escrever.
- Minha senhora, vou-lhe colocar ovários de
macaco - anunciou o doutor, com olhar austero.
- De macaco, professor? Não está a falar a sério.
- Sim - respondeu ele, inflexível.
- E quando é a operação? - a senhora empali-
deceu, e a sua voz fraquejou.
- "De Sevilha a Granada..." Hmm. Na segunda-
-feira. Passe de manhã pela clínica - o meu
assistente vai prepará-la.
- Ah, professor, não queria que fosse na clínica.
Não pode ser aqui, em sua casa?
- Em minha casa só faço operações em casos
excepcionais. Isso iria sair-lhe muito caro,
500 rublos.
- De acordo, professor!

31
MIKHAIL BuLGAKov

Ouviu-se de novo água a correr. Passou alguém


com um chapéu de plumas. Depois, apareceu um
homem completamente calvo, cuja cabeça pare­
cia um prato, e que abraçou Filipe Filipovitch.
Charik dormitava, o enjoo tinha-lhe passado, e já
não sentia a dor no flanco ferido. O cão desfruta­
va do calor confortável que se fazia sentir, tendo
inclusive roncado uma ou duas vezes, e tido um
sonho curto, mas agradável: sonhou que tinha ar­
rancado um monte de penas da cauda do mocho...
De seguida, ouviu uma voz perturbada:
- Sou uma figura social importante em Mosco­
vo, professor! E agora, o que se pode fazer?
- Meus senhores - gritou Filipe Filipovitch,
indignado - é inadmissível que se façam coisas
dessas. Têm de se controlar! Quantos anos tem ela?
- Catorze, professor. Tem de entender que,
se isto se tornar público, estou perdido. Muito em
breve irei em missão para Londres.
- Sabe, não sou jurista, meu caro... Esperem dois
anos e casem-se!
- Mas eu já sou casado, professor!
- Oh, meus senhores, meus senhores!
As portas abriam-se e fechavam-se, sucediam­
-se os rostos, ouviam-se os instrumentos a tilintar.
Filipe Filipovitch trabalhava ininterruptamente.
"Que apartamento estranho'', pensava o
cão, "mas ao mesmo tempo agradável. Para que
raio precisam eles de mim? Será que me vão dei­
xai viver aqui? É muito estranho! Bastava ele que-

32
CORAÇÃO DE CAo

rer que, com um estalar de dedos, arranjava um


cão melhor. Se calhar até sou bonito. Talvez seja
essa a minha sorte! Já aquele mocho ... é lixo,
um descarado! "
Só à noite é que o cão acordou definitivamen­
te, quando a campainha parou de tocar e uns
visitantes especiais entraram. Eram quatro pesso­
as, todos jovens e vestidos muito modestamente.
"O que quererão eles? " , pensou Charik,
hostilmente, um tanto ou quanto admirado.
Porém, com muito mais hostilidade recebeu Fili­
pe Filipovitch as visitas. Estava de pé, ao lado da
sua secretária, e olhava-os como um general para
um inimigo. As narinas do seu nariz, parecidas
com um bico de águia, pulsavam. Os visitantes
ficaram parados, em cima do tapete.
- Nós viemos pelo seguinte, professor -
começou um deles, que tinha uma grande cabelei­
ra negra densa e ondulada.
- Os s e n h o r e s n ã o d e v i a m a n d a r s e m
galochas com este tempo - interrompeu Filipe
Filipovitch, doutoralmente - primeiro, porque po­
dem constipar-se, e segundo, sujam os meus tapetes
que, deixem-me que vos diga, são persas.
O homem da cabeleira calou-se, e todos
olharam para Filipe Filipovitch, estupefac­
tos. O silêncio prevaleceu alguns segundos,
durante os quais apenas se ouvia o tamborilar
dos dedos do professor no pratinho de madeira
pintado que jazia sobre a secretária.

33
MIKHAIL BULGAKOY

- Em primeiro lugar, nós não somos senhores


- disse um deles, o mais novo, que envergava um
casaco de cabedal e cuja cara, de pele macia e ro­
sada, parecia um pêssego.
- Em primeiro lugar - interrompeu de novo
Filipe Filipovitch - você é um homem ou uma
mulher?
Ficaram os quatro boquiabertos. Desta vez,
o primeiro a responder foi o da cabeleira grande.
- Que diferença é que isso faz, camarada? - per­
guntou ele, altivo.
- Sou mulher - admitiu o jovem do casaco de
cabedal, corando.
Não se sabe bem porquê, mas um dos ou­
tros visitantes, loiro com um gorro de pele,
corou também.
- Nesse caso, pode ficar com o boné. Mas
vocês, caros senhores, tirem, se fazem favor,
os v o s s o s c h a péus - d i s s e , b r u s c a m e n t e ,
Filipe Filipovitch.
- Não sou nenhum caro senhor - balbuciou o
loiro, embaraçado, tirando o gorro.
- Nós viemos aqui - recomeçou o homem ves­
tido de preto, o da cabeleira.
- Antes de mais, "nós" quem?
- Somos a nova administração do prédio -
respondeu o homem de preto, mal contendo
a raiva - eu sou Chvonder, esta é Viazemskaia,
e estes são os camaradas Pestrukhin e Jarovkin.
Então nós...

34
CORAÇÃO DE CÃO

- Vocês é que foram alojados no apartamento


do Fiodor Pavlovitch Sablin?
- Sim, somos nós - respondeu Shvonder.
- Meu Deus, está perdida a casa Kalabukhovksy!
- exclamou, em desespero, Filipe Filipovitch,
erguendo os braços.
- Está a gozar connosco, professor? - indignou-
-se Chvonder.
- Não estou nada a gozar, estou desesperado -
gritou Filipe Filipovitch - o que vai acontecer ao
aquecimento central?
- Está a rir-se de nós, professor Preobrajensky?
- Qual é o motivo da vossa visita? Por favor,
falem o mais depressa possível porque estou na
hora de jantar.
- Nós, a administração do prédio - começou
Chvonder, com ódio - vimos aqui falar consigo,
concluída a assembleia geral dos moradores, na qual
foi debatida a questão da redução dos quartos...
- Desculpe, não percebi: que questão? - excla­
mou Filipe Filipovitch - faça favor de exprimir mais
claramente as suas ideias.
- A questão é a redução.
- Chega, já percebi. É do vosso conhecimento
que, pelo despacho de 1 2 de Agosto do presente
ano, o meu apartamento está excluído de quaisquer
reduções e mudanças?
- Sim, estamos a par disso - respondeu
Chvonder - Contudo, a nossa assembleia, depois
de consultar o seu processo, concluiu que você está

35
MIKHAIL BULGAKOV

a ocupar, em geral, demasiado espaço. Um exagero


de espaço. Só o senhor ocupa sete divisões.
- Eu só moro e trabalho em sete divisões - res­
pondeu Filipe Filipovitch - e gostava de ter mais
uma, a oitava. Preciso dela para a minha biblioteca.
Os quatro emudeceram.
- A oitava?! - disse o loiro que fora obrigado
a tirar o gorro - Isto é de mais.
- Isto é indescritível! - exclamou o jovem rapaz
que se veio a descobrir ser uma mulher.
- Tenho a sala de espera, que é ao mesmo tem­
po biblioteca, sala de jantar e o meu gabinete, são
três. Sala de observações, quatro. Sala de operações,
cinco. O meu quarto, seis. E o quarto dos criados,
sete. Em geral, não é suficiente... mas isto não tem
importância. O meu apartamento está isento e pon­
to final. Agora posso ir jantar?
- Peço desculpa - disse o quarto visitante, que
parecia um escaravelho.
- Desculpe - interrompeu Chvonder - mas é
precisamente por causa da sala de jantar e da sala
de observações que aqui estamos. A assembleia
geral pede que você, de livre vontade, respeitando
a disciplina do trabalho, desista da sala de jantar.
Ninguém tem salas de jantar em Moscovo.
- Nem a Isadora Duncan! - gritou estridente­
mente a mulher.
Algo se passava com Filipe Filipovitch: o seu
rosto enrubesceu, mas não pronunciou uma pala­
vra que fosse, esperando para ver o que se seguiria.

36
CORAÇÃO DE CÃO

- E da sala de observações também, - conti­


nuou Chvonder - pode ser unida com o gabinete.
- Pois, - começou Filipe Filipovitch, com
uma voz estranha - e onde é que eu vou comer?
- No quarto - responderam em uníssono.
O rosto de Filipe Filipovitch adoptou uma
cor cinzenta.
- Comer no quarto - balbuciou ele, com a voz
abafada - ler na sala de observações, vestir-me na
sala da recepção, operar no quarto dos empregados,
e na sala de jantar ver os doentes? É bem provável
que a Isadora Duncan faça o mesmo. Quiçá almo­
ce no gabinete, e abata coelhos na casa de banho?
Talvez o faça ... Mas eu não sou a Isadora Duncan!
- rugiu repentinamente até o seu rosto se tornar
amarelado - vou almoçar na casa de jantar, e ope­
rar na sala de operações! Transmitam isso à assem­
bleia geral. Voltem, por favor, aos vossos assuntos,
e deixem-me jantar no sítio onde jantam todas as
pessoas normais! Isto é, na casa de jantar, e não na
entrada ou no quarto das crianças!
- Nesse caso, professor, tendo em conta a
sua firme oposição, vamos apresentar queixa aos
órgãos superiores.
- Ah é? - disse Filipe Filipovitch - É assim? -
a sua voz tornou-se estranhamente respeitosa - es­
perem um minuto, se faz favor.
" G r a n d e h o m e m ! " , pensou o c ã o, c o m
admiração, ''Parecido comigo. Ah, vai mordê-los,
de certeza! Ainda não sei como, mas vai! Dê-lhes

37
MIKHAIL BuLGAKov

uma sova! Este, o pernilongo, deve apanhar uma em


cima da bota, no tendão debaixo do joelho... Grrrr"
Filipe Filipovitch levantou o auscultador do te­
lefone e disse:
- Se faz favor ... Sim, muito obrigado. Que­
ria falar com o Piotr Alexandrovitch, por favor.
Professor Preobrajensky. Piotr Alexandrovitch?
Ainda bem que o apanhei. Obrigado, estou bem
de saúde. Piotr Alexandrovitch, lamento informá­
-lo que a sua operação vai ter de ser cancelada.
O quê? Não, cancela-se completamente. Tal como
todas as outras operações ... Porquê? Bem, porque
vou suspender todo o meu trabalho em Mosco­
vo, e na Rússia em geral ... Mesmo agora entraram
por aqui adentro quatro pessoas, uma das quais
uma mulher vestida de homem, e dois homens
armados com revólveres, que me estiveram a
aterrorizar com o objectivo de me tirar parte do
apartamento...
- Dê-me l i c e n ç a , professor - começou
Chvonder, mudando logo de expressão.
Filipe Filipovitch continuava:
- Desculpe, não consigo repetir tudo o
que eles me dissera m . É um absurdo!
Basta que lhe diga que me propuseram desistir
da sala de obser vações. Aliás, obrigaram-me
a fazer a sua operação no lugar onde antes
se abatia coelhos. Nestas condições não posso
nem tenho de trabalhar. Por isso, cesso a minha
actividade, fecho o meu apartamento e parto para

38
CORAÇÀO DE CAo

Sotchi. Deixo as chaves ao Chvonder, ele que faça


as operações.
Os quatro ficaram imóveis. A neve derretia-se­
-lhes nas botas.
- O que é que se há-de fazer? Pois, p ara
mim também não é nada agradável. . . Como?
O h , não, P i o tr Alex androvitch, não vou
aturar mais isto! E sgotou-se-me a p aciência.
Já é a s egunda vez d e s d e Ago s t o ! C o m o ?
Hum . . . Como quis er. Tomara ! S ó c o m uma
condição: pode ser a s sinada por quem quer
que s e j a, quando quis er, mas que s ej a um
documento final! E que, tendo eu esse docu­
mento, nem Chvonder, nem qualquer outro se
poderá aproximar da porta do meu apartamen­
to. Exacto. Um papel verdadeiro. Uma protecção!
Que nunca mais se lembrem do meu nome!
Sem dúvida! Para eles não existo, morri. Sim,
sim, se faz favor. Por quem? Isso mesmo... Ago­
ra é outra coisa. Pois, óptimo... passo-lhe já o aus­
cultador... Olhe, tenha a bondade - disse Filipe
Filipovitch, dirigindo-se a Chvonder, com uma voz
sarcástica - desejam falar consigo.
- Com licença, professor - disse Chvonder, ora
corando, ora empalidecendo - o senhor deturpou
as nossas palavras.
- Faça o favor de não usar aqui tais expressões!
Chvonder, embaraçado, pegou no telefone.
- E s tou . . . Sim. S ou o che fe da admini s ­
tração d o prédio. Nós actuámos conforme o

39
MIKHAIL BULGAKOV

regulamento estabelecido... Mas o professor está


numa situação priveligiada!... Sim, sabemos do tra­
balho dele... queríamos deixar-lhe cinco divisões...
Então, está bem... se é assim, está bem...
Completamente corado, pousou o auscultador
e voltou-se.
"Ficou como se lhe tivessem cuspido em cima!
Grande homem que é o professor!", pensou o
cão, com admiração. "Será que sabe alguma pala­
vra especial? Bem, agora podem bater-me quando
quiserem, nunca vou sair daqui!"
Os outros três, boquiabertos, fitavam o humi­
lhado Chvonder.
- É uma vergonha! - balbuciou.
- Se iniciás s emos um debate - começou
a mulher, emocionada e corada - eu demonstraria
a Piotr Alexandrovitch...
- Desculpe, mas agora quer debater? - pergun­
tou Filipe Filipovitch, com cortesia.
Os olhos da mulher acenderam-se.
- Percebo a sua ironia, professor. Já nos vamos
embora. Só que eu, como gestor da secção cultural
do nosso prédio...
- Gestora - corrigiu Filipe Filipovitch.
- Queria propor-lhe - a mulher tirou do casaco
umas revistas coloridas, ensopadas de neve derreti­
da - comprar algumas revistas. A favor das crianças
alemãs. São cinquenta copeques cada.
- Não, não vou comprar - dis s e Filip e
Filipovitch, olhando de esguelha para as revistas.

40
CoRAÇAO DE CAo

Foram todos apanhados de surpresa. A mulher


ficou roxa.
- Por que se está a recusar?
- Não quero.
- Você não quer ser solidário com as crianças
da Alemanha?
- Pelo contrário.
- Quer poupar cinquenta copeques?
- Não.
- Então porquê?
- Porque não quero.
Ficaram calados.
- Sabe - começou a rapariga, suspirando
pro fundamente - s e o s e nhor n ã o fo s s e
um cientista de renome, e se algumas pessoas não
intervie s s e m a s e u favo r, de u m a fo r m a
tão revoltante. . . - o loiro deu-lhe um puxão, mas
ela ignorou-o e continuou - Nós ainda vamos
esclarecer a identidade delas. O professor tem
de ser preso!
- Porquê? - perguntou Filipe Filipovitch,
cunoso.
- Porque odeia o proletariado!
- Sim, é verdade, não gosto do proleta-
riado - concordou Filip e Filip ovitch c o m
p e s ar, c ar r e g a n d o n u m b o t ã o . O uviu - s e
algu r e s uma c amp ainha a t o c ar. A p o r ta
abriu-se.
- Zina! - gritou - Pode servir o jantar. Com licen­
ça, meus senhores.

41
MrKHA!L BuLGAKOV

Saíram os quatro em silêncio do gabinete, e,


em silêncio, passaram pela sala de recepção e pela
entrada. Depois ouviu-se a porta principal a bater.
O cão levantou-se sobre as patas traseiras e fez
uma espécie de vénia.

42
III

Sobre os pratos pintados com flores, e com


uma larga faixa negra, haviam sido colocadas finas
postas de salmão e enguias marinadas. Numa tá­
bua pesada estava uma barra de queijo e, ao lado,
uma tacinha prateada rodeada de gelo, cheia de
caviar. Entre os pratos, brilhavam uns copos fini­
nhos e três frascos de cristal, de várias cores, com
vodka. Todos estes objectos se encontravam em
cima de uma mesinha de mármore, que condizia
harmoniosamente com um volumoso guarda-loiças
de carvalho. O vidro e a prata resplandeciam. No
centro da sala, a mesa, pesada como um túmulo, e
coberta com uma toalha branca, já estava posta para
duas pessoas, com os guardanapos enrolados em
forma de mitra e três garrafas escuras.
Zina trouxe uma travessa tapada que ainda bor­
bulhava. O cheiro proveniente da travessa era tal

43
MrKHAIL BuLGAKOV

que Charik ficou imediatamente com água na boca.


''Jardins de paraíso!", pensou o cão, começando
a bater com a cauda no chão.
- Traz tudo - ordenou Filipe Filipovitch -
Dr. Bormental, por favor, deixe o caviar em paz.
E, se quer um conselho, sirva-se de vodka russa,
não inglesa.
O homem bem-parecido, que fora mordido
por Charik, já estava sem a bata branca e ti­
nha vestido um fato preto decente. Sorriu, cor­
tê s, e, encolhendo os ombro s , s erviu-se de
vodka límpida.
- Com a bênção do estado? - perguntou.
- Deus me livre, meu caro! - respondeu o an-
fitrião - é álcool. A Dária Petrovna prepara uma
excelente vodka.
- Oh, Filip e Filip ovitch. To dos afirmam
que a nova vodka do estado é bastante boa,
de 30 graus.
- Primeiro, vodka tem de ter 40 e não 30 graus ...
- interrompeu-o Filipe Filipovitch, sentencio-
so - Segundo, só Deus sabe o que eles lá deitam.
Por acaso imagina o que lhes passa pela cabeça?
- Tudo o que lhes apraz - respondeu o outro,
convicto.
- Também acho - concordou Filipe Filipovitch,
engolindo o conteúdo do cálice de um trago -
Dr. Bormental, rogo-lhe agora que prove isto e, se
lhe souber mal, serei seu inimigo para o resto da
vida. "De Sevilha a Granada ... "

44
CORAÇÃO DE CAo

Com estas palavras, espetou no garfo uma coisa


parecida com um pãozinho escuro. O companhei­
ro fez o mesmo.
- Então, é mau? - indagou Filipe Filipovitch,
mastigando é mau? Responda, caro doutor.
-

- Isto é inigualável - respondeu o que fora mor­


dido, sinceramente.
Claro . . . Repare, Ivan Arnaldovitch, só o s
lati fundiári o s que s obreviveram a o ter r o r
dos bolcheviques é que ainda comem entradas
frias e sopa depois da vodka. Qualquer pessoa
com um mínimo de respeito por si própria come
entradas quentes. De todas as entradas quen­
tes moscovitas, esta é a melhor. Antigamente,
era muito b e m p r e p arada no r e s taur a n t e
Slaviansky Bazar. Toma, cãozinho - disse, virando­
-se para o cão.
- Se dá de comer ao cão na casa de jantar -
ouviu-se numa voz feminina - ele depois nunca
mais sai daqui.
- Não faz mal. Coitado, passou tanta fome -
Filipe Filipovitch estendeu-lhe o garfo com um
pedaço da entrada que, com uma habilidade ad­
mirável, foi imediatamente devorada por Charik.
O garfo caiu, provocando um pequeno estrondo.
Levantou-se um vapor qµe cheirava a carangue­
jos. O cão estava sentado ao lado da mesa, por bai­
xo da toalha branca, como um sentinela a guardar
munições. Filipe Filipovitch, enfiando o guardana­
po no colarinho, continuou:

45
MIKHAIL BuLGAKov

- Comer, Ivan Arnaldovitch, requer alguma


habilidade. As pessoas deviam saber comer e,
imagine, a maioria não · sabe. É importante não
só saber comer, mas também como e quando fazê­
-lo - Filipe Filipovitch sacudiu a colher expressiva­
mente - Além disso, é preciso saber sobre o que
falar. Sim senhor! Cuide da sua digestão e escute
este bom conselho: nunca fale à mesa sobre bol­
chevismo e medicina. E Deus o livre de ler jornais
soviéticos antes da refeição!
- Hmm... Mas não há outros jornais.
- Então não leia nenhum. Fiz trinta experiências
na clínica, e sabe o que descobri? Os pacientes que
não liam jornais sentiam-se muito bem, enquanto
aqueles que eu disse especificamente para lerem
o Pravda perdiam peso!
- A sério? - respondeu com interesse o outro,
corado da sopa e do vinho.
- E não é só isso. Diminuíam as reacções nervo­
sas, piorava o apetite, o estado de espírito...
- Não me diga!
- Sim senhor! Mas, o que estou para aqui
a dizer? Eu próprio comecei a falar de medicina.
É melhor comermos.
Filipe Filipovitch recostou-se na cadeira, tocou
à campainha e, por trás do reposteiro cor-de-cereja,
surgiu Zina.
O cão recebeu um pedaço grosso de esturjão,
que não lhe agradou nada, e logo depois uma fa­
tia de rosbife ensanguentado. Charik engoliu-o,

46
CORAÇÃO DE CÃO

e s entiu que e s tava com s ono e demasiado


cheio para continuar a ver comida à sua fren­
te. "Que estranho", pensou ele, fechando as
pálpebras pesadas, "já nem sequer posso suportar
o cheiro da comida. E fumar depois da refeição é
mesmo estúpido."
A casa de jantar encheu-se do desagradável fumo
azul dos cigarros. O cão colocou a cabeça nas pa­
tas dianteiras e dormitou.
- São Julião é um vinho excelente - ouviu o cão,
meio a dormir - mas já não se encontra em lado ne­
nhum.
De repente, algures por cima de si e à sua vol­
ta, ouviu-se um coro que era abafado pelo tecto e
pelos tapetes.
Filipe Filipovitch tocou e apareceu Zina.
- Zinuska, o que é isto?
- Fizeram outra vez uma reunião geral, Filipe
Filipovitch - respondeu Zina.
- Outra vez ? ! - exclamou amargamente
Filipe Filipovitch - bem, agora é que é. Está per­
dida a casa Kalabukhovsky. Temos de sair daqui...
Mas para onde? Ao princípio, vai tudo correr lin­
damente. Primeiro, todas as noites haverá cantos.
De seguida, hão-de congelar os canos das casas de
banho, depois rebenta-se a caldeira, e assim por
diante. Chegou o fim da nossa casa!
- Preocup a-se demais, Filip e Filip ovitch
- disse Zina, sorrindo e levando consigo um
monte de pratos.

47
MIKHAIL BuLGAKOV

- Como não me hei-de preocupar?! - gritou


Filipe Filipovitch, indignado - O que será desta
casa? Não entende?!
- Está a pintar um quadro muito negro, Filipe
Filipovitch - observou o homem que fora mordi­
do - Ultimamente têm mudado bastante.
- Meu caro, já me conhece bem, não é verda­
de? Sou uma pessoa que vê factos. Uma pessoa que
observa tudo. Sou inimigo de hipóteses sem fun­
damento. Isto sabe-se aqui na Rússia, e lá fora. Se
digo uma coisa, é porque na base disso há um facto
do qual estou a retirar conclusões. Eis o facto: os
cabides e a sapateira para as galochas na nossa casa.
- Isso é interessante...
"Que disparate! Galochas! Mas isso tem alguma
importância?", pensou o cão, "Mas mesmo assim
demonstra uma forte personalidade!"
- Sim, isso mesmo, a sapateira para as galo­
chas. Moro nesta casa desde 1 903. Ao longo de
tantos anos, até Abril de 1 9 1 7, não houve um úni­
co caso, atenção, nem um, de roubo ou extravio,
nem de um par de galochas! Com a porta principal
sempre aberta! Repare, no prédio há doze aparta­
mentos, e eu recebo pacientes. Pois num magnífi­
co dia de Abril de 1 9 1 7, desapareceram de uma só
vez todas as galochas, de entre as quais dois
p ares meus, trê s bengalas, um s obretudo e
o samovar do porteiro. E desde então a sapateira
para as galochas deixou de existir. Meu caro,
já nem falo do aquecimento central! Não falo!

