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Apresentação de
IANA VILLELA
Textos de
LUIZA ROMÃO,
CRISTIANE SOBRAL &
CAROLINE NAVARRINA DE MOURA
Currer Bell
21 de dezembro de 1847
N
ão havia a menor chance de caminhada naquele dia. Isto é,
pela manhã passamos uma hora vagando entre os arbustos
sem folhas, mas desde o jantar (a sra. Reed, quando não ti-
nha companhia, jantava cedo), o frio vento invernal trouxera nuvens
tão pesadas e uma chuva tão penetrante que exercícios ao ar livre es-
tavam fora de cogitação.7
Fiquei contente — nunca gostei de longas caminhadas, especialmen-
te em tardes gélidas. Achava terrível voltar para casa no crepúsculo
frio, com os dedos das mãos e pés congelados e o coração entristecido
após as reprimendas de Bessie, nossa ama, e sentindo-me humilhada
pela consciência de minha inferioridade física se comparada a Eliza,
John e Georgiana Reed.
Esses mesmos Eliza, John e Georgiana agora estavam aglomerados
ao redor da mãe na sala de visitas. Reclinada no sofá diante da lareira,
com os queridos filhos por perto (e, por enquanto, nem brigando, nem
chorando), ela parecia perfeitamente satisfeita. Quanto a mim, ela me
dispensara de juntar-me ao grupo, dizendo que “lamentava a necessi-
dade de me manter distante, mas, até ouvir de Bessie e descobrir por
observação própria que eu estava genuinamente me esforçando para
desenvolver um temperamento mais sociável e adequado a uma cri-
ança, modos mais agradáveis e alegres — mais leves, francos, mais na-
turais, por assim dizer —, seria obrigada a me excluir de privilégios
reservados apenas a criancinhas contentes e felizes”.
— O que Bessie disse que eu fiz? — perguntei.
— Jane, eu não gosto de gente implicante ou inquisidora. Além dis-
so, é muito feio que uma criança responda aos adultos desta forma.
Sente-se em algum lugar e, até conseguir conversar de modo agradá-
vel, permaneça em silêncio.
Havia uma pequena sala de desjejum adjacente à sala de visitas. Es-
capuli para lá. O ambiente continha uma estante de livros, e logo me
apossei de um volume, escolhendo a dedo um daqueles repletos de
ilustrações. Subi no assento da janela, puxei os pés para perto do cor-
po, cruzei as pernas como um turco e, após fechar a cortina de cha-
malote vermelho quase por completo, encontrei-me refugiada no iso-
lamento duplo.
Dobras de tecido escarlate ocultavam a vista à direita; à esquerda,
as vidraças transparentes protegiam, mas não me separavam, do dia
lúgubre de novembro. Uma ou outra vez, enquanto virava as páginas
do livro, eu examinava o aspecto daquela tarde de inverno. Ao longe,
via-se uma brancura pálida de névoa e nuvens; mais perto, uma pai-
sagem de gramado úmido e arbustos fustigados pela tempestade, com
a chuva incessante passando em um turbilhão na frente de uma longa
e abominável ventania.
Voltei ao livro — A história dos pássaros britânicos, de Bewick.8 Eu
não gostava muito do texto, de modo geral; entretanto, havia algumas
páginas introdutórias das quais, criança como eu era, não conseguia
passar sem olhar. Eram os trechos que tratavam dos locais frequenta-
dos pelas aves marítimas; das “rochas e promontórios solitários” ape-
nas por elas habitados; da costa da Noruega, pontilhada com ilhas
desde a extremidade sul, de Lindeness, ou Naze, até o Cabo Norte…
E
u resisti o caminho todo: algo que me era novo, e uma circuns-
tância que reforçou muito a má opinião que Bessie e a srta.
Abbot estavam inclinadas a ter de mim. O fato era que eu es-
tava um tanto alterada — fora de mim, como diriam os franceses. Per-
cebera que o motim de um instante já me deixara sujeita a estranhas
punições e, como qualquer escrava rebelde, decidi, em meu desespero,
ir até o fim.
— Segure os braços dela, srta. Abbot. A menina parece uma gata en-
sandecida.
— Que vergonha! Que vergonha! — exclamou a criada. — Que condu-
ta chocante, srta. Eyre, bater em um jovem cavalheiro, no filho da sua
benfeitora! No seu jovem patrão!
— Patrão! Como ele é meu patrão? Por acaso sou uma criada?
— Não, é menos que uma criada, pois não faz nada para merecer seu
sustento. Pronto, sente-se aí e pense nessa sua malcriação.
Àquela altura, elas tinham me levado ao cômodo indicado pela sra.
Reed e me empurrado em um banco. Meu instinto foi erguer-me dele
como uma mola, mas dois pares de mãos me impediram de imediato.
— Se não sentar quieta, terá de ser amarrada — disse Bessie. — Srta.
Abbot, me empreste suas ligas; ela rasgaria as minhas na hora.
A srta. Abbot se virou para despir uma perna robusta da ligadura
necessária. Essa preparação das amarras, com a ignomínia adicional
que implicava, fez esvair-se um pouco do meu ardor.
— Não tire! — exclamei. — Não vou me mexer.
E, como garantia, agarrei o assento.
— Não se mexa mesmo — disse Bessie, e, depois de certificar-se de
que eu tinha realmente me acalmado, me soltou.
Ela e a srta. Abbot ficaram paradas, de braços cruzados, olhando
com uma expressão sombria e incerta para o meu rosto, como se esti-
vessem questionando a minha sanidade.
— Ela nunca fez isso antes — disse Bessie por fim, virando-se à cria-
da.
— Mas a capacidade sempre existiu nela — foi a resposta. — Eu disse
muitas vezes à patroa minha opinião sobre a menina, e ela concordou
comigo. É uma criaturinha dissimulada: nunca vi uma garota da sua
idade que tivesse tanto a esconder.
Bessie não respondeu, mas pouco depois dirigiu-se a mim:
— Você deveria estar ciente, mocinha, de que tem obrigações para
com a sra. Reed. Ela a sustenta; se deixasse de sustentá-la, você preci-
saria ir para um asilo de pobres.
Eu não tinha nada a dizer. Essas palavras não me eram novas — mi-
nhas lembranças mais antigas incluíam insinuações da mesma espécie.
A reprimenda quanto a minha dependência se tornara uma ladainha
vaga em meus ouvidos; muito dolorosa e desanimadora, mas só parci-
almente inteligível. A srta. Abbot acrescentou:
— E não deve achar que está em pé de igualdade com as srtas. Reed e
o sr. Reed só porque a patroa gentilmente permite que seja criada com
eles. Eles vão herdar muito dinheiro, e você, nenhum. Cabe a você ser
humilde e tentar agradá-los.
— Dizemos isso para o seu próprio bem — acrescentou Bessie, e seu
tom não era duro. — Você deve tentar ser útil e agradável, e então
quem sabe terá um lar aqui. Mas, se for rude e violenta, a patroa vai
mandá-la embora, tenho certeza.
— Além disso — disse a srta. Abbot —, Deus vai puni-la. Ele pode ful-
miná-la no meio de um chilique. E então para onde ela iria? Vamos,
Bessie, vamos deixá-la. Eu não gostaria de ter o coração dela por nada
no mundo. Faça suas orações, srta. Eyre, quando estiver sozinha, pois,
se não se arrepender, alguma coisa ruim pode descer pela chaminé e
levá-la embora.
Elas partiram, fechando e trancando a porta atrás de si.
O quarto vermelho era um cômodo de reserva, onde raramente al-
guém dormia. Eu poderia dizer nunca, na verdade, a não ser quando
um influxo fortuito de visitantes em Gateshead Hall tornava necessá-
rio recorrer a todas as acomodações da casa. Apesar disso, era um dos
maiores e mais imponentes cômodos da mansão. Uma cama apoiada
em enormes pilares de mogno, drapeada com um dossel de damasco
vermelho-escuro, destacava-se como um tabernáculo no centro; as du-
as janelas vastas, de cortinas sempre fechadas, ficavam semicobertas
sob festões e dobras de um tecido parecido; o tapete era vermelho; a
mesa ao pé da cama era protegida por uma toalha carmesim; as pare-
des eram de um tom castanho suave, com um toque de rosa; o guarda-
roupa, a penteadeira e as cadeiras eram de mogno polido, antigo e es-
curo. Desses tons profundos, erguiam-se o colchão e os travesseiros, de
um branco ofuscante, empilhados na cama, coberta por uma colcha de
piquê branca como a neve. Igualmente proeminente era uma poltrona
larga e acolchoada, também branca, perto da cabeceira, acompanhada
de um escabelo e parecendo, pensei, um pálido trono.
Esse quarto era frio, porque raramente se acendia a lareira; silencio-
so, porque ficava afastado do quarto das crianças e das cozinhas; e so-
lene, porque se sabia que era raro alguém entrar nele. Apenas uma cri-
ada vinha aos sábados, para espanar o pó acumulado dos espelhos e
dos móveis — e a própria sra. Reed, a intervalos espaçados, visitava-o
para examinar os conteúdos de certa gaveta secreta no guarda-roupa,
onde ficavam guardados diversos pergaminhos, sua caixa de joias e um
retrato em miniatura do falecido marido. Nessas últimas palavras en-
contra-se o segredo do quarto vermelho — o feitiço que o mantinha tão
solitário, apesar de sua suntuosidade.
O sr. Reed morrera havia nove anos: naquele cômodo dera seu últi-
mo suspiro; ali tinha sido velado; dali seu caixão fora carregado pelos
homens da funerária; e, desde aquele dia, um senso de consagração
melancólica protegera o local de intrusões frequentes.
Meu assento, ao qual Bessie e a amargurada srta. Abbot tinham me
deixado fixada, era uma otomana baixa perto da lareira de mármore.
À minha frente, encontrava-se a cama; à minha direita, o guarda-rou-
pa alto e escuro, no qual reflexos suaves e entrecortados faziam variar
o brilho dos painéis; à minha esquerda, as janelas ocultas, e um grande
espelho entre elas reproduzia a majestade vazia da cama e do quarto.
Eu não sabia direito se elas tinham trancado a porta e, quando ousei
me mexer, levantei-me para conferir. Ai de mim! Sim — nenhuma pri-
são já fora mais segura. Retornando, precisei passar diante do espelho,
e meu olhar fascinado involuntariamente explorou as profundezas que
ele revelava. Tudo parecia mais frio e escuro naquele oco visionário do
que na realidade — e a figurinha estranha que me fitava dali, de rosto e
braços brancos pontuando a escuridão e olhos cintilantes de medo mo-
vendo-se enquanto tudo o mais permanecia imóvel, exerceu o efeito de
um espírito real: pensei que era como uma daquelas pequenas apari-
ções, meio-fada, meio-duende, que nas histórias noturnas de Bessie
emergiam de vales frondosos e solitários nas charnecas e apareciam
diante dos olhos de viajantes atrasados. Voltei ao meu assento.
A superstição estava comigo naquele momento, mas ainda não era a
hora de sua vitória completa. Meu sangue ainda estava quente, o esta-
do de espírito da escrava revoltada ainda me sustentava com seu vigor
amargo, e tive de estancar uma torrente veloz de pensamentos retros-
pectivos antes de tremer pelo presente lúgubre.
Todas as tiranias violentas de John Reed, toda a indiferença orgu-
lhosa de suas irmãs, toda a hostilidade de sua mãe, toda a parcialidade
dos criados reviravam-se em minha mente perturbada como sedimen-
tos escuros em um poço lamacento. Por que eu estava sempre sofren-
do, sempre amedrontada, sempre acusada, eternamente condenada?
Por que nunca conseguia agradar? Por que era inútil tentar conquistar
o favor de qualquer pessoa? Eliza, teimosa e egoísta, era respeitada.
Georgiana, que tinha um temperamento mimado, despeitoso e mor-
daz, e uma postura crítica e insolente, era paparicada por todos. Sua
beleza — faces rosadas e cachos dourados — parecia deleitar a todos
que a fitavam, e pagar a indenização por cada defeito. Quanto a John:
ninguém o frustrava, muito menos punia, embora ele torcesse o pesco-
ço dos pombos, matasse filhotes de pavão, soltasse os cães sobre as
ovelhas, arrancasse os frutos das videiras da estufa e partisse os botões
das plantas mais raras do solário. Ele também chamava a mãe de “ve-
lha garota”, às vezes a insultava pela pele mais escura, similar à sua,
descaradamente ignorava os desejos dela, não raro rasgava e estragava
suas roupas de seda, e ainda assim continuava sendo o seu “queridi-
nho”. Eu não ousava cometer nenhuma falta, esforçava-me para cum-
prir todo dever e era considerada malcriada e cansativa, emburrada e
sorrateira, da manhã à tarde e da tarde à noite.
Minha cabeça ainda doía e sangrava do golpe e da queda sofrida.
Ninguém tinha repreendido John por bater em mim arbitrariamente
e, como eu tinha me voltado contra ele para evitar mais um ataque ir-
racional, fui submetida ao desdém geral.
A
pós a conversa com o sr. Lloyd e a discussão anteriormente
relatada entre Bessie e Abbot, encontrei esperanças suficien-
tes para querer melhorar: uma mudança parecia próxima,
de modo que a desejei e esperei em silêncio. No entanto, demorou pa-
ra chegar: dias e semanas se passaram. Eu tinha voltado ao meu esta-
do de saúde normal, mas nenhuma outra alusão foi feita ao assunto
que ocupava meus pensamentos. A sra. Reed me examinava às vezes
com um olhar severo, mas raramente dirigia a palavra a mim. Desde
minha enfermidade, ela tinha traçado uma linha de separação mais
distinta do que nunca entre os próprios filhos e eu, designando-me
um pequeno quarto onde eu deveria dormir sozinha e condenando-
me a fazer as refeições isolada e a passar todo o resto do tempo no
quarto das crianças, enquanto meus primos ficavam constantemente
na sala de visitas. Ela não deixou escapar, porém, sequer uma suges-
tão de que me enviaria à escola. Mesmo assim, eu sentia uma certeza
instintiva de que ela não me toleraria por muito tempo sob o mesmo
teto, pois, quando voltava o olhar para mim, expressava mais do que
nunca uma aversão arraigada e intolerável.
Eliza e Georgiana, evidentemente seguindo ordens, falavam comigo
o mínimo possível. John empurrava a língua contra a bochecha sem-
pre que me via e uma vez tentou me repreender, mas, como eu imedi-
atamente me voltei contra ele, inflamada por aquele mesmo senti-
mento de ira profunda e revolta desesperada que tinha incitado mi-
nha fúria anterior, ele preferiu desistir e fugir, berrando imprecações
e jurando que eu tinha quebrado seu nariz. De fato, eu havia mirado
um golpe tão forte contra aquela feição proeminente quanto os nós
dos meus dedos eram capazes de infligir e, quando vi que ou isso ou
meu olhar o amedrontava, senti uma enorme inclinação a aproveitar
a vantagem e bater-lhe outra vez, mas ele já tinha alcançado a mãe.
Eu o ouvi, choramingando, começar a história de que “aquela malva-
da Jane Eyre” tinha voado contra ele como um gato louco, mas ele foi
calado de forma brusca.
— Não fale dela comigo, John. Eu lhe disse para não chegar perto
dela; não vale a sua atenção. Não quero que você nem suas irmãs se
associem com ela.
Debruçada no corrimão da escada, exclamei de repente e sem deli-
berar minhas palavras por um segundo sequer:
— São eles que não estão à altura de se associar comigo!
A sra. Reed era uma mulher bastante robusta, mas, ao ouvir essa
declaração estranha e audaciosa, subiu a escada agilmente, me arras-
tou como um turbilhão até o quarto das crianças e, me empurrando
na beirada da cama, me desafiou com um tom enfático a erguer-me
daquele local, ou proferir uma sílaba sequer, durante o resto do dia.
— O que o tio Reed diria à senhora se estivesse vivo? — foi minha
pergunta quase involuntária.
Digo quase involuntária pois pareceu que minha língua pronunciou
as palavras sem que minha vontade o consentisse: algo falou através
da minha boca, algo sobre o qual eu não tinha controle.
— Como é? — respondeu a sra. Reed em um sussurro.
Seus olhos cinzentos, geralmente frios e controlados, ficaram per-
turbados e tomados por algo que parecia medo. Ela soltou o meu bra-
ço e me fitou como se realmente não soubesse se eu era uma criança
ou um demônio. Isso me deu coragem.
— Meu tio Reed está no céu, e pode ver tudo que a senhora faz e
pensa, e meu pai e minha mãe também, e eles sabem que a senhora
me deixa trancada o dia inteiro e que gostaria que eu morresse.
A sra. Reed logo recuperou a presença de espírito. Ela me sacudiu
com força, estapeou minhas orelhas e partiu sem dizer mais nada.
Bessie ocupou sua ausência com um sermão de uma hora, no qual
provou, sem sombra de dúvida, que eu era a criança mais perversa e
abandonada já criada sob um teto. Eu acreditei parcialmente nela,
pois de fato apenas maus sentimentos reviravam-se em meu peito.
Novembro, dezembro e metade de janeiro passaram. O Natal e o
Ano-Novo tinham sido comemorados em Gateshead com a alegria
festiva costumeira; presentes foram trocados, ceias e reuniões, promo-
vidas. Eu, é claro, fui excluída de todos os divertimentos; minha parte
da alegria consistia em testemunhar a arrumação diária de Eliza e
Georgiana e vê-las descer à sala de visitas usando vestidos de musse-
lina leves e faixas escarlate, com o cabelo elaboradamente cacheado, e,
depois, em ouvir o piano ou a harpa tocados lá embaixo, o mordomo e
o lacaio andando de um lado ao outro, o tinido de vidro e porcelana
enquanto refrescos eram distribuídos, o zumbido entrecortado de
conversas enquanto as portas da sala de visitas se abriam e fechavam.
Quando cansava dessa ocupação, eu saía do patamar da escada e ia ao
silencioso e solitário quarto das crianças; ali, embora um tanto triste,
eu não me sentia infeliz. Para falar a verdade, não tinha a menor von-
tade de procurar companhia, pois em meio a um grupo eu era rara-
mente notada — e, se Bessie fosse apenas gentil e sociável, eu teria
considerado um prazer passar as noites tranquilamente com ela, em
vez de sob o olhar formidável da sra. Reed em uma sala cheia de da-
mas e cavalheiros. Porém, Bessie, assim que vestia as jovens damas, se
retirava para as áreas animadas da cozinha e do quarto da governan-
ta, geralmente levando a vela consigo. Então eu ficava sentada com
minha boneca no colo até o fogo abaixar, olhando ao redor vez ou ou-
tra para garantir que nada pior do que eu mesma assombrava o quar-
to sombrio, e, quando as brasas chegavam a um vermelho opaco, eu
me despia com pressa, puxando nós e laços o melhor possível, e pro-
curava abrigo do frio e da escuridão na cama. Para essa cama, eu
sempre levava minha boneca. Seres humanos precisam amar alguma
coisa e, na falta de objetos de afeição mais dignos, eu conseguia encon-
trar prazer em amar e estimar um ídolo desbotado, puído como um
espantalho em miniatura. Agora fico abismada ao lembrar a sinceri-
dade absurda com que adorava aquele brinquedinho, quase imagi-
nando-o vivo e capaz de sensações. Eu não conseguia dormir se a bo-
neca não estivesse escondida em minha camisola e, quando ela estava
acomodada lá, quente e segura, eu ficava comparativamente feliz,
acreditando que ela também estava contente.
As horas pareciam longas enquanto eu esperava a partida dos con-
vidados e tentava ouvir os passos de Bessie nas escadas — às vezes ela
subia durante a noite para procurar o dedal ou as tesouras, ou então
para me trazer algo que fazia as vezes de ceia, como um pão doce ou
cheesecake, se sentava na cama enquanto eu comia e, quando eu ter-
minava, ajeitava as cobertas ao meu redor, me beijava duas vezes e
dizia:
— Boa noite, srta. Jane.
Quando era delicada dessa forma, Bessie parecia-me a melhor, mais
bela e mais gentil criatura no mundo, e eu desejava intensamente que
ela fosse sempre tão agradável e amável, e nunca mais me desse or-
dens, ou repreendesse, ou enchesse de tarefas, como era seu costume.
Bessie Lee, penso, deve ter sido uma moça de boas habilidades natu-
rais, pois era esperta em tudo que fazia e tinha um jeito impressio-
nante para as narrativas. Assim, ao menos, julgo pela impressão que
as histórias que contava às crianças deixaram em mim. Ela também
era bonita, se minhas lembranças de seu rosto e figura estão corretas.
Lembro-me dela como uma jovem esguia, de cabelo preto, olhos escu-
ros e feições muito agradáveis, e uma tez boa e límpida. Contudo, ela
tinha um temperamento inconstante e precipitado, e noções indife-
rentes sobre princípios ou justiça. Ainda assim, tal como era, eu a pre-
feria a qualquer outra pessoa em Gateshead Hall.
Era o dia quinze de janeiro, cerca de nove da manhã. Bessie tinha
descido para o desjejum, meus primos ainda não haviam sido chama-
dos pela mãe e Eliza estava vestindo a touca e o casaco pesado com
que saía aos jardins para alimentar as galinhas, uma ocupação de que
gostava muito — e não gostava menos de vender os ovos à governanta
e guardar o dinheiro que obtinha dessa forma. Ela tinha um talento
para o comércio e uma clara propensão a economizar, que se eviden-
ciava não só na venda de ovos e galinhas, mas também nas negocia-
ções implacáveis que fazia com o jardineiro em troca de raízes de flo-
res, sementes e mudas. Esse empregado recebera ordens da sra. Reed
de comprar da jovem dama todos os produtos de jardinagem que ela
desejasse vender, e Eliza teria vendido o próprio cabelo se pudesse ter
obtido um grande lucro com ele. Quanto ao dinheiro, ela o escondia
em cantos diversos, embrulhado em retalhos de tecido ou velhos pa-
pelotes, mas, como algumas dessas reservas foram descobertas pela
criada, Eliza, temendo um dia perder seu estimado tesouro, consentiu
em confiá-lo à mãe, a uma taxa de juros usurária — cinquenta ou ses-
senta por cento. Esses juros ela cobrava todo trimestre, fazendo a con-
tabilidade em um caderninho com ansiosa exatidão.
Georgiana estava sentada em um banco alto, arrumando o cabelo
na frente do espelho, e entremeando os cachos com flores artificiais e
penas desbotadas que encontrara em uma gaveta no sótão. Eu estava
arrumando a cama, tendo recebido ordens estritas de Bessie para ter-
minar antes de ela retornar (pois Bessie me empregava com frequên-
cia como uma espécie de ama subordinada, para arrumar o quarto,
espanar as cadeiras etc.). Após estender a coberta e dobrar minha ca-
misola, fui ao assento da janela arrumar alguns livros ilustrados e
móveis da casa de bonecas espalhados lá, mas uma ordem abrupta de
Georgiana para deixar seus brinquedos em paz (pois as cadeirinhas e
espelhinhos, os pratos e xícaras de porcelana pintados eram sua pro-
priedade) interrompeu meu trabalho. Então, na falta de outra ocupa-
ção, comecei a soprar as flores de gelo que recobriam a janela, até lim-
par um espaço no vidro pelo qual podia olhar para os jardins, onde
tudo estava imóvel e petrificado sob a influência da geada dura.
Da janela eram visíveis o chalé do por-
teiro e a estrada, e, assim que eu tinha
aberto espaço dissipando o suficiente da
folhagem branca e prateada que cobria as
vidraças, vi os portões serem abertos e
uma carruagem passar por eles. Eu vi com
indiferença o veículo subir pela trilha:
carruagens muitas vezes vinham a Ga-
teshead, mas nunca traziam visitantes que
me interessassem. Ele parou diante da ca-
sa, a campainha tocou alto e o recém-che-
gado foi admitido. Como nada disso importava para mim, minha
atenção ociosa logo encontrou maior motivo de interesse no espetácu-
lo de um pequeno pintarroxo faminto que gorjeava nos galhos nus da
cerejeira pregada na parede junto ao batente. Os restos do meu café da
manhã de pão e leite estavam na mesa e, após amassar um pedaço do
pão, eu estava puxando a dobradiça para dispor as migalhas no peito-
ril quando Bessie entrou correndo no quarto das crianças.
— Srta. Jane, tire esse avental. O que está fazendo aí? Lavou as
mãos e o rosto esta manhã?
Eu dei outro puxão antes de responder, pois queria garantir que o
pássaro recebesse o pão. A dobradiça cedeu; eu espalhei as migalhas,
algumas no peitoril de pedra, algumas no galho da cerejeira, e então,
fechando a janela, respondi:
— Não, Bessie, só acabei de espanar agora.
— Menina encrenqueira e negligente! E o que está fazendo? Está
muito corada, como se estivesse aprontando alguma travessura. Por
que estava abrindo a janela?
Fui poupada do transtorno de responder, pois Bessie parecia estar
com pressa demais para ouvir a explicação. Ela me arrastou até o la-
vatório, me infligiu uma esfregada implacável (mas, por sorte, breve)
no rosto e nas mãos com sabão, água e uma toalha áspera, disciplinou
meu cabelo com uma escova de cerdas eriçadas, tirou meu avental e,
puxando-me às pressas ao topo das escadas, ordenou que eu descesse
de imediato, pois fora convocada à sala de desjejum.
Eu teria perguntado quem queria me ver — teria perguntado se a
sra. Reed estava lá —, mas Bessie já tinha se afastado e fechado a porta
do quarto das crianças. Desci devagar. Em quase três meses, não fora
chamada à presença da sra. Reed nenhuma vez. Depois de tanto tem-
po confinada ao quarto das crianças, as salas de desjejum, jantar e vi-
sitas haviam se tornado para mim regiões terríveis, que eu temia
adentrar.
Cheguei então ao corredor vazio; à minha frente estava a porta da
sala de desjejum, e eu parei, trêmula e intimidada. Que covarde des-
prezível o medo, engendrado por punições injustas, me tornara na-
queles tempos! Eu temia retornar ao quarto das crianças e temia en-
trar na sala. Por dez minutos hesitei, ansiosa, até que o toque veemen-
te da sineta da sala de desjejum me fez tomar uma decisão. Eu preci-
sava entrar.
Quem pode querer me ver?, me perguntei, virando com ambas as
mãos a maçaneta dura, que por um ou dois segundos resistiu ao esfor-
ço. Quem verei lá dentro além da tia Reed? Um homem ou uma mulher?
A maçaneta girou, a porta destrancou-se e, ao atravessá-la e fazer
uma mesura baixa, ergui os olhos para um… pilar negro! Ao menos,
foi o que me pareceu, à primeira vista, a figura reta, esguia e vestida
de zibelina parada no tapete. O rosto sombrio no topo lembrava uma
máscara entalhada colocada acima da coluna como capitel.
A sra. Reed ocupava sua poltrona de sempre perto da lareira e fez
um sinal para que eu me aproximasse. Quando o fiz, ela me apresen-
tou àquele estranho pilar com as palavras:
— Essa é a garotinha de quem lhe falei.
Ele, pois era um homem, virou a cabeça devagar para mim e, tendo
me examinado com olhos cinza e inquisitivos que cintilavam sob um
par de sobrancelhas espessas, disse solenemente, em uma voz grave:
— Ela é pequena. Quantos anos tem?
— Dez.
— Tudo isso? — foi a resposta descrente, e ele prolongou seu escrutí-
nio por mais alguns minutos. Em seguida, dirigiu-se a mim: — Seu no-
me, garotinha?
— Jane Eyre, senhor.
Ao proferir essas palavras, ergui os olhos. Ele me pareceu um cava-
lheiro alto, mas eu, claro, era muito baixa. Suas feições eram grandes,
e elas e todas as linhas de sua figura eram igualmente duras e emper-
tigadas.
— Bem, Jane Eyre, você é uma boa menina?
Era impossível responder na afirmativa — meu pequeno mundo ti-
nha uma opinião contrária. Permaneci em silêncio. A sra. Reed res-
pondeu por mim, balançando a cabeça de modo expressivo, e acres-
centou:
— Quanto menos se dizer desse assunto, melhor, sr. Brocklehurst.
— Que pena ouvir isso! Eu e ela precisamos conversar. — Curvando-
se de sua posição perpendicular, acomodou-se na poltrona oposta à da
sra. Reed. — Venha cá — ordenou.
Cruzei o tapete e ele me posicionou bem à sua frente. Que rosto ti-
nha, agora que estava quase nivelado com o meu! Que nariz grande!
Que boca! Que dentes grandes e proeminentes!
— Não há visão mais triste que a de uma criança malcriada — come-
çou ele —, especialmente uma garotinha malcriada. Você sabe aonde
os perversos vão após a morte?
— Ao inferno — foi minha resposta imediata e ortodoxa.
— E o que é o inferno? Sabe me dizer?
— Um abismo cheio de fogo.
— E gostaria de cair nesse abismo e queimar lá pela eternidade?
— Não, senhor.
— O que deve fazer para evitar isso?
Deliberei por um momento; minha resposta, quando veio, foi ques-
tionável.
— Devo manter-me saudável e não morrer.
— Como pode se manter saudável? Pessoas mais novas que você
morrem todos os dias. Um ou dois dias atrás, enterrei uma criança de
cinco anos, uma criancinha boa, cuja alma agora está no paraíso. Te-
mo que o mesmo não poderia ser dito de você, se fosse levada daqui.
Não tendo condições de sanar a dúvida dele, abaixei os olhos para
os dois grandes pés plantados no tapete e suspirei, desejando estar
bem longe dali.
— Espero que esse suspiro seja sincero e que você se arrependa de já
ter sido motivo de incômodo para sua excelente benfeitora.
Benfeitora! Benfeitora!, pensei eu. Todos chamam a sra. Reed de mi-
nha benfeitora; se é assim, uma benfeitora é uma criatura muito desa-
gradável.
— Você faz suas orações de manhã e de noite? — continuou meu in-
terrogador.
— Sim, senhor.
— Lê a Bíblia?
— Às vezes.
— Com prazer? Gosta dela?
— Eu gosto do Apocalipse, e do livro de Daniel, e de Gênese e Sa-
muel, e um pouco do Êxodo, e algumas partes dos Reis e Crônicas, e
de Jó e Jonas.
— E os Salmos? Espero que goste deles.
— Não, senhor.
— Não? Ah, que chocante! Eu tenho um filhinho, mais novo que vo-
cê, que sabe seis Salmos de cor: e quando perguntamos a ele o que
preferiria, um biscoito de gengibre para comer ou um verso de um
salmo para decorar, ele diz: “Ah, um verso de um salmo! Os anjos can-
tam os salmos! Eu quero ser um anjinho aqui na terra.” E então ele
ganha dois biscoitos como recompensa por sua devoção infantil.
— Os salmos não são interessantes — argumentei.
— Isso prova que você tem um coração perverso. Deve rezar a Deus
para que o mude, para que lhe dê um coração novo e puro, para que
tire seu coração de pedra e lhe conceda um de carne.
Eu estava prestes a apresentar uma pergunta sobre o modo pelo
qual essa operação de troca de coração seria efetuada, quando a sra.
Reed interveio e me mandou sentar. Em seguida, continuou ela mes-
ma a conversa.
— Sr. Brocklehurst, acredito que intimei, na carta que lhe escrevi
três semanas atrás, que essa garotinha não tem exatamente o caráter e
a disposição que eu desejaria. Caso o senhor a admita na escola de
Lowood, eu ficaria feliz se a superintendente e as professoras recebes-
sem ordens de vigiá-la severamente e, em especial, de atentar para o
pior defeito dela, que é uma tendência a dissimular. Menciono isso na
sua presença, Jane, para que não tente abusar da boa vontade do sr.
Brocklehurst.
Não era à toa que eu sentia medo e antipatia pela sra. Reed, pois
sua tendência natural era me ferir cruelmente. Nunca fui feliz em sua
presença: por mais cuidadosamente que obedecesse, por mais ardua-
mente que me esforçasse para agradá-la, meus esforços sempre eram
rejeitados e recompensados por frases como aquela. Naquele momen-
to, proferida diante de um estranho, a acusação perfurou meu cora-
ção. Percebei vagamente que ela já estava obliterando a esperança da
nova fase de existência à qual pretendia que eu entrasse e senti, em-
bora não pudesse ter expressado o sentimento, que ela estava semean-
do aversão e descortesia pelo meu caminho futuro. Vi-me transforma-
da, aos olhos do sr. Brocklehurst, em uma criança ardilosa e corrupto-
ra, e o que podia fazer para remediar o dano?
Nada, na verdade, pensei, enquanto tentava reprimir um soluço e
rapidamente enxugava algumas lágrimas, as evidências impotentes da
minha angústia.
— A dissimulação é, de fato, um triste defeito em uma criança — dis-
se o sr. Brocklehurst. — Está próxima da mentira, e todos os mentiro-
sos terão o seu quinhão no lago de fogo e enxofre. Contudo, ela será
vigiada, sra. Reed; falarei com a srta. Temple e as professoras.
— Eu gostaria que ela fosse educada de forma adequada a suas pers-
pectivas — continuou minha benfeitora. — Que se tornasse útil e se
mantivesse humilde. Quanto às férias, com sua permissão, ela vai pas-
sá-las sempre em Lowood.
— Suas decisões são perfeitamente ajuizadas, senhora — replicou o
sr. Brocklehurst. — A humildade é uma virtude cristã e peculiarmente
apropriada às pupilas de Lowood. Sendo assim, exijo que um cuidado
especial seja tomado para cultivá-la entre as moças. Estudei como
melhor extinguir nelas o sentimento mundano do orgulho e, no outro
dia mesmo, obtive uma prova agradável do meu sucesso. Minha se-
gunda filha, Augusta, foi visitar a escola com a mãe, e ao retornar ex-
clamou: “Ah, querido papai, como todas as garotas de Lowood pare-
cem simples e recatadas, com o cabelo atrás das orelhas, os longos
aventais, e aquelas bolsinhas de linho na frente dos vestidos… pare-
cem quase filhas de pobres! E olharam para meu vestido e o de ma-
mãe como se nunca tivessem visto uma roupa de seda.”
— Essas são as condições que eu aprovo — respondeu a sra. Reed. —
Mesmo se tivesse procurado em toda a Inglaterra, dificilmente teria
encontrado um sistema mais adequado a uma criança como Jane Ey-
re. Consistência, meu caro sr. Brocklehurst, eu prezo pela consistência
em todas as coisas.
— A consistência, senhora, é o primeiro dos deveres cristãos, e foi
observada em todos os aspectos do estabelecimento de Lowood: comi-
da simples, vestimentas simples, acomodações sem sofisticação, hábi-
tos vigorosos e ativos. Esta é a ordem na casa e entre suas habitantes.
— E o senhor tem toda a razão. Posso então confiar que esta criança
será recebida como pupila em Lowood e treinada em conformidade
com sua posição e perspectivas?
— Decerto, senhora. Ela será colocada naquele canteiro de plantas
selecionadas. E confio que se mostrará agradecida pelo privilégio
inestimável de sua seleção.
— Então eu a enviarei assim que possível, sr. Brocklehurst, pois lhe
asseguro que estou ansiosa para me desobrigar de uma responsabili-
dade que vem se tornando um grande incômodo.
— Sem dúvida, sem dúvida, senhora, e agora lhe desejo bom-dia.
Voltarei a Brocklehurst Hall em uma ou duas semanas; meu bom
amigo, o arcediácono, não permitirá que eu o deixe antes disso. Envi-
arei um aviso à srta. Temple de que ela deve esperar uma nova meni-
na, então não haverá dificuldades em recebê-la. Adeus.
— Adeus, sr. Brocklehurst, envie meus cumprimentos à sra. e à srta.
Brocklehurst, a Augusta e Theodore, e ao senhorzinho Broughton
Brocklehurst.
— Certamente, senhora. Garotinha, cá está um livro intitulado O
guia das crianças.16 Leia quando for fazer suas orações, especialmente
a parte contendo o “relato da morte terrivelmente súbita de Martha
G., uma criança malcriada viciada em mentiras e dissimulação”.
Com essas palavras, o sr. Brocklehurst pôs em minhas mãos um
panfleto fino com capa costurada e, após chamar sua carruagem, par-
tiu.
A sra. Reed e eu ficamos sozinhas, e alguns minutos se passaram
em silêncio. Ela estava costurando e eu a observava. A sra. Reed tal-
vez tivesse, na época, trinta e seis ou trinta e sete anos. Era uma mu-
lher de físico robusto, ombros largos e membros fortes. Não era alta e,
embora corpulenta, não chegava a ser obesa. Tinha um rosto bastante
largo, um maxilar muito desenvolvido e muito sólido; a testa era bai-
xa, o queixo, grande e proeminente, e a boca e o nariz, razoavelmente
regulares, e, sob as sobrancelhas claras, cintilavam olhos privados de
compaixão. Sua pele era escura e sem viço, seu cabelo, quase loiro, e
sua constituição, vigorosa — doenças nunca se aproximavam dela. Era
uma administradora minuciosa e inteligente: a casa e as propriedades
alugadas estavam inteiramente sob seu controle, e apenas os filhos,
por vezes, desafiavam e desdenhavam de sua autoridade. Ela se vestia
bem e tinha uma presença e um porte calculados para destacar a ele-
gância dos trajes.
Sentada em um banco baixo, a alguns metros da poltrona, eu exa-
minei sua figura e perscrutei suas feições. Nas mãos, eu tinha o pan-
fleto contendo a morte súbita da Mentirosa: a narrativa à qual minha
atenção fora dirigida como a um alerta apropriado. O que acabara de
ocorrer, o que a sra. Reed dissera sobre mim ao sr. Brocklehurst, todo
o teor da conversa deles, era recente, cortante e doloroso em minha
mente. Eu sentira cada palavra tão agudamente quanto as ouvira cla-
ramente, e um ressentimento violento se inflamava dentro de mim.
A sra. Reed ergueu os olhos do bordado. Pousou o olhar no meu e,
no mesmo instante, interrompeu os movimentos ágeis dos dedos.
— Saia daqui e volte ao quarto das crianças — foi o seu mandato.
Meu olhar ou alguma outra coisa deviam ter lhe parecido ofensivos,
pois ela falou com uma irritação extrema, embora suprimida. Eu me
levantei e fui à porta, mas voltei. Fui até a janela, cruzei a sala e parei
perto dela.
Eu tinha de falar; fora severamente humilhada e precisava dar uma
resposta. Mas como? Que forças eu tinha para retaliar contra minha
antagonista? Reuni minhas energias e as atirei nesta frase direta:
— Eu não sou dissimulada. Se fosse, diria que amo a senhora, mas
declaro que não a amo. Eu a odeio mais do que todos no mundo, exce-
to John Reed, e esse livro sobre a mentirosa a senhora pode dar à sua
filha, Georgiana, pois é ela quem conta mentiras, e não eu.
A sra. Reed ainda apoiava as mãos no seu trabalho abandonado, e
continuava a fitar friamente meus olhos com os seus, gélidos.
— Que mais você tem a dizer? — perguntou ela, mais no tom com
que alguém se dirigiria a um oponente adulto do que o que comumen-
te se usa com uma criança.
Aqueles olhos, aquela voz, despertaram toda antipatia que eu sen-
tia. Tremendo da cabeça aos pés, tomada por uma emoção ingoverná-
vel, continuei:
— Fico feliz que não seja parente minha. Nunca a chamarei de tia
outra vez enquanto viver. Nunca virei visitá-la quando crescer e, se
alguém me perguntar o que sinto pela senhora, e como me tratou, di-
rei que só pensar na senhora me faz mal e que me tratou com terrível
crueldade.
— Como ousa dizer isso, Jane Eyre?
— Como ouso, sra. Reed? Como ouso? Ouso porque é a verdade. A
senhora acha que eu não tenho sentimentos e que posso viver sem
qualquer migalha de amor e gentileza. Mas não posso viver assim, e a
senhora não tem pena de mim. Eu me lembrarei de como me empur-
rou brusca e violentamente para o quarto vermelho, e me deixou
trancada lá, até o dia de minha morte, mesmo eu estando em agonia,
mesmo gritando enquanto sufocava de aflição: “Misericórdia! Miseri-
córdia, tia Reed!”. E a senhora me fez sofrer esse castigo porque o seu
filho malvado bateu em mim e me derrubou sem nenhum motivo. Eu
vou contar essa exata história a qualquer um que perguntar. As pesso-
as pensam que a senhora é uma boa mulher, mas é má e cruel. A se-
nhora é dissimulada!
Antes mesmo de terminar essa resposta, minha alma começou a se
expandir, a exultar com a sensação mais estranha de liberdade e
triunfo que eu já experimentara. Foi como se uma corrente invisível
tivesse se rompido e eu tivesse atingido, com meus esforços, uma li-
berdade até então inimaginável. Esse sentimento não era injustifica-
do: a sra. Reed parecia assustada; seu bordado tinha deslizado do colo;
ela erguera as mãos e se balançava para a frente e para trás, até retor-
cendo o rosto como se fosse chorar.
— Jane, você está enganada. O que aconteceu? Por que treme tanto?
Gostaria de beber um copo d’água?
— Não, sra. Reed.
— Há algo que deseja, Jane? Eu lhe garanto, eu desejo ser sua amiga.
— Não deseja, não. A senhora disse ao sr. Brocklehurst que eu tenho
má índole, uma tendência a dissimular, mas eu vou contar a todos em
Lowood o que a senhora fez.
— Jane, você não entende dessas coisas. Os defeitos das crianças de-
vem ser corrigidos.
— Dissimulação não é um dos meus defeitos! — exclamei em voz alta
e feroz.
— Mas você é passional, Jane, isso deve admitir. Agora, volte ao
quarto das crianças, minha querida, e deite-se um pouco.
— Eu não sou sua querida e não consigo me deitar. Envie-me logo à
escola, sra. Reed, pois odeio viver aqui.
— De fato, a enviarei logo à escola — murmurou a sra. Reed, sotto
voce. Pegou o bordado e abruptamente deixou a sala.
Fui deixada lá sozinha — a vencedora na arena. Fora a batalha mais
difícil que eu já tinha travado e a primeira vitória que obtive: por um
tempo, fiquei parada no tapete, no lugar que o sr. Brocklehurst ocupa-
ra, e desfrutei da solidão do conquistador. Primeiro, sorri comigo
mesma e senti-me jubilante, mas o prazer foi abafado tão rápido
quanto minha pulsação acelerada. Uma criança não pode brigar com
um adulto como eu fizera, não pode dar vazão desenfreada a seus
sentimentos furiosos como eu fizera com os meus, sem sentir depois
uma pontada de remorso e um calafrio de reação. Uma faixa de char-
neca incendiada, viva, brilhante, devoradora, teria sido um emblema
apropriado da minha mente quando eu acusei e ameacei a sra. Reed; a
mesma faixa, enegrecida e arrasada após a morte das chamas, teria
representado com a mesma exatidão minha condição subsequente,
quando meia hora de silêncio e reflexão mostraram a loucura da mi-
nha conduta e a desolação da minha posição, como quem odeia e é
odiada.
Pela primeira vez, eu havia sentido o gosto da vingança. Assim co-
mo vinho aromático, pareceu, ao ser engolida, quente e revigorante —
mas o ranço metálico e corrosivo me deu a sensação de que eu fora
envenenada. Naquele momento, eu teria ido de bom grado pedir o
perdão da sra. Reed, mas sabia, em parte pela experiência e em parte
por instinto, que seria um modo garantido de fazê-la me repelir com
duplo desprezo, o que consequentemente excitaria mais uma vez cada
impulso turbulento da minha natureza.
Eu preferiria exercitar alguma faculdade melhor do que aquela de
falar com ferocidade; preferiria encontrar alimento para algum senti-
mento menos perverso que a indignação sombria. Peguei um livro —
alguns contos árabes —, me sentei e tentei ler. Não conseguia entender
o que lia, meus próprios pensamentos sempre nadando entre mim e a
página que geralmente achava fascinante. Abri a porta de vidro da sa-
la de desjejum: os arbustos estavam imóveis; nos jardins, a geada es-
cura reinava, intocada por sol ou brisa. Cobri a cabeça e os braços
com a saia do vestido e saí para caminhar em uma parte da proprie-
dade bastante isolada. Porém, não encontrei prazer nas árvores silen-
ciosas, nas pinhas caídas, nas relíquias congeladas do outono, folhas
castanho-avermelhadas, varridas por ventos passados, empilhadas e
coladas pela rigidez. Recostei-me em um portão e olhei para um cam-
po vazio onde nenhuma ovelha pastava, onde a grama baixa estava
enregelada e esbranquiçada. Era um dia muito cinza; um céu muito
nublado, “ameaçando neve”,17 recobria tudo. Flocos caíam dele de vez
em quando e se acomodavam no caminho duro e na campina cinzenta
sem derreter. Fiquei ali parada, uma criança muito infeliz, sussurran-
do para mim mesma:
— O que fazer? O que fazer?
De repente, ouvi uma voz ressonante chamar:
— Srta. Jane! Srta. Jane! Onde está você? O almoço está pronto!
Era Bessie, eu bem sabia, mas não me movi. Seu passo leve aproxi-
mou-se tropeçando pelo caminho.
— Sua pestinha! — disse ela. — Por que não vem quando é chamada?
A presença de Bessie, comparada aos pensamentos que eu vinha
ruminando, pareceu alegre, embora, como de costume, ela estivesse
um pouco irritada. O fato é que, após meu conflito e vitória sobre a
sra. Reed, eu não estava inclinada a me importar muito com a raiva
momentânea da ama, e estava, sim, inclinada a apreciar a leveza jovi-
al de seu coração. Simplesmente a abracei e disse:
— Vamos, Bessie! Não brigue comigo.
A ação foi mais espontânea e destemida do que qualquer outra que
eu já arriscara, e por algum motivo a agradou.
— Você é a uma criança estranha, srta. Jane — disse ela, abaixando
os olhos para mim. — Uma coisinha errante e solitária. Vai ser man-
dada à escola, imagino, não é?
Assenti.
— E não vai ficar triste de deixar a pobre Bessie?
— E por que Bessie se importaria? Ela está sempre brigando comi-
go.
— Porque você é uma coisinha tão esquisita, tímida e assustada. De-
via ser mais ousada.
— Como assim? Para levar mais tabefes?
— Bobagem! Mas você anda muito atarefada, isso é certo. Minha
mãe disse, quando veio me visitar semana passada, que não gostaria
de ter uma filha no seu lugar. Agora, vamos, que tenho boas notícias
para você.
— Não acho que tenha, Bessie.
— Como assim, menina? Que olhos tristonhos você vira para mim!
Ora! A sra. Reed, as jovens damas e o mestre John vão tomar o chá
fora esta tarde e você vai ficar comigo. Vou pedir à cozinheira que lhe
asse um bolinho, e aí você vai me ajudar a revistar suas gavetas, por-
que logo vou ter de arrumar o seu baú. A sra. Reed pretende que você
deixe Gateshead em um ou dois dias, e você vai escolher quais brin-
quedos gostaria de levar.
— Bessie, você precisa prometer não me repreender mais até eu ir
embora.
— Ora, tudo bem. Mas atente para ser uma boa menina e não tenha
medo de mim. Não se assuste se de vez em quando eu for um pouco
brusca, é muito irritante.
— Acho que nunca mais vou ter medo de você, Bessie, porque me
acostumei com você e logo terei outro grupo de pessoas a quem temer.
— Se você as temer, elas não vão gostar de você.
— Como você, Bessie?
— Não é que eu não goste de você. Acredito que gosto mais de você
do que todos os outros.
— Não parece.
— Sua coisinha afiada! Arranjou um novo jeito de falar. O que a dei-
xou tão atrevida e confiante?
— Ora, logo vou estar longe de você, e além disso…
Eu ia falar algo sobre o que se passara entre a sra. Reed e eu, mas
pensei duas vezes e considerei melhor ficar quieta sobre o assunto.
— E por isso está feliz em me deixar?
— De modo algum, Bessie. Na verdade, no momento até estou um
pouco triste.
— No momento! Um pouco! Como fala a minha pequena dama! Ou-
so dizer que, se eu lhe pedisse um beijo, você não me daria. Diria que
preferiria não dar.
— Eu lhe beijarei, e de bom grado. Incline a cabeça.
Bessie se curvou; nós nos abraçamos e eu a segui para dentro da ca-
sa, muito reconfortada. Aquela tarde se passou em paz e harmonia, e
à noite Bessie me contou algumas de suas histórias mais encantadoras
e cantou algumas de suas músicas mais doces. Mesmo para mim, a vi-
da tinha seus vislumbres de sol.
16. Baseado em The Children’s Friend, uma revista mensal para crianças pu-
blicada a partir de 1824 pelo reverendo William Carus Wilson (1791–
1859), que foi a inspiração para o personagem de Brocklehurst. Carus
Wilson foi o fundador da Clergy Daughters’ School, em Lancashire, onde
as quatro irmãs Brontë mais velhas estudaram.
↵
17. No original, “onding on snaw”, dialeto escocês que Charlotte Brontë co-
nheceu nas obras de Walter Scott, mas que entendeu como “ameaçando
nevar” em vez de “nevando pesadamente”.
↵
Capítulo V
A
s cinco horas mal soaram na manhã do dia 19 de janeiro
quando Bessie trouxe uma vela ao meu quartinho e me en-
controu já acordada e quase vestida. Eu tinha levantado meia
hora antes da sua chegada, lavado o rosto e me vestido à meia-lua que
acabara de se pôr, cuja luz entrava pela janela estreita perto da minha
cama. Eu deixaria Gateshead naquele dia em uma diligência que pas-
sava nos portões do chalé às seis da manhã. Bessie era a única pessoa
desperta na casa; ela tinha acendido o fogo no quarto das crianças,
aonde me levou para tomar o café da manhã. Poucas crianças conse-
guem comer quando estão empolgadas pensando em uma viagem, e eu
também não consegui. Bessie, após me pressionar em vão para tomar
algumas colheradas do leite fervido e comer o pão que preparara para
mim, embrulhou biscoitos em um papel e os guardou na minha bolsa,
depois me ajudou com minha peliça e touca, envolveu-se em um xale e
nós duas saímos do quarto. Quando passamos pelo quarto da sra.
Reed, ela perguntou:
— Não quer entrar e se despedir da patroa?
— Não, Bessie. Ela veio até minha cama ontem à noite, quando você
desceu para o jantar, e disse que eu não precisava incomodar nem a ela
nem a meus primos pela manhã, e para lembrar que ela sempre foi
minha melhor amiga, e que deveria falar dela, e ser grata a ela, de
acordo com isso.
— O que você respondeu?
— Nada. Cobri o rosto com a manta e me virei para a parede.
— Isso foi errado, srta. Jane.
— Foi muito certo, Bessie. Sua senhora não foi minha amiga, e sim
minha inimiga.
— Ah, srta. Jane! Não fale assim!
— Adeus, Gateshead! — exclamei enquanto atravessávamos o saguão
e saíamos pela porta da frente.
A lua tinha se posto e estava muito escuro. Bessie carregava uma
lamparina, cuja luz brilhava nos degraus molhados e na estrada de
cascalho encharcada pelo degelo recente. A manhã de inverno estava
cortante e gélida: senti os dentes baterem enquanto caminhava depres-
sa pela entrada de carruagens. Havia uma luz no chalé do porteiro e,
quando o alcançamos, encontramos a esposa dele acendendo a lareira.
Meu baú, que fora levado até lá na noite anterior, estava atado com
corda junto à porta. Faltavam poucos minutos para as seis e, logo que
essa hora bateu, o rumor distante de rodas anunciou a chegada da dili-
gência. Fui até a porta e vi os lampiões se aproximarem depressa atra-
vés da escuridão.
— Ela vai sozinha? — perguntou a esposa do zelador.
— Vai.
— Qual a distância da escola?
— Oitenta quilômetros.
— Que trajeto longo! Fico surpresa que a sra. Reed não tema enviá-la
tão longe sozinha.
A diligência parou — lá estava nos portões, com seus quatro cavalos e
a parte posterior carregada de passageiros. O guarda e o cocheiro ins-
taram pressa, em vozes altas, ergueram meu baú e eu fui tirada do pes-
coço de Bessie, a quem me agarrava e beijava.
— Cuide bem dela! — gritou ela para o guarda, enquanto ele me pu-
xava para dentro.
— Sim, sim! — foi a resposta.
— Vamos — exclamou uma voz. A porta foi batida, e nós seguimos em
frente.
Assim eu fui separada de Bessie e de Gateshead — assim fui arreba-
tada para regiões desconhecidas e, como eu então julgava, remotas e
misteriosas.
Lembro-me pouco da jornada. Sei apenas que o dia me pareceu ter
uma duração sobrenatural e que parecemos viajar por centenas de
quilômetros de estrada. Passamos por diversas cidades e, em uma,
muito grande, a diligência fez uma parada. Os cavalos foram desatrela-
dos e os passageiros desceram para comer. Eu fui carregada para uma
estalagem, onde o guarda queria que eu jantasse; mas, como não tinha
apetite, ele me deixou em um salão imenso com uma lareira de cada
lado, um lustre pendendo do teto e uma pequena galeria vermelha
bem no alto da parede, repleta de instrumentos musicais. Caminhei
um longo tempo por lá, sentindo-me muito estranha e mortalmente
apreensiva de que alguém entraria e me sequestraria — pois eu acredi-
tava em sequestradores, dado que seus feitos constavam com frequên-
cia das crônicas que Bessie contava junto ao fogo. Finalmente, o guarda
retornou. Mais uma vez eu fui acomodada na diligência, meu protetor
sentou-se e soou sua corneta oca, e nós partimos sacolejando pela “rua
pedregosa”18 de L—.
A tarde estava úmida e um tanto enevoada. Conforme o céu escure-
cia, comecei a sentir que estávamos nos afastando muito de Gateshead.
Não passamos mais por cidades; a paisagem mudou e grandes colinas
cinzentas ergueram-se no horizonte. Enquanto o crepúsculo aprofun-
dava-se, descemos para um vale com bosques escuros e, muito depois
de o anoitecer ocultar o panorama, ouvi um vento selvagem soprando
entre as árvores.
Embalada pelo som, por fim adormeci. Não tinha dormido muito
quando a cessação súbita de movimento me despertou. A porta da dili-
gência estava aberta e uma pessoa que parecia uma criada estava pa-
rada ali. Vi seu rosto e roupas à luz dos lampiões.
— Há uma garota chamada Jane Eyre aqui? — perguntou ela.
— Sim — respondi, e fui erguida; meu baú foi entregue e a diligência
seguiu em frente sem perder um segundo.
Eu estava rígida depois de tanto tempo sentada, e atordoada com o
barulho e a movimentação da diligência. Recobrando minhas faculda-
des, olhei ao redor. Chuva, vento e escuridão preenchiam o ar; apesar
disso, distingui vagamente um muro à minha frente e um portão aber-
to. Por esse portão eu passei com minha nova guia, que o fechou e
trancou atrás de si. Dali se via uma casa, ou casas — pois a construção
se estendia ao longe —, com muitas janelas, algumas iluminadas. Subi-
mos por um caminho largo de cascalho, molhando os pés, e fomos ad-
mitidas por uma porta. Em seguida, a criada me conduziu por uma
passagem até uma sala com lareira, onde me deixou sozinha.
Parei para aquecer os dedos congelados perto da chama e olhei ao
redor. Não havia velas, mas a luz tremeluzente da lareira mostrava, a
intervalos, paredes revestidas de papel, tapetes, cortinas e móveis lus-
trosos de mogno. Era uma sala de visitas, menos espaçosa e majestosa
do que a de Gateshead, mas bastante confortável. Eu estava tentando
entender o tema de uma pintura na parede quando a porta se abriu e
uma pessoa carregando uma lamparina entrou, seguida por outra.
A primeira era uma dama alta de cabelo escuro, olhos escuros e testa
pálida e larga. Seu corpo estava parcialmente embrulhado em um xale,
e tinha o semblante grave e a postura ereta.
— A criança é muito nova para ter sido mandada sozinha — disse ela,
depositando a vela na mesa.
Examinou-me atentamente por um ou dois minutos e acrescentou:
— É melhor colocá-la logo na cama, parece cansada. Você está cansa-
da? — perguntou, apoiando a mão no meu ombro.
— Um pouco, senhora.
— E faminta também, sem dúvida. Deixe-a comer antes que ela vá
para a cama, srta. Miller. Essa é a primeira vez que deixa seus pais pa-
ra vir à escola, garotinha?
Expliquei a ela que eu não tinha pais. Ela perguntou há quanto tem-
po eles estavam mortos, depois quantos anos eu tinha, qual era o meu
nome, se eu sabia ler, escrever e bordar um pouco. Então tocou meu
rosto de leve com o indicador e disse que “esperava que eu fosse uma
boa menina” antes de me dispensar com a srta. Miller.
A dama que eu deixara podia ter cerca de vinte e nove anos; aquela
que foi comigo parecia ser alguns anos mais nova. A primeira me im-
pressionou com sua voz, aparência e ares; a srta. Miller era mais co-
mum. Tinha o rosto corado, mas um semblante ansioso, e passos e mo-
vimentos apressados, como alguém que sempre tinha múltiplas tarefas
para cumprir. Ela parecia, de fato, o que depois descobri que era: uma
professora assistente. Conduzida por ela, fui de um cômodo a outro, de
uma passagem a outra, através de um prédio grande e irregular, até
que, emergindo do silêncio completo e um tanto desolado que permea-
va a porção da casa que tínhamos percorrido, deparamo-nos com o
zumbido de muitas vozes e logo entramos em uma sala ampla e longa,
com mesas compridas de abeto, duas de cada lado, em cada uma das
quais ardia um par de velas. Sentadas em bancos ao redor das mesas,
vi uma congregação de garotas de todas as idades, de nove ou dez anos
aos vinte. À luz baça das velas, elas me pareciam inúmeras, embora na
realidade não excedessem oitenta. Todas usavam o mesmo vestido
marrom de lã antiquado e longos aventais de linho. Era a hora de estu-
do; elas estavam concentradas em decorar a tarefa do dia seguinte, e o
zumbido que eu ouvia era a combinação de suas repetições sussurra-
das.
A srta. Miller indicou que eu me sentasse em um banco perto da
porta, e então, indo até a frente do longo salão, exclamou:
— Monitoras, reúnam e guardem os livros!
Quatro garotas altas ergueram-se de mesas diferentes e, dando uma
volta na sala, reuniram os livros e os puseram à parte. A srta. Miller
deu outra ordem:
— Monitoras, peguem as bandejas do lanche!
As garotas altas saíram e logo voltaram, cada uma trazendo uma
bandeja com porções de alguma coisa — eu não sabia o quê — arranja-
das ao redor de um jarro de água e uma xícara. As porções foram dis-
tribuídas; aquelas que assim desejavam, tomaram um gole d’água em
uma xícara compartilhada por todas. Quando chegou a minha vez, eu
bebi, pois estava com sede, mas não toquei na comida, toda a empolga-
ção e o cansaço tendo-me deixado incapaz de comer. De perto, eu via
que era um bolo de aveia fino, dividido em fragmentos.
A refeição concluída, orações foram lidas pela srta. Miller e as tur-
mas saíram em fila dupla até o andar de cima. Arrebatada pela exaus-
tão, eu mal notei que tipo de lugar era o quarto, exceto que, como a sala
de aula, era muito comprido. Naquela noite eu dividiria a cama com a
srta. Miller. Ela me ajudou a me despir e, quando me deitei, espiei as
longas fileiras de camas, cada uma das quais foi rapidamente ocupada
por duas meninas. Mais dez minutos e a única lamparina foi apagada;
entre o silêncio e o breu total, eu adormeci.
A noite passou depressa — eu estava cansada demais até para so-
nhar, e só uma vez acordei e ouvi o vento soprando em rajadas furiosas
e a chuva caindo em torrentes, e percebi que a srta. Miller tinha ocu-
pado o lugar ao meu lado. Quando abri os olhos outra vez, um sino alto
estava tocando; as garotas estavam acordadas e se vestiam. Ainda não
amanhecera, e uma ou duas velas de junco ardiam no quarto. Relutan-
te, eu também me levantei. Fazia um frio cortante, e eu me vesti o me-
lhor que pude, apesar de tremer, e lavei-me quando achei uma bacia
livre — o que não aconteceu rápido, dado que havia apenas uma bacia
para cada seis garotas, em suportes no meio do quarto. Outra vez o si-
no tocou: todas formaram uma fila, em pares, e nessa ordem desceram
as escadas e entraram na sala de aula parcamente iluminada. Ali, as
orações foram lidas pela srta. Miller, que depois exclamou:
— Formem turmas!
Houve um grande tumulto por alguns minutos, durante os quais a
srta. Miller repetidamente exclamou “Silêncio!” e “Ordem!”. Quando a
confusão se acalmou, eu vi que todas tinham se organizado em quatro
semicírculos na frente de quatro cadeiras, que estavam atrás das qua-
tro mesas; todas seguravam livros, e um grande livro, parecido com
uma Bíblia, estava apoiado em cada mesa, diante do assento vazio. Se-
guiu-se uma pausa de alguns segundos, preenchida pelo zumbido bai-
xo e vago do grupo grande. A srta. Miller foi de uma turma à outra, si-
lenciando o som indefinido.
Um sino distante tocou, e três damas imediatamente entraram na
sala, cada uma caminhando até uma mesa e ocupando o seu lugar. A
srta. Miller assumiu a quarta cadeira, que ficava mais perto da porta e
ao redor da qual as garotas menores se reuniram. A essa classe inferior
eu fui chamada, e colocada no lugar mais ao fundo.
Então começaram os trabalhos: a prece do dia foi repetida, depois
certos textos das Escrituras foram recitados, e a eles seguiu-se uma lei-
tura extensa de capítulos da Bíblia que durou uma hora. Quando esse
exercício terminou, o dia tinha amanhecido por completo. O sino infa-
tigável soou pela quarta vez, e as turmas foram reunidas e marcharam
até outra sala para tomar o café da manhã. Como fiquei feliz com a
perspectiva de uma refeição! Àquela altura, estava quase passando mal
de inanição, após comer tão pouco no dia anterior.
O refeitório era um salão amplo e mal iluminado de teto baixo. Em
duas mesas longas fumegavam bacias de alguma coisa quente, que, pa-
ra o meu horror, emanava um odor nada convidativo. Vi uma manifes-
tação universal de descontentamento quando o vapor do repasto al-
cançou as narinas daquelas destinadas a engoli-lo: da vanguarda da
procissão, liderada pelas garotas altas da primeira turma, ergueram-se
as palavras sussurradas:
— Que nojo! O mingau está queimado de novo!
— Silêncio! — disparou uma voz.
Não era a srta. Miller, e sim uma das professoras principais, uma fi-
gura baixa de cabelo escuro, vestida elegantemente, mas com um as-
pecto um pouco taciturno. Ela se acomodou na ponta de uma mesa,
enquanto uma dama mais roliça presidia na outra ponta. Procurei em
vão pela dama que vira na noite anterior, mas não a encontrei. A srta.
Miller ocupou a ponta da mesa onde eu me sentava, e uma senhora es-
tranha, com cara de estrangeira — a professora de francês, como desco-
bri mais tarde —, ocupou o assento correspondente na outra mesa. Dis-
seram uma longa oração de graças e cantaram um hino; em seguida,
uma criada trouxe chá para as professoras e a refeição começou.
Esfomeada e àquela altura muito fraca, devorei uma ou duas colhe-
radas da minha porção sem pensar no gosto, mas, depois que os piores
espasmos da fome se acalmaram, percebi que tinha em mãos uma pa-
pa nauseante: mingau queimado é quase tão ruim quanto batatas po-
dres; a própria fome enoja-se dele. As colheres se moviam devagar; vi
cada garota provar a comida e tentar engoli-la, mas na maioria dos ca-
sos o esforço foi logo abandonado. O café da manhã acabou sem que
ninguém tivesse comido. Após dar graças pelo que não recebemos e
entoar um segundo hino, o refeitório foi evacuado e voltamos à sala de
aula. Eu fui uma das últimas a sair e, ao passar pelas mesas, vi uma
professora pegar uma bacia de mingau e experimentá-lo. Ela olhou pa-
ra as outras. O semblante de todas expressou desgosto e uma delas, a
roliça, sussurrou:
— Que coisa abominável! Que vergonha!
Quinze minutos se passaram antes que as aulas recomeçassem, e
nesse tempo a sala tornou-se um glorioso tumulto, pois era permitido
falar alto e com mais liberdade, e as garotas aproveitavam o privilégio.
As conversas tratavam do desjejum, que todas insultaram com vee-
mência. Coitadinhas! Era o único consolo que tinham. A srta. Miller
era a única professora na sala, e um grupo de garotas mais altas ao seu
redor falavam com gestos sérios e emburrados. Ouvi o nome do sr.
Brocklehurst pronunciado por alguns lábios, ao que a srta. Miller ba-
lançou a cabeça, desaprovadora. No entanto, ela não fez um grande es-
forço para conter a ira geral. Sem dúvida, compartilhava do sentimen-
to.
Um relógio na sala de aula soou as nove; a srta. Miller deixou seu
círculo e, parada no meio da sala, bradou:
— Silêncio! Aos seus assentos!
A disciplina prevaleceu: em cinco minutos, a aglomeração caótica
entrou em ordem e um silêncio comparativo abafou o clamor babélico
de línguas. As professoras titulares pontualmente reassumiram seus
postos; ainda assim, todas pareciam esperar algo. Sentadas em bancos
dos lados das salas, as oitenta garotas aguardavam imóveis e eretas.
Era um grupo esquisito, todas de cabelo liso penteado para trás do ros-
to, sem um único cacho visível, e vestidos marrons, fechados no pesco-
ço e cingidos por uma estreita gola, com bolsinhas de linho (com uma
forma que lembrava a bolsa de um escocês) amarradas na frente da
roupa e fazendo as vezes de bolsa de bordado; e todas, ademais, usan-
do meias de lã e sapatos feitos no campo, com fivelas de bronze. Mais
de vinte das que estavam vestidas dessa forma eram garotas mais ve-
lhas, ou jovens mulheres; as roupas não lhes caíam bem e davam um
ar de estranheza até à mais bonita delas.
Eu ainda as observava e, em intervalos, examinava as professoras —
nenhuma das quais precisamente me agradou, pois a roliça era um
pouco grosseira; a de cabelo preto parecia muito feroz; a estrangeira,
dura e grotesca; e a srta. Miller, coitada!, tinha a face esverdeada, des-
gastada e esfalfada — quando, conforme meu olhar vagava de um rosto
a outro, a escola inteira se ergueu simultaneamente, como se movida
por uma mola comum.
O que estava acontecendo? Eu não ouvira nenhuma ordem e fiquei
confusa. Antes de me recobrar, as turmas novamente se sentaram. Po-
rém, como todos os olhos se voltavam ao mesmo ponto, os meus segui-
ram a direção geral e encontraram a personagem que me recebera na
noite anterior. Ela estava em uma ponta da longa sala, junto à lareira
(pois havia uma lareira de cada lado), e examinou as duas fileiras de
garotas em um silêncio severo. A srta. Miller se aproximou, pareceu
fazer uma pergunta e, recebendo a resposta, voltou ao seu lugar e dis-
se:
— Monitora da primeira turma, pegue os globos!
Enquanto a ordem era obedecida, a dama consultada se moveu len-
tamente pela sala. Suponho que tenho um órgão de veneração19 consi-
derável, pois ainda recordo o assombro e a admiração com que meus
olhos acompanharam seus passos. Vista então, em plena luz do dia, ela
era alta, bela e bem-proporcionada; olhos castanhos, com uma luz
bondosa nas íris, e os finos traços dos cílios longos suavizavam a bran-
cura da testa larga. O cabelo, de um castanho muito escuro, estava
agrupado nas têmporas em cachos redondos, conforme o costume da
época, na qual nem mechas lisas, nem cachos longos estavam em voga;
seu vestido, também seguindo a moda, era de tecido púrpura, suaviza-
do por uma espécie de acabamento em veludo preto ao estilo espanhol.
Um relógio dourado (relógios não eram tão comuns quanto são agora)
reluzia no seu cinto. Que o leitor acrescente, para completar a imagem,
feições refinadas, uma tez, ainda que pálida, límpida, e um ar e postura
imponentes, e terá, ao menos tão claramente quanto palavras podem
criar, uma ideia correta da aparência da srta. Temple — Maria Temple,
nome que mais tarde vi escrito em um livro de orações que me foi con-
fiado para levar à igreja.
A superintendente de Lowood (pois tal era a dama), após sentar-se
diante de um par de globos colocados em uma das mesas, pediu à pri-
meira turma que se aproximasse e começou a dar uma aula de geogra-
fia. As turmas mais baixas foram chamadas pelas outras professoras.
Lições de história, gramática etc. prosseguiram por uma hora; escrita e
aritmética as sucederam, e a srta. Temple deu aulas de música a algu-
mas das garotas mais velhas. A duração de cada aula era medida pelo
relógio, que por fim bateu as doze horas. A superintendente se levan-
tou.
— Tenho uma palavrinha a dizer às pupilas — disse ela.
O tumulto do final das aulas já estava irrompendo, mas acalmou-se
à voz dela, que continuou:
— Esta manhã, vocês receberam um desjejum que não puderam co-
mer e devem estar com fome. Pedi que um almoço de pão e queijo seja
servido a todas.
As professoras olharam para ela com certa surpresa.
— Isso será feito sob minha responsabilidade — acrescentou ela para
as outras, em um tom explanatório, e imediatamente deixou a sala.
O pão e o queijo foram logo trazidos e distribuídos, para o enorme
deleite e alívio de toda a escola. Em seguida, foi dada uma ordem —
“Para o jardim!” — e todas vestiram uma touca de palha áspera, com
faixas de calicô colorido, e uma capa de lã cinza. Eu fui similarmente
equipada e, seguindo o fluxo, saí ao ar livre.
O jardim era uma área ampla, cercada por muros tão altos que blo-
queavam qualquer vislumbre da paisagem circundante. Uma varanda
coberta se estendia de um lado e caminhos largos margeavam um es-
paço central dividido em uma série de pequenos canteiros. Esses can-
teiros eram designados como jardins para as pupilas cultivarem, e cada
um tinha sua encarregada. Quando estivessem cheios de flores, sem
dúvida seriam bonitos, mas, no momento, sendo final de janeiro, via-se
apenas desolação invernal e putrefação marrom. Estremeci enquanto
olhava ao redor: era um dia inclemente para fazer exercícios ao ar li-
vre — não muito chuvoso, mas escurecido por uma fina névoa amare-
lada — e a terra ainda estava encharcada da enxurrada da véspera. As
garotas mais fortes correram pelo jardim, em brincadeiras enérgicas,
mas as meninas mais pálidas e magras se aglomeraram em busca de
abrigo e calor na varanda; entre estas, ouvi frequentemente o som de
tosses secas, conforme a névoa densa penetrava seus corpos trêmulos.
Até então eu não tinha falado com ninguém, e ninguém pareceu re-
parar em mim. Eu estava sozinha, mas me acostumara ao isolamento e
não me sentia muito oprimida. Recostei-me em um pilar da varanda,
puxei o manto cinza com força ao meu redor e, tentando esquecer o
frio que me congelava de fora e a fome não saciada que me remoía por
dentro, dediquei-me a observar e pensar. Minhas reflexões ainda eram
indefinidas e fragmentadas demais para merecer registro: eu mal sabia
onde estava; Gateshead e minha vida passada pareciam ter flutuado a
uma distância imensurável; o presente era vago e estranho, e sobre o
futuro eu não podia fazer qualquer conjectura. Olhei para o jardim ao
redor, que parecia pertencer a um convento, e depois para a casa. Era
um edifício grande, metade do qual parecia cinza e antigo, e a outra
metade mais nova. A parte nova, contendo a sala de aula e os dormitó-
rios, era iluminada por janelas com gelosias e treliças, que davam à
construção um aspecto de igreja. Uma placa de pedra acima da porta
trazia a seguinte inscrição:
instituição lowood
esta ala foi reconstruída em — d.c., por naomi brocklehurst,
de brocklehurst hall, neste cond ad o.
“Brilha vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas
obras e
glorifiquem vosso Pai que está nos céus.” — São Mateus. v. 16.
Eu li essas palavras várias vezes: senti que uma explicação estava con-
tida nelas, mas não era capaz de compreender inteiramente sua im-
portância. Ainda estava ponderando o significado de “Instituição” e
tentando traçar uma conexão entre as primeiras palavras e o versículo
das Escrituras, quando o som de uma tosse logo atrás de mim me fez
virar a cabeça. Vi uma garota sentada em um banco de pedra próximo.
Ela estava curvada sobre um livro, que inspecionava compenetrada.
De onde estava, eu via o título — era Rasselas,20 um nome que me pa-
receu estranho e portanto atraente. Ao virar uma página, ela acabou
olhando para cima e eu lhe perguntei diretamente:
— Seu livro é interessante?
Eu já estava determinada a pedir que me emprestasse um dia.
— Eu gosto — ela respondeu, após um ou dois segundos durante os
quais me observou.
— Do que se trata? — continuei.
Não sei de onde encontrei a coragem de entabular conversa com
uma desconhecida; era um passo contrário à minha natureza e a meus
hábitos. Creio que sua ocupação despertou minha simpatia, pois eu
também gostava de ler, embora minhas leituras fossem frívolas e in-
fantis. Não conseguia digerir ou compreender nada sério ou substanci-
al.
— Pode olhar — respondeu a garota, oferecendo-me o livro.
Eu o tomei; uma breve inspeção convenceu-me de que o conteúdo
era menos instigante que o título: Rasselas parecia enfadonho para o
meu gosto fútil. Eu não vi nada de fadas, nada de gênios, e nenhuma
variedade de imagens coloridas espalhava-se nas páginas de texto
apertado. Devolvi-o a ela. A garota o aceitou em silêncio e, sem dizer
nada, estava para recair na postura estudiosa de antes. Novamente, ar-
risquei incomodá-la.
— Pode me dizer o que significa o texto naquela pedra acima da por-
ta? O que é a Instituição Lowood?
— Esta casa onde você veio morar.
— E por que a chamam de Instituição? É diferente das outras esco-
las?
— É em parte uma escola de caridade. Você e eu, e todas nós aqui,
somos crianças sustentadas por caridade. Imagino que você seja órfã.
Seu pai ou mãe estão mortos?
— Os dois morreram há tanto tempo que nem lembro.
— Bem, todas as garotas aqui perderam um dos pais, ou ambos, e es-
te lugar é uma instituição para educar órfãs.
— Nós não pagamos? Eles nos abrigam a troco de nada?
— Nós pagamos, ou nossos amigos pagam, quinze libras por ano por
cada uma.
— Então por que dizem que somos sustentadas por caridade?
— Porque quinze libras não são suficientes para nos abrigar e educar,
e a deficiência é suprida por doações.
— Quem faz as doações?
— Várias damas e cavalheiros benevolentes na vizinhança e em Lon-
dres.
— Quem foi Naomi Brocklehurst?
— A dama que construiu a parte nova dessa casa, como registra a
placa, e cujo filho supervisiona e dirige tudo aqui.
— Por quê?
— Porque ele é o tesoureiro e administrador do estabelecimento.
— Então a casa não pertence à dama alta que usa um relógio e disse
que íamos comer pão e queijo?
— À srta. Temple? Ah, não! Eu gostaria que pertencesse, mas ela tem
de responder ao sr. Brocklehurst por tudo que faz. O sr. Brocklehurst
compra toda a nossa comida e nossas roupas.
— Ele mora aqui?
— Não, a uns três quilômetros daqui, em uma grande mansão.
— É um homem bom?
— É um pároco e dizem que faz muitas boas ações.
— Você disse que aquela dama alta se chama srta. Temple?
— Isso.
— E as outras professoras?
— Aquela com as faces coradas é a srta. Smith. Ela supervisiona as
costuras e os tecidos, pois nós fazemos nossas próprias roupas, vesti-
dos, peliças e tudo o mais. A de cabelo preto é a srta. Scatcherd. Ela en-
sina história e gramática, e escuta as lições da segunda turma. E aquela
que usa um xale e um lenço amarrado ao lado do corpo com um laço
amarelo é a madame Pierrot. Ela vem de Lisle, na França, e ensina
francês.
— Você gosta das professoras?
— Até que sim.
— Gosta da de cabelo preto, e da madame…? Não sei pronunciar o
nome dela como você.
— A srta. Scatcherd se irrita fácil. Tome cuidado para não ofendê-la.
A madame Pierrot não é má pessoa.
— Mas a srta. Temple é a melhor, não é?
— A srta. Temple é muito boa e muito inteligente. Ela está acima do
resto, porque sabe bem mais do que as outras.
— Você está aqui há muito tempo?
— Dois anos.
— É órfã?
— Minha mãe está morta.
— É feliz aqui?
— Você faz perguntas demais. Eu já lhe dei respostas suficientes por
enquanto, agora quero ler.
Naquele momento soou o chamado para o jantar, e todas entraram
de novo. O odor que enchia o refeitório não era muito mais apetitoso
do que o que havia regalado nossas narinas ao café da manhã. O jantar
foi servido em dois enormes recipientes de estanho, de onde erguia-se
um vapor forte de gordura rançosa. A refeição consistia de batatas in-
sossas e retalhos estranhos de carne dura, misturados e cozinhados
juntos. Dessa mistura, um prato razoavelmente abundante foi designa-
do a cada pupila. Comi o que podia, e questionei-me se a comida seria
assim todos os dias.
Após o jantar, imediatamente voltamos à sala de aula. As lições reco-
meçaram, e continuaram até as cinco.
O único acontecimento relevante da tarde foi que vi a garota com
quem conversara na varanda ser dispensada em desonra de uma aula
de história pela srta. Scatcherd, e receber ordens de ficar em pé no
meio da grande sala de aula. O castigo pareceu-me exageradamente in-
digno, ainda mais para uma garota que parecia ter pelo menos treze
anos. Eu esperava que ela demonstrasse sinais de enorme aflição e
vergonha, mas, para minha surpresa, não chorou, nem corou: calma,
embora séria, ficou imóvel, o alvo central de todos os olhares. Como ela
suporta a punição tão quieta, tão firme?, perguntei-me. Se eu estivesse
em seu lugar, creio que gostaria que a terra se abrisse e me engolisse. Ela
parece estar pensando em algo além do castigo, além da situação: algo
que não está ao seu redor, nem diante dela. Já ouvi falar em sonhar
acordado. Será que ela está sonhando acordada? Seu olhar está fixo no
chão, mas tenho certeza de que não o vê. Sua visão parece voltada para
dentro, penetrando o coração. Ela está olhando para alguma lembran-
ça, creio, não para o que está realmente acontecendo. Que tipo de garota
será que ela é: boa ou malcriada?
Logo após as cinco da tarde, fizemos outra refeição, que consistiu em
uma pequena xícara de café e meia fatia de pão de centeio. Devorei o
pão e bebi o café com prazer, mas teria preferido comer muito mais,
pois ainda estava faminta. Meia hora de recreação se seguiu, depois
mais estudo, e então o copo d’água e a fatia de bolo de aveia, orações e
cama. Assim foi o meu primeiro dia em Lowood.
É
— Isso é curioso — disse eu. — É tão fácil ser cuidadosa.
— Para você, não tenho dúvida que seja. Eu a observei na aula hoje,
e você estava muito atenta; seus pensamentos nunca pareceram vagar
enquanto a srta. Miller explicava a lição e a interrogava. Já os meus
continuamente perambulam. Quando deveria estar escutando a srta.
Scatcherd e decorando com assiduidade tudo que ela diz, muitas vezes
até me esqueço do som da voz dela, caindo em uma espécie de sonho.
Às vezes penso que estou em Northumberland e que os barulhos que
ouço ao redor são o borbulhar de um pequeno riacho que corre atra-
vés de Deepden, perto da nossa casa. E então, quando é minha vez de
responder, preciso ser acordada e, não tendo ouvido nada do que foi
lido porque estava escutando o riacho imaginário, não tenho uma res-
posta pronta.
— Mas você respondeu bem esta tarde.
— Foi puro acaso: o assunto que estávamos estudando me interessa-
va. Esta tarde, em vez de sonhar com Deepden, eu estava me pergun-
tando como um homem que desejava fazer o bem poderia agir de for-
ma tão injusta e tola quanto Charles I agiu às vezes,22 e pensei que era
uma pena que, com a integridade e os escrúpulos dele, não conseguis-
se ver além das prerrogativas da coroa. Se ao menos tivesse sido capaz
de olhar mais longe e ver para onde tendia o que se chama de espírito
da época! Ainda assim, gosto de Charles. Respeito-o e sinto pena dele,
pobre rei assassinado! Seus inimigos eram, sim, piores: derramaram
sangue que não tinham direito de derramar. Como ousaram matá-lo?
Helen estava falando consigo mesma — tinha esquecido que eu não
a compreendia, sendo quase totalmente ignorante do assunto que dis-
cutia. Eu a puxei de volta ao meu nível.
— E quando a srta. Temple ensina você, seus pensamentos também
vagam?
— Na verdade, não. É raro. A srta. Temple geralmente tem algo a di-
zer que é mais interessante que minhas próprias reflexões. Seu modo
de falar é singularmente agradável para mim, e as informações que
ela transmite são muitas vezes exatamente o que desejo obter.
— Bem, então com a srta. Temple você é boa?
— Sou, de uma forma passiva. Não faço nenhum esforço, comporto-
me conforme a inclinação me guia. Não há mérito em ser boa assim.
— Há muito mérito: você é boa com aqueles que são bons com você.
É tudo que eu sempre quis ser. Se as pessoas fossem sempre gentis e
obedientes com aqueles que são cruéis e injustos, os perversos fariam
o que quisessem. Nunca sentiriam medo e portanto jamais mudariam,
só ficariam cada vez piores. Quando somos atacados sem motivo, de-
vemos atacar de volta, com muita força, tenho certeza disso. Com for-
ça suficiente para ensinar a pessoa que nos golpeou a nunca fazer isso
de novo.
— Você vai mudar de ideia, espero, quando ficar mais velha. Por en-
quanto, é apenas uma garotinha ignorante.
— Mas, Helen, sinto que devo odiar aqueles que, não importa o que
eu faça para agradá-los, persistem em desgostar de mim. Preciso re-
sistir a quem me pune injustamente. É tão natural quanto amar aque-
les que me demonstram afeto ou me submeter à punição quando sinto
que é merecida.
— Hereges e tribos selvagens adotam essa doutrina, mas cristãos e
nações civilizadas a rejeitam.
— Como? Eu não entendo.
— A violência não é o melhor modo de superar o ódio, nem a vin-
gança, de reparar o desaforo.
— Então o que é?
— Leia o Novo Testamento e siga o que Cristo fala e como Ele age.
Torne a palavra Dele a sua lei e a conduta Dele, o seu exemplo.
— O que Ele diz?
— Ame seus inimigos, ore por aqueles que a perseguem, faça bem
aos que a odeiam e maltratam.23
— Nesse caso eu precisaria amar a sra. Reed, o que não posso fazer,
e orar pelo filho dela, John, o que é impossível.
Helen Burns então pediu que eu me explicasse, e eu passei a expor,
à minha maneira, a história dos meus sofrimentos e ressentimentos.
Amarga e truculenta quando me inflamava, falei como me sentia, sem
reservas nem concessões.
Helen me ouviu com paciência até o final. Esperei algum comentá-
rio, mas ela não disse nada.
— Bem — perguntei, impaciente —, a sra. Reed não é uma mulher
má e cruel?
— Ela foi dura com você, sem dúvida, porque, entenda, não gosta da
natureza do seu caráter, como a srta. Scatcherd não gosta do meu. Mas
como você se lembra detalhadamente de tudo que ela lhe fez e disse!
Que impressão singularmente profunda a injustiça dela parece ter
deixado no seu coração! Nenhum maltrato deixou uma marca tão for-
te nos meus sentimentos. Você não seria mais feliz se tentasse esque-
cer a severidade dela, assim como as emoções passionais que ela insti-
gava? Parece-me que a vida é curta demais para ficar nutrindo ani-
mosidades ou registrando injustiças. Nós todos somos, e devemos ser,
sobrecarregados com defeitos neste mundo. Mas confio que logo che-
gará um tempo em que nos libertaremos deles ao nos libertar de nos-
sos corpos corruptíveis,24 quando a degradação e o pecado vão cair de
nós junto com este incômodo receptáculo de carne e só a centelha do
espírito vai permanecer: o princípio impalpável da vida e do pensa-
mento, puro como quando deixou o Criador para inspirar a criatura.
Esse espírito vai retornar para sua origem, talvez para novamente ser
transmitido a algum ser mais elevado que o homem, talvez para atra-
vessar gradações de glória, da alma humana pálida até iluminar um
serafim! Certamente, pelo contrário, nunca será permitido que dege-
nere de homem a demônio? Não, não acredito nisso. Tenho outro cre-
do, que ninguém me ensinou e que raramente menciono, mas no qual
eu me regozijo e ao qual me aferro, pois estende esperança a todos e
torna a Eternidade um repouso, um lar majestoso, não um terror e
um abismo. Além disso, com esse credo, faço nítida distinção entre o
criminoso e seu crime, e consigo sinceramente perdoar o primeiro en-
quanto abomino o segundo. Com esse credo, a vingança nunca ator-
menta meu coração, a degradação nunca me repulsa profundamente,
a injustiça nunca me desalenta em excesso. Eu vivo na calma, miran-
do o destino final.
A cabeça de Helen, que se abaixava ao longo do discurso, afundou
mais um pouco quando terminou a frase. Vi pela sua expressão que
ela não queria mais falar comigo, e sim conversar com os próprios
pensamentos. Porém, ela não teve muito tempo para meditação —
uma monitora, uma garota alta e brusca, logo apareceu e exclamou
em um sotaque forte de Cumberland:
— Helen Burns, se não for arrumar sua gaveta e dobrar seus borda-
dos neste exato minuto, vou falar para a srta. Scatcherd ir inspecioná-
la!