48
C ORAÇÃO DE C Ao

Pois bem, já que estamos em plena revolução so­


cial, então não é necessário aquecer as casas. Mas
um dia, quando tiver tempo, hei-de estudar o cé­
rebro e vou demonstrar que toda esta balbúrdia é
simplesmente um delírio doentio... Eu pergunto:
por que razão, quando toda esta história come­
çou, começaram as pessoas a andar pelas escadas
de mármore de galochas sujas e botas de feltro?
Por que razão as galochas têm de ser guardadas
à chave e ainda vigiadas por uma sentinela para
que ninguém as roube? Por que tiraram o tape­
te da escada principal? Terá Karl Marx proibido o
uso de tapetes? Dirá ele em alguma obra sua que a
entrada principal do nº 2 da casa Kalabukhovsky,
situada na rua Pretchistenka, deve ser entaipada
e que as pessoas têm de dar a volta ao prédio e
entrar pelas traseiras? Quem beneficia com isso?
Os negros oprimidos, os operários? Por que razão
não podem os proletários deixar as galochas à en­
trada, em lugar de sujarem o mármore?
- Mas eles nem s e quer têm galochas . . . -
aventou, inseguro, o mordido, calando-se logo de
seguida.
- Não é nada dis s o ! - respondeu Filip e
Filipovitch numa voz grave, deitando vinho no
copo - Hmm... Não gosto de tomar licores depois
do jantar, são pesados e fazem mal ao fígado... Não
é nada disso! Eles têm galochas, e essas galochas
são minhas! São, precisamente, as galochas que
desapareceram a 1 3 de Abril de 1 9 1 7. Pergunta-

49
MIKHAIL B U LGAKOY

-se: quem as roubou? Fui eu? Não pode ser!


O burguês Sablin? - Filipe Filipovitch apontou para
o tecto - Só de pensar nisso dá-me vontade de rir.
O dono da refinaria de açúcar Polozov? - Filipe
Filipovitch apontou para o lado - De modo al­
gum! Foram mesmo estes cantores, é verdade! Ao
menos podiam tirar as galochas lá em baixo! - Fi­
lipe Filipovitch começou a enrubescer - por que
diabo tiraram as flores dos patamares da escada?
Por que razão a electricidade, que, se não estou
em erro, em vinte anos só faltou duas vezes, agora
vai abaixo com regularidade todos os meses? Dr.
Bormental, as estatísticas não mentem. Você, que
conhece bem o meu trabalho, sabe isso melhor do
que ninguém!
- É a desgraça, Filipe Filipovitch!
- N ã o - c o n trap ô s Filip e Filip ovitch,
com convicção - Não. Você, Ivan Arnaldovi­
tch, deve banir essa palavra do seu vocabulário.
I s s o é uma miragem, fumo, ficção! - Filip e
Filipovitch abriu os dedos curtos e duas sombras,
parecidas com tartarugas, começaram a agitar­
-se por cima da toalha - o que significa essa vos­
sa desgraça? Uma velhota com um bastão? Uma
bruxa, que partiu todos os vidros e apagou a luz?
Ela não existe! O que entende por essa palavra?
- perguntou, furioso, com os olhos postos no
infeliz pato de cartolina, pendurado de pernas
para o ar ao lado do guarda-loiças. O próprio pro­
fessor respondeu:

50
CORAÇÃO DE CÃO

- Isto é o seguinte: se eu, em vez de operar


todas as noites, começar a cantar em coro no
meu apartamento, vou arruinar-me, é a desgraça.
Se todas as vezes que for à casa de banho, descul­
pe a expressão, urinar, não na retrete mas ao lado,
e se a Zina e a Dária Petrovna fizerem o mesmo
na casa de banho delas, então sim, será a desgra­
ça na casa de banho. Portanto, a desgraça está na
cabeça deles! Assim, quando eles gritam '�baixo
a desgraça!", eu riu-me - o seu rosto desfigurou­
-se de tal forma que o homem mordido ficou bo­
quiaberto - juro, estou-me a rir. Isto significa que
cada um deles devia começar por dar uma pancada
na própria nuca. E, quando tirarem das cabeças
a revolução mundial, o Engels e o Nicolau Ro­
manov, os malaios oprimidos e alucinações do
género, e começarem a limpar os barracões, que
são as principais obrigações deles, sem dúvida
que nessa altura a desgraça desaparece. Não se
pode fazer duas coisas ao mesmo tempo! É impos­
sível varrer as carruagens dos eléctricos e mudar a
vida dos maltrapilhos espanhóis! Ninguém con­
segue fazer isso, doutor, e muito menos aqueles
que ficaram atrasados duzentos anos em relação
à Europa, e que por isso mal sabem apertar as pró­
prias calças!
Filipe Filipovitch estava emocionado. As suas
narinas de águia arquejavam. Depois daquela bela
refeição, acumulara forças e agora troava como
um profeta antigo. O seu cabelo prateado refulgia.

51
MIKHAIL BuLGAKOV

As palavras do professor soavam por cima


do cão como um ruído surdo e subterrâneo.
Charik sonhava, ora com o mocho estúpido de
olhos amarelos, ora com a odiosa cara do cozinhei­
ro de barrete branco e sujo, ora com o bigode afoi­
to de Filipe Filipovitch, iluminado pelas lâmpadas
do abajur, ora com os coches a passar, rangendo,
enquanto ia digerindo o rosbife.
"Ele podia ganhar dinheiro a falar nos comí­
cios", pensou Charik, estonteado, "É uma pessoa
de primeira classe! Se bem que o dinheiro não lhe
faz falta ... "
- Um polícia! - gritava Filipe Filipovitch.
"Uhhhhhh!" Algo do género de bolhinhas co­
meçou a rebentar na mente do cão.
- Um polícia! Isto, e apenas isto! Não tem im­
portância nenhuma, seja ele um polícia antes da
revolução, ou um polícia depois da revolução.
Pôr um polícia ao lado de cada pessoa a moderar
os impulsos vocais dos nossos cidadãos! Você está
a dizer: "desgraça." Digo-lhe, doutor, que nada mu­
dará para melhor na nossa casa, nem nas outras ca­
sas, até que estes cantores se acalmem. Só quando
puserem fim às cantorias é que a situação mudará
para melhor, por si própria.
- Está a dizer coisas contra-revolucionárias,
Filipe Filipovitch! - gracejou o seu interlocutor -
Deus o livre de ser ouvido!
- Não há perigo - retorquiu Filipe Filipovitch,
acalorado - Não há nenhuma contra-revolução.

52
CORAÇ Ã O DE C Ã O

Aliás, essa é uma palavra que detesto. O s eu


significado é absolutamente incompreensível.
Só o diabo sabe qual é! Como eu estava a dizer,
não há nada de contra-revolucionário nas minhas
palavras. Há só bom senso e experiência de vida!
Filipe Filipovitch tirou o guardanapo, amarrotou­
-o e pô-lo ao lado do copo de vinho tinto. O ho­
mem que fora mordido levantou-se imediatamente
e agradeceu: "Mercz".
- U m m o mento, doutor - dis s e Filip e
Filipovitch, tirando a carteira do bolso das cal­
ças. Semicerrou os olhos e contou as notas bran­
cas - Hoje deve receber quarenta e cinco rublos.
Aqui tem!
A vítima do cão agradeceu cortesmente, e,
corando, guardou o dinheiro no bolso do casaco.
- Não precisa de mim hoje à noite? - pergun­
tou ele.
- Muito obrigado, meu caro, mas não pre­
ciso. Em primeiro lugar, o coelho morreu.
Em segundo, hoje há a Aida no Bolshoi. Não a
oiço há muito tempo... Gosto muito. Lembra-se
do dueto? "Tara-ra-rim" ...
- Como é que consegue ter tempo para tudo,
Filipe Filipovitch? - perguntou, respeitosamente,
o médico.
- Devagar se vai ao longe - explicou douto­
ralmente o anfitrião - Tenho a certeza de que
se andasse a correr de uma reunião para outra,
e se cantasse o dia inteiro como um rouxinol em

53
M I KHAIL BuLGAKov

vez de fazer o meu trabalho, não tinha tempo


para nada - nesse instante, no seu bolso, ouviu­
-se o relógio tilintar celestialmente - J á pas­
sa das oito... Dá tempo para chegar no início da
segunda parte. . . Sou apologista da divisão do
trabalho. Que se cante no Bolshoi e que eu
opere aqui. Assim é que é, e não há calamidades
nenhumas. Ia-me esquecendo... Ivan Arnaldovitch,
por favor, esteja com atenção: logo que se der
uma morte oportuna, tire logo aquilo que com­
binámo s, meta em s oro fis i ológico e envie
directamente para mim!
- Não se preocupe, Filipe Filipovitch, já falei
com os médicos legistas e eles prometeram-me.
- Óptimo. Até lá, vamos observar este cão de
rua nervoso. Tem de ser lavado e precisa de um
curativo na ferida.
"Está a cuidar bem de mim pensou Charik, "é
",

boa pessoa. Sei quem ele é! Um feiticeiro bondo­


so, um mágico dos contos de fadas dos cães ... Será
que estou a sonhar? Não pode ser! E se for verda­
de?", o cão estremeceu, "Daqui a bocado acordo ...
e não haverá nada! Nem os candeeiros de seda, nem
este conforto, nem a fartura. Voltarei de novo para
a rua, para o frio insuportável, para o alcatrão ge­
lado, para a fome, para as pessoas más ... a cantina,
a neve ... Jesus, vai ser tão difícil!"
Mas nada dis s o aconteceu. Pelo contrário,
a rua esfumou-se como um sonho inquietante e
nunca mais voltou.

54
C o RA ç Ao DE C Ao

Pelos vistos, a desgraça não era assim tão terrível.


Apesar de se ouvir harmónica várias vezes ao longo
do dia, os apartamentos continuavam aquecidos.
Era perfeitamente óbvio que saíra a sorte gran­
de ao cão. Os seus olhos enchiam-se de lágrimas
de gratidão por aquele sábio da rua Pretchistenka
pelo menos duas vezes por dia. Além disso, todos
os espelhos da entrada e da sala de recepção re­
flectiam a imagem de um cão afortunado e bonito.
"Sou mesmo bem-parecido. Talvez sej a um
príncipe canino desconhecido, incógnito", reflec­
tia Charik, apreciando o seu reflexo: um cão cas­
tanho, peludo, com o focinho airoso, a passear-se
diante dos espelhos. "É bem provável que a mi­
nha avó tenha tido um caso com um cão de raça.
Pois é, tenho aqui esta mancha branca no foci­
nho. Como é que terá aparecido? Filipe Filipovitch
tem bom gos to, não ia trazer para casa u m
r ·
,,
ra1e1.to qualquer...
O cão comeu mais numa só semana do que no
último mês e meio que passara na rua. Estamos a
falar, claro, em termos de quantidade. Da quali­
dade da comida de Filipe Filipovitch nem se fala.
Embora Dária Petrovna comprasse diariamente
na praça Smolenskaia uma pilha de restos por 1 8
copeques, é preciso ter em conta os jantares às 7
horas da tarde, na sala de jantar, a que o cão assis­
tia sempre, apesar dos protestos da refinada Zina.
Nesses jantares, Filipe Filipovitch transformara-se
numa divindade para Charik. O cão sentava-se so-

55
MIK H AIL BULGAKOY

bre as patas traseiras ao lado da mesa, e ruminava o


casaco do professor. Charik já reconhecia o toque
do dono à porta: duas fortes batidas entrecorta­
das, e ele corria, ladrando, para o receber à entrada.
Filipe Filipovitch vestia um casaco de pele de
raposa prateada, brilhando com milhões de flocos
de neve, cheirando a clementinas, cigarros, perfume,
limões, gasolina e tecido de lã. A sua voz, qual cor­
neta de comando, ressoava por todo o apartamento:
- Seu selvagem, por que despedaçaste o mo­
cho? Incomodava-te muito, era? Responde! E por
que partiste a fotografia do professor Metchnikov?
- Filipe Filipovitch, ele merecia levar uma pal­
mada, nem que fosse só desta vez! - dizia Zina, in­
dignada - Vai ficar demasiado mimado. Veja só o
que ele fez às suas galochas!
- É proibido bater em quem quer que seja -
abespinhou-se Filipe Filipovitch - que isto fique
bem presente na tua memória! As pessoas e os
animais podem ser tratados apenas com recurso à
sugestão. Já lhe deram carne hoje?
- Credo, comeu tudo o que havia nesta casa!
O que julga, Filipe Filipovitch? Admiro-me como
é que ele não rebenta!
- Deixa-o comer à vontade!... Incomodou-te
o mocho, seu patife?
''Auuu" gania cão, lambe-botas, rastej ando
pelo chão e torcendo as patas. Depois, segura­
do pelo cachaço, foi arrastado pela sala de espera
até ao gabinete. O cão uivava, rosnava, agarrava-se

56
CORAÇÃO DE CÃO

ao tapete, ia de rabo, como se estivesse no circo.


No meio do gabinete, em cima do tapete, estava
o mocho de olhos amarelos com a barriga rasgada,
de onde saíam uns trapos encarnados com chei­
ro a naftalina. Em cima da mesa estava a moldura
partida.
- Não arrumei nada de propósito para que o
senhor pudesse ver a cena - relatou Zina, des­
consolada - Saltou para cima da mesa, o canalha!
Agarrou o mocho pelas penas da cauda e zás.
Nem tive tempo de reagir, desfigurou-o num ins­
tante. Devia esfregar-lhe o focinho no mocho para
ele aprender e não voltar a fazer estragos.
O cão começou a uivar. Colado ao tapete, foi
arrastado até ao mocho para enfiar nele o focinho.
Sharik encheu-se de lágrimas amargas e pensou:
"Batam-me, se quiserem, mas não me mandem
embora daqui!"
- Zina, leve já o mocho para o empalhador.
Tome oito rublos e dezasseis copeques para o
bilhete de eléctrico, e vá também ao Miur comprar­
-lhe uma boa coleira com corrente.
No dia seguinte, puseram-lhe uma coleira larga e
brilhante. Inicialmente, depois de se ver ao espelho,
o cão ficou muito frustrado, meteu a cauda entre
as pernas e foi para a casa de banho pensar como
poderia tirá-la. Esfregando-se numa caixa ou numa
arca? Porém, rapidamente se apercebeu de que tal
seria estúpido. Zina foi passeá-lo, e, Charik, cheio
de vergonha, seguia como um prisioneiro pela tra-

57
MIKHAIL BULGAKOV

vessa Obukhov. Mas, quando chegou pela rua Pre­


tchisteka à Igreja de Cristo Salvador, percebeu qual
a importância de uma coleira. Nos olhos dos cães
que tinha encontrado pelo caminho via-se uma
inveja raivosa. Na travessa Miortvaia um rafeiro
de cauda cortada ladrou-lhe: "Sacana de fidalgo"
e "graxista". Quando atravessaram a linha do eléc­
trico, foi com admiração e respeito que um polícia
olhou para a coleira e, quando regressaram, algo de
inédito aconteceu: foi o próprio porteiro, Fiodor,
quem lhe abriu a porta, dizendo a Zina:
- Vejam só que belo animal arranjou Filipe
Filipovitch! E como está gordo!
- Não é de admirar. Come por seis! - retorquiu
a bonita Zina, corada do frio.
''A coleira é como se fosse uma gravata", pen­
sou Charik que, agitando a cauda, entrou no átrio
como um senhor.
Depois de começar a dar o devido valor à co­
leira, o cão fez a sua primeira visita à parte do rei­
no que até então lhe estivera vedada; justamente,
ao reino da cozinheira Dária Petrovna. O aparta­
mento pouco valia quando em comparação com o
reino de Dária. Lá achava-se um fogão preto reves­
tido de azulejos, do qual todos os dias se soltavam
chamas lampejantes. O forno crepitava. Ilumina­
do pelas frestas de luz escarlate, o rosto de Dária
Petrovna, lustroso e brilhante de gordura, parecia
arder. Nos cabelos loiros, apanhados atrás num
carrapito, luziam vinte e dois diamantes falsos.

58
CORAÇAO D E CAo

Nos ganchos das paredes estavam penduradas


panelas douradas, e a cozinha inteira rescendia.
Tudo fervilhava dentro das panelas tapadas.
- Fora daqui! - b errou Dária Petrovna -
Fora daqui, seu ladrão, seu vadio! Era só o que me
faltava. Já conheces o atiçador?
"O que está a fazer? Por que me insulta?"
O cão semicerrou os olhos afectuo s amente.
"Ladrão? Ainda não reparou na minha coleira?"
pensou, e saiu porta fora com o focinho espevitado.
Charik sabia como conquistar o coração das
pessoas. Passados dois dias, já se deitava ao lado do
cesto de carvão e observava Dária Petrovna a trabalhar.
Com uma faca afiada, Dária cortava as cabe­
ças e as patas das perdizes indefesas. De seguida,
como um verdadeiro carrasco, desossava a carne,
tirava os intestinos das galinhas e moía algo na
máquina da carne. Nesta altura Charik aproveitava
para dilacerar a cabeça da perdiz. De um tacho
com leite, Daria Petrovna tirava fatias de pão en­
sopadas, juntava-as à massa da carne, e adicionava
natas e sal. Numa tábua fazia almôndegas. O fogão
ardia como uma casa em chamas e, na sertã, qual­
quer coisa borbulhava. A porta do fogão abria-se,
mostrando um inferno de labaredas intimidantes.
Tudo era calor e azáfama.
À noite apagava-se a boca de pedra. Através da
cortina branca da j anela da cozinha, via-se a noi­
te densa e altiva iluminada por uma única estrela.
Na cozinha sentia-se a humidade do chão e as

59
M1K H AIL BuLGAKOV

panelas brilhavam, embaciadas. Misteriosamen­


te, havia em cima da mesa um boné de bombeiro.
Charik estava deitado ao pé do fogão tépido,
como um leão junto às grades da jaula, e, levantan­
do as orelhas curiosas, viu pela porta entreaberta
como, no quarto das mulheres, um homem de bi­
gode preto com um cinto de couro largo abraça­
va, excitado, Dária Petrovna. Exceptuando o nariz
empoado de branco, o rosto dela ardia de sofri­
mento e paixão. Um feixe de luz atravessava a cara
do homem.
- Deixe-me em paz, p arece um demónio
- resmungava Dária Petrovna na penumbra -
Olhe que a Zina já deve vir aí. O que lhe aconteceu?
Parece ter rejuvenescido.
- Nós não precisamos disso - dizia o homem
de bigode com uma voz rouca, sem conseguir
dominar-se - Você é tão ardente...
Havia noites em que a estrela era tapada pelas
cortinas pesadas, e, se no teatro Bolshoi não repre­
sentavam a Aida, e não havia reunião da Sociedade
Cirúrgica Russa, o professor ficava na poltrona do
seu gabinete. As luzes do tecto não eram acesas,
sendo antes substituídas por um candeeiro verde
sobre a mesa. Charik deitava-se na sombra e ficava
a observar coisas sinistras. Numa repugnante mis­
tura líquida, verde e turva, dentro de frascos de vi­
dro, havia cérebros humanos. Nas mãos e braços
do professor, descobertos até aos cotovelos, assen­
tavam umas luvas de borracha cujos dedos obtu-

60
CORAÇÀO D E CAo

sos mexiam nas circunvoluções. À s vezes o doutor


pegava numa faquinha brilhante e cortava vagaro­
samente os cérebros amarelos.
"Para as margens do Nilo sagrado... ", canta­
rolava em surdina o ilustre cientista, mordendo
o lábio e recordando o interior dourado do tea­
tro Bolshoi. Os aquecedores estavam no máximo.
O calor elevava-se até ao tecto e expandia-se
por toda a sala. No pêlo do cão manifestava-se a
derradeira pulga, que ainda não tinha sido
extraída com o pente por Filipe Filipovitch,
mas que já estava condenada. Os tapetes abafavam
todos os sons. Ouviu-se a porta da entrada prin­
cipal a bater.
"Zina foi ao cinema", pensou o cão "e, quan­
do voltar, vamos comer. Aposto que hoje temos
bifes de vitela."
Naquele dia horrível, ainda de manhã, Charik
teve um mau pressentimento. Em virtude disso, até
ficou triste enquanto tomava o pequeno-almoço:
meia tigela de papas de aveia e um osso de carnei­
ro do j antar da véspera. Comeu sem qualquer ape­
tite. Aborrecido, passou pela sala de recepção e
uivou baixinho para a própria imagem no espelho.
Mas, pela tarde, depois de passear com Zina na ala­
meda, o dia correu normalmente. Não havia nin­
guém na recepção pois, como toda a gente sabe,
à terça-feira o professor não atendia pacientes, fi­
cando sentado no seu gabinete, a ver uns livros
pesados com imagens coloridas na sua secretária.

61
MrKHAIL BuLGAKO\'

Estavam à espera do jantar. O cão ficou mais ani­


mado ao saber que o prato principal seria peru.
Ao passar pelo corredor, Charik ouviu no ga­
binete de Filipe Filipovitch o toque do telefone,
súbito e desagradável. Pegando no auscultador, o
professor ouviu o que llie diziam e deu mostras de
grande excitação:
- Excelente! - ouviu-se a voz dele - Traga-o
. ,, ,,
l ª· J a.
Visivelmente agitado, tocou a campainha e dis-
se a Zina, mal ela entrou, que servissem o j antar
imediatamente.
- Jantar! Jantar! Jantar!
Na casa de jantar começou-se logo a pôr a mesa.
Zina corria e, na cozinha, ouvia-se Dária Petrovna
a resmungar, porque o peru ainda não estava
pronto. O cão voltou-se a sentir inquieto.
"Não gosto nada de balbúrdias no aparta­
mento", reflectiu Charik. Ainda não acabara
de pensar isto quando a confusão se tornou
ainda maior com a chegada do Dr. Bormental,
trazendo uma mala malcheirosa. Precipitou-se
logo com ela pelo corredor em direcção à sala de
observações, e Filipe Filipovitch abandonou a chá­
vena ainda cheia de café, algo inédito, e correu ao
encontro do Dr. Bormental, o que também nunca
tinha acontecido.
- Quando é que ele morreu?
- Há três horas - respondeu Bormental, que,
sem tirar o gorro, abriu a mala.

62
C ORAÇÃO DE C Ao

"Quem morreu?", pensou Charik, soturno e


descontente, "não suporto confusão".
- Sai daqui! Depressa, depressa, depressa! -
gritou Filipe Filipovitch, começando a tocar
todas as campainhas. Ou, pelo menos, as sim
pareceu ao cão.
Zina veio a correr.
- Zina! Mande a Dária Petrovna atender os
telefonemas. Que tome nota, mas não receba
ninguém. Precisamos de si. Bormental, depressa,
depressa, depressa!
"Não gosto nada disto. Mesmo nada!", matutou
o cão, irritado, começando a vaguear pelo aparta­
mento. Toda a azáfama se concentrou então na sala
de observações. Inesperadamente, Zina apareceu
vestida com uma bata branca, parecida com uma
mortalha, correndo entre a sala de observações e
a cozinha.
"Se calhar vou comer alguma coisa. Raios os
partam!", decidiu o cão, no momento em que foi
surpreendido por uma ordem:
- O Charik não pode comer nada! Não o
deixem chegar perto da comida - ouviu-se da
sala de observações.
- Não posso estar constantemente a controlá-lo.
- Prenda-o!
Num ápice, Charik foi levado para a casa de ba­
nho, onde o fecharam à chave.
"Que brutalidade! Pensou o cão, sentado na casa
de banho às escuras, "como se isto fosse necessário... "

63
MIKHAIL BuLGAKov

Durante cerca de um quarto de hora Charik


debateu-se com uma estranha disposição: ora
sentia raiva, ora desânimo e depressão. Tudo lhe
parecia tão absurdo como confuso.
"Pois bem, venerado Filipe Filipovitch, ama­
nhã verás o que vai acontecer às tuas galochas!",
cismou ele. "Dois pares já te obriguei a comprar.
Não te fará mal se tiveres de comprar mais um.
Isso há-de ensinar-te a não prender cães!"
Por alguma razão desconhecida, todos estes pen­
samentos sombrios se desvaneceram, e vieram-lhe
à memória fragmentos da sua primeira juventude:
um pátio enorme e soalheiro na rua Preobrajenska,
garrafas partidas faiscando ao sol, tijolos quebra­
dos, cães vadios à solta.
"Não, daqui não há saída, não vale a pena iludir­
-me", suspirava Charik, fungando. "Habituei-me.
Eu, cão senhorial, ser inteligente, experimentei uma
vida melhor. O que é a liberdade? Fumo, miragem,
ficção ... loucura destes democratas desgraçados."
A escuridão da casa de banho tornou-se assus­
tadora, o cão começou a uivar, atirou-se contra a
porta e pôs-se a arranhá-la.
''Auuuuuuuuu!", ouviu-se o seu choro abafado
por todo o apartamento.
''Vou esfarrapar outra vez o mocho", decidiu
Charik, imbuído de raiva, mas sem forças.
Vencido pelo cans ado, deitou- s e por um
momento e, quando se levantou, o pêlo eriçou-se
por lhe parecer ver na banheira dois horripilantes

64
CORAÇÃO DE CÃO

olhos de lobo. Estava no pico do seu sofrimento


quando a porta se abriu. Meio cego pela súbita cla­
ridade, Charik saiu, esbarrando com tudo, e dirigiu­
-se para a cozinha com ar lúgubre. Porém, Zina
agarrou-o pela coleira e arrastou-o para a sala de
observações. Um calafrio perpassou-lhe pelo corpo.
" O que é que eles quererão d e mim ? " ,
perguntou-se, desconfiado. ' 'A minha queimadura já
sarou. Não percebo nada!"
Teve de ser arrastado até à sala de observações,
pois fazia força nas patas e não queria ir. Lá chegan­
do, foi surpreendido por uma iluminação insólita:
pendendo do tecto, um balão branco irradiava uma
luz tão forte que lhe feria a vista. Filipe Filipovitch
estava iluminado por uma auréola branca e, com
os dentes cerrados, cantarolava: "Para as margens
do Nilo sagrado... "
Apenas pelo leve odor se percebia que era o
professor. O cabelo grisalho estava escondido
pela touca branca, que fazia lembrar a mitra de
um patriarca. Estava todo de branco, parecendo um
sacerdote, e por cima da bata envergava ainda
um avental es treito de borracha. Nas mãos
tinha colocado luvas pretas.
O Dr. Bormental também tinha uma tou­
ca branca. Ao lado da mes a comprida estava
outra, mais pequena, de metal brilhante. Na sala,
mais do que tudo, o cão odiou o homem mordi­
do, sobretudo pelos olhos que tinha naquele dia.
Normalmente corajosos e penetrantes, agora olha-

65
MIK H AIL BULGAKO\'

vam em todas as direcções, fugindo do olhar do


cão. Estavam inquietos, tensos, dúbios, e, no fun­
do, escondiam algo de pérfido, de sujo, talvez até
um crime. O cão olhou para ele sombria e pesa­
damente e fugiu para o canto.
- Zina, tire-lhe a coleira - sussurrou Filipe
Filipovitch - Tente não o perturbar.
Os olhos de Zina ficaram iguais aos do assisten­
te do médico. A mulher aproximou-se de Charik e,
com óbvia falsidade, afagou-o. O cão olhava-a com
tristeza e desprezo.
"Bem, são três contra um ... peguem em mim, se
quiserem ... mas deviam ter vergonha! Podiam ao
menos dizer-me o que vão fazer comigo!"
Quando Zina lhe tirou a coleira, Charik sacudiu
a cabeça e bufou. O homem mordido apareceu à sua
frente, espalhando em seu redor um cheiro fétido.
''Pfff, que porcaria ... Por que estarei tão transtor­
nado e cheio de medo?", pensou o cão, fugindo dele.
- Depressa, doutor - instou Filipe Filipovitch,
impaciente.
Um cheiro forte e adocicado alastrou-se no ar.
Bormental, sem desviar os seus olhos pérfidos
de Charik, tirou a mão direita de trás das costas e
aplicou-lhe rapidamente uma bola de algodão mo­
lhado no nariz. Apanhado de surpresa, o cão come­
çou a sentir-se estonteado, mas ainda teve tempo
para recuar. O mordido apanhou-o de um salto e
voltou a pôr-lhe algodão no nariz. Quase sem res­
pirar, ainda conseguiu voltar a fugir.

66
CoRA çAo DE CA o

"Malvado!'', clamou interiormente. "Porquê?


Para quê?"
À terceira vez o algodão tapou-lhe a boca e o
nariz. Inesperadamente, no meio da sala de obser­
vações, surgiu um lago onde passeavam remadores
em belos barcos e maravilhosos cães cor-de-rosa.
Sentiu as patas moles e paralisadas.
- Para a mesa! - ordenou de algures Filipe
Filipovitch, exultante. As suas palavras repercutiam­
-se em ondas cor-de-laranja. Varreu-se o pavor,
dando lugar a um grande c ontentamento.
Nos últimos dois segundos antes de desfalecer,
o cão encheu-se de amor pelo mordido. De se­
guida, o mundo inteiro virou-se de pernas para o
ar. O cão ainda sentiu uma mão fria por baixo da
barriga, e depois nada mais.

67
IV

Na estreita mes a de operações, estava e s ­


tendido o cão, Charik. A sua cabeça agitava­
- s e des amp aradamente na almofada branc a
de oleado. Fora-lhe rapado o pêlo d a barriga,
e agora o Dr. Bormental tentava rap ar-lhe
à pressa a cabeça, cravando-lhe a máquina na
p elagem. Filipe Filip ovitch, apoiado c o m
a s mãos na ponta da mesa, e de olhos brilhan­
tes, tal como a armação dos óculos dourados,
observava todo este processo, dizendo, com voz
emocionada:
- Ivan Arnaldovitch, o mais importante é quan­
do eu entrar na sela túrcica. Peço-lhe que nessa
altura me dê imediatamente a pituitária, pois tem de
ser logo cosida. Se começar a sangrar, vamos perder
tempo, e perdemos também o cão. Aliás, ele não
tem qualquer hipótese. Calou-se e, de olhos entre-

69
M1KHAIL BuLGAKov

abertos, observou o cão, cujos olhos semicerrados


pareciam reflectir algo como ironia, e acrescentou:
- Sabe, tenho pena dele, e hei-de sentir a sua fal-
ta i. Imagme, are1çoe1-me ...
. r . .

O professor levantou os braços de tal for­


ma que parecia estar a abençoar o infeliz Sharik
para um acto heróico. Pretendia com isso evitar
que algum grão de pó se agarrasse às luvas pretas.
Após cortar o pêlo, o Dr. Bormental desfez­
-se da máquina e pegou numa navalha. Ensaboan­
do a pequena cabeça do cão, começou a rapá-la.
A navalha estalava, deixando aqui e ali gotas de
sangue. Depois de acabar, o mordido passou
pela cabeça rapada uma bolinha de algodão en­
sopada em álcool, esticou a barriga descoberta de
Sharik e disse:
- Está pronto.
Zina abriu a torneira do lavatório. Bormental
precipitou-se para lavar as mãos e pediu-lhe para
as desinfectar com álcool.
- Posso sair, Filipe Filipovitch? - perguntou ela,
olhando com medo para a cabeça rapada do cão.
- Pode.
Zina desapareceu e Bormental continuou a sua
tarefa. Envolveu a cabeça de Sharik com umas leves
tiras de gaze, deixando à vista na almofada, pasme­
-se, o crânio do cão e um estranho focinho barbudo.
Então o profe s s or pôs-se em movimento.
Endireitou-se, olhou para a cabeça de Charik e disse:
- Deus me ajude! Faca!

70
CoRAÇAO DE CAo

Bormental foi buscar uma faquinha curva à pilha


resplandecente que se encontrava na mesa peque­
na, e estendeu-a a Filipe Filipovitch. Depois, calçou
umas luvas pretas iguais às do professor.
- Está mesmo a dormir? - perguntou Filipe
Filipovitch.
- Sim, dorme profundamente.
Filipe Filipovitch cerrou os dentes. Os seus
olh o s adquiriram um brilho penetrante, e,
agitando a faquinha, fez um corte comprido e con­
tundente na barriga de Charik. A pele abriu-se de
imediato, fazendo jorrar sangue por todos os lados.
Bormental começou a fazer pressão sobre a ferida
com bolinhas de gaze e, com umas pinças, apertou
as pontas e o sangue estancou. A sua testa cobriu­
-se de gotas de suor. Filipe Filipovitch fez um novo
corte, e ambos começaram a despedaçar o corpo de
Charik com ganchos, tesouras e pinças. Logo apa­
receram tecidos cor-de-rosa e amarelos, humede­
cidos com umas gotas de sangue, que lembravam
orvalho. Filipe Filipovitch remexeu no corpo do
cão com uma faca, e depois gritou:
- Tesoura!
A ferramenta passou pelas mãos do homem
mordido como se fossem as de um ilusionista.
Filipe Filipovitch foi ao fundo do corpo de Cha­
rik e, depois de alguns movimentos, extraiu
os testículos do cão junto com uns fragmentos.
Bormental, transpirando de emoção e de ansie­
dade, correu em direcção a um frasco de vidro

71
MIKHAIL BULGAKO\'

e tirou de lá outros testículos, húmidos e flácidos.


As linhas de coser, molhadas e curtas, começaram
a ondular nas mãos do professor e do seu assisten­
te. Ouviu-se o ruído das agulhas curvas nas pinças.
Os testículos foram colocados e cozidos no lugar
dos de Charik. O professor afastou-se da ferida,
limpou-a com uma bola de gaze e ordenou:
- Doutor, cosa imediatamente a pele!
Depois, virou-se para o relógio de p arede
redondo branco.
- D e morámo s c atorz e minuto s - s oltou
Bormental entre dentes, espetando na pele frouxa
uma agulha curva.
De seguida, ambos se agitaram e apressaram
como assassmos.
- Faca! - gritou Filipe Filipovitch
A faca apareceu nas suas mãos como que por
magia. O rosto de Filipe Filipovitch tornou-se si­
nistro. Arreganhou as coroas de cerâmica e de ouro,
e fez um corte num só movimento, que se pare­
cia com uma coroa encarnada, na testa de Charik.
A pele rapada e o escalpe foram levantados, e o
crânio ficou a descoberto.
- Trépano!
Bormental estendeu-lhe um berbequim brilhan­
te. Mordendo o lábio, Filipe Filipovitch começou a
cravar e perfurar o crânio do cão com o berbequim
fazendo uns buraquinhos de centímetro em cen­
tímetro, criando assim um círculo à volta de todo
o crânio. O professor gastava para cada furo cerca

72
CORAÇÃO D E CÃO

de cinco segundos. Depois, colocou no primeiro


buraco uma serra bizarra e começou a serrar. O crâ­
nio tremia e rangia baixinho. Passados cerca de três
minutos, a tampa do crânio de Charik foi aberta.
Apareceu então a cúpula do cérebro: cinzenta,
com manchas avermelhadas e veias azuis. Filipe
Filipovitch espetou a tesoura na película e cortou-a.
Jorrou uma fonte fina de s angue, que s alpi­
cou a touca do professor, e quase lhe acertou
no olho. Bormental pegou numa pinça e, qual
tigre, lançou-se para apertar a veia e estancar o
sangue. Fê-lo enquanto lhe escorriam fios de suor,
ficando a sua cara inchada e multicolor. Olhou, ner­
voso, para as mãos de Filipe Filipovitch e para o
prato sobre a mesa. Filipe Filipovitch parecia deve­
ras apavorado. A respiração saía-lhe pelas narinas, e
a boca abriu-se-lhe até às gengivas. Tirou a película
do cérebro e penetrou nele, puxando os hemisfé­
rios. Bormental empalideceu. Com uma mão, apal­
pou o peito de Charik e disse roucamente:
- A pulsação está a baixar muito...
Filipe Filipovitch olhou para ele com um ar
tresloucado, rosnou qualquer coisa e penetrou
ainda mais no cérebro. Bormental partiu uma am­
pola pequena, encheu uma seringa e enfiou-a algu­
res perto do coração do cão.
- Vou p ara a s ela túrcica! - rugiu Filip e
Filipovitch. Com as luvas ensanguentadas e es­
corregadias tirou o cérebro cinzento da cabeça
de Charik. Por instantes, olhou para o focinho do

73
MrKHAIL BuLGAKov

cão, enquanto Bormental partia mais uma ampola


amarela e enchia novamente a seringa comprida.
- No coração? - inquiriu ele, inseguro.
- Ainda pergunta?! - berrou Filipe Filipovitch,
enfurecido - de qualquer forma, já morreu umas
cinco vezes. Injecte! Inconcebível! - o seu rosto
parecia o de um homicida inspirado.
O doutor, num impulso, enfiou a agulha ao de
leve no coração do cão.
- Está vivo, mas por pouco - declarou Bormen­
tal, numa voz baixinha.
- Agora não há tempo para discutir se está vivo
ou não - sibilou o assustador Filipe Filipovitch -
estou mesmo na sela túrcica. Vai morrer na mes­
ma ... Ah, que diabo... "Para as margens do Nilo" ...
Dê-me a hipófise.
Bormental estendeu-lhe um frasco com uma so­
lução, dentro da qual, pendurada numa linha, estava
uma bolinha branca.
"Em toda a Europa não existe ninguém que se
possa comparar a ele, palavra de honra ... ", pensou
Bormental, perturbado.
Filipe Filipovitch pegou com uma mão na
bolinha pendurada, e, com a outra, cortou com
a tesoura uma igual, localizada no meio dos hemis­
férios cerebrais dissecados do cão. Atirou a bolinha
de Charik para o prato e inseriu a nova no cérebro
do cão. Com os seus dedos curtos, que, por mila­
gre, ficaram delicados e flexíveis, coseu-o cuidado­
samente com umas linhas amarelas no seu interior.

74
CORAÇÃO D E CÃO

De seguida, tirou da cabeça do cão os esticadores e


as pinças, colocou de novo o cérebro no seu lugar,
retrocedeu e, já mais calmo, perguntou:
- Está morto, portanto?
- Tem o pulso fraco - respondeu Bormental
- Mais adrenalina!
O professor voltou a pôr a película no cérebro,
juntou a tampa serrada do crânio com muita pre­
cisão, esticou a pele e bradou:
- Cosa!
Bormental levou cerca de cinco minutos a coser
a cabeça de Charik, partindo três agulhas.
Por cima da almofada ensanguentada podia
ver-se o focinho de Charik, apagado, sem vida,
com uma ferida circular, como um anel. Filipe
Filipovitch deixou-se cair, completamente exausto,
numa cadeira, como um vampiro saciado. Arrancou
uma luva, levantando uma nuvem de pó de talco
suado, tirou a outra e atirou-a para o chão. Depois,
tocou a campainha, carregando no botão da parede.
Zina apareceu, desviando os olhos para não ver
Charik e o sangue.
Com as mãos muito brancas, o professor tirou
a touca, qual mitra de sacerdote, toda salpicada de
sangue, e gritou:
- Zina, traga-me um cigarro, e prepare a banhei­
ra e um pijama lavado.
Aproximou a sua cara do focinho de Charik,
abriu a pálpebra direita do cão com dois dedos, e,
observando o olho moribundo, disse:

75
MIKHAIL BULGAKOV

- Raios me partam! Não morreu. Mas com cer­


teza que vai morrer. . Ah, Dr. Bormental, tenho
.

pena do cão. Era matreiro, mas carinhoso.

76
V

O c aderno do doutor Ivan Arnaldovitch


Bormental era fino, em formato normal, estando
preenchido pela mão do próprio. As duas primeiras
páginas estavam escritas com uma caligrafia cuida­
da, com letras miúdas e precisas. Depois, porém,
a letra começava a tornar-se espaçada, perturbada,
com muitos borrões.

22 de Dezembro de 1924, segundafeira


Notas do caso.
O cão de laboratório tem cerca de dois anos.
Macho. Raça: rafeiro. Nome: Charik. Pêlo: ralo,
castanho acinzentado, cauda amarelada. Marcas de
uma queimadura completamente sarada no flan­
co esquerdo. Subalimentado até à chegada a casa
do professor. Bastante forte uma semana depois.
Peso: 8 quilos (ponto de exclamação) .

77
MIKHAIL BuLGAKov

Coração, pulmões, estômago, temperatura: den­


tro do normal.

23 de Dezembro Ontem, às 8.30 horas da tar­


-

de, foi feita pela primeira vez na Europa uma


operação segundo o método do Prof. Preobra­
jensky: sob anestesia clorofórmica, foram retira­
dos os testículos de Charik e, no seu lugar, foram
implantados os testículos, assim como os canais
espermáticos, do corpo de um homem de 28
anos, falecido 4 horas e 4 minutos antes da opera­
ção. Os órgãos foram conservados numa solução
fisiológica esterilizada preparada conforme as in­
dicações do Prof. Preobrajensky.
Imediatamente após a trepanação do crânio do
cão, foi-lhe extirpada a hipófise e substituída pela
do homem acima mencionado.
Foram utilizados Sem cúbicos de clorofórmio,
uma seringa de cânfora e duas seringas de adrena­
lina injectadas directamente no coração.
Indicadores para a operação: realização da expe­
riência pelo Prof. Preobrajensky com o transplan­
te combinado da hipófise e dos testículos com o
objectivo de determinar a possibilidade de aclima­
tização e transplante da hipófise, bem como a sua
potencial influência sobre o rejuvenescimento do
organismo humano.
Operação realizada pelo Prof. Filipe Filipovitch
Preobrajensky. Assistente: Dr. Ivan Arnaldovitch
Bormental.

78
CORAÇÃO DE CÃO

Na noite posterior à operação observaram-se


por diversas vezes descidas alarmantes da pulsa­
ção. Expectativa de resultado fatal. Doses elevadas
de cânfora, de acordo com o indicado pelo Prof.
Preobrajensky.

24 de Dezembro. De manhã, melhoria. Respira­


ção duas·vezes acima do normal. Temperatura: 42.
Cânfora, cafeína: injecções subcutâneas.

25 de Dezembro. Agravamento. Pulso fraco, mem­


bros frios, sem reacção nas pupilas. Adrenalina di­
rectamente no coração e cânfora, de acordo com o
método do Prof. Preobrajensky. Solução fisiológica
por via intravenosa.

26 de Dezembro. Ligeira melhoria. Pulso: 1 80.


Respiração: 92. Temperatura: 41 . Cânfora. Alimen­
tação por clister.

27 Dezembro. Pulso: 1 52. Respiração: 50. Tem­


peratura: 39.8. Reacção nas pupilas. Inj ecções
subcutâneas de cânfora.

28 de Dezembro. Melhoria considerável. Ines­


perada transpiração abundante ao meio-dia.
Temperatura: 37.0. Feridas da operação sem alteração.
Mudança de ligaduras. Vestígios de apetite. Dieta
líquida.

79
MIK H AIL BULGAKOV

29 de Dezembro. Súbita queda de pêlo na parte


da frente e dos lados do corpo. Foram convidados
para consulta o professor do Departamento de
Doenças Dermatológicas, Vassily Vassilievitch
Bundarev, e o director do Instituto Veterinário
de Moscovo. Foi reconhecido que nenhum caso
semelhante alguma vez fora descrito na literatura
científica. O diagnóstico continua por determinar.
Temperatura dentro do normal.

(Nota a lápis) :
Ao fim da tarde começou a ladrar (20h1 5min) .
Notável mudança de timbre e abaixamento de tom.
Em vez de "ão-ão", o latido é "a-u", lembrando
vagamente um gemido.

30de Dezembro.
A perda de pêlo aumentou para queda total.
Aumento drástico de p e s o p ara 30kg p elo
crescimento dos ossos. O cão continua deitado
como antes.

31 de Dezembro. Apetite colossal.


(Um borrão, seguido de letra apressada):
Ao meio-dia e 1 2 minutos o cão ladrou clara­
mente a palavra "E-x-i-e-p"!
(Intervalo no caderno e, depois, enganando-se claramente
devido à emoção, escreveu):

1 de Dezembro (riscado, emendado): 1 deJaneiro de 1925.

80
CORAÇÃO DE CÃO

Foi fotografado de manhã. Ladra claramente


"exiep", repetindo esta palavra em voz alta e com
alguma alegria. À s 3 horas da tarde (em letras gran­
des) riu-se, fazendo Zina desmaiar.
Ao fim da tarde, pronunciou 8 vezes seguidas a
palavra "Exiep lartnec", "exiep"!
Escrito a lápis com letras inclinadaS'. O Professor con­
seguiu decifrar a palavra "Exiep lartnec". Significa
"Central Peixe"!! ! Uma coisa extraordinária ...

2 de Janeiro. Foi fotografado a sorrir. Levantou­


-se da cama e esteve meia hora em pé sobre as pa­
tas traseiras. É quase da minha altura.

(Folhafara do contexto inserida dentro do caderno).


A ciência russa esteve em risco de sofrer uma
grande perda.
Histórico da doença do Prof. Filipe Filipovitch
Preobrajensky.
Às 1 3h30min, o Prof. Preobrajensky desmaiou
profundamente. Ao cair, bateu com a cabeça na
perna de uma cadeira. Tintura de valeriana.
Na minha presença e de Zina, o cão (se assim
pode ser designado) chamou nomes ao professor.

Pausa nas anotações.

6 de Janeiro (escrito ora a lápis, ora a tinta violeta).


Hoje, após lhe ter caído a cauda, o cão pronun­
ciou de forma absolutamente clara a palavra "bar".

81
MIKHAIL BULGAKOV

O fonógrafo está a gravar. Só Deus sabe o que se


está a passar.
Estou completamente perdido.
Foram suspensas as consultas do professor.
A partir das 1 7 horas, na sala de observações,
onde aquele ser se passeia de um lado para o ou­
tro, ouvem-se claramente injúrias ordinárias e as
palavras "mais um parzinho!"