Helen suspirou quando seu devaneio se dissipou e, erguendo-se,
obedeceu à monitora sem resposta nem atraso.
21. Félix, governador romano da Judeia, adia por dois anos a consideração
do caso do apóstolo Paulo, que esperava julgamento na prisão (Atos dos
Apóstolos 24:24-27).
↵
22. Charles I (1600–1649), rei da Inglaterra, Escócia e Irlanda, que em 1629
dissolveu o parlamento e governou em um “reinado pessoal” por quase
onze anos.
↵
23. Mateus 5:44.
↵
24. Alusão a 1 Coríntios 15:52: “a trombeta soará, e os mortos ressuscitarão
incorruptíveis, e nós seremos transformados”.
↵
Capítulo VII
M
eu primeiro trimestre em Lowood pareceu durar uma era
— e não foi uma era de ouro, pois envolveu uma luta
exaustiva contra as dificuldades para me acostumar às
novas regras e a tarefas inusitadas. O medo de fracassar nesses aspec-
tos me atormentava mais do que as dificuldades físicas da situação,
embora estas não fossem de se menosprezar.
Durante janeiro, fevereiro e parte de março, a neve pesada e, após
seu degelo, as estradas quase intransponíveis impediram que désse-
mos um passo além dos muros do jardim, exceto para ir à igreja, mas
dentro desses limites éramos obrigadas a passar uma hora ao ar livre
todo dia. Nossas roupas eram insuficientes para nos proteger do frio
severo: não tínhamos botas, a neve penetrava nos sapatos e derretia
neles, e as mãos sem luvas ficavam dormentes e cobertas de frieiras,
assim como os pés. Lembro-me bem do incômodo que me distraía por
conta disso toda tarde, quando meus pés se inflamavam, e da tortura
de enfiar os dedos inchados, sensíveis e rígidos nos sapatos toda ma-
nhã. Além disso, o escasso estoque de comida era angustiante: com o
apetite voraz de crianças em fase de crescimento, mal recebíamos o
suficiente para manter viva uma frágil inválida. Dessa deficiência de
nutrição resultava um abuso que lesava fortemente as pupilas mais
novas: sempre que as garotas mais velhas famintas tinham uma opor-
tunidade, convenciam ou ameaçavam as mais novas a dar-lhes uma
parte da sua porção. Muitas vezes eu dividi entre duas requerentes o
precioso naco de pão de centeio distribuído na hora do chá e, após ce-
der metade do conteúdo da minha xícara de café a uma terceira, en-
goli o resto com um acompanhamento de lágrimas secretas, que a ur-
gência da fome arrancava de mim.
Os domingos foram dias monótonos naquele inverno. Tínhamos de
caminhar cerca de três quilômetros até a Igreja de Brocklebridge, on-
de nosso benfeitor oficiava. Partíamos frias, chegávamos ainda mais,
e, durante a missa matinal, quase ficávamos paralisadas. Era longe
demais para voltar para o jantar, e uma porção de pão e frios, na mes-
ma penúria de nossas refeições habituais, era servida entre as missas.
Ao final da missa da tarde, voltávamos por uma estrada irregular e
exposta aos elementos, onde o cortante vento de inverno, soprando
sobre uma cadeia de picos nevados ao norte, quase esfolava a pele do
rosto.
Lembro-me da srta. Temple caminhando com leveza e rapidez pela
nossa fileira desanimada, com a capa xadrez, que o vento gélido fazia
esvoaçar, apertada ao redor do corpo, e nos encorajando, por preceito
e exemplo, a manter o ânimo e marchar adiante, dizia ela, “como sol-
dados destemidos”. As outras professoras, coitadas, geralmente esta-
vam infelizes demais para tentar encorajar as meninas.
Como ansiávamos pela luz e pelo calor de um fogo ardente quando
voltávamos! Porém, ao menos às pequenas, isso era negado: cada la-
reira na sala de aula era imediatamente cercada por uma fileira dupla
das garotas mais velhas, e atrás delas as mais novas se agachavam em
grupos, envolvendo os braços desnutridos nos aventais.
Certo consolo chegava na hora do chá, na forma de uma dose dupla
de pão — uma fatia inteira, em vez de metade — com a adição deliciosa
de uma fina camada de manteiga: era o agrado semanal pelo qual to-
das ansiávamos, de um domingo a outro. Eu geralmente conseguia re-
servar metade desse abundante repasto para mim mesma, mas era in-
variavelmente forçada a entregar o resto.
A noite de domingo era passada repetindo, de cor, o Catecismo da
Igreja, e o quinto, sexto e sétimo capítulos do Evangelho de São Ma-
teus, e ouvindo um longo sermão lido pela srta. Miller, cujos bocejos
irreprimíveis atestavam o seu cansaço. Um interlúdio frequente des-
sas apresentações era a encenação do papel de Eutico25 por meia dú-
zia das garotas menores, que, tomadas pelo sono, caíam, se não do ter-
ceiro andar, ao menos da quarta turma, e eram erguidas semimortas.
O remédio era empurrá-las até o centro da sala e obrigá-las a ficar lá
À
até o final do sermão. Às vezes seus pés vacilavam e elas desabavam
em uma pilha de membros, sendo então sustentadas pelas banquetas
altas das monitoras.
Ainda não mencionei as visitas do sr. Brocklehurst. De fato, o cava-
lheiro ficou longe de casa durante a maior parte do primeiro mês após
minha chegada, talvez prolongando a estadia com seu amigo, o arce-
diácono. Sua ausência era um alívio para mim; nem preciso dizer que
eu tinha meus próprios motivos para temer sua vinda. No entanto,
por fim ele veio.
Uma tarde (eu só estava em Lowood fazia três semanas), enquanto
eu estava sentada com uma pequena lousa nas mãos, tentando resol-
ver uma divisão longa, meus olhos, erguidos distraidamente à janela,
captaram o vislumbre de uma figura de passagem. Reconheci quase
instintivamente aquela silhueta magra, e quando, dois minutos depois,
toda a escola, incluindo as professoras, se ergueu en masse, não foi ne-
cessário olhar para verificar quem cumprimentávamos dessa forma.
Passos largos cruzaram a sala de aula e pouco depois, ao lado da srta.
Temple, que também tinha se erguido, via-se a mesma coluna preta
que havia franzido o cenho para mim de modo tão agourento no tape-
te diante da lareira em Gateshead. Olhei de soslaio para aquela peça
de arquitetura. Eu tinha razão: era o sr. Brocklehurst, de sobretudo
abotoado, parecendo mais alto, estreito e rígido do que nunca.
Eu tinha meus motivos para ficar horrorizada com a visita: recor-
dava-me bem demais das insinuações pérfidas feitas pela sra. Reed
sobre minha disposição etc., e da promessa feita pelo sr. Brocklehurst
de inteirar a srta. Temple e as professoras da minha natureza perver-
sa. Aquele tempo todo, eu vinha temendo a concretização da promes-
sa — diariamente aguardava o “Advento”26 daquele homem, cujas in-
formações a respeito da minha vida e relações passadas iriam para
sempre me tachar de criança má. Agora, cá estava ele. Ao lado da srta.
Temple, falava em voz baixa em seu ouvido, e eu não duvidava de que
fizesse revelações sobre minha vilania. Observei a expressão dela com
uma ansiedade dolorosa, esperando a cada momento ver os globos es-
curos voltarem para mim um olhar de repugnância e desprezo. Tam-
bém tentei ouvir e, como por acaso estava sentada perto da frente da
sala, captei a maior parte do que ele disse. O conteúdo me aliviou da
apreensão mais imediata.
— Suponho, srta. Temple, que as meadas que comprei em Lowton
vão servir. Ocorreu-me que seria a qualidade ideal para as camisas de
calicó, e selecionei as agulhas adequadas para o trabalho. A senhorita
pode informar à srta. Smith que eu esqueci de escrever um memoran-
do sobre as agulhas de cerzir, mas ela receberá alguns documentos na
semana que vem, e não deve, sob hipótese alguma, distribuir mais do
que uma por vez a cada pupila. Se tiverem mais, elas terão mais chan-
ces de perdê-las por descuido. E, ah, madame! Gostaria que as meias
de lã fossem mais bem cuidadas! Quando estive aqui da última vez,
entrei no jardim da cozinha e examinei as roupas secando no varal, e
havia uma série de meias pretas em péssimo estado de conservação.
Pelo tamanho dos buracos, tive certeza de que não foram bem remen-
dadas de tempos em tempos.
Ele fez uma pausa.
— Suas orientações serão seguidas, senhor — disse a srta. Temple.
— E, senhorita — continuou ele —, a lavadeira me disse que algumas
das garotas usam duas golas limpas por semana. É demais, as regras
as limitam a uma.
— Acho que posso explicar essa circunstância, senhor. Agnes e Ca-
therine Johnstone foram convidadas a tomar chá com alguns amigos
em Lowton na quinta-feira passada, e eu lhes dei permissão de vestir
golas limpas para a ocasião.
O sr. Brocklehurst assentiu.
— Bem, dessa vez podemos relevar, mas, por favor, não deixe virar
um hábito. E há outra coisa que me surpreendeu: descobri, ao inspe-
cionar as contas com a governanta, que um almoço consistindo de pão
e queijo foi servido duas vezes às garotas durante a quinzena passada.
Como é possível? Examino os regulamentos e não vejo menção a ne-
nhuma refeição chamada almoço. Quem introduziu essa inovação? E
pela autoridade de quem?
— Devo me responsabilizar pela circunstância, senhor — respondeu
a srta. Temple. — O café da manhã estava tão mal preparado que as
pupilas não puderam comê-lo de forma alguma, e não ousei permitir
que elas fizessem jejum até a hora do jantar.
— Senhorita, escute-me por um instante. Está ciente de que minha
intenção ao educar essas garotas não é acostumá-las a hábitos de luxo
e indulgência, mas torná-las resistentes, pacientes, e abnegadas. Se
ocorrer alguma pequena decepção acidental do apetite, como uma re-
feição estragada ou a falta ou excesso de tempero, o incidente não de-
ve ser neutralizado substituindo o conforto perdido por algo mais de-
licado, dessa forma mimando o corpo e invalidando a meta desta ins-
tituição. Deve-se valer da circunstância para promover a edificação
espiritual das pupilas, encorajando-as a demonstrar tenacidade sob a
privação temporária. Não seria inoportuno fazer um breve discurso
nessas ocasiões, no qual uma instrutora judiciosa aproveitaria a opor-
tunidade para se referir aos sofrimentos dos primeiros cristãos, aos
tormentos dos mártires, às exortações do nosso amado Senhor, que
convocou Seus discípulos a tomar a cruz e segui-Lo, aos Seus avisos
de que o homem não deve subsistir apenas à base de pão, mas da pa-
lavra que procede da boca de Deus, às Suas consolações divinas,
“bem-aventurados os que têm fome ou sede de Deus”.27 Ah, senhorita,
quando coloca pão e queijo na boca dessas crianças, em vez de mingau
queimado, pode até alimentar seus corpos vis, mas não está pensando
em como priva de alimento suas almas imortais!
O sr. Brocklehurst novamente pausou, talvez dominado por senti-
mentos. A srta. Temple tinha abaixado a cabeça quando ele começara
a falar, mas agora olhava para a frente, e seu rosto, naturalmente páli-
do como mármore, pareceu assumir também a frieza e fixidez do ma-
terial — especialmente a boca, tão fechada que teria sido preciso o cin-
zel de um escultor para abri-la, e a testa, que aos poucos se assentou
em uma severidade pétrea.
No meio-tempo, o sr. Brocklehurst, parado diante da lareira com as
mãos atrás das costas, majestosamente examinou toda a escola. De re-
pente piscou, como se tivesse se deparado com algo que deslumbrou
ou chocou sua vista. Virando-se, disse em uma voz mais acelerada do
que usara até então:
— Srta. Temple, srta. Temple, quem… quem é aquela garota com ca-
belo cacheado? Cabelo ruivo, senhorita, cacheado, inteiro cacheado?
Estendendo a bengala, ele apontou a medonha visão, com a mão
tremendo.
— É Julia Severn — respondeu a srta. Temple, em uma voz baixíssi-
ma.
— Julia Severn, senhorita! E por que ela, ou qualquer outra garota,
está com o cabelo cacheado? Por que, desafiando cada preceito e prin-
cípio desta casa, ela se conforma ao mundo tão abertamente, aqui, em
um estabelecimento evangelizador e de caridade, e mantém os cabelos
cacheados?
— O cabelo de Julia é naturalmente cacheado — respondeu a srta.
Temple, em uma voz ainda mais baixa.
— Naturalmente! Sim, mas não devemos nos resignar à natureza:
desejo que essas garotas sejam filhas da Graça. E por que tanta abun-
dância? Já intimei diversas vezes que desejo que o cabelo delas seja
penteado rente à cabeça, com modéstia e simplicidade. Srta. Temple,
o cabelo daquela garota deve ser inteiramente cortado. Enviarei um
barbeiro amanhã. E vejo outras que têm tal excrescência excessiva.
Aquela garota alta, ordene-lhe que se vire. Diga a toda a primeira tur-
ma para se levantar e virar o rosto para a parede.
A srta. Temple passou o lenço sobre os lábios, como se quisesse sua-
vizar o sorriso involuntário que os curvou. Deu a ordem, entretanto,
e, quando a primeira turma entendeu o que era exigido, as garotas
obedeceram. Reclinando-me um pouco no banco, vi os olhares e care-
tas com os quais comentaram a manobra. Era uma pena que o sr.
Brocklehurst não as visse também: talvez tivesse sentido que, inde-
pendentemente do que pudesse fazer com o exterior do copo e do pra-
to, o interior estava mais fora do alcance de sua interferência do que
ele imaginava.28
Ele perscrutou o inverso desses medalhões vivos por cerca de cinco
minutos, e então pronunciou seu julgamento. As seguintes palavras
caíram como uma sentença de morte:
— Todas as tranças devem ser cortadas.
A srta. Temple pareceu prestes a protestar.
— Senhorita — ele insistiu —, eu sirvo a um Mestre cujo reino não é
deste mundo.29 Minha missão é extinguir nessas garotas as luxúrias
da carne, ensiná-las a se vestir com modéstia e sobriedade, não a usar
o cabelo trançado e roupas caras, e cada uma das moças diante de nós
tem o cabelo torcido em tranças que a própria vaidade poderia ter fei-
to. Repito: elas devem ser cortadas. Pense no tempo perdido, no…
Nesse ponto, o sr. Brocklehurst foi interrompido: três outras visi-
tantes entraram na sala. As damas deveriam ter chegado um pouco
antes para ouvir seu sermão sobre as roupas, pois estavam esplendi-
damente vestidas com veludo, seda e peles. As duas mais jovens do
trio (belas garotas de dezesseis e dezessete anos) usavam chapéus de
pele de castor cinza, conforme a moda da época, encimados por plu-
mas de avestruz, e por baixo da aba do adereço elegante caía uma
profusão de mechas elaboradamente cacheadas. A senhora mais velha
estava embrulhada em um xale de veludo caro, enfeitado com pele de
arminho, e na testa usava uma franja falsa com cachos ao estilo fran-
cês.
Essas damas, por serem a sra. e as srtas. Brocklehurst, foram rece-
bidas com deferência pela srta. Temple e conduzidas a lugares de
honra na frente da sala. Pelo que entendi, tinham chegado de carrua-
gem, com seu parente, o reverendo, e vinham conduzindo uma visto-
ria minuciosa dos quartos no andar superior enquanto o sr. Brockle-
hurst tratava de negócios com a governanta, interrogava a lavadeira e
fazia um sermão à superintendente. Começaram, então, a dirigir co-
mentários e advertências diversas à srta. Smith, encarregada das rou-
pas de cama e da inspeção dos dormitórios, mas não tive tempo de
ouvir o que elas disseram — outras questões distraíram e prenderam
minha atenção.
Até então, enquanto ouvia a discussão entre o sr. Brocklehurst e a
srta. Temple, eu não tinha deixado de tomar precauções para proteger
minha segurança pessoal, que supus estar garantida se eu pudesse
apenas evitar ser notada. Com tal propósito, recuara bastante no ban-
co e, enquanto parecia ocupada com meus cálculos, segurava a lousa
de maneira a esconder meu rosto. Eu poderia ter passado despercebi-
da se a lousa traidora não tivesse de alguma forma escorregado da
mão e caído com um estalo alto, imediatamente atraindo todos os
olhares para mim. Soube então que estava tudo acabado e, enquanto
me curvava para coletar os dois fragmentos da lousa, reuni forças pa-
ra enfrentar o pior. E ele chegou.
— Uma garota descuidada! — exclamou o sr. Brocklehurst, seguido
imediatamente por: — Vejo que é a nova pupila. — E antes que eu pu-
desse puxar um fôlego: — Não devo esquecer que tenho algo a dizer
sobre ela. — Em seguida, em voz alta, e quão alta me pareceu: — Que a
menina que quebrou a lousa dê um passo à frente!
Por vontade própria, eu não poderia ter me movido — estava para-
lisada. Porém, as duas garotas mais velhas sentadas ao meu lado me
puxaram de pé e me empurraram na direção do temido juiz, e então a
srta. Temple gentilmente me acompanhou até parar diante dele, e ou-
vi seu conselho sussurrado:
— Não tenha medo, Jane, eu vi que foi um acidente. Você não será
punida.
O sussurro gentil perfurou meu coração como uma adaga.
Daqui a um minuto ela vai me desprezar por ser hipócrita, pensei, e
uma pontada de fúria contra Reed, Brocklehurst e companhia marte-
lou meus pulsos diante daquela convicção. Eu não era nenhuma He-
len Burns.
— Pegue aquela banqueta — disse o sr. Brocklehurst, apontando um
assento muito alto do qual uma monitora tinha acabado de se levan-
tar. Ele foi trazido. — Coloque a menina nele.
Eu fui posta lá, não sei por quem; não estava em condições de repa-
rar em detalhes. Só estava ciente de que tinham me erguido até a al-
tura do nariz do sr. Brocklehurst, que ele estava a menos de um metro
de mim, e que um borrão de capas de seda laranja e púrpura e uma
nuvem de plumagem prateada estendia-se e ondulava abaixo de mim.
O sr. Brocklehurst pigarreou.
— Senhoras — disse ele, virando-se à família —, srta. Temple, profes-
soras e meninas, estão vendo esta garota?
Claro que estavam, pois eu senti seus olhos apontados como um
raio de sol concentrado contra minha pele queimada.
— Vejam que ela ainda é jovem, observem que ela possui a figura
ordinária da infância. Deus graciosamente lhe deu a forma que deu a
todos nós; nenhuma deformidade óbvia indica uma mácula no seu ca-
ráter. Quem pensaria que o Maligno já encontrou nela uma criada e
agente? No entanto, sinto dizer que é o caso.
Houve uma pausa, na qual eu comecei a controlar os meus nervos e
sentir que o Rubicão30 fora atravessado. A provação, que não podia
mais ser evitada, deveria ser firmemente suportada.
— Minhas queridas crianças — prosseguiu o
pároco de mármore preto, em tom comovente
—, esta é uma ocasião triste e melancólica,
pois é meu dever informá-las de que esta ga-
rota, que poderia ser um dos cordeiros de
Deus, é uma pequena réproba: não um mem-
bro do verdadeiro rebanho, mas evidente-
mente uma intrusa e forasteira. Vocês devem
manter-se alertas contra ela; devem rejeitar o
exemplo dela; se necessário, evitem a sua
companhia, excluam-na de seus exercícios e a
afastem de suas conversas. Professoras, vocês
devem vigiá-la: fiquem de olho nos movi-
mentos dela, avaliem bem suas palavras,
perscrutem suas ações, castiguem o corpo de-
la para salvar a sua alma. Se, é claro, tal sal-
vação for possível, pois (e minha língua vacila
ao lhes contar) esta garota, esta criança, esta
nativa de uma terra cristã, pior do que muitos
hereges que fazem suas preces a Brahma e
ajoelham-se diante de Jagannath… esta garo-
ta é uma mentirosa!
Seguiu-se então uma pausa de dez minutos,
durante a qual eu, àquela altura em perfeita posse das minhas facul-
dades, observei todas as Brocklehurst pegarem seus lenços e levarem-
nos aos olhos, enquanto a dama mais velha balançava-se para a frente
e para trás e as duas mais jovens sussurravam:
— Que chocante!
O sr. Brocklehurst prosseguiu:
— Isso eu descobri com a benfeitora dela, a pia e caridosa dama que
a adotou quando ficou órfã, que a criou como sua própria filha e cuja
gentileza, cuja generosidade, esta infeliz garota recompensou com
uma ingratidão tão terrível, tão pavorosa, que por fim sua excelente
tia foi obrigada a afastá-la dos próprios filhos, temendo que o exemplo
perverso contaminasse a pureza deles. Ela foi enviada para cá para
ser curada, como os judeus de antigamente enviavam seus enfermos
para o tanque de Betesda; e professoras, superintendente, suplico-lhes
que não permitam que as águas fiquem estagnadas ao redor dela.31
Com aquela sublime conclusão, o sr. Brocklehurst ajustou o botão
mais alto do sobretudo, murmurou algo à família, que se levantou, fez
uma mesura à srta. Temple e então todos os importantes personagens
deixaram a sala. Virando-se na porta, meu juiz disse:
— Que ela permaneça mais meia hora nessa banqueta e que nin-
guém fale com ela pelo resto do dia.
Lá estava eu, então, erguida; eu, que dissera que não suportaria a
vergonha de ficar de pé no meio da sala, estava exposta à visão de to-
das em um pedestal de infâmia. Quais eram minhas sensações, ne-
nhuma língua poderia descrever. Porém, assim que todas elas se er-
gueram, roubando meu fôlego e comprimindo minha garganta, uma
garota aproximou-se e passou por mim, erguendo os olhos ao fazê-lo.
Que luz estranha os inspirava! Que sensação extraordinária me atra-
vessou à visão daquele raio! Como o sentimento desconhecido me deu
forças! Era como se um mártir, um herói, tivesse passado por um es-
cravo ou vítima e compartilhado sua força com ele. Controlei minha
histeria crescente, ergui a cabeça e mantive-me firme na banqueta.
Helen Burns fez alguma pergunta trivial sobre as tarefas para a srta.
Smith, foi repreendida pela banalidade da questão, voltou ao lugar e
sorriu para mim de novo ao passar. Que sorriso! Lembro ainda hoje, e
sei que foi a emanação de um intelecto superior, da verdadeira cora-
gem; ele iluminou suas feições distintas, seu rosto esguio e seus olhos
cinza e fundos, como o reflexo do aspecto de um anjo. No entanto, na-
quele momento Helen Burns usava no braço a “insígnia da desor-
dem”; menos de uma hora antes, eu a ouvira ser condenada pela srta.
Scatcherd a um jantar de pão e água no dia seguinte, porque tinha
derrubado tinta em um exercício enquanto o copiava. Tal é a natureza
imperfeita do homem! Tais manchas encontram-se mesmo no disco
do planeta mais limpo, e olhos como os da srta. Scatcherd só conse-
guem ver esses míseros defeitos, permanecendo cegos diante do res-
plendor completo do orbe.
25. Jovem que adormece durante uma pregação de Paulo e acaba caindo do
terceiro andar, mas é salvo pelo apóstolo (Atos dos Apóstolos 20:7-12).
↵
26. Referência à crença cristã no Segundo Advento ou Segunda Vinda de
Cristo durante o Juízo Final.
↵
27. Brocklehurst alude a Mateus 4:4 (“Nem só de pão viverá o homem, mas
de toda a palavra que sai da boca de Deus”) e ao sermão da montanha,
em Mateus 5:6 (“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,
porque eles serão fartos”).
↵
28. Alusão a Mateus 23:25 (“Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois
que limpais o exterior do copo e do prato, mas o interior está cheio de
rapina e de intemperança”).
↵
29. Referência à resposta de Jesus a Pilatos durante seu julgamento, em Jo-
ão 18:36 (“O meu reino não é deste mundo”).
↵
30. Referência ao episódio em que Júlio César cruzou este rio com um
exército no ano de 49 a.C., desafiando o senado e tornando um conflito
inevitável. A expressão “cruzar o Rubicão” significa passar de um ponto
sem retorno.
↵
31. Local onde Jesus curou um homem que estava doente havia trinta e oito
anos (João 5:2-13). Os enfermos deviam aguardar o “movimento da
água”, isto é, a chegada de um anjo, para serem curados.
↵
Capítulo VIII
A
ntes que a meia hora se concluísse, soaram as cinco horas.
As turmas foram dispensadas e todas entraram no refeitório
para o chá. Arrisquei-me a descer. O crepúsculo já caíra,
profundo, então me retirei para um canto e sentei-me no chão. O feiti-
ço pelo qual eu estivera até então sustentada começou a dissolver-se, e
a reação tomou o seu lugar. Tão esmagador foi o sofrimento que me
tomou, que desabei, prostrada com o rosto no chão. Então chorei: He-
len Burns não estava ali; nada me sustentava; deixada por minha pró-
pria conta, me entreguei e deixei as lágrimas encharcarem o assoalho.
Eu tivera a intenção de ser tão boa e realizar tanto em Lowood — de
fazer muitas amigas, merecer respeito e receber afeto. Já tinha feito
um progresso visível: naquela manhã mesmo, ficara no topo da minha
turma, a srta. Miller havia me elogiado calorosamente, a srta. Temple
sorrira com aprovação para mim e prometera me ensinar a desenhar
e me deixar aprender francês, se eu continuasse a evoluir de forma
parecida nos dois meses seguintes. E eu ainda fora bem recebida pelas
minhas colegas, tratada como igual pelas da minha própria idade e
não maltratada por ninguém. Porém, lá estava eu novamente, arrasa-
da e humilhada. Poderia erguer-me outra vez?
Nunca, pensei, e desejei ardentemente morrer. Enquanto soluçava
esse desejo com palavras entrecortadas, alguém se aproximou. Ergui-
me com um susto. Helen Burns estava outra vez perto de mim; as bra-
sas no fogo só eram suficientes para mostrá-la atravessando a sala
longa e deserta. Ela trouxera meu pão e café.
— Vamos, coma um pouco — instou, mas recusei ambos, sentindo
que, naquele estado, uma gota ou uma migalha teria me engasgado.
Helen me examinou, provavelmente surpresa: eu não conseguia
controlar minha agitação, por mais que tentasse, e continuei chorando
alto. Ela sentou-se no chão perto de mim, abraçou os joelhos e apoiou
a cabeça neles. Naquela posição, permaneceu tão silenciosa quanto
um indiano. Eu falei primeiro.
— Helen, por que você faz companhia a uma garota que todo mundo
acredita ser uma mentirosa?
— Todo mundo, Jane? Ora, só há oitenta pessoas que a ouviram ser
chamada assim, e o mundo contém centenas de milhões.
— Mas o que eu tenho a ver com esses milhões? As oitenta que eu
conheço me desprezam.
— Você está enganada, Jane. Provavelmente ninguém na escola a
despreza nem odeia. Muitas, tenho certeza, sentem pena de você.
— Como podem sentir pena de mim depois do que o sr. Brockle-
hurst disse?
— O sr. Brocklehurst não é um deus, nem um homem nobre e admi-
rado. Ele é malquisto aqui e nunca fez nada para despertar o nosso
afeto. Se a tivesse tratado como uma favorita, você teria encontrado
inimigas, declaradas ou ocultas, por toda a parte. Mas, dada a situa-
ção, a maioria das garotas lhe demonstraria compaixão, se ousasse. As
professoras e pupilas podem olhá-la friamente por um ou dois dias,
mas sentimentos amistosos se escondem em seus corações e, se você
perseverar em ir bem nos estudos, esses sentimentos logo ficarão ain-
da mais evidentes após a supressão temporária. Além disso, Jane…
Ela fez uma pausa.
— O que foi, Helen? — perguntei, tocando a mão dela.
Ela esfregou meus dedos gentilmente para esquentá-los e conti-
nuou:
— Mesmo se o mundo todo a odiasse e acreditasse que é perversa,
enquanto sua própria consciência a aprovasse e absolvesse de toda
culpa, você não estaria sem amigos.
— Não, eu sei que pensaria bem de mim mesma, mas isso não é su-
ficiente. Se os outros não me amarem, eu preferiria morrer a viver.
Não suportaria ser solitária e odiada, Helen. Escute, para ganhar um
pouco de afeto verdadeiro de você, ou da srta. Temple, ou de qualquer
outra que eu realmente amasse, eu me submeteria a quebrar o osso do
meu braço, ou ser jogada por um touro, ou levar um coice de um ca-
valo ou deixá-lo bater o casco no meu peito…
— Pare, Jane! Você pensa demais no amor dos seres humanos, é im-
pulsiva demais, veemente demais. A mão soberana que criou seu cor-
po e o encheu de vida forneceu-lhe outros recursos além do seu eu
débil ou de criaturas tão débeis quanto você. Para além desta terra e
da raça dos homens, há um mundo invisível e um reino de espíritos.
Esse mundo está ao nosso redor, pois existe em toda parte, e esses es-
píritos nos vigiam, pois recebem ordens de proteger, e, se estivésse-
mos morrendo de dor e vergonha, se o desdém nos golpeasse por to-
dos os lados e o ódio nos esmagasse, os anjos veriam nossa tortura e
reconheceriam nossa inocência (se formos inocentes, como sei que vo-
cê é da acusação que o sr. Brocklehurst repetiu, fraca e pomposamen-
te, de segunda mão da sra. Reed, pois vi a sinceridade em seus olhos
ardentes e seu semblante honesto), e Deus aguarda apenas a separa-
ção do espírito e da carne para nos coroar com uma recompensa com-
pleta. Por que, então, jamais desabaríamos, sobrecarregados pela afli-
ção, se a vida termina tão rápido e a morte é um caminho tão certeiro
à felicidade… à glória?
Fiquei em silêncio — Helen tinha me acalmado —, mas na tranquili-
dade que ela transmitia havia uma nota de tristeza inexprimível. Re-
cebi uma impressão de pesar enquanto ela falava, mas não sabia dizer
de onde se originava, e quando, após terminar, ela começou a respirar
um pouco depressa e a tossir uma tosse breve, temporariamente es-
queci meus próprios sofrimentos para entregar-me a uma vaga preo-
cupação com ela.
Apoiando a cabeça no ombro de Helen, eu a abracei pela cintura.
Ela me puxou para perto e descansamos em silêncio. Não fazia muito
tempo que estávamos sentadas assim quando outra pessoa entrou na
sala. Algumas nuvens pesadas, varridas do céu por um vento ascen-
dente, haviam exposto a lua, e a luz, entrando por uma janela próxi-
ma, caiu completamente sobre nós e a figura que se aproximava, que
reconhecemos de imediato como a srta. Temple.
— Vim justamente para encontrá-la, Jane Eyre — disse ela. — Quero
falar com você no meu quarto e, como Helen Burns está com você, ela
também pode vir.
Nós fomos; seguindo a superintendente, tivemos de atravessar algu-
mas passagens complexas e subir uma escada antes de alcançar o
quarto dela, que incluía uma boa lareira e tinha um aspecto alegre. A
srta. Temple disse a Helen Burns para se sentar em uma poltrona bai-
xa de um lado da lareira e, ocupando a outra, chamou-me para o seu
lado.
— Acabou de chorar? — perguntou ela, olhando para o meu rosto. —
Já extravasou toda a mágoa?
— Receio que jamais farei isso.
— Por quê?
— Porque fui injustamente acusada, e a senhora e todo mundo agora
vão pensar que sou perversa.
— Nós vamos pensar que você é o que se provar ser, minha criança.
Continue agindo como uma boa menina e vai me satisfazer.
— Vou, srta. Temple?
— Vai — prometeu ela, me abraçando. — Agora me diga quem é a da-
ma que o sr. Brocklehurst chamou de sua benfeitora.
— A sra. Reed, esposa do meu tio. Meu tio morreu e me deixou aos
cuidados dela.
— Então ela não a adotou por vontade própria?
— Não, senhora, ela não ficou feliz em fazê-lo. Mas meu tio, como
ouvi os criados comentarem com frequência, a fez prometer antes de
morrer que sempre cuidaria de mim.
— Bem, Jane, você sabe, e se não souber lhe direi, que quando um
criminoso é acusado, sempre tem o direito de falar em própria defesa.
Você foi acusada de mentir, então se defenda para mim o melhor pos-
sível. Diga o que quer que sua memória sugira como verdadeiro, mas
não acrescente nem exagere nada.
Eu determinei, no fundo do coração, que seria muito moderada,
muito correta. E, após refletir por alguns minutos a fim de ordenar de
modo coerente o que tinha a dizer, contei-lhe toda a história da minha
triste infância. Exaurida pela emoção, minhas palavras foram mais
comedidas do que geralmente eram quando eu tratava daquele triste
tema e, atentando para o aviso de Helen contra a indulgência do res-
sentimento, infundi na narrativa bem menos bile e amargura que de
costume. Contida e simplificada dessa forma, a história soou mais crí-
vel. Eu senti, enquanto prosseguia, que a srta. Temple acreditava
completamente em mim.
Ao longo da história, mencionei que o sr. Lloyd fora me ver após o
meu acesso, pois eu nunca esquecera o que — para mim — fora o ater-
rorizante episódio do quarto vermelho. Ao detalhá-lo, minha agitação
não podia deixar de irromper em algum grau, pois nada suavizaria
em minha memória o espasmo de agonia que apertara meu coração
quando a sra. Reed rejeitara minha súplica desesperada por miseri-
córdia e me trancara pela segunda vez no cômodo escuro e assombra-
do.
Por fim, terminei. A srta. Temple me observou em silêncio por al-
guns minutos, e então disse:
— Conheço um pouco o sr. Lloyd. Escreverei a ele e, se a resposta
que me der concordar com sua declaração, você será publicamente
inocentada de todas as imputações. Ao meu ver, Jane, você já está ino-
centada.
Ela me beijou e, ainda me mantendo ao seu lado (onde eu estava
muito satisfeita, pois obtinha um prazer infantil da contemplação do
seu rosto, suas roupas, um ou dois ornamentos que usava, sua testa al-
va, sua massa de cachos lustrosos e seus olhos escuros brilhantes), ela
passou a falar com Helen Burns.
— Como está hoje, Helen? Tossiu muito durante o dia?
— Acho que não muito, senhorita.
— E a dor no peito?
— Está um pouco melhor.
A srta. Temple se levantou, tomou a mão dela e conferiu a sua pul-
sação antes de voltar ao assento. Enquanto se acomodava, eu a ouvi
suspirar baixinho. Ela ficou pensativa por alguns minutos, até que,
despertando, disse alegremente:
— Vocês duas são minhas visitantes esta noite, e devo tratá-las de
acordo.
Ela tocou o sino.
— Barbara — disse à criada que apareceu à porta —, eu ainda não to-
mei o chá. Traga a bandeja e xícaras para as duas jovens damas.
Uma bandeja logo foi trazida. Como eram belos, aos meus olhos, as
xícaras de porcelana e o bule colorido, postos na mesinha redonda
perto do fogo! Como eram perfumados o vapor da bebida e o aroma
da torrada! Dela, entretanto, para o meu horror (pois começava a sen-
tir fome), eu discerni apenas uma pequena porção. A srta. Temple
percebeu a mesma coisa.
— Barbara — disse ela —, não pode trazer mais um pouco de pão e
manteiga? Não há o suficiente para três pessoas.
Barbara saiu e logo voltou.
— Senhorita, a sra. Harden diz que mandou a quantidade costumei-
ra.
A sra. Harden, fique registrado, era a governanta, uma mulher em
perfeita sintonia com o sr. Brocklehurst, composta de partes iguais de
ferro e espartilhos de barbatanas.
— Ah, pois bem! — respondeu a srta. Temple. — Suponho que vai
servir, Barbara. — E quando a garota se retirou, ela acrescentou, sor-
rindo: — Felizmente, dessa vez está em meu poder suprir as deficiên-
cias.
Ela convidou Helen e eu a nos aproximar da mesa e serviu uma xí-
cara de chá e um pedaço delicioso — ainda que fino — de torrada dian-
te de cada uma. Então se ergueu, destrancou uma gaveta e, tirando
dela um embrulho de papel, revelou a nossos olhos um bolo de comi-
nho de tamanho razoável.
— Eu pretendia dar um pedaço para vocês levarem — disse ela. —
Mas, como há tão pouca torrada, é melhor comerem agora.
Assim, ela começou a cortar fatias generosas.
Nós nos banqueteamos naquela tarde como se tomássemos néctar e
ambrosia, e uma parte considerável do prazer decorria do sorriso gra-
tificado com que a anfitriã nos fitava enquanto satisfazíamos nosso
apetite faminto com o lanche leve que ela generosamente forneceu.
Acabado o chá e levada a bandeja, ela novamente nos chamou até o
fogo. Sentamo-nos cada uma de um lado, e então se seguiu uma con-
versa entre ela e Helen que foi um verdadeiro privilégio poder escu-
tar.
A srta. Temple sempre tivera algo de
sereno em seu ar, de portentoso em seu
semblante e de decoro refinado em suas
palavras que a impedia de recair no ar-
dor, na empolgação, na avidez: algo que
restringia o prazer daqueles que a olha-
vam e ouviam por meio de um assom-
bro regulador. E tal foi o meu sentimen-
to naquele instante. Entretanto, com
Helen Burns eu fiquei maravilhada.
A refeição revigorante, o fogo alto, a presença e gentileza de sua
amada instrutora ou, talvez, acima de tudo, algo em sua mente única,
haviam despertado as suas forças internas. Elas acordaram, se infla-
maram: a princípio, brilharam no rubor forte da face, que até então eu
só vira pálida e exangue; em seguida, luziram no lustre líquido dos
olhos, que subitamente adquiriram uma beleza mais singular do que a
da srta. Temple — uma beleza que não se devia a cor, a longos cílios,
nem a sobrancelhas finamente traçadas, mas a significado, movimen-
to, esplendor. Então sua alma pousou nos lábios e as palavras fluíram,
embora eu não saiba dizer de qual fonte. Teria uma garota de catorze
anos um coração grande o bastante, vigoroso o bastante, para abrigar
a nascente transbordante da pura, total e fervorosa eloquência? Tal
era a característica do discurso de Helen naquela que, para mim, foi
uma tarde memorável. Seu espírito parecia apressar-se para viver,
dentro de um período muito breve, o que muitos vivem durante uma
existência extensa.
Elas conversaram sobre coisas de que eu nunca ouvira falar: nações
e épocas passadas; países distantes; segredos da natureza descobertos
ou conjecturados. Falaram de livros, e quantos tinham lido! Que esto-
que de conhecimentos possuíam! E ainda pareciam muito familiariza-
das com nomes e autores franceses. Meu espanto atingiu o ápice
quando a srta. Temple perguntou a Helen se ela às vezes reservava
um momento para recordar-se do latim que o pai lhe ensinara e, pe-
gando um livro da estante, pediu a ela que lesse e interpretasse uma
página de Virgílio. Helen obedeceu, meu órgão de veneração expan-
dindo-se a cada frase proferida. Ela mal terminara quando o sino
anunciou a hora de ir para a cama. Atrasos não eram admitidos, então
a srta. Temple abraçou a nós duas, dizendo, enquanto nos apertava
contra o coração:
— Deus as abençoe, minhas crianças!
Ela segurou Helen um pouco mais que eu, e soltou-a com mais re-
lutância. Foi Helen que seu olhar seguiu à porta; foi por ela que pela
segunda vez soltou um suspiro triste, e por ela que enxugou uma
lágrima da bochecha.
Ao chegar ao quarto, ouvimos a voz da srta. Scatcherd. Ela estava
examinando gavetas e tinha acabado de abrir a de Helen, de modo
que, quando entramos, Helen foi recebida com uma reprimenda ríspi-
da e ouviu que pela manhã levaria meia dúzia de roupas mal dobra-
das presas aos ombros.
— Meus pertences estão de fato em uma desordem vergonhosa —
murmurou Helen para mim, em voz baixa. — Eu pretendia organizá-
los, mas esqueci.
Na manhã seguinte, a srta. Scatcherd escreveu a palavra “Desleixa-
da” com letras grandes em um pedaço de cartolina que amarrou como
um filactério32 ao redor da testa alta, branda, inteligente e benigna de
Helen. Ela a usou até a noite, paciente, sem ressentimentos, encaran-
do aquilo como uma punição merecida. Assim que a srta. Scatcherd se
retirou após as aulas da tarde, eu corri até Helen, arranquei a cartoli-
na e a joguei no fogo. A fúria da qual ela era incapaz tinha queimado
em minha alma o dia todo, e lágrimas grandes e quentes escaldaram
minha bochecha, pois o espetáculo da sua triste resignação causava
uma dor intolerável em meu coração.
Uma semana após tais incidentes, a srta. Temple, que escrevera ao
sr. Lloyd, recebeu a resposta dele e, pelo visto, suas palavras corrobo-
raram meu relato. Reunindo toda a escola, a srta. Temple anunciou
que fora feita uma investigação das acusações lançadas contra Jane
Eyre e que ela estava muito feliz de anunciá-la completamente ino-
cente de todas as imputações. As professoras então apertaram a mi-
nha mão e me beijaram, e um murmúrio satisfeito atravessou as filei-
ras das minhas companheiras.
Aliviada assim de um fardo pesado, a partir daquele momento eu
me dediquei aos estudos com uma nova disposição, determinada a
abrir caminho através de toda dificuldade. Trabalhei duro e meu su-
cesso foi proporcional aos meus esforços. Minha memória, que não
era tenaz por natureza, melhorou com a prática; os exercícios aguça-
ram meu intelecto. Em algumas semanas fui promovida para uma
turma mais avançada; em menos de dois meses, tive permissão para
começar francês e desenho. No mesmo dia aprendi os primeiros dois
tempos verbais de être e rascunhei meu primeiro chalé (cujas pare-
des, por sinal, rivalizavam em inclinação com aquelas da torre incli-
nada de Pisa). Naquela noite, ao deitar, esqueci de preparar na mente
a ceia de Barmecide33 de batatas assadas ou pão branco e leite fresco
com a qual eu costumava satisfazer meus desejos interiores; em vez
disso, banqueteei-me com o espetáculo de desenhos ideais que imagi-
nei no escuro, tudo trabalho de minhas próprias mãos: casas e árvores
feitas livremente a lápis, rochas e ruínas pitorescas, rebanhos de gado
como os de Cuyp,34 doces pinturas de borboletas pairando sobre rosas
não desabrochadas, pássaros bicando cerejas maduras e ninhos de
cambaxirras protegendo ovos parecidos com pérolas, cercados por tu-
fos de hera fresca. Analisei também, em pensamento, a possibilidade
de ser capaz de traduzir certo livrinho de histórias francês que mada-
me Pierrot me mostrara naquele dia, mas esse problema não foi solu-
cionado de modo satisfatório antes que eu adormecesse suavemente.
Bem tinha dito Salomão — “Melhor é a comida de hortaliça, onde
há amor, do que o boi cevado, e com ele o ódio”.35
Eu não teria trocado Lowood, com todas as suas privações, por Ga-
teshead e seus luxos diários.
32. Caixinha contendo escrituras bíblicas, trazida por judeus junto ao braço
esquerdo e à testa em momentos de oração.
↵
33. Referência ao rico personagem de As mil e uma noites que convida um
mendigo para um banquete imaginário.
↵
34. Albert Cuyp (1620–1691) foi um pintor holandês de paisagens realistas.
↵
35. Provérbios 15:17.
↵
Capítulo IX
C
ontudo, as privações — ou, antes, as dificuldades — de Lowood
diminuíram. A primavera se aproximou (na verdade, já che-
gara), as geadas de inverno tinham cessado, a neve tinha der-
retido e os ventos cortantes haviam amainado. Meus pés miseráveis,
esfolados e inchados devido ao ar gélido de janeiro até eu não poder
mais andar, começaram a sarar e serenar sob os sopros mais gentis de
abril; as noites e manhãs não congelavam mais o sangue nas veias com
sua temperatura canadense, e finalmente suportávamos a hora de re-
creação passada no jardim. Às vezes, em um dia ensolarado, a tempe-
ratura até ficava agradável e branda, e a vegetação crescia naqueles
canteiros marrons que, revitalizando-se dia a dia, sugeriam que a Es-
perança os visitava de noite e deixava toda manhã rastros mais nítidos
de sua passagem. Flores espiavam por dentre as folhas; campânulas-
brancas, açafrão, prímulas roxas e amores-perfeitos de centro dourado.
Nas tardes de quinta (folgas parciais), fazíamos caminhadas e encon-
trávamos flores ainda mais doces desabrochando ao lado da estrada,
sob as sebes.
Também descobri que um enorme prazer, um deleite que apenas o
horizonte limitava, encontrava-se por todo lado fora dos muros altos e
guardados por espigões do nosso jardim: esse prazer consistia na visão
de nobres cumes cingindo um grande vale, rico em vegetação e som-
bras, e de um córrego cintilante, cheio de pedras escuras e redemoi-
nhos brilhantes. Como a paisagem parecera diferente quando eu a vira
sob o céu ferroso do inverno, enrijecida pela geada e recoberta de ne-
ve!, quando uma névoa gélida como a morte vagava ao impulso de
ventos do leste ao longo daqueles picos púrpura e descia por campinas
e planícies aluviais até se mesclar com a névoa congelada do córrego. O
próprio córrego se tornava então uma torrente, turva e desenfreada:
dividia o bosque no meio e enviava um som estrondeante pelo ar, mui-
tas vezes engrossado por chuvas torrenciais ou um turbilhão de grani-
zo. Quanto à floresta em suas margens, ela exibia apenas fileiras de es-
queletos.
Abril avançou até maio, e foi um maio sereno e ensolarado. Dias de
céu azul, sol plácido e ventos brandos do sul ou oeste preencheram sua
duração. A vegetação amadureceu com vigor, Lowood deixou cair suas
tranças e tudo se tornou verde e florido: os esqueletos dos grandes ol-
mos, freixos e carvalhos foram restaurados à vida majestosa; plantas
silvestres brotaram em profusão nos recessos; inúmeras variedades de
musgo encheram as cavidades e criaram um estranho sol terreno com
a abundância de prímulas silvestres, cujo brilho dourado pálido eu via
em trechos escuros, como a dispersão da mais doce resplandecência.
Desfrutei de tudo isso com frequência, completamente, livre, sem res-
trições e quase sozinha — pois havia uma causa para tais liberdade e
prazer inesperados, que agora se torna minha tarefa revelar.
Não descrevi um local agradável para se morar, abrigado em colinas
e bosques, erguendo-se das margens de um córrego? Sem dúvida, era
bastante agradável — mas se era saudável é outra questão.
O vale cercado de florestas onde encontrava-se Lowood era o berço
de vapores nocivos e das pestilências que geravam, as quais, desper-
tando com a primavera, esgueiraram-se até o lar de órfãs, sopraram a
febre tifoide pela sala de aula e pelo dormitório e, antes mesmo da che-
gada de maio, transformaram o seminário em um hospital.
A inanição parcial e os resfriados negligenciados deixaram a maioria
das pupilas predispostas à infecção: quarenta e cinco das oitenta garo-
tas adoeceram de uma vez. As aulas foram canceladas, as regras, rela-
xadas. As poucas ainda sadias ganharam uma liberdade quase ilimita-
da, porque o médico insistiu na necessidade de exercícios frequentes
para manterem-se saudáveis — e, mesmo se não fosse o caso, ninguém
tinha tempo livre para vigiá-las ou contê-las. Toda a atenção da srta.
Temple foi ocupada pelas pacientes: ela vivia no quarto das enfermas,
e o deixava apenas para roubar algumas horas de repouso à noite. As
professoras estavam ocupadas com as malas e outros preparativos ne-
cessários para a partida das garotas que tinham a sorte de ter amigos e
parentes capazes e dispostos a tirá-las do local de contágio. Muitas, já
infectadas, voltaram para casa só para morrer. Algumas faleceram na
escola e foram enterradas com rapidez e sem alarde, a natureza da do-
ença proibindo atrasos.36
Enquanto a doença se tornara, assim, uma habitante de Lowood, e a
morte, uma visitante frequente, enquanto havia melancolia e medo
dentro de seus muros, enquanto as salas e os corredores estavam im-
pregnados com os cheiros de hospital, e medicamentos e pastas aro-
máticas esforçavam-se em vão para superar o eflúvio da mortalidade,
aquele maio ensolarado e sem nuvens brilhou sobre as colinas escar-
padas e os belos bosques lá fora. O jardim também reluzia com flores:
malvas-rosa erguiam-se altas como árvores, lírios tinham desabrocha-
do, tulipas e rosas estavam florescendo, as laterais dos pequenos can-
teiros estavam alegres com a relva-do-olimpo rosa e as margaridas
carmim de pétalas duplas, e as rosas-mosqueta exalavam, manhã e
noite, seu aroma de especiarias e maçãs — e todos esses tesouros fra-
grantes eram inúteis para a maioria das residentes de Lowood, exceto
por fornecer vez ou outra um punhado de ervas e flores para enfeitar
um caixão.
Eu, e as outras que continuaram bem, aproveitamos inteiramente as
belezas da paisagem e da estação — podíamos perambular pelo bosque,
como ciganos, da manhã à noite; fazíamos o que queríamos, íamos
aonde quiséssemos e também vivíamos melhor. O sr. Brocklehurst e
sua família não chegavam nem perto de Lowood, e a administração da
casa não era esquadrinhada a fundo. A governanta irascível tinha par-
tido, repelida pelo medo da infecção, e sua sucessora, que fora a encar-
regada do Dispensário de Lowton, pouco familiarizada aos hábitos da
nova morada, nos abastecia com relativa generosidade. Além disso, ha-
via menos bocas para alimentar: as doentes comiam pouco, de modo
que nossas tigelas de café da manhã ficaram mais cheias. Quando não
havia tempo para preparar um jantar normal, o que acontecia com fre-
quência, ela nos dava um pedaço grande de torta fria ou uma fatia
grossa de pão com queijo, e nós levávamos a comida ao bosque, onde
cada uma escolhia um ponto de que gostava mais e fazia sua refeição
suntuosa.
Meu lugar favorito era uma pedra lisa e larga que se erguia, branca e
seca, bem do meio do córrego, e só era alcançada vadeando a água —
um feito que eu realizava descalça. A pedra só era grande o suficiente
para acomodar com conforto eu e mais uma garota, na época minha
companheira escolhida — Mary Ann Wilson, uma garota astuta e ob-
servadora, cuja companhia me dava prazer, em parte porque ela era
engraçada e original, em parte porque seus modos me deixavam à
vontade. Alguns anos mais velha que eu, ela sabia mais do mundo e
me contava muitas coisas que eu gostava de ouvir. Com ela, minha cu-
riosidade encontrava gratificação, e aos meus defeitos ela fazia amplas
concessões, nunca impondo restrições nem rédeas a nada que eu dis-
sesse. Ela tinha um dom para a narrativa, e eu, para a análise; ela gos-
tava de informar, e eu, de questionar; e portanto nos dávamos muito
bem, obtendo muito prazer, ainda que não muito aperfeiçoamento, de
nossas interações.
E onde, no meio-tempo, estava Helen Burns? Por que não passei es-
ses doces dias de liberdade com ela? Eu a havia esquecido? Ou eu era
indigna a ponto de ter me cansado de sua companhia pura? Certamen-
te a Mary Ann Wilson que mencionei era inferior à minha primeira
amiga — ela só sabia me contar histórias divertidas e reciprocar qual-
quer fofoca escandalosa e cáustica com a qual eu escolhesse me entre-
ter. Por outro lado, se falei a verdade sobre Helen, ela era apta a dar
àqueles que desfrutavam do privilégio de sua companhia um gosto de
coisas mais elevadas.
É verdade, leitor, e eu sabia e sentia que fosse — e, embora eu seja
uma criatura imperfeita, com muitos defeitos e poucas qualidades re-
dentoras, nunca me cansei de Helen Burns, nem deixei de nutrir por
ela um apego tão forte, tenro e respeitoso quanto qualquer outro que já
deu alento a meu coração. Como poderia, quando Helen, a todo mo-
mento e sob todas as circunstâncias, demonstrava por mim uma ami-
zade leal e silenciosa, que o mau humor nunca azedou, nem a irritação
perturbou? Porém, Helen estava doente; fazia algumas semanas desde
que fora tirada da minha vista e escondida em algum quarto desconhe-
cido no andar superior. Disseram-me que ela não estava na porção da
casa que abrigava as pacientes com febre, pois seu problema era a tu-
berculose, não a febre tifoide, e eu, na minha ignorância, entendia tu-
berculose como algo brando, que tempo e cuidados certamente alivia-
riam.
Essa ideia foi reforçada pelo fato de que ela desceu do quarto uma
ou duas vezes em tardes quentes e ensolaradas, levada para o jardim
pela srta. Temple. Porém, nessas ocasiões, não tive permissão de ir fa-
lar com ela; só a vi da janela da sala de aula, e mesmo assim vagamen-
te, pois ela estava muito encapotada e sentada numa varanda distante.
Uma tarde, no começo de junho, fiquei muito tempo com Mary Ann
no bosque. Como sempre, tínhamos nos separado das outras e peram-
bulado longe — tanto que nos perdemos e tivemos de pedir orientações
em uma cabana solitária, onde um homem e uma mulher cuidavam de
uma vara de porcos quase selvagens, que se alimentavam de frutos ca-
ídos no bosque. Quando voltamos, a lua já se erguera, e um pônei, que
sabíamos ser do médico, estava parado na porta do jardim. Mary Ann
comentou que alguém devia estar muito doente, se o sr. Bates tinha si-
do chamado àquela hora da noite. Ela entrou na casa; eu fiquei para
trás alguns minutos para plantar em meu canteiro um punhado de raí-
zes que tinha escavado na floresta e que eu temia que fossem murchar
se eu esperasse até a manhã. Feito isso, me demorei mais um pouco,
pois as flores cheiravam tão doces sob o orvalho, e era uma noite tão
agradável, tão serena, tão quente. O céu, ainda iluminado a oeste, pro-
metia outro belo dia pela manhã, e a lua se erguia magnificamente no
lúgubre leste. Eu estava reparando nessas coisas e apreciando-as como
uma criança quando um pensamento que nunca tivera antes cruzou
minha mente: Que triste estar deitada agora em um leito, correndo risco
de morte! Esse mundo é agradável, e seria uma pena ser chamada para
longe e ir sabe-se lá para onde!
Foi então que minha mente realizou seu primeiro esforço sincero
para compreender o que fora incutido nela quanto ao paraíso e ao in-
ferno — e pela primeira vez recuou, confusa, e pela primeira vez olhou
para trás, para os lados, e para a frente, e viu-se cercada por um golfo
insondável. Sentiu o único ponto onde estava: o presente — todo o resto
eram nuvens vagas e profundezas vazias. Estremeceu, então, diante da
ideia de cambalear e mergulhar nesse caos. Enquanto ponderava
aquele novo conceito, ouvi a porta da frente abrir. O sr. Bates saiu,
acompanhado por uma enfermeira. Depois que o viu montar no cavalo
e partir, ela estava prestes a fechar a porta, mas corri até ela.
— Como está Helen Burns?
— Muito mal — foi a resposta.
— Foi ela que o sr. Bates veio ver?
— Foi.
— E o que ele disse?
— Que ela não continuará aqui por muito tempo.
Essa frase, se tivesse sido ouvida no dia anterior, só me teria passado
a ideia de que ela estaria prestes a ser transferida para Northumber-
land, de onde viera. Eu não teria desconfiado que significava que ela
estava morrendo. Naquele instante, porém, eu soube imediatamente.
Surgiu nítido em minha compreensão o fato de que Helen Burns esta-
va com os dias contados naquele mundo e que ia ser levada à região
dos espíritos, se tal região existisse. Senti um choque horrorizado, em
seguida uma forte tristeza, e então um desejo — uma necessidade — de
vê-la, e perguntei onde ela estava.
— Ela está no quarto da srta. Temple — disse a enfermeira.
— Posso subir e falar com ela?
— Ah, não, menina! De forma alguma. E agora é hora de entrar; você
vai pegar a febre se ficar no sereno.
A enfermeira fechou a porta da frente e eu entrei pela passagem la-
teral que levava à sala de aula. Cheguei bem a tempo; eram nove ho-
ras, e a srta. Miller chamava as pupilas para irem dormir.
Talvez tenha sido duas horas mais tarde, provavelmente perto das
onze, que eu — não conseguindo adormecer e julgando, pelo perfeito si-
lêncio do dormitório, que minhas companheiras estavam todas mergu-
lhadas em um profundo repouso — ergui-me suavemente, joguei meu
vestido por cima da camisola e, sem sapatos, esgueirei-me do cômodo
e segui rumo ao quarto da srta. Temple. Ele ficava na outra extremida-
de da casa, mas eu conhecia o caminho, e o luar de verão, sem nuvens
que o impedissem, entrava cá e lá pelas janelas nos corredores e me
permitiu encontrar o quarto sem dificuldades. Um odor de cânfora e
vinagre queimado alertou-me quando me aproximei do quarto das en-
fermas de febre, e passei diante da porta rapidamente, temendo que a
enfermeira que passava a noite inteira ali me ouvisse. Eu temia ser
descoberta e mandada de volta, pois precisava ver Helen — precisava
abraçá-la antes que ela morresse, precisava dar-lhe um último beijo e
trocar com ela uma última palavra.
Após descer uma escada, atravessar uma parte do andar de baixo e
abrir e fechar, sem fazer barulho, duas portas, alcancei outro lance de
escada. Subi-o e então, logo à minha frente, estava o quarto da srta.
Temple. Uma luz brilhava através do buraco da fechadura e por baixo
da porta, e uma imobilidade profunda permeava tudo ao redor. Apro-
ximando-me, encontrei a porta entreaberta, provavelmente para dei-
xar entrar um pouco de ar fresco na estreita morada da doença. Não
querendo hesitar e cheia de impulsos impacientes — alma e sentidos
tremulando com pontadas de dor agudas —, abri a porta e olhei para
dentro. Meus olhos procuraram Helen e temeram encontrar a morte.
Próxima à cama da srta. Temple, e parcialmente oculta por um dos-
sel branco, havia uma pequena cama. Vi uma silhueta sob as roupas,
mas o rosto estava escondido pelo tecido. A enfermeira com quem eu
falara no jardim estava sentada em uma poltrona, adormecida; uma
vela que não fora apagada terminava de queimar na mesa. A srta.
Temple não estava lá; eu soube mais tarde que ela fora chamada para
atender a uma paciente delirante no quarto das vítimas de febre.
Avancei até parar ao lado da cama, e levei a mão ao dossel, mas preferi
falar antes de puxá-lo. Ainda me encolhia diante da ideia aterrorizante
de ver um cadáver.
— Helen! — sussurrei suavemente. — Está acordada?
Ela se remexeu e afastou o tecido, e eu vi o rosto pálido e emaciado,
mas bastante calmo. Ela parecia tão pouco mudada que meu medo se
dissipou imediatamente.
— É você, Jane? — perguntou ela em sua voz gentil.
Ah!, pensei. Ela não vai morrer, eles estão enganados. Ela não poderia
falar e me olhar com tanta calma se fosse morrer.
Subi na cama e a beijei. Sua testa estava fria e suas faces, além de
frias, esqueléticas, assim como as mãos e os pulsos, mas ela sorriu co-
mo antigamente.
— O que está fazendo aqui, Jane? Já passou das onze, ouvi as bada-
ladas alguns minutos atrás.
— Vim ver você, Helen. Ouvi que estava muito doente e não poderia
dormir antes de vê-la.
— Você veio se despedir de mim, então. Provavelmente chegou bem
a tempo.
— Você vai para algum lugar, Helen? Vai para casa?
— Vou para meu lar eterno. Meu último lar.
— Não, Helen, não!
Eu parei, aflita. Enquanto eu tentava engolir as lágrimas, um acesso
de tosse tomou Helen. Mesmo assim a enfermeira não despertou e,
quando acabou, minha amiga ficou deitada por alguns minutos, exaus-
ta, até que sussurrou:
— Jane, seus pezinhos estão descalços, deite-se e cubra-se com a mi-
nha manta.
Obedeci; Helen me abraçou, e eu me aconcheguei perto dela. Após
um longo silêncio, ela voltou a falar, ainda sussurrando:
— Estou muito feliz, Jane, e quando ouvir que estou morta você não
deve ficar de luto, pois não há nenhum motivo para sofrer. Todos te-
mos de morrer um dia, e a doença que está me levando não é dolorosa,
e sim gentil e gradual. Minha mente está tranquila. Eu não deixo nin-
guém para trás que vá chorar demais por mim: só tenho pai e ele se ca-
sou recentemente e não sentirá minha falta. Morrendo jovem, evitarei
grandes sofrimentos. Não tenho qualidades, nem talentos para encon-
trar sucesso no mundo; estaria continuamente cometendo erros.
— Mas para onde você vai, Helen? Consegue ver? Você sabe?
— Eu acredito… tenho fé… que vou para junto de Deus.
— Onde está Deus? O que é Deus?
— O meu Criador, e o seu, que nunca vai destruir o que criou. Eu
confio cegamente no Seu poder e inteiramente em Sua bondade. Conto
as horas até o momento sublime que vai me levar até Ele, revelá-Lo a
mim.
— Tem certeza, então, Helen, de que existe um lugar chamado paraí-
so, e de que nossas almas vão chegar nele quando morrermos?
— Tenho certeza de que há um estado futuro e acredito que Deus é
bom e que posso entregar minha parte imortal a Ele sem qualquer res-
salva. Deus é meu pai, Deus é meu amigo. Eu O amo e acredito que Ele
me ama.
— E eu a verei de novo, Helen, quando morrer?
— Você irá ao mesmo lugar de felicidade, será recebida pelo mesmo
Pai todo-poderoso e universal. Não tenho dúvidas, Jane.
Novamente questionei a afirmação, mas dessa vez só em pensamen-
to. Onde fica essa região? Ela existe? E abracei Helen com mais força.
Ela me pareceu mais querida do que nunca e senti que não poderia
soltá-la. Fiquei deitada com o rosto escondido em seu pescoço. Pouco
depois, ela disse, em um tom muito gentil:
— Como estou confortável! Aquele último ataque de tosse me cansou
um pouco. Sinto que devia dormir. Mas não vá embora, Jane, gosto de
ter você perto de mim.
— Vou ficar com você, minha querida Helen. Ninguém vai me levar
daqui.
— Está quente, querida?
— Estou.
— Boa noite, Jane.
— Boa noite, Helen.
Ela me beijou, e eu a ela, e ambas adormecemos.
Quando acordei já era dia. Um movimento estranho me despertou e
ergui os olhos. Eu estava nos braços de alguém — a enfermeira me car-
regava e me levava pelo corredor de volta ao dormitório. Eu não fui
repreendida por deixar minha cama, pois as pessoas tinham mais em
que pensar. Nenhuma explicação foi dada no momento a minhas mui-
tas perguntas, mas um ou dois dias depois descobri que a srta. Temple,
ao retornar ao próprio quarto pela manhã, me encontrara deitada na
pequena cama com o rosto contra o ombro de Helen Burns e meus
braços ao redor do seu pescoço. Eu estava dormindo — e Helen, morta.
Seu túmulo fica no cemitério da igreja de Brocklebridge. Por quinze
anos após sua morte, ficou apenas coberto por um montículo gramado,
mas agora uma lápide de mármore cinza marca o lugar, gravada com
seu nome e a palavra “Resurgam”.37
36. Lowood foi inspirada na escola onde estudaram Charlotte Brontë e três
de suas irmãs, duas das quais morreram de doença no local. Uma delas,
Maria, foi a inspiração da personagem Helen Burns.
↵
37. Do latim, “eu ressuscitarei”.
↵
Capítulo X
A
té aqui, registrei em detalhes os eventos da minha existência
insignificante. Aos primeiros dez anos da minha vida, dedi-
quei quase o mesmo número de capítulos. Porém, esta não é
uma autobiografia comum — sou obrigada a invocar a memória só
quando souber que as respostas suscitarão algum grau de interesse.
Portanto, agora percorro um período de oito anos quase em silêncio:
apenas algumas linhas serão suficientes para manter os elos de cone-
xão.
Quando a febre tifoide cumpriu sua missão devastadora em Lowo-
od, gradualmente desapareceu de lá, mas não antes que a virulência e
o número de vítimas atraíssem atenção pública para a escola. Uma in-
vestigação foi feita quanto à origem do flagelo, e aos poucos emergiram
vários fatos que inflamaram a indignação pública em alto grau. A na-
tureza insalubre do local, a quantidade e qualidade da comida das me-
ninas, a água fétida e salobra usada nos preparos, as roupas puídas das
pupilas e as acomodações: todos esses aspectos foram descobertos, e o
resultado foi vergonhoso ao sr. Brocklehurst, mas beneficial à institui-
ção.
Vários indivíduos abastados e benevolentes no condado fizeram do-
ações generosas para a construção de um edifício mais conveniente em
um local melhor; novas regras foram instituídas, melhorias na dieta e
nas roupas foram introduzidas, e os recursos da escola foram confiados
à administração de um comitê. O sr. Brocklehurst — que, graças à sua
fortuna e conexões familiares, não podia ser ignorado — ainda manteve
o cargo de tesoureiro, mas passou a ser auxiliado no desempenho de
suas funções por cavalheiros de mente mais larga e compassiva, e seu
ofício de inspetor também passou a ser compartilhado por aqueles que
sabiam combinar razão com severidade, conforto com economia, com-
paixão com retidão. A escola, aperfeiçoada dessa forma, tornou-se com
o tempo uma instituição verdadeiramente útil e nobre. Eu permaneci
presa dentro de seus muros, após sua regeneração, por oito anos: seis
como pupila e dois como professora. Em ambas as capacidades, posso
testemunhar seu valor e importância.
Durante esses oito anos, minha vida foi uniforme, mas não infeliz,
porque não era inativa. Os meios para obter uma excelente educação
estavam ao meu alcance. Fui incentivada pelo gosto que sentia por al-
guns dos meus estudos e pelo desejo de distinguir-me em todos eles,
assim como por um enorme prazer em agradar minhas professoras,
especialmente as que eu amava, e tirei total proveito das vantagens que
me foram oferecidas. Com o tempo, passei a ser a melhor aluna da tur-
ma mais avançada, e então me foi designado o cargo de professora, que
exerci com zelo por dois anos. No entanto, ao fim desse período, eu
mudei.
A srta. Temple, mesmo com todas as mudanças, até então continua-
ra sendo a superintendente do seminário. À instrução dela, eu devia a
maior parte das minhas conquistas, e sua amizade e companhia eram
um conforto contínuo. Ela havia ocupado para mim o lugar de mãe,
preceptora e, nos últimos tempos, amiga. Até que se casou, mudou-se
com o marido (um homem excelente, um pároco, quase digno de tal
esposa) para um condado distante, e por consequência eu a perdi.
Desde o dia em que ela partiu, eu não fui mais a mesma: com ela su-
miu todo sentimento tranquilo, toda associação que tornava Lowood
em algum grau um lar para mim. Eu havia assimilado parte de sua na-
tureza e muitos dos seus hábitos: pensamentos mais harmoniosos e o
que pareciam sentimentos mais bem regulados passaram a residir em
minha mente. Eu jurara lealdade ao dever e à ordem; era discreta;
acreditava que estava contente. Aos olhos dos outros, normalmente até
aos meus, parecia ter um caráter disciplinado e contido.
Porém, o destino, na forma do reverendo sr. Nasmyth, colocou-se
entre a srta. Temple e eu. Eu a vi subir em uma carruagem em trajes
de viagem logo após a cerimônia de casamento; observei o veículo su-
bir a colina e desaparecer por trás do cume, e então me retirei ao meu
próprio quarto e lá passei sozinha a maior parte da folga da tarde con-
cedida em honra da ocasião.
— Um pouco.
Havia um na sala; Bessie foi abri-lo e pediu que eu me sentasse e lhe
tocasse uma música. Eu toquei uma ou duas valsas e ela ficou encanta-
da.
— As srtas. Reed não tocam bem assim! — disse ela, exultante. — Eu
sempre disse que você poderia superá-las em conhecimento. Também
sabe desenhar?
— Uma das minhas pinturas está ali, acima da lareira.
Era uma paisagem em aquarela, que eu havia presenteado à supe-
rintendente em reconhecimento por sua mediação gentil com o comitê
em meu nome, e que ela mandara emoldurar e cobrir com vidro.
— Ora, é linda, srta. Jane! Uma pintura mais bela do que os profes-
sores de desenho das srtas. Reed poderiam fazer, que dirá as próprias
senhoritas, que não chegariam nem perto. E aprendeu francês?
— Sim, Bessie, sei ler e falar.
— E sabe trabalhar com musselina e linho?
— Sei.
— Ah, você é uma dama e tanto, srta. Jane! Eu sabia que seria. Vai
ter sucesso, quer seus parentes lhe deem atenção ou não. Tem uma coi-
sa que eu queria perguntar. Recebeu alguma notícia dos parentes do
seu pai, os Eyre?
— Nunca na minha vida.
— Bem, você sabe que a sra. Reed sempre disse que eles eram pobres
e muito desprezíveis. E eles podem até ser pobres, mas acredito que
são tão respeitáveis quanto os Reed, pois um dia, quase sete anos atrás,
um sr. Eyre chegou em Gateshead e pediu para ver você. A sra. Reed
disse que você estava na escola a uns oitenta quilômetros dali. Ele pa-
receu muito decepcionado, pois não podia ficar: estava partindo em
uma viagem a um país estrangeiro e o navio ia zarpar de Londres em
um dia ou dois. Ele parecia ser um perfeito cavalheiro e acredito que
era o irmão do seu pai.
— A qual país estrangeiro ele ia, Bessie?
— Uma ilha a milhares de quilômetros de distância, onde fabricam
vinho… o mordomo me disse…
— Madeira? — sugeri.
— Isso mesmo, é esse o nome.
— Então ele foi?
— Foi, e não ficou muitos minutos na casa. A sra. Reed foi muito ar-
rogante com ele, chamou-o depois de “comerciante suspeito”. O meu
Robert acredita que ele era um vendedor de vinhos.
— É muito provável — concordei —, ou talvez um funcionário ou
agente de um vendedor de vinhos.
Bessie e eu conversamos sobre os velhos tempos por mais uma hora,
depois ela foi obrigada a me deixar. Eu a vi de novo por alguns minu-
tos na manhã seguinte em Lowton, enquanto esperava pela diligência.
Finalmente nos despedimos na porta do Brocklehurst Arms. Cada
uma seguiu o seu caminho: ela para o cume de Lowood Fell para en-
contrar a diligência que a levaria de volta a Gateshead, enquanto subi
no veículo que me levaria a novos deveres e uma nova vida na região
desconhecida de Millcote.
U
m novo capítulo em um romance é um pouco como uma no-
va cena em uma peça — e quando eu afastar a cortina dessa
vez, leitor, você deve imaginar que vê uma sala na George
Inn em Millcote, com o clássico papel de parede de figuras grandes que
se encontra em tais quartos de hospedaria, o tapete, móveis e orna-
mentos na cornija da lareira, assim como os quadros, incluindo um re-
trato de George III e outro do Príncipe de Gales e uma representação
da morte de Wolfe.39 Tudo isso é visível à luz de uma lâmpada a óleo
pendendo do teto e de uma excelente lareira, perto da qual estou sen-
tada, de capa e touca. Meu regalo e guarda-chuva estão sobre a mesa, e
me aqueço para me livrar do frio e do entorpecimento, consequência
de dezesseis horas de exposição a um dia de outubro gélido. Parti de
Lowton às quatro da manhã, e o relógio da cidade de Millcote está ba-
tendo as oito da noite.
Leitor, embora eu pareça confortavelmente acomodada, minha men-
te não está muito tranquila. Quando a diligência parou aqui, pensei
que haveria alguém para me encontrar. Olhei ao redor, ansiosa, en-
quanto descia os degraus de madeira que o criado da hospedaria dis-
pôs para a minha conveniência, esperando ouvir meu nome e ver al-
guma carruagem esperando para me levar a Thornfield. Nada do tipo
estava visível e, quando perguntei a um garçom se alguém tinha per-
guntado pela srta. Eyre, responderam-me na negativa. Então não tive
saída exceto pedir que me conduzissem a uma sala privativa — e aqui
aguardo enquanto todo tipo de dúvida e receio perturba meus pensa-
mentos.
É muito estranho, para jovens inexperientes, sentir-se inteiramente
sozinho no mundo, separado de todas as conexões, sem saber se o por-
to ao qual se dirige pode ser alcançado, e impedido por muitos obstá-
culos de retornar àquele que já abandonou. O charme da aventura
adoça essa sensação, o brilho do orgulho a acalenta, mas logo o pulsar
do medo nos inquieta — e o medo se tornou predominante em mim
quando meia hora se passou e eu ainda estava sozinha. Pensei em to-
car a sineta.
— Há um lugar na vizinhança chamado Thornfield? — perguntei ao
garçom que respondeu ao meu chamado.
— Thornfield? Não sei, senhorita, vou perguntar no bar. — Ele sumiu,
mas logo reapareceu. — O nome da senhorita é Eyre?
— Sim.
— Há alguém à sua espera.
Levantei com um salto, peguei o regalo e o guarda-chuva, e me
apressei pelo corredor. Um homem estava parado na porta aberta e, à
luz dos postes na rua, distingui vagamente um veículo com um cavalo.
— Essa é a sua bagagem, imagino? — perguntou o homem um tanto
abruptamente quando me viu, apontando meu baú no corredor.
— É.
Ele o ergueu para o veículo, que era uma espécie de carroça, e eu su-
bi. Antes que fechasse a porta, perguntei quão longe ficava Thornfield.
— Coisa de dez quilômetros.
— Quanto tempo levaremos para chegar?
— Uma hora e meia, quem sabe.
Ele fechou a porta da carroça, subiu em seu próprio assento do lado
de fora, e partimos. Nosso ritmo foi tranquilo e me deu muito tempo
para refletir. Eu estava feliz por estar tão perto de terminar a viagem e,
quando me reclinei no veículo confortável, ainda que não elegante,
ponderei à vontade.
Suponho, pensei, pela simplicidade do criado e do veículo, que a sra.
Fairfax não seja uma pessoa muito sofisticada. Melhor assim; só vivi en-
tre pessoas elegantes uma vez e fui muito infeliz com elas. Pergunto-me se
ela mora sozinha, exceto por essa garota. Se for o caso, e se ela for ami-
gável em qualquer grau, certamente serei capaz de me relacionar bem
com ela! Farei o meu melhor. Pena que fazer o nosso melhor nem sempre
é suficiente. Em Lowood, de fato, eu tomei essa decisão, me ative a ela e
consegui agradar, mas, com a sra. Reed, lembro que o meu melhor era
sempre rejeitado com desdém. Se Deus quiser, a sra. Fairfax não será
uma segunda sra. Reed, mas, se for, não sou obrigada a ficar com ela. Se
o pior acontecer, posso fazer outro anúncio. Quanta estrada será que
percorremos?
Abri a janela e olhei para fora: Millcote estava atrás de nós e, julgan-
do pela quantidade de luzes, parecia um lugar de dimensões conside-
ráveis, bem maior que Lowton. Passávamos, pelo que eu via, por uma
espécie de pasto de uso comum, mas havia casas espalhadas por todo o
distrito e senti que estávamos em uma região diferente de Lowood —
mais populosa, menos pitoresca; mais entusiasmante, menos românti-
ca.
A estrada era irregular; a noite, enevoada. Meu condutor deixou o
cavalo seguir com calma o trajeto todo, e a hora e meia se estendeu,
acredito sinceramente, a duas horas. Por fim, ele se virou no assento e
disse:
— A senhorita num tá mais tão longe de Thornfield.
Novamente olhei para fora. Passávamos por uma igreja; vi a torre
baixa e larga contra o céu, o sino badalando o quarto de hora. Também
vi uma estreita galáxia de luzes em uma colina, indicando um vilarejo
ou povoado. Cerca de dez minutos depois, o cocheiro desceu e abriu
um portão duplo, que atravessamos e se fechou com um barulho alto.
Ascendemos lentamente um caminho para veículos e chegamos diante
da extensa fachada de uma casa. A luz de velas emanava de uma jane-
la saliente e curvada, fechada por uma cortina, e todo o resto estava
escuro. A carroça parou na frente da porta, que foi aberta por uma cri-
ada. Eu desci e entrei.
— Por aqui, senhorita — disse a jovem, e eu a segui através de um sa-
guão quadrado com portas altas de todos os lados.
Ela me levou a uma sala cuja iluminação dupla de lareira e velas a
princípio foi ofuscante, contrastando com a escuridão à qual meus
olhos se acostumaram ao longo de duas horas. Quando consegui en-
xergar, porém, uma imagem aconchegante e agradável se apresentou à
minha vista.
Era uma sala pequena e confortável, com uma mesa redonda junto a
uma lareira acolhedora e uma antiquada poltrona de encosto alto, on-
de se sentava a senhorinha idosa mais arrumada que eu já vira, usan-
do uma touca de viúva, vestido preto de seda e um avental alvo de
musselina: exatamente como eu imaginara a sra. Fairfax, só menos im-
ponente e mais meiga. Ela estava ocupada com um bordado e tinha
um gato grande e bem-comportado a seus pés. Não faltava nada, em
suma, para completar o conceito ideal de conforto doméstico. Uma
apresentação mais tranquilizadora para uma nova preceptora sequer
poderia ser imaginada — não havia imponência intimidadora, suntuo-
sidade humilhante. Então, quando entrei, a dama se ergueu e avançou
imediatamente para me cumprimentar com gentileza.
— Como vai, minha querida? Receio que tenha feito um trajeto enfa-
donho. John vai muito devagar. Você deve estar com frio, venha até o
fogo.
— Sra. Fairfax, presumo? — perguntei.
— Sim, isso mesmo. Sente-se.
Ela me conduziu a sua própria cadeira e começou a tirar meu xale e
desatar os laços da minha touca. Implorei que não se desse ao trabalho.
— Ah, não é trabalho algum. Ouso dizer que suas mãos estão quase
entorpecidas de frio. Leah, prepare um negus40 quente e um sanduí-
che ou dois. Aqui estão as chaves da despensa.
Ela tirou do bolso um molho de chaves típico das donas de casa e o
entregou à criada.
— Agora, então, aproxime-se do fogo — continuou. — Você trouxe seu
baú, não é, querida?
— Sim, senhora.
— Vou pedir que o levem ao seu quarto — disse, e saiu apressada.
Ela me trata como uma visitante, pensei eu. Não esperava uma recep-
ção dessas; antecipei só frieza e reserva. Não é esse o tratamento que ou-
vi ser dispensado às preceptoras, mas não devo comemorar cedo demais.
Ela voltou, com as próprias mãos tirou da mesa os apetrechos de tri-
cô e um ou dois livros para abrir espaço à bandeja que Leah trouxe, e
me serviu pessoalmente os refrescos. Eu estava um tanto confusa ao
ser o alvo de mais atenção do que jamais recebera, ainda por cima
prestada pela minha empregadora e superiora. Porém, como ela mes-
ma não parecia considerar que estava fazendo algo estranho, pensei
que seria melhor aceitar as cortesias em silêncio.
— Terei o prazer de conhecer a srta. Fairfax esta noite? — perguntei,
depois de consumir o que ela oferecera.
— O que disse, querida? Sou um pouco surda — respondeu a boa se-
nhora, aproximando o ouvido da minha boca.
Repeti a pergunta com mais nitidez.
— Srta. Fairfax? Ah, você quer dizer a srta. Varens! Varens é o nome
de sua futura pupila.
— É mesmo? Então ela não é sua filha?
— Não, eu não tenho família.
Após minha primeira pergunta, eu devia ter questionado qual era a
relação dela com a srta. Varens, mas lembrei que não era educado fa-
zer um interrogatório. Além disso, certamente acabaria descobrindo
em breve.
— Fico tão feliz — continuou ela, sentando-se à minha frente e pe-
gando o gato no colo —, fico tão feliz que você veio. Será muito agradá-
vel viver aqui agora com uma companheira. Certamente é agradável a
qualquer hora, pois Thornfield é uma bela mansão antiga, um pouco
negligenciada nos últimos anos, talvez, mas ainda um lugar respeitá-
vel. Mas você sabe que no inverno é muito monótono ficar sozinha,
mesmo nas melhores acomodações. Eu digo sozinha… Leah é uma boa
garota, certamente, e John e a esposa dele são pessoas muito decentes,
mas eles são só criados, e não se pode conversar com eles em pé de
igualdade. É preciso mantê-los à devida distância para não correr o
risco de perder a autoridade. Eu lhe juro, no inverno passado (que foi
muito severo, você deve se lembrar, pois, embora não tenha nevado,
choveu e ventou forte), nem uma única criatura exceto o açougueiro e
o carteiro vieram à casa entre novembro e fevereiro, e eu fiquei muito
melancólica sentada sozinha noite após noite. Eu fazia Leah ler para
mim às vezes, mas não acho que a pobre garota gostou muito da tarefa,
ela se sentia prisioneira. Na primavera e no verão foi melhor: a luz do
sol e os dias longos fizeram uma enorme diferença, e então, bem no co-
meço desse outono, a pequena Adela Varens veio com a ama. Uma cri-
ança anima a casa imediatamente, e, agora que você está aqui, eu fica-
rei muito alegre.
Eu me afeiçoei à digna senhora enquanto a ouvia falar. Aproximei
minha poltrona um pouco da dela e expressei meu desejo sincero de
que ela achasse minha companhia tão agradável quanto antecipava.
— Mas eu não a manterei acordada até tarde hoje — disse ela. — O re-
lógio está batendo a meia-noite e você viajou o dia todo, deve estar
cansada. Se já aqueceu bem os pés, vou lhe mostrar o seu quarto. Pedi
que preparassem para você o que fica ao lado do meu; é pequeno, mas
achei que gostaria mais dele do que um dos cômodos grandes na frente
da casa. Certamente eles têm uma mobília mais fina, mas são tão me-
lancólicos e solitários que eu mesma nunca durmo neles.
Eu a agradeci por sua escolha atenciosa e, como realmente me sentia
exausta após a longa jornada, expressei minha disposição a me retirar.
Ela pegou a vela e eu a segui para fora da sala. Primeiro, ela foi confe-
rir se a porta do saguão estava trancada e, tirando as chaves da fecha-
dura, guiou-me ao andar de cima. Os degraus e corrimãos eram de
carvalho e a janela na escadaria, alta e com treliça. Tanto ela como o
longo corredor para o qual as portas dos quartos se abriam pareciam
pertencer mais a uma igreja do que a uma casa. Um ar gélido como de
uma cripta impregnava as escadas e o corredor, sugerindo ideias som-
brias de espaço e solidão, e fiquei feliz quando fui finalmente levada ao
meu quarto e descobri que era um cômodo pequeno e mobiliado em
um estilo moderno comum.
Depois que a sra. Fairfax gentilmente me desejou boa-noite e eu fe-
chei a porta, observei o ambiente com calma e, em certa medida, des-
cartei a impressão sinistra deixada pelo saguão amplo, pela escadaria
escura e espaçosa e pelo corredor longo e frio, graças ao ar mais alegre
do meu quartinho, lembrei que, após um dia de fatiga física e ansieda-
de mental, eu estava, finalmente, em um porto seguro. Um impulso de
gratidão encheu meu peito e me ajoelhei ao lado da cama para oferecer
graças a quem eram devidas, não me esquecendo, antes de me levan-
tar, de suplicar por ajuda na minha futura trajetória e pela capacidade
de merecer a gentileza que pareceu ser tão sinceramente oferecida a
mim antes que eu lhe tivesse direito. Meu leito não tinha espinhos na-
quela noite; meu quarto solitário não encerrava temores. Ao mesmo
tempo exausta e feliz, adormeci rápido e profundamente. Quando
acordei, já era dia.
O quarto era um lugarzinho tão iluminado, com o sol brilhando en-
tre as alegres cortinas de chita azul-celeste da janela, mostrando um
papel de parede e um piso acarpetado tão diferentes das tábuas nuas e
das paredes manchadas de Lowood, que meu humor melhorou com a
vista. O ambiente exerce um grande efeito nos jovens. Pensei que uma
época de vida mais justa começava para mim, uma época que teria su-
as flores e prazeres, assim como seus espinhos e lidas. Minhas faculda-
des, excitadas pela mudança de cenário, a nova arena oferecida à espe-
rança, estavam em alvoroço. Não consigo definir precisamente o que
esperavam, mas era agradável — talvez, se não naquele dia ou mês, em
um período futuro indefinido.
Eu me levantei e me vesti com cuidado. Ainda que fosse obrigada a
ser discreta — pois não tinha uma única peça de roupa que não fosse
extremamente simples —, eu era, por natureza, preocupada com minha
apresentação. Não era meu hábito negligenciar a aparência ou ser des-
cuidada quanto à impressão que deixava nos
outros; pelo contrário, sempre desejava me
apresentar da melhor forma possível e agradar
o máximo que minha falta de beleza permitis-
se. Às vezes me lamentava por não ser mais
bonita — às vezes desejava ter faces rosadas,
um nariz reto e uma boca pequena de cereja;
desejava ter uma postura alta, imponente e
formosa; sentia que era um infortúnio ser tão
baixa, tão pálida, e ter feições tão irregulares e
tão marcantes. Por que tinha eu essas aspira-
ções e essas queixas? Seria difícil dizer — na
época, eu não sabia explicar o porquê nem a
mim mesma, mas eu tinha uma razão, e era
uma razão lógica e natural. Após escovar o cabelo até ficar muito liso,
colocar o vestido preto — o qual, apesar da aparência quacre41, tinha ao
menos o mérito de ser perfeitamente ajustado —, e arrumar a gola de
renda branca e limpa, pensei que estava respeitável o suficiente para
aparecer diante da sra. Fairfax, e que minha nova pupila ao menos não
iria recuar de mim com antipatia. Abri a janela do quarto, cuidei de
deixar tudo organizado e enfileirado na penteadeira, e finalmente me
aventurei a sair.