7 de Janeiro . Pronuncia muitas p alavras :


"cocheiro", "não há lugares", "j ornal da noi­
te", "O melhor presente para as crianças", bem
como todos os palavrões existentes no léxico
russo. O seu aspecto é estranho. O pêlo manteve­
-se ap enas na cabeça, no queixo e no peito.
De resto, ficou todo careca e com a pele fláci­
da. Em relação aos órgãos sexuais - estado de
formação de um homem. O crânio aumentou sig­
nificativamente. A testa é baixa e desfigurada.
Juro que endoideço.
Filipe Filipovitch ainda está fraco. Sou eu quem
faz as observações todas (fonógrafo, fotografias) .
A notícia espalhou-se pela cidade.
As repercussões são inúmeras. Hoje o átrio fi­
cou repleto de vadios e velhotas. Aqueles curiosos
ainda continuam lá fora. Nos jornais da manhã
apareceu uma nota surpteendente: "os boatos acer­
ca do marciano da travessa Obukhov são pura in­
venção e foram espalhados pelos negociantes do
mercado Sukharevka. Os negociantes serão cas-

82
CORAÇÃO D E CÃO

ti.gados." Qual marciano? O diabo que os leve!


Que pesadelo!
Melhor ainda: no ''Jornal da Noite" foi anun­
ciado que nasceu uma criança que toca violino.
Ao lado - imagem: violino, a minha fotografia, e por
baixo a legenda: "foi o Prof. Preobrajensky quem
fez a cesariana à mãe." Não há palavras para isto!
A criatura disse uma palavra nova: "Milícia".
Desconfio que Dária Petrovna esteve apaixo­
nada por mim. Tirou a minha fotografia do álbum
de Filipe Filipovitch. Depois de termos mandado
embora os repórteres, um deles conseguiu entrar
na cozinha, etc ...
O que se tem passado à hora das consultas!
Hoje recebemos 82 chamadas. O telefone foi desli­
gado. As mulheres que não têm filhos, ao que cons­
ta, enlouqueceram e querem ser todas consultadas.
Chegou uma comitiva: a delegação comple­
ta do conselho de administração do prédio, com
Chvonder à frente. Para quê, porém, nem eles sabem.

8 de Janeiro. À noite foi feito o diagnóstico. Fi­


lipe Filipovitch, como verdadeiro cientista que é,
reconheceu o seu erro: o transplante da hipófi­
se não rejuvenesce o organismo, antes humaniza
(sublinhado três vezes). Ainda assim, esta admirável
e formidável descoberta não deixou de ser relevante.
Hoje a criatura passeou pelo apartamento pela
primeira vez. Riu-se no corredor ao olhar para
a lâmpada eléctrica. Depois, acompanhado por

83
M 1 KHAIL BuLGAKov

Filipe Filipovitch e por mim, passou para o


gabinete. Mantém-se muito seguro nas patas tra­
seiras . (riscado) pernas e revela a compleição de um
. .

homem pequeno e franzino.


Riu-se de novo no gabinete. O seu sorriso é de­
sagradável, parece artificial. Depois, coçou a nunca,
olhou em redor e eu anotei uma palavra nova,
claramente pronunciada por ele: "Burgueses".
Injuriou. As injúrias são metódicas, ditas sem
pausas, e, aparentemente, sem qualquer sentido.
Têm um carácter quase fonográfico: dá a impres­
são de a criatura ter ouvido algures os palavrões e,
automaticamente, de forma subconsciente, os ter
armazenado no cérebro. E agora despeja-os em
grandes quantidades. Não que eu seja algum psi­
quiatra, raios!
Filipe Filipovitch fica muito abatido quan­
do ouve os palavrões. Em alguns momentos,
perde mesmo o controlo frio e reservado do
cienti s ta que obs erva novo s fenómenos, e,
d e c e r t a fo r m a , fic a imp acie n t e . A s s i m ,
num momento d e injúrias, o professor gritou
nervosamente:
- Pára!
Mas tal não surtiu qualquer efeito.
Depois do passeio pelo gabinete, Charik foi
posto de novo na sala de observações com o esfor­
ço habitual. A seguir, tive uma reunião com Filipe
Filipovitch. Confe s s o que foi a primeira vez
que vi aquela pessoa tão inteligente e segura

84
CORAÇÃO DE CAO

completamente perdida. Cantarolando como de


costume, perguntou:
- E agora, o que havemos de fazer? - logo res­
pondendo - Depósito de Roupa de Moscovo, sim...
"De Sevilha a Granada ... " Depósito de Roupas de
Moscovo, doutor...
Não percebi nada. O professor explicou:
- Ivan Arnaldovitch, por favor, arranje-lhe rou­
pa interior, calças e casaco.

9 de Janeiro. O seu vocabulário enriquece-se


a cada cinco minutos (em média) com uma nova
palavra, e mesmo com frases inteiras. Parece que
ficaram congeladas na sua consciência e agora
estão a derreter e a emergir. Uma vez proferi­
da, a palavra permanece em utilização. Desde
ontem à noite, o fonógrafo gravou: "Não empur­
res!", "Dá-lhe uma!", "Canalha!", "Sai do estribo!",
''Já te mostro!", "Reconhecimento da América",
"Fogareiro".

1O de Janeiro. Foi vestido. Deixou que lhe en­


fiassem a camisa interior, e até se riu com vonta­
de. Mas recusou as ceroulas, protestando com gri­
tos roucos: "Para a bicha, seus filhos da puta, para
a bicha!". Acabou por ficar vestido, embora as meias
sejam demasiado grandes para ele.
(No caderno vêem-se uns desenhos esquemáticos que
parecem representar os estádios de transformação gradual
dapata canina em pé humano.)

85
M1 KHAIL BuLGAKOV

Alonga-se o calcanhar (tarso) . Esticam-se os


dedos e as unhas.
Repetido o ensino sistemático da utilização da
casa de banho. Os criados estão completamente
de rastos.
É preciso anotar a rápida capacidade de com­
preensão da criatura. As coisas estão a melhorar
significativamente.

11 de Janeiro. Conformou-se inteiramente com


as calças. Pronunciou uma frase comprida e di­
vertida, tocando nas calças de Filipe Filipovitch:
"dá-me cigarrinhos - tens calças com risquinhas."
O pêlo da cabeça ficou fino e sedoso. É fá­
cil confundi-lo com cabelo. As manchas na nuca
permanecem. Hoje caiu-lhe a última penugem das
orelhas. Tem um apetite voraz. Come arenque com
muito gosto.
À s cinco da tarde deu-se um acontecimento
importante: pela primeira vez, as palavras proferi­
das pela criatura não estavam desconexas dos ob­
jectos à sua volta, surgindo antes em reacção a estes.
O que aconteceu foi o seguinte: quando o professor
lhe ordenou que não deitasse os restos de comida
para o chão, ele respondeu de repente: "Deixa-me
em paz, lêndea!"
Filipe Filipovitch ficou chocado, mas depois
recompôs-se e disse:
- Se voltares a insultar-me a mim ou ao doutor,
vais apanhar!

86
CORAÇÃO DE CÃO

Nesse momento tirei uma fotografia a Charik.


Garanto que ele percebeu as palavras do professor.
O seu rosto ensombrou-se. Olhou-nos de soslaio,
bastante irritado, mas acalmou-se.
Hurra! Ele percebe-nos!

Mete as mãos nos bolsos das calças.


12 de Janeiro.
Estamos a ensiná-lo a não dizer palavrões. Asso­
biou a música popular "oi iablochko". Consegue
manter uma conversa.

Não p o s s o abs ter-me de formular certas


hipóteses: por enquanto, não interessa o rejuve­
nescimento (com os diabos!) . Há outra coisa mui­
tíssimo mais importante: a experiência extraor­
dinária do Prof. Preobrajensky revelou um dos
mistérios do cérebro humano. A partir de agora, o
funcionamento enigmático da hipófise está explica­
do. Define os traços humanos! As suas hormonas
podem ser consideradas as mais importantes do
organismo - são as hormonas da figura humana.
A ciência abre-se a um novo domínio: sem qual­
quer retórica faustiana, foi criada uma nova espé­
cie humana. O bisturi do cirurgião deu vida a um
novo ser humano! Prof. Preobrajensky, o senhor é
um verdadeiro criador!! ! (borrão) .
Mas enfim, voltando ao assunto... Estava a di­
zer que a criatura consegue manter uma conversa.
Na minha opinião, acontece o seguinte: a hipó­
fise abriu o centro da fala no cérebro canino, de

87
M 1 KHAIL BuLGAKOV

onde começou a brotar uma torrente de palavras.


Acho que estamos a lidar com um cérebro res­
suscitado e em desenvolvimento, e não com um
cérebro criado de novo. Oh, admirável confirma­
ção da teoria da evolução! Descobrimos o maior
elo entre o cão e o químico Mendeleiev! Há mais
uma hipótese: ao longo da sua vida de cão, o cé­
rebro de Charik acumulou inúmeras informações.
As palavras que começou por usar foram primeiro
palavras de rua, que ouviu e guardou. Agora, sem­
pre que passo pelas ruas e me deparo com um cão,
olho-o com secreto pavor. Só Deus sabe o que eles
têm guardado na cabeça!
Charik sabia ler! Ele lia (três pontos de exclama­
ção) . Fui eu que o adivinhei, através do cartaz
"Central de Peixe". Lia a palavra ao contrário,
do fim para o princípio! Até sei a resolução des­
te enigma: está no cruzamento dos nervos visuais
do cão.
Em Moscovo passa-se algo de inconcebível.
Sete negociantes do mercado Sukharevka fo­
ram presos pela propagação de rumores acerca
do fim do mundo, que teria sido provocado pe­
los bolcheviques. Dária Petrovna contou-nos e
até apontou uma data: 28 de Novembro de 1 925,
dia do Mártir Santo Estêvão, em que a Terra há­
-de colidir com um corpo celeste! Andam uns vi­
garistas a fazer conferências. Criou-se uma grande
confusão com esta hipófise. Dá vontade de fugir!
Passei a viver em casa do professor e, a pedido dele,

88
CORAÇÃO DE CÃO

estou a dormir na sala de espera junto a Charik.


A sala de observações foi transformada em sala
de espera. Chvonder tinha razão, deve estar todo
contente. Os armários ficaram sem vidros - foi
Charik que, aos saltos, os partiu. Obrigámo-lo a
perder esse hábito.
Algo de estranho está a acontecer a Filipe.
Depois de lhe ter relatado as minhas hipóte­
ses acerca da esperança de desenvolver Charik
até ao mais alto nível psíquico, ele riu ironicamente,
e respondeu: ''Acha?!" num tom sinistro. Será que
estou errado? O velhote descobriu qualquer coi­
sa. Enquanto me ocupo com o histórico do caso,
ele estuda o histórico da pessoa a quem pertencia
a hipófise.

(No caderno umafolhafora de contexto.)


Klim Grigorievitch Tchugunkin, 2 5 ano s,
solteiro. Não pertence ao partido mas é simpa­
tizante. Preso e julgado três vezes, foi sempre
absolvido. Da primeira vez, por falta de provas.
Da segunda, salvou-o a sua origem social. No ter­
ceiro julgamento foi condenado a quinze anos de
trabalhos forçados com suspensão de pena. Furtos.
Ocupação: toca balalaika em tabernas.
Estatura baixa, má compleição física. Fígado
dilatado (álcool) .
Causa da morte: facada no coração no bar "Sinal
Stop" perto do quartel Preobrajenskaya.

89
MIKHAIL BuLGAKov

O velh o pro fe s s or e s tá completamente


ab s o rvido no his tórico da doença de Klim
Tchugunkin. Estava a resmungar uma coisa sem
sentido, interrogando-se: "Por que razão não me
lembrei de ver no laboratório de patologia o ca­
dáver inteiro de Tchugunkin?" O que se estará a
passar? Não entendo! Que diferença faz a quem
pertencia a hipófise?

17 de Janeiro. Não es crevo há alguns dias.


Apanhei uma gripe.
Ao longo destes dias o aspecto exterior do an­
tigo cão formou-se definitivamente:
(a) Pela constituição do corpo é um homem
adulto;
(b) O peso anda à volta dos 50 quilos;
(c) Estatura baixa;
(d) Cabeça pequena;
(e) Começou a fumar;
(f) Alimenta-se como qualquer pessoa;
(g) Veste-se sozinho;
(h) Fala fluentemente.
Veja só, que hipófise! (um borrão) .
Com isto dou por encerrado o histórico do
caso. Temos um organismo novo, que deve ser es­
tudado desde o princípio.
Anexos: estenograma da fala, gravações de voz,
fotografias.
Assinatura: o assistente do Prof F. F. Preobrajensky.,
Dr. Bormental.

90
VI

Ao lado da porta da sala de espera, encontrava­


- s e p e ndurada uma folha de p ap el, o n d e
estava escrito com a letra de Filipe Filipovitch:
Proibido comer sementes degirassoldentro do apartamento.
F. Preobrajensky
Depois, com a letra de Bormental, escrito a lápis azul:
Proibido tocar qualquer instrumento musical das 5 ho­
ras da tarde até às 7 horas da manhã.
A seguir, vinha a letra de Zina:
Quando voltar, diga a Filipe Filipovitch que não seipara
onde elefoi. Fiodor disse que saiu com Chvonder.
De novo a letra de Preobrajensky:
Vou ter de esperar cem anospelo vidreiro?
E por fim a letra de Dária Petrovna:
Zinafoi à loja. Disse que ia trazê-lo.
Era uma noite de Inverno, no fim de Janeiro,
antes da hora de j antar e das visitas. Na casa

91
MIK H AIL BuLGAKov

de jantar encontrava-se já aceso o candeeiro com


o abajur cor de cereja. Reflectida pelos espelhos
do armário da loiça, partidos e colados numa arma­
ção em forma de cruz de um lado ao outro, a sua
luz projectava-se obliquamente num prato de vidro.
Filipe Filipovitch estava à mesa, inclinado
sobre uma página de jornal, absorvido na sua lei­
tura. O seu rosto parecia transtornado e, de vez
em quando, parecia resmungar entre dentes. Lia a
seguinte notícia:
Não há dúvida de que este é o seu filho bastardo (como
diz a corrupta sociedade burguesa). É assim que se diverte
a nossa burguesia pseudo-cientíjica! Ninguém pode ocupar
sete divisões, sem que a espada vermelha dajustiça caia em
cima da sua cabeça!
Chv. .. r
Do outro lado da parede, vinha o som persis­
tente de uma balalaika, tocada com grande desen­
voltura. As vivas e as complicadas variações sobre
"A lua brilha", mis turadas com as palavras
da notícia, produziam um terrível efeito na cabeça
de Filipe Filipovitch. Terminada a leitura, cuspiu
em seco sobre o ombro esquerdo e, sem querer,
começou a cantar distraidamente:
- ''Ah lua bri-i-i-lha ... a lua brilha .. a lua brilha ... "
Argh, não me sai da cabeça a maldita cantiga!
Tocou à campainha. O rosto de Zina assomou
entre os reposteiros.
- Diz-lhe que já são cinco horas e que deixe de
tocar. Chama-o cá, se faz favor.

92
CORAÇÃO D E CÃO

Filipe Filipovitch estava sentado à mesa nwna


poltrona. Entre os dedos da mão e s querda
sobre s s aía a p onta castanha de um charuto.
Ao pé do reposteiro, com as pernas entrecruza­
das, encontrava-se wn homem baixo e de aspecto
antipático. Com a barba por fazer, os cabelos
cresciam-lhe desalinhados como arbustos num
campo mal semeado. A sua testa demasiado
curta impre s sionava . Imediatamente acima
dos tufos farfalhudos das sobrancelhas, começava
a cabeleira densa.
O casaco, roto sob o braço esquerdo, estava
coberto de palha. As calças às riscas estavam
rasgadas no joelho direito, e manchadas de tin­
ta violeta no esquerdo. Do pescoço pendia-lhe
wna gravata azul-celeste adornada com um falso
alfinete encarnado. A cor da gravata era tão berran­
te que, mesmo quando Filipe Filipovitch, cansado,
fechava os olhos para não a ver, lhe aparecia, na
escuridão total, ora no tecto, ora na parede,
uma chama encarnada com uma coroa azul.
Quando abria os olhos, ficava de novo ofusca­
do com o brilho dos sapatos envernizados e das
polainas brancas.
"Parecem galo chas " , p e n s o u Filip e
F i l i p o vi t c h , c o m d e s ag r a d o . S u s p i r o u ,
fungo u , e c o m e ç o u a mexer n o charuto
apagado. O homem fwnava e fixava o professor
com o olhar turvo, deixando cair as cinzas no pei­
tilho da camisa.

93
MIKHAIL BUL G AKOV

Na parede, ao lado da perdiz de madeira, o re­


lógio deu cinco badaladas. Dentro do relógio ain­
da se ouvia alguma coisa a gemer quando Filipe
Filipovitch começou:
- Se não me engano, j á lhe pedi duas ve­
zes para não dormir no chão da cozinha, muito
menos de dia.
O homem tossiu roucamente, como se se tivesse
engasgado com um osso, e respondeu:
- O ar da cozinha é mais agradável.
Tinha uma voz estranha, fora do vulgar, abafada
e ao mesmo tempo sonora. Parecia falar de dentro
de um barril.
Filipe Filipovitch abanou a cabeça e perguntou:
- Onde é que arranjou essa porcaria? Refiro-
-me à gravata.
O homem, seguindo o seu dedo com os olhos,
olhou carinhosamente para a gravata.
- ''Porcaria" porquê? - objectou ele - a gravata é
muito chique. Foi a Dária Petrovna que ma ofereceu.
- A Dária Pretovna ofereceu-lhe uma coi­
sa horrorosa. E depois esses sapatos! Um per­
feito disparate. Mas porquê? O que tinha eu
p e dido? C o mprar s ap ato s decente s ! Que é
isso? Não foi com certeza o Dr. Bormental a
escolhê-los.
- Fui eu que lhe pedi para me comprar sapatos
como os dos outros. Não sou menos do que eles,
pois não? Vá ver à Kuznetsky Most, toda a gente
anda com estes sapatos.

94
CoRAÇAo DE CAo

Filipe Filipovitch revirou a cabeça e disse, resoluto:


- Não vai dormir mais não chão, entendeu?
Que impertinência! Está a tapar o caminho, e
há senhoras.
A cara do homenzinho tornou-se sombria, e ex­
clamou com violência:
- E então? Grande coisa, até parece que são
fidalgas! Simples criadas a darem ares de mulheres
de comissários! Tal como a Zinka, que está sem­
pre a dizer mal!
Filipe Filipovitch olhou-o severamente:
- Está proibido de chamar isso à Zina! Percebeu?
Silêncio.
- Estou a perguntar se percebeu!
- Percebi.
- Tire j á essa porcaria do pescoço. Você . . .
Olhe-se ao espelho! J á viu com o que é s e parece?
Um palhaço! Já lhe pedi mais de mil vezes para
não deitar as beatas dos cigarros para o chão.
A partir de agora não quero ouvir nem mais um
palavrão nesta casa! Não cuspa! Tem aqui a cus­
pideira. Tenha cuidado p ara não suj ar tudo
na casa de banho! Deixe de falar com a Zina,
ela queixa-se que você a agarra na escuridão. Veja lá!
Quem disse ao doente que veio para ser consulta­
do? "Que se lixe"? O que se passa? Pensa que está
numa taberna?
- Está a ser muito duro comigo, pai - soluçou
o homem.
Filipe Filipovitch corou e os seus óculos brilharam.

95
MIKHAIL BULGAKOV

- Que é isso de "pai"? Que espec1e de fa­


miliaridade é e s s a? Nunca mais quero ouvir
isso, ouviu? Dirij a-se a mim pelos meus dois
primeiros nomes.
O rosto do homem adquiriu uma expressão
insolente.
- Por que é que vocês s ão sempre as sim?
"Não cuspas, não fumes, não vás para ali ... ". O que
se está a passar aqui? Há tantas regras como para
os passageiros do eléctrico! Por que razão não me
deixam viver em paz?! E, em relação ao "pai", não
pode ter qualquer objecção... Por acaso pedi-lhe
que me operasse?! - ladrava o homem indignado
- Irra, isto é de mais! Deitam a mão a um animal,
abrem-lhe a cabeça com uma faca, e não conseguem
enfrentar o resultado! Se bem me lembro, não con­
cordei com operação alguma - O homem ergueu
os olhos para o tecto como quem tenta recordar-se
de uma fórmula - Nem a minha família! Se calhar
até tenho o direito de o processar!
Os olhos de Filipe Filipovitch ficaram com­
pletamente redondos. O charuto caiu-lhe da mão.
"Que tipo, este!", pensou.
- Então - dis se ele, cerrando os olhos -
você está descontente porque foi transformado
num ser humano? Preferia andar de novo pelas
lixeiras? A padecer de frio nas ruas? Pois bem, se
eu soubesse ...
- Mas por que é que me está a chatear a cabe­
ça?! "Lixeira, lixeira ... " Ao menos levava uma vida
CoRA çAo D E CAo

honesta. E se eu tivesse morrido na mesa de ope­


rações? Que me diz a isto, camarada?
- Chamo-me Filipe Filipovitch - exclamou o
professor, irritado - não sou nenhum camarada!
Isto é monstruoso!
"Que pesadelo, que pesadelo!", pensou de si
para si o professor.
- Ah sim, claro, com certeza. . . - retorquiu
o homem com ironia, pondo a perna de lado,
vitorioso - estamos esclarecidos! É claro que
não somos seus camaradas! Como poderíamos?
Não tivemos o benefício de estudar na universida­
de, e não crescemos em apartamentos de quinze
divisões com casas de banho! Só que esses tempos
acabaram. Hoje em dia, cada um tem direito...
Filip e Filip ovitch empalidecia à me dida
que ia ouvindo a arenga do homem. Este calou­
-se e dirigiu-se, de forma provocatória, ao cinzeiro
com o cigarro torcido na mão, bamboleando-se.
Demorou bastante tempo a esmagar a ponta do
cigarro com uma expressão que dizia: "Toma!
Toma!". Depois de apagar o cigarro, rangeu os den­
tes e meteu o nariz debaixo do braço.
- Apanhe as pulgas com os dedos! Com os
dedos! - gritou furiosamente Filipe Filipovitch -
Não consigo perceber onde é que as apanha!
- Não pensa que estou a criá-las, pois não? -
respondeu o outro, ofendido - Se calhar as pulgas
gostam de mim - meteu a mão debaixo do casaco e
tirou de lá uma mão-cheia de algodão cor-de-laranja.

97
MIKHAIL BULGAKOV

Filip e Filip ovitch levantou os olhos p ara


a grinalda p endurada no tecto e começou
a tamborilar com os dedos no tampo da mesa.
O homem matou a pulga e, a fa s tando - s e ,
sentou-se numa cadeira. Deixou cair o s braços ao
longo do casaco e pousou o olhar no chão. Con­
templava os sapatos, e via-se que isso lhe dava
lffie nso prazer.
Observando também o brilho intenso das
pontas dos sapatos, Filipe Filipovitch semicerrou
os olhos e disse:
- Sobre que assunto é que queria falar comigo?
- Que assunto? É simple s. Documento s.
Preciso de um documento, Filipe Filipovitch.
O professor estremeceu levemente.
- Hmm ... Diabo! O documento! Realmente ...
será que sem o documento não dá? - a sua voz
denunciava hesitação e constrangimento.
- Desculpe? - replicou o homem, confiante -
Como assim, sem documento? Onde está o seu
bom senso? Peço desculpa. Mas o senhor sabe
que uma pessoa não pode existir legalmente sem
documentos. Em primeiro lugar, o administrador
da Comissão Predial. ..
- Que tem ele a ver com isso?
- Que tem a ver? ! Quando me encontra,
pergunta-me: "Meu amigo, quando é que vai fazer
o seu registo?"
- Santo Deus! - exclamou Filipe Filipovitch -
"quando me encontra, pergunta-me" ... Imagino o

98
CORAÇÃO D E CÃO

que lhes tenha respondido! Esqueceu-se de que o


tinha proibido de vaguear pelas escadas?
- Mas o que vem a ser isto? Sou algum condena­
do? - volveu o outro, surpreso, consciente de que
tinha a razão do seu lado - Que quer dizer com
"vaguear"? As suas palavras são bastante ofensivas.
Ando como anda toda a gente!
Dito isto, bateu com os sapatos de verniz no
chão. Filipe Filipovitch calou-se e desviou o olhar.
"Tenho de me conter", pensou ele.
Dirigindo-se ao armário da loiça, bebeu um copo
de água de um trago.
- Muito bem. Não vamos prender-nos às pala­
vras. O que diz então essa encantadora Comissão
do Prédio?
- Que pode ela dizer... E não tem necessidade
de chamá-la de encantadora nesse tom pejorativo!
Ela está a defender os interesses das pessoas ...
- Ah sim, os interesses de quem?
- De quem? Da classe dos trabalhadores!
Filipe Filipovitch arregalou os olhos:
- E você é um trabalhador?
- Claro, não sou nenhum burocrata ou especu-
lador...
- Deixe-se disso. Diga-me então do que é precisa
para a defesa dos seus interesses revolucionários?
- Já lhe disse: tem de me registar. Eles dizem
que uma pessoa não pode viver em Moscovo
sem estar registada. Esta é uma razão. Mas o mais
importante é a ficha de alistamento militar.

99
MIKHAIL BuLGAKOV

Não quero ser considerado desertor! Depois vêm


os problemas com os sindicatos ...
- N ã o s e imp orta de me diz er como é
que o vou registar? Qual é a documentação
base? O meu passaporte? Ou esta toalha de mesa?
É preciso ter em conta as circunstâncias! Não se
esqueça que você ... hmm ... Como é que posso di­
zer isto... Bom, você é um desenvolvimento que
surgiu inesperadamente. Um ser originado em la­
boratório! - Filipe Filipovitch falava cada vez com
menos firmeza.
O homem manteve-se triunfantemente calado.
- Bem, mas diga-me afinal o que há para
fazer de forma a que o registem, e, de um
modo geral, o que é preciso para satisfazer a
comi s s ão. S e você nem sequer tem nome e
apelido!
- Aí é que você se engana. Posso facilmente
escolher um nome. Publica-se no jornal e resolve-se
o assunto!
- E como é que se quer chamar?
O homem ajeitou a gravata e respondeu:
- Poligraf Poligrafovitch.
- Não s e arme e m p arvo - dis s e Filip e
Filipovitch mal-humorado - Estou a falar a sério.
Um sorriso sarcástico esboçou-se sob o bigode
do homem.
- Não e s tou a p erceber - retorquiu ele,
divertido, com alguma ironia - E s tou proi­
bido de dizer palavrões. Proibido de cuspir.

1 00
CORAÇÃO D E CÃO

No entanto, s ó me chamam "p arvo, tolo " .


Até parece que na R.S.F.S.R. s ó o s professores têm
o direito de insultar!
O sangue afluiu à cabeça de Filipe Filipovitch.
Tentou encher um copo com água, mas este caiu e
partiu-se. Enquanto enchia outro, pensava: "Mais
um bocado e começa a dar-me lições. E com toda
a razão. Já não consigo dominar-me."
Voltou- s e e , curvando - s e c o m cortesia,
disse friamente:
- Desculpe. Tenho andado nervoso. O seu nome
pareceu-me muito estranho. Onde foi desencantá-lo?
- A administração do prédio aconselhou-me.
Procurámos num almanaque. Perguntaram-me qual
é que eu preferia, e eu escolhi este.
- Não acredito que exista um nome desses
num almanaque!
- Realmente é espantoso... - o homem sorriu -
mas você tem um idêntico na sala de observações.
Sem se levantar, Filipe Filipovitch tocou na cam­
painha da parede e apareceu Zina.
- Traga-me o almanaque que está na sala de
observações.
Instantes depois, Zina voltou com o almanaque
e Filipe Filipovitch perguntou:
- Onde?
- No dia 4 de Março.
- Mostre ... Hmm ... diabo. Zina, queime isso, já!
Assustada e de olhos arregalados, Zina saiu com
o almanaque. O homem abanou a cabeça.

101
MrK H AIL BuLGAKOV

- E posso saber qual será o apelido?


- Esse pode ser herdado, é-me indiferente.
- Herdado? Herdado como?
- Charikov.
N o consultório, em frente da s ecretaria,
envergando um c a s aco de cabedal, e s tava
o adminis trador da C o mi s s ão do Prédio,
Chvonder. O Dr. B ormental encontrava - s e
in s talado numa poltrona, ao lado de Filip e
Filipovitch. O seu rosto, corado do frio (acabara
de regressar da rua), mostrava-se tão atónito como
o do professor.
- O que é que tenho de escrever? - perguntou
Filipe Filipovitch, impaciente.
- Bem - começou Chvonder - a questão é
simples. Cidadão professor, escreva a certidão
de nascimento. Certificando que, por esta ou
aquela razão, sabe que o portador da certidão é de
facto Charikov, Poligraf Poligrafovitch, hmm. . .
que nasceu aqui no seu apartamento.
Bormental, perplexo, agitou-se no seu lugar.
Filipe Filipovitch cofiou o bigode.
- Hmm ... Que diabo, não consigo imaginar nada
mais absurdo! Ele não nasceu, simplesmente . . .
Bem, quer dizer. . .
- Esse assunto não me diz respeito, s e nas­
ceu ou não nasceu - disse Chvonder calmamen­
te, mas com uma expressão maldosa - Em todo o
caso, foi você quem fez a experiência, professor.
Foi o senhor quem criou o cidadão Charikov.

1 02
CoRAÇAO DE CAo

- E foi muito simples - rosnou Charikov, sen­


tado junto ao armário dos livros, cujo vidro lhe
devolvia a imagem da gravata.
- Agradecia-lhe que não interferisse na conver­
sa - exigiu Filipe Filipovitch - Diz que foi muito
simples, mas diz mal, porque não foi nada simples.
- Por que razão não posso interferir? - resmun­
gou Charikov, ofendido, logo apoiado por Chvonder.
- Desculpe, professor, o cidadão Charikov
tem toda a razão. Ele tem o direito de participar
na discussão do seu próprio destino, principalmen­
te porque a questão diz respeito ao documento.
O d o cumento é a c o i s a mais importante
do mundo.
Naquele momento, o telefone começou a
tocar de forma ensurdecedora sobre o ouvido
de Filipe Filipovitch, interrompendo a conversa.
O professor atendeu:
- Estou? - inquiriu. Depois ruborizou e come­
çou a gritar:
- Faça o favor de não me incomodar com ni­
nharias! O que tem a ver com isso? - e, desabrido,
devolveu o auscultador ao seu lugar.
Uma alegria maliciosa estampou-se no rosto de
Chvonder. Filipe Filipovitch, enrubescendo ainda
mais, exclamou:
- Bom, vamos lá acabar com isto.
Rasgou uma folha da sua agenda e esboçou
depressa umas palavras que depois leu, irritado,
em voz alta:

1 03
MIKHAIL BuLGAKov

- "Pelo seguinte certifica-se ... " Diabo... Hmm ...


"que o portador do pres ente do cumento é
uma pessoa que resultou de uma experiência
laboratorial de operação ao cérebro. A dita pessoa
necessita de documentos" ... Caramba! Eu por re­
gra sou contra estes documentos idiotas. Assinado:
"Prof. Preobrajensky".
Chvonder ofendeu-se:
- Que e s tranho, profe s s or, como é que
pode achar que os documentos são idiotas?
Não posso deixar que permaneça no prédio
uma pessoa sem documentos e que, ainda por
cima, não está registada no alistamento militar.
E se de repente rebenta uma guerra com as feras
imperialistas?
- Não vou combater a lado nenhum - ladrou
de repente Charikov, carrancudo, virando a cabe­
ça para o armário.
-Você, cidadão Charikov, está a falar de forma mui­
to irresponsável. O alistamento militar é obrigatório.
- Tudo bem, vou-me alistar, mas combater
nunca, nem pensar - disse ele com hostilidade,
endireitando a gravata.
Foi a vez de Chvonder ficar confuso. Preobra­
jensky lançou um olhar enfadado, mas malicioso, a
Bormental, como quem diz: "que mentalidade!", ao
que o outro respondeu com um aceno afirmativo.
- Fiquei gravemente ferido em resultado
da op eração - dis s e Charikov s o mbrio -
Olhe o que eles me fizeram - e apontou para a

1 04
CORAÇÃO D E CÃO

sua cabeça. Uma cicatriz ainda fresca atravessava­


-lhe a testa.
- Você é um anarquista individualista? - perguntou
Chvonder, erguendo as sobrancelhas.
- Tenho direito a ser dispensado do exército -
respondeu Charikov.
- Bom, por enquanto não é essa a questão -
disse Chvonder, confuso - O importante é que o
certificado do professor seja enviado para a milícia,
e que você receba o documento.
- Diga-me uma coisa ... - interrompeu subita­
mente Filipe Filipovitch, como quem é assaltado
por um pensamento importante - Aqui neste pré­
dio não há nenhum quarto livre? Estou disposto
a comprá-lo.
Os olhos castanhos de Chvonder pareceram faiscar.
- Não, professor, infelizmente não há. E nem
está previsto haver.
Filipe Filipovitch apertou os lábios e não
disse nada. O telefone começou novamente a
t o c a r s o n o r a m e n t e . S e m a t e n d e r , Filip e
Filip ovitch p egou no aus cultador, fez com
e l e u n s m ovime n t o s n o ar, e d e i x o u - o
p e n durado p e lo fi o azul . To d o s fi c a r a m
sobressaltados.
"Enervou-se, o velho", pensou Bormental.
Chvonder, com os olhos a brilhar, inclinou­
-se e sam.
Charikov s eguiu-o, fazendo ranger os sa­
patos. O professor e Bormental ficaram a sós.

1 05
MIKHAIL BULGAKO\'

Depois de um silêncio, Filipe Filipovitch pôs a mão


na cabeça e disse:
- I s to é um p e s adelo, p alavra de honra.
Viu isto? Juro-lhe, doutor, que estas duas semanas
me têm esgotado mais do que os últimos catorze
anos! Que sujeito... Hei-de contar-lhe ...
O uviu-se um ruído longínquo de vidros
partidos e um grito de mulher. Qualquer coisa
ziguezagueou selvaticamente pelo papel de
parede do corredor em direcção à sala de obser­
vações; aí fez cair alguns objectos e voltou para
trás. Baterem portas e chegou da cozinha um
grito abafado de Dária Petrovna. De seguida,
um uivo de Charikov.
- Valha-me Deus! Mais um problema - gritou
Filipe Filipovitch, correndo porta fora.
- Um gato! - apercebeu-se Bormental, seguindo-o.
Propalaram-se pelo corredor em direcção à en­
tradá e daí seguiram para a casa de banho. Saindo
precipitadamente da cozinha, Zina colidiu com
Filipe Filipovitch.
- Quantas vezes repeti que não quero gatos
por perto! - gritou Filipe Filipovitch, enraive­
cido - Onde é que ele está? Ivan Arnaldovitch,
por amor de Deus, vá à sala de espera acalmar
os pacientes.
- Está na casa de banho, o patife está na casa de
banho! - gritou Zina, sufocada.
Filipe Filipovitch empurrou a porta da casa da
banho, mas esta não cedeu.

1 06
CORAÇÃO DE CÃO

- Abra já a porta!
Em resposta, ouviu-se o ruído de qualquer coisa
que parecia trepar pelas paredes, e o som de objec­
tos a cair, ao mesmo tempo que a voz de Charikov
bradava num tom feroz:
- Mato-te aqui mesmo!
Ouviu- s e tamb ém água a correr, primei­
ro pelos canos, e depois a j orrar das torneias.
Filip e Filip ovitch empurrou a p o rta c o m
mais força, tentando derrubá-la. Dária Petrovna
abandonou o fogão e ap areceu à s oleira da
cozinha, banhada em suor, com a cara transfi­
gurada. Então ouviu-se estalar a trave colocada
a meio da j anela pequena, perto do tecto, que
ligava a casa de banho à cozinha. D aí caíram
dois pedaços de vidro, e surgiu um gato com
umas riscas de tigre e um grande laço azul ao
pescoço, olhando em redor como um polícia
à antiga. Saltando para dentro de uma travessa
que e s tava em cima da m e s a , p ar tiu-a em
duas e pulou depois p ara o chão. Aí girou
sobre três patas, agitou a quarta como se es­
tivesse a dançar e escapou-se, ligeiro, por um
buraco e s treito que dava p ara a s aída de
emergência. O buraco alargou-se e, no lugar do
gato, surgiu a fisionomia de uma velhota com um
lenço e uma saia com bolinhas brancas. Com o
polegar e o indicador limpou a boca cavada, e, per­
correndo a cozinha de olhos arregalados, murmu­
rou, espantada:

1 07
M1KHAIL BuLGAKov

- Oh, Pai do Céu!


Empalidecido, Filipe Filipovitch atravessou a co­
zinha e perguntou, com um a:r ameaçador:
- Que deseja?
- Gostava muito de ver o cãozinho que fala
- resp ondeu a velhota, baj uladora, fazendo
o sinal da cruz.
Filipe Filipovitch ficou ainda mais pálido.
Aproximou-se da velha e segredou, numa voz abafada:
- Fora daqui, já!
A velhota recuou em direcção à porta e disse,
ofendida:
- Não é preciso falar assim, senhor professor!
- Já lhe disse, fora daqui! - repetiu Filipe
Filipovitch, de olhos tão redondos como os de um
mocho, fechando a porta com um estrondo na cara
da intrusa - Dária Petrova, já lhe pedi tantas vezes ...
- Mas, Filipe Filipovitch - respondeu ela, deses­
perada, apertando as mãos - que posso eu fazer?
Há gente a espreitar e a tentar entrar todo o dia.
Às vezes até me assusto e quase deixo cair o que
tenho nas mãos ...
O barulho da água na casa de banho tornava-se
ameaçador, mas a voz já não se ouvia. Bormental
entrou na cozinha.
- Ivan Arnaldovitch, por favor, quantos pacien­
tes estão na sala de espera?
- Onze - respondeu Bormental.
- Diga a todos para se irem embora, hoje não
dou consultas a ninguém.

1 08
CoRAÇAo DE CAo

Filipe Filipovitch bateu à porta da casa de banho


com os nós dos dedos e gritou:
- Saia já daí. Por que trancou a porta?
- Huuu - r e s p o ndeu em surdina a voz
lamentosa de Charikov.
- Que diabo! Não oiço nada, feche a água!
- Hau... hau ...
- Feche-me e s s a água, já lhe dis s e ! Não
percebo o que ele fez! - bradou Filipe Filipovitch,
desvairado.
Dária Petrovna e Zina abriram a porta da
cozinha e espreitaram. Além do barulho da água,
ouvia-se um ruído suspeito. Filipe Filipovitch
tornou a bater à porta com o punho.
- Está aqui! - gritou Dária Petrovna da cozinha.
Filip e Filip ovitch c orreu p ar a p ara l á .
Pela j anela partida surgiu a cara d e Poligraf
Poligrafovitch, transfigurada, de olhos chorosos e
nariz arranhado, cheio de sangue.
- Endoideceu? - perguntou Filipe Filipovitch
- por que não sai daí?
Cuei trancado!
- Abra a fechadura. Nunca viu fechaduras?
- Não abre, a maldita! - respondeu Poligraf
Poligrafovitch, atarantado.
- Credo! Ele apertou o fecho de segurança! -
exclamou Zina, erguendo os braços.
- Há lá um botãozinho ! - gritou Filip e
Filipovitch, tentando fazer-se ouvir - carregue
nele para baixo... Carregue para baixo! Para baixo!

1 09
M1KHAIL BuLGAKov

Charikov desapareceu e, passado um minuto,


assomou novamente à janela.
- Não vejo nada - ladrou ele, com medo.
- Acenda a luz! Endoideceu de certeza!
- O diabo do gato deu cabo da lâmpada.
Quis apanhar o canalha pelas patas traseiras,
agarrei-me à torneira e arranquei-a! Agora não con­
sigo encontrá-la.
Os três ergueram os braços e assim permaneceram.
Passado cerca de cinco minutos, Bormental,
Zina e Dária Petrovna estavam sentados em cima
de um tapete enrolado e encharcado, ao pé da
soleira da porta, empurrando-o com os seus
tra s e iro s c o n tra a fe n d a j un t o ao c h ã o .
O porteiro Fiodor, com a vela cerimonial do ca­
samento de Dária Petrovna acesa, trepara por
uma escada de madeira e tentava agora entrar na
casa da banho pela janela pequena. Viu-se passar
o seu traseiro, que acabou por desaparecer no bu­
raco da janela.
- Ai! ... Ui! - ouviam-se os lamentos de Charikov
através do gorgolejar da água. Depois chegou a
voz de Fiodor:
- Filipe Filipovitch, como temos de abrir a por­
ta de qualquer maneira, mais vale deixar correr a
água e depois apanhá-la na cozinha.
- Abra! - gritou Filipe Filipovitch zangado.
Os três levantaram-se do tapete, a porta abriu­
-se e logo uma onda de água encheu o corre­
dor pequeno, dividindo-se em três correntes :

1 10
CoRAÇAo D E CAo

uma foi directamente para a outra casa de banho,


outra para a direita, em direcção à cozinha,
e a terceira p ara a esquerda, para a entrada.
Chapinhando e s altitando, Zina fe chou a
porta da entrada. Fiodor s aiu d a c a s a d e
b anho a s orrir, não s e s ab e b e m p o rquê ,
c o m a água a chegar-lhe a o s t o r n o z e l o s .
Estava encharcado.
- Foi mesmo difícil fechar a água, a pressão era
muito forte - explicou ele.
- Onde é que ele está? - perguntou Filipe
Filipovitch, levantando uma perna por entre
praguejos.
- Tem medo de sair - disse Fiodor, com um
sorriso idiota.
- Vai bater-me, pai? - ouviu-se Charikov per­
guntar a medo, da casa de banho.
- Imbecil! - respondeu Filipe Filipovitch
laconicamente.
Zina e Dária Petrovna, de pernas nuas e saias
apanhadas por cima do joelho, mais Charikov
e o porteiro, descalços e de calças arregaçadas,
apanhavam com panos a água do chão da cozi­
nha, espremendo-os para uns baldes sujos e para
o lavatório. O fogão abandonado chiava. A água
saía pela porta, para as escadas, e de lá caía direc­
tamente na cave.
Em bicos de pés, no meio de uma poça de água
no chão da entrada, Bormental dirigia-se a alguém
através da porta entreaberta.

111
M r K H AIL BuLGAKov

- Hoje não há consultas, o professor está doen­


te. Por favor, afaste-se da porta, rebentou um cano
no apartamento.
- Mas quando é que ele volta a dar consultas?
- insistiu a voz atrás da porta - eu só queria falar
com ele por uns instantes ...
- É impossível - disse Bormental, apoiando-se
nos calcanhares - o professor está de cama e temos
um cano rebentado. Faça favor de voltar amanhã.
Zina, querida! Limpe a água aqui, está a escorrer
para a escada principal.
- Os panos já não dão conta do recado!
- Vamos tirar com as canecas - ouviu-se a voz
de Fiador - Estou a ir para aí.
A campainha tocava sem parar e os sapatos de
Bormental já se afundavam na água.
- Mas quando será a operação? - persistiu a voz,
tentando abrir a porta.
- Os canos romperam-se ...
- Eu trago galochas ...
Por detrás dos vidros viam-se silhuetas azuladas.
- Não pode ser, venha amanhã!
- Mas eu tenho consulta marcada.
- Amanhã. Houve um problema com a
canalização.
Fiador tirava a água com uma caneca jun­
to das pernas do doutor Bormental. Charikov,
t o d o a r r a n h a d o , inve n t o u um p r o c e s s o
origin al: fez um rolo com um p ano enor­
me deitou-se sobre ele de barriga no chão,

1 12
CORAÇÃO D E CÃO

e assim foi empurrando a água desde a entrada até


à casa de banho.
- Por que fazes correr a água pelo aparta­
mento todo, maldito lobis obem? - reclamou
D ária Petrovna, z angada. - Despej a-a p ara
o lavatório.
- Para quê? - retorquiu Charikov, apanhando
com as mãos a água suja - Assim a água sai para a
escada principal.
Vindo do corredor, apareceu Filipe Filipovitch,
de meias azuis, balançando-se em cima de um
banco que rangia.
- Ivan Arnaldovitch, não vale a pena ir mais à
porta. Chegue ali ao meu quarto que eu dou-lhe
uns sapatos.
- Não se preocupe, Filipe Filipovitch, não faz mal.
- Ao menos calce umas galochas.
- Não vale a pena. Os pés já estão molhados.
- Valha-me Deus! - lamentou-se o professor.
- Que animal nojento! - interrompeu subita-
mente Sharikov, enquanto se esgueirava para fora
do compartimento, rastejando sobre os quadris,
com uma tigela na mão.
Bormental fechou a porta e, não aguentando
mais, desatou a rir. As narinas de Filipe Filipovitch
dilataram-se e os óculos brilharam.
- Posso saber de quem está a falar? - pergun­
tou Bormental.
- Do gato! Que canalha! - respondeu Charikov,
enquanto o olhar lhe fugia de um lado para o outro.

1 13
MIKHAIL BuLGAKov

- Sabe, Charikov - começou Filipe Filipovitch,


tomando fôlego - nunca vi um ser mais descara­
do do que você!
B ormental soltou uma gargalhada. Filipe
Filipovitch continuou:
- Você é simplesmente um desavergonhado!
Como é que ainda tem coragem de dizer algu­
ma coisa? Foi você que desencadeou tudo isto e
'
am . " e, que nao.
" da se perrmte... Assun - 1 ... E o cum
' ulo.l
- Charikov, até quando vai continuar a per­
seguir gatos? - interveio Bormental - Tenha
vergonha, é indecente!
- Selvagem! - acrescentou o professor.
- Selvagem, eu?! - abespinhou-se Charikov -
Não sou nenhum selvagem. É impossível aturar
aquele animal no apartamento. Está sempre a ten­
tar surripiar alguma coisa. Desta vez abocanhou a
carne picada de Dária Petrovna, e eu quis castigá-lo.
- Também você precisa de ser castigado -
respondeu Filipe Filipovitch - Veja-se ao espelho!
- Quase que ia ficando sem um olho - disse
Charikov tristemente, tocando na vista com a mão
suja e molhada.
Quando a humidade do soalho preto secou
um pouco, os espelhos ficaram embaciados e o
telefone parou de tocar.
De pantufas marroquinas encarnadas, Filipe
Filipovitch assomou à entrada.
- Toma, Fiador...
- Muitíssimo obrigado!