Atravessando a galeria longa e acarpetada, desci os degraus de car-
valho escorregadios até alcançar o saguão de entrada. Parei ali por um
minuto: olhei os quadros nas paredes (lembro que um deles retratava
um homem taciturno de armadura, outro uma dama de cabelo empoa-
do e colar de pérolas), a lamparina de bronze pendendo do teto, e o
grande relógio cuja caixa era de carvalho curiosamente entalhado e
preto como ébano devido ao tempo e ao lustro. Tudo parecia muito
majestoso e imponente, mas, é claro, eu estava pouco acostumada à
suntuosidade. A porta da frente, que era metade de vidro, estava aber-
ta, e eu cruzei o limiar. Era uma bela manhã de outono; o sol do início
da manhã brilhava serenamente sobre arvoredos marrons e campos
ainda verdes. Avançando pelo jardim, ergui os olhos e examinei a fa-
chada da mansão. Tinha três andares e suas proporções não eram vas-
tas, embora consideráveis: era a mansão de um cavalheiro, não o palá-
cio de um nobre. Ameias no topo davam-lhe um ar pitoresco. A facha-
da cinza destacava-se distintamente contra o pano de fundo de um vi-
veiro de gralhas, cujos habitantes crocitantes estavam soltos. Eles so-
brevoavam o jardim e o terreno da propriedade para pousar em um
grande campo, do qual estavam separados por uma cerca escavada, e
onde um conjunto de antigas árvores espinhosas, fortes, nodosas e lar-
gas como carvalhos, imediatamente explicaram a etimologia do nome
da mansão.42 Mais ao longe havia colinas: não tão altivas quanto aque-
las ao redor de Lowood, nem tão escarpadas, nem tão parecidas com
barreiras de separação do mundo dos vivos, mas bastante silenciosas e
solitárias, parecendo encerrar Thornfield em um isolamento que eu
não esperara encontrar tão perto da movimentada cidade de Millcote.
Um pequeno povoado, cujos telhados se fundiam com as árvores, espa-
lhava-se pela encosta de uma das colinas. A igreja do distrito ficava
mais perto de Thornfield; seu campanário assomava sobre um outeiro
entre a casa e os portões.
Eu ainda admirava a vista tranquila e o ar fresco e agradável, ainda
escutava com deleite ao canto das gralhas, ainda examinava a fachada
ampla e antiga da mansão e pensava como era um lugar vasto para
uma dama solitária como a sra. Fairfax habitar, quando a senhora em
questão apareceu à porta.
— Quê? Já saiu de casa? — disse ela. — Vejo que acorda cedo.
Fui até ela, que me recebeu com um beijo afável e um aperto de
mão.
— O que achou de Thornfield? — perguntou ela.
Eu lhe disse que gostara muito da mansão.
— É um lugar bonito, sim — disse ela —, mas receio que fique dilapi-
dado a não ser que o sr. Rochester considere residir aqui permanente-
mente. Ou, ao menos, visitar com mais frequência. Grandes mansões e
belas propriedades exigem a presença do proprietário.
— O sr. Rochester! — exclamei. — Quem é ele?
— O dono de Thornfield — respondeu ela, em voz baixa. — Não sabia
que ele se chamava Rochester?
Claro que não — eu nunca ouvira falar dele —, mas a velha dama pa-
recia considerar sua existência como um fato universalmente conheci-
do, com o qual todos deveriam estar familiarizados por instinto.
— Pensei que Thornfield pertencesse à senhora — continuei.
— A mim? Deus a abençoe, criança, que ideia! A mim? Eu sou só a
encarregada da casa… a governanta. É verdade que sou uma parente
distante dos Rochester pelo lado da mãe, ou, ao menos, meu marido
era. Ele era o pároco de Hay, aquele pequeno vilarejo lá longe na coli-
na, e aquela igreja perto dos portões era sua. A mãe do atual sr. Ro-
chester era uma Fairfax e prima de segundo grau do meu marido, mas
eu nunca me atreveria a tirar proveito da conexão. Na verdade, não
significa nada para mim; vejo-me como uma simples empregada. Meu
patrão é sempre cortês e eu não espero nada mais.
— E a menina? Minha pupila?
— É a protegida do sr. Rochester, que me encarregou de encontrar
uma preceptora para ela. Pretende que ela seja criada em …shire, acre-
dito eu. Lá vem ela com a sua “bonne”, como chama a ama.
O enigma estava assim explicado: aquela afável e gentil viúva não
era nenhuma grande dama, mas uma dependente, como eu mesma. Eu
não gostei menos dela por isso; pelo contrário, fiquei mais satisfeita do
que nunca. A igualdade entre nós era real, não mera condescendência
da parte dela. Melhor assim; minha situação era muito mais livre.
Enquanto eu meditava sobre essa descoberta, uma garotinha, segui-
da pela sua acompanhante, veio correndo pelo jardim. Olhei para a
minha pupila, que a princípio pareceu não reparar em mim. Ainda era
uma criança, talvez com sete ou oito anos, magra, com um rosto pálido
de feições delicadas e uma abundância de cabelos cacheados descendo
até a cintura.
— Bom dia, srta. Adela — disse a srta. Fairfax. — Venha falar com a
senhorita que vai instruí-la e torná-la uma mulher inteligente um dia.
Ela se aproximou.
— C’est là ma gouvernante? — perguntou, apontando para mim.
Dirigia-se à ama, que respondeu:
— Mais oui, certainement.43
— Elas são estrangeiras? — perguntei, espantada ao ouvir francês.
— A ama é estrangeira e Adela nasceu no continente e, acredito, só
saiu de lá seis meses atrás. Quando chegou aqui, não falava nada de in-
glês, mas agora consegue trocar de língua e conversar um pouco. Eu
não a entendo, porque ela mistura muito com o francês, mas ouso di-
zer que a senhorita vai conseguir compreendê-la muito bem.
Felizmente, eu tinha a vantagem de ter aprendido o idioma com
uma dama francesa e, como sempre fizera questão de conversar com
madame Pierrot o máximo possível e, nos últimos sete anos, tinha es-
tudado um pouco de francês todos os dias, esforçando-me para aper-
feiçoar o meu sotaque e imitando a pronúncia da professora o máximo
possível, eu adquirira certo nível de agilidade e precisão na língua, e
provavelmente não teria dificuldades com mademoiselle Adela. Ela
veio apertar minhas mãos quando ouviu que eu era sua preceptora e,
enquanto a conduzia para o café da manhã, eu lhe disse algumas frases
em sua própria língua. A menina deu respostas breves, no começo,
mas, depois que estávamos sentadas à mesa e ela tinha me examinado
por cerca de dez minutos com seus grandes olhos castanhos, passou a
tagarelar fluentemente.
— Ah! — exclamou ela, em francês. — A senhorita fala minha língua
tão bem quanto o sr. Rochester! Eu posso falar com a senhorita como
falo com ele, e com Sophie também. Ela vai ficar feliz, porque ninguém
aqui a entende. Madame Fairfax só fala inglês. Sophie é minha ama,
ela atravessou o oceano comigo em um grande navio com uma chami-
né que soltava fumaça, e quanta fumaça!, e eu fiquei enjoada, e Sophie
também, e o sr. Rochester também. O sr. Rochester se deitava em um
sofá em uma sala bonita chamada salão, e Sophie e eu tínhamos camas
em outro lugar. Quase caí da minha, era como uma prateleira. E made-
moiselle… qual é o seu nome?
— Eyre. Jane Eyre.
— Aire? Bah! Não consigo dizer. Bem, nosso navio parou de manhã,
antes que o dia nascesse, em uma grande cidade, uma cidade enorme,
com casas muito escuras e toda enfumaçada, nem um pouco parecida
com a cidadezinha limpa e bonita de onde eu vim, e o sr. Rochester me
carregou no colo sobre uma prancha até a terra firme, e Sophie veio
atrás, e todos entramos em uma carruagem que nos levou até uma ca-
sona bonita, maior do que essa e mais elegante, chamada de hotel. Fi-
camos lá quase uma semana. Eu e Sophie caminhávamos todo dia em
um enorme lugar verde, cheio de árvores, chamado de park, e havia
muitas crianças lá além de mim, e uma lagoa com pássaros bonitos,
que eu alimentava com migalhas de pão.
— Você consegue entender quando ela fala tão rápido? — perguntou a
sra. Fairfax.
Eu entendia muito bem, pois estava acostumada à língua fluente de
madame Pierrot.
— Eu gostaria — continuou a boa dama — que você perguntasse a ela
sobre seus pais. Queria saber se ela se lembra deles.
— Adèle — perguntei —, com quem você morou quando vivia naquela
cidade limpa e bonita?
— Muito tempo atrás eu morava com a mamãe, mas ela foi ficar com
a Virgem Maria. A mamãe me ensinava a dançar e cantar e recitar
versos. Muitos cavalheiros e damas iam visitá-la e eu dançava para
eles ou me sentava no colo deles e cantava. Gostava disso. Quer me ou-
vir cantar?
Ela tinha terminado o café da manhã, então eu permiti que me desse
uma amostra dos seus talentos. Descendo da cadeira, ela veio se sentar
no meu colo; em seguida, apoiou as mãos de maneira recatada à sua
frente, afastou os cachos do rosto e, erguendo os olhos para o teto, co-
meçou a cantar uma peça de alguma ópera. A canção tratava de uma
dama abandonada que, após se lamentar da perfídia do amante, cha-
ma o orgulho para ajudá-la: pede à criada que a enfeite com as joias
mais brilhantes e as vestes mais ricas e decide encontrar o traidor na-
quela noite em um baile para provar para ele, por sua atitude alegre,
como a deserção a afetou pouco.
O tema parecia uma escolha estranha para uma criança, mas supus
que o objetivo da exibição era ouvir as palavras de amor e inveja com
o ceceio da infância, e era um objetivo de muito mau gosto — pelo me-
nos, foi o que pensei.
Adèle cantou a canzonette com boa afinação e a ingenuidade de sua
idade. Isto feito, ela saltou do meu colo e disse:
— Agora, mademoiselle, vou lhe recitar um poema.
Aprumando-se, ela começou “A assembleia dos ratos”, de La Fontai-
ne. Declamou toda a curta obra com uma atenção à pontuação e à ên-
fase, uma flexibilidade de voz e uma adequação de gestos muito inco-
mum na sua idade e que provou que a menina fora treinada com cui-
dado.
— Foi sua mamãe que lhe ensinou essa obra? — perguntei.
— Foi, e ela falava bem desse jeito: “Qu’avez vous donc? lui dit un de
ces rats; parlez!”44 Ela me fazia levantar a mão… assim… para me lem-
brar de erguer a voz na pergunta. Agora quer que eu dance?
— Não, isso basta. Depois que sua mamãe foi ficar com a Virgem Ma-
ria, como você disse, com quem você morou?
— Com madame Frédéric e o marido dela. Ela cuidou de mim, mas
não éramos parentes. Acho que ela é pobre, porque não tinha uma casa
tão elegante quanto a da mamãe. Eu não fiquei lá muito tempo. O sr.
Rochester perguntou se eu gostaria de ir morar com ele na Inglaterra, e
eu disse que sim, porque conhecia o sr. Rochester antes de conhecer
madame Frédéric, e ele sempre foi gentil comigo e me deu vestidos e
brinquedos bonitos. Mas veja que ele não cumpriu sua promessa, por-
que me trouxe à Inglaterra e agora ele mesmo voltou para lá e eu nun-
ca o vejo.
Depois do café da manhã, Adèle e eu nos retiramos à biblioteca, cô-
modo que o sr. Rochester, aparentemente, tinha orientado que fosse
usado como sala de aula. A maioria dos livros estava trancada atrás de
portas de vidro, mas havia uma estante aberta, contendo todas as
obras fundamentais que poderiam ser necessárias e vários volumes de
literatura leve, poesia, biografias, relatos de viagem, alguns romances
etc. Suponho que ele considerou que era tudo de que uma preceptora
precisaria para seu uso particular — e, de fato, eles me satisfizeram
amplamente pelo momento. Comparados às ofertas escassas que eu
conseguira obter em Lowood vez ou outra, pareciam uma safra abun-
dante de entretenimento e informação. Naquele cômodo também havia
um piano vertical novíssimo e de sonoridade superior, assim como um
cavalete para pintura e um par de globos.
Minha pupila era bastante dócil, embora não tivesse um pendor pe-
los estudos. Ela não estava acostumada a ocupações regulares de ne-
nhum tipo. Senti que seria imprudente confiná-la demais no começo,
então, quando a manhã avançara para o meio-dia e eu tinha falado
muito e a convencido a aprender um pouco, deixei que ela voltasse pa-
ra junto da ama. Em seguida decidi me manter ocupada até a hora do
jantar desenhando alguns esboços para o uso dela.
Enquanto subia para pegar meu portfólio e lápis, a sra. Fairfax me
chamou.
— Imagino que suas aulas da manhã acabaram.
Disse isso de uma sala cujas portas duplas estavam abertas. Entrei
quando ela falou comigo. Era um cômodo grande e imponente, com ca-
deiras e cortinas púrpura, um tapete turco, paredes revestidas com
painéis de nogueira, uma janela ampla com vitral e um teto alto, com
uma refinada moldura em alto-relevo. A sra. Fairfax espanava alguns
vasos com um belo verniz púrpura que estavam sobre um aparador.
— Que bela sala! — exclamei, olhando ao redor, pois nunca vira nada
nem de longe tão imponente.
— Sim, é a sala de jantar. Acabei de abrir a janela para deixar entrar
um pouco de ar e luz, porque os cômodos que são raramente utilizados
ficam úmidos. A sala de estar ali atrás parece uma cripta.
Ela apontou uma ampla arcada aberta oposta à janela, coberta tam-
bém por uma cortina carmesim, no momento enrolada. Ao subir dois
degraus largos e espiar lá dentro, pensei que tinha captado um vislum-
bre de um lugar encantado, de tão brilhante parecia aos meus olhos
inexperientes. No entanto, era apenas uma sala de estar muito bonita,
dentro da qual havia um boudoir45. Ambos os ambientes estavam co-
bertos com tapetes brancos nos quais pareciam estar arranjadas bri-
lhantes guirlandas de flores, e ambos tinham tetos com molduras alvas
de uvas brancas e folhas de videiras, sob as quais brilhavam em rico
contraste sofás e otomanas carmesim, enquanto os ornamentos sobre a
cornija de mármore pálido eram de vidro boêmio vermelho-rubi cinti-
lante e, entre as janelas, grandes espelhos reproduziam a mescla geral
de neve e fogo.
— Como a senhora mantém organizadas essas salas, sra. Fairfax! —
exclamei. — Não há poeira, não há panos cobrindo os móveis. Não fosse
pelo ar, que é um pouco frio, eu pensaria que elas eram utilizadas dia-
riamente.
— Ora, srta. Eyre, embora as visitas do sr. Rochester sejam raras, são
sempre súbitas e inesperadas. E, como observei que ele fica incomoda-
do se encontra tudo sob panos e nos vê alvoroçados para ajeitar tudo à
sua chegada, achei que seria melhor manter os cômodos em prontidão.
— O sr. Rochester é um homem exigente e meticuloso?
— Não muito, mas tem os gostos e hábitos de um cavalheiro e espera
que as coisas sejam administradas de acordo.
— A senhora gosta dele? Ele é benquisto de forma geral?
— Ah, sim, a família sempre foi respeitada aqui. Quase todas as ter-
ras na vizinhança, até onde se pode ver, pertencem aos Rochester des-
de tempos imemoriais.
— Bem, mas deixando as terras de lado, a senhora gosta dele? Ele é
pessoalmente benquisto?
— Eu não tenho motivos para não gostar dele, e acredito que ele é
considerado um proprietário justo e generoso pelos seus locatários.
Mas ele nunca passou muito tempo entre eles.
— Mas ele não tem peculiaridades? Como é, em suma, o seu caráter?
— Ah! O caráter dele é irrepreensível, suponho. Ele é muito peculiar,
talvez. Viajou muito e viu muito do mundo, eu diria. Ouso dizer que é
inteligente, mas nunca conversei muito com ele.
— De que forma ele é peculiar?
— Não sei… não é fácil descrever… não é nada marcante, mas dá para
sentir quando ele fala com a gente. Nunca temos certeza se ele está
brincando ou sendo sincero, se está satisfeito ou o contrário. Não é
possível entendê-lo perfeitamente, em suma. Pelo menos, eu não en-
tendo. Mas não importa, ele é um ótimo patrão.
Isso foi tudo que ouvi da sra. Fairfax sobre seu empregador — e o
meu. Há pessoas que parecem não ter a habilidade de esboçar um ca-
ráter ou observar e descrever pontos salientes, seja em indivíduos ou
em coisas, e a gentil senhora evidentemente pertencia a essa categoria.
Minhas perguntas a confundiram, mas não a instigaram. Aos olhos de-
la, o sr. Rochester era o sr. Rochester; um cavalheiro, um proprietário
de terras, e nada mais. Ela não inquiria nem investigava além disso, e
evidentemente ficou surpresa com o meu desejo de obter uma ideia
mais definida da personalidade dele.
Quando deixamos a sala de jantar, ela propôs me mostrar o resto da
casa, e eu a segui, subindo e descendo escadas e admirando tudo no ca-
minho, pois a casa era bonita e muito bem arrumada. Achei os grandes
cômodos da frente especialmente majestosos, e algumas das salas no
terceiro andar, embora escuras e de teto baixo, eram interessantes pelo
ar antigo. Móveis que já haviam pertencido aos cômodos dos andares
de baixo eram de tempos em tempos levados para lá, ao sabor das mo-
das, e a luz imperfeita que entrava pelos batentes estreitos mostrava
cabeceiras de cem anos e baús de carvalho ou nogueira que pareciam,
com seus estranhos entalhes de folhas de palmeira e cabeças de queru-
bim, símbolos da arca hebraica;46 fileiras de estreitas cadeiras venerá-
veis, de encosto alto; bancos ainda mais antiquados e cujos assentos al-
mofadados continham traços aparentes de bordado parcialmente apa-
gados, criados por dedos que havia duas gerações já eram pó no caixão.
Todas essas relíquias davam ao terceiro andar de Thornfield Hall o as-
pecto de um lar do passado — um santuário da memória. Eu gostei da
quietude, da penumbra, da extravagância desses refúgios à luz do dia,
mas de forma alguma desejava uma noite de repouso em uma daque-
las camas largas e pesadas, algumas delas trancadas atrás de portas de
carvalho, outras, ocultas por velhas cortinas inglesas cobertas por um
bordado denso, retratando efígies de flores estranhas e pássaros ainda
mais estranhos e os seres humanos mais estranhos que eu já vira — to-
dos os quais teriam parecido estranhos, de fato, sob o pálido brilho do
luar.
— Os criados dormem nesses cômodos? — perguntei.
— Não, eles ocupam uma série de quartos menores nos fundos. Nin-
guém jamais dorme aqui. Quase se poderia dizer que, se houvesse um
fantasma em Thornfield Hall, esta seria a sua morada.
— Concordo. Não há nenhum fantasma, então?
— Nenhum de que eu já tenha ouvido falar — respondeu a sra. Fair-
fax, sorrindo.
— Nem tradições que falem deles? Nenhuma lenda ou história de
fantasma?
— Acredito que não. No entanto, dizem que os Rochester antigamen-
te eram uma família mais violenta do que pacífica. Quem sabe, porém,
esse seja o motivo de repousarem tranquilos em seus túmulos agora.
— Sim, “tranquilos dormem agora, após as convulsões da vida”47 —
murmurei. — Aonde vai agora, sra. Fairfax? — perguntei, pois ela se
afastava.
— Ao telhado. Quer ver a vista de lá?
Eu a segui, subindo uma escada muito estreita para alcançar o sótão,
e de lá mais alguns degraus em uma escadinha vertical até um alçapão
que levava ao telhado da casa. Estava na mesma altura que a colônia
de gralhas e, dali, via seus ninhos. Debruçando-me sobre as ameias e
olhando para baixo, a uma grande distância, examinei a propriedade
estendida como um mapa: o jardim colorido de veludo cingindo estrei-
tamente a base cinza da mansão; o campo, vasto como um parque,
pontilhado por árvores antigas; o bosque, marrom e murcho, dividido
por uma trilha claramente coberta de vegetação, mais verde com mus-
go do que as árvores estavam com folhagem; a igreja perto dos portões,
a estrada, as colinas tranquilas, todas repousando sob o sol de um dia
de outono; e o horizonte limitado por um céu azul propício, marmori-
zado de branco perolado. Nenhum aspecto da cena era extraordinário,
mas tudo era agradável. Quando me virei e passei de novo pelo alça-
pão, mal consegui enxergar ao descer os degraus da escadinha: o sótão
era escuro como uma cripta, comparado com aquele arco de céu azul
que eu estivera mirando e à paisagem ensolarada de arvoredos, pastos
e colinas verdes, da qual a mansão era o centro e que eu tinha fitado
com prazer.
A sra. Fairfax ficou para trás um momento para fechar a porta do
alçapão. Apalpando ao redor, encontrei a saída do sótão e desci a esca-
dinha estreita. Fiquei parada um tempo no longo corredor ao qual ela
levava, que separava os cômodos da frente e dos fundos no terceiro an-
dar. Estreito, baixo e escuro, com apenas uma janelinha na extremida-
de mais distante, parecia, com suas duas fileiras de pequenas portas
pretas, todas fechadas, o corredor que se veria no castelo de algum
Barba Azul.48
Enquanto eu andava suavemente por ali, alcançou meu ouvido o úl-
timo som que esperaria ouvir em uma área tão silenciosa: uma risada.
Era uma risada curiosa; distinta, formal, sem humor. Eu parei. O som
cessou, só por um instante, e então recomeçou mais alto — pois, a prin-
cípio, embora nítido, era muito baixo. Passou por mim em um repicar
clamoroso que pareceu despertar um eco em todos os cômodos solitá-
rios, embora se originasse apenas em um, e eu poderia ter apontado a
porta de onde provinha.
— Sra. Fairfax! — eu chamei, pois a ouvia descer a grande escada. —
Ouviu essa risada alta? Quem é?
— Alguns dos criados, certamente — ela respondeu. — Talvez Grace
Poole.
— A senhora ouviu? — perguntei de novo.
— Claramente, eu a ouço sempre. Ela fica costurando em um desses
quartos. Às vezes Leah a acompanha; elas sempre fazem barulho
quando estão juntas.
A risada repetiu-se, baixa e silábica, e terminou em um murmúrio
estranho.
— Grace! — chamou a sra. Fairfax.
Eu não esperava que nenhuma Grace respondesse, pois era a risada
mais trágica e sobrenatural que já escutara e, não fosse o fato de que
era o meio da tarde e nenhuma circunstância fantasmagórica acompa-
nhava a curiosa gargalhada, e nem o cenário nem a estação predispu-
nha ao medo, eu teria ficado supersticiosamente assustada. Entretanto,
o evento mostrou-me que eu era tola por sentir sequer um pingo de
surpresa.
A porta mais perto de mim se abriu e uma criada emergiu de lá —
uma mulher entre os trinta e quarenta anos, forte e atarracada, ruiva e
com um rosto duro e sem atrativos. Não se poderia imaginar uma apa-
rição menos romântica ou fantasmagórica.
— Que barulheira, Grace — censurou a sra. Fairfax. — Lembre-se de
suas ordens!
Grace fez uma mesura silenciosa e voltou para dentro.
— Nós a mantemos aqui para costurar e ajudar Leah nos serviços
domésticos — continuou a viúva. — Não é completamente irrepreensí-
vel em alguns pontos, mas trabalha bem o bastante. Aliás, você e sua
pupila ficaram bem esta manhã?
A conversa, voltada assim para Adèle, continuou até alcançarmos a
região iluminada e alegre do andar de baixo. A própria menina veio
correndo nos encontrar no salão, exclamando:
— Mesdames, vous êtes servies! — E acrescentou: — J’ai bien faim,
moi!49
Encontramos o jantar pronto e esperando por nós no quarto da sra.
Fairfax.
T
udo indicava que o sr. Rochester, por ordens do médico, fora
dormir cedo naquela noite. Também não acordou cedo na
manhã seguinte. Quando desceu, foi para tratar de negócios
— seu advogado e alguns locatários vieram à casa e esperaram para
falar com ele.
Adèle e eu tivemos então de abandonar a biblioteca, uma vez que
seria requisitada diariamente para receber visitantes. Uma lareira foi
acesa em um quarto no andar de cima, e carreguei nossos livros e or-
ganizei o cômodo para ser a futura sala de aula. Ao longo da manhã,
percebi que Thornfield Hall estava diferente: não mais silencioso co-
mo uma igreja, a cada uma ou duas horas ecoava uma batida na porta
ou o retinir de um sino. Passos também atravessavam o corredor com
frequência, e vozes novas falavam em diferentes tons lá embaixo. Um
regato do mundo externo fluía pela casa; ela tinha um senhor — e, da
minha parte, eu preferia assim.
Não foi fácil dar aulas a Adèle naquele dia. Ela não conseguia se
concentrar e ficava correndo até a porta e olhando por cima da ba-
laustrada para ver se conseguia pegar um vislumbre do sr. Rochester.
Depois inventava pretextos para descer as escadas, a fim de, como
suspeitei astutamente, visitar a biblioteca, onde eu sabia que sua pre-
sença era indesejada. Mais tarde, quando fiquei um pouco irritada e a
obriguei a sentar-se em silêncio, ela continuou a falar incessantemen-
te do seu “ami, monsieur Edouard Fairfax de Rochester”,54 como o
chamava (até então eu não conhecia seus primeiros nomes), e fazer
conjecturas sobre quais presentes ele lhe trouxera — pois pelo visto ele
insinuara na noite anterior que, quando sua bagagem chegasse de
Millcote, conteria uma caixinha cujos conteúdos eram do interesse da
menina.
— Et cela doit signifier — disse ela — qu’il y aura là dedans un cadeau
pour moi, et peut-être pour vous aussi, mademoiselle. Monsieur a parlé
de vous: il m’a demandé le nom de ma gouvernante, et si elle n’était pas
une petite personne, assez mince et un peu pâle. J’ai dit qu’oui: car c’est
vrai, n’est-ce pas, mademoiselle?55
Minha pupila e eu almoçamos, como sempre, nos aposentos da sra.
Fairfax; era uma tarde de neve e ventania, e a passamos na sala de
aula. Quando escureceu, deixei que Adèle guardasse os livros e tarefas
e descesse as escadas, pois, pelo silêncio comparativo lá embaixo e o
fim dos apelos à campainha, supus que o sr. Rochester estivesse livre.
Deixada a sós, fui até a janela, mas nada havia para ver dali. Juntos, o
crepúsculo e os flocos de neve espessavam o ar e ocultavam até os ar-
bustos no jardim. Fechei a cortina e voltei para junto da lareira.
Eu estava traçando uma paisagem nas brasas brilhantes, não muito
diferente de um quadro que me lembrava de ter visto do castelo de
Heidelberg, no rio Reno,56 quando a sra. Fairfax entrou, estilhaçando
com sua chegada o mosaico incandescente que eu vinha compondo, e
dispersando alguns pensamentos pesados e indesejados que começa-
vam a atacar-me na solidão.
— O sr. Rochester gostaria que você e sua pupila tomassem chá com
ele na sala de estar hoje — disse ela. — Ele esteve tão ocupado o dia to-
do que não pôde vê-la antes.
— Quando é a hora do chá? — perguntei.
— Ah, às seis. Ele faz as refeições cedo quando está no interior. É
melhor você se trocar agora; eu vou junto e a ajudo a amarrar o vesti-
do. Pegue esta vela.
— É necessário trocar de vestido?
— Seria melhor, sim. Eu sempre me arrumo para a noite quando o
sr. Rochester está aqui.
Essa cerimônia adicional pareceu um pouco pomposa. No entanto,
voltei ao quarto e, com a ajuda da sra. Fairfax, troquei o vestido de lã
preto por um de seda preta — o melhor e único sobressalente que eu
tinha, exceto por um cinza-claro que, com as
noções de etiqueta que eu adquirira em
Lowood, pensava ser fino demais para usar,
exceto nas ocasiões mais importantes.
— Você precisa de um broche — disse a sra.
Fairfax.
Eu tinha somente um ornamento de pérola,
que a srta. Temple me dera como lembranci-
nha de despedida. Prendi-o na roupa, e então
descemos. Desacostumada como estava a es-
tranhos, era uma certa provação aparecer as-
sim, convocada formalmente, na presença do sr. Rochester. Deixei que
a sra. Fairfax entrasse na sala de jantar primeiro e fiquei na sua som-
bra quando atravessamos a sala e, passando pela abertura em arco,
cuja cortina estava abaixada, entramos no elegante recesso além.
Duas velas de cera estavam acesas na mesa e mais duas na cornija
da lareira. Deliciando-se com a luz e o calor de um fogo esplêndido
estava Piloto, com Adèle ajoelhada ao seu lado. O sr. Rochester estava
meio reclinado em um sofá, o pé erguido em uma almofada. Ele olha-
va para Adèle e o cão; o fogo brilhava em cheio no seu rosto. Eu reco-
nheci meu viajante, com suas sobrancelhas largas e pretas e a testa
quadrada, ainda mais quadrada devido à linha horizontal de cabelo
escuro. Reconheci o nariz resoluto, mais notável pelo caráter do que
pela beleza; as narinas largas que, pensei, sugeriam cólera; e a boca, o
queixo e o maxilar taciturnos — sim, os três eram sem dúvida muito
taciturnos. Percebi que sua silhueta, agora sem a capa, harmonizava
com o rosto quadrado. Seria um bom porte no sentido atlético do ter-
mo, com o peito largo e os flancos estreitos, mas nem alto, nem gracio-
so.
O sr. Rochester devia estar ciente da entrada da sra. Fairfax e da
minha, mas pareceu não estar com vontade de reparar em nós, pois
nem sequer ergueu a cabeça enquanto nos aproximávamos.
— Cá está a srta. Eyre, senhor — disse a sra. Fairfax, do seu jeito ser-
vil.
Ele fez uma mesura, ainda sem desviar os olhos do cachorro e da
menina.
— Que a srta. Eyre se acomode — disse ele.
Havia algo na mesura rígida e forçada, no tom impaciente, mas for-
mal, que parecia expressar: “Por que diabos eu me importaria se a sr-
ta. Eyre está aqui ou não? Neste momento não estou inclinado a falar
com ela.”
Eu me sentei, bastante desembaraçada. Uma recepção de perfeita
polidez provavelmente teria me desconcertado — eu não saberia res-
ponder ou retribuir com graciosidade e elegância. Capricho e grosse-
ria, porém, não me deixavam sob nenhuma obrigação; pelo contrário,
um silêncio comedido, diante de modos extravagantes, me dava a
vantagem. Além disso, a excentricidade do procedimento era insti-
gante — eu estava curiosa para ver como ele prosseguiria.
Ele prosseguiu como uma estátua, isto é, nem falou, nem se moveu.
A sra. Fairfax pareceu pensar que alguém deveria ser cortês e come-
çou a falar. Gentilmente, como sempre (e, como sempre, de modo bas-
tante banal), ela se compadeceu dele pela pressão dos negócios de que
tratara o dia todo, pelo incômodo que deveria ter sofrido, com aquela
torção dolorida, e por fim elogiou a paciência e perseverança dele por
não ter desistido.
— Senhora, eu gostaria de chá — foi a única resposta que ela rece-
beu.
Ela se apressou em tocar a sineta e, quando a bandeja chegou, co-
meçou a dispor as xícaras, colheres etc., com rapidez assídua. Eu e
Adèle fomos à mesa, mas o senhor da casa não deixou o sofá.
— Pode entregar a xícara ao sr. Rochester? — perguntou a sra. Fair-
fax. — Adèle talvez a entorne.
Eu fiz como pedido. Enquanto ele tomava a xícara da minha mão,
Adèle, pensando que o momento era propício a fazer um pedido em
meu favor, exclamou:
— N’est-ce pas, monsieur, qu’il y a un cadeau pour Mademoiselle Eyre,
dans votre petit coffre?57
— Quem falou de cadeaux58? — ele perguntou rispidamente. — Espe-
rava um presente, srta. Eyre? Gosta de presentes?
Ele perscrutou meu rosto com olhos que notei serem escuros, irados
e penetrantes.
— Não saberia dizer, senhor. Tenho pouca experiência com eles, mas
em geral são considerados coisas boas.
— Em geral são considerados? Mas o que você pensa?
— Eu precisaria refletir por um tempo, senhor, antes de lhe dar uma
resposta digna de ser aceita. Um presente tem muitas faces, não é? E a
pessoa deveria considerar todas elas antes de pronunciar uma opinião
quanto à sua natureza.
— Srta. Eyre, vejo que não é tão pouco sofisticada quanto Adèle. Ela
exige um “cadeau” clamorosamente no instante em que me vê; já você
fica de rodeios.
— Porque tenho menos confiança no que me é devido do que Adèle.
Ela pode alegar o direito de uma amizade antiga, assim como o direito
do costume, pois disse que o senhor sempre teve o hábito de lhe dar
brinquedos. Mas se eu tivesse de argumentar a meu favor não saberia
o que dizer, pois sou uma desconhecida e não fiz nada que me dê di-
reito a tal reconhecimento.
— Ah, não recaia na modéstia excessiva! Eu examinei Adèle e desco-
bri que você se esforçou muito com ela. Ela não é inteligente e não
tem nenhum talento, mas em pouco tempo melhorou muito.
— O senhor me deu agora o meu cadeau, e agradeço. O prêmio que
as professoras mais cobiçam são elogios ao progresso de seus pupilos.
O sr. Rochester bufou e tomou seu chá em silêncio.
— Venham até o fogo — disse o senhor da casa quando a bandeja foi
removida e a sra. Fairfax se acomodou em um canto com seu tricô,
enquanto Adèle me puxava pela mão ao redor da sala, me mostrando
os belos livros e ornamentos nas mesinhas e chiffonnières.59
Obedecemos, como era nosso dever. Adèle queria sentar-se no meu
colo, mas recebeu ordens de se entreter com Piloto.
— Você reside na minha casa há três meses?
— Sim, senhor.
— E veio de…?
— Da escola de Lowood, em …shire.
— Ah! Uma instituição de caridade. Quanto tempo ficou lá?
— Oito anos.
— Oito anos! Deve ser apegada à vida. Creio que metade desse perí-
odo em um lugar desses destruiria qualquer constituição! Não é à toa
que parece ter vindo de outro mundo. Eu me perguntei mesmo onde
teria obtido esse tipo de rosto. Quando me surpreendeu na estrada de
Hay ontem à noite, por algum motivo eu pensei em contos de fadas e
quase perguntei se tinha enfeitiçado o meu cavalo. Ainda não tenho
certeza. Quem são seus pais?
— Eu não tenho pais.
— E nunca teve, suponho. Lembra-se deles?
— Não.
— Foi o que pensei. Então estava esperando o seu povo, quando se
sentou naquela escadinha?
— Esperando quem, senhor?
— Os homens de verde. Era uma noite de luar apropriada a eles. Eu
irrompi em um dos seus círculos, para ter espalhado aquele maldito
gelo na estrada?
Balancei a cabeça.
— Todos os homens de verde abandonaram a Inglaterra cem anos
atrás — respondi, falando com a mesma seriedade dele. — E nem na
estrada de Hay, nem nos campos ao redor, seria possível encontrar
qualquer resquício deles. Não acho que a lua, de verão, outono ou in-
verno, jamais brilhará sobre os seus festins.
A sra. Fairfax tinha deixado o tricô de lado e, com as sobrancelhas
erguidas, parecia se perguntar que tipo de conversa era aquela.
— Bem — continuou o sr. Rochester —, se diz que não tem pais, deve
ter algum tipo de parente. Tios e tias?
— Não, nenhum que já conheci.
— E sua casa?
— Não tenho casa.
— Onde moram seus irmãos e irmãs?
— Não tenho irmãos, nem irmãs.
— Quem lhe sugeriu que viesse aqui?
— Eu fiz um anúncio e a sra. Fairfax respondeu.
— Isso mesmo — disse a boa senhora, que estava outra vez em terre-
no familiar —, e todo dia agradeço a escolha que a Providência me le-
vou a fazer. A srta. Eyre tem sido uma companheira inestimável para
mim, e uma professora gentil e cuidadosa para Adèle.
— Não se dê ao trabalho de elogiar o caráter dela — retrucou o sr.
Rochester. — Louvores não vão me influenciar; eu julgarei por mim
mesmo. Ela começou derrubando meu cavalo.
— Senhor? — perguntou a sra. Fairfax.
— Eu devo a ela essa torção.
A viúva pareceu estupefata.
— Srta. Eyre, já morou em uma cidade?
— Não, senhor.
— Conheceu muitas pessoas?
— Ninguém exceto as pupilas e professoras de Lowood e agora os
habitantes de Thornfield.
— Leu muito?
— Só os livros que cruzaram meu caminho, e eles não foram muito
numerosos, nem eruditos.
— Você levou a vida de uma freira; sem dúvida tem experiência com
os hábitos religiosos. Brocklehurst, que pelo que entendo administra
Lowood, é um pároco, não é?
— Sim, senhor.
— E vocês, garotas, provavelmente o adoravam, como um convento
cheio de religieuses60 adoraria seu diretor?
— Ah, não.
— Que frieza! Não? Como assim? Uma noviça não adorar seu sacer-
dote! Isso soa blasfemo.
— Eu não gostava do sr. Brocklehurst e não estava sozinha nesse
sentimento. Ele é um homem rígido, ao mesmo tempo pomposo e en-
xerido. Cortava nosso cabelo e, para economizar, nos comprava agu-
lhas e meada ruins, com as quais mal conseguíamos costurar.
— Isso só dá a ilusão de economia — comentou a sra. Fairfax, que
novamente captava o assunto da conversa.
— E qual foi a fronte e o cimo da sua ofensa?61 — quis saber o sr. Ro-
chester.
— Quando era o único responsável pelas provisões, antes de um co-
mitê ser designado, ele nos fazia passar fome. Também nos entediava
com longos sermões uma vez por semana e leituras noturnas de obras
de sua própria autoria sobre mortes e julgamentos súbitos que nos
deixavam com medo de ir dormir.
— Com quantos anos foi para Lowood?
— Cerca de dez.
— E ficou lá uns oito anos. Agora tem dezoito, então?
Eu assenti.
— Veja como a aritmética é útil; sem o auxílio dela, eu não teria sido
capaz de estimar a sua idade. É difícil fixá-la quando as feições e o
semblante são tão discordantes, como no seu caso. Então, o que apren-
deu em Lowood? Sabe tocar piano?
— Um pouco.
— Claro, essa é a resposta padrão. Vá até a biblioteca. Quer dizer,
por gentileza. (Perdoe-me o tom de ordem; estou acostumado a dizer
“Faze isto” e vê-lo feito;62 não posso alterar meus hábitos para uma
nova residente.) Então, vá à biblioteca, leve uma vela, deixe a porta
aberta, sente-se ao piano e toque uma música.
Eu parti e obedeci a suas orientações.
— Basta! — ele gritou após alguns minutos. — Você toca um pouco, eu
vejo, como qualquer outra estudante inglesa. Talvez melhor que algu-
mas, mas não bem.
Fechei o piano e retornei. O sr. Rochester continuou:
— Adèle me mostrou alguns esboços esta manhã que ela disse serem
seus. Não estou convencido de que sejam inteiramente de sua autoria.
Provavelmente um professor a ajudou?
— De forma alguma! — exclamei.
— Ah! Isso alfineta o orgulho. Bem, traga seu portfólio para mim, se
for capaz de jurar que os conteúdos são originais, mas não dê sua pa-
lavra se não estiver segura. Eu sei reconhecer um pastiche.
— Então não direi nada e o senhor julgará por si só.
Eu trouxe o portfólio da biblioteca.
— Traga a mesa para cá — disse ele, e eu a empurrei até o sofá.
Adèle e a sra. Fairfax se aproximaram para olhar os desenhos.
— Não se aglomerem — disse o sr. Rochester. — Peguem os desenhos
da minha mão quando eu terminar de observá-los, mas não aproxi-
mem o rosto do meu.
Ele deliberadamente esquadrinhou cada esboço e pintura. Deixou
três de lado; os outros, depois de examiná-los, afastou.
— Leve-os à outra mesa, sra. Fairfax — disse ele — e observe-os com
Adèle. Você — olhando para mim —, sente-se de novo e responda às
minhas perguntas. Percebo que estes desenhos foram todos feitos por
uma única mão. Essa mão foi sua?
— Foi.
— E quando encontrou tempo para fazê-los? Levaram muito tempo,
e um pouco de planejamento.
— Eu os fiz nas duas últimas férias que passei em Lowood, quando
não tinha outra ocupação.
— Onde obteve seus modelos?
— Da minha cabeça.
— Essa cabeça que vejo agora sobre seus ombros?
— Sim, senhor.
— Outras peças do tipo ocupam o seu interior?
— Acredito que seja possível. Eu espero que sim… e que sejam me-
lhores.
Ele espalhou os desenhos diante de si e novamente os examinou,
um por vez.
Enquanto ele está ocupado fazendo isso, eu lhe contarei, leitor, o
que retratam. Antes de tudo, devo dizer que não são nada de espeta-
cular. Os temas tinham, de fato, surgido vividamente na minha imagi-
nação. Como eu os vira com o olho espiritual, antes de tentar retratá-
los, eram impressionantes, mas minha mão não estava à altura da
fantasia e, em cada caso, criara apenas um retrato limitado do que eu
havia concebido.
As pinturas eram aquarelas. A primeira representava nuvens bai-
xas e arroxeadas, deslizando sobre um mar revolto. Tudo ao longe es-
tava turvo; assim como o primeiro plano, ou, melhor dizendo, os va-
galhões mais próximos, pois não havia terra firme. Um feixe de luz
destacava um mastro submergido pela metade, no qual se sentava um
cormorão, grande e escuro, com asas salpicadas de espuma. No bico
ele segurava uma pulseira de ouro, incrustada de pedras preciosas,
que eu pintara com os matizes mais brilhantes que minha paleta po-
dia fornecer e a nitidez mais reluzente que meu lápis era capaz de
transmitir. Abaixo do pássaro e do mastro, um cadáver afogado emer-
gia da água verde. Um braço branco era o único membro claramente
visível, de onde a pulseira tinha deslizado ou sido arrancada.
A segunda pintura continha, no primeiro plano, só o cume turvo de
uma colina, com grama e algumas folhas oblíquas, como se inclinadas
por uma brisa. Além e acima, estendia-se um céu vasto, azul-escuro,
ao crepúsculo, e, erguendo-se em direção ao céu, o busto de uma mu-
lher, retratado com os tons mais suaves e sombrios que consegui com-
binar. A testa baça estava coroada com uma estrela; as feições abaixo
eram vistas como se através de um vapor espalhado; os olhos cintila-
vam, escuros e ferozes; o cabelo caía em meio a sombras, como uma
nuvem escura rasgada por uma tempestade ou descarga elétrica. Em
seu pescoço havia um reflexo pálido como o luar; o mesmo brilho fra-
co tocava o rastro de nuvens ralas dos quais se erguia e se curvava es-
ta visão da Estrela d’Alva.
A terceira pintura mostrava o pico de um iceberg perfurando um
céu de inverno polar: um batalhão de feixes da aurora boreal erguia
suas lanças escuras, em fileiras apertadas, pelo horizonte. Deixando-
as distantes, erguia-se, em primeiro plano, uma cabeça — uma cabeça
colossal, inclinada em direção ao iceberg e descansando contra ele.
Duas mãos estreitas, unidas sob a testa e apoiando-a, puxavam diante
das feições um véu de zibelina; só estavam visíveis uma fronte exan-
gue, branca como osso, e um olho vazio e fixo, destituído de significa-
do exceto pela apatia do desespero. Acima das têmporas, entre dobras
de um turbante preto, tão vago em caráter e consistência quanto uma
nuvem, reluzia um aro de chamas brancas, adornado com brilhantes
de um vívido matiz. Esse crescente pálido era “o retrato da coroa de
um rei”, que servia de diadema para “a forma que não tinha forma”.63
— Você estava feliz quando fez esses desenhos? — perguntou o sr.
Rochester pouco depois.
— Eu estava absorta, senhor. E, sim, estava feliz. Pintá-los, em su-
ma, foi um dos maiores prazeres que já conheci.
— Isso não significa muito. Os seus prazeres, pelo que você mesma
disse, foram poucos, mas ouso dizer que habitou uma espécie de terra
dos sonhos dos artistas enquanto misturava e organizava esses estra-
nhos matizes. Ficou muito tempo sentada com eles todos os dias?
— Eu não tinha mais o que fazer, porque estava de férias, então me
sentava com eles da manhã à tarde, e da tarde à noite. A duração dos
dias de verão favorecia minha inclinação a me dedicar a eles.
— E ficou satisfeita com o resultado de sua labuta ardente?
— Longe disso. Fiquei atormentada pelo contraste entre a concepção
e a obra. Em todos os casos, imaginei algo que fui incapaz de realizar.
— Não chega a tanto. Você assegurou a sombra do seu pensamento,
embora provavelmente não mais que isso. Não tinha a habilidade e o
conhecimento artísticos para trazê-lo à tona por completo. No entan-
to, são desenhos peculiares para uma estudante. Quanto aos pensa-
mentos, são élficos. Esses olhos na Estrela d’Alva, você deve ter visto
em sonho. Como os fez parecer tão nítidos e ao mesmo tempo nem
um pouco brilhantes, pois o planeta acima extingue os seus raios? E
que significado há em suas profundezas solenes? E quem lhe ensinou
a pintar o vento? Há uma lufada forte naquele céu e no topo dessa co-
lina. Onde você viu o Latmos? Pois este é o monte Latmos.64 Chega,
tire os desenhos daqui!
Eu mal havia amarrado os cordões do portfólio quando, olhando
para o relógio, ele disse abruptamente:
— São nove da noite. O que está pensando, srta. Eyre, deixando
Adèle ficar acordada até essa hora? Leve-a à cama.
Adèle foi beijá-lo antes de sair da sala. Ele suportou a carícia, mas
pareceu não a apreciar mais do que Piloto teria feito, se tanto.
— Desejo boa noite a todas agora — disse ele, fazendo um gesto em
direção à porta, indicando que estava cansado da nossa companhia e
que desejava nos dispensar.
A sra. Fairfax dobrou seu tricô; eu peguei meu portfólio. Fizemos
mesuras, recebemos um aceno frio em resposta e nos retiramos.
— A senhora disse que o sr. Rochester não era muito peculiar, sra.
Fairfax — observei quando me juntei a ela no seu quarto, após pôr
Adèle na cama.
— Ora, e ele é?
— Creio que sim. É volúvel e abrupto.
— É verdade. Sem dúvida pode parecer assim a alguém de fora, mas
estou tão acostumada com o jeito dele que nem penso nisso. E, claro,
se ele tem peculiaridades de temperamento, é preciso fazer conces-
sões.
— Por quê?
— Em parte porque é a natureza dele, e nenhum de nós pode mudar
a própria natureza, e, em parte, porque ele tem pensamentos doloro-
sos, sem dúvida, que o atormentam e deixam seu ânimo inconstante.
— Do que se tratam?
— Problemas familiares, para começar.
— Mas ele não tem família.
— Não mais, mas tinha. Ao menos, parentes. Ele perdeu o irmão
mais velho há alguns anos.
— O irmão mais velho?
— Sim. O atual sr. Rochester não está em posse da propriedade há
muito tempo, só cerca de nove anos.
— Nove anos é um tempo considerável. Ele amava tanto o irmão
que ainda está inconsolável pela perda?
— Ora, não. Talvez não. Acredito que havia alguns mal-entendidos
entre eles. O sr. Rowland Rochester não era muito justo com o sr.
Edward e talvez tenha colocado o pai contra ele. O velho cavalheiro
era afeito ao dinheiro e preocupava-se em manter a propriedade fa-
miliar intacta. Não queria reduzi-la ao dividi-la, mas também estava
ansioso para que o sr. Edward fizesse uma fortuna para manter a im-
portância do nome da família, e logo que ele atingiu a maioridade fo-
ram tomadas algumas medidas não muito justas e que causaram
grandes danos. O velho sr. Rochester e o sr. Rowland se juntaram para
pôr o sr. Edward no que ele considerou ser uma posição muito doloro-
sa, em prol de fazer sua fortuna. A natureza exata dessa posição, eu
nunca soube claramente, mas o espírito dele não conseguiu suportar o
que sofreu por conta disso. Ele não perdoa fácil: rompeu com a famí-
lia e há muitos anos vive uma vida um tanto errante. Não acho que
passou uma quinzena inteira em Thornfield desde que a morte do ir-
mão, que não deixou testamento, o tornou senhor da propriedade, e,
de fato, não surpreende que ele evite a antiga mansão.
— Por que deveria evitá-la?
— Talvez pense que é deprimente.
A resposta era evasiva — eu teria gostado de algo mais claro, mas a
sra. Fairfax ou não podia ou não queria me dar informações mais ex-
plícitas sobre a origem e natureza das atribulações do sr. Rochester.
Garantiu-me que eram um mistério para ela mesma, e que o que sa-
bia era principalmente por conjecturas. Ficou evidente, na verdade,
que preferiria que eu deixasse o assunto de lado, o que fiz então.
P
or vários dias depois disso, eu vi pouco o sr. Rochester. De
manhã ele parecia muito ocupado com os negócios, e à tarde
cavalheiros de Millcote ou da vizinhança o visitavam e às ve-
zes ficavam para jantar com ele. Quando seu tornozelo estava recupe-
rado o bastante para permitir que se exercitasse no cavalo, ele come-
çou a sair para cavalgar com frequência — provavelmente para retri-
buir essas visitas, dado que geralmente só voltava tarde da noite.
Durante esse período, até Adèle era raramente chamada à sua pre-
sença, e todas as minhas interações com ele limitavam-se a encontros
ocasionais no saguão, nas escadas ou nos corredores, onde ele às vezes
passava por mim, frio e arrogante, reconhecendo minha presença
com um aceno distante ou olhar indiferente, e às vezes fazendo uma
mesura ou abrindo um sorriso com afabilidade cavalheiresca. Suas
mudanças de humor não me ofendiam, porque via que eu não tinha
relação com essa alternância; a flutuação dependia de causas sem co-
nexão comigo.
Um dia, ele recebeu companhia para o jantar e pediu que meu port-
fólio fosse levado até lá, a fim, sem dúvida, de exibir seu conteúdo. Os
cavalheiros partiram cedo, para comparecer a uma reunião pública
em Millcote, como a sra. Fairfax me informou, mas, como a noite esta-
va úmida e inclemente, o sr. Rochester não os acompanhou. Assim
que partiram, ele tocou a sineta. Uma mensagem chegou, dizendo que
Adèle e eu deveríamos descer. Escovei o cabelo dela e ajeitei seu vesti-
do, e, após certificar-me de que eu mesma estava decente em meus
costumeiros trajes de quacre, nos quais não havia nada a ser retocado
— tudo sendo austero e simples demais, incluindo as tranças, para ad-
mitir desalinho —, nós descemos. Adèle se perguntava se o petit cof-
fre65 enfim tinha vindo, pois, devido a algum problema, sua chegada
estava atrasada até o momento. Ela ficou satisfeita: quando entramos
na sala de jantar, havia na mesa uma pequena caixa. Ela pareceu re-
conhecê-la por instinto.
— Ma boîte! Ma boîte!66 — exclamou, correndo em direção à caixa.
— Sim, cá está finalmente sua boîte. Leve-a para um canto, filha ge-
nuína de Paris, e divirta-se a estripando — disse a voz grave e bastante
sarcástica do sr. Rochester, vinda das profundezas de uma enorme
poltrona junto à lareira. — E atenção — continuou —, não me incomode
com qualquer detalhe do processo anatômico ou qualquer comentário
sobre o estado das vísceras. Que sua operação seja conduzida em si-
lêncio: tiens-toi tranquille, enfant; comprends-tu?67
Adèle nem pareceu precisar do aviso; já tinha se retirado a um sofá
com seu tesouro e estava ocupada desatando a corda que prendia a
tampa. Após remover esse obstáculo e erguer certos embrulhos de pa-
pel de seda prateado, só exclamou:
— Oh ciel! Que c’est beau!68 — E então permaneceu absorta em con-
templação extática.
— A srta. Eyre está aí? — quis saber então o senhor da casa, erguen-
do-se um pouco do assento para olhar a porta, onde eu esperava. —
Ah! Bem, venha cá, sente-se aqui. — Ele puxou uma poltrona para
perto da sua. — Eu não sou afeito à tagarelice das crianças, pois, como
um velho solteirão, não tenho associações agradáveis conectadas ao
seu cecear. Para mim seria intolerável passar uma noite toda tête-à-
tête com uma pirralha. Não afaste essa poltrona, srta. Eyre, sente-se
exatamente onde a coloquei. Quer dizer, por gentileza. Essas malditas
cortesias! Sempre me esqueço delas. Também não tenho muita tole-
rância com senhoras simplórias. Inclusive, quase me esqueci da mi-
nha e não posso negligenciá-la. Ela é uma Fairfax, ou casada com um,
e dizem que o sangue é mais denso que a água.
Ele tocou a sineta e enviou um convite à sra. Fairfax, que logo che-
gou com o cesto de tricô em mãos.
— Boa noite, senhora. Eu a chamei com um objetivo caridoso. Proibi
Adèle de conversar comigo sobre seus presentes e ela está transbor-
dando de satisfação; faça a gentileza de servir como ouvinte e interlo-
cutrice:69 Será um dos atos mais benevolentes que jamais realizará.
De fato, assim que viu a sra. Fairfax, Adèle a chamou até o sofá, e lá
rapidamente encheu o colo da dama de porcelana, marfim e os conte-
údos de cera da sua “boîte”, despejando, enquanto isso, explicações ex-
tasiadas no seu inglês sofrido.
— Agora que cumpri o papel de bom anfitrião — prosseguiu o sr. Ro-
chester —, orquestrando as coisas de modo que minhas convidadas
entretenham uma à outra, devo estar livre para perseguir meu pró-
prio prazer. Srta. Eyre, puxe seu assento um pouco mais para a frente.
Ainda está longe demais, não consigo vê-la sem mudar minha posição
nesta poltrona confortável, o que não tenho qualquer vontade de fa-
zer.
Fiz como ordenado, mesmo que preferisse permanecer um pouco
nas sombras. Porém, o sr. Rochester tinha um jeito tão direto de dar
ordens que parecia natural obedecê-lo de imediato.
Estávamos, como eu disse, na sala de jantar. O lustre, que fora aceso
para o jantar, enchia o cômodo com uma luz festiva e abrangente; o
fogo alto estava vermelho e brilhante; as cortinas púrpura caíam, ricas
e amplas, diante da magnífica janela e do arco ainda mais magnífico;
tudo estava imóvel exceto pela voz baixa de Adèle (ela não ousava fa-
lar alto) e, preenchendo cada pausa, o tamborilar da chuva de inver-
no contra as vidraças.
O sr. Rochester, sentado na poltrona estofada de damasco, estava di-
ferente de como eu o vira antes — não tão severo, e bem menos taci-
turno. Havia um sorriso nos lábios e uma centelha nos olhos; se isso
se devia ao vinho ou não, não tenho certeza, mas acho muito prová-
vel. Era, em suma, seu típico humor após o jantar: mais expansivo e
sociável, e também mais autoindulgente do que o temperamento rígi-
do e frígido da manhã. Mesmo assim, parecia profundamente som-
brio, com a enorme cabeça apoiada no encosto cheio da cadeira e re-
cebendo a luz do fogo nas feições talhadas de granito e nos olhos gran-
des e escuros. Pois tinha olhos grandes e escuros, e muito belos tam-
bém — em cujas profundezas não deixava de haver certa mudança, a
qual às vezes, se não era suavidade, ao menos lembrava o observador
desse sentimento.
Ele estava olhando para o fogo havia dois minutos, e eu tinha pas-
sado o mesmo tempo olhando para ele, quando, virando-se subita-
mente, ele captou meu olhar fixo em sua fisionomia.
— Você me examina, srta. Eyre — disse ele. — Acha que sou belo?
Se tivesse deliberado, eu teria respondido a essa pergunta com algo
convencionalmente vago e educado, mas a resposta de alguma forma
escapou da minha língua antes que eu me desse conta.
— Não, senhor.
— Ah! Palavra! Há algo singular em você — disse ele. — Tem o ar de
uma pequena nonnette;70 antiquada, calada, séria e simples, sentada aí
com as mãos no colo e os olhos geralmente abaixados para o tapete
(exceto, é claro, quando estão focados de modo penetrante no meu
rosto, como agora há pouco, por exemplo), e quando alguém lhe faz
uma pergunta ou um comentário que é obrigada a responder, você
dispara uma réplica franca que, se não rude, é no mínimo brusca. O
que quer dizer com isso?
— Senhor, eu fui breve demais, perdoe-me. Devia ter falado que não
é fácil dar uma resposta imediata a uma pergunta sobre aparências,
que gostos diferem, e que a beleza é de pouca importância ou algo do
tipo.
— Não deveria ter falado nada do gênero. A beleza ser de pouca im-
portância, ora! E dessa forma, com a intenção de suavizar a ofensa
anterior, de me afagar e aplacar até deixar-me plácido, você aperta
uma lâmina sorrateira sob minha orelha! Vamos, diga: que defeitos
encontra em mim? Eu não tenho todos os membros e partes, como
qualquer homem?
— Sr. Rochester, permita-me renegar minha primeira resposta. Não
pretendia fazer nenhum gracejo cruel; foi apenas um lapso.
— Exatamente, foi o que pensei, e você deverá responder por isso.
Critique-me. Minha testa não lhe agrada?
Ele ergueu as ondas de cabelo preto que caíam horizontais sobre a
testa e me mostrou uma massa bastante sólida de órgãos intelectuais,
mas com uma deficiência abrupta onde o sinal suave da benevolência
deveria se erguer.
— Agora diga-me, senhorita: eu sou algum tolo?
— Longe disso, senhor. Talvez me ache rude por perguntar, mas por
acaso é um filantropo?
— Aí vai você de novo! Outra cutucada da lâmina, enquanto ela fin-
ge afagar minha cabeça, e só porque eu disse que não gostava da com-
panhia de crianças e senhoras (falemos em voz baixa!). Não, senhori-
ta, eu não sou um filantropo, de modo geral, mas tenho uma consciên-
cia. — E apontou para as saliências que deveriam indicar essa faculda-
de e que, felizmente para ele, eram bem evidentes e concediam uma
amplitude distinta à parte superior de sua cabeça. — Além disso, já
experimentei uma espécie de ternura rude. Quando tinha a sua idade,
era um sujeito razoavelmente sensível, com compaixão pelos inexpe-
rientes, isolados e infelizes, mas o destino tem me maltratado desde
então, até me sovando sob os dedos, e agora gosto de pensar que sou
tão duro e resistente quanto uma bola de borracha, ainda que perme-
ável, devido a uma ou outra rachadura, e com um ponto sensível no
meio da massa. Sim. Resta alguma esperança para mim?
— Esperança do quê, senhor?
— Minha transformação final de borracha de volta à carne?
Ele definitivamente bebeu vinho demais, pensei, e não sabia que res-
posta dar à estranha pergunta. Como eu poderia saber se ele era ca-
paz de ser transformado?
— Você parece muito perplexa, srta. Eyre, e, embora não seja mais
bela do que eu, um ar de perplexidade lhe cai bem. Além disso, é con-
veniente, pois mantém esses seus olhos inquisidores afastados da mi-
nha fisionomia e os ocupa com as flores tecidas no tapete, então conti-
nue perplexa. Senhorita, estou inclinado a ser sociável e comunicativo
esta noite.
Com esse anúncio, ele se ergueu da cadeira e apoiou o braço na cor-
nija de mármore. Nessa posição, seu corpo era tão visível quanto o
rosto, com a largura incomum do peito, quase desproporcional ao
comprimento dos membros. Tenho certeza de que a maioria das pes-
soas o teria considerado um homem feio, mas havia tanto orgulho in-
consciente em sua postura, tanta tranquilidade em sua atitude, um
olhar de tão completa indiferença quanto à própria aparência externa,
uma confiança tão arrogante na capacidade de outras qualidades in-
trínsecas ou acidentais de compensar a falta de mera atratividade
pessoal, que, ao olhar para ele, o observador inevitavelmente compar-
tilhava dessa sua indiferença e, mesmo que de um modo inconsciente
e imperfeito, acabava pensando como ele.
— Estou inclinado a ser sociável e comunicativo esta noite — ele re-
petiu —, e foi por isso que mandei chamá-la. A lareira e o lustre não
seriam companhia suficiente para mim; Piloto também não, pois ne-
nhum deles sabe falar. Adèle é um pouco melhor, mas ainda está mui-
to aquém do ideal, e a sra. Fairfax, idem. Mas estou convencido de que
você poderá servir, se me fizer esse favor. Você me intrigou na primei-
ra noite em que a convidei a vir aqui embaixo. Quase a esqueci desde
então, outras ideias a tiraram da minha cabeça, mas hoje estou deter-
minado a ficar à vontade, ignorar aquilo que importuna e recordar o
que agrada. E me agradaria fazê-la falar e saber mais sobre você. Por-
tanto, fale.
Em vez de falar, eu sorri, e não foi um sorriso muito complacente,
nem submisso.
— Fale — ele instou.
— Do quê, senhor?
— Do que quiser. Deixo tanto a escolha de assunto como o modo de
abordá-lo inteiramente nas suas mãos.
Consequentemente, fiquei sentada e não disse nada. Se ele espera
que eu fale só por falar e para me exibir, descobrirá que se dirigiu à pes-
soa errada, pensei.
— Você está calada, srta. Eyre.
E continuei assim. Ele inclinou um pouco a cabeça na minha dire-
ção e, com um único olhar ligeiro, pareceu mergulhar nos meus olhos.
— Teimosa? — disse. — E irritada. Ah, é condizente com você. Fiz o
meu pedido de uma forma absurda e quase insolente. Srta. Eyre, im-
ploro o seu perdão. O fato é que, de uma vez por todas, não desejo tra-
tá-la como inferior. Isto é — emendando-se —, alego apenas a superio-
ridade que deve resultar de uma diferença de vinte anos em idade e a
vantagem de um século em experiência. Isso é legítimo, et j’y tiens,71
como Adèle diria, e é pela virtude dessa superioridade e apenas por
isso que desejo que faça a gentileza de conversar um pouco comigo
agora e distrair meus pensamentos, que estão fartos de tanto ruminar
em um ponto, infeccionados como um prego enferrujado.
Ele se dignara a dar uma explicação, quase um pedido de desculpas.
Não fiquei insensível à concessão e não quis parecer estar.
— Estou disposta a entretê-lo se puder, senhor, perfeitamente dis-
posta, mas não posso introduzir um assunto, porque como saberei o
que o interessa? Faça-me perguntas e eu darei o meu melhor para
respondê-las.
— Então, em primeiro lugar, você concorda que tenho direito a ser
um pouco imperioso e abrupto, talvez exigente, às vezes, com base nos
aspectos que citei, isto é, que tenho idade para ser seu pai e sobrevivi
a variadas experiências com muitos homens de muitas nações e pe-
rambulei por metade do globo, enquanto você levou uma vida pacata
com o mesmo grupo de pessoas em uma única casa?
— Faça como lhe agradar, senhor.
— Isso não é resposta. Ou, antes, é uma resposta muito irritante,
porque muito evasiva. Responda claramente.
— Não acho, senhor, que tenha direito a me dar ordens apenas por-
que é mais velho que eu, ou porque viu mais do mundo que eu. Seu
direito à superioridade depende do uso que fez do seu tempo e expe-
riência.
— Hunf! Com que prontidão você respondeu. Mas não aceitarei seu
argumento, uma vez que nunca me beneficiaria de nenhuma dessas
vantagens, dado que fiz delas um uso indiferente, para não dizer
ruim. Deixando a superioridade de lado, você deve ao menos concor-
dar em receber minhas ordens vez ou outra, sem ficar irritada ou ma-
goada por meu tom autoritário. Fará isso?
Eu sorri. Pensei comigo mesma: O sr. Rochester é, sim, muito peculi-
ar — parece ter esquecido que me paga trinta libras por ano para aca-
tar as suas ordens.
— É bom sorrir — disse ele, notando imediatamente a expressão fu-
gaz —, mas fale também.
— Eu estava pensando, senhor, que poucos empregadores se dariam
ao trabalho de perguntar se seus subordinados pagos ficaram irrita-
dos e magoados por suas ordens.
— Subordinados pagos! O quê, você é minha subordinada paga, é?
Ah, sim, esqueci-me do salário! Bem, então, com base nesse argumen-
to mercenário, concordará em me deixar amolá-la um pouco?
— Não, senhor, não com base nisso. Mas pelo fato de que se esque-
ceu disso e se importa se uma empregada está ou não confortável em
sua residência, eu concordo de coração.
— E consentirá em dispensar muitas formas e frases convencionais,
sem pensar que a omissão decorre de insolência?
— Tenho certeza, senhor, de que eu nunca confundiria informalida-
de com insolência. De uma, eu gosto bastante; à outra, nenhuma cria-
tura nascida livre se submeteria, mesmo por um salário.
— Que bobagem! A maioria das criaturas nascidas livres se subme-
terão a qualquer coisa por um salário; portanto, cale-se e não se arris-
que a fazer generalizações sobre assuntos dos quais é intensamente ig-
norante. Dito isso, aperto sua mão mentalmente pela resposta, apesar
da imprecisão, tanto pela maneira como foi dita, quanto pelo conteú-
do do discurso. A maneira foi franca e sincera, algo que não se vê com
frequência. Não, pelo contrário, afetação ou frieza ou uma interpreta-
ção equivocada, estúpida e grosseira são as recompensas usuais do
candor. Nem três em três mil governantas inexperientes e recém-saí-
das da escola teriam me respondido como você fez agora. Mas não
pretendo lisonjeá-la. Se foi criada em um molde diferente da maioria,
não é mérito seu: foi a Natureza que fez isso. Além disso, estou tirando
conclusões rápido demais. Até onde sei, você talvez não seja melhor
que o resto, e pode ter defeitos intoleráveis para equilibrar suas pou-
cas qualidades.
O senhor também, eu pensei. Meu olhar encontrou o dele enquanto
essa ideia cruzou minha mente. Ele pareceu ler minha expressão, res-
pondendo como se o pensamento tivesse sido falado, além de imagi-
nado:
— Pois é, você tem razão. Eu tenho defeitos de sobra. Sei disso e não
desejo minimizá-los, eu lhe asseguro. Sabe-se bem que não posso jul-
gar os outros muito severamente. Tenho uma existência anterior, uma
série de atos, uma vida colorida para contemplar em meu próprio seio
que poderia muito bem desviar meu desdém e censura dos meus vizi-
nhos contra mim mesmo. Eu comecei, ou melhor (pois, como outros
infratores, gosto de jogar metade da culpa no azar e em circunstâncias
adversas), fui lançado em um caminho errado aos vinte e um anos e
nunca retomei o curso correto. Mas eu poderia ter sido muito diferen-
te, poderia ter sido tão bom quanto você; mais sábio e quase tão ima-
culado. Invejo sua paz de espírito, sua consciência limpa, sua memória
impoluta. Mocinha, uma memória sem mácula nem contaminação
deve ser um tesouro magnífico, uma fonte inexaurível de pura leveza,
não acha?
— Como era sua memória aos dezoito anos, senhor?
— Na época, boa, límpida e salubre. Nenhum jato de água estagnada
a transformara em uma poça fétida. Eu era seu igual aos dezoito anos,
perfeitamente seu igual. A Natureza planejava que eu fosse, de forma
geral, um bom homem, srta. Eyre, um homem do melhor tipo, mas
você pode ver que não sou assim. Vai dizer que não vê isso; pelo me-
nos gosto de pensar que leio isso em seus olhos (cuidado, aliás, com o
que expressa com esses órgãos, pois sou rápido para interpretar sua
linguagem). Então acredite no que digo. Não sou um vilão; não deve
supor isso, nem atribuir a mim tamanha perversidade, mas creio que,
devido mais às circunstâncias do que a minha propensão natural, sou
um pecador comum e banal, habituado a todas as dissipações vis e
mesquinhas com que os ricos e imprestáveis tentam preencher a vida.
Está surpresa por eu lhe confessar isso? Saiba que, no curso de sua vi-
da futura, será com frequência eleita como confidente involuntária
dos segredos dos seus conhecidos. As pessoas descobrirão instintiva-
mente, como eu fiz, que não é seu forte contar sobre si mesma, mas
ouvir enquanto os outros falam de si. E sentirão, também, que você
não escuta as indiscrições delas com desdém malevolente, mas com
uma espécie de simpatia inata, não menos reconfortante e encoraja-
dora por ser muito discreta em suas manifestações.
— Como o senhor sabe? Como pode adivinhar tudo isso?
— Sei muito bem, por isso falo quase tão livremente quanto se esti-
vesse escrevendo meus pensamentos em um diário. Você diria que eu
deveria ter sido superior às circunstâncias, e é verdade, mas não fui.
Quando o destino foi injusto comigo, não tive a sabedoria para ficar
calmo. Entrei em desespero e então me degenerei. Agora, quando
qualquer idiota vulgar inspira minha aversão com sua obscenidade
desprezível, não posso me consolar dizendo ser melhor que ele. Sou
forçado a confessar que ele e eu estamos no mesmo nível. Deus sabe o
quanto eu queria ter permanecido firme! Quando ficar tentada a er-
rar, tema o remorso, srta. Eyre. O remorso é o veneno da vida.
— Dizem que a penitência é a cura para isso, senhor.
— Não é a cura. Reformar-se pode ser a cura, e eu poderia me refor-
mar, ainda tenho forças para tanto, se… Mas de que adianta pensar as-
sim, impedido, atormentado e amaldiçoado como sou? Além disso,
uma vez que a felicidade me foi irrevogavelmente negada, tenho o di-
reito de obter prazer da vida, e vou obtê-lo, custe o que custar.
— Então vai se degenerar ainda mais, senhor.
— Possivelmente. Mas por que não deveria, se puder obter um doce
e novo prazer? E posso obtê-lo tão doce e fresco quanto o mel silvestre
que a abelha coleta nas charnecas.
— Vai arder. Será amargo, senhor.
— Como sabe disso? Nunca o provou. Como parece séria e solene, e
é tão ignorante do assunto quanto este camafeu — disse, pegando um
da cornija. — Não tem direito de pregar para mim, neófita que nunca
cruzou o portal da vida e desconhece por completo os seus mistérios.
— Apenas lhe recordo suas próprias palavras. O senhor disse que o
erro trazia remorso e declarou que o remorso é o veneno da existên-
cia.
— E quem está falando em erros agora? Não acho que a ideia que
cruzou minha mente foi um erro. Acredito que foi uma inspiração,
mais do que uma tentação: foi muito agradável, muito tranquilizado-
ra, sei disso. E cá vem ela de novo! Não é nenhum demônio, eu lhe as-
seguro, ou, se for, veste a túnica de um anjo de luz. Acho que devo ad-
mitir um convidado tão belo quando pede entrada no meu coração.
— Desconfie dele, senhor. Não é um anjo de verdade.
— Novamente, como você sabe? Com base em qual instinto finge
distinguir entre um serafim caído do abismo e um mensageiro do tro-
no eterno, entre um guia e um sedutor?
— Julguei pelo seu semblante, senhor, que estava perturbado quan-
do disse que a sugestão estava voltando. Sinto que será a causa de
mais infelicidades se ouvi-la.
— De forma alguma, ela traz a mensagem mais graciosa do mundo.
Quanto ao resto, você não é a guardiã da minha consciência, então
não se aflija. Pronto, pode entrar, belo andarilho!
Ele disse isso como se falasse com uma visão, invisível a qualquer
olho além do seu. Em seguida, cruzando os braços, que estavam meio
estendidos, pareceu abraçar o ser invisível.
— Agora — continuou, novamente se dirigindo a mim. — Recebi o
peregrino, uma divindade disfarçada, creio eu. Já me fez bem. Meu
coração era um tipo de adro, agora será um santuário.
— Para falar a verdade, senhor, não o entendo nem um pouco. Não
consigo acompanhar a conversa, porque está fora do meu alcance. Só
sei que o senhor disse que não era tão bom quanto gostaria de ser e
que lamentava sua própria imperfeição. Uma coisa eu compreendo: o
senhor afirmou que ter uma memória maculada era uma desgraça
perpétua. Parece-me que, se tentasse de maneira insistente, com o
tempo acharia possível tornar-se algo que o senhor mesmo aprovaria
e que, se deste dia em diante começasse com resolução a corrigir seus
pensamentos e ações, em alguns anos teria acumulado um estoque
novo e imaculado de recordações, às quais poderia se voltar com pra-
zer.
— Corretamente pensado e bem dito, srta. Eyre. E, agora mesmo,
estou energicamente enchendo o inferno.
— Senhor?
— Tenho boas intenções, que acredito serem tão duradouras quanto
pedras. Certamente, minhas relações e interesses serão diferentes do
que têm sido.
— E melhores?
— E melhores, tão melhores quanto o minério puro em comparação
ao refugo fétido. Você parece duvidar de mim, mas eu mesmo não du-
vido. Sei qual é meu objetivo e quais são os meus motivos, e neste mo-
mento passo um decreto, irrevogável como aquele dos medos e dos
persas,72 de que ambos são corretos.
— Não podem ser, senhor, se exigem um novo estatuto para legalizá-
los.
— São, srta. Eyre, embora exijam decididamente um novo estatuto;
combinações inéditas de circunstâncias exigem regras inéditas.
— Parece uma máxima perigosa, senhor. Pode-se ver de imediato
que está sujeita a abuso.
— Sábia sentenciosa! De fato, é assim, mas juro pelos meus deuses
domésticos não abusar dela.
— O senhor é humano e falível.
— Eu sou, e você também. E daí?
— Aquele que é humano e falível não deveria atribuir a si mesmo
um poder confiável apenas ao divino e perfeito.
— Que poder?
— O de encarar qualquer linha de ação estranha e não sancionada e
dizer: “Que seja correta”.
— “Que seja correta.” São essas as exatas palavras: você as pronun-
ciou.
— Que possa ser correta, então — eu disse enquanto me erguia, jul-
gando ser inútil continuar uma conversa que era tão obscura para
mim e, além disso, ciente de que o caráter do meu interlocutor estava
além da minha capacidade de penetração, ao menos, além do meu al-
cance presente, e sentindo a incerteza, o vago senso de insegurança,
que acompanha uma convicção de ignorância.
— Aonde vai?
— Colocar Adèle na cama. Passou da hora de dormir dela.
— Você tem medo de mim, porque falo como uma esfinge.
— Suas palavras são enigmáticas, senhor, mas, embora esteja per-
plexa, certamente não estou com medo.
— Está, sim. Seu amor-próprio teme uma gafe.
— Nesse sentido, é verdade que me sinto apreensiva. Não tenho
qualquer desejo de falar bobagens.
— Se falasse, seria de uma maneira tão séria e contida que eu con-
fundiria com bom senso. Você costuma rir, srta. Eyre? Não se dê ao
trabalho de responder; vejo que ri raramente, mas é capaz disso, com
muita alegria. Acredite em mim, você não é naturalmente austera
mais do que eu sou naturalmente cruel. A repressão de Lowood ainda
se agarra a você, em certa medida, controlando suas feições, abafando
sua voz e restringindo seus membros, e você teme, na presença de um
homem e irmão, ou pai, ou patrão, ou o que quer que seja, sorrir ale-
gremente demais, falar livremente demais ou se mover rápido demais.
Mas, com o tempo, acho que aprenderá a agir com naturalidade comi-
go, assim como eu acho impossível tratá-la de modo convencional, e
então suas expressões e movimentos terão mais vivacidade e varieda-
de do que ousam oferecer agora. Vejo, a intervalos, o olhar de um tipo
curioso de pássaro através das barras cerradas de uma jaula; uma ca-
tiva enérgica, inquieta e resoluta encontra-se ali e, se ao menos esti-
vesse livre, voaria até as nuvens. Ainda está decidida a retirar-se?
— O relógio bateu as nove, senhor.
— Não importa, espere um minuto. Adèle ainda não está pronta pa-
ra ir dormir. A posição em que estou, srta. Eyre, com as costas para o
fogo e o rosto voltado para a sala, favorece a observação. Enquanto fa-
lava com você, ocasionalmente também observei Adèle (tenho minhas
próprias razões para pensar que ela é um objeto de estudo curioso; ra-
zões que talvez, ou melhor, que certamente compartilharei com você
algum dia). Cerca de dez minutos atrás, ela tirou da caixinha um ves-
tidinho de seda rosa; o êxtase iluminou seu rosto enquanto o desdo-
brava. A coqueteria corre no seu sangue, entrelaça-se em seu cérebro
e tempera o tutano dos seus ossos. “Il faut que je l’essaie, et à l’instant
même!”,73 ela exclamou, e correu para fora da sala. Está agora com
Sophie, sendo trajada. Em alguns minutos vai entrar de novo e sei o
que eu verei: uma miniatura de Céline Varens, como esta aparecia nos
palcos ao erguer-se das… mas deixemos isso para lá. Apesar de tudo,
meus sentimentos mais ternos estão prestes a receber um choque. Tal
é o meu pressentimento; fique mais um pouco para ver se ele se cum-
prirá.
Pouco depois ouvi os pezinhos de Adèle saltitando pelo saguão. Ela
entrou, transformada como seu guardião havia previsto. Um vestido
de cetim rosa muito curto, e com a saia mais cheia possível, substituí-
ra o vestido marrom que ela usara antes. Uma guirlanda de botões de
rosa cingia sua testa e seus pés calçavam meias de seda e pequenas
sandálias de cetim branco.
— Est-ce que ma robe va bien? — exclamou ela, pulando para a fren-
te. — Et mes souliers? Et mes bas? Tenez, je croix que je vais danser.74
Estendendo a saia do vestido, ela atravessou a sala com passinhos
de balé, até que, alcançando o sr. Rochester, girou com leveza ao redor
do homem na ponta dos pés e então caiu ajoelhada diante dele, excla-
mando:
— Monsieur, je vous remercie mille fois de votre bonté. — E então, se
erguendo, acrescentou: — C’est comme cela que maman faisait, n’est-ce
pas, monsieur? 75
— Pre-ci-sa-men-te! — foi a resposta. — E, “comme cela”,76 ela fez
meu ouro inglês saltar do bolso das minhas calças britânicas. Eu tam-
bém já fui verde, srta. Eyre, ah, verde como grama. Já fui coberto por
esse seu mesmo frescor primaveril. Minha Primavera se foi, porém,
deixou-me aquela florzinha francesa nas mãos, a qual, dependendo
do meu humor, eu gostaria de ver longe. Não valorizando mais a raiz
de onde brotou, tendo descoberto que era de uma espécie que só podia
ser adubada por pó de ouro, não posso gostar muito da flor, especial-
mente quando parece tão artificial quanto agora. A verdade é que a
sustento e a crio com base no princípio católico romano de expiar com
uma boa ação numerosos pecados, grandes ou pequenos. Explicarei
tudo isso algum dia. Boa noite.
N
o dia seguinte a essa noite insone, eu desejava e ao mesmo
tempo temia ver o sr. Rochester. Queria ouvir sua voz de
novo, mas receava encarar seus olhos. Nas primeiras horas
da manhã, esperava que aparecesse a qualquer momento. Ele não ti-
nha o hábito de entrar na sala de aula, mas às vezes nos visitava por
alguns minutos, e tive a impressão de que certamente o faria mais tar-
de.
Porém, a manhã se passou como de costume. Nada interrompeu o
curso tranquilo dos estudos de Adèle, exceto que, logo após o café da
manhã, ouvi certo alvoroço perto do quarto do sr. Rochester, a voz da
sra. Fairfax, de Leah, da cozinheira — isto é, a esposa de John — e até
os próprios tons bruscos de John. Houve exclamações tais como “Que
bênção o patrão não ter sido queimado na cama!”, “É sempre perigoso
manter a vela acesa de noite!”, “Que sorte ele ter a presença de espíri-
to para pensar no jarro d’água!”, “É uma surpresa que não tenha acor-
dado ninguém!”, “Espero que não fique resfriado depois de dormir no
sofá da biblioteca” etc.
A essas confabulações, seguiram-se sons de limpeza e arrumação e,
quando passei pelo quarto, ao descer para o jantar, vi pela porta aber-
ta que tudo estava restaurado à completa ordem — só a cama tivera a
cortina arrancada. Leah, parada junto à janela, esfregava as vidraças
escurecidas pela fumaça. Eu estava prestes a me dirigir a ela, pois
queria saber qual explicação fora dada sobre o ocorrido, quando, ao
avançar, avistei outra pessoa no cômodo — uma mulher sentada numa
cadeira ao lado da cama, costurando ilhós para as novas cortinas. Essa
mulher era ninguém menos que Grace Poole.
Lá estava ela, séria e taciturna, como sempre, em seu vestido de lã
marrom, avental xadrez, lenço branco e touca. Estava concentrada no
trabalho, no qual todos os seus pensamentos pareciam absortos. Em
sua testa dura e feições comuns, não havia nem a palidez, nem o de-
sespero que se esperaria ver no semblante de uma mulher que fizera
uma tentativa de assassinato e cuja vítima a perseguira até o seu covil,
na noite anterior, e (acreditava eu) a acusara do crime que ela quisera
perpetrar. Eu estava pasma, estupefata. Ela ergueu os olhos, enquanto
eu ainda a fitava, e nenhum susto, rubor nem palidez traiu emoção,
consciência de culpa nem medo de descoberta.
— Bom dia, senhorita — disse ela do seu jeito brusco e fleumático, e,
erguendo outro ilhó e mais fita, continuou a costurar.
Vou colocá-la à prova, pensei. Uma impenetrabilidade tão absoluta
está além da compreensão.
— Bom dia, Grace — disse eu. — Aconteceu alguma coisa aqui? Pen-
sei ter ouvido os criados conversando um tempo atrás.
— Foi o patrão, que ficou lendo na cama ontem à noite. Adormeceu
com a vela acesa e a cortina da cama se incendiou, mas por sorte
acordou antes que as roupas de cama e a madeira pegassem fogo e
conseguiu apagar as chamas com a água do jarro.
— Que estranho! — disse eu, em voz baixa, e então, olhando-a fixa-
mente: — O sr. Rochester não acordou ninguém? Ninguém o ouviu se
mexer?
Ela ergueu os olhos para mim, e dessa vez havia certa consciência
em sua expressão. Pareceu me examinar com desconfiança e então
respondeu:
— Os criados dormem tão longe, sabe, senhorita, que seria difícil es-
cutarem. O quarto da sra. Fairfax e o seu são os mais próximos do sr.
Rochester, mas a sra. Fairfax disse que não ouviu nada. As pessoas
mais velhas muitas vezes têm um sono pesado. — Ela fez uma pausa e
acrescentou, com uma espécie de suposta indiferença, mas ainda em
um tom enfático e significativo: — Mas a senhorita é jovem e deve ter
o sono leve. Talvez tenha ouvido algo.
— Ouvi — disse eu, abaixando a voz para que Leah, que continuava
limpando as vidraças, não escutasse. — Primeiro pensei que era Piloto,
mas Piloto não ri, e tenho certeza de que ouvi uma risada. Uma risada
estranha.
Ela apanhou uma nova linha, encerou-a cuidadosamente, enfiou-a
no buraco da agulha com a mão firme, e então comentou, com total
compostura:
— Creio ser muito improvável que o patrão risse, senhorita, se esti-
vesse em tamanho perigo. A senhorita devia estar sonhando.
— Eu não estava sonhando — afirmei, um pouco acalorada, pois sua
audácia tranquila me provocou.
Novamente ela me fitou, com o mesmo olhar perscrutador e consci-
ente.
— A senhorita contou ao sr. Rochester que ouviu uma risada? — per-
guntou ela.
— Não tive a oportunidade de falar com ele hoje.
— Não pensou em abrir sua porta e espiar o corredor? — continuou
ela.
Ela parecia estar me interrogando — sutilmente tentando extrair in-
formações de mim. Ocorreu-me que, se ela descobrisse que eu sabia
ou suspeitava de sua culpa, eu seria o alvo de outra de suas peças ma-
lignas. Pensei que era aconselhável ficar alerta.
— Pelo contrário — eu disse. — Tranquei a porta.
— Então a senhorita não tem o hábito de trancar a porta toda noite
antes de ir se deitar?
Demônio! Ela quer saber meus hábitos para tramar seus planos. A
indignação novamente predominou sobre a prudência e respondi ris-
pidamente:
— Até agora, muitas vezes deixei de fechar o ferrolho. Não achava
ser necessário. Não estava ciente de que havia qualquer perigo ou in-
cômodo a ser temido em Thornfield Hall, mas no futuro — e coloquei
ênfase nas palavras — me certificarei de que tudo esteja seguro antes
de deitar.
— Sábia decisão — foi a resposta dela. — Esta vizinhança é a mais
tranquila que conheço, e nunca ouvi dizer que a mansão foi visada
por assaltantes desde a construção, ainda que na cristaleira haja por-
celanas que valem centenas de libras, como é bem conhecido. E veja
bem, para uma casa tão grande há muito poucos criados, porque o pa-
trão nunca passou muito tempo aqui e, quando vem, sendo um ho-
mem solteiro, ele não precisa de muita assistência, mas sempre penso
que é melhor pecar pelo excesso de cautela: é rápido trancar a porta, e
é bom ter um trinco fechado entre nós e qualquer mal que possa nos
cercar. Muitas pessoas, senhorita, preferem confiar tudo à Providên-
cia, mas eu sempre digo que a Providência não dispensa os cuidados e
Deus frequentemente os abençoa quando usados com discernimento.
Com isso ela concluiu sua arenga, longa para os padrões dela e pro-
ferida com o recato de um quacre.
Eu ainda estava imóvel, completamente pasma com o que parecia-
me ser um autocontrole milagroso e uma hipocrisia inescrutável,
quando a cozinheira entrou no quarto.
— Sra. Poole — disse ela, para Grace —, o jantar dos criados logo fi-
cará pronto. Vai descer?
— Não. Sirva minha cerveja escura e um pedaço de torta em uma
bandeja e carregarei lá para cima.
— Aceita um pouco de carne?
— Só um bocado e um pedacinho de queijo. Nada mais.
— E o sagu?
— Por enquanto, não precisa. Vou descer antes da hora do chá e pre-
pará-lo eu mesma.
A cozinheira então se virou para mim, dizendo que a sra. Fairfax
me esperava, e eu saí.
Mal escutei o relato da sra. Fairfax sobre a conflagração da cortina
durante o jantar, pois estava ocupada tentando desvendar o caráter
enigmático de Grace Poole e, especialmente, ponderando o problema
de sua posição em Thornfield, questionando por que ela não fora en-
tregue às autoridades naquela manhã, ou, no mínimo, dispensada do
serviço. Seu empregador tinha praticamente declarado sua convicção
da culpa dela na noite anterior; que causa misteriosa o detinha de
acusá-la? Por que também me prescrevera o sigilo? Era estranho —
aquele cavalheiro ousado, vingativo e arrogante parecia estar sob o ju-
go de uma de suas dependentes mais perversas; tanto que, mesmo
quando ela erguia a mão contra a vida do sr. Rochester, ele não ousava
acusá-la abertamente do crime e muito menos puni-la.
Se Grace fosse jovem e bonita, eu teria ficado tentada a pensar que
sentimentos mais ternos que a prudência ou o medo influenciavam o
sr. Rochester, mas, pouco atraente e matronal como ela era, a ideia era
inadmissível. Porém, refleti, ela já foi jovem, e sua juventude teria sido
contemporânea com a do patrão. A sra. Fairfax me contou que ela mo-
ra aqui há muitos anos. Não acho que jamais tenha sido bonita, mas,
até onde sei, pode ter originalidade e força de caráter que compensem a
falta de vantagens físicas. O sr. Rochester é um admirador de personali-
dades decididas e excêntricas — e Grace é, no mínimo, excêntrica. E se
um capricho antigo (uma cisma muito possível a uma natureza tão im-
pulsiva e obstinada quanto a dele) o tiver entregado às mãos dela, e ela
agora, como resultado da indiscrição dele, exercer sobre seus atos uma
influência secreta, da qual ele não pode se livrar e não ousa desconside-
rar? Porém, chegando a esse ponto nas conjecturas, a figura atarraca-
da e plana e o rosto desagradável, seco e até grosseiro da sra. Poole
voltaram tão distintamente à memória que pensei: Não, impossível!
Minha suposição não pode estar correta. Entretanto, sugeriu a voz se-
creta que fala em nossos corações, você também não é bela, e talvez o
sr. Rochester a aprove. Ao menos você sentiu muitas vezes que aprova-
va, e ontem à noite… lembre-se das palavras dele, lembre-se do seu
olhar, lembre-se da sua voz!
Eu me lembrava muito bem de tudo — palavras, olhar e tom pare-
ceram renovar-se vividamente naquele momento. Eu estava então na
sala de aula. Adèle desenhava. Curvei-me sobre ela e corrigi seu traço.
Ela ergueu os olhos com uma espécie de susto.
— Qu’avez-vous, mademoiselle? — perguntou. — Vos doigts tremblent
comme la feuille, et vos joues sont rouges, mais rouges comme des ceri-
ses!91
— Só fiquei corada por me curvar, Adèle!
Ela continuou desenhando e eu continuei pensando.
Apressei-me a expulsar da mente a ideia odiosa que vinha conside-
rando a respeito de Grace Poole, pois me enojava. Comparei-me com
ela e concluí que éramos diferentes. Bessie Leaven dissera que eu pa-
recia uma perfeita dama, e falava a verdade: eu era uma dama. E já
estava com um aspecto muito melhor do que quando Bessie me vira:
mais corada e robusta, possuía mais vida e mais vigor, porque tinha
melhores perspectivas e prazeres mais apurados.
— A noite se aproxima — disse eu, olhando para a janela. — Não ouvi
a voz nem os passos do sr. Rochester hoje, mas certamente o verei an-
tes do anoitecer. Temia o encontro pela manhã, mas agora anseio por
vê-lo, porque a expectativa foi frustrada por tanto tempo que estou
impaciente.
Quando caiu o crepúsculo e Adèle me deixou para ir brincar no
quarto com Sophie, eu desejava intensamente encontrá-lo. Fiquei
atenta para o toque do sino abaixo; atenta para ouvir Leah subindo
com uma mensagem. Às vezes imaginava ouvir o passo do próprio sr.
Rochester e me virava para a porta, esperando que ela se abrisse e o
revelasse. A porta permaneceu fechada — só a escuridão entrou pela
janela. Ainda assim, não era tarde; muitas vezes ele me chamava às
sete ou oito horas, e ainda eram seis. Certamente eu não ficaria tão
decepcionada naquela noite, em que tinha tantas coisas a dizer a ele!
Eu queria novamente mencionar Grace Poole e ouvir o que ele res-
ponderia; queria perguntar-lhe diretamente se acreditava mesmo que
fora ela a responsável pelo abominável ataque da noite anterior e, se
sim, por que mantinha segredo sobre sua perversidade. Pouco impor-
tava se minha curiosidade o irritasse — eu conhecia o prazer de irritá-
lo e apaziguá-lo alternadamente; era um prazer com que me deleita-
va, e um instinto seguro sempre me impedia de ir longe demais. Eu
nunca me aventurava além das fronteiras da provocação e, ali às suas
margens, gostava de pôr minha habilidade à prova. Cumprindo cada
mínima forma de respeito, todo o decoro exigido pela minha posição,
ainda era capaz de confrontá-lo em discussão sem temor ou conten-
ção desconfortável — e isso funcionava tanto para ele como para mim.
Finalmente, ouvi passos nas escadas e Leah apareceu, mas só para
declarar que o chá estava servido no quarto da sra. Fairfax. Fui para
lá, feliz ao menos por descer, o que me levaria, imaginei, para mais
perto do sr. Rochester.
— Você deve querer seu chá — disse a boa dama, quando me juntei a
ela. — Comeu tão pouco no jantar. Receio que não esteja bem hoje. Pa-
rece corada e febril.
— Ah, estou muito bem! Nunca me senti melhor.
— Então deve provar com um bom apetite. Pode encher o bule en-
quanto eu termino essa fileira de tricô?
Ao completar sua tarefa, ela se ergueu para fechar a cortina que até
então mantivera aberta, suponho que a fim de aproveitar ao máximo
a luz do dia, embora o crepúsculo se aprofundasse rapidamente à obs-
curidade total.
— Está uma noite bonita — disse ela, olhando pela vidraça —, ainda
que sem luar. De forma geral, o sr. Rochester teve um dia favorável
para sua jornada.
— Jornada! O sr. Rochester foi a algum lugar? Eu não sabia que ti-
nha partido.
— Ah, ele partiu logo depois do café da manhã! Foi a Leas, a casa do
sr. Eshton, a cerca de quinze quilômetros do outro lado de Millcote.
Acredito que haja um grupo grande reunido lá: lorde Ingram, sir Ge-
orge Lynn, o coronel Dent e outros.
— A senhora o espera de volta esta noite?
— Não, nem amanhã. Acho provável ele ficar por lá uma semana ou
mais. Quando essas pessoas finas e importantes se reúnem, ficam tão
cercadas por sofisticação e alegria, tão bem abastecidas com tudo que
é capaz de agradar e entreter, que não têm pressa de se separar. Os ca-
valheiros, em especial, com frequência são requisitados nessas ocasi-
ões, e o sr. Rochester é tão talentoso e animado em sociedade, que
acredito que seja um favorito de todos… As damas gostam muito dele,
ainda que ninguém fosse imaginar que sua aparência o recomendaria
particularmente aos olhos delas. Mas suponho que seus talentos e ha-
bilidades, ou talvez sua fortuna e berço, compensem qualquer defeito
de aparência.
— E há damas em Leas?
— A sra. Eshton e suas três filhas, jovens muito elegantes, além das
honoráveis92 Blanche e Mary Ingram. Mulheres lindíssimas, imagino.
Até vi Blanche uma vez, uns seis ou sete anos atrás, quando ela tinha
dezoito anos. Veio aqui para um baile de Natal que o sr. Rochester ofe-
receu. Você precisava ter visto a sala de jantar. Que decoração rica,
que iluminação brilhante! Acredito que havia cinquenta damas e ca-
valheiros presentes, todos das principais famílias do condado, e a srta.
Ingram foi considerada a beldade da noite.
— Então a senhora a viu. Como ela era?
— Eu a vi, sim. As portas da sala de jantar estavam abertas e, como
era Natal, os criados tiveram permissão de se reunir no saguão, então
ouvi algumas das damas cantarem e tocarem. O sr. Rochester me con-
vidou para entrar e eu me sentei em um canto sossegado e os obser-
vei. Nunca vi cena mais esplêndida: as damas estavam magnificamen-
te vestidas e a maioria delas, ao menos a maioria das mais jovens, era
bonita, mas a srta. Ingram sem dúvida se destacava.
— E como ela era?
— Alta, com um busto formoso, ombros em declive, um pescoço lon-
go e gracioso. Tez amarronzada e límpida, feições nobres, e olhos um
pouco como os do sr. Rochester, grandes e escuros e tão brilhantes
quanto suas joias. E ela tinha cabelos pretos tão bonitos, presos de
modo muito atraente: uma coroa de tranças grossas atrás e, na frente,
os maiores e mais lustrosos cachos que já vi. Estava vestida toda de
branco, com um xale cor de âmbar cobrindo os ombros e o peito,
amarrado do lado do corpo e descendo até uma bainha franjada de-
baixo do joelho. Também usava uma flor cor de âmbar no cabelo, que
contrastava bem com a massa escura dos cachos.
— Ela era muito admirada, imagino?
— De fato, e não só pela beleza, mas também pelos talentos. Ela foi
uma das damas que cantou, e um cavalheiro a acompanhou no piano.
Ela e o sr. Rochester cantaram um dueto.
— O sr. Rochester? Eu não sabia que ele cantava.
— Ah! Ele tem uma bela voz grave e um gosto excelente para músi-
ca.
— E a srta. Ingram, que tipo de voz tem?
— Muito cheia e potente. Foi um prazer escutar seu canto tão agra-
dável, e depois ela tocou piano. Não sou nenhuma entendedora de
música, mas o sr. Rochester é, e eu o ouvi dizer que a execução dela foi
surpreendentemente boa.
— E essa dama bela e talentosa ainda não se casou?
— Parece que não. Imagino que nem
ela nem a irmã tenham uma grande for-
tuna. As propriedades do velho lorde
Ingram não podiam ser divididas, e o fi-
lho mais velho herdou praticamente tu-
do.
— Mas me surpreende que nenhum
nobre ou cavalheiro rico tenha se afei-
çoado a ela. O sr. Rochester, por exem-
plo. Ele é rico, não é?
— Ah, sim! Mas veja que há uma dife-
rença considerável de idade: o sr. Ro-
chester tem quase quarenta anos, e ela, apenas vinte e cinco.
— E o que importa? Uniões mais desiguais são feitas todos os dias.
— É verdade, mas não consigo imaginar o sr. Rochester consideran-
do uma ideia dessas. Mas você não comeu nada! Mal tocou na comida
desde que começamos o chá.
— Não, estou com sede demais para comer. Eu poderia beber mais
uma xícara?
Eu estava prestes a retornar à probabilidade de uma união entre o
sr. Rochester a bela Blanche quando Adèle entrou e a conversa desvi-
ou para outro assunto.
Quando fiquei novamente sozinha, revisei as informações que obti-
vera, olhei dentro do meu coração, examinei seus pensamentos e sen-
timentos, e tentei, com mão firme, trazer de volta para o abrigo seguro
do bom senso aqueles que estiveram vagando pelos ermos infinitos da
imaginação.
Acusada em meu próprio tribunal, a Memória tendo apresentado as
provas de esperanças, desejos e sentimentos que eu vinha acalentando
desde a noite anterior, e do estado de espírito geral ao qual eu me per-
mitira por quase uma quinzena, e a Razão tendo avançado para con-
tar, do seu modo ponderado, uma história simples e sem exageros,
mostrando como eu tinha rejeitado o real e vorazmente consumido o
ideal, pronunciei o seguinte julgamento: que uma tola maior que Jane
Eyre nunca havia inspirado o ar da vida, que uma idiota mais fantasi-
osa jamais se banqueteara com tantas mentiras doces, engolindo ve-
neno como se fosse néctar.
— Você — disse eu —, uma favorita do sr. Ro-
chester? Você, dotada com a capacidade de
agradar a ele? Você, ser importante para ele
de qualquer forma? Saia daqui! Sua loucura
me enoja. E você se comprazia com ocasionais
sinais de preferência; sinais ambíguos, de-
monstrados por um cavalheiro de nome e um
homem do mundo a uma subordinada inex-
periente. Como ousou? Pobre ingênua e es-
túpida! Nem o interesse próprio a tornou
mais sábia? Recordou nesta manhã a breve
cena da noite passada, não foi? Cubra os olhos
e envergonhe-se! Ele os elogiou, não foi? Ga-
rota cega! Abra as pálpebras sonolentas e mi-
re sua própria irracionalidade amaldiçoada! Não faz bem a nenhuma
mulher ser lisonjeada por um superior que não pode ter intenções de
se casar com ela, e é uma loucura deixar crescer dentro de qualquer
uma delas um amor secreto que, se não retribuído e não reconhecido,
devorará a vida que o alimenta, e, se descoberto e correspondido, só
pode levar, como o fogo-fátuo, a ermos lamacentos de onde não há sa-
ída.
“Escute, então, Jane Eyre, a sua pena: amanhã, ponha o espelho à
sua frente e desenhe a giz seu próprio retrato, fielmente, sem suavizar
qualquer defeito. Não omita nenhuma linha dura, não suavize nenhu-
ma irregularidade desagradável. Escreva sob ele: ‘Retrato de uma pre-
ceptora, sem conexões, atrativos ou fortuna’.
“Depois, pegue uma folha lisa de marfim, que você tem a postos na
caixa de desenho, pegue a paleta, misture os matizes mais frescos, be-
los e nítidos, e escolha os pincéis de pelo de camelo mais delicados;
delineie cuidadosamente o rosto mais adorável que puder imaginar,
pinte-o nos tons mais suaves e nos matizes mais doces possíveis, de
acordo com a descrição de Blanche Ingram feita pela sra. Fairfax:
lembre-se dos cachos negros, do olho oriental… Quê! Você recorre ao
sr. Rochester como modelo! Ordem! Deixe de choramingar! Sem senti-
mentos! Sem arrependimentos! Aceitarei apenas razão e resolução.
Lembre-se das feições augustas, mas harmônicas, do pescoço e do
busto gregos; deixe visível o braço forte e deslumbrante, assim como a
mão delicada; não omita nem anel de diamante, nem pulseira de ouro;
retrate fielmente os trajes, a renda translúcida e o cetim reluzente, o
xale elegante e a rosa dourada, e intitule-o: ‘Blanche, uma dama ta-
lentosa da alta sociedade’.
“No futuro, sempre que imaginar que o sr. Rochester pensa bem de
você, pegue esses dois retratos e os compare. Diga: ‘O sr. Rochester
provavelmente conquistaria o amor dessa nobre dama, se escolhesse
buscá-lo; é provável que desperdice um pensamento sério com uma
plebeia indigente e insignificante?’”
Farei isso, decidi. E, determinada a seguir a decisão, acalmei-me e
adormeci.
Mantive minha palavra. Uma ou duas horas foram suficientes para
esboçar meu próprio retrato em giz, e em menos de uma quinzena eu
tinha completado um retrato em folha branca de uma Blanche Ingram
imaginária. O rosto ficou muito bonito e, comparado com a cabeça re-
al em giz, o contraste era tão grande quanto o autocontrole poderia
desejar. A tarefa me foi benéfica — manteve minha mente e mãos ocu-
padas, e deu força e firmeza às novas impressões que eu desejava gra-
var indelevelmente no meu coração.
Pouco depois, tive motivos para me parabenizar por esse curso de
disciplina sadia ao qual forcei meus sentimentos: graças a ele, fui ca-
paz de enfrentar eventos subsequentes com uma calma razoável que
provavelmente não teria estado à altura de manter, mesmo externa-
mente, se tivessem me encontrado despreparada.
91. “Qual é o problema, senhorita? Seus dedos estão tremendo como uma
folha e seu rosto está vermelho, vermelho como uma cereja!”
↵
92. Título honorífico atribuído a filhos e filhas de barões e viscondes e a fi-
lhos caçulas de condes.
↵
Capítulo XVII
U
ma semana se passou sem nenhuma notícia do sr. Rochester
e, após dez dias, ele ainda não voltara. A sra. Fairfax disse
que não ficaria surpresa se ele fosse direto de Leas para Lon-
dres, e de lá para o continente, e não aparecesse em Thornfield por um
ano inteiro; não raro havia deixado a mansão do mesmo modo abrupto
e inesperado. Quando ouvi isso, comecei a sentir um estranho calafrio
e tremor no coração. Permitia-me, na verdade, uma decepção nause-
ante. No entanto, dominando meus pensamentos e recordando-me dos
meus princípios, imediatamente coloquei as sensações em ordem, e foi
maravilhoso como superei o lapso momentâneo — como me desiludi
do equívoco de supor que as ações do sr. Rochester eram algo em que
tinha qualquer motivo para assumir um interesse vital. Não que me
humilhasse com uma noção servil de inferioridade. Pelo contrário,
pensei apenas: Você não tem nenhuma relação com o patrão de Thornfi-
eld além de receber o salário que ele lhe paga por ensinar sua protegida e
sentir-se grata por um tratamento tão respeitoso e gentil quanto tem o
direito de esperar da parte dele, se cumprir o seu dever. Certifique-se de
que seja o único laço que ele reconheça seriamente entre vocês, e não o
torne o objeto de seus refinados sentimentos, êxtases, agonias, e por aí em
diante. Ele não pertence à sua classe; atenha-se a sua casta e tenha res-
peito próprio suficiente para não conceder o amor de todo seu coração,
alma e forças a quem não deseja e desprezaria tal presente.
Continuei tranquilamente a cumprir minhas tarefas cotidianas, mas
por vezes sugestões vagas cruzavam minha mente com motivos pelos
quais eu deveria deixar Thornfield, e então eu ficava distraidamente
compondo anúncios e conjecturando sobre novas situações. Esses pen-
samentos, eu não achei necessário controlar; que germinassem e des-
sem frutos, se pudessem.
O sr. Rochester estava ausente fazia mais de uma quinzena quando o
correio trouxe uma carta à sra. Fairfax.
— É do patrão — disse ela, olhando o remetente. — Agora imagino
que saberemos se devemos esperar o seu retorno ou não.
Enquanto ela rompia o selo e examinava o documento, continuei be-
bendo meu café (estávamos tomando o desjejum). A bebida estava
quente, e atribuí a essa circunstância o calor incandescente que tomou
o meu rosto em um instante. Por que minha mão estremeceu e por que
acidentalmente entornei metade do conteúdo da xícara no pires, achei
melhor não considerar.
— Ora! Às vezes acho que as coisas aqui são tranquilas demais, mas
corremos o risco de ficar muito ocupados agora, ao menos por um
tempo — disse a sra. Fairfax, ainda segurando o bilhete diante dos ócu-
los.
Antes que eu me permitisse pedir uma explicação, amarrei a fita do
avental de Adèle, que estava solta. Após entregar a ela outro pão doce e
encher sua xícara de leite, perguntei casualmente:
— O sr. Rochester não deve retornar logo, imagino?
— Na verdade, sim. Em três dias, diz ele. O que será na próxima
quinta. E não vem sozinho. Não sei quantas das pessoas elegantes em
Leas virão com ele, mas ele deu ordens para que todos os melhores
quartos sejam preparados e a biblioteca e as salas de visita sejam lim-
pas, e devo contratar mais ajudantes de cozinha na George Inn, em
Millcote, e de onde mais puder, e as damas vão trazer suas criadas e os
cavalheiros, seus lacaios. Então teremos uma casa cheia.
A sra. Fairfax engoliu o café da manhã e saiu apressada para dar iní-
cio às operações.
Nos três dias seguintes, como ela previra, ficamos bastante ocupa-
dos. Eu tinha pensado que todos os cômodos em Thornfield eram
mantidos perfeitamente limpos e arrumados, mas pelo visto estava en-
ganada. Três mulheres foram chamadas para ajudar, e nunca contem-
plei, antes ou depois, tamanha esfregação, escovação, lavagem de pare-
des e batidas de carpetes, retirada e reposição de quadros, polimento
de espelhos e lustres, acendimento de lareiras em quartos e arejamento
de lençóis e colchões na frente das lareiras. Adèle correu enlouquecida
no meio de tudo — os preparativos para receber convidados e a pers-
pectiva de sua chegada pareceram deixá-la em êxtase. Ela fazia Sophie
conferir todas as suas “toilettes”, como chamava os vestidos, reformar
qualquer um que estivesse “passée”,93 e arejar e estender os novos.
Quanto a si mesma, não fazia nada exceto cabriolar pelos cômodos da
frente da casa, subir e descer das cabeceiras e deitar-se em colchões e
almofadas e travesseiros empilhados diante das chamas altas que rugi-
am nas lareiras. Foi exonerada dos deveres escolares — a sra. Fairfax
tinha me chamado para auxiliá-la, e eu passava o dia todo na despen-
sa, ajudando (ou atrapalhando) a cozinheira e ela, aprendendo a fazer
creme de ovos, cheesecakes e doces franceses, a amarrar aves para as-
sá-las e decorar sobremesas.
O grupo era esperado na tarde de quinta-feira, a tempo de jantar às
seis. Ao longo do período de preparativos, eu não tive tempo de aca-
lentar quimeras, e acredito que fiquei tão ativa e alegre quanto todos os
outros, com a exceção de Adèle. Ainda assim, vez ou outra minha ale-
gria era reprimida por recordações e, contra a minha própria vontade,
eu era lançada de volta à região de dúvidas, portentos e conjecturas
sombrias. Isso ocorria quando eu por acaso via a porta da escadaria do
terceiro andar (que ultimamente era sempre mantida trancada) abrir-
se devagar e dar passagem à figura de Grace Poole, de touca bem-ar-
rumada, avental branco e lenço; quando a via deslizar pelo corredor, o
passo silencioso abafado graças aos chinelos macios; quando a via espi-
ar o alvoroço nos quartos virados de cabeça para baixo e só falar uma
palavra, talvez, a uma criada sobre o jeito correto de polir uma grelha
ou limpar a cornija de mármore, ou tirar manchas do papel de parede,
e então seguir caminho. Ela descia dessa forma para a cozinha uma
vez por dia, comia o jantar, fumava um cachimbo modesto junto à la-
reira e voltava, carregando o caneco de cerveja escura, para seu abrigo
privativo, o covil lúgubre no topo da casa. Só passava uma hora das
vinte e quatro do dia com os outros criados lá embaixo; todo o resto do
tempo era passado em algum cômodo com paredes de carvalho e teto
baixo no terceiro andar. Lá ela sentava-se e cosia — e provavelmente
ria, desolada, consigo mesma —, tão solitária quanto uma prisioneira
na masmorra.
O mais estranho de tudo era que nenhuma alma na casa, exceto eu,
notava seus hábitos ou parecia estranhá-los. Ninguém discutia a posi-
ção ou as funções dela; ninguém se compadecia de sua solidão ou isola-
mento. Uma vez, na verdade, entreouvi parte de uma conversa entre
Leah e uma das empregadas, da qual Grace era o assunto. Leah tinha
dito algo que eu não captei, e a empregada respondeu:
— Ela recebe um bom soldo, imagino?
— Sim — disse Leah —, queria eu receber tão bem. Não que tenha
motivos para reclamar, não há mesquinharia em Thornfield, mas não
ganho um quinto do que a sra. Poole recebe. E ela está economizando;
a cada três meses, vai ao banco em Millcote. Eu não ficaria surpresa se
tivesse guardado o suficiente para viver de forma independente, se
quisesse ir embora, mas suponho que se acostumou com o lugar. Ainda
não fez quarenta anos, e é forte e apta a qualquer serviço. É cedo de-
mais para parar de trabalhar.
— Ela tem uma mão boa, ouso dizer — comentou a empregada.
— Ah! Ela entende o que precisa fazer, não há ninguém melhor —
respondeu Leah, com um tom significativo. — E não é qualquer um que
poderia assumir o seu lugar, nem por tudo que ela ganha.
— Isso é verdade! — foi a resposta. — Eu me pergunto se o patrão…
A empregada ia continuar, mas então Leah se virou e me viu. Imedi-
atamente deu uma cutucada na companheira.
— Ela não sabe? — ouvi a mulher sussurrar.
Leah balançou a cabeça e a conversa, claro, foi abandonada. Tudo
que eu concluíra com base nela resumia-se a isto: havia um mistério
em Thornfield, e eu fora propositadamente excluída dele.
Chegou a quinta-feira. Todos os trabalhos tinham sido concluídos na
noite anterior; os tapetes, desenrolados; as cortinas dos dosséis, pendu-
radas; as colchas brancas e reluzentes, estendidas; as penteadeiras, ar-
rumadas; a mobília, lustrada; as flores, empilhadas em vasos. Tanto os
quartos como as salas estavam tão arejados e iluminados quanto as
mãos podiam torná-los. O saguão também fora lavado, e o grande reló-
gio entalhado, assim como os degraus e corrimãos da escadaria, poli-
dos até ficarem brilhantes como vidro. Na sala de jantar, o aparador
resplandecia brilhante com as louças; na sala de visitas e no boudoir,
vasos de flores exóticas desabrochavam por todos os lados.
Veio a tarde. A sra. Fairfax pôs seu melhor vestido de cetim preto, as
luvas e o relógio de ouro, pois era sua tarefa receber os convidados,
conduzir as damas a seus aposentos etc. Adèle também estaria arru-
mada, embora eu pensasse que havia poucas chances de ela ser apre-
sentada ao grupo naquele dia. Porém, para agradá-la, eu permiti que
Sophie a ajudasse a entrar em um dos vestidos curtos e rodados de
musselina. Quanto a mim, não precisava fazer qualquer mudança. Eu
não seria chamada a abandonar o santuário da sala de aula — pois se
tornara mesmo um santuário para mim, “um refúgio muito agradável
na angústia”.94
Tinha sido um dia brando e sereno de primavera, um daqueles dias
que, no final de março ou começo de abril, ergue-se brilhante sobre a
terra como os arautos do verão. Aproximava-se do fim, mas o final da
tarde até estava quente, e eu me sentara para trabalhar na sala de aula
com a janela aberta.
— Está ficando tarde — disse a sra. Fairfax, entrando toda alvoroça-
da. — Fico feliz por ter orientado que o jantar ficasse pronto uma hora
mais tarde do que o sr. Rochester mencionou, pois já passou das seis.
Mandei John descer até os portões para ver se não há ninguém na es-
trada; pode-se ver a uma longa distância dali, na direção de Millcote. —
Ela foi até a janela. — Lá está ele! — exclamou. — Bem, John — inclinan-
do-se para fora —, alguma notícia?
— Eles estão a caminho, senhora — foi a resposta. — Estarão aqui em
dez minutos.
Adèle voou até a janela. Eu a segui, tomando cuidado para ficar de
lado, de modo que, escondida pela cortina, pudesse ver sem ser vista.
Os dez minutos que John estimara pareceram muito longos, mas por
fim ouviram-se rodas. Quatro cavaleiros subiram o caminho para a
mansão a galope, e atrás deles seguiam duas carruagens abertas. Véus
esvoaçantes e plumas tremulantes enchiam os veículos; dois dos cava-
leiros eram homens jovens e elegantes; o terceiro era o sr. Rochester,
em seu cavalo preto, Mesrour, com Piloto saltitando à frente. Ao lado
dele vinha uma dama a cavalo, e os dois eram os primeiros do grupo.
O traje de cavalgada púrpura dela quase varria o chão, e o longo véu
esvoaçava na brisa; misturando-se a suas dobras transparentes e relu-
zindo através delas, reluziam belos cachos negros.
— A srta. Ingram! — exclamou a sra. Fairfax, e saiu correndo para as-
sumir seu posto lá embaixo.
A procissão, seguindo a curva do caminho, logo se encaminhou para
a casa e eu a perdi de vista. Adèle implorou para descer, mas eu a pu-
xei para o colo e a fiz entender que não deveria, sob qualquer circuns-
tância, aventurar-se à vista das damas, nem agora, nem em qualquer
outro momento, a não ser que fosse expressamente convidada, pois o
sr. Rochester ficaria muito furioso etc. “Algumas lágrimas naturais ela
verteu”95 ao ouvir isso, mas, como assumi uma expressão muito séria,
consentiu por fim a enxugá-las.
Ouvia-se uma alegre movimentação no saguão; as vozes graves dos
cavalheiros e os tons tilintantes das damas se mesclavam harmoniosa-
mente e, distinta entre todas, embora não alta, soava a voz melodiosa
do senhor de Thornfield Hall, dando as boas-vindas aos belos e galan-
tes convidados sob o seu teto. Então passos leves subiram as escadas e
percorreram o corredor aos pulinhos, seguidos por risadas suaves e
contentes, a abertura e o fechamento de portas, e então, por um tempo,
o silêncio.
— Elles changent de toilettes — disse Adèle, que ouvira atentamente e
seguira cada movimento, e suspirou. — Chez maman, quand il y avait
du monde, je les suivais partout, au salon et à leurs chambres; souvent je
regardais les femmes de chambre coiffer et habiller les dames, et c’était si
amusant… comme cela on apprend.96
— Não está com fome, Adèle?
— Mais oui, mademoiselle: voilà cinq ou six heures que nous n’avons
pas mangé.97
— Bem, enquanto as damas estão nos quartos, vou descer e pegar al-
go para você comer.
Saindo do refúgio com cautela, fui a uma escada dos fundos que le-
vava diretamente à cozinha. A área era pura intensidade e comoção; a
sopa e o peixe estavam no último estágio de preparo e a cozinheira se
debruçava nos caldeirões em um estado de corpo e espírito que amea-
çava combustão espontânea. Na sala dos criados, dois cocheiros e três
lacaios estavam ao redor do fogo, em pé ou sentados; as criadas, supus,
estariam no andar de cima com as patroas; e os novos criados contra-
tados de Millcote corriam de um lado para o outro. Serpenteando em
meio a esse caos, por fim alcancei a despensa. Lá me apossei de frango
frio, um pão, algumas tortinhas, um ou dois pratos e uma faca e garfo.
Com esse butim, fiz uma retirada apresada. Subi ao corredor e estava
fechando a porta dos fundos quando um zum-zum-zum acelerado me
alertou de que as damas estavam prestes a sair dos aposentos. Eu não
podia chegar à sala de aula sem passar pela porta de algumas delas e
correr o risco de ser surpreendida com meu carregamento de víveres,
então esperei naquela ponta do corredor, que, não tendo janelas, estava
escura — bem escura, àquela altura, pois o sol tinha se posto e o cre-
púsculo caía.
Logo os aposentos expeliram suas belas ocupantes, uma após a ou-
tra. Todas saíram alegres e despreocupadas, com vestidos que reluziam
lustrosos ao cair da noite. Por um momento elas pararam, agrupando-
se na outra ponta do corredor e conversando em um tom de vivacida-
de doce e abafada, até que desceram a escadaria quase tão silenciosa-
mente quanto uma densa névoa desliza colina abaixo. Sua aparência
coletiva tinha deixado em mim uma impressão de elegância aristocrata
que eu nunca vira.
Encontrei Adèle espiando da porta da sala de aula, que ela segurava
entreaberta.
— Que lindas damas! — exclamou ela em inglês. — Ah, queria poder
me juntar a elas! Acha que o sr. Rochester vai nos chamar em breve,
depois do jantar?
— Na verdade, não. Não acho. O sr. Rochester tem outras preocupa-
ções. Não se incomode com as damas esta noite, talvez você as veja
amanhã. Cá está o seu jantar.
Ela estava realmente faminta, então o frango e as tortinhas a distraí-
ram por um tempo. Foi bom eu ter saído para forragear o jantar, caso
contrário, eu, ela e Sophie, com quem dividi parte da nossa refeição,
teríamos corrido o risco de ficar sem comer — todos no andar de baixo
estavam atribulados demais para pensar em nós. A sobremesa só foi
servida depois das nove, e às dez os lacaios ainda estavam correndo de
um lado para o outro com bandejas e xícaras de café. Deixei que Adèle
ficasse acordada até bem mais tarde que de costume, pois ela declarou
que não conseguiria dormir enquanto as portas ficassem se abrindo e
fechando lá embaixo e as pessoas, se movendo de um lado a outro.
Além disso, acrescentou, uma mensagem do sr. Rochester talvez viesse
quando ela estivesse despida, “et alors quel dommage!”.98
Contei-lhe histórias enquanto ela estava disposta a ouvir, e então,
para mudar de ares, puxei-a para o corredor. A lamparina do saguão
estava acesa e ela se divertiu olhando por cima da balaustrada e obser-
vando os criados que iam e vinham. Quando a noite estava muito
avançada, o som de música chegou da sala de visitas, para onde o pia-
no fora levado. Adèle e eu nos sentamos no topo das escadas para es-
cutar. Logo uma voz mesclou-se ao rico som do instrumento: uma da-
ma cantava e sua voz era muito doce. Quando o solo acabou, seguiu-se
um dueto, e então sons de júbilo — um murmúrio alegre de conversas
preencheu os intervalos. Fiquei ouvindo por muito tempo e subita-
mente percebi que meu ouvido estava focado em analisar os sons mis-
turados e tentar distinguir, em meio à confusão de vozes, a do sr. Ro-
chester. Quando a captou, o que logo fez, assumiu a tarefa adicional de
traduzir os tons, incompreensíveis pela distância, em palavras.
Bateram as onze horas. Olhei para Adèle, de cabeça apoiada no meu
ombro. Suas pálpebras pendiam, pesadas, então a peguei no colo e a
carreguei para a cama. Era perto da uma da manhã quando os cava-
lheiros e as damas procuraram seus aposentos.
O dia seguinte foi tão bonito quanto o precedente, e o grupo decidiu
passá-lo em uma excursão até algum mirante na vizinhança. Partiram
cedo pela manhã, alguns a cavalo e o resto em carruagens. Testemu-
nhei tanto a partida como o retorno. A srta. Ingram, como antes, era a
única dama a cavalo, e, como antes, o sr. Rochester galopava ao seu la-
do. Os dois cavalgavam um pouco à parte dos outros. Apontei essa cir-
cunstância à sra. Fairfax, que estava parada à janela comigo.
— A senhora disse que não era provável eles pensarem em se casar —
comentei —, mas veja que o sr. Rochester evidentemente a prefere a
qualquer uma das outras damas.
— Arrisco dizer que é verdade, sim. Sem dúvida ele a admira.
— E ela a ele — acrescentei. — Veja como inclina a cabeça em direção
a ele como se estivesse dizendo algo confidencial. Eu queria ver o seu
rosto; ainda não tive um vislumbre dele.
— Você o verá esta noite — respondeu a sra. Fairfax. — Eu comentei
com o sr. Rochester o quanto Adèle desejava ser apresentada às damas
e ele disse: “Ah! Deixe que ela venha à sala de visitas após o jantar, e
peça à srta. Eyre que a acompanhe.”
— Ele deve ter dito isso só por educação — respondi. — Certamente
não preciso ir.
— Bem, eu apontei para ele que você não estava acostumada à com-
panhia e pensei que não gostaria de aparecer diante de um grupo tão
alegre, todos desconhecidos, e ele respondeu, do seu jeito brusco: “Bo-
bagem! Se ela objetar, diga que é meu desejo particular e, se ainda re-
sistir, diga que irei chamá-la pessoalmente em caso de insubordina-
ção.”
— Não lhe darei esse trabalho — respondi. — Irei, se não puder evitar,
mas não gosto disso. A senhora estará lá?
— Não; pedi para ser dispensada e ele concordou. Vou lhe dizer co-
mo evitar o constrangimento de uma entrada formal, que é a parte
mais desagradável de todo o processo. Você deve entrar na sala en-
quanto estiver vazia, antes que as damas deixem a mesa de jantar, e
deve escolher um lugar em qualquer cantinho silencioso que preferir.
Não precisa ficar muito depois que os cavalheiros entrarem, se não
quiser. Só deixe que o sr. Rochester a veja lá, e depois pode sair de fini-
nho. Ninguém vai reparar.
— A senhora acha que essas pessoas vão ficar muito tempo aqui?
— Talvez duas ou três semanas, certamente não mais. Depois do re-
cesso de Páscoa, sir George Lynn, que recentemente foi eleito repre-
sentante de Millcote no Parlamento, terá de ir à cidade para assumir
seu lugar. Ouso dizer que o sr. Rochester vai acompanhá-lo. Na verda-
de, me surpreende que ele tenha ficado tanto tempo em Thornfield.
Foi com certa trepidação que vi se aproximar a hora em que deveria
descer com minha pupila para a sala de visitas. Adèle passara o dia em
êxtase depois de ouvir que seria apresentada às damas de noite, e só se
aquietou quando Sophie começou a operação de vesti-la. Então a im-
portância do processo rapidamente a acalmou e, quando ela estava
com o cabelo arrumado em cachos pendentes e lustrosos, com o vesti-
do de cetim rosa, a longa faixa amarrada e as luvas de renda ajustadas,
ficou esperando tão séria quanto qualquer juiz. Não houve necessidade
de alertá-la para não bagunçar o traje: uma vez vestida, ela se sentou
recatadamente na cadeirinha, tomando o cuidado de erguer a saia de
cetim para evitar qualquer vinco, e assegurou-me de que não sairia
dali até eu estar pronta. Eu me arrumei rápido; meu melhor vestido (o
cinza prateado, comprado para o casamento da srta. Temple e nunca
usado desde então) foi logo colocado; meu cabelo logo estava penteado
e meu único ornamento, o broche de pérolas, logo estava preso. Desce-
mos.
Felizmente, havia outra entrada para a sala de visitas, além da que
passava pelo ambiente onde todos estavam sentados para o jantar.
Chegamos ao cômodo vazio, onde o fogo alto ardia silenciosamente na
lareira de mármore e velas de cera brilhavam, fortes e solitárias, entre
as esplêndidas flores que adornavam as mesas. A cortina carmim pen-
dia da abertura em arco. Por mais fina que fosse a separação que o te-
cido criava com o grupo no salão adjacente, eles falavam em vozes tão
baixas que nada da conversa era distinguido além de um murmúrio
tranquilizador.
Adèle, que parecia ainda estar sob a influência de um sentimento
muito solene, sentou-se, sem dizer nada, no escabelo que lhe apontei.
Eu me acomodei no assento de uma janela e, pegando um livro de uma
mesa próxima, tentei ler. Adèle levou o escabelo até a minha frente e,
pouco tempo depois, tocou meu joelho.
— O que foi, Adèle?
— Est-ce que je ne puis pas prendre une seule de ces fleurs magnifiques,
mademoiselle? Seulement pour compléter ma toilette?99
— Você pensa demais na sua toilette, Adèle, mas pode pegar uma flor.
Tomei uma rosa de um vaso e a prendi à sua faixa. Ela soltou um
suspiro de satisfação indescritível, como se sua xícara de felicidade es-
tivesse agora cheia. Virei o rosto para esconder um sorriso que não
consegui conter: havia algo absurdo, além de doloroso, na devoção sin-
cera e inata da pequena parisiense a questões de vestuário.
Então um som suave de pessoas se levantando tornou-se audível; a
cortina foi afastada do arco e através dele via-se a sala de jantar, cujo
lustre aceso vertia luz sobre a prataria e as taças de um serviço de so-
bremesa magnífico que cobriam a longa mesa. Um grupo de damas es-
tava parado na abertura — elas entraram e a cortina caiu.
Eram só oito, mas de alguma forma, entrando como bando, davam a
impressão de ser um número muito maior. Algumas eram muito altas,
muitas estavam vestidas de branco, e todas tinham trajes tão amplos
que pareciam magnificar suas silhuetas como a névoa magnifica a lua.
Eu me ergui e fiz uma mesura; uma ou outra curvou a cabeça em res-
posta, e o restante só me fitou.
Elas se dispersaram pela sala, lembrando, pela leveza e suavidade
de movimentos, uma revoada de pássaros brancos plumados. Algumas
se jogaram semirreclinadas nos sofás e divãs, outras se debruçaram
nas mesas e examinaram as flores e livros, e o resto se reuniu ao redor
do fogo. Falavam em um tom baixo mas nítido que lhes parecia habi-
tual. Mais tarde descobri seus nomes, então posso mencioná-los agora.
Primeiro havia a sra. Eshton e as duas filhas. Ela evidentemente fora
uma bela mulher e ainda estava bem conservada. Das filhas, a mais
velha, Amy, era pequena, com rosto e modos ingênuos e infantis, e uma
figura formosa; o vestido de musselina branco com uma faixa azul caía
bem nela. A segunda, Louisa, era mais alta e elegante em figura e tinha
um rosto muito bonito, daquela ordem que os francesas denominam
“minois chiffonné”.100 Ambas as irmãs tinham a pele branca como lí-
rios.
Lady Lynn era uma mulher grande e robusta de cerca de quarenta
anos, muito empertigada e com um aspecto muito arrogante. Usava
um vestido suntuoso de cetim com tonalidades cambiantes. Seu cabelo
escuro reluzia sob a sombra de uma pluma azul-celeste e contido por
um diadema incrustado de joias.
A esposa do coronel Dent era menos vistosa, mas, pensei, mais no-
bre. Tinha uma figura esguia, um rosto pálido e gentil e cabelo loiro.
Seu vestido de cetim preto, seu cachecol de renda estrangeira fina e
seus adornos de pérola me agradaram mais do que o esplendor de ar-
co-íris da dama nobre.
As três mais distintas — em parte, talvez, por serem as mais altas do
grupo — eram a viúva lady Ingram e suas filhas, Blanche e Mary. As
três eram tão altas quanto era possível para uma mulher. A viúva teria
entre quarenta e cinquenta anos; sua figura ainda era formosa; seu ca-
belo (ao menos à luz de velas) ainda era escuro; e seus dentes também
aparentavam ser perfeitos. A maioria das pessoas a teria considerado
uma mulher esplêndida, para a idade, e ela o era, sem dúvida, fisica-
mente falando, exceto por um ar de soberba quase insuportável em sua
postura e semblante. Tinha feições romanas e um queixo duplo que
desaparecia no pescoço reto como um pilar. Essas feições me parece-
ram ser não só inchadas e escurecidas, mas até sulcadas de orgulho, e o
queixo era sustentado pelo mesmo princípio, tão empinado que era
quase sobrenatural. Além disso, ela possuía um olhar feroz e duro que
me lembrava o da sra. Reed, e pronunciava bem as palavras ao falar;
sua voz era profunda, suas inflexões, muito pomposas e dogmáticas —
em suma, uma mulher intolerável. O vestido de veludo carmesim e um
xale de algum tecido indiano bordado a ouro, amarrado como um tur-
bante, lhe concediam (suponho que ela imaginasse) uma dignidade re-
almente imperial.
Blanche e Mary tinham a mesma estatura — eram retas e altas como
choupos. Mary era magra demais para a altura, mas Blanche tinha a
figura de uma Diana.101 Eu a observei, é claro, com interesse especial.
Primeiro, desejava ver se sua aparência coincidia com a descrição da
sra. Fairfax; segundo, se ela se assemelhava de qualquer forma ao re-
trato fantasioso que eu pintara; e terceiro — preciso confessar! — se era
uma mulher que agradaria ao gosto do sr. Rochester.
No que se tratava da aparência, ela atendeu ponto a ponto tanto ao
meu retrato como à descrição da sra. Fairfax. O busto nobre, os ombros
em declive, o pescoço gracioso, os olhos escuros e os cachos negros es-
tavam todos lá. Mas o rosto? O rosto era como o da mãe, um retrato
mais jovem e sem rugas: a mesma testa baixa, as mesmas feições altas,
o mesmo orgulho. Não era, porém, um orgulho tão saturnino: ela esta-
va sempre rindo, e sua risada era satírica, assim como a expressão ha-
bitual do lábio arqueado e arrogante.
Diz-se que os gênios são conscientes de si: não sei dizer se a srta. In-
gram era um gênio, mas era consciente de si — extremamente, na ver-
dade. Começou a conversar sobre botânica com a gentil sra. Dent, a
qual parecia não ter estudado essa ciência, embora, como disse, gostas-
se de flores, “especialmente as silvestres”. A srta. Ingram conhecia o as-
sunto e despejou todo o vocabulário da área com um ar superior. Logo
percebi que ela estava (como se diz no vernáculo) emboscando a sra.
Dent; isto é, aproveitando-se da ignorância dela. Sua emboscada podia
ser ardilosa, mas certamente não era gentil. Ela tocou piano, e sua exe-
cução foi brilhante; ela cantou, e sua voz era bela; ela falou francês com
a mãe, e o falou bem, com fluência e um bom sotaque.
Mary tinha um semblante mais brando e aberto que Blanche, assim
como feições mais suaves e a pele um pouco mais clara (a srta. Ingram
era morena como uma espanhola) — mas tinha uma deficiência em vi-
talidade. Faltava expressão em seu rosto, brilho em seu olhar. Não ti-
nha nada a dizer e, após tomar o seu assento, permaneceu fixa nele co-
mo uma estátua em seu nicho. Ambas as irmãs usavam vestidos de um
branco imaculado.
E então, eu achei que a srta. Ingram era uma escolha provável para
o sr. Rochester? Não sabia dizer — eu não conhecia o gosto dele para
beleza feminina. Se gostava do majestoso, ela tinha o tipo ideal de ma-
jestade, e ainda por cima era talentosa e vivaz. A maioria dos cavalhei-
ros a admiraria, pensei, e de que ele a admirava, já parecia ter obtido
provas. Para remover as últimas sombras de dúvida, restava apenas
vê-los juntos.
O leitor não deve supor que Adèle passou todo esse tempo sentada,
imóvel, no escabelo aos meus pés. Não, quando as damas entraram, ela
se ergueu, foi ao seu encontro, fez uma mesura pomposa e disse com
seriedade:
— Bonjour, mesdames.
A srta. Ingram olhou para ela com um ar sardônico e exclamou:
— Ah, que bonequinha!
Lady Lynn comentou:
— É a protegida do sr. Rochester, imagino, a garotinha francesa de
que ele estava falando.
A sra. Dent gentilmente tomou a mão dela e lhe deu um beijo. Amy e
Louisa Eshton exclamaram ao mesmo tempo:
— Que criança adorável!
Em seguida a chamaram para um sofá, onde a menina se acomodou
entre elas, conversando alternadamente em francês e um inglês entre-
cortado — absorvendo não só a atenção das damas mais jovens, mas
também da sra. Eshton e de lady Lynn, e sendo mimada tanto quanto
poderia desejar.
Por fim, o café é trazido e os cavalheiros são chamados. Eu me sento
na sombra — se há qualquer sombra, nessa sala brilhantemente ilumi-
nada; a cortina da janela me oculta parcialmente. Novamente o arco se
escancara, e cá vêm eles. A chegada coletiva dos cavalheiros, como a
das damas, é muito imponente: eles estão todos vestidos de preto, a
maioria é alta e alguns são jovens. Henry e Frederick Lynn são rapazes
muito elegantes, de fato; e o coronel Dent é um belo exemplo de mili-
tar. O sr. Eshton, o magistrado do distrito, é muito cavalheiresco: seu
cabelo é muito branco, mas as sobrancelhas e suíças ainda são escuras,
o que lhe dá algo da aparência de um père noble de théâtre.102 Lorde
Ingram, como as irmãs, é muito alto e, como elas, também é belo, mas
partilha do aspecto apático e indiferente de Mary e parece ter mais
força nos membros do que vivacidade de sangue ou vigor de mente.
E onde está o sr. Rochester?
Ele vem por último. Não estou olhando para o arco, mas ainda o ve-
jo entrar. Tento me concentrar nas agulhas de crochê, nos pontos da
bolsa que estou bordando. Desejo pensar apenas no trabalho que tenho
em mãos, ver apenas as contas de prata e os fios de seda no colo. No
entanto, distintamente vejo sua figura e inevitavelmente recordo o mo-
mento em que a vi pela última vez: logo após lhe prestar o que ele cha-
mou de um serviço essencial — quando ele, segurando minha mão,
olhando para o meu rosto, me fitou com olhos que revelavam um cora-
ção cheio e ansioso por transbordar, de cujas emoções eu era parte. Co-
mo me aproximara dele naquele momento! O que ocorrera desde então
para mudar as nossas posições? Como estávamos distantes, como está-
vamos apartados! Tão apartados que eu não esperava que ele viesse fa-
lar comigo. Não me surpreendi, portanto, quando se sentou do outro
lado da sala sem olhar para mim e começou a conversar com algumas
das damas.
Eu mal o tinha visto quando seu olhar fixou-se nelas e, observando
sem ser observada, meus olhos foram atraídos involuntariamente ao
seu rosto. Eu não conseguia manter as pálpebras sob controle: elas in-
sistiam em se erguer e as íris se fixavam nele. Observei com um prazer
agudo, um prazer precioso, mas afiado, ouro puro com uma ponta de
aço de agonia: um prazer como o do homem que perece de sede pode-
ria sentir quando sabe que o poço ao qual se arrastou está envenenado,
mas se curva e toma goles divinos mesmo assim.
É uma grande verdade que “a beleza está nos olhos de quem vê”. O
rosto pálido e moreno do meu patrão, a testa grande e quadrada, as so-
brancelhas largas e pretas, os olhos fundos, as feições fortes, a boca fir-
me e grave — todos transmitindo energia, decisão, força de vontade —
não eram belos conforme os padrões da sociedade, mas para mim
eram mais do que belos. Transbordavam com um interesse, uma in-
fluência que me governava, que tirava meus sentimentos do meu pró-
prio controle e os acorrentava ao dele. Eu não pretendera amá-lo — o
leitor sabe quanto lutei para extirpar da alma os germes do amor que
detectei nela — e então, na primeira vez que o via de novo, eles espon-
taneamente reviveram, verdes e fortes! Ele me fez amá-lo sem sequer
me olhar.
Eu o comparei com os convidados. O que era a graciosidade galante
dos Lynn, a elegância lânguida de lorde Ingram, até mesmo a distinção
militar do coronel Dent, comparados com seu olhar de vigor inato e
poder genuíno? Eu não sentia simpatia alguma pela aparência deles,
nem por sua expressão, mas imaginava que a maioria dos observado-
res os chamariam de atraentes, bem-apessoados e imponentes, en-
quanto declarariam sem hesitar que o sr. Rochester tinha feições duras
e um ar melancólico. Eu os via sorrir, rir, e não era nada; a luz das ve-
las tinha tanta alma quanto o sorriso deles; o repicar de um sino, tanto
significado quanto a sua risada. Eu via o sr. Rochester sorrir e suas fei-
ções severas se suavizavam; seu olhar tornava-se brilhante e ao mes-
mo tempo gentil, emitindo uma luz doce e inquisitiva. No momento,
ele conversava com Louisa e Amy Eshton. Surpreendi-me ao vê-las
receber com calma um olhar que para mim parecia tão penetrante; es-
perava que seus olhos abaixassem, que seu rosto corasse, mas fiquei fe-
liz ao ver que elas não se comoviam de qualquer forma. Ele não é para
elas o que é para mim, pensei. Ele não é o seu tipo de pessoa. Acredito
que seja do meu — tenho certeza de que sim. Sinto-me semelhante a ele.
Entendo a linguagem de seu semblante e movimentos; embora posição e
fortuna nos separem amplamente, algo em meu cérebro e coração, em
meu sangue e nervos, me assemelha mentalmente a ele. Eu disse mesmo,
alguns dias atrás, que não tinha nenhuma relação com ele exceto receber
meu salário de suas mãos? Eu me proibi mesmo de vê-lo de qualquer ou-
tra forma exceto como um empregador? Blasfêmia contra a natureza!
Todo sentimento bom, verdadeiro e vigoroso que tenho reúne-se impulsi-
vamente ao redor dele. Sei que devo esconder meus sentimentos, que devo
conter a esperança e recordar que ele não pode se importar muito comi-
go. Pois quando digo que sou o mesmo tipo de pessoa que ele, não quero
dizer que tenho sua força para influenciar e sua capacidade enfeitiçante
de atrair: quero dizer apenas que tenho certos gostos e sentimentos em
comum com ele. Devo então repetir continuamente que estamos para
sempre apartados — entretanto, enquanto respirar e pensar, não tenho
escolha exceto amá-lo.
O café é servido. As damas, desde que os cavalheiros entraram, tor-
naram-se vivazes como cotovias; as conversas prosseguem velozes e
alegres. O coronel Dent e o sr. Eshton discutem política; as esposas es-
cutam. As duas viúvas orgulhosas, lady Lynn e lady Ingram, confabu-
lam entre si. Sir George — que, aliás, esqueci de descrever como um ca-
valheiro do interior muito corpulento e vigoroso — está na frente do
sofá delas, com a xícara de café na mão, e vez ou outra acrescenta uma
palavra. O sr. Frederick Lynn sentou-se ao lado de Mary Ingram e está
mostrando a ela as gravuras de um esplêndido livro. Ela olha e sorri
de vez em quando, mas parece falar pouco. O alto e imperturbável lor-
de Ingram debruça-se com os braços cruzados no encosto da cadeira
da pequena e animada Amy Eshton; ela ergue os olhos para ele e taga-
rela como uma cambaxirra — gosta dele mais do que do sr. Rochester.
Henry Lynn se acomodou em um banquinho junto a Louisa; Adèle o
divide com ele. Ele está tentando falar com ela em francês e Louisa ri
dos seus erros. Com quem Blanche Ingram vai formar um par? Ela es-
tá parada sozinha à mesa, graciosamente curvada sobre um álbum. Pa-
rece esperar ser abordada, mas não espera muito tempo — ela mesma
seleciona um companheiro.
O sr. Rochester, após deixar os Eshton, para junto à lareira tão solitá-
rio quanto ela está parada junto à mesa. Ela o confronta, assumindo
posição do outro lado da cornija.
— Sr. Rochester, eu pensei que não gostasse de crianças.
— E não gosto.
— Então o que o impeliu a tomar conta daquela bonequinha? — ques-
tionou, apontando para Adèle. — Onde a encontrou?
— Eu não a encontrei, ela foi deixada em minhas mãos.
— O senhor deveria tê-la mandado para a escola.
— Não tenho condições; as escolas são caras.
— Ora, suponho que o senhor tenha uma preceptora para ela, vi al-
guém com ela agora mesmo… ela já foi embora? Ah, não, lá está atrás
da cortina. O senhor a paga, é claro. Acredito que seja tão caro quanto
uma escola. Mais ainda, pois o senhor precisa sustentar as duas, além
de tudo.
Eu tive receio — ou, antes, esperança — de que a alusão faria o sr. Ro-
chester olhar para mim, e involuntariamente afundei ainda mais nas
sombras. Porém, ele não se virou.
— Nunca considerei o assunto — disse ele com indiferença, olhando
para a frente.
— Não. Os homens nunca consideram a economia e o bom senso. O
senhor deveria ouvir mamãe falar de preceptoras. Mary e eu tivemos,
creio, uma dúzia delas na nossa época, metade detestável e o resto ridí-
culo, e todas um pesadelo. Não eram, mamãe?
— Disse algo, minha filha?
A jovem dama, assim reivindicada como a propriedade especial da
viúva, reiterou a pergunta com uma explicação.
— Minha querida, não mencione preceptoras; só a palavra me deixa
nervosa. Sofri um martírio devido à incompetência e aos caprichos de-
las, e agradeço aos céus que agora não tenho mais de lidar com nenhu-
ma!
A sra. Dent, nesse ponto, curvou-se para a dama devota e sussurrou
algo em seu ouvido. Imagino, pela resposta que inspirou, que foi um
lembrete de que um membro da raça amaldiçoada estava presente na
sala.
— Tant pis!103 — disse sua senhoria. — Espero que tire proveito! — En-
tão, em um tom mais baixo, mas ainda alto o suficiente para ser ouvi-
do: — Eu a notei antes. Sou bem versada em fisionomia e vejo nela to-
dos os defeitos de sua classe.
— E quais são eles, senhora? — perguntou o sr. Rochester em voz alta.
— Contarei ao senhor em particular — respondeu ela, balançando o
turbante três vezes com um ar portentoso.
— Mas minha curiosidade vai perder o apetite, e anseia por alimento
agora.
— Pergunte a Blanche, ela está mais perto que eu.
— Ah, não lhe diga para falar comigo, mamãe! Só tenho uma coisa a
dizer de todo o bando: elas são um aborrecimento. Não que eu tenha
sofrido muito, pois fazia questão de virar o jogo. Quantas peças Theo-
dore e eu pregamos nas nossas senhoritas Wilson, e senhoras Grey, e
madames Joubert! Mary sempre era preguiçosa demais para partici-
par de um plano com energia. Era mais divertido com madame Jou-
bert. A srta. Wilson era uma criatura enferma e lamentável, lacrimosa
e desanimada. Não valia o esforço de derrotar, em suma. E a sra. Grey
era rude e insensível, e nenhum golpe a afetava. Mas a pobre madame
Joubert! Ainda vejo suas explosões furiosas, quando a levávamos ao li-
mite: derrubando nosso chá, esfarelando nosso pão com manteiga, jo-
gando nossos livros para o teto e fazendo uma cacofonia com a régua e
a mesa, o guarda-fogo e os tenazes. Theodore, lembra-se desses dias
felizes?
— Ahh, sem dúvida — respondeu lorde Ingram com a voz arrastada.
— E a coitada da velha chata exclamava: “Ah, suas crianças malvadas!”,
e então a repreendíamos sobre a presunção de tentar ensinar crianças
tão espertas quanto nós quando ela mesma era tão ignorante.
— É mesmo, Tedo, e lembra que eu o ajudei a persuadir (ou perse-
guir) o seu tutor, o pálido sr. Vining… o pároco enfermo, como o cha-
mávamos. Ele e a srta. Wilson tomaram a liberdade de se apaixonar;
pelo menos, Tedo e eu pensávamos que sim. Captamos olhares e suspi-
ros ternos que interpretamos como sinais de la belle passion,104 e ga-
ranto a vocês que os outros logo ficaram sabendo da nossa descoberta.
Nós a empregamos como uma espécie de catapulta para lançar os pe-
sos mortos para longe de casa. A querida mamãe, assim que ficou sa-
bendo dessa história, decidiu que era imoral. Não foi, senhora minha
mãe?
— Certamente, minha querida. E eu tinha toda razão, podem ter cer-
teza. Há mil motivos pelos quais casos entre preceptoras e tutores não
deveriam ser tolerados por um momento sequer em uma casa bem ad-
ministrada. Em primeiro lugar…
— Ah, céus, mamãe! Poupe-nos da lista. Au reste,105 todos sabemos
quais são: o perigo de dar um mau exemplo à inocência infantil… dis-
trações e consequente negligência do dever da parte dos enamorados…
uma aliança e dependência mútua… a confiança resultante dela… a in-
solência que a acompanha… motim e confusão geral. Acertei, baronesa
Ingram de Ingram Park?
— Meu lírio, você está certa, como sempre.
— Então não é preciso dizer mais nada; mudemos de assunto.
Amy Eshton, não ouvindo ou não atentando à decisão, entrou na
conversa com sua voz suave e infantil.
— Louisa e eu também testávamos nossa preceptora, mas ela era
uma criatura tão boa que suportava tudo; nada a aborrecia. Ela nunca
ficou irritada conosco, não é, Louisa?
— Não, nunca. Podíamos fazer o que quiséssemos: revistar sua mesa
e sua caixa de trabalho ou revirar suas gavetas, e ela era tão gentil que
nos dava tudo que pedíamos.
— Suponho que agora — disse a srta. Ingram, curvando os lábios sar-
casticamente — teremos um resumo das lembranças de todas as pre-
ceptoras existentes. A fim de evitar tais rememorações, novamente
proponho a introdução de um novo assunto. Sr. Rochester, apoia mi-
nha moção?
— Senhora, eu a apoio nessa questão como em todas as outras.
— Então recai em mim o ônus de apresentá-lo. Signor Eduardo, está
em condições de cantar esta noite?
— Donna Bianca, se comandar, estarei.
— Então, signor, dou-lhe meu comando soberano de preparar os
pulmões e outros órgãos vocais, uma vez que serão requisitados para o
meu serviço régio.
— Quem não seria o Rizzio de uma Mary tão divina?106
— Rizzio não é nada! — exclamou ela, jogando a cabeça para trás,
com todos os cachos, a caminho do piano. — Sou da opinião de que esse
violinista David deve ter sido um sujeito um tanto insípido; gosto mais
do malvado Bothwell. Na minha opinião, um homem não é nada sem
um toque de perversidade, e a história pode dizer o que quiser de Ja-
mes Hepburn, mas tenho a impressão de que ele era exatamente o tipo
de herói impetuoso, feroz e vigarista a quem eu teria entregue minha
mão.
— Cavalheiros, vocês ouviram! Agora, qual de vocês mais se asseme-
lha a Bothwell? — exclamou o sr. Rochester.
— Eu diria que o senhor é o mais próximo — respondeu o coronel
Dent.
— Palavra de honra, fico muito agradecido — foi a resposta.
A srta. Ingram, que se acomodara com elegância orgulhosa ao piano,
estendendo sua saia nevada com amplitude digna de uma rainha, to-
cou um prelúdio genial enquanto conversava. Ela parecia estar no topo
do mundo naquela noite; tanto suas palavras como seus ares pareciam
ter a intenção de estimular não só a admiração, mas o espanto de seus
ouvintes. Evidentemente, estava determinada a passar-lhes a impres-
são de grande refinamento e ousadia.
— Ah, estou tão farta dos rapazes de hoje! — exclamou ela, os dedos
voando sobre o instrumento. — Coisinhas débeis, inaptas a dar um pas-
so além dos portões do papai ou sequer ir tão longe sem a permissão e
a tutela da mamãe! Criaturas absortas nos cuidados com o rosto bonito
e as mãos brancas e os pés pequenos, como se um homem precisasse se
preocupar com beleza! Como se encantar não fosse a prerrogativa es-
pecial das mulheres, sua herança e atributo legítimos! Admito que uma
mulher feia é uma mácula no belo rosto da criação, mas, quanto aos ca-
valheiros, que se preocupem apenas em possuir força e coragem. Que
seu lema seja “caçar, atirar e lutar”, o resto não vale um vintém. Tal se-
ria meu raciocínio, se fosse um homem.
“Quando eu me casar”, continuou ela após uma pausa que ninguém
interrompeu, “estou decidida que meu marido não será um rival, mas
um contraste. Não aceitarei competição perto do trono; exigirei home-
nagens indivisas. As devoções dele não serão compartilhadas entre
mim e a forma que ele vê em seu espelho. Sr. Rochester, agora cante, e
eu tocarei para o senhor.”
— Sou todo obediência — foi a resposta.
— Cá então está uma canção de corsários. Saiba que eu tenho muita
afeição pelos corsários e, por esse motivo, cante con spirito.
— Comandos dos lábios da srta. Ingram animariam o espírito de
uma jarra de leite com água.
— Cuidado, então. Se não me agradar, eu o envergonharei mostrando
como tais coisas devem ser feitas.
— Isso é oferecer um prêmio pela ineptidão; agora vou me esforçar
para falhar.
— Gardez-vous en bien!107 Se errar de propósito, vou pensar em uma
punição proporcional.
— A srta. Ingram deveria ser clemente, pois tem o poder de infligir
um castigo que mortal algum suportaria.
— Rá! Explique-se! — ordenou a dama.
— Perdoe-me, senhora, não há necessidade de explicação. Sua pró-
pria fina sensibilidade deve informá-la de que um olhar reprovador da
sua parte seria um substituto à pena capital.
— Cante! — ordenou ela, e, novamente no piano, começou um acom-
panhamento em um estilo enérgico.
Agora é minha chance de escapar, pensei, mas as notas que então
atravessaram o ar me mantiveram fixa no lugar. A sra. Fairfax dissera
que o sr. Rochester possuía uma bela voz, e era verdade. Um grave po-
tente e melodioso, no qual imbuía os próprios sentimentos, a própria
força, encontrando um caminho pelo ouvido até o coração, e lá desper-
tando estranhas sensações. Esperei até que a última vibração rica e
profunda tivesse expirado — até que a maré das conversas, contida por
um momento, tivesse retomado seu fluxo. Então deixei meu refúgio no
canto e saí pela porta lateral, que por sorte estava próxima. De lá, uma
passagem estreita levava ao corredor; ao atravessá-la, percebi que mi-
nha sandália estava solta. Parei para amarrá-la, ajoelhando-me no ta-
pete ao pé da escadaria. Ouvi a porta da sala de jantar se abrir; um ca-
valheiro saiu; erguendo-me às pressas, vi-me diante dele. Era o sr. Ro-
chester.
— Como vai? — perguntou ele.
— Muito bem, senhor.
— Por que não foi falar comigo na sala?
Pensei que poderia ter lançado a pergunta de volta a quem a fizera,
mas não tomaria tal liberdade. Respondi:
— Não queria perturbá-lo, pois o senhor parecia ocupado.
— O que fez durante minha ausência?
— Nada de especial. Dei aulas a Adèle, como sempre.
— E ficou muito mais pálida do que antes; vi em um instante. Qual é
o problema?
— Não é nada, senhor.
— Ficou resfriada após a noite em que quase me afogou?
— Nem um pouco.
— Volte à sala de visitas, é cedo demais para se retirar.
— Estou cansada, senhor.
Ele me examinou por um minuto.
— E um pouco deprimida — disse ele. — Por quê? Conte-me.
— Não é nada… nada, senhor. Não estou deprimida.
— Mas afirmo que está. Tanto que mais algumas palavras trariam
lágrimas aos seus olhos… sim, aí estão elas, brilhando e nadando, e
uma escapou da pestana e caiu no piso. Se eu tivesse tempo, e não sen-
tisse um medo mortal de algum criado tagarela passar, descobriria o
que tudo isso significa. Bem, esta noite eu a dispenso, mas saiba que,
enquanto meus convidados estiverem aqui, espero que apareça na sala
de visitas todas as noites. É meu desejo; não o ignore. Agora vá, e man-
de Sophie cuidar de Adèle. Boa noite, minha… Ele se interrompeu,
mordeu o lábio e partiu abruptamente.
F
oram dias alegres e agitados em Thornfield Hall — quão dife-
rentes dos primeiros três meses de imobilidade, monotonia e
solidão que eu passara sob seu teto! Todos os sentimentos tris-
tes pareciam ter sido expulsos da casa, todas as suas associações me-
lancólicas, esquecidas: havia vida por toda parte, movimento o dia to-
do. Não se podia mais atravessar um corredor outrora tão silencioso,
nem entrar nos cômodos da frente da casa, outrora tão desocupados,
sem encontrar uma elegante criada ou um lacaio empertigado.
A cozinha, a antecozinha, a sala dos criados e o saguão ficaram
igualmente animados, e as salas só ficavam vazias e silenciosas quando
o céu azul e o sol alegre dos agradáveis dias primaveris convidava os
ocupantes a sair de casa. Mesmo quando cessava o tempo bom e uma
chuva contínua caía por alguns dias, nada parecia arrefecer os praze-
res; os divertimentos dentro de casa só se tornavam mais enérgicos e
variados como consequência da interrupção das diversões ao ar livre.
Na primeira noite em que uma mudança de entretenimento foi pro-
posta, eu me perguntei o que eles fariam. Alguém sugeriu “brincar de
charadas”, mas em minha ignorância não entendi do que se tratava. Os
criados foram chamados para a sala, as mesas da sala de jantar foram
levadas, as luzes reposicionadas e as cadeiras colocadas em semicírculo
diante da entrada em arco. Enquanto o sr. Rochester e os outros cava-
lheiros coordenavam esses arranjos, as damas subiam e desciam as es-
cadas correndo, chamando suas criadas. A sra. Fairfax foi convocada
para dar informações a respeito dos recursos da casa, no que se tratava
de xales, vestidos e tecidos de qualquer tipo. Alguns guarda-roupas do
terceiro andar foram saqueados, e seus conteúdos, na forma de
anáguas de brocado com arame, vestidos de cetim, peças de seda preta,
tiras rendadas para chapéu etc., foram trazidos em braçadas pelas cri-
adas. Em seguida, fez-se uma seleção e os itens escolhidos foram leva-
dos ao boudoir na sala de visitas.
No meio-tempo, o sr. Rochester tinha novamente chamado as damas
ao seu redor e estava selecionando algumas entre elas para fazer parte
do seu grupo.
— A srta. Ingram é minha, é claro — disse ele, e em seguida nomeou
as duas senhoritas Eshton e a sra. Dent.
Ele olhou para mim; por acaso eu estava ali perto, pois prendia o fe-
cho da pulseira da sra. Dent, que tinha se soltado.
— Você vai participar? — ele perguntou.
Balancei a cabeça em recusa. Ele não insistiu, como eu temi que fi-
zesse, e permitiu que eu retornasse em silêncio ao meu posto usual.
Ele e suas assistentes se retiraram então para trás da cortina. O ou-
tro grupo, liderado pelo coronel Dent, sentou-se no semicírculo de ca-
deiras. Um dos cavalheiros, o sr. Eshton, notando minha presença, pa-
receu propor que eu fosse convidada a me juntar a eles, mas lady In-
gram imediatamente rejeitou a ideia.
— Não — eu a ouvi dizer. — Ela parece estúpida demais para qualquer
jogo desse tipo.
Pouco depois, um sino tocou e a cortina subiu. Dentro do arco, a fi-
gura robusta de sir George Lynn, que o sr. Rochester também havia es-
colhido para o seu grupo, foi vista embrulhada em um lençol branco.
Em uma mesa à sua frente havia um grande livro, e ao lado dela Amy
Eshton estava de pé, envolta na capa do sr. Rochester e segurando ou-
tro livro. Alguém que não estava à vista tocou o sino alegremente, e
então Adèle (que insistira em fazer parte do grupo do guardião) saltou
à frente, espalhando ao seu redor o conteúdo de uma cesta de flores
que carregava no braço. Em seguida apareceu a magnífica figura da sr-
ta. Ingram, trajada de branco com um longo véu na cabeça e uma guir-
landa de rosas cingindo a testa. O sr. Rochester veio ao seu lado e eles
se aproximaram juntos da mesa. Ajoelharam-se enquanto a sra. Dent e
Louisa Eshton, também vestidas de branco, assumiram seus lugares
atrás deles. Uma cerimônia se seguiu, um espetáculo mudo, em que era
fácil reconhecer a pantomima de um casamento. No final, o coronel
Dent e seu grupo confabularam em sussurros por dois minutos, e então
o coronel exclamou:
— Noiva!
O sr. Rochester fez uma mesura e a cortina caiu.
Um intervalo considerável se seguiu antes que se erguesse nova-
mente. A segunda rodada apresentou uma cena mais elaborada que a
primeira. A sala de visitas, como observei anteriormente, ficava dois
degraus acima da sala de jantar e, sobre o degrau mais alto, que avan-
çava cerca de um metro para dentro do cômodo, via-se uma grande
bacia de mármore que reconheci como um ornamento da estufa — on-
de geralmente se encontrava, cercada por flores exóticas e ocupada por
peixes dourados, e de onde devia ter sido transportada, com um esfor-
ço nada negligenciável considerando seu tamanho e peso.
Sentado no tapete, ao lado dessa bacia, estava o sr. Rochester, usando
xales e um turbante na cabeça. Seus olhos e pele escuros e feições sar-
racenas combinavam perfeitamente com a fantasia: ele era o retrato
perfeito de um emir do leste, agente ou vítima da corda de um arco.
Logo a srta. Ingram entrou à vista. Ela também estava vestida em esti-
lo oriental, com um cachecol carmesim amarrado na cintura, como
uma faixa, um lenço bordado ao redor das têmporas e os braços for-
mosos à mostra, um deles erguidos no ato de sustentar um jarro com
elegância sobre a cabeça. Sua forma e feições, sua tez e ares sugeriam
todas a ideia de alguma princesa israelita dos tempos patriarcais, e tal
era sem dúvida a personagem que ela devia representar.
Ela se aproximou da bacia e inclinou-se como se fosse encher o jar-
ro, depois novamente o ergueu à cabeça. O personagem ao lado do po-
ço pareceu abordá-la e fazer algum pedido — “apressou-se e abaixou o
seu cântaro sobre a sua mão e deu-lhe de beber”. De dentro das vestes
ele tirou então uma caixinha, abriu-a e mostrou pulseiras e brincos
magníficos. Ela fingiu espanto e admiração; ajoelhando-se, ele dispôs o
tesouro aos seus pés; ela expressou incredulidade e deleite com olhares
e gestos; e o estranho fechou as pulseiras ao redor de seus braços e os
aros em suas orelhas. Eram Eliezer e Rebeca; só faltavam os came-
los.108
O grupo que deveria adivinhar juntou as cabeças outra vez. Pelo vis-
to, não conseguiam concordar sobre a palavra ou sílaba que a cena
ilustrava. O coronel Dent, seu porta-voz, exigiu “o tableau da palavra”,
ao que a cortina novamente desceu.
Ao subir pela terceira vez, uma parte da sala de visitas foi revelada,
enquanto o resto estava oculto por uma divisória coberta com uma es-
pécie de tecido escuro e grosseiro. A bacia de mármore fora removida e
em seu lugar havia uma mesa de madeira e uma cadeira da cozinha,
objetos visíveis a uma luz muito fraca que emanava de uma lamparina
de metal. As velas de cera tinham sido todas apagadas.
Em meio a essa cena sórdida, sentava-se um homem com os punhos
repousando nos joelhos e os olhos abaixados ao chão. Reconheci o sr.
Rochester; embora o rosto imundo, as vestes desalinhadas (o casaco
pendia de um braço, como se quase tivesse sido arrancado em uma
briga), o semblante desesperado e carrancudo, e o cabelo áspero e eri-
çado pudessem muito o ter disfarçado. Quando ele se moveu, uma cor-
rente tilintou; havia grilhões presos aos seus pulsos.
— Bridewell!109 — exclamou o coronel Dent, e a charada foi resolvida.
Após um intervalo suficiente para que os atores vestissem suas rou-
pas normais, eles entraram novamente na sala de jantar. O sr. Roches-
ter conduzia a srta. Ingram, que estava elogiando sua atuação.
— Sabe que, dos três personagens, gostei mais do senhor como o últi-
mo? Ah, se tivesse apenas nascido alguns anos mais cedo, que assal-
tante de estradas cavalheiresco teria sido!
— Toda a fuligem saiu do meu rosto? — perguntou ele, virando-se
para ela.
— Infelizmente, sim! E que pena! Nada poderia cair melhor à sua tez
do que o ruge de um rufião.
— A senhorita gostaria de um herói das estradas, então?
— Um herói inglês das estradas seria a melhor opção depois de um
bandoleiro italiano, e este só poderia ser superado por um pirata le-
vantino.
— Bem, o que quer que eu seja, lembre-se de que a senhorita é mi-
nha esposa; nós nos casamos uma hora atrás, na presença de todas es-
sas testemunhas.
Ela deu um risinho e corou.
— Agora, Dent — continuou o sr. Rochester —, é a sua vez.
Enquanto o outro grupo se retirava, ele e seus companheiros assu-
miram os assentos vazios. A srta. Ingram se acomodou à direita do seu
líder e os outros adivinhadores encheram as cadeiras aos lados deles.
Eu não assistia mais aos atores; não esperava mais com interesse que a
cortina se erguesse. Minha atenção estava absorta nos espectadores;
meus olhos, antes fixos no arco, eram irresistivelmente atraídos ao se-
micírculo de cadeiras. Qual charada o coronel Dent e seu grupo inter-
pretaram, qual palavra escolheram e quão bem atuaram, eu não recor-
do mais, mas ainda vejo a deliberação que se seguiu a cada cena: vejo o
sr. Rochester se virar para a srta. Ingram, e a srta. Ingram para ele; ve-
jo-a inclinar a cabeça na direção dele até que seus cachos negros quase
tocassem o ombro e roçassem sua face; ouço seus sussurros mútuos; re-
cordo os olhares que trocaram e até um pouco do sentimento evocado
pelo espetáculo me retorna à memória.
Eu lhe disse, leitor, que aprendera a amar o sr. Rochester. Não podia
deixar de amá-lo simplesmente porque descobrira que ele deixara de
me notar — apenas porque poderia passar horas em sua presença sem
que ele voltasse os olhos na minha direção, só porque eu via todas as
suas atenções apropriadas por uma dama refinada que não se rebaixa-
va a tocar-me com a bainha do vestido ao passar e que, se seu olhar es-
curo e imperioso caísse sobre mim por acaso, o afastava imediatamen-
te como se tivesse pousado em um objeto insignificante demais para
merecer observação. Eu não podia deixar de amá-lo só por ter certeza
de que ele logo se casaria com essa dama, porque lia diariamente nela
uma segurança orgulhosa das intenções dele, porque testemunhava
nele a cada hora um estilo de galanteio que, ainda que negligente e
preferindo ser procurado a procurar, era por sua própria negligência
cativante e, por seu orgulho, irresistível.
Nada havia para arrefecer ou anular o amor nessas circunstâncias,
embora muito inspirasse desespero. Muito também, o leitor pensará,
para engendrar ciúme; se uma mulher na minha posição pudesse ter a
presunção de enciumar-se de uma mulher na posição da srta. Ingram.
Porém, eu não sentia ciúme, ou, pelo menos, só raramente o sentia; a
natureza da dor que sofria não pode ser explicada por essa palavra. A
srta. Ingram estava abaixo do ciúme, era inferior demais para excitar o
sentimento. Perdoe o aparente paradoxo, mas falo a verdade. Ela era
muito vistosa, mas não genuína; tinha uma bela figura e talentos cha-
mativos, mas sua mente era pobre, e seu coração, estéril por natureza
— nada florescia espontaneamente naquele solo, nenhuma fruta natu-
ral se deleitava com o seu frescor. Ela não era boa, não era original: ti-
nha o hábito de repetir frases de efeito de livros e nunca oferecia, nem
possuía, opinião própria. Defendia sentimentos elevados, mas não co-
nhecia as sensações da compaixão e da pena; ternura e verdade não
existiam nela. Com muita frequência o revelava pelo modo indevido
como dava vazão a uma antipatia mesquinha que nutrira contra a pe-
quena Adèle, repelindo-a com algum epíteto ultrajante se ela se apro-
ximasse, às vezes ordenando que ela saísse da sala, e sempre a tratan-
do com frieza e azedume. Outros olhos além dos meus observavam es-
sas manifestações de seu caráter — observavam-nas atenta, intensa e
astutamente. Sim: o futuro noivo, o sr. Rochester, mantinha sobre sua
pretendente uma vigilância incessante, e era dessa sagacidade — desse
seu resguardo, dessa consciência clara e perfeita dos defeitos da sua
beldade, dessa ausência óbvia de paixão nos sentimentos dele em rela-
ção a ela — que se originava a dor que me torturava constantemente.
Eu via que ele ia se casar com ela por motivos familiares, talvez po-
líticos, porque sua posição social e conexões lhe eram convenientes.
Sentia que ele não lhe dera o seu amor e que as qualificações dela eram
inadequadas para conquistar tal tesouro. Era essa a questão, era ali que
o nervo era tocado e atiçado, ali que a febre era animada e alimentada:
ela não era capaz de encantá-lo.
Se tivesse obtido essa vitória de imediato e ele tivesse cedido e since-
ramente lançado o coração aos pés dela, eu teria coberto o rosto, virado
à parede e (figurativamente) morrido para eles. Se a srta. Ingram fosse
uma mulher boa e nobre, dotada de força, fervor, gentileza e juízo, eu
teria travado uma batalha vital com dois tigres: o ciúme e o desespero.
E então, com o coração arrancado e devorado, eu a teria admirado, re-
conhecido sua excelência e mantido silêncio pelo resto dos meus dias, e
quanto mais absoluta sua superioridade, mais profunda teria sido mi-
nha admiração e mais tranquilo, meu silêncio. Contudo, dadas as cir-
cunstâncias, observar os esforços da srta. Ingram para fascinar o sr.
Rochester e testemunhar seu fracasso contínuo — ela mesma inconsci-
ente de que fracassava, vaidosamente imaginando que toda flecha lan-
çada atingia o alvo e se convencendo do sucesso, enquanto seu orgulho
e autocomplacência repeliam cada vez mais longe o que ela desejava
atrair —, testemunhar isso era estar ao mesmo tempo sob uma empol-
gação incessante e uma prisão implacável.
Porque, quando ela fracassava, eu via como poderia ter sucesso. Eu
sabia que as flechas que continuamente eram defletidas do peito do sr.
Rochester e caíam inofensivas aos seus pés, se atiradas por uma mão
mais confiante, teriam tremulado no alvo de seu coração orgulhoso —
teriam feito reluzir o amor em seus olhos severos e a suavidade em seu
rosto sardônico. Ou, melhor ainda, uma conquista silenciosa e sem ar-
mas poderia ter sido alcançada.
Por que ela não consegue afetá-lo mais, quando tem o privilégio de
ficar tão perto dele?, eu me perguntava. Decerto não pode realmente
gostar dele, não com um afeto verdadeiro, pelo menos! Se gostasse, não
precisaria fabricar sorrisos tão exagerados, lançar olhares tão constan-
tes, manufaturar ares tão elaborados e encantos tão numerosos. Pare-
ce-me que poderia, apenas sentando-se em silêncio ao lado dele, falan-
do pouco e olhando menos, aproximar-se mais do seu coração. Eu já vi
no rosto dele uma expressão muito diferente daquela que o endurece
enquanto ela o aborda com tanta vivacidade, mas, na ocasião, surgiu
por si só, não foi provocada por artes meretrícias e manobras calcula-
das, e só era preciso aceitá-la — responder sem pretensões ao que ele
perguntava, dirigir-se a ele quando necessário sem qualquer esgar —
para que tal expressão aumentasse e se tornasse mais gentil e mais
cordial, aquecendo a pessoa como um raio de sol gentil. Como ela vai
agradá-lo quando eles estiverem casados? Não acho que conseguirá;
por outro lado, talvez seja possível, e a esposa dele, acredito de cora-
ção, poderia ser a mulher mais feliz sob o sol.
Eu ainda não disse nada condenatório a respeito do plano do sr. Ro-
chester de se casar por interesse e conexões. Surpreendeu-me quando
percebi pela primeira vez que era sua intenção. Eu acreditara que ele
era um homem dificilmente influenciado por motivos tão vulgares na
escolha de uma esposa, mas, quanto mais considerava a posição, edu-
cação etc., das duas partes, menos me sentia justificada em julgar e cul-
par, tanto ele como a srta. Ingram, por agir em conformidade com idei-
as e princípios que lhes foram instilados, sem dúvida, desde a infância.
Toda a sua classe sustentava esses princípios; imaginei, então, que eles
tivessem motivos para acatá-los que eu não podia conceber. Pareceu-
me que, fosse eu um cavalheiro como ele, só tomaria uma esposa que
pudesse amar, mas as próprias vantagens óbvias à felicidade do mari-
do oferecidas por esse plano me convenceram de que deveria haver ar-
gumentos contra a sua adoção geral dos quais eu era totalmente igno-
rante; caso contrário, eu tinha certeza de que o mundo todo agiria co-
mo eu desejaria agir.
Porém, em outros aspectos além desse, eu estava me tornando muito
leniente com o meu patrão, esquecendo defeitos aos quais já mantivera
uma atenção afiada. Anteriormente, eu me esforçara para estudar to-
dos os lados do seu caráter, aceitar o bem e o mal, e julgar com justiça
após mensurar a ambos. No momento, porém, eu não via o mal. O sar-
casmo que já tinha me repelido e a rispidez que já me chocara eram só
temperos fortes em um prato requintado: sua presença era pungente,
mas sua ausência o teria tornado insípido. E quanto àquela expressão
vaga — sinistra ou sisuda, maquinadora ou melancólica? — que se abria
a um observador cuidadoso, vez ou outra, em seu olhar, fechando-se
de novo antes que se pudesse compreender a estranha profundidade
parcialmente revelada; aquela expressão que me fazia temer e me en-
colher, como se estivesse vagando entre colinas vulcânicas e subita-
mente sentisse o chão estremecer e escancarar-se? Aquela expressão,
eu ainda contemplava às vezes, com o coração palpitante, mas não com
nervos paralisados. Em vez de repelir, eu ansiava apenas ousar des-
vendá-la, e pensei que a srta. Ingram era feliz porque um dia poderia
examinar esse abismo o quanto quisesse, explorar seus segredos e ana-
lisar a sua natureza.