1 14
CoRAÇAO DE CAo

- Mude j á de roupa. E mais: peça à Dária


Petrovna um copo de vodka para si.
- Estou-lhe imensamente grato - Fiodor hesi­
tou por momentos, e depois acrescentou:
- Há mais uma coisa, Filipe Filipovitch . . .
Peço desculpa, até tenho vergonha d e dizer.
Falta pagar o vidro do apartamento sete, o cidadão
Charikov andou a atirar pedras ...
- Ao gato? - perguntou Filipe Filipovitch,
franzindo o sobrolho.
- Não. Mesmo ao dono do apartamento.
Ele já ameaçou ir para tribunal.
- Diabo!
- Charikov abraçou a cozinheira e o sujeito
mandou-o embora... Depois houve uma briga...
- Por amor de D eus, quando aconte c e ­
rem coisas dessas, previna-me imediatamente!
Quanto é que é?
- Um e meio.
Filipe Filipovitch tirou três moedas brilhantes
do bolso e entregou-as a Fiodor.
- O quê? U m rublo e meio p ara aquele
canalha? - disse uma voz cava do corredor -
Quando ele próprio ...
Filipe Filipovitch virou-se, mordeu o lábio e, sem
dizer nada, empurrou Charikov para a sala de espe­
ra, fechando de seguida a porta à chave. De dentro,
Charikov começou a bater com os punhos na porta.
- Não se atreva! - a voz de Filipe Filipovitch
era a de um homem completamente transtornado.

1 15
MIKHAIL BULGAKO\'

- Realmente! - observou Fiador - Nunca vi


tamanho descaramento...
Surgindo inopinadamente, Bormental procu­
rou acalmá-lo.
- Filipe Filipovitch, por favor, não fique tão agitado!
O enérgico doutor abriu a porta da entrada e
de lá ouviu-se:
- Que é isso? Julga que está numa taberna?
- Isso mesmo - acrescentou decididamente Fiador
- Assim é que se deve fazer.. E ainda dar-lhe uma...
.

- O que está para aí a dizer, Fiador? - murmu-


rou tristemente o professor.
- Ora, tenho pena de si, Filipe Filipovitch!

1 16
VII

- Não, não e não ! - insistiu Bormental


Faça favor de não comer dessa maneira.
- O que é que eu fiz agora, por amor de Deus?
- Charikov estava claramente aborrecido.
Filipe Filipovitch agradeceu calorosamente:
- Muito obrigado, doutor. Estou cansado
de o repreender.
- De modo nenhum o autorizo a comer sem
guardanapo. Zina, tire-lhe a maionese.
- Mas o que é isso de "tire-lhe"? - protestou
Charikov - Eu já ponho o guardanapo.
C o m a mão e s querda, C harikov e s c on ­
deu o prato d e Zina, e , com a direita, enfiou
o guardanapo no colarinho. Parecia um cliente no
barbeiro.
- E faça favor de comer com o garfo -
acrescentou Bormental.

1 17
M 1 KHAIL BuLGAKOV

Sharikov suspirou profundamente e começou a


tirar postas de esturjão do molho.
- Dá-me mais um bocadinho de vodka? -
perguntou, com ar afoito.
- Não acha que já chega? - volveu Bormental -
Ultimamente anda a abusar da vodka.
- Quere-la toda para si? - perguntou Charikov,
olhando-o de soslaio.
- Não diga tolices ... - interveio Filipe Filipovitch
asperamente, logo interrompido por Bormental.
- Não se preocupe, Filipe Filip ovitch, eu
trato disto sozinho. Você, Charikov, só está a dizer
disparates, e o mais revoltante é que o faz proposi­
tadamente e com convicção. Claro que não a que­
ro toda para mim ainda por cima nem é minha,
,

mas de Filipe Filipovitch. É só porque lhe faz mal.


Esta é uma razão. Além disso, mesmo sem vodka,
o seu comportamento já deixa muito a desejar -
concluiu Bormental, apontado para o aparador.
- Zinuska, mais um bocadinho de peixe, por
favor - pediu o professor.
Parecendo alheio à admoestação, Charikov es­
tendeu a mão para a garrafa e, olhando Bormental
de soslaio, encheu o copo.
- Nesse caso, terá de servir primeiro os outros,
- disse Bormental - e a ordem é esta: primeiro a
Filipe Filipovitch, depois a mim e só a seguir deve
,
. .

servir-se a si.
Um sorriso sarcástico, quase despercebido, aflo­
rou aos lábios de Charikov enquanto enchia os copos.

118
- Pois, tudo aqui está organizado como numa
parada: guardanapo para cá, gravata para lá, "des­
culpe", "se faz favor" e "mercz" a toda a hora. Será
que isto é vida? Martirizam-se como no antigo
regime czarista!
- Gostava de s aber o que é que entende
por "vida".
Ch arikov ignorou a p e rgun ta de Filip e
Filipovitch, levantou o copo e disse:
- Então, desejo-vos que ...
- O mesmo para si! - respondeu Bormental,
com alguma ironia.
Charikov engoliu o vodka de uma só vez, fez
uma careta, aproximou do nariz um bocado de pão,
cheirou-o e comeu-o. Os seus olhos encheram-se
de lágrimas.
- Velhos hábitos . . . - disse Filipe Filipovitch,
numa voz ausente.
Bormental fitou-o, admirado.
- Desculpe?!...
- Velhos hábitos ... - repetiu Filipe Filipovitch,
amargo, com um aceno de cabeça - Não há nada
a fazer. É o Klim Tchugunkin.
Bormental, espantado, olhou com muito inte-
resse para Filipe Filipovitch.
- Acha mesmo, Filipe Filipovitch?
- Não acho, tenho a certeza.
- É possível.. .. - começou Bormental. Depois
calou-se, observando Sharikov. Este franziu a testa
com desconfiança.

1 19
MIKHAIL BuLGAKOY

- Spáter. .. - disse, baixinho, Filipe Filipovitch


- Gut respondeu o assistente.
-

Zina trouxe o peru. Bormental serviu vinho tinto


a Filipe Filipovitch e ofereceu-se para servir Charikov.
- Não quero, prefiro vodka.
De cara luzidia, por causa da transpiração
que lhe inundava a testa, a sua fisionomia evi­
denciava alguma satis fação. Filipe Filipovitch
também dava indícios de ter ficado mais bem
disposto depois de beber o vinho. Os olhos
tornaram-se serenos e passou a olhar para Charikov
com maior benevolência. Com a cabeça preta aci­
ma do guardanapo muito branco, Charikov parecia
uma mosca no leite.
Bormental, bem disposto, ficou com vontade
de fazer algo.
- Então, qual é o programa para hoje à noite? -
perguntou ele a Charikov.
- Vamos ao circo, é do melhor que há.
- Todos os dias ao circo? - observou Filipe
Filipovitch, amistoso - Na minha opinião, aquilo
é muito aborrecido. Se estivesse no seu lugar, ia
pelo menos uma vez ao teatro.
- Ao teatro não vou - respondeu Charikov com
antipatia, arrotando.
- Arrotar à mesa tira o apetite aos presentes -
criticou automaticamente Bormental - mas é ca­
paz de me dizer por que é que não gosta de teatro?
Charikov olhou pelo copo como se fosse um
binóculo, pensando, e fez beicinho.

1 20
Co RA ç Ao DE CAo

- Porque é uma tolice ... Falam, falam ... é uma


contra-revolução.
Filipe Filipovitch recostou-se no espaldar
da c a d eira gótica e c o m e ç ou a rir de tal
forma que todo s o s s eus dentes dourado s
brilharam. B o r mental limitou- s e a abanar
a cabeça.
- Era bom que lesse alguma coisa, porque, sabe...
- Eu leio. Leio imenso... - respondeu Charikov,
tornando a encher, rapidamente, o seu copo
de vodka.
- Zina, leve a garrafa de vodka daqui, s e
fa z favor! Já não precisamos ! - gritou Filipe
Filipovitch, alarmado - Então, o que está a ler?
Passou-lhe pela cabeça uma imagem: uma ilha
deserta, uma palmeira e uma pessoa coberta com
peles de animais. "Talvez devesse comprar-lhe o
Robinson Crusoe" ...
- O que estou a ler? Isto, qual é o título... a cor­
respondência de Engels com o... ah, como é que
o raio do homem se chama ... Kautsky.
Bormental susteve o garfo com a carne a meio
caminho da boca. Filipe Filipovitch derramou o vi­
nho. Charikov aproveitou o momento para engolir
a vodka de um trago.
- Posso saber qual a sua opinião a esse respeito?
Charikov encolheu os ombros.
- Não estou de acordo.
- Com quem? Com Engels ou com Kautsky?
- Com nenhum deles - respondeu Charikov.

121
MrKHA I L BuL GAKov

- Isso é magnífico, juro por Deus . . . "Todos


que vão dizer que a outra ... " - cantarolou Filipe
Filipovitch - E o que nos pode dizer, então?
- Que vo s p o s s o dizer . . . Eles e s crevem,
e s crevem . . . C o ngre s s o, alemães . . . Quanta
confusão! O melhor é pegar em tudo e dividir
igualmente.
- Era isso que eu estava a pensar! - exclamou
Filipe Filipovitch - Isso ,mesmo!
- E você sabe a solução? - perguntou Bormental,
com interesse.
- A solução? - repetiu Charikov que, depois
da vodka, ficou muito mais falador - A solu­
ção é simples: um homem ocupa sete quartos,
tem quarenta pares de calças, enquanto outro
é um sem abrigo que anda pelas lixeiras à procura
de comida ...
- Quando fala em sete quartos, está certa­
mente a referir-se a mim? - perguntou Filipe
Filipovitch, orgulhoso.
Sharikov encolheu-se e não disse nada.
- Muito bem. Não sou contra a divisão. Doutor,
quantos clientes recusámos ontem?
- Trinta e nove - resp ondeu B ormental,
sem hesitar.
- Hmm . . . Tre z ento s e noventa rublo s .
Vamos dividir a perda por nós o s três, excluin­
do as mulheres, Zina e Dária Petrovna. Charikov,
está-me a dever cento e trinta rublos. Faça o
favor de pagar.

1 22
CORAÇÃO D E CAo

- Ah é? - perguntou Charikov, um pouco assus­


tado - Por que motivo?
- Por causa do gato e da torneira! - urrou de
repente Filipe Filipovitch, saindo do seu estado
de tranquilidade irónica.
- Filipe Filipovitch! - exclamou Bormental,
preocupado.
- E não é tudo! - continuou o professor para
Charikov - É pela desordem que criou, e graças
à qual foram canceladas as consultas! Isso é intole­
rável! Andou a saltar pelo apartamento e a arrancar
torneiras como se fosse um primitivo! Quem matou
o gato da madame Pollaussukher? Quem?
- E, há dias, Charikov, mordeu uma senhora nas
escadas - apressou-se a dizer Bormental.
- Ela deu-me um estalo! - guinchou Charikov
- A minha cara não é do Estado!
- Sim, porque você lhe apalpou o peito! - gritou
Bormental, entornando a taça - Você está ...
- Você está na mais primitiva fase de desen­
volvimento! - gritou mais alto Filipe Filipovitch -
Ain da é um s er e m e s ta d o de fo r m a ç ã o,
intelectualmente fraco. To dos os s eus acto s
são animalescos e, na presença de duas pessoas
com habilitações universitárias, toma a liberdade,
com um atrevimento insuportável, de dar conse­
lhos de dimensão cósmica e de dizer disparates do
mesmo tamanho acerca de como é que se deve
dividir! E, ao mesmo tempo, faz coisas como
engolir uma caixa inteira de pó dentífrico!

1 23
MIKHAIL BULGAKOV

- Anteontem! - confirmou Bormental.


- Resigne-se, pois - prosseguiu, firme, Filipe
Filipovitch - Meta na sua cabeça que tem de estar
calado e ouvir o que os outros dizem! Aprenda e
tente ser um membro minimamente aceitável da
comunidade. A propósito, quem foi o canalha que
lhe forneceu aquele livro?
- Para si toda a gente é canalha - respondeu
Charikov, assustado perante o duplo ataque.
- Não é difícil de adivinhar! - exclamou Filipe
Filipovitch, corando de raiva.
- E então? Sim, foi o Chvonder quem mo deu.
Não é canalha nenhum. É para desenvolver a
minha mente ...
- E s tou a ver como s e e s tá a des envol­
ver com o Kautsky! - gritou Filipe Filipovitch,
amarelado, com uma voz esganiçada, tocando
depois a campainha com força - O acontecimen­
to de hoje demonstra-o bem! Melhor não podia
ser! Zina!
- Zina! - gritava Bormental.
- Zina! - berrava Charikov, assustado.
Zina, pálida, veio a correr.
- Zina, na sala de espera ... Está na sala de espera?
- Sim - respondeu Charikov, obediente -
É verde, cor de vitríolo.
- Um livro verde ...
- Agora vão queimá-lo! - gritou Charikov,
d e s e s p erado - Não p o dem, não é meu,
é da biblioteca!

1 24
CORAÇÃO D E CÃO

- Chama-se A Correspondência de. . . Como é


que é? De Engels e mais aquele diabo. . . Meta-o já
no fogão!
Zina virou costas e saiu depressa.
- Enforcava esse Chvonder na primeira árvo­
re que encontrasse, palavra de honra! - excla­
mou Filipe Filipovitch, atacando furiosamente a
asa do peru - Temos um cancro no nosso prédio.
Ainda por cima anda a es crever uns artigos
estapafúrdios!
Charikov olhou para o professor de soslaio,
com ironia e malícia. Filipe Filipovitch lançou-lhe
um olhar reprovador e calou-se.
'�, parece que nada de bom vai acontecer neste
apartamento", pensou profeticamente Bormental.
Zina trouxe p ar a a m e s a uma b a n d e j a
redonda com uma cafeteira e um bolo de rum
meio queimado, amarelo de um lado e castanho
do outro.
- Não vou comer isso - disse logo Charikov,
com hostilidade.
- Ninguém lhe ofereceu nada. Porte-se decen­
temente. Doutor, sirva-se, se faz favor.
Terminaram a refeição em silêncio.
Charikov tirou do bolso um cigarro amassado e
pôs-se a fumar. Ao acabar o café, Filipe Filipovitch
carregou no botão do seu relógio, que tocou suave­
mente: oito e um quarto. Filipe Filipovitch, como de
costume, encostou-se na sua cadeira gótica e puxou
os jornais da mesinha.

1 25
MIKHAIL BULGAKOV

- Por favor, doutor, vá com ele ao circo.


Mas antes disso, por amor de Deus, veja se não há
gatos no programa.
- Como é que deixam entrar no circo essas
b e s ta s ? ! - exclamou Charikov, c arrancudo,
abanando a cabeça.
- Deixam entrar tudo - respondeu ambiguamen­
te Filipe Filipovitch - Então, o que têm para hoje?
- No circo Solomensky - começou a ler
Bormental - há quatro ... ''Yussems", ou lá o que
é, e o homem da roda da morte.
- O que são ''Yussems"? - perguntou Filipe
Filipovitch desconfiado.
- Sabe-se lá. É a primeira vez que me deparo
com esta palavra.
- Nesse caso, é melhor ver no circo Nikitin, para
não corrermos riscos.
- Nikitin ... Nikitin tem elefantes e "o auge da
habilidade humana".
- Que tem a dizer em relação aos elefantes, caro
Charikov? - perguntou Filipe Filipovitch, entre a
curiosidade e a ironia.
Charikov ficou ofendido.
- Mas julga que sou tolo? Os elefantes são
animais úteis, não se comparam aos gatos -
respondeu ele.
- Então, óptimo. Se são úteis, vá vê-los. Tem de
obedecer a Ivan Arnaldovitch. E não se meta em
conversas no bar. Ivan Arnaldovitch, por favor, não
ofereça cerveja a Charikov.

1 26
CORAÇÃO D E CÃO

Passados dez minutos, Charikov e Bormental


partiram para o circo. Charikov vestia um so­
bretudo de lã grosso e gola alta, e um boné de
pala em forma de bico de pato. No apartamento
instalou-se o silêncio. Filipe Filipovitch foi para
o gabinete e acendeu o candeeiro de quebra-luz
verde. O enorme gabinete tornou-se mais confor­
tável. O professor começou a andar de um lado
para o outro, como se estivesse a medir a sala.
A ponta do charuto ardeu sozinha durante algum
tempo, abandonada no cinzeiro. Filipe Filipovitch
meteu as mãos nos bolsos. A sua cabeça sábia
p arecia ator mentada p o r um p e n s amento
grave. Dando uns estalidas com a língua, cantarolou
"Para as margens do Nilo sagrado. . . " e balbu­
ciou qualquer coisa em voz baixa. Finalmente,
apagou a p onta do charuto no cinz eiro e ,
aproximando-se do armário d e vidro, acendeu
uma luz forte, que emanava de grandes globos fi­
xos no tecto. Com um ar carregado, tirou do ar­
mário, da terceira prateleira de vidro, um frasco
estreito. Pôs-se a examiná-lo em contra-luz. Numa
solução densa e transparente flutuava, sem se
afundar, uma bolinha branca tirada do cérebro
de Charik. Encolhendo os ombros, torcendo a
boca e resmungando, o professor devorava-a com
os olhos, como se quisesse encontrar naquela bo­
linha flutuante a causa dos acontecimentos extra­
ordinários que tinham virado de pernas para o ar a
vida no apartamento da rua Pretchistenka.

1 27
MIKHAIL BuLGAKov

É muito provável que o ilustre cientista a tenha


descoberto. Ainda assim, depois de examinar lon­
gamente a hipófise, voltou a ·guardar o recipien­
te no armário, e fechou-o à chave, metendo esta
no bolso do seu colete. Encolheu a cabeça entre
os ombros e, enfiando as mãos até ao fundo
dos bolsos, deixou-s e cair no sofá de couro.
Fumou com muito vagar outro charuto, masti­
gando por inteiro a ponta, e, finalmente, em total
solidão, iluminado pela luz verde como um velho
Fausto, exclamou:
- Acho que vou fazê-lo!
Ninguém lhe respondeu. O apartamento tinha
mergulhado num silêncio profundo. Na travessa
Obukhov, como se sabe, o tráfego cessa totalmen­
te às onze horas. Só muito raramente se ouvem os
passos de um transeunte tardio, que se desvane­
cem na distância, para lá das cortinas pesadas das
janelas. O relógio bateu as suas delicadas badala­
das sob a pressão dos dedos de Filipe Filipovitch ...
O professor esperava impacientemente que o Dr.
Bormental e Charikov voltassem do circo.

128
VI I I

Não se sabe ao certo que decisão tomou Filipe


Filipovitch naquela noite. Ao longo da semana
seguinte não fez nada de especial, e, talvez devido
a essa sua inactividade, a vida dentro do apartamen­
to encheu-se de acontecimentos.
Cerca de seis dias após o incidente do gato e
da água, apareceu o rapaz novo da administração
do prédio, que se tinha descoberto ser uma mulher,
para falar com Charikov e entregar-lhe os documen­
tos. Charikov imediatamente os colocou no bolso,
chamando logo a seguir o Dr. Bormental:
- Bormental!
- Não, faça o favor de me tratar pelos meus dois
primeiros nomes! - respondeu Bormental, aborrecido.
Note-se que, durante esses seis dias, o cirur­
gião teve oito discussões com o seu educando, pelo
que a atmosfera no apartamento era bastante tensa.

1 29
M I KHAIL BuLGAKOV

é? Então chame-me também pelos meus!


- Ah
- retorquiu Charikov, convicto.
- Não! - vociferou Filipe Filipovitch da porta
- Não vou permitir que dentro do meu apartamen-
to alguém o chame por esses nomes. Se não quiser
que o chamemos "Charikov", eu e o Dr. Bormental
passaremos a chamá-lo de "Sr. Charikov".
- Não sou senhor. Os senhores foram todos
para Paris! - ladrou Charikov.
- Reconhece-se o trabalho de Chvonder! -
gritou Filipe Filipovitch - Deixe lá. Um dia esse
patife há-de pagar por tudo. Enquanto eu mo­
rar neste apartamento, todas as pessoas que aqui
estiverem hão-de ser tratadas por "senhores"!
Caso contrário, um de nós terá de sair daqui, e
o mais certo é que seja você. Ainda hoje vou pôr o
anúncio no jornal, e não duvide, hei-de conseguir
encontrar-lhe um quarto.
- Acha que sou parvo? Não saio daqui! - disse
Charikov, convictamente.
- Como?! - perguntou Filipe Filipovitch, mu­
dando de cor de tal forma que Bormental se precipi­
tou para ele, sustendo-o pelo braço com delicadeza.
- Não se atreva, monsieur Charikov! - ameaçou
Bormental, levantando a voz. Charikov afastou-se,
tirou do bolso três papeis (um verde, um amarelo
e outro branco) e, apontando para eles, fez saber:
- Tome ! S ou membro da a s s o ciação de
moradores e tenho direito a 1 4 metros quadra­
dos e meio de habitação no apartamento número

1 30
cinco, do inquilino responsável Preobrajensky -
Charikov parou um pouco para pensar, dizendo
depois algo que foi apontado por Bormental como
uma palavra nova no vocabulário de Charikov -
Confira.
Filipe Filipovitch mordeu o lábio e dis se,
imprudentemente:
- Juro que ainda dou um tiro a esse Chvonder.
Os olhos de Charikov denotavam que captara
estas palavras com muita atenção e agudeza.
- Filip e Filipovitch, vorsichtig! - advertiu
Bormental.
- Mas isto ultrapassa tudo... Que grandessíssima
infâmia! - Filipe Filipovitch soltou um grito em rus­
so - Tenha em consideração, Charikov, senhor... se
se permitir mais um disparate, ficará sem almoço
e sem alimentação em geral aqui em minha casa.
Catorze metros quadrados e meio é formidável,
mas esse papel cor de rã que para aí tem não me
obriga a sustentá-lo.
Charikov, assustado, ficou boquiaberto.
- Eu não posso ficar sem comida - começou ele
a balbuciar - onde é que a vou arranjar?
- Então comporte-se decentemente! - gritaram
os médicos a uma só voz.
Charikov acalmou-se, e naquele dia não fez
mal a ninguém excepto a ele próprio: aproveitan­
do a curta ausência de Bormental, apoderou-se da
navalha de barbear do doutor e rapou-se de tal for­
ma que Filipe Filipovitch e Bormental tiveram de

131
MIKHAIL BuL GAKov

lhe suturar o rosto, pelo que Charikov uivou bas­


tante e desfez-se em lágrimas.
Na noite s eguinte, dois homens es tavam
sentados à luz esverdeada do consultório do
professor: o próprio Filipe Filipovitch, e o seu
leal e devoto as sis tente, doutor B ormental.
Todos os outros dormiam. O professor estava
de roupão azul e pantufas encarnadas; Bormental
de camisa e suspensórios azuis. Em cima da mesa
redonda, ao lado do álbum volumoso, estava
uma garrafa de conhaque, um pires com limão e
a caixinha dos charutos. O gabinete estava cheio
de fumo do tabaco. Os dois cientistas discutiam
com fervor o último acontecimento: naquele dia,
ao fim da tarde, Charikov apropriara-se de vinte
rublos que se encontravam sob o pisa-papéis,
d e s a p arecera do apartamento e regre s s ara
tardís simo, comple tamente b ê b ado. Mai s :
juntamente com ele, vieram dois indivíduos des­
conhecidos, que fizeram barulho na escada prin­
cipal e revelaram a sua intenção de passar a noi­
te em casa de Charikov, como seus convidados.
Esses indivíduos só saíram depois de Fiodor, que
assistira à cena com o sobretudo vestido em cima
da roupa interior, ter ligado para a esquadra da
polícia nº 45. Os dois desapareceram mal Fiodor
pousou o auscultador.
Após a sua saída, não se sabe como, desa­
pareceram o cinzeiro de malaquite, que se en­
contrava por baixo do espelho, o gorro de pele

1 32
CORAÇÃO D E CÃO

de castor do profe s s or, e a bengala na qual


estava inscrito, a dourado, ''Ao caro e estimado
Filipe Filipovitch, da parte dos médicos, no dia ... "
seguido do número romano "XXV".
- Quem são eles? - perguntou Filipe Filipovitch
a Charikov, cerrando os punhos.
Cambaleando e encostando-se aos casacos
de peles, Charikov balbuciou que não conhecia
aquela gente, que não eram nenhuns malandros,
mas boas pessoas.
- O mais extraordinário é que estavam os dois
completamente bêbados. Como é que consegui­
ram? - Filipe Filipovitch ficou pasmado a olhar para
o lugar onde antes se encontrava a recordação do
seu aniversário.
- São especialistas - explicou Fiodor, retirando-se
para dormir com mais um rublo no bolso.
O roubo de vinte rublos foi categoricamente
negado por Charikov, que articulou qualquer coisa
não muito clara sobre no apartamento morarem
mais pessoas para além dele.
- Ah, terá sido o Dr. Bormental? - perguntou
Filipe Filipovitch, numa voz baixa mas intimidante.
Charikov cambaleou, abriu os olhos, que
pareciam os de um peixe mal morto, e lançou o
seu palpite:
- Se calhar foi a Zinka....
- O quê?! - gritou Zina, que tinha aparecido
como um fantasma, fechando a blusa desabotoada
no peito - Como se atreve?