No meio-tempo, enquanto eu pensava apenas no meu patrão e em
sua futura noiva — vendo apenas eles, ouvindo apenas as suas conver-
sas e considerando apenas seus movimentos como importantes —, o
resto do grupo se mantinha ocupado com seus próprios interesses e
prazeres. As damas Lynn e Ingram continuavam a confabular em con-
ferências solenes, nas quais acenavam uma à outra com seus turbantes
e erguiam as mãos em gestos confrontantes de surpresa, mistério, ou
horror, de acordo com o tema das fofocas, como um par de marionetes
ampliadas. A meiga sra. Dent conversava com a gentil sra. Eshton, e as
duas às vezes me lançavam uma palavra ou sorriso cortês. Sir George
Lynn, o coronel Dent e o sr. Eshton discutiam política, os negócios do
condado ou questões de justiça. Lorde Ingram flertava com Amy
Eshton; Louisa tocava e cantava para e com um dos senhores Lynn,
enquanto Mary Ingram ouvia languidamente os discursos galantes do
outro. Às vezes todos, como se por consenso, suspendiam as ações se-
cundárias para observar e ouvir os protagonistas, pois, afinal, o sr. Ro-
chester e — por estar estreitamente conectada a ele — a srta. Ingram
eram a vida e a alma do grupo. Se ele se ausentasse da sala por uma
hora, um enfado perceptível parecia sobrevir no ânimo de seus convi-
dados, e seu retorno sempre dava um novo ímpeto à vivacidade das
conversas.
A falta dessa influência animadora pareceu ser sentida especialmen-
te no dia em que ele foi convocado a Millcote para tratar de negócios, e
provavelmente só retornaria tarde. Era um dia úmido: uma caminha-
da que o grupo propusera fazer para ver um acampamento de ciganos,
recentemente erguido em um campo comunitário fora de Hay, foi con-
sequentemente adiada. Alguns dos cavalheiros foram aos estábulos; os
mais jovens, junto com as damas mais jovens, jogavam na sala de bi-
lhar. As viúvas Ingram e Lynn procuraram consolo em um tranquilo
jogo de cartas. Blanche Ingram, após ter recusado, com presunção taci-
turna, algumas tentativas da sra. Dent e da sra. Eshton de puxá-la para
uma conversa, tinha primeiro cantarolado algumas melodias senti-
mentais enquanto tocava piano, até que, apanhando um romance da
biblioteca, se jogou com apatia arrogante num sofá e se preparou para
burlar, com o encanto da ficção, as tediosas horas de ausência. A sala e
a casa estavam silenciosas; só vez ou outra se ouvia a diversão dos jo-
gadores de bilhar vinda de cima.
O crepúsculo se aproximava e o relógio já batera a hora de se vestir
para o jantar quando a pequena Adèle, ajoelhada ao meu lado no as-
sento da janela na sala de visitas, exclamou de repente:
— Voilà monsieur Rochester, qui revient!110
Eu me virei e a srta. Ingram se levantou do sofá com um salto. Os
outros também ergueram os olhos de suas ocupações diversas, pois ao
mesmo tempo um triturar de rodas e as batidas de cascos de cavalos se
tornaram audíveis sobre o cascalho molhado. Uma carruagem se apro-
ximava.
— Que loucura o fez voltar para casa nesse estilo? — perguntou a srta.
Ingram. — Ele foi montado em Mesrour — o cavalo negro — quando
saiu, não é? E Piloto estava com ele. O que fez com os animais?
Ao falar, ela aproximou tanto o corpo alto e as vestimentas amplas
da janela que eu fui obrigada a me curvar para trás quase ao ponto de
quebrar a coluna; em sua avidez, não me notou a princípio, mas, quan-
do me viu, retorceu o lábio e se moveu para outra janela. A carruagem
parou, o cocheiro tocou a campainha e um cavalheiro desceu, usando
roupas de viagem. Não era o sr. Rochester; era um homem alto e ele-
gante, um desconhecido.
— Que irritante! — exclamou a srta. Ingram. — Sua macaquinha irri-
tante! — ela repreendeu Adèle. — Quem a deixou ficar na janela para
dar informações falsas?
Então me lançou um olhar furioso, como se a culpa fosse minha.
Ouviu-se uma conversa no saguão e logo depois o recém-chegado
entrou. Ele fez uma mesura para lady Ingram, como se a julgasse a da-
ma de mais idade presente.
— Parece que cheguei em um momento inoportuno, senhora — disse
ele —, pois meu amigo, o sr. Rochester, não está em casa. Mas acabei de
chegar de uma longa viagem e acho que posso tomar a liberdade que
me concede uma amizade íntima e de longa data e me acomodar aqui
até o retorno dele.
Seus modos eram educados; seu sotaque me pareceu um pouco inco-
mum — não exatamente estrangeiro, mas também não inteiramente in-
glês. Sua idade se aproximava à do sr. Rochester — entre trinta e qua-
renta anos —, e sua pele era singularmente amarelada. Exceto por isso,
era um homem bem-apessoado, especialmente à primeira vista. Após
um exame mais atento, se detectava em seu rosto algo que desagrada-
va, ou, antes, que deixava de agradar. Suas feições eram regulares, mas
relaxadas demais; seus olhos eram grandes e formosos, mas a vida que
olhava a partir deles era mansa e vazia. Ao menos, foi o que pensei.
O sino que anunciava a hora de se vestir dispersou o grupo. Eu só o
vi de novo após o jantar, quando pareceu estar muito à vontade. Po-
rém, gostei ainda menos de sua fisionomia do que antes; parecia-me,
ao mesmo tempo, inquieta e inanimada. Seus olhos vagavam, mas não
havia sentido na perambulação. Isso lhe dava um olhar esquisito que
eu pensei nunca ter visto antes. Para um homem bonito e nada descor-
tês, ele me repelia em excesso. Não havia força naquele rosto oval e li-
so, nenhuma firmeza no nariz aquilino e na boca pequena em formato
de cereja; não havia pensamentos na testa baixa e regular; não havia
autoridade nos olhos castanhos vazios.
Sentada no meu canto de sempre e o observando sob a luz dos casti-
çais na cornija que caíam inteiramente sobre ele — pois ele ocupara
uma poltrona que puxara para perto do fogo e se aproximava aos pou-
quinhos, como se estivesse com frio —, eu o comparei com o sr. Roches-
ter. Acredito (que seja dito com deferência) que o contraste não pode-
ria ser muito maior entre um ganso lustroso e um falcão feroz, entre
uma ovelha mansa e o seu guardião, um cão de pelugem áspera e olhos
afiados.
Ele falara do sr. Rochester como um velho amigo. Devia ter sido uma
amizade curiosa: um exemplo nítido, de fato, do velho provérbio de
que “os opostos se atraem”.
Dois ou três cavalheiros sentaram-se perto dele, e captei alguns tre-
chos da conversa do outro lado da sala. A princípio não entendi o que
ouvia, pois a conversa de Louisa Eshton e Mary Ingram, sentadas per-
to de mim, confundia as frases fragmentárias que me alcançavam a in-
tervalos. Elas discutiam o desconhecido: ambas o chamavam de “belo
homem”, Louisa disse que era “um amor de criatura” e que “o adora-
va”, e Mary citou a “boquinha bonita e seu nariz agradável” como seu
ideal de charme.
— E a testa é tão bonita! — exclamou Louisa. — Tão lisa, sem nenhu-
ma daquelas rugas que tanto me desagradam. E ele tem um olhar e um
sorriso tão plácidos!
Então, para o meu grande alívio, o sr. Henry Lynn as chamou ao ou-
tro lado da sala para resolver alguma questão sobre a excursão adiada
ao campo perto de Hay.
Assim pude me concentrar no grupo junto ao fogo, e logo apreendi
que o recém-chegado chamava-se sr. Mason. Descobri que ele acabara
de chegar na Inglaterra e que vinha de algum país quente — o motivo,
sem dúvida, para seu rosto estar tão amarelado e ele sentar-se tão
próximo à lareira e usar um sobretudo dentro de casa. Logo as pala-
vras Jamaica, Kingston e Spanish Town indicaram as Índias Ociden-
tais como seu local de residência, e fiquei muito surpresa quando me
dei conta, em pouco tempo, que fora lá que ele conhecera e se tornara
amigo do sr. Rochester. Ele falou de como o amigo desgostava do calor
escaldante, dos furacões e das estações chuvosas daquela região. Eu sa-
bia que o sr. Rochester tinha viajado muito — a sra. Fairfax me contara
—, mas pensei que o continente europeu tinha limitado suas perambu-
lações. Até então, nunca ouvira qualquer alusão a visitas a litorais mais
distantes.
Eu estava ponderando tais coisas quando um incidente bastante
inesperado partiu o fio da meada. O sr. Mason, estremecendo quando
alguém abriu a porta, pediu que mais carvão fosse jogado no fogo, cu-
jas chamas tinham se apagado, embora a massa de brasas ainda bri-
lhasse quente e vermelha. O lacaio que trouxe o carvão, ao sair, parou
perto da cadeira do sr. Eshton e disse a ele algumas palavras em voz
baixa, das quais ouvi só “velha mulher” e “muito importuna”.
— Diga a ela que será castigada em praça pública se não se retirar —
replicou o magistrado.
— Não, espere! — interrompeu o coronel Dent. — Não a mande embo-
ra, Eshton, podemos tirar proveito disso. É melhor consultar as damas.
— E falando alto, continuou: — As senhoras falaram em ir a Hay visitar
o acampamento de ciganos, mas o Sam aqui diz que uma das velhas
bruxas está na sala dos criados neste exato momento e insiste em apa-
recer diante das “excelências” para prever o seu futuro. Gostariam de
vê-la?
— Coronel — exclamou lady Ingram —, certamente o senhor não en-
corajaria uma impostora tão vulgar. Dispense-a, claro, de imediato!
— Mas não consigo persuadi-la a ir embora, senhora — disse o lacaio
—, assim como nenhum dos criados. A sra. Fairfax está com ela agora,
implorando-lhe que vá, mas se acomodou perto da lareira e diz que
nada a tirará dali até que possa nos ver.
— O que ela quer? — perguntou a sra. Eshton.
— “Contar à nobreza a sua sorte”, ela disse, senhora, e jura que preci-
sa e que irá fazer isso.
— Como ela é? — perguntaram as senhoritas Eshton em um só fôlego.
— Uma criatura espantosamente feia e velha, senhoritas, quase tão
preta quanto fuligem.
— Ora, é uma feiticeira de verdade! — exclamou Frederick Lynn. —
Deixemos que entre, é claro.
— Decerto — respondeu o irmão. — Seria uma pena desperdiçar um
divertimento desses.
— Meus queridos garotos, o que estão dizendo? — exclamou a sra.
Lynn.
— Eu jamais poderia apoiar um procedimento tão incongruente —
interveio a viúva Ingram.
— No entanto, mamãe, pode e vai — disse a voz arrogante de Blan-
che, que se virava no banco do piano, onde até então estivera sentada
em silêncio, aparentemente examinando partituras diversas. — Eu es-
tou curiosa para saber do meu futuro. Portanto, Sam, ordene que a
bruxa se apresente.
— Minha querida Blanche! Lembre-se de que…
— Eu me lembro, sim, de tudo que a senhora poderia sugerir, e insis-
to que minha vontade seja feita. Rápido, Sam!
— Sim, sim, sim! — exclamaram todos os jovens, tanto damas como
cavalheiros. — Deixe que ela venha! Vai ser um divertimento excelente!
O lacaio ainda hesitava.
— Ela parece muito vulgar — disse ele.
— Vá! — disparou a srta. Ingram, e o homem se foi.
A empolgação imediatamente tomou todo o grupo. Quando Sam vol-
tou, deparou com uma saraivada de bravatas e provocações.
— Agora ela não quer entrar — disse ele. — Diz que não é sua missão
aparecer diante do “rebanho vulgar” (palavras dela) e quer que eu a
leve a uma sala, sozinha, e que aqueles que desejam consultá-la vão até
lá um por um.
— Veja agora, Blanche, minha princesa — começou lady Ingram. —
Ela é muito abusada. Escute o que digo, meu anjo, e…
— Leve-a para a biblioteca, é claro — interrompeu o “anjo”. — Tam-
bém não é minha intenção escutá-la diante do rebanho vulgar. Preten-
do tê-la toda para mim. A lareira da biblioteca está acesa?
— Está, senhora. Mas a mulher parece uma delinquente…
— Pare de matraquear, imbecil, e faça como ordenei!
Novamente Sam desapareceu, e mistério, empolgação e expectativa
atingiram níveis altíssimos outra vez.
— Ela está pronta — disse o lacaio ao voltar. — Deseja saber quem se-
rá o primeiro visitante.
— Acho que é melhor dar uma olhada nela antes que as damas en-
trem — disse o coronel Dent. — Diga a ela que um cavalheiro vai vê-la.
Sam foi e voltou.
— Ela diz, senhor, que não receberá cavalheiros; eles não precisam se
dar o trabalho de se aproximar dela, assim como — acrescentou, com
dificuldade de suprimir uma risadinha — quaisquer damas que não se-
jam jovens e solteiras.
— Por Deus, ela tem bom gosto! — exclamou Henry Lynn.
A srta. Ingram se ergueu solenemente.
— Eu vou primeiro — disse ela, em um tom que teria sido adequado
ao comandante de um exército, avançando rumo a uma brecha nos
muros inimigos na frente de seus homens.
— Ah, minha filha! Ah, minha querida! Espere, reflita! — foi o grito
da mãe, mas ela passou em silêncio majestoso, atravessou a porta que o
coronel Dent tinha aberto, e a ouvimos entrar na biblioteca.
Os outros ficaram em relativo silêncio. Lady Ingram pensou que era
“le cas”111 de torcer as mãos, o que passou a fazer. A srta. Mary decla-
rou que, da sua parte, nunca ousaria ir até lá. Amy e Louisa Eshton ri-
am baixinho e pareciam um pouco assustadas.
Os minutos passaram muito devagar — contaram-se quinze antes
que a porta da biblioteca se abrisse outra vez. A srta. Ingram atraves-
sou o arco.
Será que riria? Consideraria uma brincadeira? Todos os olhos a fita-
ram com curiosidade, e ela fitou a todos com recusa e frieza. Não pare-
cia nem agitada, nem feliz; caminhou rígida até seu lugar e sentou-se
calada.
— Bem, Blanche? — perguntou lorde Ingram.
— O que ela disse, irmã? — perguntou Mary.
— O que achou? O que sentiu? Ela é uma vidente de verdade? — qui-
seram saber as senhoritas Eshton.
— Ora, minha boa gente — respondeu a srta. Ingram —, não me abor-
reçam. Vejo que seus órgãos de maravilha e credulidade são facilmente
excitados. Pela importância que todos, inclusive minha boa mãe, atri-
buem a essa questão, parecem crer que temos uma verdadeira bruxa
na casa, que está em aliança íntima com o cavalheiro lá de baixo.112 Eu
só vi uma cigana nômade. Ela exerceu, de forma vulgar, a arte da qui-
romancia, e me disse o que tais pessoas geralmente dizem. Minha curi-
osidade está satisfeita, e agora penso que o sr. Eshton fará bem em
amarrar a megera no tronco amanhã de manhã, como ameaçou.
A srta. Ingram pegou um livro, reclinou-se no assento e recusou-se a
falar mais. Eu a observei por quase meia hora. Durante esse tempo, ela
não virou uma página sequer, e seu rosto ficava a cada instante mais
sombrio, insatisfeito e amargurado de decepção. Obviamente não escu-
tara nada a seu favor, e me pareceu, pelo mau-humor e taciturnidade
que a dominou por um longo tempo, que ela mesma, apesar de profes-
sar indiferença, atribuía uma importância indevida a quaisquer reve-
lações que lhe tivessem sido feitas.
No meio-tempo, Mary Ingram, Amy e Louisa Eshton declararam
que não ousavam ir sozinhas, embora todas desejassem ir. Abriu-se
uma negociação através do embaixador, Sam, e após muitas idas e vin-
das (as panturrilhas de Sam deviam estar doloridas de tanto exercí-
cio), finalmente, com grande dificuldade, extraiu-se a permissão da ri-
gorosa sibila para que as três fossem vê-las juntas.
A visita não foi tão silenciosa quanto a da srta. Ingram: ouvimos ri-
sadinhas histéricas e gritinhos vindos da biblioteca, e ao final de cerca
de vinte minutos elas escancararam a porta e voltaram em disparada
pelo corredor, quase como se estivessem aterrorizadas.
— Tenho certeza de que há algo errado nela! — todas exclamaram. —
Falou cada coisa! Sabe tudo de nós!
Elas afundaram, sem fôlego, nas várias cadeiras que os cavalheiros
se apressaram para trazer-lhes.
Ao receber pedidos por mais explicações, declararam que a mulher
lhes contou coisas que tinham dito e feito quando eram só crianças e
descreveu livros e ornamentos que possuíam em seus boudoirs em ca-
sa, lembrancinhas que haviam ganhado de vários conhecidos. Afirma-
ram que ela até adivinhara seus pensamentos e tinha sussurrado no
ouvido de cada uma o nome da pessoa de que mais gostava no mundo
e as informara do que mais desejavam.
Os cavalheiros intervieram com apelos sinceros por maiores esclare-
cimentos nesses últimos dois aspectos, mas só receberam rubores, gri-
tinhos, tremores e risadinhas em resposta a sua insistência. As matro-
nas, enquanto isso, ofereceram vinaigrettes113 e abanaram leques, reite-
rando que seus avisos não tinham sido acatados a tempo, enquanto os
cavalheiros mais velhos riam e os mais jovens ofereciam seus serviços
às beldades agitadas.
Em meio ao tumulto, e enquanto meus olhos e ouvidos estavam ple-
namente engajados na cena à minha frente, ouvi uma tosse ao meu la-
do. Virei-me e vi Sam.
— Se puder fazer a gentileza, a cigana declara que há outra jovem
dama solteira na sala que ainda não foi levada até ela, e jurou que não
irá embora até ver todas. Pensei que deveria ser a senhorita, pois não
há mais ninguém. O que digo a ela?
— Ah, eu irei, é claro — respondi, feliz pela oportunidade repentina
de saciar minha curiosidade atiçada.
Saí de fininho, sem ser notada por quaisquer olhos — pois o grupo se
reunia em massa ao redor do trio trêmulo que acabava de retornar —, e
fechei a porta em silêncio atrás de mim.
— Se quiser, senhorita — disse Sam —, eu espero no corredor e, se ela
a assustar, é só me chamar e eu entro.
— Não, Sam, volte para a cozinha. Não sinto qualquer medo.
Não sentia mesmo, mas estava muito interessada e agitada.
114. Possível referência shakespeariana a Macbeth, ato I, cena III (“O feitiço
foi lançado”); Henry IV Parte I, ato II, cena 4 (“Concluamos a peça”); ou
Noite de reis, ato V, cena I (“Nossa peça acabou”).
↵
115. Alusão a Rei Lear (1605), ato 3, cena 4.
↵
Capítulo XX
E
u me esquecera de fechar a cortina da cama, como geralmente
fazia, e também de abaixar as persianas. A consequência foi
que, quando a lua, que estava cheia e brilhante (pois era uma
noite clara), chegou em seu curso àquele espaço no céu oposto ao meu
batente e me fitou através das vidraças desveladas, seu olhar glorioso
me despertou. Acordando na calada da noite, abri os olhos e vi o seu
disco branco-prateado e cristalino. Era lindo, mas solene demais. Er-
gui-me um pouco e estiquei o braço para fechar o dossel.
Deus! Que grito!
A noite — seu silêncio e sua tranquilidade — foi rasgada por um som
selvagem, agudo e estridente que atravessou Thornfield Hall de ponta
a ponta.
Minha pulsação cessou, meu coração se imobilizou, meu braço esti-
cado paralisou. O grito morreu e não soou outra vez. Sem dúvida,
qualquer que fosse o ser que tivesse proferido aquele guincho temível
não poderia tão cedo repeti-lo; nem o condor de asas mais largas nos
Andes poderia, duas vezes seguidas, emitir um tal grito da nuvem que
oculta seu ninho. A criatura que proferiu tal som precisaria descansar
antes de repetir o esforço.
Ele viera do terceiro andar, pois se passara acima de mim. E acima
— sim, bem no cômodo sobre o teto do meu quarto — eu então ouvi
uma luta. Parecia ser mortal, pela algazarra, e uma voz meio abafada
gritou “Socorro! Socorro! Socorro!” três vezes, em rápida sequência.
— Ninguém virá? — exclamou, e então, em meio aos tropeços e bati-
das de pé desvairadas, eu ouvi através de tábuas e reboco: — Rochester!
Rochester! Pelo amor de Deus, venha!
Uma porta se abriu — alguém correu, ou andou depressa, pelo corre-
dor. Outro pé bateu no piso acima e alguma coisa caiu, e em seguida
houve silêncio.
Eu tinha me vestido rapidamente, embora o horror sacudisse todos
os meus membros. Saí do quarto. As pessoas adormecidas estavam de
novo todas despertas: exclamações e murmúrios aterrorizados vinham
de todos os quartos; porta após porta se abriu; alguém olhou para fora
e foi seguido por outro; o corredor se encheu. Cavalheiros e damas ti-
nham ambos deixado suas camas, e perguntas como “Ah! O que foi?”,
“Quem está ferido?”, “O que aconteceu?”, “Pegue uma luz!”, “É fogo?”,
“São ladrões?”, “Para onde fugir?” foram feitas confusamente por to-
dos. Não fosse o luar, teríamos estado em completa escuridão. Eles cor-
reram de um lado para o outro, depois se reuniram; alguns soluçavam,
outros tropeçavam, e a confusão era inextricável.
— Onde diabos está Rochester? — exclamou o coronel Dent. — Não o
encontro na cama.
— Aqui! Aqui! — veio o grito em resposta. — Acalmem-se, todos. Es-
tou chegando.
A porta no final do corredor se abriu e o sr. Rochester avançou com
uma vela. Ele tinha acabado de descer do terceiro andar. Uma das da-
mas correu imediatamente até ele e agarrou o seu braço. Era a srta. In-
gram.
— Que evento terrível se passou? — perguntou ela. — Fale! Deixe-nos
saber o pior de uma vez!
— Sem me puxar ou esganar — respondeu ele, pois as senhoritas
Eshton estavam aferradas a ele, e as duas viúvas, usando amplas cami-
solas brancas, se aproximavam dele como navios com as velas desfral-
dadas.
— Está tudo bem! Está tudo bem! — exclamou ele. — É só um ensaio
de Muito barulho por nada.116 Damas, afastem-se, ou não respondo por
mim.
Ele parecia mesmo perigoso; seus olhos negros faiscavam. Acalman-
do-se com esforço, acrescentou:
— Uma criada teve um pesadelo, foi só isso. Ela é uma pessoa im-
pressionável e nervosa, e interpretou seu sonho como uma aparição,
ou algo dessa espécie, e assustou-se terrivelmente. Agora, então, devo
pedir que voltem todos aos seus aposentos, pois, até que a casa volte à
ordem, não poderemos acalmá-la. Cavalheiros, tenham a bondade de
dar o exemplo às damas. Srta. Ingram, tenho certeza de que não deixa-
rá de demonstrar superioridade a terrores frívolos. Amy e Louisa, vol-
tem a seus ninhos como o par de pombinhas que são. Mesdames — às
viúvas —, as senhoras se resfriarão, sem sombra de dúvida, se ficarem
mais tempo neste corredor gélido.
E assim, alternadamente convencendo e comandando, ele conseguiu
que todos fossem novamente encerrados em seus dormitórios. Eu não
esperei ordens de voltar ao meu, recuando discretamente — tão discre-
tamente quanto saíra dele.
Não, porém, para me deitar. Pelo contrário, vesti-me com cuidado.
Os sons que ouvira após o grito e as palavras proferidas tinham prova-
velmente sido apenas ouvidas por mim, pois vieram do quarto acima
do meu, mas me asseguraram de que não fora o sonho de uma criada
que inspirara horror em toda a casa, e que a explicação do sr. Roches-
ter era apenas uma invenção a fim de pacificar seus convidados. Vesti-
me, então, e fiquei a postos para qualquer emergência. Uma vez arru-
mada, sentei-me um longo tempo junto à janela, olhando os jardins si-
lenciosos e os campos prateados e esperando não sabia o quê. Pareceu-
me que algum evento deveria seguir-se ao estranho grito, luta e cha-
mado.
Mas não — a imobilidade retornou. Todo murmúrio e movimento
cessou gradualmente, e em cerca de uma hora Thornfield Hall estava
outra vez tão silenciosa quanto um deserto. Parecia que o sono e a noi-
te tinham recuperado seu império. Enquanto isso, a lua descia; estava
prestes a se pôr. Não gostando de me sentar no frio e na escuridão,
pensei em deitar-me na cama, vestida como estava. Deixei a janela e
cruzei o tapete fazendo pouco barulho; enquanto me inclinava para ti-
rar os sapatos, uma mão cautelosa deu uma batida baixa na porta.
— Precisa de mim? — perguntei.
— Está acordada? — perguntou a voz que eu esperava ouvir, isto é, a
do meu patrão.
— Sim, senhor.
— E vestida?
— Sim.
— Então saia, em silêncio.
Obedeci. O sr. Rochester estava parado no corredor, segurando uma
vela.
— Preciso de você — disse ele. — Venha por aqui. Ande devagar e não
faça barulho.
Meus chinelos eram finos; podia caminhar com a suavidade de um
gato sobre o chão acarpetado. Ele deslizou pelo corredor e escada aci-
ma, parando na passagem escura e baixa do fatídico terceiro andar. Eu
o tinha seguido e parei ao seu lado.
— Tem uma esponja no seu quarto? — perguntou em um sussurro.
— Sim, senhor.
— E alguns sais… sais voláteis?
— Sim.
— Volte lá e pegue ambos.
Voltei, procurei a esponja no lavatório e os sais na gaveta, e nova-
mente refiz os meus passos. Ele ainda esperava, segurando uma chave
na mão. Aproximando-se de uma das portinhas pretas, enfiou-a na fe-
chadura, parou e se dirigiu novamente a mim.
— Você não passa mal ao ver sangue?
— Creio que não passarei. Ainda não fui testada.
Senti um arrepio enquanto o respondia, mas não era frio, nem fra-
queza.
— Só me dê sua mão — disse ele. — Não devemos arriscar um des-
maio.
Coloquei os dedos nos dele.
— Quente e firme — foi a resposta.
Ele girou a chave e abriu a porta.
Entrei em um cômodo que me lembrava de já ter visto antes, no dia
que a sra. Fairfax me mostrou a casa. Era coberto de tapeçarias, mas
no momento elas estavam enroladas em um canto e se via uma porta
que na ocasião estivera oculta. Esta porta estava aberta; uma luz bri-
lhava no cômodo interno. Ouvi de lá um rosnado e um abocanhar,
quase como um cachorro brigando. O sr. Rochester, abaixando a vela,
pediu que eu esperasse um minuto e seguiu até o cômodo interno.
Uma gargalhada recebeu sua entrada; barulhenta a princípio e termi-
nando no rá! rá! sobrenatural de Grace Poole. Ela estava lá, então. Ele
estabeleceu algum tipo de acordo sem falar, embora eu tenha ouvido
uma voz baixa se dirigindo a ele. Depois saiu e fechou a porta.
— Venha cá, Jane! — disse ele.
Contornei a cama grande, que, com o dossel fechado, escondia uma
porção considerável do cômodo. Havia uma poltrona perto da cabecei-
ra e um homem sentado nela, vestido, mas sem casaco. Ele estava imó-
vel, com a cabeça reclinada e os olhos fechados. O sr. Rochester ergueu
a vela sobre ele, e reconheci no rosto pálido e aparentemente sem vida
o desconhecido, Mason. Vi também que um lado da camisa de linho e
uma das mangas estavam quase encharcados de sangue.
— Segure a vela — ordenou o sr. Rochester, e eu a tomei.
Ele pegou uma bacia com água do lavatório.
— Segure isso — disse ele.
Obedeci. Ele tomou a esponja, mergulhou-a na água e umedeceu o
rosto cadavérico. Pediu meu frasco de sais e o ergueu às narinas do ou-
tro. O sr. Mason descerrou os olhos por um momento, grunhindo. O sr.
Rochester abriu a camisa do homem ferido, cujo braço e ombro esta-
vam atados, e com a esponja lavou o sangue, que escorria depressa.
— Há perigo imediato? — murmurou o sr. Mason.
— Pff! Não, é só um arranhão. Não fique tão desanimado, homem.
Coragem! Eu vou pessoalmente buscar um médico para vê-lo. Espero
que você consiga ir embora pela manhã. Jane! — continuou ele.
— Sim?
— Eu a deixarei neste quarto com este cavalheiro por uma hora, tal-
vez duas. Você deve lavar o sangue com a esponja como eu fiz, quando
voltar a jorrar. Se ele se sentir fraco, leve o copo d’água que está naque-
la mesinha aos lábios dele e os sais ao seu nariz. Não fale com ele, sob
nenhum pretexto, e, Richard, se falar com ela será sob risco de vida.
Abra os lábios, fique agitado, e não responderei pelas consequências.
Novamente o coitado gemeu. Parecia não ousar se mexer; o medo,
fosse da morte ou de outra coisa, parecia quase paralisá-lo. O sr. Ro-
chester colocou em minha mão a esponja ensanguentada e eu passei a
usá-la como ele fizera. Ele me observou por um momento, depois dis-
se:
— Lembrem-se! Nada de conversa!
Assim, deixou o quarto. Experimentei uma sensação estranha quan-
do a chave arranhou a fechadura e seus passos se afastaram até não se-
rem mais ouvidos.
Lá estava eu então, no terceiro andar, presa em uma de suas místicas
celas, cercada pela noite, um espetáculo pálido e sangrento sob meus
olhos e mãos, e uma assassina separada de mim por uma única porta.
Isso, sim, era terrível — o resto eu podia suportar, mas estremeci à ideia
de Grace Poole saindo por aquela porta e pulando sobre mim.
Entretanto, eu precisava me manter em meu posto. Tinha de vigiar
aquele semblante fantasmagórico; aqueles lábios azuis e imóveis, proi-
bidos de se abrir; aqueles olhos ora fechados, ora abertos, ora vagando
pelo quarto, ora fixos em mim, e sempre vítreos e embotados de hor-
ror. Precisava mergulhar a mão vez após vez na bacia de sangue e água
para limpar o líquido que escorria. Precisava ver a luz da vela minguar
durante minha ocupação, as sombras escurecerem nas tapeçarias anti-
gas ao meu redor e tornarem-se pretas sob o dossel da cama antiga e
ampla, e estremecer estranhamente ao fitar as portas de um grande
armário do lado oposto — cuja frente, dividida em doze painéis, trazia
em um desenho sombrio as cabeças dos doze apóstolos, cada um en-
cerrado em um painel como se dentro de uma moldura, enquanto aci-
ma deles, no topo, erguia-se um crucifixo de ébano e um Cristo mori-
bundo.
Conforme a obscuridade cambiante e o brilho tremeluzente que pai-
ravam cá ou relanceavam lá, ora via-se o médico barbado, Lucas, que
inclinava a fronte, ora o cabelo comprido de são João que esvoaçava, e
pouco depois o rosto demoníaco de Judas, que projetava-se do painel e
parecia estar ganhando vida e ameaçando uma revelação do maior dos
traidores — do próprio Satanás — em sua forma subordinada.
Em meio a tudo isso, eu precisava, além de observar, ouvir os movi-
mentos da fera ou demônio no covil do outro lado. No entanto, desde a
visita do sr. Rochester, ela parecia estar enfeitiçada. A noite toda, ouvi
apenas três sons em três longos intervalos — um passo que fez o piso
ranger, uma renovação momentânea do rosnado canino, e um grunhi-
do humano grave.
Então meus próprios pensamentos me ocuparam. Que crime era es-
se que vivia encarnado naquela mansão isolada e não podia ser nem
expulso, nem subjugado pelo seu proprietário? Que mistério era esse
que irrompia, ora em fogo e ora em sangue, nas horas mais mortas da
noite? Que criatura era essa que se mascarava sob o rosto e forma de
uma mulher comum, mas proferia a voz ora de um demônio escarne-
cedor, ora de uma ave de rapina à procura de carniça?
E esse homem sobre quem eu me debruçava — esse estranho comum
e quieto —, como tinha se envolvido nessa rede de horror? E por que a
Fúria se lançara contra ele? O que o fizera procurar aquela parte da
casa em um horário tão inoportuno, quando deveria estar dormindo
na cama? Eu ouvira o sr. Rochester designar-lhe um quarto no andar
de baixo. O que o fizera subir até ali? E por que ele estava tão dócil di-
ante da violência ou perfídia cometidas contra si? Por que se submetia
calado à dissimulação que o sr. Rochester impunha? Por que o sr. Ro-
chester insistia em impor essa dissimulação? Seu convidado fora ata-
cado; em outra ocasião, ele mesmo sofrera um atentado horrendo con-
tra a própria vida — e ambas as tentativas abafou em sigilo e afundou
no esquecimento! Por fim, vi que o sr. Mason era submisso ao sr. Ro-
chester, que a vontade impetuosa do segundo exercia completo contro-
le sobre a inércia do primeiro. As poucas palavras que foram trocadas
entre eles me asseguraram disso. Era evidente que, em suas interações
anteriores, a disposição passiva de um sofrera uma influência contínua
da energia ativa do outro. Então o que explicava o terror do sr. Roches-
ter quando ouvira falar da chegada do sr. Mason? Por que o mero no-
me desse indivíduo que não oferecia nenhuma oposição, a quem a pa-
lavra dele era suficiente para controlar como uma criada, poucas horas
antes caíra sobre ele como um raio cairia em um carvalho?
Ah! Eu não conseguia esquecer seu olhar e lividez quando sussur-
rou: “Jane, recebi um golpe. Recebi um golpe, Jane”. Não conseguia es-
quecer como tremera o braço que apoiou no meu ombro — e não era
questão de pouca importância algo capaz de curvar o espírito resoluto
e abalar a constituição vigorosa de Fairfax Rochester.
Quando ele virá? Quando ele virá?, eu me perguntava internamente,
conforme a noite se estendia sem fim, conforme meu paciente ensan-
guentado curvava-se, gemia e piorava, e nem o dia, nem qualquer aju-
da chegavam. Vez após vez, levei a água aos lábios brancos de Mason;
vez após vez, ofereci a ele os sais estimulantes. Meus esforços pareciam
ineficazes. O sofrimento físico ou o mental, ou a perda de sangue, ou os
três, exauriam depressa suas forças. Ele gemia de tal forma, e parecia
tão fraco, assustado e perdido, que temi que estivesse morrendo. E
nem podia falar com ele.
A vela finalmente chegou ao fim e apagou-se; enquanto expirava, re-
parei em faixas de luz cinzenta nas bordas das cortinas. A aurora se
aproximava. Pouco depois, ouvi Piloto latir lá embaixo, fora do seu ca-
nil distante no pátio, e a esperança se reavivou. E não foi sem motivos:
cinco minutos depois, o arranhar da chave e o ceder da fechadura me
avisaram que meu turno chegara ao fim. Não podia ter durado mais
que duas horas, mas muitas semanas já pareceram mais curtas.
O sr. Rochester entrou e, com ele, o médico que fora buscar.
— Agora, Carter, seja rápido — disse ele ao homem. — Eu lhe dou
apenas meia hora para tratar o ferimento, amarrar as ataduras e levar
o paciente lá para baixo.
— Mas ele está em condição de se deslocar, senhor?
— Sem dúvida, não é nada sério. Ele sofre dos nervos, só precisamos
reanimá-lo. Vamos, ao trabalho.
O sr. Rochester afastou a cortina espessa, ergueu as persianas, dei-
xou entrar o máximo de luz possível, e fiquei surpresa e alegre ao ver
como a aurora tinha avançado — as faixas rosadas começavam a clare-
ar o leste. Então ele se aproximou de Mason, já sob os cuidados do
médico.
— Agora, meu bom camarada, como está? — perguntou ele.
— Receio que ela tenha acabado comigo — foi a resposta débil.
— De forma alguma. Coragem! Daqui a uma quinzena você estará
novo em folha. Perdeu um pouco de sangue, é só. Carter, assegure-o de
que não há perigo.
— Posso fazer isso com a consciência tranquila — disse Carter, que ti-
nha removido as ataduras. — Só queria ter chegado aqui antes, ele não
teria sangrado tanto… Mas o que é isso? A pele no ombro também está
rasgada. Esse corte não foi feito com uma faca. Dentes morderam aqui!
— Ela me mordeu — murmurou ele. — Me abocanhou como uma ti-
gresa quando Rochester tirou a faca de suas mãos.
— Você não devia ter cedido, devia ter lutado com ela de imediato —
disse o sr. Rochester.
— Mas sob tais circunstâncias, o que se pode fazer? — replicou Ma-
son. — Ah, foi assustador! — acrescentou, estremecendo. — E eu não es-
perava por isso. Ela parecia tão tranquila no começo.
— Eu o avisei — foi a resposta do amigo. — Falei para ficar alerta ao
se aproximar dela. Além disso, você poderia ter esperado amanhecer e
ter me levado junto. Foi sandice tentar encontrá-la à noite, e sozinho.
— Achei que poderia fazer bem a ela…
— Achou! Achou! Ora, fico impaciente de ouvi-lo. Entretanto, você
sofreu, e é provável que já sofra o suficiente por não ter acatado o meu
conselho, então não direi nada mais. Carter, depressa, depressa! O sol
logo vai se erguer e eu preciso tirá-lo daqui.
— Só mais um momento, senhor, o ombro está atado. Devo examinar
esse outro ferimento no braço; creio que ela também tenha fincado os
dentes aqui.
— Ela sugou o sangue, falou que drenaria meu coração — disse Ma-
son.
Vi o sr. Rochester estremecer. Uma expressão singular de asco, hor-
ror e ódio deturpou o seu semblante quase ao ponto da distorção, mas
ele disse apenas:
— Vamos, silêncio, Richard, não se aflija com as bobagens dela. Não
as repita.
— Queria eu poder esquecer — foi a resposta.
— Esquecerá quando estiver fora do país. Quando voltar para Spa-
nish Town, poderá pensar que ela está morta e enterrada, ou, melhor
ainda, não precisa pensar nela de forma alguma.
— Será impossível esquecer esta noite!
— Não é impossível; tenha energia, homem. Duas horas atrás você
pensou que estava no bico do corvo e agora está perfeitamente vivo e
conversando. Pronto! Carter já o aprontou, ou quase, e eu o deixarei
decente em um minuto. Jane — ele se virou para mim pela primeira
vez desde sua reentrada —, pegue esta chave, desça aos meus aposentos
e vá direto ao meu quarto de vestir. Abra a gaveta superior do guarda-
roupa e pegue uma camisa e um lenço limpos. Traga-os aqui, depressa.
Fui, procurei o repositório que ele mencionara, encontrei os artigos
citados e voltei com eles.
— Agora — disse ele —, fique do outro lado da cama enquanto eu o
visto. Mas não saia do quarto, você pode ser necessária de novo.
Eu me retirei como orientado.
— Alguém estava acordando lá embaixo quando desceu, Jane? —
perguntou o sr. Rochester pouco depois.
— Não, senhor, estava tudo muito silencioso.
— Vamos tirá-lo daqui com cautela, Dick, e será melhor, tanto para
você como para aquela pobre criatura lá atrás. Eu me esforço há muito
tempo para evitar uma exposição e não gostaria que isso finalmente
chegasse. Aqui, Carter, ajude-o com o colete. Onde deixou sua capa de
pele? Não pode viajar um quilômetro e meio sem ela, sabe, nesse mal-
dito frio. No seu quarto? Jane, corra ao quarto do sr. Mason, ao lado do
meu, e pegue uma capa que verá lá.
Novamente eu corri e voltei trazendo um imenso manto revestido
com bainha de pele.
— Agora tenho outra tarefa para você — disse meu patrão incansável.
— Desça ao meu quarto de novo. Que sorte estar com sapatos de velu-
do, Jane! Uma mensageira de tamancos nunca poderia ajudar nessa
conjuntura. Você deve abrir a gaveta do meio da minha penteadeira e
pegar um pequeno frasco e um copinho que encontrará lá. Rápido!
Eu voei para lá e de volta, trazendo os recipientes desejados.
— Muito bem! Agora, doutor, tomarei a liberdade de administrar
uma dose pessoalmente, sob minha própria responsabilidade. Adquiri
este cordial em Roma, de um charlatão italiano. Você teria chutado o
sujeito, Carter. Não é algo a se usar indiscriminadamente, mas às vezes
ajuda, como agora. Jane, um pouco d’água.
Ele estendeu o copinho e eu enchi metade com a água da garrafa so-
bre o lavatório.
— Chega. Agora umedeça a boca do frasco.
Fiz como ordenado, e ele pingou doze gotas de um líquido carmesim
e o apresentou a Mason.
— Beba, Richard. Isso lhe dará a coragem que não possui, por cerca
de uma hora.
— Mas vai me fazer mal? É inflamatório?
— Beba! Beba! Beba!
O sr. Mason obedeceu, porque era evidentemente inútil resistir. Ago-
ra estava vestido, ainda pálido, mas não mais ensanguentado e sujo. O
sr. Rochester o deixou ficar três minutos sentado depois que ingeriu o
líquido, em seguida tomou o seu braço.
— Agora tenho certeza de que consegue se erguer — disse ele. — Ten-
te.
O paciente se levantou.
— Carter, segure-o sob o outro ombro. Ânimo, Richard, dê um pas-
so… isso!
— Eu me sinto melhor mesmo — comentou o sr. Mason.
— Tenho certeza de que sim. Agora, Jane, vá na frente até a escada
dos fundos, abra a porta da passagem lateral e diga ao cocheiro lá na
carruagem que verá no pátio, ou um pouco além, pois eu lhe disse para
não trazer suas rodas barulhentas sobre o pavimento, para ficar a pos-
tos, porque estamos chegando. E, Jane, se houver alguém acordado,
venha ao pé das escadas e pigarreie.
A essa altura eram cinco e meia e o sol estava prestes a nascer, mas
encontrei a cozinha ainda escura e silenciosa. A porta da passagem la-
teral estava trancada; eu a abri o mais discretamente possível. O pátio
estava silencioso, mas os portões estavam abertos e havia uma carrua-
gem, com cavalos atrelados e o cocheiro em seu assento, esperando do
lado de fora. Eu me aproximei e disse que os cavalheiros estavam vin-
do. Ele assentiu, então olhei com cuidado ao redor e fiquei atenta a
qualquer som. A imobilidade das primeiras horas da manhã cochilava
por todo canto; as cortinas ainda estavam fechadas nas janelas dos cri-
ados, passarinhos chilreavam nas árvores do pomar, pálidas com suas
muitas flores, cujos ramos pendiam como guirlandas brancas sobre o
muro que delimitava um lado do pátio. Em seus estábulos fechados, os
cavalos batiam as patas no chão de tempos em tempos. Tudo mais es-
tava imóvel.
Os cavalheiros apareceram. Mason, sustentado pelo sr. Rochester e
pelo médico, parecia caminhar com facilidade razoável. Eles o ajuda-
ram a subir na carruagem e Carter entrou em seguida.
— Cuide dele — orientou o sr. Rochester ao último —, e mantenha-o
na sua casa até ele estar bem. Em um dia ou dois irei ver como ele está.
Richard, como se sente?
— O ar fresco é revigorante, Fairfax.
— Deixe a janela aberta desse lado, Carter, não está ventando. Adeus,
Dick.
— Fairfax…
— O que foi?
— Cuide dela, garanta que seja tratada com toda a ternura, que…
Ele parou e se desmanchou em lágrimas.
— Eu faço o meu melhor, sempre fiz e continuarei fazendo — foi a
resposta. O sr. Rochester fechou a porta da carruagem e o veículo se
afastou. — Mas bem que Deus podia pôr fim a tudo isso! — acrescentou,
enquanto fechava e barrava os pesados portões.
Isso feito, se moveu com passo lento e ar distante em direção a uma
porta no muro que limitava o pomar. Supondo que não precisava mais
de mim, preparei-me para voltar à casa. De novo, porém, ouvi-o cha-
mar:
— Jane!
Ele tinha aberto o portal e estava parado ali, esperando por mim.
— Venha ficar um pouco aqui, onde há um pouco de ar fresco — pe-
diu. — Essa casa é uma masmorra, não acha?
— Parece-me uma esplêndida mansão, senhor.
— O feitiço da inexperiência cobre seus olhos — respondeu dele — e
você a vê através de um filtro encantado. Não consegue discernir que a
folha de ouro é lodo e as cortinas de seda, teias de aranha; que o már-
more é sórdida ardósia e as madeiras polidas, apenas pedaços de refu-
go e casca áspera. Agora, aqui — ele apontou para o local cercado e
frondoso em que tínhamos entrado — tudo é real, doce e puro.
Ele enveredou por um caminho cercado, de um lado, por macieiras,
pereiras e cerejeiras e, de outro, por todo tipo de flores tradicionais:
goivos, cravinas, prímulas e amores-perfeitos misturados com artemí-
sias, rosas-amarelas e várias ervas fragrantes. Estavam tão frescas
quanto podiam ficar após uma sucessão de dias chuvosos de abril, se-
guidos por uma adorável manhã de primavera: o sol tinha acabado de
entrar no leste sarapintado e iluminava as árvores cobertas de flores e
orvalho do pomar, lançando seu brilho sobre os caminhos tranquilos
debaixo delas.
— Jane, aceita uma flor?
Ele colheu uma rosa que começava a desabrochar, a primeira no ar-
busto, e a ofereceu para mim.
— Obrigada, senhor.
— Gosta desse nascer do sol, Jane? Desse céu com suas nuvens altas
e leves que irão se derreter tão certamente quanto o dia esquentará?
Dessa atmosfera plácida e amena?
— Gosto. Muito.
— Você teve uma noite estranha, Jane.
— Sim, senhor.
— E o que a deixou tão pálida? Ficou com medo quando a deixei so-
zinha com Mason?
— Fiquei com medo de alguém entrar do quarto interno.
— Mas eu tinha trancado a porta, tinha a chave no bolso. Teria sido
um pastor descuidado se tivesse deixado um cordeiro, meu cordeiri-
nho querido, tão perto do covil de um lobo, desprotegido. Você estava
segura.
— Grace Poole continuará morando aqui, senhor?
— Ah, sim! Não preocupe sua cabecinha sobre ela. Tire essa história
dos seus pensamentos.
— Mas me parece que a sua vida não está segura enquanto ela per-
manecer.
— Não tema. Sei cuidar de mim.
— O perigo que o senhor antecipou ontem à noite já passou, senhor?
— Não posso jurar que sim até Mason sair da Inglaterra… e talvez
nem então. Para mim, Jane, viver é estar parado à beira de uma crate-
ra que pode rachar e cuspir fogo a qualquer dia.
— Mas o sr. Mason parece um homem facil-
mente persuadível. É fácil perceber como a
sua influência, senhor, é potente com ele. Ja-
mais iria desafiá-lo ou propositadamente feri-
lo.
— Ah, não! Mason não vai me desafiar, nem
conscientemente me ferir. Mas ele pode, sem
querer, em um único momento, com uma pa-
lavra descuidada, privar-me, se não da vida,
para sempre da felicidade.
— Diga a ele para tomar cuidado, senhor.
Explique o que teme e mostre-lhe como evitar
o perigo.
Ele deu um riso sardônico, rapidamente tomou a minha mão e, com
a mesma rapidez, a afastou.
— Se eu pudesse fazer isso, sua simplória, onde estaria o perigo?
Aniquilado em um momento. Desde que conheço Mason, só tive de di-
zer a ele “Faça isso” e a coisa foi feita. Mas não posso dar ordens neste
caso. Não posso dizer “Cuidado para não me ferir, Richard”, pois é im-
perativo que ele continue ignorante de que é possível me ferir. Agora
você parece confusa, e eu a confundirei ainda mais. Você é minha ami-
guinha, não é?
— Vivo para servi-lo, senhor, e obedecê-lo em tudo que é certo.
— Precisamente. Vejo que sim. Vejo um contentamento genuíno em
seus passos e semblante, em seus olhos e face, quando está me ajudan-
do e me agradando; trabalhando para mim e comigo em, como tipica-
mente diz, “tudo que é certo”, pois se eu a ordenasse a fazer algo que
julgasse errado, não haveria corrida ligeira, empolgação eficiente, ne-
nhum olhar vivaz e expressão animada. Minha amiga então se viraria
para mim, calada e pálida, e diria: “Não, senhor, isso é impossível, não
posso obedecer porque é errado”, e se tornaria tão imutável quanto
uma estrela fixa. Bem, você também tem poder sobre mim e ainda po-
de me ferir: no entanto, não ouso mostrar-lhe onde sou vulnerável, ca-
so, por mais fiel e amistosa que seja, você decida me trespassar de ime-
diato.
— Se não tem mais a temer do sr. Mason do que de mim, o senhor es-
tá muito seguro.
— Deus queira que seja assim! Veja só essa pérgula, Jane. Sente-se.
A pérgula era um arco no muro coberto de hera e continha um ban-
co rústico. O sr. Rochester se acomodou, mas deixou espaço para mim.
Todavia, permaneci em pé diante dele.
— Sente-se — disse ele. — O banco é comprido o bastante para dois.
Você não hesitaria em assumir um lugar ao meu lado, não é? O que
aconteceu, Jane?
Eu respondi me sentando — recusar teria sido, senti, imprudente.
— Agora, minha amiguinha, enquanto o sol bebe o orvalho, enquanto
todas as flores neste velho jardim acordam e expandem-se, e os pássa-
ros pegam o desjejum dos filhotes no campo de milho, e as primeiras
abelhas entram em seu primeiro turno de trabalho… vou lhe propor
um caso que você deve tentar imaginar que é o seu próprio. Mas pri-
meiro olhe para mim e diga-me que está à vontade e não teme que eu
erre ao detê-la, ou que você erre em ficar aqui.
— Não, senhor. Estou tranquila.
— Bem, então, Jane, peça auxílio à imaginação. Imagine que você
não seja mais uma garota bem-criada e disciplinada, mas um garoto
descontrolado, mimado desde a infância. Imagine-se em uma terra es-
trangeira remota e conceba que lá cometeu um erro capital, não im-
porta de qual natureza ou por quais motivos, mas um erro cujas conse-
quências a perseguem ao longo da vida e maculam toda a sua existên-
cia. Atenção, eu não falo de um crime; não falo de derramamento de
sangue nem de qualquer outro ato que poderia deixar o perpetrador
sujeito à lei. A palavra que uso é erro. Os resultados do que fez se tor-
nam, com o tempo, absolutamente insuportáveis. Você toma medidas
para obter alívio, medidas incomuns, mas nem ilegais, nem incriminá-
veis. Ainda assim, você continua infeliz, pois a esperança a abandonou
nos confins da vida. Seu sol, ao meio-dia, escurece em um eclipse, que
você sente que não irá passar antes da chegada da noite. Associações
amargas e vulgares se tornaram o único alimento de sua memória: vo-
cê vaga, cá e lá, buscando repouso no exílio, felicidade no prazer… que-
ro dizer no prazer vazio e sensual, que entorpece o intelecto e assola os
sentimentos. Com o coração cansado e a alma exaurida, você volta pa-
ra casa após anos de exílio voluntário e faz uma nova amizade, como
ou onde não importa, e encontra nessa pessoa muitas das qualidades
boas e encorajadoras que tem procurado há vinte anos e nunca encon-
trou, e elas são todas frescas, saudáveis, livres de sujeira ou mácula. A
companhia dessa pessoa a revive, regenera. Você sente que dias me-
lhores estão por vir: desejos mais elevados, sentimentos mais puros.
Deseja recomeçar a vida e passar o que resta de seus dias de uma for-
ma mais digna para uma alma imortal. Para obter este fim, está justifi-
cado saltar um obstáculo de costumes, um impedimento meramente
convencional, que nem sua consciência santifica, nem o seu julgamento
aprova?
Ele parou, esperando uma reação. O que eu poderia dizer? Ah, que
algum bom espírito sugerisse uma resposta judiciosa e satisfatória! Vã
esperança! O vento oeste sussurrou na hera ao meu redor, mas ne-
nhum Ariel117 gentil emprestou seu respiro como um meio para o dis-
curso. Os pássaros cantaram no topo das árvores, mas sua canção, ain-
da que doce, era inarticulada.
Novamente o sr. Rochester fez sua pergunta:
— O homem andarilho e pecador, mas que agora busca repouso e se
arrependeu, está justificado em desafiar a opinião do mundo a fim de
atar para sempre junto a si essa desconhecida gentil, generosa e jovial,
dessa forma assegurando a própria paz de espírito e a regeneração da
vida?
— Senhor — respondi —, o repouso de um andarilho e a reforma de
um pecador nunca devem depender de seus semelhantes. Homens e
mulheres morrem; filósofos titubeiam na sabedoria e os cristãos, na
bondade. Se conhece um indivíduo que sofreu e errou, que ele olhe pa-
ra alguém mais elevado que seus semelhantes em busca de força para
se corrigir e consolo para se recobrar.
— Mas o instrumento… o instrumento! Deus, que faz todo o trabalho,
enviou o instrumento. Eu mesmo, digo a você sem parábolas, fui um
homem mundano, dissipado, inquieto, e acredito que encontrei o ins-
trumento para a minha cura, em…
Ele parou. Os pássaros continuaram cantarolando, as folhas farfa-
lhando de leve. Quase me surpreendi que não cessassem suas canções
e sussurros para captar a revelação suspensa. Mas seria preciso espe-
rar muitos minutos, tão longo foi o silêncio. Por fim, ergui os olhos pa-
ra o falante aquietado. Ele me observava com avidez.
— Minha amiga — disse ele, em um tom muito diferente, enquanto
seu rosto mudava também, perdendo toda a suavidade e gravidade, e
tornando-se duro e sarcástico. — Você notou minha terna predileção
pela srta. Ingram. Não acha que, se eu me casasse com ela, ela me rege-
neraria por completo?
Ele se levantou imediatamente, foi até o outro extremo do caminho
e, quando voltou, estava cantarolando uma melodia.
— Jane, Jane — disse, parando à minha frente —, você ficou muito
pálida após sua vigília. Não me amaldiçoa por perturbar seu descanso?
— Amaldiçoá-lo? Não, senhor.
— Aperte minha mão para confirmar suas palavras. Que dedos frios!
Eles estavam mais quentes ontem à noite, quando toquei neles na por-
ta da câmara misteriosa. Jane, quando fará outra vigília comigo?
— Quando quer que possa ser útil, senhor.
— Por exemplo, na noite antes do meu casamento! Tenho certeza de
que não conseguirei dormir. Promete que vai sentar-se comigo e me fa-
zer companhia? Com você eu posso falar da minha adorável noiva,
pois agora você a viu e conhece.
— Sim, senhor.
— Ela é uma rara mulher, não é, Jane?
— Sim, senhor.
— Uma mulher como poucas, Jane, como poucas: grande, morena e
robusta, com cabelo como as damas de Cartago devem ter tido. Céus!
Lá estão Dent e Lynn nos estábulos. Volte pelos arbustos, através da-
quela cancela.
Enquanto eu segui por um caminho, ele enveredou por outro, e eu o
ouvi no pátio dizendo alegremente:
— Mason se adiantou a todos vocês esta manhã; partiu antes do sol
nascer. Acordei às quatro para me despedir dele.
P
ressentimentos são coisas estranhas! As afinidades também,
assim como os sinais — e os três juntos criam um mistério para
o qual a humanidade ainda não encontrou a chave. Nunca ri
de pressentimentos na vida, porque eu mesma tive alguns estranhos.
Afinidades, creio, existem de fato (por exemplo, entre parentes muito
distantes, há muito separados e totalmente afastados, que confirmam,
apesar de sua alienação, a unidade da fonte à qual cada um rastreia
sua origem), e seu funcionamento confunde a compreensão mortal. E
sinais, até onde sabemos, podem ser apenas as afinidades da Natureza
com o homem.
Quando eu tinha seis anos apenas, certa noite ouvi Bessie Leaven
contar a Martha Abbot que tinha sonhado com uma garotinha, e que
sonhar com crianças era um sinal certeiro de problemas, fosse para a
própria pessoa ou para a família. As palavras teriam se desbotado da
minha memória, se uma circunstância não tivesse se seguido imedia-
tamente e as fixado lá de modo indelével. No dia seguinte, Bessie par-
tiu para a casa de sua família, para atender ao leito de morte da irmã
mais nova.
Nos últimos tempos, eu me recordara muitas vezes desse diálogo e
desse incidente, pois durante a semana anterior não passara uma noite
em minha cama sem sonhar com uma criança — que às vezes acalenta-
va nos braços, às vezes balançava no colo, às vezes observava brincan-
do com margaridas em um jardim ou mergulhando as mãos na água
corrente. Uma noite estava chorando, na outra, rindo; ora se aconche-
gava em mim, ora fugia de mim; mas, qualquer que fosse o humor que
a aparição demonstrasse, qualquer a máscara que usasse, não deixou,
por sete noites consecutivas, de me encontrar no momento em que en-
trei no reino do sono.
Não gostei dessa iteração de uma única ideia — essa recorrência es-
tranha de uma imagem — e comecei a ficar ansiosa conforme se apro-
ximava a hora de dormir e encarar a visão. Foi da companhia desse
bebê fantasma que eu fora despertada na noite de luar em que ouvi o
grito acima de mim, e na tarde do dia seguinte fui chamada ao andar
de baixo porque alguém queria me ver no quarto da sra. Fairfax.
Quando cheguei lá, encontrei à minha espera um homem que parecia
ser o criado de um cavalheiro, trajado de luto profundo e segurando
um chapéu rodeado por uma faixa de crepe.
— Arrisco dizer que a senhorita não se lembra de mim — disse ele,
erguendo-se quando entrei —, mas meu nome é Leaven. Fui o cocheiro
da sra. Reed quando a senhorita vivia em Gateshead, oito ou nove anos
atrás, e ainda moro lá.
— Ah, Robert! Como vai? Lembro-me muito bem. Você às vezes me
levava para passear no pônei da srta. Georgiana. E como está Bessie?
Está casado com ela?
— Sim, senhorita. Minha esposa está muito bem, agradeço, e me deu
outro pequenino cerca de dois meses atrás. Temos três agora, e mãe e
filho estão muito saudáveis.
— E a família na mansão está bem, Robert?
— Sinto muito não poder dar notícias melhores, senhorita. Eles estão
muito mal no momento. Houve grandes infortúnios.
— Espero que ninguém tenha falecido — eu disse, olhando para os
seus trajes pretos.
Ele abaixou os olhos para o chapéu nas mãos.
— O sr. John faleceu uma semana atrás, nos seus aposentos em Lon-
dres.
— O sr. John?
— Sim.
— E como a mãe lidou com isso?
— Bem, srta. Eyre, não é um contratempo banal. A vida dele foi mui-
to desregrada. Nestes últimos três anos se entregou a hábitos estra-
nhos, e sua morte foi chocante.
— Ouvi de Bessie que ele não estava muito bem.
— Muito bem? Não poderia estar pior. Arruinou sua saúde e desper-
diçou suas posses entre os piores homens e as piores mulheres. Con-
traiu dívidas e foi parar na cadeia. A mãe o ajudou a sair duas vezes,
mas, assim que se via livre, ele voltava a seus antigos companheiros e
hábitos. Sua cabeça não era forte, e os tratantes entre os quais vivia o
enganavam além da conta. Ele foi a Gateshead cerca de três semanas
atrás querendo que a sra. Reed cedesse tudo a ele. A patroa recusou;
faz tempo que sua fortuna está reduzida por culpa da extravagância
dele. Então ele voltou para Londres e a próxima notícia que recebemos
foi que estava morto. Como morreu, só Deus sabe! Dizem que se ma-
tou.
Eu não falei nada; a notícia era horrível. Robert Leaven prosseguiu:
— A própria patroa já estava fraca havia algum tempo. Continuava
muito robusta, mas não tinha forças, e a perda de dinheiro e o medo da
pobreza a estavam destruindo. A notícia da morte do sr. John e o mo-
do como ocorreu foi súbita demais e causou um derrame. Ela passou
três dias sem falar, mas na última terça-feira pareceu um pouco me-
lhor. Parecia querer dizer alguma coisa e ficava fazendo sinais para a
minha esposa e balbuciando. Foi só ontem de manhã, porém, que Bes-
sie entendeu que ela pronunciava o nome da senhorita, e por fim con-
seguiu entender suas palavras: “Tragam Jane, tragam Jane Eyre, eu
quero falar com ela”. Bessie não tem certeza se ela está raciocinando
direito ou se quer mesmo o que diz, mas contou à srta. Reed e à srta.
Georgiana e as aconselhou a chamar a senhorita. As jovens damas re-
cusaram no começo, mas a mãe ficou tão agitada e disse “Jane, Jane”
tantas vezes que por fim consentiram. Eu saí de Gateshead ontem e, se
a senhorita puder se preparar, gostaria de levá-la de volta comigo
amanhã cedo.
— Sim, Robert, estarei pronta. Parece-me que devo ir.
— Também acho, senhorita. Bessie disse que tinha certeza de que
não recusaria, mas suponho que terá de pedir licença para ausentar-
se?
— Sim, e farei isso agora.
Após o conduzir até a sala dos criados e o deixar aos cuidados da es-
posa de John e às atenções do próprio John, saí em busca do sr. Ro-
chester.
Ele não estava em nenhum dos quartos do primeiro andar; não esta-
va no pátio, nos estábulos, nem nos jardins. Perguntei à sra. Fairfax se
o tinha visto. Sim: ela acreditava que ele estava jogando bilhar com a
srta. Ingram. Eu me apressei à sala de bilhar, de onde saía o estalido
das bolas e o zumbido de vozes. O sr. Rochester, a srta. Ingram, as duas
senhoritas Eshton e seus admiradores estavam todos concentrados no
jogo. Precisei de um pouco de coragem para interromper um grupo tão
ocupado; minha tarefa, porém, não podia ser adiada, então me aproxi-
mei do patrão, que estava ao lado da srta. Ingram. Ela se virou quando
cheguei e me dirigiu um olhar de soberba. Seus olhos pareciam per-
guntar “O que essa criatura asquerosa quer agora?”, e, quando eu cha-
mei o sr. Rochester em voz baixa, ela fez um movimento como se esti-
vesse tentada a me mandar embora. Lembro-me de sua aparência nes-
se momento — muito elegante e impressionante. Ela usava um vestido
matinal de crepe azul-celeste e um lenço diáfano da mesma cor enro-
lado no cabelo. Estava muito animada com o jogo, e o orgulho irritado
decerto não suavizou suas feições arrogantes.
— Essa pessoa deseja falar com o senhor? — perguntou ao sr. Roches-
ter, que se virou para ver quem era a “pessoa”.
Ele fez uma careta curiosa, uma de suas expressões estranhas e am-
bíguas, jogou o taco de lado e seguiu-me para fora da sala.
— Bem, Jane? — perguntou ele, apoiando as costas contra a porta da
sala de aula, que tinha fechado.
— Se for possível, senhor, gostaria de uma licença de uma ou duas
semanas.
— Para fazer o quê? Ir aonde?
— Visitar uma dama doente que mandou me chamar.
— Que dama doente? Onde ela vive?
— Em Gateshead, em …shire.
— …shire? Fica a cento e sessenta quilômetros daqui! Quem é ela pa-
ra chamar as pessoas para vê-la de tão longe?
— Seu nome é Reed, senhor. Sra. Reed.
— Reed de Gateshead? Havia um Reed de Gateshead, um magistra-
do.
— É a viúva dele, senhor.
— E qual sua relação com ela? Como a conhece?
— O sr. Reed era meu tio. O irmão da minha mãe.
— Até parece! Você nunca me contou isso antes. Sempre disse que
não tinha parentes.
— Nenhum disposto a me reconhecer, senhor. O sr. Reed está morto e
sua esposa me expulsou de casa.
— Por quê?
— Porque eu era pobre e um estorvo, e ela não gostava de mim.
— Mas Reed não deixou filhos? Você deve ter primos. Sir George
Linn estava falando de um Reed de Gateshead ontem mesmo, que era
um dos maiores tratantes na cidade, segundo ele, e Ingram mencionou
uma Georgiana do mesmo local, que era muito admirada por sua bele-
za uma ou duas estações atrás, em Londres.
— John Reed também morreu, senhor. Ele se arruinou e quase ar-
ruinou a família, então supostamente cometeu suicídio. A notícia cho-
cou tanto a mãe que causou um ataque apoplético.
— E que bem você pode fazer a ela? Que bobagem, Jane! Eu jamais
cogitaria sair correndo por cento e sessenta quilômetros para visitar
uma velha dama que talvez morresse antes que eu a alcançasse. Além
disso, você disse que ela a expulsou de casa.
— Sim, senhor, mas isso faz muito tempo, e as circunstâncias dela
eram muito diferentes. Eu não conseguiria ficar em paz se negligenci-
asse seus desejos agora.
— Quanto tempo vai ficar?
— O mínimo possível, senhor.
— Prometa-me que vai ficar só uma semana.
— É melhor não dar a minha palavra. Posso ser obrigada a quebrá-
la.
— De toda forma, você vai voltar. Não será induzida sob qualquer
pretexto a morar permanentemente com ela.
— Ah, não! Com certeza retornarei, se Deus quiser.
— E quem vai com você? Não vai viajar cento e sessenta quilômetros
sozinha.
— Não, senhor, ela enviou seu cocheiro.
— Uma pessoa de confiança?
— Sim, senhor, ele mora com a família há dez anos.
O sr. Rochester refletiu.
— Quando deseja ir?
— Amanhã cedo, senhor.
— Bem, precisa levar um pouco de dinheiro. Não pode viajar sem, e
ouso dizer que não tem muito. Não lhe dei seu salário ainda. Quanto
tem no mundo, Jane? — perguntou ele, sorrindo.
Eu peguei minha bolsinha, uma coisinha leve.
— Cinco xelins, senhor.
Ele pegou a bolsinha, verteu o tesouro na palma e riu como se a es-
cassez o agradasse. Logo pegou sua carteira.
— Aqui — disse, oferecendo-me uma nota.
Eram cinquenta libras e ele me devia apenas quinze. Eu lhe disse
que não tinha troco.
— Eu não quero troco, você sabe disso. Aceite seu salário.
Eu me recusei a aceitar mais do que era me era devido. Primeiro ele
fez uma careta, mas depois, como se pensasse em algo, disse:
— Certo, certo! Melhor não lhe dar tudo agora. Quem sabe você fica-
ria três meses longe se tivesse cinquenta libras. Cá estão dez, não é o
bastante?
— Sim, senhor, mas agora me deve cinco.
— Volte para coletá-los, então. Serei seu banqueiro para quarenta li-
bras.
— Sr. Rochester, já que está aqui, eu gostaria de mencionar outra
questão de negócios.
— Questão de negócios? Estou curioso para ouvi-la.
— O senhor praticamente me informou, senhor, de que vai se casar
em breve.
— E o que tem?
— Nesse caso, senhor, Adèle deveria ser mandada para a escola. Te-
nho certeza de que o senhor percebe como é necessário.
— Para tirá-la do caminho da minha noiva, que caso contrário pode-
ria pisoteá-la com ênfase excessiva? Há bom senso na sugestão, sem
dúvida. Adèle, como você diz, deve ir à escola, e você, claro, deve mar-
char diretamente para o… diabo?
— Espero que não, senhor, mas devo procurar outra posição em al-
gum lugar.
— É claro! — exclamou ele, com uma vibração na voz e uma distorção
de feições igualmente fantásticas e absurdas.
Ele me observou por alguns minutos.
— E vai solicitar à velha senhora Reed, ou às senhoritas suas filhas,
que lhe procurem um lugar, suponho?
— Não, senhor. Não tenho uma relação tão cordial com minhas pa-
rentes a ponto de pedir favores delas. Mas farei um anúncio.
— Vai subir as pirâmides do Egito, isso sim! — rosnou ele. — Fará um
anúncio sob sua conta e risco! Queria ter oferecido só um soberano em
vez de dez libras. Devolva-me nove libras, Jane, preciso delas.
— Eu também preciso, senhor — repliquei, colocando as mãos e a
bolsa atrás de mim. — Não poderia ceder o dinheiro por nenhuma ra-
zão.
— Que sovina! — disse ele. — Recusando-me uma demanda pecuniá-
ria! Dê-me cinco libras, Jane.
— Nem cinco xelins, senhor, ou cinco pence.
— Só me deixe dar uma olhada no dinheiro.
— Não, senhor, não posso confiar no senhor.
— Jane!
— Senhor?
— Prometa-me uma coisa.
— Qualquer coisa que eu achar ter chances de realizar.
— Não faça um anúncio. Deixe para mim a busca de uma posição.
Vou encontrar uma para você no momento certo.
— Ficarei feliz em fazê-lo, se o senhor, por sua vez, prometer que
tanto eu como Adèle estaremos fora da casa antes de sua noiva entrar
nela.
— Muito bem! Muito bem! Dou minha palavra. Você vai amanhã, en-
tão?
— Sim, senhor, cedo.
— Vai descer à sala de visitas após o jantar?
— Não, senhor, preciso me preparar para a viagem.
— Então eu e você devemos nos despedir por um tempo?
— Imagino que sim, senhor.
— E como as pessoas realizam essa cerimônia de despedida, Jane?
Ensine-me, eu não sei.
— Elas dizem “até logo”, ou qualquer outro termo que preferirem.
— Então diga.
— Até logo, sr. Rochester.
— O que eu devo dizer?
— O mesmo, se quiser, senhor.
— Até logo, srta. Eyre. É só isso?
— Sim.
— Parece avaro, a meu ver, e seco e frio. Eu gostaria de algo a mais,
uma pequena adição ao ritual. Se apertássemos as mãos, por exem-
plo… mas não, isso também não me satisfaria. Então você não fará
mais do que dizer até logo, Jane?
— É suficiente, senhor. A mesma boa vontade pode ser transmitida
em poucas palavras cordiais ou em muitas.
— É muito provável, mas soam vazias e frias. “Até logo.”
Quanto tempo ele vai ficar com as costas contra a porta?, eu me per-
guntei. Quero começar a preparar meu baú. Então o sino do jantar to-
cou e ele saiu subitamente, às pressas, sem outra sílaba. Eu não o vi
mais durante o dia e parti antes que se levantasse no dia seguinte.
Alcancei o chalé de Gateshead por volta das cinco da tarde no pri-
meiro dia de maio. Entrei lá antes de subir à mansão. Era uma casa
muito limpa e ordenada: as janelas ornamentais tinham pequenas cor-
tinas brancas; o chão estava imaculadamente limpo; a lareira e os ati-
çadores reluziam de tão polidos e o fogo estava brilhante. Bessie senta-
va-se junto à lareira embalando seu recém-nascido, e Robert e a irmã
dele brincavam tranquilamente em um canto.
— Deus abençoe! Eu sabia que você viria! — exclamou a sra. Leaven
quando entrei.
— Sim, Bessie — respondi após beijá-la —, e espero que não esteja
muito atrasada. Como vai a sra. Reed? Ainda viva, espero.
— Está viva, sim, e mais calma e razoável do que antes. O doutor diz
que ela ainda pode sobreviver uma ou duas semanas, mas acha difícil
que se recupere.
— Ela me mencionou recentemente?
— Estava falando de você esta manhã mesmo, desejando que viesse,
mas está dormindo agora… ou estava, dez minutos atrás, quando eu a
vi. Geralmente ela fica deitada em uma espécie de letargia a tarde toda
e acorda por volta das seis ou sete. Quer descansar aqui por uma hora,
senhorita, e então eu a acompanho até lá?
Robert entrou nesse momento, e Bessie pôs o filho adormecido no
berço e foi lhe dar as boas-vindas. Depois insistiu que eu tirasse a tou-
ca e bebesse um pouco de chá, pois disse que eu parecia pálida e can-
sada. Fiquei feliz em aceitar sua hospitalidade, e aceitei ser aliviada de
minha capa de viagem tão passivamente quanto costumava deixá-la
me despir quando era criança.
Os velhos tempos me assaltaram depressa enquanto eu a observava
se alvoroçando — dispondo a bandeja de chá com sua melhor porcela-
na, cortando pão com manteiga, aquecendo um bolinho e vez ou outra
dando um cutucão ou empurrão nos pequenos Robert e Jane, assim
como fazia comigo antigamente. Bessie ainda tinha um temperamento
irascível e mantivera sua beleza e agilidade.
Com o chá pronto, tentei me aproximar da mesa, mas em seu antigo
tom peremptório ela ordenou que eu ficasse sentada e imóvel. Seria
servida junto ao fogo, disse ela, e dispôs à minha frente uma mesinha
redonda com minha xícara e um prato de torradas, exatamente como
costumava me servir alguma guloseima discretamente furtada em
uma cadeira do quarto das crianças, e eu sorri e obedeci como nos ve-
lhos tempos.
Ela queria saber se eu era feliz em Thornfield Hall e que tipo de pes-
soa era a minha patroa. Quando lhe disse que só havia um patrão, per-
guntou se era um cavalheiro gentil e se eu gostava dele. Eu lhe disse
que era um homem muito feio, mas um perfeito cavalheiro, que me
tratava com gentileza e que eu estava feliz. Então passei a descrever
para ela o grupo animado que estava hospedado na casa, e a esses de-
talhes Bessie ouviu com interesse: eram exatamente do tipo que ela
mais apreciava.
Conversando dessa forma, uma hora logo se passou. Bessie me de-
volveu minha touca etc. e, acompanhada por ela, deixei o chalé rumo à
mansão. Também acompanhada por ela eu havia, quase nove anos an-
tes, descido o caminho que então subia. Em uma manhã escura, nevo-
enta e gélida de janeiro, eu tinha deixado um teto hostil com o coração
desesperado e amargurado, um senso de rebeldia e quase de reprova-
ção, para buscar o refúgio gélido de Lowood, aquele destino longínquo
e inexplorado. O mesmo teto hostil se erguia diante de mim; minhas
perspectivas ainda eram incertas e meu coração continuava dolorido.
Ainda me sentia uma andarilha na face da Terra, mas tinha uma con-
fiança mais firme em mim mesma e em minhas capacidades, e um te-
mor menos debilitante da opressão. A ferida aberta dos meus erros
também estava praticamente curada, e a chama do ressentimento se
apagara.
— Entre na sala de desjejum primeiro — disse Bessie, atravessando o
saguão na minha frente. — As jovens damas estarão lá.
Um momento depois, eu estava no cômodo. Lá encontrei toda a mo-
bília exatamente como na manhã em que fora apresentada ao sr.
Brocklehurst: o mesmo tapete em que o vira ainda estava estendido na
frente da lareira. Olhando para as estantes, achei que podia distinguir
os dois volumes de A história dos pássaros britânicos, de Benwick, ocu-
pando seu velho lugar na terceira prateleira, e As viagens de Gulliver e
Mil e uma noites logo acima. Os objetos inanimados não tinham muda-
do, mas as coisas vivas tinham se alterado a ponto de serem irreconhe-
cíveis.
Duas jovens damas surgiram à minha frente: uma muito alta, quase
tanto quanto a srta. Ingram, e muito magra, com um rosto amarelado e
um semblante severo. Havia em seu aspecto algo ascético que era real-
çado pela extrema simplicidade de um vestido de algodão preto de saia
reta, um colarinho de linho engomado, o cabelo penteado para longe
das têmporas e o ornamento, como poderia usar uma freira, de um co-
lar com contas de ébano e um crucifixo. Esta, eu tinha certeza de que
era Eliza, embora traçasse poucas semelhanças com sua antiga aparên-
cia naquele semblante alongado e pálido.
A outra, com a mesma certeza, era Georgiana — mas não a Georgia-
na de que eu me lembrava, a garota esguia e encantadora de onze anos.
Essa era uma donzela adulta, muito robusta, pálida como uma figura
de cera, com feições bonitas e regulares, olhos azuis letárgicos e cabelo
loiro e cacheado. Seu vestido também era preto, mas de um estilo bas-
tante diferente do da irmã, bem mais solto e atraente, que parecia tão
moderno quanto o da outra era puritano.
Em cada uma das irmãs via-se um traço da mãe — e apenas um. A
mais velha, magra e pálida, tinha os olhos cinza-escuro dos pais, e a
mais jovem, viçosa e exuberante, herdara o contorno de sua mandíbu-
la e queixo, talvez um pouco suavizados, mas ainda transmitindo uma
dureza indescritível a um semblante que, exceto por isso, era cheio e
voluptuoso.
Ambas as damas, quando entrei, se ergueram para me cumprimen-
tar, e ambas me chamaram de “srta. Eyre”. O cumprimento de Eliza foi
dito em uma voz ríspida e abrupta, sem um sorriso sequer, e então ela
se sentou de novo, fixou os olhos no fogo e pareceu me esquecer. Geor-
giana acrescentou ao seu “Como vai?” várias perguntas convencionais
sobre minha jornada, o tempo e aí por diante, proferidas em um tom
bastante arrastado e acompanhadas por olhares de soslaio que me me-
diam da cabeça aos pés — ora percorrendo as dobras da minha peliça
simples de merino, ora demorando-se no acabamento simples da mi-
nha touca. Jovens damas têm um jeito impressionante de deixar a pes-
soa saber que a acham cafona sem chegar a dizê-lo abertamente. Um
olhar um tanto arrogante, modos frios e um tom casual expressam
perfeitamente seus sentimentos sobre a questão sem infundi-los de
qualquer grosseria direta de palavras ou atos.
Seu desdém, porém, fosse disfarçado ou aberto, não tinha mais o po-
der que já exercera sobre mim. Ao sentar entre minhas primas, fiquei
surpresa ao descobrir como me sentia confortável sob a total indife-
rença de uma e as atenções um tanto sarcásticas da outra. Eliza não me
envergonhava e Georgiana não era capaz de me abalar. O fato era que
eu tinha outros assuntos em que pensar; nos últimos meses, haviam
despertado em mim sentimentos muito mais potentes que qualquer
um que elas pudessem incitar. Dores e prazeres muito mais agudos e
maravilhosos do que qualquer um que estivesse no poder delas infligir
ou conceder foram excitados — de forma que os ares delas não me afe-
tavam, para o bem ou para o mal.
— Como vai a sra. Reed? — logo perguntei, olhando com calma para
Georgiana, que achou estar no direito de surpreender-se com a per-
gunta direta, como se fosse uma liberdade inesperada.
— A sra. Reed? Ah! Mamãe, você quer dizer. Ela está muito mal, du-
vido que possa vê-la esta noite.
— Se a senhorita pudesse subir e informar a ela que cheguei, ficaria
muito agradecida.
Georgiana quase se sobressaltou e arregalou os olhos azuis.
— Sei que ela tinha um desejo particular de me ver — acrescentei — e
não gostaria de deixá-la esperando mais do que o estritamente neces-
sário.
— Mamãe não gosta de ser perturbada de noite — comentou Eliza.
Logo me levantei, tirei a touca e as luvas em silêncio, sem ser convi-
dada, e disse que iria falar com Bessie (que estaria, imaginava, na cozi-
nha) e pedir a ela que verificasse se a sra. Reed estava disposta ou não
a me receber naquela noite. Fiz isso e, tendo encontrado Bessie e a des-
pachado nessa missão, tomei outras medidas. Até então, fora meu
hábito sempre recuar diante da arrogância. Se tivesse sido recebida
daquele jeito um ano antes, teria decidido partir de Gateshead na ma-
nhã seguinte. No momento, subitamente pareceu-me claro que isso se-
ria uma tolice. Eu tinha empreendido uma jornada de cento e sessenta
quilômetros para ver minha tia e lá ficaria até ela melhorar — ou mor-
rer. Quanto ao orgulho ou à estupidez das filhas dela, eu deveria colo-
cá-los de lado e esquecê-los. Portanto, abordei a governanta, pedi que
me mostrasse o meu quarto, disse-lhe que provavelmente passaria
uma ou duas semanas ali, fiz meu baú ser levado aos aposentos e segui
para lá. Encontrei Bessie no patamar da escada.
— A patroa está acordada — disse ela. — Falei que você está aqui. Ve-
nha e vejamos se ela vai recebê-la.
Não precisei ser guiada até o quarto familiar, ao qual fora tantas ve-
zes convocada para receber censuras ou reprimendas nos velhos tem-
pos. Passei na frente de Bessie e abri a porta suavemente. Havia um
abajur aceso na mesa, pois já escurecia. Lá estava a grande cama com
suas cortinas âmbar, como antigamente; lá estava a penteadeira, a pol-
trona e o escabelo ao qual eu fora cem vezes sentenciada a me ajoelhar
e pedir perdão por ofensas que não tinha cometido. Olhei para um
canto próximo, quase esperando ver a silhueta fina de uma vara temi-
da que ficava ali à espreita, esperando para pular como um diabrete e
golpear minha palma trêmula ou meu pescoço encolhido. Aproximei-
me da cama; abri a cortina do dossel e me inclinei sobre a pilha alta de
travesseiros.
Eu me lembrava bem do rosto da sra. Reed e procurei avidamente a
visão familiar. É bom que o tempo amaine os desejos de vingança e
acalme os ímpetos da fúria e da aversão. Eu tinha deixado aquela mu-
lher com amargura e ódio, e voltava agora para junto dela sem nenhu-
ma outra emoção exceto uma espécie de compaixão pelo seu grande
sofrimento e um forte desejo de esquecer e perdoar todos as ofensas —
de ser reconciliada e apertar as mãos em amizade.
O rosto conhecido estava lá, austero e implacável como sempre. Ha-
via o olhar peculiar que nada amolecia e as sobrancelhas um pouco er-
guidas, imperiosas e despóticas. Quantas vezes haviam lançado sobre
mim ameaças e ódio! E como as lembranças dos terrores e sofrimentos
da infância reviveram enquanto eu traçava sua linha dura! No entanto,
abaixei-me e a beijei. Ela olhou para mim.
— É Jane Eyre? — perguntou ela.
— Sim, tia Reed. Como vai, querida tia?
Uma vez eu jurara nunca a chamar de tia de novo. Pensei que não
era um pecado esquecer e quebrar essa promessa no momento. Apertei
a mão dela, deitada fora do lençol, e, se ela tivesse apertado a minha
com gentileza, eu teria experimentado um verdadeiro prazer. Porém,
naturezas inflexíveis não são tão rapidamente suavizadas, nem antipa-
tias naturais, tão prontamente erradicadas. A sra. Reed puxou a mão e,
virando o rosto para longe de mim, comentou que a noite estava quen-
te. Novamente me fitou, com tanta frieza que senti de imediato que a
opinião que tinha de mim, seus sentimentos em relação a mim, esta-
vam inalterados e eram inalteráveis. Soube pelo seu olhar pétreo —
opaco à ternura, indissolúvel às lágrimas — que ela estava determinada
a me considerar má até o último momento, porque me acreditar boa
não lhe daria nenhum grande prazer, só um senso de humilhação.
Senti dor, senti ira, e então senti uma determinação de subjugá-la —
de ser sua patroa apesar de sua natureza e força de vontade. Lágrimas
brotaram em meus olhos, como na infância, e ordenei que voltassem à
fonte. Puxei uma cadeira para perto da cabeceira. Sentei-me e me cur-
vei sobre o travesseiro.
— A senhora mandou me chamar — disse eu —, então aqui estou e é
minha intenção permanecer até ver como progride sua condição.
— É claro! Viu minhas filhas?
— Sim.
— Bem, pode dizer a elas que desejo que fique até podermos discutir
algumas coisas que estão na minha mente. Hoje está tarde demais e te-
nho dificuldade em recordá-las. Mas havia algo que queria dizer… dei-
xe-me ver…
O olhar errante e a voz alterada revelavam os danos sofridos por
uma constituição que já fora vigorosa. Virando-se inquieta, ela puxou
os lençóis para perto; meu cotovelo, apoiado num canto da colcha, os
manteve presos. Ela se irritou de repente.
— Sente-se! — ordenou. — Não me irrite segurando os lençóis com
força. Você é Jane Eyre?
— Eu sou Jane Eyre.
— Eu tive tantos problemas com essa criança que ninguém acredita-
ria. Que fardo foi deixado nas minhas mãos… e quanto aborrecimento
ela me causava, a cada dia e a cada hora, com seu temperamento in-
compreensível, seus acessos de fúria súbitos, e sua vigilância contínua
e estranha dos movimentos de todos! Juro que uma vez ela falou comi-
go como uma criatura ensandecida, ou como um demônio! Nenhuma
criança jamais falou ou fitou alguém como ela fez. Fiquei feliz em tirá-
la da casa. O que fizeram com ela em Lowood? A febre tifoide se espa-
lhou lá e muitas das pupilas morreram. Não ela, mas eu disse que ti-
nha morrido. Queria que tivesse!
— Que desejo estranho, sra. Reed. Por que a odeia tanto?
— Nunca gostei da mãe dela, pois era a única irmã do meu marido e
sua grande favorita. Ele se opôs quando a família a desertou por fazer
um casamento desfavorável e, quando chegou a notícia da morte dela,
chorou como um pateta. Decidiu que traria o bebê para cá, embora eu
tenha implorado para que achasse uma ama para a menina e pagasse
pelo seu sustento. Eu a odiei desde a primeira vez que pus os olhos ne-
la… uma coisinha doentia, queixosa, carente! Ela chorava no berço a
noite toda. Não berrava de modo sadio como qualquer outra criança,
mas gemia e se lamuriava. Reed tinha pena da criatura, e a embalava e
lhe dedicava atenções como se fosse sua própria filha; mais, na verda-
de, do que jamais tinha cuidado dos próprios filhos naquela idade. Ele
tentava obrigar os filhos a serem amigos da miserável. Os queridinhos
não suportavam, e ele ficava bravo quando mostravam sua aversão.
Durante sua doença fatal, ele fazia a criatura ser trazida continuamen-
te ao leito dele, e uma hora apenas antes de morrer me fez jurar man-
tê-la aqui. Eu preferiria ter sido encarregada de uma pirralha indigen-
te saída de um orfanato. Mas ele era fraco, fraco por natureza. John
não é nada como o pai, e fico feliz. John é parecido comigo e meus ir-
mãos, é um Gibson da cabeça aos pés. Ah, eu queria que parasse de me
atormentar com cartas pedindo dinheiro! Não tenho mais dinheiro pa-
ra dar, estamos ficando pobres. Vou ter de dispensar metade dos cria-
dos e fechar parte da casa, ou então alugá-la. Nunca vou me submeter
a isso, mas como vamos sobreviver? Dois terços da minha renda são
usados para pagar os juros das hipotecas. John aposta terrivelmente e
sempre perde… coitadinho! Ele é acossado por vigaristas. Está perdido
e degredado, com um aspecto terrível… sinto vergonha por ele quando
o vejo.