1 33
M 1 KHAIL BuLGAKov

O pescoço de Filipe Filipovitch enrubesceu.


- Calma, Zinuska - dis se ele, estendendo-
-lhe a mão - Não te preocup e s , vamos j á
resolver isto.
Zina rompeu em soluços, com o queixo a
tremer e esfregando os ombros com as mãos
cruzadas.
- Então Zina? Acha que alguém suspeita de si?
Que disparate! - dizia o doutor Bormental, cheio
de compaixão.
- Ah, Zina, que parvoíce, valha-me Deus! - ex­
clamou Filipe Filipovitch.
O choro de Zina cessou por si e todos se cala­
ram. Charikov começou a sentir-se mal. Batendo
com a cabeça na parede, emitia sons como "i-i" ou
"eh-eh". Ficou pálido e o seu queixo começou a
tremer com convulsões.
- Tragam o balde da sala de observações para
este miserável!
Começaram todos a correr e a tratar de Charikov
na sua indisposição. Quando o levaram para a cama,
ele, caminhando apoiado no braço de Bormental,
pronunciava palavrões com dificuldade, mas num
tom meigo e melodioso.
Toda esta história tinha tido lugar por vol­
ta da uma da manhã, sendo agora perto das três.
Todavia, os dois médicos, sentados no gabinete,
não tinham sono, estimulados pelo conhaque com
limão. Haviam fumado tanto que o fumo flutuava
denso e lento, sem ondular.

1 34
CORAÇÃO D E CÃO

Muito pálido, mas com um olhar decidido,


o Dr. Bormental levantou-se e ergueu um cálice de ·

pé tão fino como a haste de uma flor.


- Filipe Filipovitch - exclamou, repleto de
emoção - Nunca hei-de esquecer como me deu
asilo no seu departamento, a mim um estudan­
,

te esfomeado. Acredite, Filipe Filipovitch, que


muito para além de um cientista, o senhor é para
mim um professor, um mestre. Tenho um res­
peito enorme por si... Deixe-me beijá-lo, querido
Filipe Filipovitch.
- Acredite, meu caro... - murmurou o profes­
sor, embaraçado, indo ao encontro do doutor.
Bormental abraçou-o e beij ou-o nos bigodes
farfalhudos impregnados de fumo.
- Com certeza, Filipe Filipo...
- Não diga mais, Bormental, está a comover-
-me - disse Filipe Filipovitch - Desculpe-me, meu
caro, se às vezes grito consigo durante as operações.
É a irritação de um velho, sabe. Sinto-me tão soli­
tário... "De Sevilha a Granada ... "
- Como pode dizer isso, Filipe Filipovitch! -
exclamou com toda a sinceridade o impetuoso
Bormental - Não fale assim, que me ofende.
- Muito obrigado... "Para as margens do Nilo
sagrado... " Obrigado. Também gosto muito de si.
Considero-o um médico de talento.
- Filipe Filipovitch , digo-lhe ... - prosseguiu
Bormental veemente. Levantou-se depre s s a ,
fechou bem a porta que dava para o corredor e,

1 35
MIKHAIL BuLGAKov

regressando, continuou em voz baixa - é a única


solução. Não me atrevo a dar-lhe conselhos, mas,
Filipe Filipovitch , olhe para si! Está completamen­
te exausto; assim é impossível trabalhar!
- Sim, absolutamente impossível! - anuiu, sus­
pirando, o professor.
- Bem vê, isso é inadmissível - cochichava
Bormental - Da outra vez o senhor disse que
estava preocupado comigo. Se soubesse, querido
professor, como isso me tocou! No entanto, já
não sou nenhuma criança, percebo perfeitamen­
te que coisa horrível pode resultar de tudo isto.
Estou profundamente convicto de que não há
outra solução.
Filipe Filipovitch levantou-se, gesticulando os
braços nervosamente.
- Não me tente, não me fale nisso - dizia o
professor enquanto caminhava pelo gabinete e es­
palhava ondas de fumo à sua volta - Nem quero
ouvir! Entende o que pode acontecer se formos
apanhados? Se eles tiverem em consideração a
nossa origem, não nos vão perdoar, mesmo que
sej a a nos s a primeira condenação. Meu caro,
não temos antepassados de origem conveniente!
Quero dizer, estou a supô-lo, no seu caso!
- Pois ... O meu pai foi investigador da polícia,
em Vilnius - respondeu amargamente Bormental,
bebendo o conhaque até ao fim.
- O r a aí e s tá ! I s s o é uma m á orig e m .
Mas descanse, a minha ainda é pior. O meu p ai foi

1 36
CORAÇÃO D E CÃO

arcebispo numa catedral. "Mercz" ... "De Sevilha a


Granada" ... Ah, com os diabos!
- Filipe Filipovitch, o senhor é um cientista mun­
dialmente reconhecido, e, desculpe-me a expressão,
não será por causa de um filho da mãe... Como po­
deriam eles fazer-lhe alguma coisa? Ora!
- Mesmo assim não vou fazer isso - respondeu
Filipe Filipovitch pensativo, olhando para o armá­
rio de vidro.
- Mas porquê?
- Porque você não é "um cientista mundialmen-
te reconhecido"!
- É certo...
- Então pronto. Abandonar o c olega em
caso de desgraça e safar-me à conta da minha re­
putação mundial... Desculpe, mas sou um cientista
moscovita, não sou Charikov!
Filip e Filip ovi t c h e rgu e u o s o m b r o s ,
orgulho s o, o que o fez p arecer u m antigo
rei francês.
- Filipe Filipovitch! - tornou B ormental,
com p e s ar - Então o que faremo s agora?
Aturamo-lo? Vamos esperar até conseguirmos
transformar esse rufia numa pessoa normal?
Com um gesto, Filipe Filipovitch fez-lhe sinal
para se calar; deitou mais conhaque no seu copo,
sorveu um gole, chupou o limão, e então disse:
- Ivan Arnaldovitch, acha que eu percebo al­
guma coisa de anatomia e fisiologia, digamos, do
cérebro humano? Qual é a sua opinião?

1 37
MIKHAIL BULGAKOV

- Filip e Filip ovitch, que e s tá a diz er? -


retorquiu emocionado Bormental, abrindo muito
os braços.
- Está bem. Sem falsas modéstias. Também creio
não ser o pior médico de Moscovo.
- Eu acredito que é o primeiro médico não só em
Moscovo, mas também em Londres e em Oxford
- interrompeu-o Bormental com fervor.
- Como queira. Então devo dizer-lhe, futu-
ro professor Bormental, que ninguém consegui­
rá fazer esta operação com êxito. Asseguro-lhe.
E não pergunte nada. Se houver algum problema,
responsabilize-me a mim: diga que foi o professor
Preobrajensky quem o afirmou, e pronto! Finita!
Klim! exclamou repentina e solenemente Fili­
-

pe Filipovitch. O armário de vidro respondeu-lhe


com um tinido - Klim Tchugunkin - repetiu ele
- Você é o meu melhor discípulo e, além disso, é
meu amigo, como pude constatar hoje. Vou dizer­
-lhe como se fosse um amigo, vou revelar-lhe um
segredo, e tenho a certeza de que não me vai enver­
gonhar: o velho burro do professor Preobrajensky
arranjou sarilhos com esta operação como se fos­
se um aluno do terceiro ano. A verdade é que real­
mente fizemos descobertas, e bem sabe quais são
- Filipe Filipovitch apontou para a janela, aludindo
de certo ao que se dizia em Moscovo - só que tem de
ter em consideração, Ivan Arnaldovitch, que o úni­
co resultado dessa descoberta é que vamos ter o
Charikov por aqui - Preobrajensky deu uma pal-

138
CORAÇÃO D E CÃO

mada no seu pescoço proeminente - Pode ter a


certeza. Se houvesse alguém que o açoitasse... -
continuava Filipe Filipovitch - palavra de honra
que lhe pagaria uns cinquenta rublos por isso...
"De Sevilha a Granada ... " Com os diabos! Sabe,
estive cinco anos a trabalhar, tirando hipófises
de cérebros ... não imagina o trabalho colossal que
tenho feito! E agora pergunta-se: para quê? Para
um belo dia transformar um cão encantador num
canalha tão deplorável que até os cabelos me fi­
cam em pé.
Bormental tentou dizer qualquer coisa, mas o
professor antecipou-se:
- Eis, doutor, o que acontece quando um cien­
tista, em vez de deixar seguir a natureza, a tenta
alterar: sai-lhe um Charikov!
- Filipe Filipovitch, e se fosse o cérebro do
Espinosa?
- Sim! - rugiu Filipe Filipovitch - Sim! Se o in­
feliz cão não morresse na mesa de operações! Você
viu que tipo de operação foi. Em síntese, eu, Fili­
pe Filipovitch Preobrajensky, nunca fiz nada de tão
complicado na minha vida. Podíamos implantar a
hipófise do Espinosa ou de outra criatura do gé­
nero, e tornar o cão num ser de altíssimo carácter.
Mas pergunta-se: para quê? Explique-me, por
favor, para que é necessário fabricar artificialmen­
te Espinosas quando qualquer mulher do povo
o pode dar à luz a qualquer momento? Não deu
Madame Lomonossova à luz um famoso doutor

1 39
MIKHAIL BuLGAKov

em Kholmogor? A natureza trata com regulari­


dade da evolução por si só, destacando em cada
ano da multidão de bestas e canalhas, que cria às
dezenas, génios ilustres que adornam o nosso pla­
neta. Percebe agora por que não concordei com
a sua conclusão registada no histórico do caso de
Charikov? A minha descoberta, com a qual ficou
obcecado, que vá para o inferno. Não vale nada.
Sim, sim, não vale a pena discutir, Ivan Arnaldo­
vitch. Já percebi tudo. E sabe muito bem que não
gosto de falar em vão. É verdade que, teoricamen­
te, é tudo muito interessante; os fisiólogos ficarão
encantados. Moscovo está a agitar-se. Mas o que é
que isso dá na prática? Quem temos nós agora? -
Filipe Filipovitch apontou para a sala de observa­
ções, onde dormia Charikov.
- Um velhaco excepcional.
- Quem é ele? É o Klim, Klim! - gritou o pro-
fessor - Klim Tchugunkin - Bormental abriu a
boca - Duas condenações, alcoolismo, "dividir
tudo", o meu gorro e vinte rublos desaparecidos
- Filipe Filipovitch lembrou-se da bengala ofere­
cida nos seus anos e ruborizou - Um grosseiro
e um porco . . . Bom, ainda hei-de encontrar a
bengala. Concluindo, a hipófise é uma caixa fecha­
da que determina a identidade e personalidade do
seu ser humano. É específica! "De Sevilha a Gra­
nada ... " - berrava Filipe Filipovitch, revirando os
olhos ferozmente - e não apenas características
humanas gerais. É a miniatura do próprio cérebro!

1 40
CORAÇÃO D E CÃO

Não tenho qualquer uso para ela, o diabo que a leve!


Eu andava à procura de uma coisa completamen­
te diferente, para a eugenia, o aperfeiçoamento da
espécie humana, o seu rejuvenescimento! Não me
diga que pensou que eu estava a fazer isto por di­
nheiro? Sou um cientista ...
- É um grande cientista! - disse Bormental, engo­
lindo o conhaque. . Os seus olhos raiaram-se de sangue.
- Há dois anos, após a primeira extracção das
hormonas sexuais da hipófise, quis fazer uma expe­
riência. E, em lugar disso, o que fiz eu? Meu Deus!
Essas hormonas da hipófise ... Doutor, sinto um
desespero absurdo. Estou perdido.
De repente, Bormental arregaçou as mangas
e disse, olhando de esguelha para o nariz de Filipe
Filipovitch:
- Então é assim, caro professor, se o senhor
não o quer fazer, faço eu. Arrisco tudo. Dou-lhe
arsénio. Não interessa que o meu pai tenha sido
investigador da polícia. No fim de contas, Charikov
é um ser resultante de uma experiência.
Filipe Filipovitch, cansado, caiu no sofá e disse:
- Não, meu jovem amigo, não permito que faça
isso. Tenho sessenta anos e posso dar-lhe conse­
lhos: nunca cometa um crime, seja contra quem for.
Chegue à velhice com as mãos limpas.
- Desculpe, Filipe Filipovitch, mas já imaginou se
Charikov continuar a ser influenciado por Chvon­
der? O que resultará dele? Santo Deus, só agora me
apercebi daquilo em que ele se pode transformar!

141
MIKHAIL BULGAKOY

- Ah, só agora é que percebeu? Eu previ-o dez


dias depois da operação. Este Chvonder é um pate­
ta. Ainda não entendeu que Charikov é muito mais
perigoso para ele do que para mim Tentar virá-lo
.

contra mim de qualquer maneira, sem se aperceber


que um dia alguém pode instigar Charikov contra
ele ... E, nessa altura, nada restará de Chvonder!
- Não é de admirar! Veja-se o que aconteceu
com os gatos. É um homem com coração de cão!
- Oh não, oh não! - refutou Filipe Filipov:itch
numa voz arrastada - Meu caro doutor, está a co­
meter um enorme erro. Por amor de Deus, não
difame o cão. Os gatos são um caso temporário...
é uma questão de disciplina, bastam duas ou três
semanas. Asseguro-lhe. Mais um mês e ele deixa de
se atirar aos gatos.
- Por que não já, então?
- Ivan Arnaldov:itch, isso é elementar, não per-
cebo por que é que me pergunta. A hipófise não
fica suspensa no ar, pois não? Foi implantada
no cérebro do cão, e precisa de tempo para se adap­
tar. Agora Charikov está a mostrar o que resta do
seu ser canino, e você tem de entender que os ga­
tos são o menor dos males. Todo o horror está no
facto de Charikov já não ter coração de cão, mas de
homem! E um dos piores ... Compreende?
Muito excitado, Bormental cerrou as suas mãos
magras e fortes, encolheu os ombros e anunciou,
decidido:
- Vou matá-lo de certeza.

1 42
CORAÇÃO D E CÃO

- Está proibido de fazer isso! - respondeu ca­


tegoricamente Filipe Filipovitch.
- Mas, desculpe ...
Ficando subitamente inquieto, Filipe Filipovitch
levantou o dedo indicador e murmurou:
- Espere ... Pareceu-me ouvir passos.
Ambos se puseram à escuta, mas no apartamen­
to estava tudo tranquilo.
- Pareceu-me - dis s e Filip e Filipovitch,
começando a falar em alemão. A palavra russa
"criminosos" surgia frequentemente entre as pa­
lavras alemãs.
- Um momento - Bormental precipitou-se
para a porta. Agora ouviam-se nitidamente pas­
sos em direcção ao gabinete. Ouvia-se também
uma voz a repetir qualquer coisa. B ormental
abriu a porta e de repente recuou, estupefacto.
Filipe Filipovitch, com o choque, sentiu-se ge­
lar na cadeira.
No rectângulo iluminado do corredor estava
Dária Petrovna, de camisa de noite e rosto en­
furecido. Tanto o professor como o médico fi­
caram deslumbrados pela fartura do seu corpo
vigoroso, que, à primeira vista, lhes pareceu com­
pletamente nu. Com as suas mãos fortes, Dária
Petrovna tinha agarrado e arrastado qualquer coi­
sa que, resistindo, se sentara no chão esperneando.
A "coisa" era Charikov, claro, que, muito emba­
raçado, desgrenhado e ainda bêbado, se cobria
apenas com uma carmsa.

1 43
MIKHAIL BULGAKOV

A enorme e quase nua Daria Petrovna sacudiu


Charikov como se ele fosse um saco de batatas
e disse:
- Olhe só, senhor professor, que visita tivemos
eu e a Zina: Telegraf Telegrafovitch! Sabe que eu
já fui casada, e a Zina é uma rapariga inocente!
Ainda bem que fui eu que acordei!
Acabando de dizer isto, Dária Petrovna, enver­
gonhada pela sua quase nudez, soltou um grito,
tapou o peito com as mãos e fugiu.
- Dária Petrovna, desculpe, por amor de Deus
- gritou-lhe Filipe Filipovitch, muito corado,
procurando voltar a si.
Bormental arregaçou as mangas um pouco mais
e avançou para Charikov. Filipe Filipovitch olhou­
-o e ficou assustado.
- Não faça isso, doutor, proíbo-o...
Com a mão direita, B o r mental agarrou
Charikov pelo s colarinhos, s acudindo-o de
tal forma que a camisa dele s e rasgou nas
c o s ta s , e à frente s altou um botão. Filip e
Filipovitch, atalhando caminho, correu e ten­
tou arrancar o débil Charikov das mãos tenazes
do cirurgião.
- Não tem o direito de me bater - gritava
Charikov meio sufocado, sentando-se no chão e
começando a ficar lúcido.
- Doutor! - bradava Filipe Filipovitch.
Bormental acalmou- se e s oltou Charikov,
que logo começou a choramingar.

1 44
CORAÇÃO D E CÃO

- Está bem - exclamou ele - vamos esperar até


de manhã. Vou-lhe pregar um sermão assim que
ele estiver sóbrio.
Bormental pegou em Charikov por debaixo dos
braços e arrastou-o à força para a sala de espera.
Charikov ainda tentou espernear, mas já não
conseguia coordenar os movimentos.
Filipe Filipovitch ficou de pernas abertas,
e o seu roupão azul abriu-se. Levantou os braços
e os olhos para a lâmpada do tecto e pronunciou:
- Valha-me Deus ...

145
IX

O sermão prometido pelo Dr. Bormental aca­


bou por não ter lugar, pois Poligraf Poligrafovitch
desaparecera sem deixar rasto. O doutor caiu num
desespero furioso, insultou-se a si próprio por
se ter esquecido de guardar a chave da porta da
entrada, gritava que aquilo era imperdoável e aca­
bou por desejar que Charikov fosse atropelado por
um autocarro.
Filipe Filipovitch foi sentar-se no seu gabinete.
Com os dedos enfiados no cabelo, ia dizendo:
- Imagino o que se está a passar na rua, imagi­
no! "De Sevilha a Granada" ... Meu Deus!
- Pode ser que estej a na administração do
prédio! - agitou-se Bormental, saindo a correr.
Na administração do prédio, discutiu de tal
maneira com Chvonder que este apresentou uma
queixa ao tribunal do bairro de Khamovnichesky,

1 47
gritando que não era responsável pela "obra" do
professor Preobrajensky, Poligraf Charikov que,
aliás, se revelara um grande velhaco, visto que na
véspera levara da administração sete rublos, alega­
damente para comprar manuais à cooperativa.
Fiodor ganhou três rublos para procurar
Charikov de alto a baixo pela casa, mas sem resul­
tados. Não havia sinal dele.
Só um ponto ficou esclarecido: durante a madru­
gada, Poligraf saiu, vestido de sobretudo, cachecol
e boné, levando consigo uma garrafa de vodka, as
luvas do Dr. Bormental e todos os seus próprios
documentos. Dária Petrovna e Zina nem tentaram
esconder a sua alegria perante o desaparecimento
de Charikov; desejando que ele nunca mais voltasse.
Dária Petrovna confessou que lhe tinha empresta­
do três rublos e cinquenta copeques no dia antes.
- Bem feita! - gritava Filipe Filipovitch, sacu­
dindo os punhos. Naquele dia o telefone não parou
de tocar, tal como no dia seguinte. Os médicos re­
ceberam inúmeros pacientes e, no terceiro dia, ficou
decidido que tinham de avisar a polícia para pro­
curar Charikov nas zonas degradadas de Moscovo.
No momento em que se pronunciou a palavra
"polícia", a paz da travessa Obukhov foi interrom­
pida pelo barulho de um camião. As janelas da casa
estremeceram. Depois, alguém tocou à campainha
insistentemente e Poligraf Poligrafovitch entrou.
Com uma dignidade extraordinária, e em total si­
lêncio, Charikov tirou o boné, pendurou o sobretu-
do e revelou-se uma pessoa com um novo aspecto.
Tinha um c a s a c o d e c a b e dal empres tado,
calças usadas do mesmo material, e umas botas
altas inglesas com atacadore s até ao j o elho.
Um cheiro forte a gatos espalhou-se rapidamen­
te pela entrada. O doutor e Filipe Filipovitch
foram ao seu encontro, cruzando os braços,
agu a r d a n d o u m a e x p li c a ç ã o . P o lig r a f
Poligrafovitch penteou o cabelo desalinhado,
tossiu e olhou em volta de uma maneira que traía
o embaraço sentido pelo comportamento atrevido
em que mcorrera.
- Filipe Filipovitch - começou ele, finalmente
- Fui nomeado para um cargo.
Os dois médicos soltaram sons secos de admi­
ração e agitaram-se. Preobrajensky, o primeiro a
voltar a si, estendeu a mão e disse:
- Mostre-me o documento.
E s tava dactilogr a fado : " O p o r tador do
pre s ente, c amarada Poligraf Poligrafovitch
Charikov, é de facto chefe da subsecção de limpe­
za da cidade de Moscovo para os animais vadios
(gatos e outros) do departamento de AMM. "
- Bom - começou Filipe Filipovitch, duramente
- e quem foi que lhe arranjou o emprego? Enfim,
nem vale a pena dizer, posso adivinhar...
- Sim, foi o Chvonder. E então? - respondeu
Charikov.
- Posso perguntar-lhe por que razão cheira tão
horrivelmente?

1 49
M1KHAIL BuLGAKOV

Charikov farejou o casaco, preocupado.