Ela estava ficando muito exaltada.
— Acho melhor eu a deixar agora — eu disse a Bessie, que estava pa-
rada do outro lado da cama.
— Talvez, senhorita, mas ela sempre fala desse jeito de noite. Pela
manhã fica mais calma.
Eu me levantei.
— Pare! — exclamou a sra. Reed. — Há outra coisa que eu desejava di-
zer. Ele me ameaça… continuamente me ameaça com a própria morte,
ou a minha, e eu sonho às vezes que o vejo deitado com uma grande
ferida na garganta ou um rosto inchado e escurecido. Cheguei a uma
estranha encruzilhada; suporto fardos pesados. O que há de ser feito?
Onde vamos achar o dinheiro?
Bessie tentou persuadi-la a beber um sedativo, o que conseguiu com
dificuldade. Logo a sra. Reed se acamou e afundou na inconsciência.
Eu a deixei.
Mais de dez dias se passaram antes que tivéssemos outra conversa.
Ela continuou delirante ou letárgica, e o médico proibiu qualquer coisa
que pudesse estimulá-la e fazê-la sofrer. No meio-tempo, eu convivia o
melhor possível com Georgiana e Eliza. Elas agiram com frieza no co-
meço. Eliza passava metade do dia costurando, lendo ou escrevendo, e
mal proferia uma palavra, fosse para mim, fosse para a irmã. Georgia-
na tagarelava bobagens ao seu canário sem parar e não prestava aten-
ção em mim. Porém, eu estava determinada a não parecer destituída
de ocupações ou divertimentos. Tinha trazido meus materiais de dese-
nho e eles me forneceram ambos.
Provida com um estojo de lápis e algumas folhas de papel, eu tinha o
hábito de me sentar longe delas, perto da janela, e esboçar vinhetas
fantasiosas, retratando qualquer cena que se formasse momentanea-
mente no caleidoscópio sempre cambiante da imaginação: um vislum-
bre do mar entre duas rochas; a lua se erguendo e um navio cruzando
o seu disco; um grupo de juncos e íris-amarelos, e a cabeça de uma
náiade coroada com flores de lótus erguendo-se dentre eles; um elfo
sentado no ninho de um pardal sob uma guirlanda de flores de espi-
nheiro-branco.
Certa manhã, comecei a esboçar um rosto. Que tipo de rosto seria,
não me importava, e eu nem sabia. Peguei um lápis preto suave, deixei
a ponta larga e me lancei ao trabalho. Logo tinha traçado no papel
uma testa larga e proeminente e o contorno inferior e quadrado de um
rosto. Aquele contorno me deu prazer e meus dedos passaram a preen-
chê-lo com feições. Sobrancelhas horizontais fortes deviam ser traça-
das sob aquela testa, e então se seguiu, naturalmente, um nariz bem
definido, reto e com as narinas largas, uma boca flexível, de forma al-
guma estreita, e por fim um queixo firme com uma covinha nítida no
meio. Claro, faltavam suíças pretas e o cabelo muito escuro, em tufos
nas têmporas e ondulado sobre a testa. Em seguida, os olhos: eu os dei-
xara para o final, porque exigiam o trabalho mais delicado. Desenhei-
os grandes, bem formados. Os cílios que tracei eram longos e sérios; as
íris, grandes e lustrosas. Ótimo! Mas não é exatamente isso, pensei, ana-
lisando o efeito. Falta mais força e espírito. E deixei as sombras mais
escuras, de modo que as partes claras brilhassem mais forte. Um ou
dois toques afortunados asseguraram meu sucesso. À minha frente, ti-
nha o rosto de um amigo sob o meu olhar, e o que importava o fato de
aquelas jovens damas terem virado as costas para mim? Olhei para ele
e sorri para o retrato vívido. Estava absorta e contente.
— É o retrato de alguém que conhece? — perguntou Eliza, que tinha
se aproximado sem que eu percebesse.
Respondi que era só um rosto da minha imaginação e o escondi de-
pressa sob as outras folhas. É claro que eu mentira: era, na verdade,
uma representação muito fiel do sr. Rochester. Mas o que isso significa-
va a ela ou a qualquer pessoa além de mim? Georgiana também veio
olhar. Os outros desenhos lhe agradaram muito, mas este chamou de
“um homem feio”. Ambas pareceram surpresas com as minhas habili-
dades. Eu me ofereci para desenhar seus retratos, e as duas, uma por
vez, sentaram-se para posar para um esboço a lápis. Georgiana então
trouxe o seu álbum. Prometi contribuir com uma aquarela, o que me-
lhorou seu humor de imediato. Ela sugeriu uma caminhada nos jar-
dins. Antes que duas horas tivessem se passado, estávamos engajadas
em uma conversa confidencial: ela me regalava com uma descrição do
brilhante inverno que passara em Londres, duas temporadas antes, da
admiração que tinha causado lá, das atenções que tinha recebido, e até
ouvi alusões à nobre conquista que tinha feito. Ao longo da tarde e da
noite, essas alusões aumentaram. Várias conversas carinhosas foram
relatadas e cenas sentimentais representadas e, em suma, um volume
de um romance da vida elegante foi improvisado para mim naquele
dia. Nossas conversas eram renovadas a cada dia. Sempre discorriam
sobre o mesmo tema: ela mesma, seus amores e sofrimentos. Era estra-
nho ela nunca aludir à doença da mãe, à morte do irmão ou às pers-
pectivas desalentadoras da família. Sua mente parecia totalmente ocu-
pada com reminiscências de alegrias passadas e esperanças de praze-
res por vir. Ela passava cerca de cinco minutos por dia no quarto da
mãe, e não mais que isso.
Eliza ainda falava pouco; evidentemente, não tinha tempo para con-
versar. Nunca vi uma pessoa mais ocupada do que ela aparentava ser,
mas era difícil dizer com o que se ocupava, ou, antes, encontrar qual-
quer resultado da sua diligência. Ela pedia que alguém a acordasse ce-
do. Não sei o que fazia antes do café da manhã, mas após cada refeição
dividia seu tempo em porções regulares e cada hora tinha sua tarefa
designada. Três vezes por dia, estudava um volume que, como desco-
bri ao inspecioná-lo, era um Livro de oração comum. Perguntei a ela
uma vez qual era o grande atrativo, e ela disse “a rubrica”118. Ela dedi-
cava três horas a costurar, com fio de ouro, a borda de um tecido qua-
drado carmesim quase grande o bastante para ser um tapete. Quando
perguntei sobre o uso desse item, ela me informou que era uma toalha
para o altar de uma nova igreja erigida perto de Gateshead. Duas ho-
ras, ela dedicava ao diário; duas, a trabalhar isolada no jardim da cozi-
nha; e uma, à regulação das finanças. Parecia não querer companhia,
nem conversa. Acredito que era feliz vivendo assim; essa rotina lhe era
suficiente e nada a irritava mais do que qualquer incidente que a for-
çasse a variar sua regularidade de relógio.
Uma noite, quando estava mais disposta que o costume a ser comu-
nicativa, ela me contou que a conduta de John e a ameaça de ruína à
família tinham-lhe sido uma fonte de profunda aflição, mas que final-
mente, disse-me, havia apaziguado a mente e tomado uma decisão. To-
mara medidas para assegurar sua própria fortuna e, quando a mãe
morresse — e era muito improvável, comentou com tranquilidade, que
ela se recuperasse ou vivesse muito mais —, ela executaria um projeto
que almejava fazia muito tempo: procuraria um retiro onde hábitos
pontuais seriam permanentemente protegidos de qualquer perturba-
ção e colocaria barreiras seguras entre ela e um mundo frívolo. Per-
guntei se Georgiana a acompanharia.
Claro que não. Georgiana e ela não tinham nada em comum e nunca
tiveram. Ela não toleraria o ônus da companhia da irmã por nenhuma
consideração. Georgiana deveria seguir o próprio caminho, e ela, Eliza,
seguiria o seu.
Georgiana, quando não estava desabafando comigo, passava a maior
parte do tempo deitada no sofá, aflita com o tédio da casa e desejando
sem parar que a tia Gibson lhe enviasse um convite para ir à cidade.
— Seria tão melhor — disse ela — se pudesse só ficar longe por um
mês ou dois, até tudo ter terminado.
Eu não perguntei o que ela quis dizer com “tudo ter terminado”, mas
suponho que se referia ao provável óbito da mãe e à sequência lúgubre
de ritos funerais. Em geral, Eliza não prestava atenção à indolência e
às queixas da irmã, como se aquela figura lânguida e murmurante não
estivesse à sua frente. Um dia, porém, pôs de lado o livro-razão, des-
dobrou o bordado e subitamente dirigiu-se a ela da seguinte forma:
— Georgiana, certamente um animal mais vão e absurdo que você
nunca estorvou a terra. Você não tinha direito de nascer, pois não faz
qualquer uso da vida. Em vez de viver para, em e consigo mesma, co-
mo um ser racional deveria, só deseja atrelar sua fraqueza à força dos
outros. Se não encontrar ninguém que queira se ocupar com uma cria-
tura tão gorda, fraca, inchada e inútil, você choraminga que é maltra-
tada, ignorada e infeliz. E a existência ainda deve ser uma cena de mu-
dança e excitação contínuas para você, senão o mundo é uma masmor-
ra. Precisa ser admirada, precisa ser cortejada, precisa ser lisonjeada.
Precisa de música, dança e companhia, senão definha e desfalece. Por
acaso não tem o raciocínio necessário para criar um sistema que a tor-
nará independente de todos os esforços e todas as vontades, exceto a
sua própria? Pegue um dia, divida-o em seções e a cada uma atribua
uma tarefa. Não deixe nenhum quarto de hora, dez ou cinco minutos
desocupados; inclua todos e execute cada incumbência por vez, com
método e rígida regularidade. O dia vai terminar quase antes que você
perceba que começou, e você não ficará em dívida com ninguém por
ajudá-la a se livrar de um momento ocioso, não será obrigada a procu-
rar a companhia, conversa, solidariedade ou tolerância de ninguém.
Terá vivido, em suma, como um ser independente deve viver. Ouça es-
te conselho, o primeiro e último que lhe oferecerei, e não vai precisar
de mim ou qualquer outra pessoa, não importa o que aconteça. Ignore-
o e siga como até agora, ansiando, queixando-se e perdendo tempo, e
sofrerá os resultados de sua estupidez, por piores e mais insuportáveis
que sejam. Vou lhe dizer uma coisa claramente, então escute, pois, em-
bora não vá repetir o que estou para falar, agirei desta forma com fir-
meza. Após a morte da nossa mãe, lavo minhas mãos com relação a
você. A partir do dia em que o caixão dela for levado à cripta da igreja
de Gateshead, você e eu ficaremos separadas como se nunca tivésse-
mos nos conhecido. Não deve pensar que, só porque nascemos por aca-
so dos mesmos pais, eu vá tolerar que me acorrente por qualquer débil
reivindicação. Posso lhe dizer isto: se toda a raça humana exceto nós
duas fosse varrida da Terra e ficássemos sozinhas aqui, eu a deixaria
no velho mundo e me dirigiria ao novo.
Ela fechou os lábios.
— Você poderia ter se poupado o transtorno desse sermão — respon-
deu Georgiana. — Todo mundo sabe que é a criatura mais egoísta e de-
salmada que já viveu, e eu conheço seu ódio desdenhoso por mim. Re-
cebi um exemplo dele por meio da manobra que executou com o lorde
Edwin Vere. Você não suportaria que eu fosse elevada a uma posição
superior à sua, que tivesse um título e fosse recebida em círculos onde
não ousa mostrar a cara, então agiu como espiã e informante e arrui-
nou minhas perspectivas para sempre.
Georgiana pegou um lenço e ficou assoando o nariz por uma hora
depois disso; Eliza manteve-se fria, impassível e assiduamente indus-
triosa.
É verdade que alguns consideram insignificantes os sentimentos ge-
nerosos, mas lá estavam duas naturezas, uma intoleravelmente azeda e
a outra detestavelmente insípida, devido à falta deles. Sentimentos
sem juízo são uma bebida amarga, de fato, mas o juízo não temperado
pelos sentimentos é um naco amargo e seco demais para a deglutição
humana.
Era uma tarde úmida e ventosa. Georgiana tinha adormecido no so-
fá enquanto corria os olhos por um romance; Eliza tinha ido assistir à
missa do santo do dia na nova igreja — pois, no que se tratava de religi-
ão, ela era uma formalista inflexível. Nenhum tempo jamais impediu a
execução pontual do que ela considerava seus deveres devocionais: fi-
zesse chuva, fizesse sol, ela ia à igreja três vezes todo domingo e sem-
pre que houvesse missa durante a semana.
Pensei em ir até o andar de cima e ver como estava a moribunda,
que jazia quase ignorada lá. Mesmo os criados só prestavam uma aten-
ção intermitente nela. A enfermeira que contrataram, sendo pouco vi-
giada, escapulia do quarto sempre que possível. Bessie era leal, mas
precisava cuidar da própria família e só podia subir à mansão de vez
em quando. Encontrei o quarto da enferma abandonado, como espera-
va. A enfermeira não estava lá, e a paciente estava deitada, imóvel e
aparentemente letárgica, com o rosto lívido afundado nos travesseiros.
O fogo morria na lareira. Renovei a lenha, rearranjei os lençóis, fitei
um pouco aquela que não podia me fitar de volta, e então fui à janela.
A chuva batia com força nas vidraças e o vento soprava tempestuo-
samente. Eis alguém, pensei, que logo estará além da batalha dos ele-
mentos terrenos. Para onde esse espírito, que agora tem dificuldade em
deixar sua morada material, voará quando por fim se libertar?
Ao ponderar o grande mistério, pensei em Helen Burns e recordei
suas últimas palavras, sua fé e a doutrina da igualdade das almas de-
sencarnadas. Ainda ouvia em pensamento sua voz tão bem lembrada
— ainda via seu aspecto pálido e espiritual, seu rosto emaciado e seu
olhar sublime enquanto ela jazia em seu plácido leito de morte e sus-
surrava seu desejo de ser restaurada ao seio do Pai eterno… quando
uma voz débil murmurou na cama atrás de mim.
— Quem é?
Eu sabia que a sra. Reed não falava havia dias. Estaria se recobran-
do? Fui até ela.
— Sou eu, tia Reed.
— Quem… eu? — foi a resposta dela. — Quem é você? — Olhou-me
com surpresa e certo alarme, mas não estava delirando. — Não conheço
você. Onde está Bessie?
— No chalé, tia.
— Tia! — repetiu ela. — Quem me chama de tia? Você não é uma das
Gibson, mas eu a conheço… esse rosto, e os olhos e testa são muito fa-
miliares … você parece… ora, parece Jane Eyre!
Eu não disse nada. Temia causar um choque ao declarar minha
identidade.
— No entanto — disse ela —, receio que seja um erro. Meus pensa-
mentos me enganam. Eu queria ver Jane Eyre e imagino uma seme-
lhança onde nenhuma existe. Além disso, em oito anos ela deve ter
mudado muito.
Eu então lhe assegurei gentilmente que era a pessoa que ela imagi-
nava e desejava que fosse, e, vendo que me entendeu e conseguia pen-
sar racionalmente, expliquei que Bessie enviara o marido para me
chamar em Thornfield.
— Estou muito doente, eu sei — logo disse ela. — Estava tentando me
virar, uns minutos atrás, e descobri que não consigo mover um mem-
bro sequer. É bom tranquilizar minha mente antes de morrer. Coisas
em que, na saúde, pensamos pouco, nos atormentam em uma hora tal
como a presente para mim. A enfermeira está aqui? Ou não há mais
ninguém no quarto?
Eu lhe assegurei que estávamos sozinhas.
— Bem, duas vezes eu lhe causei males de que agora me arrependo.
Um foi quebrar a promessa que fiz ao meu marido de criá-la como mi-
nha própria filha, o outro… — Ela se calou. — Afinal, talvez não seja tão
importante — murmurou consigo mesma. — E talvez eu ainda melhore,
e me humilhar diante dela é tão doloroso.
Ela fez um esforço para mudar de posição, mas não conseguiu. Seu
rosto mudou e ela pareceu experimentar alguma sensação interna — a
precursora, talvez, dos espasmos finais.
— Bem, preciso resolver isso logo. A eternidade está diante de mim; é
melhor contar para ela. Vá até a caixa na penteadeira, abra-a e pegue
uma carta que encontrará lá.
Obedeci a suas instruções.
— Leia a carta — disse ela.
Era curta e dizia o seguinte:
Senhora,
Faria a gentileza de enviar-me o endereço de minha sobrinha,
Jane Eyre, e me informar como ela está? É minha intenção escrever
em breve, pois desejo que ela venha me encontrar em Madeira. A
Providência abençoou meus esforços para obter uma posição e, co-
mo sou solteiro e não tenho filhos, desejo adotá-la enquanto estou
vivo e legar a ela, na minha morte, o que quer que eu possa deixar.
Eu sou, senhora, etc. etc.,
John Eyre, Madeira.
O
sr. Rochester me concedera apenas uma semana de licença,
mas um mês se passou antes que eu deixasse Gateshead.
Quis partir imediatamente após o enterro, mas Georgiana
suplicou que ficasse até ela poder ir a Londres, aonde fora finalmente
convidada pelo tio, o sr. Gibson, que tinha vindo para organizar o ve-
lório da irmã e tratar dos negócios da família. Georgiana disse que
abominava a ideia de ficar a sós com Eliza. Dela, não recebia nem
compaixão por seu desânimo, nem apoio com seus temores, nem aju-
da em seus preparativos. Então suportei seus estremecimentos débeis
e lamentos egoístas ao máximo e fiz meu melhor para costurar para
ela e embalar os seus vestidos. É verdade que, enquanto eu trabalha-
va, ela ficava ociosa, e pensei: Se você e eu estivéssemos destinadas a vi-
ver sempre juntas, prima, começaríamos as coisas de outra forma. Eu
não aceitaria mansamente ser a parte tolerante; lhe designaria sua par-
te do trabalho e a obrigaria a realizá-lo, senão ficaria inacabado. Tam-
bém insistiria que mantivesse algumas dessas queixas arrastadas e um
tanto insinceras no próprio seio. É só porque nossa conexão é muito
passageira, e chegou em um momento particularmente triste, que con-
sinto em ser tão paciente e submissa.
Georgiana finalmente partiu, mas então foi a vez de Eliza pedir que
eu ficasse mais uma semana. Seus planos demandavam todo o seu
tempo e atenção, ela disse. Estava prestes a partir para algum destino
desconhecido e passava o dia todo no quarto, com a porta trancada,
enchendo baús, esvaziando gavetas e queimando papéis, sem falar
com ninguém. Queria que eu cuidasse da casa, atendesse os visitantes
e respondesse cartas de pêsames.
Uma manhã ela me informou que eu estava livre.
— E — acrescentou — fico-lhe muito agradecida por seus serviços
valiosos e conduta discreta! Há uma diferença entre morar com uma
pessoa como você e com Georgiana. Você cumpre sua função na vida
e não incomoda ninguém. Amanhã — continuou —, eu vou partir para
o continente. Vou me assentar em uma casa religiosa perto de Lisle…
um claustro, como dizem. Lá, ficarei quieta e sem transtornos. Vou me
dedicar por um tempo à análise dos dogmas católicos romanos e ao
estudo cuidadoso do funcionamento do sistema deles. Se concluir que
é, como quase suspeito que seja, o mais adequado para garantir que as
coisas sejam todas feitas de forma decente e ordenada, vou adotar as
doutrinas de Roma e provavelmente tomar o véu.
Não expressei surpresa com essa resolução, nem tentei dissuadi-la.
A vocação religiosa vai cair-lhe como uma luva, pensei, e que lhe faça
bem!
Quando nos despedimos, ela disse:
— Adeus, prima Jane Eyre. Desejo-lhe bem. Você tem algum juízo.
E eu respondi:
— E você não é desajuizada, prima Eliza, mas suponho que o juízo
que tem estará, daqui a um ano, encerrado vivo dentro dos muros de
um convento francês. Contudo, não é da minha conta, e essa vida lhe
adequará. Não me importo muito.
— Você tem razão — disse ela, e com essas palavras seguimos nossos
caminhos separados.
Como não terei ocasião para me referir nem a ela nem à irmã outra
vez, aproveito para mencionar que Georgiana realizou um casamento
vantajoso com um janota rico e dissipado, e que Eliza realmente to-
mou o véu e é hoje superiora do convento onde passou o seu novicia-
do, e ao qual doou a sua fortuna.
Como as pessoas se sentem ao voltar para casa após uma ausência,
longa ou curta, eu não sei. Nunca experimentei a sensação. Quando
criança, sabia como era voltar a Gateshead após uma longa caminha-
da — sendo repreendida por parecer fria ou desanimada — e, mais tar-
de, como era voltar da igreja para Lowood, ansiando por uma refeição
farta e um fogo alto sem conseguir nenhum dos dois. Nenhum desses
retornos era muito agradável ou desejável; nenhum ímã me atraía a
determinado ponto, sua força de atração aumentando quanto mais
perto eu chegava. Eu ainda ia descobrir como seria o retorno a
Thornfield.
Minha jornada foi tediosa — muito tediosa. Oitenta quilômetros em
um dia, uma noite passada em uma hospedaria, e oitenta quilômetros
no dia seguinte. Durante as primeiras doze horas, pensei na sra. Reed
em seus últimos momentos. Vi seu rosto desfigurado e exangue, ouvi
sua voz estranhamente alterada. Refleti sobre o dia do enterro, o cai-
xão, o cortejo fúnebre com os arrendatários e criados enlutados (ha-
via um pequeno número de parentes), a cripta aberta, a igreja silenci-
osa, o ofício solene. Então pensei em Eliza e Georgiana. Imaginei uma
como o centro das atenções em um salão de baile e a outra residente
de uma cela de convento, e refleti e analisei suas peculiaridades de fi-
gura e caráter. A chegada ao fim da tarde na grande cidade de … dis-
persou esses pensamentos, e a noite lhes deu um viés bem diferente.
Deitada em minha cama de viajante, deixei as reminiscências e me
voltei à antecipação.
Eu estava voltando a Thornfield, mas por quanto tempo ficaria lá?
Não muito, disso eu tinha certeza. Recebera notícias da sra. Fairfax
durante minha ausência. O grupo na mansão fora embora; o sr. Ro-
chester tinha partido para Londres três semanas antes, mas era espe-
rado de volta em uma quinzena. A sra. Fairfax concluía que ele fora
fazer preparativos para o casamento, pois ele falara em comprar uma
nova carruagem. Ela comentou que a ideia de ele se casar com a srta.
Ingram ainda lhe parecia estranha, mas, pelo que todos diziam, e pelo
que ela mesma vira, não podia mais duvidar que o evento aconteceria
em breve. A senhora seria estranhamente incrédula se duvidasse, foi
meu comentário mental. Eu não duvido.
A questão seguinte era: para onde eu iria? Sonhei com a srta. In-
gram a noite toda. Em um sonho matinal vívido, a vi fechando os por-
tões de Thornfield na minha cara e apontando-me para outra estrada,
enquanto o sr. Rochester observava com os braços cruzados — sorrin-
do sardonicamente, me pareceu, tanto para ela como para mim.
Eu não tinha notificado a sra. Fairfax do dia exato do meu retorno,
pois não queria que uma diligência ou carruagem me encontrasse em
Millcote. Propus-me a caminhar até a casa em silêncio e sozinha, en-
tão, muito silenciosamente, após deixar meu baú aos cuidados do ca-
valariço, escapuli do George Inn por volta das seis horas de uma tarde
de junho e tomei a velha estrada para Thornfield — uma estrada que
atravessava principalmente campos e era pouco frequentada àquela
hora.
Não era uma noite de verão iluminada nem esplêndida, ainda que
branda e bonita. Os trabalhadores recolhiam feno ao longo de toda a
estrada, e o céu, embora longe de límpido, pressagiava bem para o fu-
turo. Seu tom azul — onde o azul era visível — era suave e tranquilo, e
o estrato de nuvens, alto e ralo. O oeste também estava quente; ne-
nhum brilho aquoso sugeria frio, e parecia haver um fogo aceso, um
altar queimando atrás da tela de vapor marmorizado, enquanto da
abertura brilhava uma vermelhidão dourada.
Fiquei feliz conforme a estrada reduzia-se à minha frente, tão feliz
que parei uma vez para me perguntar o que essa alegria significava —
e para recordar minha razão de que não era para o lar que eu me diri-
gia, nem para um lugar de repouso permanente, ou um local onde
amigos afetuosos cuidavam de mim e aguardavam a minha chegada.
A sra. Fairfax a receberá com um sorriso tranquilo, certamente, pen-
sei, e a pequena Adèle vai bater palmas e pular quando a vir, mas vo-
cê sabe muito bem que está pensando em outra pessoa que não elas, e
que ele não está pensando em você.
Mas o que é mais obstinado do que a juventude? O que é mais cego
do que a inexperiência? Elas afirmavam que seria prazer suficiente
ter o privilégio de olhar outra vez o sr. Rochester, quer ele olhasse pa-
ra mim ou não, e acrescentavam: Rápido! Rápido! Fique com ele en-
quanto pode. Mais alguns dias ou semanas, no máximo, e estará sepa-
rada dele para sempre! Então sufoquei uma agonia recém-nascida,
uma coisa deformada que eu não conseguia me convencer a admitir e
nutrir, e corri em frente.
Estão fazendo feno também nos campos de Thornfield. Ou, melhor
dizendo, os trabalhadores estão saindo do serviço e voltando para ca-
sa com os ancinhos nos ombros — bem agora, na hora em que chego.
Falta atravessar apenas um campo ou dois, e então cruzarei a estrada
e alcançarei os portões. Como as sebes estão cheias de rosas! Não te-
nho tempo de colher nenhuma; quero chegar à casa. Passo por uma
roseira-brava alta, que projeta ramos frondosos e florescentes pelo ca-
minho; vejo a cerca com a escadinha estreita de degraus de pedra, e
vejo… o sr. Rochester sentado ali, com um caderno e um lápis na mão.
Ele está escrevendo.
Ora, não é um fantasma, mas cada nervo em meu corpo estremece.
Por um momento, fico além do meu próprio controle. O que isso sig-
nifica? Eu não pensei que tremeria dessa forma quando o visse — que
perderia a voz e a capacidade de movimento em sua presença. Vou
recuar assim que conseguir me mover. Não preciso agir como uma to-
la completa. Conheço outro caminho até a casa. Porém, não importa-
ria nem se eu soubesse vinte, pois ele me vê.
— Olá! — exclama, abaixando o caderno e o lápis. — Aí está você! Ve-
nha cá, por favor.
Suponho que vou, mas de que forma não sei, mal ciente dos meus
movimentos e preocupada apenas em parecer calma e, acima de tudo,
controlar os músculos do rosto — que sinto se rebelarem insolente-
mente contra a minha vontade e se esforçarem para expressar o que
eu estava determinada a esconder. Mas eu tenho um véu, que está
abaixado. Talvez ainda possa me comportar com compostura razoá-
vel.
— É Jane Eyre que está aí? Chegando de Millcote, e a pé? É exata-
mente um dos seus truques, sim. Não mandar chamar uma carrua-
gem e vir chacoalhando por ruas e estradas como uma mera mortal,
para então se esgueirar até os arredores do lar com o crepúsculo, co-
mo se fosse um sonho ou uma sombra. Que diabos tem feito nesse úl-
timo mês?
— Estive com minha tia, senhor, que faleceu.
— Uma típica resposta janiana! Anjos me guardem! Ela vem de ou-
tro mundo, da morada dos mortos, e o diz ao me encontrar aqui sozi-
nho no crepúsculo! Se ousasse, eu a tocaria, para ver se é substância
ou sombra, sua elfa! Mas preferiria capturar um fogo-fátuo azul em
um pântano. Relapsa! Relapsa! — acrescentou após a pausa de um ins-
tante. — Ficou longe de mim por um mês inteiro e me esqueceu com-
pletamente, aposto!
Eu sabia que sentiria prazer em encontrar meu patrão outra vez,
ainda que dominada pelo temor de que ele logo deixasse de ser o meu
patrão e pelo fato de que eu não significava nada para ele. Porém,
sempre havia no sr. Rochester (ao menos eu achava) tamanho poder
de comunicar felicidade, que provar mesmo as migalhas, que ele dis-
tribuía a pássaros andarilhos e mais estranhos que eu, era-me um far-
to banquete. As últimas palavras foram um bálsamo: pareciam impli-
car que lhe importava um pouco se eu o esquecia ou não. E ele tinha
falado de Thornfield como o meu lar — quisera fosse mesmo!
Ele não desceu da escadinha e eu não tinha qualquer vontade de
pedir para passar. Perguntei se ele não estivera em Londres.
— Sim. Suponho que descobriu por segunda mão.
— A sra. Fairfax me contou em uma carta.
— E ela lhe informou do que eu fui fizer?
— Ah, sim, senhor! Todos conhecem a sua missão.
— Você deve ver a carruagem, Jane, e me dizer se não acha que vai
se adequar perfeitamente à sra. Rochester, e se ela não vai parecer a
rainha Boudica119 reclinando-se contra as almofadas púrpura. Eu
queria, Jane, ser um pouco mais bem-apessoado para combinar com
ela externamente. Diga-me agora, fada que é: não pode me dar um
encantamento ou poção, ou algo do gênero, para me tornar um ho-
mem belo?
— Isso estaria além do poder da magia, senhor.
Em pensamento acrescentei: Um olhar amoroso é todo o encanta-
mento necessário. Para tal olhar, o senhor é belo o suficiente, ou, antes,
sua severidade exerce um poder que vai além da beleza.
O sr. Rochester às vezes lia meus pensamentos silenciosos com uma
sagacidade que me era incompreensível. No momento, não prestou
qualquer atenção à resposta vocal abrupta, só abriu para mim um
sorriso que usava em raras ocasiões. Parecia pensar que era bom de-
mais para ocasiões comuns. Era a real luz do sentimento, e ele a lan-
çou sobre mim naquele instante.
— Passe, Janet — disse ele, pondo-se de lado para eu cruzar a cerca.
— Vá para casa e descanse seus pezinhos de andarilha cansada no um-
bral de um amigo.
Tudo que eu podia fazer era obedecê-lo em silêncio; não havia ne-
cessidade de falar mais. Subi os degraus sem dizer nada e planejava
deixá-lo calmamente, mas então um impulso me imobilizou — uma
força me fez virar. Eu disse, ou algo em mim disse por mim, contra
minha própria vontade:
— Obrigada, sr. Rochester, por sua grande gentileza. Sinto-me estra-
nhamente feliz de voltar para o senhor, e onde quer que esteja é meu
lar. Meu único lar.
Segui em frente tão depressa que ele não poderia ter me alcançado
nem se tentasse. A pequena Adèle ficou quase ensandecida de alegria
quando me viu. A sra. Fairfax me recebeu com a cordialidade sincera
de sempre. Leah sorriu e até Sophie me deu um “bon soir”120 anima-
do. Foi muito agradável. Não há felicidade como a de ser amada pelos
seus semelhantes, e sentir que sua presença contribui ao conforto de-
les.
Naquela noite, fechei os olhos resolutamente contra o futuro. Cobri
os ouvidos contra a voz que continuava me alertando da separação
próxima e do sofrimento iminente. Quando o chá terminou, a sra.
Fairfax pegou seu tricô e eu me acomodei em um banco baixo perto
dela, enquanto Adèle, ajoelhando-se no tapete, aconchegava-se a
mim, uma sensação de afeto mútuo parecendo nos cercar como um
anel de paz dourada, proferi uma prece silenciosa para que não fôsse-
mos separadas por uma grande distância, nem muito em breve. Po-
rém, enquanto estávamos sentadas assim, o sr. Rochester entrou sem
aviso e, olhando para nós, pareceu sentir prazer com o espetáculo de
um grupo tão amável, dizendo que a velha senhora devia estar satis-
feita agora que sua filha adotiva voltara e acrescentando que Adèle es-
tava “prête à croquer sa petite maman Anglaise”121 — e eu quase ousei
esperar que, após o casamento, ele nos mantivesse juntas em algum
lugar sob sua proteção, não completamente exiladas do sol de sua pre-
sença.
Uma quinzena de calma dúbia seguiu-se ao meu retorno a Thornfi-
eld Hall. Nada foi dito do casamento do patrão, e não vi preparativos
para tal evento. Quase todo dia perguntava à sra. Fairfax se sabia se
algo fora decidido. Sua resposta era sempre negativa. Uma vez, disse
ela, tinha chegado a perguntar ao sr. Rochester quando ia trazer sua
noiva para casa, mas ele só respondera com uma piada e um dos seus
olhares estranhos, e ela não sabia o que pensar.
Uma coisa em especial me surpreendeu: o fato de que não havia vi-
agens de um lado ao outro, nenhuma visita feita a Ingram Park. Claro,
ela estava a cerca de trinta quilômetros, nos limites de outro condado,
mas o que era a distância para um amante ardoroso? Para um cavalei-
ro tão experiente e infatigável quanto o sr. Rochester, seria apenas
uma manhã de cavalgada. Comecei a acalentar esperanças às quais
não tinha nenhum direito: que o noivado tivesse sido rompido, que os
boatos estivessem errados, que uma ou ambas as partes tivessem mu-
dado de ideia. Olhava para o rosto do meu patrão para ver se estava
triste ou irado, mas não conseguia lembrar de já o ter visto tão unifor-
memente livre de nuvens ou maus sentimentos. Se, nos momentos em
que eu e a minha pupila passávamos com ele, eu ficava desanimada e
caía em um desalento inevitável, ele até agia com maior alegria. Nun-
ca me chamara com mais frequência ao seu lado, nunca fora tão gentil
comigo quando estava lá, e — ai de mim! — eu nunca o amara tanto.
119. Rainha celta que liderou a tribo dos icenos contra os romanos em 60 ou
61 d.C.
↵
120. “Boa noite.”
↵
121. “Pronta para devorar sua mamãezinha inglesa.”
↵
Capítulo XXIII
U
m solstício de verão esplêndido brilhou sobre a Inglaterra.
Céus tão puros e sóis tão radiantes quanto os que vimos na-
queles dias raramente abençoam em longa sequência, ou
mesmo uma única vez, nosso território cercado de ondas. Era como se
um bando de dias italianos tivesse vindo do sul, tal qual uma gloriosa
revoada de pássaros migratórios, e pousado para descansar nos pe-
nhascos de Albion.122 O feno foi todo recolhido; os campos ao redor de
Thornfield estavam verdes e aparados; as estradas estavam brancas e
secas e as árvores, no auge do viço; e sebes e bosques, frondosas e escu-
ras, faziam um forte contraste com os campos limpos e ensolarados.
Na véspera do solstício, Adèle, cansada após passar metade do dia
colhendo morangos silvestres na estrada de Hay, foi dormir com o pôr
do sol. Eu a vi adormecer e, ao deixá-la, procurei o jardim.
Era a hora mais doce das vinte e quatro — “o dia desperdiçara seu
fogo férvido”123 e o orvalho caía fresco na planície arquejante e nos cu-
mes abrasados. Onde o sol tinha descido com simplicidade — puro sem
a pompa das nuvens —, espraiava-se um púrpura solene, ardendo com
a luz de joias vermelhas e chamas de caldeira em um ponto, no pico de
uma colina, e estendendo-se alto e amplamente, cada vez mais suave,
sobre metade dos céus. O leste tinha seu próprio charme com um belo
azul-escuro e sua própria joia modesta, uma estrela ascendente e soli-
tária. Logo ostentaria a Lua, que ainda estava sob o horizonte.
Caminhei um pouco na frente da casa, mas um aroma sutil e famili-
ar — de charuto — esgueirou-se de alguma janela. Vi uma fresta aberta
na da biblioteca e soube que eu poderia ser observada dali, então segui
para o pomar. Nenhuma parte dos jardins era mais abrigada e pareci-
da com o Éden. Cheio de árvores, repleto de flores, de um lado, um
muro muito alto o separava do pátio; do outro, uma alameda de faias o
protegia do jardim. No final, havia uma cerca afundada, a única sepa-
ração dos campos solitários. Um caminho sinuoso, margeado por lou-
reiros e terminando em um gigante castanheiro-da-índia, rodeado na
base por um banco, levava até a cerca embaixo. Ali, podia-se peram-
bular sem ser visto. Enquanto o orvalho caía, tamanho silêncio reina-
va, tamanha escuridão se reunia, que senti que poderia habitar aquelas
sombras para sempre: mas, ao abrir caminho entre parterres de flores
e frutos na parte superior da área cercada, atraída pela luz da lua que
subia nesse espaço mais aberto, meu passo se deteve. Não por um som,
não por uma visão, mas novamente por uma fragrância que me deixou
alerta.
Rosa-amarela e artemísia, jasmim e rosa vêm exalando seu sacrifício
noturno de incenso. Esse novo aroma não vem nem de arbusto, nem
de flor; é — eu sei bem — o charuto do sr. Rochester. Olho ao redor. Es-
cuto. Vejo árvores carregadas de frutas que amadurecem. Ouço um
rouxinol trinando nos bosques a menos de um quilômetro; nenhuma
forma em movimento está visível, nenhum passo próximo é audível,
mas o perfume aumenta. Devo fugir. Sigo para a cancela que leva aos
arbustos, e vejo o sr. Rochester entrar. Viro para o lado e entro no ni-
cho de hera. Ele não vai ficar muito tempo; logo voltará por onde veio
e, se eu ficar em silêncio, nunca me verá.
Mas não. O final da tarde é tão agradável para ele quanto para mim,
e esse jardim antigo lhe oferece os mesmos atrativos. Ele segue em
frente, ora erguendo os galhos da groselheira para olhar as frutas gran-
des como ameixas com que estão carregados; ora pegando uma cereja
madura do muro; ora curvando-se na direção de um ramo de flores,
seja para inalar a fragrância, seja para admirar as gotas de orvalho nas
pétalas. Uma grande mariposa passa zumbindo por mim e pousa em
uma planta aos pés do sr. Rochester. Ele a vê e se inclina para observá-
la.
Agora ele está de costas para mim, pensei, e ocupado. Talvez, se eu
andar suavemente, possa escapulir sem chamar a atenção.
Pisei em um trecho de relva, para que o ruído dos seixos não me tra-
ísse. Ele estava parado entre os canteiros, a um ou dois metros de onde
eu precisava passar. A mariposa parecia capturar o interesse dele. Pas-
sarei sem problemas, pensei. Enquanto cruzava sua sombra, alongada
no jardim pela lua, que ainda não se erguera alto, ele disse baixinho,
sem se virar:
— Jane, venha ver esse camarada.
Eu não tinha feito nenhum som; ele não tinha olhos atrás da cabeça.
Sua sombra era capaz de sentir? Tomei um susto, depois me aproxi-
mei.
— Veja as asas — disse ele. — Me recorda muito um inseto das Índias
Ocidentais, e é raro ver uma espécie noturna tão grande e colorida na
Inglaterra. Ah, pronto! Lá vai ela.
A mariposa voou para longe. Eu também estava recuando, encabu-
lada, mas o sr. Rochester me seguiu e, quando alcançamos a cancela,
disse:
— Volte. Em uma noite tão agradável, é um desperdício ficar em ca-
sa, e certamente ninguém deseja ir se deitar enquanto o pôr do sol está
se encontrando com a lua ascendente desta forma.
É um dos meus defeitos que, embora tenha às vezes uma resposta na
ponta da língua, em outras ocasiões sou infelizmente incapaz de en-
contrar uma desculpa, e o lapso sempre ocorre em alguma crise, quan-
do uma palavra oportuna ou um pretexto plausível seria especialmen-
te desejável para me tirar de uma situação vergonhosa e dolorosa. Não
me agradava a ideia de caminhar sozinha àquela hora com o sr. Ro-
chester no pomar escuro, mas não consegui achar um motivo para dei-
xá-lo. Segui um pouco atrás dele, concentrada intensamente em desco-
brir um meio de me desembaraçar da situação, mas ele mesmo parecia
tão tranquilo e tão sério que me envergonhei por sentir qualquer con-
fusão. O mal — se havia mal real ou potencial — parecia encontrar-se
apenas comigo; a mente dele estava alheia e sossegada.
— Jane — recomeçou ele, quando entramos na alameda de loureiros
e lentamente descemos em direção à cerca afundada e ao castanheiro-
da-índia —, Thornfield é um lugar agradável no verão, não é?
— Sim, senhor.
— Você deve ter se apegado à casa de alguma forma… você, que tem
um bom olho para belezas naturais e um órgão de adesão considerá-
vel?
— De fato, eu me apeguei.
E
nquanto me levantava e me vestia, recordei tudo o que aconte-
cera e me perguntei se tinha sido um sonho. Não teria certeza
da realidade até ver o sr. Rochester outra vez e o ouvir renovar
suas palavras de amor e promessa.
Arrumando o cabelo, fitei-me no espelho e senti que meu rosto não
era mais sem graça: havia esperança nas feições e vivacidade na tez;
meus olhos pareciam ter contemplado a fonte do prazer e tomado em-
prestado a luz de seu fluxo cintilante. Muitas vezes eu relutara em fitar
meu patrão, temendo que meu aspecto não lhe agradasse, mas final-
mente estava confiante de que poderia erguer o rosto ao dele e não di-
minuir o seu afeto. Peguei da gaveta um vestido de verão simples, mas
limpo e leve, e o vesti. Pareceu-me que nenhum traje jamais me caíra
tão bem, porque eu nunca me vestira em um humor tão jubiloso.
Não fiquei surpresa, quando desci para o saguão, ao ver que uma
manhã brilhante de junho se sucedera à tempestade da noite, e ao sen-
tir, através da porta de vidro aberta, o sopro de uma brisa fresca e fra-
grante. A natureza devia estar contente pela minha felicidade. Uma
pedinte e seu filhinho — ambos pálidos e puídos — subiam em direção
à casa, e eu desci correndo e lhes dei todo o dinheiro que tinha na bol-
sa, três ou quatro xelins. Bons ou maus, eles deviam partilhar da mi-
nha alegria. As gralhas crocitaram e pássaros mais joviais cantaram,
mas nada era tão feliz ou musical quanto meu próprio coração extasia-
do.
A sra. Fairfax me surpreendeu ao olhar pela janela com um sem-
blante triste e dizer com seriedade:
— Srta. Eyre, vai tomar o café da manhã?
Durante a refeição ela se manteve calma e calada, mas eu ainda não
podia esclarecer a situação. Tanto eu como ela precisaríamos esperar
que meu patrão desse as explicações. Comi o que pude e corri escada
acima. Encontrei Adèle saindo da sala de aula.
— Aonde vai? É hora da aula.
— O sr. Rochester me mandou para o meu quarto.
— Onde está ele?
— Ali — respondeu, apontando para o cômodo que tinha acabado de
deixar.
Entrei e lá estava ele.
— Venha me dar bom dia — disse-me.
Avancei de bom grado, e não foi apenas uma palavra fria ou mesmo
um aperto de mãos que recebi, mas um abraço e um beijo. Parecia na-
tural e certo ser amada e acariciada por ele.
— Jane, você está tão viçosa, sorridente e bonita — disse ele. — Está
realmente linda esta manhã. É mesmo minha elfinha pálida? É minha
Semente-de-Mostarda?125 Essa mocinha de rosto alegre, com covinhas
nas bochechas e lábios rosados, e o cabelo castanho macio como cetim,
e os olhos castanhos radiantes? — (Eu tinha olhos verdes, leitor, mas
deve-se perdoar o erro: para ele, podiam ser recém-tingidos.)
— É mesmo Jane Eyre, senhor.
— E logo será Jane Rochester — acrescentou ele. — Em quatro sema-
nas, Janet, e nem um dia a mais. Ouviu?
Ouvi e não consegui absorver as palavras inteiramente; a ideia me
deixava eufórica. O sentimento que me atravessou ao ouvir o anúncio
era mais forte do que a alegria, era algo que assolava e atordoava. Era,
penso, quase medo.
— Antes você corava, agora está pálida, Jane. Por quê?
— Porque o senhor me deu um novo nome, Jane Rochester, e ele pa-
rece tão estranho.
— Sim, sra. Rochester — disse ele. — A jovem sra. Rochester. A noiva
de Fairfax Rochester.
— Não pode ser, senhor, não parece possível. Seres humanos nunca
desfrutam de uma felicidade completa neste mundo. Eu não nasci para
ter um destino diferente do resto da minha espécie. Imaginar tal qui-
nhão cabendo a mim é um conto de fadas. Um sonho acordado.
— Que eu posso e irei realizar. Começaremos hoje. Esta manhã escre-
vi ao meu banqueiro em Londres para que envie certas joias que tem
em sua posse, heranças das damas de Thornfield. Em um dia ou dois
espero despejá-las no seu colo. Pois você receberá todo privilégio e
atenção que eu concederia à filha de um nobre, se fosse me casar com
uma.
— Ah, senhor! Não pense em joias! Não quero ouvir falar disso. Joias
para Jane Eyre soa estranho e errado. Eu preferiria não as ter.
— Eu mesmo fecharei o colar de diamantes ao redor do seu pescoço e
o diadema em sua testa… e diadema se tornará. Pois a natureza, ao
menos, estampou a marca da nobreza em sua fronte, Jane, e eu vou fe-
char pulseiras em seus pulsos delicados e carregar esses seus dedos de
fada com anéis.
— Não, senhor, não! Pense em outros assuntos e fale de outras coisas
e de outra forma. Não se dirija a mim como se eu fosse uma beldade;
eu sou a preceptora desta casa, simples como um quacre.
— Você é uma beldade aos meus olhos, e uma beldade perfeitamente
em sintonia com o desejo do meu coração: delicada e etérea.
— Mísera e insignificante, o senhor quer dizer. Está sonhando… ou
escarnecendo. Pelo amor de Deus, não seja irônico!
— E farei o mundo reconhecê-la como uma beldade também — conti-
nuou ele, enquanto eu realmente ficava desconfortável com o discurso,
porque sentia que ele estava se iludindo, ou que tentava me iludir. —
Vou vestir a minha Jane de cetim e renda, e ela terá rosas no cabelo, e
cobrirei a cabeça que mais amo com um véu de valor inestimável.
— E então não vai me reconhecer, senhor. Eu não serei mais a sua
Jane Eyre, mas um símio na jaqueta de um arlequim, um gaio com
plumas emprestadas. Eu preferiria ver o senhor, sr. Rochester, fantasi-
ado nas roupas de um ator, do que ver eu mesma com o vestido de
uma dama da corte; e não o chamo de bonito, senhor, embora o ame
profundamente; profundamente demais para adulá-lo. Não me adule.
Ele prosseguiu no mesmo tema, entretanto, sem atentar à minha sú-
plica:
— Hoje mesmo vou levá-la de carruagem a Millcote e você deve es-
colher alguns vestidos. Eu lhe disse que vamos nos casar em quatro se-
manas. A cerimônia vai ser simples, na igreja lá embaixo, e depois vou
levá-la imediatamente à cidade. Após uma breve parada, vou portar
meu tesouro a regiões mais próximas do sol: vinhedos franceses e pla-
nícies italianas. E ela verá tudo que é famoso nas velhas histórias e nos
registros modernos. Vai experimentar também a vida das cidades e
aprender a se valorizar por meio de uma justa comparação com os ou-
tros.
— Eu vou viajar? E com o senhor?
— Você vai morar em Paris, Roma e Nápoles, em Florença, Veneza e
Viena: vai repisar todo o terreno onde perambulei. Onde quer que eu
tenha posto meu casco, o seu pezinho de sílfide também pisará. Dez
anos atrás, eu atravessei a Europa como um furacão, meio ensandeci-
do, com asco, ódio e fúria como companheiros; agora a revisitarei cu-
rado e purificado, com um anjo para me reconfortar.
Eu ri do que ele disse.
— Eu não sou um anjo — afirmei — e não serei até morrer. Serei eu
mesma. Sr. Rochester, não deve nem esperar nem exigir nada celestial
da minha parte, pois não vai consegui-lo mais do que eu o conseguirei
do senhor, o que não espero de forma alguma.
— E o que espera de mim?
— Por um tempo, talvez, o senhor será como está agora… um tempo
muito curto. Depois vai ficar frio, depois caprichoso, depois severo, e
depois eu terei muito trabalho para agradá-lo. Mas, quando se acostu-
mar bastante comigo, talvez volte a gostar de mim. Gostar de mim, eu
digo, não me amar. Suponho que o amor vai efervescer por seis meses
ou menos. Tenho observado, em livros escritos por homens, que esse é
considerado o maior período pelo qual se estende o ardor de um mari-
do. No entanto, como amiga e companheira, espero nunca me tornar
muito desagradável ao meu querido patrão.
— Desagradável! E voltar a gostar de você! Acho que vou gostar de
você de novo e de novo, e a farei confessar que não só gosto, mas a
amo. Com sinceridade, fervor e constância.
— No entanto, o senhor não é caprichoso?
— Com mulheres que me agradam só pelo rosto, eu sou o próprio de-
mônio após descobrir que não possuem alma nem coração, quando
descortinam para mim uma perspectiva de superficialidade, triviali-
dade e talvez imbecilidade, grosseria e mau humor. Mas ao olhar lím-
pido e à língua eloquente, à alma feita de fogo e ao caráter que se do-
bra, mas não se quebra, ao mesmo tempo flexível e estável, dócil e con-
sistente, sou eternamente terno e fiel.
— O senhor já conheceu um tal caráter? Já amou alguém assim?
— Amo-a agora.
— E antes de mim… se eu, de fato, em qualquer sentido estou à altura
desse exigente padrão?
— Nunca conheci ninguém como você. Jane, você me agrada e me
domina. Parece submeter-se, e gosto da impressão de flexibilidade que
transmite, e então, enquanto estou torcendo o fio macio e sedoso no
dedo, ele manda um arrepio pelo meu braço até meu coração. Fui in-
fluenciado, conquistado, e sua influência é mais doce do que consigo
expressar, e a conquista que me acomete possui um encantamento
além de qualquer triunfo que eu possa obter. Por que sorri, Jane? O
que essa expressão inexplicável e misteriosa significa?
— Eu estava pensando, senhor… perdoe a ideia, foi involuntária… eu
estava pensando em Hércules e Sansão126 com as mulheres que os en-
cantaram…
— É mesmo, minha fadinha…
— Cale-se, senhor! Não está falando de modo sábio agora, não mais
do que aqueles cavalheiros agiram com sabedoria. No entanto, se tives-
sem se casado, sem dúvida teriam compensado sua docilidade como
pretendentes com sua severidade como maridos, e receio que com o
senhor será assim. Pergunto-me como vai me responder daqui a um
ano, se eu pedir um favor que não lhe seja conveniente ou prazeroso
me conceder.
— Peça-me algo agora, Janet, qualquer coisinha. Quero receber seus
apelos…
— Pois bem, senhor, pedirei. Tenho minha petição a postos.
— Fale! Mas, se erguer os olhos e sorrir para mim, vou prometer
atender a qualquer pedido antes de saber o que quer, o que me tornará
um tolo.
— De forma alguma, senhor. Só peço uma coisa: não mande joias se-
rem trazidas e não me coroe com rosas. Seria o mesmo que colocar
uma bainha de renda dourada naquele lenço simples que tem no bolso.
— Seria o mesmo que “dourar ouro de lei”,127 eu sei. Seu pedido será
concedido. Por enquanto. Vou adiar a ordem que despachei ao meu
banqueiro. Mas você ainda não pediu nada, só que um presente fosse
retirado. Tente de novo.
— Bem, então, senhor, tenha a bondade de satisfazer minha curiosi-
dade, que está muito atiçada quanto a um ponto.
Ele pareceu perturbado.
— Quê? Quê? — disse depressa. — A curiosidade é uma petição peri-
gosa. Ainda bem que eu não jurei conceder qualquer pedido…
— Mas não pode haver perigo em aquiescer com este, senhor.
— Fale, Jane. Mas gostaria que, em vez de sondar um segredo, dese-
jasse metade das minhas posses.
— Ora, rei Assuero!128 O que eu faria com metade das suas posses?
Acha que sou um judeu usurário, procurando bons investimentos em
terras? Eu preferiria ter toda a sua confiança. Decerto não vai me ex-
cluir dela, se me admite no seu coração?
— Você tem toda a confiança que vale a pena ter, Jane. Mas, pelo
amor de Deus, não deseje um fardo inútil! Não anseie por veneno. Não
se transforme em uma verdadeira Eva em minhas mãos!
— Por que não, senhor? Estava me contando agora mesmo o quanto
gostava de ser conquistado e como lhe é agradável estar sob minha in-
fluência. Não acha que seria melhor eu me aproveitar dessa confissão e
começar a persuadir e implorar… até a chorar e ficar emburrada, se
necessário, a fim de testar o meu poder?
— Eu a desafio a tentar qualquer experimento do tipo. Abuse, presu-
ma, e o jogo estará terminado.
— É mesmo? O senhor desiste fácil. Como parece severo agora! Suas
sobrancelhas se tornaram tão espessas quanto o meu dedo, e sua fronte
parece o que, em um poema assombroso, eu vi uma vez ser chamado
de “azuis nuvens de tempestade”129. Será essa a cara que fará quando
estiver casado, presumo?
— Se essa for a sua cara quando estiver casada, eu, como cristão, logo
vou abandonar a ideia de me unir a uma mera fada ou salamandra.
Mas o que tinha para perguntar, criatura? Desembuche!
— Pronto, o senhor está menos cortês agora, e eu gosto de grosseria
bem mais do que de adulação. Prefiro ser uma criatura a um anjo. Mi-
nha pergunta é a seguinte: por que se esforçou tanto para me fazer
acreditar que queria casar-se com a srta. Ingram?
— É só isso? Graças a Deus, não é nada pior!
Então as sobrancelhas pretas se suavizaram; ele olhou para baixo,
sorrindo para mim, e alisou meu cabelo como se satisfeito por evadir
um perigo.
— Acho que posso confessar — continuou ele —, embora você vá ficar
um pouco indignada, Jane. E já vi como você fica inflamada quando se
indigna. Ontem à noite, sob o luar frio, você brilhava quando se amoti-
nou contra o destino e exigiu que eu reconhecesse que é minha igual.
Janet, pensando bem, foi você que me fez uma proposta.
— É claro. Mas voltemos ao assunto, por favor. A srta. Ingram?
— Bem, eu fingi cortejar a srta. Ingram porque desejava deixar você
tão loucamente apaixonada por mim quanto eu estava por você, e sa-
bia que o ciúme seria o melhor aliado que poderia ter para esse fim.
— Excelente! Agora o senhor é pequeno, nem sequer maior que a
ponta do meu dedinho. É uma grande pena e uma vergonha escanda-
losa que tenha agido dessa forma. Não pensou nem um pouco nos sen-
timentos da srta. Ingram, senhor?
— Os sentimentos dela resumem-se a apenas um: orgulho. E ela pre-
cisa experimentar a humildade. Você ficou com ciúmes, Jane?
— Não importa, sr. Rochester, não é nada oportuno que o senhor sai-
ba disso. Responda-me com sinceridade mais uma vez: acha que a srta.
Ingram não vai sofrer por sua brincadeira desonesta? Que não vai se
sentir desolada e abandonada?
— Impossível! Eu não lhe disse que foi ela que, pelo contrário, me de-
sertou? A ideia da minha falência esfriou (ou, melhor dizendo, apagou
de vez) o fogo dela em um momento.
— O senhor tem uma mente curiosamente maquinadora, sr. Roches-
ter. Receio que seus princípios sejam excêntricos em alguns pontos.
— Meus princípios nunca foram treinados, Jane. Eles podem ter se
entortado um pouco por falta de atenção.
— Novamente, e responda com seriedade: eu posso desfrutar do
grande bem que me foi prometido sem temer que outra pessoa esteja
sofrendo a dor amarga que eu mesma senti um tempo atrás?
— Pode, minha querida garota. Não há outro ser no mundo que sinta
um amor puro por mim como você. Pois lisonjeio minha alma,130 Jane,
e creio em seu afeto.
Virei os lábios para a mão que ele apoiara em meu ombro. Eu o
amava muito — mais do que confiava em mim mesma para dizer, mais
do que as palavras tinham o poder de expressar.
— Peça mais alguma coisa — disse ele pouco depois. — É um prazer
ouvir suas súplicas e ceder a elas.
Outra vez eu tinha meu pedido a postos.
— Comunique suas intenções à sra. Fairfax, senhor. Ela nos viu on-
tem à noite no saguão e ficou chocada. Dê-lhe uma explicação antes
que eu a veja de novo. Dói-me ser julgada injustamente por uma mu-
lher tão boa.
— Vá para o quarto e vista sua touca — respondeu ele. — Quero que
me acompanhe a Millcote esta manhã e, enquanto se prepara para o
trajeto, vou explicar tudo à velha dama. Será que ela pensou, Janet,
que você tinha dado o mundo pelo amor e considerava a troca justa?
— Acredito que ela pensou que eu tinha esquecido o meu lugar… e o
seu, senhor.
— Lugar! Lugar! Seu lugar é no meu coração, e ai daqueles que a in-
sultarem, agora ou no futuro. Vá.
Logo estava vestida e, quando ouvi o sr. Rochester deixar os aposen-
tos da sra. Fairfax, corri até lá. A velha dama estivera lendo sua porção
matinal das Escrituras, a lição do dia. A Bíblia estava aberta diante de-
la e seus óculos estavam apoiados no livro. Essa ocupação, suspensa
pelo anúncio do sr. Rochester, parecia esquecida. Seu olhar, fixo na pa-
rede vazia à frente, expressava a surpresa de uma mente tranquila que
fora agitada por notícias insólitas. Ao me ver, ela despertou. Fez um es-
forço para sorrir e conseguiu balbuciar algumas palavras de felicita-
ção, mas o sorriso morreu e a frase foi abandonada no meio. Ela pôs os
óculos, fechou a Bíblia e empurrou a cadeira para longe da mesa.
— Estou tão espantada — começou ela — que mal sei o que lhe dizer,
srta. Eyre. Não estive sonhando, estive? Às vezes quase adormeço
quando estou sentada sozinha, e imagino coisas que nunca acontece-
ram. Mais de uma vez, quando estava cochilando, já me pareceu que
meu querido marido, morto há quinze anos, veio sentar-se ao meu la-
do, e até o ouvi chamar-me pelo nome, Alice, como fazia. Então pode
me dizer se é verdade que o sr. Rochester lhe pediu em casamento?
Não ria de mim. Mas pensei mesmo que ele entrou aqui cinco minutos
atrás e disse que em um mês você seria a esposa dele.
— Ele disse a mesma coisa a mim — respondi.
— Disse! E acredita nele? Aceitou-o?
— Sim.
Ela me fitou, perplexa.
— Eu nunca teria imaginado. Ele é um homem orgulhoso, todos os
Rochester eram orgulhosos. E o pai dele, ao menos, gostava de dinhei-
ro. Ele também sempre foi cuidadoso. Pretende casar-se com você?
— É o que diz.
Ela me examinou da cabeça aos pés. Li em seus olhos que não en-
contrara um charme potente o bastante para solucionar o enigma.
— Não entendo! — continuou ela. — Mas sem dúvida é verdade, já que
você diz. Como vai acabar, não sei dizer. Não sei mesmo. Igualdade de
posição social e fortuna é frequentemente aconselhável em tais casos, e
vocês têm vinte anos de diferença em idade. Ele quase poderia ser seu
pai.
— De forma alguma, sra. Fairfax! — exclamei, aborrecida. — Ele não é
nada como meu pai! Ninguém que nos visse juntos pensaria isso por
um instante. O sr. Rochester parece tão jovem, e é tão jovem, quanto
alguns homens de vinte e cinco anos.
— É realmente por amor que ele vai se casar com você? — perguntou
ela.
Eu fiquei tão magoada por sua frieza e ceticismo que lágrimas brota-
ram em meus olhos.
— Peço perdão por chateá-la — continuou a viúva —, mas você é tão
jovem e conhece tão pouco dos homens que gostaria de deixá-la alerta.
Um velho ditado diz que “nem tudo que reluz é ouro”, e nesse caso re-
ceio que algo seja diferente do que eu ou você esperamos.
— Por quê? Por acaso sou um monstro? — perguntei. — É impossível
que o sr. Rochester sinta carinho sincero por mim?
— Não, você é muito boa, e melhorou muito ultimamente, e o sr. Ro-
chester, ouso dizer, lhe é muito afeiçoado. Sempre notei que você era
uma espécie de favorita dele. Houve vezes que, pelo seu bem, fiquei
um pouco desconfortável com essa preferência nítida e desejei alertá-
la, mas não queria nem sugerir alguma possibilidade indecorosa. Sabia
que a ideia a chocaria e talvez ofenderia, e você era tão discreta, e tão
modesta e sensata, que pensei que saberia se proteger. Não sei lhe dizer
como sofri, ontem à noite, quando procurei na casa toda e não conse-
gui encontrar você ou o patrão em lugar algum, e então, à meia-noite, a
vi entrar com ele.
— Bem, não importa mais — interrompi com impaciência. — É sufici-
ente que saiba que não havia nada de errado.
— Espero que não haja nada de errado no final — disse ela. — Mas,
acredite em mim, cautela nunca é demais. Tente manter o sr. Rochester
a distância. Desconfie de si mesma, assim como dele. Cavalheiros da
posição social dele não têm o hábito de se casar com preceptoras.
Eu estava ficando realmente irritada. Por sorte, Adèle entrou cor-
rendo naquele momento.
— Me deixe ir, me deixe ir a Millcote também! — exclamou ela. — O
sr. Rochester não permitiu, mesmo havendo tanto espaço na nova car-
ruagem. Implore a ele para me deixar ir, mademoiselle.
— Farei isso, Adèle.
Saí com ela às pressas, feliz por deixar a companhia da minha su-
pervisora pessimista. A carruagem estava pronta; traziam-na para a
frente da casa e meu patrão andava de um lado para o outro, seguido
por Piloto.
— Adèle pode nos acompanhar, não pode, senhor?
— Eu disse que não. Não quero nenhuma pirralha! Só levarei você.
— Deixe-a ir, sr. Rochester, por gentileza. Será melhor.
— Não. Ela será um estorvo.
Ele foi muito peremptório, tanto em expressão como na voz. Os aler-
tas enregelantes da sra. Fairfax e suas dúvidas desanimadoras pesaram
sobre mim — algo insubstancial e incerto acometeu minhas esperanças.
Perdi parte da sensação de ter poder sobre ele. Estava prestes a meca-
nicamente obedecê-lo, sem mais objeções, quando ele olhou meu rosto
ao me ajudar a subir na carruagem.
— O que houve? — perguntou ele. — Todo o sol se foi. Quer mesmo
que a menina vá? Vai se aborrecer se ela ficar para trás?
— Eu realmente preferiria que ela fosse, senhor.
— Então vá pegar sua touca e volte veloz como um raio! — gritou ele
para Adèle.
Ela obedeceu com toda a velocidade.
— Afinal, uma manhã não vai importar muito — disse ele —, quando
eu pretendo reivindicá-la em breve… seus pensamentos, sua conversa
e sua companhia… para o resto da vida.
Adèle, ao ser erguida para a carruagem, começou a me beijar para
expressar sua gratidão pela intercessão. Ela foi imediatamente acondi-
cionada em um canto do outro lado dele, então espiou para onde eu es-
tava sentada. Um vizinho tão severo era restritivo demais. Para ele,
naquele humor irascível, ela não ousaria sussurrar observações nem
pedir informações.
— Deixe-a ficar comigo — pedi. — Talvez o incomode, senhor. Há
muito espaço deste lado.
Ele a entregou como se ela fosse um cãozi-
nho de colo.
— Eu ainda a mandarei para a escola — disse
ele, mas estava sorrindo.
Adèle o ouviu e perguntou se ela iria para a
escola “sans mademoiselle”131.
— Sim — respondeu ele —, absolutamente sans mademoiselle, pois eu
vou levar a mademoiselle para a lua, e lá procurarei uma caverna em
um dos vales brancos entre as crateras dos vulcões e mademoiselle vai
morar lá comigo, e só comigo.
— Ela não terá nada para comer, o senhor vai matá-la de fome — ob-
servou Adèle.
— Eu vou coletar maná para ela, dia e noite. As planícies e colinas na
lua são cobertas de maná, Adèle.
— Ela vai precisar se aquecer. Como vai acender um fogo?
— O fogo se ergue das montanhas lunares. Quando ela estiver com
frio, vou carregá-la até um pico e deitá-la na borda de uma cratera.
— Oh, qu’elle y sera mal. Peu confortable!132 E as roupas dela vão ficar
puídas. Como vai obter novas?
O sr. Rochester declarou que não sabia.
— Hmm! — disse ele. — O que você faria, Adèle? Procure em seu cére-
bro um expediente. Uma nuvem branca ou rosa faria um bom vestido,
o que acha? E poderíamos criar um cachecol bonito com um arco-íris.
— Ela está bem melhor do jeito que está agora — concluiu Adèle,
após matutar por um tempo. — Além disso, se cansaria de viver só com
o senhor na lua. Se eu fosse mademoiselle, nunca consentiria em ir com
o senhor.
— Ela consentiu. Deu sua palavra.
— Mas o senhor não pode levá-la para lá. Não existe estrada para a
lua, é tudo ar, e nem você nem ela sabem voar.
— Adèle, veja aquele campo.
Estávamos já fora dos portões de Thornfield, e percorrendo a estra-
da suave até Millcote, onde a terra estava úmida após a tempestade e
as sebes baixas e as árvores imponentes de cada lado reluziam verdes,
refrescadas pela chuva.
— Eu estava caminhando naquele campo, Adèle, no final da tarde,
cerca de duas semanas atrás… a tarde do dia em que você me ajudou a
fazer feno nos campos perto do pomar. Quando cansei de rastelar, sen-
tei-me para descansar na cerca, peguei um caderno e um lápis, e co-
mecei a escrever sobre um infortúnio que me acometeu muito tempo
atrás e meu desejo por dias felizes no futuro. Eu estava escrevendo
muito rápido, embora a luz do dia esmaecesse na página, quando algo
apareceu na estrada e parou a uns dois metros de mim. Ergui os olhos.
Era uma criaturinha com um véu translúcido. Eu a chamei para perto
e logo ela estava ao meu lado. Não falei com ela, e ela não falou comigo,
ao menos em palavras. Mas li os seus olhos e ela leu os meus, e nosso
colóquio mudo resumia-se a isto: ela era uma fada, vinda da terra das
fadas, segundo me disse, e sua tarefa era me fazer feliz. Eu devia sair
do mundo comum com ela e ir a um lugar solitário, como a lua, por
exemplo, e ela apontou a cabeça em direção ao seu crescente, erguen-
do-se sobre a colina de Hay, e me contou da caverna de alabastro e do
vale prateado onde poderíamos morar. Eu disse que gostaria de ir, mas
a lembrei, como você me lembrou, que eu não tinha asas para voar.
“‘Ah’, respondeu a fada, ‘isso não importa! Cá está um talismã que
vai resolver todas as dificuldades’ — e me estendeu um anel dourado
bonito. ‘Coloque-o’, disse ela, ‘no quarto dedo da minha mão esquerda,
e eu serei sua, como você é meu, e vamos deixar a Terra e criar nosso
próprio paraíso longe daqui.’ Ela acenou de novo para a lua. Aquele
anel, Adèle, está no bolso das minhas calças, disfarçado de moeda. Mas
logo pretendo transformá-lo em anel de novo.”
— Mas o que mademoiselle tem a ver com isso? Não ligo para a fada,
o senhor disse que era mademoiselle que iria levar à lua?
— Mademoiselle é uma fada — disse ele, sussurrando com ar de mis-
tério.
Ao que eu disse para ela para não prestar atenção nos gracejos dele;
e ela, de sua parte, revelou uma reserva de genuíno ceticismo francês,
denominando o sr. Rochester de um “un vrai menteur”133 e asseguran-
do-lhe de que não depositava nenhuma fé nos seus “contes de fée” e
que “du reste, il n’y avait pas de fées, et quand même il y en avait”,134 ti-
nha certeza de que elas nunca apareceriam para ele, não lhe dariam
anéis, nem se ofereceriam para morar com ele na lua.
A hora que passamos em Millcote foi bastante incômoda para mim.
O sr. Rochester me obrigou a entrar em uma loja de tecidos finos, e lá
recebi a ordem de escolher meia dúzia de vestidos. Odiei a tarefa e im-
plorei permissão para adiá-la, mas não; precisava ser feito naquele dia.
Após súplicas expressadas em sussurros enérgicos, reduzi a meia dúzia
a dois: esses, porém, ele jurou que selecionaria pessoalmente. Com an-
siedade, observei seu olhar percorrer os tecidos coloridos até pousar
em uma seda fina de um tom ametista brilhante e em um magnífico
cetim rosa. Com uma nova série de sussurros, eu lhe disse que ele po-
deria muito bem me comprar um vestido de ouro e uma touca de prata
de uma vez. Certamente nunca vestiria o que ele escolhesse. Com infi-
nita dificuldade, pois ele era teimoso como uma pedra, eu o persuadi a
trocá-los por cetim preto sóbrio e seda cinza-perolada. Serviria por
enquanto, disse ele, mas ainda me veria cintilando como um canteiro
florido.
Fiquei feliz ao tirá-lo da loja e depois de uma joalheria — quanto
mais coisas ele comprava para mim, mais meu rosto ardia com um
senso de irritação e degradação. Quando subimos de novo na carrua-
gem e eu me recostei, febril e exausta, lembrei-me de algo que, na
pressa dos acontecimentos, tanto sombrios como felizes, eu tinha es-
quecido completamente — a carta do meu tio, John Eyre, para a sra.
Reed, expressando sua intenção de me adotar e me tornar sua herdei-
ra. Seria de fato um alívio, pensei, se eu tivesse mesmo uma pequena for-
tuna independente; não suporto ser vestida como uma boneca pelo sr.
Rochester ou sentar-me como uma segunda Dânae com uma chuva de
ouro caindo diariamente ao meu redor.135 Vou escrever uma carta para
Madeira assim que chegar em casa e dizer ao meu tio John que vou me
casar, e com quem, e se eu tiver mesmo a perspectiva de um dia trazer ao
sr. Rochester alguma fortuna, seria mais suportável ser sustentada por
ele agora. Um tanto aliviada por essa ideia (que não deixei de executar
no mesmo dia), eu me arrisquei novamente a encontrar o olhar do
meu amado patrão, que tenazmente procurava o meu, embora eu ti-
vesse virado o rosto. Ele sorriu, e pensei que o seu sorriso era como o
que um sultão, em um momento de êxtase e afeição, concederia a uma
escrava que seu ouro e joias tinham embelezado. Apertei vigorosa-
mente a mão dele, que sempre estava buscando a minha, e a empurrei
de volta, vermelha após o aperto passional…
— Não faça essa cara — eu disse. — Se fizer, eu não usarei nada até o
altar exceto meus velhos vestidos de Lowood. Vou me casar de algodão
lilás, e o senhor pode fazer um roupão para si mesmo com a seda cin-
za-perolada e uma série infinita de coletes com o cetim preto.
Ele riu e esfregou as mãos.
— Ah, como é delicioso vê-la e ouvi-la! — exclamou. — Ela não é ori-
ginal? Não é atrevida? Eu não trocaria esta moça inglesa por todo o ha-
rém do grande sultão; com olhos de gazela, silhuetas de huri136 e tudo
o mais!
A alusão oriental irritou-me de novo.
— Eu não vou servir o senhor como um harém, nem um pouco — eu
disse —, então não me considere equivalente a um. Se deseja algo nessa
linha, senhor, siga sem demora para os bazares de Istambul, e compre
escravas com um pouco daquela fortuna que o senhor parece não sa-
ber como gastar satisfatoriamente aqui.
— E o que você fará, Janet, enquanto estou barganhando por tonela-
das de carne e uma variedade de olhos pretos?
— Vou me preparar para partir como missionária para pregar a li-
berdade aos escravizados, entre eles as residentes do seu harém. Serei
admitida lá e instigarei um motim, e o senhor, paxá de três caudas,137
vai se encontrar triplamente acorrentado em nossas mãos. Da minha
parte, não vou consentir em cortar suas amarras até o senhor ter assi-
nado o estatuto mais liberal que qualquer déspota já conferiu.
— Eu consentiria em estar à sua mercê, Jane.
— Eu não seria misericordiosa, sr. Rochester, se o senhor suplicasse
com essa expressão. Enquanto tivesse esse olhar, eu teria certeza de
que, assim que fosse liberto, violaria as condições de qualquer estatuto
que pudesse outorgar sob coerção.
— Ora, Jane, e o que quer de mim? Receio que vá me obrigar a reali-
zar uma cerimônia de casamento particular, além da realizada no altar.
Vejo que vai estipular regras peculiares. Quais serão elas?
— Só quero ter a mente tranquila, senhor, sem ser esmagada por
obrigações sem fim. Lembra-se do que disse de Céline Varens? Dos di-
amantes e caxemiras que lhe deu? Não quero ser sua Céline Varens in-
glesa. Vou continuar agindo como a preceptora de Adèle, e com isso
merecer moradia e sustento, além de trinta libras por ano. Vou montar
meu próprio enxoval com esse dinheiro, e o senhor não me dará nada
exceto…
— Exceto o quê?
— Sua estima. E se eu lhe der a minha em retorno, a dívida estará
quitada.
— Bem, em termos de insolência fria e natural e puro orgulho inato,
ninguém chega aos seus pés — disse ele.
Estávamos nos aproximando de Thornfield.
— Faria a gentileza de jantar comigo esta noite? — perguntou ele
quando cruzamos novamente os portões.
— Não, obrigada, senhor.
— E posso perguntar por que “não, obrigada”?
— Eu nunca jantei com o senhor e não vejo motivo para fazer isso
agora, até…
— Até o quê? Você adora uma frase inacabada.
— Até não poder evitar.
— E acha que eu me alimento tal qual um ogro ou demônio, para te-
mer ser minha companhia de refeição?
— Não tenho nenhuma suposição quanto ao assunto, senhor, mas,
por mais um mês, quero continuar agindo como sempre.
— Você vai largar essa servidão de preceptora imediatamente.
— Ora! Com o seu perdão, senhor, não vou. Continuarei como sem-
pre fui. Vou me manter afastada do senhor o dia todo, como estou
acostumada a fazer. O senhor pode me chamar à noite, quando estiver
disposto a me ver, e eu irei então, mas em nenhum outro momento.
— Quero um charuto, Jane, ou uma pitada de rapé, para me consolar
após tudo isso. “Pour me donner une contenance”,138 como Adèle diria.
E infelizmente não trouxe nem meu estojo de charutos, nem minha
caixa de rapé. Mas escute… atenção, é a sua vez agora, pequena tirana,
mas logo será a minha, e quando eu a tiver tomado de forma justa, pa-
ra possuir e manter, irei apenas, falando de modo figurado, afixá-la a
uma corrente como esta. — E ele tocou na corrente do relógio. — Sim,
minha menina, eu a levarei junto ao peito, para não arriscar perder
minha joia.
Ele disse isso ao me ajudar a descer da carruagem e, enquanto ele
erguia Adèle em seguida, eu entrei na casa e subi para meus aposentos
como de costume.
Naquela noite, como esperado, ele me convocou à sua presença. Eu
tinha preparado uma ocupação para ele, pois estava determinada a
não passar o tempo todo em uma conversa a dois. Recordava-me de
sua bela voz e sabia que ele gostava de cantar — como é o caso, em ge-
ral, com bons cantores. Eu mesma não cantava bem e, segundo seus
exigentes critérios, também não tocava bem, mas me comprazia em
ouvir quando a apresentação era boa. Assim que o crepúsculo, aquela
hora romântica, começou a abaixar seu estandarte azul e estrelado so-
bre a janela treliçada, eu me ergui, abri o piano e pedi a ele, pelo amor
dos céus, que cantasse para mim. Ele disse que eu era uma bruxa ca-
prichosa e que preferiria cantar em outra hora, mas afirmei que não
havia hora tão boa quanto o presente.
— Gosta da minha voz? — perguntou ele.
— Muito.
Eu não gostava de lisonjear sua vaidade suscetível, mas pela primei-
ra vez, e por motivos de conveniência, decidi afagá-la e estimulá-la.
— Então, Jane, você deve tocar o acompanhamento.
— Muito bem, senhor, vou tentar.
Tentei, mas logo fui empurrada do banco e chamada de “pequeno
desastre”. Após me empurrar sem cerimônias para o lado — que era
precisamente o que eu desejava —, ele usurpou meu lugar e passou a
acompanhar a si mesmo, pois tocava além de cantar. Eu me retirei ao
assento da janela e, enquanto fiquei sentada lá olhando para as árvores
imóveis e o jardim escuro, a um doce ar a seguinte canção foi entoada
em um tom melodioso:
125. Uma das fadas de Titânia em Sonho de uma noite de verão (1595), de
Shakespeare.
↵
126. Na mitologia grega, Hércules torna-se escravo da rainha Ônfale. Na Bí-
blia, Sansão morre após revelar o segredo de sua força a Dalila (Juízes
16).
↵
127. Alusão a Vida e morte do rei João (1623), de Shakespeare, ato IV, cena 2
(tradução de Carlos A. Nunes).
↵
128. Em Ester 7, o rei persa Assuero se ofereceu para atender a um requeri-
mento de sua esposa Ester, “até metade do seu reino”. Ela pede que ele
poupe o seu povo judeu do massacre que estava sendo planejado pelo
conselheiro real Hamã.
↵
129. Alusão ao poema “The Demoniac”, de Thomas Aird (1802–1876).
↵
130. Alusão a Hamlet, ato III, cena 4: “Não aplique em tua alma esse óleo far-
sante, / Que ressalta meu desatino e oculta o teu erro” (tradução de Bru-
na Beber).
↵
131. “Sem a senhorita.”
↵
132. “Ah, isso seria ruim para ela. Que desconfortável!”
↵
133. “Um verdadeiro mentiroso.”
↵
134. “Contos de fadas” […] “Além disso, fadas não existiam, e mesmo se exis-
tissem”.
↵
135. Na mitologia grega, Zeus se transforma em uma chuva de ouro para cair
no colo da princesa Dânae.
↵
136. De acordo com a fé islâmica, designação das virgens prometidas ao mu-
çulmano após a morte.
↵
137. Paxá era um título de oficiais no Império Otomano, cujo emblema de cau-
da de cavalo indicava sua patente. A mais alta tinha como emblema um
cavalo de três caudas.
↵
138. “Para recobrar a compostura.”
↵
139. Prática hindu em que a viúva se lança na pira funeral do marido.
↵
140. Termo cunhado por Alexandre Pope em 1727, a partir da palavra grega pa-
ra bathys (“profundidade”), designa um texto que falha em expressar sen-
timentos apaixonados, elevados ou sublimes, seja pelo tratamento eleva-
do dado a assuntos banais, seja pelo sentimentalismo exagerado que bei-
ra o ridículo.
↵
Capítulo XXV
141. Referência ao poema “The Lay of the Last Minstrel” [A balada do último
menestrel] (1805), de Sir Walter Scott, em que tal som prenuncia uma
tempestade.
↵
Capítulo XXVI
S
ophie veio me vestir às sete e levou muito tempo para cumprir
sua tarefa; tanto que o sr. Rochester, suponho que impaciente
com o atraso, mandou perguntarem por que eu não tinha des-
cido ainda. Ela estava acabando de prender meu véu (um quadrado
simples de seda rendada, no fim das contas) com um broche, e fugi
correndo de suas mãos assim que pude.
— Espere! — gritou ela em francês. — Se olhe no espelho. A senhorita
não deu nem uma olhada.
Então eu me virei na porta. Vi uma figura de vestido e véu tão dife-
rente do meu eu usual que quase parecia o reflexo de uma desconheci-
da.
— Jane! — chamou uma voz, e eu desci às pressas.
Fui recebida aos pés da escada pelo sr. Rochester.
— Está atrasada! — disse ele. — Meu cérebro ferve de impaciência e
você se demora!
Ele me levou à sala de jantar, examinou-me da cabeça aos pés, pro-
nunciou-me “bela como um lírio, e não só o orgulho da vida dele, mas
o desejo de seus olhos”, e em seguida, dizendo que me daria apenas dez
minutos para tomar o café da manhã, tocou a sineta. Um dos lacaios
recém-contratados respondeu ao chamado.
— John está preparando a carruagem?
— Sim, senhor.
— A bagagem foi trazida?
— Estão trazendo, senhor.
— Vá à igreja. Veja se o sacerdote Wood e o secretário estão lá. Volte e
me informe.
A igreja, como o leitor sabe, ficava logo além dos portões, e o lacaio
retornou sem demora.
— O sr. Wood está na sacristia, senhor, vestindo a sobrepeliz.
— E a carruagem?
— Os cavalos estão sendo atrelados.
— Não precisaremos dela para ir à igreja, mas deve estar pronta no
momento em que retornarmos, com todas as caixas e a bagagem arru-
madas e presas e o cocheiro a postos.
— Sim, senhor.
— Jane, está pronta?
Eu me ergui. Não havia padrinhos, damas de honra, nem parentes
para esperar ou conduzir — ninguém exceto eu e o sr. Rochester. A sra.
Fairfax esperava no saguão quando passamos. Eu teria gostado de falar
com ela, mas minha mão era mantida em um aperto de ferro, e fui pu-
xada depressa a um ritmo que mal conseguia acompanhar. Fitar o ros-
to do sr. Rochester era sentir que nem um segundo de atraso seria tole-
rado por qualquer motivo. Eu me pergunto se algum outro noivo já te-
ve o aspecto que ele tinha então — tão concentrado em seu objetivo, tão
sombriamente resoluto —, ou se alguém, sob tais sobrancelhas obstina-
das, jamais revelou olhos tão flamejantes e incandescentes.
Não sei se o dia estava bonito ou feio; ao descer pela entrada de car-
ruagens, não olhei nem para o céu, nem para a terra. Meu coração es-
tava nos olhos, e ambos pareciam ter migrado para o corpo do sr. Ro-
chester. Eu queria ver a coisa invisível à qual, conforme seguíamos, ele
parecia voltar um olhar feroz e letal. Queria sentir os pensamentos cu-
ja força ele parecia confrontar e suportar.
Ele parou na cancela do adro da igreja, descobrindo que eu estava
sem fôlego.
— Sou cruel em meu amor? — perguntou. — Espere um instante e
apoie-se em mim, Jane.
Agora ainda consigo evocar a imagem da velha casa cinzenta de
Deus erguendo-se tranquila à minha frente, de uma gralha dando vol-
tas ao redor do campanário, do céu matinal avermelhado além. Lem-
bro-me um pouco, também, dos túmulos cobertos de vegetação rastei-
ra, e não me esqueci de duas figuras desconhecidas que vagavam entre
as colinas baixas e liam as inscrições gravadas nas poucas lápides co-
bertas de musgo. Notei-os porque, quando nos viram, se dirigiram aos
fundos da igreja, e tive certeza de que entrariam pela porta lateral e
assistiriam à cerimônia. O sr. Rochester não reparou; ficava ansiosa-
mente olhando para o meu rosto, do qual o sangue, arrisco dizer, havia
momentaneamente se esvaído, pois senti minha fronte orvalhada e mi-
nhas faces e lábios frios. Quando me recobrei, o que logo fiz, ele me
acompanhou gentilmente até o vestíbulo.
Entramos no silencioso e humilde templo; o sacerdote, vestindo a
sobrepeliz branca, esperava no altar, ao lado do secretário. Tudo estava
imóvel — apenas duas sombras se moviam em um canto. Minha con-
jectura estivera correta: os desconhecidos tinham entrado discreta-
mente e agora estavam parados junto à cripta dos Rochester, de costas
para nós, olhando através das grades a tumba de mármore manchada
pelo tempo, onde um anjo ajoelhado guardava os restos mortais de Da-
mer de Rochester, morto em Marston Moor142 na época das terríveis
guerras civis, e de sua esposa, Elizabeth.
Assumimos nosso lugar no gradil de comunhão. Ouvindo passos
cautelosos atrás de mim, olhei por cima do ombro. Um dos desconhe-
cidos — evidentemente um cavalheiro — estava avançando até a capela.
A cerimônia teve início. Apresentou-se a intenção do matrimônio e en-
tão o sacerdote deu um passo à frente e, curvando-se um pouco em di-
reção ao sr. Rochester, continuou:
— Demando e exijo de ambos (e respondereis no terrível dia do juízo
final, quando os segredos de todos os corações serão revelados) que, se
um dos dois souber de qualquer impedimento pelo qual não possam
ser legalmente unidos em matrimônio, o confesse agora, pois sabei que
aqueles que forem unidos sem conformidade com a palavra de Deus
não estarão unidos por Deus, tampouco seu matrimônio será legal.
Ele fez uma pausa, como é o costume. Alguma vez a pausa após essa
fala chega a ser interrompida por uma resposta? Talvez nem sequer
uma a cada cem anos. E o sacerdote, que não tinha erguido os olhos do
seu livro e segurou o fôlego apenas por um momento, já estava prosse-
guindo. Sua mão já estava esticada em direção ao sr. Rochester, seus lá-
bios entreabriam-se para perguntar “Aceita esta mulher como sua es-
posa?”, quando uma voz nítida e próxima disse:
— O casamento não pode prosseguir. Eu declaro a existência de um
impedimento.
O sacerdote, mudo, ergueu os olhos para o falante; o secretário fez o
mesmo; e o sr. Rochester oscilou de leve, como se um terremoto tivesse
passado sob seus pés. Recuperando o equilíbrio, e sem virar a cabeça
ou os olhos, ele disse:
— Prossiga.
Um silêncio profundo caiu após ele proferir essa palavra, com um
tom grave mas baixo. O sr. Wood disse:
— Não posso prosseguir sem investigar o que foi afirmado e receber
provas da verdade ou falsidade da alegação.
— A cerimônia está encerrada — afirmou a voz atrás de nós. — Tenho
condições de provar minha alegação. Existe um impedimento insupe-
rável a esse casamento.
O sr. Rochester ouviu, mas pareceu não se importar. Continuou tei-
moso e rígido, sem fazer qualquer movimento exceto agarrar a minha
mão. Que aperto quente e forte ele tinha! E como sua fronte larga, páli-
da e firme parecia com mármore naquele momento! Como seu olhar
cintilava, ainda vigilante, mas por baixo desvairado!
O sr. Wood parecia perplexo.
— Qual é a natureza do impedimento? — perguntou ele. — Talvez
possa ser resolvido? Explicado?
— Dificilmente — foi a resposta. — Eu não o chamei de insuperável de
forma leviana.
O falante avançou e se debruçou no gradil. Continuou, proferindo
cada palavra distintamente, com calma e firmeza, mas não alto:
— Simplesmente consiste na existência de um casamento anterior. O
sr. Rochester possui uma esposa ainda viva.
Meus nervos vibraram a essas palavras baixas como nunca fizeram
ao som de trovão — meu sangue sentiu sua violência sutil como nunca
sentira geada ou fogo. Porém, eu estava calma e não corria risco de
desfalecer. Olhei para o sr. Rochester; fiz com que ele olhasse para
mim. Todo seu rosto era uma rocha sem cor. Seu olhar era ao mesmo
tempo a faísca e a pederneira. Ele não negou nada — parecia pronto a
desafiar todas as coisas. Sem falar, sem sorrir, sem parecer reconhecer
em mim um ser humano, apenas abraçou minha cintura com o braço e
me puxou para junto de si.
142. Batalha de 1644 durante a Guerra Civil Inglesa na qual o ancestral de Ro-
chester teria morrido do lado dos monarquistas contra os parlamentaris-
tas vitoriosos.
↵
143. Referência a Isaías 66:24, trecho que descreve o tormento dos infiéis
após a morte.
↵
144. Citação de Mateus 7:2.
↵
145. Referência a Êxodo 12:29-30, em que os primogênitos egípcios foram
massacrados.
↵
146. Salmos 22:11.
↵
147. Salmos 69:1-2.
↵
Capítulo XXVII
E
m certo momento naquela tarde, ergui a cabeça e, ao olhar ao
redor e ver o sol dourando a parede com seu declínio ao oes-
te, perguntei-me: O que hei de fazer?
A resposta que minha mente forneceu — deixar Thornfield agora
mesmo — foi tão imediata, tão terrível, que cobri os ouvidos. Disse a
mim mesma que não poderia suportar tais palavras no momento. Que
eu não seja a noiva de Edward Rochester é o menor dos meus sofrimen-
tos, argumentei. Que eu tenha despertado dos sonhos mais gloriosos, e
os descoberto todos vazios e vãos é um horror que posso suportar e do-
minar; mas que o deva deixar, imediata e para sempre, é intolerável.
Não sou capaz disso.
Mas uma voz dentro de mim assegurou-me de que seria capaz, e
previu que o faria. Lutei contra minha própria resolução: queria ser
fraca para evitar o terrível caminho de maiores sofrimentos que via à
minha frente, e a Consciência, transformada em tirano, segurou a Pai-
xão pelo pescoço e disse-lhe, provocadora, que ela tinha só mergulha-
do o pezinho delicado na lama, jurando que com seu braço de ferro a
empurraria nas profundezas insondáveis da agonia.
— Que me tirem daqui, então! — exclamei. — Que alguém me ajude!
— Não; você vai se retirar sozinha, ninguém vai ajudá-la. Você mes-
ma vai arrancar seu olho direito; você mesma cortará sua mão direita;
seu coração será a vítima, e você, a sacerdote, o trespassará.148
Levantei-me de repente, aterrorizada com a solidão que um juiz tão
implacável assombrava — com o silêncio que uma voz tão terrível
preenchia. Fiquei tonta quando me ergui. Percebi que estava fraca de
choque e inanição: nem carne nem bebida tinha passado pela minha
boca naquele dia, pois eu não tomara café da manhã. Com uma dor
estranha, refleti que, enquanto eu ficara trancada ali, nenhuma men-
sagem fora enviada para perguntar como eu estava, nem para me
convidar a descer. Nem a pequena Adèle tinha batido na porta, tam-
pouco a sra. Fairfax me procurara.
— Amigos sempre esquecem aqueles a quem a Fortuna abandona —
murmurei enquanto puxava a tranca e saía no corredor.
Tropecei em um obstáculo; ainda estava atordoada, de visão turva e
membros fracos. Não consegui me recuperar de imediato. Caí, mas
não cheguei ao chão; um braço estendido me pegou. Ergui os olhos e
vi que era sustentada pelo sr. Rochester, que estava sentado em uma
cadeira na frente da porta do meu quarto.
— Finalmente saiu — disse ele. — Bem, eu a esperei por muito tem-
po, tentando escutar, mas não ouvi um movimento ou soluço sequer.
Mais cinco minutos de silêncio mortal e eu teria arrombado a fecha-
dura como um assaltante. Então me evita? Tranca-se e sofre sozinha!
Eu preferiria que tivesse vindo me repreender com veemência. Você é
passional; eu esperei algum tipo de escândalo. Estava preparado para
uma chuva quente de lágrimas, queria apenas que fossem vertidas no
meu peito. Agora um chão insensível ou seu lenço encharcado as rece-
beu. Mas não… você não chorou nada! Vejo uma face pálida e um
olhar turvo, mas nenhum sinal de lágrimas. Suponho, então, que seu
coração tem chorado sangue.
“Ora, Jane, nenhuma palavra de censura? Nada amargo, nada pun-
gente? Nada para dilacerar os sentimentos ou golpear as emoções?
Você senta-se em silêncio onde a coloquei e me fita com um olhar
exausto e passivo.
“Jane, eu nunca quis feri-la. Um homem que tivesse apenas uma
cordeirinha que lhe era querida como uma filha, que comia do seu
pão, bebia da sua xícara e deitava-se em seu peito, e por algum equí-
voco a tivesse abatido, não teria se arrependido do seu erro sangrento
mais do que eu agora me arrependo do meu.149 Algum dia irá me per-
doar?”
Leitor! Eu o perdoei ali mesmo, no ato. Havia um remorso tão pro-
fundo em seu olhar e tanta compaixão em seu tom, uma energia tão
masculina em seus modos; além disso, o amor parecia tão inalterado
em todo o seu aspecto e semblante, que lhe perdoei por tudo — mas
não em palavras, não externamente, só no fundo do coração.
— Sabia que sou um patife, Jane? — ele perguntou pouco depois,
com tristeza, e surpreso, imagino, com o meu silêncio e docilidade,
consequência mais da fraqueza do que da minha vontade.
— Sim, senhor.
— Então me diga isso, direta e cruelmente. Não me poupe.
— Não posso. Estou cansada e fraca. Preciso de um pouco de água.
Ele soltou um suspiro trêmulo e, tomando-me no colo, me carregou
escada abaixo. A princípio eu não vi a qual cômodo me levara, pois
tudo estava anuviado a meus olhos vidrados, mas em pouco tempo
senti o calor revigorante do fogo, pois, embora fosse verão, eu ficara
enregelada no quarto. Ele levou vinho aos meus lábios; eu o provei e
revivi um pouco, depois comi algo que ele me ofereceu, e logo estava
recobrada. Eu estava na biblioteca, sentada na poltrona do sr. Roches-
ter, e ele mantinha-se muito perto. Se eu pudesse deixar a vida agora,
sem uma dor muito aguda, ficaria feliz, pensei. Então não precisaria
fazer o esforço de estraçalhar meu coração ao separá-lo do coração do
sr. Rochester. Parece que preciso deixá-lo. Mas não quero deixá-lo. Não
posso deixá-lo.
— Como se sente agora, Jane?
— Muito melhor, senhor. Logo estarei bem.
— Tome mais um gole de vinho, Jane.
Obedeci. Ele pôs a taça na mesa, parou à minha frente e me exami-
nou atentamente. De repente, se virou com uma exclamação inarticu-
lada, transbordando de alguma emoção intensa, atravessou a sala de-
pressa e depois voltou. Inclinou-se em minha direção como que para
me beijar, mas eu lembrei que carícias eram proibidas. Virei o rosto e
afastei o dele.
— Quê? Como? — exclamou ele com urgência. — Ah, entendi! Você
não beijará o marido de Bertha Mason? Considera meus braços cheios
e meus abraços já reivindicados?
— De qualquer forma, senhor, não há espaço para mim, e não tenho
direito a eles.
— Por quê, Jane? Vou poupar-lhe o trabalho de falar muito e res-
ponder por você: porque já tenho uma esposa, você responderia. Adi-
vinhei?
— Sim.
— Se pensa assim, deve ter uma opinião estranha de mim. Deve me
considerar um conspirador dissoluto, um libertino vil e baixo que si-
mulou um amor desinteressado a fim de atraí-la para uma armadilha
deliberada, privá-la da sua honra e roubar o seu respeito próprio. O
que diz a isso? Vejo que nada. Em primeiro lugar, ainda está fraca e já
é um esforço puxar o ar; em segundo lugar, ainda não está acostuma-
da a me acusar e insultar. Além disso, as comportas das lágrimas estão
abertas e elas jorrariam se você falasse muito, e você não tem vontade
de protestar, repreender, fazer um escândalo. Está pensando em como
agir. Falar, você julga inútil. Eu conheço você. Estou alerta.
— Não desejo agir contra o senhor — eu disse, e minha voz instável
alertou-me para encurtar a frase.
— Não no seu sentido da palavra, mas, no meu, você está tramando
para me destruir. Praticamente me disse que eu sou um homem casa-
do. Como um homem casado, vai me rejeitar e manter-se longe de
mim; agora mesmo recusou-se a me beijar. Você pretende se tornar
uma completa desconhecida para mim e viver sob esse teto apenas
como a preceptora de Adèle. Se um dia eu lhe disser uma palavra
amistosa, se um sentimento amistoso a inclinar em minha direção de
novo, você dirá: Esse homem quase me tornou sua amante, eu devo ser
como gelo e rocha para ele, e gelo e rocha você se tornará.
Pigarreei e firmei a voz para responder.
— Tudo mudou ao meu redor, senhor, então eu também devo mu-
dar. Não há dúvida quanto a isso. E para evitar flutuações de senti-
mento e combates contínuos com lembranças e associações, só há um
jeito: Adèle deve ter uma nova preceptora.
— Ah, Adèle vai para a escola, eu já decidi. Tampouco pretendo
atormentá-la com as associações e recordações medonhas de Thornfi-
eld Hall, este lugar amaldiçoado, esta tenda de Acã,150 esta cripta in-
solente que oferece a palidez fantasmagórica da morte viva ao céu
aberto… este inferno de pedra estreito, com um único demônio verda-
deiro, pior do que uma legião de demônios imaginários. Jane, você
não vai ficar aqui, nem eu. Foi errado trazê-la a Thornfield Hall, sa-
bendo que o lugar estava assombrado. Antes mesmo de a ter visto, dei
ordens aos outros para que escondessem de você tudo sobre a maldi-
ção deste lugar, apenas porque temia que Adèle nunca conseguiria
manter uma preceptora que soubesse com quem compartilhava a ca-
sa, e meus planos não me permitiriam transferir a maníaca para ou-
tro lugar… embora eu tenha uma velha casa, Ferndean Manor, ainda
mais isolada e escondida que esta, onde a poderia ter alojado com
bastante segurança; isto é, se ressalvas sobre a insalubridade do local,
no coração de um bosque, não fizessem minha consciência recuar
desse expediente. Provavelmente aquelas paredes úmidas logo teriam
me aliviado dessa responsabilidade, mas a cada vilão cabe o seu vício,
e o meu não é uma tendência a assassinato indireto, mesmo daquilo
que mais odeio.
“Esconder de você a proximidade da louca, porém, foi um pouco
como embrulhar uma criança com uma capa e deitá-la perto da árvo-
re mortífera:151 os arredores daquele demônio estão envenenados e
sempre estarão. Mas eu vou fechar Thornfield Hall. Vou pregar a por-
ta e cobrir as janelas de baixo com tábuas; darei à sra. Poole duzentas
libras por ano para morar aqui com a minha esposa, como você chama
aquela bruxa terrível. Grace aceitará fazer muito por dinheiro e pode
pedir ao filho, o capataz do asilo Grimsby, que lhe faça companhia e
fique por perto para ajudá-la com os paroxismos da minha esposa
quando ela for incitada pelo seu espírito maléfico a queimar pessoas
na cama de noite, esfaqueá-las, morder a carne dos seus ossos e aí por
diante…”
— Sr. Rochester — eu o interrompi. — O senhor é inexorável com
aquela dama infeliz. Fala dela com ódio… com uma aversão vingativa.
É cruel. A loucura não é culpa dela.
— Jane, minha querida menina (assim a chamarei, pois o é), você
não sabe do que fala, me interpreta mal outra vez. Não é porque ela é
louca que eu a odeio. Se você fosse louca, acha que eu a odiaria?
— Creio que sim, senhor.
— Então está enganada e não sabe nada de mim ou do tipo de amor
do qual sou capaz. Cada átomo da sua carne é tão querido para mim
quanto a minha própria: na dor e na doença, ainda me seriam caros.
Sua mente é o meu tesouro e, se ela se quebrasse, ainda o seria: se vo-
cê esbravejasse, meus braços a confinariam em vez de uma camisa de
força. Seus ataques, mesmo furiosos, teriam charme para mim. Se vo-
cê saltasse sobre mim tão ensandecida quanto aquela mulher esta ma-
nhã, eu a receberia em um abraço no mínimo tão afetuoso quanto res-
tritivo. Não recuaria de você com asco como fiz com ela. Em seus mo-
mentos de tranquilidade, você não teria outro guardião e enfermeiro,
e eu a vigiaria com ternura incansável, ainda que você não abrisse um
sorriso em retorno, e eu nunca me cansaria de olhar nos seus olhos,
ainda que eles não brilhassem mais com qualquer luz de reconheci-
mento por mim. Mas por que sigo essa linha de pensamento? Eu esta-
va falando de tirar você de Thornfield. Está tudo preparado, você sa-
be, para uma partida imediata. Você irá amanhã. Só peço que tolere
mais uma noite sob este teto, Jane, e então dirá adeus aos pesares e
terrores deste lugar para sempre! Eu tenho um lugar aonde ir, um
santuário que ficará a salvo de reminiscências odiosas ou intrusões
indesejadas. Mesmo da mentira e da difamação.
— Leve Adèle com o senhor — interrompi. — Ela lhe fará compa-
nhia.
— Como assim, Jane? Eu lhe disse que enviaria Adèle à escola. E o
que faria com uma criança como companhia? Uma menina que nem é
minha própria filha, mas a bastarda de uma dançarina francesa. Por
que me importuna sobre ela? Repito: por que me designa Adèle como
companheira?
— O senhor falou de isolamento, e isolamento e solidão são monóto-
nos. Monótonos demais para o senhor.
— Solidão! Solidão! — reiterou ele, irritado. — Vejo que devo me ex-
plicar. Não entendo a expressão de esfinge que está se formando em
seu semblante. Você vai partilhar da minha solidão. Compreende?
Eu balancei a cabeça — exigiu um grau de coragem, dado que ele es-
tava ficando exaltado, arriscar até mesmo esse sinal mudo de discor-
dância. Ele vinha andando rápido ao redor do cômodo e parou, como
se subitamente enraizado, e lançou para mim um olhar longo e duro.
Virei os olhos e os fixei no fogo, tentando manter-me silenciosa e
tranquila.
— Eis que surge o empecilho no caráter de Jane — disse ele por fim,
falando com mais calma do que eu tinha esperado pelo seu olhar. — O
carretel de seda correu suavemente até agora, mas eu sempre soube
que chegaríamos a um nó e um dilema. E cá está. Lá vamos nós à irri-
tação e exasperação e problemas infinitos! Por Deus! Queria ter uma
fração da força de Sansão e romper o fio da estopa que se seguirá!152
Ele voltou a andar, mas logo parou, dessa vez à minha frente.
— Jane! Não vai ouvir argumentos racionais? — Ele se curvou e
aproximou a boca do meu ouvido. — Porque, se não ouvir, eu tentarei
violência.
Sua voz estava rouca; seu olhar era o de um homem prestes a rom-
per amarras insuportáveis e mergulhar de cabeça na licenciosidade
desenfreada. Vi que, dali a um momento, após outro ímpeto frenético,
eu não seria capaz de fazer nada com ele. O presente, o segundo que
se passava naquele momento, era tudo que eu tinha para tentar con-
trolá-lo e restringi-lo. Um movimento de repulsa, evitação ou medo
teria selado minha ruína — e a dele. Mas não tive medo, nem um pou-
co. Percebi um poder interno, uma sensação de influência que me sus-
tentou. A crise era perigosa, mas tinha certo encanto: tal como sente o
indiano, talvez, quando desliza sobre as corredeiras em sua canoa. To-
mei o punho fechado dele, abri os dedos apertados e disse, apazigua-
dora:
— Sente-se. Eu falarei com o senhor o quanto quiser e ouvirei tudo
que tenha a dizer, seja racional ou irracional.
Ele sentou-se, mas não começou a falar imediatamente. Eu vinha
lutando com as lágrimas por algum tempo; tinha me esforçado muito
para reprimi-las porque sabia que ele não gostaria de me ver chorar.
No momento, porém, considerei que podia deixá-las fluir livremente
e por quanto tempo quisessem. Se a enchente o irritasse, ainda me-
lhor. Então eu cedi e chorei copiosamente.
Logo o ouvi me implorar, ansioso, para ficar calma. Respondi que
não conseguiria enquanto ele estivesse tão exaltado.
— Mas eu não estou bravo, Jane. Só a amo demais, e você tinha en-
durecido seu rostinho pálido com um olhar tão resoluto e congelado
que eu não aguentei. Agora acalme-se e enxugue os olhos.
A voz suavizada anunciou que ele estava contido, então me acalmei
também. Em seguida, ele tentou repousar a cabeça no meu ombro,
mas não permiti — depois ele me puxaria para junto de si. Não.
— Jane! Jane! — exclamou ele, em um tom de tristeza amarga que
fez vibrar todos os meus nervos. — Você não me ama, então? Só valo-
rizava minha posição e o título de esposa? Agora que me acha desqua-
lificado para me tornar seu marido, recua do meu toque como se eu
fosse um sapo ou um símio!
As palavras me feriram, mas o que eu poderia fazer ou dizer? Pro-
vavelmente não deveria fazer nem dizer nada, mas estava tão tortura-
da de remorso por ter magoado os sentimentos dele que não controlei
o desejo de aplicar um bálsamo na ferida que infligira.
— Eu amo o senhor, sim. Mais do que nunca. Mas não devo demons-
trá-lo, nem entregar-me ao sentimento, e esta é a última vez que devo
expressá-lo.
— A última vez, Jane? Como assim? Acha que pode viver comigo e
me ver todos os dias e, se ainda me ama, ser sempre fria e distante?
— Não, senhor, isso eu tenho certeza de que não consigo fazer. Vejo
portanto que só há uma saída, mas o senhor ficará furioso se eu men-
cioná-la.
— Ah, mencione! Se eu me enfurecer, você sempre tem a arte do
choro.
— Sr. Rochester, eu devo deixá-lo.
— Por quanto tempo, Jane? Por alguns minutos, enquanto alisa o ca-
belo, que está um pouco desgrenhado, e lava o rosto, que parece fe-
bril?
— Eu devo deixar Adèle e Thornfield. Devo separar-me do senhor
pelo resto da vida. Devo começar uma nova existência entre rostos e
paisagens desconhecidas.
— É claro, eu disse que deveria mesmo. Vou ignorar essa loucura so-
bre separar-se de mim. Você quer dizer que deve se tornar uma parte
de mim. Quanto à nova existência, não há problema algum: você ain-
da será minha esposa. Eu não sou casado. Você será a sra. Rochester,
no nome e na prática. Terei apenas você como companhia enquanto
nós dois vivermos. Você irá a um lugar que tenho no sul da França,
em uma vila caiada de branco na costa do Mediterrâneo. Lá vai viver
uma vida feliz e protegida e inocente. Não tema que eu queira induzi-
la ao erro ou torná-la minha amante. Por que balança a cabeça? Jane,
você precisa ser razoável, senão ficarei frenético de novo.
A voz e a mão dele tremeram, suas grandes narinas se dilataram,
seu olhar ardia. Ainda assim, ousei falar:
— Senhor, sua esposa está viva. Esse é um fato comprovado que o
senhor mesmo reconheceu. Se eu vivesse com o senhor, como deseja,
seria sua amante. Dizer o contrário é uma falácia. É falso.
— Jane, eu não sou um homem de temperamento gentil, você está
se esquecendo. Não sou paciente, não sou frio, nem impassível. Tenha
misericórdia de mim e de si mesma, encoste o dedo no meu pulso, ve-
ja como palpita e… tome cuidado!
Ele expôs o pulso e o estendeu a mim. O sangue fugia de suas faces
e lábios, deixando-os lívidos. Todas as opções me afligiam. Agitá-lo
tão profundamente, com uma resistência que ele abominava tanto, era
cruel, mas ceder estava fora de cogitação. Fiz o que os seres humanos
fazem instintivamente quando levados aos extremos: busquei ajuda
em alguém maior que o homem. As palavras “Deus me ajude!” esca-
param involuntariamente dos meus lábios.
— Eu sou um tolo! — exclamou o sr. Rochester de repente. — Fico di-
zendo a ela que não sou casado e não explico por quê. Esqueço que ela
não sabe nada do caráter daquela mulher, nem das circunstâncias de
minha união infernal. Ah, tenho certeza de que Jane vai concordar
com a minha opinião quando souber de tudo que eu sei! Só me dê a
mão, Janet, para eu saber pelo toque, além da visão, que você está
perto de mim, e em poucas palavras lhe mostrarei a realidade da situ-
ação. Vai me ouvir?
— Sim, senhor. Por horas, se o senhor desejar.
— Peço só alguns minutos. Jane, já ouviu dizer ou sabe que eu não
sou o filho mais velho da minha família, que já tive um irmão mais
velho?
— Lembro que a sra. Fairfax me contou uma vez.
— E soube que meu pai era um homem avarento e ganancioso?
— Captei algo nesse sentido.
— Bem, Jane, sendo assim, ele estava decidido a manter a proprie-
dade unificada; não suportava a ideia de dividir suas terras e me dei-
xar uma porção justa. Resolveu que tudo ficaria com meu irmão Row-
land. No entanto, ele também não suportava a ideia de ter um filho
pobre. Eu devia ser sustentado com um casamento vantajoso. Então
ele me procurou uma companheira. O sr. Mason, um fazendeiro e
mercador das Índias Ocidentais, era um antigo conhecido seu. Meu
pai tinha certeza de que suas posses eram reais e vastas e começou a
sondá-lo. Descobriu que o sr. Mason tinha um filho e uma filha, e que
ele poderia e daria à segunda uma fortuna de trinta mil libras. Foi o
suficiente. Quando saí da faculdade, fui mandado à Jamaica para ca-
sar-me com uma noiva já cortejada para mim. Meu pai não disse na-
da do dinheiro, só alegou que a srta. Mason era o orgulho de Spanish
Town por sua beleza. E não era mentira. Descobri que era uma bela
mulher, no estilo de Blanche Ingram, alta, morena e imponente. Sua
família desejava me garantir como noivo porque eu era de boa raça, e
ela tinha o mesmo desejo. Eles a apresentaram a mim em festas, vesti-
da esplendidamente. Raras vezes eu a vi sozinha, e tive poucas con-
versas particulares com ela. Ela me lisonjeava e exibia generosamente
seus charmes e talentos para o meu prazer. Todos os homens de seu
círculo social pareciam admirá-la e me invejar. Eu estava deslumbra-
do, excitado: meus sentidos estavam estimulados e, sendo ignorante,
jovem e inexperiente, achei que a amava. Não há loucura tão insensa-
ta que as rivalidades idiotas da sociedade, a lascívia, a imprudência e
a cegueira da juventude não apressem o homem a realizar. Os paren-
tes dela me incentivaram, os competidores me exasperaram, e ela me
seduziu. O casamento ocorreu quase antes que eu me desse conta. Ah,
não tenho qualquer respeito por mim mesmo quando penso naquele
ato! Um desprezo interior agonizante me domina. Eu nunca a amei,
nunca a estimei, nem sequer a conhecia. Eu não estava certo da exis-
tência de uma só virtude em sua natureza. Não tinha notado modés-
tia, nem benevolência, nem candura, nem refinamento em sua mente
ou modos. E me casei com ela, pois era um idiota vulgar, subserviente
e míope! Com menos pecado eu poderia… mas preciso lembrar com
quem estou falando.
“Eu nunca tinha visto a mãe da noiva. Presumi que estivesse morta.
Quando a lua de mel acabou, descobri meu erro: ela era louca e estava
presa em um hospício para lunáticos. Havia um irmão mais novo
também, um imbecil completo. O mais velho, que você conheceu (e
que eu não consigo odiar, por mais que abomine todos os seus paren-
tes, porque ele tem alguns germes de afeto em sua mente débil, como
mostram o interesse contínuo pela irmã infeliz e o apego canino que já
sentiu por mim), provavelmente vai ficar na mesma condição um dia.
Meu pai e meu irmão Rowland sabiam de tudo isso, mas pensaram só
nas trinta mil libras e se uniram para tramar contra mim.
“Essas foram descobertas vis, mas, exceto pela traição do sigilo, não
seriam motivo para repreender minha esposa, mesmo quando desco-
bri que sua natureza era inteiramente diferente da minha, seus inte-
resses, detestáveis para mim e sua mente, comum, vulgar, estreita e
completamente incapaz de ser conduzida a qualquer coisa mais eleva-
da ou expandida de qualquer forma. Descobri que não conseguia pas-
sar com ela em conforto uma única noite, nem sequer uma única hora
do dia; que não podíamos manter uma conversa agradável, porque
qualquer tópico que eu apresentasse imediatamente recebia dela uma
rejeição ao mesmo tempo grosseira e banal, perversa e imbecil. Perce-
bi que nunca teria um lar tranquilo ou estável, porque nenhum criado
suportaria as explosões contínuas de seu temperamento violento e ir-
racional ou o transtorno de suas ordens absurdas, contraditórias e
exigentes. Mesmo então eu me contive: evitei censuras, restringi as
objeções, tentei devorar em segredo meu arrependimento e aversão,
suprimi minha profunda antipatia.
“Jane, eu não vou perturbá-la com os detalhes abomináveis. Algu-
mas palavras fortes expressarão o que quero dizer. Eu vivi com a mu-
lher que está lá em cima por quatro anos e, antes que esse período
acabasse, ela havia me testado profundamente. Seu caráter amadure-
ceu e se desenvolveu com uma rapidez assustadora, seus vícios surgi-
ram rápidos e abjetos. Eram tão fortes que só a crueldade conseguia
controlá-los, e eu não podia usar da crueldade. Que intelecto de pig-
meu ela tinha… e que propensões gigantes! Como eram temíveis as
maldições que elas impunham a mim! Bertha Mason, filha de uma
mãe infame, me arrastou por todas as agonias horrendas e degradan-
tes que aguardam um homem preso a uma esposa desregrada e incas-
ta.
“No meio-tempo, meu irmão morreu, e ao fim dos quatro anos meu
pai também. Eu me tornara bem rico, mas sofria de uma medonha in-
digência: a natureza mais grosseira, impura e depravada que já vira
estava associada à minha e era considerada, pela lei e pela sociedade,
uma parte de mim. E eu não podia me livrar dela por qualquer proce-
dimento legal, pois os médicos descobriram que minha esposa era lou-
ca; seus excessos tinham prematuramente desenvolvido os germes da
insanidade. Jane, você não gosta da minha narrativa, parece quase
nauseada. Devo deixar o resto para outro dia?”
— Não, senhor, termine agora. Eu tenho pena do senhor, de verdade.
— A pena de algumas pessoas, Jane, é um tributo nocivo e insultuo-
so, que o sujeito tem direito de jogar de volta contra aqueles que a ofe-
recem, mas esse é o tipo de pena inato a corações cruéis e egoístas. É a
dor híbrida e pretensiosa ao ouvir sofrimentos, cruzada com um des-
prezo ignorante por aqueles que os suportaram. Mas a sua pena não é
assim, Jane. Não é esse o sentimento que domina todo o seu rosto
neste momento, que faz seus olhos quase transbordarem, o seu cora-
ção pesar, a sua mão tremer na minha. Sua pena, minha querida, é a
mãe sofredora do amor. Sua angústia é a própria dor natal da paixão
divina. Eu a aceito, Jane; deixe a filha chegar livremente. Meus braços
aguardam para recebê-la.
— Continue, senhor. O que fez quando descobriu que ela era louca?
— Jane, eu me aproximei das raias do desespero. Um resquício de
respeito próprio foi tudo que interveio entre o abismo e eu. Aos olhos
do mundo, sem dúvida eu estava coberto pela imundice da desonra,
mas resolvi ser limpo aos meus próprios olhos, e até o final repudiei a
contaminação dos crimes dela e me distanciei da conexão com os seus
defeitos mentais. Ainda assim, a sociedade associava meu nome e mi-
nha pessoa a ela! Eu ainda a via e ouvia diariamente; parte do hálito
dela (ugh!) misturava-se ao ar que eu respirava, e, além disso, eu lem-
brava que já fora o marido dela. A lembrança era na época, assim co-
mo agora, inexprimivelmente odiosa. Além disso, eu sabia que en-
quanto ela vivesse eu nunca poderia ser o marido de uma mulher me-
lhor, e embora ela fosse cinco anos mais velha que eu (a família e o pai
dela tinham mentido para mim quanto à sua idade), era provável que
ela vivesse tanto quanto eu, sendo tão robusta de corpo quanto era en-
ferma de mente. Portanto, na idade de vinte e seis anos, eu me encon-
trava sem esperanças.
“Uma noite fui despertado pelos gritos dela (como os médicos a ti-
nham declarado louca, ela estava, é claro, trancafiada). Era uma noite
escaldante das Índias Ocidentais, daquelas que frequentemente prece-
dem os furacões desses climas. Não conseguindo dormir, eu me levan-
tei e abri a janela. O ar parecia vapor de enxofre. Eu não achava fres-
cor em lugar algum. Mosquitos entraram no quarto e ficavam zunindo
taciturnos ao meu redor; o mar, que eu podia ouvir dali, rugia monó-
tono como um terremoto. Nuvens pretas deslizavam sobre ele. A lua
estava se pondo nas ondas, grande e vermelha, como uma bola de ca-
nhão quente. Ela lançou seu último olhar sangrento sobre um mundo
que estremecia com a aproximação da tempestade. Eu estava fisica-
mente influenciado pela atmosfera e pelo cenário, e meus ouvidos es-
tavam cheios com as imprecações que a maníaca ainda berrava, às
quais misturava de vez em quando meu nome com um tom de ódio
demoníaco, com palavras inacreditáveis! Nenhuma meretriz já teve
um vocabulário mais sujo que ela. Embora a dois cômodos de distân-
cia, eu ouvia cada palavra. As paredes finas das casas das Índias Oci-
dentais forneciam pouca obstrução aos seus gritos lupinos.
“‘Essa vida,’ disse eu por fim, ‘é o inferno! Esse é o ar e esses são os
sons do abismo sem fundo! Eu tenho direito de me libertar, se puder.
Os sofrimentos dessa condição mortal me deixarão com a carne pesa-
da que agora sobrecarrega minha alma. Não temo a eternidade arden-
te do fanático, não há um estado futuro pior do que o presente. Que eu
me liberte e vá para casa para junto de Deus!’
“Eu disse isso enquanto me ajoelhava e destrancava um baú que
continha um par de pistolas carregadas. Pretendia atirar em mim
mesmo. Só cogitei essa intenção por um momento, pois, não sendo
louco, a crise de desespero pungente e sem solução que tinha origina-
do o desejo e desígnio de autodestruição passou em um segundo.
“Um vento fresco da Europa soprou sobre o oceano e infiltrou-se
pela janela aberta. A tempestade chegou, despencou, trovejou, flame-
jou, e então o ar ficou puro. Nesse momento, tomei uma decisão. En-
quanto caminhava sob as laranjeiras que pingavam no jardim molha-
do, entre as romãs e os abacaxis encharcados, e enquanto a aurora re-
fulgente dos trópicos se inflamava ao meu redor, raciocinei da seguin-
te forma, Jane… e agora escute, pois foi a verdadeira Sabedoria que
me consolou naquela hora e me mostrou o caminho correto a seguir.
“O doce vento da Europa ainda sussurrava nas folhas úmidas e o
Atlântico trovejava em gloriosa liberdade. Meu coração, seco e cha-
muscado por tanto tempo, cresceu com o som e encheu-se com um
sangue vivo. Meu ser ansiava por uma renovação; minha alma estava
sedenta para beber algo puro. Eu vi a Esperança reviver e senti que a
Regeneração era possível. De um arco florido ao final do jardim, fitei
o mar, mais azul que o céu. O velho mundo estava além dele e pers-
pectivas claras se abriram da seguinte forma:
“‘Vá’, disse a Esperança, ‘e more na Europa de novo. Lá ninguém
conhece o nome sujo que porta nem o fardo imundo que está preso a
você. Pode levar a maníaca consigo para a Inglaterra, confiná-la com
cuidados e precauções apropriados em Thornfield, e então viajar para
qualquer clima que desejar e formar qualquer novo laço que quiser.
Essa mulher, que tanto abusou de sua tolerância, que tanto maculou o
seu nome, ultrajou a sua honra e atormentou sua juventude, não é a
sua esposa, nem você é o marido dela. Certifique-se de que ela receba
os cuidados que sua condição demanda, e terá feito tudo que Deus e a
humanidade podem exigir de você. Deixe que a identidade dela e sua
conexão consigo sejam enterradas no esquecimento. Você não é obri-
gado a transmiti-los a nenhum ser humano. Mantenha-a em seguran-
ça e conforto, oculte a sua degradação e a deixe.’
“Eu agi precisamente de acordo com essa sugestão. Meu pai e irmão
não tinham anunciado meu casamento aos conhecidos, porque, na
primeira carta que escrevi para lhes contar da união, já tendo come-
çado a experimentar uma profunda repulsa de suas consequências e,
pelo caráter e constituição da família, antecipando o futuro horrendo
que se descortinava para mim, acrescentei uma recomendação urgen-
te de mantê-lo em segredo. Em pouco tempo a conduta infame da es-
posa que meu pai selecionara para mim era tal que reconhecê-la co-
mo nora o envergonhava. Longe de querer divulgar a conexão, ele fi-
cou tão ansioso quanto eu para ocultá-la.
“À Inglaterra, então, eu a trouxe, e fiz uma viagem temível com tal
monstro a bordo. Fiquei feliz quando enfim cheguei a Thornfield e a
acomodei com segurança naquele cômodo no terceiro andar, cujo
compartimento interno secreto ela há dez anos transformou no covil
de uma fera selvagem, na cela de um trasgo. Tive certa dificuldade em
encontrar uma cuidadora para ela; era necessário selecionar alguém
de confiança, uma vez que seus delírios inevitavelmente trairiam o
meu segredo. Além disso, ela tinha intervalos de lucidez que duravam
dias, às vezes semanas, e os preenchia com insultos contra mim. Por
fim contratei Grace Poole, do asilo Grimsby. Ela e o médico, Carter
(que tratou dos ferimentos de Mason na noite que ele foi esfaqueado e
mordido), são os únicos a quem já confiei o segredo. A sra. Fairfax po-
de ter desconfiado de algo, mas não teria obtido nenhum conhecimen-
to preciso dos fatos. Grace, de forma geral, provou-se uma boa guar-
diã, embora, devido em parte a um defeito próprio do qual parece que
nada pode curá-la e à sua profissão fatigante, sua vigilância mais de
uma vez tenha falhado e sido burlada. A lunática é astuta e maligna, e
nunca deixou de tirar vantagem dos lapsos temporários de sua guar-
diã: uma vez para esconder a faca com a qual atacou o irmão e duas
outras para tomar a chave da cela e sair durante a noite. Na primeira
dessas ocasiões, ela tentou atear fogo a mim na cama; na segunda,
prestou-lhe aquela visita fantasmagórica. Agradeço à Providência por
proteger você, fazendo que ela descarregasse sua fúria no adereço de
casamento, que talvez lhe tenha trazido vagas lembranças dos seus
próprios dias de noiva. Quanto ao que poderia ter acontecido, não su-
porto refletir. Quando imagino a criatura que voou contra meu pesco-
ço hoje inclinando seu semblante negro e escarlate sobre o ninho da
minha pombinha, meu sangue gela…”
— E o que o senhor fez depois que a acomodou aqui? — perguntei
quando ele se calou. — Aonde foi?
— O que eu fiz, Jane? Eu me transformei em fogo-fátuo. Aonde fui?
Perambulei tão a esmo quanto os espíritos dos pântanos. Fui ao conti-
nente e deixei um rastro ímpio por todas as suas terras. Meu desejo fi-
xo era procurar e encontrar uma mulher boa e inteligente que eu pu-
desse amar, um contraste à fúria que deixara em Thornfield…
— Mas o senhor não podia se casar.
— Eu tinha decidido e estava convencido de que podia e devia. Não
era minha intenção original enganar ninguém como a enganei. Eu
queria contar minha história com franqueza e fazer minhas propostas
abertamente, e pareceu-me tão racional que devesse ser considerado
livre para amar e ser amado que nunca duvidei que encontraria uma
mulher disposta e capaz de entender minha situação e me aceitar,
apesar da maldição que eu carregava.
— Bem, senhor?
— Quando é inquisitiva, Jane, você sempre me faz sorrir. Abre os
olhos como um pássaro ávido e vez ou outra faz um movimento in-
quieto, como se as respostas em palavras não fluíssem rápido o bas-
tante e você quisesse ler a tábua do coração da pessoa. Mas, antes de
eu prosseguir, diga-me o que quer dizer com o seu “Bem, senhor?”. É
uma frase curta que você diz com frequência, e muitas vezes me levou
a falar e falar em digressões intermináveis. Não sei bem por quê.
— Eu quis dizer: o que aconteceu depois? O que fez em seguida? O
que resultou de tais andanças?
— Era disso que eu estava falando! O que deseja saber agora?
— Se encontrou alguém de quem gostasse e a pediu em casamento, e
o que ela respondeu.
— Posso lhe dizer que encontrei alguém de quem gostasse e a pedi
em casamento, mas o que ela disse ainda há de ser registrado no livro
do Destino. Eu vaguei por dez longos anos, morando primeiro em
uma capital, depois em outra: às vezes em São Petersburgo, mais fre-
quentemente em Paris, vez ou outra em Roma, Nápoles e Florença.
Tendo muito dinheiro e um nome antigo como passaporte, podia es-
colher minhas companhias. Nenhum círculo social estava fechado a
mim. Busquei meu ideal de mulher entre damas inglesas, condessas
francesas, signoras italianas e gräfinnen alemãs. Não a encontrei. Às
vezes, por um momento fugaz, pensava captar um olhar, ouvir uma
voz, contemplar uma figura que anunciava a realização do meu so-
nho, mas era logo desiludido. Você não deve supor que eu desejava
perfeição, de mente ou pessoa. Eu só ansiava por algo que se adequas-
se a mim, em oposição à mestiça. Mas procurei em vão. Entre todas
elas não encontrei uma que eu, considerando-me livre (ciente como
estava dos riscos, dos horrores e da abominação de uma união incon-
gruente), teria pedido em casamento. A decepção me tornou impru-
dente. Experimentei com a dissipação, mas nunca com a libertinagem,
pois isso odiava, e ainda odeio. Era atributo de minha Messalina153 ja-
maicana: um asco enraizado disso, e dela, me restringiram muito,
mesmo no prazer. Qualquer ato que beirasse o desregramento parecia
me aproximar dela e dos seus vícios, de modo que o evitava.
“Mas não podia viver sozinho, então desfrutei da companhia de
amantes. A primeira que escolhi foi Céline Varens, outro daqueles
passos que fazem um homem se desprezar com a recordação. Você já
sabe o que ela era e como minha relação com ela acabou. Ela teve du-
as sucessoras: uma italiana, Giacinta, e uma alemã, Clara, ambas con-
sideradas grandes beldades. Mas o que a beleza delas significava para
mim após poucas semanas? Giacinta era indisciplinada e violenta;
cansei dela em três meses. Clara era honesta e discreta, mas séria, en-
fadonha e impassível, nada adequada ao meu gosto. Fiquei contente
em lhe dar um montante suficiente para estabelecer-se numa boa si-
tuação profissional e me livrar dela. Mas, Jane, vejo por sua expres-
são que não está formando uma opinião muito favorável de mim.
Acha que sou um libertino insensível e sem princípios, não é?”
— De fato, não gosto tanto do senhor quanto já gostei. Não lhe pare-
ceu nem um pouco errado viver dessa forma, primeiro com uma
amante e depois com outra? O senhor fala como se fosse a coisa mais
natural do mundo.
— Para mim, era. E eu não gostava disso. Era um tipo de existência
servil à qual não gostaria jamais de voltar. Contratar uma amante é a
pior coisa do mundo, depois de comprar uma escrava: ambas, muitas
vezes por natureza e sempre por posição, são inferiores, e viver de
forma familiar entre inferiores é degradante. Hoje odeio a lembrança
do tempo que passei com Céline, Giacinta e Clara.
Senti a verdade dessas palavras e inferi delas que, se eu chegasse a
ponto de esquecer todos os ensinamentos que me tinham sido instila-
dos, sob qualquer pretexto, justificativa ou tentação, e me tornasse a
sucessora daquelas pobres moças, ele um dia me contemplaria com o
mesmo sentimento que profanava a memória delas em sua mente.
Não proferi essa convicção; foi suficiente senti-la. Eu a gravei no cora-
ção, para que permanecesse lá e me servisse de apoio na hora da pro-
vação.
— Agora, Jane, por que não diz “Bem, senhor?”. Eu não acabei. Você
está com uma expressão séria. Vejo que ainda desaprova. Mas deixe-
me chegar à questão: janeiro passado, depois de me desvencilhar de
todas as amantes, em um estado de espírito duro e amargurado que
resultou de uma vida inútil, errante e solitária, corroído pela decep-
ção, desgostoso de todos os homens e especialmente todas as mulheres
(pois comecei a considerar que uma mulher intelectual, fiel e amorosa
era mero sonho), ao ser chamado de volta para casa por questões de
negócio, eu voltei à Inglaterra.
“Em uma tarde gélida, cavalguei até avistar Thornfield Hall. Lugar
abominável! Eu não esperava encontrar nenhuma paz ou prazer aqui.
Então, sentada em uma escadinha na estrada de Hay, vi uma figura
pequena, quieta e solitária. Passei por ela tão negligentemente quanto
pelo salgueiro podado à sua frente; não tive nenhum pressentimento
do que ela se tornaria para mim, nenhum aviso interno de que a sobe-
rana da minha vida, o espírito que me levaria para o bem ou para o
mal, aguardava ali sob um humilde disfarce. Tampouco o sabia quan-
do, na ocasião do acidente de Mesrour, a figura veio até mim e ofere-
ceu ajuda com seriedade. Uma criatura infantil e esguia! Era como se
um pintarroxo tivesse pulado no meu pé e se proposto a me portar em
sua pequena asa. Eu estava mal-humorado, mas a coisinha não ia em-
bora: ficou comigo, com estranha perseverança, e olhou e falou com
certa autoridade. Eu precisava de ajuda daquela mão, e ajuda eu rece-
bi.
“Quando apertei pela primeira vez o ombro frágil, algo novo, uma
seiva e sensação novas, invadiu meu corpo. Por sorte descobri que ve-
ria aquela elfa outra vez, pois pertencia à minha casa lá embaixo, ou
seria com uma tristeza singular que a teria sentido sair de baixo da
minha mão e desparecer atrás da sebe escura. Eu a ouvi voltar para
casa naquela noite, Jane, embora você provavelmente não estivesse
ciente de que eu pensava em você ou aguardava sua chegada. No dia
seguinte, escondido, eu a observei por meia hora enquanto você brin-
cava com Adèle no corredor. Era um dia de neve, eu lembro, e vocês
não puderam sair de casa. Eu estava no quarto, com a porta entrea-
berta, e conseguia escutar e observar. Adèle reivindicou sua atenção
por um tempo, mas eu desconfiei que seus pensamentos estivessem
em outro lugar. Mesmo assim, você foi muito paciente com ela, minha
pequena Jane: conversou com ela e a entreteve por muito tempo.
Quando ela finalmente a deixou, você caiu de imediato em um deva-
neio profundo. Começou a andar lentamente de um lado ao outro do
corredor. De vez em quando, ao passar por uma janela, olhava para a
neve que caía pesada, ouvia os soluços do vento e voltava a caminhar
e sonhar. Acho que essas visões diurnas não eram sombrias; de vez
em quando luzia um brilho prazeroso em seu olhar, uma empolgação
suave em seu aspecto, que não indicava uma reflexão amarga, biliosa
ou hipocondríaca: seu aspecto revelava, antes, as doces meditações da
juventude, cujo espírito segue, com asas bem-dispostas, o voo da Es-
perança, subindo até um paraíso ideal. A voz da sra. Fairfax, que fala-
va com um criado no saguão, a despertou, e como você sorriu curiosa-
mente para si mesma, Janet! Havia muita sensatez em seu sorriso; era
um sorriso astuto, que parecia fazer pouco caso de sua abstração. Pa-
recia dizer: Não há nada errado com minhas belas visões, mas não devo
esquecer que elas são completamente irreais. Tenho um céu rosado e um
Éden verde e florescente na cabeça, mas fora dela, sei muito bem, jaz a
meus pés um trato de terra irregular para percorrer e ao meu redor for-
mam-se tempestades sombrias que hei de adentrar. Você desceu cor-
rendo as escadas e exigiu alguma ocupação da sra. Fairfax, as contas
semanais da casa ou algo desse tipo, acho. Fiquei irritado com você
por sair da minha vista.
“Esperei impaciente pela noite, quando poderia chamá-la à minha
presença. Desconfiei que teria um caráter incomum, para mim, e per-
feitamente novo. Desejava esquadrinhá-lo mais a fundo, conhecê-lo
melhor. Você entrou na sala com um semblante e um ar ao mesmo
tempo tímido e independente. Usava um vestido antiquado, como
agora. Eu a fiz falar, e em pouco tempo descobri que era cheia de es-
tranhos contrastes. Seus trajes e modos eram restringidos por regras, e
seu ar era muitas vezes acanhado, como o de uma pessoa refinada por
natureza, mas completamente desacostumada à sociedade, que tem
muito medo de chamar atenção e ficar em desvantagem por algum er-
ro gramatical ou gafe. No entanto, quando lhe dirigiam a palavra, você
erguia um olhar penetrante, ousado e cintilante ao rosto do interlocu-
tor. Havia perspicácia e força em cada um dos seus olhares; quando
importunada por perguntas incisivas, encontrava respostas rápidas e
diretas. Em pouco tempo pareceu se acostumar comigo. Acredito que
sentiu a simpatia que existia entre você e o seu patrão taciturno e irri-
tável, Jane, pois foi espantoso ver quão rápido um certo conforto
aprazível tranquilizou os seus modos. Por mais que eu rosnasse, você
não demonstrava surpresa, medo, irritação ou desprazer com meu
amuamento. Você me observava e vez ou outra sorria para mim com
uma elegância simples, mas sagaz, que não sei descrever. Fiquei ao
mesmo tempo satisfeito e estimulado pelo que vi. Gostei do que tinha
visto e desejava ver mais. Porém, por um longo tempo, eu a mantive
distante e raramente procurei sua companhia. Era um epicurista inte-
lectual e desejava prolongar a gratificação de conhecer essa pessoa
original e cativante. Além disso, por um tempo fui assombrado pelo
temor de que, se tocasse a flor livremente, seu viço desbotaria… e o
doce charme do frescor a deixaria. Eu não sabia então que não era
uma flor passageira, apenas algo que tinha com ela uma semelhança
radiante, entalhado em uma pedra preciosa e indestrutível. Além dis-
so, queria ver se você me procuraria caso eu a evitasse, mas você não
me procurou. Manteve-se na sala de aula, tão imóvel quanto sua mesa
e cavalete. Se por acaso eu a encontrava, você passava rápido por
mim, com o reconhecimento mais breve condizente com o respeito.
Sua expressão habitual naqueles dias, Jane, era um olhar pensativo.
Não abatido, pois você não parecia doente, mas também não alegre,
pois tinha pouca esperança e não sentia nenhum prazer real. Eu me
perguntava o que pensava de mim ou se chegava a pensar em mim.
Para descobrir, voltei a prestar atenção em você. Havia algo alegre em
seu olhar e amável em seus modos quando conversava. Vi que você ti-
nha um coração sociável, e que era a sala de aula silenciosa e o tédio
da vida que a deixavam melancólica. Permiti-me o prazer de ser gen-
til com você, e a gentileza logo despertou as emoções. Sua expressão
tornou-se suave, sua voz, amável. Eu gostava de ouvir meu nome pro-
nunciado pelos seus lábios em um tom grato e feliz. Nessa época, sem-
pre me alegrava quando nos encontrávamos por acaso, Jane. Você de-
monstrava uma hesitação curiosa. Olhava para mim com uma leve
perturbação, uma dúvida pairando ao seu redor. Eu nunca sabia qual
dos meus humores encontraria; se eu ia brincar de patrão e ser severo
ou de amigo e ser agradável. Mas a essa altura eu estava afeiçoado de-
mais a você para estimular o primeiro e, quando estendia a mão cor-
dialmente, suas feições jovens e melancólicas desabrochavam com tal
viço, luz e êxtase que muitas vezes era difícil não a apertar ali mesmo
contra o meu coração.”
— Não fale mais desses dias, senhor — interrompi, furtivamente en-
xugando algumas lágrimas. Suas palavras eram uma tortura para
mim, pois eu sabia o que deveria fazer em breve, e tais reminiscências
e revelações de sentimentos só tornavam minha missão mais difícil.
— Não, Jane — respondeu ele. — Que necessidade há de ruminar so-
bre o Passado, quando o Presente é tão mais certo, e o Futuro, tão
mais brilhante?
Estremeci ao ouvir a afirmação esperançosa.
— Você agora entende a situação, não entende? — continuou ele. —
Após passar a juventude e a vida adulta metade em infelicidade inex-
primível e metade em solidão terrível, pela primeira vez encontrei al-
go que posso verdadeiramente amar: encontrei você. Você é a minha
semelhante, a melhor parte de mim, meu anjo bom. Sinto um apego
fortíssimo por você. Acredito que é boa, talentosa, adorável; uma pai-
xão fervorosa e solene nasceu em meu coração e se inclina em sua di-
reção, puxa-a para o meu centro e fonte de vida, envolve-a com a mi-
nha existência e, brilhando com uma chama pura e potente, funde-
nos em um só ser.
“Foi porque eu sentia e sabia disso que resolvi casar-me com você.
Dizer que eu já tinha uma esposa é um escárnio sem sentido. Você sa-
be agora que eu tinha apenas um demônio horrendo. Foi errado da
minha parte tentar enganá-la, mas eu temia a teimosia do seu caráter.
Temia um preconceito que lhe foi instilado cedo. Queria assegurá-la
antes de arriscar confidências. Foi covardia. Eu deveria ter apelado à
sua nobreza e magnanimidade primeiro, como faço agora, revelando-
lhe abertamente minha vida de agonia, descrevendo minha fome e se-
de por uma existência mais elevada e mais digna, mostrando a você
não a minha resolução (essa palavra é fraca), mas minha vocação ir-
resistível a amar bem e fielmente quando sou bem e fielmente amado
em retorno. E então deveria ter pedido que aceitasse meu voto de fi-
delidade e me fizesse o seu. Jane, dê-me esse voto agora.”
Uma pausa.
— Por que o silêncio, Jane?
Eu sofria um suplício: uma mão de ferro ardente espremia meus
órgãos vitais. Que terrível momento: cheio de luta, escuridão, chamas!
Nenhum ser humano poderia desejar mais amor do que eu recebia
então, e aquele que me amava dessa forma eu absolutamente adorava
— mas teria de renunciar ao meu amor e ídolo. Uma palavra sombria
resumia meu dever intolerável: Partir!
— Jane, entende o que quero de você? Só essa promessa: “Eu serei
sua, sr. Rochester”.
— Sr. Rochester, eu não serei sua.
Outro longo silêncio.
— Jane! — retomou ele, com uma gentileza que me encheu de pesar
e me deixou mortalmente fria, sentindo um pavor agourento, pois
aquela voz calma era o resfolegar de um leão que se erguia. — Jane,
você pretende seguir por um caminho no mundo e deixar-me ir por
outro?
— Sim.
— Jane — inclinando-se e me abraçando —, ainda tem essa intenção?
— Sim.
— E agora? — E beijou minha testa e bochecha.
— Sim.
Eu me desvencilhei de seu aperto rápida e completamente.
— Ah, Jane, isso é cruel! Isso… isso é perverso. Não seria perverso
me amar.
— Mas obedecê-lo seria.
Uma expressão feroz cruzou suas feições, erguendo as sobrancelhas.
Ele se levantou, mas ainda se continha. Apoiei a mão no encosto de
uma cadeira para me sustentar. Eu tremia, eu temia — mas estava de-
cidida.
— Um instante, Jane. Contemple a vida horrível que terei quando
você partir. Toda a felicidade será levada junto com você. E o que res-
tará? Por esposa, tenho apenas a maníaca lá em cima. Tanto valeria
me oferecer a um cadáver no adro lá fora. O que farei, Jane? Para on-
de me voltarei em busca de companhia e um pouco de esperança?
— Faça como eu: confie em Deus e em si mesmo. Acredite no paraí-
so. Espere encontrar-me lá de novo.
— Então você não vai ceder?
— Não.
— Então me condena a viver infeliz e morrer amaldiçoado?
Ele ergueu a voz.
— Eu o aconselho a viver sem pecados e desejo que morra tranquilo.
— Então vai me roubar do amor e da inocência? Vai me lançar de
volta na paixão da luxúria, na ocupação do vício?
— Sr. Rochester, eu não atribuo esse destino ao senhor mais do que o
almejo para mim mesma. Nós nascemos para lutar e tolerar, tanto o
senhor quanto eu. Então faça isso. Vai me esquecer antes que eu o es-
queça.
— Você me chama de mentiroso com tais palavras, macula a minha
honra. Eu declarei que meus sentimentos não mudariam e você diz na
minha cara que mudarão em pouco tempo. E que distorção em seu
julgamento, que perversidade em suas ideias são provadas pela sua
conduta! É melhor levar um semelhante ao desespero do que trans-
gredir uma reles lei humana, cujo rompimento não vai ferir ninguém?
Pois você não tem parentes nem conhecidos que precise temer ofen-
der ao viver comigo.
Isso era verdade e, enquanto ele falava, minha própria consciência e
juízo me traíram e me acusaram de crime por resistir a ele. Falaram
quase tão alto quanto o Sentimento — e este clamava violentamente.
Ah, obedeça!, disse. Pense na infelicidade dele, pense no perigo que ele
corre, veja o estado em que fica quando deixado a sós, lembre-se de sua
natureza obstinada, considere a imprudência que se seguirá ao desespe-
ro, apazigue-o, salve-o, ame-o, diga a ele que o ama e que será dele.
Quem no mundo se importa com você? E quem será ferido pelas suas
ações?
Ainda assim, a resposta foi inflexível: Quem se importa comigo sou
eu. Quanto mais solitária, mais sem amigos, mais sem apoio ficar, mais
respeitarei a mim mesma. Vou aderir à lei dada por Deus e sancionada
pelos homens. Vou resguardar os princípios que me foram ensinados
quando estava sã e não louca, como me encontro agora. Leis e princí-
pios não existem para as horas em que não há tentação: são para mo-
mentos como este, quando o corpo e a alma erguem-se em motim contra
o seu rigor. Eles são estritos e serão invioláveis. Se posso quebrá-los pa-
ra a minha conveniência individual, qual seria o seu valor? E eles têm
um valor, é o que sempre acreditei, e se não consigo acreditar nisso ago-
ra é porque estou insana, completamente insana: com fogo correndo nas
veias e o coração batendo tão rápido que não consigo contar seus bati-
mentos. Opiniões preconcebidas, determinações precedentes, são tudo
que tenho para defender. Aqui eu resistirei.
E o fiz. O sr. Rochester, lendo meu semblante, viu que o fizera. Sua
fúria conflagrou-se ao extremo — e ele precisava entregar-se a ela, por
um momento, não importava o que se seguisse. Cruzou a sala, agarrou
meu braço e apertou minha cintura. Parecia me devorar com seu
olhar flamejante: fisicamente, eu me senti, naquele momento, tão in-
defesa quanto a palha exposta à boca e ao brilho de uma fornalha.154
Mentalmente, eu ainda possuía minha alma e, com ela, a certeza da
segurança final. A alma felizmente tem um intérprete, muitas vezes
inconsciente, mas sempre honesto — o olhar. O meu ergueu-se ao dele
e, enquanto eu fitava o seu rosto feroz, soltei um suspiro involuntário.
O aperto dele era doloroso e minhas forças, das quais tanto fora exigi-
do, estavam quase exauridas.
— Nunca — disse ele, rangendo os dentes —, nunca algo foi ao mes-
mo tempo tão frágil e tão indomável. Ela parece um mero junco em
minhas mãos! — E ele me sacudiu com força. — Eu poderia dobrá-la
entre indicador e polegar, mas de que me adiantaria dobrá-la, desen-
raizá-la, esmagá-la? Considere esse olhar, considere a criatura resolu-
ta, selvagem e livre que me fita detrás desses olhos, me desafiando
não só com coragem, mas com um triunfo severo. Não importa o que
faça com a sua jaula, eu não posso alcançar essa criatura bela e selva-
gem! Se eu estraçalhar, se eu derrubar a frágil prisão, minha violência
só vai liberar a cativa. Posso conquistar a casa, mas a residente esca-
paria para os céus antes que eu pudesse reivindicar a posse da sua
morada de barro. E é você, espírito, com sua vontade e energia e vir-
tude e pureza, que eu quero, não só seu corpo franzino. Por vontade
própria, poderia vir em um voo suave e aninhar-se contra o meu co-
ração, se quisesse; tomada contra a sua vontade, vai evadir o aperto
como um perfume, desaparecer antes que eu inspire sua fragrância.
Ah! Venha, Jane, venha!
Ao dizer isso, ele me soltou e só olhou para mim. O olhar era muito
mais difícil de resistir do que o aperto frenético: só uma tola, porém,
teria sucumbido então. Eu tinha desafiado e desorientado a fúria dele,
e precisava evadir o seu sofrimento. Recuei para a porta.
— Você vai embora, Jane?
— Vou, senhor.
— Está me deixando?
— Estou.
— Não virá comigo? Não será meu consolo, minha salvação? Meu
amor profundo, meu sofrimento selvagem e minha prece frenética
não significam nada a você?
Que páthos155 inexprimível havia na voz dele! Como foi difícil reite-
rar com firmeza:
— Eu vou embora.
— Jane!
— Sr. Rochester!
— Vá, então. Eu consinto. Mas lembre-se de que você me deixa aqui
angustiado. Volte ao quarto e reflita sobre tudo que eu disse, e, Jane,
lance um olhar ao meu sofrimento. Pense em mim.
Ele se virou e jogou-se de bruços no sofá.
— Ah, Jane! Minha esperança, meu amor, minha vida!
As palavras irromperam aflitas dos seus lábios, seguidas por um so-
luço forte e profundo.
Eu já tinha alcançado a porta, mas, leitor, eu voltei. Voltei tão deter-
minada quanto tinha recuado. Ajoelhei-me ao lado dele, ergui seu
rosto da almofada, beijei a sua bochecha e alisei seu cabelo.
— Deus o abençoe, meu querido patrão! — eu disse. — Que Deus o
proteja de infortúnios e injustiças, que o oriente, conforte e recompen-
se pela gentileza que teve comigo.
— O amor da pequena Jane teria sido minha melhor recompensa —
respondeu ele. — Sem ele, meu coração está partido. Mas Jane me da-
rá o seu amor. Sim, será nobre e generosa.
O sangue subiu ao rosto dele, o fogo lampejou em seus olhos; ele er-
gueu-se com um salto e estendeu os braços, mas fugi de seu abraço e
deixei o cômodo de imediato.
Adeus, foi o grito do meu coração quando o deixei. O desespero
acrescentou: Adeus, para sempre!
Naquela noite eu nem pensei em dormir, mas o sono caiu sobre mim
assim que me deitei. Fui transportada em pensamento a cenas da mi-
nha infância. Sonhei que estava deitada no quarto vermelho de Ga-
teshead, que a noite estava escura e minha mente, tomada por estra-
nhos temores. A luz que muito tempo antes me levara a uma síncope,
relembrada na visão, parecia deslizar parede acima e parar, trêmula,
no centro do teto escuro. Ergui a cabeça para vê-la: o teto se dissolveu
e transformou-se em nuvens altas e turvas; o brilho era como o que a
lua dissemina sobre a névoa que está prestes a dissipar. Eu a vi se
aproximar — assisti com estranha antecipação, como se fosse encon-
trar alguma palavra fatal escrita em seu disco. Ela irrompeu das nu-
vens como a lua jamais fez: primeiro uma mão penetrou as dobras de
zibelina e as afastou com um gesto, e então não a lua, mas uma forma
humana branca, reluziu no azul-celeste, inclinando um cenho glorio-
so para a terra. Ela me fitou e fitou e fitou. Falou com o meu espírito;
a voz estava imensuravelmente distante, mas sussurrou muito próxi-
mo ao meu coração: Minha filha, fuja da tentação!
— Mãe, vou fugir.
Assim respondi após acordar do sonho como de um transe. Ainda
era noite, mas as noites de julho são curtas e a aurora chega pouco de-
pois da meia-noite. Não pode ser cedo demais para começar a tarefa
que devo cumprir, pensei. Levantei-me. Estava vestida, pois não tinha
tirado nada exceto os sapatos. Sabia onde encontrar nas gavetas um
pouco de linho, um medalhão e um anel. Ao procurar esses itens, en-
contrei um colar de pérolas que o sr. Rochester me obrigara a aceitar
alguns dias antes. Deixei-o, pois não era meu: pertencia à noiva ima-
ginária, que tinha derretido no ar. Os outros itens eu guardei em um
embrulho, e a bolsinha, contendo vinte xelins (tudo que eu tinha),
guardei no bolso. Amarrei a touca de palha, prendi o xale, peguei o
embrulho e os sapatos, que ainda não calçaria, e saí furtivamente do
quarto.
— Adeus, gentil sra. Fairfax! — sussurrei enquanto deslizava silenci-
osamente na frente da porta dela. — Adeus, minha querida Adèle! —
acrescentei com um olhar de relance para o quarto da menina.
Não podia entreter a ideia de entrar para abraçar Adèle. Precisava
enganar um ouvido aguçado, que, pelo que eu sabia, podia estar à es-
cuta naquele exato momento.
Eu teria passado pelo quarto do sr.
Rochester sem qualquer pausa, mas
meu coração parou de bater por um
momento no seu limiar, de modo que
meus pés foram forçados a parar tam-
bém. Ninguém estava dormindo ali — o
ocupante caminhava incansavelmente
de uma parede a outra, e vez após vez
suspirava enquanto eu ouvia. Havia um paraíso — um paraíso tempo-
rário — naquele quarto para mim, se eu o quisesse. Bastava entrar e
dizer: “Sr. Rochester, eu o amarei e viverei com o senhor por toda a vi-
da até a morte”, e uma fonte de êxtase brotaria em meus lábios. Eu
pensei nisso.
Meu patrão gentil, que não conseguia dormir, esperava impaciente
o dia nascer. Ele me chamaria pela manhã, então eu precisava ir em-
bora. Ele me procuraria em vão. Sentiria-se abandonado, seu amor
rejeitado, sofreria e talvez se desesperasse. Pensei nisso também, e
minha mão se moveu em direção à maçaneta. Eu a impedi e segui em
frente.
Desci as escadas com passos pesados. Eu sabia o que tinha de fazer
e agi mecanicamente. Procurei a chave da porta lateral na cozinha,
além de um frasco de óleo e uma pena, e lubrifiquei a chave e a fecha-
dura. Peguei um pouco de água e um bocado de pão, pois talvez preci-
sasse andar bastante, e minhas forças, profundamente abaladas nos
últimos tempos, não deveriam vacilar. Tudo isso eu fiz sem emitir
qualquer som. Abri a porta, atravessei-a e fechei-a suavemente. A au-
rora difusa cintilava no pátio. Os portões grandes estavam fechados e
trancados, mas uma cancela em um deles só era segurada por um fer-
rolho. Através dele eu parti; também o fechei, e então estava fora de
Thornfield.
A cerca de um quilômetro e meio dali, além dos campos, havia uma
estrada que seguia na direção contrária a Millcote, uma estrada que
eu nunca percorrera mas que tinha notado muitas vezes e me pergun-
tado aonde levaria. Para lá voltei meus passos. Nenhuma reflexão era
permitida; nenhum olhar podia ser lançado para trás, nem para a
frente. Nenhum pensamento podia ser dedicado ao passado, nem ao
futuro. O primeiro era uma página tão doce e sublime — tão mortal-
mente triste — que ler uma linha sequer dissolveria minha coragem e
exauriria minha energia. O segundo era um vazio terrível: algo como
o mundo depois da passagem do dilúvio.
Segui campos, sebes e estradas até depois do nascer do sol. Acredito
que era uma bela manhã de verão: sei que meus sapatos, que calcei ao
sair da casa, logo ficaram úmidos de orvalho. Porém, não olhei nem
para o sol nascente, nem para o céu sorridente, nem para a natureza
que despertava. Aquele que é levado através de um belo cenário a ca-
minho do cadafalso não pensa nas flores que sorriem em seu cami-
nho, mas no bloco de madeira e no gume do machado, na separação
de ossos e veias, no túmulo aberto ao final, e eu pensava na terrível
fuga e em perambulações que jamais terminariam em um lar — e, ah!,
com agonia pensava no que tinha deixado. Não conseguia me conter.
Eu o imaginei naquele momento em seu quarto, assistindo ao sol nas-
cer, esperando que eu logo fosse dizer que ficaria com ele, que seria
sua. Eu ansiava por ser sua, arquejava com a vontade de voltar. Não
era tarde demais e eu ainda poderia poupá-lo da dor amarga do
abandono. No momento, tinha certeza de que minha fuga ainda não
fora detectada. Eu poderia voltar e ser o conforto dele — o seu orgu-
lho, sua redentora da infelicidade e talvez da ruína. Ah, o medo de
que ele se abandonasse era muito pior do que o meu abandono, e co-
mo me testava! Era uma flecha farpada no meu seio, que me cortava
quando eu tentava extraí-la e me torturava quando as recordações a
empurravam mais fundo. Pássaros começaram a cantar em charcos e
bosques. Pássaros eram fiéis a seus companheiros; pássaros eram em-
blemas do amor. O que era eu? Em meio à dor do coração e ao esforço
frenético para resguardar meus princípios, eu me abominei. Não rece-
bi consolo da autoaprovação, nem sequer do autorrespeito. Eu tinha
magoado, ferido, abandonado meu patrão. Era odiosa a meus próprios
olhos. Ainda assim, não podia me virar ou retraçar um passo. Deus
deve ter me guiado adiante. Quanto à minha própria vontade ou
consciência, o luto intenso havia pisoteado uma e abafado a outra. Eu
chorava descontroladamente enquanto seguia meu caminho solitário:
andava depressa, depressa, como se delirante. Uma fraqueza que co-
meçou internamente se estendeu a meus membros e me dominou até
que caí. Jazi no chão por alguns minutos, pressionando o rosto à relva
úmida. Senti certo medo — ou esperança — de morrer ali, mas logo me
levantei e rastejei de joelhos, até que me ergui de novo sobre os pés,
mais ávida e determinada do que nunca a alcançar a estrada.
Ao chegar, fui obrigada a me sentar para descansar sob a sebe e, en-
quanto estava ali, ouvi rodas e vi uma carruagem se aproximar. Le-
vantei-me e ergui uma mão. Ela parou. Perguntei aonde ia e o cochei-
ro citou um lugar muito distante, onde eu estava certa de que o sr. Ro-
chester não tinha conexões. Perguntei por qual quantia ele me levaria.
Ele disse trinta xelins, eu respondi que só tinha vinte; bem, ele iria até
onde pudesse. Então me deu permissão para subir na parte de trás,
uma vez que o veículo estava vazio. Entrei, a porta se fechou e a car-
ruagem seguiu em frente.
Gentil leitor, que nunca sinta o que eu senti então! Que seus olhos
nunca vertam lágrimas tão tempestuosas, escaldantes e sofredoras co-
mo as que jorravam dos meus. Que nunca apele ao Paraíso com preces
tão desesperançadas e agonizadas como as que deixaram meus lábios
naquela hora — e que nunca, como eu, tema ser o instrumento do mal
àquilo que ama de todo o coração.
D
ois dias se passaram. É uma noite de verão; o cocheiro me deixou
em um lugar chamado Whitcross. Não podia me levar mais longe
pela quantia que eu lhe dera, e eu não possuía outro xelim no
mundo. A carruagem já está a cerca de um quilômetro e meio a esta altura;
eu estou sozinha. Neste momento, descubro que esqueci de pegar meu em-
brulho de um bolso da carruagem, onde o depositei por segurança. Lá ele
permanece, lá deve permanecer, e estou completamente desprovida.
Whitcross não é uma cidade, sequer um vilarejo. Consiste apenas em um
pilar de pedra erguido onde quatro estradas se encontram: caiado de branco,
suponho que para ficar mais evidente a distância e na escuridão. Quatro
braços brotam do seu ápice: a cidade mais próxima à qual apontam fica, de
acordo com a inscrição, a dezesseis quilômetros; a mais distante, a mais de
trinta. Pelos nomes bem conhecidos dessas cidades, descubro em qual con-
dado eu desci: um no norte das Midlands, com charnecas escuras, encerrado
por montanhas. Isso eu vejo. Há vastas charnecas atrás e de cada lado de
mim, e ondas de montanhas muito além do vale profundo aos meus pés. A
população aqui deve ser escassa e não vejo passageiros nas estradas. Elas se
estendem para o leste, oeste, norte e sul — brancas, largas e solitárias. Er-
guem-se das charnecas, e a urze cresce abundante e selvagem até sua beira-
da. Contudo, um viajante ocasional poderia passar por aqui e não quero que
nenhum olho me veja. Desconhecidos se perguntariam o que estou fazendo,
demorando-me junto ao pilar, evidentemente sem rumo e perdida. Eu pode-
ria ser questionada e não teria nenhuma resposta que não soasse inacreditá-
vel nem despertasse suspeitas. Nenhum laço me ata à sociedade humana
neste momento, nenhum encanto ou esperança me convida até onde estão
meus semelhantes — ninguém que me visse teria um pensamento gentil ou
bons votos para mim. Eu não tenho parentes exceto a mãe universal, a Na-
tureza: procurarei repouso em seu seio.
Avancei diretamente para a urze e continuei até uma depressão profunda
que sulcava a charneca marrom. Vadeei com os joelhos cobertos na vegeta-
ção escura; virei acompanhando suas curvas e, encontrando um rochedo de
granito escurecido por musgo em um ângulo oculto, sentei-me sob ele. Ri-
banceiras altas da charneca erguiam-se ao meu redor e o rochedo protegia
minha cabeça. Acima disso, só havia o céu. Passou-se um tempo antes de eu
me sentir tranquila, mesmo ali. Sentia um temor difuso de que gado solto
pudesse estar próximo ou que alguém caçando por lazer ou ilegalmente pu-
desse me encontrar. Se uma lufada de vento varria os ermos, eu erguia os
olhos, temendo ser o avanço de um boi; se uma narceja assobiava, imagina-
va que fosse um homem. Descobrindo que minhas apreensões eram infun-
dadas, porém, e tranquilizada pelo silêncio profundo que reinava conforme
o fim da tarde declinava rumo ao crepúsculo, fiquei mais confiante. Até en-
tão eu não tinha pensado: só ouvira, vigiara e temera. Finalmente recuperei
a faculdade da reflexão.
O que haveria de fazer? Aonde iria? Ah, questões intoleráveis, quando eu
não podia fazer nada nem ir a lugar algum! Quando um longo caminho ain-
da deveria ser percorrido pelos meus membros exaustos e trêmulos, antes
que eu alcançasse uma moradia humana — quando a caridade fria deveria
ser suplicada antes que eu pudesse encontrar refúgio, e a compaixão relu-
tante importunada, e a repulsa quase certeira incorrida, antes que minha
história pudesse ser ouvida ou uma das minhas necessidades, aliviada!
Toquei a urze. Estava seca, mas ainda quente com o calor do dia de verão.
Olhei para o céu. Estava límpido: uma estrela gentil cintilava logo acima da
borda do rochedo. O orvalho caía, mas com suavidade oportuna, e nenhuma
brisa sussurrava. A natureza parecia-me boa e benigna; pensei que ela me
amava, pária que eu era, e eu, que dos homens só podia esperar desconfian-
ça, rejeição e insultos, aferrei-me a ela com afeição filial. Naquela noite, ao
menos, seria sua convidada, assim como era sua filha. Minha mãe me aloja-
ria sem dinheiro e sem custo. Eu ainda tinha um bocado de comida, o resto
de um pãozinho que comprara em uma cidade pela qual passamos ao meio-
dia com um penny que restara — minha última moeda. Vi mirtilos maduros
cintilando cá e lá, como contas negras no mato. Reuni um punhado e os comi
com o pão. Minha fome, que antes estava aguda, foi, se não satisfeita, ao me-
nos apaziguada por esse repasto de ermitão. Fiz minhas preces noturnas ao
terminá-la e então escolhi meu leito.
Ao lado do rochedo, a urze era profusa. Quando deitei, meus pés ficaram
enterrados nas folhas. Erguendo-se alta de cada lado, restava apenas um es-
paço estreito para o ar noturno invadir. Dobrei o xale no meio e o estendi
sobre mim como cobertor. Uma saliência baixa e coberta de musgo foi meu
travesseiro. Acomodada dessa forma, eu não estava, pelo menos no começo
da noite, com frio.
Meu descanso poderia ter sido agradável, exceto que um coração triste o
perturbava. Ele reclamava de suas feridas abertas, de seu sangramento in-
terno, de seus tendões destroçados. Estremecia de medo pelo sr. Rochester e
o seu destino — lamentava por ele com uma compaixão amarga; demanda-
va-o com uma saudade incessante, e, impotente como um pássaro com as
duas asas quebradas, ainda agitava os cotos inúteis em tentativas vãs de pro-
curá-lo.
Exausta com esses pensamentos torturantes, eu me pus de joelhos. A noite
chegara e seus planetas tinham se erguido. Era uma noite segura e imóvel,
serena demais para a companhia do medo. Sabemos que Deus está em todo
lugar, mas certamente sentimos a presença Dele com mais frequência quan-
do Suas obras se expandem na maior escala possível à nossa frente — e é no
céu noturno sem nuvens, onde os mundos Dele giram em seu curso silencio-
so, que lemos mais claramente Sua infinitude, Sua onipotência, Sua onipre-
sença. Eu tinha me posto de joelhos para rezar pelo sr. Rochester. Erguendo
os olhos, turvos de lágrimas, vi a grandiosa Via Láctea. Lembrando do que
era — quantos sistemas incontáveis varriam aquele espaço como um rastro
suave de luz — eu senti o poder e a força de Deus. Senti confiança na eficiên-
cia Dele de salvar o que criara: fui me convencendo de que a terra nunca pe-
receria, tampouco qualquer das almas que abrigava. Dei graças em minha
prece: a Fonte da Vida também era a Salvação dos espíritos. O sr. Rochester
estava seguro: ele pertencia a Deus, e por Deus seria protegido. Novamente
me aninhei no seio da colina e, pouco depois, no sono, esqueci a tristeza.
Mas no dia seguinte a Necessidade veio até mim, pálida e despida. Bem
depois que os passarinhos tinham deixado seus ninhos, depois que as abe-
lhas tinham vindo na doce aurora coletar o mel da urze antes que o orvalho
secasse, quando as longas sombras da manhã estavam mais curtas e o sol
enchia a terra e o céu, eu me ergui e olhei ao redor.
Que dia imóvel, quente e perfeito! Que deserto dourado era aquela enor-
me charneca! Em todo lugar brilhava o sol. Quis poder viver dentro e sobre
ele. Vi um lagarto disparar sobre o rochedo; vi uma abelha trabalhando en-
tre os doces mirtilos. Naquele momento, teria gostado de me tornar abelha
ou lagarto para encontrar alimentos adequados e um abrigo permanente ali.
Mas eu era um ser humano e tinha as necessidades de um ser humano, en-
tão não deveria me demorar onde não havia nada para supri-las. Levantei e
olhei de volta para o leito que deixara. Sem esperanças quanto ao futuro, de-
sejei apenas uma coisa: que meu Criador, naquela noite, tivesse achado bom
reclamar minha alma enquanto eu dormia, e que aquele corpo exausto, pela
morte poupado de conflitos futuros com o destino, devesse apenas decom-
por-se silenciosamente e misturar-se em paz com o solo daqueles ermos. A
vida, entretanto, ainda estava em minha posse, com todas as suas exigências,
dores e responsabilidades. O fardo teria de ser carregado; a necessidade, su-
prida; o sofrimento, suportado; e a responsabilidade, cumprida. Eu parti.
Quando voltei a Whitcross, segui uma estrada que se afastava do sol, alto
e escaldante. Por nenhuma outra circunstância eu tive forças para fazer mi-
nha escolha. Caminhei por muito tempo e, quando pensei que quase tinha
feito o suficiente e que poderia em sã consciência ceder à fatiga que quase
me dobrava — que poderia suavizar aquela ação forçada e, sentando-me em
uma pedra que vi por perto, submeter-me sem resistência à apatia que en-
tupia coração e membros —, ouvi o badalar de um sino. Um sino de igreja.
Virei-me na direção do som, e lá, entre as colinas românticas, cujas mu-
danças e aspecto eu tinha deixado de notar fazia uma hora, avistei um vila-
rejo e um pináculo. Todo o vale à minha direita estava repleto de pastos,
campos de milho e bosques, e um riacho cintilante ziguezagueava através de
vários tons de verde: os grãos que amadureciam, os bosques escuros, a cam-
pina clara e ensolarada. Lembrando-me, pelo rugido de rodas, da estrada à
frente, vi uma carroça carregada subindo penosamente a colina e, não muito
longe, duas vacas e seu vaqueiro. A vida humana e o trabalho humano esta-
vam próximos. Eu precisava seguir em frente: lutar para permanecer viva e
curvar-me à labuta como todos os outros.
Por volta das duas da tarde, entrei no vilarejo. Ao final de sua única rua,
havia uma lojinha com alguns pães doces na vitrine. Eu cobiçava um deles.
Com esse sustento, talvez pudesse recuperar um grau de energia; sem ele,
seria difícil prosseguir. O desejo por um pouco de força e vigor voltou a mim
assim que me vi entre meus semelhantes. Senti que seria degradante des-
maiar de fome na rua de um vilarejo. Eu não teria nada que pudesse ofere-
cer em troca de um daqueles pães? Refleti. Tinha um pequeno lenço de seda
amarrado no pescoço e minhas luvas. Não fazia ideia de como agiam os ho-
mens e as mulheres nos extremos da pobreza. Não sabia se algum desses
itens seria aceito; provavelmente não, mas eu precisava tentar.
Entrei na loja; uma mulher estava lá. Vendo uma pessoa vestida respeito-
samente, uma dama, ela supôs, avançou com cortesia. Como poderia me ser-
vir? Fui tomada de vergonha. Minha língua não conseguiu proferir o pedido
que eu tinha preparado. Não ousei oferecer-lhe as luvas usadas o lenço vin-
cado. Além disso, senti que era absurdo. Só implorei permissão para sentar-
me por um momento, dado que estava cansada. Decepcionada por ter espe-
rado uma cliente, ela friamente aquiesceu ao pedido. Apontou para uma ca-
deira e eu desabei nela. Sentia uma vontade intensa de chorar, mas, ciente
de como essa manifestação seria desagradável, eu a contive. Logo perguntei
se havia alguma costureira ou bordadeira no vilarejo.
— Sim, duas ou três. Tantas para quanto há trabalho.
Eu refleti. Tinha chegado ao limite. Estava cara a cara com a Necessidade,
na posição de alguém sem recursos: sem um amigo, sem uma moeda. Preci-
sava fazer algo. O quê? Precisava encontrar um emprego. Onde?
Ela saberia de algum lugar na vizinhança que poderia precisar de uma
criada?
Não, ela não sabia.
Qual era a atividade principal naquele lugar? O que a maioria das pessoas
fazia?
Alguns eram trabalhadores do campo, muitos trabalhavam na fábrica de
agulhas do sr. Oliver e na fundição.
O sr. Oliver empregava mulheres?
Não, era trabalho de homens.
E o que as mulheres faziam?
— Não sei — foi a resposta. — Algumas fazem uma coisa, outras, outra.
Gente pobre faz o que pode.
Ela parecia cansada das minhas perguntas. E, de fato, que direito eu tinha
de importuná-la? Um ou dois vizinhos entraram; minha cadeira era eviden-
temente desejada. Eu saí.
Percorri a rua, olhando para todas as casas de um lado e de outro, mas
não consegui encontrar nenhum pretexto nem ver um estímulo para entrar
em qualquer uma delas. Vaguei pelo vilarejo, às vezes caminhando uma cur-
ta distância e voltando, por uma hora ou mais. Profundamente exausta e so-
frendo muito pela falta de comida, virei em uma alameda e sentei-me sob a
sebe. Porém, antes que muitos minutos tivessem se passado, eu estava em pé
outra vez, e novamente procurava alguma coisa: um recurso ou ao menos
um informante. No final da alameda havia uma casinha bonita com um jar-
dim à frente, maravilhosamente ordenado e brilhantemente florescente. Pa-
rei na sua frente. Que direito eu tinha de me aproximar da porta branca ou
tocar a aldrava cintilante? Como poderia ser do interesse dos habitantes da-
quela casa me servir? Mesmo assim, me aproximei e bati. Uma jovem de
olhar brando e trajes limpos abriu a porta. Na voz que poderia ser esperada
de um coração desesperado e de um corpo enfraquecido — uma voz terrivel-
mente baixa e vacilante —, eu perguntei se precisavam de uma criada ali.
— Não — disse ela. — Não contratamos criados.
— Pode me dizer onde posso encontrar um trabalho de qualquer tipo? —
continuei. — Sou uma forasteira, sem amigos neste lugar. Quero trabalhar,
não importa com o quê.
Mas não era problema dela pensar por mim ou procurar-me uma posição.
Além disso, a seus olhos, meu caráter, situação e história deviam ter pareci-
do duvidosos. Ela balançou a cabeça, disse que “sentia muito por não poder
me dar informações”, e a porta branca se fechou. Com gentileza e cortesia,
mas ainda me fechou do lado de fora. Se ela a tivesse mantido aberta mais
um tempo, acredito que eu teria implorado por um pedaço de pão, pois esta-
va desesperada.
Não suportava a ideia de voltar ao vilarejo sórdido, no qual não via ne-
nhuma perspectiva de auxílio. Teria preferido, em vez disso, ir até um bos-
que que vi não muito longe dali, e que parecia, com suas sombras espessas,
um refúgio convidativo, mas estava tão enjoada, tão fraca, tão corroída pelos
anseios da natureza, que o instinto me manteve perambulando perto de mo-
radias onde havia uma chance de obter comida. A solidão não seria solidão
e o repouso não seria repouso enquanto o abutre da fome cravasse o bico e
as garras em meu corpo.
Eu me aproximei de casas; afastei-me e voltei de novo, e de novo vaguei
para longe, sempre repelida pela consciência de que não tinha direito de pe-
dir — nenhum direito de esperar interesse na minha situação solitária. A
tarde avançava enquanto eu vagava como um cão perdido e faminto. Ao
cruzar um campo, vi o pináculo da igreja à minha frente e corri em direção
a ela. Perto do adro, e no meio de um jardim, erguia-se uma casa pequena,
mas bem construída, sem dúvida a casa paroquial. Eu lembrei que desco-
nhecidos que chegam em um lugar onde não têm amigos, e que querem em-
prego, às vezes apelam ao pároco por ajuda e apresentações. É a função do
pároco ajudar, ao menos com conselhos, aqueles que desejam ajudar a si. Eu
parecia ter algum direito de procurar orientação ali. Renovando então mi-
nha coragem, e reunindo meus resquícios débeis de força, avancei com es-
forço. Cheguei à casa e bati na porta da cozinha. Uma velha senhora abriu.
Perguntei se era a casa paroquial.
Era.
O pároco estava em casa?
Não.
Chegaria em breve?
Não, ele tinha viajado.
Muito longe?
Não tanto, uns dois quilômetros. Tinha sido chamado devido à morte
súbita do seu pai; estava em Marsh End e provavelmente ficaria lá mais
uma quinzena.
Havia uma senhora em casa?
Não, não havia ninguém exceto ela, que era a governanta — e dela, leitor,
eu não suportei pedir o alívio da necessidade que me consumia. Ainda não
conseguia implorar, e novamente me afastei, arrastando os pés.