- Hmm, pois cheiro... Sei bem porquê. Ossos do
ofício. Ontem estrangulámos tantos gatos ...
Filipe Filipovitch estremeceu e olhou para
Bormental, cujos olhos pareciam dois canos de
pistola apontados a Charikov. Sem nada dizer,
Bormental avançou em direcção a Charikov e, com
facilidade e firmeza, agarrou-o pela garganta.
- Socorro! - gritou Charikov, empalidecendo.
- Doutor?!
- Não se preocupe, Filipe Filipovitch, não lhe
vou fazer nada de mal! - respondeu Bormental,
numa voz férrea, gritando depois - Zina! Dária
Petrovna!
As mulheres assomaram à entrada.
- Repete comigo - ordenou Bormental, aper­
tando levemente o pescoço de Charikov -"peço
desculpa".
- Está bem, eu repito - sibilou Charikov,
surpreendido. De repente, encheu o peito de ar,
contorceu-se e tentou gritar "socorro!". Não ten­
do conseguido, a sua cabeça enterrou-se por intei­
ro no casaco de peles.
- Doutor, suplico-lhe - pediu o professor.
Charikov abanou a cabeça em sinal de que ia fa­
zer e repetir tudo o que fosse necessário.
- . . . Desculpe m , prezadas Dária Petrovna e
Zinaida ...
- Proko fievna - dis se em voz baixa Zina,
assustada.

1 50
CoRAÇAO D E CAo

- U ff. .. Prokofievna . . . - repetiu Charikov rou-


co, sorvendo o ar.
- "que me tenha permitido... "
- ... permitido...
- " . . . me tenha permitido um acto ignóbil, à
noite, estando bêbado..."
- ... bêbado...
- "Nunca mais voltarei a fazê-lo"
- Nunca ma ...
- Ivan Arnaldovitch, deixe-o em paz! - implora-
ram as mulheres a uma só voz - Ainda o estrangula.

Bormental libertou Charikov e perguntou:


- O camião está à sua espera?
- Não - respondeu Charikov, com vaidade -
veio trazer-me.
- Zina, pode dizer ao motorista que se vá
embora - e, voltando-se para Charikov: - Agora
diga-me o seguinte: volta para o apartamento de
Filipe Filipovitch?
- Claro, para onde queria que fosse? - respondeu
Charikov timidamente, e com os olhos a vaguear.
- Muito bem. Então, esteja calminho. Caso con­
trário, por cada disparate que fizer, tratarei de si.
Entendido?
- Entendido - respondeu Charikov.
Enquanto Charikov era repreendido, Filipe
Filipovitch manteve-se calado. Encolhido de for­
ma constrangedora, roía as unhas e fitava o chão.
Depois, levantou o olhar para Charikov e pergun­
tou, com voz inexpressiva:

151
M1KHAIL BuLGAKOV

- E o que estão a fazer com os... gatos assassinados?


- Vão faz e r del e s c a s a c o s - resp ondeu
Charikov - imitação de pele de esquilo. Serão ven­
didos aos operários a crédito.
A seguir a isto, instalou-se no apartamento uma
tranquilidade que durou dois dias e duas noites.
Poligraf Poligrafovitch saía de manhã para o
trabalho no camião, regressava à noite, e jantava
calmamente na companhia de Filipe Filipovitch e
Bormental. No entanto, embora dormissem juntos,
Bormental e Charikov nunca se falavam, e nisso era
Bormental o mais obstinado.
Dois dias depois, apareceu no apartamento
uma rapariga magrinha, de olhos pintados e meias
claras, envergando um casaquinho gasto, não escon­
dendo o seu deslumbramento ao entrar em casa.
Seguindo atrás de Charikov, quase colidiu com o
professor no corredor.
Pasmado, Filipe Filipovitch estacou, entreabriu
os olhos e perguntou:
- Que deseja?
- Vou casar com ela. É a nossa dactilógrafa
e vem viver comigo. Bormental terá de sair da sala
de espera; afinal, tem o apartamento dele - expli­
cou Charikov, bastante hostil e carrancudo.
O professor pestanejou várias vezes, reflectiu
por um momento e, vendo a rapariga ruborizar,
convidou-a a entrar com cortesia.
- Importa-se de me acompanhar ao meu gabinete?
- Eu vou com ela - disparou Charikov, desconfiado.

1 52
C ORAÇÃO D E C ÃO

Nesse momento, apareceu Bormental, que se


impôs, resoluto:
- Desculpe - disse ele - o professor vai conver­
sar com a senhora, e nós ficamos aqui.
- Não quero - respondeu Charikov, enraivecido,
tentando precipitar-se atrás de Filipe Filipovitch e
da rapariga, que estava transida de medo.
- Não, peço desculpa - insistiu Bormental, agar­
rando no pulso de Charikov e dirigindo-se com ele
para a sala de observações.
Depois de cinco minutos de silêncio absoluto,
ouviram-se subitamente soluços abafados vindos
do gabinete.
Filipe Filipovitch estava em pé, encostado à se­
cretária, e a rapariga enxugava as lágrimas a um
lenço de renda sujo.
- Aquele patife disse-me que foi ferido em com­
bate - soluçava ela.
- Está a mentir - dis se Filipe Filipovitch,
inexoravelmente. Abanou a cabeça, e continuou:
- Sinceramente, tenho pena de si. Não pode fazer
isso; casar com o primeiro que encontra só por
ter um emprego estável. .. Filha, isso não é correc­
to. Sabe uma coisa?
Filipe Filipovitch abriu a gaveta da secretária e
tirou de lá três notas de 30 rublos.
- Vou envenenar-me - chorava ela - Na can­
tina todos os dias tenho de comer a mesma
carne podre . . . Ele ameaça-me, diz que é co­
mandante comunista e que vou viver com ele

1 53
MIKHAIL BuLGAKov

num ap artamento luxuo s o, comer anan á s


todo s os dias . . . Diz que tem b o m carácter,
que apenas odeia gatos . . . Levou o meu anel
como lembrança ...
- Bom carácter? "De Sevilha a Granada ... " -
cantarolou Filipe Filipovitch - Tem de ter paciên­
cia. Você ainda é tão nova...
- Mas será que ...
- Pegue no dinheiro que lhe es tou a dar.
É um empréstimo - resmungou Filipe Filipovitch.
D e p ois dis to, Filip e Filip ovitch pediu a
Bormental para trazer Charikov. A porta abriu­
-se e os dois entraram. Charikov, com o cabelo em
pé, evitava o olhar dos presentes.
- Canalha! - insultou-o a rapariga, com os olhos
reluzentes e húmidos. A maquilhagem tinha-lhe
borrado o rosto.
- Tenha a bondade de explicar a esta senhora
por que razão tem essa cicatriz na testa - pediu
Filipe Filipovitch, insinuante.
Charikov não hesitou e disse:
- Fui ferido nos combates contra o exército de
Koltchak.
A rapariga levantou-se e fez menção de sair,
chorando copiosamente.
- Pare de chorar! - gritou-lhe Filipe Filipovitch
- Espere - o professor voltou-se para Charikov -
Dê-me o anel, se faz favor.
Este, submisso, tirou do dedo um anel com uma
esmeralda falsa.

1 54
CORAÇÀO D E CAo

- Deixa estar - disse ele com maldade - Hás-de


pagar por isto. Amanhã serás despedida!
- Não se preocupe - exclamou Bormental para
a rapariga - não vou permitir que ele lhe faça mal
- e olhou para Charikov de tal forma que este re­
cuou e bateu com a cabeça no armário.
- Qual é o apelido dela? - perguntou Bormental
a Charikov - Apelido! - insistiu ele, com agressi­
vidade na voz.
- Vasnetsova - respondeu Charikov, olhando
desesperadamente à sua volta em busca de um
lugar por onde se escapar.
Bormental agarrou-o pela lapela do casaco e disse:
- Todos os dias, irei pessoalmente informar-me
no departamento de redução de pessoal se a cidadã
Vasnetsova foi despedida. E se souber que você ...
que ela foi despedida, eu próprio lhe dou um tiro.
Cuidado, estou a falar-lhe em bom russo!
Sem pestanejar, Charikov olhava fixamente para
o nariz de Bormental.
- Eu também posso arranjar uma ou duas pis­
tolas - murmurou Poligraf a medo, para, com um
movimento rápido, se esgueirar pela porta.
- Fica avisado! - gritou-lhe Bormental.
Nessa noite e na seguinte o ambiente estava pe­
sado como uma nuvem que anuncia tempestade.
Ninguém falava. No dia a seguir, quando Poligraf
Poligrafovitch saiu, taciturno, para o trabalho, no
seu automóvel pesado, Filipe Filipovitch teve um
mau pressentimento. Fora do horário habitual, teve

1 55
MIKHAIL BuLGAKOV

de atender um paciente antigo. Era um homem


fardado, gordo e alto, que tinha insistido tanto,
pelo telefone, em ser atendido, que o professor
não o pôde recusar. Ao entrar no consultório ba­
teu os calcanhares para cumprimentar o professor.
- Voltou a ter dores, meu caro? - perguntou
Filipe Filipovitch, que ultimamente tinha as faces
cavadas - Sente-se, por favor.
- Merci. Não, professor - respondeu o paciente,
colocando o capacete no canto da mesa - estou­
-lhe muito grato. Filipe Filipovitch, vim cá por
outra questão. Tenho muito respeito por si . . .
Hmm. . . Quero avisá-lo. É uma tolice, evidentemen­
te. Ele é simplesmente uma pessoa sem escrúpulos...
O homem abriu a pasta e tirou de lá um papel.
- Por sorte, veio-me parar às mãos directamente.
Filipe Filipovitch pôs a luneta por cima dos ócu-
los e começou a ler. Resmungando, ia mudando de
expressão a cada instante:
" ... também ameaçou matar o presidente da administra­
ção do prédio, o camarada Chvonder, podendo-se concluir
com isso que tem em sua posse armas dejogo. Faz discur­
sos contra-revolucionários, e até ordenou que a sua criada,
Zinaida Prokoftevna Bunina, queimasse as obras de Engels.
É evidente que é um menchevique,juntamente com o seu as­
sistente, Ivan Arnaldovitch Bormenta4 que mora clandesti­
namente no apartamento do professor.
A assinatura do Chefe da subsecção de limpeza - P.
P. Charikov - autenticada pelo Administrador predial
Chvonder; e secretário Petrukhin."

1 56
CORAÇÃO DE CAo

- Posso ficar com isto? - perguntou Filipe


Filipovitch, com o resto enrubescido - Ou precisa
dela para actuar conforme a lei?
- Perdão, profes sor - começou o paciente,
mostrando-se ofendido - O senhor, realmente, está
muito enganado em relação ao novo poder. Eu ... -
e ficou rubro e inchado como um peru.
- Desculpe, desculpe, meu amigo. Creia que não
quis ofendê-lo. Não se zangue, meu caro, eu não sei
o que fazer com ele, põe-me os nervos em franja.
- Foi o que eu pensei - disse o paciente, já mais
calmo - Que patife, realmente! Gostaria de lhe
dar uma vista de olhos. Não se fala senão de si em
Moscovo...
Filipe Filipovitch apenas fez um gesto em si­
nal de desespero. O paciente olhou para ele,
notando que o professor começava a envelhecer,
tendo o cabelo quase todo branco.
A n o tícia do crime alas trou e , c o m o é
habitual, e s toirou como uma bomb a .
Poligraf Poligrafovitch regressou do empre­
go no seu automóvel com um peso no coração.
A voz de Filipe Filipovitch convidou-o p ara
a s ala de obs ervações. Admirado, Charikov
entrou e, não sem algum receio, observou os
ros tos de Bormental e de Filipe Filipovitch.
Sentia que algo de mau estava para acontecer.
A mão esquerda do assistente, que segurava um
cigarro, tremia ligeiramente no braço brilhante
da cadeira de obstetrícia.

1 57
MIKHAIL BuLGAKOY

Filipe Filipovitch falou, com uma serenidade


sinistra:
- Pegue nas suas coisas, calças, casacão, tudo o
que precisar, e saia já do apartamento.
- Como assim? - questionou Charikov, abismado.
- Fora do apartamento hoje mesmo - repetiu
Filipe Filipovitch num tom fastidioso, fixando as
unhas das mãos.
Parecia que um demónio de ap o s s ara de
Charikov. Pressentia a perdição e a fatalidade que o
esperavam. Precipitou-se para esse fim quando vo­
ciferou, duramente:
- Mas o que é isto? Acham que podem ficar im­
punes?! Tenho neste apartamento catorze metros
e meio, e vou ficar com eles!
- Rua! Fora do apartamento! - disse Filipe
Filipovitch em voz baixa.
Foi Charikov quem sentenciou a sua pró­
pria morte. Levantou o braço esquerdo mordido
pelos gatos, que cheirava horrivelmente, e fez
um gesto obsceno ao professor. De seguida,
levou a mão direita ao bolso, tirou o revólver e
apontou-o ao perigoso Bormental. O cigarro
caiu da mão do doutor como uma estrela caden­
te e, passados alguns segundos, Filipe Filipovitch,
aterrorizado, correu por cima dos vidros partidos
do armário em direcção ao canapé. Lá estava es­
tendido o chefe da subsecção de limpeza e, em
cima dele, o Dr. Bormental, asfixiando-o com uma
pequena almofada branca.

1 58
CORAÇ Ã O D E CAo

Passados poucos minutos, o Dr. Bormental,


cujo rosto estava irreconhecível, foi pôr um aviso
na porta principal, ao lado da campainha:
"Por motivo de doença do professor, todas as consultas
de hf!}eforam canceladas. É favor não tocar."
Com um canivete brilhante, Bormental cortou
o fio do telefone e olhou a sua imagem ao espelho:
tinha o rosto arranhado, ensanguentado, e as mãos
trémulas. Assomou depois à porta da cozinha, di­
zendo às inquietas Zina e Dária Petrovna:
- O professor pediu que hoje não saíssem do
apartamento.
- Está bem - responderam elas, timidamente.
- Com a vossa licença, vou fechar a saída de
emergência e levo a chave - disse Bormental,
escondendo-se atrás da porta e cobrindo a cara
com a mão - Isto é apenas por agora, e não
significa qualquer falta de confiança em vocês.
No entanto, pode vir alguém a quem não possam
recusar-se abrir a porta, e agora ninguém nos pode
incomodar. Estamos muito ocupados.
- Está bem - responderam de novo as mulhe­
res, empalidecendo.
B ormental fechou a s aída de emergência
e foi trancar a porta da entrada. Seguidamente,
o s s eus p a s s o s d e s apareceram n a s ala d e
observações.
O silêncio envolveu o apartamento, preenchendo­
-lhe todos os cantos. Caiu o crepúsculo, escuro,
tenso. Veio enfim a escuridão.

1 59
MIKHAIL BuL GAKov

Os vizinhos da frente contaram, porém, que


se viu nessa noite uma luz intensa e também a
touca branca do professor, nas janelas da sala de
observações que dão para o pátio. É difícil apurar a
veracidade deste relato. Zina contou que estava
no gabinete, ao pé da lareira, já depois de tudo ter
acabado, quando Bormental e o professor saíram
da sala de observações. A cara de Ivan Arnaldovi­
tch assustara-a de morte. Ao que parece, este pôs-se
de cócoras ao pé da lareira e queimou o seu cader­
no de capa azul, que continha o historial dos casos
e das doenças dos seus pacientes. Consta ainda que
o rosto do doutor estava totalmente verde, e todo,
mas mesmo todo, arranhado; e que naquela noi­
te Filipe Filipovitch parecia outra pessoa. E que...
Por outro lado, é bem possível que a inocente
rapariga do apartamento da rua Pretchistenka
estivesse a mentir...
Certezas há apenas uma: naquela noite, no apar­
tamento, reinava um absoluto e terrível silêncio.

1 60
EPÍLOGO

Dez dias volvidos sobre o combate nocturno


na sala de observações do apartamento do profes­
sor Preobrajensky, na travessa Obukhov, alguém
bateu à porta.
Zina assustou-se com as vozes do lado de fora.
- Polícia e j ui z de in s tr u ç ã o . A b r a m ,
por favor.
Ouviram-se pas sos apressados, começaram
a entrar pessoas e, a entrada, bem iluminada e
com o s armários novamente envidraçado s ,
encheu-se de gente. Dois dos indivíduos estavam
fardados de polícias, outro vinha de sobretudo
preto, com uma pasta, e havia ainda o pálido e
triunfante Chvonder, o rapaz-mulher, o por­
teiro Fiodor, Zina, D ária Petrovna e, meio
despido, Bormental, cobrindo envergonhado
o pescoço sem gravata.

161
M 1 KHAIL BuLGAKov

A porta do gabinete abriu-se, e entrou Fili­


pe Filipovitch com o seu famoso roupão azul.
Todos notaram de imediato como o professor se
tinha recomposto naquela semana, pois foi o já
poderoso e enérgico Filipe Filipovitch quem se
apresentou com dignidade diante das visitas noc­
turnas, desculpando-se pela sua indumentária.
- Não se preocupe, professor - disse, mui­
to embaraçado, o homem do sobretudo preto.
Após alguma hesitação, prosseguiu:
- Olhe, temo ser-lhe desagradável, mas temos
um mandato de busca para o seu apartamento e ... -
o homem deteve-se no bigode de Filipe Filipovitch
- um mandato para a sua detenção, na sequência
do mesmo.
Filipe Filipovitch semicerrou os olhos e perguntou:
- Posso saber qual é a acusação? Alguém se im­
porta de me pôr ao corrente?
O homem coçou a bochecha e começou a ler o
papel que fora buscar à pasta:
- São acusados Preobraj ensky, Bormental,
Zinaida Bunina e Dária Ivanova pelo assassina­
to do chefe da subsecção de limpeza da A.MM:,
Poligraf Poligrafovitch Charikov.
O choro de Zina abafou as suas últimas palavras.
Houve um pequeno alvoroço.
- Não percebo nada - disse Filipe Filipovitch,
erguendo os ombros como um rei - Está a falar
de que Charikov? Ah, desculpe, do meu cão... que
foi operado?

1 62
CORAÇÃO D E CAo

- Desculpe, professor, não do cão, mas do que


já era homem. Essa é que é a questão.
- Quer dizer, quando ele era capaz de falar?
- perguntou Filipe Filipovitch - Tal não implica
que seja um ser humano. Aliás, isso não interessa.
Charik ainda cá está, e, decididamente, ninguém
tentou matá-lo.
- Professor! Bom, nesse caso, tem de apresentá-lo
- exclamou o homem de preto, muito admirado,
elevando as sobrancelhas - Ele desapareceu há
dez dias, e os factos ... Perdoe-me, mas são deveras
comprometedores.
- Dr. Bormental, faça o favor de apresen­
tar Charik ao juiz de instrução - ordenou Filipe
Filipovitch, pegando no mandato.
O Dr. Bormental fez um sorriso amarelo e saiu.
Q u a n d o r e g r e s s o u , vin h a a a s s o b i a r .
Atrás dele s eguia u m cão muito e s tranho.
Era careca em alguns pontos e cres cia-lhe
pêlo noutros. Apresentou-se como num circo,
apoiado nas patas traseiras, deixando-se depois
cair sobre as quatro patas, e olhou à sua volta.
U m s ilêncio de c o r tar à fac a i n s talo u- s e
na entrada. O monstruoso animal, que tinha uma
cicatriz avermelhada na testa, tornou a levantar­
-se sobre as patas traseiras e, sorrindo, sentou-se
no sofá.
Um dos polícias benzeu-se bruscamente e re­
cuou, pisando os pés de Zina.
O homem de preto ficou boquiaberto e exclamou:

1 63
MIKHAIL BULGAKOV

- Com a sua licença . . . C omo é possível?!


Ele trabalhava na secção de limpeza ...
- Não fui eu quem o nomeou - respondeu
Filipe Filipovitch - Se não me engano, a recomen­
dação partiu de Chvonder.
- Não estou a perceber nada - disse o homem
de preto, confuso, voltando-se para o segundo
polícia - É ele?
- É ele - respondeu o outro, quase sem voz -
O próprio.
- É mesmo ele - disse Fiodor - só que o canalha
ficou outra vez peludo.
- Ele falava...
- Ainda fala, mas cada vez menos ... Portanto,
aproveitem a ocasião, porque muito em breve irá
deixar de falar.
- Mas porquê? - inquiriu o homem de preto,
em voz baixa.
Filipe Filipovitch encolheu os ombros.
- A ciência ain d a não d e s c o briu como
trans formar animais em pes soas. Eu tentei,
mas s em s u c e s s o, c o mo p o dem verific ar.
Falou durante algum tempo e voltou ao esta­
do primitivo. São os atavismos, o que se há-de
fazer?
- Não diga palavrões! - gritou de repente o cão,
levantando-se do sofá.
O homem de preto empalideceu e começou a
cambalear. Um polícia amparou-o de um lado e
Fiodor segurou-o por trás. Seguiu-se um momen-

1 64
CORAÇÃO D E C ÃO

to embaraçoso e, no meio disto, ouviram-se clara­


mente três frases:
A de Filipe Filipovitch:
- Tintura de valeriana! Desmaiou!
A do doutor Bormental:
- Chvonder, atiro-o pelas escadas abaixo se
aparecer outra vez no apartamento do professor
Preobrajensky.
E a de Chvonder:
- Peço que estas palavras fiquem registadas em acta!
O ar era aquecido por radiadores cinzentos.
A noite cerrada da rua Pretchistenka, adorna­
da por uma única estrela, estava escondida atrás
das cortinas. Sua excelência (o patrono ilustríssimo
dos cães) encontrava-se sentado na poltrona. O cão
Charik deitara-se no tapete, ao pé do sofá de cabedal.
Devido aos nevoeiros, muito comuns em Mar­
ço, o cão andava com dores de cabeça matinais
junto à cicatriz na testa. Mas, ao longo do dia,
o calor dissipava essas dores. Charik sentia-se bem
e, pela sua cabeça, passavam pensamentos agradá­
veis e soalheiros.
"Tenho tanta, tanta sorte", pensava ele, dormi­
tando, "sou um sortudo. Fiz deste apartamento o
meu lar. No entanto, estou convencido de que há
algo de obscuro na minha proveniência. Deve ter
havido aí mão de algum cão de raça ... A minha avó,
que descanse em paz no Reino de Deus, era um
pouco depravada, a velhinha ... Sim, fiz desta casa o
meu lar. É verdade que me abriram a cabeça e me

1 65
MIKH A IL BuLGAKov

encheram de cicatrizes, não sei bem para quê, mas


isso passa. Não vale a pena perder tempo a pensar
no assunto, nem a ficar contra eles.
Ao longe, ouvia-se um tilintar de frascos: era o
homem mordido a arrumar os armários da sala de
observações. O feiticeiro grisalho cantava:
"Para as margens do Nilo sagrado... "

O cão assistia ali a coisas horríficas. O pro­


fe s s or metia as mãos enluvadas em frascos
e extraía deles cérebros. E, como pessoa tenaz e
persistente que era, continuava à procura, a cortar,
a observar, enquanto cantarolava: "Para as margens
do Nilo sagrado ... "

Janeiro - Março de 1 925.


Moscovo.

:MIKHAIL BULGAKOV

1 66
INDÍCE

1 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
11. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
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v. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
VI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
VII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 1 7
VIlI. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 29
IX. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 47
Epílogo . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 61

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