Mais uma vez peguei meu lenço — mais uma vez pensei nos pães da loji-
nha. Ah, uma casca! Um bocado para aliviar as pontadas da fome! Instinti-
vamente voltei o rosto para o vilarejo, encontrei a loja de novo e entrei. E,
embora houvesse outras pessoas lá além da mulher, arrisquei meu pedido:
ela me daria um pão em troca daquele lenço?
Ela me olhou com desconfiança evidente. Não, ela nunca vendia coisas
desse jeito.
Quase desesperada, pedi por meio pãozinho. Ela recusou novamente. Co-
mo saberia onde eu tinha obtido o lenço?
Ela aceitaria minhas luvas?
Não! O que faria com elas?
Leitor, não é agradável demorar-me nesses detalhes. Alguns dizem que há
prazer em recordar uma experiência dolorosa passada, mas até hoje não su-
porto pensar na época à qual aludo: a degradação moral, mesclada com o so-
frimento físico, consistem em uma lembrança angustiante demais para ser
contemplada. Eu não culpo nenhum daqueles que me repeliram. Sentia que
era o esperado e que não podiam evitar. Uma pedinte comum é frequente-
mente alvo de suspeita; uma pedinte bem-vestida inevitavelmente o é. Sim,
eu implorava por trabalho, mas de quem era a obrigação de me encontrar
um trabalho? Não, certamente, de pessoas que me viam pela primeira vez e
não sabiam nada do meu caráter. Quanto à mulher que não aceitou meu len-
ço em troca de um pão, ora, ela tinha razão, se a oferta lhe parecia suspeita
ou a troca injusta. Agora, deixe-me resumir. Estou farta desse assunto.
Um pouco antes do anoitecer passei por uma casa de fazenda, em cuja
porta aberta um fazendeiro estava sentado, comendo sua ceia de pão e quei-
jo. Parei e perguntei:
— O senhor me daria um pedaço de pão? Eu estou com muita fome.
Ele me deu um olhar surpreso, mas, sem responder, cortou uma fatia
grossa do pão e me deu. Imagino que não pensou que eu fosse uma pedinte,
só uma dama um pouco excêntrica que tinha achado seu pão de centeio ape-
titoso. Assim que saí de vista da casa dele, sentei-me e comi.
Não podia esperar encontrar abrigo sob um teto, e o procurei no bosque
ao qual me referi. Mas a noite foi terrível e meu repouso interrompido: a
terra estava úmida, o ar frio, e intrusos passaram perto de mim mais de
uma vez, obrigando-me a me realocar várias vezes. Não tive nenhuma sen-
sação de segurança ou tranquilidade. Perto da manhã começou a chover e o
dia seguinte inteiro foi úmido. Não me peça, leitor, para fazer um relato mi-
nucioso daquele dia; como antes, eu busquei trabalho; como antes, fui rejei-
tada; como antes, passei fome. Porém, uma vez comida passou por meus lá-
bios. Na porta de um chalé vi uma garotinha prestes a jogar um prato de
mingau frio em um cocho de porcos.
— Poderia me dar isso? — perguntei.
Ela me encarou.
— Mamãe! — gritou. — Tem uma mulher que quer o mingau.
— Ora, menina — respondeu uma voz de dentro —, dê pra ela, se for uma
mendiga. O porco não quer.
A garota virou a papa endurecida na minha mão e eu a devorei voraz-
mente.
Conforme o crepúsculo aprofundava-se, parei em uma trilha solitária que
vinha percorrendo por uma hora ou mais.
— Minhas forças estão me deixando — eu disse para mim mesma. — Sinto
que não posso ir muito além. Serei uma pária novamente esta noite? En-
quanto chove tão forte, devo deitar a cabeça no chão frio e encharcado? Te-
mo que não tenha escolha, pois quem me receberá? Mas será terrível, com
essa sensação de fome, fraqueza, frio e desolação… essa total prostração da
esperança. É muito provável, porém, que eu morra antes do amanhecer. E
por que não consigo me reconciliar com a perspectiva da morte? Por que lu-
to para preservar uma vida sem valor? É porque sei, ou acredito, que o sr.
Rochester ainda está vivo, e portanto morrer de fome e frio é um destino ao
qual a natureza humana não pode se submeter passivamente. Ah, Providên-
cia! Sustente-me mais um pouco! Ajude-me, guie-me!
Meu olhar vidrado perscrutou a paisagem escura e enevoada. Percebi que
tinha me afastado muito do vilarejo; ele estava totalmente fora de vista. Os
próprios cultivos que me cercavam tinham desaparecido. Eu tinha, através
de encruzilhadas e veredas, novamente me aproximado de um trecho de
charneca, e por fim só alguns campos, quase tão abandonados e improduti-
vos quanto a urze da qual tinham sido abertos com dificuldade, jaziam entre
a colina escura e eu.
Bem, prefiro morrer aqui do que numa rua ou estrada frequentada, refleti.
Muito melhor que os corvos, se há alguns nessa região, arranquem a pele dos
meus ossos do que aprisionar meu corpo no caixão de um lar de pobres para
apodrecer numa cova de indigente.
Para a colina, então, eu me virei. Alcancei-a. Restava só encontrar uma
depressão onde pudesse me deitar e sentir-me pelo menos oculta, se não a
salvo, mas toda a superfície daquele ermo parecia lisa. Não mostrava varia-
ção, exceto de tonalidade: verde onde juncos e musgo cresciam nos pânta-
nos; preta onde o solo seco só fazia brotar a urze. A noite escurecia. Eu ainda
via as mudanças, embora apenas meras alternâncias de luz e sombra, pois a
luz esmaecera com o dia.
Meu olhar ainda vagava pela colina sombria às margens da charneca, de-
saparecendo em meio à paisagem selvagem, quando, em um ponto difuso,
muito longe entre os pântanos e o cume das elevações, surgiu uma luz. É fo-
go-fátuo, foi meu primeiro pensamento, e imaginei que logo desapareceria.
Mas ela continuou ardendo firmemente, nem recuando nem avançando. Se-
ria então uma fogueira que alguém acendeu?, questionei. Observei para ver se
aumentaria, mas não. Da mesma forma que não diminuía, também não au-
mentava. Pode ser uma vela numa casa, conjecturei em seguida. Mas, se for,
nunca conseguirei alcançá-la. Está longe demais, e, mesmo se estivesse a um
metro de mim, de que serviria? Eu só bateria na porta para vê-la fechar na
minha cara.
Desabei onde estava, escondendo o rosto no chão. Jazi imóvel por um
tempo; o vento noturno varreu a colina e passou sobre mim antes de morrer
lamuriante ao longe. A chuva caía depressa, encharcando-me outra vez até a
pele. Se eu pudesse ter me endurecido à geada imóvel — ao entorpecimento
acolhedor da morte —, ela teria continuado a cair e eu não teria sentido, mas
minha pele ainda viva estremeceu sob a camada enregelante. Pouco depois,
eu me levantei.
A luz ainda estava lá: brilhando fraca, mas constante, através da chuva.
Tentei andar de novo; aos poucos, arrastei meus membros exaustos em sua
direção. Ela me levou obliquamente colina acima e através de um brejo lar-
go, que teria sido impassável no inverno e que mesmo no auge do verão es-
tava encharcado e instável. Caí duas vezes, mas nas duas me ergui e obri-
guei-me a continuar. Aquela luz era minha última esperança — eu precisava
alcançá-la.
Após cruzar o pântano, vi um rastro branco sobre a charneca. Aproximei-
me. Era uma estrada ou trilha e levava direto até a luz, agora brilhando em
uma espécie de outeiro entre um grupo de árvores — abetos, aparentemente,
pelo que pude distinguir de suas formas e folhagem através da escuridão.
Então minha estrela se apagou enquanto eu me aproximava. Algum obstá-
culo tinha intervindo entre nós. Estendi a mão para tatear a escuridão à mi-
nha frente; distingui as pedras ásperas de um muro baixo e, acima, algo co-
mo paliçadas e, no interior, uma sebe alta e espinhosa. Continuei apalpando.
Novamente um objeto esbranquiçado brilhou à minha frente. Era um por-
tão, uma cancela, e moveu-se nas dobradiças quando o empurrei. De cada
lado havia um arbusto escuro: azevinho ou teixo.
Quando atravessei o portão e passei pelos arbustos, a silhueta de uma casa
se ergueu à vista, preta, baixa e bastante extensa, mas a luz que me guiara
não brilhava em lugar algum. Tudo era escuridão. Será que os residentes ti-
nham ido para a cama? Temi que fosse o caso. Ao procurar a porta, virei
uma curva e eis que surgiu o brilho amigável outra vez, atrás das vidraças
em losango de uma janela treliçada muito pequena, a menos de trinta centí-
metros do chão, cuja visão era ainda mais restrita devido à hera ou outra
trepadeira que crescia sobre ela e cujas folhas se aglomeravam espessas so-
bre aquela parte da parede. A abertura era tão oculta e estreita que uma
cortina ou persiana tinham sido consideradas desnecessárias e, quando me
agachei e afastei a folhagem que crescia ali, enxerguei tudo lá dentro. Vi cla-
ramente um cômodo com um piso de madeira lixado e encerado até brilhar;
uma cômoda de nogueira, com pratos de peltre enfileirados, refletindo a
vermelhidão e o brilho de uma lareira com fogo alto, alimentado por turfa.
Vi o relógio, uma mesa branca de pinho, algumas cadeiras. A vela, cujo raio
fora meu farol, ardia na mesa, e à sua luz uma mulher mais velha, de aspec-
to um pouco rústico — mas escrupulosamente limpa, como tudo ao seu redor
—, tricotava uma meia.
Notei esses objetos só de passagem; não havia nada de extraordinário ne-
les. Um grupo de pessoas mais interessante sentava-se perto da lareira, imó-
veis entre a paz e o calor rosado que a atravessava. Duas mulheres jovens e
elegantes — damas, sob todos os aspectos — estavam sentadas ali, uma em
uma cadeira de balanço baixa, a outra em um banco mais baixo ainda. Am-
bas usavam trajes de luto, de crepe e algodão aveludado, e as peças escuras
destacavam pescoços e rostos muito alvos. Um grande cão de caça apoiava a
cabeça enorme no joelho de uma moça, e no colo da outra descansava um
gato preto.
Que lugar estranho era aquela cozinha humilde para tais ocupantes!
Quem seriam? Não podiam ser as filhas da idosa à mesa, pois ela parecia
uma mulher simples e as duas eram só delicadeza e educação. Eu nunca vira
rostos como os delas; contudo, enquanto os fitava, senti que estava intima-
mente familiarizada com cada feição. Não posso chamá-las de belas — eram
pálidas e sérias demais para a palavra. Debruçadas sobre livros, pareciam
pensativas ao ponto da severidade. Um apoio entre elas sustentava uma se-
gunda vela e dois grandes volumes, que elas frequentemente consultavam,
comparando-os, pareceu-me, com os livros menores que seguravam nas
mãos, como se consultassem um dicionário para ajudá-las em uma tradu-
ção. Essa cena era silenciosa como se todas as figuras fossem sombras e o cô-
modo iluminado pelo fogo, uma pintura; tão quieta que eu ouvia as cinzas
caindo na lareira e o relógio tiquetaqueando no canto escuro, e até imaginei
distinguir o clique-clique das agulhas de tricô da mulher mais velha. Por-
tanto, quando uma voz por fim rompeu a estranha imobilidade, a ouvi bem.
— Escute, Diana — disse uma das estudantes concentradas —, Franz e o ve-
lho Daniel estão juntos à noite, e Franz está contando um sonho do qual
acordou aterrorizado… escute!
Em voz baixa, ela leu algo do qual nenhuma palavra me foi inteligível,
pois estava em uma língua desconhecida: nem francês, nem latim. Se era
grego ou alemão, eu não sabia dizer.
— Que forte — disse ela, ao terminar. — Gostei muito.
A outra moça, que tinha erguido a cabeça para ouvir a irmã, repetiu, en-
quanto fitava o fogo, uma frase do trecho lido. Mais tarde, eu viria a conhe-
cer a língua e o livro, portanto citarei a frase aqui, embora, quando a ouvi
pela primeira vez, soasse para mim apenas como o sino que tine156 e não te-
nha transmitido qualquer significado:
— “Da trat hervor Einer, anzusehen wie die Sternen Nacht”. Bom! Bom! —
exclamou ela, enquanto seu olhar escuro e profundo cintilava. — Cá temos
um arcanjo sombrio e poderoso à sua frente! A frase vale cem páginas de
prolixidade. “Ich wäge die Gedanken in der Schale meines Zornes und die
Werke mit dem Gewichte meines Grimms.”157 Gostei!
Ambas ficaram em silêncio outra vez.
— Tem algum país onde falam assim? — perguntou a idosa, erguendo os
olhos do tricô.
— Sim, Hannah. Um país muito maior que a Inglaterra, onde falam de ou-
tro jeito.
— Bem, eu que não sei como eles se entendem por lá, e se uma de vocês
fosse pra lá, não ia saber o que eles dizem, né?
— Provavelmente conseguiríamos entender um pouco do que dissessem,
mas não tudo, pois não somos tão inteligentes quanto você pensa, Hannah.
Não falamos alemão e não conseguimos ler sem um dicionário para nos aju-
dar.
— E de que adianta isso?
— Pretendemos ensinar a língua em algum momento. Pelo menos os fun-
damentos, como se diz, e então vamos ganhar mais dinheiro do que temos
agora.
— Pode até ser, mas parem de estudar. Já estudaram demais por hoje.
— Acho que sim. Eu estou cansada. Você também, Mary?
— Mortalmente. Afinal, é difícil tentar compreender uma língua sem pro-
fessor exceto um dicionário.
É
— É mesmo, especialmente uma língua como esse incompreensível mas
glorioso alemão. Quando será que St. John vai voltar para casa?
— Não deve demorar muito, acabou de soar as dez — respondeu a outra,
olhando um reloginho de ouro que tirou da cintura. — Está chovendo muito.
Hannah, pode fazer a gentileza de atiçar o fogo na sala de estar?
A mulher se ergueu e abriu uma porta, através da qual distingui vaga-
mente um corredor. Logo a ouvi atiçar o fogo em um cômodo interno e em
pouco tempo ela retornou.
— Ah, meninas! — disse ela. — Fico nervosa de entrar naquela sala agora,
parece tão solitária c’a poltrona vazia empurrada prum canto.
Ela enxugou os olhos com o avental. As duas moças, antes sérias, pareci-
am tristes.
— Mas ele está em um lugar melhor — continuou Hannah. — Não desejarí-
amos que estivesse aqui de volta. Além disso, ninguém nunca teve uma
morte mais tranquila.
— Você disse que ele não falou de nós? — perguntou uma das damas.
— Não teve tempo, meninas… partiu num minuto, o seu pai. Se sentiu um
pouco mal um dia antes, mas nada demais, e quando o sr. St. John pergun-
tou se ele queria que a gente chamasse uma de vocês, chegou a rir dele. No
dia seguinte começou a sentir a cabeça um pouco pesada… isso foi uma
quinzena atrás… e aí foi dormir e nunca mais acordou. Já estava morto
quando o seu irmão entrou no quarto e encontrou ele. Ah, meninas! Ele era
o último das antigas, porque vocês e o sr. St. John são um tipo diferente de
gente, por mais que a sua mãe fosse muito parecida com vocês e quase tão
instruída. Ela era igualzinha a você, Mary. Diana parece mais c’o pai.
Eu as achara tão parecidas que não sabia que diferença via a velha criada
(pois concluí que era a criada). Ambas tinham tez clara e silhueta esguia;
ambas tinham rostos distintos e inteligentes. Uma, decerto, tinha cabelo um
pouco mais escuro que a outra, e havia uma diferença no estilo em que o
usavam: as mechas castanhas-claras de Mary estavam repartidas e trança-
das; o cabelo mais escuro de Diana cobria o pescoço com cachos espessos. O
relógio bateu as dez.
— Vocês vão querer a janta, tenho certeza — observou Hannah —, e o sr. St.
John também, quando chegar.
Ela foi preparar a refeição. As damas se ergueram, parecendo prestes a se
retirar para a sala de estar. Até esse momento, eu estava tão concentrada em
observá-las — sua aparência e conversa tinham despertado um interesse tão
agudo em mim — que quase esquecera minha própria situação infeliz. Re-
cordei-me novamente, e ela me pareceu, pelo contraste, mais desolada e de-
sesperada do que nunca. Como parecia impossível fazer as residentes da-
quela casa se preocuparem comigo, fazê-las acreditar na verdade das mi-
nhas necessidades e sofrimentos — induzi-las a conceder-me um repouso
após minhas andanças! Enquanto eu tateava em busca da porta e batia nela
com hesitação, senti que a última ideia era uma quimera. Hannah a abriu.
— Pois não? — perguntou ela, em um tom de surpresa, examinando-me à
luz da vela que segurava.
— Posso falar com as suas patroas? — perguntei.
— É melhor falar pra mim o que tem pra dizer pra elas. De onde vem?
— Sou uma forasteira.
— O que tá fazendo aqui a essa hora?
— Procuro abrigo por uma noite, em um anexo ou qualquer lugar, e um
bocado de pão para comer.
Desconfiança — exatamente o sentimento que eu temia — apareceu no ros-
to de Hannah.
— Eu te dou um pedaço de pão — disse ela, após uma pausa —, mas a gente
num pode abrigar uma mendiga. De jeito nenhum.
— Deixe-me falar com suas patroas.
— Eu não. O que elas podem fazer por você? Não devia estar vagando por
aí numa hora dessas, não é certo.
— Mas para onde irei se me rechaçar? O que farei?
— Ah, aposto que você sabe pra onde ir e o que fazer. Atente pra não fazer
nada errado, só isso. Tome cá um penny, agora vá emb…
— Um penny não pode me alimentar e não tenho forças para ir além. Não
feche a porta… ah, não feche a porta, pelo amor de Deus!
— Tenho que fechar, a chuva tá entrando…
— Chame as senhoritas. Me deixe falar com elas!
— Num vou, não. Você não é o que parece ou não faria todo esse escarcéu.
Vá embora.
— Mas eu vou morrer se for rejeitada!
— Vai, não. Acho que tá tramando coisa ruim, que te traz pra casa das pes-
soas a essa hora da noite. Se tem alguém te seguindo aqui por perto… assal-
tantes ou coisa assim… pode falar pra eles que não estamos sozinhas em ca-
sa, temos um cavalheiro e cães e armas.
Neste ponto, a criada honesta mas inflexível bateu a porta e a trancou por
dentro.
Foi o ápice. Uma pontada de sofrimento intenso — um espasmo de verda-
deiro desespero — perfurou e estraçalhou meu coração. Eu estava esgotada,
não conseguia dar outro passo. Desabei no patamar úmido e soltei um gemi-
do. Retorci as mãos e chorei em completa angústia. Ah, o espectro da morte!
Ah, aquela última hora que se aproximava com tamanho horror! Ai de mim,
aquele isolamento… aquela rejeição dos meus semelhantes! Não só a âncora
do lar, mas o apoio da coragem tinha sumido, ao menos por um momento.
Mas o último eu logo me esforcei para recuperar.
— Não tenho escolha exceto morrer — disse eu — e acreditar em Deus.
Aguardarei a vontade Dele em silêncio.
Essas palavras eu não só pensei, mas falei em voz alta e, empurrando toda
a infelicidade de volta no coração, fiz um esforço para mantê-la ali, calada e
imóvel.
— Todos os homens devem morrer — disse uma voz próxima —, mas nem
todos estão condenados a encontrar um fim demorado e prematuro, como
seria o seu se morresse aqui de frio e fome.
— Quem ou o que fala? — perguntei, aterrorizada com o som inesperado e
incapaz de nutrir qualquer esperança de ajuda àquela altura.
Havia uma figura próxima, mas a escuridão da noite e minha visão enfra-
quecida me impediram de distingui-la. Com uma batida alta, o recém-che-
gado chamou à porta.
— É o senhor, sr. St. John? — exclamou Hannah.
— Sim, sim, abra depressa.
— Ora, como deve tá molhado e frio, numa noite ruim dessas! Entre… suas
irmãs estão preocupadas c’o senhor e creio que tem gente ruim por perto.
Uma mendiga passou aqui… e não foi embora ainda! Está deitada ali! Levan-
ta! Que vergonha! Vai embora, eu já disse!
— Cale-se, Hannah! Eu tenho algo a dizer à mulher. Você fez seu dever ao
rejeitá-la, agora me deixe fazer o meu ao admiti-la. Eu estava por perto e
ouvi vocês duas. Penso que esse é um caso peculiar, devo ao menos investi-
gá-lo. Jovem, levante-se e entre na casa à minha frente.
Com dificuldade, obedeci. Logo encontrei-me naquela cozinha limpa e
iluminada, diante do mesmo fogo, trêmula, enjoada e ciente de ter um as-
pecto extremamente desolado, desalinhado e desgastado pelos elementos. A
criada e as duas damas, assim como seu irmão, o sr. St. John, me fitavam.
— St. John, quem é? — ouvi uma perguntar.
— Não sei, eu a encontrei na porta — foi a resposta.
— Ela tá muito branca mesmo — comentou Hannah.
— Branca como argila ou como a morte — foi a resposta. — Ela vai desmai-
ar; deixe que se sente.
De fato, eu estava tonta. Desabei, e uma cadeira me recebeu. Ainda estava
consciente, mas não conseguia falar.
— Talvez um pouco de água a reanime. Hannah, pegue um copo para
mim. Mas ela é só pele e osso! Como está magra e pálida!
— Um mero espectro!
— Está doente ou só faminta?
— Faminta, acredito. Hannah, isso é leite? Dê aqui e pegue um pedaço de
pão.
Diana (eu sabia que era ela pelos longos cachos que vi entre mim e o fogo
enquanto se curvava à minha frente) partiu o pão, mergulhou um pedaço no
leite e o levou aos meus lábios. Seu rosto estava perto do meu. Vi que havia
compaixão nele e senti simpatia em sua respiração acelerada. Em suas pala-
vras simples, expressou-se a mesma emoção como um bálsamo:
— Tente comer.
— Isso, tente — repetiu Mary com gentileza.
Ela tirou minha touca encharcada e ergueu minha cabeça. Provei o que
eles me ofereceram; devagar no começo, mas logo com avidez.
— Não muito de uma vez, contenham-na — disse o irmão. — Ela comeu o
suficiente.
Ele pegou a caneca de leite e o prato de pão.
— Um pouco mais, St. John. Veja como os olhos dela estão ávidos.
— Por enquanto não, irmã. Veja se ela consegue falar. Pergunte o seu nome.
Senti que conseguiria falar e respondi.
— Meu nome é Jane Elliott.
Ansiosa como sempre para evitar ser encontrada, eu já tinha resolvido as-
sumir um pseudônimo.
— E onde mora? Onde estão seus amigos?
Fiquei em silêncio.
— Podemos chamar alguém que conhece?
Balancei a cabeça.
— O que pode contar sobre si mesma?
Por algum motivo, uma vez que tinha atravessado o limiar daquela casa e
me encontrava diante dos seus ocupantes, eu não me sentia mais uma pária,
errante e abandonada por todo o mundo. Ousei descartar o papel de mendi-
cante e reassumir meus modos e caráter naturais. Comecei novamente a me
reconhecer e, quando o sr. St. John exigiu um relato, que no momento eu es-
tava fraca demais para dar, falei após uma breve pausa:
— Senhor, não posso dar-lhe detalhes esta noite.
— Mas então o que — disse ele — espera que eu faça pela senhorita?
— Nada — respondi.
Só tinha forças para respostas breves.
Diana interveio.
— Quer dizer — perguntou ela — que já lhe demos o auxílio de que precisa-
va? E podemos mandá-la de volta à charneca e à noite chuvosa?
Olhei para ela. Achei seu semblante notável, marcado por inteligência e
bondade. De repente, senti a coragem erguer-se em mim. Respondendo seu
olhar compassivo com um sorriso, eu disse:
— Confiarei em vocês. Se eu fosse um vira-lata sem dono, sei que não me
afastariam de sua lareira esta noite. Portanto, não temo. Façam comigo o que
quiserem, mas dispensem-me de falar muito… estou um pouco sem fôlego…
sinto um espasmo quando falo.
Os três me examinaram e mantiveram silêncio.
— Hannah — disse o sr. St. John por fim —, deixe-a ficar aqui por enquanto
e não faça mais perguntas. Daqui a dez minutos, dê a ela o resto do leite e do
pão. Mary e Diana, vamos discutir a questão na sala.
Eles se retiraram. Muito em breve uma das damas retornou, não sei dizer
qual. Uma espécie de estupor agradável me dominava ao lado do fogo aco-
lhedor. Em um tom baixo, ela deu algumas orientações a Hannah. Pouco de-
pois, com a ajuda da criada, consegui subir uma escada; minhas roupas mo-
lhadas foram retiradas e logo uma cama quente e seca me recebeu. Agradeci
a Deus, experimentei em meio à exaustão inexprimível um fulgor de feliz
gratidão, e adormeci.
156. Alusão a 1 Coríntios 13:1 (“Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos an-
jos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine”).
↵
157. Citação em alemão da peça Os bandoleiros (1781) de Friedrich Schiller (1759–
1805): “E então um deu um passo à frente parecido com as estrelas da noite […]
Eu meço pensamentos na balança da minha raiva e os feitos com o peso da mi-
nha fúria” (Ato 5, cena 1).
↵
Capítulo XXIX
M
inha casa, portanto — quando enfim encontro uma casa
—, é um chalé. Um pequeno cômodo com paredes caiadas
de branco e o piso de madeira, contendo quatro cadeiras
pintadas e uma mesa, um relógio, um armário com dois ou três pratos
e travessas e um conjunto de chá de cerâmica esmaltada. No andar de
cima, há um quarto do mesmo tamanho que a cozinha, com uma ca-
ma de madeira de pinho e uma cômoda com gavetas; pequena, mas
grande demais para ser preenchida pelo meu escasso guarda-roupa,
embora a gentileza dos meus amáveis e generosos amigos o tenha am-
pliado com um estoque modesto de itens necessários.
É o fim da tarde. Dispensei, com o pagamento de uma laranja, a pe-
quena órfã que me serve como criada. Estou sentada sozinha junto à
lareira. Nesta manhã, a escola do vilarejo foi inaugurada. Eu tenho
vinte alunas, mas só três delas sabem ler e nenhuma conhece a escrita
ou a aritmética. Várias tricotam e algumas bordam um pouco. Elas fa-
lam com um forte sotaque do distrito. No momento, temos dificuldade
em entender a língua umas das outras. Algumas delas são mal-educa-
das, grosseiras e intratáveis, além de ignorantes, mas outras são dó-
ceis, têm vontade de aprender e demonstram uma disposição que me
agrada. Não devo esquecer que essas pequenas campesinas vestidas
em roupas rústicas são de carne e sangue, tão boas quanto as filhas da
genealogia mais nobre, e que as sementes da excelência, do refina-
mento, da inteligência e da gentileza inata têm tantas chances de exis-
tir em seus corações quanto no de garotas de berço. Meu dever será
cultivar essas sementes, e certamente encontrarei alguma felicidade
ao desempenhar esse papel. Não espero sentir muito prazer com a vi-
da que se descortina à minha frente, no entanto, sem dúvida, se regu-
lar minha mente e exercer minhas capacidades como devo, ela me
concederá o suficiente para viver de um dia a outro.
Será que eu estava muito alegre, confortável e satisfeita durante as
horas que passei naquela sala de aula despojada e humilde, nesta ma-
nhã e tarde? Para não mentir, devo responder que não: sentia-me um
pouco infeliz. Sentia-me — sim, idiota que sou — degradada. Suspeitei
que tinha dado um passo que me afundava em vez de erguer-me na
escala da existência social. Fiquei um pouco abismada com a ignorân-
cia, a pobreza e a grosseria de tudo que vi e ouvi ao meu redor. Não
me odiarei e desprezarei demais por esses sentimentos; sei que são er-
rados, e isso já é um grande passo. Vou me esforçar para superá-los.
Amanhã, confio que os dominarei parcialmente, e em algumas sema-
nas, talvez, eles estarão subjugados. Em alguns meses, é possível que a
felicidade de ver o progresso e uma mudança para o melhor em mi-
nhas alunas possa substituir a aversão pela satisfação.
Enquanto isso, faço-me uma pergunta: o que seria melhor? Ter ce-
dido à tentação, ouvido à paixão, não ter feito nenhum esforço doloro-
so nem empreendido nenhuma luta, e cair em uma armadilha de se-
da, adormecer nas flores que a cobrem e despertar em um clima do
sul, entre os luxos de uma villa de lazer; estar morando agora na
França como a amante do sr. Rochester, arrebatada pelo seu amor por
metade do tempo — pois, ah, sim, ele teria me amado muito por um
tempo. Ele me amava de fato; ninguém jamais me amará da mesma
forma. Nunca mais conhecerei a doce homenagem feita à beleza, ju-
ventude e graça — pois nunca, a mais ninguém, parecerei ter esses en-
cantos. Ele sentia por mim afeto e orgulho, e nenhum outro homem
jamais fará o mesmo. Mas por que divago, o que estou dizendo e, aci-
ma de tudo, sentindo? Eu me perguntava se seria melhor ser escravi-
zada em um falso paraíso em Marselha, febril de êxtase ilusório em
um momento, sufocando com as lágrimas mais amargas de remorso e
vergonha no seguinte, ou ser a professora de um vilarejo, livre e ho-
nesta, em um refúgio montanhês ventoso no coração sadio da Ingla-
terra?
Sinto agora que estava certa quando aderi aos princípios e às leis e
desprezei e esmaguei os impulsos insanos de um momento frenético.
Deus me conduziu à escolha correta: agradeço à Sua providência pela
orientação!
Quando minhas reflexões vespertinas chegaram a esse ponto, eu me
levantei, fui até a porta e contemplei o pôr do sol no dia de colheita e
os campos tranquilos diante do meu chalé, que, como a escola, ficava
a cerca de um quilômetro do vilarejo. Os pássaros cantavam suas últi-
mas notas:
160. Citação equivocada de The Lay of the Last Minstrel, de Sir Walter Scott:
“O ar estava brando, o vento estava calmo/ O riacho corria suave, o or-
valho era um bálsamo” (canto III, estrofe XIV).
↵
161. Em Gênesis 19:26, a esposa de Ló olha para trás enquanto foge da des-
truição da cidade de Sodoma, e como punição é transformada em uma
estátua de sal.
↵
Capítulo XXXII
C
ontinuei meus trabalhos na escola do vilarejo o mais ativa e
honestamente que pude. Era um trabalho duro, de fato, no
começo. Passou-se algum tempo antes que, com todos os meus
esforços, conseguisse compreender minhas alunas e sua natureza. Sem
qualquer educação prévia, com as faculdades entorpecidas, elas me pa-
reciam profundamente obtusas e, à primeira vista, todas obtusas da
mesma forma, mas logo descobri que estava enganada. Havia uma di-
ferença entre elas, assim como entre garotas instruídas, e, quando pas-
sei a conhecê-las e elas, a me conhecer, essa diferença rapidamente se
fez notar. Uma vez abrandado o seu assombro em relação a mim, mi-
nha linguagem, minhas regras e hábitos, vi algumas daquelas garotas
rústicas e embasbacadas, de aspecto grosseiro, despertarem e se torna-
rem garotas bastante espertas. Muitas se mostraram obedientes e amá-
veis, e encontrei entre elas vários exemplos de educação e respeito pró-
prio naturais, assim como de excelentes capacidades, que conquista-
ram tanto minha boa vontade como minha admiração. Essas logo pas-
saram a sentir prazer em fazer bem o seu trabalho, manter-se apru-
madas, aprender as lições com regularidade e adquirir modos discretos
e comportados. A rapidez do progresso, em alguns casos, era até sur-
preendente, e eu sentia um orgulho honesto e contente. Além disso, co-
mecei a gostar de algumas das melhores garotas, e elas, de mim. Entre
elas, havia várias filhas de fazendeiros, quase moças crescidas. Essas já
sabiam ler, escrever e costurar, e ensinei-lhes os elementos de gramáti-
ca, geografia, história e os tipos mais refinados de bordado. Encontrei
personalidades estimáveis em seu meio — ávidas por conhecimento e
propensas ao aperfeiçoamento —, com as quais passei muitas tardes
agradáveis em suas próprias casas. Nessas ocasiões, os seus pais (o fa-
zendeiro e a esposa) me enchiam de atenções. Era um prazer aceitar a
gentileza simples e retribuí-la com consideração, uma atenção escru-
pulosa aos seus sentimentos, que eles talvez não estivessem acostuma-
dos a receber, e que os encantava e beneficiava porque, ao mesmo tem-
po que os elevava a seus próprios olhos, enchia-os do desejo de mere-
cer aquele tratamento deferente.
Senti que eu me tornei uma favorita na vizinhança. Aonde quer que
fosse, ouvia por todos os lados saudações cordiais e era recebida com
sorrisos amistosos. Viver entre a consideração geral, ainda que apenas
de trabalhadores, é como “sentar-se ao sol, calmo e doce”:162 sentimen-
tos serenos florescem e desabrocham sob os feixes de luz. Nesse perío-
do da minha vida, era muito mais frequente meu coração se encher de
gratidão do que murchar de tristeza. No entanto, leitor, para contar-lhe
toda a verdade, no meio dessa calma, dessa existência útil, após um dia
passado em esforços dignos entre minhas alunas e uma noite dese-
nhando ou lendo sozinha em contentamento, eu tinha sonhos estra-
nhos à noite: sonhos de muitas cores, agitados, cheios de imagens ide-
ais, comoventes, tempestuosas; sonhos nos quais, entre cenas inco-
muns, carregadas de aventura, com riscos estimulantes e acidentes ro-
mânticos, eu encontrava de novo e de novo o sr. Rochester, sempre em
alguma crise emocionante, e então tinha a sensação de estar em seus
braços, ouvir a sua voz, encontrar o seu olhar, tocar sua mão e rosto,
amá-lo e ser amada por ele — e a esperança de passar uma vida ao seu
lado era renovada, com toda a força e o fervor inicial. Então eu acorda-
va. Então me lembrava de onde estava e em que situação. Então levan-
tava da cama sem dossel, trêmula e abalada, e a noite imóvel e escura
testemunhava as convulsões do desespero e ouvia as explosões da pai-
xão. Às nove horas, na manhã seguinte, eu abriria pontualmente a es-
cola: tranquila, sob controle e pronta para os deveres habituais do dia.
Rosamond Oliver cumpriu a promessa de me visitar. Geralmente vi-
sitava a escola durante sua cavalgada matinal. Chegava à porta a meio
galope no seu pônei, seguida por um criado de uniforme a cavalo. Difi-
cilmente se pode imaginar algo mais esplêndido que ela em seu traje
de cavalgada púrpura, com um capacete de amazona de veludo preto
disposto graciosamente sobre os longos cachos que beijavam as faces e
caíam até os ombros — e era assim que ela entrava na construção rústi-
ca e deslizava pelas fileiras de crianças deslumbradas do vilarejo. Em
geral, ela chegava na hora em que o sr. Rivers estava ocupado na cate-
quese diária. O olhar da visitante perfurava agudamente, receio, o co-
ração do jovem pastor. Uma espécie de instinto parecia alertá-lo da
chegada dela, mesmo quando não a via, e se ele estivesse de costas pa-
ra a porta e ela aparecesse ali, seu rosto corava e suas feições marmó-
reas, embora se recusassem a relaxar, mudavam indescritivelmente, e
em repouso exprimiam um fervor reprimido mais forte do que um
músculo retesado ou um olhar de soslaio poderiam indicar.
Naturalmente, ela estava ciente do seu poder; ele não o escondia de-
la, pois não era capaz disso. Apesar do estoicismo cristão, quando ela
se aproximava para conversar e sorria, alegre e encorajadora, até com
afeto, a mão dele tremia e o olhar faiscava. Ele parecia dizer, com o
olhar triste e resoluto, ainda que não com a boca: Eu a amo, e sei que
você me favorece. Não é a dúvida quanto ao meu sucesso que me mantém
calado. Se eu oferecesse meu coração, acredito que o aceitaria. Mas esse
coração já foi oferecido em um altar sagrado: o fogo queima ao seu redor
e logo não será mais do que um sacrifício consumido.
Então ela fazia beicinho, como uma criança decepcionada. Uma nu-
vem pensativa suavizava sua vivacidade radiante; ela afastava a mão
depressa da dele e virava-se com petulância momentânea para longe
do semblante dele, que ao mesmo tempo parecia pertencer a herói e
mártir. St. John, sem dúvida, teria dado tudo para segui-la, chamá-la e
segurá-la ali quando ela o deixava dessa forma, mas ele não desistiria
de sua única chance de alcançar o céu, nem abandonaria, pelo elísio do
amor dela, sua única esperança do Paraíso verdadeiro e eterno. Além
disso, não conseguiria englobar tudo que existia em sua natureza — o
andarilho, o aspirante, o poeta, o sacerdote — nos confins de uma única
paixão. Não podia trocar, e não trocaria, o feroz campo de batalha mis-
sionária pelas salas de visitas e a paz de Vale Hall. Ouvi isso de sua
própria boca, em uma incursão que, uma vez, apesar da sua reserva,
arrisquei fazer na confidência dele.
A srta. Oliver já me honrava com visitas frequentes ao meu chalé.
Eu tinha apreendido todo o seu caráter, que não tinha mistério ou dis-
simulação: ela era coquete, mas não cruel; exigente, mas não desneces-
sariamente egoísta. Suas vontades tinham sido feitas desde que nasce-
ra, mas não era completamente mimada. Era precipitada, mas bem-
humorada; vaidosa (era inevitável, quando todo olhar no espelho lhe
mostrava tanto viço e beleza), mas não afetada; generosa; inocente do
orgulho da riqueza; engenhosa; bastante inteligente; alegre, vivaz e
despreocupada. Era muito charmosa, em suma, mesmo a uma obser-
vadora imparcial do seu próprio sexo como eu, mas não era muito in-
teressante, nem especialmente impressionante. Seu tipo de mente era
muito diverso, por exemplo, do das irmãs de St. John. Ainda assim, eu
gostava dela quase tanto quanto de minha aluna Adèle, exceto que com
uma criança de quem cuidamos e que ensinamos cria-se uma afeição
mais próxima do que podemos sentir por uma conhecida adulta com
os mesmos atrativos.
Ela tinha tomado um interesse amável por mim. Disse que eu era
como o sr. Rivers (ainda que, admitiu, certamente “não possuísse nem
um décimo da beleza dele: era uma mocinha simpática e arrumada,
mas ele era um anjo”). Porém, como ele, eu era bondosa, inteligente,
tranquila e firme. Era uma lusus naturae,163 afirmou ela, como profes-
sora de escola de vilarejo. Ela tinha certeza de que minha história pre-
gressa, se conhecida, resultaria em um romance encantador.
Uma noite, enquanto, com empolgação infantil e curiosidade irrefle-
tida mas não ofensiva, ela remexia no armário e na gaveta da mesa em
minha pequena cozinha, encontrou dois livros franceses, um volume
de Schiller, uma gramática e um dicionário do alemão, e então meus
instrumentos de desenho e alguns esboços, incluindo um retrato a
lápis de uma garotinha angelical (uma das minhas alunas) e paisagens
diversas, desenhadas no Vale de Morton e nas charnecas circundantes.
A princípio, ficou paralisada de surpresa, e então, eletrizada de prazer.
Eu tinha feito aqueles desenhos? Falava francês e alemão? Que
amor, que milagre eu era! Eu desenhava melhor do que o professor de-
la, na melhor escola de S… Faria um retrato dela para mostrar ao pai?
— Com prazer — respondi, e senti a emoção agradável da artista à
ideia de copiar de um modelo tão perfeito e radiante.
Ela usava, na ocasião, um vestido de seda azul-escuro, de braços e
pescoço nus, e por único ornamento as madeixas castanhas, que ondu-
lavam sobre os ombros com a graça indomável dos cachos naturais.
Peguei uma fina folha de papel acartonado e esbocei um contorno cui-
dadoso. Prometi-me o prazer de colori-lo depois e, como estava fican-
do tarde, disse a ela que viesse posar outro dia.
Ela fez tal relato de mim ao pai que o próprio sr. Oliver a acompa-
nhou na noite seguinte. Era um homem de meia-idade alto, com fei-
ções marcantes e cabelo grisalho, ao lado do qual a adorável filha pare-
cia uma flor colorida ao lado de uma torre cinza. Ele parecia taciturno
e talvez orgulhoso, mas foi muito gentil comigo. O esboço de Rosa-
mond lhe agradou muito, e ele disse que eu devia terminar o retrato.
Insistiu também para que eu passasse a noite seguinte em Vale Hall.
Eu fui. Descobri que era uma residência grande e bonita, mostrando
evidências abundantes da riqueza do proprietário. Rosamond foi toda
alegria e prazer pelo tempo que permaneci. O pai foi afável e, quando
conversou comigo após o chá, expressou em termos fortes sua aprova-
ção do que eu fizera na escola de Morton, e disse que só temia, pelo que
via e ouvia, que eu fosse boa demais para aquele lugar e logo o aban-
donasse por uma situação mais vantajosa.
— De fato! — exclamou Rosamond. — Ela é inteligente o bastante para
ser preceptora em uma família nobre, papai.
Eu pensei: Preferiria estar onde estou a qualquer família nobre no pa-
ís. O sr. Oliver então falou do sr. Rivers, e da família Rivers, com gran-
de respeito. Disse que era um nome muito antigo na vizinhança, que os
ancestrais eram gente de fortuna, que toda Morton já tinha pertencido
a eles e que mesmo então ele considerava que o representante daquela
casa poderia, se desejasse, fazer uma aliança com as melhores famílias.
Ele considerava uma pena que um rapaz tão elegante e talentoso tives-
se decidido partir como missionário; era jogar fora uma vida valiosa.
Parecia, então, que o pai não teria apresentado obstáculos à união de
Rosamond com St. John. O sr. Oliver evidentemente considerava o
berço do jovem pároco, seu nome antigo e sua profissão sagrada como
compensações suficientes à falta de fortuna.
Era o dia 5 de novembro, um feriado.164 Minha humilde criada, após
me ajudar a limpar a casa, tinha ido embora, muito satisfeita com o
pagamento de um penny por sua ajuda. Tudo ao meu redor estava im-
pecável e brilhante — o assoalho, encerado, o guarda-fogo, polido e as
cadeiras, bem esfregadas. Eu também me arrumara e tinha a tarde à
minha frente para passar como preferisse.
A tradução de algumas páginas de alemão ocupou uma hora, depois
peguei minha paleta e lápis e entreguei-me à tarefa mais apaziguadora,
porque mais fácil, de completar a miniatura de Rosamond Oliver. A
cabeça já estava concluída: faltava apenas colorir o fundo e sombrear
as cortinas, assim como acrescentar um toque de carmesim aos lábios
cheios, um cacho cá e lá às madeixas e um tom mais profundo na som-
bra das pestanas sob a pálpebra azulada. Eu estava absorta na execu-
ção desses pequenos detalhes quando, após uma batida rápida, minha
porta se abriu e revelou St. John Rivers.
— Vim ver como está passando seu feriado — disse ele. — Espero que
não esteja perdida em reflexões. Não, muito bem. Enquanto desenha
não se sentirá solitária. Veja que eu ainda desconfio de você, embora
tenha resistido maravilhosamente até agora. Eu lhe trouxe um livro
para lhe consolar à noite.
Ele pôs na mesa uma nova publicação poética, uma daquelas produ-
ções genuínas tantas vezes concedidas ao público afortunado daqueles
tempos, a era dourada da literatura moderna. Ai de nós! Os leitores da
nossa época são menos favorecidos. Mas coragem! Não vou me inter-
romper, seja para acusar ou lamentar. Sei que a poesia não está morta,
nem a genialidade perdida, nem Mamom165 ganhou poder de prender
ou destruir qualquer um dos dois: ambos ainda vão impor sua existên-
cia, presença, liberdade e força algum dia. Anjos poderosos, a salvo no
paraíso, sorriem quando as almas sórdidas triunfam e as fracas cho-
ram por sua destruição! A poesia, destruída? A genialidade, exilada?
Não! Mediocridade, não — não deixe que a inveja o conduza a esta
ideia. Não, elas não apenas vivem, como reinam e redimem, e sem sua
influência divina espalhada por todo lugar, você estaria no inferno —
no inferno da própria insignificância.
Enquanto eu examinava avidamente as páginas coloridas de Marmi-
on (pois era Marmion)166, St. John curvou-se para examinar meu de-
senho e endireitou com um sobressalto a silhueta alta. Ele não disse
nada. Ergui os olhos e ele os evitou. Eu conhecia bem seus pensamen-
tos e lia seu coração com facilidade; naquele instante, sentia-me mais
calma e controlada que ele. Por um momento, eu tinha a vantagem e
senti vontade de fazer-lhe algum bem, se pudesse.
Com toda essa severidade e autocontrole, pensei, ele se força demais.
Tranca todo sentimento e dor dentro de si; não expressa, confessa, nem
transmite nada. Tenho certeza de que lhe faria bem falar um pouco des-
sa doce Rosamond que ele pensa que não deve desposar. Vou fazê-lo fa-
lar.
Primeiro eu disse:
— Sente-se, sr. Rivers.
Mas ele respondeu, como sempre, que não podia ficar. Muito bem,
retruquei mentalmente, fique em pé, se desejar, mas estou determinada
a não o deixar ir embora ainda. A solidão é no mínimo tão ruim para
você quanto para mim. Vejamos se não consigo descobrir a fonte secreta
de sua confidência e encontrar uma abertura nesse peito de mármore
através da qual possa verter uma gota do bálsamo da simpatia.
— O retrato está parecido? — perguntei diretamente.
— Parecido? Com quem? Não o observei de perto.
— Observou, sim, sr. Rivers.
Ele quase se sobressaltou com minha resposta brusca e estranha;
olhou para mim atônito. Ah, isso não é nada, murmurei comigo mes-
ma. Não pretendo ser desencorajada por um pouco de rigidez da sua
parte, estou pronta para ir aos extremos.
Continuei:
— O senhor o observou de perto e distintamente, mas não me opo-
nho se quiser examiná-lo novamente.
Eu me levantei para entregar o papel em sua mão.
É
— É um retrato muito bem executado — disse ele. — Cores suaves e
nítidas, um desenho muito gracioso e correto.
— Sim, sim, eu sei de tudo isso. Mas e quanto à semelhança? Com
quem se parece?
Dominando certa hesitação, ele respondeu:
— Com a srta. Oliver, presumo.
— É claro. E agora, senhor, para recompensá-lo pelo palpite correto,
prometo lhe pintar uma cópia cuidadosa e fiel deste mesmo retrato, se
o senhor admitir que o presente seria desejável. Não quero desperdiçar
tempo e esforço em uma oferta que o senhor julgaria sem valor.
Ele continuou a fitar o retrato: quanto mais olhava, com mais firme-
za o segurava e mais parecia cobiçá-lo.
— É parecido! — murmurou. — Os olhos estão bem-feitos, a cor, a luz
e a expressão estão todas perfeitas. A imagem sorri!
— O senhor ficaria reconfortado ou entristecido se tivesse uma pin-
tura parecida? Diga-me, quando estiver em Madagascar, ou no Cabo,
ou na Índia, seria um consolo ter essa recordação em sua posse? Ou a
visão lhe traria lembranças que só iriam irritar e afligir?
Ele furtivamente ergueu o rosto. Olhou para mim, indeciso e pertur-
bado, e examinou o retrato outra vez.
— Que eu gostaria de tê-lo não há dúvida. Se seria sensato ou sábio, é
outra questão.
Desde que eu tinha confirmado que Rosamond realmente gostava
dele e que não era provável que o pai se opusesse à união, eu — menos
exaltada em minhas opiniões do que St. John — estava fortemente in-
clinada, em meu coração, a defender o casamento. Parecia-me que, se
ele tomasse posse da grande fortuna do sr. Oliver, poderia fazer tanto
bem com ela quanto faria se mandasse seu intelecto para murchar e
sua força para definhar sob um sol tropical. Persuadida desse fato, dis-
se:
— Pelo que posso ver, seria mais sábio e mais sensato se o senhor to-
masse a modelo para si mesmo de uma vez.
Àquela altura, ele se sentara. Havia deixado o retrato na mesa à sua
frente e, com a testa apoiada nas duas mãos, curvava-se carinhosa-
mente sobre ele. Percebi que não estava nem furioso, nem chocado
com a minha audácia. Vi que ser abordado de forma franca quanto a
um assunto que julgara inabordável — e ouvi-lo ser discutido de forma
tão livre — começava a se tornar um novo prazer, um alívio inespera-
do. Pessoas reservadas muitas vezes precisam de uma discussão franca
de seus sentimentos e dores mais do que as expansivas. O estoico de
aspecto mais austero ainda é humano, afinal, e “irromper” com ousa-
dia e boa vontade no “mar silencioso”167 de suas almas é muitas vezes
conferir-lhes o maior dos favores.
— Ela gosta do senhor, eu tenho certeza — eu disse, parando atrás da
cadeira dele. — E o pai dela o respeita. Além disso, é uma garota doce.
Um pouco irrefletida, mas o senhor tem reflexão suficiente para os
dois. Deveria casar-se com ela.
— Ela gosta mesmo de mim? — perguntou ele.
— Certamente, mais do que de qualquer outro. Fala do senhor toda
hora. Não há nenhum assunto que ela aprecie tanto ou aborde com
tanta frequência.
— É muito agradável ouvir isso — disse ele. — Muito. Continue por
outros quinze minutos.
Ele chegou a tirar o relógio e apoiá-lo na mesa para medir o tempo.
— Mas de que adianta continuar — perguntei —, se o senhor está pro-
vavelmente preparando um golpe de ferro para me contradizer ou for-
jando uma nova corrente para agrilhoar seu coração?
— Não imagine coisas tão duras. Veja-me cedendo e amolecendo, co-
mo faço agora: o amor humano erguendo-se como uma fonte recém-
aberta na minha mente e transbordando em uma doce torrente sobre
todo o campo que arei com tanto cuidado e com tanto esforço… que
cultivei tão assiduamente com as sementes das boas intenções, de pla-
nos altruístas. E agora o campo é inundado com uma enchente de néc-
tar, as jovens sementes encharcadas, apodrecendo com o veneno delici-
oso. Agora eu me vejo esticado em um sofá na sala de estar de Vale
Hall, aos pés da minha noiva, Rosamond Oliver. Ela está falando comi-
go com sua voz doce, olhando-me com aqueles olhos que sua mão ha-
bilidosa copiou tão bem, sorrindo para mim com seus lábios de coral.
Ela é minha, eu sou dela, esta vida presente e este mundo transitório
me são suficientes. Silêncio! Não diga nada. Meu coração transborda de
prazer, meus sentidos estão arrebatados… deixe que o tempo que eu
marquei transcorra em paz.
Fiz a sua vontade. O relógio tiquetaqueou enquanto ele respirava
rápido e baixo, e eu fiquei em silêncio. Em meio à quietude, os quinze
minutos passaram voando. Ele devolveu o relógio ao lugar, abaixou o
retrato, ergueu-se e foi até a lareira.
— Agora — disse ele —, este pequeno espaço foi dado ao delírio e à
ilusão. Descansei as têmporas no seio da tentação e ofereci o pescoço
voluntariamente ao seu jugo de flores. Provei do seu cálice. O traves-
seiro queimava; há uma víbora na guirlanda, o vinho tem um gosto
amargo, as promessas dela são ocas, suas ofertas, falsas. Eu vejo e sei
de tudo isso.
Eu o fitei com assombro.
— É estranho — continuou ele. — Por mais que eu ame Rosamond
Oliver ferozmente, com toda a intensidade, de fato, de uma primeira
paixão cujo objeto é magnificamente belo, gracioso e fascinante, expe-
rimento ao mesmo tempo uma consciência calma e racional de que ela
não seria uma boa esposa, que não é a parceira mais apropriada para
mim, e que eu descobriria isso dentro de um ano após o casamento e a
doze meses de êxtase se seguiria uma vida de arrependimentos. Disso
eu sei.
— Estranho de fato! — Não pude evitar a exclamação.
— Enquanto algo em mim — prosseguiu ele — está agudamente sensí-
vel aos charmes dela, outra parte se impressiona profundamente com
os seus defeitos. São defeitos tais que a impediriam de simpatizar com
qualquer coisa a que eu aspiro, cooperar com qualquer coisa que eu
empreendesse. Rosamond, uma sofredora, trabalhadora, uma apósto-
la? Rosamond, esposa de um missionário? Jamais!
— Mas o senhor não precisa ser um missionário. Poderia abandonar
esse plano.
— Abandonar? O quê? Minha vocação? Minha grande obra? Minha
fundação construída na terra para uma mansão nos céus? Minhas es-
peranças de ser contado entre aqueles que mesclaram todas as ambi-
ções na meta gloriosa de aperfeiçoar sua espécie, de levar o conheci-
mento para os domínios da ignorância, de substituir a guerra pela paz,
o cativeiro pela liberdade, a superstição pela religião, o medo do infer-
no pela esperança do paraíso? Devo abandonar tudo isso? É mais caro
a mim que o sangue em minhas veias. É por isso que anseio, é por isso
que vivo.
Após uma pausa considerável, eu disse:
— E a srta. Oliver? A decepção e o sofrimento dela não o interessam?
— A srta. Oliver está cercada por pretendentes e bajuladores. Em
menos de um mês, minha imagem desbotará em seu coração. Ela vai
me esquecer e casar-se, provavelmente, com alguém que a fará muito
mais feliz do que eu poderia.
— O senhor fala de modo muito racional, mas o conflito o faz sofrer.
Está definhando.
— Não. Se emagreço um pouco, é pela ansiedade em relação aos
meus planos, ainda indefinidos… com a minha partida continuamente
procrastinada. Esta manhã mesmo, recebi a informação de que meu
sucessor, cuja chegada espero há muito tempo, ainda levará pelo me-
nos três meses para poder me substituir, e os três podem se estender a
seis.
— O senhor estremece e ruboriza toda vez que a srta. Oliver entra na
sala de aula.
Novamente, uma expressão de surpresa cruzou seu rosto. Ele não ti-
nha imaginado que uma mulher ousaria falar dessa forma com um ho-
mem, mas eu me sentia confortável com esse tipo de conversa. Nunca
pude relaxar ao me comunicar com mentes fortes, discretas e refina-
das, fossem masculinas ou femininas, até ter ultrapassado as defesas
externas da reserva convencional e cruzado o limiar da confidência
para ganhar um lugar perto do centro do seu coração.
— Você é original — disse ele — e não é tímida. Há algo corajoso em
seu espírito, assim como penetrante em seu olhar, mas permita-me as-
segurar-lhe de que se engana em parte sobre minhas emoções. Você as
julga mais profundas e potentes do que são. Concede-me mais simpatia
do que eu tenho direito a receber. Quando ruborizo e estremeço diante
da srta. Oliver, não sinto pena de mim mesmo. Desprezo a fraqueza.
Sei que é ignóbil, uma mera febre da carne e não, eu lhe asseguro, uma
convulsão da alma. Esta está tão fixa quando uma rocha entranhada
nas profundezas de um mar revolto. É isto que sou: um homem frio e
duro.
Eu sorri, incrédula.
— Você tomou minha confidência de assalto — continuou ele — e ago-
ra ela se abre à sua frente. Eu sou simplesmente, em meu estado origi-
nal, privado das vestes branqueadas no sangue com as quais o cristia-
nismo cobre a deformidade humana,168 um homem frio, duro e ambi-
cioso. Apenas a afeição natural, de todos os sentimentos, exerce um
poder permanente sobre mim. A Razão, não o Sentimento, é o meu
guia: minha ambição é ilimitada e meu desejo de subir mais alto e fa-
zer mais do que os outros, insaciável. Eu prezo a resistência, a perseve-
rança, a diligência e o talento, porque esses são os meios pelos quais os
homens logram grandes objetivos e alcançam a eminência. Observo
sua carreira com interesse, porque considero você um exemplo de mu-
lher diligente, organizada e energética, não porque me compadeço pro-
fundamente pelo que superou ou pelo que ainda sofre.
— O senhor se descreve como um mero filósofo pagão — eu disse.
— Não. Há uma diferença entre eu e os filósofos deístas: eu creio, e
creio no Evangelho. Você errou no epíteto. Eu não sou pagão, mas um
filósofo cristão, seguidor da seita de Jesus. Como Seu discípulo, adoto
Suas doutrinas puras, misericordiosas, benignas. Eu as defendo e jurei
difundi-las. Conquistado na juventude pela religião, ela cultivou mi-
nhas qualidades originais da seguinte forma: a partir do menor germe
de afeição natural, desenvolveu a árvore extensa da filantropia. Da raiz
selvagem e nodosa da integridade humana, gerou o devido senso da
justiça divina. Da ambição de poder e renome para o meu eu miserá-
vel, originou a ambição de espalhar o reino do meu Senhor e obter vi-
tórias para o estandarte da cruz. Foi isso que a religião fez por mim,
transformando os materiais originais da melhor forma, podando e
treinando a natureza. Mas ela não pôde erradicar a natureza, a qual
não será erradicada “até que o que é mortal se revista da imortalida-
de”.169
Tendo dito isso, ele pegou o chapéu, que estava na mesa ao lado da
minha paleta, e mais uma vez olhou o retrato.
É
— Ela é adorável — murmurou ele. — É certo que a chamem de Rosa
do Mundo!170
— E não posso pintar uma cópia para o senhor?
— Cui bono?171 Não.
Ele puxou sobre a pintura a folha de papel fina em que eu descansa-
va a mão ao pintar para evitar que o papel acartonado manchasse. O
que viu subitamente nesse papel branco, foi impossível para mim di-
zer, mas algo atraiu sua atenção. Ele o ergueu com um movimento
brusco; examinou a borda, depois me lançou um olhar inexprimivel-
mente peculiar e inteiramente incompreensível, um olhar que parecia
ver e tomar nota de cada ponto da minha figura, rosto e vestimentas,
pois percorreu tudo, rápido e afiado como um raio. Seus lábios se en-
treabriram, como se fosse falar, mas ele conteve a frase, qualquer que
fosse.
— O que foi? — perguntei.
— Absolutamente nada — foi a resposta e, devolvendo o papel ao lu-
gar, eu o vi habilmente arrancar uma faixa estreita da margem, que
desapareceu em sua luva.
Com um aceno apressado e um “boa tarde”, ele desapareceu.
— Ora! — exclamei, usando uma expressão do distrito. — Não entendi
patavina!
Também examinei o papel, mas não vi nada nele exceto algumas
manchas de tinta onde havia testado o tom do pincel. Ponderei o mis-
tério por um minuto ou dois, mas, achando-o insolúvel, e estando certa
de que não podia ser muito importante, descartei-o e logo o esqueci.
E
le não foi para Cambridge no dia seguinte, como tinha dito
que faria. Adiou a partida uma semana inteira e, durante esse
período, me fez perceber como um homem bom, mas rigoro-
so, escrupuloso, mas implacável, é capaz de infligir um castigo severo
a quem o ofendeu. Sem um único ato de hostilidade ostensiva, sem
uma palavra de censura, ele conseguiu me transmitir perfeitamente a
convicção de que eu estava fora do alcance do seu afeto.
Não que St. John tivesse algum espírito de revanchismo, contrário à
sua convicção cristã — não teria tocado em um fio do meu cabelo, nem
se estivesse em seu poder fazê-lo. Tanto por natureza como por prin-
cípios, ele estava acima da satisfação mesquinha da vingança. Ele me
perdoara por dizer que desprezava ele e seu amor, mas não tinha es-
quecido as palavras e, enquanto vivêssemos, nunca as esqueceria. Eu
via em seu olhar, quando ele se virava para mim, que elas estavam
sempre escritas no ar entre nós. Toda vez que eu falava, aquelas pala-
vras soavam de novo em minha voz e alcançavam o seu ouvido, e seu
eco permeava toda resposta que ele dava a mim.
Ele não deixou de conversar comigo. Toda manhã, até me chamava,
como de costume, à sua escrivaninha, e receio que o homem corrupto
dentro dele sentia um prazer, que não era transferido e compartilhado
pelo cristão puro, em demonstrar com que habilidade podia, enquanto
parecia agir e falar como sempre, privar cada ato e frase do espírito de
interesse e aprovação que antes transmitia certo charme austero a sua
linguagem e seus modos. A verdade é que para mim ele não era mais
carne, e sim mármore; seus olhos eram joias azuis, frias e brilhantes, e
sua língua, um instrumento de fala — nada mais.
Tudo isso me torturava, uma tortura refinada e prolongada. Ela
mantinha aceso um fogo baixo de indignação e uma ansiedade sofrida
e trêmula que me agredia e esmagava. Eu via que, se fosse sua esposa,
aquele homem bom, puro como uma fonte profunda que o sol não to-
ca, poderia rapidamente me matar, sem extrair de minhas veias uma
única gota de sangue ou receber sobre a própria consciência cristalina
a menor mácula criminosa. Sentia isso especialmente quando fazia
qualquer tentativa de aplacá-lo. Nenhuma tristeza vinha de encontro
à minha. Ele não sentia nenhuma dor devido ao afastamento, não an-
siava pela reconciliação. E, embora mais de uma vez minhas lágrimas
tenham caído copiosamente e molhado a página sobre a qual estáva-
mos curvados, elas não tinham mais efeito sobre ele do que se seu co-
ração fosse realmente feito de pedra ou metal. Enquanto isso, com as
irmãs, ele era um pouco mais gentil do que de costume, como se te-
messe que a mera frieza não me convencesse o suficiente de que eu
estava completamente banida e excluída, e quisesse acrescentar a for-
ça do contraste. Isso eu tenho certeza de que ele não fazia por malícia,
mas por princípio.
Na noite anterior à sua partida, quando o vi por acaso caminhando
no jardim ao pôr do sol e lembrei que, por mais afastado que estives-
se, aquele homem uma vez salvara minha vida e era meu parente
próximo, senti-me impelida a fazer uma última tentativa de recupe-
rar sua amizade. Saí da casa e avancei até ele, que estava curvado so-
bre o pequeno portão. Fui direto ao ponto.
— St. John, estou infeliz porque ainda está bravo comigo. Sejamos
amigos.
— Espero que sejamos amigos — foi a resposta impassível dele, ain-
da assistindo à ascensão da lua, que estivera contemplando enquanto
eu me aproximava.
— Não, St. John, não somos amigos como antes. Você sabe disso.
— Não somos? Não é verdade. De minha parte, não lhe desejo ne-
nhum mal e sim todo o bem.
— Acredito nisso, St. John, pois tenho certeza de que é incapaz de
desejar mal a qualquer pessoa. Porém, uma vez que sou sua prima, é
natural que deseje uma afeição um pouco maior do que a filantropia
geral que você estende a meros desconhecidos.
— É claro — disse ele. — Seu desejo é razoável e estou longe de consi-
derá-la uma desconhecida.
Essas palavras, ditas em um tom frio e tranquilo, foram humilhan-
tes e desconcertantes. Se eu tivesse atendido às sugestões do orgulho e
da ira, o teria deixado no mesmo instante, mas algo agiu dentro de
mim com mais força do que aqueles sentimentos. Eu venerava pro-
fundamente o talento e os princípios do meu primo. Sua amizade era-
me valiosa; era intensamente doloroso pensar que a perderia. Eu não
queria desistir tão rápido da chance de recuperá-la.
— Devemos nos separar dessa forma, St. John? Quando for à Índia,
vai me deixar assim, sem uma palavra mais gentil do que falou até
agora?
Aqui ele parou de encarar a lua e virou o rosto para mim.
— Quando eu for à Índia, Jane, vou deixá-la? Como assim? Você
não vai à Índia?
— Você disse que eu não poderia a não ser que estivéssemos casa-
dos.
— E não vai se casar comigo? Insiste nessa resolução?
O leitor por acaso conhece, como eu, o terror que pessoas frias con-
seguem insinuar em suas perguntas gélidas? Sabe como sua fúria con-
tém muito da queda da avalanche, e seu desagrado, da quebra do mar
congelado?
— Não, St. John, eu não vou desposá-lo. Atenho-me à minha resolu-
ção.
A avalanche oscilou e deslizou um pouco para a frente, mas ainda
não veio abaixo.
— Novamente, por que essa recusa?
— Antes — respondi —, era porque você não me amava. Agora res-
pondo assim porque quase me odeia. Se nos casássemos, você me ma-
taria. Está me matando agora.
Os lábios e faces dele ficaram lívidos — completamente lívidos.
— Eu a mataria… eu a estou matando? Você usa palavras que não
deveriam ser usadas: violentas, falsas e inadequadas a uma mulher.
Elas traem um estado de espírito lamentável e merecem uma repri-
menda severa. Seriam imperdoáveis, exceto que é o dever do homem
perdoar seu semelhante, até setenta vezes sete vezes.180
Eu passara dos limites. Embora sinceramente desejasse apagar da
mente dele os traços de minha ofensa anterior, eu tinha deixado na-
quela superfície tenaz uma impressão ainda mais profunda — eu a ti-
nha gravado a fogo.
— Agora vai me odiar de fato — eu disse. — É inútil tentar uma re-
conciliação. Vejo que o tornei um inimigo para sempre.
Essas palavras infligiram uma nova ofensa, ainda mais porque se
aproximavam da verdade. Aquele lábio exangue sofreu um breve es-
pasmo. Eu conhecia a ira cortante que tinha amolado. Meu coração se
apertou.
— Você interpreta mal minhas palavras — eu disse, tomando a mão
dele de imediato. — Não tenho qualquer intenção de aborrecê-lo ou fe-
ri-lo. Prometo que não.
Ele abriu um sorriso amargurado e retirou a mão da minha com
firmeza.
— E agora você recorda sua promessa e não irá à Índia de forma al-
guma, eu presumo? — perguntou ele após uma pausa demorada.
— Irei como sua assistente — respondi.
Um silêncio muito longo se seguiu. Que batalha era travada nele
entre a Natureza e a Graça nesse intervalo, eu não sei dizer. Só que
centelhas singulares cintilaram nos olhos dele e sombras estranhas
cruzaram seu rosto. Por fim, ele falou:
— Eu já provei a você como seria absurdo uma mulher solteira da
sua idade propor-se a acompanhar um homem solteiro da minha.
Provei-o em tais termos que, imaginei, a teriam impedido de jamais
aludir a esse plano outra vez. Lamento que o tenha feito… pelo seu
próprio bem.
Eu o interrompi. Qualquer coisa próxima de uma censura tangível
imediatamente me enchia de coragem.
— Tenha bom senso, St. John. Está beirando o disparate. Finge estar
chocado pelo que eu disse, mas não o está de verdade, pois, com sua
mente superior, não pode ser obtuso ou arrogante a ponto de não
compreender o significado das minhas palavras. Digo de novo: eu o
ajudarei como missionária, se desejar, mas jamais serei sua esposa.
Outra vez ele empalideceu, mas, como antes, controlou as emoções
violentas perfeitamente. Respondeu de modo enfático, mas com cal-
ma:
— Uma missionária que não é minha esposa jamais se adequaria aos
meus propósitos. Comigo, então, parece que você não pode ir. Mas, se
estiver sendo sincera em sua oferta, quando eu for à cidade vou falar
com um missionário casado cuja esposa precisa de uma assistente.
Sua própria fortuna a tornará independente da ajuda da Sociedade, e
assim você ainda pode ser poupada da desonra de quebrar sua pro-
messa e desertar o grupo a que prometeu se juntar.
O leitor sabe que eu nunca fizera qualquer promessa formal, nem
assumira qualquer compromisso, e essas expressões eram duras e
despóticas demais para a ocasião. Respondi:
— Não há desonra nem quebra de promessa ou deserção neste caso.
Eu não estou sob qualquer obrigação de ir à Índia, especialmente com
desconhecidos. Com você eu teria me aventurado porque o admiro,
confio em você e, como sua irmã, o amo, mas estou convencida de
que, independentemente de quando ou com quem eu fosse, não sobre-
viveria muito naquele clima.
— Ah, você teme por si mesma! — disse ele, torcendo o lábio.
— Temo. Deus não me deu a vida para jogá-la fora, e começo a pen-
sar que fazer como o senhor deseja seria quase equivalente ao suicí-
dio. Além disso, antes de resolver definitivamente deixar a Inglaterra,
desejo ter certeza absoluta de que não posso ser mais útil ficando aqui
do que partindo.
— Como assim?
— Seria inútil tentar explicar, mas há uma questão sobre a qual há
muito tempo suporto uma dúvida dolorosa, e não posso ir a lugar al-
gum até essa dúvida ser sanada.
— Sei para onde seu coração se volta e ao que se aferra. O interesse
que você nutre é ilegal e profano. Deveria tê-lo esmagado há muito
tempo, e ruboriza agora ao aludir a ele. Está pensando no sr. Roches-
ter?
Era verdade. Confessei pelo silêncio.
— Vai procurá-lo?
— Devo descobrir o que aconteceu com ele.
— Então — disse ele —, resta-me lembrar de você em minhas preces
e suplicar a Deus, com toda a sinceridade, que não se torne uma con-
denada de fato. Pensei ter visto em você uma das escolhidas. Mas
Deus não vê como o homem: a vontade Dele será feita.
Ele abriu o portão, atravessou-o e caminhou pelo vale. Logo saiu de
vista.
Ao entrar na sala de visitas, encontrei Diana parada à janela, pare-
cendo muito reflexiva. Ela era muito mais alta que eu; apoiou a mão
no meu ombro e curvou-se para examinar meu rosto.
— Jane — disse ela —, ultimamente você está sempre pálida e agita-
da. Sei que há algum problema. Diga-me o que você e St. John andam
discutindo. Eu os observei da janela durante a última meia hora; per-
doe-me por espiar, mas há muito tempo tenho imaginado nem sei o
quê. St. John é uma criatura estranha…
Ela se calou. Eu não falei, e ela logo continuou:
— Aquele meu irmão tem opiniões peculiares de algum tipo a seu
respeito, tenho certeza: há muito tempo a distingue com uma atenção
e interesse que nunca demonstrou por mais ninguém. Com que fim?
Eu gostaria que ele a amasse. Ele a ama, Jane?
Eu encostei sua mão fria em minha testa quente.
— Não, Die, nem um pouco.
— Então por que a segue com os olhos e a tira à parte tantas vezes e
a mantém continuamente ao seu lado? Mary e eu concluímos que ele
queria se casar com você.
— Ele quer. Pediu que eu fosse sua esposa.
Diana bateu as mãos.
É
— É exatamente o que esperávamos e pensávamos! E você vai se ca-
sar com ele, Jane, não vai? E então ele vai ficar na Inglaterra.
— Longe disso, Diana. O único objetivo dele ao propor-me casa-
mento era encontrar uma ajudante adequada para sua missão india-
na.
— Como assim? Ele quer que você vá à Índia?
— Quer.
— Que insanidade! — exclamou ela. — Você não sobreviveria três
meses lá, tenho certeza. Não pode ir. Você não concordou, não é, Ja-
ne?
— Eu me recusei a me casar com ele…
— E por isso o desagradou? — adivinhou ela.
— Profundamente. Receio que ele nunca me perdoará. No entanto,
ofereci-me para acompanhá-lo como sua irmã.
— Foi uma completa insensatez de sua parte, Jane. Pense na tarefa a
que se propôs, uma missão extenuante, na qual a fadiga mata até os
mais fortes, e você é fraca. St. John, eu o conheço, a incitaria a impos-
sibilidades. Com ele lá, você não teria permissão para repousar nas
horas quentes e, infelizmente, eu notei que você se obriga a realizar o
que quer que ele exija. Estou espantada que teve a coragem para recu-
sar a proposta de casamento. Não o ama, Jane?
— Não como marido.
— Mas ele é um belo homem.
— E eu sou muito sem graça, Die. Nunca seríamos um bom par.
— Sem graça? Você? De forma alguma. É bonita demais, assim como
boa demais, para ser cozinhada viva em Calcutá.
Outra vez ela me instou sinceramente a abandonar a ideia de partir
com o irmão.
— Pelo visto, é verdade — respondi. — Pois agora mesmo, quando re-
peti minha oferta de servi-lo como um diácono, ele expressou choque
com a minha falta de pudor. Parecia pensar que eu tinha cometido
uma impropriedade ao propor acompanhá-lo sem estarmos casados,
como se eu não tivesse, desde o primeiro momento, esperado encon-
trar nele um irmão e me acostumado a considerá-lo dessa forma.
— O que a faz pensar que ele não a ama, Jane?
— Você deveria ouvi-lo falar sobre o assunto. Vez após vez explicou
que não é para si mesmo, mas para o seu ofício, que deseja uma com-
panheira. Disse que eu sou feita para o trabalho, não para o amor. O
que é verdade, sem dúvida; mas, na minha opinião, se eu não sou feita
para o amor, segue-se que não sou feita para o casamento. Não seria
estranho, Die, ficar acorrentada pelo resto da vida a um homem que
nos considera apenas uma ferramenta útil?
— Insuportável, absurdo, fora de questão!
— Portanto — continuei —, embora eu só sinta um afeto fraternal por
ele, se fosse obrigada a ser sua esposa, imagino que começaria a sentir
uma espécie de amor inevitável, estranho e torturante por ele, porque
ele é tão talentoso e muitas vezes há uma espécie de grandeza heroica
em seu semblante, modos e discursos. Nesse caso, minha existência se
tornaria inexprimivelmente infeliz. Ele não desejaria que eu o amasse
e, se eu demonstrasse o sentimento, faria com que eu soubesse que era
algo supérfluo: indesejado por ele e indecoroso em mim. Sei que o fa-
ria.
— No entanto, St. John é um bom homem — disse Diana.
— Ele é um bom homem, um grande homem, mas se esquece impie-
dosamente dos sentimentos e direitos das pessoas pequenas ao perse-
guir suas grandes metas. É melhor, portanto, que os insignificantes fi-
quem fora do seu caminho, de modo a não serem pisoteados em sua
marcha. Cá vem ele! Vou deixá-la agora, Diana.
E subi correndo ao vê-lo entrar no jardim.
Contudo, fui obrigada a reencontrá-lo no jantar. Durante a refeição,
ele pareceu tão calmo quanto de costume. Pensei que mal falaria co-
migo e estava segura de que tinha desistido do plano matrimonial,
mas o que ocorreu em seguida provou que estava enganada nos dois
pontos. Ele se dirigiu a mim do seu modo de sempre, ou o que vinha
sendo seu modo ultimamente — isto é, com polidez escrupulosa. Sem
dúvida invocara a ajuda do Espírito Santo para reprimir a raiva que
eu havia despertado nele e acreditava ter me perdoado novamente.
Para a leitura noturna antes das preces, selecionou o vigésimo pri-
meiro capítulo do Apocalipse. Era sempre agradável ouvir as palavras
bíblicas caírem dos seus lábios: sua bela voz soava doce e encorpada, e
a simplicidade nobre de seus modos nunca era mais impressionante
do que quando ele recitava os oráculos de Deus. Naquela noite, sua
voz assumiu um tom mais solene, sua maneira, um significado mais
tocante, enquanto sentava-se em meio a seu círculo doméstico, com a
lua de maio, que brilhava através da janela aberta, tornando quase
desnecessária a luz da vela na mesa. Sentado ali, debruçado sobre a
grande e velha Bíblia, leu de suas páginas a visão do novo céu e da
nova terra — contando como Deus viria habitar com os homens, como
limparia as lágrimas de seus olhos e prometeria que não haveria mais
morte, pranto ou clamor, nem dor, porque as primeiras coisas já ti-
nham passado.181
As palavras seguintes me comoveram estranhamente, em especial
porque senti, devido a uma leve e indescritível alteração no som, que
ao proferi-las seu olhar tinha se voltado para mim.
— Quem vencer, herdará todas as coisas; e eu serei seu Deus, e ele
será meu filho — ele leu, lenta e distintamente — Mas, quanto aos tími-
dos, e aos incrédulos etc., a sua parte será no lago que arde com fogo e
enxofre; o que é a segunda morte.182
A partir de então, eu sabia qual destino St. John temia para mim.
Um triunfo calmo e contido, mesclado com uma sinceridade ávida,
marcou sua leitura dos últimos versículos gloriosos daquele capítulo.
O leitor acreditava que seu nome já estava escrito no livro da vida do
Cordeiro e ansiava pela hora em que seria admitido à cidade à qual os
reis da terra levam sua glória e honra, que não tem necessidade de sol
ou lua para iluminá-la, porque a glória de Deus a ilumina e o Cordei-
ro é a sua luz.
Na prece que se seguiu à leitura do capítulo, toda sua energia se er-
gueu — todo seu zelo severo despertou. Ele falou de todo coração, lu-
tando com Deus e cobiçando uma conquista. Suplicou por força pelos
fracos de coração, por orientação aos que se afastavam do rebanho —
por um retorno, mesmo na última hora, daqueles que as tentações do
mundo e da carne afastavam do caminho reto. Ele pediu, instou, rei-
vindicou a benção de um tição arrebatado do incêndio.183 A sincerida-
de é sempre profundamente solene: no começo, enquanto ouvia aque-
la prece, duvidei da dele; em seguida, conforme continuou e soer-
gueu-se, fiquei comovida e por fim assombrada. Ele sentia a grandeza
e bondade de seu propósito com muita seriedade — e aqueles que o
ouviam suplicar por sua realização não podiam deixar de senti-las
também.
Terminada a prece, nós o deixamos. Ele sairia muito cedo pela ma-
nhã. Diana e Mary o beijaram e deixaram a sala, de acordo, creio, com
uma sugestão sussurrada por ele. Estendi a mão e lhe desejei uma vi-
agem agradável.
— Obrigado, Jane. Como já disse, retornarei de Cambridge em uma
quinzena. Esse período, portanto, deixo para você refletir. Se eu ou-
visse o orgulho humano, não diria mais nada a você sobre casamento,
mas ouço o meu dever e permaneço firme em vista do meu objetivo
principal: fazer todas as coisas pela glória de Deus. Meu Senhor é pa-
ciente, eu também serei. Não posso abandoná-la à perdição como um
receptáculo da ira. Arrependa-se e tome uma decisão enquanto ainda
há tempo. Lembre-se, somos instados a fazer as obras enquanto é dia,
avisados de que “a noite vem, quando ninguém pode trabalhar”.184
Lembre-se do destino do homem rico, que recebeu bens nesta vida.185
Deus lhe dá a força para escolher a melhor parte, que não lhe será ti-
rada!
Ele apoiou a mão em minha cabeça ao proferir as últimas palavras.
Tinha falado com sinceridade e serenidade. Seu olhar, de fato, não era
o de um amante contemplando a amada, mas de um pastor chamando
as ovelhas desgarradas — ou, antes, de um anjo da guarda velando a
alma pela qual era responsável. Todos os homens de talento, sejam
eles sentimentais ou não, sejam fanáticos, aspirantes ou déspotas, con-
tanto apenas que sejam sinceros, têm seus momentos sublimes, em
que subjugam e governam. Eu venerava St. John, com tanta força que
seu ímpeto me impeliu de imediato ao ponto que rejeitara por tanto
tempo. Fiquei tentada a parar de resistir a ele, a deixar-me levar pela
corrente de sua vontade até o golfo de sua existência e lá perder a mi-
nha própria. Estava quase tão dominada por ele quanto ficara uma
vez, de um modo diferente, por outro homem. Fui tola ambas as ve-
zes. Ter cedido na primeira ocasião teria sido um erro de princípio;
ter cedido na segunda, um erro de juízo. É o que penso agora, quando
recordo a crise através do intervalo tranquilo do tempo — não estava
ciente de minha loucura no momento.
Parei imóvel sob o toque do meu hierofante. Minhas recusas esta-
vam esquecidas, meus receios, superados, minhas dúvidas, paralisa-
das. O impossível — meu casamento com St. John — rapidamente se
tornava possível. Tudo estava mudando completamente, com uma
guinada súbita. A religião chamava; os anjos me convocavam; Deus
me comandava; a vida se desenrolou como um pergaminho e os por-
tões da morte se abriram, mostrando a eternidade além. Pareceu-me
que, em nome da segurança e do êxtase que lá existia, tudo na terra
poderia ser sacrificado em um segundo. A sala escura estava cheia de
visões.
— Poderia decidir agora? — perguntou o missionário.
A pergunta foi feita em um tom gentil e ele me puxou para perto
com a mesma gentileza. Ah, aquela gentileza! Como é mais potente
que a força! Eu podia resistir à ira de St. John, mas dobrei-me como
um junco sob sua gentileza. No entanto, o tempo todo eu sabia que,
mesmo se cedesse naquele momento, ele ainda faria com que me arre-
pendesse de minha rebelião anterior. Sua natureza não tinha mudado
após uma hora de prece solene, apenas se elevara.
— Se apenas tivesse certeza, eu poderia decidir — respondi. — Se
apenas estivesse convencida de que é a vontade de Deus que me case
com o senhor, poderia jurar desposá-lo aqui e agora, não importando
o que viesse depois!
— Minhas preces foram ouvidas! — exclamou St. John.
Ele apertou a mão com mais força na minha cabeça, como se me
reivindicasse. Cercou-me com o braço, quase como se me amasse (eu
digo quase pois sabia a diferença, já tendo sentido o que era ser ama-
da, mas, como ele, tinha excluído o amor de minhas considerações e
pensava apenas no dever). Lutei com a obscuridade de minha visão
interna, diante da qual nuvens ainda passavam. Sincera, profunda e
fervorosamente desejei fazer o que era certo, e apenas isso. Mostre-
me, mostre-me o caminho!, eu implorei aos céus. Estava mais exaltada
do que nunca, e se o que aconteceu em seguida foi efeito dessa excita-
ção, o leitor julgará.
A casa estava imóvel, pois acredito que todos, exceto St. John e eu
mesma, tinham ido dormir. A única vela se apagava e a sala estava
banhada pelo luar. Meu coração batia rápido e forte; eu o ouvia pulsar.
De repente, imobilizou-se — uma sensação inexprimível o atravessou
e alcançou de imediato minha cabeça e extremidades. Não foi como
um choque elétrico, mas igualmente aguda, estranha e surpreendente.
Agiu sobre meus sentidos como se toda a atividade deles, até então, ti-
vesse sido apenas um torpor do qual eram convocados e obrigados a
despertar. Eles se ergueram com expectativa: olhos e ouvidos aguar-
davam enquanto a carne tremia nos meus ossos.
— O que ouviu? O que vê? — perguntou St. John.
Eu não via nada, mas ouvi uma voz gritar em algum lugar: “Jane!
Jane! Jane!” e nada mais.
— Ah, Deus! O que é? — ofeguei.
Eu poderia ter dito “Onde está?” pois não parecia vir da sala, nem
da casa, nem do jardim. Não vinha do ar, não vinha de baixo da terra,
não vinha de cima. Eu a ouvira, mas onde, ou de onde, seria sempre
impossível saber! Mas era a voz de um ser humano — uma voz conhe-
cida, amada, bem lembrada: a voz de Edward Fairfax Rochester, e fa-
lava com dor e pesar: desvairada, misteriosa, urgente.
— Estou indo! — exclamei. — Espere por mim! Ah, estou indo!
Voei até a porta e olhei o corredor; estava escuro. Corri até o jar-
dim; estava vazio.
— Onde está você? — exclamei.
As colinas atrás de Marsh Glen trouxeram a resposta baixa: “Onde
está você?”, eu ouvi. O vento suspirou baixo entre os abetos; tudo era
charneca, solidão e silêncio da noite.
— Fora, superstição! — exclamei, enquanto aquele espectro erguia-se
sombrio junto ao teixo preto no portão. — Isso não é enganação nem
feitiçaria sua, mas obra da natureza. Ela foi despertada e fez… não um
milagre, mas o seu melhor.
Separei-me de St. John, que tinha me seguido e teria me segurado
ali. Era a minha hora de assumir a ascendência. As minhas capacida-
des estavam em jogo e em vigor. Eu lhe disse para esquecer perguntas
ou comentários; queria que me deixasse em paz. Precisava ficar a sós,
e ficaria. Ele me obedeceu de imediato. Onde há energia para coman-
dar bem, a obediência nunca falha. Subi ao meu quarto, tranquei-me
ali, caí de joelhos e rezei do meu próprio jeito — um jeito diferente do
de St. John, mas efetivo a seu modo. Senti que cheguei muito perto de
um Espírito Poderoso, e minha alma disparou em gratidão até os seus
pés. Ergui-me da ação de graças, fiz uma resolução e me deitei — sem
medo, esclarecida, ansiando apenas pelo amanhecer.
180. Em Mateus 18:21-22, Pedro pergunta a Jesus se deve perdoar quem peca
contra ele até sete vezes, ao que Jesus responde: “Não te digo que até
sete; mas até setenta vezes sete.” A escritora Emily Brontë, irmã da auto-
ra, faz alusão a essa mesma passagem em seu romance O Morro dos
Ventos Uivantes.
↵
181. Alusão a Apocalipse 21:1-4.
↵
182. Apocalipse 21:7-8.
↵
183. Alusão a Amós 4:11.
↵
184. João 9:4.
↵
185. Lucas 16:19-31.
↵
Capítulo XXXVI
CONCLUSÃO
“No futuro, sempre que imaginar que o sr. Rochester pensa bem
de você, pegue esses dois retratos e os compare. Diga ‘O sr. Ro-
chester provavelmente conquistaria o amor dessa nobre dama,
se escolhesse buscá-lo; é provável que desperdice um pensa-
mento sério com uma plebeia indigente e insignificante?’”. (p.
213)
***
REFERÊNCIAS
B869j
Brontë, Charlotte
Formato: epub
E-ISBN: 978-65-80210-27-5
1a edição, 2023
Todos os direitos desta edição reservados à
Antofágica
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youtube.com/antofagica
Rio de Janeiro – RJ
Ela é tudo.
Ele é apenas o sr. Rochester.
Frankenstein
Shelley, Mary
9786580210350
329 páginas